TRANSCULTURAÇÃO E
NOVAS UTOPIAS
LUÍS ANTONIO GROPPO
Em Homenagem a Celso Furtado (1920 - 2004)
Em vários pontos do que é hoje chamado de “Sul” do planeta,
outrora mais conhecido como “Terceiro Mundo”, existem diversos
pensadores sociais refletindo sobre os problemas da globalização sob um
ângulo diferente daquele dos países centrais do capitalismo ocidental. No
Brasil, há diversos exemplos de cientistas consagrados que têm repensado
sua própria trajetória intelectual diante de novas questões impostas pela
globalização, cientistas vindos da Geografia, como Milton Santos, da
Economia, como Celso Furtado, ou da Sociologia, como Octavio Ianni.
Mas, “Terceiro Mundo” afora, são muitos os exemplos de pensadores que
recriam não apenas sua própria obra, mas a própria reflexão sobre a
globalização, como Samir Amin, Walden Bello ou o grupo reunido em
torno do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (que afirma ser
Portugal parte do mundo “semi-periférico”, tanto quanto o Brasil). São
exemplos que indicam que, talvez, no pensamento social e nas novas
doutrinas políticas geradas no mundo periférico, esteja depositado o futuro
da teoria social e das ideologias progressistas, capazes de dar conta
realmente dos significados sociológicos e políticos do atual processo de
globalização. Parece que idéias revolucionárias, inclusive para repensar a
prática política e as ideologias na era do globalismo, virão ou já estão vindo
do “Sul”, do “Terceiro Mundo”. Apesar de viverem aí os povos que mais
sofrem com os novos problemas socioeconômicos, ao mesmo tempo são
estes os lugares mais ricos em “transculturação”.
Emir Sader (2001), analisando os movimentos e grupos
participantes do primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2001,
concluiu que as forças sociais de protesto contra a globalização
hegemônica estavam mais acumuladas na periferia do planeta. As novas
forças sociais mobilizadas indicam uma transformação correlata no
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pensamento social e político, em que é possível dizer que a produção
dinâmica (em termos qualitativos, não quantitativos) pode estar sendo
gerada em diversos pontos do mundo “não-ocidental”. E, se considerarmos
o grau de transculturação, talvez a América Latina seja um local
privilegiado para tanto.
Sempre, o pensamento progressista, no século XIX ou hoje, foi
capaz de olhar para adiante, imaginar utopias. Mas não basta, atualmente,
como indicam inclusive autores como Serge Latouche (1996), apenas pensar
adiante. É preciso também pensar de modo abrangente e desterritorializado,
para além do “ocidentalismo”. No passado e no presente, percebe-se que
diversas versões do pensamento progressista decaíram no ocidentalismo,
quando a necessária busca de uma concepção abrangente – quem sabe,
universal – de emancipação humana limitou-se à elaboração de uma nova
versão do racionalismo abstrato típico da civilização ocidental. Contra isto,
o pensamento desterritorializado persegue o reconhecimento das múltiplas
racionalidades, reais e possíveis, elaboradas no seio das culturas e sociedades
humanas, buscando ou permitindo – quem sabe? – um universalismo pensado de modo não restrito, ao contrário do racionalismo ocidental.
Boaventura de Sousa Santos (2002a), apresentando um projeto
de pesquisa amplo concebido e realizado fora dos centros hegemônicos da
produção científica, acredita poder fazer da relativa marginalidade e
excentricidade destes pesquisadores da periferia, energia inovadora. Sua
hipótese diz que é nos países semiperiféricos que com mais força colidem
as globalizações hegemônicas e contra-hegemônicas (em que as segundas
lutam para impedir a implantação total e definitiva das primeiras), além de
serem locais onde se constituíram fortes comunidades científicas. Nestas
comunidades reside um paradoxo, de onde provêm sua força criativa potencial. Trata-se da tendência desses cientistas periféricos conhecerem a
ciência social central até melhor que os cientistas dos países centrais, dado
que os primeiros conhecem os limites da ciência na aplicação de suas teorias em outras realidades diferentes das dos países centrais. Na América
Latina, por exemplo, para Fernando Cocchiarale, os cientistas sociais partiram das teorias geradas no mundo europeu para criarem as suas próprias
versões, aplicadas à realidade desse continente:
Fundadas em matrizes intelectuais européias que foram transformadas em função de sua adaptação à realidade, as teorias dos
intelectuais latino-americanos são para o intelectual europeu e
norte-americano simultaneamente familiares, se consideradas
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suas raízes teóricas, e estranhas, devido à crítica aguda que fazem
a algumas delas. De qualquer modo, essas teorias possuem
legitimidade epistemológica suficiente para terem se tornado um
dado novo no relacionamento entre o mundo europeu/norteamericano e a América Latina (Cocchiarale, 2000, p. 97-8).
Autores diversos também têm indicado que, no Leste Asiático –
o local fora do Ocidente onde a modernização capitalista parece ter alcançado mais sucesso, mas sem implicar em “ocidentalização” –, pode estar o
novo centro dinâmico do sistema econômico mundial (Arrighi & Silver,
2001, cap. 4). As surpreendentes combinações entre heranças ocidentais e
não-ocidentais no Leste da Ásia produziram desafios cada vez mais vultosos à supremacia ocidental: imperialismo japonês, comunismo chinês e,
desde o final da década de 1970, “... o desafio econômico de toda a região
do Leste da Ásia...”, desafios que revelam uma “... trajetória descendente
da capacidade de o Ocidente exercer o domínio global com base no poderio
militar superior”. Os caminhos apontam, portanto, para uma “...
recentralização da economia global no Oriente” – como o foi, em sentidos
diferentes, antes da era moderna (Arrighi & Silver, 2001, p. 228-9).
Ianni (2000, cap. IV) denomina de modo revelado como “transculturação” o fato de a globalização ser, ao mesmo tempo, um processo de
“ocidentalização do mundo” e de “orientalização”. Acrescenta que se trata
também da influência ou adoção de elementos de culturas africanas, indoamericanas e afro-americanas pelo mundo. Neste sentido, a globalização
não é um processo recente, mas uma tendência que acompanha a própria
modernidade, ainda que tenha acentuado-se recentemente e caracterizado a
época atual como a “era do globalismo”. Se a modernidade de modo inicial
e mais forte, pelo menos até há pouco, realmente foi um projeto de “ocidentalização” do mundo, ela implicou desde sempre o encontro, mescla,
conflito, amálgama, absorção e mundialização também de orientalismos,
africanismos e indigenismos.
Esse projeto moderno de “ocidentalização” assumiu no Sul e
Leste da Ásia – parte significativa do “Oriente” –, na visão da pesquisa
coordenada por Arrighi & Silver (2002, cap. 4), seu momento mais
contraditório. Aí as potências hegemônicas ajudaram as autoridades tradicionais asiáticas a combater justamente os movimentos sociais que
assumiram caracteres “ocidentalistas”. Também, procuraram instalar estruturas de governo e administração “modernos” que nada ou pouco tinham dos
ideais ocidentais de direito e liberdade apregoados, que promoviam apenas
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formas mais eficientes de rapina ou de direcionamento das economias
servilizadas na Ásia para interesses econômicos imediatos do Ocidente.
