Violência nas Escolas
e Políticas Públicas
Eric Debarbieux e Catherine Blaya
(Orgs.)
Brasília, novembro de 2002
Título original: Violence in School and Public Policies
© 2002 Editado originalmente por ELSEVIER SAS, Paris
© 2002 UNESCO Brasília
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem
como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem
comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo
deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito
da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, nem
tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites.
Violência nas Escolas
e Políticas Públicas
Eric Debarbieux e Catherine Blaya
(Orgs.)
edições UNESCO
BRASIL
Conselho Editorial da UNESCO no Brasil
Jorge Werthein
Cecilia Braslavsky
Juan Carlos Tedesco
Adama Ouane
Célio da Cunha
Comitê para a Área de Ciências Sociais e Desenvolvimento Social
Julio Jacobo Waiselfisz
Carlos Alberto Vieira
Marlova Jovchelovicth Noleto
Tradução: Patrícia Zimbres
Revisão: Reinaldo Lima
Assistente Editorial: Larissa Vieira Leite
Diagramação: Fernando Brandão
Projeto Gráfico: Edson Fogaça
Copyrigth ©2002, UNESCO
Bo, João Batista Lanari
Violência nas escolas e políticas públicas / organizado por
Eric Debarbieux e Catherine Blaya. – Brasília :
UNESCO, 2002.
268p.
ISBN: 85-87853-69-4
1. Educação-Violência-Juventude 2. Políticas Públicas
I. Debarbieux, Eric II. Blaya, Catherine III. UNESCO.
CDD 370
Division of Women, Youth and Special Strategies
Youth Coordination Unit/UNESCO-Paris
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Representação no Brasil
SAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6,
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SUMÁRIO
Apresentação ..................................................................................................... 9
Abstract ........................................................................................................... 13
Introdução
A Comissão Científica ...................................................................... 21
O Observatório Europeu de Violência Escolar .......................... 22
Fatores de risco para a violência juvenil
David P. Farrington .......................................................................................... 25
A história natural da violência .......................................................... 26
Fatores de risco para a violência ..................................................... 30
Uma teoria da violência .................................................................... 39
Programas de prevenção eficazes ................................................... 43
Conclusões .......................................................................................... 50
Referências .......................................................................................... 51
“Violência nas escolas”: divergências sobre palavras e um
desafio político
Eric Debarbieux................................................................................................ 59
O problema epistemológico ........................................................... 60
As conseqüências das palavras: o problema político ................... 68
Definir para agir ................................................................................. 75
Referências .......................................................................................... 87
Violência na escola: uma abordagem japonesa
Yohji Morita ...................................................................................................... 93
A criminalidade juvenil no Japão e no Ocidente – o Japão
visto como um “país seguro” ......................................................... 94
Tendências anteriores quanto a delinqüência juvenil
e violência escolar .............................................................................. 99
Tendências recentes quanto à criminalidade juvenil
e a violência escolar – o fim do mito da segurança .................. 108
As características da intimidação, ou “Ijime”, no Japão ........... 118
5
Reações aos problemas juvenis recentemente ocorridos
na sociedade japonesa – uma solução visando encontrar
equilíbrio entre a orientação protetora e as punições
mais severas ...................................................................................... 128
Referências ........................................................................................ 135
Fatores de risco e expulsão de alunos da escola
Carol Hayden .................................................................................................. 137
Expulsões escolares – definição dos termos, escala do
problema e legislação ...................................................................... 138
Os grupos que correm maiores riscos de expulsão .................. 141
Expulsões escolares e riscos – “riscos” de quê?......................... 144
Crianças expulsas – o que elas são acusadas de terem feito? ... 148
Fatores de risco e expulsões .......................................................... 150
Conclusões: o quão bem-equipadas estão as escolas
para responder às necessidades associadas às expulsões? ......... 158
Referências ........................................................................................ 161
Violência escolar: um olhar comparativo sobre políticas de
governança
Sophie Body-Gendrot ....................................................................................... 165
Violência escolar: uma diferença de natureza e de escala.......... 168
Abordagens contrastantes .............................................................. 171
Experiências muito diferentes ....................................................... 173
Referências ........................................................................................ 184
Intimidação por colegas e maneiras de evitá-la
Peter K. Smith ................................................................................................. 187
O que queremos dizer por “intimidação”? ................................. 187
Como ficamos sabendo sobre a intimidação? ........................... 188
Tipos de intimidação ...................................................................... 189
Os papéis na intimidação ............................................................... 190
Algumas características estruturais da intimidação ..................... 190
As causas da intimidação ................................................................ 191
Os efeitos de sofrer intimidação ................................................... 194
As intervenções de base escolar de combate à intimidação..... 194
Referências ........................................................................................ 202
6
A mercantilização da violência escolar
John Devine, Ph.D. .......................................................................................... 207
Referências ........................................................................................ 223
Clima escolar e violência nos sistemas de ensino secundário
da França e da Inglaterra
Catherine Blaya ............................................................................................... 225
Metodologia ..................................................................................... 227
Sentimento de insegurança e violência: diferenças
significativas ..................................................................................... 230
A importância da qualidade do relacionamento
aluno/professor ............................................................................... 238
Auto-estima e sentimento de competência ................................. 241
Conclusão.......................................................................................... 245
Referências ........................................................................................ 247
A violência escolar e as políticas da formação de professores
Égide Royer ..................................................................................................... 251
O aumento na freqüência e na gravidade dos problemas de
comportamento e de violência nas escolas ................................. 253
As falhas na formação de professores ........................................ 253
Os componentes de uma política de formação de
professores ........................................................................................ 254
Conclusões ........................................................................................ 264
Referências ........................................................................................ 266
7
APRESENTAÇÃO
Como parte de um plano para tornar disponíveis as obras
mais significativas sobre violências nas escolas, a UNESCO tomou a iniciativa de traduzir e publicar este livro, dirigido por
duas das maiores personalidades da área, Éric Debarbieux e Catherine Blaya. Somado a outros, o trabalho acrescenta elementos preciosos quanto ao conhecimento científico de problemas
angustiantes, que não são exclusivos desta ou daquela sociedade. À medida que conhecemos os fatos melhor podemos dimensioná-los e atuar sobre eles. E aqui está uma peculiaridade
do presente volume: resultante de congresso internacional com
uma seleção muito rigorosa de trabalhos, os seus capítulos estabelecem elos num terreno difícil e delicado, isto é, a pesquisa
e as políticas públicas. Essa corrente tende a ser frágil pelas
dificuldades de diálogo entre pesquisadores e decisores nos cinco continentes, conforme, aliás, pesquisas anteriores da própria UNESCO comprovaram.
Enfrentando os obstáculos típicos do terreno, organizadores e autores abordam sucessivamente os fatores de risco da
violência juvenil, questões epistemológicas e metodológicas do
maior interesse, fatores de risco da exclusão da escola, além das
experiências de vários países no combate e prevenção às violências nos estabelecimentos de ensino, como no Japão, França
e Reino Unido. São também focalizadas as políticas para formação de professores, elemento estratégico de uma rua de mão
dupla, já que, no panorama das violências, se detectam não só
as violências físicas e simbólicas praticadas pelos alunos, como
também as violências predominantemente (mas não exclusivamente) simbólicas dos professores.
Enlaçando teorias e práticas, “Violência nas Escolas e Políticas Públicas” aborda também a definição da própria violência. Nesse sentido, é notável a sua posição de equilíbrio. Por
9
um lado, recusa uma definição altamente inclusiva, que maximiza os fatos e, em parte, contribui para uma abordagem exagerada, pessimista, quando não sensacionalista. Por outro lado,
tendo em vista as percepções e os dados das vítimas, não raro
silenciosas, inclui fatos de grandes e pequenas dimensões, ocorridos nas instituições educacionais e que se caracterizam inegavelmente pela violência. A posição de equilíbrio se manifesta
também no reconhecimento de que não só alunos e, em particular, um grupo proporcionalmente pequeno grupo de alunos
pratica atos violentos, mas também a escola, nas suas vivências,
apresenta certos componentes e condicionantes de violências.
Nesse sentido, também considera um aspecto da maior importância, que é a provável relação mútua entre escola e sociedade.
Se a escola reflete a sociedade, como se sabe desde os fundadores da sociologia da educação, aumentando as violências na última, tendem também a aumentar na primeira. Porém, longe de
ser uma instância passiva, a escola pode amplificar a violência
ou contribuir para a construção da paz na sociedade.
Ao oferecer este livro ao público, a UNESCO pensa em
todos os níveis de decisores que precisam interligar teorias e
práticas. Nos professores em sala de aula, onde se realiza efetivamente o processo educacional; nos diretores de estabelecimentos de ensino, que contribuem decisivamente para a formação do clima escolar e nos gestores educacionais em cada
nível dos sistemas de ensino.
Como a pesquisa não pode usar punhos de renda, a
UNESCO não se limita também a apenas pesquisar, porém a
extrair as conseqüências desta pesquisa. Por isso mesmo,
recentemente estabeleceu uma parceria com a Universidade
Católica de Brasília, particularmente o seu Mestrado em Educação,
para constituir o Observatório das Violências nas Escolas.
Integrado a uma rede em que se destaca o Observatório Europeu
da Violência Escolar, organizador do congresso internacional a
que aludimos antes, este centro pretende associar a experiência
10
internacional ao tripé funcional, em que, até pela Lei Maior, consiste
a missão da universidade brasileira: o ensino, a pesquisa e a extensão.
Assim, a UNESCO não apenas elabora e promove pesquisas, mas
procura sinergizar experiências que contribuam para construir a
cultura de paz a que se propõe a sua própria Constituição.
Jorge Werthein
Diretor da UNESCO no Brasil
11
ABSTRACT
This book focuses on the current state of research on violence
in schools and public policies. It is composed of a selection of papers
read by renowned specialists at the world conference on this theme.
The European Observatory of Violence in Schools organized it in
Paris, in March 2001, with the support of the French Ministry of
Education and the European Commission and under the patronage
of UNESCO. The works here presented approach theoretical issues,
such as the definitions of violence in schools, extending their focus
to a wide array of experiences in public policies in different countries
of the world on a comparative basis. Results, advantages and
limitations of diverse approaches in the prevention of and struggle
against violence, including teacher training policies, are analyzed in
several national contexts. Lessons from experience are discussed in
most of the cases often in a comparative basis. Risk factors for youth
violence, risk factors and exclusion from school, school bullying and
ways of preventing it, as well as relations between school climate
and violence are other topics discussed in this book.
13
INTRODUÇÃO
Dando seguimento a um livro dedicado exclusivamente à
violência nas escolas e às várias abordagens dadas ao tema na Europa1, o Observatório Europeu de Violência nas Escolas apresenta agora um novo livro sobre o estado atual das pesquisas no mundo, com contribuições de alguns dos mais renomados pesquisadores dessa área. O presente livro, na verdade, é o primeiro a ser
publicado depois da conferência mundial sobre “Violência nas escolas e políticas públicas”, organizada por nós em Paris, em março de
2001, com o apoio do Ministério da Educação da França e da Comissão Européia (educação e cultura, Socrates), aos quais gostaríamos de agradecer por seu apoio, e também à UNESCO, por seu
patrocínio. Este livro faz parte de uma coleção que estamos fundando, a “Violência juvenil e exclusão social”, representando também
uma oportunidade para a publicação dos principais resultados da
conferência mundial. Este livro contém os trabalhos gerais que
foram apresentados, principalmente nas sessões plenárias.
A conferência mundial “Violência nas escolas e políticas públicas” teve um enorme impacto na mídia e nos meios políticos,
contando, em sua abertura, com a presença de Jack Lang, Ministro da Educação da França; de David Coyne, representante do
Departamento de Educação e Cultura da Comissão Européia e,
na cerimônia de encerramento, de Lionel Jospin, o Primeiro-Ministro francês, acompanhado de diversos ministros de seu governo e também do Diretor-Geral da UNESCO. Os jornalistas presentes nos obrigaram a trabalhar duro em nossas explicações, e
poucas vezes um seminário esteve tão intensamente sob os holofotes da mídia. Uma pergunta foi repetidamente colocada: por
que vocês organizaram o seminário, de onde vocês tiraram essa
1
Debarbieux E., Blaya C. Violence in Schools, vol. 3: ten approaches in Europe [La
violence en millieu scolaire, tome 3: dix approches en Europe]. Paris, ESF; 2001.
15
idéia? Na verdade, nosso trabalho sempre foi comparativo: comparar a situação das escolas segundo as variáveis sociais que as
caracterizam sempre foi a base de todos os estudos efetuados
por nossa equipe sobre as medidas de proteção contra a violência adotadas nas escolas e sua eficácia. Do mesmo modo, nossos
levantamentos sobre a vitimização e o clima das escolas, realizados a intervalos regulares a partir de 1993, nos permitiram, através de questionários aplicados a mais de 30.000 alunos, mensurar a eficácia de determinadas políticas públicas e a evolução da
situação na França. Se é verdade o que diz Passeron, sobre a
sociologia ser apenas uma questão de diferença, uma avaliação
comparativa seria, então, a própria base da sociologia. Seria então bastante natural que, por razões científicas, nós tentássemos
ampliar essa comparação a outros países.
Entretanto, além dessas razões científicas, nossa mobilização inclui aspectos humanos que gostaríamos de mencionar. Aqui
vai uma história que acontece numa grande cidade de um rico país
democrático da América do Sul. Nesse país, os professores das
escolas públicas – que são, antes de mais nada, professores – têm
que trabalhar três vezes mais para conseguir pagar as contas no
fim do mês. As mensalidades das escolas particulares, voltadas às
elites, são muito superiores ao salário que esses professores recebem. Nessa cidade, a desigualdade social chegou a um ponto tal
que as pessoas mais ricas, protegidas por portões de ferro, códigos
de acesso, cães de guarda e guardas de segurança, vão de helicóptero da cobertura de suas casas à cobertura dos shopping-centers, para
evitar cruzar com os pobres, os perigosos pobres. Nas marquises
dos edifícios, dormem famílias inteiras de camponeses sem-terra,
lado a lado com crianças de rua, que não têm outra perspectiva
senão a luta pela sobrevivência, sem contar com outros meios que
não a violência. É bem possível que, um dia, elas venham a ser
mortas por uma bala, não necessariamente saída do revólver de
um pobre. Numa escola para as crianças de uma enorme favela
dessa cidade – uma favela com quase 700.000 habitantes – os professores nos contaram sobre essas tragédias humanas. Eles nos
16
pediram para intervir na reação a um episódio dramático ocorrido
no pátio de recreio da escola, onde dois alunos “grandes”, haviam
emboscado e atacado um aluno de onze anos com chutes na cabeça. Fomos até à casa desse aluno para conhecê-lo. Seu crânio havia
sido irremediavelmente esmagado, e a lesão cerebral era irreversível. O que seria mais normal do que os perpetradores do crime
serem punidos? Mas isso em nada mudaria a situação daquela criança. O problema não é punir os agressores, mas sim evitar a existência de vítimas. Não se trata de vingança ou de retaliação, mas
de redução do risco. Na época em que o projeto desta conferência
mundial estava começando a sair do papel – no exato momento
em que a pesquisa se torna difícil, e quando estamos exaustos de
tanto encontrar resistência por parte de indivíduos e de instituições, quando nos sentimos tentados a desistir, o olhar daquela criança nos volta à memória como um choque, e aqueles que pensam
que estamos sendo hipersensíveis não entendem absolutamente
nada sobre o nosso projeto. Lembramo-nos também do que Korzjack tinha a dizer: “Nunca se esqueçam de o quão rápido bate o
coração de uma criança quando ela sente medo”. Além disso, nem
nessa cidade sul-americana nem na França, jamais encontramos
pessoas que se sentissem resignadas, e a capacidade de reação e
ação das equipes das escolas e da população como um todo sempre nos impressionou. Um exemplo: o músico notável, que, por
anos a fio, vem organizando uma enorme orquestra de percussão,
onde centenas de crianças e adolescentes batem seus tambores.
Assistimos a um de seus ensaios. Não havia espaço para praticar?
Eles ensaiavam nas ruas, bem ao lado daqueles edifícios protegidos por portões de ferro, códigos de acesso, cães de guarda e guardas de segurança – duzentas crianças batucando em uníssono. Podem crer, sentimo-nos mais felizes de estar ali do que estaríamos
num daqueles apartamentos blindados.
De modo que, sim, é verdade que há um senso de revolta
em nosso projeto, e temos plena consciência disso: o problema da
violência nas escolas é de todos nós, mesmo que ele não seja o
17
único, mesmo que as razões socioeconômicas não expliquem tudo.
Esse é um problema que concentra e torna mais evidentes as injustiças presentes em nossas democracias modernas, que não são
democracias igualitárias. Seria esse o nosso ideal, o nosso futuro:
zoológicos para os ricos e escolas para os pobres? A ciência não
pode se manter indiferente quando confrontada com o problema
da violência. Afinal de contas, não foi isso que disseram os primeiros filósofos, na Grécia Antiga, ao oporem violência e logos, força e
razão? Este projeto visa à mobilização da comunidade científica
mundial, e é nosso dever, como cientistas, relatar a situação tal
qual ela é, fornecer análises, propor e avaliar estratégias, assessorar, elucidar e propor medidas concretas.
Para que essa mobilização seja possível, outras mobilizações foram previamente necessárias: a de nossa equipe, é claro,
a quem gostaríamos de apresentar nosso tributo. Tivemos também que mobilizar as autoridades públicas, e temos que dizer
que sua receptividade foi admirável. O Ministro da Educação
da França nos prestou apoio do mais alto nível, o que é um
sinal de que a França demonstrou ao mundo seu compromisso
para com esta questão. Isso não significa que pressões de qualquer tipo tenham sido exercidas sobre a organização deste seminário, que continuou sendo uma conferência científica, e tampouco que a França deseje para si o papel de dar lições a outros, ou que ela sofra mais com esse problema do que os demais países. Mas o engajamento dos órgãos públicos foi importante, estando à altura dos riscos em questão. A Comissão Européia também nos apoiou, como já vem constantemente fazendo há três anos. O Departamento de Cultura e Educação é
um parceiro de importância essencial, tanto no nível da Iniciativa Connect, que nos permitiu existir como o Observatório
Europeu de Violência Escolar, quanto através dos projetos
Comenius-Socrates, que contribuiram para que esta conferência viesse a acontecer. Gostaríamos também de agradecer ao
Conselho Regional da Aquitânia, que entendeu nosso projeto
18
de longo prazo e que nos auxilia no funcionamento de nosso
Observatório. Por fim, somos gratos ao Prof. Reiffers, Reitor
de nossa Universidade: ele é um homem que cumpre suas promessas, sua ajuda é inestimável e ele também é um amigo.
Uma vez obtidos esses auxílios e essas mobilizações, tivemos que mobilizar a comunidade científica. Nossos procedimentos foram os seguintes:
Em maio de 2000, adquirimos relativa segurança quanto a
virmos a obter o financiamento que tornaria possível esta conferência. Isso nos dava dez meses para preparar o evento. Anteriormente, contudo, uma comissão científica internacional havia
sido formada. Essa comissão é genuinamente internacional: apenas três de seus 18 membros são franceses (ver lista em anexo).
Desse modo, em maio de 2000, enviamos a 3000 universidades de todo o mundo uma solicitação de trabalhos, endereçada a
seus departamentos de ciências da educação, pedagogia, psicologia, sociologia, criminologia e serviço social. Os prazos eram muito curtos, uma vez que esses trabalhos teriam que passar por uma
seleção a ser realizada pela Comissão Científica em julho daquele
ano. Apesar disso, recebemos cerca de 300 trabalhos. A Comissão
Científica aprovou cerca de 100 deles. Os critérios eram rígidos:
metodologia clara, estudos empíricos, de preferência a reflexões
de ordem geral, e avaliação exaustiva dos experimentos, sempre
que os trabalhos tratassem de programas. Menos de um em cada
dois apresentados foram selecionados. Os membros da comissão
não tiveram direito à voto na avaliação dos trabalhos de autores
conhecidos seus. Para que a transparência fosse total, demos a uma
jornalista a permissão de acompanhar os trabalhos de nossa comissão. Ela, assim, pôde certificar-se de nossos princípios.
Passamos então a trabalhar em nossas respectivas redes de
contatos, a fim de conseguirmos uma representação a mais completa possível dos diferentes países, e de assegurar maior pluralidade. Trabalhos apresentados em data mais tardia foram avaliados
por uma comissão de menor porte e selecionados ou rejeitados
com base nos mesmos critérios que os adotados anteriormente.
19
O programa por fim apresentado por nós incluía 139 trabalhos provenientes dos cinco continentes e de 26 países. Como
tal, nosso programa dá provas de uma mobilização genuína e
genuinamente rápida, com relação a um problema que é claramente global, tendo trazido à luz um grande número de estudos.
Esses estudos são variados, por vezes divergentes, e o seminário
deu partida àquilo que consiste a base de todo o progresso científico: um fórum de informação e discussão. O presente livro é o
primeiro relato deste processo.
Eric Debarbieux e Catherine Blaya
20
A COMISSÃO CIENTÍFICA
Os membros da Comissão Científica são os seguintes:
Presidente: Professor Éric Debarbieux, Ciências da Educação,
Universidade Victor Segalen, Bordeaux 2, França
Coordenação científica internacional: Catherine Blaya,
Universidade Victor Segalen, Bordeaux 2, França; e Universidade
de Portsmouth, Reino Unido.
Professora Janine Blomart, Universidade Livre de Bruxelas,
Bruxelas, Bélgica
Professora Sophie Body-Gendrot, IEP, Paris, França
Professor Alain Clemence, Universidade de Lausanne,
Lusanne, Suíça
Professor John Devine, Conselho Consultivo Acadêmico,
Campanha Nacional contra a Violência Juvenil, Nova York, Estados
Unidos
Professora Helen Cowie, Universidade de Surrey, Roehampton,
Londres, Reino Unido
Professor Alfredo Furlan, Universidade do México, México
Professor Luis Alberto Gonçalves, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
Dra. Carol Hayden, Universidade de Portsmouth, Reino Unido
Dr. Paul Kingery, Diretor do Instituto Hamilton Fish,
Universidade George Washington, Arlington, Estados Unidos
Professor Yohji Mojita, Universidade de Osaka, Japão
Professor Juan Manuel Moreno, UNED, Madri, Espanha
Professora Rosario Ortega Ruiz, Universidade de Sevilha,
Sevilha, Espanha
Professor Égide Royer, Diretor do Centro de Pesquisas e de
Intervenção sobre o Sucesso Escolar, Universidade de Laval, Quebec,
Canadá
Dr. Harmut Schwere, Diretor das Escolas de Hesse, Alemanha
Professor Peter K. Smith, Goldsmith College, Londres,
Reino Unido
Professor Dolf Van Veen, Universidade de Amsterdã, Holanda
21
O OBSERVATÓRIO EUROPEU DE VIOLÊNCIA
ESCOLAR
O Observatório foi fundado em Bordeaux, em setembro
de 1998 (com financiamento conjunto da Universidade de Bordeaux, da Comissão Européia e do Ministério da Educação da
França), como um centro de pesquisas para o estudo da violência nas escolas e da violência urbana na Europa. Ele construiu
uma importante base de dados sobre o problema da violência
nas escolas da França, da Inglaterra, da Espanha e da Bélgica,
com o auxílio da Drª. Hayden, representando a Inglaterra, do
Prof. Blomart, representando a Bélgica e da Profª. Ortega y Ruiz
e da Senhora do Rei, representando a Espanha. Até o presente
momento, mais de 34.000 alunos e 500 professores participaram
de nossos levantamentos. Desde aquela data, o Observatório
ampliou suas atividades, de modo a abranger:
– a violência nos locais de trabalho;
– a avaliação do treinamento de adultos;
– treinamento de estudantes na sua metodologia de pesquisa;
– auditoria do clima e dos serviços de consultoria relativa
a escolas e centros de treinamento;
– trabalho comparativo e cooperação com países europeus e
não-europeus: Suíça, Brasil, Canadá, México e Argentina;
– seminários e conferências sobre treinamento em serviço;
– polícia e justiça;
– atuação como recurso e centro de informações.
O Observatório coordena duas diferentes redes:
• uma rede de pesquisas, que recolhe dados provenientes
de várias áreas de especialização e pesquisa (sociologia,
educação, criminologia, psicologia, saúde),levando a um
enfoque multidisciplinar à questão da violência;
• uma rede de profissionais e trabalhadores de campo, visando ao estabelecimento de parcerias e intercâmbio
22
entre os diversos atores do processo e dos sistemas educacionais, encarregados do bem-estar e da proteção dos
jovens (polícia, assistentes sociais, escolas, famílias etc.).
Essas duas redes trabalham em estreita colaboração, de forma a promover atividades de pesquisa, projeto e distribuição de
material de prevenção e gerenciamento de crises, e a fornecer consultoria (mediação, campanhas de combate à intimidação por colegas, observação, instrumentos de avaliação etc.), destinada a contribuir e prestar apoio às organizações de parceiros e às escolas.
Seus parceiros institucionais são:
– A Comissão Européia – Representante Geral de Educação e Cultura
– Ministério da Educação da França
– Ministério da Pesquisa da França
– O IHESI (Segurança Interna – Escola Secundária) – Ministério do Interior
– Conselho do Condado da Aquitânia
Contato: obsviolence @aol.com
23
FATORES DE RISCO
PARA A VIOLÊNCIA JUVENIL
David P. Farrington
Meu artigo enfoca principalmente os fatores de risco para
a violência juvenil. Fatores de risco são, simplesmente, as variáveis que levam a prever um alto índice de violência juvenil, como
por exemplo, impulsividade, baixo desempenho escolar, pais criminosos, baixa renda familiar e supervisão parental deficiente. A
violência juvenil é definida como atos que visam a causar, e de
fato causam, danos físicos ou psicológicos, cometidos por pessoas de idades entre 10 e 21 anos, aproximadamente. Essa faixa
etária foi determinada de modo a excluir a agressividade infantil
(abaixo de 10 anos) e a violência adulta (acima de 21 anos). A
ênfase principal incide sobre os tipos de violência que são definidos como crime nas democracias ocidentais, principalmente ataques, roubos, homicídios e estupros. A maior parte das pesquisas
sobre os fatores de risco baseia-se em agressores de sexo masculino, e o delito mais comum são os ataques físicos.
Um dos melhores métodos para a identificação dos fatores de
risco são os levantamentos longitudinais prospectivos, nos quais
pessoas são acompanhadas desde a infância até a idade adulta, visando
a determinar quais fatores precoces fazem antever violência juvenil
em fase posterior. Farei especial referência aos resultados obtidos
pelo Estudo de Cambridge sobre o Desenvolvimento Delinqüente,
que consiste num levantamento longitudinal prospectivo aplicado a
cerca de 400 jovens de sexo masculino da região de Londres
(Farrington, 1995). Esses jovens começaram a ser estudados na idade
de oito anos, tendo sido entrevistados oito vezes, até a idade de
trinta e dois anos. Informações adicionais foram obtidas de seus
25
pais e professores, na época em que esses meninos freqüentavam a
escola. Além disso, foram pesquisados seus antecedentes criminais,
a fim de localizar delitos cometidos por esses homens até a idade de
quarenta anos. Até essa idade, 40% deles foram condenados por
algum delito, excluídos os delitos de pequena monta, como infrações
de trânsito e bebedeiras (Farrington et al, 1998). Esses homens,
atualmente com 46 anos, bem como suas parceiras de sexo feminino,
estão atualmente submetidos a novas entrevistas. Hoje, falarei
principalmente sobre fatores mensurados entre as idades de 8 e 10
anos, que prenunciavam condenações por violência na faixa de
10-21 anos; 10% deles foram processados e condenados por
violência juvenil. Esses resultados foram comparados aos
autodepoimentos de violência, para que nos certificássemos de
que os fatores de risco previam comportamento violento de fato,
e não apenas reações policiais à violência.
Meu artigo subdivide-se em quatro partes. Primeiramente,
examinarei de forma breve a história natural da violência: como
ela varia com a idade, sua continuidade da infância à idade adulta, e até que ponto existe versatilidade ou especialização na violência. Em segundo lugar, analisarei os fatores de risco da violência juvenil. Em terceiro lugar, apresentarei brevemente uma
teoria da violência juvenil e, em quarto, examinarei alguns programas de prevenção que têm como alvo os fatores de risco e
que provaram ser eficazes.
A HISTÓRIA NATURAL DA VIOLÊNCIA
Idade e violência
Em muitos e diferentes países, os delitos tendem a atingir
o auge nos anos da adolescência. Em 1997, na Inglaterra e no
País de Gales, a idade em que mais ocorriam condenações e advertências relativas a delitos passíveis de processo, era 18 anos,
tanto para homens quanto para mulheres (Ministério do Interior,
1998). Roger Tarling (1993) verificou também que a idade de
26
máxima ocorrência de ataques graves, roubos e estupro era 1718 anos. Em 1997, havia 7,8 agressores fichados por cada 1000
homens entre 14 e 17 anos, e 8,3 em cada 1000 homens entre 18
e 20 anos; e havia 2,2 agressoras fichadas por 1000 mulheres de
idades entre 14 e 17 anos, e 1,1 de idades entre 18 e 20 anos.
Resultados semelhantes foram obtidos em levantamentos
de autodepoimentos. Na Inglaterra, por exemplo, no levantamento nacional de auto-depoimentos realizado por John Graham
e Ben Bowling (1995), a idade de incidência máxima de violência
foi 16 anos, tanto para o sexo masculino quanto para o feminino.
No caso dos homens, o percentual dos que admitiram ter cometido violência decresceu de 12% na faixa de 14-17 anos para 9%
na faixa de 18-21, e para 4% na faixa de 22-25. Para as mulheres,
os números foram 7%, 4% e menos de 1%, respectivamente.
Muitas teorias já foram propostas para explicar por que os
comportamentos delituosos atingem auge nos anos da adolescência. Por exemplo, esses comportamentos (violentos, principalmente) já foram associados aos níveis de testosterona nos jovens do sexo masculino, que aumentam durante a adolescência e
os primeiros anos da idade adulta, diminuindo a partir daí (Archer, 1991). Outras explicações centram-se nas mudanças acarretadas pela idade, em termos de capacidades físicas e oportunidades de cometer crimes, vinculadas a mudanças nas “atividades
de rotina” (Cohen e Felson, 1979), tais como freqüentar bares à
noite, em companhia de outros rapazes. A explicação de maior
aceitação dá ênfase à importância das influências sociais (Farrington, 1986). Desde o nascimento, as crianças vêem-se sob a
influência de seus pais, que geralmente não aprovam as transgressões. Durante a adolescência, contudo, os jovens gradualmente se
libertam do controle dos pais, passando a ser influenciados por
seus pares, que, em muitos casos, podem incentivar comportamentos delituosos. Após os 20 anos, as transgressões entram novamente em declínio, à medida que a influência dos pares cede lugar
a um novo conjunto de influências familiares, provenientes de esposas e parceiras, que são hostis a comportamentos infratores.
27
Continuidade
Em geral, verifica-se continuidade entre a violência juvenil
e a adulta, e entre a agressividade infantil e a violência juvenil.
Em Columbus, no estado de Ohio, 59% dos jovens violentos
foram presos como adultos nos cinco a nove anos subseqüentes,
e 42% desses adultos infratores foram acusados de pelo menos
um delito grave (Hamparian et al., 1985). O número dos que,
quando jovens, foram presos por violência grave e foram novamente presos como adultos foi maior que o número dos que
foram presos por violência de menor gravidade (brigas comuns
ou perturbações da ordem), quando jovens. No Estudo de Cambridge, um terço dos rapazes condenados por violência entre as
idades de 10 e 20 anos receberam novas condenações entre as
idades de 21 e 40 anos, em comparação com apenas 8% daqueles
que nunca haviam sido condenados por violência juvenil (Farrington, 2001).
Geralmente, nos homens violentos, a prática de delitos de
todos os tipos começa cedo (Farrington, 1991). Com base tanto
nos registros oficiais quanto em autodepoimentos, comportamentos delituosos em idade precoce levam a prever um número relativamente alto de delitos violentos no futuro (Elliot, 1994; Hamparian et al., 1978). Terrie Moffit (1993) sugere que os transgressores “contumazmente reincidentes”, cujo comportamento delituoso teve início em idade precoce (cerca de 10 anos) e que tinham longa carreira de criminalidade eram fundamentalmente
diferentes dos transgressores “especificamente adolescentes”, que
começaram em idade mais tardia (por volta dos 14 anos) e cuja
carreira de criminalidade limitava-se a cinco ou seis anos.
A agressividade infantil prenuncia violência juvenil. No
acompanhamento de Örebro (Suécia) de cerca de 1000 jovens
(Stattin e Magnusson, 1989), dois terços dos rapazes que haviam
sido oficialmente autuados por comportamento violento em idade inferior a vinte e seis anos haviam apresentado altos níveis de
agressividade entre as idades de 10 e 13 anos (tal como avaliados
por professores), em comparação a 30% do total dos rapazes.
28
Da mesma forma, no acompanhamento de Jyvaskyla (Finlândia)
relativo a 400 jovens (Pulkkinen, 1987), o nível de agressividade,
tal como avaliado pelos pares, nas idades entre 8 e 14, era um
indicador significativo de comportamentos violentos oficialmente
registrados em idade inferior a 20 anos.
Uma explicação possível para essa continuidade ao longo
do tempo é que as diferenças individuais quanto ao potencial
latente de vir a cometer atos agressivos ou violentos são muito
arraigadas. Em qualquer grupo, as pessoas que são relativamente
mais agressivas numa determinada idade tendem a ser relativamente mais agressivas em idades mais avançadas, embora os níveis absolutos dos comportamentos agressivos e das manifestações comportamentais de violência sejam diferentes para as diferentes idades.
Especialização ou versatilidade
Em termos gerais, os transgressores violentos tendem mais
a serem versáteis que especializados. Eles tendem a cometer
muitos diferentes tipos de crime, demonstrando também problemas de outra natureza, como não-comparecimento às aulas, consumo de substâncias, mentiras contumazes e promiscuidade sexual. Contudo, superposto a essa versatilidade, os comportamentos violentos apresentam um pequeno grau de especialização
(Brennan et al., 1989). Há também versatilidade quanto a diferentes tipos de delitos violentos. Por exemplo, os homens que
atacam suas parceiras de sexo feminino têm probabilidades significativamente maiores de virem a receber condenações por
outros tipos de delitos violentos (Farrington, 1994).
Como um indicador de sua versatilidade, é comum que os
indivíduos violentos cometam mais infrações não-violentas do
que delitos violentos. No Estudo de Cambridge, no caso dos
delinqüentes juvenis sentenciados anteriormente à idade de 21
anos, as condenações por delitos não-violentos foram três vezes
mais freqüentes que as condenações por delitos violentos (Farrington, 1978). No Estudo sobre a Juventude de Oregon, um
29
levantamento longitudinal de mais de 200 meninos de idades a
partir de 10 anos, os que haviam sido presos por violência tinham uma média de 6,6 prisões por delitos de todos os tipos
(Capaldi e Patterson, 1996).
FATORES DE RISCO PARA A VIOLÊNCIA
Os delitos violentos, como os demais crimes, têm origem
nas interações entre os agressores e as vítimas, em determinadas
situações. Alguns atos violentos provavelmente são cometidos
por pessoas portadoras de tendências violentas relativamente
estáveis e duradouras, ao passo que outros são cometidos por
pessoas mais “normais”, que se vêem em situações que tendem a
levar à violência. O presente artigo resume os conhecimentos
existentes sobre o desenvolvimento dos indivíduos violentos (isto
é, pessoas com uma probabilidade relativamente alta de virem a
cometer atos violentos em situações de qualquer tipo) e a ocorrência de atos violentos. Visando elucidar tanto as possíveis causas da violência quanto os métodos de prevenção, a ênfase nos
fatores de risco pode variar ao longo do tempo, contrariamente
aos fatores fixos, como o gênero.
Fatores psicológicos
Dentre os principais fatores psicológicos que levam a prever violência juvenil estão hiperatividade, impulsividade, controle comportamental deficiente e problemas de atenção. Por outro
lado, o nervosismo e a ansiedade estão negativamente correlacionados à violência. No acompanhamento de mais de 1000 crianças, realizado em Dunedin (Nova Zelândia), os níveis de deficiência do controle comportamental (por exemplo, impulsividade
e falta de persistência), nas idades entre 3 e 5 anos, em meninos,
eram um indicador significativo de futuras condenações judiciais
por atos violentos, nas idades até 18 anos, em comparação com
os meninos que nunca haviam sido sentenciados, ou que haviam
30
sido sentenciados por atos não-violentos (Henry et al., 1996).
Nesse mesmo estudo, as dimensões da personalidade relativas a
inibições (por exemplo, cautela, aversão à excitação) e ‘a emocionalidade negativa (por exemplo, nervosismo, isolamento), na idade
de 18 anos, apareciam como sendo significativamente correlacionadas a condenações por atos violentos (Caspi et al., 1994).
Diversos outros estudos demonstram a existência de vínculos entre essas dimensões da personalidade e a violência. No
projeto perinatal de Copenhague, a hiperatividade (agitação e
dificuldade de concentração) nas idades entre 11 e 13 anos é
um dos indicadores significativos de prisões por atos violentos
nas idades até 22 anos, principalmente entre os meninos cujas
mães passaram por partos difíceis (Brennan et al., 1993). Mais
da metade dos meninos que haviam nascido em partos com
complicações e apresentavam hiperatividade foram presos por
atos violentos, em comparação a apenas 10% dos demais. Da
mesma forma, no estudo longitudinal de ¨Orebro, realizado na
Suécia, a existência de hiperatividade na idade de 13 anos levava a prever registros policiais de violência até a idade de 26
anos. O índice mais alto de violência foi encontrado entre homens portadores tanto de agitação motora quanto de dificuldade de concentração (15%), em comparação a 3% dos demais
(Klinteberg et al., 1993).
Resultados semelhantes foram obtidos nos estudos de Cambridge e de Pittsburgh (Farrington, 1998). Segundo o Estudo de
Cambridge, um alto grau de audácia e de exposição a riscos nas
idades de 8-10 anos aponta tanto para condenações por atos violentos quanto para violência auto-admitida, no futuro. A Tabela
I mostra que 20% dos meninos audaciosos foram condenados
por atos violentos entre 10 e 21 anos, em comparação com 6%
dos demais (quociente de probabilidade = 4,0; como regra geral,
os quocientes de probabilidade superiores a 2 indicam um efeito
bastante forte). Também no Estudo de Cambridge, a hiperatividade (agitação e falta de concentração) apontava para futuras
condenações por violência.
31
O outro grupo principal de fatores psicológicos que aponta para violência futura inclui baixa inteligência e desempenho
escolar deficiente. No Projeto Biossocial da Filadélfia (Denno,
1990), baixos níveis lingüísticos e de desempenho nas idades entre 4 e 7 anos, associados a notas baixas nos Testes de Desempenho Escolar da Califórnia, nas idades de 13 e 14 (vocabulário,
compreensão, matemática, linguagem e ortografia), eram indicadores de prisões por atos violentos, em idades até 22 anos. No
Projeto Metropolitano de Copenhague, que consiste num estudo
de acompanhamento de mais de 12.000 meninos nascidos em
1953, a baixa inteligência na idade de 12 anos aparece como um
indicador significativo de registros policiais por atos violentos
entre as idades de 15 e 22 anos. O vínculo entre baixa inteligência e violência apareceu com mais força entre os meninos de classe
baixa (Hogh e Wolf, 1983).
Tabela 1
Indicadores precoces de violência juvenil
32
Resultados semelhantes foram obtidos nos estudos de Cambridge e de Pittsburgh (Farrington, 1998). No Estudo de Cambridge, a baixa inteligência verbal aos 8-10 anos apontava tanto
para registros oficiais quanto para auto-depoimentos de violência, no futuro e, em ambos os estudos, um baixo desempenho
escolar na idade de 10 anos apontava para registros oficiais de
violência . Por exemplo, a Tabela I mostra que 18% dos meninos
de menor inteligência aos 8-10 anos vieram a ser condenados
por atos violentos, em comparação a 7% dos demais (quociente
de probabilidade = 2,6). A ampla meta-análise de Mark Lipsey e
Jim Derzon (1998) também mostrou que a baixa inteligência, o
desempenho escolar deficiente e fatores psicológicos tais como
hiperatividade, déficit de atenção, impulsividade e tendência a se
expor a riscos eram indicadores previsíveis de futuros delitos
graves e violentos.
A impulsividade, os problemas de atenção e o baixo desempenho podem ser associados a deficiências nas funções executivas do cérebro, localizadas nos lobos frontais. Essas funções
executivas incluem a manutenção da atenção e a concentração, o
raciocínio abstrato e a formação de conceitos, a formulação de
objetivos, a previsão e o planejamento, a programação e a iniciação de seqüências propositais de comportamento motor, automonitoramento, comportamentos autoconscientes eficazes e inibição de comportamentos inadequados ou impulsivos (Moffit e
Henry, 1991). É interessante que no estudo longitudinal-experimental de Montreal, que consiste num acompanhamento de mais
de 1.100 crianças de idade superior a 6 anos, a mensuração das
funções executivas, com base em testes cognitivo-neuropsicológicos, aplicados aos 14 anos, foram o principal fator de discriminação entre meninos violentos e não-violentos (Seguin et al.,
1995). Essa relação sustentou-se independentemente da mensuração do grau de adversidade das circunstâncias familiares (baseada na idade dos pais à época do nascimento do primeiro filho,
no nível de escolaridade dos pais, no rompimento da família e no
baixo nível socioeconômico da família).
33
Fatores familiares
São muitos os fatores familiares que prenunciam violência futura. Joan McCord (1979), em seu acompanhamento de
250 meninos de Boston, no estudo Cambridge-Somerville, verificou que os principais indicadores de futuras condenações
por atos violentos (até a idade de 45 anos) eram supervisão
parental deficiente, pais agressivos (incluindo disciplina severa
e punitiva) e conflitos entre os pais. A ausência do pai era um
fator quase tão decisivo quanto os anteriormente citados, embora a falta de afeto da mãe não fosse significativa. Ela demonstrou também que pais que haviam sido condenados por
violência tendiam a ter filhos também condenados por violência (McCord, 1977). Em suas análises subseqüentes, Joan McCord (1996) mostrou que os acusados de crimes violentos tinham menores probabilidades que os acusados de crimes nãoviolentos de terem recebido afeição de seus pais e de terem
contado com boa disciplina e supervisão, embora a probabilidade de seus pais viverem em conflito fosse igual para ambos
os grupos.
Resultados semelhantes foram obtidos também em outros estudos. No Estudo do Desenvolvimento Juvenil de Chicago, um acompanhamento longitudinal de quase 400 meninos
das áreas centrais da cidade, que começaram a ser estudados
aos 11-13 anos, a deficiência do monitoramento por parte dos
pais e a baixa coesão familiar prenunciavam autodepoimentos
de delitos violentos (Gorman-Smith et al., 1996). Também no
Estudo do Desenvolvimento Juvenil de Rochester, um estudo
longitudinal de quase 1.000 crianças que começaram a ser observadas aos 13-14 anos (Thornberry et al., 1995), a falta de
monitoramento pelos pais e a ausência de vínculos fortes com
eles apontavam para futuros autodepoimentos de violência.
Segundo o Levantamento Nacional Britânico (Wadsworth,
1978), famílias desfeitas entre o nascimento e os 10 anos de
idade prenunciavam condenações por atos violentos cometidos até os 21 anos, e, segundo o estudo de Dunedin (Henry et
34
al., 1996), pais solteiros de 13 anos de idade tendiam a ser sentenciados por violência antes dos 18 anos.
Castigos corporais severos e maus-tratos físicos infligidos pelos pais costumam ser prenúncio de delitos violentos cometidos pelos filhos homens (Malinosky-Rummel e Hansen,
1993). Num estudo de acompanhamento de quase 900 crianças
do estado de Nova York, Len Eron e seus colegas (1991) verificaram que castigos aplicados pelos pais à idade de 8 anos faziam prever não apenas prisões por atos violentos antes dos 30
anos, mas também o grau de severidade dos castigos aplicados
por esse homem, aos 30 anos, a seus filhos e seu histórico de
agressões físicas ao cônjuge. Num estudo longitudinal de mais
de mais de 900 crianças vítimas de maus-tratos físicos e quase
700 controles, Cathy Widom (1989) verificou que o histórico
de maus-tratos físicos e de negligência sofridos por uma criança eram prenúncio de prisões por atos violentos, no futuro, independentemente de outros fatores, como gênero, etnia e idade. No Estudo do Desenvolvimento Juvenil de Rochester, Carolyn Smith e Terry Thornberry (1995) demonstraram que os
maus-tratos infligidos a uma criança de menos de 12 anos prenunciavam autodepoimentos de comportamentos violentos
entre 14 e 18 anos, independentemente de gênero, etnia, condição socioeconômica e estrutura familiar.
Resultados semelhantes foram obtidos no Estudo de
Cambridge. A Tabela I mostra que os filhos de pais criminosos tendem a ser condenados por atos violentos. Além disso,
disciplina severa aplicada pelo pai ou pela mãe, bem como o
autoritarismo dos pais, prenunciam violência juvenil. A supervisão deficiente por parte dos pais apareceu como o mais
forte dentre os fatores de risco: 22% dos meninos não adequadamente supervisionados vieram a se tornar violentos,
contra 7% dos demais (quociente de probabilidade = 3,8).
Além disso, conflito entre os pais e o fato de provir de uma
família desfeita (viver separado de um dos pais biológicos)
eram prenúncio de violência juvenil.
35
Fatores relativos a colegas, condição socioeconômica
e vizinhança
O fato de ter amigos delinqüentes é um irrefutável prenúncio de violência juvenil e, no Estudo do Desenvolvimento
Juvenil de Rochester, a delinqüência dos pares aparecia como
prenúncio de futuros autodepoimentos de violência (Thornberry et al., 1995). O que não está tão claro, contudo, é até que ponto o vínculo entre amigos delinqüentes e delinqüência seria uma
conseqüência das co-transgressões, que são particularmente comuns entre os menores de 21 anos (Reiss e Farrington, 1991).
Del Elliot e Scott Menard (1996) concluíram, ambos, que a delinqüência causava vínculos delinqüentes e que esses vínculos
delinqüentes entre pares causavam delinqüência. No entanto,
parece não haver quaisquer informações específicas sobre o vínculo entre violência entre pares e violência juvenil. No Estudo
de Cambridge, as amizades delinqüentes não foram mensuradas
antes da idade de 10 anos.
De modo geral, provir de uma família de baixa condição
socioeconômica é prenúncio de violência juvenil. Por exemplo,
no Levantamento Nacional sobre a Juventude dos Estados Unidos, a ocorrência de autodepoimentos de crimes e assaltos graves entre os jovens de classe baixa corresponderam ao dobro da
verificada entre os jovens de classe média (Elliot et al., 1989).
Resultados semelhantes foram obtidos quanto à violência oficialmente registrada, no Projeto Metropolitano de Estocolmo (Wikström, 1985), no Projeto Metropolitano de Copenhague (Hogh
e Wolf, 1983) e no Estudo Dunedin, da Nova Zelândia (Henry et
al., 1996). É interessante que esses três estudos tenham comparado a classe social da família à época do nascimento do menino
com base na ocupação do pai com os crimes violentos cometidos mais tarde pelo menino. No Estudo de Cambridge, pertencer à classe baixa não era prenúncio de violência juvenil futura,
embora outros indicadores socioeconômicos (baixa renda familiar e moradia precária) o fossem (tabela I).
36
Famílias numerosas e pais jovens são fatores que podem
ser classificados ou como socioeconômicos ou como familiares.
Tanto no Estudo de Cambridge quanto no de Pittsburgh (Farrington, 1998), o tamanho da família (número de filhos) era indicador de violência juvenil. No Estudo sobre a Juventude de Oregon, uma família numerosa aos dez anos de idade prenunciava
autodepoimentos de violência aos 13-17 anos (Capaldi e Patterson, 1996). Mães muito jovens (mães que tiveram seu primeiro
em idade precoce, em geral ainda na adolescência) também tendem a ter filhos violentos, como demonstrado por Morash e
Rucker (1989) no Estudo de Cambridge, para a previsão de autodepoimentos de violência aos 16 anos. É interessante que, nesse
estudo, a relação existente entre uma mãe jovem e um filho condenado por crime tenha desaparecido, após serem examinadas
outras variáveis, principalmente tamanho da família, pai condenado por crime e família desfeita (Nagin et al., 1997). No Estudo
sobre a Juventude de Pittsburgh (Farrington, 1998), uma mãe
muito jovem era um indicador tanto de violência oficialmente
registrada quanto de autodepoimentos de violência.
Em geral, os rapazes que moram em áreas urbanas são mais
violentos que os das zonas rurais. No Levantamento Nacional
sobre a Juventude dos Estados Unidos, a ocorrência de autodepoimentos de assaltos e roubos graves foi considerada maior entre
os jovens urbanos. (Elliot et al., 1989). Nas áreas urbanas, os jovens que moram em bairros com alto índice de criminalidade são
mais violentos que os que vivem em bairros de baixa criminalidade. No Estudo do Desenvolvimento Juvenil de Rochester, o
fato de viver num bairro com alto índice de criminalidade era um
indicador significativo de autodepoimentos de violência (Thornberry et al., 1995). Da mesma forma, no Estudo sobre a Juventude de Pittsburgh, morar num bairro ruim (avaliado ou pela mãe
ou com base em dados censitários sobre pobreza, desemprego e
famílias chefiadas por mulheres) era um prenúncio comprovado
de violência, tanto oficial quanto auto-relatada (Farrington, 1998).
37
Fatores circunstanciais
Pode-se argumentar que todos os fatores de risco até agora
analisados – psicológicos, familiares, socioeconômicos e de vizinhança – influenciem essencialmente o desenvolvimento a longo prazo do potencial para a violência apresentado por um indivíduo. Em outras palavras, eles contribuem para as diferenças existentes entre os indivíduos: porque, dada a mesma oportunidade circunstancial, algumas pessoas apresentam uma maior tendência a cometer violência que outras. Um outro conjunto de influências – os fatores circunstanciais– explicam por que
razão o potencial de violência se atualiza em determinadas situações. Essencialmente, eles explicam as diferenças de curto
prazo internas a cada indivíduo: por que, em certas situações,
algumas pessoas têm maiores probabilidades de cometer violência que outras. Os fatores circunstanciais podem ser específicos a determinados tipos de crime: roubos, em oposição a
estupros, ou mesmo furtos de rua, em oposição a assaltos a
bancos. Uma das mais aceitas teorias circunstanciais da criminalidade é a teoria das atividades de rotina (Cohen e Felson,
1979), que sugere que, para que um crime predatório venha a
ocorrer, o requisito mínimo é a convergência, no tempo e no
espaço, de um agressor motivado e de um alvo conveniente, na
ausência de um guardião capaz.
Na Grã-Bretanha, muitos trabalhos já foram realizados
sobre as situações que tendem a levar à violência, sob a classificação de análise criminológica (Ekblom, 1988). Parte-se aqui
de uma análise detalhada dos padrões e das circunstâncias dos
crimes cometidos, passando-se então à formulação, implementação e avaliação das estratégias de redução da criminalidade.
