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O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann

2007, Direito Justiça

O Direito nas Teorias Sociológicas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann LÍGIA MORI MADEIRA* INTRODUÇÃO Este artigo pretende enfocar a temática do direito a partir das teorias sociológicas contemporâneas de Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann. Pretende-se com a descrição das suas principais teses sobre o fenômeno jurídico, apontar semelhanças e disparidades, na tentativa de melhor compreender o direito, as decisões judiciais e a relação daquele com os demais campos e sistemas sociais. Deixa-se claro que, apesar da escolha dos autores, há, entre eles, uma certa disparidade quanto à observação e análise do fenômeno jurídico, uma vez que Luhmann é efetivamente um sociólogo do direito, com uma vasta produção teórica sobre a área, e uma preocupação em esmiuçar os meandros do sistema jurídico; enquanto em Bourdieu, a construção teórica sobre o direito subsume-se a poucos textos, não se podendo falar de uma grande teoria sociológica do direito. Pode-se sustentar que as análises do campo jurídico seguem os pressupostos teóricos de análise dos demais campos, aos quais Bourdieu se dedicou muito mais em suas investigações. Contudo, apesar da pouca * Socióloga, Bacharel em Direito, Mestre e Doutoranda em Sociologia, UFRGS. Professora das Faculdades de Direito da PUCRS e da UNISINOS. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, junho 2007 quantidade de material, sua análise do campo jurídico muito tem a contribuir, assim como a nova teoria de sistemas luhmanniana, para a compreensão do que é e de qual a função do direito hoje. Vamos pois aos autores 1 PIERRE BOURDIEU 1.1 Por uma teoria construtivista-estruturalista A obra de Pierre Bourdieu está calcada no método que ele próprio chamou de construtivismo estruturalista:1 Por estruturalismo ou estruturalista, eu quero dizer que existem, no próprio mundo social [...], estruturas objetivas independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou de limitar suas práticas ou suas representações. Por construtivismo, quero dizer que há uma gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação constitutivos do que chamo de habitus, por um lado, e, por outro, das estruturas sociais e, em particular do que chamo de campo. Partindo desse método, a teoria bourdiana vale-se de uma tríade conceitual: capitais, campo e habitus formam o seu referencial de análise da realidade social. A noção de capitais é herança da teoria marxista, embasada na determinância das estruturas econômicas como forma de estabelecer a conduta individual. Bourdieu, emprestando a idéia de Marx de capital como relação social que dá poder aos possuidores frente aos despossuídos, estende a noção a outras formas de riqueza, criando três outros tipos de capitais: cultural, social e simbólico; sendo que o capital econômico vai continuar fazendo parte de suas análises, mas sem a preponderância dada a ele pela teoria marxista. O capital cultural designa uma relação privilegiada com a cultura erudita e a cultura escolar; o capital social, uma rede de relações sociais que acaba estabelecendo relações de pertencimento; e o capital simbólico é formado pelo conjunto de signos 1 BOURDIEU, apud CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: Edusc, 2001, p. 48. 20 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. e símbolos que permitem ao agente se situar no espaço social. Essa última forma de capital permite aos dominantes imporem seu arbitrário cultural aos dominados, fazendo-os percebê-lo como legítimo.2 Outro conceito importante da teoria bourdiana é o de violência simbólica – muito recorrente na tentativa de compreensão do campo jurídico, implicando na capacidade de imposição consentida de um arbitrário cultural aos dominados.3 Mais diretamente relacionado ao nosso objetivo de discussão, o conceito de campo é a forma de compreensão das estruturas sociais que formam a sociedade. Segundo Bourdieu, uma sociedade diferenciada não forma uma totalidade única, integrada com funções sistemáticas, mas consiste em um conjunto de espaços de jogos relativamente autônomos que não podem ser remetidos a uma lógica social única. O campo pode ser considerado um sistema estruturado de forças objetivas, uma configuração relacional capaz de impor sua lógica a todos os agentes que nela penetram. Nenhuma ação pode ser diretamente relacionada à posição social dos atores, pois esta é sempre retraduzida em função das regras específicas do campo no interior do qual foi construída. Como um prisma, todo campo refrata as forças externas, em função de sua estrutura interna.4 Segundo Bourdieu, o campo é um espaço de conflitos e de concorrência, no qual luta-se pelo estabelecimento do monopólio do capital pertinente ao campo. Por fim, o último conceito da tríade bourdiana chama-se habitus, um sistema de esquemas de percepção, de apreciação e de ação. Um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que nos permite perceber, agir e evoluir com naturalidade num universo social dado.5 2 LOYOLA, Maria Andréa. Bourdieu e a sociologia. In: BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002, p. 66. 