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Modernidade e revolução social: uma digressão sobre os significados da imanência e da transculturação nas sociedades modernas e contemporâneas

2007

Ciências Sociais Unisinos 43(1):36-45, janeiro/abril 2007 @ 2007 by Unisinos Modernidade e revolução social: uma digressão sobre os significados da imanência e da transculturação nas sociedades modernas e contemporâneas Modernity and social revolution: a digression about the meanings of immanence and transculturation in modern and contemporary societies Luís Antonio Groppo1 Resumo Através de revisão bibliográfica, discutem-se as noções de modernidade e modernização, destacando a configuração de ambas nas revoluções burguesas e considerando o momento atual, a “era do globalismo”, como a de uma nova aceleração dos processos de modernização socioeconômica, muito mais que uma ruptura de paradigmas que nos levariam à “pós-modernidade”. Contudo, a reflexão sobre algumas noções trazidas por pensadores críticos que se identificaram em algum momento com o “pós-modernismo” deve ser feita para compreender melhor ambos os momentos da modernidade – o atual e o das revoluções burguesas. Trata-se da noção de emancipação segundo Boaventura Sousa Santos e de imanência segundo Michael Hardt e Antonio Negri. Esta reflexão é a que se tenta também fazer aqui, complementada pela reflexão sobre a noção de transculturação. Uma concepção mais plural e complexa de modernidade pode ser, deste modo, construída. Palavras-chave: modernidade, modernização, revolução, imanência, emancipação, transculturação. Abstract Through a bibliographic review, the article discusses the notions of modernity and modernization. It highlights the configuration of both notions in the bourgeois revolutions and considers the present moment, the “global era”, as a new acceleration of processes of socio-economic modernization, rather than a breaking of paradigms that would lead us to “post-modernity.” However, a reflection about some notions proposed by critical thinkers who at some point identified with “post-modernism” must be done in order to better understand both moments of modernity – the present one and the moment of the bourgeois revolutions. These are the notions of emancipation according to Boaventura Sousa Santos and of immanence according to Michael Hardt and Antonio Negri. This reflection is done here and is supplemented by a reflection about the concept of transculturation. In this way a more plural and complex view of modernity can be constructed. Key words: modernity, modernization, revolution, immanence, emancipation, transculturation. 1 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 36 8/5/2007, 23:28 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo), Unidade Americana/SP. Luís Antonio Groppo 37 Introdução Quando se analisam as duas principais revoluções burguesas do final do século XVIII, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, percebe-se que cada qual traz consigo um aspecto mais forte, a princípio, da criação da sociedade moderna: a modernização (tecnológica e econômica) na primeira; a modernidade (sociocultural e política) na segunda. Sobre a Revolução Francesa, é claro que ela foi precedida por diversas agitações sociais que já prenunciavam seu caráter, em destaque a Independência dos Estados Unidos (1776-1783), ela mesmo um movimento que inspirou a Revolução Francesa. Mas a Revolução Francesa (1789-1815) foi a revolta mais profunda e radical em seu tempo, teve mais conseqüências, maior participação popular e influenciou movimentos pela independência nas colônias americanas e revoluções sociais subseqüentes (Hobsbawm, 1991, cap. 3). Ela implicou a ascensão revolucionária dos valores da modernidade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade – e logo, também, mais do que qualquer outro, a Propriedade. Implicou a expressão revolucionária dos processos de secularização da vida social, da individualização e do predomínio da sociabilidade “burguesa”. Politicamente, significou a ascensão de valores, ideais e padrões como direitos humanos, constituição, república, cidadania, democracia. Deu início às revoluções populares e a ideologias como o liberalismo moderno, republicanismo radical, nacionalismos e socialismos. A modernização tem sido principalmente associada à Revolução Industrial. O termo Revolução Industrial foi criado por socialistas ingleses e franceses na década de 1820, em analogia à revolução política da França. Mas, na verdade, tal revolução se iniciou antes mesmo da Francesa, mais ou menos na década de 1780, como uma espécie de “[...] retirada dos grilhões produtivos das sociedades humanas, que daí em diante se tornaram capazes de multiplicação rápida, constante e até o presente, ilimitada de homens, mercadorias e serviços” (Hobsbawm, 1991, p. 44). A origem da explosão industrial inglesa na década de 1780 pode ser buscada bem antes desta data. Mas é nesta década que se observa uma guinada repentina nos índices econômicos. Tal evento criou o “capitalismo industrial” e iniciou mesmo a hegemonia do capitalismo como sistema econômico e social em todo o mundo. Para Hobsbawm (1991, cap. 2), foi o maior acontecimento da história mundial, pelo menos desde a invenção da agricultura. A Era das Revoluções, entre 1789 e 1848, segundo os limites cronológicos sugeridos por Eric Hobsbawm, assinala, ainda segundo o historiador inglês, um momento ímpar da história da humanidade. Ao meu ver, diante do projeto e do processo da modernidade, a Era da Revolução é o momento de uma “viragem”, a superação de uma encruzilhada na história da moderni- zação. Se se der crédito aos diversos autores que serão aqui trabalhados, é ao mesmo tempo o momento da revolução social, da consciência pública sobre a modernidade, da aplicação prática do projeto da modernidade, do encontro entre modernidade e capitalismo industrial e da concretização da modernidade como ordem social nacional-estatal. Estes aspectos, discutidos a seguir, foram originalmente trazidos à tona pelo autor em estudos que desejavam compreender a irrupção em grande escala de um tipo especial de ideologias, as quais apontam para o tempo futuro concreto: as utopias.2 A modernização, notadamente em seus momentos de expansão acelerada, torna-se – de modo não intencional – uma usina geradora de utopias. Na verdade, não só utopias, mas também “nostalgias”, nas quais o futuro pode ser sonhado como um renascimento mais pleno das experiências da história e da espécie. Utopias e nostalgias que são ao mesmo tempo fruto da modernização e uma revolta contra os sentidos tomados por ela (cf. Mannheim, 1986). Como anunciado, a Era das