Por exemplo, Mary Barker e seus colegas (1993) analisaram a
natureza dos assaltos de rua de Londres. A maioria desses crimes ocorreu em áreas onde predominam minorias étnicas, e a
maior parte dos agressores eram jovens afro-caribenhos, com
idades entre 16 e 19 anos. As vítimas foram, em sua maioria,
mulheres brancas, sozinhas, a pé. A maior parte dos delitos
38
ocorreu à noite, nas proximidades da residência da vítima. O
principal motivo do assalto era o roubo de dinheiro, e o principal fator na escolha das vítimas era sua aparência rica.
Segundo o Estudo de Cambridge, muitos dos rapazes
brigaram após ter consumido bebidas alcoólicas, e é óbvio que
a intoxicação por álcool é um fator circunstancial imediato,
na precipitação da violência. Na Suécia, Per-Olof Wikström
(1985) verificou que cerca de três quartos dos agressores violentos e cerca de metade das vítimas de violência encontravam-se bêbados, à hora do crime. A sabedoria convencional
sugere que o consumo de álcool tem um efeito desinibidor
sobre o comportamento.
Os atos que levam à violência já foram objeto de estudo.
Na Suécia, os crimes violentos, em sua maioria, foram precedidos de discussões, surgidos da situação específica, ou baseados
em relações sociais preexistentes (Wikström, 1985). De modo
geral, a violência precedida por discussões circunstanciais ocorre
nas ruas ou em restaurantes, ao passo que a violência precedida
por discussões entre pessoas relacionadas entre si costuma ocorrer em residências. Na Inglaterra, ataques partindo de estranhos costumam ocorrer nas ruas, em bares ou discotecas, e os
ataques partindo de conhecidos geralmente ocorrem em casa
ou no trabalho, e os roubos geralmente ocorrem nas ruas ou
em transportes públicos (Hough e Sheehy, 1986). É necessário
que seja incorporado, nos estudos longitudinais prospectivos,
um maior número de pesquisas sobre as influências circunstanciais, de maneira a vincular as perspectivas desenvolvimentistas
e circunstanciais.
UMA TEORIA DA VIOLÊNCIA
Para desenvolver teorias sobre a violência, é importante
estabelecer de que forma os fatores de risco têm efeitos independentes, aditivos, interativos ou seqüenciais. De modo geral,
39
a probabilidade de ocorrência de violência aumenta com o número de fatores de risco. Por exemplo, no Estudo de Cambridge, foi desenvolvida uma pontuação de vulnerabilidade, com
base nos cinco fatores de risco medidos na idade de 8-10 anos:
baixa renda familiar, família numerosa, um pai condenado judicialmente, baixo QI e comportamento parental deficiente na
criação dos filhos. O percentual dos meninos condenados por
violência juvenil aumentou de 3%, entre os que não apresentavam nenhum desses fatores de risco, a 31%, entre os que apresentavam quatro ou cinco deles (Farrington, 1997). Esse tipo
de pesquisa fornece alguma indicação sobre o grau de precisão
que pode ser atingido na previsão de violência.
As teorias podem ajudar a explicar como e por que fatores psicológicos, tais como impulsividade ou baixa inteligência,
fatores familiares como supervisão parental deficiente, e fatores socioeconômicos, de vizinhança e os relativos aos grupos
de pares podem influenciar no desenvolvimento do potencial
de violência de um indivíduo. Por exemplo, morar num bairro
ruim e sofrer privações socioeconômicas, podem, de algum
modo, ser a causa da deficiência dos cuidados parentais, que,
de alguma forma pode causar impulsividade e fracasso na escola que, de alguma maneira, podem levar a um alto potencial de
violência. As teorias podem ser úteis também para a especificação dos conceitos mais gerais subjacentes ao potencial de violência, tais como baixo autocontrole ou vínculos frágeis com a
sociedade. Elas também podem ajudar na determinação das
maneiras pelas quais uma pessoa potencialmente violenta interage com os fatores circunstanciais, gerando atos violentos.
Pretende-se que a teoria da violência, mostrada diagramaticamente na figura 1, seja coerente com as teorias existentes
e com os fatos conhecidos sobre os fatores de risco (Farrington, 1998). Essa teoria sugere que as influências de longo prazo (psicológicas, familiares, escolares, comunitárias, de grupos
de pares etc.) levem ao desenvolvimento de diferenças indivi40
duais duradouras, razoavelmente estáveis e de mudança lenta,
relativas ao potencial de violência. Superpostas a essas diferenças individuais de longo prazo, há também variações de curto
prazo, internas ao indivíduo. Essas variações de curto prazo
dependem das influências motivadoras imediatas, tais como
sentir-se entediado, zangado, bêbado ou frustrado, e também
das oportunidades circunstanciais, incluindo a disponibilidade
de vítimas potenciais.
Diante de uma ocasião para a violência, o fato de uma
pessoa vir ou não a praticá-la dependerá dos processos cognitivos (de pensamento), que incluem o exame dos custos e benefícios da violência e das probabilidades e riscos a ela associados, tais como percebidos pela pessoa, e também os repertórios comportamentais acumulados. Supõe-se também que as conseqüências da violência (vantagens, castigo, rótulos etc.) possam ter efeitos retroalimentadores num processo de conhecimento sobre o potencial de violência a longo prazo e sobre os
processos decisórios (por exemplo, influenciando as percepções
subjetivas de custos, benefícios e probabilidades).
Essa abordagem consiste numa tentativa explícita de integrar as teorias desenvolvimentistas e circunstanciais. A interação entre o indivíduo e o ambiente é observável nas decisões
tomadas nas ocasiões em que surgem oportunidades de cometimento de crimes, decisões essas que dependem tanto do potencial de violência subjacente quanto dos fatores circunstanciais (custos, benefícios, probabilidades). Além disso, a dupla seta
mostra a possibilidade de que o deparar-se casualmente com
uma oportunidade tentadora possa causar um aumento de curto prazo no potencial de violência, da mesma forma que um
aumento de curto prazo nesse potencial pode motivar uma pessoa a buscar uma oportunidade de praticar violência. Essa teoria inclui elementos cognitivos (percepção, memória, processos decisórios), bem como o aprendizado social e as abordagens causais de fatores de risco.
41
Figura 1
Teoria diagramática da violência juvenil
42
PROGRAMAS DE PREVENÇÃO EFICAZES
Apresentarei agora, de forma resumida, alguns dos melhores programas de prevenção da criminalidade, cuja eficácia foi
demonstrada numa pesquisa de avaliação de alta qualidade. Os
programas de redução da criminalidade em geral passam por avaliação porque a maioria dos programas de intervenção não enfocam especificamente a violência. Na medida do possível os elementos do programa são vinculados aos fatores de risco. Infelizmente, acontece muitas vezes de haver apenas um elo muito tênue
entre os fatores de risco e os programas de prevenção. Um outro
problema é que muitos programas possuem elementos múltiplos,
fazendo com que seja difícil isolar seus “ingredientes ativos”.
Prevenção centrada nos riscos
A idéia básica da prevenção centrada nos riscos é muito
simples: identificar os principais fatores de risco da criminalidade e implementar métodos preventivos visando combatê-los.
Muitas vezes, há também a tentativa correlata de identificar os
principais fatores de proteção contra o crime e implementar
métodos preventivos destinados a fortalecê-los. De modo geral,
os levantamentos longitudinais fornecem informações tanto sobre os riscos como sobre os fatores de proteção, e são usados
experimentos cujo objetivo é avaliar o efeito dos programas de
prevenção e intervenção. Desse modo, a prevenção que enfoca
os riscos alia as explicações à prevenção, vincula pesquisa de base
e pesquisa aplicada e une pesquisadores, formuladores de políticas e profissionais da área. O livro Infrações Juvenis Graves e Violentas: Fatores de Risco e Intervenções de Sucesso (Loeber e Farrington,
1998) traz uma exposição detalhada desse enfoque, aplicado a
casos graves e violentos de criminalidade juvenil.
A prevenção que enfoca os fatores de risco foi importada da criminologia para a medicina e para a saúde pública por
pioneiros como David Hawkins e Richard Catalano (1992).
Essa abordagem vem sendo usada há anos, e com sucesso, no
43
tratamento de doenças como o câncer e os problemas cardíacos. Por exemplo, os fatores de risco identificados para as doenças cardíacas são fumo, uma dieta rica em gorduras e falta de
exercício. Pode-se intervir nesses fatores incentivando as pessoas a pararem de fumar, a adotarem uma dieta mais saudável e
com menos gorduras e a fazerem mais exercícios. De modo geral, na área médica, a eficácia da prevenção que usa os fatores de
risco é avaliada através do uso do “padrão ouro” de tentativas
aleatórias controladas, que também vem sendo utilizado na criminologia, nas avaliações de alta qualidade.
Os fatores de risco tendem a ser os mesmos para muitos
resultados diferentes, incluindo delitos violentos e não-violentos, problemas de saúde mental, problemas de consumo de álcool e drogas, fracasso escolar e desemprego. Desse modo, um programa de prevenção que consiga reduzir os fatores de risco para
os crimes violentos terá grandes probabilidades de exercer efeitos altamente positivos sobre uma vasta gama de outros problemas sociais.
Programas individuais e familiares
Quatro tipos de programa vêm obtendo particular êxito: a
educação dos pais (no contexto de visitas domiciliares), treinamento dos pais em técnicas de gerenciamento, treinamento para
o desenvolvimento de capacidades nas crianças e programas préescolares de enriquecimento intelectual (Farrington e Welsh,
1999). Esses programas, geralmente, têm como alvo os seguintes
fatores de risco: deficiência na criação dos filhos, na supervisão
ou na disciplina (educação de pais ou treinamento dos pais em
técnicas de gerenciamento), alta impulsividade, baixa empatia e
egocentrismo (treinamento para o desenvolvimento de capacidades nas crianças) e baixa inteligência e desempenho (programas pré-escolares).
No mais famoso dos programas de visitas domiciliares intensivas, David Olds e seus colegas (1986), em Elmira, (Nova
York) selecionaram aleatoriamente 400 mães, ou para receberem
44
visitas domiciliares de enfermeiras durante a gravidez ou durante a gravidez e os dois primeiros anos de vida da criança, ou para
um grupo de controle que não recebia visita alguma. Cada visita
durava de uma hora a uma hora e quinze minutos, com a periodicidade aproximada de uma visita a cada duas semanas. As enfermeiras visitantes davam conselhos sobre cuidados pré é pós-natais, sobre desenvolvimento infantil e sobre a importância de uma
boa nutrição e de evitar fumar e beber durante a gravidez.
Os resultados desse experimento demonstraram que as visitas domiciliares no período pós-natal acarretaram diminuição
dos casos registrados de maus-tratos físicos e cuidados negligentes a crianças durante os dois primeiros anos de vida, principalmente entre mães solteiras adolescentes de baixa renda. Entre as
mães visitadas, apenas 4% foram indiciadas por maus-tratos ou
negligência do filho, ao passo que entre o grupo não visitado,
esse percentual foi de 19%. No acompanhamento de 15 anos de
duração, o alvo principal foram as mães solteiras de baixas condições econômicas. Dentre essas mães, as que haviam recebido
visitas domiciliares pré e pós-natais houve menos casos de prisão que entre as mães que não haviam sido visitadas, ou que haviam recebido apenas visitas pré-natais (Olds et al., 1997). Além
disso, entre os filhos dessas mulheres que haviam recebido visitas domiciliares pré e/ou pós-natais, o número de casos de prisão correspondeu a menos da metade do total verificado entre
os filhos das mães que não haviam recebido visitas de qualquer
tipo (Olds et al., 1998).
O mais famoso entre os programas de enriquecimento intelectual é o projeto Perry, colocado em prática em Ypsilanti
(Michigan), por Larry Schweinhart e David Weikart (1980). Esse
programa foi, essencialmente, do tipo “Head Start” (vantagem
inicial), e teve como alvo crianças afro-americanas em situação
de desvantagem social. As crianças selecionadas foram alocadas
(de maneira aproximadamente aleatória) em grupos experimentais e de controle. As crianças de grupo experimental passaram a
freqüentar um programa pré-escolar diário, reforçado por visitas
45
domiciliares semanais, geralmente durante dois anos (entre as
idades de 3 e 4 anos). O objetivo desse programa “plano-execução-análise” foi o de fornecer estímulo intelectual, aumentar as
capacidades de pensamento e raciocínio e elevar o desempenho
escolar subsequënte.
Esse programa mostrou trazer benefícios de longo prazo.
Na idade de 19 anos, os jovens do grupo experimental apresentavam maiores probabilidades de estarem empregados, de teremse formado no ensino médio, de terem passado por treinamento
profissional ou educação superior e menores possibilidades de
terem sido presos (Berrueta-Clement et al., 1984). À idade de 27
anos, os integrantes do grupo experimental haviam acumulado
um número correspondente à metade das prisões verificadas, em
média, nos grupos de controle (Schweinhart et al., 1993). Além
disso, eles tinham melhores salários e uma maior probabilidade
de morarem em imóvel próprio.
O estudo longitudinal-experimental de Montreal tomou
como base o treinamento de desenvolvimento de capacidades
nas crianças e o treinamento dos pais em técnicas de gerenciamento. Richard Tremblay e seus colegas (1995) identificaram
meninos turbulentos (agressivos/hiperativos) na idade de 6 anos
e, de forma aleatória, alocaram mais de 300 deles em condições
ou experimentais ou de controle. Entre as idades de 7 e 9 anos,
os do grupo experimental haviam recebido treinamento visando
a reforçar suas capacidades sociais e de autocontrole. Orientação, modelo de pares, desempenho de papéis e contingências de
reforço foram usados em pequenas sessões em grupo, voltadas
para temas a exemplo de “como ajudar”, “o que fazer quando
você está zangado” e “como reagir a provocações”. Houve também treinamento oferecido aos pais, usando as técnicas de treinamento de gerenciamento para pais desenvolvidas por Gerry
Patterson (1982), que têm como objetivo promover o uso consistente e contingente de recompensas e punições.
Esse programa de prevenção obteve bom êxito. À idade de
12 anos, os meninos do grupo experimental haviam cometido um
46
menor número de assaltos e de furtos, apresentavam menores probabilidades de se embebedar e de se envolver em brigas que os
meninos do grupo de controle (segundo autodepoimentos). Além
disso, os meninos do grupo experimental alcançaram melhor desempenho acadêmico. Dos 10 aos 15 anos, esses meninos obtiveram pontuações menores nos autodepoimentos de delinqüência
que os dos grupo de controle. É interessante que as diferenças, em
termos de comportamentos anti-sociais, entre os meninos do grupo experimental e os do grupo de controle tenham aumentado, à
medida em que o acompanhamento tinha prosseguimento.
Programas escolares, comunitários e de grupos de
colegas
Os fatores de risco relativos aos colegas, à escola e à comunidade encontram-se estabelecidos com menos firmeza que os
fatores de risco individuais e familiares. Por exemplo, embora
seja claro que ter colegas delinqüentes, freqüentar uma escola
com alto índice de delinqüência e morar numa área de alta criminalidade sejam prenúncios de cometimento futuro de delitos, os
processos causais exatos ainda não foram bem compreendidos.
O principal programa de intervenção, cujo sucesso parece ter como base principalmente a redução dos fatores de risco
relativos ao grupo de pares, é o programa Crianças de Risco
(Harrell et al., 1997), que tomou como alvo jovens de alto risco
(idade média de 12,4 anos), moradores dos bairros pobres de
cinco grandes cidades norte-americanas. Os rapazes que se qualificaram para o programa foram identificados nas escolas e aleatoriamente colocados em grupos experimentais ou de controle. Esse programa consistiu numa estratégia preventiva ampla,
de base comunitária, tomando como alvo os fatores de risco na
delinqüência, incluindo gerenciamento de casos e aconselhamento familiar, treinamento de capacitação familiar, acompanhamento, orientação, atividades para o horário pós-escolar e
policiamento comunitário. Esse programa foi aplicado de forma diferente em cada uma das comunidades.
47
Os resultados iniciais desse programa foram desapontadores, mas o acompanhamento de um ano de duração mostrou que
(com base nos autodepoimentos) os jovens dos grupos experimentais apresentavam menores probabilidades de haverem cometido crimes violentos ou usado ou vendido drogas (Harrell et
al., 1999). A avaliação do processo mostrou que a principal mudança ocorreu nos fatores de risco relativos aos grupos de colegas. Os jovens dos grupos experimentais tendiam a se associar
com menos freqüência com pares delinqüentes, sentiam-se menos expostos à pressão dos colegas no sentido de cometer delinqüência e contavam com o apoio de pares mais positivos. Por outro lado, houve poucas mudanças nos fatores de risco individuais,
familiares e comunitários, o que talvez se deva à pouca participação dos pais nos treinamentos para pais, e dos jovens nas atividades de acompanhamento e orientação (Harrell et al., 1997).
Um dos mais importantes experimentos de prevenção sediados em escolas foi efetuado em Seattle por David Hawkins e
seus colegas (1991), combinando treinamento em gerenciamento para os pais, treinamento de professores e treinamento de desenvolvimento de capacidades nas crianças. Cerca de 500 crianças de 21 turmas de primeira série (6 anos de idade) de 8 escolas
foram aleatoriamente distribuídas em turmas experimentais e de
controle. As crianças pertencentes às turmas experimentais receberam tratamento especial, em casa e na escola, destinado a fortalecer seus vínculos com os pais e com a escola. Além disso, eles
receberam treinamento em resolução cognitiva de problemas interpessoais. Seus pais foram treinados para notar e reforçar os
comportamentos socialmente desejáveis, num programa denominado “Pilhe-os sendo bons”. Seus professores receberam treinamento em gerenciamento de sala de aula, aprendendo, por
exemplo, a estabelecer e explicitar expectativas e fornecer instruções claras às crianças, a premiar as crianças por comportamentos desejáveis e a ensinar a elas métodos pró-sociais (socialmente desejáveis) de resolução de problemas.
48
Esse programa trouxe benefícios de longo prazo. Quanto
às crianças de famílias de baixa renda, os meninos pertencentes
aos grupos experimentais, ao atingirem a sexta série (12 anos)
apresentavam menores probabilidades de terem se engajado em
delinqüência, enquanto as meninas desse mesmo grupo apresentaram menor probabilidade de terem usado drogas (O’Donnel et
al., 1995). Num acompanhamento mais recente, David Hawkins
e seus colegas (1999) verificaram que, na idade de 18 anos, o
grupo de intervenção plena (que havia recebido intervenção da
primeira à sexta série) cometia menos violência, registrava menos casos de abuso de álcool e tinha menos parceiros sexuais que
os grupos de intervenção tardia (apenas quinta e sexta série) ou
que o grupo de controle.
Os programas que tomam como alvo os fatores comunitários de risco não se mostraram particularmente eficazes (Hope,
1995). No entanto, os programas de base comunitária foram eficazes. Por exemplo, Marshall Jones e Dan Offord (1989) implementaram um programa de desenvolvimento de habilidades num
conjunto habitacional público de Ottawa e o compararam com
um conjunto habitacional de controle. O programa centrava-se
em habilidades não-escolares, tanto atléticas (natação e hockey)
quanto não-atléticas (violão e balé). O objetivo desse desenvolvimento de habilidades era aumentar a auto-estima, incentivar as
crianças a fazerem uso construtivo de seu tempo e fornecer modelos desejáveis. Os índices de participação foram altos: cerca de
três quartos das crianças do conjunto habitacional experimental,
cujas idades as qualificavam para a participação no programa,
freqüentaram pelo menos um curso durante o primeiro ano. O
programa foi um sucesso: o índice de criminalidade decresceu
significativamente no complexo experimental, em comparação
com o complexo de controle.
Um dos principais programas de tratamento de base comunitária é a terapia multissistêmica (TMS), que consiste num
programa de componentes múltiplos, concebido por Scott Henggeler (Henggeler et al., 1998). O tipo particular de tratamento a
49
ser adotado é determinado conforme as necessidades específicas
de cada jovem, e o tratamento, portanto, é diferente para cada
pessoa. Esse tratamento pode incluir intervenções individuais,
familiares, de grupo de colegas, escolares e comunitárias, incluindo também treinamento de pais e treinamento de desenvolvimento de habilidades, para os jovens.
A TMS geralmente é usada no caso de menores infratores.
Por exemplo, em Missouri, Charles Borduin e seus colegas (1995)
distribuíram aleatoriamente 176 menores infratores (idade média de 14,8) entre a TMS e uma terapia individual, centrada em
questões pessoais, familiares e acadêmicas. Quatro anos mais tarde, apenas 29% desses menores haviam sido novamente presos,
comparados com 74% dos indivíduos do grupo tratado com terapia individual.
CONCLUSÕES
Os principais fatores de risco de longo prazo na violência
juvenil são psicológicos (forte impulsividade e baixa inteligência, possivelmente associadas às funções executivas do cérebro),
familiares (pouca supervisão, disciplina severa, maus-tratos físicos, um pai violento, família numerosa, família desfeita), colegas delinqüentes, baixa condição socioeconômica, residir em
centros urbanos e em bairros de alta criminalidade. Entre os
principais fatores de risco circunstanciais de curto prazo constam o consumo de bebidas alcóolicas e atos que conduzem a
episódios violentos (por exemplo, a escalada de uma discussão
trivial). Serão necessárias pesquisas suplementares em busca de
fatores que ofereçam proteção contra a violência juvenil, como,
por exemplo, investigar por que razão algumas crianças agressivas não se transformam em adultos violentos. Esses fatores
de proteção podem vir a ter implicações importantes nas políticas a serem adotadas.
50
Pesquisas de avaliação da mais alta qualidade demonstram
que muitos programas mostram-se eficazes na redução da prática de delitos. Os melhores programas costumam incluir educação geral e treinamento em gerenciamento para os pais, programas pré-escolares de enriquecimento intelectual, treinamento no
desenvolvimento de habilidades para as crianças e treinamento
de professores. Os programas de combate à intimidação por colegas, desenvolvidos nas escolas, também surtem efeito, e não
foram analisados no presente artigo porque serão objeto de debate no restante desta conferência. Os programas de base comunitária também mostraram ser eficazes. Uma vez que a maioria
desses projetos de avaliação foram realizados nos Estados Unidos, é óbvio que será necessário, na Europa, um maior número
de pesquisas de avaliação de alta qualidade. Necessitamos também de melhores métodos para a sistematização do conhecimento
atualmente disponível, com base na colaboração de Campbell
(Farrington e Petrosino, 2000). Chegou a hora de investir em
prevenção centrada nos riscos, não apenas para combater a violência e a criminalidade, mas também para melhorar a saúde física e mental e o sucesso na vida, em áreas como educação, emprego, relações, moradia e criação de filhos.
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57
“VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS”:
DIVERGÊNCIAS SOBRE PALAVRAS
E UM DESAFIO POLÍTICO
Eric Debarbieux
É raro um seminário científico despertar tanta atenção da
mídia quanto a primeira conferência mundial sobre a “Violência
nas escolas e políticas públicas”, organizada por nosso Observatório
Europeu de Violência nas Escolas, em Paris. Também é raro que
esse tipo de evento tenha a honra de ser aberto pelo Ministro da
Educação francês e encerrado pelo Primeiro Ministro da França.
É possível que o momento1 eleitoral tenha algo a ver com isso,
mas a razão principal foi o tema de nossos estudos, uma questão
que vem causando tanta preocupação nos países democráticos.
Até certo ponto, pode-se pôr em questão esse entusiasmo
da mídia e essa presença política. No entanto, é a própria legitimidade dessa conferência que deve ser questionada, sua relevância e seus objetivos.
Porque o que pode o político esperar de útil do pesquisador,
e o que pode o pesquisador fazer ou dizer ao político sem perder
sua alma e sua objetividade? Pode-se suspeitar que tudo o que
foi feito nesse seminário teve um caráter mais político que
científico. É claro que a única reação possível a esse tipo de atitude
seja publicar os trabalhos apresentados na conferência e abri-los
à discussão, que consiste a própria base do processo científico.
Afinal, como demonstrou Bourdieu (1997), alinhando-se aos
1
A conferência internacional sobre “Violência nas Escolas e Políticas Públicas” teve lugar
entre os dois turnos das eleições municipais na França.
59
comentários de Max Weber (1919) e de seus seguidores, é exatamente
ao abrir espaço para a controvérsia e para a oportunidade de
discussão, independentemente das motivações, e ao construir de
forma metodológica o objeto de pesquisa, que a comunidade
científica exerce sua função (ver também Latour, 1995).
Mas será que a “violência nas escolas” pode ser considerada um objeto científico e, em caso afirmativo, como? Que tipo
de violência? Devemos incluir “incivilidade” ou “intimidação por
colegas”? Se expandirmos a definição de violência, correremos
dois riscos: primeiramente, o risco epistemológico de hiperampliar o problema até torná-lo impensável, e em segundo lugar, o
risco político de vir a criminalizar padrões comportamentais comuns, ao incluí-los na definição de violência. Por outro lado, uma
definição excessivamente limitada pode excluir a experiência de
algumas das vítimas, ignorando o fato de que a pior violência
deriva da “microviolência”. Por trás dessa “batalha de palavras”
reside um problema fundamental, no qual as preocupações do
“cientista” se unem às do “político”. Por mais abstrata2 que possa parecer esse debate acerca da definição, ele dá origem a desentendimentos que são de natureza teórica e que dizem respeito às
escolhas relativas às medidas a serem tomadas.
O PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO
A maior parte dos autores que investigam o problema da
violência escolar aceita uma definição ampla que inclui atos de
delinqüência não necessariamente passíveis de punição, ou que,
de qualquer forma, passam despercebidos pelo sistema jurídico
(ver Gottfredson, 2001; Roché, 1996). Essa é também a minha
opinião, já há vários anos (Debarbieux, 1989, 1996, 2000): a voz
2
Os leitores apressados ou desencorajados pela obscuridade da discussão epistemológica
podem pular a primeira parte de nosso texto, que é reconhecidamente densa. Este debate, entretanto, não deve ser tratada com leveza, nem mesmo no sentido estilístico.
60
das vítimas deve ser levada em consideração na definição de violência, que diz respeito tanto a incidentes múltiplos e causadores
de estresse que escapam à punição quanto à agressão brutal e
caótica. Contra essa definição ampla, no entanto, podem-se levantar várias objeções fortes, tanto políticas quanto epistemológicas; e é deste último aspecto que trataremos de ini´icio, mesmo
que não seja nossa intenção separar o aspecto científico do problema prático3.
Delimitar para pensar?
A primeira objeção contra uma definição ampla da violência pode ser resumida pelos comentários de um autor francês,
Bonafé-Schmitt (1997) que denunciou “a visão inflacionista da
violência”, conceito que reúne “agressão física, extorsão, vandalismo e aquilo que é conhecido como ‘incivilidade: xingamentos,
linguagem rude, empurra-empurra, humilhação”. Esta primeira
objeção afirma que a hiperampliação faz com que o conceito
seja impensável, devido à confusão léxica e semântica. Desse
modo, a primeira objeção é a seguinte: atribuir o termo “violência” a uma ampla gama de fenômenos é um mau uso do termo.
Esse argumento pode ser encontrado num relatório recente (Prairat, 2001), que propõe a leitura crítica de meus próprios
estudos, e questiona “o desejo louvável de levar em consideração a experiência dos protagonistas”, que contribuem, eles próprios, para a definição de violência. Para Prairat, “aqui encontramos o famoso ‘esse est percipi’ expresso pelo velho4 Berkeley: ser é
ser percebido”. Não é mais “usando o sujeito político, mas também – e principalmente – usando o sujeito psicológico, que Debarbieux pretende definir a violência. A partir daí, não há limites: violência objetiva, violência sentida, violência temida... o
3
4
Os desenvolvimentos a seguir reexaminam e complementam alguns comentários feitos
por mim em outros lugares. (Debarbieux, 2001).
Minha reação é a de um filósofo: não vejo por que ser “velho” garanta o obsoletismo de
um filósofo. O argumento aqui é mais ad hominem que epistemológico.
61
mundo do virtual já adentrou o exame da dura realidade”. Prairat, então, sugere que devemos nos ater a uma definição limitada
de violência, e cita um outro autor, Jacques Pain (1994), que certa vez propôs5 a seguinte definição: “Entendemos violência como
um processo que é construído, criminoso, bem demarcado pelas
categorias do código penal”. Prairat usa também uma definição
introduzida por Ballion (Ballion, 1999): há violência “quando há
abuso, ameaça, intimidação, danos físicos a outros, danos ou destruição intencional de pertences”.
Essa definição limitada deve-se, em parte, ao ressurgimento do interesse por um dos primeiros textos do pensamento francês sobre a insegurança, publicado em 1981 por Jean-Claude
Chesnais (1981) e intitulado “História da Violência”. Chesnais é
de opinião que devemos nos ater ao “círculo interno da violência”, ao “núcleo bruto”, à “ violência física mais grave”, subdividida em quatro tipos: homicídio (ou tentativa de homicídio), estupro (ou tentativa de estupro), danos físicos graves e roubo ou
assalto armado. A violência “moral” ou simbólica é um “mau
uso da linguagem, específico de certos intelectuais ocidentais que
estão bem de vida demais para saber algo sobre o mundo da
pobreza e do crime”.
Essa refutação, portanto, dá origem a alguns argumentos
interessantes:
• Medo de um solipsismo psicologizante – ou mesmo de
um nominalismo – que poderia cobrir uma ampla definição dentro do campo do relativismo radical.
• O desejo de limitar a violência aos atos de violência – e
principalmente às categorias factuais demarcadas pelo
código penal.
5
Escrevemos “certa vez propôs” porque Pain, sob a forte influência dos trabalhos sobre
intimidação na escola, parece ter mudado de idéia. Em particular, ele traduziu e escreveu
o prefácio do livro de Dan Olweus, livro esse que demonstra a importância da intimidação repetida (Olweus, 1999).
62
Por fim, a construção do objeto é questionada: restringir a
definição a “fatos” objetivos ou objetificados é, aqui, a única
garantia de uma distância suficiente, que nos permita pensar sobre a “violência”. Os argumentos parecem sólidos e não podem
ser deixados de lado sem a consideração devida: eles devem ser
respondidos dentro do mesmo campo, o da epistemologia fundamental das ciências sociais.
Relativismo: aporia ou necessidade?
De fato, essa definição restrita – limitada à definição penal
e às formas mais brutais de violência – levanta problemas epistemológicos igualmente complexos. O primeiro é que ela é a extensão de um texto legal, isto é, o código penal, que é marcado
pela temporalidade e que é, ele próprio, relativo. O segundo é
que ela provém de um mal-entendido a respeito da maneira como
é construído o vocabulário das ciências humanas, esse “léxico
impraticável”, para citar Passeron (Passeron, 1991). O terceiro
problema é que ela torna impensáveis as experiências na área
que são operacionais na nomeação da violência, ou as confina à
categoria da fantasia ou do virtual.
A primeira dificuldade é óbvia: limitar a violência ao âmbito do código penal é tão relativo quanto o próprio código penal,
não consistindo, portanto, numa base segura para que sejam evitadas as armadilhas do relativismo. De fato, o código foi escrito
de acordo com os desejos e as opiniões do público (um bom
exemplo é a violência no trabalho e a idéia de assédio moral). “O
legislador só age de acordo com reações baseadas nas representações mentais de desvio, delinqüência, criminalidade, justiça,
punição e repressão, ou administração de delitos” (Dufour-Gompers, 1992). No século XIX, a violência resultante de uma briga
de bar raramente era punida, ao passo que o roubo dos pertences do patrão por parte de um criado estava sujeito a uma pesada
sentença, e de fato era considerado quase tão mau quanto o parricídio, na representação paternalista da lei napoleônica.
63
A segunda dificuldade vincula-se tanto à ignorância do pragmatismo da linguagem, que recusa qualquer idealismo conceitual
e devolve as palavras a seu contexto e sua história, quanto a uma
incompreensão dos mecanismos de formação do vocabulário nas
ciências humanas. O pragmatismo da linguagem desafia a própria idéia de “conceito” e, portanto, da definição eterna dentro
de um vocabulário adequado à coisa. “A verdade não pode existir independentemente da mente humana – uma vez que as sentenças não existiriam, não estariam aí, à nossa frente. O mundo
está lá, do lado de fora, mas não as descrições que dele fazemos.
Apenas elas podem ser verdadeiras ou falsas. O mundo, em si,
não poderia ser sem a intervenção das descrições feitas por seres
humanos” (Rorty, 1993). O vocabulário científico, então, não
“descobre” o que é verdade; o que é verdade é construído e, por
sua vez constrói novos paradigmas. Em outras palavras, é um
erro fundamental, idealista e histórico crer que definir a violência, ou qualquer outro termo, por sinal, seja uma questão de se
aproximar o máximo possível de um conceito absoluto de violência, de uma “idéia” de violência que faz com que a palavra e a
coisa estejam para sempre adequadas6. Não se trata sequer de
dizer que as palavras evoluem juntamente com um “contexto”
externo, que faria com que uma definição original evoluísse – que
apenas a ilusão de uma permanência etimológica pode ser encontrada. O “contexto” não é exterior ao texto, como demonstrou a
psicologia histórica (Vernant, 1972), o contexto é “homólogo ao
próprio texto a que ele se refere”, é um universo mental no qual as
palavras são uma ferramenta verbal, uma categoria de pensamento, um sistema de representação, uma forma de sensibilidade: as
palavras criam o contexto tanto quanto são criadas por ele.
Podemos aplicar à “violência”, como conceito científico
(usado por cientistas), a esplêndida demonstração de Passeron
6
Poderíamos também nos utilizar da obra dos principais fenomenologistas, principalmente Husserl ou Heidegger, e sua crítica radical ao platonismo e ao idealismo
dele resultante.
64
(loc. cit.), que demonstra que as definições teóricas das palavras
meramente as tornam legíveis, ao passo que é na escolha dos
argumentos, dos métodos e das formulações que o pesquisador
adquire “controle teórico” sobre as virtualidades semânticas dos
conceitos. Como diz Passeron, numa situação de pesquisa, qualquer tentativa de confinar os conceitos aos limites estritos de
uma definição “imediatamente os reduz a pálidos resíduos acadêmicos, concentrados ineficazes de associações verbais, desprovidos de indexação ou de vigor”. Em termos metodológicos, não
deveríamos estar pesquisando a violência como um todo indivisível; deveríamos, pelo contrário, estarmos multiplicando os pontos de vista (os indicadores), o que nos traz de volta a um conceito que é inoperante devido a sua generalidade – e nós admitimos
que a definição ampla gere esse problema. Os pesquisadores deveriam, simplesmente, explicar seus pontos de vista e suas escolhas, e demonstrar como seus resultados tornam mais legível essa
realidade. Essa é a vantagem de acumular pontos de vista fragmentados, que giram em torno do assunto7, construindo um conhecimento que é sempre temporário e que será substituído assim que surgirem novos indicadores e novas operações de pesquisa. Não pode haver um conhecimento total acerca da violência nas escolas – porque ela só pode ser representada de formas
parciais, e devemos ou aceitá-las como tal ou nos permitir cair na
fantasia da onisciência, que é tudo menos ciência. Vemos aqui
uma primeira oportunidade de superar certas cisões e divergências, demonstrando que as diferenças de pontos de vista levam a
uma pluralidade de representações. Nesse sentido, a abordagem
internacional é boa, por colocar em perspectiva as certezas etnocêntricas. Esse tipo de relativismo é, portanto, uma necessidade.
Uma definição excessivamente restrita não seria uma forma de
colonialismo cultural?
7
É exatamente isso que faz a análise de dos fatores, quando ela localiza objetos num
espaço multidimensional, “girando” em torno de eixos.
65
Campo semântico, campo de poder
Em termos ainda mais concretos e muito simples, o fato
de diferentes atos sociais poderem ser agrupados sob o termo
genérico de “violência”, por parte de pessoas de dentro das escolas é, por si só, um ato social que merece ser pensado, e um
dos pontos de vista possíveis. Isso porque a terceira dificuldade
gerada pela definição restrita é que ela nega aos próprios participantes o poder de dar um nome a sua experiência. Por exemplo,
uma observação simples nessa área, mencionada diversas vezes
em nossos trabalhos, também foi notada há poucos anos por
Dubet, que, em seu estudo sobre estudantes da sexta série, considerou que a violência é um “clima de indisciplina que é paradoxalmente mais tangível que os atos que o geram” (Dubet, 1990).
Isso quer dizer que as pessoas, nas escolas, devem ser relegadas à
detestável categoria de “fantasistas da insegurança”? Esse “clima” deve ser retirado do campo da violência?
O campo semântico é um campo de poder, no qual a questão da legitimidade da nomeação é um problema central. A própria idéia de uma definição “universal” é, por si mesma, uma
forma de controlar esse campo – ainda mais se o código penal
for a única forma de nomear a violência, uma vez que o risco
óbvio seria o de só ser capaz de lidar com a violência escolar em
termos penais. É uma contradição dizer que uma definição ampla da violência deva ser rejeitada por medo de estigmatização,
ou, em outras palavras, numa perspectiva aberta pela psicologia
da rotulação 8, na qual se acaba por escolher o mais severo de
todos os rótulos, o código penal. Mas, para nós, trata-se, acima
de tudo, de uma recusa a ouvir o que as vítimas têm a dizer. A
história da violência na escola (Debarbieux, 1998) – assim como
muitas outras formas de violência – é a história da descoberta
gradual das vítimas, daquelas pessoas “esquecidas pela história”,
como o diz tão bem Benoît Garnot (Garnot, 2000). É isso que
vem ocorrendo na França, e o que vem ocorrendo também em
termos internacionais, principalmente quando lemos os trabalhos que tratam da intimidação por colegas ou dos ataques de
66
gangues (Sharp e Smith, 1994; Smith et al., 1999). Essa descoberta acontece quando, gradualmente, passamos a reconhecer o que
as vítimas têm a dizer, e a reconhecer, portanto, seu poder de
colocar seu sofrimento em palavras. Da mesma forma, as leis
sobre o assédio no trabalho surgiram a partir do momento em
que passamos a nomear aquilo que gradualmente veio a se converter num delito, na maior parte dos países da Europa e da
América do Norte, e o poder do assediador diminuiu progressivamente, à medida que as palavras da vítima ganharam legitimidade.
O mesmo vale para a violência sexual cometida por adultos em
relação a crianças, nas escolas e em outros lugares, e para o arsenal
de punições regularmente aplicadas nas escolas, que pouco a pouco se tornaram ilegais, nos termos do direito internacional.
Não há portanto necessidade de estabelecer uma definição
“objetiva”, contraposta a uma “subjetiva”. A sociologia de Max
Weber tem grande valor aqui, no sentido de que ela nunca erigiu
oposição entre as regularidades estatísticas “objetivas”, que são a
“verdade” das coisas, e a interpretação dos fatos pelos próprios
sujeitos (ou antes, a elaboração dos fenômenos como fatos). A
verdade de um fenômeno social também resulta do significado
que os sujeitos – na posição de sujeitos sociais – dão aos eventos
e aos atos (Pourtois et al., 1992). A pior situação e a mais violenta, que um cientista – ou qualquer pessoa – pode provocar para
uma vítima é negar que ela seja uma vítima, é relegá-la ao reino
do “subjetivismo”. Isso não refuta o modelo da violência “simbólica”, que é ainda mais violenta pelo fato de ser oculta, mas
abre o caminho para que as vítimas possam dizer o que sentem,
e para o aumento do nível de conscientização, que é uma tarefa
sociológica. O papel do “savant”, nesse caso, não seria o de propiciar a expressão dessas palavras, ajudar as pessoas a compreender o sofrimento sem primeiro aprisioná-lo em definições fixas,
8
De acordo com essa escola de pensamento, a nomeação e a qualificação de um
sujeito faz com que ele se fixe nessa nomeação, por exemplo, a reprovação na
escola, por meio do famoso “efeito Pigmaleão” ou, para Michel Foucault, a loucura.
67
ilusórias, pré-fabricadas, mas também fazer com que essas palavras sejam construídas com toda a sua singularidade e em sua
significância social?
AS CONSEQÜÊNCIAS DAS PALAVRAS:
O PROBLEMA POLÍTICO
Mas, por trás dessa conscientização sobre as vítimas, não
existiria também a suspeita de um tipo pouco saudável de populismo, cuja conseqüência seria descrever qualquer mal feito a uma
pessoa como um perigo grave, e qualquer “incivilidade” como
uma abertura ao crime? Não existiria o risco de excessos do tipo
“tolerância zero” que com tanta freqüência são denunciados
como o fim da liberdade? Não seriam essas supostas “vítimas”
apenas desculpas úteis para a adoção de políticas repressivas, que
representariam a contrapartida das sociedades democráticas dominantes, que tentariam encarcerar os pobres e os indesejáveis,
por meio de uma “criminalização da pobreza”?
A teoria da “conspiração mundial”
O sucesso político alcançado pelo tema da insegurança tem
como corolário o sucesso comparável de um vocabulário, que
consiste na descrição de um mundo social e, ao mesmo tempo,
numa interpretação dele: incivilidade, intimidação, violência, introversão de identidade, grupo étnico, comunitarismo, comportamentos não-cívicos etc. (cf. Bourdieu e Wacquant, 1998). O
lugar central ocupado pela definição “ampla” de violência pode
parecer suspeito, quando ela é usada para justificar políticas de
supervisão excessivas. O desejo de conhecer, nesse caso, transforma-se numa máscara para o desejo de supervisionar, que é o
alter-ego das sociedades liberais, na área da segurança. É esse o
fundamento da crítica de Loïc Wacquant (1999) ao “novo sensocomum punitivo”, proveniente da América e que vem disseminando-se pela velha Europa, na forma de um neoconservadoris68
mo que criminaliza a pobreza e que, no âmbito de nosso tema,
o interpreta, desde a mais tenra idade, como uma forma de aliviar o Estado “de suas responsabilidades quanto à origem social e econômica da insegurança, apelando à responsabilidade individual dos habitantes de áreas ‘incivilizadas’ de exercer sua
própria forma de controle social” (id. p. 23), ao recomendar a
tolerância zero desde cedo. Para Wacquant, a razão primordial
desse controle social encontra-se na racionalidade econômica
americana, que vem disseminando-se por todo o mundo: “A
América, obviamente, optou por criminalizar a pobreza, para
complementar a generalização da insegurança financeira e social” (op. cit. p. 151), e é essa a alternativa que está sendo proposta às demais democracias da Europa e de outras partes do mundo. Criminalizar os comportamentos de recusa é uma forma de
fazer com que as pessoas aceitem trabalhar por pouco, e aceitem também o enfraquecimento do papel redistribuidor do Estado – em outras palavras, o fim da proteção social.
Sob essa luz, a construção do objeto está ligada a uma opinião que é manipulada pela mídia e pelas autoridades públicas.
“Violência na escola” é uma onda criada pela mídia, na qual os
pesquisadores vêm surfando, ou, ainda pior, um álibi para as tentações repressoras que o mundo dos “especialistas” ajuda a justificar. Nesse caso, nosso seminário representa um risco para as
liberdades públicas, principalmente devido ao fato de ele incluir
um grande número desses mesmos circuladores de idéias entre a
Europa e os Estados Unidos, que Wacquant denuncia. Será que
essa aliança entre o mundo dos especialistas e o mundo político
faz parte da conspiração mundial a favor de um imperialismo
conservador? Por mais irritante que ela possa ser, essa pergunta
merece uma resposta.
O modelo de Foucault
Mesmo sem admitir a existência de uma conspiração mundial
consciente, proveniente da América, esse tipo de suspeita pode também ter sido influenciada pelas idéias de Michel Foucault, que, de
69
fato, são motivo de debates nos Estados Unidos (Debarbieux, 1994;
Rorty, 1993), em especial no que se refere ao modelo proposto em
“Surveiller et punir” (Foucault, 1975), coerente com os comentários
de muitos historiadores (Levi e Schmitt, 1994). A violência era muito mais presente nos tempos antigos (Muchembled, 1989), e, na
educação, de fato desempenhava um papel socializador. A família
malthusiana, na qual se baseia a maior parte das normas e modelos
culturais da família ocidental, se opunha à tradição popular, ao recusar a brutalidade que transformava o antagonismo na chave da normalização. Ao invés da brutalidade corretiva dos pais e do grupo de
colegas (cf. Thin, 1998), a família burguesa preferia que o aprisionamento se desse na esfera da chantagem emocional, fazendo com
que a educação não-violenta se tornasse a norma. O medo da violência por parte das crianças (Crubellier, 1979) estava relacionado
ao confinamento da infância percebido por Foucault. Boa parte de
sua obra (Rorty, 1993; p. 99) consistiu em “mostrar como os modelos característicos da aculturação das sociedades liberais impunham
restrições de tipos inimagináveis às sociedades mais antigas, prémodernas”, mas, para Foucault, a regressão do sofrimento causado
pela violência espetacular (a que ele chama de “a eclosão do tormento”) não compensa o totalitarismo moderado presente nessas
novas restrições, cujas melhores expressões são a escola e a pedagogia “ortopédica”. A profunda transformação de nosso relacionamento com a brutalidade na educação consegue explicar de forma
mais ampla sua definição excessiva como violência intolerável. No
final das contas, estaríamos simplesmente aplicando normas pequeno-burguesas, que são repressivas no sentido de que apelam para
uma rede de proibições, para um “clima” emocional que pressiona e
sufoca9. De certa forma, se seguirmos à risca esse raciocínio, não
deveríamos então restaurar a violência?
9
Não é por acidente – e essa é a base da crítica clássica de Malinovski ao freudismo
– que a psicanálise tenha se desenvolvido sobre a base do enclausuramento na
família burguesa do fin-de-siècle, que gera uma sufocação psicótica, ao mesmo tempo
em que dá amor à criança.
70
A violência e o “politicamente correto”, sob o risco
da reação comportamental
Essas críticas não devem ser ignoradas, e algumas delas são
subscritas por nós. De fato, não há dúvida de que o tema da
violência escolar deva grande parte de sua proeminência às campanhas exageradas da mídia, na maior parte dos países europeus,
e também nas Américas. Foi dado destaque a fatos espetaculares
– e raros – para descrever explosões de barbarismo infantil, associadas a um discurso trôpego sobre o declínio dos padrões
educacionais (tendo como alvo as famílias de pais solteiros), e
com explicações simplistas sobre os efeitos da influência direta
da violência na televisão ou nos videogames, e também sobre as
mazelas da imigração. Foi o que aconteceu na Alemanha, onde a
reunificação intensificou as tensões xenófobas (Krämer, 1995).
Na Inglaterra, os assassinatos de Dunblane atuaram como catalisadores (Blaya, 2000), e sabemos também que, na Suécia (Lindström e Campart, 1998) e na Espanha (Moreno, 1998), a tensão
provocada pela mídia não foi menor. Também eu analisei esse fenômeno no caso francês (Debarbieux, 1998), onde o assunto parece ter-se transformado numa inexaurível mina de ouro para a
imprensa escrita e televisiva. Uma das principais tarefas dos cientistas vem sendo a de desconstruir esses discursos alarmistas, e
mais adiante veremos como a pesquisa quantitativa pode ajudar.
Por outro lado, existe uma forma de conceber ou de utilizar a abordagem de “fatores de risco” que pode ser muito perigosa e estigmatizante para uma boa parte da população descrita
como “de risco”. A alternativa de rejeitar por completo as abordagens desse tipo seria tentadora, uma vez que elas permitem
que toda uma população seja visada, usando padrões que são
mais deterministas que probabilísticos, mais mecânicos que sistemáticos. Essas críticas devem servir de incentivo à vigilância.
Em tempos recentes, essa questão foi debatida de forma brilhante por David Farrington. No entanto, acredito que alguns comentários sejam necessários; eles não contradizem o que foi dito
por David, mas podem dar ênfase a certos aspectos do problema
71
e servem para identificar níveis possíveis de intervenção. Em
primeiro lugar, como afirmaram Fortin e Bigras (Fortin e Bigras,
1996), “a documentação sugere que devamos ir além do nível de
estudo no qual nos concentramos num episódio ou num fator
gerador de stress, como o divórcio, passando a estudar os múltiplos fatores e combinações estressantes presentes no desenvolvimento de riscos comportamentais” e “a presença de um único
fator de risco não parece aumentar a probabilidade ocorrência
de problemas posteriores”. Desse modo, embora algumas pesquisas mostrem que famílias de pais solteiros correm um risco
significativamente maior de que seus filhos venham a desenvolver disfunções comportamentais (Webster-Stratton, 1989), essa
situação não prenuncia de forma absoluta a ocorrência dessas
disfunções, salvo se aliada a outros fatores, o econômico, principalmente, e é apenas o acúmulo de fatores como esses que leva a
um risco real. Mesmo nesse caso, não é necessário procurar indícios de fatalidade social, uma vez que outros estudos (Abidin,
1983) demonstram que muitos pais mantêm uma relação harmoniosa com seus filhos, apesar dos “fatores estressantes do ambiente familiar”, como o desemprego. Da mesma forma, a “qualidade da relação conjugal” é obviamente importante, uma vez que,
de acordo com uma análise da pesquisa realizada por Emery em
1988 (Emery, 1988), ela explica uma variação de 10% a 20% na
capacidade de adaptação das crianças, ou na falta dessa capacidade... mas isso também significa que 80% a 90% dos fatores são
encontrados fora dessa relação. É óbvio que não se pode negar a
influência que os fatores familiares têm sobre o comportamento
das crianças na escola, mas um estudo sueco (Lindström, 1995)
mostra que a explicação não deve ser buscada em nível individual, mas em dificuldades cumulativas vividas de forma coletiva
nas escolas que não foram capazes de criar um clima escolar suficientemente harmonioso. Apenas uma análise contextual pode
descrever de forma completa as dificuldades vividas , os problemas familiares apenas uma das variáveis possíveis. Indo mais além,
a tentativa de criação de um modelo sistemático, por meio da
72
inclusão de variáveis explicativas nos modelos estatísticos, gera,
com freqüência, um artefato totalmente distanciado da realidade, no qual o refinamento das categorias é correspondente a seu
vácuo teórico (Passeron, 1991).
De fato, a abordagem dos fatores de risco, por mais valiosa
que possa ser, apresenta limitações metodológicas e epistemológicas, quando situada em nível individual. Seria ilusório tentar encontrar um modelo que nos permitisse prever com perfeição os comportamentos, uma vez que tal modelo poderia apenas nos levar a
excessos e ilusões relativas ao behaviorismo. Embora a abordagem
dos “fatores de risco” seja de real interesse para análise da violência
escolar, ela não deve levar a uma visão determinista, mas sim a uma
visão que reconheça o papel das variáveis familiares e pessoais, e das
variáveis estruturais e contextuais. A abordagem dos fatores de risco só tem valor quando centrada nas condições sociais e institucionais que produzem esses “riscos”. Em nossa opinião, portanto, a
polêmica maneira de abordar a questão da intimidação por colegas
nem sempre escapou de um enfoque excessivo nos aspectos psicológicos e no indivíduo, nos padrões e nos traços de caráter, sem
colocar em questão os sistemas educacional e político (Blaya, 2001;
Hayden e Blaya, 2001). Ao contrário de investigar as características
individuais dos alunos e explicar seus perfis de risco, nós preferimos, como outros que nos antecederam (por exemplo, Gottfredson, 1986), enfocar as características que fazem com que uma escola
corra ou não o risco de ver-se envolvida em violência (Debarbieux,
1999, 2001). Os fatores internos, ligados à organização das escolas,
são variáveis importantes no que se refere à amplitude da delinqüência, nessas escolas. Os conflitos internos das equipes de adultos nos pareceram uma explicação possível para os efeitos escolares
negativos e, por outro lado, a mobilização de outras equipes parece
explicar os efeitos escolares preponderantemente positivos. O estudo causal, na tradição da Literatura sobre a Escola Eficaz, mostra que
os protagonistas não são impotentes, e que a mobilização coletiva,
internamente às escolas e no nível das parcerias externas, são uma
maneira realista de tentar lidar com um fenômeno que não é uma
73
questão de determinismo por meio de deficiência “socioviolenta”.