3 Ibidem. 4 Ibidem, p. 67. 5 Ibidem, p. 68. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 21 O habitus é uma matriz geradora, constituída historicamente, que opera a racionalidade prática, inerente a um sistema histórico de relações sociais. É uma espécie de criador inventivo, contudo sempre limitado pelas estruturas objetivas da sociedade. De acordo com a teoria bourdiana, o lugar e a evolução do indivíduo no espaço social relacionam-se, simultaneamente, ao volume global de capital que ele detém, à repartição desse capital em econômico, social e cultural, à evolução, no tempo, dessas propriedades e das estratégias de reconversão desenvolvidas. Uma das críticas à obra de Bourdieu, citada por Corcuff,6 é o problema da proeminência das estruturas, o que levaria o autor a negligenciar o peso das interações face a face nos processos de construção da realidade social. Contudo, rebatendo as críticas, Bourdieu estabelece que, apesar da imagem fortemente estruturada do mundo social, as ações sociais podem modificar as leis que estruturaram os campos. Assim, sua concepção de lei social indica regularidades limitadas no tempo e no espaço que duram enquanto durarem as condições institucionais que as sustentam. Essa breve demonstração dos principais conceitos da obra de Pierre Bourdieu deve-se ao fato de sua análise sobre o direito utilizar-se do referencial analítico-conceitual, portanto, para a compreensão do campo jurídico, faz-se necessário compreender que noção de sociedade tem esse autor. 1.2 O direito como campo jurídico Bourdieu incluiu a análise sobre o direito dentro de sua teoria dos campos, e capitais, bem como se utiliza da teoria do habitus para explicar a ocupação dos cargos jurídicos, as características e aspirações dos operadores do direito. O texto Para uma sociologia do campo jurídico7 insere-se nas várias análises que o autor fez sobre os diversos campos 6 CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: Edusc, 2001, p. 48. 7 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000. 22 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. constituidores da sociedade: o político, o econômico, o artístico, o escolar. Há que se referir, mais uma vez, que a preocupação com o direito na obra de Pierre Bourdieu tem uma posição marginal, uma vez que poucas são as referências que faz a esse campo. Todavia, conforme já salientado, a pequena contribuição acerca do campo jurídico em muito nos serve para a compreensão do direito e da racionalidade jurídica, uma das preocupações centrais de Bourdieu ao tentar entendê-lo. A análise do direito em Bourdieu dá-se a partir de sua própria estrutura interna. A preocupação com a conexão entre a organização das profissões jurídicas e a estrutura da racionalidade formal do campo, segundo o autor, explicaria a resistência à mudança. Bourdieu deixa claro que sua investigação não pretende frisar as insuficiências do campo jurídico num sentido externo, não abrangendo a função social do direito como instrumento de análise, nesse sentido, sua visão será uma visão interna, a partir das pressões de mudança e das insuficiências internas do campo jurídico, o que nos permitirá, mais tarde, traçar um paralelo entre sua teoria e a teoria sistêmica de Luhmann. A análise bourdiana do campo jurídico8 parte de uma crítica a uma visão puramente interna do direito (Kelsen), que o vê como um conjunto de normas incorporadas em uma estrutura formal; bem como a uma perspectiva estruturalista (Marx), que vê o direito como subproduto, determinado por condições internas (poder econômico, elites), que negam sua autonomia essencial. Bourdieu, ao aplicar os conceitos gerais de sua teoria à análise do direito, realiza uma crítica das posições corporativas no campo, revelando que a evolução do direito não está somente ligada a fatores externos, mas a regras próprias de competência entre os corpos profissionais no interior do referido campo. Toda a problemática do campo jurídico está na criação e acumulação de capital jurídico. O campo jurídico conserva os elementos característicos da teoria dos campos, assim, há agentes 8 RAVINA, Carlos Morales de Setién. La racionalidad jurídica en crisis: Pierre Bourdieu y unther Teubner. BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 59 e seguintes. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 23 em luta, constituindo um espaço de jogo, com o estabelecimento de competidores da doxa e da heterodoxia, essa divisão remete à luta entre sábios e profanos – entre aqueles que detém conhecimento jurídico e capacidade postulatória e dos que não detém, mas necessitam de tal saber. A luta também se dá entre as várias concepções de interpretação do direito, por exemplo, entre práxis e teoria, entre direito público e privado, ... A luta por dizer o direito estabelece-se entre juízes, advogados, promotores de justiça e os chamados doutrinadores. Al interior del propio campo jurídico existe una división del trabajo que se determina mediante la rivalidad estructuralmente reglada entre los agentes y las instituciones comprometidos en ese campo, fuera de toda concertación consciente, que constituye paradójicamente la verdadera base de un sistema de normas y de practicas que parecen fundadas a priori en la equidad de