Revoluções foi rica em ideologias e utopias. Ao que parece, a virada do século XX ao XXI é um momento análogo, em que renascem fenômenos ideológicos similares, que fazem, inclusive, uso de temáticas e retóricas muito semelhantes. Geram-se novamente reações contrárias aos efeitos sociais negativos que se evidenciam, bem como se constroem nostalgias e utopias baseadas nas promessas e valores do “projeto da modernidade”. A comparação permite supor que fenômenos históricos análogos estariam se dando. Viver-se-ia hoje, portanto, uma nova explosão da modernização, conhecida como “globalização”, que estaria construindo uma “modernidade-mundo”. Uma diferença logo se impõe entre as duas Eras de Revolução Social. Na globalização, a extensão e a complexidade do fenômeno são ainda maiores do que o surto de modernização promovido pelas revoluções burguesas que se deram a partir do final do século XVIII. Logicamente, as novas nostalgias e utopias refletem – e precisam refletir – o novo grau de complexidade e diversidade desta nova era de revolução social. Diferentemente da primeira Era de Revoluções, hoje não se trata apenas da geração da “modernidadenação”, nem da transformação do “Ocidente” em centro de impérios coloniais. A nova era revolucionária parece constituir uma “modernidade-mundo”, revelando a modernização como um gigantesco processo de transculturação (Ianni, 2000). Outra opção é, certamente, conceber estas novas transformações como o despontar de uma nova era, a “pós-modernidade”, uma ruptura radical com a civilização constituída pelas ideologias totalizantes da modernidade e a infra-estrutura socioeconômica da modernização. Este texto tenta buscar compreender, diversamente, a contemporaneidade como a modernidade e a modernização em novas sintonias, em novas ondas de expan- 2 O autor desenvolveu a pesquisa “Utopias e nostalgias na era do globalismo” como professor-pesquisador do Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo), Unidade Americana, a qual deu origem a diversos artigos publicados em revistas acadêmicas de Ciências Sociais, entre os quais destaco Groppo, 2003a, 2005a e 2005b. Ela está tendo continuidade no Grupo de Pesquisa CAIPE (Conhecimento e Análise das Intervenções na Práxis Educativa Sócio-Comunitária) coordenado por este autor e que faz parte do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Educação do Unisal. Volume 43 • número 1 • jan/abr 2007 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 37 8/5/2007, 23:28 Modernidade e revolução social 38 são e aprofundamento. Mas, para tanto, dialoga com contribuições que, originalmente, parecem levar ao caminho que afirma a pós-modernidade: a emancipação segundo Boaventura Sousa Santos (2001), a imanência segundo Michael Hardt e Antonio Negri (2001) e a transculturação. A experiência da modernidade David Harvey (1993) considera a modernidade, ao mesmo tempo, como transitoriedade (tendência ao caos, mudança e metamorfoses constantes) e desejo de ordenação. Tal dualidade seria uma característica marcante das sociedades ocidentais nos últimos séculos. Os autores discutidos a seguir, também contêm esta concepção dualista sobre a modernidade, em que pólos opostos, em busca da conciliação, definem o paradigma da modernidade, como emancipação e regulação, desenvolvimento e destruição, imanência e transcendência, desculturação e universalidade etc. Assim como fará Marshall Berman (1996), discutido a seguir, Harvey (1993) revisita diversos pensadores dos séculos XIX e XX para interpretar as principais concepções de modernidade aí traçadas. Destaca-se a concepção que se concentra na dualidade efemeridade versus mudança, presente em Baudelaire, Goethe, Marx, Dostoiévski, Simmel e Walter Benjamin. Nesta concepção, a modernidade é a transformação constante da sociedade (efemeridade), mas em direção – linear ou dialética – a formas mais plenas de vida e humanidade. Mas existe também aquela concepção que afirma apenas um dos lados da dualidade, concentrando-se tão-somente no seu lado efêmero, afirmando a insegurança, o caos e a fragmentação (como o poeta W. B. Yeats). Tanto na primeira como na segunda concepção, contudo, afirma-se que o moderno desrespeita não apenas o prémoderno, mas também o próprio passado moderno. Tal constatação pode ajudar a compreender o elemento “nostálgico” presente não somente nos conservadores de hoje, mas também nos atuais progressistas que criticam a globalização, que tantas vezes ilustram sua nostalgia não apenas em relação a aspectos positivos da pré-modernidade destroçados pelo “progresso”, mas principalmente em relação às virtudes da modernidade antes da era do globalismo. Estas concepções sobre a modernidade tornam difícil determinar a coerência do todo e a sua consistência, já que não fica totalmente claro qual seria o sentido desta constante mudança. Dado isto, David Harvey revisita outras concepções que buscaram ilustrar onde estaria a coerência da modernidade. Primeiro, os iluministas, em cujo projeto da modernidade tudo devia ser determinado somente pela razão humana. Este primeiro projeto consciente da modernidade pregava a liberação do homem em relação à necessidade e à irracionalidade, defendendo o progresso, a desmistificação e a secularização do mundo. Mas o século XX minou o otimismo iluminista, incluindo os pensadores da Escola de Frankfurt que denunciaram que a modernidade caminhava para o oposto do que prometera ser, ou seja, que rumava para a “barbárie” – quando a razão dominadora da natureza (a razão técnica) passa a ser usada para dominar os homens. Também existe a imagem da modernidade como “destruição criadora”, expressa tanto em Nietzsche quanto no Fausto “fomentador” de Goethe. Imagem esta sistematizada por Schumpeter, que via o empreendedor capitalista como o destruidor criativo que levaria aos seus extremos a inovação técnica e social, num heroísmo criativo que garantia o progresso humano (Harvey, 1993). Enfim, tendo por base também Nietzsche, existe a concepção vivenciada pelos movimentos artísticos modernistas, na qual a estética, o sentimento do “belo” e do artístico poderiam, melhor que a ciência e a razão, criar sentido para a vivência da modernidade. Esta estratégia estética modernista, presente pelo menos desde o Romantismo, envolveu um papel mais ativo do indivíduo, um papel mais importante das emoções, a preocupação com o código tanto quanto o conteúdo e, enfim, a valorização da variedade e da multiplicidade das combinações (Harvey, 1993). Para Marshall Berman (1996), a modernidade é, antes de tudo, uma experiência de vida. “Ser moderno” implica o paradoxo de, ao mesmo tempo, desejar a mudança e aterrorizar-se diante da desorientação. “Ser