Nossa avaliação recente do plano interministerial de combate à violência escolar (Debarbieux-Montoya, 1999) mostra que as escolas
de classes trabalhadoras por vezes tendem a expressar violência de
uma forma mais forte, principalmente em situações que envolvem a
chamada delinqüência de exclusão, e que o “conflito de civilidade” e
a violência antiescolar tendem mais a se espalhar nessas escolas. Mas
essa avaliação também mostra a importância dos efeitos escolares e
dos efeitos zonais. A estabilidade dos professores e os cortes de
funcionários têm um papel importante. Esse levantamento revela
uma redução do fenômeno no Sul da França, onde a equipe de professores é mais estável, e uma piora nos subúrbios de Paris, onde a
rotatividade nas equipes chega a atingir 80%, o que torna impossível
construir uma “cultura escolar”, sem a qual nada é possível.
De fato, essa pesquisa mostra que as causas da violência são
múltiplas, complexas, densas, mas não fatais. Ela mostra a importância da mobilização nessa área, e também a necessidade de um
Estado que seja capaz de implementar o desejo político de neutralizar a desigualdade. Não é politicamente correto, nem teria fundamento, considerar o problema em termos de um populismo
maniqueísta, que afirma que as deficiências do Estado são responsáveis pela violência na escola (e que, na verdade, condena toda
essa área à impotência), ou de um transcendentalismo repressivo,
que tem como objetivo a simples remoção dos elementos indesejáveis10. As pesquisas na área demonstram que a violência nas escolas deve ser analisada macro e microssociologicamente, enfatizando que suas causas são tanto exógenas – relacionadas ao bairro, ao sistema econômico, a falhas familiares ou das políticas públicas – quanto endógenas – associadas a graus de organização ou
de desorganização local, nos quais os atores não são apenas agentes impotentes, manipulados por forças políticas externas, nem
tampouco populações que, em si mesmas, representam um perigo.
10
Ver nosso artigo sobre a fabricação dos “linha-duras”, nos Cahiers de la sécurité
intérieure, 2001.
74
DEFINIR PARA AGIR
As críticas epistemológicas e políticas mais fortes dizem
respeito tanto à hiperampliação da definição do fenômeno da
“violência nas escolas” quanto a seu exagero quantitativo. Nesta
seção, gostaríamos de demonstrar que apenas uma definição
ampla pode avaliar de fato a violência nas escolas, colocando-a
em perspectiva, e como essa definição ampla pode ir além de
uma abordagem meramente repressiva. Apenas uma definição
desse tipo pode estabelecer tecnicamente a necessidade de prevenção. Não se trata de ser contra a repressão em si, nem de
defender unicamente as medidas preventivas, o que provavelmente seria uma utopia! Mas se a violência é construída, então ela
pode ser desconstruída. A repressão é sempre um estado trágico
de temporalidade para a vítima. Quando a violência espetacular
ou criminosa acontece, já é tarde demais, e a repressão não passa
de um efeito retardado. Porém o mais significativo, e o que nos
permite avaliar as políticas públicas que tratam da violência, é,
acima de tudo, a redução do número de vítimas e do grau de
vitimização, e não quantas pessoas foram presas. Na França, já é
hora de levar em conta o efeito a longo prazo, na formulação das
políticas públicas de combate à violência. De fato, já é hora de
examinarmos a microviolência e a forma como ela tem influência na vida das vítimas e dos criminosos.
Estatísticas paradoxais: a contagem do crime
Uma das acusações mais comuns levantadas contra os pesquisadores que trabalham com a violência nas escolas e com a
delinqüência juvenil em geral, é que eles “fazem com que o fenômeno exista, ao falarem sobre ele”, contribuindo para o exagero
público, ao identificá-lo como uma questão científica. Nós vimos até que ponto chegaram os comentários de Wacquant sobre
a questão, chegando a postular a existência de uma conspiração
mundial, que envolveria a “mão negra” da manipulação. Deve-se
dizer que os argumentos desse autor são especialmente simplistas,
75
e que eles esquecem – ou ignoram – a maioria dos trabalhos
mais importantes sobre o tema.
De partida, após uma análise secundária das estatísticas
oficiais sobre a violência nas escolas (estatísticas que são raras,
aliás11), a maior parte desses estudos, sem necessariamente subestimar tais atos, concordam que a quantidade dos crimes e
delitos ocorridos nas escolas é baixa (Debarbieux, 1996, 1999;
Facy, em Charlot e Emin, 1997; Gill e Hearnshaw, 1997; Lindström, 1998). A tarefa desses pesquisadores é, também, mostrar –
muitas vezes de forma cansativamente repetitiva – que devemos
resistir a uma preocupação excessiva com a segurança, veiculada
pelos noticiários que alarmam a opinião pública e os políticos
(Downing et al., 2000). Aliás, isso não vale apenas para a Europa:
as pesquisas americanas de criminologia não são executadas por
um bando de conservadores neofascistas, como denunciado por
Wacquant (1999) – que só erra ao esquecer que as sociedades,
até mesmo as científicas, são estratificadas, reificando portanto
as chamadas posturas americanas. Ao contrário, o debate sobre
os contraventores muito jovens ou a presença de armas letais nas
escolas tenta demonstrar a natureza infundada e ineficaz da cruzada conservadora, que tenta aplicar aos menores as leis adultas,
a pena de morte inclusive (Farrington; Sociedade Americana de
Criminologia, 2000). Neste estudo, nós veremos, com a apresentação de nosso amigo John Devine, que a repressão e a obsessão
com a segurança não são os principais temas da maioria dos pesquisadores americanos – fato que será confirmado nas próximas
publicações desta conferência.
11
Quanto à questão da violência nas escolas, a França é, provavelmente, o único
país do mundo que forneceu estatísticas – ainda que imperfeitas – de vários anos
(1993), com um resumo nacional dos atos registrados pelas escolas e pela polícia,
pelo menos anualmente, e agora trimestralmente. No entanto, existem vastas
pesquisas oficiais nos Estados Unidos, e outros países produziram estatísticas,
mas apenas de forma episódica. Obviamente, isso não leva em conta as pesquisas
científicas, que contam ou não com o apoio de instituições.
76
Tomemos dois exemplos: o americano e o francês. Em
ambos os países, a sensibilidade da opinião pública à violência
dos jovens é muitas vezes exacerbada por notícias trágicas que
“relatam” episódios espetaculares e sangrentos. Isso acontece
principalmente nos Estados Unidos, onde os assassinatos em
massa cometidos em escolas chegaram às manchetes de todo o
mundo – transformando a escola americana num lugar de violência aterrorizante – o que bem pode ser verdade em alguns
lugares, mas que tende a mostrar o problema apenas como uma
espécie de naturalização da violência urbana, na qual hordas de
adolescentes tomaram o lugar das hordas de “peles-vermelhas”.
Assim, o jovem passa a ser visto como um “selvagem”, e o salto
entre a “criança selvagem” e a criança dos selvagens não é tão
grande assim: por razões de natureza ou de cultura, essa criança
não é passível de ser integrada às normas sociais. Representações
desse tipo acabam por levar a uma forma de justiça de classe que
pode também ser uma forma de justiça étnica: não é preciso que
ninguém nos lembre (Body-Gendrot, 1997) que a população carcerária norte-americana tem 50% de negros e 25% de hispânicos. No entanto, quando se trata dos adolescentes das zonas centrais das grandes cidades, o que está em questão não é nem a
cultura de filmes de cowboy nem a selvageria “natural”, mas sim a
fabricação social da violência, que alia a pobreza extrema – que
Kozol (1991) chama de desigualdade selvagem – ao cinismo dos
traficantes de armas, que, no início da década de 80, redirecionaram 12 seu “mercado” aos adolescentes negros dos guetos
(Canadá, 1999). Apesar disso, deve-se lembrar que, nos Estados
Unidos, o risco de uma criança de idade escolar se ver em meio a
um tiroteio é de um para um milhão, ou, em outras palavras, uma
12
Tive a oportunidade de desenvolver esse tema numa entrevista à imprensa, durante
o seminário, já que, recentemente, havia ocorrido um tiroteio nos Estados Unidos.
Isso provocou um e-mail furioso de um poderoso lobby pró-armas americano, o
que não me abalou muito.
77
possibilidade remota que de forma alguma justifica uma política repressiva e excessivamente preocupada com segurança (aplicação de leis adultas a menores, aumentado exponencialmente
etc.).
O exemplo francês é igualmente eloqüente. Se examinarmos os últimos13 dados fornecidos pelo Ministério da Educação,
perceberemos que o número de incidentes listados é, na verdade, bastante baixo. No primeiro semestre do ano escolar de 19981999, o número de incidentes registrados nas escolas foi de
240.000. Se compararmos ao número total de alunos, chegaremos à conclusão de que 4% da população escolar total são vítimas em potencial14. E o que é mais revelador, o número total de
incidentes “graves” foi de 6.240, correspondendo a um índice de
0,12%. E, de fato, os incidentes que ultrapassam a mera violência verbal foram apenas 1.000, ou seja, envolveram apenas 0,02%
das crianças em idade escolar. Desse modo, mesmo tomando
como base as estatísticas oficiais, é difícil falar de um “barbarismo infantil” generalizado, ou de “crianças selvagens” ameaçando as escolas (Debarbieux, 1998). Da mesma forma, quando os
estudos estatísticos revelam que a participação de elementos externos ainda representa menos de 10% dos casos (na Inglaterra,
no Canadá e na França, 4% dos casos15 etc.), não se pode deixar
de pensar que as representações atuais, que mostram a escola
como um forte sitiado, estão longe de ser verdade. Nas estatísticas francesas já mencionadas, menos de 1% dos casos de agres-
13
14
15
Até o dia do seminário, os dados disponíveis diziam respeito ao ano de 19981999. Houve uma interrupção na produção de estatísticas, causada pela produção
de uma nova ferramenta computadorizada para a listagem de incidentes; ferramenta
essa que deve entrar em operação em setembro de 2001. Ela foi produzida pelo
Comitê Nacional de Combate à Violência, organizado pelo Ministério da Educação
e conduzido por Sonia Heinrich.
Esse cálculo não leva em conta a possibilidade de uma mesma pessoa ser vítima
várias vezes, o que reduziria o percentual.
As últimas estatísticas policiais (julho de 2001) também mostram uma grande
redução (63%) nos casos de intrusão em escolas.
78
são envolveu pais de alunos, e o dobro desse número – o que
continua sendo um índice baixo, felizmente – referem-se a atos
cometidos pelos funcionários. Portanto, é difícil jogar a responsabilidade total sobre os fatores externos – família, outras pessoas etc. O número dos delinqüentes juvenis que cometem atos de
violência grave é relativamente baixo, por mais que as pessoas
pensem o contrário (Farrington, 1986; Departamento de Estatísticas do Ministério do Interior, 1985).
Ao colocarmos em perspectiva a freqüência dos crimes,
não estamos tentando subestimar sua gravidade; estamos, isso
sim, nos recusando a cair num tipo de fascinação negativa. Isso
seria uma medida regressiva, e um risco às sociedades democráticas. Tampouco estamos negligenciando as vítimas; pelo contrário, estamos tentando ouvi-las melhor. Essa fascinação pelos crimes sangrentos e violência extrema é, muitas vezes, uma atitude
que mascara uma violência rotineira – do tipo que estamos prestes a relatar e que forma a base da destruição de muitas vidas.
Porque, ao colocarmos o grau de violência muito em perspectiva, corremos o risco de aprisionar as vítimas em sua própria culpa e em seu silêncio. Apesar de as vítimas serem raras, nem por
isso é menor o dever social de conhecê-las melhor e de assegurar
que elas sejam bem-cuidadas após o trauma sofrido por elas. Além
disso, a “cifra negra” da vitimização (ou seja, o número das vítimas desconhecidas, em razão de elas não terem dado parte da
ocorrência) está ligado à própria produção de dados estatísticos
oficiais diretos ou indiretos. O paradoxo das estatísticas criminais é bem-conhecido: elas medem, acima de tudo, o estado de
mobilização dos serviços públicos, sejam estes a polícia ou, como
no presente caso, as instituições educacionais e jurídicas. As tentativas de usar essas estatísticas para corroborar alegações de
aumento (ou redução) da delinqüência juvenil ou da violência
nas escolas são, portanto, enganosas – o que não significa que
essas estatísticas sejam desprovidas de valor, mas que elas devem
ser submetidas a críticas e comparadas com levantamentos de
outros tipos, realizados por instituições científicas independen79
tes, de forma a verificar os resultados e confirmar ou refutar a
existência dessas tendências16. Certamente que não há razão para
desprezar as estatísticas oficiais, pelo menos as que tratam dos
crimes e delitos mais contundentes e dos casos mais graves de
vitimização, que atraem a atenção pública: é importante notar,
por exemplo, que as estatísticas do Departamento de Justiça
americano provaram, no Levantamento Nacional de Vitimização por Crimes, que os ataques armados não aumentaram nos
últimos 20 anos. O mesmo vale para a França, onde as estatísticas do Ministério da Justiça e do Ministério do Interior ou do
Ministério da Educação, a partir de 1993, vêm mostrando consistentemente que, apesar do medo do público, esse tipo de ataque continua sendo extremamente raro, e que os assassinatos
envolvendo menores não aumentaram nos últimos 25 anos (Aubusson de Carvalay, 1998).
Prevenção e microviolência
Mas há ainda um outro paradoxo oculto por esse foco num
possível exagero: essas estatísticas sempre subestimam o número das vítimas. Apenas os levantamentos de vitimização podem
pode determinar o que de fato ocorreu. Mais do que o conhecimento da “delinqüência”, que mede as representações e as atividades das instituições policiais e jurídicas, a abordagem dos estudos de vitimização, em vez de concentrar seu foco nos perpetradores, permite que as transgressões e os delitos sejam entendidos do ponto de vista da vítima, que assim se vê transformada
num informante privilegiado. Essa abordagem trata do problema do sofrimento sem vinculá-lo a algum modelo que possa fazer com que as vítimas se sintam culpadas. Mesmo quando usa
categorias penais mais restritas, o levantamento mostra o abismo
16
Nossos próprios levantamentos (Debarbieux e Montoya, 1999), conduzidos em
paralelo com as estatísticas da Educação Nacional, encontraram a mesma grande
tendência entre 1996 e 1998: um aumento do número de professores atacados em
algumas escolas secundárias situadas em áreas sensíveis.
80
que existe entre o conhecimento institucional do fenômeno e a
realidade da experiência. Nossos levantamentos de vitimização
mostraram que o número de alunos expostos `a extorsão (roubo
com extorsão) se manteve estável a partir de 1995 (cerca de 7%
de alunos envolvidos, uma porcentagem baixa – 93% dos alunos
não estão expostos a essa forma de vitimização –, mas muito
mais do que as estatísticas já mencionadas levam a crer). Esses
levantamentos também mostraram que, apesar de o número de
vítimas ter-se estabilizado, houve aumento na gravidade dos casos de vitimização. Isso nos levou a concluir que o número de
atos de violência em grupo foi maior, e os perpetradores vêm
cometendo atos de violência mais brutal (Debarbieux, 2000).
Metodologias desse tipo estão se tornando mais comuns
na Europa, mobilizando pesquisadores em levantamentos de
ampla escala e construindo bancos de dados que irão permitir
mensuração mais precisa da extensão e da evolução do fenômeno. Na França, o levantamento elaborado por Horenstein e Voyron-Lemaire (em Charlot & Emin, 1997) sobre professores vitimados abrangeu 269 professores que haviam sofrido ataques,
enquanto o estudo de vitimização de autoria de Carra e Sicot
(1996) teve como objeto 2.855 alunos. A pesquisa realizada por
nosso observatório cobre agora quase 30.000 alunos franceses,
com estudos feitos em 1995-1996 e 1998-1999; mais de 1.500
alunos na Inglaterra; mais de 1.000 na Bélgica, e ela será estendida à Espanha e à América Latina (cf Lagrange, 1995). Os estudos sobre intimidação por colegas ocorrida nas escolas são amplamente generalizados, questionários tendo sido aplicados a
várias centenas de milhares de alunos na maioria dos países europeus, bem como no Japão e na América do Norte (Smith &
Sharp 1994). Além dos levantamentos de larga escala, muitos
outros métodos vêm sendo usados: questionários enviados pelo
correio ou aplicados diretamente, grupos de trabalho, entrevistas individuais, levantamentos de vitimização, análise secundária
de dados estatísticos ou de documentos administrativos, observações etnográficas e estudos de caso, intervenção de pesquisa
81
por meio de mediação etc. Longe de nos encontrarmos numa
situação de seguir opiniões estabelecidas, vemo-nos na presença de uma real revolução metodológica, uma maneira de estabelecer a distância necessária para a construção do objeto, enquanto os dados empíricos se acumulam e se ampliam as discussões sobre modelos.
De fato, mais que meramente uma forma alternativa de
quantificar o noticiário, colocando-o em perspectiva de curto e
de longo prazo, esses levantamentos mostram que a violência
tem uma história, que ela não foi simplesmente uma explosão
inesperada: ela é previsível, pois foi construída socialmente. Portanto, são as estratégias de prevenção, e não as estratégias de
repressão, que encontram justificativa na pesquisa científica, não
apenas por razões ideológicas, mas por puro pragmatismo. Os
levantamentos de vitimização mostram (ver nossa síntese em
Blaya e Debarbieux, 2000) como o stress acumulado da microviolência pode ter um efeito tão desestabilizador quanto um único
ataque grave, e que a violência é tanto uma questão de opressão
diária quanto de atos brutais e espetaculares. Os levantamentos
sobre a intimidação por colegas ganham significado com as pesquisas sobre as causas do suicídio entre adolescentes, e a correlação entre as taxas de suicídio e a ocorrência de intimidação há
muito já ficou demonstrada (Besag, 1989). A violência não se
limita a um único elemento traumático e inesperado – embora,
por vezes, isso de fato aconteça. A violência, tanto para quem a
comete quanto para quem é submetido a ela, é, no mais das vezes, uma questão de violência repetida, às vezes tênue e dificilmente perceptível, mas que, quando acumulada, pode levar a graves danos e a traumas profundos nas vítimas, e a um sentimento
de impunidade no perpetrador17 (embora devamos ter sempre
17
O que vem mostrar a prevenção implica uma certa dose de repressão (como reparação,
entre outras coisas): microviolência, micropenalidades, bem-formuladas, adaptadas,
de forma que não representem uma tentativa de vingança e contem com uma base
reguladora (sobre esse ponto, ver nossa pesquisa em Meuret, 2000).
82
em mente que certos perpetradores costumam ser, eles próprios, vítimas). Essa microviolência tem também efeitos sociais
danosos: o baixíssimo nível de auto-estima das vítimas costuma ser acompanhado de uma introversão que anula qualquer
possibilidade de ação conjunta, qualquer maneira coletiva de
lidar com as incivilidades18. Comportamentos delinqüentes contumazes são construídos sobre atos repetitivos e sobre a ignorância a reseita das atividades rotineiras (Blumstein et al., 1986),
e o mesmo acontece com a carreira das vítimas.
Campos de ação
Se a violência nas escolas é construída, ela o é lentamente.
Porém também é construída de forma irregular, e essa é certamente uma das chaves para a ação pública. E penso ser essa também a melhor forma de apresentarmos os aspectos políticos de
nosso seminário.
A pior violência, a mais espetacular, pode ocorrer nas escolas onde menos se espera19. Os ataques armados ocorridos nos
Estados Unidos e, em determinados casos, na França e na Inglaterra, mostraram que a violência paroxística não está, de forma
alguma, restrita a determinada classe social. No entanto, seria inadequado pensar a violência somente do ponto de vista desses casos, principalmente se levarmos em conta que as tendências estatísticas mais recentes, no tocante à delinqüência, mostram que pode
ocorrer um aumento dos ataques pessoais ao mesmo tempo em
que diminuem os crimes de sangue. O debate continua candente:
para alguns pesquisadores, determinadas formas de violência (es18
19
Provavelmente, estamos cometendo um erro ao falar de incivilidades no plural:
isso dá uma idéia de factualidade a uma noção que só pode ser muito relativa, e se
aproxima do conceito de “tolerância zero”, o que é uma ilusão e não faz sentido.
Ao invés disso, deveríamos falar em incivilidade, no singular, como conseqüência
da microviolência e de delinqüências de pequena monta.
Isso também ocorreu em termos históricos, por exemplo, nas famosas revoltas
ocorridas durante o século XIX, nas escolas de elite, como a Louis Le Grand, que
não era exatamente uma escola de classe trabalhadora.
83
pecialmente a intimidação por colegas, segundo Olweus; (1993)
não dependem especialmente das variáveis sociais tradicionais20.
No entanto, muitos trabalhos mostram que a violência não tem
uma origem única, e que vale a pena examinar as abordagens sociológicas e psicológicas. Nas escolas de elite ou de classe média, os
comportamentos de risco (uso abusivo de drogas, etc.) e as fases
depressivas parecem ser mais comuns (Ballion, 1998; Pommereau,
2000), enquanto o comportamento agressivo e a violência física
são mais freqüentes nas escolas das classes trabalhadoras, e o mesmo acontece com os ataques contra adultos21. A maior parte dos
sociólogos franceses (por exemplo, Dubet, 1994; Payet, 1995) considera a exclusão social como uma das grandes causas da violência
nas escolas. De forma semelhante, o impacto da exclusão social
no clima escolar, na intimidação por colegas e no comportamento
foi descrito em muitos estudos anglo-saxônicos (Blaya, 2001; Cohen et al., 1994; Gottfredson, 2001; Lacerda e Niel, 1997; Mortimore e Whitty, 1999; Room, 1995). Em particular, as pesquisas
destacam que as crianças de grupos étnicos minoritários apresentam maior tendência a virem a se tornar vítimas e a desenvolver
comportamentos reativos, ou comportamentos percebidos como
tal pelos professores (Debarbieux, 1996, 1999; Gillborn, 1992;
Mirza, 1998; Moran et al., 1993; Osler, 1997; Wright, 1992). Com
isso, não pretendemos estigmatizar certas categorias sociais, nem
fazer com que pessoas “pobres” ou estrangeiros se sintam culpados, senão mostrar que, para lidar com a violência, precisamos,
antes de mais nada, lidar com a exclusão.
Para Bourdieu, a forma suprema de violência simbólica se
dá quando os “produtos dominados de uma ordem dominada
20
21
Quanto aos trabalhos de Olweus, poderíamos questionar a relevância de seus
primeiros exemplos, que, como ele mesmo admite, não incluem escolas de classes
menos privilegiadas.
O último levantamento de Roché (Roché, 2001) sobre a delinqüência “autorelatada” mostra que, embora a delinqüência seja um fenômeno muito difundido,
a delinqüência com violência é mais alta nas áreas menos privilegiadas.
84
pelas forças da razão (como aqueles que atuam por meio das
decisões da instituição escolar, ou dos ditames dos especialistas em economia) não podem senão aquiescer à arbitrariedade
da força racionalizada” (Bourdieu, 1997). A violência adolescente, que poderia ser vista como ruptura da ordem social, principalmente com a escola, na verdade não passa de reprodução
conformista da violência sofrida por eles próprios. Bourdieu
propõe uma “lei da conservação da violência”, que consiste no
“produto da ‘violência interna’ das estruturas econômicas e dos
mecanismos sociais retransmitidos pela violência ativa das pessoas”. Isso não legitima a violência expressa pelos jovens ou
pelos fracos, que não é nada além de uma reprodução social,
que pára nas fronteiras de seu ambiente imediato, sem atacar as
estruturas de dominação. Sob essa luz, os agressores não são
“revolucionários”, e as vítimas são, antes de mais nada, pessoas
próximas a eles. Nossos próprios trabalhos (Debarbieux, 1996)
mostram que os que praticam extorsão, longe de serem “Robin
Hoods pós-modernos, que redistribuem bens de consumo distribuídos de forma desigual”, atacam principalmente as crianças mais próximas a eles, das mesmas classes e, na maioria das
vezes, do mesmo ambiente social, obedecendo a uma “lei da
proximidade”. Bachmann (1994) descreve “o ódio da proximidade e os aprendizes de ladrões”, mostrando como algumas escolas se vêm atoladas numa violência que apenas faz aumentar
as disparidades sociais. A violência da exclusão sempre aumenta a exclusão.
Portanto, para nós, se há legitimidade política no combate à
violência e à delinqüência, é porque elas contribuem para a manutenção e a produção da desigualdade social: ao invés de romper
com as injustiças do mundo, elas as reforçam. A opressão diária da
violência é também uma forma de dominação, a menos que se
acredite no romantismo neomarxista (Engels, Ed., 1971), que postula que a violência conduza a velha sociedade rumo a algum tipo
de modelo social futuro ou alternativo. A violência representa um
desafio às democracias: o desafio da guerra contra a exclusão e a
85
desigualdade social. Essa desigualdade não se refere apenas aos
“bairros sensíveis”, ela existe em escala planetária: existe uma
comunidade global de problemas, porque, se existe de fato essa
coisa chamada de globalização, ela é a globalização da desigualdade, que afeta os bairros de classes trabalhadoras tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em dificuldades. A mobilização deve se dar, portanto, em nível internacional; essa é a principal razão deste seminário e de nosso Observatório.
No entanto, os campos de ação não se limitam aos centros
de prestígio, como este, a Maison de l’UNESCO. Isso não tardaria a
criar o risco do lamento bem-intencionado, de denúncias gerais,
distanciadas das esperanças e das possibilidades, e também dos
professores e dos demais protagonistas da área. O fato de que a
construção da violência é lenta significa também que a prevenção
tenha que começar cedo, devendo acontecer em meio às tarefas
cotidianas da educação, e não apenas nas grandes campanhas de
“conscientização”, por mais úteis que elas possam ser. O papel
fundamental nessa prevenção deve ser desempenhado por aqueles
que administram a educação em base cotidiana, contando, se necessário, com a ajuda de outros profissionais, especializados ou
não: os professores, é claro, mas também as famílias e as comunidades, tantas vezes vistas como inimigas ou como culpadas. As
pesquisas selecionadas pelo comitê científico desta conferência
muitas vezes mostram que só é possível lidar com a violência na
escola por meio de uma parceria estreita, e todas as experiências
educacionais urbanas apresentadas, seja em pequenas comunidades ou em escolas de serviços integrados22 (Van Veen et al., 1998),
demonstram o mesmo. As experiências que contam de fato com a
participação de parceiros institucionais, dos serviços públicos e da
22
Ou seja, nas escolas como as de Amsterdã, por exemplo, que incluem vários
serviços públicos no mesmo local (saúde, serviço social, creche infantil, biblioteca
pública, etc.) o que, paradoxalmente, confere uma melhor identificação às diferentes
profissões, inclusive a de professor, ao mesmo tempo em que evita uma separação
entre a escola e o bairro e seus habitantes.
86
comunidade – os alunos, inclusive – são as únicas que realmente
funcionam (Blaya, 2001; Body-Gendrot, 1999). Foi a democracia
próxima – os esforços da população para resolver seus próprios
problemas de forma conjunta, com o auxílio de profissionais e
dos serviços do Estado, quando estes existem23 – que gerou o contexto desta conferência, porque tal é o contexto da pesquisa internacional sobre a violência nas escolas.
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No entanto, algumas experiências, apesar de um Estado fraco, no sentido social (o que
não significa fraco no que se refere à polícia) foram bem sucedidas e devem ser levadas
em consideração, por mostrarem que a luta da própria população não é em vão, apesar
das injustiças. É esse o caso de certas experiências brasileiras – o que não implica uma
crença romântica nas possibilidades da auto-organização das massas oprimidas.
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92
VIOLÊNCIA NA ESCOLA:
UMA ABORDAGEM JAPONESA
´Yohji Morita
Até o presente momento, vem sendo dito que, com seus
baixos índices de criminalidade adulta e de delinqüência juvenil,
o Japão é um dos mais seguros entre os países desenvolvidos. É
certo que o índice de criminalidade no Japão seja um dos menores do mundo, mas, se voltarmos nossa atenção para a população
jovem, veremos que o índice de delinqüência juvenil, a partir da
Segunda Guerra Mundial, nem sempre foi uniformemente baixo, tendo passado por oscilações, antes de atingir os níveis atuais, e o mesmo pode ser dito dos índices de violência escolar.
Em anos recentes, contudo, o mito da segurança vem pouco
a pouco desmoronando. Uma série de incidentes jamais verificados anteriormente vêm ocorrendo entre a população jovem e nas
escolas, fato esse que atingiu como um choque o público japonês.
No presente artigo, eu gostaria, primeiramente, de proceder a um exame geral dos antecedentes do baixo índice de criminalidade no Japão, passando então à análise das medidas tomadas por nossa sociedade, à época em que a criminalidade juvenil
e a violência escolar atingiram seus níveis máximos. Embora,
naquele tempo, essas medidas tenham sido de grande eficácia,
elas apresentavam também uma série de problemas e, hoje, já
não seriam eficazes no combate à violência escolar e à criminalidade juvenil, que novamente se encontram em ascensão. Eu gostaria de descrever as razões pelas quais elas perderam eficácia,
informando também sobre diversos outros problemas, entre eles
a violência escolar e a intimidação por colegas nas escolas hoje
verificadas, e também sobre a postura que vem sendo adotada
93
pelo governo japonês no trato das novas questões relativas a esses problemas. Isso porque essa postura talvez se constitua numa
das soluções possíveis para o dilema proteção ou punição, enfrentado hoje pela totalidade dos países.
A CRIMINALIDADE JUVENIL NO JAPÃO E NO
OCIDENTE – O JAPÃO VISTO COMO UM
“PAÍS SEGURO”
Todos sabem que o Japão tem o menor índice de criminalidade adulta de todos os países industrializados de maior desenvolvimento. Seu índice de criminalidade/delinqüência juvenil também é
baixo. Por essa razão, o Japão é considerado um país seguro, no que
se refere à criminalidade. Primeiramente, eu gostaria de examinar tal
aspecto, comparando as estatísticas oficiais de diversos países.
A tabela I traz uma comparação internacional dos índices
de criminalidade de seis países, a saber, Estados Unidos, Inglaterra e País de Gales (doravante mencionados como “Inglaterra”), Alemanha, França, Coréia e Japão. Com relação às categorias jovens, adultos jovens e adultos, respectivamente, ela mostra
os índices de criminalidade, excluídas as infrações de trânsito,
para cada país (índices de criminalidade, nos Estados Unidos, e
crimes indiciáveis”, na Inglaterra). Esses dados foram compilados pelo Instituto de Pesquisa e Treinamento do Ministério da
Justiça, e publicados no White Paper on Crime 1998. A tabela I foi
modificada com base na tabela de Matsumoto (1999). É difícil
estabelecer comparações precisas, uma vez que o leque e as características essenciais dos comportamentos considerados como
criminosos diferem de país para país, e o mesmo acontece com
os métodos estatísticos empregados. No entanto, é possível proceder a um exame geral das características da delinqüência juvenil no Japão, organizando as estatísticas, na medida do possível,
em termos de faixas etárias. Essa tabela divide os jovens em duas
categorias distintas: “jovens” – de idades entre 10 e 18 anos (na
94
Alemanha, a partir de 14 anos) – e “adultos jovens” – de idades
entre 18 e menos de 20 (no Japão e na Coréia), ou inferiores a 21
(nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha).
Tabela 1
Índices de criminalidade por faixa etária: jovens, adultos jovens
e adultos (1996)
Na categoria “jovens”, o país com os maiores índices de
criminalidade é a Alemanha, seguida da Inglaterra, França, Estados Unidos, Japão e Coréia. Na categoria “adultos jovens”, a França vê-se excluída, uma vez que, naquele país, 18 anos é a idade na
qual os jovens se tornam oficialmente adultos. Dentre os demais
países, o índice de criminalidade mais alto é o da Alemanha, seguida da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Coréia e do Japão.
Como se pode ver, até mesmo nas categorias “jovens” e “adultos
95
jovens”, os índices de criminalidade japoneses são significativamente mais baixos que os dos países industrializados do Ocidente, e a diferença na faixa dos adultos jovens é significativa.
Uma outra característica, que podemos inferir dessa tabela, é que, enquanto todos os demais países apresentam índices de
criminalidade para os adultos jovens acima dos índices dos jovens, no Japão, os índices de criminalidade para os jovens é mais
alto que para os adultos jovens (11:6,8).
Pode ser relevante obser var, neste ponto, que, se
comparamos os índices de criminalidade adultos, o índice no Japão
é de 1,7 em 1000, o que é significativamente menor que os dos
outros países. Um desses outros países, a Coréia, tem o índice de
criminalidade mais alto para adultos, embora, da mesma forma
que o Japão, ela tenha índices mais baixos para as categorias
“adultos jovens” e “jovens”, seguida da Alemanha, da França, da
Inglaterra e dos Estados Unidos, nessa ordem. Essas estatísticas
demonstram, portanto, a especificidade da criminalidade no Japão,
onde, quanto maior for a idade, menores se tornam os índices de
criminalidade, resultando numa diferença significativa nos índices
de criminalidade em comparação com os outros países. Essa
particularidade japonesa pode também ser obser vada na
“percentagem de jovens” no total dos criminosos presos num
mesmo ano. Comparado aos outros países, o Japão tem uma
“percentagem de jovens” significativamente mais alta. Em outras
palavras, numa sociedade onde os índices de criminalidade são
baixos, o índice mais elevado de criminalidade juvenil ganha realce
devido ao baixo índice de criminalidade entre os adultos.
Em estudos criminológicos realizados anteriormente no
Ocidente, costumava-se afirmar que a maior liberdade resultante
do desenvolvimento econômico tinha conexão com o aumento
da criminalidade. O Japão, no entanto, aparece como um dos
países onde essa teoria não se sustenta, uma vez que, ali, o índice
de criminalidade indicado pelo número de criminosos adultos
manteve-se em declínio, apesar do desenvolvimento de sua economia e de sua democracia, a partir da Segunda Guerra Mundial.
96
Então, por que razão os índices de criminalidade de Japão
são tão mais baixos que os dos demais países desenvolvidos?
Estudos japoneses anteriores sugeriram as seguintes explicações
possíveis (Fukushima, 1980; Segawa, 1998; Susuki, 1986): no Japão, existe ainda um forte controle social informal. Os japoneses
tendem a manter estreitos vínculos familiares e fortes elos sociais, na forma de ligações mútuas entre os membros da família. O
autocontrole tende a desempenhar o papel de fator regulador,
uma vez que o cometimento de um crime freqüentemente causa
problemas para a família. Por exemplo, os membros da família
podem vir a ser apontados como culpados, ou as perspectivas
potenciais de emprego ou de matrimônio de irmãos ou parentes
podem ser negativamente afetadas. Além disso, os integrantes de
um grupo intermediário, como os representados pela escola ou
pelo local de trabalho, tendem a formar fortes identificações com
o grupo ao qual pertencem. Eles, muitas vezes, controlam seu
ímpeto de cometer um crime por temerem que esse ato virá a
prejudicar sua organização ou os demais membros dela. Além
disso, as pessoas tendem a formar fortes vínculos com sua comunidade local, e a supervisão mútua, internamente a essa comunidade, é um outro fator de controle da criminalidade.
No Japão, há menos conflitos sociais. O idioma, as tradições e os costumes são semelhantes por todo o país. O número
de imigrantes é mínimo. As religiões são semelhantes entre si e,
como regra geral, muitas delas aceitam a existência das demais.
Verifica-se, portanto, um grau muito menor de conflito social e
de fricção cultural, como as que tendem a ocorrer entre grupos
étnicos. Além disso, quando surge um problema em sua vida cotidiana, as pessoas tendem a trabalhar rumo a uma solução via
comunicação, sem recorrer a soluções ilícitas ou à violência.
No Japão, o controle do porte de armas é rígido, tanto em
relação a armas de fogo quanto a armas de outros tipos. Em
termos históricos, desde o século XVI, não existe a tradição de
cidadãos comuns possuírem e portarem armas. Por essa razão, o
97
potencial de criminalidade envolvendo uso de armas capazes
de matar ou ferir tende a ser comparativamente reduzido.
Uma grande proporção da população percebe a si própria
como classe média. A disparidade de situação econômica entre a
população em geral é pequena, e a estrutura social do Japão tem a
forma de um diamante. Como afirmado acima, a identificação de
classe, entre os japoneses, é caracterizada por uma grande proporção de indivíduos que se consideram de classe média. Uma das principais razões para tal é a baixa taxa de desemprego, que tem como
base o sistema de empregos vitalícios, que assegura uma renda estável. Nessas circunstâncias, há um menor potencial de descontentamento causado por grandes disparidades de classe social ou por comportamentos anti-sociais na forma de criminalidade.
Há também, no Japão, altos padrões de escolaridade e de
alfabetização. Como a freqüência à escola é excelente, o resultado é uma taxa de alfabetização que, sabidamente, é uma das mais
altas de todo o mundo. Além disso, em decorrência da escassez
de recursos naturais, o desenvolvimento econômico depende da
qualidade dos recursos humanos japoneses, e a política educacional é vista como uma das áreas mais importantes e fundamentais, nesse particular. Como a educação é também uma das principais maneiras de ascensão social, os japoneses tendem a encará-la com seriedade, mostrando um forte desejo de aprender. A
atitude dos japoneses com relação à educação, portanto, evidencia um alto nível de confiança e de expectativa. Como resultado, a
educação exerce um efeito positivo sobre a moralidade e a ética
dos japoneses, o que, por sua vez, desenvolve a tendência a tentar
resolver os problemas interpessoais de forma razoável e lícita.
A ordem pública, nas comunidades locais, é mantida de
fato por meio do sistema Koban e Chuzaisho. Esse sistema, administrado pela polícia japonesa, é famoso por sua absoluta originalidade. Os koban são postos policiais de pequenas dimensões,
espalhados por todas as áreas preponderantemente urbanas, e os
oficiais de polícia que operam a partir dos koban trabalham em
turnos para manter a ordem pública na comunidade adjacente.
98
Por outro lado, os chuzaisho são tanto delegacias de polícia quanto
residências, onde os oficiais de polícia trabalham, moram e
mantêm a ordem pública no âmbito da comunidade local. A principal característica desses dois tipos de delegacia policial é o fato
de eles funcionarem em estreita colaboração com a comunidade
local, visando a prevenção da criminalidade.
O sistema Hogoshi trabalha na reintegração dos infratores
na sociedade e obtém sucesso no combate às reincidências (o
cometimento repetido de crimes). Um hogoshi é uma pessoa particular, trabalhando em base voluntária, que, conjuntamente com
um agente da polícia, supervisiona os períodos de liberdade condicional. Esses voluntários são designados pelo Ministério da
Justiça e, atualmente, há quarenta e oito mil deles trabalhando na
prestação desse serviço. A função de um hogoshi é permanecer
em contato direto com o infrator, oferecendo-lhe assistência. Os
voluntários hogoshi desempenham um papel importante no Japão,
ajudando os criminosos a se reintegrarem na sociedade e impedindo a reincidência.
TENDÊNCIAS ANTERIORES QUANTO A
DELINQÜÊNCIA JUVENIL E VIOLÊNCIA
ESCOLAR
Se examinarmos as tendências quantitativas da delinqüência juvenil no Japão a partir da Segunda Guerra Mundial, encontraremos três ondas principais, ocorridas em 1951, 1964 e 1983,
e, embora os índices tenham declinado a partir de 1984, eles encontram-se novamente em ascensão, e já se diz que, atualmente,
estamos em meio a uma quarta onda. A figura 1 mostra as tendências quanto ao número de menores infratores presos por delitos graves, e seu percentual em relação à população total.
A primeira onda de delinqüência juvenil ocorreu em meio
a um contexto de quebra da ordem social, subida da inflação,
desemprego e dificuldades econômicas e outros tipos de
99
perturbações sociais, ocorridas no período imediatamente
posterior à guerra. Quando aconteceu a segunda onda, em 1964,
o Japão atravessava um período de rápidas transformações sociais,
propiciadas pela industrialização e pela urbanização resultantes
do acelerado desenvolvimento econômico do país. Àquela época,
a sociedade japonesa evidenciou uma tendência à violência e a
comportamentos anti-sociais, e os atos de delinqüência juvenil,
tais como furtos, ocorriam não por razões de necessidade
econômica, mas sim de busca de prazer. O número de furtos
cujo motivo aparente foi a obtenção de dinheiro para diversão
aumentou durante esse período. Os contatos entre as escolas e a
polícia foram intensificados nessa época, e a “Comissão de
Ligação entre Escolas e Polícia” (Gakko Keisatsu Renraku
Kyogikai) foi formada em 1963. O propósito dessa comissão não
era tratar do problema da violência dentro das escolas, senão de
delitos, tais como furtos em lojas, ocorridos na comunidade local.
A criminalidade juvenil declinou, após ter atingido um ponto máximo em 1964, mas voltou a crescer em meados da década
de 70, e a terceira onda atingiu seu auge em 1983. A violência
escolar transformou-se também numa questão social importante, nesse período.
A proporção das crianças freqüentando escolas de
secund´arias atingiu mais de 90% em 1974 e, de fato, a partir
daquela época, a educação secundária tornou-se obrigatória. Em
outras palavras, a maior parte da população de menos de 18 anos,
idade em que os adolescentes japoneses concluem a escola secundária, viram-se na condição de estudantes ou alunos, o que
significa que eles foram colocados sob o controle do sistema
educacional, ou seja, das escolas. O aumento das matrículas escolares significava que as pessoas eram movidas por um forte
desejo de ascender na escala social. Além disso, o princípio da
meritocracia exerce forte influência, e um sistema de valores baseado nesse princípio transformou-se num fator marcante, incentivando as pessoas a se educarem, com o propósito de virem
a se encaixar numa economia de alto crescimento. Por volta de
100
Figura 1
Tendências quanto ao número de menores infratores presos por delitos graves e sua proporção em
relação à população em geral (fonte: Agência Nacional de Polícia). (A proporção em relação à população total representa o número de infratores por 1000 habitantes; os delitos graves correspondem
aos crimes hediondos (assassinato, assalto a mão armada, incêndio culposo e estupro) e aos crimes
violentos (ataques físicos, danos corporais, intimidação e extorsão), roubo, crimes intelectuais (fraude
e estelionato), atentados contra a moralidade pública (jogo e obscenidade) e apropriação indébita de
objetos perdidos, excluindo danos corporais provocados por negligência em determinadas atividades
(infrações de trânsito etc.), falsificação de documentos, suborno e corrupção, abuso de confiança e
construção de armas perigosas).
1977, trouxe como resultado uma ferrenha competição pelo ingresso nas melhores escolas secundárias e universidades, e termos como “Juken Senso”, significando “a guerra dos vestibulares” e “Ochikobore”, ou “desistentes” entraram em moda.
O stress e a frustração grassavam nas escolas, o que veio a se
tornar causa de comportamentos problemáticos e violentos.
À medida que a sociedade avançava em termos econômicos, aumentavam as ocasiões para o cometimento de delitos, e
a função das famílias e das comunidades na socialização e na
101
proteção das crianças viu-se enfraquecida. Nesse contexto, os
roubos de pequena monta ocorridos fora da escola, como o furto de mercadorias em lojas, sofreram um nítido aumento, e a
terceira onda de delinqüência juvenil começou a ganhar ímpeto.
Na mesmas proporção que a função controladora das famílias e das comunidades locais se fragilizava, verificou-se, concomitantemente, um espetacular aumento das expectativas da
sociedade com relação às escolas, que passaram a ser vistas como
a última instituição indispensável capaz de desempenhar a função de socialização, ou seja de socializar as crianças pela educação. Como essas expectativas eram muito altas, e as escolas fervilhavam de criminalidade e violência juvenil, críticas cada vez
mais severas passaram a ser dirigidas contra elas: as escolas eram
acusadas de não desempenharem seu papel, e exigia-se delas que
assumissem suas responsabilidades. Essas críticas forçaram-nas
a reforçar ainda mais sua supervisão e seu controle sobre os alunos. A cada vez que os estudantes liberavam sua energia cada vez
mais agressiva, sob a forma de violência, delitos ou comportamentos problemáticos na escola, esta via-se na obrigação de exercer controle sobre essa energia, mas a repressão só fazia aumentar ainda mais a energia liberada em comportamentos problemáticos. Esse círculo vicioso tornou-se patente nas escolas de muitas regiões, em fins da década de 70 até inícios da de 80.
Quando liberada, essa fervilhante energia negativa, dirigida
contra as escolas em oposição a suas políticas de confinar os alunos, tomava a forma de violência contra os símbolos da escola, os
professores. O círculo vicioso ocorrido durante esse período consiste num exemplo real de um tipo de dilema punitivo, onde as
sanções que têm como objetivo controlar um problema transformam-se em fonte deste mesmo problema (Tokuoka, 1977).
A figura 2 mostra essas tendências, tomando como exemplo um determinado número de estudantes que receberam orientação da polícia após terem cometido atos violentos. A violência escolar inclui violência praticada contra professores, violência entre os próprios alunos e vandalismo contra o patrimônio
102
escolar. As tendências relativas ao número de casos ocorridos
para cada um desses tipos de violência seguem curvas praticamente idênticas de aumento e diminuição, e o mesmo acontece
com as tendências relativas à violência escolar em geral, que inclui os três tipos de atos violentos.
Um pequeno número de incidentes já era evidente em inícios de 1972, disseminando-se por todo o país em 1976, aumento significativo a partir de 1978, aproximadamente. Várias providências foram tomadas para controlar essa rápida escalada da
violência, de maneira que, após 1984, entrou em declínio. Tokuoka
observa que quatro medidas principais foram tomadas durante o
período (Tokuoka, 1997):
Figura 2
Tendências quanto ao número de estudantes que receberam orientação
policial devido ‘a violência.
• A primeira medida foi a publicação, pelo Ministério da
Educação e sob a liderança do governo, de uma série de
instruções dirigidas a todos os conselhos de educação e
103
a todas as escolas, no sentido de fornecer a todos os
professores orientações básicas quanto a abordagens e
medidas preventivas.
• A segunda medida foi o recrutamento de professores
dotados de força física e permitir castigos corporais.
Por volta de 1975, quando a violência entre os alunos
do ciclo inferior das escolas secundárias vinha se tornando um problema, um número cada vez maior de
escolas e de conselhos de educação passou a adotar
uma política de recrutamento que dava prioridade a
candidatos universitários possuidores de capacidades
atléticas, inclusive nas artes marciais como karatê, judô
e kendô, contratando-os em grande número, para controlar a violência com o uso de força. Como resultado,
os castigos corporais passaram a ganhar aceitação, passando a ser vistos como medida necess´aria na manutenção da ordem nas escolas. Anteriormente, a Suprema Corte do Japão havia determinado que os castigos
corporais consistiam em crime violento, mesmo quando vistos como necessários para fins educativos. Em
1981, no entanto, quando a violência escolar se intensificou, a Corte Superior de Tóquio decretou que o
uso dos castigos corporais deveria ser permitido dentro de certos limites, para que as escolas pudessem
manter a ordem e educar os estudantes, reconhecendo
a opinião de que os castigos corporais eram aceitáveis
em casos específicos.
• A terceira medida foi a adoção de controles com supervisão e regulamentos escolares mais rígidos. Esses
controles abrangiam não apenas a vida escolar dos alunos, mas também suas atividades externas à escola e,
como o propósito era evitar a delinqüência juvenil, os
pais tendiam a aprovar a interferência das escolas no
comportamento de seus filhos, mesmo quando se en104
contravam fora das dependências escolares. Além disso, àquela época, um grande número de casos de violência e outros incidentes ocorridos nas escolas foram
levados aos tribunais, e as pessoas estavam passaram a
questionar as responsabilidades administrativas e as
obrigações das escolas, na área da segurança. Foi nessa
atmosfera geral que as escolas passaram a controlar de
maneira mais rígida o comportamento dos alunos. Diversas normas foram incorporadas aos regulamentos,
cada vez mais detalhados, chegando a um ponto tal
que, por vezes, detalhes os mais insignificantes constavam dos regulamentos escolares e eram controlados
pelas escolas.
Foi dada a cada escola a responsabilidade de formular,
administrar e aplicar seus próprios regulamentos, de modo que
o conteúdo dos diferentes regulamentos varia de escola a escola. Mesmo assim, iremos examinar alguns exemplos do nível de
detalhe a que chegavam os regulamentos, e da maneira como
eles eram aplicados.
No que tange às normas relativas a penteados e vestuário,
a quase totalidade das escolas, tanto públicas quanto privadas,
exigia o uso do uniforme escolar, não permitindo alterações de
seu padrão. Na maioria das escolas, os garotos eram obrigados
a usar o cabelo curto, e as normas estipulavam que o cabelo
não deveria tocar as orelhas. Às meninas, não era permitido
fazer permanente no cabelo, e as franjas não deveriam tocar as
sobrancelhas. O comprimento da saia era de quatro centímetros abaixo do joelho, e as professoras carregavam uma régua
para medir o comprimento da saia ou do cabelo das alunas.
Quando o comprimento do cabelo não estava de acordo com o
regulamento, era comum os professores cortarem o cabelo dos
alunos ali mesmo. Como parte da “Campanha de Recepção” já
mencionada, os professores postavam-se no portão de entrada
105
da escola, inspecionando cada aluno que entrava, verificando
cada item das normas de vestuário, para ver se o aluno estava
usando meias da cor especificada, portando uma pasta do modelo e da cor especificados, usando sapatos do modelo e cor
especificados e assim por diante. Os estudantes que não estivessem de acordo com o regulamento eram mandados de volta para
casa para se trocar, e chegava-se a dizer a alguns deles que não
retornassem naquele dia.
Até mesmo o conteúdo das pastas era minuciosamente regulamentado, e algumas escolas proibiam os alunos de trazer qualquer coisa – até mesmo um romance literário – que não fosse livros escolares, cadernos e instrumentos de escrita (lápis e caneta).
Havia escolas em que até mesmo o número dos lápis e borrachas
era estipulado no regulamento. Os professores vistoriavam as pastas dos alunos, forçando-os a abri-las, e inspecionado todo seu
conteúdo, até a última camada. Objetos que não constassem das
normas eram confiscados ali mesmo. Até mesmo as latas de lixo
das salas de aula e dos corredores eram cuidadosamente inspecionadas, e se fosse encontrado um papel de bala, todos os alunos
eram chamados ao pátio e severamente repreendidos numa assembléia escolar. Aqueles que não obedecessem às regras às vezes eram
publicamente denunciados durante a assembléia.
Atualmente já não se vê mais esse tipo de controle sobre a
vida particular dos alunos, nem procedimentos disciplinares que
desrespeitem seus direitos humanos. À época, começaram a ser
impetradas ações judiciais contra as normas relativas a penteados
e vestuário e, além disso, à medida que a violência escolar e a delinqüência diminuíam, muitas escolas reviram seus regulamentos,
revogando ou atenuando suas regras quanto a uniformes escolares
e penteados. Entre os alunos, àquela época, a energia expressa na
forma de comportamentos transgressores era tamanha, que os
procedimentos disciplinares comuns já não surtiam efeito. Embora essa medidas tenham sido alvo de muitas críticas, no sentido de
que elas reforçavam o círculo vicioso do dilema das sanções já
mencionado anteriormente, o uso delas contra a escalada da vio106
lência escolar foi visto como uma medida disciplinar necessária,
da mesma forma que os tribunais aceitaram os castigos corporais.
