TEORIA DAS EMOÇÕES EM VIGOTSKI1
*
Letícia Vier Machado
¶
Marilda Gonçalves Dias Facci
æ
Sonia Mari Shima Barroco
RESUMO. Este artigo explora o estudo da emoção na obra de Vigotski, elencando alguns textos que demonstram sua
concepção subjacente de emoção anterior à principal publicação dessa temática, Teoria das emoções, escrita entre 1931 e
1933 e deixada inacabada pelo autor na ocasião de seu falecimento. Esta, pelo resgate da base filosófica cartesiana das
psicologias das emoções, apresenta o caráter predominantemente naturalista na ciência psicológica do começo do século XX.
Vigotski analisa a necessidade de resgatar a dialética entre fatores biológicos e culturais na constituição das emoções, de
maneira a pensá-las, quanto às suas possibilidades de desenvolvimento e transformação, atreladas a condições históricosociais.
Palavras-chave: emoções; psicologia histórico-cultural; dialética.
EMOTIONS THEORY IN VIGOTSKI
ABSTRACT. This article explores the study of emotions in the Vigotski work, listing some texts that demonstrate his
underlying conception of emotion before the main publishing about this subject, Emotions Theory, written between 1931 and
1933, and left unfinished by the author due to his death. This book, with the recuperation of the philosophic Cartesian base
in Psychologies of emotions, introduces the predominant naturalism in Psychological science in the early twentieth century.
Vigotsky analyses the need to rescue the dialectic between biological and cultural factors in the emotions constitution, to
conceive them in terms of their possibilities of development and transformation, linked to historical and social conditions.
Key words: Emotions; historic-cultural psychology; dialectics..
TEORÍA DE LAS EMOCIONES EN VIGOTSKI
RESUMEN. Ese artículo explora el estudio de la emoción en la obra de Vigotski, elencando algunos textos que
demuestram su concepción subyacente de emoción anterior a la principal publicación de esa temática, Teoría de las
emociones, escrita entre 1931 y 1933, y dejada inacabada por el autor en la ocasión de su fallecimiento. Esa, por el
rescate de la base filosófica cartesiana de las psicologías de las emociones, presenta el carácter predominantemente
naturalista en la ciencia psicológica del comienzo del siglo XX. Vigotski analiza la necesidad de rescatar la dialética
entre fatores biológicos y culturales en la constitución de las emociones, de manera a pensarlas en sus posibilidades de
desarollo y transformación, conectada a condiciones histórico-sociales.
Palabras-clave: Emociones; psicología histórico-cultural; dialéctica.
A Psicologia de Lev Semenovitch Vigotski vem
progressivamente ganhando visibilidade no cenário
científico contemporâneo. No Brasil, isso pode ser
comprovado pelo número crescente de publicações em
periódicos científicos, como também por meio do
cadastramento de grupos de pesquisa no Diretório de
Pesquisas do CNPq. A vasta e intensa produção do
autor e a dificuldade de acesso a ela - tomada aqui
1
Apoio: CNPq.
*
Discente do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica CNPq.
¶
Doutora em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara e Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP-SP. Trabalha
na Universidade Estadual de Maringá, Brasil.
æ
Doutora em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara e Pós-Doutorado no Instituto de Psicologia da USP-SP. Trabalha na
Universidade Estadual de Maringá, Brasil.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
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como fonte primária na língua de origem, o russo - e
as diferentes traduções e interpretações da obra não
esgotaram o estudo acerca das diversas temáticas
abordadas pelo autor. Nessas produções Vigotski dá
vazão
à
problemática
do
desenvolvimento
ontogenético, da triangulação biológico-históricocultural e da questão pensamento-linguagem, além de
temas que subjazem a essas temáticas centrais, como a
constituição e o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, como imaginação, memória,
atenção, abstração e emoção. Não obstante a temática
da emoção ter perpassado toda a produção do autor,
desde seus primeiros trabalhos de cunho não
psicológico e a redação de Psicologia da Arte
(Vigotski, 2001), na qual o autor analisa o fenômeno
da emoção estética provocada ante uma obra de arte,
há poucas evidências de estudos sobre as emoções em
Vigotski.
Nota-se que não é comum nos cursos de
graduação em Psicologia que esta obra seja arrolada
nas referências como bibliografia de disciplinas que
abordam os fundamentos da Psicologia. Da mesma
forma, também não tem sido recorrente que essa
temática ou essa produção vigotskiana específica
recebam a atenção que merecem dentro do propósito
de se explicar a formação social da mente. Sobre
aqueles autores que analisaram a temática das
emoções em Vigotski, registra-se que ensaiaram uma
aproximação com outros teóricos, como Jean-Paul
Sartre (Maheirie & Diogo, 2007), Norbert Elias
(Oliveira, 2009) Sigmund Freud (Magiolino &
Smolka, 2010) e Gilles Deleuze (Mostafa, 2008), para
citar alguns. Assim podemos considerar que, embora
os autores tragam subsídios para o estudo da temática,
ainda é necessária uma análise detida da obra Teoria
das emoções, de Vigotski, uma análise que leve em
conta que essa obra tem como norte a base materialista
geralmente adotada pelo autor em suas elaborações.
É neste sentido que gostaríamos de contribuir para
o estudo deste tema. Nosso objetivo, neste artigo, é
apresentar dados de um estudo da emoção na obra de
Vigotski realizado nos anos de 2009-2010, tendo
como obra central a Teoria das emoções (Vygotsky,
1998; Vigotsky, 2004). Isso requer que não apenas nos
reportemos aos seus escritos, mas façamos destaques
de autores contemporâneos seus ou de séculos
anteriores, para compreendermos suas bases
filosóficas e sua apreensão daquilo que a Psicologia já
havia produzido acerca da temática eleita, bem como
de suas contraposições.
Em um primeiro momento, abordaremos duas
conferências de Vigotski que tangenciaram o tema de
seu estudo posterior sobre a emoção, a fim de elucidar
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
Machado et al.
a concepção de emoção que já subjazia a seus escritos.
