AGUINALDO RODRIGUES GOMES
REVOLUÇÃO E UTOPIA:
EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA EM
AQUIDAUANA DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1985)
CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO
AGUINALDO RODRIGUES GOMES
REVOLUÇÃO E UTOPIA:
EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA EM
AQUIDAUANA DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1985)
Orientador(a): Prof. Dr. José Luís Sanfelice
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de
Campinas para obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração
de Filosofia e História da Educação.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA
TESE DEFENDIDA PELO ALUNO AGUINALDO RODRIGUES
GOMES
E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSÉ LUÍS SANFELICE
Assinatura do Orientador
CAMPINAS
2015
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca da Faculdade de Educação
Rosemary Passos - CRB 8/5751
G585r
Gomes, Aguinaldo Rodrigues, 1971GomRevolução e utopia : embates de um professor comunista em Aquidauana
(1964-1985) / Aguinaldo Rodrigues Gomes. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
GomOrientador: José Luís Sanfelice.
GomTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Educação.
Gom1. Educação. 2. Comunismo. 3. Ditadura. I. Sanfelice, José Luis,1949-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Revolution and utopia : clashes of a communist teacher in
Aquidauana (1964-1985) Palavraschave em inglês:
Education
Communism
Military Dictatorship
Área de concentração: Filosofia e História da Educação
Titulação: Doutor em Educação Banca examinadora:
José Luís Sanfelice [Orientador]
Azilde Lina Andreotti
Mara Regina Martins Jacomelli
André Luiz Paulillo
Carlos Martins Junior
Data de defesa: 11-06-2015
Programa de Pós-Graduação: Educação
Aos pais, José Rodrigues Gomes (in memoriam)
e Maura Fonseca Rodrigues, trabalhadores
dedicados e incansáveis que inspiram a minha
luta por um futuro melhor.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a José Luís Sanfelice, por orientação humana e
competente, pela atenção e gentileza mesmo nos momentos mais angustiantes, e por ter me
permitido autonomia intelectual ao mesmo tempo em que apontava caminhos teóricos e
metodológicos fundamentais para a conclusão da tese.
À professora Mara Regina Martins Jacomelli, presença constante em minha
formação desde meu ingresso no programa de pós-graduação, agradeço pelas contribuições
dadas ao trabalho durante as disciplinas cursadas, e à professora Azilde Lina Adreotti, pelas
contribuições valiosas no exame de qualificação que, espero, possam ser percebidas na
tese, e pelo aceite em participarem, ambas, da defesa.
Aos professores Carlos Martins Júnior e André Luiz Paulilo agradeço por aceitarem
participar desta banca, pela leitura e pelas contribuições. Ao professor Eudes Fernando
Leite, que inspirou com seus estudos e ainda pelo empréstimo de materiais valiosos para a
confecção da tese.
Agradeço aos colegas do Departamento de História CUR/UFMT que apoiaram e
permitiram minha liberação parcial para elaboração da tese. Agradeço aos amigos que
dividiram comigo seus afetos em terras paraenses, Magda Costa, Maria Betanha, Júlia,
Frederico e Guilherme.
Aos meus irmãos e minhas irmãs Júlio, Lucia, Aguimar, Maria de Lourdes e
Luciane, que estiveram comigo em todos os momentos e compreenderam minhas ausências
durante a elaboração da tese, obrigado. Aos meus queridos sobrinhos Jhonathan, Laura e
Laís, que me ensinaram o significado do amor incondicional, também agradeço.
Aos meus amigos André e Peterson, Sandra e Zé, Sandra e Eduardo, Cidinha e
Emerson, Gilberto e Fabinho, que sempre me incentivaram e me aturaram falando da tal
tese que nunca ficava pronta, obrigado pela paciência. Aos amigos de Aquidauana Iara,
Edvaldo, Vera, João, Ana Paula Squinelo, Ana Paula Werri, Helen e Edelberto, Débora,
agradeço pelo apoio e trocas acadêmicas. Ao Daniel Amorin, obrigado pela correção
cuidadosa e competente.
Aos meus queridos amigos Luciano, Toni e Robson que tornaram minha chegada
em Rondonópolis mais leve e divertida.
Agradeço ainda às funcionárias da biblioteca do campus de Aquidauana que, com
gentileza e competência, me auxiliaram na localização de alguns dos materiais de pesquisa.
Também aos funcionários da BPRAM (Ronaldo, Daniel, Odilson, José, Valmir), que me
“aturaram” em seu espaço de trabalho durante a pesquisa e a feitura da tese.
Agradeço aos meus amigos e amigas de todas as horas, Jorgetânia, Thaís, Marcos,
Sandrinha, Luiz, Cida e Vanda, sem os quais a vida se tornaria mais difícil.
Aos queridos amigos Miguel Rodrigues e Gleides Pamplona, que me ensinaram o
valor da amizade e o sentido das palavras confiança e cumplicidade, obrigado por tudo!
GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Revolução e Utopia: embates de um professor comunista
em Aquidauana durante a ditadura militar (1964-1985). 2015, 294 fls. Tese (Doutorado
em Filosofia e História da Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
RESUMO:
Objetivamos na presente tese analisar os efeitos das transformações econômicas ocorridas
na região centro-oeste do Brasil no período compreendido entre 1964 e 1985. No entanto,
retrocedemos um pouco para compreender como as metas políticas de Vargas e Juscelino,
responsáveis respectivamente pela Marcha para o Oeste e pela industrialização do país,
influenciaram na constituição do golpe de 1964. Esclarecemos que, do ponto de vista
teórico-metodológico, buscamos nos referenciar no marxismo heterodoxo, dialogando com
autores como Hobsbawm, Thompson, Gramsci e Williams. A documentação central
utilizada no trabalho trata-se de um inquérito policial militar (IPM), convertido em
processo-crime instaurado contra o professor comunista Enio Cabral em 1964, mas foram
utilizadas também outras fontes, tais como: a revista Brasil-Oeste, documentos do PCB e
entrevistas do réu e do juiz do caso analisado. Procuramos compreender, por meio da
pesquisa, o processo de modernização da região centro-oeste e seu imbricamento com o
nacional-desenvolvimentismo e a Marcha para o Oeste, com intuito de compreender como
esse conservadorismo no plano econômico e social influenciou também a política e a
educação e produziu na região condições para a sustentação de regimes autoritários. Para
tanto, primeiramente procuramos apresentar o sujeito da pesquisa, focalizando sua origem
social, formação escolar e seus primeiros contatos com as ideias do PCB. Em seguida,
buscamos esmiuçar a ideia de uma modernização conservadora a partir do diálogo com as
fontes, principalmente a partir da revista Brasil-Oeste, e com a historiografia que discutiu o
tema da ditadura na região sul do Mato Grosso. Posteriormente, apresentamos alguns
aspectos da educação no contexto da ditadura, demonstrando como os professores foram
alvo da perseguição dos militares, relacionando aos acontecimentos que se passaram na
cidade de Aquidauana. Finalmente, buscamos visualizar como o Estado e seus
representantes compreenderam de maneira contraditória as ações de Enio e dos demais
comunistas daquele período a partir do debate travado entre acusação e defesa, entendendoos como uma disputa, não meramente jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios
de sociedade, ou seja, entre capitalistas e socialistas.
PALAVRAS-CHAVE: Educação, Comunismo e Ditadura.
GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Revolução e Utopia: embates de um professor comunista
em Aquidauana durante a ditadura militar (1964-1985). 2015, 294 fls. Tese (Doutorado
em Filosofia e História da Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação,
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
ABSTRACT:
We aim in this thesis to analyze the effects of economic transformations in the Midwest
region of Brazil, between the years 1964 to 1985. However, retreat a while in time to
understand how the political objectives of Vargas and Juscelino, respectively responsible
for the March far West and the industrialization of the country, influenced the constitution
of the coup d’état of 1964. We clarify so, from the theoretical-methodological point of
view, we seek reference to the authors of unorthodox Marxism, dialoguing with authors
like Hobsbawm, Thompson, Gramsci and Williams. The central documentation used at
work is a military police investigation (IPM), converted to process crime brought against
the communist teacher Enio Cabral in 1964, but were also used other sources such as the
Brazil-West Magazine (Revista Brasil-Oeste), PCB documents and interviews of the
defendant and the Judge of the analyzed case. We tried to understand, through this
research, the process of modernization of the Midwest and its interweaving with national
developmentalism and the March far West, seeks to understand how this conservatism in
economic and social plan also influenced the politics and education and produced in the
region conditions for support of authoritarian regimes. Therefore, first we try to present the
research subject, focusing on his social background, school education and his first contacts
with the PCB ideas. Then, we seek to scrutinize the idea of a conservative modernization
from the dialogue with the sources, mainly from Brazil-West magazine, and the
historiography, which discussed the theme of dictatorship in southern Mato Grosso. After,
we present some aspects of education in the context of dictatorship, demonstrating how the
teachers were the object of persecution by the military, relating to the events that followed
in Aquidauana city. Finally, we seek to visualize how the State and its representatives
understood in contradictory ways the actions of Enio and other communists of that period
from the locked debate between prosecution and defense, understanding them as a dispute,
not merely legal, but between two contradictory projects of society, that is, between
capitalists and socialists.
KEYWORDS: Education, Communism, Military Dictatorship.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................
A INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA.............................................................................................
O CONTEXTO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA...........................................................................................
CAPÍTULO I
EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA CONTRA A DITADURA EM AQUIDAUANA........................................
ENIO CABRAL: SUJEITO HISTÓRICO, EXPERIÊNCIA E ATUAÇÃO POLÍTICA........................................................
AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA EM AQUIDAUANA: ENIO CABRAL, COMUNISTA E VEREADOR PELA UDN?...........
ENIO CABRAL E SUA ATUAÇÃO NO MAGISTÉRIO.....................................................................................
A QUESTÃO EDUCACIONAL NOS ESCRITOS DO PCB E DE INTELECTUAIS COMUNISTAS.......................................
O ESTADO CONTRA ENIO CABRAL, “UM COMUNISTA UTÓPICO”................................................................
O MÊS DE ABRIL E OS IPMS CONTRA OS COMUNISTAS ............................................................................
AS DOMINGUEIRAS E A PARANOIA MILITAR...........................................................................................
ENIO CABRAL E SEUS DETRATORES......................................................................................................
CAPÍTULO II
A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA E O COMBATE À UTOPIA COMUNISTA NO CENTRO-OESTE BRASILEIRO........
A IMPRENSA E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO SUL DE MATO GROSSO...............................................
A REVISTA BRASIL-OESTE.................................................................................................................
A REVISTA BRASIL-OESTE E A DEFESA DO PROGRESSO EM MATO GROSSO....................................................
A IMPRENSA E O FAVORECIMENTO DAS ELITES EM MATO GROSSO.............................................................
O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO E A PENETRAÇÃO DO CAPITAL ESTRANGEIRO NO GOVERNO DE JUSCELINO
KUBITSCHEK..................................................................................................................................
O COMBATE AO PENSAMENTO COMUNISTA NA BRASIL- OESTE..................................................................
DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA À INSTITUIÇÃO DO REGIME MILITAR E ALGUNS DE SEUS IMPACTOS NA
EDUCAÇÃO...................................................................................................................................
CAPÍTULO III
EDUCAÇÃO, HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA EM AQUIDAUANA NOS ANOS 1960...........................................
HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL DOS 1960..............................................
AS ENTIDADES PATRONAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA......................................................................
A VISÃO EDUCACIONAL DO PCB – A CONSTRUÇÃO DA CONTRA-HEGEMONIA.................................................
O PCB E A EDUCAÇÃO DO MILITANTE..................................................................................................
O ESPECTRO DA REVOLUÇÃO RONDA O BRASIL......................................................................................
O GRUPO DOS ONZE E A POSSIBILIDADE DE UMA REVOLUÇÃO ARMADA NO PAÍS............................................
ENIO CABRAL E SUA UTOPIA REVOLUCIONÁRIA......................................................................................
CAPÍTULO IV
ENIO CABRAL E SEUS EMBATES COM OS APARELHOS REPRESSIVOS DO ESTADO...........................................
9
12
19
28
33
40
44
48
55
57
60
69
81
85
94
98
107
113
129
143
153
155
157
170
178
185
196
206
O PROCESSO-CRIME: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS..........................................................................
A DITADURA EM AQUIDAUANA: O EXÉRCITO BRASILEIRO CONTRA ENIO CABRAL............................................
O PODER JUDICIÁRIO E A RESISTÊNCIA À DITADURA................................................................................
DO PROCESSO CONTRA ENIO.............................................................................................................
O ADVOGADO DE ENIO E SUAS RELAÇÕES COM A ELITE LOCAL....................................................................
O DELITOS IMPUTADOS AO RÉU.........................................................................................................
O ESTADO CONTRA A AUTONOMIA DIDÁTICA DE ENIO..............................................................................
DAS ALEGAÇÕES DO JUIZ..................................................................................................................
O RECURSO DA PROMOTORIA E DECISÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL..................................................
214
218
224
230
233
239
254
261
271
276
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................................
283
DOCUMENTOS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................
293
Toda espécie de virtude tem a sua fonte
no encontro que faz o pensamento em
seu embate com uma matéria sem
indulgência nem perfídia. Não se pode
imaginar nada maior para o homem do
que um destino que o coloque
diretamente no embate com a
necessidade nua, sem que tenha nada a
esperar senão de si mesmo, e de tal
forma que a sua vida seja uma perpétua
criação de si mesmo por si mesmo.
Vivemos num mundo no qual o homem
deve esperar milagres apenas de si
mesmo.
Simone Weil, Opressão e liberdade.
introdução
10
introdução
C
omo já afirmou Marx (2006), os homens fazem sua história, mas não como
querem, e sim conforme as condições e possibilidades a que estão submetidos em função da
base material que os cerca. Creio que podemos nos apropriar dessa premissa para
apresentar nossa trajetória de pesquisa, igualmente marcada pela categoria trabalho –
processo pelo qual o homem se humaniza –, pois foi em função dela que tomei contato com
os meus temas de pesquisa apresentados em forma de projeto de doutoramento à Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de Campinas.
Iniciado o processo de investigação sobre um tema de pesquisa que fosse exequível
e com documentação disponível para sua realização, recorri ao acervo da Base de Pesquisas
Históricas e Culturais das Bacias dos Rios Aquidauana e Miranda – Unidade Técnica do
Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (BPRAM-UT/CPAQ/UFMS). No entanto, antes mesmo de examinar a documentação
ali guardada, deparei-me com uma obra que modificou meu percurso de pesquisa e me
sensibilizou para o tema da ditadura: Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos
entremeios de uma pretensa revolução, do pesquisador Eudes Fernando Leite (2009). Ao
lê-la, percebi que o autor fornecia diversas pistas de pesquisa, portanto decidi percorrer a
trilha aberta por ele, porém com um novo enfoque, qual seja: entender o pensamento
intelectual que serviu de base para a modernização conservadora do Mato Grosso no seio
da ditadura militar e seus embates com os intelectuais comunistas que tentavam organizar o
PCB na cidade de Aquidauana, além de compreender a atuação de um deles, o professor
catedrático Enio Cabral, e sua influência no contexto educacional da cidade.
introdução
11
A partir desse tema central, elegi as questões da pesquisa: compreender a construção
de uma historiografia acerca da ditadura militar brasileira e as lacunas havidas sobre tal
processo na região centro-oeste; analisar o nacional-desenvolvimentismo e sua
modernização conservadora na região por meio da produção intelectual expressa na revista
Brasil-Oeste; e investigar a atuação do PCB, notadamente a do professor catedrático de
história Enio Cabral, a partir de um inquérito policial militar (IPM) que lhe foi impetrado.