A alternativa escolhida pelo Japão foi intensificar o combate à violência escolar por meio da aplicação de uma disciplina que fosse
ainda mais forte que a energia transgressora presente nos alunos.
• A quarta medida foi a intervenção policial. Embora a
comissão de ligação entre as escolas e a polícia, anteriormente mencionada, tenha sido criada em 1963 por
instruções emitidas pelo Ministério da Educação e pela
Agência Nacional de Polícia, as escolas eram vistas como
santuários, e muitas delas opunham-se fortemente à intervenção policial. No entanto, à medida que a terceira
onda de delinqüência ganhava força, e a violência escolar aumentava de forma significativa, comissões de ligação entre a polícia e as escolas foram organizadas por
todo o país, e a polícia e as escolas passaram a trabalhar
em estreita colaboração. Nas ocasiões quando manifestações de violência estudantil eram esperadas, como, por
exemplo, durante as cerimônias de formatura ou outras
atividades escolares, oficiais de polícia montavam guarda dentro da escola ou patrulhavam seus arredores. Essa
providência, entretanto, só era tomada a pedido da escola. No Japão, as escolas ainda são vistas como ambientes protegidos, e embora não lhes seja concedida extraterritorialidade, existe nelas uma atmosfera que, na
medida do possível, incentiva a recuperação dos estudantes problemáticos internamente ao sistema educacional. Como resultado, existe ainda uma tendência a não
apresentar queixa de incidentes ocorridos dentro da escola, mesmo que envolvam criminalidade. Desse modo,
mesmo durante esse período de violência escolar intensa, em nenhum momento as forças policiais chegaram a
se instalar no interior das escolas, e tampouco ali realizavam patrulhas de rotina. E, atualmente, também, isso
não acontece.
107
TENDÊNCIAS RECENTES QUANTO À
CRIMINALIDADE JUVENIL E A VIOLÊNCIA
ESCOLAR – O FIM DO MITO DA SEGURANÇA
Como já vimos, as medidas tomadas contra a delinqüência e
a violência escolar durante a terceira onda de delinqüência consistiram na mobilização de forças, dentro e fora da escola, usando-as
para fortalecer a supervisão e o controle sobre os estudantes. Como
demonstrado na figura 1 e na tabela II, o resultado foi uma rápida
diminuição da violência escolar e da delinqüência, após o auge de
1983. A tabela II indica as tendências verificadas quanto ao número de incidentes de violência escolar, incluindo violência contra
professores, violência entre alunos e vandalismo das propriedades
escolares. Em 1982, o Ministério da Educação passou a realizar
levantamentos anuais sobre a violência escolar, logo antes de a
terceira onda ter atingido seu ponto máximo. Por essa razão, não
há estatísticas nacionais disponíveis sobre os incidentes de violência escolar anteriores àquela data, e a tabela II começa com as
estatísticas para 1982 (Ministério da Educação, 2000). Quando a
violência escolar por fim entrou em declínio, começou a surgir a
questão da intimidação por colegas nas escolas. Após o auge de
1983, no decorrer da terceira onda, a intimidação por colegas substituiu a violência escolar, convertendo-se numa questão social preocupante e atraindo a atenção de muitos.
De uma perspectiva ocidental, pode parecer estranho que,
após a violência escolar ter diminuído no Japão, a intimidação,
que é vista como sendo de natureza diferente, tenha surgido como
um outro problema social. Discutiremos esse ponto mais adiante, ao examinarmos a intimidação na próxima sessão, mas eu
gostaria de afirmar aqui que, no Japão, lidamos separadamente
com a violência escolar e a intimidação por colegas. Em 1985, o
Ministério da Educação instituiu um levantamento nacional à
parte, para tratar da intimidação por colegas nas escolas, no momento em que a violência escolar entrava em declínio e a intimidação passava a surgir como uma questão social de relevância.
108
109
Obs.: Os métodos estatísticos mudaram em 1977, para estabelecer distinção entre o número de incidentes violentos ocorridos
dentro e fora das escolas. Esta tabela mostra apenas o número de incidentes ocorridos dentro das escolas.
A tabela II, portanto, não inclui os episódios de intimidação no
número de ocorrências de violência escolar.
Tabela II
Incidentes de violência escolar
A tabela II mostra que, da mesma forma que as tendências
relativas à delinqüência juvenil em geral, os níveis de violência
escolar entraram em declínio gradual após 1983, voltando a crescer, entretanto, após 1988. A partir daquela data, os incidentes
de violência escolar ocorridos nas escolas, tanto em relação ao
número de incidentes quanto à taxa de ocorrência, continuaram
aumentando a cada ano, até que finalmente, em 1999, o número
de incidentes ocorridos nas escolas atingiu seu pior resultado desde que essas estatísticas começaram a ser elaboradas.
Embora essas cifras incluam um grande número de incidentes de pequena monta, ocorreram também alguns casos de
violência grave, envolvendo extorsão praticada por estudantes
que tinham um histórico de problemas de comportamento, e também de violência grupal, envolvendo grupos de alunos delinqüentes. Embora muitos desses casos sejam de natureza semelhante
aos verificados no passado, vem-se registrando um aumento gradual de um novo tipo de comportamento violento, denominado
“Ikirinari gata”, significando “de tipo inesperado”. Esses incidentes são causados por estudantes sem história prévia de comportamentos problemáticos. O aumento do número de casos
como esses sugere que haja um limite para os métodos adotados
anteriormente, nos quais as medidas preventivas foram tomadas
com base em indícios encontrados na vida cotidiana dos alunos.
O desenvolvimento de uma abordagem diferente, que contenha
uma nova perspectiva, vem agora sendo buscado, e o Ministério
da Educação vem também examinando novos métodos nessa área.
E, no presente momento, o que dizer da delinqüência juvenil? Embora o recente aumento nos índices de criminalidade entre
jovens venha sendo chamado de a quarta onda, ele não é significativo, se comparado à terceira onda, mostrada na figura 1. Contudo,
se enfocarmos os crimes brutais, dentro da categoria de delitos
graves, incluindo assassinatos, assaltos a mão armada, incêndios
culposos e estupros, veremos que, em 1991, pode ser detectado o
início de uma tendência ascendente, tanto no número de infratores presos quanto no seu percentual em relação à população to110
tal. Mais de 2000 jovens foram presos nos três anos consecutivos
a 1997, alcançando um total de 2.237, em 1999. Verificou-se
também a tendência ao cometimento de crimes grupais.
O aumento recentemente verificado na violência escolar
e nos crimes brutais cometidos por jovens demonstra que os
diversos mecanismos que, no passado, mantinham a segurança,
estão começando a se deteriorar, não mais existem ou vêm perdendo eficácia.
Uma das razões para tal é que, na esteira das mudanças
sociais, tornou-se difícil, em fins da década de 80, empregar os
mesmos métodos usados nas décadas de 70 e 80 para controlar
a crescente violência escolar. Das quatro medidas mencionadas
na seção anterior, apenas a primeira delas, as determinações e
instruções publicadas pelo Ministério da Educação, está ainda
em vigor. No entanto, a partir da década de 80, a intimidação
por colegas, o não-comparecimento às aulas, a indisciplina em
sala de aula, bem como outros problemas, vêm passando a existir
e atraindo a atenção do público japonês. Esses problemas são
de natureza diferente da criminalidade juvenil, no sentido de
que eles ocorrem dentro da escola. Desse modo, embora determinações ministeriais continuem a ser emitidas às escolas, as
escolas e os professores que as recebem vêm tendo muitas outras questões para tratar. Embora o número de professores tenha sofrido um ligeiro aumento, há limites para sua capacidade
de tratar de forma minuciosa da violência escolar, e esses limites estão sendo agora atingidos. Foi nesse contexto que, após a
realização de um estudo elaborado por uma comissão de especialistas, o Ministério da Educação distribuiu um relatório intitulado “Passando do ‘confinar dentro das escolas’ à ‘cooperação aberta’:
uma nova maneira de abordar os problemas de comportamento”. Esse
documento restabelece a possibilidade de educar as crianças
em casa e na comunidade, abandonando o conceito da escola
como ambiente protegido e utilizando os recursos existentes
dentro da comunidade local, que poderiam ser de eficácia no
combate aos problemas de comportamento.
111
Quanto à segunda medida, a de recrutar professores com
bom preparo físico e aceitar os castigos corporais, e também
quanto à terceira, a de exercer controle por meio de supervisão e
de regulamentos escolares mais rígidos, diversos fatores contribuíram para a redução tanto do uso de castigos corporais nas
escolas quanto do poder concedido aos professores dotados de
força física. As escolas, progressivamente, foram se dando conta
dos efeitos indesejáveis do exercício de um controle rígido sobre
os alunos, passando a desregulamentar o uso dos uniformes escolares e de determinados estilos de penteado. Dentre esses fatores, constava uma maior consciência quanto aos direitos humanos, que, a partir da década de 80, ocorreu nos diversos setores da sociedade; críticas cada vez mais freqüentes ao uso de castigos corporais excessivos e à adoção de disciplina e métodos de
controle severos em relação aos regulamentos das escolas; o crescente número de ações impetradas na justiça, pedindo reparação
por perdas e danos e, também, o declínio verificado na violência
escolar a partir de 1983. O Ministério da Educação, além disso,
publicou um documento pedindo o aperfeiçoamento dos regulamentos escolares, no sentido de evitar detalhes insignificantes, e
foi a partir de então que assistimos a uma mudança de rumo em
termos das medidas adotadas na década de 70.
Com respeito à quarta medida, intervenção da polícia, embora a ligação entre as escolas e a polícia tenha sido mantida, à
medida que a violência escolar diminuía, poucas escolas solicitavam essa intervenção, e mesmo quando a violência escolar voltou a crescer, a tendência a tomar medidas internas à escola não
sofreu alterações. Essa relação entre as escolas e a polícia pode
ser uma das explicações possíveis, como mostrado na figura 2,
para redução das orientações policiais com relação à violência
escolar, apesar do crescimento do número de incidentes registrados a partir de fins da década de 80, crescimento esse documentado pelo Ministério da Educação.
Outras razões importantes para o fato de essas medidas
adotadas no passado estarem perdendo eficácia no controle da
112
violência escolar foram as mudanças ocorridas no ambiente da
criação dos filhos, que tendem a acompanhar os altos índices
de crescimento econômico, e nas atitudes dos adultos no que
concerne à socialização das crianças. Outros fatores atuantes
foram também o enfraquecimento do controle informal, numa
sociedade em que a influência das relações humanas nas famílias e nas comunidades servia para controlar a criminalidade,
como já foi discutido no início deste artigo, e o enfraquecimento da identificação com grupos e organizações.
Como já vimos, o mito da segurança, tal como percebido
pelos japoneses, vem gradualmente se desfazendo. Tanto a imprensa
como o público vêm testemunhando provas desse fato, numa série de incidentes brutais ocorridos em tempos recentes. Sua reação, entretanto, evidenciou uma espécie de pânico moral, e alguns
especialistas se preocupam com esse foco excessivo na escalada de
brutalidade, uma vez que essa reação poderia rapidamente resultar
numa guinada da opinião pública em direção a punições mais severas para os crimes cometidos por jovens, que poderia vir a afetar
de forma negativa as medidas adequadas, que atualmente estão
sendo tomadas no Japão. Mesmo assim, é mister observar que essa
série de incidentes aponta não apenas para sua brutalidade e aumento quantitativo, mas também para a maior freqüência dos crimes e da violência de “tipo inesperado”, os chamdos “Ikinari gata”,
além da já existente “delinqüência de tipo escalada”, ou “Hiko
escalate gata”, que já mencionamos anteriormente.
A Agência Nacional de Polícia realizou um estudo, no qual
foram selecionados e analisados 22 incidentes particularmente brutais (envolvendo menores de 25 anos), entre os crimes cometidos
por jovens entre janeiro de 1998, quando uma professora foi morta por esfaqueamento, e maio de 2000 (Agência Nacional de Polícia, 2000). Desses 22 crimes, 16 foram cometidos por alunos de
escolas secundárias, sendo que oito deles, por alunos do ciclo inferior da escola secundária. Além disso, desses 22 crimes, 16 foram
“Ikinari gata”, ou de tipo inesperado, ou seja, cometidos por alunos sem antecedentes de delinqüência, e essa análise concluiu
113
que todos esses episódios evidenciavam uma conexão frágil entre a lógica que havia levado ao crime e a realidade externa, tendo sido causado por desejos ou conflitos de natureza interna.
Nessa análise, é particularmente importante observar que,
como pode ser visto na tabela III, cerca de 60% dos 25 menores
a que o estudo se refere haviam previamente sido vítimas de violência de algum tipo, e aqueles que demonstravam problemas de
desajustamento pessoal, como não-comparecimento e sabotagem
à escola, também representavam cerca de 60% do total. O mais
significativo foi que 13 deles haviam sido vítimas de intimidação
por colegas, e que providências foram tomadas em apenas quatro dentre esses casos. Esses dados demonstram que a experiência de ter sido vítima de intimidação e o desajustamento são fatores determinantes, que não devem ser ignorados, quando se
trata de crimes brutais cometidos por menores.
Tabela III
Antecedentes de 25 menores infratores envolvidos em crimes graves, e
as providências anteriormente tomadas
Fonte: Levantamentos da Academia Nacional de Polícia
114
Desse modo, é importante observar que, no caso de muitos
desses menores infratores acusados de crimes graves, houve participação de múltiplos fatores, como o de haver sido vítima de intimidação e a existência de comportamentos desajustados, como nãocomparecimento à escola derivado de problemas psicológicos, mais
que da intenção de sabotar a escola. Em outras palavras, muitos dos
casos recentes de problemas de comportamento tendem a ter relação com problemas psicológicos acumulados, distorcidos ou reprimidos internamente. Como esses crimes são causados por problemas internos, são difíceis de prever, muitas vezes acontecem sem
aviso prévio e seus motivos e objetivos são de difícil compreensão.
Esses crimes brutais cometidos por menores sem sinais
anteriores de delinqüência não apenas causaram imenso impacto
no público japonês como também apontam para uma tendência
característica dos menores infratores presos por crimes brutais,
nos últimos tempos. Cerca de metade dos menores presos por
crimes brutais, em 1999, não tinham antecedentes de delinqüência, embora apresentassem problemas de comportamento sem
maior gravidade, como beber, fumar e ficar na rua até tarde da
noite, sinais esses que poderiam ser interpretados como prenúncios de delinqüência. Vem aumentando o número de casos de
menores que inesperadamente cometem crimes brutais.
Conforme vimos nas tendências recentes da violência escolar já discutidas por nós, deve-se observar que, no trato do
problema da delinqüência, embora ainda seja importante tomar
providências em relação a alunos que, em sua vida cotidiana,
demonstrem sinais prenunciadores de problemas, como, por
exemplo, tipos específicos de corte de cabelo ou de vestuário,
linguagem chula, roubos em lojas e outros atos de delinqüência e
de problemas de comportamento típicos das fases iniciais da delinqüência e do desenvolvimento da criminalidade, torna-se também cada vez mais importante tomar providências quanto aos
alunos que aparentam ser quietos e que não chamam atenção
para si, mas que disfarçam frustração e stress internos, que podem vir a explodir, sob a influência de um único fator.
115
O Ministério da Educação analisou também estudos e dados recentes sobre menores delinqüentes, relatando suas conclusões e as possíveis medidas a serem tomadas. Esse relatório
acusa um aumento no número de delinqüentes juvenis com as
seguintes características:
Características psicológicas dos menores delinqüentes
As características psicológicas constatadas no relatório do
Ministério da Educação são as seguintes. Os menores delinqüentes apresentam:
• tendência a uma auto-imagem negativa, forte complexo
de inferioridade e nenhum respeito próprio.
• sistema de valores autocentrado; baixo sentimento de culpa e pouca consciência a respeito das normas vigentes.
• tendência a cometer atos de delinqüência por razões impulsivas, têm dificuldade em controlar as próprias emoções e não compreendem o sofrimento alheio.
Características de suas relações humanas
As características das relações humanas constatadas no relatório do Ministério da Educação são as seguintes. Os menores
delinqüentes:
• apresentam baixa capacidade de comunicação e de autoexpressão e têm dificuldade em formar relações pessoais.
• muitas vezes ignoram os antecedentes pessoais dos coagressores.
• verifica-se um aumento do número de casos onde a vítima não tem qualquer relação com o agressor.
Características de suas relações grupais
• grupos com fraco controle interno; as relações entre o
perpetrador e a vítima estabelecem-se com facilidade e,
muitas vezes, ocorre uma súbita inversão de papéis.
• os grupos existentes no ciclo final da escola secundária
costumam ser formados durante os anos do ciclo inicial
116
da escola secundária. Incapazes de se adaptar a seu novo
ambiente, os estudantes mantêm suas relações com os
antigos amigos do ciclo inicial da escola secundária .
Nessa análise, o Ministério da Educação observou que um
“Ikinari gata”, ou seja, o “infrator inesperado”, a saber, um menor infrator sem antecedentes de delinqüência, constitui-se num
tipo novo de delinqüente, não se encaixando nas categorias já
existentes, e ressaltou a necessidade de lidar com esses jovens,
cujos conflitos internos e frustrações reprimidas acabam por
conduzir a um estado de mente distorcido que repentinamente
ganha expressão na forma de violência e crime, com motivações
e propósitos que são de difícil compreensão para os demais.
Tendo descrito as transformações ocorridas na natureza
dos problemas juvenis, eu gostaria agora de resumir o curso tomado por essas transformações.
Primeiramente, nas mudanças ocorridas entre a década de
60 e a de 70, assistimos a um fenômeno inédito: os delitos juvenis mudaram-se da comunidade para o território protegido: a
escola. A questão central passou a ser a violência escolar.
Na década de 80, as questões da violência escolar e da delinqüência finalmente entraram em declínio, devido ao enrijecimento
das medidas de controle adotadas pela comunidade local e à supervisão e ao controle mais severos dos alunos por parte das escolas.
No entanto, embora a violência escolar tenha-se atenuado,
uma série de novos problemas surgiram dentro das escolas, incluindo a intimidação por colegas, o não-comparecimento às aulas
e a indisciplina em sala de aula, que ocorre até mesmo em meio
aos alunos das primeiras séries da escola primária, que perturbam as aulas sendo ruidosos e não permanecendo em seus lugares durante as aulas, problemas de comportamento que têm profundas ligações com questões psicológicas, não sendo incomum
encontrar alunos afetados por problemas múltiplos.
Em fins da década de 80, o índice de violência escolar e de
criminalidade juvenil, que havia declinado, voltou a crescer.
117
Além da “Hiko escalate gata”, ou “delinqüência de tipo escalada” já existente, os incidentes ocorridos em conseqüência da escalada dos comportamentos delinqüentes, verificou-se também
um aumento dos “Ikinari gata”, ou incidentes “de tipo inesperado”. Esses incidentes são provocados por indivíduos portadores
de conflitos psicológicos, frustração ou ansiedade arraigados, que
permanecem ocultos e vão-se acumulando, ou por outros indivíduos que são incapazes de controlar suas emoções e, subitamente, se comportam de forma inesperada, por motivos e visando
objetivos que as outras pessoas têm dificuldade de compreender.
Essa série de mudanças indica uma transição na localização do problema, que passou da delinqüência praticada nas comunidades locais à violência praticada dentro das escolas; da violência praticada dentro das escolas para a intimidação em meio
ao grupo de alunos e de problemas de comportamento a problemas internos. Se me permitem falar de forma metafórica, o foco
do problema vem tendendo a se recolher a âmbitos cada vez mais
íntimos, tornando-se “privatizado”, à medida que se desloca da
esfera pública para a esfera privada. Esse fato, portanto, coloca
limites à abordagem intervencionista, que lida com os sintomas
por meio do uso de supervisão rígida e controles de comportamento severos. Mesmo que venhamos a nos decidir pela adoção
desse tipo de intervenção dirigida contra os sintomas, uma outra
abordagem se faz necessária, para que tenhamos acesso aos problemas psicológicos e possamos lidar com eles.
AS CARACTERÍSTICAS DA INTIMIDAÇÃO,
OU “IJIME”, NO JAPÃO
Como já mencionado anteriormente, após uma década de
declínio da violência escolar, a intimidação por colegas, conhecida no Japão por “Ijime” transformou-se numa questão social da
maior importância, atraindo a atenção de muitos. Esse fato in118
dicou a percepção de que um novo problema, diferente da violência escolar, havia surgido dentro da comunidade escolar. Além
disso, a imagem que os japoneses tendem a formar, ao ouvirem a
palavra “Ijime”, não é a da “violência”, associada aos atos de
“intimidação”, mas sim a de uma imagem de crueldade, de baixeza e de malevolência, já que essa palavra é intercambiável com
a sentença que significa “intimidar os mais fracos”, “Yowaimono Ijime”. Assim, mesmo quando a intimidação implica violência, as pessoas tendem a pensar primeiramente na fragilidade da
vítima e nos danos psicológicos ocasionados por esse ato.
É claro que, quando pensamos apenas na forma configurada pelo ato, os comportamentos de intimidação podem ser classificados como uma espécie de violência escolar ocorrida em meio
aos alunos, atos esses que podem incluir delitos passíveis de punição, nos termos da lei. Desse modo, há superposições entre
violência escolar, criminalidade juvenil e intimidação.
A intimidação, entretanto, tem características próprias. Uma
delas, e a mais grave, são os danos psicológicos, que freqüentemente são observados nos tipos psicológicos (não-físicos) de intimidação. Estão incluídos então “dizer coisa cruéis e desagradáveis e caçoar dos outros” (embora cada um dos itens subseqüentes varie conforme o gênero, a proporção das vítimas deste tipo
de intimidação entre o número total de vítimas é de 84,5%; Morita, 1999); “ignorar e excluir do grupo determinadas pessoas”
(54,4%), e “espalhar boatos e escrever coisas cruéis nos objetos
pessoais da vítima” (30,9%). Embora haja muitos tipos de intimidação que impliquem danos físicos ou materiais, tais como
violência que inclui “bater, chutar, ameaçar ou extorquir” (34,0%),
tomar dinheiro ou objetos, ou danificar os pertences” (16,0%),
uma das características da intimidação é que, após terem sido
expostas a esse tipo de maus-tratos, as vítimas vêm a sofrer ainda
danos psicológicos subseqüentes, resultantes dessa intimidação.
Por essa razão, uma das principais medidas tomadas contra a
intimidação por colegas é fornecer assistência às vítimas, por
119
meio da criação de postos de atendimento nas diversas organizações afetas à questão, de linhas telefônicas de disque-ajuda e
de serviços de aconselhamento nas escolas.
Uma outra característica da intimidação no Japão é que a
relação vítima/agressor ocorre num campo onde um forte controle informal, baseado no senso de responsabilidade de cada integrante do grupo para com os demais, geralmente funciona no sentido da estabilização e da manutenção da ordem. No Japão, não é
incomum se ouvir o comentário: “Isso é só coisa de criança. Por
que os adultos têm que se envolver?”, relativo à questão da intimidação. Além disso, a polícia, uma instituição nacional, pode intervir apenas nos casos em que o ato de intimidação se enquadre no
direito penal. Assim, a questão da intimidação por colegas é geralmente vista como um problema de relações humanas enfrentado
pelas crianças em sua vida cotidiana, e que deve ser deixado a cargo dos próprios estudantes, que devem, eles mesmos, tomar iniciativas para restabelecer a ordem e evitar a intimidação.
No entanto, confiar no controle informal para resolver o
problema só funciona quando os próprios estudantes têm a capacidade de exercer controle suficiente contra a intimidação, de
resolver os problemas surgidos e de manter a ordem. Se lhes falta essa capacidade, e se o dano social resultante é visto como
sendo socialmente significativo, então, a aplicação dos princípios
do paternalismo, da intervenção e da proteção, partindo de instituições nacionais ou de outros tipos, ou dos próprios adultos, é
vista como inevitável (Morita, 1999).
O fato é que testemunhamos uma série de casos de suicídio,
de assassinatos e de agressões físicas graves ligadas à vingança, e
de abandono da escola, traumas mentais e doenças psiquiátricas
provocados pela intimidação, o que demonstra que esta é capaz de
causar um nível tão elevado de danos psicológicos que a questão
não pode ser deixada nas mãos das próprias crianças. No estudo
elaborado pela Academia Nacional de Polícia já mencionado anteriormente, também vimos casos de crimes brutais praticados por
menores em conexão com a intimidação por colegas.
120
Embora os danos causados pela intimidação por colegas sejam semelhantes no Ocidente, no Japão essa questão atrai mais atenção que a violência escolar, e a intimidação e o não-comparecimento
às aulas são vistos como os principais problemas educa-cionais da
década de 80. Como já mencionei no início, os índices de criminalidade juvenil japoneses são muito menores que os do Ocidente,
de maneira que talvez seja correto afirmar que os problemas do
dia-a-dia, como a intimidação por colegas, raramente vêm a se converter numa questão social de importância, no Ocidente, onde a
violência escolar representa um problema mais grave.
No entanto, num estudo de comparações internacionais
sobre a questão da intimidação por nós realizado, verificamos a
gravidade dos danos causados pela intimidação, no Japão. A obsessão da sociedade japonesa pela questão da intimidação não se
deve apenas ao fato de os outros problemas serem menos graves.
Eu gostaria agora de tratar desse ponto, descrevendo as características da intimidação no Japão.
O estudo acima mencionado foi realizado em 1997, usando uma amostragem de estudantes de idades entre 10 e 14 anos,
do Japão, da Inglaterra, da Holanda e da Noruega. Y. Morita foi
o responsável pelo Japão; P. K. Smith, pela Inglaterra; YungerTas, pela Holanda; e D. Olweus, pela Noruega. O levantamento
foi conduzido através do uso de um mesmo questionário, baseado numa Versão Revisada do Questionário de Olweus, desenvolvida pelos participantes deste projeto internacional (Morita, 1999).
A figura 3 mostra a percentagem dos estudantes que afirmaram ter sofrido intimidação, em cada um dos países. No Japão,
esse percentual representa a proporção dos estudantes que sofreram intimidação no segundo semestre letivo, ou seja, entre o Natal
e o fim do semestre letivo dos demais países. Segundo essas cifras,
o Japão é, dos quatro países, aquele onde o menor número de estudantes foi submetido a intimidação. Esses dados, portanto, demonstram que os níveis de intimidação são baixos, no Japão, embora tenha-se convertido numa questão social importante, e danos graves relativos a esse problema venham sendo verificados.
121
Produzimos, então, um outro indicador para demonstrar a
gravidade do problema no Japão, ou seja, a proporção das vítimas
que sofreram intimidação por um período longo de tempo (mais
que um semestre letivo) e com freqüência (pelo menos uma vez
por semana). Essa categoria poderia incluir um número considerável de vítimas de longo prazo, que não haviam recebido assistência e que vinham sofrendo dessa escalada de intimidação. A figura 4 mostra esses resultados e, ao contrário da figura 3, pode-se
verificar que os índices mais altos são os relativos ao Japão.
Figura 3
Percentagem dos estudantes que deram queixa de intimidação.
Essas duas figuras demonstram que, embora a Japão apresente o menor índice de estudantes vitimados por intimidação
entre os quatro países, há maior probabilidade de que, uma vez
iniciada, essa intimidação venha a aprisionar as vítimas, que passam então a sofrer de intimidação freqüente e repetida. Além
disso, essa probabilidade aumenta com a idade das vítimas, e
quanto mais velhas elas forem, mais alta será a proporção de
122
vitimização freqüente e de longa duração. Em outras palavras,
quanto mais velhos os estudantes, mais alta será a possibilidade
da escalada da intimidação, e maior o número das vítimas que
sofrem de intimidação freqüente e de longa duração.
A partir dos resultados de seus estudos, Morita derivou um
modelo para a intimidação dentro dos grupos escolares, denominada de “modelo da estrutura de quatro níveis” (Morita, 1985;
Morita e Kiyonaga, 1986). A intimidação se desenvolve numa relação vítima/intimidador, mas este é um modelo para uma teoria de
reação interna ao grupo, que propõe que a duração, a freqüência e
a intensificação da intimidação irão depender não apenas da relação entre vítima e intimidador, mas também da reação dos demais
estudantes que integram o grupo. Morita demonstrou que uma
escalada da intimidação só ocorre onde não há mediadores capazes de intervir e quando, ao redor das vítimas e dos intimidadores,
existem tanto público que aplaude e aprecia assistir ao espetáculo,
quanto circunstantes que tentam não se envolver. Observa-se uma
estrutura de quatro níveis, e a intimidação se desenvolve e intensifica por dinâmica própria a essa estrutura específica.
Morita analisou também a correlação entre o índice relativo a ter sofrido intimidação e a percentagem de intimidadores,
de espectadores e de circunstantes, verificando que a correlação
mais significativa ocorria entre o número das vítimas e o número
dos circunstantes, mas que não havia correlação com o número
de intimidadores (Morita, 1990). Em outras palavras, a reação
dos circunstantes não é neutra, e o fato de uma reação negativa
ao problema não ficar evidenciada só faz piorar a situação, criando uma atmosfera que possibilita que o problema ou comportamento delituoso sejam expressos em sala de aula, dando apoio
passivo a esses atos delituosos. A razão de a expressão “circunstantes também são intimidadores” ainda ser usada no Japão, na
discussão das questões de intimidação ou nos estudos realizados
pelo Ministério da Educação, é que o modelo de quatro níveis
ainda é visto como válido nas situações de intimidação encontradas pelos professores.
123
Figura 4
Percentagem das vítimas de intimidação freqüente e de longa duração
entre o total das vítimas de intimidação.
(“longa duração” significa sofrer intimidação durante pelo menos um semestre letivo, e “freqüente”, significa pelo menos uma vez por semana).
As informações obtidas a partir do modelo da estrutura
de quatro níveis, de que a intimidação está relacionada à consciência sobre as normas vigentes e à solidariedade interna às
turmas, foram confirmadas pelos resultados de um levantamento
japonês, que fez parte do estudo comparativo internacional de
1997. Esse estudo analisou de que forma o número de estudantes que intimidavam outros estava relacionado aos itens do questionário que tratavam da solidariedade interna às turmas e também aos itens relativos à consciência sobre as normas vigentes.
Dos itens relativos à solidariedade constava o seguinte: “Muitos estudantes acreditam que não irão gostar deles, se eles não
apoiarem os colegas”, e “Se eu fizer alguma coisa que os professores elogiem, os outros vão dizer que eu estou fingindo ser
124
bonzinho”, e dos itens relativos à consciência sobre as normas,
constavam: “Mesmo que seja errado, muitos estudantes fazem
coisas ruins por que gostam”, e “Muitos alunos pensam que é
fácil fazer coisas erradas pelas costas dos professores”.
Os resultados mostraram que o número de estudantes que
praticaram intimidação contra outros em sala de aula apresentava uma correlação positiva tanto com o número de alunos que
concordaram com cada uma dessas afirmações relativas à solidariedade quanto com o número dos que concordaram com todas
as afirmações relativas à consciência sobre as normas, demonstrando que quanto menos forem a solidariedade interna à turma
e a consciência a respeito das normas, maior será o número de
estudantes que praticam intimidação contra outros (Morita, 2000).
Eu gostaria agora de examinar, no tocante a cada um dos países, a questão dos circunstantes e dos mediadores que exercem influência sobre a intimidação e efetuar uma análise, para verificar se
podem ser encontradas características semelhantes às observadas
no Japão. A figura 5 mostra os resultados da análise sobre a maneira
pela qual a percentagem de circunstantes e mediadores se altera,
conforme a série escolar (idade). Observem que essa análise compara apenas três países, uma vez que esses itens não foram incluídos
no questionário norueguês (Morita, 2000).
Como se pode ver claramente nesta figura, o percentual
dos circunstantes que decidem não se envolver se altera com a
idade, em forte contraste com os mediadores que intervêm. Em
todos os países, pode-se verificar uma tendência semelhante nas
primeiras séries escolares, ou seja, o percentual dos circunstantes
é relativamente baixo, aumentando com a idade. Por outro lado,
o percentual dos mediadores decresce com a idade. No entanto,
a partir do segundo ano do ciclo inicial da escola secundária, o
Japão e os dois países europeus passam a mostrar tendências divergentes. O percentual dos mediadores não decresce no ciclo
inicial da escola secundária nos dois países europeus, passando
a aumentar na Inglaterra. Ao contrário, o percentual japonês
continua a diminuir, atingindo 21,8% no terceiro ano do ciclo
125
inicial da escola secundária, o que corresponde a apenas metade do percentual inglês relativo àquela mesma série. Além disso, enquanto o percentual de circunstantes nos dois países europeus não aumenta, passando a diminuir, esse número continua crescendo no Japão, atingindo cerca de 60% na 3ª série do
ciclo inicial da escola secundária.
Figura 5
Percentagem de mediadores e circunstantes em cada série escolar
Como já vimos, nas escolas japonesas, quanto mais velhos
forem os alunos, maior será o número de circunstantes, e menor
o de mediadores em cada turma, havendo portanto menor possibilidade de que a intimidação tenha fim, em comparação com os
126
outros países. Pode-se dizer que essa falta de reação negativa contra a intimidação, da parte dos demais alunos da turma está relacionada às características de freqüência e longa duração da intimidação por colegas, no Japão, como mostrado na figura 4.
Essa tendência a um maior número de circunstantes e um
menor número de mediadores, à medida que os alunos avançam
nas séries escolares, está relacionada a uma outra característica japonesa, a saber, que, em comparação a outros países, os papéis das
vítimas e dos intimidadores tornam-se fixos à época em que os
estudantes ingressam no ciclo inicial da escola secundária. Em geral, em todos os países, a troca de papéis entre intimidadores e
vítimas e vítimas e intimidadores ocorre durante um período relativamente curto de tempo (a taxa de reversão de papéis é de 25,1%
no Japão; 29,6% na Inglaterra; 31,6% na Holanda e 31,1% na
Noruega). No entanto, comparada à dos demais países, a taxa de
reversão é mais baixa no Japão, e os papéis de intimidador/vítima
tendem a se tornar fixos. Essa tendência gradualmente se torna
mais forte com o aumento da idade, e já é muito forte por ocasião
do ingresso no ciclo inicial da escola secundária. (A taxa de reversão, no Japão, é de 34,5% na 5ª série e 30,7% na 6ª série da escola
primária; 19,7% na 1ª série, 19,7% na 2ª série e 17,5% na 3ª série
do ciclo inicial da escola secundária.) Em outras palavras, à medida que as crianças se tornam mais velhas, as vítimas de intimidação vêem-se concentradas entre um grupo específico de crianças,
podendo-se concluir daí que o alto número de circunstantes e o
baixo número de mediadores contribuam para essa situação.
Esses estudos demonstram que, nas situações onde ocorre
intimidação, as reações negativas da parte dos estudantes presentes em torno das partes envolvidas (intimidadores e vítimas),
bem como outras atitudes ou posturas do grupo escolar, podem
servir tanto para conter quanto para incentivar a intimidação.
Desse modo, ao considerarmos medidas a serem adotadas visando conter ou evitar a intimidação, é importante examinar não
apenas as maneiras de lidar com os intimidadores e as vítimas,
mas também medidas que façam uso dessa dinâmica de grupo.
127
REAÇÕES AOS PROBLEMAS JUVENIS
RECENTEMENTE OCORRIDOS NA
SOCIEDADE JAPONESA – UMA SOLUÇÃO
VISANDO ENCONTRAR EQUILÍBRIO ENTRE
A ORIENTAÇÃO PROTETORA E AS PUNIÇÕES
MAIS SEVERAS
Após o aumento da ocorrência de intimidação por colegas
nas escolas, a administração das questões da juventude, no Japão,
passou a enfrentar diversos problemas, entre eles o aumento do nãocomparecimento às aulas, indisciplina em sala de aula, uma série de
crimes brutais cometidos por menores e a intensificação da violência escolar, sendo então forçada a adotar novos métodos que implicassem uma guinada de rumo. Em especial, a ocorrência sucessiva
de uma série de crimes brutais praticados por jovens abalou o público em geral, uma vez que, no que concerne à criminalidade, o Japão,
por longo tempo, foi considerado um país seguro.
Nesta seção, eu gostaria de concluir meu artigo apresentando um esboço das abordagens adotadas e do rumo tomado
pelo Japão, em reação aos problemas recentemente ocorridos
entre jovens, no momento em que ingressamos no século XXI.
Primeiramente, uma das abordagens adotadas foi a reforma
da Lei dos Menores de Idade, consiste numa legislação promulgada em 1948, formulada com base no princípio de “respeito pelos
direitos humanos dos menores e de sua criação saudável”. Essa lei
abrange não apenas os menores infratores, mas também os jovens
com potencial de comportamentos delituosos, determinando que,
com base no princípio do “protecionismo”, as varas de família
deverão tomar medidas de proteção, de natureza educativa e assistencial, de preferência a aplicar punições. Nos termos dessa lei,
contudo, uma investigação pode ser efetuada, quando se trata de
crimes particularmente graves e brutais, caso o menor infrator tenha idade igual ou superior a 16 anos e, dependendo da natureza e
das circunstâncias do delito, a causa poderá ser encaminhada à
promotoria pública, para ser submetida aos procedimentos de um
128
processo judicial, havendo inclusive a possibilidade de o culpado
ter que cumprir pena. Desde a época de sua promulgação, na esteira da segunda e da terceira ondas de delinqüência, essa lei passou por reformas de pequena monta, foi examinada a possibilidade de mudanças no sentido de penalidades mais severas e tentouse uma reforma mais ampla, mas, até recentemente, não se havia
chegado a qualquer conclusão.
Contudo, após uma série de crimes e incidentes chocantes,
e sob forte pressão da opinião pública, segundo a qual a Lei dos
Menores de Idade era excessivamente leniente, e os menores infratores reincidiam nos delitos por saberem que não iriam receber penalidades severas, emendas foram apresentadas no Parlamento, sendo aprovadas em setembro de 2000. As principais delas
tratavam da redução da idade mínima para punições nos termos
da lei, de 16 para 14 anos e alterações nos procedimentos que,
em princípio, determinam que os casos de delitos graves cometidos por menores devam ser encaminhados à promotoria para
processo penal, e não mais às varas de família.
Embora essas emendas evidenciem mudanças no sentido
de punições mais severas para os delitos cometidos por menores,
pode-se dizer que elas tenham como objetivo controlar os crimes juvenis graves, mais que submeter a totalidade dos delitos
juvenis a penalidades mais pesadas. Esse método de controle
adotado pelo Japão é claramente diferente das medidas de supervisão e controle mais rígidos e de regulamentos escolares mais
severos contra a violência escolar, adotados durante a terceira
onda de delinqüência, nas décadas de 70 e 80. É óbvio que o
direito penal e os regulamentos escolares situam-se em níveis
diferentes do sistema, mas os métodos de controle da violência
escolar, àquela época, tinham como alvo a totalidade dos estudantes, tendo como objetivo o controle do corpo estudantil como
um todo, e consistindo numa tentativa de evitar que os problemas
viessem a gerar situações graves, solucionando-os num estágio precoce. As emendas recentes à Lei dos Menores de Idade, contudo,
diferem significativamente da aplicação ampla de punições mais
129
pesadas adotada anteriormente, no sentido de que elas mantêm
o nível atual de protecionismo para os pequenos delitos e para os
infratores mais jovens, que ainda não atingiram a idade de responsabilidade legal, aplicando, de forma seletiva, os controles
mais severos apenas aos casos graves.
Uma outra providência notável das reformas de nível nacional foi a criação da Comissão Nacional de Reforma Educacional,
que fez recomendações quanto às políticas a serem adotadas nessa
reforma. Essa comissão foi criada em março de 2000, na qualidade de órgão consultivo de apoio ao Primeiro-Ministro, tendo apresentado seu relatório final em dezembro de 2000. No contexto
dos graves problemas que vêm sendo enfrentados pelo Japão, e da
deterioração da educação como um todo, nos lares, nas escolas e
na comunidade local, a comissão fez também recomendações quanto às abordagens a serem futuramente adotadas na educação. Essas recomendações têm como objetivo transformar o Japão numa
sociedade mais madura, preservando assim sua segurança e promovendo a socialização e a independência dos estudantes que se
haviam fragilizado sob a influência de uma sociedade cada vez
mais rica, para que eles assim desenvolvam maior senso humanitário. Por outro lado, essas recomendações exigem também que sejam adotadas medidas estritas de combate à violência escolar e a
outros problemas que vêm causando danos graves.
São 17 as recomendações, subdivididas em cinco grandes
seções. Dentre elas, as cinco a seguir, sob o título “Incentivar o
desenvolvimento de um rico senso humanitário nos japoneses”,
estão estreitamente relacionadas ao enfrentamento dos problemas
recentes surgidos, como a intimidação por colegas, a violência escolar, a criminalidade juvenil e o não-comparecimento às aulas:
- ter consciência de que a base da educação é a casa da família;
- as escolas não devem hesitar em dar ensinamentos morais;
- todos os alunos devem prestar serviços comunitários;
- tomar as medidas devidas com relação às crianças que
causam perturbação na escola;
- proteger as crianças de informações nocivas.
130
A terceira recomendação dessa seção propõe a prestação
de serviços comunitários, como morar na casa de outras pessoas
pelo período de duas semanas, para os alunos de escolas primárias e ciclo inicial da escola secundária, e de um mês, para os alunos do ciclo final da escola secundária. Essas políticas são de
grande importância, tendo como objetivo redirecionar uma tendência que vem ganhando força na sociedade japonesa, que é a
do egocentrismo, no sentido de fornecer uma base para o reforço da solidariedade social, da consciência a respeito das normas
vigentes e da cidadania.
Além disso, as notas explicativas à quarta recomendação
têm início com a frase: “Não se deve permitir que o comportamento de uma única criança venha a colocar outras crianças em
risco, ou gerar, em outras crianças, sentimentos de antipatia para
com a vida escolar”, deixando claro que as recomendações pedem providências de combate à intimidação, à violência escolar
e `a perturbação das aulas, propondo a adoção das seguintes políticas fundamentais:
- A educação das crianças não deve ser perturbada por
outras crianças que criem problemas.
- O conselho de educação e as escolas devem tomar as devidas providências, inclusive a suspensão dos alunos causadores de problemas, ao mesmo tempo em que adotam as medidas adequadas, visando à educação dessas crianças.
Para superar esses difíceis problemas, é natural que os professores envidem esforços contínuos no sentido de conquistar a
confiança dos pais e das próprias crianças. Esses problemas, entretanto, não podem ser facilmente solucionados apenas pelas
escolas. Eles devem ser abordados de maneira mais abrangente,
pela sociedade e pela nação, respectivamente.
Por longos anos, os professores e as escolas vêm enfrentando o desafio de encontrar um equilíbrio entre o direito das
crianças problemáticas de receberem educação obrigatória e a
proteção dos direitos humanos das crianças vitimadas pelas primeiras. A suspensão de alunos, nos termos da lei, costumava ser
131
vista por muitos como uma penalidade demasiadamente severa, e muitos hesitavam em usá-la. Até a segunda metade da década de 80, quando a violência escolar se tornou generalizada,
muitas escolas passaram a se utilizar desse método, como medida de emergência para proteger os direitos dos demais alunos.
No entanto, quando a violência escolar entrou em declínio, a
partir de meados da década de 80, época em que o Japão passou
a dar maior atenção aos direitos humanos, o número de suspensões escolares entrou em rápido declínio, tendo havido diversos
casos, alguns deles envolvendo danos graves, onde nenhuma
medida clara foi tomada, ou foi adotada a medida juridicamente inespecífica, conhecida por “aprendizagem em casa”. Em resposta ao aumento recentemente verificado na violência escolar,
o Ministério da Educação instruiu os conselhos de educação a
tomarem medidas enérgicas, e ocorreu um aumento no número
de conselhos e de escolas que vêm fazendo uso da suspensão. A
segunda política tem como objetivo reforçar essa medida, incentivando seu uso, embora, mesmo assim, a abordagem recomendada é usar de medidas severas apenas nos casos de danos graves, aplicando medidas educativas no tocante a casos mais leves
e a muitas outras crianças, para oferecer a elas uma educação
saudável. O Ministério da Educação vem planejando pedir a revisão da Lei da Educação Escolar ainda na atual sessão legislativa, atendendo às recomendações da Comissão de Reforma, e
pretende ainda fornecer diretrizes e procedimentos claros com
relação à suspensão de alunos, permitindo às escolas aplicar essa
penalidade a crianças que provoquem danos físicos ou psicológicos a professores ou a outras crianças, ou que perturbem as aulas
ou vandalizem os prédios e os equipamentos escolares.
A terceira recomendação baseia-se no fato de que há limites para o que as escolas, por si sós, podem fazer para tratar dos
diversos problemas e resolvê-los, como já mencionado na seção
3. Essa recomendação, além disso, segue e dá ênfase às políticas
contidas no relatório “Passando do ‘confinar dentro das escolas’ à ‘cooperação aberta’: uma nova maneira de abordar os problemas de comporta132
mento”. Para lidar com a violência escolar e os diversos outros
problemas de comportamento dos estudantes, já foi dado início
à procura de novas maneiras de alcançar maior cooperação entre
as escolas e os centos de aconselhamento infantil, bem como
outros órgãos de base comunitária e voluntária que tratam da
educação saudável das crianças, médicos e centros de saúde mental, polícia, oficiais das varas de família e assistentes sociais do
juizado de menores. Além disso, o Ministério da Educação vê
essa cooperação como um dos principais desafios de seu processo de formulação de políticas.
Há ainda um outro aspecto importante de nossa abordagem que eu gostaria de mencionar aqui, que são as medidas voltadas para os casos de criminalidade e delinqüência que ocorrem
de forma inesperada, os “Ikinari gata”. As diretrizes anteriores
relativas à violência escolar tratavam basicamente dos problemas
visíveis, como os problemas graves de comportamento ou os
comportamentos violentos ou agressivos dos alunos nas escolas.
No entanto, vem-se tornando cada vez mais necessário não apenas oferecer aconselhamento a esses alunos e a suas vítimas, como
também lidar com as várias questões psicológicas envolvendo
alunos que, em circunstâncias normais, não apresentam problemas de espécie alguma.
É nesse contexto que o Ministério da Educação vem distribuindo a todo o pessoal escolar material que lhes permita melhor compreensão da questão, incentivando-os, além disso, a realizar estudos de casos e a passar por treinamento.
Simultaneamente, o Ministério adotou a política de fornecer melhor assistência, contratando uma equipe, e não apenas
uma única enfermeira para cada escola. Tradicionalmente, uma
professora-enfermeira é colocada em cada escola, para oferecer
aos alunos aconselhamento sobre questões cotidianas de saúde e
para ouvi-los sobre seus problemas psicológicos.
Além dessas medidas que tratam do pessoal das escolas e
das professoras-enfermeiras, o Ministério está em vias de adotar
uma política de aumento do número de conselheiros escolares
133
qualificados, que possuam conhecimentos especializados de psicologia clínica, de análise psiquiátrica, e de técnicas de aconselhamento em nível de pós-graduação, para estabelecer sem demora um sistema no qual todos os estudantes possam ter acesso
a um conselheiro escolar.
O aperfeiçoamento e a criação desses sistemas têm como
objetivo lidar com as diversas questões psicológicas que afetam
os alunos, não apenas aqueles que provocam violência escolar,
mas também os colegas vitimados por eles. Vêm sendo estudadas também medidas preventivas eficazes contra os diversos problemas de comportamento recentemente constatados.
Na educação escolar, vêm surgindo diversas tentativas de
incentivo à socialização, dentre elas, um movimento para desenvolver uma grande variedade de programas de contato com o
meio ambiente e de experiências sociais, como parte das atividades educativas escolares. O Ministério da Educação vem também implementando outras políticas, entre elas a introdução de
aulas de estudos gerais, que têm como objetivo desenvolver maior senso humanitário, permitindo aos professores a criação de
programas que não tenham como base matérias específicas.
O apoio entre pares, usado no Ocidente como programa
de prevenção contra a intimidação por colegas, também é utilizado no Japão, não como uma medida de combate à intimidação,
mas como um método para melhorar a atmosfera das salas de
aula, promover o senso de solidariedade e aperfeiçoar as capacidades sociais e de comunicação dos alunos.
No Ocidente, assim como no Japão, verifica-se a mesma
tendência de a opinião pública, ao se ver em estado de pânico
moral, reivindicar punições mais severas. O Japão adotou a alternativa de fazer distinção entre os delitos e os comportamentos
violentos de menor gravidade e os crimes graves, que resultam
em danos significativos, não apenas para controlar os problemas
encontrados nas práticas delinqüentes, mas também para tratar
das questões internas dos alunos problemáticos, e evitar a criminalidade e a violência por meio do incentivo de capacidades e
134
atitudes que os impeçam de expressar-se por intermédio de comportamentos inadequados. Essa abordagem requer um delicado
equilíbrio entre punição e proteção, bem como um equilíbrio entre
justiça, educação e bem-estar.
Em tempos recentes, a criminalidade juvenil e a violência
escolar sofreram um forte aumento também na Europa. Tratei
aqui de algumas das abordagens e medidas que o Japão irá tomar, mas que, obviamente, não são passíveis de serem adotadas
no Ocidente, devido à diferença de sistemas sociais e de culturas
existente entre o Japão e as sociedades ocidentais, e também às
diferentes estruturas nas quais esses problemas ocorrem. O mesmo pode ser dito sobre a adoção pelo Japão de abordagens ocidentais. No entanto, de uma perspectiva transnacional, ao analisar os problemas de cada um dos países, identificar os mecanismos que provocam sua ocorrência e descrever as medidas e as
abordagens adotadas para combatê-los, espero ter feito uma pequena contribuição à resolução das questões da violência escolar, da criminalidade juvenil e dos vários outros problemas enfrentados pelos jovens de hoje.
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136
FATORES DE RISCO
E EXPULSÃO DE ALUNOS DA ESCOLA*
Carol Hayden
O presente artigo se baseia em diversos estudos
realizados pela autora e por seus colegas, a partir de inícios da
década de 90 até os dias de hoje, e apresenta as definições e o
contexto jurídico das expulsões escolares, identifica os grupos
que correm os maiores riscos de virem a ser expulsos, seus
comportamentos manifestos e as questões que podem estar
por trás desses comportamentos. Este trabalho pretende ilustrar
o fato de que as crianças que correm o risco de serem expulsas
encontram-se em circunstâncias que as situam também em
riscos de outros tipos. Considera-se que as expulsões tenham
grandes probabilidades de vir a agravar e a se somar aos fatores
de risco já presentes na vida dessas crianças. O artigo parte da
conceituação de toda a gama de necessidades que se encontram
na base dos comportamentos associados a expulsões escolares,
ou a eles relacionados. A conclusão consistirá numa reflexão
quanto a se as escolas e os professores estão em condições de
responder de forma adequada e eficaz aos comportamentos
manifestos e às necessidades subjacentes a eles, que costumam
ser encontrados nos casos de alunos expulsos.
* Texto apresentado na Conferência Internacional sobre Violência nas Escolas e Políticas
Públicas, Paris, França, março de 2001.
