Revista OKARA: Geografia em debate, v. 13, n. 2, p. 316-337, 2019. ISSN: 1982-3878
João Pessoa, PB, DGEOC/CCEN/UFPB – http://www.okara.ufpb.br
OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O
ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E
URUGUAIO
Alecsandra Santos da Cunha
Universidade Federal de Santa Maria
Ana Domínguez
Universidade Federal de Santa Maria
Clayton Hillig
Universidade Federal de Santa Maria
Resumo
O presente artigo foi adaptado a partir do texto original do quarto capítulo da Tese
de Doutorado apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em Geografia da
Universidade Federal de Santa Maria. O texto apresenta uma revisão teórica acerca
dos conceitos dos principais modelos de produção no campo, presentes no Brasil e
Uruguai. A revisão teórica foi contextualizada a partir do processo de ocupação do
espaço rural dos dois países, com o objetivo de clarear suas raízes agrárias e
latifundiárias. O Pampa Gaúcho e Uruguaio passa a cenário de diversos conflitos
territoriais em consequência da estrutura fundiária concentrada, que unida ao
Estado Neoliberal, possibilita a expansão e consolidação do agronegócio sobre a
agricultura familiar. As discussões centradas na plantation, na agricultura
capitalista, no agronegócio e na agricultura familiar camponesa perpassam,
portanto, pelos seus conceitos e suas relações com o estado Neoliberal,
apresentando conflitos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos
territórios do Pampa Gaúcho e Uruguaio.
Palavras‐chave: Plantation; Agronegócio; Agricultura Familiar Camponesa.
LOS MODELOS DE PRODUCCIÓN EN EL CAMPO Y EL
ESTADO NEOLIBERALEN EL PAMPA GAUCHO Y
URUGUAYO
Resumen
El presente artículo fue adaptado a partir del texto original del cuarto capítulo de
la Tesis de Doctorado presentada al Programa de Postgrado en Geografía de la
Universidad Federal de Santa María. El texto presenta una revisión teórica acerca
de los conceptos de los principales modelos de producción en el campo, presentes
en Brasil y Uruguay. La revisión teórica fue contextualizada a partir del proceso de
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ocupación del espacio rural de los dos países, con el objetivo de aclarar sus raíces
agrarias y latifundistas. La Pampa Gaucho y Uruguayo pasa el escenario de diversos
conflictos territoriales como consecuencia de la estructura agraria concentrada,
que unida al Estado Neoliberal, posibilita la expansión y consolidación del
agronegocio sobre la agricultura familiar. Las discusiones centradas en la
plantation, en la agricultura capitalista, en el agronegocio y en la agricultura familiar
campesina, atravesan por sus conceptos y sus relaciones con el estado Neoliberal,
presentando conflictos políticos, económicos, sociales, ambientales y culturales en
los territorios del Pampa Gaúcho y Uruguayo.
Palabras clave: Plantation; Agronegocio; Agricultura Familiar Campesina.
INTRODUÇÃO
Os modelos de produção no campo, geralmente, guardam relação direta com a
forma de ocupação da terra. Brasil e Uruguai possuem características
agroexportadoras, tendo boa parte do Produto Interno Bruto (PIB) de cada um dos
países baseado nas atividades do agronegócio. O processo de ocupação dos
territórios do Pampa Gaúcho e Uruguaio desenharam, sobretudo, uma estrutura
fundiária concentrada, beneficiando uma pequena elite agrária em detrimento das
outras formas de viver e produzir no campo. Em decorrência disso, emergem
diversos conflitos territoriais, assim, entender os modelos de produção no campo
se faz necessário para compreensão de suas relações com o Estado Neoliberal.
Apresentaremos a seguir os modelos da plantation, da agricultura capitalista, do
agronegócio e da agricultura familiar camponesa – a partir de policultivos para
autoconsumo e para o mercado, assim como uma discussão a respeito da
implantação do Estado Neoliberal nos territórios rurais do Brasil e Uruguai.
Os modelos hegemônicos: plantation, agricultura capitalista e agronegócio
A plantation é um tipo de sistema agrícola baseado em quatro principais
características: a monocultura, o latifúndio, o trabalho escravo e a exportação para
metrópole (PALMEIRA, 2009). Foi um modelo de produção utilizado durante o
período colonial com o objetivo de exploração da colônia para abastecimento das
metrópoles colonizadoras, como o caso do Brasil.
Os latifúndios fundados nos tempos coloniais, com suas grandes extensões
territoriais possibilitavam a produção em larga escala de determinados produtos,
caracterizando a monocultura. Além dos altos lucros mantidos em função do
monopólio destas monoculturas, a mão de obra escrava também garantia lucros,
tanto na força de trabalho empregada na produção quanto no próprio tráfico de
negros africanos.
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Assim, a plantation proporcionava o chamado comércio
triangular, em que os produtos tropicais eram vendidos
na Europa em troca de tecidos, armas e álcool, que, por
sua vez, eram oferecidos aos mercadores africanos em
troca de escravos. Estes eram levados às colônias para
trabalhar nos latifúndios monocultores, que produziam
produtos tropicais, mantendo, dessa forma, este ciclo
comercial. (MARQUESE, 2006, p. 17).
As relações sociais e de trabalho na plantation, assim como no ciclo comercial,
apresentavam situações de dominação nas quais os latifundiários, ou senhores de
terras, mantinham a curtas rédeas os trabalhadores livres e os escravizados. Além
disso, trabalho, práticas religiosas, moradia, festas, alimentação, lazer, entre
outros, estavam entre as dimensões da vida da classe trabalhadora controladas
pelo poder do senhor de terras (MARQUESE, 2006). A plantation, portanto, foi um
modelo de produção baseado na dominação de territórios, corroborando as
relações de poder que acompanharam os séculos coloniais e, ainda persistem na
atualidade, através das políticas públicas agrárias que mantêm a modernização
conservadora do campo.