moderno” envolve, de um lado, aventura, alegria, poder e transformação; do outro, ameaça de destruição daquilo que somos, cremos e sabemos. Para Berman, o Fausto de Goethe é a primeira grande ilustração do “ser moderno”, ou seja, do indivíduo que deseja o desenvolvimento material e ao mesmo tempo busca o autodesenvolvimento. Berman procura utilizar o Fausto como ponto de partida para fazer uma crítica profunda à modernidade, mas sem negá-la e nem abandonar o entusiasmo da modernização, já que ela significava também desenvolvimento individual e social (Berman, 1996, cap. I). Berman em seguida cita o famoso trecho do Manifesto comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, o qual ilustraria também esta dicotomia do “ser moderno”: A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. O contínuo revolucionamento [...] da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é sólido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas (Marx e Engels, 1988, p. 69). Viver na modernidade plenamente, como afirma Berman interpretando este trecho do Manifesto, significa “aprender a aspirar à mudança” e não lamentar a diluição de antigas relações sociais ou alimentar nostalgia pelas tradições (1996, p. 94). Marx compreendeu que havia uma relação entre o ideal emancipatório da humanidade e o desenvolvimento econômico burguês, que não era desejável (e nem possível) um retorno à antiga ordem social, mesmo reconhecendo-a como mais estável. Contudo, ao mesmo tempo, Marx denuncia que o capitalismo limita todas as possibilidades outras de desenvolvimento humano, exceto aquilo que o mercado necessita. A Revolução Comunista apregoada por Ciências Sociais Unisinos 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 38 8/5/2007, 23:28 Luís Antonio Groppo 39 Marx e Engels tornaria possível que outros desejos humanos, e não apenas o lucro, fossem libertados – quando o autodesenvolvimento humano deixaria de ser reprimido. Marshall Berman tenta recuperar exemplos criativos e progressistas de relação do homem da cultura com a modernidade, utilizando exemplos que se encontram dentro da primeira “Era das Revoluções” e que foram acima citados (o artista Goethe, cujo primeiro Fausto foi publicado em 1808, e os filósofos revolucionários Marx e Engels, cujo Manifesto é de 1848). São exemplos de pensadores que ilustram a dualidade da modernidade, mas também o potencial criativo contido nela. É interessante lembrar que tanto Goethe quanto Marx e Engels, principalmente os segundos, foram além da utopia progressista liberal – vazia em sua compreensão das contradições da modernização –, sem recorrer simplesmente à nostalgia romântica pela ordem e solidariedade perdida. Pelo menos Marx e Engels foram capazes de dialogar, absorver e superar ambas as utopias concorrentes e conceber um sentido diferente para o projeto da modernidade em concretização. Marshall Berman considera que o século XX foi pobre em pensadores capazes de dar conta do caráter contraditório da experiência da modernidade, dividindo-os em dois grupos antagônicos que, tomando de emprego os termos de Umberto Eco (1993), poderiam ser chamados de apocalípticos e integrados. Se os segundos parecem fascinados pelas promessas da modernidade, os primeiros, entre os quais se incluiria a Escola de Frankfurt, referendam apenas o seu caráter destruidor, ao perderem a esperança no futuro deixado em aberto diante do homem moderno. Contudo, há pelo menos um pensador incluído na Escola de Frankfurt que recupera fortemente o caráter ambíguo da experiência da modernidade. Trata-se de Walter Benjamin, ele mesmo um profícuo estudioso dos modernistas do século XIX, como ilustram os textos que preparavam seu Trabalho das Passagens (Benjamin, 1983, 1985a, 1985b; cf. também Groppo, 2003b). Estes textos formam um complexo de citações e alegorias, sob aparente desconexão, em que, na verdade, Benjamin traça uma composição inteligível de fragmentos da vida moderna. Apesar de Benjamin diagnosticar a “perda da experiência” na modernidade, a sua obra é ela mesma uma prova de que o recomeço da história do homem, que a busca de uma outra “origem” da humanização, só poderia ser feita com a recuperação crítica das ruínas da modernidade. Era alguém que recontava esta história e que transformou aquelas vivências e utopias altamente solúveis em parte da memória da modernidade. Por trás da linguagem e dos conceitos marxistas empregados por Benjamin a partir de Rua de mão única (Benjamin, 1987), pode se ler o messianismo de sua concepção da história. Do seu incansável levantamento e descrição dos detalhes da arte e da vida dos homens, tanto daqueles de seu tempo, mas principalmente daqueles do passado recente da modernidade, salta a esperança. Há em Benjamin [...] o efetivo aproveitamento de toda a riqueza das experiências humanas do passado, em função das necessidades das lutas que travamos no presente [...]. O que os seres humanos quise- ram e não obtiveram talvez possa ser alcançado um dia. É por isso que precisamos resgatar tudo (Konder, 1989, p. 82-83). É neste sentido que Benjamin tenta capturar o que foi o teatro barroco do século XVII, assim como os desejos e utopias contidos nos elementos provisórios da modernidade de Paris do século XIX (as passagens, a fotografia, as barricadas, a arquitetura com ferro etc.) ou na poesia de Baudelaire (que lutou inutilmente para suavizar os choques traumáticos da vida moderna). Benjamin, numa típica postura do “romântico revolucionário”, defendia a idéia de uma “salvação histórica para todas as aspirações libertárias do passado” (Konder, 1989, p. 83). A modernidade já havia transformado em ruínas as tradições, os antigos hábitos rurais e urbanos, as velhas cidades do Antigo Regime e a Arte-Cultura aristocrática. Mas os seus substitutos eram provisórios, condenados também a uma rápida conversão em ruínas ou ao desaparecimento. O trabalho das passagens, como antevê “Paris, capital do século XIX”, seria a obra destinada a recuperar as ruínas, não da pré-modernidade, mas da própria modernidade (Benjamin, 1985a). O resgate destes elementos alegóricos visava interromper o esquecimento, tornar viva na memória as obras da “primeira” modernidade – em seus desejos, limites, erros, omissões, acertos e utopias. Na versão enfim publicada do artigo sobre Baudelaire (Benjamin, 1983), Benjamin praticamente chama a experiência do homem moderno de fagulhas de vivências, choques deveras traumáticos com a vida e a realidade. A experiência do homem moderno perdera aquilo que tão bem caracterizava as experiências humanas no passado: a continuidade. Se a cidade grande estigmatiza, torna instantâneas e descontínuas as “experiências” (que aí