Um pouco diferenciado, entretanto, deve ser este olhar sobre
locais como a América Latina, alcançados pela modernidade desde o
início. Na verdade, a “América” serviu, sim, para criar a própria idéia de
“Europa”, ou seja, a idéia e o projeto de ser o Ocidente uma força autônoma significativa, capaz de conquistar o planeta e moldar o mundo à sua
imagem e semelhança (Ianni, 2000, cap. 2). O continente latino-americano,
mais do que qualquer outro local do mundo, talvez tenha sido quem mais
sentiu na pele essa arrogância ativista da Europa (e, mais tarde, do novo
baluarte do ocidentalismo, os Estados Unidos). Mais do que nunca também, talvez, na América Latina tenham se dado os mais profundos processos de transculturação da modernidade, onde mais poderosa foi a mescla de “...culturas e civilizações, ou modos de ser, agir, pensar e imaginar”
(Ianni, 2000, p. 93).
Ianni propõe que adotemos para a questão da cultura na era do
globalismo uma outra perspectiva de análise, não mais baseada na ilusão da
identidade nacional, mas sim na “... perspectiva aberta pela idéia do contato,
intercâmbio, permuta, aculturação, assimilação, hibridação, mestiçagem ou
mais propriamente, transculturação”. Deste modo, a história do mundo
moderno transforma-se na “... história de um vasto e intricado processo de
transculturação...” (Ianni, 2000, p. 95). Não apenas narrativas literárias, de
viajantes ou estudos científicos da civilização ocidental expressaram ou
procuraram interpretar a transculturação. Ianni cita também diversos
“...estudos e posicionamentos de intelectuais e líderes políticos situados em
sociedades africanas, asiáticas e latino-americanas...” (Ianni, 2000, p. 104),
como Amin Maalouf, André Lévy, Jawaharlal Nehru, Michio Morishima,
Domingo Sarmiento, Frantz Fanon e Nelson Mandela. Trata-se de uma
crescente tradição de pensar o mundo moderno como transculturação, sob
outras óticas, para além da concepção que apregoa a superioridade inconteste
do “ocidentalismo”. Parece que hoje se atingiu o ponto mais alto do que tem
sido a história moderna no seu aspecto de transculturação, como “...um
imenso laboratório em movimento... de heterogêneos, diversos, desiguais e
não-contemporâneos...” (Ianni, 2000, p. 109-10). Portanto, é bem possível
que nos lugares onde se mesclaram as culturas não-ocidentais e ocidentais
surjam significativas utopias e ideais progressistas que criem soluções e
alternativas, que criem melhores respostas diante dos desafios desta nova era
de modernização social, que é a globalização.
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MESTIÇAGENS
Serge Gruzinski, em O pensamento mestiço, discute as mesclas
culturais produzidas a partir do contato conflituoso entre a Europa e a
América nos séculos XV e XVI, destacando o caso do México. O autor
propõe a globalização como uma “mestiçagem”, que vem ocorrendo pelo
menos desde a virada do século XV ao XVI. Na sua introdução, reflete sobre até que ponto pode-se resumir a atual voga de produções mestiças a
uma estratégia sinistra da globalização:
Volta e meia associam-se mestiçagens, uniformização e globalização. Acelerando as trocas e transformando qualquer objeto
em mercadoria, a economia-mundo teria acionado circulações
incessantes que alimentam um melting-pot agora planetário. As
produções mestiças ou exóticas divulgadas pela World Culture
constituiriam uma manifestação direta da globalização, um filão
sistematicamente explorado pelas indústrias culturais de massa
(Gruzinski, 2001, p. 16).
Ou, como afirma Canclini, “uma visão simplificada da hibridação, como a propiciada pela mercantilização da arte, está facilitando
vender mais discos, filmes e programas de televisão em outras regiões”
(2000, p. 80).
No entanto, contra esta simplificação, Gruzinksi defende que
diversas – ou muitas – das mestiçagens não são simplesmente mercadorias
criadoras de novas formas de lucro. Essas outras mestiçagens, na verdade,
estariam “...francamente na contramão da globalização”: “É o caso das
mestiçagens localizadas que, por todo lado, transbordam as recuperações
orquestradas pela World Culture”, como invenções sincréticas dos subúrbios de Los Angeles, dos bairros pobres do México e Bombaim
(Gruzinski, 2001, p. 17). Por exemplo, o melhor do rock mexicano ou
russo continua desconhecido dos públicos do Primeiro Mundo.
“Desde o Renascimento, a expansão ocidental não parou de
provocar mestiçagens nos quatro cantos do mundo e reações de rejeição”
como o espetacular caso do Japão, que se fechou ao mundo ocidental no
início do século XVII (Gruzinski, 2001, p. 18). A globalização econômica
e a mestiçagem se iniciam em conjunto já no século XVI. O livro de
Gruzinski, ao pretender voltar ao século XVI, discutindo a colonização ibérica da América, principalmente o caso do México, deseja ser também uma
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forma de falar do presente, já que “...o estudo das mestiçagens de ontem
levanta uma série de indagações que permanecem atuais” (Gruzinski,
2001, p. 19). Em primeiro lugar, o estudo das misturas requer uma nova
forma de conceber as temporalidades, algo já indicado acima por Octavio
Ianni – que concebe a transculturação como um processo que permite a
simultaneidade de tempos e espaços (2000, cap. 4). A concepção da
história como linear – herança positivista – é imediatamente quebrada
quando se concebe a realidade das mestiçagens. As mestiçagens fazem
conviver, confluindo ou conflitando entre si, temporalidades distintas,
como no século XVI, por exemplo, fazendo defrontarem-se a temporalidade do Ocidente cristão e a dos mundos ameríndios: “Ao juntar
abruptamente humanidades há muito separadas, a irrupção das misturas
abala a representação de uma evolução única do devir histórico e projeta
luz nas bifurcações, nos entraves e nos impasses que somos obrigados a
levar em conta” (Gruzinski, 2001, p. 58).
Mais especificamente sobre as mestiçagens do século XVI no
México, Gruzinski reflete sobre o uso dos grotescos e as fábulas (formas
trazidas da Europa Renascentista), entre os artistas indígenas mexicanos,
como meios de expressão de conteúdos híbridos e mestiços. Ambos eram
meios de expressão que usavam imagens capazes de traduzir modos de
pensamento complexos, usando a memória de modo diverso da do texto
alfabético. A linguagem figurada dos grotescos (arte decorativa redescoberta em ruínas na cidade de Roma, no tempo do Renascimento, e que
inspirou uma “moda” maneirista na Europa) permitia aos artistas indígenas
“...codificar visualmente um pensamento e, portanto, eventualmente, difundi-lo de modo disfarçado ou distorcido” (Gruzinski, 2001, p. 190).
Assim como as fábulas, os grotescos eram um meio de expressão trazido
do Velho Mundo que podia ser usado para formularem-se idéias proibidas
e salvarem-se vestígios de suas antigas crenças.
As aproximações mútuas entre os modos ameríndio e europeu
de cultura, na verdade, não se deu sem muitos mal-entendidos e
deformações, os quais estiveram presentes nas suas obras mestiças:
As criações mestiças parecem ter uma dinâmica própria que se
subtrai em parte das intenções e dos hábitos estéticos de seus autores. Pois as misturas dão origem a limitações e virtualidades,
antagonismos e complementaridades, cujo resultado são configurações imprevisíveis. É nessa liberdade de combinações que reside
provavelmente a fonte da inovação e da criação (Gruzinski, 2001,
p. 223).
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Gruzinski também aborda outra questão essencial para este
texto, sobre a racionalidade ocidental. Isto se dá quando critica a lógica
ocidental restritiva que identifica irredutibilidade com irracionalidade.