A pesquisa em questão se circunscreve à região centro-oeste, especialmente à cidade
de Aquidauana nos anos 1960/70. Tomei conhecimento da notícia sobre a existência da
coleção completa da revista na biblioteca do campus da UFMS em Aquidauana e a partir
daí resolvi analisá-la, concentrando-me sobretudo no tema da modernização do estado do
Mato Grosso, sua repercussão no apoio ao golpe civil-militar e ainda na organização do
sistema educacional da região. Na pesquisa que realizei em fevereiro de 2014 na biblioteca
da instituição, encontrei a coleção completa da revista, que abrange 123 edições, publicadas
entre os anos de 1956 e 1967. Contudo, como meu interesse se centra, neste estudo, na
década de 1960, registrei em arquivos digitais, por meio de recursos fotográficos, apenas as
principais matérias do periódico, que versavam sobre a modernização, as críticas ao
governo João Goulart e as informações sobre o contexto educacional.
Esses ataques ao poder central se intensificaram no período do governo João
Goulart, que antecedeu o golpe civil-militar ocorrido em abril de 1964. Este último fato é
de suma importância para o estudo que ora desenvolvemos sobre a educação no período da
ditadura militar no estado do Mato Grosso uno, no qual focalizamos particularmente o
município de Aquidauana, onde se situa boa parte da documentação disponível para essa
pesquisa, a saber: a coleção completa da revista Brasil-Oeste, processos-crime contra
intelectuais comunistas disponíveis no Fórum do município de Aquidauana e documentos
do Partido Comunista Brasileiro, organizados pelo historiador Edgard Carone em forma de
livro, intitulado P.C.B. 1964 a 1982, e publicado pela Difel em 1982. Além disso,
utilizamos algumas entrevistas, realizadas em 1993, cedidas pelo professor Dr. Eudes
Fernandes Leite.
12
introdução
A INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA
Dentro dos limites dessa introdução, inicio por discutir a velha máxima positivista
de que sem documentos não há história – o que não é inteiramente falso, contudo é preciso
pensar que os documentos não são capazes de fazer perguntas a si mesmos; portanto, tão
importantes quanto eles são as questões que o historiador constrói a partir deles. Podemos
afirmar que o oficio do historiador está sempre atravessado pela dicotomia
objetividade/subjetividade, verdade/mentira. Portando, proponho acima de tudo uma
reflexão que extrapole a noção de fonte como suporte documental e que permita pensá-la
em seu sentido político, ou seja, como a partir delas se estruturou uma interpretação oficial
dos processos históricos que privilegiou alguns sujeitos e excluiu outros, sobretudo os
trabalhadores e marginalizados. Assim, procuro aqui retomar o sentido político da história
e, para isso, recorro à epistemologia marxista. Devemos confessar que tal proposta não é
fácil, pois vivemos um tempo de revisionismo e anticomunismo, não só na sociedade, mas
sobretudo no interior da academia, que perdeu seu caráter social e cada vez menos tem se
dedicado aos problemas sociais que a cercam. As ciências, de maneira geral, se tornaram
positivas, no pior sentido do termo – perderam seu sentido político-filosófico e voltaram a
resolver problemas “práticos” e “filigranas”, abandonando as questões ontológicas que
perturbam a humanidade. Como destacou Senna Júnior:
Nas duas últimas décadas uma parte da “historiografia” sobre revoluções,
movimentos sociais, partidos e organizações de esquerda sofreu um
assédio revisionista que pretendeu deslocar o foco dos estudos antes
situados no plano político e social para o terreno das subjetividades e da
condenação moral. Imbuídos de um discurso que aspira reduzir a história
das revoluções, homens, classes e partidos à história dos regimes que se
ergueram e foram identificados como “comunistas”, tal “historiografia”,
se assim se pode chamar o conjunto de escritos eivados de ideologia e
memória surgido nas últimas décadas, travou uma batalha que, à maneira
de uma cruzada, reivindicou a condenação dos envolvidos e responsáveis
pelo “comunismo” pelo extermínio, genocídio e holocausto de populações
em dimensões surpreendentemente superiores às atingidas pelo nazismo
(SENNA Jr., 2014, p. 100).
O autor, em seu texto intitulado Mito, memória e historiografia: a histografia
anticomunista no Brasil e no mundo, afirma que, em que se pese o fato de Marx e Engels
13
introdução
estarem entre os autores mais publicados do mundo, a historiografia contemporânea bebe
na fonte de um antimarxismo marcante no plano nacional e internacional, tanto em meios
midiáticos quanto intelectuais.
Os acontecimentos históricos do século XX, como a segunda guerra mundial, a
guerra fria, a queda do muro de Berlim, são evocados na memória de certos intelectuais na
tentativa de resumi-los como experiências motivadas pela disputa entre capitalistas e
comunistas, que foram derrotados e ficaram pelo caminho. A maioria delas foi considerada
obra de ditadores do século XX e tachada de totalitária e totalitarista. Embora em alguns
casos não discordemos disso, é preciso ressaltar que o principal objetivo dessa
historiografia é colocar no mesmo “balaio” experiências históricas diferentes, a exemplo do
nazismo, do fascismo e do socialismo.
Demian Melo (2014), em seu artigo Revisão e revisionismo na historiografia
contemporânea, tece duras críticas à visão de historiadores revisionistas que buscam
desqualificar o conceito de revolução e a própria teoria marxista, apontada como
responsável pela instauração das experiências totalitárias, desde a Revolução Francesa até a
Revolução de 1917. Suas críticas se direcionam a historiadores clássicos, como François
Furet e Hannah Arendt, que, segundo o autor, ao proporem uma revisão do conceito de
revolução, acabam por estabelecer uma apologia de sua perspectiva liberal.
Furet, considerado o maior especialista da Revolução Francesa pela mídia e pela
academia, comandou uma espécie de “manifesto” dessa ofensiva revisionista sobre 1789. O
historiador busca fazer uma operação de desconstrução de obras importantes sobre o tema,
como as de Georges Lefevre e Albert Soboul, que “foram reduzidas a uma ‘linear’ leitura
‘marxista-leninista’, que alegadamente olharia 1789 como prenúncio de 1917, numa
espécie de esquema teleológico simplista que Furet denomina de ‘catecismo
revolucionário’” (Melo, 2014, p. 21).
O propósito de Demian é criticar a tese que percorre a obra de Furet, que objetiva
defender o inevitável caráter liberal dos acontecimentos de 1789, como se observa:
Sua mais famosa tese, a de que o período jacobino (1793-1794) da
Revolução foi uma “derrapagem”, já havia sido enunciada por Furet em
seu livro de 1965/1966 com Denis Richet La Revolution Française, e
denota uma concepção teleológica segundo a qual o processo histórico
francês deveria se dirigir, inevitavelmente, para a democracia e o
capitalismo, tendo a revolução, especialmente o período jacobino (17931794), atrapalhado esse curso – daí sua ideia de “derrapagem”. (...) O
14
introdução
propósito do revisionismo de Furet era a desqualificação do próprio
conceito de “revolução” (MELO, 2014, p. 21).
Sobre o propósito da tese de François Furet, Melo (2014) assim se pronuncia:
(...) não há dúvida que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer como
“desinteressada” e “não ideológica”, se dirigiu ao que chamou de “vulgata
lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto, ideologicamente
contra a esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar,
François Furet também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de
vista dos que queriam exorcizar o fantasma da revolução, desconstruindo
e ressignificando a reflexão histórica das revoluções mais paradigmáticas
do mundo contemporâneo (MELO, 2104, p. 23).