Em seguida nos aprofundaremos no estudo da Teoria
das emoções, para resgatar suas bases filosóficas e a
dialética dos fatores biológicos e culturais no
desenvolvimento emocional.
A TRILHA DE VIGOTSKI PELAS EMOÇÕES
Em pesquisa realizada na base de dados Scielo
(Scientific Eletronic Library Online), em 26 de março
de 2010, com os descritores emoção, educação e
Psicologia, foi encontrado um total de 43 produções
científicas, sendo que deste total, dois artigos
discorriam sobre a emoção em Vigotski. Como
possíveis causas da insuficiência de estudos nesse
âmbito, Rey (2000) indica o desenvolvimento da
psicologia cognitiva nos anos 1950, as influências da
linguística e da semiótica na psicologia do PósGuerra, que conduziram as emoções a um
epifenômeno em meio aos demais fenômenos
psicológicos, como a linguagem e o pensamento, e a
ausência de um marco teórico sólido para a construção
de um conhecimento científico sobre o tema.
Não obstante Vigotski ter escrito Teoria das
emoções (Vigotsky, 2004) entre 1931 e 1933, época
anterior ao ano de de seu falecimento, e ter deixado a
obra incompleta, ampliando as possibilidades de
interpretação ambígua ou errônea do conteúdo por ele
ilustrado, seus estudos deixaram contribuições à
temática. O livro teve sua primeira publicação na
Rússia tardiamente, em 1984 (Zavialoff, 1998). Num
diálogo com o filósofo holandês Baruch de Espinosa,
do século XVII, em contraposição ao filósofo René
Descartes, o autor procura demonstrar que as
psicologias de seu contexto, que se diziam
espinosistas em suas teorias das emoções, eram,
fundamentalmente, cartesianas e dualistas.
Em Psicologia da Arte (Vigotski, 2001) o autor
antecipa algumas das considerações sobre a emoção
que iriam ser desenvolvidas oito anos mais tarde, em
Teoria das emoções. Sobre essas considerações,
Toassa (2009, p. 99) ressalta que Vigotski
(...) nega as teorias que reduzem a arte à
sensação ou à emoção comum. Admite,
ainda,
a
existência
de
emoções
desencadeadas por fatos que não dependem
meramente do estímulo perceptual –
diferindo, neste ponto, das emoções animais.
Temos, aí, um antecedente histórico para sua
dura crítica às psicologias que adotavam o
binômio estímulo-reação como paradigma de
pesquisa da psicologia humana.
Teoria das emoções
Vigotski se referia àquelas psicologias que tinham
suas teorias das emoções embasadas no dualismo
cartesiano, marco da filosofia do século XVI. Essas
psicologias, entre elas a psicologia de Carl Lange
(1834-1900), supunham-se herdeiras do monismo de
Baruch [Bento] Espinosa (1632-1677), o que servirá
como instigador para a tarefa que Vigotski
empreendeu de elucidar as verdadeiras bases
filosóficas sobre as quais se erigiram as teorias das
emoções de seu tempo.
Na década de 1930 Vigotski empreende a redação
de duas conferências que abordam ou tangenciam a
temática das emoções em seu sistema de pensamento:
A imaginação e seu desenvolvimento na infância e As
emoções e seu desenvolvimento na criança, esta
última publicada pela primeira vez em 1932 (Clot,
1997).
Em A imaginação e seu desenvolvimento na
infância (Vigotski, 1998) o autor faz uma breve
explanação de como a imaginação é abordada na
psicologia de Sigmund Freud (1856-1939), de Jean
Piaget (1896-1980) e de outros autores. Para Vigotski,
na velha psicologia, ou seja, na psicologia tradicional
de sua época, que ora privilegiava estudos sobre o
comportamento, ora dava destaque à consciência (esta,
não raro, era estreitamente vinculada à fisiologia), a
imaginação era reduzida a outras funções psicológicas,
subdividindo-se em imaginação reprodutora, quando
análoga à memória, e imaginação criadora. Fazendo
frente a esse modo de conceber a imaginação –
característica propriamente humana –, o autor a
aborda sob essas duas formas, porém não apenas
descrevendo-as, mas elaborando uma explicação que
põe aspectos biológicos e histórico-culturais em
intrínseca relação.
O processo criativo, por sua vez, era entendido
apenas como associação de elementos preexistentes
que se combinavam em um número de possibilidades
finitas, como se observa em Wundt e psicólogos da
época, que “consideravam que a fantasia do homem
está limitada, por princípio, pela quantidade de
imagens obtidas por associação e que nenhuma nova
conexão não vivida entre os elementos pode se somar
ao processo da atividade da imaginação.” (Vigotski,
1998, p. 111).
Essa concepção associacionista de imaginação
não abre possibilidades de criação para além do que já
preexiste no psiquismo, ou seja, para além da
casualidade. Acrescenta-se a isso que, assim como
ocorreu com a emoção na psicologia - que, de acordo
com Vigotski (1998), foi um processo psicológico
pouco estudado e classificado como epifenômeno, ou
seja, um fenômeno psicológico secundário - ocorreu
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
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também com a imaginação, sobretudo no que diz
respeito à imaginação criativa. O autor enuncia a
importância da imaginação criativa para a história da
psicologia, como fará com as emoções em Teoria das
emoções, enaltecendo a importância desse fenômeno
para a cisão das correntes filosóficas e psicológicas
em psicologia causal ou explicativa (ponto de vista
atomista) e psicologia descritiva (intuitiva).
Para Vigotski (1998, p. 113), ambas as correntes
resolveram a questão da imaginação de maneira
metafísica: “(...) ao tomar como original a atividade
reprodutora da consciência, fechavam o caminho para
explicar como surge a atividade criativa no processo
de desenvolvimento”. Em contrapartida, a concepção
vigotskiana da imaginação criativa difere dessas
psicologias, pois Vigotski concebe o desenvolvimento
da imaginação e sua capacidade de conexões díspares
como não casuais e atrelados às condições históricosociais, como veremos no decorrer do texto.