A fase de transição do modelo da plantation para a agricultura capitalista e
agronegócio, respectivamente, guarda relação direta com o paradigma da questão
agrária (FERNANDES, et al. 2014). O autor vem defendendo, em diversos trabalhos1,
o paradigma da questão agrária como uma forma de desenvolvimento do/no
campo, em contraponto ao paradigma do capitalismo agrário. Para Fernandes (et
al. 2014), o paradigma da questão agrária defende a luta de classes no campo, como
forma de viabilização e autonomia dos camponeses naquele território; enquanto o
paradigma do capitalismo agrário defende a ideia da integração dos camponeses
ao capital, coexistindo mercado capitalista e agricultores familiares no mesmo
território (o camponês “evolui” para agricultor familiar a partir de sua integração2).
A partir destas colocações, pensando no processo da modernização conservadora
do campo, entendemos que o capital, sobretudo o transnacional, através da
pressão exercida sobre as políticas públicas, impõem ao campo uma modernização
que mantém a estrutura fundiária no intuito de fazer coexistir as diversas classes
no mesmo território, apesar de a agricultura familiar camponesa, aparecer, na
maioria das vezes, em um contexto de submissão à agricultura capitalista.
Para melhor compreensão desta situação, entendamos então, a fase de transição
do modelo da plantation para a agricultura capitalista e agronegócio, no contexto
da modernização conservadora do campo.
Para detalhar um pouco mais sobre a modernização conservadora do campo,
utilizamos autores como José Graziano da Silva (1982), Octavio Ianni (1989),
Alberto Passos Guimarães (1977; 1982). Após a Segunda Grande Guerra, o mundo
se vê polarizado, um modelo binário no qual se apresenta, de um lado os países
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capitalistas e, de outro, os socialistas. Além disso, é construída uma ideia de países
desenvolvidos e subdesenvolvidos, na qual os países subdesenvolvidos deveriam
seguir os mesmos caminhos dos países desenvolvidos para a superação deste
binarismo3: “[...] como se o subdesenvolvimento fosse um estágio anterior desse
processo, como se os países hoje ditos desenvolvidos tivessem sido um dia
subdesenvolvidos.” (GRAZIANO DA SILVA, 1982, p. 17).
Com a reconsolidação dos setores industriais dos países envolvidos nas grandes
guerras, Brasil e Uruguai, países de raízes historicamente agrárias, voltaram seus
recursos para a produção agropecuária, contudo, este setor era considerado
atrasado. A partir de um projeto de contenção do meio rural, no sentido de impedir
o avanço do socialismo no território dos dois países, entre outras estratégias, foi
implantado o modelo industrial nas atividades agropecuárias, também com o
intuito de modernizar este setor (GUIMARÃES, 1982). Segundo o mesmo autor:
[...] a ‘estratégia de modernização conservadora’, assim
chamada, porque, diferentemente da reforma agrária,
tem por objetivo o crescimento da produção
agropecuária mediante a renovação tecnológica, sem que
seja tocada ou alterada a estrutura agrária. (GUIMARÃES,
1977, p. 03).
O modelo tecnológico implantado no campo cumpriu seu papel de aumentar a
produtividade gerando altos lucros, contudo, não alterou o status quo da
participação social nestes lucros. Já que provocou o movimento de êxodo rural para
a maior parte dos agricultores familiares não capitalizados que não foram capazes
de se inserirem nesta nova ordem e seguiu‐se um cenário “[...] de unidades de
produção cada vez maiores, com uma consequente deterioração da distribuição da
renda no setor agrícola.” (GRAZIANO DA SILVA, 1982, p. 29). A concentração de
terras aumentou, assim como a utilização de tecnologias.
Assim, os caminhos da modernização conservadora do campo seguiram uma linha
de implantação de maquinário, fertilizantes químicos e agrotóxicos, além da
biotecnologia. O crescimento do uso deste pacote tecnológico pode ser
considerado uma das estratégias do capitalismo monopolista, na articulação da
agricultura capitalista por um crescimento na produtividade, ignorando as questões
sociais de distribuição de renda e terra, além do cumprimento da função social da
terra.
[...] os chamados insumos modernos [...] são fortemente
subsidiados, as condições de lucratividade das culturas
modernas (justamente porque utilizam maiores
proporções de insumos) são maiores; ainda mais porque
sendo quase sempre produtos de exportação e/ou de
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transformação industrial (como cana, café, soja, trigo,
etc.), têm sempre uma evolução dos preços
relativamente mais favorável do que as culturas
tradicionais, que são basicamente os produtos
alimentícios (arroz, mandioca, feijão, etc.) [...].
(GRAZIANO DA SILVA, 1982, p. 30).
A modernização conservadora do campo aumentou a desigualdade entre
agricultores familiares, que produzem para autoconsumo e mercado interno, e os
grandes produtores, inseridos no processo de inovações mecânicas, físico‐químicas
e biológicas. Estes produtores tecnificados tiveram um forte estímulo das políticas
agrícolas e tecnológicas proporcionadas pelo Estado Neoliberal, para demandarem,
cada vez mais, os produtos das multinacionais, determinando, por conseguinte, a
modernização das grandes unidades de exploração agrícola, que aconteceu
preservando‐se a estrutura fundiária e: “No caso dos produtores tecnificados, sua
articulação aconteceu no interior dos elos das cadeias produtivas dos vários
complexos agroindustriais.” (PIRES; RAMOS, 2009, p. 420).
Os reflexos da estratégia de modernização no setor agrícola traduziram‐se na
consolidação da agricultura capitalista, na reformulação da política agrícola e na
criação de incentivos à verticalização da produção (CUNHA, 2013). A diferença
entre grandes e pequenos produtores é uma realidade histórica, tanto no Brasil
quanto no Uruguai. Todavia, os créditos rurais que subsidiaram, em sua maioria, os
grandes produtores de commodities a partir das políticas agrícolas neoliberais
implementadas no campo dos dois países, intensificaram as desigualdades.