As críticas de Melo também se dirigem à obra de Hannah Arendt, especificamente
Da revolução (1960) e As origens do totalitarismo (1951), nas quais a filósofa alemã
também faz uma clara defesa da perspectiva liberal do conceito de revolução. Como aponta
Melo:
Em sua resenha arrasadora a este livro de Arendt, Eric Hobsbawm
apontou o caráter conservador da tese da filósofa alemã radicada nos
EUA, que pressupunha que a ruína de todas as revoluções decorria dos
momentos em que esta enfrentava a “questão social”, em suma, com o
problema da propriedade, anunciando aquilo que na lavra de Furet
consistiria na questão da “derrapagem”. Desde os anos 1950, Arendt já
havia tido um papel importante na leitura liberal do século XX calcado no
conceito de totalitarismo, presente em seu livro The Origins of
Totalitarianism (1951). Tal conceito será fundamental não só para o
discurso imperialista estadunidense através da proposição de uma
analogia entre fascismo e o regime stalinista da URSS, típica da Guerra
Fria, mas também na operação revisionista em tela, ao sugerir a ideia de
que movimentos de massa anticapitalistas constituem-se celeiro para
experiências totalitárias (MELO, 2014, p. 24).
Há um cunho bizarro nessa historiografia que busca enfatizar os dados sobre tiranos,
mortos, feridos e incapacitados, tomando a parte pelo todo e, portanto, construindo uma
análise parcial desses acontecimentos, numa tentativa clara de desqualificar as ações
motivadas pela teoria marxista.
Senna Júnior (2014) chama a atenção para o caráter internacional do movimento
historiográfico anticomunista de postura raivosa:
15
introdução
Apresenta-se como uma verdadeira cruzada mundial pela instauração de
um Tribunal de Nuremberg para os regimes “comunistas” desde a URSS,
até a China, passando pelo Leste Europeu, Vietnã, Camboja, Coreia do
Norte e Cuba. Seu livro mais importante, uma espécie de Bíblia e
manifesto desses modernos cruzados, é o Livro negro do comunismo e seu
sucedâneo, Cortar o mal pela raiz!, ambos dirigidos por Stéphane
Courtois, historiador francês do CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique) e diretor da revista Communisme (SENNA Jr., 2014, pp.
101-102).
O autor destaca ainda que tal processo não se limita ao contexto internacional;
alguns historiadores brasileiros parecem ter se contaminado por esse anticomunismo latente
de inspiração pós-moderna. Afirma ele:
No plano nacional, embora mais sutil e sem os compromissos políticos e
ideológicos assumidos pela vertente dos cruzados europeus, a obra
seminal é Prisioneiros do mito, do professor da Universidade Federal
Fluminense (UFF) Jorge Ferreira. Neste caso, sem pretender uma
condenação moral dos comunistas e nem muito menos esperar por uma
efetiva reparação dos crimes cometidos por seus partidários, Ferreira
flerta com o anticomunismo internacional ao pretender uma abordagem
que ignora o fenômeno de incontestável caráter político e social. Não
raras vezes, opta por citar historiadores vinculados ao Livro Negro do
Comunismo, quando há alternativas ao alcance das mãos, faz opções
metodológicas duvidosas, toma citações descontextualizadas e
memorialistas ressentidos para construir seu argumento em boa parte
escorado em ilusões que confundem aparência com essência e trazem ao
primeiro plano da obra historiográfica sua dimensão de memória e seu
vínculo com a ideologia anticomunista atualmente em voga (SENNA Jr.,
2014, p. 102).
Senna Júnior argumenta que a historiografia anticomunista que tem ganhado força
na atualidade se baseia em procedimentos autoconfirmadores, que ocultam suas fontes e
premissas. Constata, assim, que há uma contradição entre as evidências e as interpretações
desses pensadores no que se refere às leituras feitas sobre temas como a Revolução Russa e
demais experiências comunistas. Analisando as obras de historiadores como François Furet,
ele aponta que alguns contrariam os ensinamentos de E. P. Thompson, para quem “o
discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência,
um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do
outro” (Senna Jr., 2014, p. 111). Apoiando-se nas palavras de Thompson para tecer sua
16
introdução
crítica aos anticomunistas que tratam o socialismo e o nazismo da mesma forma, o
historiador afirma que
Desta forma, “descobrimos” que comunismo e nazismo se equivalem na
prática da banalização da maldade; que o procedimento de racialização
dos nazistas se assemelha à evocação da luta de classes na historiografia
marxista; que os campos de concentração na experiência alemã e soviética
são dimensões de uma mesma realidade totalitária; que a fome da Guerra
Civil Russa, que a fome de 1921 a 1923, que a fome ucraniana dos anos
1930 foram, todas elas, provocadas por decisões da alta cúpula soviética e
que Hitler, no final das contas, foi a resposta possível do ocidente ao
totalitarismo bolchevista sonhado por Lenin! (SENNA Jr., 2014, pp. 111112).
Senna Júnior destaca ainda que para a nova historiografia (pós-moderna), o
anticomunismo serviu ainda como um álibi para as maiores atrocidades cometidas pelos
líderes capitalistas do ocidente:
A lista poderia crescer e se tornar interminável, porque se poderia
justificar o macarthismo nos Estados Unidos, o apartheid na África do
Sul, todos os golpes de estado que promoveram ditaduras de décadas na
América Latina, o Plano Cohen e o Estado Novo no Brasil, a Ditadura
Militar de 21 anos entre nós, Salazar, Caetanto, Franco, Antonescu,
Pinochet, Videla, Trujillo, Papa Doc, Baby Doc etc. etc. etc. Tudo teria
uma justificativa aceitável, desde que fosse uma forma de evitar a
implantação do comunismo no mundo (SENNA Jr., 2014, p. 112).
Apesar de todas as críticas enumeradas, é preciso afirmar que não concordamos com
elas e que a inspiração metodológica deste trabalho se encontra na epistemologia do
materialismo histórico dialético, que busca compreender a realidade a partir de sua relação
com a base material da sociedade que interaciona com a produção das ideias e ideologias
no campo social. Recorremos, portanto, à produção marxiana e, de maneira especial, aos
escritos do filósofo italiano Antônio Gramsci, que em sua obra Os intelectuais e a
organização da cultura, aponta para a importância dos intelectuais tradicionais e/ou
orgânicos na defesa de projetos de determinados grupos sociais.
17
introdução
Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que
lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no
campo econômico, mas também no social e no político: o empresário
capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia
política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc.
Deve-se anotar o fato de que o empresário representa uma elaboração
social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e
técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica,
não somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas
ainda em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção
econômica (deve ser um organizador de massa de homens: deve ser um
organizador da “confiança” dos que investem em sua fábrica, dos
compradores de sua mercadoria, etc.) (GRAMSCI, 1978, p. 176).
As contribuições de Antônio Gramsci vão além de demonstrar a centralidade dos
intelectuais orgânicos na organização da cultura e da sociedade, elas permitem justificar o
porquê da escolha da Brasil-Oeste como fonte pesquisa. O autor destaca que uma
publicação tem importância não só devido ao conteúdo que veicula, mas também por suas
características formais, conforme destaca:
Tem grande importância o aspecto exterior de uma revista, tanto
comercial como “ideologicamente”, para assegurar fidelidade e afeição;
na realidade, neste caso, é difícil distinguir o fato comercial do
ideológico... Por certo, o elemento fundamental para a sorte de um
periódico é (...) o fato de que satisfaça ou não determinadas necessidades
intelectuais, políticas. Mas seria um grande erro crer que este seja o único
elemento, notadamente, que este seja válido tomado “isoladamente”
(GRAMSCI, 1978, p. 178-179).