137
EXPULSÕES ESCOLARES – DEFINIÇÃO DOS
TERMOS, ESCALA DO PROBLEMA E
LEGISLAÇÃO
Na Inglaterra, encontramos uma série de tipos diferentes de
expulsões escolares, que podem ser classificados como legais e
ilegais, embora muitas vezes sejam descritos como formais e
informais. As expulsões legais são de dois tipos: definitivas, de
uma escola específica (passíveis de recurso) e por um período
determinado, que em geral é de apenas alguns dias, podendo
entretanto chegar a quarenta e cinco dias ou um ano letivo. Há
também um número desconhecido de casos nos quais as crianças
são mandadas para casa ou transferidas de escola – e alguns desses
casos às vezes são ilegais. Entre essas práticas estão as de mandar
as crianças para casa para um período de “esfriamento”, após um
incidente específico; crianças que são regularmente mandadas para
casa, sempre que um assistente de necessidades especiais não esteja
disponível; sugerir enfaticamente aos pais que a criança poderia se
“beneficiar” de uma mudança de escola e/ou corre risco de vir a ser
definitivamente expulsa de sua atual escola, e assim por diante. As
razões por detrás dessas práticas, provavelmente, variam desde as
boas intenções de parte de alguns diretores (o desejo de evitar que
uma criança seja estigmatizada por uma expulsão), passando por falta
de familiaridade com os procedimentos corretos, até as tentativas
mais cínicas de reduzir as estatísticas de expulsão, adequando-as às
metas, e de evitar a burocracia, passando adiante “o problema”.
Na Inglaterra, as pesquisas que vêm sendo realizadas desde
a década de 90 foram importantes para atrair a atenção do público para algo que parecia ser um aumento da prática de expulsão
de alunos – e é certo que as estatísticas oficiais mostravam uma
quadruplicação das expulsões definitivas aplicadas de inícios a
meados daquela década. As cifras oficiais mais recentes mostraram um aumento do número de expulsões definitivas. O governo
estabeleceu uma meta, visando a reduzir em um terço as expulsões definitivas até 2002. Essa meta quase foi alcançada em 2001,
tendo então sido abandonada. No entanto, como ocorre com to138
das as estatísticas oficiais, os números relativos às expulsões são
uma construção social específica, sendo afetados pelas pressões
no sentido de fazer ou não o registro oficial e de enquadrar-se em
determinadas metas. Há poucas dúvidas de que uma parcela desse
aparente aumento dos registros de expulsão foi em parte causada
pelas imprecisões (contagem com erros para menos) dos primeiros
dados disponíveis (DfE, 1992), e também ao maior interesse por
parte do público e dos pesquisadores, que tanto antecedeu quanto
se seguiu à publicação desses dados. Além disso, é provável que o
aumento do número de nomeações de oficiais de expulsões pelas
Autoridades Educacionais Locais (LEAs), ocorrido por volta dessa época, tenha levado a um maior número de registros – principalmente de expulsões definitivas.
As cifras oficiais mostram que apenas uma parcela mínima
da população escolar chega a receber expulsões definitivas no
decorrer de um ano letivo. Os números mais recentes (ano letivo
de 2000-2001) à época em que este artigo foi escrito mostram
que 0,12% da população escolar foi expulsa durante o período
de um ano; representando um aumento de 11% em relação ao
ano anterior (DfES, 2002). O número total relativo ao ano foi
de 9210 expulsões definitivas, embora Parsons afirme que cifras
como essas são enganosas, na medida em que elas deixam de
fora as crianças expulsas em outros anos que não retornaram à
escola. Ele estima que um total de cerca de 20.000 crianças
esteja fora da escola devido a expulsões definitivas. O
acompanhamento das expulsões por períodos determinados teve
início em setembro de 1999, mas, à época em que este artigo
estava sendo escrito, ainda não havia dados disponíveis. Minhas
próprias pesquisas mostraram que essas expulsões são muito
mais numerosas que as expulsões definitivas – até dez vezes o
total destas últimas (Hayden, 1997a). Além do mais, é evidente
que alguns indivíduos recebem diversas expulsões por períodos
determinados num único ano letivo. A Comissão de Auditoria
(1999) estima que um total de 150.000 expulsões por períodos
determinados ocorram a cada ano.
139
Os pais têm o direito de representar em favor de seu filho à
comissão disciplinar da diretoria da escola, tanto para as expulsões
por períodos determinados quanto para as expulsões definitivas. A
partir de setembro de 1997, os pais passaram a ter também o direito de apelar a uma junta independente, no caso de expulsões definitivas (Harris e Eden, com Blair, 2000). A partir de 1994, o processo de expulsão, além de ser controlado por lei, passou a ser
submetido a orientações explícitas do governo. À época em que
este artigo estava sendo escrito, a orientação mais recente era a
Circular 10/99 (DfEE, 1999a). Essa Circular oferece orientação
detalhada (Inclusão Social: Apoio aos Alunos, “SIPS”) quanto à periodicidade das reuniões e aos prazos para os recursos, bem como
sobre os procedimentos a serem seguidos. A Circular, contudo, começa com os princípios da boa prática, contendo numerosos exemplos de maneiras de tratar os tipos de comportamento que colocam
as crianças em risco de serem expulsas. Programas de Apoio Pastoral
(PAPs) para as crianças que necessitam de ajuda para controlar seu
comportamento são uma das expectativas da Circular 10/99.
Em razão da gravidade de uma expulsão definitiva, as comissões de recursos devem ser tanto independentes quanto imparciais.
Elas desempenham uma função judiciária, o que significa que elas
devem funcionar segundo os princípios da justiça natural e segundo
as interpretações estabelecidas do que esses princípios significam na
prática. Não existem dados de acompanhamento de nível nacional
sobre o número total dos pais de alunos que apelam aos órgãos diretivos, embora haja coleta de dados sobre esses recursos. Os pais
apelam em cerca de um em cada dez casos de expulsões definitivas
oficiais, mas só obtêm ganho de causa em cerca de um em cada
cinco casos ouvidos pela comissão.
Harris e Eden (1999, 2000) realizaram um levantamento sobre os procedimentos legais a serem seguidos pelos pais que apelam contra a expulsão definitiva de seu filho. Harris e Eden questionam o foco desses recursos, em face do que já sabemos sobre as
necessidades das crianças expulsas (ver a subseção seguinte):
“Os problemas encontrados pelos membros da junta (...) são conseqüência do fato de o sistema de apelações adotar um enfoque mais discipli140
nar que assistencial, levando em conta os atos de mau comportamento,
mais do que suas causas. Isso precisa mudar, um melhor equilíbrio
tendo que ser alcançado entre esses aspectos. As crianças expulsas da
escola muitas vezes sofrem de diversos tipos de problemas educacionais
e sociais. Uma audiência num processo de apelação independente representa uma oportunidade para um exame mais completo da situação e
das necessidades da criança. Ficamos muito bem impressionados com o
sistema de debater os casos apresentados com a participação de diversas
agências, sistema esse que está em funcionamento em algumas áreas.
Acreditamos que alguns dos elementos desse sistema devam ser incorporados ao sistema de recursos.”
Harris e Eden observam que uma das principais vantagens
desse sistema de debate de casos é que o reingresso é negociado,
e não imposto. No entanto, esse método é visto como não estando em conformidade com as leis vigentes. Eles concluem que as
leis que tratam da administração das expulsões precisam ser revisadas ou revogadas, em favor de um sistema de base assistencial.
Eles são de opinião que um sistema de base assistencial tem maiores chances de manter as crianças na escola, nos casos em que
isso seja praticável, e também de respeitar os direitos da criança.
OS GRUPOS QUE CORREM MAIORES RISCOS
DE EXPULSÃO
Os dados sobre a relativa vulnerabilidade de muitas das
crianças expulsas demonstram a validade dos comentários de
Harris e Eden.
Sexo e idade
Há maiores probabilidades de tratar-se de meninos que de
meninas. A razão é de cerca de quatro para um na idade de escola
secundária, e de cerca de dez para um, na idade de escola primária
(Parsons et al., 1996; Hayden, 1997a). Cerca de uma em cada oito
expulsões definitivas ocorrem no nível primário (DfEE, 2000).
141
Raça
As crianças negras, principalmente os meninos afro-caribenhos, aparecem como desproporcionalmente representadas, sempre que são realizados acompanhamentos. As estimativas variam, por exemplo, de quase seis vezes o número de crianças brancas expulsas (Gillborn e Gipps, 1996) a quatro ou cinco vezes
sua representação na população em geral (DfEE, 1999b, 2000) e
entre seis a oito vezes a proporção de meninos afro-caribenhos
de idade escolar habitando um bairro londrino (Hayden, 1997a).
Crianças com necessidade de educação especial (NEE)
É sabido que as crianças com NEE são mais vulneráveis à
expulsão, principalmente as crianças portadoras de Dificuldades
Emocionais e Comportamentais (DEC). Os dados do DfEE mostram de modo consistente que as crianças com NEE são desproporcionalmente representadas nos casos de expulsão, atingindo
cerca de seis vezes sua proporção na população escolar como um
todo, representando cerca de 17% de todas as expulsões (DfEE,
1999b, 2000). Esse último número ignora a proporção de crianças com níveis mais baixos de NEE que são expulsas, ou seja, as
que não têm sua NEE oficialmente reconhecida. Outras pesquisas já mostraram que uma proporção muito maior das crianças
expulsas têm algum nível de NEE, por exemplo, 87% dos 38
casos estudados de expulsões na escola primária (Hayden, 1997a)
e mais de dois terços, num estudo sobre todas as expulsões registradas (um total de 247 casos) numa única Autoridade Educacional Local (Hayden, 2000).
Circunstâncias familiares
Sabe-se que alterações na família e alguns tipos de dificuldades nas relações familiares estão relacionados à probabilidade
de expulsão. As crianças expulsas tendem mais a pertencer a famílias reconstituídas (isto é, as que têm um padrasto ou madrasta) e a famílias de pais solteiros, com mais freqüência que a famílias onde ambos os pais biológicos ainda vivem juntos (Ashford,
1994; Hayden, 1997a). Famílias reconstituídas e de pais solteiros
142
não são incomuns, de modo que outros fatores também são, além
deste. Os pesquisadores têm caracterizado algumas das famílias
de crianças expulsas como “caóticas” (Parsons et al., 1994), ou
vivendo sob forte tensão (Hayden, 1997a), com grande incidência de desemprego sendoo trabalho inseguro e de baixa remuneração uma característica que aparece em muitos desses estudos
(Cohen et al., 1994; Hayden, 1997a; Hayden et al., 2000).
Crianças que recebem cuidados assistenciais/crianças
conhecidas nos departamentos de serviços sociais
Não tem havido muito acompanhamento (embora, à época
em que este artigo estava sendo escrito, melhoras haviam começado a surgir), mas acredita-se em geral que as crianças que recebem
assistência social têm maiores possibilidades de vir a ser expulsas
da escola, ou de não freqüentá-la, que as crianças que se encontram fora dos sistemas assistenciais (Finch e Horrocks, 1996;
DfEE/DoH, 2000). Um estudo (não-publicado) do DfEE estimou que cerca de 33% das expulsões, nas escolas secundárias, ocorrem a jovens que recebem assistência, e o mesmo ocorre com 66%
das expulsões nas escolas primárias (Smith, 1998). Outros trabalhos corroboram essas altas proporções e, num projeto nacional
sobre expulsões na escola primária, foi verificado que em quase
metade dos casos estudados (45%), essas crianças haviam recebido assistência por algum período de tempo, no decorrer do ano de
sua expulsão. Em dois terços (66%) desses casos, a família havia
recebido assistência de serviços sociais à época da expulsão ou
pouco antes, principalmente devido a preocupações quanto à capacidade dos pais de cuidar dos filhos (Hayden, 1997a).
Outros grupos muito vulneráveis
Viajantes, jovens responsáveis pelo sustento de sua família, adolescentes grávidas e mães adolescentes, alunos em transição de um estágio educacional para outro também, sabidamente, são vulneráveis a expulsões.
Em suma, pode-se concluir, daquilo que se sabe sobre as
circunstâncias da maioria das crianças expulsas, que elas são,
143
principalmente, crianças portadoras de necessidades educacionais
especiais, ou crianças “necessitadas” (segundo os termos da Lei
das Crianças de 1989) (ver Hayden, 1997b). Muitos dos “fatores
de risco”, no tocante aos indivíduos associados a expulsões, são
conhecidos, e quando diversos desses “fatores de risco” coincidem
com uma escola e/ou uma Autoridade Educacional Local
funcionando sob pressão e, mais especificamente, onde
determinados professores estejam tendo dificuldades em fazer seu
trabalho, o risco de expulsões tende a aumentar (Hayden, 1997a).
EXPULSÕES ESCOLARES E RISCOS – “RISCOS”
DE QUÊ?
Está claramente estabelecido que as crianças mais vulneráveis a virem a sofrer expulsão já vivem em circunstâncias
ou freqüentam escolas onde se verifica uma maior concentração de desvantagens. No entanto, as expulsões definitivas podem ser vistas como um fator que agrava e aumenta os riscos
já existentes. Parte das pesquisas e dos debates públicos sobre
expulsões escolares vem-se concentrando nas questões de nível societário – tais como exclusão social ou segurança comunitária. Por vezes, os debates enfocam os fatores institucionais, e mais especificamente as responsabilidades das escolas,
por outras, as responsabilidades das famílias e, em outras ocasiões, todo o espectro de agências assistenciais afetas à questão. Embora, como afirmamos acima, as circunstâncias e as
características gerais dos alunos que correm maiores riscos de
expulsão sejam bem conhecidas, há um número relativamente
pequeno de pesquisas tratando das possíveis diferenças entre
eles, como indivíduos (Rendell, 2001). O trabalho de Rendell
comparou algumas das principais características das crianças
expulsas com um grupo semelhante de crianças das mesmas escolas que não haviam sofrido expulsão. Uma das principais conclusões foi uma diferença quanto a seu “centro de controle”. As
crianças expulsas tendiam a ter um centro de controle externo,
144
e a sentir não serem totalmente capazes de determinar sua
própria situação. No entanto, outros fatores relacionados ao
apoio recebido dos pais e aos valores éticos da escola também
se mostraram decisivos, com relação à reação provocada pela
perspectiva e pelo comportamento dessas crianças.
Não há dúvida de que o temperamento individual e os fatores de personalidade envolvidos no comportamento de uma
criança fazem parte da situação de expulsão. Os grupos descritos
na seção anterior abrangem muitos dos fatores de risco identificados por Fortin e Bigras (1997), como geradores de problemas
de comportamento em crianças pequenas. Garmezy (1983) identificou as crianças “de risco” com relação à presença de fatores
que aumentam a probabilidade de elas virem a desenvolver dificuldades sociais e psicológicas. Essas dificuldades podem então
se manifestar sob formas que vêm interessando aos pesquisadores que investigam os processos sociais mais amplos.
Do ponto de vista do público em geral e do governo, as
preocupações com a expulsão escolar (e, conseqüentemente, com
os riscos a elas correlacionados) muitas vezes vêm-se concentrando
na associação existente entre as expulsões escolares e crianças que
“se envolvem em problemas” fora da escola, o que, em alguns casos,
pode implicar comportamentos delinqüentes e criminosos (Unidade
de Exclusão Social, 1998). Essas associações são bem conhecidas,
embora, às vezes, sejam confundidas com mecanismos causais. Os
dados existentes mostram que as crianças expulsas têm maiores
probabilidades de vir a adotar comportamentos criminosos ou de
perturbação da ordem do que seus colegas com as mesmas
características que continuam a freqüentar a escola (Hayden e
Martin, 1998). É certo que algum grau de criminalidade detectada
ocorra durante o horário escolar, sendo cometida por alunos das
escolas. No entanto, análises mais aprofundadas da questão
revelaram associações mais fortes com outros fatores, tais como
não-comparecimento às aulas (Parsons et al., 2001) e questões de
proteção à criança (Martin et al., 1999). Embora o fato de estar
fora da escola ofereça maiores oportunidades de passar o tempo na
companhia de grupos de colegas delinqüentes, há indícios de que
145
essas associações já existiam antes da expulsão, não sendo portanto
resultantes dela (Martin et al., 1999).
Há razões para crer que o fato de ter sido expulso da escola
indique toda uma série de problemas interrelacionados, que, tomados em conjunto, seriam resultado ou viriam a ser causa de
exclusão social para alguns indivíduos. Ao mesmo tempo, devese lembrar que as expulsões definitivas são apenas um entre os
46 indicadores formulados pelo New Policy Institute, visando a
monitorar as tendências de exclusão social (Howarth et al., 1998).
Em termos mais gerais, as pesquisas longitudinais indicam que
notas baixas nos testes de desenvolvimento acadêmico são um
indicador poderoso das seguintes condições futuras: ter filhos em
idade precoce, morar em conjuntos habitacionais públicos e ter
baixos rendimentos (Hobcraft, 1998). Essas últimas situações
estão fortemente relacionadas à exclusão social. A importância
de haver sofrido expulsão definitiva, no tocante à geração ou
manutenção da exclusão social, talvez resida na possibilidade de
uma expulsão vir a ser tanto catalisador quanto conseqüência das
dificuldades presentes na vida de um indivíduo.
Atkinson (1999) afirma que:
...embora a exclusão social possa resultar de quebras ou disfunções de quaisquer
dos sistemas de instituições sociais, o que parece é que só podemos falar genuinamente de exclusão social quando, para indivíduos ou grupos, diversos desses
sistemas se romepm ou entram em disfunção, ou como parte de uma reação em
cadeia ou simultaneamente (pág. 68).
Quando esse argumento é aplicado àquilo que sabemos sobre a situação da maioria das crianças expulsas da escola, podemos
começar a entender seu significado. Pais e/ou responsáveis geralmente se referem à expulsão como “a última gota”, ou como uma
punição aplicada a eles (Hayden, 1997a). Sabe-se que os problemas escolares, em muitos casos, costumam ou preceder ou seguirse à colocação de uma criança sob cuidados assistenciais, e muitas
vezes afirma-se que eles podem levar a uma ruptura dessa colocação (Hayden et al., 1999). Na verdade, num estudo realizado pela
146
Sociedade das Autoridades Educacionais e pela Associação de
Diretores dos Serviços Sociais, foi constatado um forte elo entre
ruptura da família e fracasso escolar (Webster, 1999). De forma
semelhante, a associação entre práticas criminosas ou delinqüentes e expulsão escolar é bem conhecida, embora a seqüência exata
dos acontecimentos seja de difícil identificação (Hayden e Martin,
1998). Qualquer que seja essa seqüência, é óbvio que a expulsão
aumenta as oportunidades de que as crianças e jovens venham a se
envolver em problemas, inclusive porque os colegas que estarão disponíveis a eles durante o horário de aulas terão grandes possibilidades de serem também alunos expulsos, ou que faltam às aulas por
problemas de incompatibilidade com a escola. Em suma, as expulsões escolares, principalmente as expulsões definitivas, são um indicador relativamente confiável de crianças e famílias que necessitam
de apoio social e que muitas vezes são ou socialmente excluídas ou
encontram-se à beira dessa condição. Dadas as dificuldades que costumam estar presentes na vida das crianças expulsas da escola, podese supor, com razoável grau de certeza, que a expulsão só tende a
exacerbar essa situação. Os dados disponíveis sugerem que, uma
vez definitivamente expulsa, principalmente se essa expulsão se deu
nos dois últimos anos da escolaridade obrigatória, há poucas probabilidades de essa criança um dia voltar, com êxito, a freqüentar em
tempo integral uma escola regular (Parsons, 1999). De fato, muitos
dos programas alternativos, entre eles o Include (antes chamado de
Cities in School – Cidade na Escola), reconhecem esse fato.
Tabela I
Razões dadas pelas escolas para a expulsão, tal como relatadas pelos
pais dos alunos (n = 80)
(Fonte: Hayden, C. e Dunne, S., 2001)
147
CRIANÇAS EXPULSAS – O QUE ELAS SÃO
ACUSADAS DE TEREM FEITO?
As principais razões alegadas para as expulsões são agressão
física (geralmente contra outras crianças, ocasionalmente contra
professores ou auxiliares de ensino) e comportamentos que perturbam o aprendizado das demais crianças. Já ficou demonstrado que
os comportamentos fisicamente agressivos respondem por percentuais que vão desde um quarto dos casos (27%) (DfE, 1992) até
mais da metade deles (Hunter, 1993; Hayden e Dunne, 2001). Esse
comportamento geralmente ocorre na forma de brigas, e apenas
em casos raros envolve o uso de armas. Além disso, comportamentos de intimidação e ameaças aparecem em alguns casos e, numa
minoria deles, uso de drogas e roubo foram apresentados como
motivos. No entanto, as razões oficialmente apresentadas para as
expulsões, por definição, não passam disso mesmo – razões oficiais.
O uso de termos como “ataques” ou “roubo”, devido à sua conotação de comportamentos criminosos, soam mais preocupantes que
“brigou no pátio de recreio” ou “roubou comida da lancheira de
colegas”. Já há algum tempo, alguns pesquisadores vê notando
que, na realidade, as expulsões geralmente ocorrem após um período relativamente longo de relações difíceis e incidentes ocorridos dentro da escola (Galloway et al., 1982; Cohen et al., 1994;
Blyth e Milner, 1993, 1996; Hayden, 1997a). Essa culminação
de acontecimentos talvez explique a trivialidade das razões alegadas para a expulsão, em casos específicos que muitas vezes
chamam a atenção da mídia e de outros grupos; tais como “desobediência repetida às normas da escola relativas ao comprimento
do cabelo”, ou “comportamento desordeiro” (Blyth e Milner, 1993).
Numa pesquisa recentemente concluída, estabeleci distinção entre as razões explícitas e as razões subjacentes da expulsão.
Essa pesquisa centrou-se na maneira pela qual os pais percebiam
os fatores subjacentes e a razão principal citada por eles para a
expulsão de seu filho. As tabelas I e II apresentam esses dados com
base em 80 famílias acompanhadas ao longo de todo o ano subseqüente à expulsão de seu filho (Hayden e Dunne, 2001).
148
Tabela II
Como os pais percebem as questões subjacentes que levaram à
expulsão de seu filho (n = 80)
(Fonte: Hayden, C. e Dunne, S., 2001)
Essas percepções dos pais apresentam alguns fatores dignos de nota. Uma das características dos relatos dos pais é a
freqüência com que comparecem agressividade e intimidação,
juntamente com preocupações a respeito das necessidades educacionais especiais do filho. Em alguns casos, o comportamento
citado como sendo a principal razão para a expulsão poderia ser
visto como fortemente relacionado às necessidades educacionais
149
especiais da criança. É de se esperar que os pais das crianças expulsas culpem as escolas – o que eles de fato fazem, em alguns casos –
mas também é verdade que eles estão mais do que dispostos a reconhecer que seu filhos, seus colegas e as questões familiares sejam
parte das razões subjacentes à expulsão. A tabela II, em particular,
ressalta a complexidade dos fatores subjacentes possíveis.
FATORES DE RISCO E EXPULSÕES
Estar fora da escola é um “fator de risco” bem conhecido, em
termos de todos os tipos de conseqüências indesejáveis e, por outro
lado, freqüentar a escola pode seu um fator de proteção (Farrington,
1996). Sabe-se que os primeiros sinais de dificuldades nas relações
com os pais, bem como o comportamento na pré-escola e na escola são fortes prenúncios de desadaptação social, principalmente
quando esses comportamentos são externalizados (Fortin e Bigras,
1997). Os problemas de comportamento tendem a se tornar particularmente estáveis, quando se instalam precocemente na vida de
uma criança, e algumas de minhas pesquisas de menor escala forneceram fortes indícios de que, nas famílias entrevistadas, as dificuldades escolares eram transmitidas entre gerações (Hayden et al.,
2000). Os fatores associados a expulsões da escola primária (reproduzidos na Figura 1) foram inequivocamente corroborados por
meu trabalho subseqüente. De fato, os trabalhos de acompanhamento desse grupo de famílias, realizados por um outro pesquisador (ver Parsons et al., 2001), mostraram que o fato de uma família
ter estado envolvida com os serviços sociais, concomitantemente
a uma expulsão por um período determinado, mesmo que esta tenha sido apenas de alguns dias, é sempre um importante prenúncio
da continuação, e até mesmo da escalada, das dificuldades apresentadas nas escola e em outros ambientes. Em outras palavras,
as crianças que se encontram em circunstâncias adversas ou estressantes em sua vida familiar e vêm tendo problemas na escola, saem-se pior que seus colegas cujas dificuldades sejam de
150
natureza unicamente escolar. Isso pode parecer óbvio, mas, mesmo assim, é uma questão agravante, que tem que ser compreendida para que as intervenções venham a se adequar ao problema.
Figura I
Circunstâncias das crianças expulsas da escola primária
Criança
• Sexo masculino
• Necessidades educacionais especiais (geralmente
emocionais e de comportamento)
• Grandes para a idade (às vezes pequenas)
• Novatas na escola
• Poucos ou nenhum amigo
• Dificuldades nas relações com os colegas
• Baixa auto-estima
• Negras (principalmente afro-caribenhas) ou
mestiças
• Testes (Escala de Avaliação de Comportamento)
revelaram altos níveis de hiperatividade,
distúrbios de conduta, agitação e
comportamentos desorganizados
Escola
Família
• Cortes orçamentários recentes ou
iminentes
• Problemas com pessoal (alta
rotatividade, recrutamento, saúde
física, qualidade, motivação)• Espaço
físico insuficiente
• Natureza das políticas de
administração de comportamento e
de disciplina e de sua implementação
• A escola foi instruída pela Autoridade
Local a matricular a criança
• A escola está mal-informada ou
desinformada sobre a natureza das
necessidades e das circunstâncias da
criança
• Ruptura da família ou
dificuldades nas relações
• Intervenção dos Serviços
Sociais ou a criança passou
algum tempo sob os cuidados
desses serviços
• Envolvimento de outras
agências não-oficiais
• Sinais de violência ou de abuso
na família
• Incidente/acidente traumático
na família imediata
• A família reside em acomodação
de aluguel
(Fonte: Hayden, C., 1997)
151
No entanto, como aconselha Rutter (1996), temos que
evitar confundir fatores de risco com mecanismos causais – ou
seja, observar de que maneira os fatores de risco operam para
provocar problemas de comportamento. Sabemos menos sobre os mecanismos de proteção, embora Rutter (1996) sugira que
essa pesquisa deva incluir trabalhos que enfoquem as seguintes cinco áreas:
• Redução do impacto do risco – por meio de supervisão e
acompanhamento por parte dos pais, de um grupo de
colegas positivo, de evitar envolver a criança nos conflitos entre os pais, e da capacidade da criança de se
distanciar do genitor perturbado ou “doente”.
• Redução das reações em cadeia negativas – por meio do manejo adequado dos conflitos familiares, do desenvolvimento de estratégias eficazes de resolução de problemas, da promoção de reações adaptativas às grandes
mudanças ou dificuldades ocorridas na vida e de evitar
táticas nocivas de lidar com os problemas (tais como o
uso de drogas ilícitas e de álcool).
• Promoção de auto-estima e auto-eficácia – por meio do desenvolvimento de relações pessoais seguras e incentivadoras, da promoção do desempenho bem sucedido
de tarefas e responsabilidades e da capacidade de lidar
com o stress manejável.
• Abertura de oportunidades positivas – possibilitando oportunidades educacionais e, mais tarde, de carreira, ampliação das opções matrimoniais e adiamento do casamento, por meio de uma mudança de ambiente.
• Processamento cognitivo positivo das experiências negativas –
por meio da aceitação de uma experiência, ao invés de
negá-la ou distorcê-la, enfocando qualquer aspecto
positivo até mesmo dessa experiência e incorporação
desse processo no esquema da própria persona (ou modo
de pensar sobre questões específicas).
152
As necessidades subjacentes aos comportamentos
associados à expulsão escolar
As expulsões escolares já foram conceituadas das mais diversas maneiras. Elas já foram vistas como relacionadas à incapacidade dos professores de exercer disciplina eficaz, principalmente num contexto de falta de apoio familiar. Já foram vistas
também como devidas às preocupações da escola com avaliações
classificatórias, à sua má-vontade em trabalhar com alunos indisciplinados e que consomem tempo, e como uma forma de racismo
institucional em relação aos alunos negros. Embora essas macroteorias possam ser úteis para a compreensão do “quadro mais
amplo”, os comportamentos apresentados por algumas crianças e
jovens são ignorados, ou recebem atenção insuficiente.
Na Inglaterra, os comportamentos escolares agressivos e
até mesmo violentos vêm sendo cada vez mais reconhecidos. Esse
fato é às vezes associado (principalmente pelos sindicatos de professores) à tendência em direção a maior inclusão social. Existe
uma espécie de hiato de realidade entre a retórica do governo e
da maioria dos analistas acadêmicos da questão e os relatos de
alguns profissionais de sala de aula. Embora o que os sindicatos
de professores relatam sobre o comportamento das crianças tenha que ser reconhecido como uma fonte de informação específica, de tipo diferente das informações fornecidas por boa parte
das pesquisas, o hiato entre essas duas fontes diferentes tem que,
de alguma maneira, ser explicado. É também necessário examinar mais além dos dados relativos à vulnerabilidade de determinados grupos à exclusão e perguntar-nos o que os torna vulneráveis, e o que podemos fazer a respeito disso.
Como já vimos no presente artigo, os dados indicam que
grupos claramente identificáveis de crianças são especialmente
vulneráveis às expulsões escolares. Esses grupos apresentam
um desafio real – e não imaginário – ao sistema educacional, tal
como ele é hoje organizado e financiado na Inglaterra. Trata-se
de crianças que, por uma série de razões, necessitam, mais do
que seus colegas, de maior apoio individual e em pequenos
153
grupos. Elas, geralmente, têm dificuldades com o currículo e
possivelmente apresentam baixo desempenho, muitas vezes sofrem de problemas emocionais e comportamentais, seu comportamento freqüentemente é agressivo e costuma perturbar
as atividades de aprendizagem dos demais. É possível que essas
crianças pratiquem intimidação, e alguns dados de minhas próprias pesquisas sugerem que é mais comum que elas sejam o
“intimidador” ou o “intimidador-vítima” que simplesmente a
“vítima”. Essas crianças não se distribuem uniformemente entre as escolas e algumas dessas escolas – geralmente as de pouco prestígio e pouca procura – acabam sendo escolas receptoras, no caso de essas crianças virem a ser expulsas ou transferidas da escola de origem, visando a um “recomeço”.
Sabemos muito sobre as características que tornam uma
escola eficaz, e pesquisas recentes nos garantem que essas boas
escolas também são boas no atendimento a alunos portadores de
dificuldades emocionais e comportamentais (Daniels et al., 1999).
Há também inúmeros “projetos especiais”, que afirmam ser capazes de dar apoio eficaz a alunos vulneráveis, embora os aplausos mais ruidosos muitas vezes venham dos líderes do projeto, e
não das próprias escolas. As crianças e as famílias geralmente
sentem-se gratas pelo auxílio recebido, mas não há provas sólidas de que esse auxílio acarrete mudanças duradouras.
Por essa razão, eu afirmaria que, embora seja importante
continuar a desenvolver melhores técnicas de administração de
comportamentos e serviços de apoio para crianças e famílias
em risco de expulsão, também é importante dar o reconhecimento devido às necessidades que podem estar sendo expressas no comportamento das crianças. Num certo sentido, essa é
uma afirmação óbvia, porém ela muitas vezes é esquecida nos
debates que podem se seguir, devido aos dados que mostram o
quão vulneráveis muitas das crianças expulsas tendem a ser. Há
toda uma série de necessidades que são expressas nos comportamentos que acabam por levar à expulsão. Irei examiná-los
rapidamente a seguir.
154
Incompatibilidade
O que algumas das crianças expulsas sentem, basicamente, é incompatibilidade em relação ao currículo e ao ensino, –
ou talvez a uma escola específica. Elas não apresentam necessidades educacionais especiais identificáveis, embora algumas
vezes sejam erroneamente vistas como portadoras dessas necessidades especiais. As que sofrem de incompatibilidade grave
tendem a receber expulsões definitivas. Suas necessidades relacionam-se, antes de mais nada, aos valores éticos de escolas
específicas, em certos casos à totalidade do processo de escolarização e, em outros, principalmente às restrições estabelecidas
pelo currículo nacional.
Necessidades educacionais especiais
Muitas das crianças expulsas têm necessidades educacionais especiais, muitas vezes caracterizadas, basicamente, por dificuldades emocionais e comportamentais. Essas crianças nem
sempre têm suas necessidades educacionais adequadamente atendidas numa sala de aula tradicional – ou por falta de compreensão ou de treinamento por parte dos professores e da equipe de
apoio, às vezes por falta de boa-vontade, ou porque há insuficiência de recursos práticos para lidar com necessidades individuais (pessoal e espaço, principalmente). Trata-se, basicamente, de falta de treinamento adequado e de meios para lidar com
as necessidades educacionais especiais, particularmente no que
se refere às dificuldades emocionais e de comportamento, e principalmente, nas escolas tradicionais. Muitas vezes, o problema
se resume a uma questão de recursos – ou seja, de haver ou não
recursos suficientes, disponíveis durante a totalidade do horário
escolar – principalmente nos intervalos e na hora do almoço, nas
excursões escolares etc.
Circunstâncias socioeconômicas
A maioria das crianças expulsas da escola vêm de grupos de nível socioeconômico mais baixo, o que geralmente tem
155
implicações quanto às atitudes com relação à educação e ao
aprendizado, a diferenças subculturais em termos de convenções de comportamento e também a certas desvantagens muito
reais, de ordem material e cultural. Quando essa situação se alia
a uma concentração de pessoas em condições similares, ela pode
representar um desafio importante, tanto para o indivíduo, que
não quer parecer um “puxa-saco” ou um “caxias”, quanto para
os professores, que têm dificuldades de gerar e manter expectativas. Essa, provavelmente, é a área mais difícil da questão das
populações “carentes”, tanto em termos do consenso a ser atingido quanto, conseqüentemente, em termos dos modos de intervenção. A autora é de opinião que é necessário contrabalançar de forma radical os efeitos da concentração espacial das
situações de desvantagem, que muitas vezes ocorrem em torno
das escolas. Um sistema verdadeiramente abrangente, que pusesse fim à comercialização do sistema educacional, seria de
grande utilidade para a redução de problemas dessa natureza.
Crianças sob os cuidados dos serviços sociais
(ou crianças assistidas)
As crianças sob os cuidados dos serviços sociais (ou assistidas) são desproporcionalmente representadas nas expulsões escolares, e a maioria delas provém de grupos de mais baixo nível
socioeconômico. Além dessas dificuldades, é possível que essas
crianças tenham sofrido maus-tratos, e é bem provável que tenham recebido cuidados insuficientes. É (quase) certo que elas
tenham sofrido perturbações e mudanças de ambiente em sua
vida escolar. Seu comportamento tende a estar relacionado a stress,
incerteza e abuso. Necessitam do equivalente a pais interessados
e compreensivos – talvez “pais institucionais” possam servir, caso
estes sejam capazes de oferecer o compromisso de longo prazo
que se pode esperar dos pais biológicos. Nem todas virão a passar
por dificuldades escolares, mas muitas passarão. Elas terão necessidade de apoio suplementar, visando compensar aquilo que
não tiveram, ou que foi difícil para elas, durante os distúrbios e
156
transtornos que tendem a caracterizar os períodos passados em
instituições assistenciais. Estas últimas formas de desvantagem
são um agravante das bem-documentadas desvantagens que, em
muitos casos, tendem a acompanhar a pobreza relativa.
Saúde mental
Questões de saúde mental podem estar presentes em todos os problemas acima citados. Embora esse conceito cause
desconforto a alguns educadores, reconhece-se que o problema
da saúde mental pode ser uma das extremidades do continuum das
dificuldades emocionais e comportamentais que fazem parte das
necessidades educacionais especiais. Além do mais, muitas organizações tais como a Young Minds (Jovens Mentes) (1996) ressaltam que as questões de saúde mental são comuns a uma parcela
significativa da população escolar (e também da população adulta), embora apenas 2% das crianças apresentem problemas graves. Doenças mentais graves são raras em crianças e bastante
incomuns em adolescentes jovens. Sabe-se que os problemas de
saúde mental afetam de forma desproporcional alguns grupos
específicos (como crianças entregues aos cuidados dos serviços
públicos de assistência).
Comportamentos criminosos e delinqüentes
Comportamentos criminosos e delinqüentes, da mesma
forma que as questões de saúde mental, são conceitos que
muitos educadores não gostam de aplicar com muita largueza
ao comportamento das crianças expulsas das escolas. No entanto,
aqui também aparecem questões que se sobrepõem aos fatores
de risco conhecidos e com eles interagem. Sabemos que as
crianças expulsas têm maiores probabilidades de virem a se
envolver em práticas criminosas e delinqüentes que seus colegas
que não sofreram expulsão. Sabemos também que os criminosos
condenados e os infratores contumazes tendem a terem tido más
experiências escolares, entre elas expulsões, não-comparecimento
às aulas e baixo desempenho acadêmico. Alguns dos
157
comportamentos que levam às expulsões vão contra a lei e, na
melhor das hipóteses, têm que ser vistos como anti-sociais.
Crianças malcriadas e malcomportadas
Algumas crianças expulsas são simplesmente “malcriadas”
ou malcomportadas. Elas tendem mais a receber expulsões por
períodos determinados, que geralmente se limitam a alguns dias.
No caso dessas crianças, um sistema coerente de administração de
comportamentos e um bom contato com os pais, caso uma expulsão venha a ocorrer, geralmente bastam para mantê-las na escola.
CONCLUSÕES: O QUÃO BEM-EQUIPADAS
ESTÃO AS ESCOLAS PARA RESPONDER ÀS
NECESSIDADES ASSOCIADAS ÀS EXPULSÕES?
É certo que tanto o público em geral quanto os políticos
gostariam que as escolas fossem capazes de responder de forma
construtiva às necessidades associadas às expulsões. Também há
poucas dúvidas quanto a que as expulsões escolares sejam um
indicador de que essas crianças muitas vezes se encontram em
situações de risco, e também que a solução de expulsá-las da escola só faz exacerbar esses riscos. Partindo desses pontos estabelecidos, a formulação de maneiras adequadas de lidar com as crianças expulsas da escola – e das que correm o risco de vir a sê-lo
– é uma maneira capital de reduzir os riscos de resultados adversos para essas crianças. Como já afirmou Parsons (1999), é óbvio
que as crianças expulsas necessitam de mais, e não de menos
educação. Há sinais de que algumas melhorias vêm ocorrendo,
em termos de ofertas que reconhecem que o currículo e, aliás,
todo o ambiente escolar (com os jovens nos anos finais da escolaridade obrigatória) são parte do problema. Muitas crianças e
jovens podem ser “liberados” do currículo nacional, e existe todo
um espectro de programas baseados em ensino técnico e profissional, em experiência de trabalho etc. Aliás, essas ofertas não são
158
muito diferentes das que existiam antes de o currículo nacional
ser imposto, na Inglaterra. Há um código de prática que ajuda na
detecção e no planejamento das Necessidades Educacionais Especiais, mas o treinamento e os recursos para atender a essas
necessidades, no nível das escolas, geralmente é visto como inadequado, principalmente em relação às crianças que precisam de
auxílio com relação a seu comportamento. Quanto às outras necessidades identificadas acima, a oferta é fragmentária, no nível
das escolas. Na Inglaterra, não existe um sistema nacional que
forneça às escolas conselheiros escolares, psicólogos, assistentes
sociais ou pessoas que trabalhem com jovens. Ao contrário, o
que existe são inúmeros projetos especiais de curto prazo, e escolas específicas que vêm enfocando um ou dois aspectos do espectro das necessidades identificadas.
São raras as épocas em que a questão do comportamento
das crianças e dos jovens na escola, em casa e na comunidade não
despertem alguma preocupação nos adultos. As preocupações com
a criminalidade de menores e as opiniões sobre a aparente falta de
respeito pela autoridade demonstrada por crianças e jovens são
parte desse fenômeno. Nossas atitudes, como sociedade, muitas
vezes são ambivalentes, oscilando canhestramente entre o desejo de cuidar e o desejo de controlar – quando precisamos fazer
ambas as coisas. Do mesmo modo, no que tange às expulsões
escolares, tema esse que abrange boa parte desses debates, hesitamos quanto ao reconhecimento de que as crianças expulsas
geralmente precisam tanto de compaixão quanto de disciplina firme. Muitas vezes, elas precisam de mais cuidados especializados
e individualizados do que a maioria das escolas têm a oferecer.
As escolas secundárias, na Inglaterra, já possuem sistemas
pastorais. A maioria dos professores está disposta a atuar como
tutores, e não apenas como professores de sala de aula, e alguns
professores aceitam a função de orientadores de séries inteiras
(ou coisa que equivalha). Os professores secundários que assumem maiores responsabilidades pastorais são ligeiramente aliviados de sua carga de aulas, para que possam desempenhar sua
159
nova função. Os professores de escola primária, por outro lado,
têm que incorporar essas novas funções a seu contato de tempo
integral com uma turma de alunos. As autoridades educacionais
locais fornecem serviços de apoio às escolas, entre eles, psicólogos da educação, assistentes sociais educacionais, pessoas especializadas no trabalho com jovens etc. No entanto, todos esses
serviços são severamente racionados, não sendo prontamente
acessíveis na própria escola. Além disso, no decorrer da década
de 90, ocorreram diversas iniciativas de apoio comportamental
financiadas pelo governo – mas estas geralmente se reduziam a
solicitações de verbas para questões de administração de comportamentos e, no mais das vezes, se restringiam a um período
específico e a determinadas localidades. Algumas escolas se tornaram famosas pela abertura de seus valores éticos e por seu
enfoque centrado na criança. Em outras palavras, já existe, dentro dos sistemas escolares atuais, uma estrutura voltada para
tratar de algumas (embora não de todas) necessidades manifestas presentes nos casos de alunos expulsos. No entanto, o apoio
amplo à vasta gama de comportamentos que são difíceis para
as escolas ocorre de forma pontual e é visto como colateral à
tarefa central do ensino. Nas escolas inglesas, a ênfase geral
(determinada com clareza pelo governo) recai no “ensino do
currículo nacional”, nos padrões acadêmicos, nas tabelas classificatórias, na determinação de metas e na competição relativa
a esse desempenho mensurável. O desenvolvimento social e
emocional das crianças não é um tema importante na agenda
estabelecida pelos políticos para as escolas. Não possuímos um
sistema nacional de apoio aos comportamentos escolares que
de fato reconheça que, no caso de algumas crianças, a escola
talvez seja o único lugar onde elas podem se expressar de forma segura. É de grande urgência que esse fato seja reconhecido
na Inglaterra, que as escolas sejam providas de recursos suficientes, e que os professores sejam treinados, apoiados e remunerados de forma condigna.
160
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163
VIOLÊNCIA ESCOLAR:
UM OLHAR COMPARATIVO SOBRE
POLÍTICAS DE GOVERNANÇA
Sophie Body-Gendrot
O sueco Peter Lùndstrôm comentou certa vez que o tema
da violência escolar, infelizmente, recebia mais atenção por parte da mídia que por parte dos pesquisadores. Espero que a grande presença de pesquisadores de vários países hoje, na UNESCO, demonstre a falsidade dessa afirmação. O comentário de
Lùndstrôm ressalta a dificuldade que os pesquisadores têm de
localizar seus progressos numa área que é alvo de ampla cobertura da mídia. Quando tratamos de assuntos desse tipo, ocorre
uma falsa continuidade entre as categorias do pensamento popular e as categorias das ciências sociais. Frente à confusão semântica do discurso não-iniciado sobre a violência escolar, será que
as ciências sociais oferecem um enfoque realmente pertinente
quanto a essas categorias e fenômenos? As categorias de ambos
os lados tendem a se confundir, em vez de se manter distintas, e
é comum que a terminologia da primeira seja trazida para o campo desta última, devido à saturação da mídia (Milburn, 2000). A
mídia globaliza e reúne fenômenos fragmentados, transformando em notícias fatos relativamente raros, causando assim, em meio
ao público, uma ansiedade que não pode deixar de afetar as políticas públicas, conforme veremos.
Como freqüentemente nos lembra Debarbieux, a França
está longe de bater recordes no campo da violência escolar e,
embora a situação venha apresentando tendência a piorar, em
termos dos indicadores relativos a delitos, à atmosfera escolar e
165
à sensação de insegurança, não é preciso dizer que situações de
violência não são exatamente comuns na maioria das escolas. Não
significa que as escolas problemáticas não devam ser levadas a
sério, especialmente num país tão apaixonado pela igualdade. Mas,
em algum ponto entre a atitude minimalista e a fantasia de insegurança, há espaço para a razão; e não podemos deixar de nos
perguntar por que o fenômeno da violência escolar é causa de
tanto debate, se, objetivamente falando, os índices de violência
nas escolas são baixos.
Qual o sentido desse debate? O que está por trás dele?
Angelina Peralva, a socióloga, escreveu recentemente, num trabalho conjunto chamado “Faut-il s’accommoder de la violence?”, que
“hoje, na França, a violência realmente problemática é sobretudo a violência dos filhos de imigrantes, que, nos últimos vinte
anos, vem envenenando a vida dos subúrbios de classe trabalhadora. É essa a forma de violência que perturba a opinião pública
e que tem proeminência nos debates públicos”. Por outro lado,
depois do incidente de Columbine em Littleton, um subúrbio de
Boulder, Colorado, onde dois adolescentes mataram mais de uma
dúzia de colegas com uma arma automática, antes de cometer
suicídio, muitos observadores comentaram que, se esses adolescentes viessem de um grupo racial minoritário, não se teria falado no assunto por mais de dois dias. O enfoque comparativo é
interessante por contextualizar as situações de acordo com os
valores, as normas, as histórias e as instituições específicas de
cada um dos países em questão.
Se tomei a decisão de me debruçar sobre o contexto americano da violência escolar, é porque certas escolas americanas
estão longe de serem lugares pacíficos (apesar de que, na maioria
delas – 82.000 escolas, no total – os alunos, ao longo dos anos
escolares da infância e da adolescência, desfrutam de um período de tranqüilidade, aproveitam bem suas atividades e têm sucesso em seus estudos). Mas minha decisão deve-se também a
que, apesar de um contexto muito diversificado de cisões raciais
e de uma cultura que glorifica a violência, os Estados Unidos,
166
nos últimos oito anos, conseguiram reduzir de forma espetacular
os níveis de violência e delinqüência nas cidades, apresentando
uma redução de 51% na taxa de menores envolvidos em delitos
violentos (Urban Institute, 2000). Mesmo nos guetos, voltou-se
a ter um certo grau de paz e tranqüilidade. Não é tanto a redução
em si que nos interessa, e sim o fato de que os Estados Unidos,
que os franceses, de acordo com A. Kaspi, “não conhecem, não
entendem, nem gostam”, têm a vantagem do pragmatismo, da
experimentação e da avaliação seguida de efeitos. Em todos os
cinqüenta estados, encontramos escolas que introduziram inovações espetaculares, que podem até ser arriscadas, mas que são
voltadas à prevenção da violência, mesmo que tenham sido rejeitadas em outros lugares – a cultura e as escolhas das populações
a que servem essas instituições ainda são um fator de grande
influência. Esse país nos interessa também não porque ele represente uma prefiguração de nosso futuro, mas em razão de seus
excessos e de sua ousadia em testar idéias que, seja por falta de
espírito aventureiro, seja porque os procedimentos são trabalhosos e difíceis, as administrações francesas não se dão ao trabalho
de implementar. Enquanto, na França, temos um serviço público que obedece a seus próprios regulamentos, os americanos têm
“programas”; e essas são situações muito diferentes.
Devemos nos perguntar o que acontece em outros países
– e é esse o objetivo deste encontro – não para buscar receitas
ou para reproduzir práticas, mas para buscar alimento para o
pensamento e para enriquecer nossas próprias questões. A comparação não deve ser abstrata; ela deve se alimentar empiricamente daquilo que acontece na área, para que possamos determinar qual a experiência que se tem dos problemas, quais são
os fatos sobre a violência, os efeitos dos lugares e dos estabelecimentos e os elos mais fracos de cada sistema, e para que possamos também tentar entender qual a melhor forma de enfrentarmos esses desafios. Antes de examinarmos essas respostas,
agrupadas sob o termo “governo local”, devemos especificar
do que estamos falando.
167
VIOLÊNCIA ESCOLAR: UMA DIFERENÇA DE
NATUREZA E DE ESCALA
Do que estamos falando?
Conforme já ressaltamos, a primeira dificuldade está ligada à grande diversidade de sentidos do termo “violência escolar”. Cada disciplina que trata do tema tende a limitar seu uso. A
própria construção do objeto já é uma grande parte do trabalho
científico e contribui para a definição da questão. Para alguns
existe uma continuidade, que vai desde os pequenos delitos, que
destroem a atmosfera na sala de aula, aos assassinatos em massa
perpetrados por adolescentes em áreas rurais isoladas. A resposta, portanto, deve ser tolerância zero desde o primeiro pequeno
delito, para que o assassinato em massa não venha jamais a ocorrer. Para outros, cada caso deve ser interpretado separadamente,
e o relativismo é a regra. Entra em cena uma grande diversidade
de reações, tanto civis quanto penais. Alguns exigem uma enumeração física dos atos de violência, para que possamos executar
levantamentos longitudinais e estudar a evolução do fenômeno,
enquanto outros se apegam à própria fenomenologia e àquilo
que faz sentido para as vítimas. Os pesquisadores precisam examinar cada ângulo, considerar os aspectos subjetivos e objetivos
das situações em questão, considerar a interação entre aqueles
que se comportam de forma anti-social e aqueles que sofrem as
conseqüências; precisam levar em conta as exigências normativas da sociedade e passar da substância do ato violento ao relativismo imposto por uma leitura diacrônica do fenômeno. Será
que a violência escolar contemporânea provém do limiar muito
baixo de tolerância que temos agora, em comparação com épocas passadas ou com outros países específicos?
Tomemos como ponto de partida uma definição funcional
minimalista: a violência não é tanto um conceito quanto um conjunto de situações interligadas, mas assumindo formas que não
podem ser comparadas entre si. Essas situações estão relacionadas a comportamentos que têm como finalidade causar mal a
168
outros – a seu corpo, a seu território, a seu ego afetivo. O que faz
dela um fenômeno tão intolerável é que ela nega a aspiração individual e coletiva à inviolabilidade, à integridade, à proteção, ao
respeito e à justiça. Quando unido à palavra escola, o termo violência indica uma grave falha por parte da instituição e de seus
planos futuros. O medo da violência física direta provém da atenção dada pela mídia a toda uma série de situações tidas como
insuportáveis, bem como a qualquer tipo de comportamento
anômalo, muitas vezes aglutinados sob o termo genérico “incivilidade”. Esses dois termos parecem ser intercambiáveis na semiótica da mídia (Milburn, 2000). Mas a violência tem uma dimensão qualitativa, no dano causado por ela à integridade social, enquanto a incivilidade enfatiza o aspecto quantitativo, por meio
da difusão invisível das várias transgressões que permeiam os
poros do corpo social. A incivilidade recebe como resposta uma
política de controlar os espaços e a exigência de maior responsabilidade civil e de punições mais severas. Quanto ao termo “escola”, aqui há também mais de um sentido. Na França, os primeiros anos da escola secundária parecem ser o elo mais fraco,
ao passo que, nos Estados Unidos, a ênfase é colocada sobre o
fato de que as perturbações começam na escola primária. Em
ambos os países, os crimes e delitos ocorridos na própria escola
são relativamente limitados. De acordo com William Modzeleski,
Diretor do Programa de Escolas Seguras e Sem Drogas, do Departamento Federal de Educação, a escola é um dos lugares onde
as crianças se encontram em maior segurança. Das 5.000 mortes
de menores causadas por armas a cada ano, menos de 1% ocorrem nas escolas (Congressional Quarterly, 1998). O Instituto de
Políticas Judiciárias acrescenta que os alunos têm chances quarenta vezes maiores de serem mortos fora da escola que dentro
dela e, na maioria das vezes, por adultos. Na França, a simples
menção de crimes de sangue já seria motivo para preocupação.