A experiência da imaginação concebida por
Vigotski (1998) é um pensamento que ao mesmo
tempo se afasta da realidade imediata e se orienta para
ela, uma vez que se acopla com aspectos emocionais.
Neste sentido, a emoção desempenha o papel de
mediadora, que conecta realidade imediata e
imaginação, e não é só a imaginação que é rica em
momentos emocionais, mas também o é o pensamento
realista:
Se tomarmos o pensamento realista de um
revolucionário, que reflete sobre uma
complicada situação política ou a estuda, que
penetra nela, em suma, se tomarmos o
pensamento orientado para a resolução de
uma tarefa de importância vital para o
indivíduo, veremos que as emoções
relacionadas com tal pensamento realista são,
com muita freqüência, incomensuravelmente
mais profundas, mais fortes, mais móveis e
mais significativas no sistema do pensamento
do que as emoções relacionadas com as
visões. O importante aqui é outro
procedimento de união dos processos
emocionais com o pensamento [grifos
nossos] (Vigotski, 1998, p. 126).
Antecipa-se aqui a posição teórica de Vigotski
que será adotada em Teoria das emoções, no que diz
respeito à relação entre cognição e afeto, duas esferas
não sobrepostas, mas interdependentes do psiquismo
humano. As emoções, em Vigotski, e especificamente
nessa conferência, aparecem costurando outros
fenômenos psicológicos, como a imaginação e o
pensamento, mas não como epifenômenos ou
fenômenos auxiliares: assumem um papel ativo, que
650
desencadeia ações e não somente são desencadeadas
por elas. Eliminam-se, assim, as contradições entre o
interno e o externo e entre imaginação e pensamento
realista, para criar vínculos entre essas duas realidades
emocionalmente experimentadas.
Em suma, a conferência sobre imaginação é
também uma redação sobre a emoção, na medida em
que ambas as funções são classificadas como
superiores, culturalizadas, e assumem papéis
semelhantes na história da Psicologia: foram relegadas
à condição de epifenômenos, ao mesmo tempo em que
a maneira como foram estudadas pela Psicologia
demarca a cisão das correntes psicológicas em
psicologia causal e psicologia descritiva. Um dos
pontos que Vigotski procurou destacar nesse texto foi
a participação ativa da vida emocional na esfera
cognitiva do pensamento e no movimento criador, que
é a imaginação.
Na conferência seguinte, intitulada As emoções e
seu desenvolvimento na criança, Vigotsky (1997) tece
algumas críticas às concepções tradicionais da emoção
na Psicologia e antecipa algumas ideias desenvolvidas
em Teoria das emoções. Inicia sua exposição
afirmando a predominância do naturalismo na doutrina
das emoções, o qual é comparado aos demais
domínios da Psicologia.
Esse naturalismo do qual fala o autor abrange
desde a concepção darwiniana das emoções até o
behaviorismo de sua época. De acordo com a teoria do
evolucionista Charles Darwin (1809-1882), há um
vínculo entre as emoções humanas e as reações
animais instintivas, e os sentimentos humanos são de
origem
biológico-animal,
inclusive
aqueles
relacionados às paixões terrenas, ao corpo, ao egoísmo
(Vigotski, 1997). Essa teoria influenciou os psicólogos
do contexto de Vigotski, dando origem a teorias
psicológicas que preencheram os manuais soviéticos
de psicologia, ressaltando o caráter instintivo das
emoções.
Este foi o destino da psicologia inglesa, a teoria
do darwiniano Herbert Spencer (1820-1903), bem
como do psicólogo francês Théodule Ribot (18231891), e da psicologia alemã de orientação biológica,
a qual, a despeito das idiossincrasias de cada uma,
continha uma base naturalista-darwiniana das emoções
(Vigotsky, 1997). A concepção de emoção comum a
essas teorias apontava para o fato de que as emoções
humanas eram vestígios das reações animais
instintivas, enfraquecidas na sua expressão e em seu
desenvolvimento.
Trata-se, pois, de uma espécie de involução do
desenvolvimento emocional humano. De acordo com
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
Machado et al.
Vigotsky (1997, p. 125)2, “(...) a curva do
desenvolvimento das emoções é descendente (...), com
o progresso do desenvolvimento as emoções recuaram
a segundo plano (...), o homem do futuro é um homem
desprovido de emoções”. Com isso, Vigotsky (1997)
destaca
a
impossibilidade
de
estudar
as
particularidades
das
emoções
exclusivamente
humanas, uma vez que o avanço do psiquismo
implicava no recuo da parcela emocional da vida
psíquica. Os protagonistas dessa concepção de
emoção como decorrente de reações orgânicas, aos
quais Vigotski dedica parte de seu estudo em Teoria
das Emoções, eram o fisiologista Carl Lange e o
psicólogo William James (1842-1910).
As críticas vigotskianas a James-Lange afirmam
que esses autores concederam às emoções uma parte
isolada do psiquismo, uma vez que as consideravam
como processos de uma natureza totalmente distinta e
peculiar, separando-as, assim, tanto do pensamento
quanto da consciência (Vigotsky, 1997). Estão postas
assim as condições para o retorno ao dualismo
cartesiano mente-corpo, cognição-afeto. Essa teoria
impossibilita
conceber
um
desenvolvimento
emocional ou o aparecimento de novas emoções, uma
vez que, para William James, as emoções estavam
associadas aos órgãos internos, pouco ou nada
variáveis no decorrer do desenvolvimento humano.
Nas palavras do autor, “(...) a teoria de James e Lange
fechava todas as portas, mais hermeticamente do que
todos os precedentes, à questão do desenvolvimento
da via emocional” (Vigotsky, 1997, p. 131).