se transformam em vivências e, até mesmo, choques traumáticos e desconexos), fica muito difícil, na modernidade, possibilitar a continuidade da experiência e a sua transformação em memória capaz de guiar as atitudes presentes. O esforço de Baudelaire para caracterizar a modernidade, segundo Benjamin, se mostraria igualmente inútil. O poeta francês teria buscado na teoria estética elementos formais que aproximariam modernidade e Antigüidade clássica. Ou seja, a Antigüidade forneceria a forma, a arte pura e os modelos de composição. A modernidade, como qualquer outro período histórico, forneceria o conteúdo, a inspiração e a substância da obra de arte. Mas em seu próprio conteúdo a modernidade era muito mutável. Na impossibilidade de completar esta tarefa, Baudelaire ambiguamente encontrou a definição mais profunda da modernidade: a mutação constante dos conteúdos da vida, a instabilidade, a descontinuidade e a fraqueza do ser humano diante dos processos sociais imponderáveis. Baudelaire, como qualquer homem moderno que procura – mas não consegue – fugir das armadilhas da modernidade, vivia entre seus extremos, submetido a choques e mudanças bruscas, inesperadas, inexplicáveis. Enfim, segundo Benjamin, a modernidade se tornara um desafio por demais poderoso ao indivíduo solitário, derrotando e desiludindo todo aquele que por acaso quisesse vestir sozinho a capa do herói salvador. Entretanto, o próprio Benjamin contradizia sua profecia negativa, da perda da experiência, através do trato consciente, Volume 43 • número 1 • jan/abr 2007 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 39 8/5/2007, 23:28 Modernidade e revolução social 40 profundo e microscópio dos fragmentos da vida sociocultural da modernidade do século XIX. Era alguém que recontava esta história e que transformou aquelas vivências e utopias altamente solúveis em parte da memória da modernidade. Para fazer isto, o próprio ritmo intempestivo da modernidade se tornou um aspecto formal na narrativa de Benjamin. O caleidoscópio de espaços e tempos que se desfragmentam, desfiguram e se misturam, próprios da modernidade como a via o filósofo alemão, é recriado de modo compreensível nos seus ensaios. Walter Benjamin modela parte dos objetivos deste e outros trabalhos do autor (cf. nota 1). Trata-se da recuperação de parte do passado da própria modernidade, não apenas nas suas continuidades para com o presente, mas principalmente nos seus projetos nostálgicos e utópicos que foram ultrapassados ou abortados pela história. Benjamin permite lembrar que refletir sobre as utopias e desejos humanizadores – mesmo sobre aqueles que foram abandonados – serve ao menos para informar melhor aos que, no seu presente, desejam participar e até criar novas utopias e sonhos coletivos. A modernidade não é apenas um processo irresistível de “modernização” econômica e tecnológica, mas é também o celeiro de desejos, projetos e práticas de emancipação. Celeiro de idéias e práticas concebidas não mais a priori, de modo transcendental, mas sim a partir da própria experiência da multidão na vida e no mundo. Diferentemente do que às vezes afirma Benjamin, a experiência da modernidade não precisaria ser apenas a geração incessante de “vivências” incapazes de formar um todo inteligível e articulador das expectativas. Momentos como a “Era das Revoluções” e a atual “era do globalismo” prometem não apenas novos aprisionamentos tecnológicos do ser humano, mas também, mesmo que como uma pura reação, a formulação de propostas, práticas ou apenas devaneios que aspiram a um patamar ainda mais pleno de humanização. Modernidade, emancipação e imanência Creio que, entre os pensadores contemporâneos que com mais ênfase e propriedade defendem o “projeto da modernidade” – e, portanto, a “modernidade como projeto” –, esteja Jürgen Habermas (1990). Outros autores, porém, mesmo sem negar o caráter criativo e construtor da modernidade, afirmam que seu projeto esgotou-se, como Boaventura de Sousa Santos (2001). Segundo ele, o projeto da modernidade, cujo caráter era sóciocultural, era muito rico e cheio de possibilidades. Sua trajetória foi repleta de complexidade e contradições. Se o projeto era ambicioso e revolucionário, com possibilidades infinitas, no entanto continha um excesso de promessas, do que resultaria o déficit de seu cumprimento. A proposta do projeto da modernidade, “na sua matriz”, buscava o equilíbrio entre a regulação e a emancipação. Tornaram-se, regulação e emancipação, pilares que, em primeiro lugar, levaram a uma “[...] transformação radical da sociedade prémoderna” (Santos, 2001, p. 236). Mas o objetivo de equilíbrio entre os pilares, enfim, nunca foi conseguido. O advento do ca- pitalismo industrial, que passou a identificar a trajetória da modernidade com a do capitalismo, fortaleceu o pilar da regulação. Quanto ao pilar da emancipação, supervalorizou-se a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica, a qual chegou mesmo a colonizar as demais racionalidades (a estéticoexpressiva e a moral-prática). Uma das teses de Boaventura Sousa Santos é a de que o projeto ou paradigma da modernidade surgiu antes do capitalismo, mas a modernidade está fadada a desaparecer antes da extinção do capitalismo (Santos, 2001, cap. 4). O colapso da modernidade se dará em parte por superação – dada a realização até em excesso de algumas de suas promessas –, e em parte por obsolência – dado o déficit no cumprimento de outras. Mais que vazio ou crise, viveríamos uma situação de transição – situação a qual Santos nomeou, ao menos então, de “pós-modernidade”. Pode-se comparar esta concepção da modernidade como um projeto sociocultural em esgotamento com a de Michael Hardt e Antonio Negri, para quem a modernidade implica o conflito entre a imanência (o desejo da multidão auto-afirmada) e a transcendência (a ordenação das forças libertadas) (2001, cap. 2.1). Tem-se novamente uma dualidade no centro da definição de modernidade. Pode-se aproximar, nos seus contornos gerais, também, a idéia de imanência de Hardt e Negri com a de emancipação de Sousa Santos: elas são o pólo positivo da dualidade, e a “pós-modernidade” permitiria a sua plena efetivação. Por sua vez, a idéia da transcendência se aproxima com a da regulação: elas são o pólo negativo, já que teriam ferido as promessas mais humanizadoras da modernidade e a encaminhado para seu lado mais “tecnicista”, explorador e dominador. No centro da modernidade, Hardt e Negri identificam o conflito permanente entre as “forças imanentes de desejo e associação” (a imanência) e a “mão forte de uma autoridade que impõe e faz cumprir uma ordem no campo social” (a transcendência) (2001, p. 87). Esta tensão