Mazoyer e Roudart (1993), defendem a tese de que o problema fundamental da
economia mundial está centrado na disputa de diversos tipos de agricultura, esta
disputa é característica da herança agrária da humanidade. Uma política global
abrangente para a pequena produção, que redistribua terra e renda, contendo a
pobreza, o desemprego e o êxodo rural, seria a solução para que os países em
desenvolvimento impulsionassem “[...] amplamente os investimentos produtivos e
a economia global.” (MAZOYER; ROUDART, 1993, p. 47).
A mercantilização da agricultura através da substituição do valor de uso pelo valor
de troca dos produtos agrícolas, de gêneros alimentícios ou não, corrobora a ordem
mundial no que tange ao acúmulo de capital, e possibilita o advento do agronegócio
no contexto mundial.
Houve um processo socioeconômico e político que teve início na agricultura
capitalista até chegar ao agronegócio. A agricultura capitalista nasce no momento
em que o alimento passa a ter valor de troca e não mais de uso, imprimindo mais
uma forma de acumulação. É possível inferir que a agricultura capitalista foi a
percussora do agronegócio. Uma de suas características preponderantes é a base
fragmentada de seu capital investidor, no qual tem em agentes diferentes os
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provedores do capital agrário, do capital financeiro, do capital industrial e do capital
comercial (ELIAS, 2003).
A partir desta ideia, percebe‐se que a agricultura capitalista não define o
agronegócio e vice‐versa. A inovação de um modelo técnico, econômico e social de
desenvolvimento agrícola, fundamentado na incorporação da ciência, da
tecnologia e da informação para aumentar a produção, a produtividade e
consequente aumento dos lucros, baseia a definição de agronegócio. Com a
pesquisa tecnológica, foi possível reestruturar o conjunto de elementos técnicos
empregados nesta atividade, transformando os tradicionais sistemas agrícolas e
abrindo novas e inúmeras possibilidades à realização da mais‐valia mundializada,
por meio de um processo de fusão de capitais com os demais setores econômicos.
Geógrafos e pesquisadores uruguaios corroboram o conceito de agronegócio
quando afirmam que:
Los agronegocios constituyen un complejo espacio
económico en el que convergen inversiones de capital
transnacional en el conjunto de las actividades y sectores
vinculados
a
la
producción,
distribución
y
comercialización de productos agrarios a escala global.
[...] En términos generales y simplificados puede
afirmarse que abarcan el conjunto de actividades,
sectores económicos e interacciones que se desarrollan
antes, durante y después de la producción agropecuaria.
(ACHKAR; DOMÍNGUEZ; PESCE, 2008, p. 07‐11).
Campos (2011), defende que o agronegócio possui a capacidade de fundir os
diferentes tipos de capitais e, neste processo, englobou a totalidade da cadeia nas
formas de acumulação, planejamento, geopolítica, globalização e, sobretudo, se
beneficiando do neoliberalismo para se reproduzir de forma intensa.
[...] na década de 1990, contexto do maior avanço
neoliberal no Brasil, o Estado reduz drasticamente seu
papel social e econômico, no sentido de investidor direto,
inclusive nas atividades agropecuárias, o que propicia o
aumento da participação de conglomerados estrangeiros
em vários setores do agronegócio, a intensificação dos
processos de concentração e centralização de capital nos
complexos agroindustriais e uma grande expansão
espacial das atividades vinculadas ao setor em vários
estados do país, engendrando múltiplos impactos
socioespaciais. Nesse sentido, é que consideramos
pertinente considerar o agronegócio como a face
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neoliberal de expansão do capital no campo brasileiro.
(CAMPOS, 2011, p.106).
O agronegócio, então, ocupa territórios que incidem no desenvolvimento sob os
aportes capitalistas. Os agricultores familiares, estabelecidos em tais territórios,
passam por um processo de êxodo rural, já que a pressão da grande propriedade
do seu entorno, materializada na expansão sobre suas terras os deixa, muitas vezes,
sem condições de resistir. São relações de poder que, sob influência do capital
transnacional, forçam uma reorganização, tendo a quebra da lógica produtiva
local/regional, como uma de suas consequências.
O agronegócio organiza e planeja suas atividades e
intenções em todas as dimensões. Desde a apropriação
capitalista da terra e da renda da terra, passando pelas
condições técnicas de plantio, pela articulação política
das empresas/proprietários/multinacionais entre si, com
os meios de comunicação e com o Estado, até a
exportação, incluindo a exportação para mercados
anteriormente não explorados e em condições de menor
industrialização. (BRUNO, 2008, p. 96).
O Estado, neste contexto do neoliberalismo, perde a capacidade de estabelecer
barreiras às fronteiras do agronegócio, promovendo um constante reordenamento
territorial. Territórios estes, que apresentam enorme capacidade de fluidez no que
diz respeito aos seus limites e, sobretudo: “A territorialização e reterritorialização
do agronegócio não leva em consideração toda a espacialidade local, o
pertencimento e as diversas territorialidades ali existentes.” (CUNHA, 2013, p. 61).
Cabe aqui ressaltar, que com as devidas especificidades de cada país, a
territorialização do agronegócio nos espaços nacionais se dá de forma muito
semelhante.
A pobreza se apresenta, assim, como um produto social da atuação do agronegócio
nos territórios, caracterizando conflitos diversos, a partir da espacialização,
expansão e intensificação da acumulação do capital no processo de produção da
pobreza. O capital transnacional vinculado ao agronegócio inflige transformações
territoriais, através de estratégias utilizadas na viabilização e ampliação do
processo de acumulação, exercendo consequências diretas sobre os agricultores
familiares. Fazendo crescer a violência no campo, de modo que diversos atores
sociais são levados até mesmo à morte, frente aos conflitos a que são expostos.
Diversos são os episódios relacionados a chacinas promovidas contra agricultores
familiares e populações tradicionais no campo, em função de conflitos territoriais
pautados na luta pela terra, principalmente, envolvendo agentes do agronegócio.
