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TEORIA
O centenário
do PCB
e a esquerda
marxista na
atualidade
Parte 2: Do golpe de 1964 à defesa
da Nova República
MICHEL GOULART
DA SILVA
N
a primeira parte deste artigo, publicada
na edição anterior,
discutimos o processo de
elaboração teórica e política da revolução por etapas e da colaboração de
classes por parte do PCB,
desde a sua fundação até a
década de 1950. Nesta segunda parte, analisaremos
os desdobramentos dessas
elaborações na política do
partido diante do golpe e da
ditadura iniciada em 1964 e
como impactou o PCB diante da Nova República.
Essas elaborações teóricas e políticas se mostraram desastrosas, em
especial por ter sido um
dos fatores que explica a
derrota dos trabalhadores que levou à vitória dos
militares e da burguesia
no golpe de 1964. O próprio PCB assumiu os seus
equívocos, diante da derrota. No ano seguinte ao
“A vitória do golpe militar pôs a descoberto muitas
de nossas mais sérias debilidades. Fomos colhidos de
surpresa pelo desfecho dos
acontecimentos e despreparados não apenas para
enfrentá-los, como também
para prosseguir com segusas atividades nas novas
condições criadas no País.
ça depositada no ‘dispositivo
militar’ de Goulart. Também
falsa era a perspectiva, que
então apresentávamos ao
Partido e às massas, de uma
vitória falsa e imediata. Nossas ilusões de classe, nosso
reboquismo em relação ao
setor da burguesia nacional
que estava no Poder, tornaram-se evidentes”`1.
O PCB também parecia desiludido com a
burguesia “progressista”,
demonstrando até certo
ponto um sentimento de
traição:
“Uniam-se os reacionários e entreguistas, que
conseguiam atrair para
seu lado amplos setores da
burguesia nacional e da
pequena burguesia urbana,
descontentes com a situação e que não concordavam
com as crescentes ameaças
ao regime constitucional
vigente. As forças da direita
armavam-se e preparavam
aceleradamente o golpe”2.
Portanto, durante décadas, o PCB teorizou sobre relações econômicas
e sociais inexistentes e
desenvolveu uma política
ilusória, não preparando
os trabalhadores para o
processo de acirramento
da luta de classes. Os trabalhadores eram enganados a enxergar seus algozes como aliados na construção de uma sociedade
futura, sendo iludidos de
que os seus interesses
contraditórios com a burguesia eram secundários
em relação ao embate
com os “resquícios feudais”. Quanto à burguesia,
ainda que com todas as
divergências que pudesse ter entre as várias frações, “apavorada diante
do movimento de massas,
que se radicalizava antes
de 1964, escapando das
mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para
promover contra João
Goulart o golpe que, em
última instância, era dirigido contra as massas”3.
Esse balanço do contexto do golpe, feito por
um dos grupos trotskistas
que se reorganizou durante a ditadura, também
contém elementos de uma
dura crítica à atuação do
PCB. Segundo a Organização Comunista 1º de
Maio, durante o período
anterior a 1964, o PCB:
“[...] havia conseguido
impor a setores das massas
a ilusão da tomada do poder
preparado para aparar e rebater os golpes que sempre
estão sendo tramados pelos
14
Setembro de 2022
inimigos nem para a tomada do poder, pois, verdadeiramente, não o colocava
como objetivo”4.
Embora o PCB tenha
chegado em falar sobre
uma “surpresa no desfecho”, se referindo ao golpe
e ao papel da burguesia,
para os marxistas nada
daquilo era novidade. Os
trotskistas, que se constituíram como corrente independente do PCB desde
o começo da década de
1930, demonstraram em
diversas análises a incapacidade da burguesia
em fazer qualquer transformação na sociedade
brasileira, defendendo a
necessidade de organização independente dos trabalhadores e luta pela revolução socialista. Sobre a
burguesia, os fundadores
do trotskismo no Brasil
neiro de 1931:
“Nenhuma fração da
burguesia, por mais liberal
que seja o seu rótulo, pode
efetivar as promessas democráticas. A luta de classes é mais poderosa do que
as abstrações do liberalismo
político. Na fase imperialista do capitalismo a democracia burguesa – democracia formal – não passa
não tem mais interesse direto na realização das reivindicações democráticas”5.