Avançando um pouco no desenvolvimento das
teorias das emoções desse período, Vigotsky (1997)
discorre sobre as contribuições do fisiologista Walter
Cannon, que, na década de 1920, por meio de suas
pesquisas em laboratórios com animais, refutou a
existência de uma correspondência unívoca entre
emoção e expressão corporal, o que indica que, para
Cannon, a emoção transcende sua expressão
fisiológica, considerando que emoções tão distintas,
como medo e alegria, podem resultar numa mesma
expressão.
Outra contribuição de Cannon, de acordo com
Vigotsky (1997), foi reconectar as emoções ao
cérebro, uma vez que em James-Lange as emoções
estavam ligadas aos órgãos internos e à periferia do
corpo. Para Cannon, a vida emocional dependia do
centro cerebral, porém para Vigotski (1997), a
limitação de Cannon consistiu em seguir a teoria de
James quando considerou as emoções como
2
As traduções do espanhol para o português e do francês
para o português são de responsabilidade das autoras.
Teoria das emoções
epifenômenos, reflexos na consciência de alterações
no organismo. Para Vigotski, as emoções são
funções
psicológicas
superiores,
portanto,
culturalizadas e passíveis de desenvolvimento,
transformação ou novas aparições. Além disso, a
concepção vigotskiana de emoção coloca esse
processo psicológico em estreita relação com outros
do psiquismo humano.
Vigotsky (1997) ainda menciona as contribuições
de Sigmund Freud para o estudo das emoções. Não
obstante ter permanecido um naturalista, Freud, por
meio da análise das psicopatologias, elucidou que a
natureza psicológica não poderia ser compreendida
apenas por seus mecanismos causais e fisiológicos.
Além de introduzir a concepção de desenvolvimento
emocional, mostrou que as emoções são diferentes nas
crianças e adultos.
Vigotski chegou à seguinte conclusão:
As duas linhas que tentei examinar no curso
dessa conferência são, de um lado, as
pesquisas anatômicas e fisiológicas que
deslocaram o centro da vida emocional de
mecanismos exteriores ao cérebro para um
mecanismo cerebral, e, de outro, as pesquisas
psicológicas que transferiram as emoções do
segundo plano do psiquismo humano para o
primeiro plano, tirando-as de seu isolamento
(...) para inseri-las na estrutura de todos os
outros processos psíquicos (Vigotsky, 1997,
p. 149).
Como veremos no próximo item, o autor russo
busca ir além destas concepções, entendendo as
emoções como formadas a partir de condições
histórico-sociais, portanto, aprendidas em determinado
contexto.
A OBRA TEORIA DAS EMOÇÕES
Entre 1931 e 1933 Vigotski redigiu o que viria a
compor, posteriormente, o livro Teoria das emoções.
No período em que o autor redigiu essa obra, os
manuais soviéticos de Psicologia, no que se refere à
temática das emoções, ainda estavam pautados na
reflexologia de Pavlov e nas “(...) relações entre o
reflexo condicionado e o comportamento consciente
do homem” (Zavialoff, 1998, p. 05), ou baseados no
naturalismo herdeiro da perspectiva evolucionista de
Charles Darwin.
Numa busca por produções soviéticas desse
período que abordassem a temática das emoções,
encontramos um capítulo de A. A. Smirnov intitulado
Las emociones y los sentimientos (Smirnov et al.,
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
651
1969), que compactua com muitas das ideias de
Vigotski sobre o tema. Neste, o autor procura elucidar
seus argumentos acerca da visão central de que as
emoções e os sentimentos são sociais, históricos e
determinados por relações sociais entre homens, por
classes sociais e por exigências sociais. Antes de dar
continuidade à análise da Teoria das emoções vamos
discorrer sobre a diferenciação entre sentimento e
emoção.
Para Smirnov (1969), as emoções e os
sentimentos se desenvolvem e se modificam, são
constitutivos da personalidade e permeados por
vivências e pela história. O homem deveria ser
educado para os sentimentos, no fito de desenvolver
um posicionamento ante a realidade e construir novas
formas de agir nela, novos sentimentos e uma nova
moral: a moral do homem soviético, o sentimento da
coletividade e a valorização do trabalho.
De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, o
homem age na realidade e também reage a ela. Para
Smirnov (1969), a maneira de reagir do homem ante
as coisas, os acontecimentos e as pessoas é definida
por emoções e sentimentos. Estes consistem, assim,
numa atitude subjetiva de sentir do homem que
origina-se a partir da realidade objetiva, das relações
estabelecidas na realidade objetiva com outros
homens. As emoções e os sentimentos são, ao mesmo
tempo, subjetivos para aquele que sente e objetivos em
sua gênese. O autor esclarece que nem tudo na
realidade objetiva provoca uma reação, mas apenas
aquilo que corresponde a uma necessidade ou motivo
da atividade do sujeito, que age sobre ele. De acordo
com o significado dos objetos que motivam o sujeito,
os quais dependem dos fenômenos e das atividades
que este desenvolve para cumprir as exigências sociais
às quais deve responder, tem-se a variação de
intensidade das emoções e dos sentimentos (Smirnov,
1969).
A diferenciação entre emoções e sentimentos,
para Smirnov (1969), se dá a partir da seguinte
assertiva: as emoções correspondem mais à satisfação
de necessidades orgânicas, relacionadas com as
sensações, enquanto os sentimentos correspondem a
necessidades culturais e espirituais, as quais
apareceram durante o desenvolvimento histórico da
humanidade. Os sentimentos dependem das condições
de vida do homem, de suas relações e necessidades,
porém o caráter social não é exclusivo deles, pois o
autor considera que as emoções, ainda que mais
associadas a fenômenos orgânicos, são sempre e
inevitavelmente reações de um ser social, ligadas às
exigências sociais de cada período histórico da
humanidade.
652
Machado et al.
Para Vigotski, a historicidade é também uma das
qualidades das funções superiores da emoção e do
sentimento. Além disso, a historicidade pressupõe o
desenvolvimento emocional, uma vez que a história
caminha com o desenvolvimento da humanidade e,
com isso, modificam-se os significados e sentidos dos
sentimentos e emoções: “Aquilo que em uma época
histórica provocava sentimentos especiais nos
membros de uma classe social determinada, pode
provocar sentimentos opostos nos membros de outra
classe social e em outra época histórica” (Smirnov,
1969, p. 359).