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Neste sentido, passamos à discussão sobre o universo da agricultura familiar para
melhor compreendermos estas relações entre modelos antagônicos de produção
ocupando os mesmos territórios.
Agricultura familiar: dos conflitos conceituais aos conflitos territoriais
A agricultura familiar difere em diversos aspectos da agricultura capitalista e do
agronegócio. Enquanto estes dois modelos de produção no campo guardam
características diretamente ligadas ao tripé do modo de produção capitalista
(consumo, acumulação e mais‐valia), a agricultura familiar forma uma base na qual,
entre seus objetivos, estão a produção para autoconsumo e renda que permita a
reprodução social das famílias. Enquanto terra, capital e trabalho constituem a
lógica de maximização do lucro numa empresa agrícola, o tamanho da família
determina a força de trabalho, que determina o tamanho da atividade familiar, a
intensidade do trabalho, a satisfação das necessidades de um determinado
mercado, além do próprio consumo familiar (CHAYANOV, 1974).
Existem algumas linhas de pensamento em que o conceito de agricultura familiar
apresenta algumas diferenciações. Inclusive, com discordâncias no que tange à
agricultura familiar e campesinato, sua atuação, produção e reprodução. Veiga
(1991), Abramovay (1992) e Lamarche (1993) destacam que a integração ao
mercado, o papel determinante do Estado no desenvolvimento de políticas
públicas e a incorporação de tecnologias são componentes fundamentais de
diferenciação entre camponeses e agricultores familiares. Defendendo a ideia de
que a partir do momento em que o camponês se integra ao mercado, ao capital,
ele deixa de ser camponês para ser agricultor familiar, tendo os diferentes graus de
integração ao mercado como principal referência da transformação.
Neste sentido, os teóricos desta linha de pensamento acreditam que o campesinato
deixa de existir no momento em que se integra ao mercado, dando origem à
agricultura familiar, e:
[...] que o produtor familiar que utiliza os recursos
técnicos e está altamente integrado ao mercado não é um
camponês, mas sim um agricultor familiar. Desse modo,
pode‐se afirmar que a agricultura camponesa é familiar,
mas nem toda a agricultura familiar é camponesa, ou que
todo camponês é agricultor familiar, mas nem todo
agricultor familiar é camponês. Criou‐se assim um termo
supérfluo, mas de reconhecida força teórico‐política.
(FERNANDES, 2001, p. 29‐30).
Contudo, a partir dessa visão, não se considera o processo histórico do camponês,
no qual a sua formação e organização do trabalho aconteceu em diversos tempo‐
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OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E URUGUAIO
espaços de sociedades tipologicamente diferenciadas: escravista, feudal,
capitalista e socialista. O desaparecimento do camponês não se efetivou na
sociedade capitalista: “[...] porque sua recriação acontece na produção capitalista
das relações não capitalistas de produção e por meio da luta pela terra e pela
reforma agrária.” (FERNANDES, 2000, p. 279‐280). No Brasil, por exemplo, a luta
pela terra como estratégia política e as ocupações de terra têm sido o palco da
recriação e resistência do campesinato, e não o mercado: “Assim, ignoraram a parte
essencial da formação dos camponeses brasileiros hoje: a luta pela terra.”
(FERNANDES, s/d, p. 04).
Diversos trabalhos4 mostram significativas análises acerca do campesinato nesta
outra proposta de resistência e continuidade, mesmo e apesar de sua
transformação para adaptação através de dimensões espaço‐temporais. Portanto,
não acreditamos no fim do campesinato, e defendemos seu conceito como campo
teórico e campo de atuação na realidade no sentido de sua
transformação/adaptação/resiliência na busca da resistência e enfrentamento ao
capital, colocando‐o em pé de igualdade à agricultura familiar:
O fato de grande parte dos trabalhos acadêmicos
recentes utilizarem o conceito de agricultora familiar não
significa que o conceito de camponês perdeu seu status
teórico. Uma coisa é a opção teórica e política dos
cientistas frente aos paradigmas, o que é extremamente
diferente da perda do status de um conceito. [...] Com
relação ao campesinato, neste artigo defendemos o fim
do fim do campesinato, para que possamos analisar com
eficiência essas novas realidades que acontecem em
escala mundial, representada pela Via Campesina e pelas
organizações de agricultores familiares. (FERNANDES,
s/d, 06).
Com isto, estabelecemos aqui o termo “agricultura familiar” em seu sentido
conceitual e de atuação na realidade vivida em consonância com “campesinato”.
Ou seja, agricultura familiar, campesinato e agricultura familiar camponesa são
sinônimos que conceituam essa categoria, pois:
A construção teórica da agricultura familiar tem
construído a compreensão e a percepção que o
camponês representa o velho, o arcaico e o atraso,
enquanto o agricultor familiar representa o novo, o
moderno, o progresso. Evidente que os custos políticos
dessas formas de entendimento são altíssimos para os
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movimentos camponeses. (FERNANDES, s/d, p. 07, grifos
do autor).
Considerando ainda, entre as dimensões conceituais e políticas, a dimensão
ideológica e cultural que, confere ao agricultor familiar o sentimento de
pertencimento à terra, ao lugar. Pensando no lugar como o espaço onde se
desenvolve a vida, com histórias particulares de cada um deles, em função de sua
cultura, de sua tradição, de sua língua, e dos hábitos que lhe são próprios.
Dessa forma, pode‐se levar em consideração a importância do ‘lugar’ para aqueles
que ocupam o meio rural, já que o ser humano percebe o espaço e o mundo através
de seu corpo e de seus sentidos. Se pensarmos na forma com a qual o homem e a
mulher do campo constroem sua cultura, seus valores e seus hábitos, podemos
entender que o ‘lugar’ sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo
(CARLOS, 2005) é uma forma de ser e fazer sua história. Considerar, exclusivamente
sua dimensão econômica reduz as perspectivas de entendimento, há que se
considerar a luta dos diversos tipos de agricultores familiares, inseridos na
realidade dos movimentos sociais que têm como cerne dessa luta, ideologias
políticas e justiça social.