Contra isto afirma que, como comprova a lógica das mestiçagens, “o
irredutível não é o irracional” (Gruzinski, 2001, p. 242). Ao analisar textos
mestiços produzidos no México no século XVI, em destaque os Cantares
de artistas de origem indígena, afirma que eles são baseados em regras
diferentes das nossas, em que se admite a contradição. Não se tratam, por
outro lado, de regras exóticas que representam fenômenos culturais
totalmente isolados, dado que se originam justamente do contato com a
ocidentalização. Trata-se de um “espaço novo”, uma “zona estranha” para
cuja compreensão é preciso ainda “...inventar novos procedimentos e fazer
coexistir elementos irredutíveis, sem que daí surjam verdadeiras lógicas”
(Gruzinski, 2001, p. 243). Mas isso se choca com nosso pensamento usual,
que considera a presença de contradições como prova da presença do
irracional. Citando excertos de Gilles-Gaston Granger, Gruzinski reitera o
estranhamento produzido no pensamento racionalista ocidental diante das
formas culturais surgidas a partir das mestiçagens:
É difícil aceitar que as “leis da lógica, terceiro excluído e contradição sejam arbitrárias”, que nossa racionalidade ou nossa
“lógica ordinária”, seja convencional, produto de uma história,
de uma tradição e de um meio. As criações mestiças dos índios
do México nos lembram brutalmente essas evidências, que
marcam também os limites em que esbarram nossos saberes
(Gruzinski, 2001, p. 243).
O tema das mestiçagens, bem como do caráter restritivo da racionalidade ocidental, remete-nos a Serge Latouche (1996). Em certos
momentos de sua obra, Latouche parece recuar em sua tese sobre a máquina
“Ocidente”, quando aborda os limites da ocidentalização. A ocidentalização,
como máquina de modernização, funciona a partir da destruição de tecidos
sociais e culturais tradicionais ou diferentes. Mas quando o “combustível”
começa a rarear, a ocidentalização entra em colapso. Só que, diferente de um
mero apocalipse destruidor, há fortes possibilidades de advir uma nova era
“pós-ocidentalização”, construída a partir daquilo que sobreviveu, fugiu,
resistiu ou se “misturou” criativamente com a ocidentalização. A esperança
no futuro está naquilo que sobreviveu ao “rolo compressor da ocidentalização... (a saber), os recifes... submersos..., os excluídos dos bene-
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fícios materiais e simbólicos da ‘modernização’, cada vez mais numerosos
(que) podem e devem inventar soluções novas para sobreviver como espécie
e como humanidade”. Soluções improvisadas, criadoras de formas sociais e
econômicas informais. Tal criatividade e vitalidade podem tanto “gerar
monstros” quanto ser recuperadas “pela máquina”, mas, por outro lado, têm
potencial para se tornar “a aurora de uma nova busca da humanidade plural”
(Latouche, 1996, p. 14).
A falência da ocidentalização no Terceiro Mundo parece gerar,
num primeiro momento, o perigo de um retorno ao caos ou barbárie.
Latouche tenta demonstrar ser esta hipótese um pouco forçada, tendo mais
a ver com o temor do imaginário ocidental diante da possibilidade de uma
ordem mundial sem o seu predomínio. Por outro lado, essa falência da
ocidentalização pode ser lida também “...como uma resistência ao Ocidente e uma vontade de recomposição das socialidades”. Nesse sentido, as
resistências, sobrevivências e permanências são na verdade “testemunhos
da vitalidade e da criatividade culturais”. As “formas sincréticas, desvios,
contraculturas” que surgem, testemunham a “...persistência de razões do
mundo irredutíveis à metafísica ocidental”. Tratam-se, por exemplo, de
cultos sincréticos como o quimbandismo e o kitawala na bacia do Congo,
o vudu na Costa de Benin, no Haiti e Cuba, bem como o candomblé no
Brasil, “...crenças vivas em plena expansão onde ritos cristãos ou elementos modernos se integram a um velho substrato de valores ancestrais”
(Latouche, 1996, p. 112).
Mais caracteristicamente, a urbanização acelerada do Terceiro
Mundo – que significou, para muitos, a favelização – também “...é o lugar
de amadurecimento de verdadeiras ‘contraculturas’”, seja nas poblacions
de Santiago do Chile, favelas do Rio de Janeiro, de Casablanca e do Cairo
e cidades como Abidjan. São lugares onde a auto-organização popular
procura resolver os muitos problemas cotidianos, onde são efetivados verdadeiros milagres e em que, “contra todas as expectativas, a despeito das
estatísticas, ali se vive” (Latouche, 1996, p. 114). Latouche anuncia que,
através da urbanização do Terceiro Mundo, se dá a criação, via mestiçagem
e criatividade, de algo diferente e para além de uma simples repetição do
modo de vida “ocidental”. Para Milton Santos (2002b), como será retomado, trata-se da emergência de novas racionalidades opositoras à racionalidade instrumental dominante.
Latouche destaca desta sobrevivência criativa, em meio à urbanização e favelização do mundo, uma proliferante economia “informal”.
Tratam-se de formas de economia estruturadas com uma lógica diferente
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da economia capitalista, a partir de uma organização social mais ou menos
tradicional, em que engenhosidade combina-se com astúcia diante de
problemas concretos a serem resolvidos:
No seio do desalento das favelas desenvolve-se uma vitalidade
extraordinária. O importante não é contentar-se com uma
sobrevivência biológica para constituir manadas dóceis e
passivas...Trata-se de uma criação, da reconstrução de uma
sociedade humana pelo desvio e recuperação dos objetos e das
forças da modernidade a partir dos valores culturais e dos laços
residuais das comunidades tradicionais (Latouche, 1996, p. 117).
Para Latouche, a sociedade-mundo, a “sociedade global”, é uma
ficção. Ainda, assim, entretanto, reconhece que o “Terceiro Mundo” sofreu
certa integração na civilização ocidental, algo irreversível, que impede a
nostalgia, dado que será impossível uma simples volta ao passado. A
vitalidade, possível onde as resistências, sobrevivências e adaptações
florescem, diferencia-se de um mero retorno a formas tradicionais de
sociabilidade. Trata-se sim do desejo de “...viver assumindo a dupla
herança de sua cultura e de sua passagem pelo sorvedouro da modernidade”, de forma que “ocorre uma verdadeira síntese entre as duas heranças na vida cotidiana concreta...” (Latouche, 1996, p. 117).
As obras de Serge Latouche e de Serge Gruzinski parecem
indicar a força – tradicionalmente menosprezada pelas Ciências Sociais e
a História – das mestiçagens no processo da modernização do mundo.
Também, um papel relevante – talvez fundamental – no esboço de novas
formas de civilização, alternativas àquelas até agora oferecidas pela
modernidade-mundo. A utopia, como no imaginário de Thomas More,
volta a se localizar também em “outro lugar”, e não apenas em “outro
tempo”. Na verdade, a utopia mestiça deve ser tratada no plural, já que ela
começa a ser pensada e vivida em muitos espaços. Locais e espaços sem
localização nítida, já que estão não apenas intricados entre si, mas se infiltram perigosamente no corpo virtual da racionalidade instrumental que a
modernidade-mundo apresenta em sua face hegemônica.