Os trotskistas também
chamaram a atenção para
o fato de que as particularidades do desenvolvimento capitalista não
poderiam ser um fator
determinante no processo
de transformação política
e social. Essas particularidades deveriam ser vistas
como parte do processo
internacional de dinâmica
do capitalismo, ou seja, a
revolução em um país invariavelmente seria parte da revolução mundial.
Nesse sentido, os marxistas não poderiam subordinar suas táticas e muito
menos sua estratégia às
particularidades do desenvolvimento econômi-
aos interesses da burguesia nativa, mas analisar
sua dinâmica e interesses
diante do imperialismo.
Em 1933, os trotskistas
“[...] o dogma centrista
da subordinação da atividade dos partidos comunistas aos caracteres gerais do
desenvolvimento capitalista, isto é, da subordinação
da estratégia revolucionária, em cada país, a um
tipo abstrato de capitalismo
nacional, leva uma medida
de idealismo aos partidos
comunistas para a avaliação das forças da revolução
e das suas tarefas imediatas. A distinção dada pelo
programa da IC entre países maduros e países não
maduros para o socialismo
nada tem de marxista”6.
Contudo, os erros cometidos pelo PCB não
que o partido mudasse as
bases de sua política. Para
o partido, o fato de sua
política de colaboração
de classes ter colocado o
proletariado a reboque
dos interesses e movimentações da burguesia
parecia ser o menor dos
problemas. Pelo contrário, diante do golpe de
1964, o PCB faz o balanço
de que suas moderadas
críticas a João Goulart teriam enfraquecido o go-
verno e ajudado na ação
dos golpistas:
“Nossa atividade em relação ao governo de Goulart
era orientada, na prática,
como se sua política fosse
quase inteiramente negativa. Desprezávamos seus aspectos positivos de grande
importância, como, em sua
política externa, a defesa
da paz, da autodeterminação dos povos, do princípio
de não-intervenção, o desenvolvimento das relações
diplomáticas e comerciais
com os países socialistas, e,
sua política, interna, relativo respeito às liberdades
democráticas, o atendimento de reivindicações dos trabalhadores”7.
Portanto, para o PCB,
João Goulart não teria
sido derrubado por sua
política vacilante em relação ao imperialismo e sua
tares respeitariam a democracia burguesia, mas
por suas medidas pretensamente progressistas. O
erro do PCB, por sua vez,
não estaria em se negar a
organizar os trabalhadores de forma independente do governo, mas de não
ver os esforços de Jango
para aplicar suas medidas
pretensamente progressistas. O PCB assim fazia
um balanço:
“Concentrando
nosso
fogo no governo, exigíamos medidas cada vez mais
avançadas, sem levar em
conta nossas próprias debilidades e a fraqueza do
movimento nacionalista e
democrático, bem como a
efetiva correlação de forças
sociais que então existia, o
que põe a nu a persistente
em nossas atividades”8.
Em outras palavras,
os trabalhadores não estavam prontos para uma
luta mais avançada, mas o
PCB parecia esquecer que
esse avanço na organização e na consciência era
tarefa do próprio partido.
Essa postura teve continuidade ainda durante a
ditadura, em particular na
política de alianças com
a burguesia. Os trabalhadores deveriam aproveitar os embates internos
dentro das classes dominantes e, a partir disso,
se aliar às frações que se
colocassem na oposição a
aspectos da ditadura. Em
“A burguesia nacional
participa da frente antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada.
Outros setores das classes
dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo ditatorial,
podem participar de ações
contra o regime e ser úteis
à ativação e fortalecimento
da frente antiditatorial”9.
Essa compreensão levou a que, durante a ditadura, a política do PCB
tenha passado à completa integração do partido à institucionalidade
burguesa, priorizando a
intervenção dentro do
Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), partido
de oposição consentida da
ditadura, e a construção
da unidade com o sindicalismo pelego. O centro
da política continuava a
passar pela unidade com
a burguesia:
“Na luta contra a ditadura fascista, os comunistas consideram necessário
aglutinar todas as forças
que, em maior ou menor
grau, estão em contradição
com o regime, incluindo
não só o MDB, a Igreja e a
burguesia não monopolista, mas também setores das
FFAA, da ARENA e até mesmo de alguns representantes dos monopólios, descontentes com o caráter fascista
assumido pelo regime”10.