Contudo, sob o aspecto legal, a Lei 11.326, aprovada pelo Congresso Nacional e
sancionada pelo Presidente da República em 24 de julho de 2006, considera, a fim
de políticas públicas:
[...] agricultor familiar e empreendedor familiar rural
aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo,
simultaneamente, aos seguintes requisitos: I ‐ não
detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro)
módulos fiscais; II ‐ utilize predominantemente mão de
obra da própria família nas atividades econômicas do seu
estabelecimento ou empreendimento; III ‐ tenha renda
familiar predominantemente originada de atividades
econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou
empreendimento; IV ‐ dirija seu estabelecimento ou
empreendimento com sua família. (Brasil, 2006).
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) conveniados na realização
de um estudo de cooperação técnica, conceituaram a agricultura familiar:
[...] a partir de três características centrais: a) a gestão da
unidade produtiva e os investimentos nela realizados são
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feitos por indivíduos que mantém entre si laços de sangue
ou casamento; b) a maior parte do trabalho é igualmente
fornecida pelos membros da família; c) a propriedade dos
meios de produção (embora nem sempre da terra)
pertence à família e é em seu interior que se realiza sua
transmissão em caso de falecimento ou aposentadoria
dos responsáveis pela unidade produtiva. (INCRA/FAO,
1996, p. 04).
No caso uruguaio, o debate conceitual sobre agricultura familiar e campesinato
parece estar superado para a sociedade, o que não quer dizer que não mais se
discuta na academia. Já que, segundo Achkar (et al. 2016) a maioria dos agricultores
familiares uruguaios não se reconhece enquanto camponeses, exatamente pelo
debate ideológico que subjuga o camponês, inferindo a ele uma condição de
subdesenvolvido e arcaico. Dessa forma, a maioria deles se reconhece como
pequeno empresário rural ou pequeno produtor rural, como é designado pela
legislação uruguaia. E para o Estado uruguaio, segundo sua legislação:
Se considera productor familiar agropecuario a toda
persona física que con o sin la ayuda de otros gestiona
directamente una explotación agropecuaria y/o realiza
una actividad productiva agraria. Esta persona, en
conjunto con su familia, debe cumplir los siguientes
requisitos en forma simultánea:
Realizar la explotación agropecuaria o actividad
productiva agraria com la contratación de mano de obra
asalariada de hasta dos asalariados no familiares
permanentes o um equivalente em jornales zafrales no
familiares de acuerdo con la equivalencia de 250 jornales
zafrales al año por cada asalariado permanente.
Realizar la explotación agropecuaria de hasta 50 ha,
índice Coneat 100, bajo cualquier forma de tenencia.
Residir en la explotación agropecuaria, donde se
realice la actividad productiva agraria o en una localidad
ubicada a una distancia no mayor a 50 km.
Los ingresos nominales familiares no generados por la
explotación agropecuaria o acitividad productiva agraria
declarada deben ser inferiores o iguales a 14 BPC em
promedio mensual.
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DA CUNHA, A. S.; DOMÍNGUEZ, A.; HILLIG, C.
Las excepciones en esta definición son para aquellos
que declaren como rubro principal las producciones
hortícolas, frutícolas y vitícolas, ya que para ellos la
contratación de mano de obra asalariada no familiar es
por un equivalente de hasta 1.250 jornales zafrales
anuales, y también a los productores apícolas se les
aplican excepciones y se los considera si cuentan hasta
1.000 colmenas como máximo. (ACHKAR et al. 2016, p.
246).
Observa‐se que a semelhança com a legislação brasileira é grande, sobretudo pela
condição de mão de obra familiar majoritária. Assim, a amplitude e complexidade
se faz presente acerca da discussão conceitual da agricultura familiar. Para além da
questão conceitual, a agricultura familiar camponesa não se caracteriza apenas
como um modelo de produção, mas sim como uma forma de viver no campo,
podendo, inclusive, ser considerado como um patrimônio: “De uma certa forma, o
patrimônio transmitido era o próprio modo de vida.” (WANDERLEY, 1999, p. 38). E,
por isto, está repleta de especificidades dentro de seu complexo e vasto universo.
Percebe‐se que são muitas as formas e modelos de produção no campo, além da
agricultura familiar que pode ser considerada um universo à parte, espacializados
nos territórios rurais. E disto decorrem diversos conflitos que moldam o espaço,
territorializando, desterritorializando e reterritorializando hora um modelo, hora
outro. Mas neste campo de embate, geralmente, é a agricultura familiar aquela a
ser invisibilizada, relegada, pressionada e, muitas vezes, extinta de alguns
territórios específicos.
O meio rural é produzido a partir de diversos territórios que, muitas vezes, se
encontram em disputas. Neste caso, os grandes produtores capitalizados
representados pelo agronegócio atuam diretamente nas relações de poder
arquitetadas no território, direcionando as relações produtivas e mercadológicas
de acordo com seus interesses. Por outro lado, a agricultura familiar camponesa,
geralmente despossuída de poder político e financeiro, não consegue se articular
efetivamente para alcançar sua reprodução social e autonomia.
O agronegócio é um modelo concentrador, conservador, elitista e seletivo.
Promove o agravamento do processo de marginalização, excluindo novos
contingentes, principalmente na zona rural. A concentração de terras, o êxodo rural
acentuado e o superpovoamento dos grandes centros urbanos são consequências,
que demonstram os graves problemas estruturais relacionados às disputas e
conflitos de territórios entre o agronegócio e a agricultura familiar camponesa.