Além de seu caráter histórico, as emoções e os
sentimentos também dependem da maneira de viver da
sociedade, da classe social a que o indivíduo pertence
e de sua educação. Conforme Smirnov (1969, p. 364),
“Nos diferentes meios sociais os sentimentos se
manifestam de maneira distinta”. A maneira como a
sociedade se organiza dá origem também aos
sentimentos morais, às normas e aos sentimentos
estéticos de seus homens, que dependem também das
relações estabelecidas durante o desenvolvimento
emocional da criança, o qual, em maior ou menor
grau, enriquecerá suas experiências emocionais.
Feita essa distinção entre emoção e sentimento,
daremos continuidade ao estudo das emoções na obra
vigotskiana em tela. Redigido por Nicolas Zavialoff, o
prefácio da edição francesa de Teoria das emoções faz
uma aproximação de Vigotski com Bakhtin por meio
da semiótica, da linguagem e dos signos, e a partir
dessa relação aborda a temática das emoções. Apesar
de caracterizar Vigotski como um interacionista3,
concepção que diverge da orientação da pesquisa,
Zavialoff (1998), o redator do prefácio faz uma
coerente introdução à Teoria das emoções.
Para Zavialoff (1998), o questionamento que
movia Vigotski no estudo das emoções se referia à
relação entre sentimento e conhecimento, entre as
esferas afetiva e cognitiva no psiquismo humano. Para
o autor, cindir essas duas esferas é um dos maiores
defeitos da psicologia tradicional: “O pensamento
então se transforma inevitavelmente em uma corrente
autônoma de idéias que se pensam por si mesmas, ele
3
De acordo com Tuleski (2008, p. 51), “Vygotski nunca se
intitulou interacionista ou sociointeracionista”, como o
classificam autores contemporâneos que se apropriam de
sua teoria de maneira deturpada. A mesma autora ainda
salienta que as relações sociais às quais Vygotski se referia
eram aquelas relações sociais de produção, como cunhou
Karl Marx, e que na concepção interacionista se
transformam em meras “interações sociais, o que,
frequentemente, adquire a conotação de relações
interpessoais ou grupais” (Tuleski, 2008, p. 51).
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
é cindido de toda a plenitude da vida real, dos
impulsos, dos interesses, tendências reais do homem
que pensa” (Zavialoff, 1998, p. 6).
Zavialoff (1998) procura demonstrar como
Vigotski efetuou a complementaridade entre o
biológico e o social nos sentimentos: sem excluir as
reações instintivas, mas também sem reduzi-los a elas,
não privilegiando nenhum dos polos, o social ou o
biológico; mas se uma emoção é expressa por um
signo (palavra, gesto), ela perdura na interatividade
linguística, num plano intersubjetivo - portanto, social.
O autor do prefácio esclarece o papel da linguagem
como organizadora de emoções e meio para expressálas, como conectora dos planos fisiológico e
psicológico. Para ele, a necessidade de Vigotski em
abordar a temática das emoções surge a partir de seus
estudos sobre o pensamento e a linguagem, visto que
as concepções de linguagem e emoção estão
imbricadas pelo colorido emocional que acompanha
cada palavra, situado no tempo e na história.
Enquanto função psicológica superior, as
emoções são tratadas como processos mutáveis, como
sistemas abertos que estão “(...) a serviço de uma
transformação não somente do mundo, mas também
do sujeito, de acordo com certas estratégias cognitivas
e emocionais específicas” (Zavialoff, 1998, p. 24).
Mesmo o caráter biológico das emoções não é
permanente, pois se concebe o sistema nervoso como
em constante formação e transformação. Vigotski
aposta nas relações complexas entre o cognitivo e o
emotivo, conectadas à questão de aprendizagem, que
está diretamente imbricada com as normas e os valores
culturais; ou seja, a manifestação fisiológica das
emoções é também determinada socialmente. Para
ilustrar isto, Vigotsky (2004) dá o exemplo da visão de
uma serpente no meio do caminho, que pode provocar
reações de fuga, se a serpente é associada
culturalmente com o perigo, como ocorre em grande
parte do Ocidente, ou não, como é o caso de algumas
culturas orientais. O caráter social do sentimento, por
sua vez, está ligado à sua qualidade de signo
intersubjetivo, interiorizado e transformado em signo
intrassubjetivo (Zavialoff, 1998).
Segundo Zavialoff (1998), em Teoria das
emoções, a preocupação de Vigotski com a análise
minuciosa das teorias neurobiológicas das emoções
deve-se, em parte, a uma preocupação científica que
evitaria cair num determinismo ou reducionismo
social. O redator do prefácio ainda destaca que a
concepção vigotskiana inova em relação às
psicologias de seu tempo ao enfatizar os processos, a
mutabilidade e o desenvolvimento das funções
psicológicas. Essa inovação concorre com duas
Teoria das emoções
principais correntes da psicologia nos anos 1910-1920
na Rússia:
1) a psicologia idealista de Tchelpanov (para
essa psicologia, as leis da alma não se
confundem com as funções do cérebro
mesmo se elas servem para exercer sua
autonomia), 2) a abordagem naturalista e
mecanicista (reatológica) de Kornilov [aluno
de Tchelpanov e diretor do Instituto de
Psicologia de Moscou em 1923] que, durante
um tempo, seduziu Vygotsky (Zavialoff,
1998, p. 45).
Em contraposição a essas correntes dominantes de
seu contexto, em sua teoria Vigotski situa as emoções
no mesmo plano das demais funções psicológicas,
nem aquém – como faz a teoria organicista –
tampouco além, como uma transcendência afetiva.
Além disso, o elemento do desenvolvimento ocupa
papel central nos seus escritos: diz respeito às
inovações do psiquismo humano, às revoluções que
correm
no
psiquismo.