Para pensarmos a história de Enio Cabral, o professor de história comunista que viu
sua vida pessoal atravessada por um fenômeno político de grande vulto na história
brasileira, poderíamos escolher várias perspectivas metodológicas, a exemplo dos
pesquisadores da história cultural, como os italianos Carlo Ginsburg e Gionvani Levi 1. No
1
O movimento metodológico denominado micro-história surgiu na Itália, nos anos 1970 a partir da obra dos
historiadores Carlo Ginzburg, Gionvani Levi e Jacques Revel. Em síntese, pode-se afirmar que a microhistória consiste na redução da escala na análise da “realidade social”, permitindo que as experiências
individuais ganhem relevo em sua relação com o global. A micro-história desponta como uma forma de
enfrentamento às abordagens econômicas, estruturalistas e, principalmente, ao marxismo. Vejamos o que os
próprios autores afirmavam a respeito da perspectiva historiográfica defendia por eles: Carlo Ginzburg
afirmou: “A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida,
permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro
18
introdução
entanto, como me situo no campo do materialismo histórico, recorro à obra Tempos
interessantes, de Eric Hobsbawm. Na referida obra, o autor justifica os motivos pelos quais
resolveu escrever uma autobiografia. Primeiramente, afirma que não se considera uma
personalidade/celebridade, cujas biografias ocupavam os espaços das livrarias londrinas.
Também diz não ter escrito tal obra como uma viagem em torno de seu ego e que não se
compara a Santo Agostinho e Rousseau para merecer uma ego-história. Hobsbawm também
afirma que não pretendeu escrever uma apologia da vida e que a autobiografia de um
intelectual deve tratar das ideias, ações e atitudes, sem ser uma peça de advocacia,
autodefesa.
Apesar de suas considerações sobre a relutância de produzir uma autobiografia, ele
nos fornece uma bela justificativa para se escrever a história de uma pessoa comum ao
afirmar: “o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua época e a interpretação das duas
coisas ajudaram de maneira mais profunda a dar forma a uma análise histórica que, espero,
a tenha tornado independente de ambas” (HOBSBAWM, p. 11).
É nessa perspectiva que buscaremos entender a trajetória de Enio Cabral e sua
experiência como sujeito histórico, professor e militante comunista, atravessada pela
conjuntura econômica, política e social. Como apontou Hobsbawm, pretendemos fazer aqui
Não a história do mundo ilustrada pelas experiências de um indivíduo,
mas história do mundo dando forma a essa experiência, ou melhor,
oferecendo uma gama de escolhas cambiantes, mas sempre limitadas, com
as quais, adaptando a frase de Karl Marx, “os homens fazem [suas vidas],
mas não [as] fazem como desejam, não [as] fazem nas circunstâncias
escolhidas por eles, e sim nas circunstâncias diretamente encontradas,
proporcionadas e transmitidas pelo passado”; poder-se-ia acrescentar: e
pelo mundo à volta delas (HOBSBAWM, 2002, p. 11).
lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula” (GINSBURG,
1989. pp. 177-178). Para Levi, “a micro-história é essencialmente uma prática historiográfica em que suas
referências teóricas são variadas e, em certo sentido, ecléticas. O método está de fato relacionado em primeiro
lugar, e antes de mais nada, aos procedimentos reais, detalhados que constituem o trabalho do historiador, e
assim, a micro-história não pode ser definida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo” (LEVI,
1992. p. 133). De acordo com Jaques Revel: “Variar a escala de observação não significa apenas aumentar
(ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e trama” (REVEL, 1998, pp. 1617).
19
introdução
As palavras de Hobsbawm nos levam a pensar a história de Enio Cabral
relacionando-a à experiência da classe a que pertenceu e pela qual lutou durante toda a sua
vida. Sobre a constituição da classe, diz Thompson:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências
comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e
geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada,
em grande medida, pelas relações de produção em que os homens
nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a
forma como essas experiências são tratadas em termos culturais:
encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas
institucionais (THOMPSON, 1987, p. 10).
É importante deixar claro que utilizamos aqui a palavra “classe” e não “classes”,
pois partilhamos da perspectiva de E. P. Thompson, que na obra A formação da classe
operária inglesa – a árvore da liberdade, tomo I afirma que a classe não surge num dado
momento da história, ela se constitui a partir da coesão entre experiências comuns a certos
indivíduos, que se opõem às de outros, com interesses antagônicos aos seus. Trata-se,
portanto, de um processo histórico, e não de um fenômeno que a sociologia de cunho
positivista facilmente explica.
O CONTEXTO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA
A ascensão de João Goulart ao poder, com sua proposta de reforma de bases,
animou os militantes de esquerda, principalmente os sindicalistas e comunistas, a
intensificar as ações de mobilização e organização dos trabalhadores para os mesmos
poderem garantir seus direitos perante a nova conjuntura política do país. Tido como
herdeiro, até certo ponto, da política trabalhista/nacionalista de Getúlio, e impulsionado
pelo apoio popular que julgava ter, Jango acreditou que poderia finalmente realizar a
reforma agrária e outras que pudessem modificar a estrutura econômica, que se encontrava
em declínio em 1964. A elite brasileira via com temor a movimentação política do novo
governante, que no plano interno prometia uma inclusão das classes menos abastadas por
20
introdução
meio de suas políticas, e no plano externo parecia se aproximar das grandes potências
comunistas.
Em Mato Grosso, principalmente em Aquidauana, esse temor era ainda maior, pois
a elite local, assentada na tradição ruralista e coronelista que constituiu e ainda constitui a
identidade do estado, mostrava-se bastante preocupada com a possibilidade de melhoria nas
condições de trabalho de seus empregados, pois isso atingiria certamente a estrutura
econômica organizada e o lucro obtido pelos fazendeiros e comerciantes mato-grossenses.
A tradição mandonista e coronelista, que foi travestida de identidade local no então
estado do Mato Grosso, é discutida pela historiadora Iara Quelho de Castro na dissertação
de mestrado defendida em 2002 no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, intitulada Vigiar e construir a história:
memórias, esquecimentos, comemorações e historiografia nas representações sobre
Aquidauana. Na referida obra a autora nos fornece, por meio da discussão sobre a memória
da cidade, um riquíssimo quadro de como as relações políticas locais afastam não só
materialmente, mas também memorialisticamente, os excluídos (trabalhadores, mulheres,
indígenas, comunistas, homossexuais) de sua identidade. Como afirma ela:
A perspectiva identitária engendra a produção de representações seletivas
e parcelares. Em Aquidauana, as práticas memoriais e historiográficas
indicam que os índios, homens e mulheres, trabalhadores pobres, negros,
homossexuais, prostitutas e outros grupos não são visualizados na
conformação da cidade. Constitui-se uma história fragmentada, na medida
em que, ao se interditar o direito à memória e à história àqueles
segmentos, se oferece uma visão homogeneizadora da sociedade. A
exclusão de outras memórias e a interdição de outras expressões e
experiências, desqualificando-as, dificulta a viabilização de qualquer
projeto que não seja orientado por ideias e valores dos grupos tradicionais
(CASTRO, 2002, p. 59).
Como se depreende das palavras da autora, a memória social de Aquidauana é
construída na perspectiva tradicional do positivismo, que procura eleger os grandes heróis e
momentos celebrativos da história como forma de silenciar os sujeitos que se encontram
fora e em oposição à ordem vigente. Nesse sentido, o trabalho procura questionar essa
história construída a partir de cima, filiando-se à perspectiva metodológica dos
historiadores marxistas, sobretudo Thompson (1966) e Jim Sharpe (1992), de uma história
21
introdução
vista de baixo, ou seja, que procurou, a partir do questionamento das práticas memorialistas
e cívicas, demonstrar as estratégias de exclusão empregadas para tornar invisíveis os outros
sujeitos da história, bem como suas formas de resistência.