apenas teoricamente teria se resolvido com a soberania do Estado moderno, já que a tensão constantemente reapareceu na modernidade. O momento fundador da modernidade européia, contudo, é “a descoberta revolucionária do plano de imanência” (Hardt e Negri, 2001, p. 88). O “humanismo”, na Europa entre 1200 e 1600, teria sido responsável por uma verdadeira revolução sociocultural, quando “seres humanos se declararam donos da própria vida, produtores de cidades e de história e inventores de céus [...] (e) propuseram o ser como terreno imanente do conhecimento e da ação”. A descoberta do plano da imanência significava “a afirmação dos poderes deste mundo [...]” (Hardt e Negri, 2001, p. 89). Humanistas europeus em diversos momentos deste período de irrupção são citados, de Duns Scotus e Dante Alighieri a Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola e Bovillus, bem como Francis Bacon e Galileu Galilei, culminando em Spinoza e na sua noção incondicional de democracia. O processo histórico de subjetivação, baseado na afirmação de que saber e poder se baseiam na multidão, nos homens vivendo em seu tempo e em seu mundo, fez dos primeiro momentos da modernidade um processo revolucionário que derrubou a velha ordem “medieval”. Os momentos inaugurais da modernidade apresentaram-na como uma força destruidora Ciências Sociais Unisinos 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 40 8/5/2007, 23:28 Luís Antonio Groppo 41 das relações com o passado, sob o paradigma da imanência, cujo caráter revolucionário radical fomentou a experimentação científica, a tendência à política democrática e à colocação da humanidade e do desejo no centro da história. Mas se o primeiro momento é o da Revolução, o segundo é o da Contra-Revolução: Contra-Reforma, absolutismo, guerras civis e guerras religiosas. Tratava-se de iniciativas que procuraram “dominar e expropriar a força dos movimentos e dinâmicas emergentes”, que buscaram colocar em plano transcendente a nova imagem da humanidade, relativizar capacidades da ciência e, principalmente, lutar contra a tomada do poder pela multidão. Este segundo modo de modernidade “joga um poder constituído transcendente contra um poder constituído imanente, ordem contra desejo”. Este segundo modo da modernidade acabou vitorioso e adquiriu hegemonia, criando novas “ideologias de comando e autoridade”, criando um “novo poder transcendente”. Mas nem as crises, nem as guerras civis acabaram e “a própria modernidade é definida por crise, uma crise nascida do conflito ininterrupto entre as forças imanentes, construtivas e criadoras e o poder transcendente que visa restaurar a ordem” (Hardt e Negri, 2001, p. 92-3). O iluminismo coroou a tentativa de criar mecanismos de mediação que “resolveriam” a crise da modernidade (o conflito entre desejo e busca da ordem). A necessidade principal era a de evitar, contra a proposta radicalizada por Spinoza, que a multidão fosse “o produtor ético da vida e do mundo” (Hardt e Negri, 2001, p. 96). Contra a tríade do humanismo revolucionário – força-desejo-amor – opuseram-se mediações intelectualistas: filtro dos fenômenos, reflexão do intelecto e esquematismo da razão. Trata-se da “metafísica moderna”, arma fundamental para conter os ímpetos autônomos do desejo, bem como para conter o poder e o saber da multidão. No início deste processo estaria René Descartes, que começa a criar a “ideologia burguesa”, o “aparelho transcendental”, que seria mais bem tipificado pelo iluminismo e que, em ambas as suas correntes, a idealista e a empiricista, fundava-se no transcendentalismo, gerando “a formalização da política, a instrumentalização da ciência e da técnica para obter lucro, a pacificação dos antagonismos sociais” (Hardt e Negri, 2001, p. 98). Hegel tornar-se-ia o melhor revelador do que esteve sempre implícito no projeto contra-revolucionário, ou seja, “que a libertação da humanidade só poderia ser uma função de sua dominação, que o objetivo imanente da multidão é transformado no necessário e transcendente poder do Estado”. Em Hegel, o Estado moderno coroa o “fim da história”, com sua concepção teleológica da temporalidade, que é alcançada e se finda. Esta busca de um novo modo de mediação faz encaminhar ao terceiro modo da modernidade, cujo resultado é a concepção e a criação do Estado moderno, “um aparelho político transcendente”. De Thomas Hobbes a Rousseau (cuja vontade geral pressupunha a alienação das vontades individuais para a soberania do Estado), uma figura política única se impõe em todas as versões da soberania moderna, “um único poder transcendente”, seja ele uma monarquia absolutista ou uma república absoluta (Hardt e Negri, 2001, p. 99, 101, 103). Enfim, a modernidade encontra-se com o capital e o capitalismo. O capital é quem vem preencher a soberania do Estado moderno, através do desenvolvimento industrial e a afirmação do mercado. No terceiro momento da modernidade, imbricam-se soberania moderna e capitalismo: “A soberania moderna é soberania capitalista, uma forma de comando que superdetermina a relação entre individualidade e universalidade como função do desenvolvimento do capital.” Através deste novo conteúdo mediador – soberania e capitalismo – “a multidão se transforma [...] numa totalidade ordenada” (Hardt e Negri, 2001, p. 104-5). Para Hardt e Negri, o atual momento histórico é o de uma nova emergência da imanência. A “pós-modernidade” se despe dos trajes da transcendência, destacando-se o momento em que o capital, ele próprio, deixa de ser sustentado pela soberania moderna e a corrói. O capital deixa de ter barreiras que impedem sua livre circulação e a busca dos seus objetivos imanentes. Porém, ao mesmo tempo em que o sistema do capital parece atingir sua plenitude, abrem-se oportunidades para uma nova revolução da multidão, um novo processo de descoberta e afirmação da imanência. A superação da modernidade, a resolução da contradição entre forças imanentes e transcendentes através da derrocada da soberania moderna torna historicamente possível uma nova edição da imanência, dos poderes e desejos da multidão, já que a imanência significa a “[...] ausência de todo limite externo das trajetórias da ação do povo, e está ligada apenas, em suas afirmações e destruições, a regimes de possibilidades que constituem sua formação e seu desenvolvimento” (Hardt e Negri, 2001, p. 396). Os próprios autores enfatizam esta nova situação que permite a retomada do humanismo revolucionário do Renascimento: “Ni Dieu, ni maître, ni l’homme – nenhum poder ou medida transcendente determinará os valores do nosso mundo. O valor será determinado apenas pela contínua inovação e criação da humanidade por ela mesma.” (Hardt