CRISE DO RACIONALISMO OCIDENTAL
Rupturas atualmente visíveis com diversos princípios do
Iluminismo, no pensamento social e até nas relações sociais cotidianas, não
indicariam para Anthony Giddens uma superação da modernidade, nem o
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advento da pós-modernidade. Indicariam, isto sim, uma radicalização da
modernidade enquanto “reflexividade”. Giddens considera como aspectos
da radicalização da modernidade a dissolução do evolucionismo, o fim da
teleologia histórica, o reconhecimento da reflexividade meticulosa e o fim
da posição privilegiada do Ocidente. “A ruptura com as concepções providenciais da História, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto
com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o
‘esvaziamento’ do progresso pela mudança...” (Giddens, 1991, p. 57) não
significam a irrupção da pós-modernidade, mas sim uma maior consciência
sobre a própria modernidade, uma maior auto-elucidação do pensamento
moderno. Passa a se compreender melhor os limites das promessas da
razão, passa a se perceber melhor que um mundo baseado cada vez mais
em conhecimento reflexivamente aplicado é também um mundo com cada
vez mais incertezas, em que qualquer elemento dado deste conhecimento
pode ser revisado e superado a qualquer momento.
Para Giddens (1991), outro aspecto da modernidade avançada,
que é mesmo o outro lado da expansão mundial da modernidade, é o
declínio gradual da hegemonia global européia-ocidental. Demonstra-se
com isto que a modernidade não é simplesmente um outro tipo de civilização e que o declínio do “Ocidente” não resulta da minimização atual do
impacto das instituições da modernidade – pelo contrário, é fruto deste impacto ampliado. O Ocidente não se diferencia tanto mais, do resto do mundo, em poder econômico, político e militar.
Vê-se, no sociólogo inglês Anthony Giddens, que a capacidade de
relativizar o poder da razão moderna o leva ao mesmo tempo a relativizar a
hierarquia dos povos, a conceber como artificial a noção Oriente versus
Ocidente. Para Giddens (1991), mais poderosa e permanente que a razão
instrumental criada pela “racionalidade com relação a fins”, num ponto de
vista ao mesmo tempo mais amplo historicamente e penetrante
espacialmente, seria a reflexividade da práxis na modernidade. Para além da
imposição dos valores socioculturais do Ocidente europeu, a extensão
espacial da modernidade significaria a revelação e o advento de outros
arcabouços de conhecimento não-ocidentais. Arcabouços que, desafiados
pelo “ocidentalismo”, quando sobreviventes, deixam de ser apenas referenciados pelas tradições, passando a buscar formas de justificativa racional,
dando origem, talvez, a formas híbridas e mestiças de racionalidade.
Apesar desta tendência da modernidade-mundo, Boaventura de
Sousa Santos (2001, cap. 4) considera que ainda existem monopólios de
interpretação, que a guerra contra esses monopólios ainda não está ganha,
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principalmente porque as vitórias parciais foram capazes mais de criar
“milhões de renúncias à interpretação” do que criar “mil comunidades
interpretativas” (Santos, 2001, p. 109). Contudo, existem inúmeras indicações de que estamos próximos do advento destas comunidades interpretativas. Seus exemplos ecoam justamente aqueles apresentados acima,
por Serge Latouche, e abaixo, por Milton Santos, como o processo de resolução de conflitos em favelas do Rio de Janeiro, realizado “...através de
uma argumentação tópico-retórica, um conjunto de topoi, que eram a condensação de costumes e experiências do cotidiano que, pouco a pouco, se
convertiam em critérios de razoabilidade desse mesmo cotidiano” (Santos,
2001, p. 109).
O resgate do termo socialismo por Boaventura de Sousa Santos,
num contexto pensado para além da modernização como ocidentalização,
sob a influência até mesmo de paradigmas “pós-modernistas”, indica que,
como no início do século XIX, renasce a esperança de constituir uma
civilização alternativa àquela exigida, outrora, pela utopia liberal do
progresso e, hoje, pela versão neoliberal da globalização. Nele, o
socialismo deixa de ser associado imediatamente ao modelo combalido do
comunismo soviético, nem mesmo com suas versões sobreviventes na Ásia
e em Cuba ou, enfim, com a decadente social-democracia européia. Passa
a indicar uma miríade de desejos, projetos, utopias. Algumas delas, como
a de Boaventura de Sousa Santos, talvez “pós-modernas” – termo que
expressa o desejo de superar os dilemas insolúveis da modernidade. Outras
procuram sistematizar o desejo que emana não apenas da busca de um
“outro tempo”, mas também das experiências oriundas de “outros espaços”, fomentadas por relações alternativas – relações que vão da rejeição
à mistura – com as versões “ocidentais” da modernidade.
DO TERCEIRO-MUNDISMO À GLOBALIZAÇÃO ALTERNATIVA
América Latina, África e Ásia foram produtores, durante os
anos da Guerra Fria, de um vigoroso pensamento “terceiro-mundista”. Na
verdade, o terceiro-mundismo desde o início se forjou principalmente como uma retórica e uma prática política efetiva, sob muitas faces, é claro,
bem como inúmeras contradições e limitações, através dos governos de territórios recém-libertos do Terceiro Mundo, ou mesmo de povos e movimentos sociais insatisfeitos com os desígnios para eles traçados pela geopolítica da Guerra Fria.
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Os anos 1990 e o fim da Guerra Fria promoveram uma necessária reavaliação dos valores e objetivos que animaram o terceiro-mundismo, este outro rebento das lutas sociais do século XX que entrava em
colapso, ao lado do comunismo soviético. Diversos pensadores fizeram a
necessária transição do terceiro-mundismo para outras concepções de
mundo e práticas políticas, em geral igualmente radicais, progressistas e
esquerdistas. Como indicou Emir Sader (2001), o fato da concentração
principal de forças de resistência se encontrar novamente no mundo
periférico, não deveria autorizar um retorno às teses terceiro-mundistas,
que seriam incapazes, apesar da tentação nostálgica, de dar conta hoje da
complexidade das lutas sociais e do processo da globalização.
Celso Furtado publicou em 1998 um pequeno livro, O capitalismo
global, em que se opera a busca de uma “ponte”, uma ligação histórica, política
e valorativa entre suas teses sobre o subdesenvolvimento, criadas dentro da
Cepal1 nos anos 1950 e 60, e a reflexão sobre os problemas trazidos pela globalização aos povos do “Terceiro Mundo”. Mas o que se destaca é sua busca
de uma nova imaginação política, inclusive “utópica”, termo surpreendentemente presente no mais importante economista da história brasileira. Celso
Furtado considera os novos desafios colocados pelo capitalismo global, em
destaque o problema mundial da exclusão social, como de “...caráter social, e
não basicamente econômico como ocorreu na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo”. Torna-se urgente colocar, dada essa inversão, “a imaginação política... ao primeiro plano. Equivoca-se quem imagina que já não
existe espaço para a utopia”. Torna-se necessário instaurar, contra “a administração das coisas”, o “governo criativo dos homens”, a “imaginação prospectiva que nos habilita a pensar o futuro como História” (Furtado, 2001, p. 33-4).
O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos
do que mudar o curso da civilização, deslocar o seu eixo da
lógica dos meios a serviço da acumulação num curto horizonte
de tempo para uma lógica dos fins em função do bem-estar
social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os
povos... estabelecer novas prioridades para a ação política em
função de uma nova concepção do desenvolvimento, posto ao
alcance de todos os povos e capaz de preservar o equilíbrio
ecológico. (Furtado, 2001, p. 64)
1 ACepal,
órgão da ONU para pesquisas econômicas sobre a América Latina, foi constituída em
1948 pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, por um período
experimental de três anos, transformando-se em entidade permanente da ONU em 1951.