sus principios, la coherencia de sus formulaciones y el rigor de su aplicación y que, al aparecer así como participante a la vez de la lógica positiva de la ciencia y de la lógica normativa de la moral.9 A crítica feita por Bourdieu ao direito é de que o interesse do campo jurídico não está na eficiência jurídica ou na justiça social, mas sim na crença no formalismo do direito. A illusio do campo jurídico significa reconhecimento tácito dos valores que se encontram em disputa no jogo e o domínio de suas regras. Segundo Ravina,10 o conceito de habitus está diretamente envolvido com o de campo jurídico, pois os operadores do direito tendem a reproduzi-lo em suas ações, pensamentos, percepções. Como os operadores jurídicos vêm de classe dominante, tendem a reproduzir sua visão de mundo em suas ações jurídicas, seja em sentenças, recursos, petições, etc. No campo jurídico, o formalismo jurídico é a base pela qual os agentes e as instituições jurídicas constroem o monopólio do uso do direito. Toda a legitimação das decisões se dá na crença em sua neutralidade, universalidade e justiça. Assim, na opinião de Ravina11 todo o formalismo jurídico implica na acumulação 9 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 162. 10 Ibidem, p. 66. 11 Ibidem, p. 71. 24 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. de capital simbólico, imprescindível para a manutenção do poder pela doxa dentro do campo jurídico. En realidad, el contenido practico de la ley que se revela en la sentencia es la culminación de una lucha simbólica entre profesionales dotados de competencias técnicas y sociales desiguales; por ello, son desigualmente capaces de poner en marcha los recursos jurídicos disponibles mediante la exploración y la explotación de ‘reglas posibles’ e igualmente desiguales a la hora de utilizar esos recursos eficazmente, es decir, como armas simbólicas, para hacer triunfar su causa.12 A codificação do direito é uma forma de evitar as situações potencialmente perigosas para o campo jurídico, servindo como mecanismo de estabilidade do sistema, permitindo a estabilidade no interior do campo e sua apresentação como autônomo e necessário à sociedade. Segundo Bourdieu, as regras que aparecem como neutras, necessárias à administração da justiça contribuem para que o campo permaneça estável quanto às distribuições de poder em seu interior. Bourdieu acredita que a divisão de trabalho mediante a rivalidade entre os agentes e as instituições comprometidas com o campo constitui a verdadeira base de um sistema que, a priori, parece fundado na equidade de princípios, na lógica positiva da ciência e na lógica normativa da moral. Nesse campo, há agentes em luta por dizer o direito: Es este antagonismo el que se encuentra también en los orígenes de una lucha simbólica permanente en la que se enfrentan definiciones diferentes del trabajo jurídico como interpretaciones autorizadas de los textos canónicos. Las diferentes categorías de intérpretes autorizados tienden siempre a distribuirse en dos polos extremos. De un lado, la interpretación que mira hacia la elaboración puramente teórica de la doctrina, monopolio de los profesores que tienen a su cargo la enseñanza, bajo una forma normalizada y formalizada, de las reglas en vigor. Por otro, la interpretación que mira hacia la valoración práctica de casos particulares, privilegio de los jueces que llevan a cabo los actos de jurisprudencia y que pueden así, al menos en algunos casos, contribuir también a la construcción jurídica.13 12 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 180. 13 Ibidem, p. 168. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 25 Entre os campos, há sempre uma interpenetração, assim, o campo jurídico está contaminado por conteúdos políticos, éticos, mas apesar disso, aparece, para o senso comum, como uma forma neutra e universalizante pela própria construção da racionalidade. Segundo essa mesma idéia, há uma correspondência de poder no interior do campo jurídico e entre a posição dos agentes e das instituições no espaço social. Segundo o autor, a relação entre o campo jurídico com os demais campos se dá na medida em que há proximidade de interesses e afinidades dos habitus, ligados a formações familiares e escolares similares, o que favorece o parentesco das visões de mundo. Sendo assim, o campo jurídico tem um comprometimento com os valores e interesses dos dominantes. Assim, o sistema de decisão judicial rechaça as posições extremas que não se encontram na finalidade da manutenção do status quo, que, na visão bourdiana, busca o direito legalista liberal. Nessa crítica, Bourdieu afirma que as categorias de pensamento dos juristas são o instrumento perfeito para manter a distribuição de poder do campo e dele com a própria sociedade. El derecho consagra el orden establecido al consagrar una visión de este orden que es una visión de Estado, garantizada por el Estado.14 Portanto, Bourdieu vê o direito como uma forma de violência simbólica, permitindo que práticas de violência e dominação sejam legitimadas, convenientes e necessárias. En una sociedad diferenciada, el efecto de universalización es uno de los mecanismos, y sin duda entre los más poderosos, a través de los cuales se ejerce la dominación simbólica o, si se prefiere, la imposición de la legitimidad de un orden social.15 Segundo o autor, o capital jurídico é uma mescla de capital econômico e social, que pode tomar a forma de capital simbólico em algumas ocasiões. Nesse sentido, a utilização do formalismo e da codificação servem para defender a utilização de um 14 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 197. 