e Negri, 2001, p. 378). Em vez de tão-somente discutir a superação da modernidade pela pós-modernidade, parece-me possível tomar as noções de imanência de Hardt e Negri e de emancipação em Boaventura Sousa Santos como aspectos positivos do projeto da modernidade. Aspectos que podem ou devem ser hoje recuperados – em outros níveis, diante de novas circunstâncias e determinações, é claro – quando os novos rumos do processo de modernização, na era do globalismo, jogam contra os desejos da humanização e das utopias que anseiam por uma sociedade mais plena. Imanência e emancipação parecem apontar para um aspecto central, de caráter sociopolítico, da modernidade, revelado sobretudo nos momentos de aceleração dos processos de modernização – como na virada do século XVIII ao XIX e nos dias atuais. Este aspecto central revela ao mesmo tempo o descontentamento dos homens e mulheres para com as promessas pervertidas da modernização, bem como a reação criativa dos imaginários, propondo utopias. Na verdade, novas e alternativas utopias, pois na modernidade mesmo os projetos hegemônicos – como os da soberania moderna e da liberação do mercado – se apresentaram como utopias e sempre foram efetivamente práxis de transformação da realidade, via estatismo, nacionalismo, liberalismo ou desenvolvimentismo. Mas a era do globalismo, no que se refere à criação de ideologias e utopias, revelou um outro aspecto que, apesar de sempre ter sido importante, ficou mais ou menos oculto diante Volume 43 • número 1 • jan/abr 2007 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 41 8/5/2007, 23:28 Modernidade e revolução social 42 da hegemonia das teorias e ideologias centradas na sociedade nacional – ela mesma, uma criação dos modos transcendental e mediador da modernidade. Este aspecto mais ou menos subestimado se expressa ou se expressou através de vários termos: transnacional, mundial, universalista, fraterno (da “fraternidade” da tríade revolucionária francesa), colonialista, imperialista etc. É esta outra dimensão que desejo agora discutir. Mantendo a estratégia de analisar primeiro as origens da modernidade, é possível dizer que antes da era propriamente “global” que hoje se vive, o ímpeto planetário da modernidade pode ser analisado a partir da questão da “ocidentalização”, assunto que levará num segundo momento ao tema da “transculturação”. Na era do globalismo, as utopias são – e precisam ser – pensadas não apenas diante de um futuro imaginado para a nação, ou mesmo para o “Ocidente”. Elas precisam expandir-se não apenas no tempo, mas também no espaço, levando em conta não apenas a diversidade possível de futuros, mas a diversidade real da humanidade posta em contato irreversível com a globalização. Neste sentido, a modernidade vai revelar-se muito mais “global” que nacional, além de muito mais “transcultural” que “homogeneizadora”, muito mais como uma mestiçagem do mundo que uma ocidentalização do mundo. Ocidentalização e transculturação Seria a modernização na sua era “global” – a fase da globalização – o mesmo que a “ocidentalização do mundo”? Analisando a obra de Serge Latouche (1996), um dos precursores da reflexão sobre os aspectos socioculturais da globalização, podese perceber a metamorfose, durante a modernidade, das noções de “Ocidente” e “ocidentalização”. No final, como o próprio Latouche demonstra, o “Ocidente” parece se localizar, geograficamente, em nenhum lugar e em todo lugar. A “ocidentalização”, por sua vez, deixa de ser a imposição de valores culturais específicos de uma civilização e se transforma numa “máquina” de modernização econômica e tecnológica, parasitando e destruindo todas as formas socioculturais com quem se depara. Assim como a “modernidade”, a noção de Ocidente, que no início se confunde com o de Europa, tem origem no final da Idade Média, talvez, como indica Latouche (1996), desde o período das Cruzadas. Retomando a discussão de Hardt e Negri (2001), ambos os modos da modernidade (a imanência e a transcendência) procuraram universalizar seus valores e referências desde pelo menos a conquista da América, que representou uma inesperada abertura da modernidade européia para o mundo. Se o primeiro modo da modernidade – a imanência – pregava a igualdade humana na relação da Europa com o resto da humanidade, do segundo modo – a transcendência – deriva o eurocentrismo, ideologia que se tornaria hegemônica. Da promessa da redenção da “humanidade”, de igualdade e fraternidade entre os povos, a modernidade geraria, na prática, processos como o colonialismo, escravismo, imperialismo e neocolonialismo. Enquanto isto, o “Ocidente” sofria inúmeras transformações que, na verdade, apenas estariam revelando, na análise de Latouche (1996), sua essência e vocação. Durante esta trajetória, o Ocidente confundiu-se ou foi confundido com elementos importantes, mas que apenas em aparência eram essenciais. Ainda que tenha a ver com todos estes elementos, o Ocidente demonstra, hoje, que não se identifica totalmente com nenhum deles: Europa, cristandade, iluminismo, raça branca, capitalismo e industrialismo. Foram diversos os momentos da história do Ocidente. Primeiro, seu enraizamento no continente europeu. Segundo, diversas ofensivas para a conquista ou a reconquista do mundo, via violência e/ou sedução. Do final do século XIX ao século XX, o Ocidente assiste sua extensão e renascimento no Japão – o que leva Latouche a se perguntar: “Onde estará ele amanhã?” (1996, p. 46). Nestes processos, o Ocidente ele mesmo se desterritorializou, deixou de ser um lugar, ainda que seja hoje identificado e defendido principalmente pela tríade do capitalismo “desenvolvido”: Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão. Mas, para Latouche, o Ocidente apresenta-se hoje, sobretudo, como uma máquina, uma “[...] máquina viva cujas engrenagens são homens e que, no entanto, autônoma em relação àqueles de quem tira força e vida, move-se no tempo e no espaço segundo seu próprio humor” (1996, p. 35). Deste modo, o Ocidente e a ocidentalização encontram sua verdadeira essência, sua verdadeira razão de ser. Se o Ocidente assumiu, no passado e no presente, a forma de um tipo específico de cultura e civilização, isto não constituía, para Latouche, sua “essência”. Fundamentalmente, a máquina Ocidente é uma “anticultura”. A ocidentalização, tanto para os seus detratores quanto seus apologistas, é sempre a subversão das formas socioculturais originais. Para seus críticos, trata-se da destruição da riqueza das etnias do Terceiro Mundo. Para seus defensores, trata-se da pretensa substituição da miséria subdesenvolvida “pelo bem-estar anônimo do crescimento econômico.” (1996, p. 52). De certo modo, o