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Percebem-se na citação acima diversos temas que parecem aproximar Furtado de teóricos mais conservadores e “reformistas” do movimento de crítica à globalização, como o norte-americano David Korten
(1996, 2002): a absorção da questão ambiental, valores de solidariedade e
cooperação, crítica da lógica materialista exercida pelos administradores do
capital, crítica à confusão entre crescimento econômico e desenvolvimento
social. Logo adiante, Furtado fala nos dois objetivos estratégicos para a ação
política do século XXI: a preservação do patrimônio natural (a questão
ambiental); a liberação da criatividade humana, que precisa desprender-se
da lógica da acumulação econômica e do poder militar, “...a fim de que ela
possa servir ao pleno desenvolvimento de seres humanos concebidos como
um fim, portadores de valores inalienáveis” (Furtado, 2001, p. 66).
Como se sabe, Celso Furtado e outros economistas ligados à
Cepal geraram, nos anos 1950, uma verdadeira revolução na forma de
pensar o “desenvolvimento”. Com Furtado e a Cepal, os países da América
Latina e do Terceiro Mundo deixavam de ser pensados como entidades
“em desenvolvimento” para serem concebidos como “subdesenvolvidos”.
Por sua vez, partindo das teses cepalinas, radicalizadas, os teóricos da dependência localizaram a causa primordial do “subdesenvolvimento” na dependência econômico-política a que era submetido o Terceiro Mundo.
Samir Amin foi, segundo Wallerstein (2001), fora da América Latina, o
principal representante da radicalização das teses desenvolvimentistas
oriundas da Cepal, ajudando a gerar a teoria da dependência na sua primeira versão. Dependentistas como Amin defendiam que os países periféricos, bem mais do que substituir importações, deveriam “...desligar-se
definitivamente da economia-mundo capitalista – seguindo, implicitamente, o modelo dos países comunistas” (Wallerstein, 2001, p. 236).
Em 2001, transformado em diretor do Fórum do Terceiro
Mundo (ONG com sede em Dakar, Senegal) e presidente do Fórum Mundial de Alternativas, Amin exemplificava a possibilidade de retomar os
mesmos ideais que animavam a teoria da dependência, mas agora buscando superar sua formulação original, que se tornou presa a um tempo
marcado pela bipolarização geopolítica, pela alternativa civilizatória socialista encarnada pela União Soviética e pelo terceiro-mundismo. Amin passa a pensar, teorizar e sugerir outra forma de práxis política a partir de novos eixos paradigmáticos. Fala em mundialização, reformas neoliberais,
capitalismo financeiro, recessão mundial, democracia de baixa intensidade,
regionalização e blocos econômicos (Amin, 2001). Temas que não estavam, nem poderiam estar, na ordem do dia do pensamento e da prática
74
LUANOVA Nº 64— 2005
política do Pós-Segunda Guerra Mundial, durante a descolonização, a
criação do Bloco dos “Não-Alinhados”, os “anos dourados” da economia
mundial (que vigorou até o início dos anos 1970) e a Guerra Fria. Ao
mesmo tempo, porém, a necessidade de pensar a resistência dos povos
periféricos aos processos de exploração e dominação econômico-política
continua a ser a principal motivação de Samir Amin.
Amin, inclusive, é ele próprio parte da análise da superação das
formas de sociedade do Pós-Guerra (1945-1990), baseadas em três tipos de
ordem interna: “o grande compromisso social capital-trabalho” nos países
ricos, com o Estado de Bem-Estar e políticas keynesianas; “os modelos nacionalistas populistas modernizadores do Terceiro Mundo” e “o modelo
soviético do socialismo”, que Amin prefere chamar de “capitalismo sem
capitalistas”. Estes três modelos de organização social foram erodidos e,
hoje, substituídos pela “recomposição de força favoráveis ao capitalismo
dominante” (Amin, 2001, p. 19).
Viveria-se hoje a retomada ou a revanche da lógica estrita do
capitalismo, dissolvendo a presença da lógica dos movimentos anti-sistêmicos na organização social. Esta concepção do avanço da lógica capitalista levará Samir Amin a considerar a noção de “mundialização” ou
globalização como mera ideologia, buscando esconder o retorno de formas
imperialistas de dominação. A ideologia burguesa dominante vem negando
a polarização criada pelo capitalismo mundial, afirmando “que a mundialização oferece uma ‘oportunidade’que as sociedades podem aproveitar ou
não, segundo razões que lhe são próprias” (Amin, 2001, p. 19). Mas, na
verdade, trata-se simplesmente de um discurso triunfalista que substitui o
termo imperialismo pelo termo “mundialização” nos argumentos das classes dominantes. Capitalismo mundial e imperialismo tornam-se, em Amin,
praticamente sinônimos. Desse modo, as reformas neoliberais significam o
restabelecimento da “lógica unilateral do capital”, expressa em políticas
impostas por todos os lados, com as mesmas características: “taxas de lucros elevadas, redução do gasto público social, desmantelamento das políticas de pleno emprego..., redução de impostos em benefício dos ricos, desregulações, privatizações”. Ganham ou recuperam espaço os “...blocos
hegemônicos anti-operários, antipopulares” (Amin, 2001, p. 22).
Para Amin, o Sudeste Asiático oferece um importante exemplo
de resistência ao neoliberalismo. Enquanto as regiões do mundo que mais
se abrem ao capitalismo mundial, via reformas neoliberais, são as que mais
sofrem suas conseqüências negativas (América Latina, Europa, Oriente
Médio e Japão), Leste Asiático, China, Coréia, Sudeste Asiático e Taiwan
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
75
escapam desta armadilha, pelo menos enquanto conseguirem os seus governos resistir à mundialização desenfreada. Mas a verdadeira resistência à
mundialização estaria na luta de movimentos populares contra os cinco
monopólios que são reforçados pelo capitalismo mundial: o monopólio das
novas tecnologias, o “controle dos fluxos financeiros de escala mundial”,
o “controle de acesso aos recursos naturais do planeta”, o “controle dos
meios de comunicação” e o “monopólio das armas de destruição massiva”.
Em ação conjunta, às vezes sob tensões, mas geralmente de modo
funcional, estes monopólios são implementados pelo “grande capital das
multinacionais industriais e financeiras e dos Estados que se encontram ao
seu serviço”. Resistir à mundialização, portanto, significa principalmente
lutar pela redução destes cinco monopólios. Para tanto, seria preciso criar
“frentes populares democráticas antimonopólios/antiimperialistas/anticompradores” (Amin, 2001, p. 25-6).
Para Amin, a dimensão nacional das lutas não deve ser menosprezada. Ele propõe até mesmo um uso mais consistente do nacionalismo
como forma de resistência, em seu sentido progressista, que não exclui a
cooperação regional. Tais formas de cooperação regional, em escalas como
a da América Latina, África, mundo árabe, Sudeste Asiático, China, Índia
e Europa, poderiam se efetivar através de “alianças populares e democráticas” e um “projeto de um mundo policêntrico autêntico”, uma “outra
modalidade de mundialização”. Remodulando o discurso “dependentista”
dos anos 1960 e 70, Samir Amin afirma sonhar com a passagem do
capitalismo mundial ao “socialismo mundial” (2001, p. 26-7).
Vale a pena discutir como as idéias de Samir Amin reverberam
nas de diversos outros pensadores de esquerda dos países fora do Centro.