15 Ibidem, p. 209-210. 26 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. método próprio, neutro, capaz de dar uma solução justa, usando princípios universais e universalizáveis, idôneos, para universalizar a decisão jurídica por si mesmo. A codificação serve para a fixação de rituais, para, através de mecanismos de negação do direito, estabilizar o sistema, evitando os riscos da indeterminação no interior do campo e permitir ao direito apresentar-se como autônomo e necessário. Com relação ao papel da decisão judicial, no campo jurídico, Bourdieu postula que esta tem muito mais um caráter ético dos participantes do campo do que efetivamente a normas puras de direito: Al conceder la naturaleza de sentencia a una decisión judicial que debe efectivamente más a las actitudes éticas lo los participantes que a las normas puras del derecho, el trabajo de racionalización confiere a la decisión la eficacia simbólica que ejerce toda acción cuando se legítima y se ignora su arbitrariedad. El fundamento de esta eficacia reside, al menos en parte, en el hecho de que la sensación de necesidad lógica sugerida por la forma tiende a contaminar el contenido, salvo que exista una vigilancia especial.16 Segundo Bourdieu, o direito consagra uma ordem estabelecida ao consagrar uma visão de ordem que é uma visão de Estado, garantida pelo Estado. Todavia, segundo ele, dado o papel preponderante que o direito tem na reprodução social, resta ao campo jurídico uma autonomia relativa, muito menor do que a outros campos que também contribuem para a manutenção da ordem. 2 NIKLAS LUHMANN 2.1 Por uma nova teoria de sistemas Luhmann cria uma teoria geral da sociedade, a partir de uma visão sistêmica que terá a pretensão de explicar a sociedade moderna supercomplexa. Sendo assim, o autor tem uma trajetória marcada por duas fases, na primeira ele desenvolve uma 16 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 180. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 27 teoria de sistemas funcional-estrutural, tendo por base a diferenciação entre sistema e ambiente; na segunda ele substitui a teoria dos sistemas abertos pela dos sistemas autopoiéticos.17 Luhmann estabelece a característica dos sistemas sociais: autoreferentes, autopoiéticos e operacionalmente fechados. Os sistemas sociais apresentam-se como sujeitos epistêmicos autônomos, pois possuem a capacidade de se auto produzir, de se auto-observar, e de se autodescrever, tornam-se autopoiéticos (produção de forma contínua a si próprios).18 A partir de sua teoria sistêmica, Luhmann estabelece a distinção entre três grandes sistemas sociais: os sistemas vivos, referentes às operações vitais; os sistemas psíquicos, constituídos pelos indivíduos; e os sistemas sociais, constituídos basicamente por comunicações. Nesse aspecto, a relação entre o sistema psíquico e o social se dá a partir de um paradoxo: O paradoxo expressa-se pelo seguinte fato: o que é necessário produzir é autoproduzido, mas a autoprodução ocorre porque existe uma abertura ao meio. Seres vivos são sistemas abertos e fechados, mas não abertos ou fechados, mas são fechados porque são abertos ao meio.19 Os sistemas sociais fazem o mesmo a partir da comunicação, da mesma forma que pensamentos são gerados através de um processo que leva a novos pensamentos através de uma rede organizada, a comunicação é o componente autopoiético dos sistemas sociais, uma comunicação fará nova comunicação de forma recursiva. A comunicação é o único elemento que permite transcender a clausura individual do sistema.20 Outros conceitos da teoria luhmanniana também importantes para a compreensão de sua concepção de sociedade, bem como de sistema jurídico são a complexidade e a diferenciação funcional. Complexidade, segundo o autor, é sinônimo de modernidade, ou seja, a totalidade das possibilidades no mundo, 17 NEVES, Clarissa E. Baeta; SAMIOS, Eva B. (Org.). Niklas Luhmann. A nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: UFRGS/Goethe, 1997, p. 10. 18 LOPES JR., Dalmir. Introdução. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 2. 19 Ibidem, p. 4. 20 Ibidem, p. 7. 28 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. também relacionada ao conceito de contingência. A diferenciação funcional dá-se entre os diversos sistemas sociais, que acabam passando por processos de autonomização até chegarem a ser dependentes e independentes ao mesmo tempo, como expressão da complexidade.21 Segundo Luhmann, os sistemas sociais têm uma dupla função, eles são os mediadores entre a extrema complexidade do mundo e a pequena capacidade do homem em assimilar as múltiplas formas de vivência. Tentando reduzir complexidade, os sistemas sociais utilizam-se da dupla seletividade, ou seja, selecionar as possibilidades do mundo a partir de critérios internos ao sistema. Os sistemas sociais, sistemas comunicativos que se reproduzem, são compostos de subsistemas: economia, política, direito, educação. Sendo assim, a análise sobre o sistema jurídico em Luhmann vai reproduzir seu entendimento sobre a sociedade moderna complexa. 