No que tange ao processo festivo de reconstrução da memória pela elite de
Aquidauana, construída em torno dos coronéis fundadores e de seus herdeiros, Castro
destaca:
O convite à reafirmação de uma identidade local e o apelo às
sensibilidades garantem a sensação de se compartilhar um passado
comum. Esse tempo pretérito é reconstruído a partir das ações dos
fundadores como os alicerces da história local. O sentimento de
pertencimento torna-se o fundamento das memorações, lapidar pelos
significados implícitos: não é o estatuto histórico que está sendo evocado
para se falar da cidade, a sensibilidade, ideia de terra natal, poderoso
instrumento na conquista das almas aquidauanenses. Sob essa percepção,
Aquidauana transforma-se em um modelo para Mato Grosso,
empreendimento realizado por uma gente audaz que desafia a natureza
selvagem e implanta um império pecuário, obra dos fazendeiros
fundadores e de seus continuadores em uma grande jornada identitária
(CASTRO, 2002, pp. 62-63).
Como mostra Castro, a cidade e as memórias de Aquidauana foram construídas a
partir de cima, privilegiando os feitos dos coronéis, que aqui respondiam, de certa forma,
também pelo Estado. Era assim que os “donos do poder”, para lembrar a expressão de
Raimundo Faoro, decidiam o que seria feito, dito e mesmo lembrado pelos cidadãos. Nesse
contexto, a educação era uma das principais formas de incutir nas novas gerações a velha
tradição mandonista. No entanto, sabemos que a história é dialética e também cheia de
contradições, como revela Lukács: “A contradição se revela como princípio do ser
precisamente porque é possível apreendê-la na realidade enquanto base de processos
também desse tipo” (1979, p. 22).
Para explicar a dinâmica desses conflitos, estabelecerei um recorte espacial – o
município de Aquidauana – e recorrerei a um caso bastante especifico: um inquérito
policial militar movido contra um professor de história que intentava organizar o partido
comunista na cidade de Aquidauana.
Situada a 554 quilômetros da capital e a 181 metros acima do nível do mar, com
uma extensão territorial de 22.900 km², Aquidauana possui um clima tropical úmido, o que
permite uma divisão entre os períodos de cheia e seca bem delimitados. A formação do
22
introdução
núcleo de povoamento que dá origem à cidade ocorreu em função da dificuldade que os
fazendeiros da região de Miranda encontravam para se comunicar com os que habitavam a
região posterior ao rio Aquidauana, sobretudo nos períodos de cheia. Nesse sentido, a
criação de novo núcleo de habitação localizado em terras mais elevadas permitiria que
esses moradores pudessem escapar das costumeiras enchentes do Pantanal mato-grossense.
Assim, os fazendeiros de Miranda acabaram por se constituir nos primeiros
povoadores da região. A região de Aquidauana, em função de suas condições geográficas,
sempre favoreceu a agricultura de subsistência e a pecuária e, além disso, deslocou o
entreposto comercial que até então se encontrava em Miranda. O que atraía a princípio os
fazendeiros para aquela região era o fato que seria possível modificar as formas de
locomoção, feitas por vias fluviais em direção a Corumbá, para um deslocamento por terra
em direção à região onde se situa hoje a cidade de Campo Grande.
A cidade foi erguida, portanto, próxima às ruinas de Santiago de Xerez, antiga
cidade fundada em 1579 pelo espanhol Ruy Diaz de Malgarejo, a 180 metros da
confluência dos rios Miranda e Mbotetein, hoje Aquidauana. Sua fundação é descrita assim:
Sob copado arvoredo, à margem direita do rio, no ponto em que está hoje
situada a Igreja da padroeira local, reuniram-se cerca de 40 cidadãos,
sendo escolhidos para a comissão diretora os Senhores Major Theodoro
Rondon, Coroneis João D’Almeida Castro, Augusto Mascarenhas,
Estevão Alves Correa e Manoel Antônio Barros. Nessa reunião foi
adotado o nome de Aquidauana para o novo centro de população, sob a
invocação de Nossa Senhora da conceição (IBGE, 1960).
No documento encontramos ainda a menção a uma ata lavrada em manta de couro
que registraria o ato de fundação da cidade, cujos primeiros ranchos foram construídos sob
a coordenação dos senhores major Theodoro da Silva Rondon e coronel João D´Almeida
Castro. A historiadora Joana Neves, uma das pioneiras nos estudos sobre a cidade, faz
menção ao texto da ata. Segundo ela:
Este texto existe reproduzido em dois documentos; ambos estão ainda em
bom estado e perfeitamente legíveis. Um deles é a lápis, pertence ao Sr.
Enio Cabral e é considerado um rascunho da “ATA”: Neste documento
faltam os nomes das pessoas presentes à reunião da qual resultou a
fundação da cidade. O documento tornou-se do nosso conhecimento em
Agosto de 1971, quando seu possuidor o emprestou para uma exposição
histórica comemorativa do aniversário da cidade. O outro texto foi doado
pelo seu possuidor, Sr. Antônio Pace, à Secção de Obras Raras da
23
introdução
Biblioteca do C.P.A. Trata-se de uma folha de papel almaço, escrita em
três páginas, à tinta. A caligrafia é a mesma (ou muito semelhante) à do
“rascunho”, bem como o texto, acrescido dos nomes dos presentes à
reunião de fundação (NEVES, 1973, p. 1681).
Em 1906 o povoado é elevado à categoria de município e posteriormente, em 1918,
à condição de cidade. De acordo com a historiadora Joana Neves (a citação reproduz a
grafia original do texto, conforme registra a autora):
Surgindo assim, planejadamente, para atender a propósitos determinados e
não ao acaso como a maioria das nossas cidades, Aquidauna tem a
peculiaridade de ter tido sua história registrada, por escrito, desde o início.
Os primeiros moradores, e idealizadores da cidade, constituiram-se numa
Sociedade para organiza-la e essa sociedade documentou-se fartamente.
Esses documentos preservados quer pelas instituições públicas como, e
principalmente, pelas famílias dos antigos moradores, constituem-se,
atualmente, num ótimo material de pesquisa historiográfica (NEVES,
1973, p. 1678).
A reconstituição da história de Aquidauana já não é uma tarefa tão simples, como
assinala Joana Neves, pois os documentos citados por ela simplesmente desapareceram da
biblioteca do Centro Pedagógico de Aquidauana, hoje campus de Aquidauana, portanto não
podemos comprovar nenhum dos dados indicados nos referidos documentos. Nesse sentido,
temos que lidar com as obras de memorialistas ou fontes secundárias, como a obra de Joana
Neves, que nos permitem tomar contato com as informações históricas acerca do processo
de formação da cidade. A autora aponta que a urbanização da cidade no início do século
XX se deu a partir da concretização da estrada de ferro que ligaria a região do Mato Grosso
à zona cafeeira do oeste paulista. Dessa forma, em 1912 a estrada havia chegado a
Aquidauana, integrando-a, de forma praticamente definitiva, ao contexto econômico
paulista, nas palavras de Neves (2007).
Apesar de a estrada de ferro Noroeste do Brasil ter permitido que a cidade tenha se
tornado um novo polo distribuidor de mercadorias por vias terrestres, tirando assim a
predominância de Corumbá nesse processo, ela continuou sendo uma grande exportadora
de gado de corte.
A chegada da estrada de ferro permitiu que a cidade desenvolvesse sua urbanização
a partir da década de 1950, tornando-se uma das cidades mais prósperas e com maior
introdução
24
crescimento nesse período. Assim se referia a ela Virgílio Correa: “Aquidauana,
cognominada ‘Princesa do Sul’, possui ruas bem cuidadas, pavimentação moderna (com
lajotas de cimento rejuntadas com betume), prédios modernos e serviço telefônico
automático” (CORREA, 1958, p. 65).
Ainda segundo Correa, Aquidauana foi a primeira cidade mato-grossese a instalar
serviços telefônicos automáticos, uma iniciativa particular que mereceu a melhor acolhida
dos seus munícipes, inaugurado com 230 aparelhos em pleno funcionamento (CORREA,
1958, p. 66).