O agronegócio expulsa agricultores familiares de suas terras, territorializando
novas atividades, pressionando seu entorno na busca de expansão de sua área,
aumento da produtividade e do lucro. Esta situação é corroborada pelo Estado
Neoliberal, através de políticas públicas negociadas nas bancadas ruralistas dos
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OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E URUGUAIO
parlamentos, considerando o ‘desenvolvimento econômico’ e, fechando os olhos
para a possibilidade de implantação do Estado de bem‐estar social, proposto no
pensamento Keynesiano.
O Estado Neoliberal no Brasil e Uruguai
Nesse sentido e para entendermos a eficiência do Estado Neoliberal em prol do
capital, é necessário discutir o que é o Neoliberalismo, um ideário que se apropria
do discurso de desenvolvimento humano para atuar.
O berço do neoliberalismo está no liberalismo de Adam Smith, principalmente a
partir do lançamento da obra “A Riqueza das Nações”, na qual diferencia a
economia política da ciência política, a ética e a jurisprudência, e fez ainda fortes
críticas à política mercantilista e sua intervenção na economia. Smith defendeu
nesta obra, a livre concorrência econômica e a acumulação de capital, como fonte
para o desenvolvimento econômico (DELLAGNEZZE, 2012).
Já na primeira metade do séc. XX, bebendo da fonte do liberalismo de Smith e
fazendo as devidas adaptações para sua época, Friedrich von Hayek lança a obra “O
Caminho da Servidão”, em 1944, que: “pode ser apontado como um manifesto
inaugural e documento de referência do movimento neoliberal.” (MORAES, 2001,
p. 13). A obra, além de apresentar o ideário do neoliberalismo, objetivava atacar os
partidários socialistas e qualquer ínfima medida política que pretendesse algum
caminho entre o capitalismo e o comunismo (COLETTI, 2005). Enquanto o
liberalismo apontou suas armas para o Estado mercantilista, o neoliberalismo
buscou o combate aos novos inimigos: “Um desses inimigos era o Estado de bem‐
estar social [...]. Outro inimigo eram os sindicatos, que teriam empurrado o Estado
a um crescimento parasitário, impondo despesas sociais e investimentos que não
tinham perspectiva de retorno. (MORAES, 2001, p.13).
Observa‐se que o ideário neoliberal se coloca veementemente contra o Estado de
bem‐estar social. Assim, pode‐se definir o neoliberalismo como um conjunto de
ideias políticas e econômicas capitalistas que defende a participação mínima do
Estado na economia. De acordo com o neoliberalismo deve haver total liberdade
de comércio, o livre mercado, pois este princípio garante o crescimento econômico
e o desenvolvimento social de um país (DANTAS, 2010).
O neoliberalismo econômico acentua a supremacia do
mercado como mecanismo de alocação de recursos,
distribuição de bens, serviços e rendas, remunerador dos
empenhos e engenhos inclusive. Nesse imaginário, o
mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça.
(MORAES, 2002, p. 15).
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DA CUNHA, A. S.; DOMÍNGUEZ, A.; HILLIG, C.
Para Pires (2010), o neoliberalismo é um processo socioeconômico de políticas de
liberalização, desregulamentação e privatização que busca uma reestruturação
produtiva em escala global, que tece seu começo após a recessão iniciada na
década de 1970. A era do poder absoluto do mercado estava em alta e, o
neoliberalismo representa o desmonte do Estado, da ética e da política a partir da
plena liberdade do capital financeiro globalizado. Dentro desta lógica, o
neoliberalismo concebe:
[...] a “supremacia dos valores de mercado”
(individualismo,
consumismo
substituindo
a
solidariedade e a ética; eficiência e competitividade
considerados como mais importantes que a vida, etc.),
valores que assumem quase que a condição de um
pensamento único, inexorável, sem alternativas.
(DANTAS, 2010, p. 27, grifos do autor).
Nesse sentido, são características essenciais do neoliberalismo, a privatização de
empresas estatais e serviços públicos e a desregulamentação dos setores públicos
sobre os setores privados. Para isto, argumentos contra o Estado de bem‐estar
social são colocados à frente da bandeira no neoliberalismo, no sentido de que esse
modelo cria um clientelismo e assistencialismo ineficazes. Segundo Moraes (2001,
p. 18‐19), este argumento é utilizado na ampliação da privatização: “pregam a
transferência, para a iniciativa privada, também das atividades sociais (educação,
saúde, previdência, etc.).”
Em consonância com estas prerrogativas e considerando que o ideário neoliberal
foi implantado no Brasil e no Uruguai de forma processual, apresentando sua
ocorrência a partir de meados do século passado, transcorrendo pelo período do
regime de ditadura militar (que também aconteceu em períodos semelhantes nos
dois países), culminando o auge de suas ações na década de 1990 e, se
apresentando atualmente, como uma frente forte e dominadora (MORAES, 2001).
As dívidas externas dos países latino‐americanos representaram o pretexto para
que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial exigissem a
implantação do programa neoliberal e, ainda “a tutela sobre as economias locais –
a qual incluía controle dos gastos públicos e medidas recessivas” (COLETTI, 2005, p.
154), para que permitissem sua renegociação. Novos empréstimos e a
renegociação das dívidas externas somente aconteceriam perante a adoção das
políticas neoliberais. Esta determinação foi instituída no Consenso de Washington
– reunião realizada em 1989, na cidade de mesmo nome, com a participação do
BID, FMI, Banco Mundial, funcionários do governo norte‐americano e economistas
latino‐americanos (CAMPOS, 2011). Firmaram‐se dois objetivos principais:
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OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E URUGUAIO
[...] por um lado, a drástica redução do Estado e a
corrosão do conceito de Nação; por outro, o máximo de
abertura à importação de bens e serviços e à entrada de
capitais de risco. Tudo em nome de um grande princípio:
o da soberania absoluta do mercado auto regulável nas
relações econômicas tanto internas quanto externas.
(BATISTA, 1999, p. 33).