Neste
sentido,
o
desenvolvimento e a consequente mutabilidade do
psiquismo humano revelam a adaptabilidade de suas
funções superiores.
Os aspectos fundamentais da Teoria das emoções
se resumem em desenvolvimento, transformação,
processos em contraposição às estruturas estáticas e
interdependência entre emoção e cognição. A
atualidade da obra de Vigotski é valorizada por
Zavialoff (1998) principalmente nos temas da
neurobiologia e neuropsicologia atuais. As emoções
são situadas em relação à história individual e social,
passíveis de transformação e desenvolvimento; são
funções superiores que partilham de componentes
biológico-instintivos e histórico-sociais.
Vigotsky (2004) ratifica seu estudo históricopsicológico em função da defasagem presente no
capítulo das emoções na psicologia, que afirmava já
desde a redação das conferências. Também salienta a
relevância do tema na psicologia e como este foi
esquecido ao longo do desenvolvimento das teorias
psicológicas. Coube a ele esclarecer que as teorias
psicológicas que abordavam a temática das emoções
até então estavam pautadas na filosofia de René
Descartes. Os críticos da época associavam
equivocadamente essas teorias à doutrina filosófica de
Espinosa, como o fez Carl Lange (citado por
Vigotsky, 2004) em relação à sua própria teoria, ao
afirmar que Espinosa dava continuidade à teoria das
paixões de Descartes.
A teoria de James-Lange, com pequenas
divergências, realiza a inversão clássica na relação
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
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causal entre as emoções e suas modificações
fisiológicas, sintetizada no exemplo: não choramos
porque estamos tristes, mas estamos tristes porque
choramos. Desse modo, a emoção é posterior à sua
reação fisiológica, é o resultado direto do que
anteriormente eram apenas manifestações corporais
(Vigotsky, 2004). Com isso, tais teóricos entendiam
que a emoção em si não poderia existir sem que fosse
antecedida ou acompanhada de modificações
corporais. Para William James, as emoções sem o
acompanhamento
de
modificações
corporais
consistem em meras percepções intelectuais.
Essa teoria e aquelas que dela derivaram foram de
grande sucesso e reverberam na época contemporânea.
Seu êxito, de acordo com Vigotsky (2004), relacionase com a abordagem do aspecto objetivo da natureza
das emoções, partindo da fisiologia e também
desenvolvido por outras correntes, como a psicologia
americana do comportamento, a psicologia objetiva
russa e certas tendências da psicologia soviética. A
conclusão comum a que chegaram todos esses teóricos
aponta para uma descontinuidade entre a expressão
orgânica das emoções, sua manifestação externa, e sua
vivência interna (emoção em-si), afirmando que as
manifestações corporais não sintetizam uma emoção.
Embora tenham sido muitas e difusas, as críticas à
teoria organicista mostraram-se insuficientes para
deter o sucesso de James-Lange. Segundo Vigotsky
(2004), as críticas foram insatisfatórias porque
seguiram a mesma base organicista para a psicologia
dos afetos, mostraram-se incapazes de destruir a base
patológica sobre a qual se erigiram as teorias das
emoções, além de não conseguirem se desvincular da
filosofia de Descartes, que embasou a criação da teoria
organicista, nem mesmo revelarem os erros
psicológicos da teoria de James-Lange, não
contribuindo para “(...) a construção de uma
psicologia dos afetos do homem (…)” (Vigotsky,
2004, p. 53).
A obra sobre emoções de Descartes é o Tratado
das Paixões, publicado em 1649 (Vigotsky, 2004).
Nesta obra o filósofo define que existem seis paixões
primordiais: admiração, ódio, desejo, amor, alegria e
tristeza. Com isso, procura encontrar um conjunto de
estados orgânicos que caracterizam o aparecimento de
cada uma delas. A base metodológica de Descartes, de
acordo com Vigotsky (2004), é a inauguração do
mecanicismo na psicologia, a-histórica e espiritualista
na interação alma-corpo no mecanismo da paixão, e o
filósofo adota uma concepção teológica do problema
psicofísico das emoções.
Essa concepção teológica é consequência da
dupla natureza das paixões para Descartes, que define
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três tipos de percepções humanas: as ligadas
unicamente ao corpo; aquelas ligadas apenas ao
espírito; e as paixões, grupo de percepções passivas
que se ligam simultaneamente ao corpo e ao espírito.
Assim, atribui às paixões a expressão da dupla
natureza humana, a espiritual e a corporal, um
mecanismo automático e as percepções mentais das
funções desse mecanismo. É exclusivamente por meio
das paixões que essa dupla natureza se expressa em
Descartes, ou seja, as paixões constituem o único
fenômeno em que substâncias completamente distintas
se reúnem (Vigotsky, 2004).
Com essa teoria, Descartes inovou os sistemas de
pensamento de seu tempo, uma vez que seu enfoque
físico e mecanicista nas paixões retirou as emoções de
seus aspectos unicamente psicológicos e estabeleceu
para elas uma natureza corporal antes ausente. O
mecanicismo em Descartes trouxe consequências para
as teorias das emoções: estabeleceu como princípio
que a experiência emocional carece de sentido,
equiparou as emoções às sensações e percepções,
delegou a elas um caráter passivo e excluiu de sua
análise o desenvolvimento emocional (Vigotsky,
2004).
Vigotsky (2004, p. 113) enuncia Descartes como
sendo “(…) o verdadeiro fundador da teoria visceral,
na medida em que reduz a emoção à sensação das
modificações viscerais”. O autor não questiona a
existência das modificações orgânicas durante as
emoções, no entanto se pergunta, sobre a relação entre
essas modificações e o conteúdo psíquico das
emoções, bem como seu significado funcional, qual a
relação dos fenômenos fisiológicos com as emoções
em si. Sem resposta imediata para esse
questionamento, Vigotsky (2004) dá continuidade ao
estudo, esclarecendo a magnitude de Espinosa para a
construção de uma nova psicologia dos afetos.