De fato, mesmo com as melhoras que vêm acontecendo há vários anos, a situação americana ainda é infinitamente mais séria
que a da Europa.
169
Todos os dias, de acordo com o Fundo de Defesa das Crianças, instituição de grande legitimidade que coleta seus dados
no Centro Nacional de Estatísticas de Saúde, três crianças morrem devido a maus-tratos e nove são assassinadas; 13 morrem de
ferimentos provocados por armas e 30 são feridas; 202 são presas por tráfico ou porte de drogas; 1.200 jovens fogem de casa;
2.250 abandonam a escola; 2.300 são enviados para prisões de
adultos; 5.300 são presos por delinqüência; 5.700 adolescentes
são vítimas de delitos violentos; 100.000 não têm onde morar;
22% dos jovens de menos de 18 anos, ou, em outras palavras, 14
milhões de pessoas, vivem em estado de pobreza. Um fato alarmante: em 1997, 1,2 milhão de jovens viviam em casas onde existiam armas (em geral carregadas), enquanto quase um milhão
deles carregava armas de fogo em suas mochilas escolares, de
acordo com o grupo de estudos PRIDE (Congressional Quarterly, 1998). Um terço dos alunos americanos que responderam
ao questionário disseram que seriam capazes de conseguir armas
sem grande dificuldade. Isso se encaixa num contexto que propicia a cultura de culto às armas e as guerras entre gangues são
estruturadas em termos de raça e etnia.
Dados como esses nos fazem parar para refletir. Um outro
sintoma é o abandono precoce do sistema escolar, que impõe
graves limitações ao futuro dos jovens. Dos 40 milhões de estudantes americanos matriculados em 82.000 escolas primárias e
secundárias, mais de dez milhões correm o risco de reprovação
acadêmica, o que pode fazer com que eles abandonem a escola
antes do tempo e pode levá-los à delinqüência (Dryfoos, 1998).
Em algumas zonas centrais das grandes cidades, praticamente
todas as crianças são consideradas como estando em situação de
risco. É claro que nas escolas francesas o problema não tem a
mesma escala. Mas os indicadores relacionados a oportunidades
de delinqüência e de comportamentos delinqüentes em distritos
menos privilegiados, bem como a “socialização rebelde”, que
multiplica os efeitos da frustração, do desemprego e da discriminação, ajudam, sim, a compreender o comportamento dos ado170
lescentes (Lagrange, 2000). Mas quais seriam as soluções mais
adequadas? Deveríamos tratar de cada problema separadamente
– delinqüência juvenil, depressão, vício em drogas, gravidez na
adolescência, comportamento violento? Ou seria melhor lidar
com todo esse conjunto de problemas de forma preventiva, integrada e coordenada? E quem deve intervir?
ABORDAGENS CONTRASTANTES
A dificuldade vem da politização extrema gerada pelo tema
da violência nas escolas e da violência da escola; politização essa
que obstrui as soluções de longo prazo que, idealmente, deveriam ser desenvolvidas com calma e confiança. Independentemente
do país, a questão da segurança nas escolas se converteu num
assunto político. Ela faz com que protagonistas que ocupam as
mais diversas posições no tabuleiro do xadrez político se comprometam com novas formas de governança e com reformas de
tipos múltiplos. Nos Estados Unidos, as instituições federais,
subnacionais e locais, os protagonistas privados e o setor civil
são forçados pela competição a inovar e assumir riscos. É difícil
construir um modelo à francesa, que retrate de forma precisa a
experiência americana de controle da violência escolar. Há uma
grande disparidade entre os estados e distritos escolares, que são
financiados de forma muito desigual (apenas 7% desses fundos
vêm do governo federal). Portanto, a generalização é impossível.
É melhor interpretar as mudanças como se elas houvessem sido
tiradas de uma caixa de ferramentas gigante, e considerar que,
no que se refere ao pensamento europeu, elas provocam tanto
incentivo quanto rejeição. São as modalidades de governança
escolar, que, sem dúvida, representam a maior divergência entre
os diferentes enfoques. O termo governança escolar, em sua acepção americana, implica uma necessidade de cooperação entre os
setores público, privado e associativo, sendo que os dois últimos
tipos detêm os recursos essenciais para a efetivação das decisões.
171
A governança escolar, portanto, deve ser entendida como a capacidade decisória produzida por um conjunto de protagonistas
públicos e privados, na tentativa de atingir objetivos coletivos ou
desejos e expectativas individuais, num universo fragmentado,
complexo e incerto.
Essa dinâmica tem origem no bairro. Na melhor das hipóteses, os pais e os habitantes se utilizam de seus recursos, de suas
estratégias e do poder adquirido por eles para, por um lado, forçar seus representantes políticos e seus governos a lhes fornecer
a escola de qualidade de que seus filhos precisam, e, por outro
lado, para levar suas queixas às instâncias regionais ou nacionais.
As leis que tratam das famílias, da educação, da saúde pública, da
luta contra a delinqüência e da segurança, têm, todas elas, repercussões na qualidade da vida cotidiana do bairro. Os beneficiários dessas leis não se mantêm passivos.
Ao contrário dos franceses, os cidadãos americanos se sentem no dever de garantir que as instituições locais funcionem
bem. As escolas, as empresas, as associações, as estruturas religiosas, as clínicas, as universidades e todas as outras instituições
territoriais são obrigadas a cooperar e a se confrontar com os
problemas identificados pelos alunos em áreas sensíveis. O enfoque das zonas de capacitação formalizou essa atitude. O governo Clinton tomou a decisão de salvar de uma morte lenta seis
grandes áreas urbanas. Para cada dólar oferecido pelo governo
federal, o bairro em questão teria de conseguir seis ou sete. Os
habitantes tinham que apresentar propostas concretas e, a partir
delas, desenvolver um plano de grande escala, inter-relacionando os problemas de forma pragmática, transversal e global, e propondo parcerias elaboradas a partir de iniciativas na área, incluindo a escola. Associações, bancos, voluntários e profissionais se
mobilizaram, e as zonas foram transformadas, embora de forma
menos espetacular do que se havia imaginado. Deve-se enfatizar
que nem todos os professores americanos se convenceram da
validade da mobilização dos pais. Alguns eram de opinião que os
172
pais não tinham o direito de exercer influência alguma nas escolas, e nesses casos foram adotados procedimentos para afastá-los
deliberadamente, e para mantê-los desinformados sobre a vida
escolar (Maeroff, 1982). Era fácil, por exemplo, marcar reuniões
de pais e professores no meio do dia, publicar boletins informativos incompreensíveis etc. No entanto, apenas a minoria dos professores tomava atitudes desse tipo, já que, cada vez mais, a escola
percebia que não podia lidar sozinha com tarefas tão complexas.
EXPERIÊNCIAS MUITO DIFERENTES
Gerenciamento intenso do espaço e do corpo dos
estudantes
Muitos franceses costumam ver a reação americana à violência nas escolas como um caso de tolerância zero e prevenção
situacional (câmeras, detectores de metal).
Um certo número de notícias isoladas, bem como a percepção de que o tráfico de armas e drogas é lugar-comum, fizeram surgir, em meio às famílias, uma tal sensação de pânico
moral e tantas reivindicações de aumento da segurança nas escolas informadas às autoridades escolares e aos líderes políticos – sem falar nas exigências das companhias de seguros – que
um gerenciamento paramilitar intensivo do espaço e do corpo
dos alunos foi imposto às escolas localizadas nos bairros de
alto risco (Body-Gendrot, 1998). Mas não pretendo gastar muito tempo examinando essa integração coercitiva, tão amplamente coberta pela mídia. De fato, “sempre tardia, muitas vezes
desproporcional, sempre inadequada, a resposta do mundo adulto, encarnada na justiça, tem pouca credibilidade. Pode-se até
ter a sensação de que essa resposta ajuda a incentivar as“carreiras
delinqüentes” de vários jovens... Os efeitos subseqüentes da
prisão e dos antecedentes criminais representam rupturas definitivas, que levam a uma violência cada vez mais preocupante”
173
(Marcus, 1998). Esse gosto pela repressão é ainda mais paradoxal pelo fato de os Estados Unidos, já há algum tempo, virem
acumulando um estoque de experiências que foram testadas em
ambientes sociais menos privilegiados. Mas cada experiência
deve ser tomada em seu devido contexto.
Programas de solução de conflitos e de arbitragem foram
introduzidos em milhares de escolas primárias e secundárias. No
entanto, a avaliação dessas técnicas dá margem a dúvidas. Não
temos certeza de que as atitudes e opiniões possam ser fundamentalmente mudadas, o que talvez se deva a um grau insuficiente de compromisso por parte dos responsáveis, ou ao fato de
os programas serem implementados tarde demais. Creio que o
problema resida, acima de tudo, na aplicação estrita de uma técnica, em vez do uso de recursos combinados, como valorização
do sucesso acadêmico, tutoria, atividades extracurriculares e intervenção precoce (Webster, 1993). E, no entanto, essas técnicas
de arbitragem continuam sendo muito populares (De Long, 1994).
O treinamento dura um ano e consiste em explicar que existem
formas de evitar a violência e que é possível intervir rapidamente antes que um conflito entre em escalada. Essa técnica implica
uma escuta atenta, expressão da experiência da vítima e do agressor, troca de pontos de vista e desenvolvimento de técnicas de
cooperação e negociação. A cada semana, os professores dedicam “uma hora do tempo em sala de aula” às questões que fazem parte do programa e incentivam a discussão de situações
específicas, para que os alunos sejam capazes de manter a calma
mais tarde, quando surgirem as tensões e os conflitos. Os educadores dispõem de um ponto de atendimento para receber e ouvir
alunos perturbados, enviados por amigos ou professores. Outras
técnicas consistem em conferir responsabilidade a alunos voluntários e fazer com que eles deliberem conjuntamente em estruturas formais, um pouco semelhantes a tribunais, sobre conflitos
ou delitos específicos, uma vez que a maioria dos alunos prefere
ser julgada por seus colegas a sê-lo por uma instituição, quando
o problema não é de natureza penal.
174
Um enfoque menos conhecido: a escola multisserviços
Para combater a violência nas escolas, a idéia bastante revolucionária da escola multiserviços consiste em agir de forma
preventiva e multidimensional em relação aos problemas que tendem a levar à violência futura, fazendo com que a escola se torne
o elemento coordenador de todas as parcerias. A idéia se baseia
na seguinte observação: em bairros menos privilegiados, a escola
é uma instituição familiar dotada de visibilidade para as famílias
desorientadas. Ela deve agir como um substituto para os pais
que fracassam no desempenho de seu papel e deve ajudar as crianças que sofrem de deficiências, quando estas chegam a suas
portas. Essas crianças precisam de educação, mas também de
serem alimentadas, tratadas, trazidas para fora de si mesmas; elas
precisam de ajuda para construir seu futuro. Os professores não
têm como obter bons resultados de alunos com fome ou com
distúrbios psicológicos. A escola não pode ignorar esses problemas vivos e tem o dever de se preparar tecnicamente para lidar
com eles, embora não possa resolvê-los sozinha. Apesar da dificuldade de atingir um consenso quanto às soluções aceitáveis
para problemas sociais complexos, por que não reunir serviços e
profissionais dispersos e fragmentados, e integrá-los à escola?
Nós sabemos que o fenômeno da violência é multi-dimensional.
Então, se forem oferecidos, dentro da escola, os serviços de auxílio social, jurídico e econômico de que as famílias precisam, bem
como serviços médicos, tanto de clínica geral quanto de tratamento especializado de disfunções patológicas, tudo isso combinado
com formas de acesso aos departamentos de polícia e de justiça,
essa sinergia só irá contribuir para a melhora de vários problemas
que têm repercussões na escola. Reprovações acadêmicas, maustratos, delinqüência, abuso de drogas e depressão, todos esses
problemas repercutem no comportamento dentro da escola.
Muitas vezes, esses problemas têm a mesma raiz. Os esforços
para ajudar os alunos em situação de risco devem ser individuais,
coletivos e multidimensionais, tudo isso ao mesmo tempo. Esses
esforços devem começar desde cedo, assim que os sintomas
175
aparecerem, o que exige que os funcionários cooperem com a
família, que tenham um treinamento sólido, que saibam identificar
claramente a natureza dos problemas a serem resolvidos, que
estejam convencidos da validade do enfoque de parcerias e que
estejam dispostos a coordenar suas ações com as de outros
funcionários, utilizando-se de bons métodos de comunicação e
de avaliação daquilo que tem sucesso.
O ideal seria que pessoas motivadas fossem estimuladas a
assumir riscos, usando soluções novas para lidar com velhos problemas. O trabalho em redes pode trazer resultados inspiradores.
Quando os educadores trabalham dentro da escola, juntamente
com os professores e, se necessário, vão até a casa dos pais para
informá-los sobre os serviços de seu interesse, os alunos que
passam por dificuldades tendem a buscar a ajuda de seus professores, colegas, conselheiros e médicos especializados. Sob essa
luz, a escola se torna um agente de inovação social, implementando ações destinadas a transformar a qualidade de vida.
O tema da integração de enfoques tem repercussões nos
diálogos mantidos nos diversos níveis, locais, nacionais e internacionais. É claro que essa integração se contrapõe aos interesses estabelecidos (Crawford, 2000), à desconfiança e aos rituais
de verificação, além de se deparar com várias dificuldades de ordem prática. Nos Estados Unidos, em termos históricos, dois
períodos foram propícios à idéia da integração de serviços: a era
do New Deal e os anos 60. Durante a depressão, foi aberto muito
espaço à idéia progressista de uma escola aberta ao bairro, que
incluísse tanto o acesso à transmissão do conhecimento quanto
aos serviços destinados a atender às necessidades das famílias. O
uso físico da escola, durante o ano inteiro, para o estímulo intelectual e para atividades tais como atendimento, consultoria, assistência jurídica e vários outros tipos de apoio permitiram que
os voluntários do bairro cooperassem com os profissionais. Em
1935, nada menos que 50 escolas “iluminadas”, numa única cidade (Flint, Michigan) faziam parte desse movimento local.
176
Os anos 60 foram marcados pelo intervencionismo federal, que pretendia ajudar os habitantes a resolverem seus próprios problemas, com o argumento de que eles eram as pessoas
melhor posicionadas para saber como lidar com essas situações.
O governo federal destinou verbas para o incentivo às iniciativas
integradas e à participação. Leis federais tratando das escolas
primárias e secundárias, pela primeira vez, ofereceram subsídios
para as escolas de bairros carentes; na maior parte das vezes,
esses subsídios eram utilizados para a contratação de médicos e
enfermeiras escolares. Esses programas perderam parte de sua
eficácia no fim daquela década, quando muitos alunos problemáticos, seduzidos pela contracultura, abandonaram a escola para
adotar a cultura das ruas, hostil aos valores tradicionais, o que
tornou mais difícil atingi-los. No momento atual, tenta-se corrigir essa situação intervindo antes que os alunos abandonem a
escola e evitando situações de crise. Dois exemplos que estudei,
em Manhattan, ilustram esse enfoque.
O IS 218, em Manhattan, e a participação das famílias
Localizada no bairro dominicano de Washington Heights,
no norte de Manhattan, a escola secundária IS 218 é o resultado
de uma parceria entre a agência municipal responsável pelas escolas estaduais e uma organização sem fins lucrativos chamada
Sociedade de Auxílio às Crianças (CAS). Cientes da escala dos
problemas sociais e de saúde existentes nesse distrito, essas duas
estruturas tomaram a decisão de unir seus esforços: não apenas
foi criado um centro social com uma clínica, mas esse centro foi
localizado no andar térreo da escola, indicando simbolicamente
que a escola estava aberta aos problemas do bairro, e que os habitantes deveriam se sentir em casa dentro da escola.
Como Washington Heights é um distrito onde a pobreza e
a delinqüência são problemas sérios, surgiu a idéia de abrir os
prédios da escola à vizinhança, de forma que a escola se tornasse
um lugar tanto para estudo quanto para a vida cotidiana, aberto
a todos os habitantes da região, jovens ou velhos, cidadãos ou
177
não, sete dias por semana, inclusive feriados, das 7 da manhã às
10 da noite. Uma doação feita por uma fundação permitiu que
os prédios fossem modernizados e que as medidas de segurança fossem fortalecidas: podia-se controlar melhor o acesso ao
ginásio e ao auditório, instalou-se uma iluminação especial para
atividades noturnas, e os policiais comunitários locais passaram a ser figuras familiares, a quem a escola poderia recorrer
em caso de dificuldade.
Em seguida, múltiplas portas foram abertas à comunidade
dominicana, população que é maioria naquele distrito. A escola
tomou a iniciativa de convidar as crianças do bairro para passar o
verão em centros de atividades; uma ambulância era usada para o
transporte daqueles que desejavam ser tratados na clínica da escola. Foi criado um programa de reabilitação concebido especialmente para crianças deficientes e, graças a subsídios federais
destinados a determinadas escolas de bairros carentes, os habitantes dominicanos do bairro começaram a receber treinamento
paraprofissional, o que lhes deu a oportunidade de participar ativamente de atividades extracurriculares: supervisão dos deveres
de casa, apoio psicológico para alunos, cursos de esportes ou
artes, outras formas de supervisão etc. Eles se convenceram de
que são parte da solução. Oficinas coordenadas por mães experientes contribuíram para que as jovens se conscientizassem dos
problemas de gravidez durante a adolescência.
Inaugurada em 1992, a escola tem um forte apelo estético, com um grande mural de arte dominicana e canteiros de
plantas espalhados por todo o prédio. O interior é ensolarado e
imaculadamente limpo. Os móveis parecem novos, os livros
estão em boas condições. Os alunos não passam o tempo nos
corredores, que são vigiados pelos pais. Não há detectores de
metais nas entradas, mas sim vigias, e há uma pequena loja e
cafeteria, operada conjuntamente pelos alunos e pelos pais. As
mães que atuam como auxiliares da escola podem ser vistas nos
corredores e na secretaria, onde elas recebem os visitantes e os
usuários do centro social.
178
A escola, que atende a 1.200 alunos, é dividida em quatro
unidades, uma por andar, com a intenção de simplificar e humanizar a administração e de conhecer os alunos individualmente. Cada sala de aula é “administrada” por um professor,
que tem também a função de orientador escolar. Os professores se reúnem com seus alunos várias vezes por semana para
discutir seu futuro e seus problemas pessoais. O diretor é muito ativo, muito visível, e coopera de forma muito próxima com
as equipes, que são bastante estáveis. Em especial, ele incentiva
os pais a dar continuidade, em casa, às atividades iniciadas com
seus filhos em sala de aula.
Não é raro ver alunos que ficam na escola após as aulas,
por puro prazer. A IS 218 é um lugar cheio de vida. Em minha
penúltima visita, fui convidada a assistir a um ballet do tipo Alvin
Ailey. O espetáculo fez tamanho sucesso que os jovens bailarinos da escola estão agora recebendo convites para se apresentar
em outras escolas. Dessa forma, os alunos e as experiências inovadoras são valorizados.
Buscando apoiar iniciativas que de fato funcionem, empresas se ofereceram para equipar duas salas de informática em
cada andar, para que os alunos possam aprender tecnologia da
informação em seu tempo livre. Inovação é o que não falta na
escola. Em uma oficina de consertos, que funciona no subsolo,
coordenada por um jovem mecânico, ele mesmo ex-aluno, estudantes voluntários aprendem a consertar bicicletas, e a maior parte
delas é enviada para a África do Sul – país que eles próprios escolheram. O envio é subsidiado por um programa de auxílio ao
Terceiro Mundo.
Um outro exemplo: aos sábados, pais e alunos dominicanos ensinam espanhol aos funcionários públicos designados para
o bairro, em especial aos policiais comunitários, que estão entre
os alunos mais dedicados, ajudando assim a criar laços entre grupos que, a princípio, nutriam desconfiança mútua.
Uma avaliação da escola, realizada pelo Departamento de
Serviço Social da Universidade de Fordham, mostra que o
179
absenteísmo é praticamente desconhecido nessa escola, e que todos
os serviços propostos são intensamente usados. Os alunos que
responderam ao questionário disseram que se sentiam
“respeitados”.
Existe a questão do custo desse tipo de abordagem. O centro social, a clínica, os centros de auto-ajuda e as atividades extracurriculares custam 650.000 dólares por ano, pagos pela CAS,
pelas Fundações e pelo Estado de Nova IorqueIorque. Metade
dos alunos tem acesso a serviços de saúde gratuitos. O município paga pela manutenção, pelas medidas de segurança (os salários dos guardas) e pela apólice de seguros (que é cara, pelo fato
de a escola ficar aberta até tarde).
Os Centros Rheedlen e as Escolas Beacon
Nos Estados Unidos, muitos pais que vivem em bairros
carentes têm medo de mandar seus filhos à escola. A presença de
gangues inimigas pode levar a conflitos sangrentos. A caminhada até a escola é cheia de perigos. Os bairros são povoados por
famílias de pais solteiros, que vivem com medo e sem esperança.
Os Centros Rheedlen foram fundados em 1970, em Nova
IorqueIorque, como resposta ao problema dos jovens que abandonam a escola antes do tempo, e que muitas vezes acabam nas
ruas. Convencidos de que as escolas públicas eram o lugar mais
lógico a partir de onde atendam os problemas dos jovens e de
suas famílias, os centros passaram a oferecer atividades acadêmicas, sociais e de lazer antes e depois das aulas. Graças a uma rede
de educadores e de assistentes sociais, que trabalhavam em cooperação com as famílias para evitar a colocação de menores em
instituições, foi possível ampliar sua área de atuação. Hoje, mais
de 4.000 alunos e suas famílias, e mais 195 idosos, tomam parte
em suas atividades, que têm a finalidade de evitar maus-tratos,
absenteísmo, violência, uso de drogas e gravidez na adolescência. Cada uma dessas atividades recebe do município verbas de
até 450.000 dólares anuais e emprega 75 pessoas em tempo integral e 167 em tempo parcial (Instituto Nacional de Justiça, 1996).
180
As 37 Escolas Beacon de Nova Iorque (inclusive cinco localizadas no Harlem) foram fundadas em 1991, por iniciativa do Prefeito D. Dinkins, quando a epidemia de crack atingiu seu ponto
máximo, e representam uma das iniciativas mais inovadoras dos
Centros Rheedlen, e a escola do Harlem é o melhor exemplo.
Ela fica aberta 365 dias por ano, 14 horas por dia, a jovens entre
cinco e 19 anos, contando inclusive com uma estrutura especial
para oferecer auxílio a famílias em crise. O objetivo geral da Escola Beacon do Harlem é garantir a segurança dos jovens do distrito (para entrar na escola é necessário apresentar uma carteirinha), fortalecer os laços entre eles e seus pais, melhorar seus resultados escolares, iniciá-los nas novas tecnologias, dar-lhes um
futuro e mantê-los afastados do mundo das drogas e do comportamento violento. A técnica consiste em trabalhar tanto com os
jovens quanto com suas famílias.
No Harlem, no número 242 da rua 144 Oeste, no Cullen
Center da Escola Estadual 194, grupos de apoio aos pais,
realizados todas as noites, tentam fornecer recursos para que
os pais possam ajudar a si mesmos e a seus filhos, para que suas
vida tenha sentido. Os pais encontram informação, trocam
pontos de vista com outros pais e obtêm ajuda de profissionais.
A idéia consiste em reconstruir famílias por meio da escola,
num distrito devastado pelas drogas e pela violência.Lá, 64%
dos habitantes vivem com menos de 8.000 dólares por ano, 33%
dependem de auxílio público e apenas 45% trabalham. Em
reuniões, que, em algumas noites, contam com a presença de
100 pessoas, fala-se sobre terapia, nutrição, a luta contra a
depressão, métodos de contracepção, maus-tratos e capacitação
para os pais. Isso faz com que os pais se tornem mais
conscientes, ajudando-os assim a se tornarem pais melhores.
Várias das mães são ex-viciadas em drogas, que admitem ter
submetido seus filhos a maus-tratos, quando eram viciadas.
Outros reclamam de racismo, e de que seus filhos são
injustamente rotulados. O grupo tenta fazer com que eles
recuperem a auto-estima e o orgulho por sua cultura, e ensiná181
los a se comunicar melhor com seus filhos. Oficinas paralelos
buscam a prevenção da violência doméstica. Nos Estados
Unidos, 1.200 crianças fogem de casa. O programa dos
Narcóticos Anônimos ajuda adultos e jovens a se livrar de seu
vício; não é raro ver centenas de pessoas nessas reuniões.
Quem vai a essa escola depois das aulas da tarde, vê pais
digitando seu currículo em computadores, ou tendo aulas de alfabetização, ou aprendendo técnicas para ajudá-los a encontrar
emprego. Em outra parte do prédio, seus filhos fazem o dever de
casa ou conversam com supervisores. Ao mesmo tempo, o centro oferece aos alunos vários tipos de atividades para depois das
aulas, como teatro, esportes, atividades concretas em grupo, visando trazer melhorias ao bairro, mas também apoio psicológico, arbitragem, aconselhamento ou qualificação para obtenção
de emprego, graças aos profissionais que lá permanecem à noite
e durante o verão. Uma das atividades mais populares é a produção de vídeos produzidos pelos próprios alunos e professores, e
integrada ao currículo. Em seu primeiro ano, a atividade ganhou
quatro medalhas de bronze, uma de prata e uma de ouro na Conferência Nacional de Filmes e Vídeos Educacionais.
Como o Harlem é um distrito particularmente violento,
voluntários da escola são treinados para ajudar o bairro a se tornar um lugar mais seguro para as crianças e para as famílias. Eles
são conhecidos como os Pacificadores, e são financiados pelo
governo federal.
Nos conjuntos habitacionais públicos, foi criado um canal
de contato com os inquilinos. A maior parte dos 720 alunos da PS
196 vêm do Projeto Drew Hamilton. Cerca de uma centena deles
está acomodada em quatro estruturas temporárias para desabrigados, próximas da escola. Os inquilinos de cada andar foram contatacdos, para saber quais deles gostariam de trabalhar em parceria
com o centro para criar um ambiente com melhores condições de
vida, e para servir de contato. Outras categorias sociais, como os
idosos ou os desabrigados, também são estimulados a utilizar os
serviços da escola e a se integrar na vida escolar.
182
Antes das eleições, o governo Clinton pretendia transformar
o Centro Cullen do Harlem em modelo nacional. Geoffrey Canada,
autor do livro Of Children and Weapons, é quem dirige o centro do
Harlem. “Nós esquecíamos o papel dos pais na preparação de seus
filhos para serem bons cidadãos”, comenta ele. “Se fortalecermos
os pais, as funções assumidas pela escola melhoram”.
As Escolas Beacon são avaliadas todo mês pelo Instituto
de Desenvolvimento da Juventude. Cada escola fornece resultados semanais sobre os índices de presença em seus programas.
O rendimento escolar, a evasão, o uso de drogas, o relacionamento entre adultos e jovens e a aparência geral do bairro também estão sujeitos a avaliação.
Pode-se prosseguir indefinidamente nessa listagem de experiências locais, como a experiência de Flint, em Michigan, que
conta com o apoio da Fundação Mott, ou a experiência das escolas mantidas por universidades, ou o Programa de Oportunidades Quantum, apoiado pela Fundação Ford e pelo Ministério do
Emprego, ou a experiência das escolas CIS, que operam em 26
estados e atendem 120.000 alunos por ano. Vamos concluir com
seu modo de divulgação. Se tivermos que nos ater apenas a uma
única idéia, ela seria a seguinte: os americanos sabem comunicar
aquilo que funciona. Eles o fazem de forma horizontal, de uma
escola a outra, de um distrito a outro, de uma cidade a outra,
graças a estruturas intermediárias que facilitam o conhecimento
de boas práticas. A cada ano, fundações concedem prêmios às
experiências bem sucedidas, ou decidem apoiá-las de forma contínua. As escolas e as associações recebem uma grande quantidade de manuais e vídeos, e as administrações voltadas para a juventude cooperam com as autoridades locais na divulgação das
boas práticas. Depois de avaliar os programas, as organizações
de pesquisa também divulgam suas publicações. Eu citei o Urban Institute, que analisou o Programa Criança em Risco, mas
poderia também mencionar a Universidade de Brandheis ou o Programa Quantum. A informação vem também de baixo para cima,
graças a profissionais que freqüentam reuniões sobre a prevenção
183
da violência e falam à mídia e aos meios políticos. Uma experiência bem sucedida pode ser divulgada por meio dos escalões federais, que se propõem a dar apoio financeiro a outras estruturas
que se interessem pela experiência. Mas as experiências escolhidas não são necessariamente as melhores. O programa DARE,
que tem como objetivo lidar com o problema das drogas e que
recebeu quase um bilhão de dólares em subsídios federais, não
parece ter provocado uma mudança fundamental, na prática. No
entanto, ele continua a ser reproduzido em escala local, porque
conta com a participação da polícia e, por essa razão, dá uma
sensação de segurança aos políticos (Glass, 1997). Os enfoques
verticais e setoriais vêm sendo questionados, como se por efeito
de um esgotamento da capacidade de imaginação, enquanto novos parceiros se dedicam a reintepretar os padrões adotados.
Começam a aparecer metamorfoses nas formas de pensamento,
na legitimidade e na eficácia desses padrões.
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185
INTIMIDAÇÃO POR COLEGAS
E MANEIRAS DE EVITÁ-LA
Peter K. Smith
Nos últimos dez ou vinte anos, a intimidação por colegas
(bullying) nas escolas transformou-se num tópico que vem despertando interesse em muitos países. Começando com pesquisas
realizadas na Escandinávia e, em seguida, no Japão, no Reino
Unido e na Irlanda, esse estudo vem hoje tendo lugar na maioria
dos países europeus, na Austrália e na Nova Zelândia, no Canadá
e nos Estados Unidos (Smith et al., 1999). Na análise deste tema,
começarei por definir o que queremos dizer por “intimidação”,
passando então a resumir as constatações recentes sobre a natureza dessa intimidação, a discutir os resultados das intervenções
de larga escala que tiveram como base as escolas e a levantar
algumas questões que ainda se apresentam como problemáticas
nos trabalhos de intervenção e que talvez venham a ser úteis para
nossa prática futura.
O QUE QUEREMOS DIZER POR
“INTIMIDAÇÃO”?
A intimidação geralmente é vista como um subconjunto dos
comportamentos agressivos, sendo caracterizada por sua natureza
repetitiva e por desequilíbrio de poder (ver, por exemplo, Olweus,
1999, Figura 1.1). Esses comportamentos geralmente são vistos como
repetitivos, ou seja, a mesma vítima é tomada como alvo inúmeras
vezes. Além disso, por uma ou mais razões, a vítima não consegue
se defender com facilidade. Ele ou ela pode estar em minoria, pode
187
ser de menor tamanho ou força física, ou apresentar menos flexibilidade psicológica que o autor ou os autores da intimidação. A definição “abuso de poder sistemático” (Smith e Sharp, 1994) também
consegue captar bem essas duas características.
Embora esses dois critérios (natureza repetitiva e desequilíbrio de poder) não sejam de aceitação universal, eles são hoje
largamente empregados. De fato, a intimidação, por sua própria
natureza, tende a ter características (como, por exemplo, o medo
que a vítima tem de apresentar queixa) e resultados (tais como o
desenvolvimento de baixa auto-estima e depressão na vítima)
específicos. A condição relativamente indefesa da vítima, além
disso, gera a obrigatoriedade da intervenção externa, caso se levem a sério os direitos democráticos da vítima.
Em face das definições acima, a intimidação pode acontecer em muitos contextos – o local de trabalho, a casa da família,
as forças armadas, as prisões etc. Aliás, temas como a intimidação no local de trabalho vêm despertando crescente interesse
por parte dos pesquisadores. Também nas escolas, é possível
pensar em termos de intimidação de professor-a-professor, de
professor-a-aluno, de aluno-a-professor, tanto quanto de alunoa-aluno. No entanto, as pesquisas, até os dias de hoje, vêm-se
concentrando principalmente na intimidação de aluno-a-aluno, e
é desse tipo de intimidação que tratarei em meu capítulo.
COMO FICAMOS SABENDO SOBRE A
INTIMIDAÇÃO?
A obtenção de dados sobre a intimidação nas escolas apresenta dificuldades óbvias. Mesmo assim, existem alguns métodos que podem ser usados. Os principais, dentre eles, são:
- Queixas apresentadas por professores e pais; que são de
valor limitado, uma vez que os professores e os pais geralmente desconhecem boa parte da intimidação que de
fato ocorre.
188
- Depoimentos dos próprios alunos, de terem ou não praticado intimidação, ou participado de intimidação (em
geral ao longo de um período determinado de tempo).
Esses depoimentos são amplamente empregados em
questionários anônimos, dentre eles o questionário
Olweus (Olweus, 1993) e o questionário A Vida nas
Escolas (Arora, 1994).
- Nomeação pelos colegas, em resposta a perguntas sobre quem intimida e quem é vítima de intimidação. Este
talvez seja o método mais confiável para o trabalho com
base em sala de aula. Dois dos instrumentos usados são
o de Rigby e Slee (1991) e a Escala dos Papéis dos Participantes, de Salmivalli (1996).
- Observação direta dos comportamentos, no pátio de recreio, por exemplo. Pepler e Craig (1995), por exemplo,
usam microfones de rádio e uma câmera de telefoto.
Essas observações são de alta validade, embora sejam
dispendiosas e exijam um grande investimento de tempo na sua realização e análise.
- Entrevistas com indivíduos e com grupos de quatro a
oito alunos (Owens, Shute e Slee, 2000) e registros de
incidentes mantidos pelas escolas são outras maneiras
de obter informações.
TIPOS DE INTIMIDAÇÃO
Embora exista uma série de tipologias de agressão e de intimidação, as principais delas são:
- Físicas: bater, chutar, socar, tomar os objetos pessoais;
- Verbais: implicar, insultar (incluindo as novas formas,
como intimidação por e-mail e por telefone);
- Exclusão social: “você não pode brincar conosco”;
- Indiretas: espalhar boatos maldosos, dizer a alguém para
não brincar com um colega.
189
OS PAPÉIS NA INTIMIDAÇÃO
Os papéis tradicionais extraídos dos dados obtidos em questionários de nomeação pelos colegas são: intimidador, vítima, nãoparticipantes (nem intimidador nem vítima), além dos alunos intimidadores-vítimas (alunos que são tanto intimidadores quanto vítimas). Além disso, as vítimas muitas vezes são subdivididas em
vítimas passivas e vítimas agressivas, dependendo de sua reação típica, esta última categoria podendo se sobrepor às vítimas provocadoras, ou intimidadores-vítimas.
Salmivalli et al. (1996) refinaram ainda mais esse processo,
descrevendo os seis papéis dos participantes na intimidação. Salmivalli descreve os intimidadores-líderes (os que tomam a iniciativa
da intimidação), os intimidadores-seguidores (que se juntam ao líder), os reforçadores (que incentivam os intimidadores e riem das
vítimas), os defensores (que defendem as vítimas), os circunstantes
(que se mantêm à margem) e as próprias vítimas. Usados com
relação a adolescentes finlandeses, esses papéis mostraram-se úteis
também para caracterizar o que se passa entre crianças inglesas
de sete a dez anos (Sutton e Smith, 1999).
ALGUMAS CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS
DA INTIMIDAÇÃO
Muito já foi descoberto sobre a natureza da intimidação,
principalmente a partir dos levantamentos de larga escala que
usam questionários de autodepoimentos anônimos. Muitas dessas conclusões se repetem em diferentes estudos e em diferentes
culturas (Smith et al., 1999). Aqui, mencionarei apenas algumas
dentre as principais.
Diferenças quanto a idades características surgem a partir
dos levantamentos de autodepoimentos: os autodepoimentos de
ter sido vítima declinam dos oito aos 16 anos, o que já não acontece com os autodepoimentos de intimidar outros (Smith, Mad190
sen e Moody, 1999). Com a idade, ocorre também uma outra
mudança: a intimidação deixa de ser física, passando a formas
mais indiretas e relacionais (Björkvist, Lagerspetz e Kaukiainen,
1992). Diferenças típicas também são encontradas entre os sexos. Os meninos são mais numerosos na categoria dos intimidadores, ambos os sexos aparecendo em números eqüivalentes na
categoria de vítima. Os meninos tanto praticam quanto sofrem
mais intimidação física e, no caso das meninas, a intimidação
ocorre de forma mais indireta e relacional.
Uma das conclusões mais constantes, e que é de grande
significado para o trabalho de intervenção, é que uma parcela
substancial das crianças que se disseram vitimadas afirmaram
nunca ter informado ninguém, nem professores nem familiares,
a respeito da intimidação. Essa proporção dos que jamais falaram sobre o assunto cresce com a idade. Também, é menos comum que as vítimas de sexo masculino dêem queixa do que as de
sexo feminino.
Outras conclusões tratam das atitudes com relação à intimidação encontradas no grupo de colegas. Embora a maioria
dos alunos afirme não gostar de intimidação, uma minoria significativa diz que seria capaz de se juntar a ela. O que talvez seja
surpreendente é que essas atitudes “pró-intimidação” ou “antivítima” aumentam até as idades de 14-15 anos (após as quais elas
passam a diminuir). Essas atitudes antivítima são mais marcantes
nos meninos que nas meninas – e, principalmente nos meninos
com relação a vítimas também de sexo masculino (Olweus e
Endressen, 1988).
AS CAUSAS DA INTIMIDAÇÃO
Os comportamentos agressivos e as desigualdades de poder são comuns nos grupos humanos, inclusive nos grupos de
colegas nas escolas, de modo que a intimidação pode ser tentadora. A extensão e a natureza da ocorrência de intimidação, contudo,
191
sofre a influência de diversos fatores. No nível mais amplo estão
as variáveis sociais e comunitárias, tais como o nível de violência
e de tolerância para com os comportamentos intimidadores na
sociedade em geral e na comunidade local, e a maneira pela qual
a intimidação é mostrada nos meios de comunicação de massa.
As escolas, por sua vez, podem dar maiores ou menores oportunidades para a ocorrência de intimidação, em termos da natureza
do ambiente escolar e do tipo de valores éticos que ali prevalecem, de haver ou não uma política escolar que de fato funcione e
sanções contra a prática da intimidação, e de quais são as atitudes dos grandes grupos de colegas, na escola. Além disso, algumas crianças correm maiores riscos de virem a desempenhar o
papel de vítima, ao passo que outras obtêm um prazer especial
dos comportamentos intimidadores.
Os fatores de risco individuais de vir a ser vitimado
Verificou-se que o contexto do grupo de colegas é um prenúncio importante do risco de vir ou não a ser vítima. Hodges,
Malone e Perry (1997) sugerem que os fatores de risco abrangem
ter poucos amigos, principalmente amigos em quem se possa
confiar e que não sejam de condição social inferior; e a rejeição
sociométrica (não contar com a simpatia dos colegas).
Um outro grupo de fatores de risco relaciona-se ao ambiente familiar. Por exemplo, há indícios de que algumas vítimas
vêm de famílias superprotetoras ou excessivamente apegadas
(Smith e Myron-Wilson, 1998). Talvez essas crianças não tenham
desenvolvido, dentro da família, as capacidades de autoconfiança e de independência que lhes seriam úteis no grupo de colegas.
Crianças portadoras de deficiências
Ser portador de uma deficiência ou apresentar necessidades educacionais especiais é um outro fator de risco de vir a se
tornar vítima. As crianças com necessidades especiais correm riscos de duas a três vezes superiores de virem a ser intimidadas, e
também têm maiores probabilidades de vir a intimidar outras
192
crianças (Nabuzoka e Smith, 1993). Entre as possíveis razões para
tal constam:
- características particulares, que fazem delas um “alvo”
óbvio;
- em ambientes de crianças normais, essas crianças geralmente têm maiores dificuldades de integração social, e
falta-lhes a proteção fornecida pelas amizade;
As crianças que apresentam problemas de comportamento
podem agir de forma agressiva, tornando-se assim “vítimas provocadoras”.
Intimidação racista e homófoba
As crianças podem sofrer caçoadas e xingamentos racistas,
e já foi demonstrado que aquelas que não são de etnia branca
sofrem mais xingamentos racistas (embora não necessariamente
de outras formas de intimidação) que as crianças brancas da
mesma idade e do mesmo gênero. Nas escolas secundárias, os
jovens podem sofrer caçoadas devido a sua orientação sexual,
podendo até mesmo ser agredidos ou ridicularizados por colegas
ou professores, por essa razão (Rivers, 1995).
Os fatores de risco individuais de vir a praticar
intimidação
Além dos fatores de temperamento (como ser facilmente
irritável), os fatores familiares costumam ser citados como fatores de risco para as crianças que persistentemente praticam intimidação. O mais comum é que essas crianças venham de famílias
às quais falta atmosfera de afeto, nas quais há muita violência e a
disciplina é inconsistente. Pais que foram intimidadores em seus
tempos de escola tendem a ter filhos que praticam intimidação
(Farrington, 1993; Olweus, 1993). As crianças que são tanto intimidadoras quanto vítimas (vítimas agressivas) talvez venham de
famílias particularmente perturbadas ou violentas (Schwartz,
Dodge, Pettit e Bates, 1997).
193
OS EFEITOS DE SOFRER INTIMIDAÇÃO
As vítimas de intimidação muitas vezes sofrem de ansiedade
e depressão, baixa auto-estima e queixas físicas e psicossomáticas
(Williams et al., 1996). Em casos extremos, elas podem vir a cometer suicídio (Kaltiala-Heino et al., 1999). Hawker e Boulton (2000),
realizando uma meta-análise de uma série de estudos, concluíram
que a vitimização estava fortemente associada à depressão, moderadamente associada à auto-estima social e global e menos associada à ansiedade. Na interpretação dessas conclusões, há questões
de causa e efeito. Talvez a vitimização cause os efeitos negativos,
ou pode ser também que o fato de ser deprimido e de ter pouca
auto-estima ajude a tornar um aluno mais suscetível à intimidação.
No entanto, estudos retrospectivos com adultos sugerem um possível impacto da vitimização na infância e indicam que alguns desses efeitos podem ser de longo prazo (Hugh-Jones e Smith, 1999).
Além disso, estudos longitudinais sugerem que ambos os processos possam ser atuantes (Kochenderfer e Ladd, 1996).
AS INTERVENÇÕES DE BASE ESCOLAR DE
COMBATE À INTIMIDAÇÃO
Embora parte das causas da intimidação residam na própria natureza humana, nas pressões socioeconômicas colocadas
sobre as famílias e sobre a criação dos filhos e em aspectos culturais, que incluem atitudes com relação à violência e representações mostradas na mídia, as escolas – mesmo quando os alunos
vêm de ambientes semelhantes – variam muito quanto à ocorrência da intimidação. Os fatores de natureza escolar parecem
ser importantes. Por essa razão, e também por ser relativamente
mais fácil trabalhar nas escolas do que tratar das questões mais
amplas de ordem social e familiar, as intervenções de combate à
intimidação por parte das escolas vêm-se constituindo numa
maneira normativa de lidar com a intimidação.
194
Uma série de métodos de intervenção por parte das escolas já foram usados, alguns deles mostrados na tabela I. A discriminação dos tipos de esquemas de apoio por colegas, que, ultimamente vêm recebendo grande atenção (Cowie 2000) é mostrada na tabela II. Primeiramente, examinaremos três intervenções de larga escala utilizadas em diferentes países.
Tabela I
Tipos de intervenção de base escolar
Tabela II
Tipos de esquemas de apoio de colegas
Intervenções de larga escala na Noruega
A primeira campanha de base escolar de larga escala foi
realizada, em nível nacional, na Noruega. Essa campanha foi lançada em 1983 e constou da realização de levantamento nas escolas, material e vídeos distribuídos entre professores, aconselhamento aos pais e publicidade na mídia. Temos informações sobre duas avaliações dos trabalhos de combate à intimidação na
195
Noruega, uma delas relativa a essa campanha nacional (Roland)
e uma outra relativa à campanha nacional, suplementada por um
programa de intervenção mais desenvolvido e de maior amplitude (Olweus).
O relatório mais conhecido, e que não apenas influenciou,
mas também transformou-se num marco para as intervenções
futuras, foi o de Olweus (1993), que monitorou 43 escolas, em
Bergen. Usando seu questionário de autodepoimento, e comparando grupos de faixas etárias equivalentes, ele verificou que, de
1983 a 1985, as práticas de intimidação auto-relatadas diminuíram em 59%, tanto para os meninos quanto para as meninas.
Foram verificadas também reduções nos comportamentos antisociais. Não houve aumento dos depoimentos de intimidação fora
da escola. Essa encorajadora conclusão teve ampla divulgação, e
veio a inspirar boa parte dos trabalhos subseqüentes.
Roland (1989) monitorou 37 escolas em Stavanger. Ele
concluiu que, de 1983 a 1986, não houve declínio claro da vitimização, embora tenha havido uma discreta correlação dos resultados positivos com o uso dos materiais, pelas escolas.
Qual seria a razão de tamanha diferença entre esses dois
relatórios? Duas das possibilidades são a diferença dos períodos
de tempo – o relatório de Stavanger foi realizado três anos após
a campanha, e não dois – e a assistência prestada às escolas – no
estudo de Bergen, a intervenção foi seguida de um maior grau de
apoio, ao passo que, em Stavanger, os pesquisadores apenas retornaram após um intervalo de três anos para aplicar os questionários de avaliação.
Trabalhos noruegueses mais recentes, dirigidos por Roland
(2000), vêm sendo direcionados mais para a atmosfera em sala
de aula, usando mais os próprios alunos, mas esses estudos não
passaram ainda por avaliação.
Intervenções de grande escala no Reino Unido
O maior programa de intervenção, no Reino Unido, foi o
projeto do DFE de Sheffield, realizado em 1991-1994 (Smith e
196
Sharp, 1994). A equipe trabalhou com 23 escolas, 16 primárias e
sete secundárias, por quatro períodos de intervenção, entre 1991
e 1993. Cada equipe desenvolveu uma política total para a escola, escolhendo a partir de um leque de alternativas (ver tabela I).
Foi verificada uma redução de cerca de 17% nos casos de vitimação nas escolas primárias e pequenas reduções (entre 3 a 5%) em
cinco das sete escolas secundárias. Nas escolas secundárias, contudo, ocorreu um aumento substancial na disposição de informar a ocorrência de vitimização aos professores. Além disso,
verificou-se também uma correlação positiva entre o total do
esforço (na avaliação tanto da equipe de pesquisa quanto dos
alunos) e os resultados obtidos.
O Projeto de Flandres
Os resultados de um outro programa de intervenção foram relatados por Stevens et al. (2000) na região belga de Flandres. A equipe trabalhou com 18 escolas, primárias e secundárias. Em grupos correspondentes de seis, essas escolas foram submetidas ou a Tratamento (política total para a escola, trabalho
curricular, trabalho com os intimidadores) com Apoio (por parte
da equipe de pesquisa); ou a Tratamento sem Apoio; ou a Controle (nenhum Tratamento, nenhum Apoio). A comparação entre Tratamento e Controle sugeriu um “padrão misto de mudanças
nas escolas primárias e mudança zero nas escolas secundárias.
Verificou-se também que o Apoio dado pela equipe de pesquisa,
surpreendentemente, fez pouca diferença.
Outras intervenções de larga escala tiveram lugar em Toronto, no Canadá (Pepler et al., 1993), e na Andaluzia, na Espanha (Ortega e Lera, 2000). Houve também duas réplicas bastante semelhantes do programa de Olweus, em Schleswig-Holstein,
na Alemanha (Hanewinkel e Knaack, 1997) e na Carolina do Sul,
nos Estados Unidos (Olweus e Limber, 1999). Uma intervenção
em turmas de jardim de infância, em Berna, na Suíça, foi relatada
por Alsaker e Valkanover (2001). Os resultados completos das
avaliações de todas essas intervenções ainda não se encontram
197
totalmente disponíveis, mas, de modo geral, os resultados parecem ser muito variados (Smith e Ananiadou, no prelo). Em particular, as réplicas ocorridas em Schleswig-Holstein e na Carolina do Norte certamente não replicam o grau de sucesso dos resultados de Bergen.
No exame do impacto dessas intervenções com base na escola, há uma série de questões a serem levadas em conta. Uma das
questões mais importantes é determinar se essas intervenções são
suficientes. Lidar com a pobreza e com a privação no nível das
comunidades e incentivar um melhor funcionamento das famílias
(por exemplo, por meio de apoio aos pais, aconselhamento e cursos de treinamento, ou através de meios legais, como proibir por
lei os castigos corporais severos) talvez sejam medidas de importância vital, que terão que ser tomadas. Mesmo assim, há razões
para crer que até mesmo as intervenções com base na escola, adotadas isoladamente, podem surtir algum efeito. Algumas das questões relativas à maximização do impacto e da eficácia das intervenções com base na escola são mencionadas abaixo.
Sabemos lidar com a intimidação entre meninas?
Meninos e meninas tendem tanto a empregar quanto a sofrer tipos diferentes de intimidação – a dos meninos é mais física, e a das meninas, mais indireta e relacional. Boulton (1997)
verificou que os professores das escolas inglesas sabiam reconhecer as formas físicas e verbais de intimidação, mas menos da
metade deles considerava a exclusão social como sendo intimidação. Eslea e Smith (1998), num acompanhamento de escolas
primárias, no projeto de Sheffield, Reino Unido, verificaram uma
maior redução na intimidação praticada por meninos do que na
usada por meninas. É bem possível que a intimidação física, mais
característica dos meninos, e a intimidação verbal, encontrada
igualmente em ambos os sexos, seja bem reconhecida e tratada
nos materiais dos programas de intervenção e das políticas de
combate à intimidação, mas, talvez, as formas indiretas de intimidação, como a exclusão social, não sejam tão bem reconheci198
das e visadas. Se isso for verdade, é possível que o impacto de
nossas intervenções não seja tão eficaz sobre a intimidação praticada por meninas (Owens et al., 2000).
Sabemos lidar com os diferentes papéis nas relações
intimidador-vítima?
Os papéis descritos por Salmivalli nos levam a perguntar
se, nos trabalhos de intervenção, não deveríamos fazer mais do
que simplesmente pensar em termos de “intimidadores” e “vítimas”. Por exemplo, Sutton, Smith e Swettenham (1999) verificaram que alguns intimidadores, principalmente os líderes, são muito
hábeis na manipulação social e nas “teorias da mente”, embora
lhes falte empatia. Além disso, Kaukiainen et al. (1999) descobriram que a inteligência social está relacionada à agressão, em especial à agressão indireta. Quais as implicações desses estudos
para os trabalhos de intervenção? No mínimo, que algumas formas de “treinamento de capacidades sociais” seriam inadequadas para os intimidadores (embora o treinamento em empatia
talvez não o fosse).