Ferraz (et al. 2003, p. 14), vai além e detalha as proposta do Consenso de
Washington:
Em linhas gerais o Consenso de Washington está
fundamentado em quatro proposições básicas: políticas
macroeconômicas conservadoras; liberalização do
comércio e investimento internacional; privatização de
empresas estatais; e, por fim, desregulação de preços e
outras regras que definem limites para a ação dos agentes
econômicos. Todas as proposições convergem no sentido
da ampliação do espaço econômico para decisões
alocativas de agentes privados.
Assim, as ideias neoliberais que já vinham sendo implementadas no Brasil desde o
período da ditadura militar, se estende. Dessa forma, o início do governo Collor no
Brasil, foi marcado pela implementação de políticas neoliberais, que segundo
Coletti (2005, p. 156), provocou “um rearranjo nas relações políticas entre as
frações das classes dominantes no interior do bloco no poder.” As diversas classes
da elite dominante foram atingidas de forma desigual, de acordo com o tipo de
ação neoliberal. Exemplo disso, foi a redução de direitos sociais e trabalhistas que
beneficiaram todas as parcelas da classe dominante, contudo não ocorre o mesmo
com a privatização, já que o pequeno e médio capital se vê inviabilizado de
concorrer nos leilões com o capital imperialista e o grande capital monopolista
nacional.
A burguesia agrária foi uma das parcelas afetadas negativamente pelas políticas
neoliberais, no que tange ao capital financeiro como forma de subsídio às suas
atividades. Todo o subsídio recebido durante o período da modernização
conservadora do campo, nas décadas de 1960/70, não se repetiu nas décadas de
1980/90, havendo queda de até 70% nesta última década citada com relação às
primeiras. O motivo para isto se encontra nas reduções de gastos do setor público
que o governo brasileiro precisou fazer ante a imposição do Consenso de
Washington e a transição da fonte de recursos do crédito rural do setor público
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DA CUNHA, A. S.; DOMÍNGUEZ, A.; HILLIG, C.
para o privado, com intensa participação do setor bancário (CAMPUS, 2011;
BATISTA, 1999; COLETTI, 2005).
Se, por um lado, os interesses econômicos da burguesia
agrária e dos latifundiários foram atingidos com a adoção
das políticas neoliberais no Brasil e indicaram perda de
espaço político‐econômico no interior do bloco no poder;
por outro, a representação dos proprietários de terra
cresceu, de forma significativa, no Congresso Nacional
compensando, ainda que parcial e precariamente, a
perda de espaço no bloco no poder. Prova disso é que a
bancada ruralista, com cerca de quarenta parlamentares
em 1986, passou para 189 parlamentares em 2002,
segundo dados da Confederação Nacional da Agricultura.
(COLETTI, 2005, p. 165).
A bancada ruralista, a partir do seu crescimento no Congresso Brasileiro, passou a
pressionar o governo, conseguindo assim renegociar dívidas e maiores
investimentos, legislação e tributação protetora para o agronegócio, transferindo
recursos públicos para a inciativa privada (COLETTI, 2005; CAMPOS, 2011). O
agronegócio se encontra, então, blindado pelo Estado Neoliberal, que é
representado pelas elites econômicas nacionais e globais.
No caso do Uruguai, o processo de implantação do neoliberalismo guarda
semelhanças com o Brasil, pois fazendo parte dos países latino‐americanos os
processos e períodos foram sempre bem parecidos, contudo, algumas
características os diferenciam. As empresas exportadoras de matérias‐primas
sempre foram, em sua grande maioria, privadas, isentando o país das privatizações
de estatais. Para além disto, em 1992, houve um referendo em que a população
votou se opondo a estas medidas. Todavia, desde o período de ditadura militar
daquele país, o ideário neoliberal vem sendo implantado paulatinamente.
El modelo de sustitución de importaciones que
predominó en América Latina hasta la década del 60 fue
remplazado por un modelo con fundamentos neoclásicos,
orientación de mercado y extrovertido, que se sintetiza
en el denominado Consenso de Washington. Esos
lineamientos fueron impulsados en América Latina por
los organismos multilaterales de crédito desde principios
de los setenta, en medio de la ruptura del marco
institucional producida por las dictaduras militares, y su
implementación fue potenciada, fundamentalmente por
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OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E URUGUAIO
la crisis de la deuda externa, a principios de los ochenta.
(ROBLEDO, 2010, p. 08).
A primeira etapa de implementação do neoliberalismo no país, ainda durante a
ditadura, é marcado por medidas bem características deste modelo, como a
liberação do sistema financeiro, as exportações são promovidas através da lei de
promoção da indústria, são facilitados os investimentos estrangeiros e há uma
queda salarial, que acaba por diminuir a demanda de consumo interno.
O primeiro governo democrático após a ditadura, de Julio Maria Sanguinetti, busca
resolver o problema de endividamento do país através de sua capitalização, criando
as zonas francas e se incorporando ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL),
apoiando assim a integração regional. As poucas empresas estatais existentes são
transformadas em empresas mistas, que passam a negociar acordos salariais com
os trabalhadores, refletindo diretamente nos custos sociais do neoliberalismo.
A abertura para investimentos de capitais transnacionais levou a investimentos de
curto prazo e à liberação do sistema de câmbio, que por sua vez levou à uma
sobrevalorização do peso uruguaio sobre o dólar, fomentando as importações e
retraindo as exportações, caracterizando assim um déficit comercial e
endividamento.
O governo de Luis Alberto Lacalle Herrera aprofundou as medidas neoliberais no
Uruguai, sendo comparado com grandes nomes neoliberais mundiais: "sí
Sanguinetti se situaba entre Reagan y Thacher, Lacalle es Reagan y Thacher juntos".
(ROBLEDO, 2010, p. 12). Um esgotamento da economia se apresentava e era
necessário atrair investimentos estrangeiros na busca de uma conversão produtiva,
assim as estatais que ainda restavam foram vendidas. Além disto, reformas
tributárias e a intensificação da ausência do Estado, a partir de cortes e
investimentos, foram observadas.