Como se pôde observar, a cidade de Aquidauana teve um desenvolvimento
acelerado a partir da chegada da ferrovia e tornou-se a cidade mais desenvolvida do sul do
antigo Mato Grosso. No entanto, em 1917, após a transferência das oficinas para Três
Lagoas, a cidade declinou como centro ferroviário. De acordo com o censo de 2010, conta
com uma população de 45.623 mil habitantes (ou 1,86% do total estadual) e cerca de 2,69
habitantes por quilômetro quadrado. Por ser fronteiriça, é povoada por inúmeros
descendentes de espanhóis, paraguaios, bolivianos, paulistas, portugueses e sírio-libaneses,
além de indígenas, que vivem principalmente nas reservas dos Terenas, índios nativos da
região. Atualmente a cidade conseguiu diversificar um pouco suas atividades comerciais,
que migraram, em parte, da agricultura e pecuária de leite para outras indústrias, tais como:
indústria extrativa, frigorífico (abate de bovinos), beneficiamento e fábrica de laticínios,
siderúrgica, madeireira, mecânica, fábrica de massas e biscoitos e usina de compostagem de
resíduos sólidos. Outro ponto econômico a ser ressaltado é seu potencial turístico, uma vez
que possui vários recursos naturais e pontos turísticos, como rios e cachoeiras, que
permitem a dinamização da economia.
Como visto, a cidade nasceu sob o signo do mandonismo coronelista, e isso com
certeza influenciou a cultura política local. Assim, em que se pese ser essa a tônica política
de Aquidauana na década de 1960, isso não impediu que ocorressem resistências de alguns
grupos locais, a exemplo dos militantes comunistas que questionavam a estrutura
econômico-social da cidade e buscavam transformar sua realidade com base na inspiração
marxista.
Enio Cabral foi um desses importantes sujeitos políticos que ousou desafiar o poder
dos coronéis e do Estado militar, utilizando-se principalmente de sua condição docente para
25
introdução
divulgar as ideias comunistas e a possibilidade de uma sociedade mais igualitária; por esse
motivo, juntamente com outros integrantes do PCB, teve que enfrentar a repressão militar.
Foi essa, então, a tônica empreendida na modernização do Brasil, principalmente na região
centro-oeste – o que sustentou a intervenção estatal foi a velha e conhecida aliança com as
oligarquias locais, também adeptas do mandonismo e da subordinação das classes menos
favorecidas. Consideramos então que o desenvolvimento brasileiro, sobretudo nessa região,
se deu pelo viés da modernização conservadora.
Embora tenhamos consciência do amplo espectro que recobre o termo
“modernização conservadora”, utilizado por diversos autores em diferentes períodos
históricos, emprego-o aqui como uma categoria de análise no sentido atribuído por Murilo
José de Souza Pires em sua tese de doutoramento intitulada As implicações do processo de
modernização conservadora na estrutura e nas atividades agropecuárias da região centrosul de Goiás (2008) e por Carlos Nelson Coutinho em O Estado brasileiro: gênese, crise,
alternativas (2007). Para Pires,
O termo modernização conservadora tem uma fundamentação
sociopolítica com implicações econômicas, uma vez que expressa a
articulação conservadora tecida entre as elites dominantes para controlar o
centro de decisão político do Estado sem causar profundas rupturas com o
antigo regime. Desta forma, as sociedades que nascem deste pacto
conservador alicerçam-se em regimes capitalistas autocráticos e
totalitários (PIRES, 2008, p. 1).
Coutinho refere-se à modernização conservadora a partir do pensamento de Lenin,
que considera a “via prussiana” um tipo de transição ao capitalismo que conserva
elementos da velha ordem e, nessa medida, tem como pressuposto e como resultado um
grande fortalecimento do poder do Estado. Coutinho, para a formulação de sua crítica ao
processo de modernização do Brasil, baseia-se ainda no pensamento de Gramsci, que
compreende isso como “revolução passiva”: um processo de transformação em que ocorre
uma conciliação entre as frações modernas e atrasadas das classes dominantes, com a
explícita tentativa de excluir as camadas populares de uma participação mais ampla em tais
processos (COUTINHO, 2007, 174). Ainda segundo esse autor, o termo modernização
conservadora tem sido mais aceito nos meios acadêmicos, conforme preconizado por
Barriton Moore Jr., que embora não cite nem Lenin nem Gramsci, distingue os dois
introdução
26
caminhos valendo-se de determinações análogas àquelas apontadas pelos dois marxistas –
entre outras, a conservação de várias características da propriedade fundiária pré-capitalista
e, consequentemente, do poder dos latifundiários, o que resulta do fato de que a moderna
burguesia industrial prefere se conciliar com o atraso a aliar-se às classes populares
(COUTINHO, 2007, p. 175).
A partir do caso de Enio Cabral, buscamos defender algumas ideias no decorrer de
nossa tese: primeiramente, demonstrar que a historiografia acerca do período da ditadura
civil-militar brasileira produziu reflexões muito centradas no eixo Rio-São Paulo,
favorecendo assim a ideia de que as ações ditatoriais não ocorreram nas demais regiões,
principalmente nos interiores do país. Ao lado de tal ideia, é preciso frisar que essa
historiografia foi muitas vezes marcada por visões dicotômicas: de um lado a visão de
direita, de que houve uma revolução em favor da democracia, defendida pelos intelectuais
ligados aos militares; de outro, a visão de esquerda, marcada principalmente pela opinião
do PCB, de que foi um golpe de grandes proporções que se insurgiu contra as forças
progressistas do país e que atingiu a sociedade como um todo. É preciso frisar que não
discordamos da visão de esquerda do PCB, no entanto entendemos que tal historiografia
deu pouca atenção ao cotidiano da ditadura militar, o que os impediu de visualizar que
muitos indivíduos não foram nada revolucionários e passaram incólumes por esse processo
ditatorial, seja em função do apoio direto ao regime, da alienação ou mesmo do medo que
as ações repressivas exerciam sobre a população.
Tal fato levou certa historiografia (ingênua) e a população em geral a afirmar
diversas vezes frases como estas sobre o período ditatorial: “aqui não aconteceu nada
disso”, ou “na época da ditadura tudo era melhor” etc. Essas afirmações são motivadas pelo
que expressamos acima e, principalmente, pelo medo que os militares impuseram sobre a
maioria da população, fazendo assim com que a mesma silenciasse sobre o processo, a
ponto de introjetar a memória positiva que os militares buscaram construir sobre o período.
Nesse sentido, ela suplantou as diversas histórias de tortura, repressão e silenciamentos que
ocorreram em diversos rincões brasileiros, a exemplo de Aquidauana.
Portanto, a tese que defendemos é a de que o processo de modernização da região
centro-oeste, consequência do nacional-desenvolvimentismo e da Marcha para o Oeste,
condicionou também a política e a educação e produziu na região condições para a
introdução
27
instauração de regimes autoritários que se insurgiram contra a ideia de uma revolução
brasileira, capaz de retirar o país de seu atraso econômico, social e político e permitir a
constituição de uma sociedade mais progressista. Para sustentar tal tese, me apoio em um
inquérito policial militar e em um processo criminal que levaram à perseguição do
educador comunista Enio Cabral, que buscou resistir a esse modelo de sociedade e
procurou, por meio da educação, conscientizar seus alunos para a possibilidade de uma
sociedade mais progressista através de seus embates constantes com o meio conservador
em que vivia. É, portanto, sobre esse processo histórico que nos debruçaremos nesta
pesquisa, assim organizada:
No primeiro capítulo apresento, a partir de um inquérito policial militar e de um
processo criminal, o sujeito central deste trabalho, Enio Cabral, e a perseguição que sofreu
como educador comunista ao resistir ao modelo de sociedade dominante. Buscamos ainda,
a partir dos documentos do PCB, discutir como Enio buscou outra proposta de sociedade,
estruturada a partir da ideia de uma revolução brasileira, capaz retirar o país de seu atraso
econômico, social e político e permitir a constituição de uma sociedade mais progressista.
Aponto também o papel da educação nesse processo e os erros táticos cometidos pelo
partido em decorrência de uma tentativa de transposição mecânica da teoria marxista para a
conjuntura brasileira.