O que dizer dos Circunstantes?
Da forma semelhante, o papel do Circunstante, e também
o do Defensor, merecem mais atenção nos programas de intervenção. Como podemos mobilizar de modo mais positivo as atitudes e os comportamentos das crianças não-envolvidas, ou transformar Circunstantes em Defensores? Em muitas escolas, foram
desenvolvidos programas de apoio entre colegas que, pelo menos em parte, têm objetivos dessa ordem (ver tabela II). Esses
programas, entretanto, necessitam de muito mais avaliação do
que eles receberam até o presente (Cowie, 2000; website do apoio
de colegas). Um dos problemas é que é mais fácil recrutar meninas do que meninos para o trabalho de apoio a colegas. Além
disso, o status social dos que trabalham no apoio a colegas talvez
seja uma variável importante para que bons resultados sejam alcançados. No entanto, há indícios de que os esquemas de apoio
199
entre colegas sirvam como incentivo para que as vítimas de intimidação busquem apoio com maior freqüência, seja de um colega ou de um adulto (Naylor e Cowie, 1999).
Será que começamos as intervenções cedo o
suficiente?
Os papéis tanto de Intimidador quanto de vítima parecem
já ter-se tornado bastante estáveis, nos meados da infância. Nos
anos de do ciclo inferior da escola secundária, esses papéis já são
relativamente estáveis. Nos Estados Unidos, Egan, Monson e
Perry (1998) examinaram os sinais prenunciadores de agressividade e vitimização numa amostra de crianças entre oito e 13 anos:
os comportamentos agressivos verificados no outono prenunciavam comportamentos agressivos na primavera seguinte. Do
mesmo modo, a vitimização ocorrida no outono anterior prenunciava vitimização na primavera seguinte. Hodges e Perry
(1999) examinaram a continuidade da vitimização no decorrer
dos anos intermediários da infância ao longo de um período de
um ano, e informaram que a vitimização inicial respondia por
71% da variação verificada na vitimização, um ano mais tarde.
Na Inglaterra, Boulton e Smith (1994) informaram que tanto os
papéis de intimidador quanto os de vítima demonstravam grande estabilidade num grupo de crianças de oito a nove anos.
Mas, e antes disso? Monks, Smith e Sweetenham (trabalho
apresentado) verificaram que entre quatro e seis anos, a condição de intimidador já tem alguma estabilidade (nessa idade, o
termo “agressivo” talvez seja mais adequado que “intimidador”),
embora a condição de vítima não tenha ainda adquirido estabilidade. Kochender e Ladd (1996) também encontraram baixa estabilidade no papel de vítima nos jardins de infância americanos.
Se isso vier a ser corroborado em estudos futuros, a sugestão é
que, entre cinco e seis anos, e entre oito e nove anos, algumas
crianças estão se estabilizando no papel de vítima, sendo talvez
rotuladas como tal pelos colegas e dando início a um círculo vicioso de comportamento e reputação, do qual talvez seja cada
200
vez mais difícil escapar. Nesse caso, será que não deveríamos
intervir mais cedo, com o objetivo de ajudar a evitar que alunos
se transformem em “vítimas”?
Quanto duram os efeitos?
Será que alguns dos efeitos se mantêm após o término da
intervenção? Pode haver a tentação de uma escola “lidar” com a
intimidação, sentindo então que seu trabalho está feito. Mas todas as indicações e todo o conhecimento que temos sobre a questão sugerem que o trabalho de combate à intimidação, nas escolas, tem que ser um processo contínuo. As normas gerais da escola tem que ser revisada e renovada, talvez a cada ano. Eslea e
Smith (1998), num acompanhamento de quatro escolas primárias, no projeto de Sheffield, Reino Unido, realizado um ano após
o término da intervenção, verificaram que as reduções da intimidação permaneciam apenas nas escolas que mantiveram viva sua
política. Que incentivos existem no sentido de mantê-las vivas?
Será que a exigência legal de que as escolas combatam a intimidação, tal como hoje acontece na Suécia, na Inglaterra, na Finlândia e em Malta (Ananiadou e Smith, 2002) produz efeitos positivos nesse sentido?
Em suma, a intimidação nas escolas é um problema que
atinge a todos, e é hoje amplamente reconhecido como tal em
muitos países. Ela afeta uma minoria significativa dos alunos,
podendo ter efeitos negativos tanto imediatos quanto de longo
prazo, principalmente nas vítimas, mas também sobre a atmosfera da escola como um todo.
Há causas de diversos tipos para a intimidação e a vitimização, indo desde fatores sociais e comunitários, passando por fatores
relativos à própria escola, até variáveis de natureza psicológica, relacionadas às diferenças individuais e ao funcionamento da família.
As intervenções com base nas escolas podem ser úteis para lidar
com os fatores individuais e escolares, mas não se pode esperar que
elas venham a ter grande impacto sobre as variáveis sociais e comunitárias, por um lado, ou sobre as variáveis familiares, por outro.
201
As intervenções de base escolar de larga escala já foram
avaliadas em diversos países, com êxito moderado – mas, ao que
tudo indica, com maior êxito nas escolas primárias que nas secundárias. Ainda há muito a ser aprendido sobre como formular
e implementar programas eficazes de intervenção. Em especial,
talvez tenhamos que examinar maneiras de preservar a eficácia
das intervenções, após o ímpeto imediato, ou o programa de pesquisa ter chegado ao fim; maneiras de lidar com a intimidação
indireta, e não apenas com a direta; maneiras de lidar com os
diferentes papéis presentes na intimidação e de mobilizar maiores grupos de colegas, para dar apoio às vítimas; e maneiras de
intervir precocemente na vida escolar, para evitar que algumas
crianças sejam rotuladas de vítimas. O combate eficaz à intimidação não vai ser fácil, mas ele é um objetivo que vale a pena
perseguir, para a felicidade de nossas crianças e o bem-estar das
comunidades escolares.
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205
A MERCANTILIZAÇÃO
DA VIOLÊNCIA ESCOLAR
John Devine, Ph.D.
Num estudo recente e cuidadosamente formulado, o Centro Nacional de Avaliação de Ameaças do Serviço Secreto dos
Estados Unidos verificou, entre muitas outras conclusões, que,
hoje, circulam livremente nos Estados Unidos 47 adolescentes
que sabiam de antemão que ataques armados a escolas iriam ocorrer – ataques como o da Columbine High School, em Littleton,
Colorado, quando os agressores, intencional e premeditadamente, planejaram o ato e mataram 12 de seus colegas, um professor
e a si mesmos. Os futuros assassinos haviam dado a esses colegas
uma idéia do que pretendiam fazer, e chegaram até a dizer-lhes
onde eles deveriam se postar para ter uma visão melhor do massacre. A mim, pessoalmente, essa informação me constrange, pois
ela vem confirmar uma de minhas lembranças mais angustiantes,
de quando meus alunos de pós-graduação, que trabalhavam como
mentores em escolas secundárias de Nova Iorque, me relatavam
que algum dos jovens com quem eles vinham trabalhando havia
contado a eles que estava prestes a cometer – ou tentado a cometer – um crime grave. Um desses alunos de escola secundária,
por exemplo, confidenciou que ele e seus amigos estavam planejando para o próximo fim-de-semana jogar do telhado um bloco
em brasa na cabeça de um guarda de um conjunto habitacional
público de quem eles não gostavam. Felizmente, os estudantes
universitários conseguiram fazer com que o jovem pensasse melhor nas possíveis conseqüências, evitando assim o ato.
Inicio minha apresentação com essa observação, porque
ela ilustra tanto as vantagens quanto as desvantagens das atuais
207
metodologias de pesquisa sobre a violência escolar que hoje predominam nos Estados Unidos, e dos pressupostos políticos e
socioculturais que as embasam. Proponho-me a criticar esses
pressupostos hoje, aqui, com vocês, mas, ao fazê-lo, de modo
algum pretendo condenar em bloco essa vertente de pesquisa –
principalmente nos casos em que ela oferece percepções e conclusões que poderiam ser férteis para a formulação das políticas
públicas, o que seria o caso do exemplo que acabo de citar.
Eu, de início, gostaria também de me desculpar com esta
platéia internacional, pelo fato de a maioria de meus comentários tratarem de pesquisas, práticas e políticas referentes exclusivamente aos Estados Unidos. Mas minhas intenções não são tão
etnocêntricas quanto a princípio podem parecer. Embora, nos
últimos anos, venham ocorrendo nos Estados Unidos avanços
muito animadores em nossa compreensão da natureza e da gênese da violência entre os jovens – e, mais especificamente, da violência escolar – o objetivo de meus comentários será o de sugerir
que os demais países devem ter muita cautela ao adotar algumas
das abordagens de prevenção da violência hoje empregadas nos
Estados Unidos.
Já deve ter ficado claro, neste ponto, que vejo como profundamente falhas as pesquisas americanas mais ortodoxas no
campo da violência escolar. Começarei passando em revista a
sabedoria convencional. Não me refiro aqui à sabedoria convencional do “homem da rua”, mas aos pressupostos que embasam
as pesquisas mais influentes, os relatórios financiados pelo governo e os centros de “prevenção da violência” de maior poder.
O problema mais básico, creio eu, é que, tradicionalmente, os
estudiosos da violência escolar começam sua pesquisa perguntando: “Por que razão os indivíduos se tornam violentos?” Espero poder demonstrar que essa pergunta é um equívoco.
Esses estudos, quase que fatalmente, terminam sempre por
nos assegurar que, apesar desses ataques recentes terem provocado grande ansiedade no público quanto à segurança das escolas, estas, em termos nacionais, continuam sendo “lugares relati208
vamente seguros”. Somos informados de que, se comparadas às
casas de família e aos bairros, – principalmente os bairros altamente conturbados – as escolas registram um número inferior
de homicídios e de ferimentos fatais. Poder-se-ia pensar – pelo
menos até tempos muito recentes – que essa conclusão é bastante óbvia. Uma das principais características das pesquisas tradicionais é sua obviedade.
Os estudos aos quais me refiro insistem na necessidade de
aplicar “os mais altos padrões científicos” e “métodos de investigação rigorosos”. Eles, portanto, privilegiam estudos experimentais e, num nível ligeiramente mais alto de abstração, metaanálises que fornecem métodos estatísticos para a avaliação das
conclusões de um grande número de estudos. Coleta de dados
em larga escala, estudos sobre a população em geral usando amostragens probabilísticas e estudos longitudinais com base em questionários são abordagens exigidas, para que as pesquisas venham
a ser aceitas pela “comunidade científica” em geral. As verificações anteriores, dizem eles, têm que ser replicadas, de modo a
comprovar sua objetividade. A comunidade das ciências sociais
parece querer imitar a das “ciências pesadas”, ou até mesmo superá-la em termos de seu enfoque positivista. Dessa perspectiva
exclusiva, os estudos qualitativos isolados e os estudos de caso
de uma única escola, a etnografia e todo o campo da antropologia educacional se tornam altamente suspeitos.
Tudo isso, é claro, é totalmente compreensível. A platéia a
que, em última análise, esses estudos são dirigidos é a comunidade das políticas públicas – as repartições públicas, os parlamentares, os legisladores e os advogados de todos os níveis, que estão sempre prontos a abater argumentos com argumentos contrários. Daí a necessidade de “rigor” nos estudos científicos, de
refutação de pontos de vista contrários e de certeza científica.
Em minha própria área, que é a antropologia, esse discurso teórico positivista, há mais de duas décadas, vem sendo contestado
por perspectivas mais hermenêuticas, mais interpretativas, mais
fenomenológicas, com raízes na filosofia da Europa continental.
209
Mas nenhuma notícia sobre esses avanços parece ter chegado
aos ouvidos dos cientistas sociais que têm influência sobre as
políticas públicas, quanto mais dos próprios formuladores de
políticas. Os enfoques mais etnográficos são rotulados de meramente “ilustrativos” ou subjetivos, e são totalmente marginalizados (Clifford e Marcus, 1986).
Esse tipo de ciências sociais positivistas e alimentadas por
estatísticas gerou – nos Estados Unidos, pelo menos – um “grande consenso” na área da prevenção da violência. Minha sugestão é que examinemos os principais pontos desse consenso teórico, submetendo-os à crítica dos estudos de natureza mais
interpretativa, da etnografia que emana das práticas cotidianas
e da experiência de baixo para cima” dos pais, dos professores
e dos próprios alunos.
É óbvio que a questão específica da violência escolar deva
ser examinada dentro do contexto mais amplo da violência adolescente que hoje vem ocorrendo nos Estados Unidos. Nesse
contexto, qual a principal tese do “grande consenso”? Um estudo sobre homicídios nas escolas, realizado pelas principais agências do governo federal (Centro de Controle de Doenças, Departamento de Educação e Departamento de Justiça) nos fornece uma pista. Esse estudo identificou 68 assassinatos de estudantes, ocorridos nas escolas ou em suas proximidades, no decorrer
de um período de dois anos (1992-1994). A conclusão a que se
chegou foi que esses assassinatos representavam menos de 1%
dos homicídios cometidos por jovens em geral, em todo o país,
durante aquele mesmo período. Um estudo de acompanhamento veio a atualizar esses dados até junho de 1999, tendo identificado 177 assassinatos num período de cinco anos (a grande maioria deles com uso de armas de fogo), e continuando a insistir
que os homicídios associados a escolas representavam ainda 1%
do total dos homicídios cometidos por jovens. Desse modo, apesar dos muitos homicídios de vítimas múltiplas ocorridos nas
escolas americanas em fins da década de 90, vimos sendo constantemente assegurados de que os homicídios e as agressões não210
fatais ocorridos nas escolas vêm apresentando declínio, e que os
índices de criminalidade grave e violenta são mais baixos nas escolas que fora delas.
Qual o motivo desses asseguramentos periódicos de que “as
coisas não são tão más assim”? Creio que os motivos sejam dois,
ambos perfeitamente compreensíveis: o primeiro pode ser chamado de o motivo do “status quo”, e o segundo, de o motivo “liberal”. Os educadores, superintendentes de escolas, prefeitos e administradores estaduais e federais, como integrantes do sistema,
não querem criar, entre os pais de alunos, um pânico que venha a
afastá-los das escolas públicas. O segundo – o motivo “liberal”, é
igualmente compreensível, embora exija explicações mais detalhadas. Ele se relaciona, creio eu, à pouca disposição, por parte do
público americano, em aceitar e acreditar nas “boas notícias” trazidas pelas supostamente irrefutáveis estatísticas do FBI, de que
os crimes graves e violentos diminuíram durante os anos 90. Então, não são apenas “os políticos do sistema” que têm interesse
em acalmar o público. Os acadêmicos liberais temem – de forma
nada implausível – que, se o público persistir em sua inabalável
opinião de que as estatísticas do FBI estão simplesmente erradas, e entrar em pânico com a vasta cobertura dada pela mídia
aos massacres ocorridos nas escolas, ele irá pressionar os políticos de direita no sentido de dar continuidade a suas políticas
punitivas de mais prisões, penas mais severas, ampliação da pena
de morte e enquadramento dos adolescentes e crianças dentro
do sistema de justiça penal destinado aos adultos. Desse modo,
ambos os motivos são bastante compreensíveis, mas esse fato não
nos deveria tornar cegos quanto a suas limitações.
Outros estudos seguem um padrão semelhante. A Vigilância dos Comportamentos de Risco entre Jovens de 1999 verificou que apenas 7% dos estudantes secundaristas admitiram ter
levado uma arma à escola nas quatro semanas anteriores, ao passo que, em 1993, esse número foi de 12%. Resultados como esses são rotulados de “encorajadores”. Uma outra leitura poderia
ver esse decréscimo como um parco consolo.
211
No entanto, contrastando com esses levantamentos estatísticos de larga escala que, basicamente, indicam que o risco geral de
alguém vir a sofrer violência e ferimentos nas escolas não aumentou significativamente nos últimos vinte anos, tanto os alunos quanto seus pais afirmam estar cada vez mais apreensivos no que se
refere às escolas. Os alunos, hoje, têm mais medo de serem atacados ou feridos na escola e evitam determinados locais em suas
dependências. Os pais – e não apenas os das zonas centrais urbanas – dizem temer por seus filhos nas escolas. Uma pesquisa Gallup
recente mostrou que quase metade dos pais entrevistados temia
pela segurança de seus filhos, ao mandá-los para a escola. Em 1977,
apenas 24% deles expressaram essa preocupação. Em maio de 1999,
pouco depois do terrível ataque à Columbine High School, 74%
dos pais afirmaram que havia muita probabilidade ou relativa probabilidade de um ataque armado à escola vir a ocorrer em sua
comunidade. Desse modo, antes de prosseguir, peço-lhes que observem a tremenda discrepância existente entre as conclusões das
pesquisas das ciências sociais-padrão, que são consistentemente
tranqüilizadoras, e os sentimentos viscerais dos pais de todo o país,
que admitem ter medo. Seria possível que todos esses pais estejam
iludidos? Será que todos eles são vítimas crédulas da mídia? Ou
será que existe uma outra explicação?
Uma das principais conclusões do relatório do Ministério
da Saúde é que “as prisões de jovens acusados de homicídio e de
outros crimes graves cresceram vertiginosamente de 1983 a 1993.
Um ano depois, o número dessas prisões começou a declinar,
retornando, em 1998, a um índice apenas ligeiramente superior
ao de 1983”. Durante esse anos de pico (entre 1983 e 1993), o
que mudou foi a intensificação do uso das armas de fogo por
jovens. A violência juvenil não se tornou mais freqüente, porém
mais mortífera. O resultado foi um aumento drástico dos índices
de homicídios e de danos corporais graves. Esse mesmo relatório acrescenta que “Felizmente, um número menor de jovens,
nos dias de hoje, porta armas, armas de fogo inclusive, e um
número menor deles as leva para a escola. Como resultado, a
212
violência juvenil dos dias de hoje é menos mortal do que o era há
uma década. Mas o número de jovens que admitem ter cometido
atos de violência grave não-detectados pela polícia deveria nos
servir de alerta para o fato de que a violência juvenil é um problema persistente, que exige um enfoque preventivo.”
A característica singular da cultura americana quanto a essas questões, é claro, é a onipresença das armas de fogo. Como
escreveu Karen Colvard, “A verdade é que, embora os índices
norte-americanos de crimes interpessoais, como ataques corporais, sejam mais ou menos equivalentes aos verificados nos países europeus e asiáticos que mantêm estatísticas comparáveis,
nossos (dos Estados Unidos) índices de homicídios – mesmo após
as reduções recentemente verificadas – ainda são dez vezes maiores. E isso se deve a que, na América, os crimes interpessoais
têm probabilidades muito maiores de virem acompanhados de
uma arma de fogo, que têm probabilidades muito maiores que
qualquer outro tipo de arma de causar morte” (Colvard, 1997).
Apesar dessa ubiqüidade das armas de fogo verificada na
sociedade americana, os cientistas sociais concluem, a partir de
todos esses dados, que as escolas, hoje, são praticamente tão seguras quanto o eram há vinte anos, e que a percepção da segurança
escolar por parte do público claramente contradiz as evidências
em sentido contrário. O que insinuam diversos cientistas sociais
muito conceituados é que o público está redondamente enganado.
Um exame mais atento de análises como essas revela que,
quando as “causas” da violência entre os jovens são identificadas, elas, inevitavelmente, aparecem como traços de personalidade
específicos, ou como um acúmulo de traços num dado indivíduo. Desse modo, vem-se desenvolvendo uma vasta literatura
especializada sobre “fatores de risco”, que delineia a progressão
do indivíduo da primeira infância à adolescência, da inocência à
violência grave. A lista é hoje bem conhecida: exposição precoce
a violência extrema, distúrbios de stress pós-traumático, uso indevido de drogas, pais anti-sociais, fragilidade dos vínculos sociais, mau comportamento na escola, baixo QI, ruptura da família,
213
separação dos pais, associação com colegas anti-sociais etc. Tudo
isso vem-se transformando numa longa litania – todos os itens
que colocam um adolescente em risco de agir de forma violenta.
Esse foco no indivíduo como sendo a motor e a causa principais da violência leva, inevitavelmente, ao foco em programas
e projetos que têm como objetivo solucionar o problema da violência. A função da prevenção da violência se vê reduzida a identificar, avaliar e selecionar “programas promissores”, que são
então citados por diferentes órgãos governamentais como modelos para agências públicas, escolas, programas voltados a jovens, programas voltados aos menores infratores e a entidades
de outros tipos, modelos esses a serem imitados em escala nacional. Muitos desses programas de fato valem a pena, e vêm recebendo avaliações positivas. Quem poderia discutir o valor dos
programas de prevenção da intimidação na escola, de desenvolvimento das relações entre pais e filhos voltados para as famílias
de baixa renda, de visitas pré-natais de enfermeiras e de assistentes sociais bem-treinados, de treinamento de capacidades sociais,
de treinamento de pais, de visitas domiciliares, de reforço acadêmico, dos cursos de “raciocínio moral”, dos programas extraclasse e dos programas de resolução de problemas sociais? Não
se pode descartar de pronto programas que foram cuidadosamente avaliados e se mostraram eficazes no trato com menores
violentos ou gravemente delinqüentes. Alguns deles, por exemplo, demonstraram que as intervenções multimodais, comportamentais e profissionalizantes provaram ser mais eficazes que os
enfoques menos organizados.
Tudo isso tem como corolário o fato de que centenas de
programas de prevenção da violência estão hoje sendo implementados em todos os Estados Unidos, e que toda uma subdisciplina voltada para sua avaliação surgiu e vem-se firmando como
um setor à parte. Assim, o desenvolvimento, a implementação e
a avaliação de projetos, que são então instalados em organizações receptivas, converteram-se na sabedoria convencional, e esse
enfoque dominou de tal modo o cenário da pesquisa e do desen214
volvimento voltados para a prevenção da violência juvenil e escolar que nenhum outro discurso parece ser admissível. Daí que
a “sabedoria convencional” dita que as pesquisas devem tentar
determinar quais intervenções de combate à violência funcionam melhor e em que contextos.
No entanto, o que venho descrevendo até este ponto poderia ser chamado de a práxis americana de prevenção da violência em sua melhor forma. Quando descemos ao nível dos profissionais praticantes, onde nos deparamos com a administração
rotineira das escolas, a dura necessidade de chegar ao fim do dia
e do ano letivo sem incidentes violentos vem forçando administradores e diretores a lançar mão de um modus operandi totalmente pragmático. Dois anos após o incidente de Columbine, as escolas de todo o país se cercaram de tecnologia de segurança.
Dentre o grande número de produtos de segurança escolar
que foram lançados no mercado a partir da tragédia de Littleton,
em abril de 1999, estão mochilas escolares de vinil transparente
(que permitem que os funcionários da escola vejam se o aluno
carrega um arma); software de “planejamento de crises”, para ajudar os distritos escolares a lidar com futuras tragédias escolares;
software para monitorar sites violentos na Internet; manuais de
prevenção da violência; e programas de treinamento de professores que dão emprego a consultores de “segurança escolar”. Na
escola secundária de Buffalo Grove, em Illinois, para tomar um
único exemplo, o distrito anunciou o plano de instalar 96 câmeras de segurança espalhadas por toda a escola.
Hoje, a segurança escolar se transformou num importante
produto comercial, nos Estados Unidos. Se as firmas de detecção de metais e de circuitos fechados de televisão e câmeras de
vigilância ainda estão no topo da cultura de segurança escolar,
muitos outros setores empresariais vêm rapidamente transpondo o hiato dos lucros. Aparelhos de raio-X para inspecionar
mochilas, walkie-talkies para os guardas de segurança, sistemas
sofisticados de alarme de incêndio para escolas, dotados de trancas magnéticas nas portas, cujo objetivo é manter os intrusos do
215
lado de fora e os alunos do lado dentro, são apenas alguns dos
equipamentos mais comuns que os administradores preocupados têm hoje a seu dispor. O “Programa Escolas Livres de Violência e de Drogas”, do Departamento de Educação dos Estados Unidos, liberou uma verba de 566 milhões de dólares para
programas de segurança escolar, apenas para o ano de 1999. Essas verbas são destinadas a programas de prevenção da violência
e do uso de drogas, a programas de resolução de conflitos e também a uma grande variedade de produtos de software e hardware.
Os sistemas escolares das grandes cidades americanas, como
o Conselho de Educação da Cidade de Nova Iorque, com escolas de 2.500 a 5.000 alunos, já há alguns anos vêm recorrendo a
medidas de tecno-segurança, à polícia e a pelotões de guardas de
segurança para supervisionar os jovens. O novo estudante de uma
de nossas grandes e superlotadas escolas das zonas centrais urbanas é recebido por uma barreira de máquinas de cartões de
identificação, de detectores de metais, de câmeras de televisão de
circuito fechado, de aparelhos de raio-X (para a inspeção das
mochilas), pelos estalidos dos walkie-talkies dos guardas, por trancas magnéticas nas portas e por um batalhão de outras formas da
chamada tecnologia de segurança (Devine, 1996). Aponto esse
fato não para culpar os superintendentes e diretores das escolas,
que chegam a essa decisão extrema porque a dura necessidade de
sobrevivência os força a fazer escolhas que a nós parecem punitivas e retrógradas.
Dentre esses esforços tecnológicos, o mais ambicioso é um
programa computadorizado chamado “Mosaico 2000”, que atualmente está sendo vendido por Gavin de Becker, um especialista em segurança que garante que o novo software passará em revista centenas de indicadores, antes de caracterizar um aluno como
“violento”. Muito antes de a violência escolar se tornar uma grande questão nacional, De Becker ficou famoso por aconselhar a
personalidades públicas proeminentes a reconhecer os sinais de
violência potencial, ensinando como usá-los como instrumentos
de sobrevivência. De Becker, agora, passou de ajudar indivíduos
216
a reconhecer os sinais premonitórios de um agressor ou assassino em potencial a ajudar as escolas a reconhecer alunos que podem se transformar em predadores potenciais (De Becker, 1999,
2000). Os usuários desse sistema estão sempre nos garantindo
que eles não têm a menor intenção de “traçar perfis” dos alunos
– expressão que se tornou famosa entre as forças policiais americanas quando os afro-americanos começaram a se queixar de que
as patrulhas estaduais de Nova Jersey os paravam na estrada pelo
simples fato de eles serem pretos.
A versão atualizada do “Mosaico 2000” é um sistema de
computadores cujo objetivo é ajudar as escolas a identificar os
alunos que correm o risco de vir a cometer atos violentos. Os
defensores das liberdades civis temem que isso possa levar aos
“perfis” e à rotulação de determinados alunos, pela simples razão de eles se vestirem de forma diferente ou gostarem de ouvir
determinado tipo de música. Desse modo, as autoridades escolares fazem uma “avaliação de ameaças” usando informações estatísticas recolhidas num vasto banco de dados (Thomas, 1999). O
perigo consiste em que, na identificação dos alunos possivelmente
violentos, muitos alunos não-violentos sejam também rotulados.
A razão de discutir programas como o Mosaico 2000 é dar
ênfase ao fato de que, ao empregar soluções tecnológicas para a
resolução de problemas sociais, como a violência escolar, temos
que ter o cuidado de não situar o locus original da violência num
único indivíduo, tentando identificar os níveis mais profundos
de violência que residem nos ambientes institucionais. Já foi clara e repetidamente demonstrado que esses ambientes são estruturados pela sociedade adulta de modo a excluir alguns jovens e
incluir outros.
A sociologia da violência escolar é a sociologia da exclusão
e da etnicidade. A escola contribui para a desigualdade social e
para a construção de uma cultura de “eles” e “nós” entre os novos pobres urbanos e multirraciais, que se opõe à ideologia universal e secular que, historicamente, vem embasando as escolas
públicas (Debarbieux, 1996).
217
O enfoque individualizado que venho discutindo – e criticando – neste artigo muitas vezes é citado como “a abordagem
de saúde pública” à prevenção da violência. Ela é prima distante
das campanhas de combate ao fumo da década de 70 e de inícios
da década de 80. Se os estudantes (e outros) aprenderem que a
violência é ruim para sua saúde, eles deixarão de praticá-la. A
quase totalidade dos teóricos que escrevem sobre a prevenção da
violência escolar, inclusive as altas autoridades do Departamento de Educação, concordam que a tecnologia, por si só, não irá
resolver o problema, nem bastará para promover essa abordagem da “saúde pública”, aparentemente mais progressista, que
venho até aqui descrevendo. Certamente que não tenho a intenção de sugerir que conceituar o problema da violência juvenil
como um problema de saúde pública seja totalmente errado. O
Instituto Nacional de Saúde está intensificando seu apoio a estudos comportamentais sobre crianças e adolescentes em risco de
se tornar violentos. Esses estudos vêm desenvolvendo maneiras
melhores de evitar que crianças recebam cuidados insuficientes,
de tratar os distúrbios de déficit de atenção, de combater a depressão e as idéias suicidas e de avaliar modelos de um programa de
educação social chamado “cuidados adotivos terapêuticos” como
alternativa à cadeia, para alguns jovens delinqüentes. É certo que o
modelo da saúde pública representa um avanço sobre o modelo
adotado pelos legisladores que recorrem simplesmente à cadeia e
punição, leis mais duras para as drogas, penas mais longas e campos de recuperação para adolescentes. Assim, deixar de pensar em
termos de punição – e deixar de pesquisar apenas os fatores puramente biológicos –, passando a tratar dos fatores sociais, já representa um avanço realmente encorajador. Mas, muitas vezes, o pressuposto básico por trás da abordagem de saúde pública é que a
violência é uma doença contagiosa, que encontra terreno fértil em
indivíduos vulneráveis e em bairros dotados de poucos recursos –
o que, aliás, parece ser verdade. Mas o átomo sob investigação
continua sendo o indivíduo, e não a violência inerente ao sistema
social ou às instituições sociais que estão na raiz do problema.
218
Tudo isso nos leva de volta ao problema da definição, ao
problema de o quê, precisamente, queremos dizer por “violência”. É importante que nos demos conta de que as pesquisas e os
programas de intervenção direcionados à redução imediata dos
níveis de violência juvenil quase sempre enfocam a violência interpessoal direta que, tradicionalmente, é definida como “os atos
deliberados, por parte de crianças, adolescentes ou jovens adultos, que representam ameaça ou que vêm a resultar em danos
corporais graves ou morte”. A limitação dessa definição é que
ela situa o locus da violência precisamente no nível individual.
A violência estrutural, pelo contrário, um conceito popularizado pelo sociólogo norueguês Johan Galtung (1995) implica
uma interpretação mais ampla da violência, visando a mostrar
que a ameaça está presente nas instituições, mesmo quando não
há violência literal, ou violência tal como estrita ou tradicionalmente definida. A literatura especializada sobre a violência e a
prevenção da violência atravessa muitas fronteiras disciplinares e
baseia-se na suposição de que a pobreza, o racismo, o desemprego, a deficiência da assistência à saúde, as ideologias que discriminam os papéis sexuais e a má distribuição de renda são fatores
“estruturais” e causas arraigadas. Um exemplo de fator estrutural que tem raízes profundas – e é diretamente relacionado aos
altos níveis de violência nos Estados Unidos de hoje –é a força
política da Associação Nacional dos Rifles e do “lobby das armas de fogo”, que, literalmente, ditam as políticas relativas a essas armas no Congresso americano.
Mas nem todos os fatores estruturais situam-se no nível da
materialidade, da economia e da tecnologia. Até este ponto, venho focando minha atenção nos trabalhos dos demógrafos e dos
sociólogos americanos de tendência mais quantitativa. Deve-se
observar que vem despontando um outro grupo de acadêmicos,
aos quais se poderia denominar “interacionistas sociais” – antropólogos e psicólogos que adotam uma abordagem mais fenomenológica e interpretativa e enfocam o contexto social da violência como um dos fatores “estruturais”.
219
William Pollack, em seu best-seller Real Boys: Rescuing our
Sons from the Myths of Boyhood (Meninos de Verdade: Salvando
nossos Filhos do Mito do que é ser um Menino), identifica a
existência de um código não-verbal, o “código dos meninos”
que, em sua opinião, permeia o processo de socialização dos
adolescentes de sexo masculino. Esse ethos é parte do rito de
passagem adolescente tradicional, sendo portanto transmitido
pelos pais (especialmente pelo pai) de maneiras basicamente
inconscientes e não-intencionais. Os meninos entrevistados por
Pollack são solitários e deprimidos. Eles lutam com questões de
auto-estima e correm grave risco. Eles têm uma enorme necessidade de ser ouvidos e um desejo de compartilhar seus sentimentos, mas, numa sociedade onde existe um “código dos meninos”
implícito, eles têm que esconder suas emoções e jamais mostrar
seus verdadeiros sentimentos. Eles têm que estar prontos para
defender seus direitos, reais ou supostos, mesmo que até o ponto do conflito. As penalidades para as violações desse código
muitas vezes disfarçado são severas: os meninos são ridicularizados, intimidados e até mesmo submetidos a violência.
Minhas próprias pesquisas (Devine, 1996) e as de antropólogos como Bourgois (1996) confirmam o trabalho de Pollack. A
“cultura da violência” à qual estão sujeitos os jovens das áreas
centrais das grandes cidades – e, de maneira mais ampla, os jovens americanos em geral – tem como resultado a construção de
uma persona “durona”, que tem como objetivo a sobrevivência e
a conquista do respeito alheio. Nas escolas em que todas as funções disciplinares foram entregues à polícia e aos seguranças, a
distância emocional entre o professor e os alunos se vê ampliada. Quando os professores se furtam ao contato íntimo com a
cultura da juventude, eles deixam de estar em condições de ouvir
os alunos, quando estes expressam seus problemas e medos pessoais, ou, então, traçam as fronteiras comportamentais que não
devem ser ultrapassadas pelos alunos. Os professores passam a
estar “por fora”, em relação à cultura dos jovens. E os educado220
res, mesmo com o aumento da presença das forças policiais nas
escolas, têm cada vez mais dificuldade de impor a lei e os regulamentos (Body-Gendrot, 2000).
O pior de tudo é que os alunos captam a mensagem de
que ninguém, no ambiente escolar, realmente se importa com a
administração da escola, e que ele ou ela é responsável por sua
própria segurança. É nesse ponto que se instala o medo, e que
os estudantes passam a se dar conta de que eles têm que proteger a si mesmos. Creio que foi esse senso de medo que passou
a permear as escolas americanas. Tal senso difuso de atemorização é quase impossível de detectar com o uso dos paradigmas das pesquisa tradicionais, como questionários e protocolos de entrevistas, e até mesmo pelas mais sofisticadas pesquisas Gallup. Muitos jovens sentem medo, mas não querem admiti-lo. Não é bacana sair espalhando que você tem medo. Isso
é visto como vergonhoso. E é esse mal-estar que vem sendo
detectado pelos pais.
Quanto a isso, nos Estados Unidos, o Movimento por Escolas Pequenas (sediado principalmente em Chicago) representa uma tendência em direção a escolas menores e mais igualitárias. Essa rede de educadores e de formuladores de políticas
vem tentando desconstruir (literal e metaforicamente) as velhas escolas, enormes e superlotadas, reduzindo seu tamanho
ou criando novas escolas com ambientes menores, mais íntimos e mais afetivos, que funcionem como comunidades inclusivas e igualitárias (Ayers, Klonsky e Lyon, 2000).
Em minha opinião, essa tentativa de reestruturar e, desse
modo, melhorar essas grandes escolas é um exemplo de conceituação correta do problema. Parte-se do enfoque de corrigir a violência inerente às instituições que fomentam a violência, e não do
foco na criança ou em sua família. Mas as escolas grandes, superlotadas e turbulentas são apenas um exemplo da restruturação institucional que se faz necessária. Há crianças, nas faixas inferiores
da sociedade americana, que são transferidas dezenas de vezes, de
221
lá para cá, passando por abrigos para crianças sem-teto, lares grupais, hospitais psiquiátricos e prisões juvenis, porque uma agência
se apressa em despejá-las em outra agência (Butterfiled, 2000). É
cada vez maior o número de crianças que sofrem de doenças mentais ou de retardamento, ou ambos, e que, devido aos cortes nas
verbas destinadas aos sistemas de saúde mental e à redução da
cobertura dos problemas de saúde mental pelos planos de saúde e
organizações de defesa da saúde, vêm sendo jogadas no sistema
dos juizados de menores. Por todo o país, números cada vez maiores de jovens portadores de doenças mentais vêm sendo mandados para cadeias juvenis, nos últimos anos.
Nosso tema, nesta conferência, são as escolas e a violência
escolar. Mas, quando pensamos na prevenção, nossa atenção deve
se voltar não só para a questão da reforma das estruturas institucionais e dos sistemas de assistência pública – o sistema educacional, mas também o sistema de guardiões alternativos, de saúde
mental e dos juizados de menores – que são a origem de tantos
desses problemas.
Numa época em que os Estados Unidos receberam publicidade mundial, devido aos trágicos massacres ocorridos em
Columbine e em outros locais, acredito que muito possa ser aprendido, tanto com os pontos fortes quanto com os pontos fracos
dos paradigmas quantitativos. Retornando à questão dos dados
mencionada por mim no início deste trabalho (há no mínimo 47
adolescentes que sabiam de antemão que os massacres iriam ocorrer), essas informações de pesquisa talvez nos façam perceber o
vasto abismo que separa a cultura da juventude do mundo dos
adultos maduros. Essas informações, se interpretadas da maneira correta, talvez venham a apontar as deficiências de nosso processo de socialização. Os jovens querem tratar os outros de forma sensível, e não feri-los. Mas eles precisam sentir que há alguma reciprocidade por parte de um mundo adulto que esteja disposto a ouvi-los, e saiba fazê-lo. E isso, por sua vez, exige a criação de instituições que propiciem essa escuta e esses tipos de
interação e de supervisão entre adultos e jovens.
222
REFERÊNCIAS
BOURGEOIS, P. In search of respect: selling crack in el barrio.
Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
BODY-GENDROT, S. The social control of cities? A comparative perspective. Oxford: Blackwell Publishers, 2000.
COLVARD, K. Crime is down! Don’t confuse us with the facts!
The HFG Review, Harry Frank Guggenheim Foundation, v. 2,
n. 1, fall, 1997.
DE BECKER, G. The gift of fear: survival signals that protect
us from violence. New York: Dell Publications, 1999.
_________. Protecting the gift: keeping children and teenagers
safe (and parents sane). New York: Dell Publications, 2000.
DEVINE, J. Maximum security: the culture of violence in innercity schools. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
GALTUNG, J. Human rights in another key. Oxford: Blackwell
Publishers, 1995.
POLLACK, W. Real boys: rescuing our sons from the myths of
boyhood. New York: Owl Books, 1999.
THOMAS VIRGINIA, L. Mosaic 2000: an educational dragnet.
The Heritage Foundation Newsletter: news and views. Available
at: <http://www.heritage.org/views/99/ed111099.html> .
WILLIAM, A.; KLONSKY, M.; LYON, G. A simple justice: the
challenge of small schools. New York: TC Press.
223
CLIMA ESCOLAR E VIOLÊNCIA NOS
SISTEMAS DE ENSINO SECUNDÁRIO
DA FRANÇA E DA INGLATERRA
Catherine Blaya
As pesquisas européias trazem diferentes percepções e diferentes abordagens para o fenômeno da violência nas escolas e para
as dificuldades encontradas nos vários países, principalmente no
que se refere ao registro dos atos violentos em nível nacional, dependendo da estrutura política do país em questão ou do recente
reconhecimento do problema. Na Inglaterra, a violência escolar é
tratada principalmente no campo psicológico, principalmente por
meio do conceito de bullying (intimidação por colegas), ou seja,
intimidação e problemas comportamentais, como a hiperatividade
(Cooper e Ildeus, 1997). Os estudos enfocam principalmente esses fenômenos que ocorrem no nível dos alunos (Galloway, 1982;
Tattum, 1993), incentivados pelos sindicatos de professores, que
se queixam do aumento da indisciplina (Hayden e Blaya, 2001).
Ao longo da década de 90, os estudos tomaram como base os
trabalhos escandinavos que ajudaram a atrair atenção para a importância do problema da intimidação entre os alunos e para suas
conseqüências psicológicas 1 (Cowie, 1998; Olweus, 1993; Smith e
Sharp, 1994). No entanto, o efeito exercido pela escola é parte
dessas preocupações, e já há mais de vinte anos se reconhece que
1
Dan Olweus realizou o primeiro levantamento a respeito do problema da intimidação nas escolas na Suécia e, posteriormente, na Noruega, tendo mais tarde exercido grande influência sobre as pesquisas realizadas na Inglaterra, na década de 90,
após a tradução de seu livro: Aggression in schools: bullies and whipping boys (1978).
225
mesmo que ela, isoladamente, seja incapaz de resolver a totalidade
dos problemas, a escola tem um certo impacto sobre o comportamento dos alunos e sobre o clima social 2 das salas de aula (Rutter
et al., 1979). Nos últimos anos, a violência escolar vem sendo tratada de forma mais nitidamente psicológica, com o reconhecimento
institucional do problema e a criação, em 1998, da Unidade de
Exclusão Social, por iniciativa do Partido Trabalhista, e após uma
série de relatórios científicos (De Lacerda e Niel, 1997; Mortimore
e Whitty, 1999; Room, 1995) que apontaram que as crianças afetadas pela exclusão social tinham maiores probabilidades de sofrer
marginalização na escola ou de serem expulsas, podendo, mais tarde, verem-se relegadas à periferia da sociedade. Na França, a violência nas escolas há muito é vista como resultado de influências
externas, tais como violência urbana ou desigualdades sociais. A
violência escolar é ou o resultado da delinqüência juvenil, devendo, portanto, ser tratada por meios judiciais, ou conseqüência dos
problemas sociais, e não da escola (Debarbieux e Montoya, 1998).
No entanto, apesar de a avaliação do último plano interdepartamental ter evidenciado uma crescente mobilização contra o vandalismo, e também que as escolas localizadas nas chamadas áreas
“difíceis” correm maiores riscos de serem afetadas por certas formas de violência, o efeito exercido pela escola de modo algum é
insignificante (Debarbieux, 1996; Debarbieux et al., 1999; Grisay,
1993). Oscila-se, portanto, entre um enfoque psicológico ou individual (problemas comportamentais, fobia da escola) e um enfoque mais sociológico e criminológico (delinqüência urbana, desemprego, pobreza e exclusão social) (Gottfredson, 2001).
O objetivo da presente investigação comparativa, embasada nos procedimentos de pesquisa que verificam similaridades e
diferenças, é fazer um relato preliminar sobre a realidade do problema na França e na Inglaterra, onde as pesquisas ainda enfocam principalmente a intimidação por colegas. Tentamos reali2
O Clima Social significa a qualidade geral das relações e interações entre os diferentes atores da escola.
226
zar uma avaliação comparativa entre esses dois países, em termos do clima social e da violência nas escolas secundárias urbanas carentes em termos socioeconômicos. Isso foi feito levandose em conta os respectivos contextos educacionais e nacionais, a
fim de identificar as variáveis nacionais e estudar a possibilidade
de transferência de “boas práticas” de um país para o outro.
METODOLOGIA
O presente estudo, que toma como base a metodologia de
Debarbieux (1996), concentra-se na experiência e na percepção da
violência e da agressão, por parte dos jovens alunos e dos adultos
que trabalham nas escolas. Ele faz parte de uma iniciativa européia
de pesquisa que visa a avaliar a atmosfera das escolas, o sentimento de insegurança e a vitimização nas escolas secundárias européias. No presente momento, esse estudo está sendo realizado na
Bélgica, na França, na Espanha, em Portugal e na Inglaterra, e
planejamos estender essa metodologia a outros países no âmbito
das atividades do Observatório Europeu de Violência Escolar, localizado em Bordeaux. Apresentaremos agora os resultados de
nossas investigações, que tiveram como base questionários distribuídos e entrevistas realizadas em escolas secundárias francesas e
inglesas, localizadas em áreas carentes (tabela I). Esses questionários foram preenchidos por 1.679 estudantes ingleses e 3.136 estudantes franceses, de idades entre 11 e 18 anos, e por 191 adultos
ingleses e 252 adultos franceses, de 12 e 15 escolas, respectivamente. No tocante à França, essas informações foram obtidas pelo
Ministério (listas nacionais) e, quanto à Inglaterra, pelo relatório
PANDA e pelo relatório de inspeção OFSTED 3 . As informações
3
OFSTED: Office for Standards in Education (Departamento de Padrões Educacionais). Organização independente incumbida da inspeção das escolas públicas da Inglaterra, criada em 1992. Em geral, as escolas passam por inspeção a cada quatro anos.
PANDA: Relatório de desempenho e avaliação. Relatórios anuais são encaminhados às
227
fornecidas pelas equipes das escolas ajudaram a complementar os
dados acima mencionados. Uma das dificuldades surgidas durante
os estudos comparativos foi a identificação dos dados comuns que
poderiam ser usados para determinar o nível de pobreza das populações em questão. Não é necessário dizer que visitas a esses
bairros também contribuíram para tornar nossa observações mais
completas. As escolas que participaram da investigação situam-se
em diferentes regiões de seus respectivos países (tabela II).
Tabela I
Indicadores socioeconômicos usados na França e na Inglaterra
Um dos maiores problemas enfrentados por nós foi a relutância em participar demonstrada pelas escolas, principalmente
na Inglaterra, onde há acirrada competição entre as escolas, o
que faz com que os diretores tendam a ser cautelosos em relação
à imagem projetada para fora e às informações que poderiam vir
a ser divulgadas sobre seu estabelecimento. Muitas vezes, nossas
negociações fracassaram, representando custos em termos de
tempo, energia, viagens e dinheiro. Gostaríamos aqui de agradecer às escolas e aos membros de suas equipes que, apesar de tudo,
nos deram seu tempo e sua confiança.
escolas para auxiliá-las no planejamento e na organização de seus objetivos e de seu
desempenho. Eles fornecem dados relativos às escolas em questão, e também sobre seu
ambiente social, comparados às médias nacionais.
228
Tabela II
Distribuição geográfica das amostragens na França e na Inglaterra
O segundo problema dizia respeito à terminologia a ser
empregada. Como já apontamos na introdução, as pesquisas britânicas, nos últimos anos, vêm tratando principalmente da intimidação por colegas e, quando demos início à nossa pesquisa na
Inglaterra, o termo ali usado para descrever a violência escolar
era, de fato, “school bullying”, ou intimidação na escola. O termo
“violência” era usado nos meios educacionais principalmente em
referência ao fenômeno da violência física (Blaya, 2001; Hayden
e Blaya, 2001). No entanto, a “intimidação”, tal como geralmente entendida nas pesquisas britânicas, refere-se unicamente aos
problemas da intimidação que ocorrem entre estudantes, e como
nossa investigação enfocava o estudo da vitimização e da violência num nível muito mais amplo, mantivemos o uso do termo
“violência”, o que foi explicado aos alunos por ocasião da entrega do questionário 4 . Os problemas de compreensão e tradução
foram simplificados por meio de um questionário exploratório e
contando com a ajuda de dois pesquisadores da Universidade de
Portsmouth, de forma a evitar, tanto quanto possível, alguma
4
O questionário foi entregue diretamente aos alunos pelo pesquisador. O questionário “adulto” foi deixado na sala de professores, e enviado por correio ao pesquisador, ou entregue pessoalmente a ele por ocasião da sua visita seguinte.
229
distorção metodológica devida a erros de tradução ou ao uso
inadequado de certos termos. Até mesmo as perguntas feitas pelos
alunos influenciaram nossa tradução. Entrevistas individuais ajudaram a complementar os resultados obtidos a partir do questionário, o mesmo valendo para o trabalho de observação realizado
por ocasião de nossas vistas às escolas. Cada escola recebeu uma
cópia dos resultados da investigação.
SENTIMENTO DE INSEGURANÇA E
VIOLÊNCIA: DIFERENÇAS SIGNIFICATIVAS
Sentimento de insegurança
O sentimento de insegurança, mensurado com o auxílio de
indicadores como a percepção geral da existência de violência e
extorsão na escola, é nitidamente mais significativo na França
que na Inglaterra. Portanto, como mostrado na tabela III, um
número duas vezes maior de estudantes franceses foi de opinião
que existia uma enorme quantidade de violência em sua escola,
enquanto o número de estudantes ingleses que afirmou haver
pouca violência foi muito superior.
Tabela III
Respostas dos estudantes à pergunta: há violência em sua escola? (%)
A dependência é muito significativa: 2 = 168,84; df = 4; 1-P= > 99,99%.
Número de participantes: Inglaterra – 1.656; França – 3.084
230
As ofensas verbais foram a forma de violência mais freqüentemente observada em ambos os países, o que veio a confirmar os resultados da investigação anterior, indicando que o maior problema não era a violência “bruta”, mas sim as perturbações e as microvitimizações repetidas (Debarbieux et al., 1999;
Elton, 1989; Gill e Hearnshaw, 1997):
“Insultos demais” (F); “eles riem de mim e dizem que sou
gordo” (F); “insultos verbais” (I); “as pessoas se insultam muito
umas às outras, com ofensas verbais” (F); “eles gritam e insultam
os professores” (F); “barulho demais durante as aulas, alguns alunos são mal-educados” (I); “ele caçoam de mim porque eu tenho
cabelo ruivo” (I); “insultos e brigas demais” (I).
Os insultos verbais foram seguidos, em ordem de importância, segundo os comentários dos alunos, pelas brigas, os roubos e a extorsão.
A opinião dos professores seguiu a mesma tendência que a
dos alunos, ou seja, a impressão de violência, aqui também, foi ainda
mais significativa na França, e os tipos de violência observados foram
idênticos: insultos verbais, brigas, roubo e extorsão (tabela IV).
Essa tendência foi confirmada pelas respostas relativas à
extorsão. Mais de 40% dos alunos franceses afirmaram que existia
extorsão em suas escolas, em comparação com 26,3%, na Inglaterra. No que tanje aos adultos, as percentagens foram de respectivamente 19,3% e 54,7%. Neste ponto, gostaríamos de ressaltar a
importância da vitimização e do sentimento de insegurança provocados pela extorsão, porque ela de fato representa um ato de
vitimização múltipla, uma vez que esses roubos acontecem sob
ameaças, e às vezes vêm acompanhados de insultos e de socos. Foi
necessário, portanto, determinar se o sentimento de insegurança
dos estudantes e dos adultos baseava-se em vitimização real e tentar analisar os elementos que levavam a tal disparidade nas representações dos atores franceses e ingleses. Para isso, comparamos
as respostas dos alunos às perguntas relativas à violência real: “Você,
no presente ano, foi insultado, ou foi vítima de extorsão, de socos,
de roubos, você foi instigador de extorsão?”, com as respostas dadas
por eles às perguntas sobre sua percepção da violência.
231
Tabela IV
Respostas dos adultos à pergunta: há violência em sua escola? (%)
A dependência é muito significativa: 2 = 40,52; df = 4; 1-P= > 99,99%.
Número de participantes: Inglaterra – 190; França – 242.
Violência e vitimização: um sentimento de
insegurança justificado, mas às vezes exacerbado
Como confirmado pelos resultados relativos ao sentimento de insegurança, os insultos verbais foram o tipo de vitimização mais freqüentemente mencionado pelos alunos (tabela V). A
percentagem dos alunos franceses (76,1%) que se queixaram de
sofrer insultos foi maior, em comparação com a dos ingleses
(64,4%). Os roubos também foram mencionados com maior freqüência na França, com uma percentagem de 50,7% contra 42,2%.