Por exemplo, Walden Bello, que em 2001 era diretor executivo do Focus
on the Global South, programa de pesquisa e promoção social do Instituto
de Pesquisas Sociais da Universidade de Chulalongkorn em Bancoc,
Tailândia. Walden Bello escreveu um interessante texto em 2000, preparatório para as jornadas de protesto na cidade de Praga, República
Checa.2 (Bello, 2001).
No que chama de “Luta pelo futuro”, Walden Bello destaca a
“desglobalização” e a criação de um sistema mundial plural. Percebe-se nesse
pensador a forte presença do espírito que animava o terceiro-mundismo. No
entanto, nas suas propostas, é possível perceber o quanto parece convergir
2
Em 26 de setembro de 2000, 15 mil manifestam-se em Praga contra reunião conjunta do
FMI e Banco Mundial.
76
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Bello com pensadores “reformistas” como David Korten. Para Bello, a
desglobalização significa a reorientação das economias, que retomariam
como seu objetivo principal a produção para o mercado local. Seguem-se
diversas propostas macroeconômicas e políticas, como: redistribuição de
rendas e terras para criar mercado interno vibrante; redução do desequilíbrio
ambiental; decisões econômicas democraticamente orientadas; constante monitoramento pela sociedade civil do Estado e do setor privado; criação de um
novo complexo de produção e troca que inclua cooperativas comunitárias,
empresas privadas e empresas estatais, excluindo transnacionais; promoção
da produção de bens a nível local e nacional através de subsídios, com a
intenção de preservar a comunidade; reinserção da economia na sociedade,
em vez de ser a sociedade impulsionada pela economia. Para Walden Bello, a
desglobalização é explicitamente o reforço do local e do nacional – um objetivo que também é marcante na obra do “conservador” David Korten.
Mas, afirma Bello, esta desglobalização deve ser feita dentro
de “...um sistema alternativo de governo econômico global” (Bello,
2001, p. 165). Deve haver a desconcentração e descentralização do poder
institucional (e não a centralização), com um sistema pluralista de instituições e organizações interagindo umas com as outras para acordos e
entendimentos amplos e flexíveis. Afirma que é preciso reduzir radicalmente o poder das transnacionais, da Organização Mundial de
Comércio, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, convertendo-as em apenas outros atores coexistentes, observados por outros
organismos internacionais, acordos e agrupamentos regionais. Baseandose inclusive em John Gray (1999), outro crítico “conservador” da
globalização, defende uma maior flexibilidade e maior compromisso
social do sistema econômico mundial. Em vez de fundar-se num distópico “livre mercado global”, é preciso evoluir para um novo sistema de
governo econômico global, com múltiplos monitores e balanços. O trecho seguinte parece repetir, num tom mais otimista e progressista, as propostas de John Gray, ao mesmo tempo em que recupera o tema da
“criatividade da vida” de David Korten:
Devemos por fim a este projeto globalista arrogante de converter o mundo em uma unidade sintética de átomos individuais
sem cultura ou comunidade. Devemos anunciar, em vez disto,
um internacionalismo que está baseado em respeitar e
incrementar a diversidade das comunidades humanas e a
diversidade da vida (Bello, 2001, p. 167).
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
77
É notável que as propostas de Amin soem com mais radicalidade
que as de Bello e, apesar de seu tom mais genérico, que as de Celso
Furtado. Os segundos até poderiam ser chamados, retomando chavões de
outrora, de “reformistas” no interior do campo dos movimentos críticos da
globalização. Walden Bello, inclusive, parece muito próximo de ideais
comunitaristas e pluralistas dos “conservadores” John Gray e David
Korten. Já Samir Amin não teme referendar o termo “socialismo”. Mas não
se trata do mesmo socialismo evocado por organizações sindicais e partidárias ligadas à “velha” esquerda que também se fazem presentes – nem
sempre tão marcadamente – nos atos de protesto contra a globalização
hegemônica. Amin, como Boaventura de Sousa Santos (2001), articula a
utopia temporal, a imaginação a respeito de um outro futuro, com a defesa
da diversidade sócio-cultural, diversidade que se torna a principal contribuição dos povos do “Terceiro Mundo” para as novas utopias.
Octavio Ianni chama essa retomada do socialismo de “neosocialismo” (Ianni, 1997, cap. 9). Trata-se do socialismo transfigurado no
contexto do globalismo, nascido de forças que emergem do interior de uma
possível e nascente sociedade civil mundial. Trata-se da expressão, dentro
do contexto do globalismo, de anseios, desejos e sonhos que emanam das
classes sociais subalternas. Muitos dos novos movimentos sociais criados
no contexto do globalismo enriquecem o neo-socialismo: ambientalismo,
feminismo, pacifismo, movimentos indígenas, ONG’s que mobilizam populações e questões sociais relativas a crianças, adolescentes, mulheres,
indígenas, imigrantes, refugiados e desempregados. São movimentos diversos e múltiplos que expressam o outro lado do globalismo, que esboçam
um outro contrato social e uma outra cidadania, que expressam experiências históricas alternativas vividas durante e até antes da era do Estado
nacional. O neo-socialismo busca ser, também, um balanço crítico dos experimentos socialistas, repensando suas conquistas efetivas e os problemas
debelados nas suas tentativas de implementação. Expressa-se nesse neosocialismo em esboço, enfim, a denúncia da exploração global da força de
trabalho, tornada agora mundial, uma espécie de trabalhador coletivo
global. Revela-se que continua essencial, pulsando por trás das lutas sociais, a contradição nas relações entre capital e trabalho, bem como a
tensão entre classes subalternas e classes dominantes e a questão da exploração da força de trabalho.
Ianni (1997) cita diversos pensadores que defendem que o socialismo é uma perspectiva alternativa, civilizatória e moderna, que busca
criticar e superar a forma civilizatória capitalista. Mas também o socialismo
78
LUANOVA Nº 64— 2005
busca abrir novas possibilidades de emancipação humana a partir do olhar e
perspectiva dos que estão por baixo da escala social, a partir dos grupos e
classes subalternos. Enfim, Ianni reafirma a tese de que o neo-socialismo é –
ou deveria ser – a expressão da nascente sociedade civil mundial e, neste
sentido, ser um caminho em prol da emancipação individual e coletiva.
Pablo González Casanova, por sua vez, defende a utopia de uma
sociedade civil mundial, numa versão “globalizada” da democracia radical.
Segundo ele, essa utopia já estaria entre nós, fincando as raízes de uma democracia global e plural, em que uma sociedade civil “...controla o multiestado”
e assume “...o problema social com o poder da maioria em cada nação e na
humanidade. Essa utopia surge nas mais diversas regiões e países, em pequenos e grandes movimentos, muitos deles populares” (Casanova, 2001, p. 60).
Casanova e Ianni indicam o caráter plural, múltiplo e diverso dos
pontos de onde emergem as resistências e projetos “utópicos” para uma outra
globalização – democracia global para um, neo-socialismo para outro.
MILTON SANTOS E AS CONTRA-RACIONALIDADES
Um outro excelente exemplo – por ora, deste esforço do pensamento desterritorializado, abrangendo ao seu modo a perspectiva da
História como transculturação e exibindo toda a força criativa do
pensamento científico do mundo “periférico”– é o geógrafo brasileiro
Milton Santos. Sua obra Uma outra globalização (Santos, 2002b), procura
fugir das ciladas das matrizes ocidentalistas do pensamento moderno.