Ocidente, neste sentido de desafio e abalo, na sua ação em prol da destruição das culturas diversas, contém um projeto civilizatório. Muitos procuraram sua especificidade, chegando à conclusão, como Cornelius Castoriadis, de que “[...] o Ocidente é a única cultura aberta na história que se interessou pelas outras culturas e que, colocando-se ela mesmo em questão, tem por isso uma vocação universal” (1996, p. 52). Mas esta noção que concebe o Ocidente como uma “metacultura” tem diversas contradições: primeiro, ela considera o Ocidente como superior por ser capaz de duvidar de sua superioridade; segundo, existem mais casos históricos de “metaculturas” em outras civilizações. Latouche parece chegar à conclusão que o Ocidente está além – e ao mesmo tempo aquém – de uma “metacultura”, dado que se transformou num projeto sem fronteiras ou limites. Primeiro, pelo fato de que a sua forma social, a “sociedade”, é a primeira na história a basear-se no indivíduo e no individualismo, encontrando seu universalismo na mobilização irresistível de indivíduos seduzidos que se desenraizaram e são estimulados a buscar a performance. Onde quer que chegue, este projeto abre as fronteiras internas e externas das culturas e povos para a busca da eficiência, da acumulação e até da emancipação dos indivíCiências Sociais Unisinos 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 42 8/5/2007, 23:28 Luís Antonio Groppo 43 duos. As fronteiras, colocadas em aberto, levam à desterritorialização. O meio “social” que toma como base o indivíduo é levado a funcionar como um “mercado”, e este, por sua vez, suscita relações sob o paradigma da máquina. O individualismo se torna, ao mesmo tempo, “emancipação” (“[...] no sentido de que ele solta as inúmeras amarras da sociedade tradicional e abre uma infinidade de possibilidades”) e “destruição” (dada a conseqüente quebra de laços de solidariedade) (Latouche, 1996, p. 59). O Ocidente torna-se, deste modo, uma máquina cujos mecanismos em boa parte são negadores das culturas, e é aí que reside o seu caráter reprodutível. O Ocidente é impossível de ser universalizado como modelo civilizatório, mas reproduzível em toda parte como máquina, como máquina destruidora de cultura. Com a descolonização, na segunda metade do século XX, o Ocidente deixa de ter caráter “imperialista”. Ainda que o Ocidente “para si”, segundo Latouche, tenha colapsado com a descolonização, ele persiste, sobrevive e se renova. Agora não é mais possível dizer que o Ocidente é a Europa, nem mais “um conjunto de crenças compartilhadas por um grupo que perambula pelo planeta” (como cruzados, conquistadores ou missionários). O autor lerá a ocidentalização/ Ocidente no seu produto final e atual, ou seja, “[...] como uma máquina impessoal, sem alma e [...] sem mestre, que colocou a humanidade a seu serviço”, que se libertou de qualquer limite humano que a ela se opôs, que arranca os homens “de seu chão”, atirando-os “no deserto das zonas urbanizadas” (Latouche, 1996, p. 13). Percebe-se que esta concepção de “ocidentalização” praticamente se confunde com as noções de modernização – processo revolucionário econômico e tecnológico – e modernidade – processo revolucionário sociocultural e político. Confunde-se notadamente, como se verá, com a modernização. Além da técnica e da ciência, são fundamentais as mudanças no campo da economia e a “invasão cultural” – combustível e mecanismos do coração da “máquina” de ocidentalização, ou melhor, de modernização. Os “[...] novos agentes da dominação são a ciência, a técnica, a economia e o imaginário sobre o qual elas repousam: os valores do progresso” (Latouche, 1996, p. 26). No século XX, após a descolonização, a técnica torna-se ainda mais “um artigo de fé universal”, uma prova incontestável da superioridade do Ocidente, algo incorporado mesmo pelos nãoocidentais (que começam assim a se tornar “ocidentais”). Os dias atuais chegaram a criar até mesmo uma civilização técnica mundial, inclusive pelos esforços – antes e depois da descolonização – dos povos do mundo não-ocidental para se libertar ou sair de situações humilhantes diante do Ocidente. O aspecto econômico é outro mecanismo fundamental da modernização – ou ocidentalização, nos termos de Latouche. A modernização leva os mais diferentes povos e nações a afirmarem o predomínio do campo do econômico sobre os demais terrenos da vida social. O mercado mundial e a supremacia do econômico favorecem a autonomia da lógica econômica, que se torna inclusive critério de avaliação social. Tais mecanismos econômicos foram levados ao mundo todo, e suas conseqüências foram bem para além da transformação dos modos de produção não-ocidentais, já que destruíram “[...] o sentido do sistema soci- al ao qual aqueles modos estavam fortemente ligados” (Latouche, 1996, p. 29). A chamada “invasão cultural”, na verdade, significa muito mais a imposição de uma dominação simbólica, baseada no controle dos “fluxos culturais” pelos países do Centro. “Imagens, palavras, valores morais, normas jurídicas, códigos políticos, critérios de competência [...]” vão criando uma padronização do imaginário, ao lado da sujeição forçada ao econômico e da fé na técnica e na ciência (Latouche, 1996, p. 30). Reflexões de John Gray (1999, cap. 7) permitem distinguir melhor as noções de “modernização” e “ocidentalização” que, em Serge Latouche, praticamente se fundem. Gray argumenta que, antes de 1914, não se questionava a identificação entre modernização e ocidentalização. E, exceto pelo Japão, até o fim da Guerra Fria consideraram-se ambas como praticamente a mesma coisa. Mas uma reflexão mais profunda sobre o Japão poderia ter evitado a confusão. Ele já era um país modernizado no final do século XIX, com alto nível de alfabetização, expansão rápida da vida urbana, absorção de tecnologias e Estado centralizado. Estas marcas de modernização teriam sido adquiridas sem a ocidentalização das estruturas sociais e das tradições culturais. É claro que houve o uso e a adaptação de valores diversos dos países ocidentais, como calendário, sistema bancário e outras tecnologias. Mas nenhuma destas adaptações alterara as estruturas sociais e tradições culturais do país. Para John Gray, a globalização confunde-se com a modernização tecnológica, e não com a ocidentalização, ou seja, não se confunde com a adoção incondicional de instituições sociais e econômicas do Ocidente, como o livre mercado. A globalização – e a modernização, no meu entender – tratam-se da “crescente interconexão da vida econômica e cultural em partes distantes do mundo”, com origem “na projeção do poder europeu em outras partes do mundo pelas políticas imperialistas a partir do século 