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Em relação à dinâmica
da revolução, pouco mudou na sua perspectiva
em relação ao desenvolvimento capitalista, relacionando-o à defesa da
democracia:
“O caminho da revolução brasileira, orientado
para o socialismo, é democrático e nacional. Ele exige
a mais completa democracia e a supressão dos obstáculos históricos que impedem o progresso nacional,
a supressão da dominação
imperialista, monopolista e
latifundiária”11.
Portanto, o PCB trabalhava na lógica do combate
indireto contra a ditadura,
institucionalizado e tendo
como centro a “frente democrática e sua inserção
no sistema político-institucional”12. O PCB acabou
priorizando a unidade ampla a todo custo, inclusive
do ponto de vista partidário e sindical, se afastando
dos setores combativos
que construíam o PT e da
CUT. Em 1981, o PCB chegou a denunciar que “multiplica-se no seio da classe
operária e do movimento
sindical a ação de correntes
‘esquerdistas’ que, no geral,
se orientam por posições
que não favorecem a unidade do proletariado e sua necessária aliança com outras
forças sociais”`13. O “esquerdismo” aqui criticado nada
mais era do que a defesa da
independência em relação
ao PMDB e ao sindicalismo
“pelego”. Essa postura do
PCB fez com que o partido
seguisse dentro do PMDB
até conseguir sua legalização, em 1985, e permanecesse na CGT, central onde
se reunia o “sindicalismo de
resultados”, até 1990, quan-
Portanto, analisando sua
trajetória, não é surpresa o
processo que levou o partido, no começo da década
de 1990, diante do esfacelamento do stalinismo e do
colapso da União Soviética,
ao completo abandono de
uma perspectiva revolucionária. Esse processo se
desenvolveu ao longo de
décadas, desde que o partido começou a construir
15
do, seríamos cada vez mais
residuais, e não íamos dar
uma resposta ao capitalismo que aí está, sem persmente na sociedade brasi16
leira” . Em sua busca evitar
se isolar, o PPS chegou a se
tornar um aliado de partidos de direita, compondo
governos de diferentes matizes ideológicas e, inclusive, defendendo o impeachment de Dilma em 2016.
Na década de 1990,
marcada pela ofensiva
ideológica e econômica
do capitalismo em todo o
mundo, viu-se extremas
sua política de colaboração
de classes, ainda na década de 1920. Nesse sentido,
foi uma caminhada lógica
a completa destruição do
partido em seu congresso
de 1991. Nesse congresso,
o PCB abandonou formalmando em sua resolução:
“As concepções de ditadura do proletariado, de monopólio do poder pelo partido
único, da predominância dos
quadros sobre a participação
das massas, produtos de uma
época determinada, tudo isso
exauriu-se. Há que buscar
uma nova forma-partido,
com um anova teoria e nova
cultura, extraída da rica herança teórico-política do movimento socialista e da nova
realidade do mundo, resgatando a melhor tradição do
pensamento marxista”14.
Roberto Freire, então
líder do partido e um dos
principais articuladores da
transformação do PCB em
PPS, dizia ser necessário
“começar a discutir qual o
socialismo que queremos”,
propondo que fosse algo
entre “o modelo do socialismo real, de centralização
política e econômica” e o
esgotado social-democrata15
“se continuássemos nessa
posição estrita e dogmática,
íamos continuar vegetan-
construção de organizações revolucionárias, em
consequência da fragmentação e do abandono quase
generalizado do referencial
teórico marxista. No caso
do PCB, um pequeno grupo
dissidente iniciou o que foi
chamado de “reconstrução
revolucionária”, mas, apesar de alguns avanços, é
comum a esse grupo esbarrar em resquícios do stalinismo. Um exemplo disso
pode ser visto nas resoluções do congresso de 1996,
em que corretamente critica a integração do partido
às instituições do Estado na
década de 1980. Contudo,
ma que, no período anterior
ao golpe de 1964, a aliança
com “frações da burguesia
industrial criou as condições, à época, para o desenvolvimento de importante
trabalho de conscientização e politização das massas”17. Em sua equivocada
avaliação, era correta uma
aliança, ainda que tática,
com a burguesia e isso, inclusive, teria sido importante no processo de organização dos trabalhadores.