Também, oferece saídas utópicas que não olham apenas adiante no tempo,
mas abarcam muitos outros espaços e territórios, além do Ocidente, no seu
projeto de emancipação.
Milton Santos também enfatiza em sua obra o aspecto técnico e
tecnológico da racionalização do mundo. Contudo, em consonância à Escola de Frankfurt (Horkheimer, 1976), demonstra o caráter mistificador
dessa razão instrumental, já que “a técnica apresenta-se ao homem comum
como um mistério e uma banalidade” (Santos, 2002b, p. 45). As técnicas
são impostas como racionais e baseadas na ciência, a serviço do mercado
e com um absolutismo que reforça sua pretensa inevitabilidade:
Quando o sistema político formado por governos e pelas empresas utiliza os sistemas técnicos contemporâneos e seu
imaginário para produzir a atual globalização, aponta-nos para
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
79
formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam
discussão e exigem obediência imediata, sem a qual os atores
são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica
indispensável ao funcionamento do sistema como um todo
(Santos, 2002b, p. 45).
Na perspectiva conservadora, tratar-se-ia da destruição pela
racionalização técnica de estilos de vida, tradições e instituições sociais
que protegiam o ser humano diante das vicissitudes da natureza, da economia e da ambição política. Restariam o medo e a insegurança como sentimentos dominantes. Ecos dessa perspectiva parecem ressonar em Milton
Santos, quando afirma que “jamais houve na História um período em que
o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida:
medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro...”
(2002b, p. 59). Mas, na verdade, trata-se da perspectiva de um pensador
progressista, diferenciado inclusive daqueles que falam da perspectiva dos
países do Norte, já que Milton Santos pensa também de outra perspectiva
espacial – o mundo periférico. Numa perspectiva progressista, Santos é
capaz de denunciar o processo de globalização, sobretudo, como a ruptura
das conquistas da modernidade, com a globalização paralisando o “... processo de evolução social e moral que se vinha fazendo nos séculos precedentes” (2002b, p. 64). Numa perspectiva não-ocidentalista, como se
verá, aparece a proposta de que, contra a racionalidade tecnicista dominante, irrompem muitas outras racionalidades.
Milton Santos indica que a origem das outras racionalidades (ou
contra-racionalidades) é o local (o “território”), recuperando assim temas
caros ao conservador David Korten – o localismo e a vitalidade: “O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais
e da vida, sobre os quais ele influi” (Santos, 2002b., p. 96). Por sua vez, o
âmbito do global é o da verticalidade, das redes, dos fluxos, da temporalidade do relógio universal e da racionalidade tecnicista hegemônica,
que cada vez mais procura colonizar os locais, transformando-os em
pontos para seus velozes fluxos. Mas, apesar dessa colonização, os espaços, as localidades, continuam a ser o reino das horizontalidades, onde a
vida humana é realmente vivida: zonas de contigüidade, extensões
contínuas, espaço banal e espaço das vivências.
Outras racionalidades se desenvolvem no interior das horizontalidades, pois os territórios as admitem a despeito da hegemônica (que
chama as primeiras de irracionalidades). Tais racionalidades diferentes são,
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LUANOVA Nº 64— 2005
na verdade, também contra-racionalidades, pois são “... formas de
convivência e de regulação criadas a partir do próprio território e que se
mantêm nesse território a despeito da vontade de unificação e
homogeneização típica das verticalidades” (Santos, 2002b, p. 110). As
horizontalidades admitem vários relógios, várias temporalidades e
permitem solidariedade. Mas, tanto elas quanto as solidariedades criadas
no âmbito da vida cotidiana, são atacadas pelo processo hegemônico da
globalização, que opera em prol da desagregação delas. No entanto, essa
desagregação é só uma parte de um processo dialético, processo no qual o
espaço banal consegue sempre se reconstruir.
As horizontalidades – territórios, espaços, locais – são os
lugares onde é possível a vivência real da Política, com acordos e debates
(em vez da policy empresarial). Os territórios podem buscar sentido e vida
reflexiva – e não apenas atividades pragmáticas –, permitindo vida e
emoção. Mais do que recurso, pelo trabalho e pelas estratégias cotidianas
de sobrevivência e criação sociocultural, o território vira também abrigo. O
lugar é a base da nova construção do território para a cidadania e “espaço
da existência plena”. Principalmente através da criatividade das classes
subalternas, emanam das horizontalidades manifestações da vida, contraracionalidades e emoção. O local, espaço do vivido, da experiência, é a
base para pensar opções e alternativas, é a base para a revolta contra a
globalização.
Por sua vez, a propagação heterogênea da racionalidade global
é a oportunidade e o recurso que permitirá existirem as contra-racionalidades. O Projeto Racional Hegemônico demonstra mais do que nunca
as suas limitações ao se expandir desmesuradamente. Hoje, esse projeto
transforma a razão em racionalidade totalitária que, enfim, gesta a própria
perdição da “razão” – que debocha das carências e do empobrecimento
crescente. A incapacidade de numerosas parcelas da população em seguir
as normas de tal racionalidade leva-as a decaírem em situações caracterizadas pela racionalidade hegemônica como “ilegais”, “irregulares”,
“informais”. Mas o caldo de cultura que mistura velhas e novas criações
diferentes gera um momento potencial de conscientização, em que se dá a
redescoberta da razão justo nos lugares “não conformes” à racionalidade
dominante (Santos, 2002b, p. 120). A própria globalização, dialeticamente,
favorece esse processo de gestação de contra-racionalidades, ao aumentar
o “caldeamento” de filosofias e elementos culturais produzidos não só pelo
racionalismo tecnocrático – o que Octavio Ianni chamara de “transculturação”.
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
81
Milton Santos, semelhante ao comunitarismo expresso por
conservadores e progressistas românticos, fala também em compaixão,
redução das fraturas sociais, nova ética, vida como ponto de partida
criativo, interesse social acima do econômico e o fim da regra da competitividade como padrão dos comportamentos. Entretanto, semelhante
apenas aos progressistas, interpreta as possibilidades de recriação do
princípio “comunitário” como uma utopia. Ou seja, interpreta a solidariedade social abundante nos territórios, germes de uma outra globalização, como um avanço, não como um retorno àquilo que foi perdido
com o novo choque de modernização.
Mas, como pensador situado em outra ótica, para além do
ocidentalismo, Milton Santos acrescenta algo de novo nessa crítica
progressista da globalização. Primeiro rejetia a idéia da imponderabilidade
da globalização, que considera uma falácia ligada à idéia errônea de que
Europa e EUA são os únicos e legítimos agentes da História. Na verdade,
os países centrais impõem a globalização de cima para baixo aos demais
países, ainda que no coração desses haja disputa (entre EUA, Japão e
Europa). Milton Santos acredita que os países do Sul precisam e irão
compreender que cooperar com os países centrais significa aumentar a
dependência. A globalização recriará o fenômeno do terceiro-mundismo e
da terceiro-mundização, incluindo mesmo parte da população marginalizada e/ou imigrante dos países ricos. Terceiro-mundismo renovado,
para além da perspectiva maniqueísta do terceiro-mundismo de meados do
século XX, capaz agora de avaliar com novos instrumentos e perspectivas
o processo da globalização.