Deve-se observar que equipamento escolar, dinheiro e lanches (no
casos dos estudantes ingleses, que traziam seus sanduíches para a
escola) eram os itens que desapareciam com maior freqüência.
Tabela V
Respostas à pergunta: você foi insultado na escola neste ano? (%)
A dependência é muito significativa: 2 = 73,99; df = 1; 1-P= > 99,99%.
Número de participantes: Inglaterra – 1.655; França – 3.082.
232
No que se refere a socos, os resultados obtidos foram estritamente idênticos nos dois países, ou seja, 25,6% dos alunos
declararam que haviam recebido socos. Os resultados relativos à
extorsão foram ainda mais surpreendentes: 7,6% dos alunos franceses que responderam ao questionário afirmaram ter sido vítimas de extorsão, em comparação com 13,3% dos alunos ingleses, ou seja, um número duas vezes maior. No entanto, quando
foi perguntado aos alunos se eles alguma vez haviam cometido
extorsão, a tendência se inverteu: 9,8% (França) e 6,6% (Inglaterra). Há diversas explicações para esse fato: como mostrado no
trabalho avaliativo realizado por Debarbieux e Montoya (1998),
a violência grupal vem aumentando na França, e, onde há extorsão, geralmente se trata de mais de um aluno contra uma única
vítima. Isso não apenas contribui para reforçar o sentimento de
insegurança na vítima e nos espectadores, mas também para o
aumento da vitimização. Conseqüentemente, quando a agressão
é provocada por um grupo, a responsabilidade é dividida, e os
integrantes do grupo se tornam mais ousados. Além disso, três
das escolas inglesas de nosso levantamento encontravam-se particularmente envolvidas com o problema de drogas, dentro e fora
de suas instalações. Quando comparamos o nível de vitimização
e as respostas à pergunta “há problemas de drogas em sua escola?”, verificamos que os alunos mais vitimados, ou mesmo multivitimados eram exatamente os que freqüentavam essas escolas.
Pareceu nos portanto essencial, em termos da estratégia de prevenção e redução do sentimento de insegurança, levar em conta
essas multivitimizações, inclusive as relativas à extorsão.
A tabela VI mostra que, de modo geral, o número de vítimas não era tão alto na Inglaterra quanto na França, uma vez
que 45% dos estudantes ingleses não haviam sido vitimados, em
comparação com 19,9%, na França. Esses resultados confirmaram que as meninas têm menores probabilidades de serem vitimadas que os meninos (Gottfredson, 2001). As principais formas de agressão sofridas pelas meninas eram insultos e roubos.
Deve-se observar, contudo, que a percentagem dos alunos que
233
haviam sido vitimados mais de quatro vezes era maior entre os
meninos ingleses. Aqui também, esse percentual se refere às três
escolas anteriormente mencionadas, o que vem a confirmar a
importante relação entre drogas, extorsão e multivitimização, bem
como as políticas adotadas pelos diretores e por toda a equipe
educacional, cujas atitudes viam-se divididas: alguns professores
tinham a sensação de que o diretor os havia “decepcionado” e,
nessas escolas, a disciplina não era aplicada com coerência.
Quaisquer que sejam as diferenças entre os dois países, podese ver que a percentagem dos alunos vitimados era maior na França, uma vez que um em cada dois alunos declarou ter sofrido algum tipo de violência. Em seguida, tentamos descobrir qual teria
sido o impacto dessa violência sobre o sentimento geral que os
alunos tinham sobre sua escola e sobre seu sentimento de insegurança. Para tal, comparamos os dados coletados sobre socos e violência com os dados coletados sobre multivitimizações nas respostas à pergunta: “o que você acha de sua escola?” (tabela VII).
Tabela VI
Casos de multivitimização na França e na Inglaterra
A dependência é muito significativa: 2 = 402,43; df = 39 1-P= > 99,99%.
Nº de observações: Inglaterra – meninas – 610; meninos – 843; França – meninas – 1.519;
meninos – 1.322.
234
Tabela VII
Socos e sentimento de insegurança (%)
A dependência é muito significativa: 2 = 408,47; df = 12; 1-P= > 99,99%.
Número de participantes: Inglaterra – não-socados: 1.217; socados: 419; França – não-socados: 2.247.
Tabela VIII
Multivitimização e atmosfera geral (%)
A dependência é muito significativa: 2 = 977,17; df = 36; 1-P= > 99,99%.
Nº de participantes: Inglaterra – não-vítimas: 317; vítimas 1: 523; vítimas 2: 384; vítimas 3: 153;
vítimas 4: 88. França – não-vítimas: 439; vítimas 1: 9191; vítimas 2: 981; vítimas 3: 454; vítimas 4: 98.
235
Figura 1
Análise fatorial / multivitimização x atmosfera geral
Esses resultados mostram que a vitimização pode afetar
não apenas o sentimento de insegurança da vítima, mas também
o das não-vítimas. Deve-se observar que tanto as vítimas quanto
as não-vítimas inglesas tinham um sentimento de insegurança
menor que as francesas, o que foi confirmado pelos resultados
previamente descritos. A tabela VIII fornece uma comparação
geral no tocante às escolas, incluindo os percentuais de vitimização e multivitimização. Comparamos as variáveis de vitimização
com as opiniões dos alunos a respeito de suas escolas. Uma análise fatorial (figura 1) foi acrescentada aos resultados da tabela
VIII, para facilitar sua leitura (Cibois, 1983). Ela representa a
distribuição das variáveis estudadas e explica sua variação. Podese observar que o eixo 1 representou 94,7% da variação, ao passo que o eixo 2 representou apenas 3,7%. Quanto mais próximo
o quadrado da atmosfera estava do quadrado da vitimização, mais
forte era a correlação entre os dois. Esse gráfico mostrou um
grande hiato entre as representações dos estudantes franceses e
ingleses, independentemente de sua posição como vítimas ou nãovítimas. Portanto, mesmo os estudantes não-vítimas tinham uma
opinião melhor de suas escolas na Inglaterra que na França. Como
resultado, chegamos à conclusão de que fatores outros que não
os atos de violência em si eram da maior importância e influenciavam as opiniões que os alunos tinham de suas escolas, ou que,
pelo menos, determinados fatores conseguiam compensar os efeitos negativos da vitimização. Uma outra explicação talvez fosse
que os estudantes ingleses não viam suas escolas como respon236
sáveis pelo que lhes acontecia, porque os problemas que tinham
que enfrentar ocorriam a caminho da escola, e não na própria
escola, sendo portanto relacionados ao bairro. Essa explicação,
entretanto, foi invalidada pelas respostas à pergunta sobre o local onde os problemas de violência ocorriam. Como resultado,
tanto na França quanto na Inglaterra, os locais mais freqüentemente citados eram o pátio de recreio, os corredores, as escadas
e as salas de aula. Na França, não apenas esses resultados confirmam o aumento do vandalismo escolar (Debarbieux et al., 1999),
mas também os comentários feitos por alguns alunos mostraram
sua opinião relativa à falta de respeito e de disponibilidade por
parte dos professores e dos adultos da comunidade escolar, e
expressaram o sentimento de que ninguém os escutava:
– “eles não acreditam em nós”;
– “eles não nos ouvem muito”;
– “os professores não entendem você”;
– “eles não nos conhecem, realmente”;
– “eles não nos respeitam muito”;
– “eles não ligam para ninguém”.
Como regra geral, os estudantes ingleses têm melhor opinião de suas escolas que os estudantes franceses (tabela IX).
Cerca de metade dos participantes franceses entrevistados
(49,3%) tinha uma opinião negativa de sua escola, contra 11%,
na Inglaterra. A maioria dos comentários feitos pelos indivíduos
descontentes diziam respeito ao manejo da disciplina (punições
injustas), à condição das escolas e, principalmente, à qualidade
das relações existentes dentro da comunidade escolar. Se estudarmos as respostas dos adultos sobre a qualidade de suas relações com os estudantes e sobre a vida na escola, também neste
ponto os ingleses mostraram-se mais positivos que seus colegas
franceses. Desse modo, três em cada dez professores ingleses
(30,6%) e quase cinco em cada dez professores franceses (48,7%)
não estavam satisfeitos com a qualidade da vida em suas escolas.
Em ambos os países, a maior parte das recriminações tinha relação com a disciplina, com os resultados acadêmicos, com a classe
237
social dos alunos e, às vezes com as relações problemáticas ou
até mesmo inexistentes com os pais. Na França, os professores
queixaram-se, com maior freqüência, da falta de comunicação
com os colegas e das dificuldades de relacionamento dentro da
equipe docente e com a direção. Apenas 11,9% dos professores
foram de opinião que as relações eram boas na escola, contra
37,2%, na Inglaterra.
Tabela IX
Opinião geral
A dependência é muito significativa: 2 = 877,00; df = 4; 1-P= > 99,99%.
Nº de participantes: Inglaterra: 1.674. França: 3.120.
A IMPORTÂNCIA DA QUALIDADE DO
RELACIONAMENTO ALUNO/PROFESSOR
Os resultados desses estudos mostram que os estudantes
ingleses se sentem mais felizes e mais seguros em seu ambiente
escolar, o que é corroborado pelos resultados obtidos a partir
dos adultos. Há, na Inglaterra, não apenas melhor atmosfera relacional entre professores e alunos, mas entre todos na escola.
Como Grisay ressaltou em 1993 (Grisay, 1993), as condições que
levam a um melhor aprendizado não estão presentes quando a
indisciplina corre solta e quando os professores não colocam
esforço suficiente nas atividades escolares, ou faltam demais. Uma
das grandes diferenças entre os sistemas educacionais inglês e
francês se refere ao status ou ao papel dos professores. Os pro238
fessores ingleses passam cerca de 30 horas por semana na escola,
o que lhes permite conhecer melhor seus alunos, e também seus
colegas. Além disso, as tarefas de tutoria e a coordenação das
atividades extracurriculares, na forma de clubes, são parte de suas
obrigações profissionais. Isso poderia ser visto como perda de
tempo, mas ajuda a construir uma relação diferente com os alunos. Na Inglaterra, os professores não são meros especialistas de
uma matéria que tem que ser ensinada e, portanto, rejeitados pelos
alunos que não são bons naquela matéria. Quando eles coordenam atividades alheias à sua própria matéria, eles têm a oportunidade de serem vistos como pessoas, e não como especialistas
de uma disciplina. Esse ponto é preponderante, uma vez que as
pesquisas identificaram um largo hiato cultural entre professores
e alunos nas áreas mais carentes (Dubert e Duru-Bella, 2000).
Nossa própria pesquisa reflete essa diferença entre os respectivos códigos culturais: 44% dos professores franceses vêem seus
alunos como violentos, ao passo que, na Inglaterra, apenas 23%
são dessa opinião. O tema das atividades extracurriculares ainda
é objeto de debates acalorados na comunidade educacional francesa, onde algumas pessoas se opõem à idéia de que o ensino
competente de suas matérias deveria bastar. No entanto, os resultados relativos à questão da insegurança, da atmosfera da escola e da violência mostram que algumas escolas não conseguem
oferecer um ambiente seguro. Isso quereria dizer que os professores dessas escolas não são competentes? Temos sérias dúvidas.
Empurrar a responsabilidade de um mal-estar coletivo sobre indivíduos, quando se trata, na verdade, de um clima que se refere
à escola como um todo, inclusive a locais como o pátio de recreio, os corredores e outras áreas comuns, parece ser uma negação do coletivo e de seus papéis e implicações na vida da escola.
Melhor comunicação e presença mais constante, contribuindo
para a construção de uma cultura comum, uma cultura escolar
compartilhada por todos os membros da escola só podem ter
influências positivas sobre o clima geral, como demonstrou Newman, em fins da década de 80:
239
“Relações de confiança têm maiores probabilidades de serem
estabelecidas entre alunos e professores se estes passam algum
tempo juntos, em base individual ou em pequenos grupos, e se
eles participam juntos de atividades recreativas e de tutoria... ou
mesmo de matérias acadêmicas que não as curriculares. A ampliação da relação professor/aluno além do ensino de uma única matéria permite que tanto os alunos quanto os professores
se conheçam e se compreendam melhor. Contatos mais estreitos ajudam a desenvolver um senso de fazer parte e de responsabilidade recíproca maiores do que os que são possibilitados
pelos papéis fragmentários e passageiros” (Newmann, 1989).
Os alunos franceses muitas vezes reivindicam uma presença mais constante por parte dos adultos, e às vezes manifestam o sentimento de não serem apoiados por esses adultos,
quando expressam essa necessidade. O conceito de respeito é
também um dos elementos nodais dos comentários feitos tanto
por alunos quanto por professores. Na França, a falta de coerência no gerenciamento da disciplina e o sentimento de injustiça vivenciado por alguns (Debarbieux et al., 1999) estão entre
os elos mais fortes da análise de por que razão algumas escolas
funcionam mal. Os mesmos motivos são encontrados na amostragem inglesa, embora em menor escala: 33,6% dos alunos franceses acreditam que as punições sejam injustas, contra 19,2%,
na Inglaterra. É fatal que esse fato venha a afetar as relações
entre alunos e adultos nas escolas, freqüentemente levando a
uma rejeição da autoridade na forma de rupturas entre “eles e
nós” (Johnson, 1999; Pourtignat e Streiff-Fenart, 1995). Os
adultos queixam-se da falta de coerência na aplicação das regras e, às vezes, de falta de vontade, da parte de seus colegas,
de lidar com tarefas dessa ordem (Debarbieux et al., 1999; Montoya, 2000). Esse aspecto ilustra uma das grandes diferenças
entre a França e a Inglaterra, nas comparações relativas ao gerenciamento da disciplina. Na Inglaterra, a disciplina é mais de
responsabilidade coletiva de todos os adultos que de um ou
dois representantes da autoridade. As regras relativas à vida
240
cotidiana da escola ficam à mostra em todos os locais da escola, regras simples, impostas na forma “o que devo e o que eu
não devo fazer”, incluindo as questões de intimidação de colegas. Na amostragem inglesa, as escolas que registram os níveis
mais baixos de vitimização e insegurança são as que adotaram
uma política de administração compartilhada dos incidentes e
da vida comunitária, o que vem a confirmar as pesquisas anteriores sobre o impacto dessas políticas no clima da escola (Sharp
e Cowie, 1998). Essa abordagem só tem a ganhar se os professores conhecem bem não apenas os alunos mas também os
outros professores, graças à ampliação da rede de relações interna à escola e a melhor comunicação entre os adultos. Como
afirma Lawrence (1998) em sua análise da violência escolar nos
Estados Unidos: “Quando os professores e os gestores podem
estabelecer relações pessoais com os alunos, os riscos de violência diminuem. Desse modo, a maneira como a escola é administrada está correlacionada à violência. Uma administração escolar
firme, justa e harmônica parece ser um dos principais fatores na
redução da violência. Quando as regras são conhecidas e aplicadas de maneira firme e justa, há menos violência” (p. 22).
AUTO-ESTIMA E SENTIMENTO DE
COMPETÊNCIA
Quando os alunos não têm maneiras positivas de se fazer
notar e apreciar por seus colegas e pela comunidade escolar, um
modo de adquirir status ou de reagir a rótulos negativos é se comportar mal (Nijboer e Dijksterhuis, 1983):
Uma das conclusões mais notáveis deste levantamento se
refere ao efeito devastador exercido pelos rótulos negativos na
psique dos jovens. Atribuído de forma aparentemente inocente a
um aluno que falhou, um rótulo negativo pode destruir toda e
qualquer motivação e provocar um sentimento de rejeição e de
perda de rumo, no que se refere a seu senso de fazer parte de
241
algo. Os valores pessoais são distorcidos, as esperanças são destruídas e (parcialmente) uma marginalização auto-imposta pode
ser o resultado. Essa situação pode fazer com que o aluno busque a companhia de outros indivíduos ou grupos igualmente
marginalizados, tornando maior o risco de uma atitude pré-delinqüente” (p. 4).
Os resultados de nossa pesquisa mostram que as atitudes
dos adultos em relação aos alunos, tanto no nível acadêmico quanto de comportamento, são muito mais positivas entre os professores ingleses (tabelas X, XI).
A diferença entre os países é grande: o número dos professores franceses que consideram que o nível de seus alunos é muito
fraco é cinco vezes maior que na Inglaterra, e o dos que julgam
as relações como ruins é três vezes maior. Isso influencia o clima
de incivilidade e de problemas de comportamento. Os “casos
perdidos” muitas vezes se sentem “desconhecidos”, o que os leva
a evitar qualquer tipo de participação na vida escolar e a desenvolver um comportamento de confronto. Quando observamos
as diferenças entre a França e a Inglaterra, uma delas parece primordial: as sanções quase que sistematicamente são baseadas num
sistema binário de congratulações/repreensões. As atividades
extracurriculares são também uma maneira de dar a certos alunos um senso de valor-próprio e de incentivar sua auto-estima.
Como observa Pain (Pain et al., 1997) em seu estudo internacional sobre violência escolar, o que chama a atenção, quando visitamos as escolas inglesas, é a visibilidade e o valor conferidos ao
desempenho dos alunos em todas as áreas comuns da escola:
salões, corredores, salas de reunião, gabinete do diretor. Isso contribui para que os alunos tenham um sentimento de fazer parte
da escola e para reforçar a cultura escolar. Expectativas positivas
por parte dos professores, confiança na capacidade de seus alunos e uma forte participação de toda a comunidade são ingredientes que criam uma melhor atmosfera na escola (Forsyth e Tallerico, 1993; Grisay, 1993; Johnson, 1999).
242
Tabela X
Respostas às perguntas feitas aos professores sobre o nível acadêmico
de seus alunos
A dependência é muito significativa: 2 = 90,51; df = 4; 1-P= > 99,99%.
Nº de participantes: Inglaterra: 188. França: 236.
Tabela XI
Respostas às perguntas feitas aos educadores adultos sobre a qualidade
de seu relacionamento com os alunos
A dependência é muito significativa: 2 = 84,02; df = 3; 1-P= > 99,99%.
Nº de participantes: Inglaterra: 190. França: 235.
Os alunos não são os únicos a necessitar de reconhecimento
positivo. O trabalho de ser professor é difícil, devido ao stress e a
tensão que o acompanham. Tanto na França quanto na Inglaterra,
os professores são submetidos a muitas críticas relativas a seu profissionalismo. Eles, às vezes, são apontados como os únicos responsáveis pelo fracasso dos alunos ou pelos problemas de violência. Na Inglaterra, por exemplo, um inspetor afirmou em seu relatório de fevereiro de 1999, que 15.000 professores eram incompetentes (TES, 1999). Demailly (1991) mostrou como os professores
que se sentiam pouco à vontade ou preocupados com seu trabalho, e que tinham má opinião sobre si próprios e sobre sua capacidade, tinham maiores probabilidades de vir a desenvolver uma atitude agressiva – ou, no mínimo, menos positiva – em relação a
243
seus alunos, preferindo uma relação mais autoritária e chegando
mesmo a humilhar os alunos em sala de aula. Muitos professores
sentem-se amargurados pelas críticas públicas feitas por alguns
ministros, tanto na França quanto na Inglaterra, onde o moral dos
professores não é alto devido à falta de recursos humanos e financeiros, e devido também às críticas já mencionadas (TES, 2000). O
sentimento de que os governos, tanto da França quanto da Inglaterra, subestimam e não mostram interesse suficiente pelas dificuldades encontradas por aqueles que fazem o trabalho “de campo” só faz agravar o mal-estar generalizado e em nada contribui
para a auto-estima necessária para incentivar a interação e um clima social positivo em algumas escolas, embora nossas pesquisas
mostrem que os professores ingleses tendam a ser mais positivos.
A análise qualitativa de suas respostas em nossas entrevistas e às
perguntas abertas de nossos questionários nos permitiram isolar
alguns pontos interessantes que explicam em parte as diferenças
dos respectivos índices de satisfação:
• Os professores ingleses são menos isolados que seus colegas franceses, e sua socialização profissional incentiva
o trabalho de equipe. A presença de assistentes de turma ajuda a reduzir o isolamento do professor frente à
turma, e limita o stress inerente ao relacionamento com
os alunos. Como já foi mencionado em outros trabalhos (Blaya e Debarbieux, 2000), auxiliares de ensino
poderiam desempenhar esse papel após treinamento adequado. Aqui, também, não se trata de substituir a autoridade do professor ou de interferir em suas tarefas profissionais, mas de fornecer apoio visando a facilitar a
administração da equipe.
• Embora o sistema britânico de inspeções seja relativamente difícil de administrar e algumas vezes estressante,
ele tem certo valor. Na verdade, a carreira do professor
não depende da inspeção, cujo propósito é o de avaliar a
vida escolar e sua eficiência geral. As atividades que tendem a incentivar o desenvolvimento pessoal dos alunos,
244
as atividades extracurriculares organizadas pela escola, as
relações com a comunidade externa, particularmente com
os pais, são também parte do programa de inspeções, que
dura em média uma semana e é efetuado por três ou quatro inspetores. Desse modo, a avaliação não é feita em
termos individuais, mas em termos da política geral e da
atmosfera da escola, o que leva a maior colaboração entre os colegas e à valorização de seu trabalho. No entanto, a introdução de um currículo nacional e a ênfase colocada nos resultados dos diversos testes e exames, resultante da competição existente entre as escolas, vêm tendendo a direcioná-las a uma política mais voltada para os
resultados acadêmicos (Gewirtz, 1998), e elas vêm perdendo a flexibilidade que antes permitia a oferta de maior apoio individual, quando necessário.
CONCLUSÃO
Alguns pontos interessantes surgem deste estudo comparativo sobre a extensão do fenômeno da violência, o sentimento
de insegurança, a qualidade da atmosfera escolar e os fatores que
exercem influência sobre a situação em ambos os países:
Tanto na França como na Inglaterra, todas as escolas estudadas se deparam com violência e com problemas de comportamento. No entanto, sua intensidade varia de uma escola a outra e
de um país a outro: os professores e alunos franceses têm mais
queixas quanto a suas condições, manifestam um maior sentimento de insegurança e índices mais altos de vitimização.
O tipo de violência a que os alunos mais freqüentemente
se vêm submetidos, em ambos os países, é verbal. Os meninos
têm maiores probabilidades de serem vitimados que as meninas.
A violência grupal, mais comum na França, causa maiores traumas e tem forte influência sobre a percepção da comunidade
escolar como um todo, no que se refere ao seu clima.
245
Embora a escola não seja capaz de resolver todos os problemas, nem de compensar as desvantagens sociais, ela pode influenciar seu próprio clima e a violência que ocorre dentro de
seus muros.
A solução para os problemas de insegurança e de violência
não reside na instalação de sistemas de segurança de alto desempenho, mas sim na introdução de fatores organizacionais na própria escola e no sistema educacional, tais como:
• Relações professor/aluno de melhor qualidade, baseadas em comunicação mais intensa e num melhor relacionamento, graças a atividades extracurriculares.
• Disciplina justa e coerente.
• Oportunidades de os alunos virem a desenvolver autoestima, não apenas por meio de seus resultados escolares,
mas também por meio de atividades extracurriculares que
permitam que eles desenvolvam um senso de fazer parte
da escola e construam uma cultura compartilhada.
• Maiores incentivos no que concerne à participação da
equipe. Um sistema de inspeções mais global, que não
leve em conta apenas a relação pedagógica em sala de
aula. Trabalho de equipe e cooperação entre os adultos,
propiciados por uma liderança positiva, que não ignore
os fatores internos como possíveis fontes de desordem.
• Avaliações mais regulares de clima interno de cada escola
e do nível de violência, de modo a permitir medidas mais
apropriadas tanto de prevenção quanto de repressão.
Não há dúvida de que os fatores ressaltados acima contribuam para incentivar um clima escolar mais positivo, um ambiente seguro e um ensino de melhor qualidade (Grisay, 1993).
Outros fatores também merecem ser aprofundados, tais como a
influência da comunidade externa, como já ficou demonstrado
por outros estudos (Blaya, 2001; Blaya e Debarbieux, 2000; Gottfredson e Gottfredson, 1985).
Além do mais, seria errado concluir, a partir desta pesquisa, que, na Grã-Bretanha, “tudo é para o melhor, neste melhor
246
dos mundos”. Embora o clima social seja melhor nas escolas secundárias carentes por nós observadas, a presente amostragem
representa apenas parte da estrutura de ensino. Seria interessante ampliar este levantamento de modo a incluir escolas de todos
os tipos. Muitas escolas são confrontadas por grandes dificuldades financeiras, em decorrência de um sistema que determina o
montante do financiamento a ser recebido com base no número
de alunos matriculados. As escolas que não obtêm bons resultados nos exames podem ver o número de seus alunos despencar
de forma drástica, o que se deve à (relativa) liberdade que os pais
têm de escolher a escola de seus filhos. Quando essas escolas
conseguem sobreviver, muitas vezes se dá ao preço de um enorme compromisso profissional e pessoal por parte de toda a equipe escolar, resultando na exaustão dos professores e diretores e
numa crescente dificuldade em contratar novos professores (Johnson, 1999; Lupton, 2001). Aqui, também, essa situação penaliza
os alunos das áreas carentes, uma vez que as escolas que enfrentam dificuldades situam-se em bairros de baixa renda. Sem uma
mobilização global e sem injeção de novos recursos pelo governo
trabalhista, é bem possível que a situação venha a piorar ainda mais,
levando a cortes de pessoal e à redução das atividades, colocando
assim em perigo não apenas a segurança escolar, conquistada a tão
duras penas, mas também a qualidade do ensino oferecido àquela
parcela da população, que já vem sofrendo de exclusão social.
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250
A VIOLÊNCIA ESCOLAR E AS
POLÍTICAS DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
Égide Royer
Eu gostaria aqui de refletir sobre a importante questão
do formação de professores e de outros profissionais de educação. Irei fazê-lo na qualidade de diretor do Centro de Pesquisas
e Intervenção no Sucesso Escolar (CRIRES) e, mais particularmente, na de pesquisador, praticante e especialista na formação de professores na questão da violência e dos comportamentos agressivos nas escolas.
Em primeiro lugar, gostaria de reafirmar que as escolas
maternais não são unidades terapêuticas, mas sim ambientes de
desenvolvimento. Que a escola primária não é um centro de
readaptação, mas uma instituição educacional, e que a escola
secundária não é um instituto de pedopsiquiatria, mas um ambiente de aprendizagem privilegiado. Tratarei, portanto, da questão da formação de professores de um ponto de vista educacional, tomando como base um modelo de aprendizagem, usando a linguagem do educador e propondo o desenvolvimento de
capacidades coerentes com uma instituição educacional.
Devo advertir, de início, que apoio a tese de que a educação e a escola têm um importante papel a cumprir na prevenção e no manejo da violência e dos comportamentos agressivos
demonstrados por alguns jovens. Os professores, no decorrer
da sua formação inicial ou mais adiante, têm que desenvolver a
capacidade de intervir e de evitar comportamentos agressivos
251
nas escolas. Sejamos claros: a capacidade de ensinar a ler, escrever e fazer operações matemáticas não é mais suficiente para
educar os jovens que hoje freqüentam nossas salas de aula.
Tendo chegado ao fim dessas breves considerações, gostaria que nós estabelecêssemos um certo número de componentes essenciais que precisam ser integrados em qualquer estratégia para o desenvolvimento de conhecimentos e capacidades nos professores, visando a evitar e a lidar com a violência
nas escolas. Quer seja você ministro, diretor, pesquisador, profissional trabalhando ao nível da escola ou da comunidade, professor ou responsável pela formação de professores, creio que
esses elementos lhe serão úteis na avaliação de suas políticas ou
de suas práticas formadoras. Eles podem ser usados como uma
grade analítica, para determinar até que ponto o item “formação de professores” de sua política de prevenção da violência
escolar vem atingindo seus objetivos, e eles podem ajudá-lo a
fazer os acréscimos e as alterações necessárias.
Não tenho aqui a pretensão de tratar da questão de forma
exaustiva. Na verdade, uma política para formação de professores deve ser formulada sob medida, de modo a adequar-se ao
contexto. No entanto, creio que alguns componentes básicos
sejam comuns a todos os projetos formativos de professores,
no que se refere à prevenção e ao manejo da violência escolar.
Trabalho em educação há mais de 25 anos e, no entanto,
a cada dia , continuo me vendo surpreso ou até mesmo atônito,
com o nosso reflexo condicionado, como educadores, de lançar mão da solução mágica, da intervenção simples e universal
que, de forma rápida e infalível, resolveria problemas recerrentes que já vêm de longa data. Trata-se da síndrome do “para
cada problema complexo há uma solução simples”. Geralmente, a solução errada.
O que proponho aqui não é simples, mas, na medida do
possível, corresponde ao conhecimento que atualmente temos
nesse campo da prática profissional.
252
O AUMENTO NA FREQÜÊNCIA E NA
GRAVIDADE DOS PROBLEMAS DE
COMPORTAMENTO E DE VIOLÊNCIA
NAS ESCOLAS
Como pano de fundo, permitam-me afirmar o óbvio. Dados norte-americanos e europeus indicam com toda a clareza que
a violência nas escolas aumentou ao longo dos últimos vinte anos.
Sabemos bastante bem como os comportamentos agressivos e violentos se desenvolvem entre os jovens. Comportamentos dos pais caracterizados por punições, inconsistência e falta
de supervisão; vizinhanças que oferecem a oportunidade de associação com grupos transgressores sem oferecer a contrapartida de modelos pró-sociais; e escolas que privilegiam abordagens
disciplinares de natureza punitiva, cujas regras são vagas, cujas
expectativas são baixas e que apresentam altos níveis de repetência são fatores que contribuem para o aumento da freqüência
dos comportamentos agressivos nas escolas.
Desse modo, nosso conhecimento sobre as raízes da violência entre os jovens é relativamente bom. O que é urgente é
intervir: formar melhor nossos educadores para evitar a violência na escola e lidar melhor com ela.
AS FALHAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Vemo-nos confrontados com um problema que vem apresentando aumento constante, embora não tenha havido um aumento paralelo da capacidade dos professores de ajudar esses
jovens. Nos muitos seminários de formação que ministrei, na
América e na Europa, observei que os professores, diretores e
outros profissionais que trabalham nas escolas receberam pouquíssima formação sobre como propiciar uma boa educação aos
jovens que demonstram comportamento agressivo e, menos ainda, sobre como evitar a violência nas escolas.
253
As seguintes perguntas têm que ser formuladas: como devemos formar esses educadores? Qual deve ser nossa política de
formação nessa área? Como podemos oferecer aos atuais e aos
futuros professores a oportunidade de desenvolver capacidades
que correspondam aos progressos recentes das pesquisas sobre
o assunto? Até que ponto nós, como formuladores de políticas,
profissionais praticantes e pesquisadores, podemos considerar que
um programa de formação voltado para a violência nas escolas
atingiu seus objetivos?
Aqui estão oito indicadores, apresentados tendo em mente
o professor, que examinaremos em detalhe nos minutos seguintes:
OS COMPONENTES DE UMA POLÍTICA DE
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
A política de formação de professores e de evitar a violência e lidar com ela nas escolas vem sendo correta e eficaz se os
professores que trabalham em sua escola:
1. sabem e entendem como os comportamentos agressivos se desenvolvem nos jovens;
2. compartilham da crença de que a educação e, mais especificamente, a escola são capazes de contribuir para evitar que a violência se desenvolva e tenha continuidade;
3. intervenham de forma ativa, e não apenas reativa com
relação à violência e aos comportamentos agressivos que
ocorrem na escola;
4. estão convencidos de que, devido à diversidade dos problemas relacionados à violência, as intervenções devem ser
individualizadas e formuladas sob medida para cada caso;
5. valorizam o formação continuada ao longo de toda a
sua vida profissional, sabendo que a simples experiência não é o bastante;
6. são capazes de integrar em sua prática os novos conhecimentos surgidos das pesquisas;
254
7. desenvolveram capacidades sólidas de formar parcerias com
os pais, sabendo que a participação dos pais exerce influência considerável sobre a eficácia de sua intervenção;
8. reconhecem a importância essencial do trabalho de equipe, sabendo que suas intervenções em sala de aula não
serão suficientes.
Examinaremos agora cada um desses elementos separadamente:
Primeiro elemento: a política para formação em
violência escolar tem que oferecer aos professores
uma compreensão de como a violência se desenvolve
As conclusões dos muitos programas de pesquisa realizados nas últimas três décadas traçam um mapa bastante preciso
do desenvolvimento dos comportamentos agressivos nos jovens.
Entre outros, os trabalhos de Patterson e seus colegas sobre essa
questão foram notáveis. Sabemos que a presença de fatores de
stress familiar (pobreza, uso de álcool e drogas), um grito histórico de negligência parental e de abusos físicos, sexuais ou psicológicos, a presença de depressão e frustração, o sentimento de
impotência e a exposição a modelos violentos são, todos eles,
partes integrantes do desenvolvimento da violência e do comportamento agressivonos jovens.
Sabemos também que a capacidade dos pais de educar seus
filhos pequenos, independentemente desses fatores de risco, é
uma variável importante. É muito comum eu encontrar pais desesperados, batalhando com uma criança de quatro, cinco ou seis
anos, que virtualmente assumiu o controle do ambiente familiar
com seus ataques de raiva e outras técnicas de coerção.
Um programa de formação corretamente construído permitirá rapidamente que os educadores se dêem conta de que a
violência não está na criança, senão nos meios que a criança adotou para lidar com seu ambiente, algo que ela aprendeu.
Para que meus alunos entendam esse aspecto, costumo usar
uma metáfora. Imaginem a seguinte cena:
255
“Uma formiga abre caminho ao longo de uma praia que
foi formada pelas ondas e pelo vento. Você a observa. Ela vai em
frente, dobra à direita para tomar o caminho mais fácil para escalar uma pequena duna, depois vira à esquerda para evitar uma
fenda. Ela, assim, vai abrindo caminho até o formigueiro. A rota
da formiga, o caminho que ela usa para voltar para casa é irregular, complexo, difícil de prever. Mas essa complexidade, na verdade, é a complexidade da praia, não a complexidade da formiga” (Simon, 1981).
À luz de sua compreensão do desenvolvimento da violência e dos comportamentos agressivos, os professores bem-formados concordarão que eles terão que levar em conta a praia, e
não apenas a formiga, e que é necessária uma análise funcional
do contexto onde esses comportamentos ocorrem.
Segundo elemento: sua política de formação de
professores deve fazer com que os professores se
convençam de que a educação e, mais
especificamente, as escolas podem contribuir para
evitar o desenvolvimento da violência
Num artigo publicado há alguns anos sobre a adaptação
escolar na Europa e sobre as perspectivas de desenvolvimento
dos serviços educacionais nos países-membros da Comunidade
Européia, Seamus Hegarthy afirmou que os estudos sobre as escolas eficientes confirmavam a crença intuitiva de que as escolas
podiam fazer diferença, e que as crianças recebiam uma educação melhor em algumas escolas que em outras, tendo menos dificuldades de aprendizagem (Hegarthy, 1996).
O mesmo pode ser dito sobre a prevenção da violência nas
escolas e sobre a intervenção junto a jovens que demonstram
comportamento agressivo. Há escolas que punem e tentam controlar a violência (Royer, 1998, 1999), e há outras que educam
visando a evitá-la e substituí-la. Vocês hão de concordar comigo
que a escolha entre essas duas filosofias não cabe ao aluno.
256
Sua política de formação deve, portanto, capacitar os educadores a integrar às suas práticas tudo aquilo que sabemos sobre as escolas de alta qualidade.
Torna-se claro que essas escolas exemplares vislumbram a todos os seus alunos expectativas coerentes e precisas, estabeleceram
modos de intervir em situações de crise e preocupam-se tanto com
o aprendizado acadêmico quanto com os comportamentos agressivos. Este último ponto é da maior relevância. Atenção particular
deve ser dada à aprendizagem, oferecendo apoio ao mesmo tempo
em que as expectativas são mantidas altas (Coie e Krehbiel, 1984).
O modelo de referência que orienta as intervenções nesse
tipo de escola é um modelo que privilegia de forma resoluta o
aprendizado, como parte de uma relação de alta qualidade entre o
professor e o aluno. Uma escola, como já ressaltei antes, não é
nem uma clínica nem um centro de readaptação. Uma escola é um
lugar onde os jovens podem desenvolver e manter relações significativas, inclusive com adultos que se preocupam com seu bemestar. Uma escola é, também, um lugar de educação, um lugar onde
os alunos se preparam para a vida social. Para alguns dos jovens
que talvez tenham deficiências em termos de socialização, a escola
pode representar uma segunda oportunidade, ou mesmo uma última oportunidade de desenvolver as capacidades necessárias para
se integrar à comunidade, para que eles venham a ser capazes de
viver uma vida rica, tanto ao nível profissional quanto ao nível
pessoal. O “Projet européen des écoles de la deuxième chance”
(Royer, 1996), em minha opinião, é um exemplo promissor desse
tipo de papel social que as escolas deveriam estar desempenhando.
Terceiro elemento: a política de formação de professores
deve levar os educadores a intervir de forma ativa, mais
do que reativa, com respeito à violência e aos
comportamentos agressivos em sua escola
Essa abordagem ativa deve, antes de mais nada, ser
examinada no contexto da prevenção, da intervenção precoce.
Essa, sem dúvida, é uma missão que deve mobilizar o centro
257
nevrálgico da escola, assumir uma posição estratégica e
reconhecer, desde muito cedo, as crianças que apresentam
tendências de vir a desenvolver comportamentos agressivos, ou
que são vítimas de ambientes marcados por violência. Nos
primeiros anos de vida dessas crianças, as escolas podem oferecer
serviços para atender a suas necessidades. Intervenções desse tipo
devem se basear no reconhecimento precoce das crianças de risco
e na intervenção junto a esses alunos, a seus pais e a seus pares
(Royer, 1995; Royer, Bitadeau e Poliquin-Verville, 1996).
Na vida cotidiana da escola, essa postura preventiva significa também intervir a montante (nos primórdios), e não à jusante. Ela significa reconhecer que há pelo menos dois níveis de
intervenção, quando se trata de educar sobre a questão da violência: o universal e o específico.
As ações universais, de linha-de-frente, afetam a totalidade da
escola: as regras ou códigos de conduta da escola, a comunicação das
expectativas e das normas, o ensino das capacidades sociais a todos os
alunos de uma turma são exemplos desse tipo de intervenção.
As medidas específicas, de segunda linha, destinam-se a
determinados alunos que necessitam de ajuda especial. Consultas individuais e formação sobre como controlar ou substituir os
comportamentos agressivos são exemplos dessas medidas. Essas
ações específicas tornam necessária a intervenção precoce em
três áreas: na sala de aula, na casa da família e no pátio de recreio,
por meio de três agentes sociais decisivos: os pais, os professores
e os pares (Desbiens et al., no prelo; Dodge, 1993; Reid, 1993;
Royer et al., 1999). Para esses jovens, o ensino não é suficiente.
Quarto elemento: sua política para formação de
professores deve fazer justiça à diversidade dos
problemas e reconhecer as necessidades de
intervenção individualizada
Como na alta moda, ou na alta costura – e não há lugar
melhor que Paris para afirmá-lo – sua política tem que ser formulada sob medida.
258
Como vocês sabem, já há muitos anos vimos falando de
individualização na educação. No entanto, ainda sofremos da síndrome do “”prêt-à-porter”, que nossos colegas ingleses chamam
de a síndrome do “tamanho único” (Royer, 2001).
Os professores e os diretores possuem um longo histórico
de usar soluções simples e gerais para os graves problemas experimentados por alguns alunos em suas escolas. Tudo isso já deu
origem a muita insatisfação e desapontamento, em razão dos fracassos resultantes de intervenções desse tipo.
É muito freqüente que a gravidade do problema encontre um
correspondente menos que perfeito no poder de intervenção e no
nível dos recursos disponíveis, que muitas vezes estão aquém do
patamar exigido para que efeitos duradouros sejam alcançados
(Walker, 1996).
Um desses problemas está associado às avaliações: elas
devem ajudar as intervenções. Hoje, já está claro que os diagnósticos, pelo menos no que concerne à violência escolar ou aos
comportamentos agressivos, não representam intervenção suficiente. Os avanços no campo da avaliação funcional, como demonstram as exigências da nova lei americana sobre educação
especial, confirmam a necessidade de avaliar a situação de um
jovem ou de uma escola usando a perspectiva que empregamos
para explicar o comportamento da formiga na praia.
Esses dados têm que ser empregados na formulação de
intervenções sob medida, tanto no tocante às escolas, em sua
luta contra os problemas da violência, quanto em relação aos
jovens que são os causadores ou as vítimas dessa violência. Como
um bom alfaiate, você terá que adaptar a intervenção à situação
particular da escola e do aluno. Isso pode parecer difícil, mas os
processos de intervenção desse tipo realmente levam em consideração a complexidade dos problemas da violência e da agressividade hoje encontrados nas escolas.
Para esclarecer as coisas: um professor que tenha sido devidamente preparado para evitar e lidar com a violência, não pensará
jamais que quando a única ferramenta de que você dispõe é um
martelo, todos os problemas têm que ser vistos como pregos.
259
Quinto elemento: sua política entende a importância
da formação continuada
Como promotor desse tipo de políticas de formação, você
sabe que a simples experiência não é suficiente para lidar com
alunos que mostram comportamentos agressivos.
Como já ressaltamos antes, a maioria dos professores não
recebeu e ainda não está recebendo formação adequada sobre
como educar os jovens que mostram conduta violenta ou agressiva, ou sobre como intervir de forma preventiva em relação a
esses alunos.
Nos casos em que os professores tiveram a sorte de participar de sessões de formação, essa formação sempre acontecia
numa perspectiva de “forme-se e tenha esperança”. Mas essa é
uma das situações da vida nas quais ter esperança não basta.
Já ficou provado que as sessões formadoras tradicionais ,
baseadas na transmissão formal de informações aos professores,
são incapazes de provocar mudanças na prática de sala de aula.
Mas se você observar professores corretamente formados
em ação, você logo verá que eles são capazes de estabelecer, frente
a seus alunos, regras e expectativas claras com relação a comportamento e a aprendizado, de gerar efeitos corretivos e retrospectivos de natureza positiva, quando necessário, de usar repreensões quando preciso e de incentivar o desenvolvimento das capacidades sociais e do autocontrole entre seus alunos.
Mas como desenvolver essas capacidades nos professores?
A primeira estratégia é demonstrar que mudar algumas das
maneiras de agir dos professores não apenas irá beneficiar os alunos, mas também melhorar a qualidade de vida dos professores.
Da mesma forma que o aluno, que precisa sentir que ele
alcança sucesso quando muda seu comportamento, o professor
também precisa ver os resultados positivos dessa mudança de
método. Essa relação esforço-benefício é importante para os professores, uma vez que sempre se pede a eles – como no caso de
Quebec – que mudem sua maneira de agir. Se o esforço que eles
destinam a uma criança ou a um projeto escolar voltado para
260
evitar a violência na escola de fato melhora o comportamento
do aluno, dando aos professores um senso de orgulho e de êxito,
além de melhorar a atmosfera da escola e da sala de aula, há grandes probabilidades de que essa prática venha a ser mantida. Também é bastante provável que os professores venham a compartilhar essa prática com seus colegas, e tornem-se mais abertos a
sugestões e a intervenções que sejam semelhantes às que eles
acabaram de aplicar.
Para sermos claros, tanto os professores quanto os alunos
têm que se sentir incentivados, quando se pede que eles mudem
determinados métodos ou adotem métodos novos. Aquilo que é
sugerido por nós tem que contribuir para a melhora de sua qualidade de vida e para a atmosfera da sala de aula e da escola. Esse
aspecto muitas vezes é negligenciado.
Sexto elemento: sua política valoriza os professores
que integram a suas práticas de ensino algumas das
práticas exemplares e dos conhecimentos originados
nas pesquisas recentes sobre a violência escolar.
Nunca deixa de me surpreender – falo aqui da situação em
Quebec – que na formação universitária obrigatória de quatro
anos de duração, exigida para que alguém se torne professor, não
há cursos sobre pesquisa educacional ou sobre a violência no
ambiente escolar.
Como afirmou Gallagher (1987), os resultados de pesquisa
podem ser comparados ao petróleo bruto. Todos dizem que é
precioso, mas ninguém o colocaria diretamente no tanque de
gasolina de seu carro. O centro de pesquisa dirigido por mim
trata especificamente do processo de refinamento – o processo
de divulgar junto às escolas os resultados práticos das pesquisas
educacionais.
As intervenções relativas à violência escolar devem ter como
base as atividades das pesquisas fundamentais e aplicadas, que
façam sentido para os professores e diretores de equipe. Graças
ao corpo de conhecimentos construído por nós ao longo dos
261
últimos 25 anos sobre a questão dos comportamentos agressivos
e da violência, sabemos que algumas intervenções são mais eficazes que outras. Qualquer educador que deseje enfrentar o problema da violência no ambiente de sua escola, tem que estar de
posse da maior parte desses conhecimentos, como acontece também com médicos, engenheiros ou químicos, em seus respectivos campos.
É óbvio que um professor devidamente formado não recomendará como intervenção única o desenvolvimento de autocontrole numa criança agressiva de cinco anos de idade que morde seus colegas, ou o ensino de valores morais a um jovem delinqüente de 15 anos. Por meio de nossos dados de pesquisa, sabemos que intervenções desse tipo não produzem o efeito desejado. Elas talvez sejam necessárias, mas, geralmente, nem de longe
serão suficientes.
Sua política para formação de professores deverá, portanto,
incluir conhecimentos baseados nos resultados de pesquisas, de
modo a fornecer real apoio aos educadores que trabalham na prevenção e no trato com a violência escolar. Isso vale para a medicina e para a aeronáutica, e deve valer também para a educação.
Sétimo elemento: qualquer política para formação de
professores na prevenção da violência nas escolas deve
ajudar esses professores a desenvolverem capacidades
sólidas de estabelecer parcerias com os pais, sabendo
que a participação dos pais tem influência considerável
sobre a eficácia das intervenções dos professores
Não se trata apenas de uma afirmação politicamente correta, mas sim de um fato inequívoco: a parceria com os pais é um
ingrediente de extrema importância em qualquer intervenção que
tente evitar ou lidar com a violência escolar.
Formei a convicção de que uma intervenção, para ter eficácia, tem que levar em conta o ambiente onde vivem os alunos
e, em primeiríssimo lugar, seu ambiente familiar. Dentre outras
coisas, temos que trabalhar nas capacidades dos pais, e não ape262
nas nas dos alunos e dos professores. O ambiente familiar é uma
variável imprescindível na promoção do desenvolvimento e manutenção das capacidades que embasam uma boa integração social. Os dados das pesquisas são claros quanto a isso: o trabalho
com as capacidades dos pais desempenha um importante papel
no sucesso das intervenções propostas pela escola para tratar dos
comportamentos agressivos.
No que concerne às questões de competência e de habilidades sociais, nossos trabalhos nos levaram a concluir que as
mudanças duradouras advêm de uma comunicação de qualidade
com os pais (Royer et al., 2000).
No curto ou no médio prazo, os especialistas vêm e vão na
vida dos jovens, mas seus pais geralmente ficam.
Um professor formado para desempenhar suas funções frente à violência escolar deixou de lado o controle piramidal e está
resolutamente comprometido com uma parceria com os pais, visando a construir uma relação sólida de confiança e colaboração.
A formação anteriormente oferecida aos professores, que em geral não tratava do desenvolvimento de capacidades de maneira funcional, tendo como objetivo o trabalho com os pais, é, em minha
opinião, totalmente desatualizado, ou até mesmo jurássico.
Oitavo elemento: desenvolvimento de capacidade de
trabalho em equipe
Como protagonistas do desenvolvimento das políticas para
formação de professores, vocês sabem que as intervenções em
sala de aula, por si sós, não são suficientes para educar os jovens
que exibem comportamentos agressivos.
A escola não é uma ilha, senão parte da comunidade.
É claro que algumas situações têm que ser resolvidas pelo
professor em sala de aula; outras serão tratadas pelo diretor ou
pela polícia e, por fim, um pequeno número delas será entregue
aos serviços sociais. As escolas funcionais e os professores devidamente habilitados desenvolveram a capacidade de trabalhar em
parceria com as organizações comunitárias, definindo o campo
263
de ação de cada uma delas. A formação que você oferece a seus
professores deve prepará-los para esse tipo de colaboração.
Em sua política para formação, os professores devem ser
capazes de identificar com clareza suas próprias responsabilidades e seu campo de ação, no que tange à prevenção e as medidas
para lidar com a violência escolar, na perspectiva da colaboração
com os serviços oferecidos pela comunidade.
CONCLUSÃO
Para resumir, as seguintes políticas para formação de professores são recomendadas:
1. sua política para capacitar os professores a lidar com a
violência escolar inclui medidas que garantam que eles
tenham conhecimento de como a violência se desenvolve nos jovens;
2. sua política assegura de maneira inequívoca que a escola é capaz de contribuir para a prevenção do desenvolvimento dos comportamentos agressivos;
3. sua política defende uma abordagem ativa, e não reativa, no trato da violência escolar;
4. sua política promove o desenvolvimento da capacidade
de formular intervenções sob medida, sempre que necessário. Você não se contenta com soluções prontas,
prêt-à-porter;
5. sua política incentiva a formação continuada, sabendo
que a experiência, por si só, não basta para evitar ou
lidar com a violência;
6. sua política assegura que os conhecimentos embasados
nas conclusões das pesquisas recentes sejam transmitidos aos professores e integrados em suas atividades, juntamente com as práticas exemplares corroboradas por
esses estudos;
264
7. sua política dá prioridade ao desenvolvimento de uma
abordagem construtiva na formação de parcerias com
os pais, ciente de que a participação dos pais tem efeito
considerável sobre as intervenções subseqüentes;
8. sua política reconhece que a prevenção e o trato da violência é uma empreitada comunitária, que exige capacidade de trabalho em equipe. Você sabe que as intervenções com base na escola e na sala de aula não são suficientes para evitar que a violência venha a ocorrer.
Permitam-me concluir apresentando um nono e último elemento de sua política para formação de professores:
Cito J. K. Galbraith:
“A existência social é um processo. Quando um de seus problemas é resolvido, outros surgem, muitas vezes gerados pelas soluções anteriormente
encontradas e aplicadas. Temos como hábito, é claro, reivindicar soluções.
O mais das vezes, a melhor delas será apenas um sucesso temporário,
embora ninguém deva minimizar a importância de um sucesso. No entanto, o importante é voltar nossa atenção e pensar sobre o mecanismo que
usamos para tratar do fluxo de problemas que, como ondas na praia,
continuam vindo...” (J. K. Galbraith, 1976).
Em educação, ainda tendemos a julgar a saúde e o dinamismo de um sistema escolar pelo número de realizações novas
alcançadas por ele, e não pela qualidade da implantação dessas
realizações novas e de seu impacto sobre a vida escolar.
Seguindo-se a esse pensamento de Galbraith, o nono elemento de sua política é um mecanismo de avaliação que lhe permita tratar dos novos problemas com os quais você talvez venha a
se confrontar, e que, em graus variados, se relacionam à violência.
Todos nós nos preocupamos com o aumento dos
comportamentos agressivos e da violência ocorridos na maioria
de nossos sistemas educacionais. Conseqüentemente, uma medida
importante seria o desenvolvimento de uma parceria internacional
sobre as políticas e as práticas de formação de professores
relacionadas à prevenção da violência nas escolas.
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