Não obstante a consistência das críticas
vigotskianas a Descartes em Teoria das emoções, a
mesma clareza não se apresenta quando o autor se
refere a Espinosa, em meio a críticas e elogios;
contudo, não há como compreender as emoções em
Vigotski sem ter bem definida sua base espinosana: o
título original da obra desse estudo foi idealizado por
Vigotski como Espinosa e sua teoria dos afetosprolegômenos à Psicologia do Homem, mas não foi
levado a cabo, como também não foi desenvolvido o
discurso sobre o filósofo em Teoria das Emoções,
uma vez que a obra foi deixada inacabada (Sawaia,
2000).
Sawaia (2000) pontua que Espinosa era o
filósofo preferido de Vigotski, visto por este como a
chave para a construção de seu projeto de uma nova
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
Machado et al.
Psicologia. Para a autora, a importância da temática
das emoções em Vigotski é sua semelhança - ousa-se
dizer identidade - com o projeto de uma Psicologia
Geral idealizado pelo psicólogo russo, visto que traz
a lume os dualismos que perpassaram a história da
Psicologia e suas possibilidades de superação. O
próprio Vigotski, em sua breve análise da filosofia
de Espinosa, apropriando-se dela dialeticamente,
afirma que sua opção por este se justifica por ser um
defensor do conhecimento científico dos sentimentos
humanos e representar um marco na história da
Psicologia que, se eliminadas as contradições da
teoria, será capaz de superar “(...) os problemas
fundamentais aos que o conhecimento da natureza
psicológica das paixões e de toda a psicologia do
homem têm dado preponderância (...)” (Vigotsky,
2004, p. 59).
O Tratado Breve de Espinosa, escrito por volta de
1661, foi seu primeiro esboço da teoria das paixões,
desenvolvida posteriormente na Ética, publicada em
1677, obra sobre a qual Vigotsky (2004) se debruçou.
Em Espinosa Vigotski encontrou o elo que procurava
entre cognição e afeto. Diferentemente de Descartes,
que considerava o problema das paixões como
fisiológico, como também o da interação corpo-alma,
Espinosa dava vazão à relação existente entre
pensamento e afeto, conceito e paixão (Vigotsky,
2004).
Vigotsky (2004) procura argumentar a favor dos
aspectos anticartesianos da doutrina de Espinosa, mais
evidentes na Ética. No artigo Del poder del
entendimiento o de la libertad humana, Espinosa
(citado por Vigotsky, 2004) destaca a ideia errônea de
Descartes de que os afetos e o conhecimento
dependem totalmente da vontade e podem ser
governados de maneira ilimitada.
Vigotsky (2004) também considera um erro os
críticos de sua época afirmarem que Espinosa
considerava
os
afetos
como
fenômenos
exclusivamente psíquicos para aproximá-lo de um
espiritualismo. Ao contrário, para o autor soviético,
Espinosa foi um filósofo materialista, ainda que sua
teoria tivesse limitações. A apropriação da filosofia
espinosista por Vigotski e sua superação ocorreram,
para Gomes (2008), no momento em que o psicólogo
enunciou o caráter histórico dos sentidos humanos,
pautados na atividade humana prática do trabalho.
Segundo Gomes (2008, p. 82), a contribuição de
Espinosa para a teoria dos afetos foi a abertura de
possibilidades “para uma explicação materialista das
emoções humanas”. Em contrapartida, a filosofia de
Descartes era explicativa, causalista e naturalista.
Teoria das emoções
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo maior de Vigotsky (2004) no
esclarecimento das bases filosóficas das teorias
psicológicas da emoção de seu contexto consistiu na
análise das psicologias de sua época, divididas em
psicologia explicativa (causal) e descritiva
(teleológica), dentro de um propósito maior de
edificação da Psicologia Geral sobre novas bases. Esta
sucedeu àquela, devido à insuficiência da psicologia
explicativa para esclarecer adequadamente os
processos psicológicos superiores, específicos do
homem. A finalidade dessa análise é colocar em
evidência que ambas as correntes psicológicas
possuíam raízes na doutrina cartesiana: embora se
propusessem
objetivos
contrários,
eram
complementares, cada qual tomando como base um
aspecto da filosofia cartesiana de dupla natureza – a
psicologia explicativa, pautando-se no mecanicismo
de Descartes, e a descritiva, em seu espiritualismo.
Diante disso, não restam dúvidas da prevalência
de Descartes na psicologia contemporânea e,
consequentemente, na Psicologia dos afetos. Não se
trata mais do embate filosófico entre Descartes e
Espinosa, mas das contradições intrínsecas à doutrina
cartesiana, as quais se pulverizaram na Psicologia
atual dos afetos. De um lado, a Psicologia explicativa
ou causal se incumbe dos problemas das emoções
inferiores, unidas indiretamente ao objeto, inacessíveis
à lógica e carentes de sentido, admitindo nexos
causais; de outro, a Psicologia descritiva se ocupa dos
sentimentos superiores, que demandam uma análise
teleológica de seus nexos e dependências racionais.
Conserva-se o dualismo, com uma dupla análise das
emoções em seus aspectos racionais e mecânicos das
causas corporais (Vigotsky, 2004). Esse dualismo é
amplamente discutido por Vigotski (1996) quando
trata do significado histórico da Psicologia, em 1927.
Para o autor, na realidade, naquele contexto do final
da década de 20 do século passado só existiam duas
psicologias: uma idealista e uma materialista, ambas
prescindindo do método dialético nos estudos dos
fatos da vida humana.
De acordo com Toassa (2009, p. 161), os
objetivos de Vigotski estabelecidos na obra em
questão coadunam-se com seu projeto de criação de
uma psicologia geral, “(...) cujos conceitos
contemplassem o que seria próprio do humano”. Não
obstante, Teoria das emoções deixa a desejar no
cumprimento de suas metas: a base filosófica
cartesiana e dualista das teorias psicológicas é
elucidada minuciosamente, porém o projeto de
construção da nova doutrina dos afetos a partir de
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
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outras bases não é levado a cabo, provavelmente em
função da incompletude da obra, redigida nos três
anos anteriores à morte do autor. Para Toassa (2009),
as emoções em Vigotski não chegam a constituir uma
teoria, são apenas uma concepção.