2.2 O direito como subsistema da sociedade Para iniciarmos a análise do direito em Luhmann, partiremos do pressuposto teórico de que não há descompassos entre suas duas fases teóricas,22 a primeira, em que o sistema jurídico é aberto, e a segunda, no qual ele se fecha, tornando-se autopoiético. Segundo Lopes Jr,23 Nesta ‘segunda fase’, o direito é compreendido como um observador de uma realidade própria, que é construída dentro de seus limites, e tal realidade não é fruto da percepção individual daqueles atores que estão implicados na rotina de seu funcionamento, nem compreendido como um artefato cultural produto da ação de indivíduos – os quais reproduziriam a ‘lógica’ do sistema –, senão que o sistema jurídico constrói sua própria realidade através de suas operações jurídicas, e os atores humanos, no dizer de Gunther Teubner, 21 22 NEVES; SAMIOS, p. 11. O pensamento de Luhmann não deve ser dividido em fases uma vez que não há descompassos em sua obra. O que ocorreu foi incorporações de novos elementos para complementar antigas incursões teóricas (LOPES JR., Dalmir, 2004, p. 2). 23 Ibidem, p. 2. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 29 são, para o sistema, artefatos semânticos, ou seja, possuem um valor significativo, mas sem que diretamente sejam responsáveis pela realidade do sistema. Toda a análise do direito perpassa a preocupação fundamental de Luhmann, ou seja, o problema da ordem social, que para ele não tem fundamentação ontológica nem de nenhum tipo de princípios apriorísticos da razão.24 Para Luhmann, a problemática da ordem está relacionada a seus conceitos de complexidade e dupla contingência. Nesse mesmo modelo teórico, a sociedade tem como objeto não a presença de indivíduos, mas de comunicações. Assim como não há sujeitos individuais constituindo a sociedade luhmanniana, não há também a idéia de um sujeito ou consciência coletiva. Voltaremos a tal idéia mais tarde, quando contrapusermos as teorias dos autores desse trabalho. Como Luhmann preocupa-se com o problema da ordem, toda a sua teoria trata da impossibilidade de existência de um consenso fático entre os indivíduos, como mecanismo de orientação social, como fundamento da sociedade25 . Portanto, cada sistema só poderá ter conhecimento daquele setor que fica sob seu código particular e sua seletividade. É dentro dessa idéia que se situa o sistema jurídico. Segundo Luhmann, o direito ao longo da evolução sociocultural, foi se autonomizando da moral, a partir de um processo de diferenciação funcional,26 até chegar a constituir-se num sistema social autopoiético, composto de comunicações de expectativas normativas, cuja validade se remete de modo recursivo a outras expectativas normativas. De acordo com Neves,27 o sistema jurídico de Luhmann é autopoiético, no sentido de ser autorreferente e fechado: El derecho cumpre con la importante función de generalizar y estabilizar expectativas de conducta y regular conflictos mediante la constitución de procedimientos para hacerlo... El 24 AMADO, Juan Antonio Garcia. A Sociedade e o Direito na obra de Niklas Luhmann. ARNAUD, André-Jean; LOPES JR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 301. 25 Ibidem, p. 328. 26 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. 27 Ibidem, p. 93 e seguintes. 30 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. sistema jurídico se hace cargo del problema de la producción de expectativas normativas, y junto con el sistema económico es uno de los sistemas sociales parciales que más pronto se ha diferenciado y ganado su auto referencia en las sociedades complejas.28 A função do direito está em generalizar e estabilizar expectativas de condutas e regular conflitos mediante a constituição de procedimentos para fazê-lo. É para assegurar essas expectativas não modificáveis por atos particulares dos indivíduos que existe o direito, o sistema jurídico... A função do direito se aplica como estabilização contrafática de expectativas de comportamento, de modo que as normas jurídicas sejam expectativas de comportamento contrafaticamente estabilizadas.29 Na opinião desse autor30 O direito não é, na concepção de Luhmann, tanto um meio de evitar conflitos quanto de prevê-los e prepará-los, porém processá-los. Na própria estrutura de suas normas está implícita a previsão do conflito, pois sempre se coloca como alternativa de cumprimento e descumprimento. É o conflito precisamente, o descumprimento, o que exerce o efeito paradoxal de reforçar a expectativa normalizada, pois desencadeia os mecanismos tendentes à imposição contrafática dessa expectativa, que aparece assim reforçada perante os casos futuros. Daí que diga Luhmann que o direito usa a possibilidade de conflito para a generalização de expectativas. Parece-nos que, com essa visão, Luhmann aproxima-se bastante de uma concepção durkheimiana em que o direito é forma de integração social; mas não deixando de lado sua influência weberiana, a partir da idéia do direito como fator de consenso social. Em ambas as concepções clássicas está presente o problema da ordem. Como tal sistema é autopoiético, portanto fechado e autoreferente, todas as justificações são dadas de forma interna. Toda a autonomia operativa do sistema jurídico deve-se às operações 28 RODRÍGUEZ, Darío; ARNOLD, Marcelo. Sociedad y teoría de sistemas. Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1991, p. 176. 29 AMADO, p. 332. 30 Ibidem, p. 333. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 31 de código binárias, que estabelecem a diferença entre o justo e o injusto como resultado dessas operações. Não existem critérios de validez, nem reais nem hipotéticos do direito, é o próprio direito que se auto-estabelece e se autolegitima internamente como direito. A positividade não é mais que a autopoiesis mesma do sistema, a apreensão de que o direito não pode “valer” mais que um direito positivo, i.e., posto pelo próprio direito.31 La justicia, es decir el principio que permite diferenciar comunicaciones específicas entre lo justo y lo no justo, se desarrolla a través de programas con los cuales se definen las regras que permiten incluir sucesos en los valores establecidos en el código binario. Esto son modelados históricamente, varían entre un sistema jurídico y otro, y pueden cambiar con el tiempo, permitiendo que la justicia se vaya haciendo cada vez más justa.32 Em Luhmann, a partir de sua organização interna, o sistema jurídico acaba por estabilizar-se, pois todas as operações se reproduzem sem a influência externa, a não ser pela assimilação seletiva de fatores do entorno, de acordo com os critérios do próprio sistema jurídico. Toda a validação do direito é realizada de modo recursivo, por seus próprios códigos jurídicos. O direito positivo reproduz-se de acordo com seus próprios critérios e códigos de preferência.33 No sistema jurídico luhmanniano, a codificação é imprescindível para que haja uma separação entre o direito e os aspectos morais ou políticos. Segundo Luhmann, é a partir dos procedimentos eleitoral, legislativo e judicial do Estado de direito que há a filtragem e a imunização do sistema político e jurídico quanto às influências contraditórias do entorno como a diversidade de expectativas, interesses e valores da sociedade moderna. O dissenso conteudístico em face de valores e interesses torna os procedimentos democráticos do Estado de direito, que implicam o princípio da legalidade, não só uma exigência sistêmico-funcional como também uma imposição ética da sociedade moderna.34 31 32 33 34 32 AMADO, p. 334. RODRÍGUEZ; ARNOLD, p. 177. NEVES; SAMIOS, p. 95. Ibidem, p. 97. • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. Após a explanação da teoria luhmanniana sobre o direito a partir do referencial da nova teoria de sistemas, achamos importante discorrer a respeito de uma de suas últimas construções voltadas à compreensão do sistema jurídico: a discussão sobre o décimo segundo camelo, texto em que Luhmann irá tratar do caráter do direito, o papel das decisões judiciais e a relação do sistema jurídico com os demais subsistemas sociais e com o sistema psíquico. Luhmann, nesse aspecto, tece contribuições acerca das normas e dos processos de decisão, referindo que a textualização das normas sugere sua dissociabilidade do processo de decisão, uma vez que as normas tornam-se objeto de decisões próprias, as quais seguem as normas. Segundo ele, as decisões não seriam decisões caso não reagissem à expectativa da norma. Segundo o autor, o direito está calcado em valores como o seu funcionamento sem atritos e a sua responsabilidade social. Para ele, a norma fundamental do Estado de Direito é vista como um valor, como uma aquisição civilizacional. Sendo assim, o direito pode ser mudado apenas dentro de seus próprios limites. O sistema jurídico apresenta-se digno de regras de procedimento cuja relação com a hierarquia material deve continuar obscurecida. De acordo com Luhmann, a diferenciação não pode significar um isolamento relativo, mas sim um crescimento de independências e dependências. Assim, o sistema jurídico seria autônomo apesar de todas as suas dependências causais relativas ao seu ambiente social, enquanto nele, e só nele, é decidido sobre o direito e o não-direito. O sistema reproduz a si próprio através de operações recursivas-fechadas, de forma que ele produz o sentido normativo a partir da base do sentido normativo. Ele não pode encontrar sua qualidade normativa de seu meio envolvente e tampouco pode fornecer tal qualidade ao seu meio; pois toda comunicação que se refere às normas jurídicas, nada mais é do que comunicação interna e própria do sistema.35 35 LUHMANN, Niklas. A restituição do décimo segundo camelo: do sentido de uma análise sociológica do direito. In: ARNAUD, André-Jean; LOPES JR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 63. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 33 Com relação às decisões judiciais, Luhmann estabelece que os casos não problemáticos são fundamentados na ponderação de interesses, enquanto nos mais complicados, essa fundamentação cede lugar à auto-referencia do sistema, ou seja, a referencia dos casos já decididos. Cada decisão duvidosa antecipa o sentido para a produção de outras decisões, assim como, por outro lado, aproveita essa prática estabelecida através de reiteradas decisões (de gêneros parecidos).36 Nesse sentido, há estabilização de expectativas apenas por ocasião de um conflito atual ou iminente. O sistema jurídico deve aguardar o conflito para poder evoluir. Na grande maioria das regulações, o direito cria, em torno de um ponto de inflexão, conflitos para evitar conflitos, e os motivos não residem numa antecipação da espera da solução do conflito, senão na regulação do agir enquanto tal.37 Segundo Luhmann, o sistema jurídico calca na fundamentação das decisões a possibilidade de observação de tendências e a conseqüência de determinação do que será decidido. Além disso, o autor continua, nesse momento, sustentando a legitimidade do sistema jurídico – assim como faz Weber – no caráter de legalidade. Luhmann estabelece que o direito está baseado em um paradoxo, que é o fato de o direito positivo só ter validade na medida em que pode ser modificado através de uma decisão. No tocante às interferências no sistema jurídico, assim como Bourdieu, Luhmann afirma que o sistema jurídico, autoreferente, autopoiético e fechado, acaba sendo conciliado com a política sob a forma do Estado de Direito. O direito é o instrumento de legitimação da política. O sistema político vale-se do direito a fim de justificar seu poder.38 Segundo o autor: Finalmente devemos aceitar que a política somente participa no direito de maneira parasitária, e isso nos leva à questão de saber se e em que medida o sistema jurídico é capaz de regenerar o direito de forma autopoiética, e quando as influências jurídicas ganham relevo.39 36 37 38 39 34 LUHMANN, in: ARNAUD; LOPES JR, 2004, p. 66. Ibidem, p. 69. Ibidem, p. 90. Ibidem, p. 93. • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. Também com relação à interferência da economia no direito, Luhmann tece comentários, demonstrando como houve uma reação do direito no sentido de generalizar instituições econômicas: Pela primeira vez todas as operações econômicas orientam-se no dinheiro. Todas as limitações do desejo, que estariam fundadas num sentido objetivo das coisas, encontram-se niveladas... Não é possível apreciar como esta evolução é interpretada pelo direito. A história recente do direito mostra que a primeira reação consistiu numa grande generalização de certas instituições, sobretudo aquelas da propriedade e do contrato, como se fosse um caso de se reproduzir no interior do direito a mobilidade do dinheiro.40 No entanto, o autor rebate a tese de que o direito não pode captar todos os ressentimentos nascidos do fato de que os benefícios e as trocas poderiam ser distribuídos de outra maneira.41 3 Pierre Bourdieu e Niklas Luhmann: decisões judiciais e inter-relação entre campos e subsistemas sociais Tentando fazer alguma espécie de interconexão entre o campo jurídico de Bourdieu e o sistema jurídico de Luhmann, iniciamos com a diferença básica de que, para Bourdieu, o campo é constituído de agentes em luta - os indivíduos estão dentro do campo, competindo pela interpretação do direito, realizando ações reflexivas. Já em Luhmann o sistema jurídico é composto não de agentes, mas sim pelas expectativas normativas, que irão refletir as influências do entorno, onde estão os indivíduos. Segundo este autor, para o sistema jurídico, os indivíduos são artefatos semânticos, que não participam diretamente da determinação do direito. Quanto a essas diferenças, interessante é citar o próprio Bourdieu e a crítica que faz à teoria de sistemas e sua recursividade: La teoría de sistemas no puede comprender que el campo jurídico encuentra su principio de transformación en sí mesmo, 40 41 LUHMANN, in: ARNAUD; LOPES JR, 2004, p. 98. Ibidem, p. 100. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 35 en las luchas ligadas a los intereses asociados a las distintas posiciones, a pesar de que tome del espacio de todas las perspectivas el lenguaje en el que se expresan esos conflictos.42 Bourdieu também se opõe à idéia de uma autofundamentação do direito em si mesmo, criticando assim a concepção autopoiética de Luhmann: El cuerpo de juristas tiene aún menos reparo en convencerse de que el derecho encuentra su fundamento en sí mismo, en una norma fundamental como norma normarum – por ejemplo, la Constitución – de donde se deducen todas las normas de rango inferior, puesto que la communis opinio doctorum, enraizada en la cohesión social del cuerpo de interpretes, tiende a conferir la apariencia de un fundamento transcendental tanto a las formas históricas de la razón jurídica como a la creencia en la visión del orden social que ellas producen.43 Há uma crítica tecida por Luhmann com relação ao entendimento bourdiano do campo ou sistema jurídico ser pensado como sendo uma tarefa decisional organizada profissionalmente.44 A disparidade entre eles revela-se no momento em que Luhmann elucida que: A análise sociológica habitual do agir social deixa-se guiar pela suposição que os atores têm de suas próprias ações, assim são as teorias do cotidiano ou a ideologia das profissões, que estão em curso e que são falhas. Um tal ‘principle of suspection’ é consolidado na tradição antropológica, etnológica, psicológica e sociológica. As fórmulas que se encontram dentro deste contexto dão a impressão de que a sociologia reclama para si posição privilegiada do saber.45 Ainda refletindo a participação ou não dos indivíduos dentro do direito, Bourdieu sustentará a existência de uma preocupação com a manutenção do status quo, desenvolvida pelos profissionais do campo. Segundo ele, o campo jurídico é um espaço controlado pelas regras de competência entre os corpos pro42 BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000, p. 160. 