Para Milton Santos, enfim, a fonte da outra globalização,
diferente de outros impulsos que provocaram rupturas no capitalismo, não
virá dos países centrais, mas sim dos países subdesenvolvidos. Nesse
sentido, é de suma importância compreender a transculturação, analisar os
germes das utopias mestiças, valorizar também fontes alternativas de produção do conhecimento – nascidas a partir da resistência diante da modernização e da sobrevivência criativa diante dos fenômenos de ruptura social
–, fenômenos que se fazem valer principalmente fora dos países centrais do
capitalismo global. Fenômenos que indicam presentes alternativos àquilo
que as teorias sociais e doutrinas políticas criadas nos países centrais
costumam apontar como sendo o “mundo” contemporâneo. Outros presentes, outras formas de viver e sobreviver à modernidade-mundo, que podem conter novos futuros, novas perspectivas em prol de uma humanidade
realmente plena e fraterna.
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LUANOVA Nº 64— 2005
Pode-se vislumbrar que a fonte da qual poderão emergir essas
novas utopias são as racionalidades alternativas, geradas a partir da luta
pela sobrevivência, do trabalho e da criatividade das classes populares do
Terceiro Mundo. Serge Latouche (1996) e, principalmente, Milton Santos
(2002b), chegam a conclusões que apontam para essa possibilidade. Partem
de questões ou paradigmas que se originaram dos problemas específicos da
experiência da modernidade no mundo não-ocidental. Primeiro, a questão
da miséria gerada pelas rupturas socioculturais nas tentativas de “desenvolvimento” econômico. Na verdade, um processo análogo àquele
vivido pela Europa Ocidental no início do século XIX, revelando um efeito
universal desagregador da modernização. Segundo, a questão do enfraquecimento das culturas específicas dos povos não-ocidentais. Terceiro, a
questão da falta de autodeterminação dos povos não-ocidentais, sedentos
de uma autonomia e emancipação prometidas pelos valores da modernidade e que o processo de modernização renegou através de práticas colonialistas, imperialistas, neo-imperialistas e, hoje, “globalizantes”, impostas, ao longo da História, pelas elites e poderes do “Ocidente”.
Os autores abordados aqui indicam a emergência de um
pensamento, ou melhor, de pensamentos sociais criativos. Quanto à prática política, entre os muitos movimentos sociais do Terceiro Mundo, um deles parece
ser o mais representativo – exceto por ter sua origem fora das zonas urbanas.
Trata-se dos zapatistas, guerrilheiros indígenas de Chiapas, sul do México. Os
zapatistas ilustram a enorme criatividade e radicalismo da práxis política das
classes populares das regiões pobres do mundo, capazes, por exemplo, de
aglutinar interesses sociais tradicionais ligados a classes camponesas e povos
indígenas (a “tradição”, a “pré-modernidade”), com práticas guerrilheiras que
lembram os momentos mais radicais do terceiro-mundismo (uma forma
particular de “modernidade” gerada nas zonas periféricas do mundo capitalista) e, enfim, com uma retórica que junta o democratismo radical (exacerbando valores “modernos”, como a cidadania e a emancipação) com o “pósmodernismo” expresso tipicamente pelas políticas da identidade.3 Tempos, espaços, experiências, valores, estratégias e práticas que formam um todo, ao
mesmo tempo, caleidoscópico e sistêmico, adaptado o melhor possível para
esse nicho específico de resistências e sonhos utópicos. Utopia que, talvez,
saiba que seus sonhos são ao mesmo tempo bastante particulares – expressando interesses e pontos de vista de uma dada região, classe e etnia – e universais – buscando fazer reverberar seus próprios sonhos de emancipação e
autonomia nos dos demais indivíduos e grupos em todo o planeta.
3
Ver, por exemplo, a análise de Ceceña, 2001.
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
83
CONCLUSÃO
O pensamento progressista pode reencontrar o caminho da humanização, fugindo do racionalismo abstrato e formalista (tipo particular
de racionalidade que se pensa como exclusiva e universal), se considerar a
criatividade humana, a diversidade histórica e cultural e o acúmulo de lutas
sociais pela emancipação.
Mas para a realização mais plena dos novos ideais progressistas,
entretanto, o novo momento histórico requer uma outra dimensão, além da
dimensão temporal expressa pela utopia. Trata-se da dimensão espacial.
Para ilustrá-la, vale a pena retomar o último aspecto tratado acima, quando
Milton Santos (2002b) afirma que outras globalizações (anti-hegemônicas)
deverão vir dos países subdesenvolvidos. Concordo com Milton Santos,
pelo menos no fato de que é daí, provavelmente, que se dará (e já se dá,
efetivamente) a criação de novas ideologias políticas progressistas mais
abrangentes, diante do caráter transcultural da modernização.
Isso não significa a defesa de um novo terceiro-mundismo
intransigente, preconceituoso às avessas, rejeitando de antemão qualquer
forma de ocidentalismo. Trata-se, sim, de levar a sério a análise que preconiza o esgotamento das formas de emancipação pensadas somente através dos valores da modernidade ocidental. Trata-se, também, da conclusão
de que o pensamento progressista precisa abandonar os limites do racionalismo de origem européia, que precisa ser capaz de dialogar, compreender e inserir na sua utopia outras racionalidades, produzidas fora ou – principalmente – a partir da transculturação promovida pelos projetos de ocidentalização do mundo.
Esta última conclusão pode conduzir ao diagnóstico de que os
germes dos novos pensamentos progressistas vindos do Sul, do “Terceiro
Mundo”, onde mais longe foram os processos de transculturação, são os
que têm, potencialmente, mais poder criativo diante do caráter complexo e
abrangente da modernização na era do globalismo – que, definitivamente,
deixou de ser apenas a expansão da modernidade de tipo “ocidental” pelo
planeta, para ser uma intricada galáxia processual promotora da transculturação.
LUIS ANTONIO GROPPO é professor do Programa de
Mestrado em Educação Sócio Comunitária do Centro
Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal)
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LUANOVA Nº 64— 2005
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RESUMOS/ABSTRACTS
TRANSCULTURAÇÃO E NOVAS UTOPIAS
LUIS ANTONIO GROPPO
A partir de uma análise de diversos pensadores sociais
progressistas situados no mundo periférico, o artigo relaciona o fenômeno
da transculturação – concebido como o “outro lado” da galáxia processual
chamada de globalização – com a produção, real e possível, de novas utopias. Utopias produzidas a partir do confronto, contraste e interpenetração
entre formas de racionalidade “ocidental” e formas sócio-culturais do
mundo periférico, os quais geram novos modos de racionalidade baseados
na transculturação. Conclui-se que os novos pensamentos progressistas
vindos do Sul, do “Terceiro Mundo”, onde mais longe foram os processos
de transculturação, são os que têm, potencialmente, mais poder criativo
diante do caráter complexo e abrangente da modernização na Era do
Globalismo.
Palavras-chave: Globalização; Transculturação; Centro e
Periferia; Utopia.
TRANSCULTURATION AND NEW UTOPIAS
Out of the endeavour of some progressive social thinkers
situated in the peripheral world, this article relates the transcultural
phenomenon – conceived as the “other side” of the processual galaxy
called globalization – and the production, actual and possible, of new
utopias. Utopias resulted from the confrontation, contrast and
interpenetration between forms of “Western” rationality and sociocultural forms of the peripheral world, which create new modes of
rationality based on transculturation. The article concludes that the new
progressive elaborations of the South, the “Third World”, where the
transculturation process is more advanced, have potentially creative
powers to better deal with the complex and large aspects of the
modernization in the Age of Globalism.
Keywords: Globalization; Transculturation; Center and
Periphery; Utopia.