16”, mas que hoje tem como principal motor “a rápida difusão das novas tecnologias da informação, que eliminam distâncias” (Gray, 1999 , p. 276). Algo muito diferente de uma civilização universal sob métodos e valores “ocidentais” (principalmente anglo-saxões). Se a globalização aproxima os povos de modo irresistível, ao mesmo tendo torna o mundo plural de modo irreversível. Mas não universaliza os valores ocidentais. As teses de John Gray nos levam a considerar que a modernização – incluindo aqui a globalização –, nos seus efeitos socioculturais, não realiza a “ocidentalização” do mundo (no sentido de impor uma cultura universalizada), mas antes é responsável pela “transculturação”. Serge Gruzinski, analisando aspectos culturais da colonização européia do México, no século XVI, revela a face assumida pela ocidentalização de então (Gruzinski, 2001, cap. 4). Tratavase de um complexo conjunto de formas usadas para a dominação, introduzidas na América pela Europa do tempo do Renascimento: catolicismo, mercado, canhão, livro, imagem etc. A ocidentalização assumia formas diversas, muitas vezes contraditas e até rivais entre si. Ela era ao mesmo tempo “material, política, religiosa [...] e artística”. Mobilizou grupos (monges, juristas e militares), famílias, linhagens e indivíduos que buscaram, na Amé- Volume 43 • número 1 • jan/abr 2007 36a45_ART04_Groppo[rev].pmd 43 8/5/2007, 23:28 Modernidade e revolução social 44 rica, “[...] edificar réplicas da sociedade que haviam deixado para trás”. Foram diversas as ondas que se seguiram à versão castelhana da ocidentalização, entre os séculos XVI e XIX, buscando transferir para a América imaginários e instituições da Europa e, na verdade, “sob outras aparências, com outros conteúdos, objetivos e ritmos, a ocidentalização prosseguiu até os dias de hoje, ganhando progressivamente o conjunto do globo” (Gruzinski, 2001, p. 94). Num primeiro momento, a ocidentalização gerou o fenômeno do mimetismo cultural e artístico entre os nativos do México. O comportamento da imitação, tantas vezes repetido na história da ocidentalização, parece comprovar que se alcançou ou se alcançará o objetivo original dos europeus, a saber, a criação de um mundo à sua imagem e semelhança, um mundo com cultura e modos de vida homogêneos: “A África entra na era do mimetismo trágico. Esta atitude mental vem do fato de que, depois de considerarem deplorável e mesmo combaterem o regime colonial, os africanos são repossuídos por ele. Ele governa através dos modelos de desenvolvimento e progresso. O homem a ser imitado é o branco.” (A. Tevoedjre, do Daomé, em 30 de nov. de 1966, ap. Oury e Vasquez, 1968, p. 1966). Mas esta impressão de homogeneização, além de logo ser desmentida pelos seus resultados trágicos imediatos, costuma ceder lugar rapidamente, como foi o caso do México no século XVI, às misturas, às “mestiçagens” culturais. Segundo Gruzinski, desta ocidentalização da América no século XVI, que produziu caos nos primeiros tempos da conquista e mimetização indígena da cultura européia, logo emergiram as mestiçagens, que foram ao esmo tempo o “[...]) esforço de recomposição de um universo desagregado e [...] um arranjo local dos novos quadros impostos pelos conquistadores” (Gruzinski, 1996, p. 11). Gruzinski lança a hipótese de que, de maneiras diferentes, este processo de misturas – criando fenômenos híbridos ou mestiços –, repete-se ao longo da história das tentativas de “ocidentalização” do mundo. Na verdade, parece ser possível considerar que, deste modo falho e incompleto, mas ao mesmo tempo destruidor, inovador e revolucionário, a “ocidentalização” do mundo foi a face mais visível, aparente, do processo mais profundo e irreversível de modernização. Conclusão Este artigo chegou logo acima à proposição de que o conceito de “ocidentalização” pode ser adotado em referência a diversos elementos culturais e civilizatórios assumidos pelo processo de modernização, ao longo de sua história, que apenas aparentemente revelavam o que era essencial da modernidade. Trata-se dos mesmos aspectos aparentes adotados pela ocidentalização segundo Serge Latouche (1996): Europa como entidade geográfica (estendida, mais tarde, para EUA e Japão), cristandade, raça branca, filosofia iluminista e capitalismo. Já o termo modernização, como deve ter ficado claro, tem a ver com a “essência” do Ocidente, nos termos do mesmo Serge Latouche, ou seja, é uma “máquina” irresistível de desculturação, cujos mecanismos são a técnica, a ciência, a economia (incluindo o capita- lismo, mas não somente) e a invasão cultural (incluindo valores advindos do cristianismo ou do iluminismo, bem como o individualismo). A modernização é, portanto, considerada aqui como o processo de revolução social mais geral e profundo, passando da Europa para o resto do mundo, mais nos seus aspectos econômicos, técnicos e tecnológicos. Já a modernidade pode ser tratada, como exposto nos itens iniciais deste artigo, como experiências e projetos socioculturais que, num primeiro momento, preparam e, num segundo momento, reagem diante dos processos de modernização. A modernidade nomeia uma outra face do processo de revolução social promovida pela modernização. Nos dois momentos históricos que se podem comparar – final do século XVIII/ início do século XIX e final do século XX/ início do século XXI –, estas experiências e projetos assumem um caráter prioritariamente reativo diante dos fenômenos sociais e econômicos promovidos pela modernização. Nestas reações, respostas ou resistências, encontramos fenômenos, movimentos, mobilizações e adaptações de cunho sociocultural e político. Como anunciei, e discuti em outros trabalhos (cf. nota 1), as revoltas utópicas ou nostálgicas contra o sentido tomado pelas ondas de modernização fazem parte, portanto, do que é aqui chamado de modernidade. Principalmente no caso das utopias, tem-se um exemplo de novas experiências que parecem encarnar os sonhos mais generosos do projeto da modernidade, expresso em valores como imanência, emancipação e fraternidade entre os povos. Assim, o artigo chega à proposta de conceber a modernidade de modo mais plural do que tradicionalmente se fez nas ciências humanas e de modo mais complexo do que apresentam os pós-modernistas em sua caricatura do modernismo. E lança a esperança de que se multipliquem as novas expressões de modernidade, como desejos e sonhos de emancipação imanentes à condição humana, potencialmente mais amplos e ricos graças ao fenômeno da transculturação. Referências BENJAMIN, W. 1983. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Benjamin, Habermas, Horkheimer e Adorno. 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