43 Ibidem, p. 164-165. 44 LUHMANN, in: ARNAUD; LOPES JR, 2004, p. 60-61. 45 Ibidem, p. 55. 36 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. fissionais. Já em Luhmann, os operadores também se utilizam da recursividade, no sentido de que as decisões judiciais reflitam aquilo que é determinado internamente pelo sistema jurídico. Todavia, se em Bourdieu os operadores do direito acabam tendo habitus e trajetórias que os situam como dominadores, tendo uma visão de mundo similar a dos dominadores dos demais campos responsáveis pela reprodução social; em Luhmann há aquilo que ele aponta como desprestígio das profissões jurídicas. Uma das similitudes entre os autores está na codificação, racionalidade e formalismo do direito. Contudo, no campo jurídico essas são formas de preservação de poder da doxa; enquanto em Luhmann tais conceitos refletem um processo de diferenciação funcional que fez com que o direito se autonomizasse, principalmente da política e da moral, com a evolução da sociedade. Tanto em Luhmann quanto em Bourdieu há a tese de que as classes populares não dispõem de capitais ou linguagem para acompanhar o estabelecido pelo direito. Bourdieu vai traçar uma distinção no campo jurídico entre sábios e profanos, que são os que necessitam do campo, mas não compreendem sua atuação. Luhmann dirá que as partes, principalmente das classes mais baixas da população não podem acompanhar a linguagem do sistema jurídico. No sistema jurídico luhmanniano, a codificação é imprescindível para que haja uma separação entre o direito e os aspectos morais ou políticos. Aqui, encontramos outra diferença crucial entre Luhmann e Bourdieu, uma vez que este denuncia a codificação e o formalismo como formas de fazer com que a violência simbólica seja legitimada, neutralizada; enquanto aquele tende a ver na codificação ou positivação uma forma de autonomizar frente às valorações sociais, bem como de garantir respeito às diferenças. Segundo Bourdieu, o formalismo e a codificação resultam responsáveis pela construção de um monopólio de saber e técnica, externalizado em termos do que ele chama de capital jurídico, uma mescla de capital cultural, econômico e simbólico. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 19-39, 2007 • 37 Para Luhmann, pois, a codificação seria a forma básica de independizar as decisões jurídicas de questões como riqueza, linguagem, classe, política, moral; para Bourdieu, é justamente pela atuação de operadores jurídicos com habitus de classe dominante que o direito, ou campo jurídico acaba permeado por questões políticas, econômicas, ético-morais, e isso se transforma em neutro pela atuação do direito. Quanto ao caráter da decisão judicial, ambos os autores partilham da tese de que no direito as decisões são calcadas na neutralidade e na justiça. No entanto, em Luhmann, esses critérios são estabelecidos internamente, segundo concepções do próprio sistema jurídico, que estabelece um código binário justo/ injusto, direito/não-direito. Já Bourdieu alerta para o fato de que o caráter de neutralidade e justiça do campo serve para inibir as posições extremadas, que possam romper com a estabilidade do campo jurídico, calcado no poder da doxa, e da sociedade como um todo. Nesse momento, cabe referir o entendimento dos autores com relação à função social do direito: se em Luhmann a função social do direito está na resolução de conflitos da sociedade; em Bourdieu a função é a reprodução social. Ao mesmo tempo em que os autores partilham do entendimento de que o direito cumpre uma função legitimadora na sociedade, a partir do formalismo, codificação e legalidade, Luhmann estabelece que há uma legitimação procedimental, enquanto Bourdieu afirma que o direito é uma forma por excelência de violência simbólica, de naturalização de práticas arbitrárias. Por fim, cabe referir o entendimento dos autores quanto à relação do campo e sistema jurídico com as demais estruturas sociais. Assim, Bourdieu refere que há uma interconexão entre os campos, sendo o campo jurídico permeado por questões econômicas, políticas e éticas; enquanto Luhmann estabelece uma autonomização frente às valorações sociais, sendo a codificação uma forma de independizar as decisões jurídicas de questões como riqueza, classe, política, e moral. 38 • O direito nas teorias sociológicas ... / MADEIRA, L. M. REFERÊNCIAS AMADO, Juan Antonio Garcia. A sociedade e o Direito na obra de Niklas Luhmann. ARNAUD, André-Jean; LOPES JR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. BOURDIEU, Pierre; TEUBNER, Gunter. La fuerza del derecho. Bogotá: Ed. Uniandes, 2000. CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. Bauru: Edusc, 2001. GUIBENTIF, Pierre. Entrevista com Niklas Luhmann. ARNAUD, AndréJean; LOPES JR, Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 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