Para Vigotski, a explicação causal ou descritiva
das emoções é igualmente insuficiente. No capítulo
das emoções, o dilema da Psicologia é optar pelo
humano, com emoções e sentimentos biológicos,
sociais, históricos, ou pelo homem-máquina. Até o
presente momento, a Psicologia tem estado muito mais
próxima do homem-máquina, das explicações causais,
em que a meta da educação é ensinar o indivíduo a
controlar seus impulsos imediatos, inadmissíveis nas
relações sociais e em uma sociedade educada,
preparando o homem desde a infância para dominar
seus reflexos emocionais.
Elimina-se, assim, toda a complexidade da vida
emocional, suas possibilidades de desenvolvimento e
transformação, sua função de conhecimento, e
cumpre-se o ideal dos sábios da Antiguidade para o
homem puramente racional, intelectual. Em
contrapartida, Vigotsky (2004) põe em xeque o valor
psicológico e científico das explicações causais dos
sentimentos humanos, pois afirma que estas não
suprem as necessidades da Psicologia. Não obstante,
o problema da causalidade não apenas afeta não os
sentimentos, na realidade, é condição de toda ciência.
Com isso, Vigotsky (2004, p. 174) encontra a chave
da própria crise psicológica no problema da
causalidade, ao afirmar que esta se tornou “(...) a
pedra angular de toda a crise psicológica. Um
verdadeiro conhecimento não é possível senão como
conhecimento causal”. Partindo dessa constatação, a
superação da crise no capítulo das emoções na
Psicologia só poderia se tornar efetivo, de acordo com
o autor, com a superação dos princípios cartesianos
que embasaram as teorias dos afetos, uma vez que o
fenômeno da emoção não pode ser explicado pela
causalidade.
Destarte, Vigotsky (2004) afirma a necessidade de
uma reconstrução no capítulo das emoções na
Psicologia. Em seus moldes, a emoção é um processo,
é passível de desenvolvimento e transformação. O
autor critica as teorias das emoções que o
antecederam, afirmando que estas não contemplavam
uma teoria do desenvolvimento – a teoria organicista
excluía a priori a possibilidade de qualquer
desenvolvimento das emoções, na medida em que
emoções reflexas e periféricas são estáveis no
comportamento –, e negavam relações entre estados
emocionais e estados intelectuais, excluindo as
emoções do desenvolvimento da consciência.
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Machado et al.
Além disso, a emoção é concomitantemente
biológica e social, portanto não pode ser sintetizada
em sua classificação, como propôs Descartes e Carl
Lange (citado por Vigotsky, 2004), ou reduzida a uma
ideia ou percepção intelectual, como propôs James
acerca das emoções superiores (citado por Vigotsky,
2004). Em contrapartida, para Vigotsky (2004), a
questão que emerge dessas considerações é saber se
existe uma explicação natural para o que há de
superior no homem, sem reduzir esses complexos
fenômenos a fenômenos inferiores e mecânicos.
Zavialoff (1998, p. 67) sintetiza assim as críticas de
Vigotski a esse respeito, dirigidas às teorias que o
precederam:
Ele [Vigotski] não reduz a experiência
subjetiva, os estados mentais a estados
cerebrais bem determinados próprios a
estruturas bem delimitadas, nem tampouco a
um centro particular de integração ou a um
cérebro-espírito autônomo que determina
uma ação: em Théorie des émotions, ele
critica a esse respeito as proposições de
Wundt, de James e de Bergson: uma emoção
não é uma idéia, ela não é intelectual,
produto de um conhecimento intuitivo ou de
um órgão capaz de criar automatismos
motores.
Por fim, de acordo com Sawaia (2000, p. 6), o
mérito de Vigotski no capítulo das emoções provém
da simultânea mudança e conservação dos afetos que
o autor efetuou, “[...] do campo dos instintos para o do
conhecimento, da ética e da política, sem negar-lhe o
caráter de afecção corporal”. Nesse sentido, Sawaia
(2000, p. 6) esclarece a reviravolta que Vigotski
provocou na Psicologia ao considerar a emoção não
mais em suas formas instintivas, rudimentares e
patológicas, mas como positividade epistemológica:
[Vigotski] introduziu na Psicologia: a
emoção como positividade epistemológica,
superando a tradicional abordagem negativa,
próprias das teorias que analisam o homem à
reboque da sociedade. Nessas teorias, a
afetividade é perigosa porque está associada
à individualidade, à criatividade e ao
incontrolável, por isso, a presença das
emoções na explicação do comportamento só
pode ser pela negatividade e pela patologia.
Conclui-se que o autor russo reafirmou em seu
estudo das emoções a concepção de homem e
sociedade subjacente a toda a sua obra: homem
histórico-social e também biologicamente constituído,
mas sobre o qual triunfaram as leis sociais e culturais.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
Essa visão permite que Vigotski conceba o
desenvolvimento ontogenético e filogenético como um
processo revolucionário, que contém a possibilidade
iminente de transformação social por um homem que
se modifica e aprende constantemente em relação ao
seu mundo objetivo, de acordo com os recursos que
lhe são fornecidos, por meio da transformação da
natureza, por meio do trabalho. O homem, em seu
aspecto emocional, precisa ser compreendido como
síntese das relações sociais, e neste sentido, as
emoções são datadas historicamente e são construídas
a partir das condições materiais de produção.
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Recebido em 14/01/2011
Aceito em 24/01/2012
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Endereço para correspondência:
Letícia Vier Machado .Rua Saint-Hilaire,
E-mail: leticia.psicouem@yahoo.com.br.
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 4, p. 647-657, out./dez. 2011
2055,
CEP
87015-161,
Maringá-PR.