Esse breve panorama
mostra a urgência de se
construir uma verdadeira
organização revolucionária no Brasil. Para tanto,
é fundamental fazer um
balanço profundo da trajetória do PCB e sua política stalinista, mostrando
seus erros e traições. Outro aspecto central passa
por reconhecer e estudar a fundo as contribuições dos trotskistas, que,
mesmo nadando contra
a corrente, ao longo do
século elaboraram políticas corretas em conjunturas adversas, entre
outras coisas analisando
o bonapartismo getulista,
defendendo a necessidade da independência de
classe na luta contra a ditadura e reivindicando a
construção de uma internacional operária. Existe
também a necessidade de
se conectar às massas trabalhadoras, elaborando
um programa que ligue
as demandas mais sentidas com a necessidade da
transição para a ditadura
do proletariado. Somente
sob essas bases mínimas
será possível construir
um verdadeiro partido
revolucionário, operário e
internacionalista.
cionárias. 2ª ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2006, p.
392.
4
Organização Comunista 1º
de Maio. Algumas considerações sobre a formação
da direção revolucionária
do proletariado [janeiro de
1971]. In: Daniel Aarão Reis
Filho & Jair Ferreira de
Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2006, p.
393.
5
Aos trabalhadores do
Brasil. In: Fúlvio Abramo;
Dainis Karepovs. Na contracorrente da História:
documentos do trotskismo
brasileiro (1930-1940). 2ª
ed. São Paulo: Sundermann,
2015, p 58.
Liga Comunista [prov.].
Projeto de teses sobre situação nacional [prov. 1933].
In: Fúlvio Abramo; Dainis
Karepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed.
São Paulo: Sundermann,
2015, p. 125.
7
Resolução política do
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro
(1965). In: Edgard Carone
(org.). O PCB (1964-1982).
São Paulo: DIFEL, 1982, vol.
3, p. 25.
8
Resolução política do
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro
(1965). In: Edgard Carone
(org.). O PCB (1964-1982).
São Paulo: DIFEL, 1982, vol.
3, p. 25.
9
VI Congresso do PCB
(dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB
(1964-1982). São Paulo:
DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73.
10
Resolução política do CC
do PCB (dezembro de 1975).
In: Edgard Carone (org.). O
PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p.
169.
11
Teses para um debate nacional pela legalidade do
PCB (maio de 1981). In: Edgard Carone (org.). O PCB
(1964-1982). São Paulo:
DIFEL, 1982, vol. 3, p. 280.
12
Marco Aurélio Santana.
Homens partidos comunistas e sindicatos no Brasil.
São Paulo: Boitempo, 2001,
p. 245.
13
Teses para um debate nacional pela legalidade do
PCB (maio de 1981). In: Edgard Carone (org.). O PCB
(1964-1982). São Paulo:
DIFEL, 1982, vol. 3.
14
Declaração política do IX
Congresso do PCB. In: Roberto Freire. O que mudou
no PCB? Brasília: Novos
Rumos, 1991, p. 111.
15
Roberto Freire. O que
mudou no PCB? Brasília:
Novos Rumos, 1991, p. 31.
16
Roberto Freire. O que
mudou no PCB? Brasília:
Novos Rumos, 1991, p. 31-2.
17
PCB. Resoluções do XI
Congresso. Rio de Janeiro,
março de 1996, p. 10.
Desaparecidos Ditadura Militar - Guerrilha do Araguaia
NOTAS
Resolução política do
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro
(1965). In: Edgard Carone
(org.). O PCB (1964-1982).
São Paulo: DIFEL, 1982, vol.
3, p. 24.
2
Resolução política do
Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro
(1965). In: Edgard Carone
(org.). O PCB (1964-1982).
São Paulo: DIFEL, 1982, vol.
3, p. 26.
3
Organização Comunista 1º
de Maio. Algumas considerações sobre a formação
da direção revolucionária
do proletariado [janeiro de
1971]. In: Daniel Aarão Reis
Filho & Jair Ferreira de
Sá (org.). Imagens revolu1
6