Nesse sentido, as medidas neoliberais implementadas no Uruguai também tiveram
influências e consequências diretas no campo. Como no Brasil, a entrada de capital
transnacional modernizou, tecnificou e concentrou ainda mais a terra. Por outro
lado, o discurso neoliberal oficial aponta que a entrada de capital transnacional,
através da conversão produtiva (modernização conservadora), é a oportunidade de
desenvolvimento dos países emergentes.
No entanto, a adoção do modelo neoliberal promove, a partir de sua lógica, a
permeabilidade política e cultural para se adaptar à tecnologização, a abertura para
investimentos de capitais transnacionais, produção para exportação,
especialização da produção, entre outros, como meios de assegurar o crescimento
das economias periféricas, que na verdade, promove a reprodução ampliada do
capital.
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DA CUNHA, A. S.; DOMÍNGUEZ, A.; HILLIG, C.
Assim, o Uruguai tem apresentado altos investimentos do capital transnacional nos
pacotes tecnológicos, buscando maior produtividade e lucro em detrimento das
outras formas de produção no/do campo uruguaio. As políticas de
desenvolvimento rural do país são concebidas a partir de um padrão baseado em
um modelo de articulação entre características agroexportadora, assegurando
renda e riqueza para alguns poucos.
A queda, cada vez maior, do número de agricultores familiares no meio rural, a
marginalização da população expulsa do campo, os processos de concentração de
terras, os processos de transnacionalização de terras e a degradação ambiental
(empobrecimento e contaminação de solos e mananciais d’água, entre outros) a
partir da adoção de tecnologias inapropriadas, estão entre os problemas
apresentados em formas de custos sociais do neoliberalismo implantado no
Uruguai (INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZACIÓN, s/d.). Apesar disto, o plano
oficial neoliberal segue sua trajetória insustentável em busca do suposto
desenvolvimento econômico destas economias periféricas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O neoliberalismo, então, contribui para a territorialização do agronegócio, no
sentido de que tem como algumas de suas características a livre circulação de
capitais transnacionais, abertura da economia para a entrada de multinacionais,
medidas contra o protecionismo econômico e aumento da produção, com o
objetivo de atingir o desenvolvimento econômico. Estas características mantêm
relação intrínseca com as medidas necessárias para a implantação e expansão do
agronegócio.
Um dos incentivos presentes neste cenário, possibilitado pelo neoliberalismo, é a
expansão da área cultivada pelas principais monoculturas de exportação, como o
caso da soja e a silvicultura, que veem expandindo, cada vez mais, as áreas
destinadas à suas produções, no Brasil e no Uruguai, respectivamente.
Via de regra, o neoliberalismo ao mesmo tempo em que promove as políticas
macroeconômicas que intensificam a produção da pobreza, também distribui
benefícios aos mais pobres entre os pobres. Portanto, o Estado Neoliberal tem sido
um grande aliado ao interesse do capital, e mais especificamente, aos interesses do
agronegócio e da manutenção da estrutura fundiária brasileira e uruguaia, no
sentido de que algumas políticas públicas têm tido um importante papel para
amenizar os conflitos territoriais.
[...] el problema de nuestros países para avanzar en
sendas de desarrollo está en las relaciones de poder y no
en formulaciones económicas teóricas e inaplicables en
un mundo donde el proteccionismo de los países
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OS MODELOS DE PRODUÇÃO NO CAMPO E O ESTADO NEOLIBERAL NO PAMPA GAÚCHO E URUGUAIO
centrales impide cualquier proceso de convergencia
entre centro y periferia. (FOSSATTI, 2007, p. 29).
O Estado se coloca na posição de parceiro de comunidades afetadas pelo avanço
do poder econômico no meio rural, quando auxilia na criação de políticas públicas
paliativas e disponibiliza agentes de desenvolvimento rural para fornecer apoio nas
discussões sobre esses conflitos. Entretanto, quando possibilita a entrada do capital
transnacional, diminui, consideravelmente, as chances de reprodução da
agricultura familiar camponesa, pois produtores de pequena escala são
impossibilitados de estruturar sua produção na tendência do grande mercado, que
busca modelos de agricultura intensiva, por meio do capital e da tecnologia.
Pode‐se observar que os modelos de produção no campo baseados nas atividades
do agronegócio mantêm relações intrínsecas com o neoliberalismo. Os mercados
globais atuam sob a lógica do capital na busca do acúmulo de capital. Em
detrimento disso, a agricultura familiar camponesa, presente nos territórios nos
quais o agronegócio se territorializa, sofre grande pressão e, muitas vezes não
resiste ao modelo agroexportador. O agronegócio domina o mercado global de
commodities enquanto a agricultura familiar camponesa é invisibilizada e
marginalizada, mesmo e apesar de sua importância para o abastecimento interno
de alimentos e, consequentemente, para as economias locais e regionais. Contudo,
o Estado Neoliberal aporta as atividades ligadas ao agronegócio e, apenas,
direciona políticas públicas paliativas para a agricultura familiar camponesa, como
meio de gerenciamento de conflitos.
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Contato com o autor: Alecsandra Santos da Cunha <alecsandrascunha@gmail.com>
Recebido em: 25/06/2018
Aprovado em: 24/11/2019
Aqui citamos alguns dos trabalhos de Bernardo Mançano Fernandes (2000; 2001;
2005; 2008) que discutem este tema, contudo, vários outros trabalhos de sua autoria
também revelam análises sobre o paradigma da questão agrária e o paradigma do
capitalismo agrário.
1
A ideia de evolução do camponês para agricultor familiar, a partir da integração ao
mercado capitalista foi trabalhada por Abramovay em suas obras, ver (ABRAMOVAY,
1992).
2
3 Binarismo é aqui utilizado como “Duas vertentes que podem ser consideradas
opostas.”, segundo Houaiss (2004, p. 100).
4
OLIVEIRA (1991), TEDESCO (1999), WOORTMANN (1995; 2004).
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