No segundo capítulo tratarei do processo de modernização da região centro-oeste
como uma consequência do nacional-desenvolvimentismo e da Marcha para o Oeste, com o
intuito de demonstrar como o conservadorismo no plano econômico e social condicionou
também a política e a educação e produziu na região condições para instauração de regimes
autoritários.
Já no terceiro capítulo apresento um panorama da educação na década de 1960,
procurando demonstrar como a perseguição aos professores durante a ditadura militar foi
intensa, inclusive nas cidades interioranas, como Aquidauana.
No quarto capítulo procuro visualizar como o Estado e seus representantes
compreenderam de maneira contraditória as ações de Enio e dos demais comunistas
daquele período a partir do debate travado entre acusação e defesa, entendendo-o como
uma disputa, não meramente jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios de
sociedade, ou seja, entre capitalistas e socialistas.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
O
29
processo de modernização do centro-oeste brasileiro, especialmente do
estado de Mato Grosso, foi pautado pelo desenvolvimento do capitalismo, agregando-se
capital estrangeiro e nacional à produção agropecuária, fato que garantiu a posse de grandes
porções de terra nas mãos de poucos proprietários, levando à pauperização das camadas
populares. O ideal modernizador era também conservador e foi publicizado pela imprensa
do período, da qual destacamos a revista Brasil-Oeste, com a qual dialogaremos no
próximo capítulo. Além disso, percebemos que, à época, distintas ideias acerca da
revolução se desenvolveram no país. A de cunho liberal foi vencedora, entretanto outras
foram tentadas e, por vezes, silenciadas. Ler a história a contrapelo significa retomar
versões caladas nesses processos.
Nesse sentido, a experiência do professor comunista de História Enio Cabral,
catedrático da Escola Estadual Cândido Mariano, importante instituição de ensino da cidade
de Aquidauana, localizada ao sul do estado de Mato Grosso (ainda uno), será retomada a
partir da conjuntura dos anos 1960, período em que há uma disputa entre dois projetos de
sociedade – no plano político-econômico e, consequentemente, na educação – que não se
restringem apenas ao Brasil, mas fazem parte de um tensionamento transnacional.
Hobsbawm (1995) compreende que as principais disputas do século XX, a despeito
dos interesses mais óbvios das grandes potências europeias, seriam pautadas, a partir de
1917, pelos partidários de duas formas distintas de compreender a sociedade e sua
transformação – ou sua conservação. A partir de 1945-47, isso delinearia o que foi chamado
de “guerra fria”, a tensão entre os blocos capitalista e socialista. Nos anos 1950-60, os dois
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
30
projetos encontravam guarida pelo globo e as disputas davam-se palmo a palmo. Na
América Latina, a revolução cubana de 1959 e seu caráter socialista apresentado a partir de
1961-62 tornariam as disputas no Brasil ainda mais acirradas. Assim, “o espectro do
comunismo” não ronda mais apenas a Europa, mas também a América Latina e, nela, o
Brasil. O temor dessa “fantasmagoria” assombrava, de longa data, as elites brasileiras, que
procuravam combater as ações e organizações comunistas, haja vista a própria
clandestinidade do Partido Comunista Brasileiro desde os anos 1930.
Nosso intuito é colocar em diálogo com essa conjuntura internacional e nacional a
experiência de Enio Cabral, comunista que atuava na educação básica na cidade de
Aquidauana, compreendendo a indissociabilidade de ambos. Para tanto, ancoramo-nos na
obra de Eric Hobsbawm, Tempos interessantes (2010), na qual o historiador britânico
indica ser possível pensar a trajetória de um indivíduo a partir de sua conjuntura sóciohistórica, como já apontamos no início deste trabalho. Fazemos a opção por analisar um
sujeito sem grande destaque nacional, por considerar necessário pensar os grandes
fenômenos políticos e históricos contemporâneos a partir da experiência dos homens
comuns, fugindo assim das visões macro e oficiais que geralmente produzem muito mais
uma memória positiva do passado do que propriamente uma história que englobe as
contradições sociais. Consideramos ser esta uma obrigação dos historiadores que lidam
com o campo do político, pois como advertiu Hobsbawm:
Mais do que nunca a história é atualmente revista ou inventada por gente
que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva a seus
objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica. A defesa
da história por seus profissionais é hoje mais urgente na política do que
nunca. Somos necessários (HOBSBAWM, 2003, p. 326).
No caso da ditadura militar, temos observado no Brasil uma tentativa, por parte de
alguns sujeitos sociais, como os militares e alguns civis envolvidos no apoio ao golpe, de se
construir uma memória positiva do período ditatorial. O pesquisador João Roberto Martins
Filho (2003) discute o tema da disputa travada entre militantes de esquerda e militares pela
memória em relação à ditadura, afirmando que estes últimos desejariam cobrir sob o manto
do esquecimento os acontecimentos daquele período. Os militares, na tentativa de evitar
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
31
uma catarse pública da memória coletiva pela sociedade brasileira, preferem muitas vezes
esquecer o tema, evocando a anistia como justificativa:
Segundo essa perspectiva, depois da Lei da Anistia de 1979, qualquer
esforço de trazer à lembrança o que efetivamente ocorreu na breve e brutal
repressão aos grupos da esquerda brasileira (não apenas armada, vale
registrar) representaria uma violação ao próprio princípio da Anistia.
Conforme essa ótica, anistiar é zerar as contas e, portanto, esquecer. Esse
ponto de vista aparece com bastante frequência nos textos e depoimentos
de militares das três forças (MARTINS FILHO, p. 2).
O historiador em questão explicita que há uma disputa em torno da memória sobre a
ditadura, pois enquanto os militantes de esquerda torturados e os demais civis acreditam
que é preciso lembrar para que tal situação não se repita, os militares e os civis apoiadores
do golpe desejam virar a página e pensar no futuro em nome de um consenso nacional.
Ainda de acordo com ele, os militares consideram que a atitude dos atingidos pela ditadura
é ação revanchista, perpetua uma memória negativa do golpe, povoando as páginas de
obras literárias e acadêmicas, ou mesmo em outros suportes, de caráter sonoro ou fílmico,
dentre outros, com relatos das agruras sofridas durante o período.
Os militares defendem ainda a ideia de que a anistia deve valer para todos; portanto,
se as vítimas foram anistiadas, os algozes também devem ser. Tal pensamento se tornou
uma espécie de discurso oficial das forças armadas que se manifesta mesmo em tempos
mais recentes, como nos depoimentos de alguns militares concedidos aos pesquisadores
Celso Castro e Maria Celina D`Araujo, que são citados por Martins Filho. O primeiro deles
é dado pelo ministro da marinha do governo FHC, Mauro César Rodrigues Pereira, e o
segundo pelo Brigadeiro Mauro José Miranda Gandra:
“Que são feridas, são. Mas houve feridas para todo canto. Um lado tem
que calar a boca e ficar quieto. O outro lado tem o direito de ficar a vida
inteira dizendo que tem ferida e que tem que dar um jeito de curá-la? Não.
Tem que calar a boca também e ficar quieto” (...) A mesma intenção vem
à tona no testemunho de outro ministro militar do governo Cardoso. Para
o brigadeiro Mauro José Miranda Gandra, o “processo de anistia” teve
como finalidade virar uma página da história (que ele considera “se não
negra, pelo menos cinza”). A anistia teria o objetivo de trazer a
“cicatrização” das feridas do período autoritário (Castro e D’Araújo,
2001, 305). E conclui: “a Nação tinha que, não de maneira literária, virar a
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
32
página. Tinha que virar, efetivamente, essa página” (MARTINS FILHO,
2002, p. 3).
Claudio Bezerra de Vasconcelos (2009), em seu artigo As análises da memória
militar sobre a ditadura: balanço e possibilidades, lança uma questão importante sobre o
tratamento da memória construída sobre a ditadura no Brasil nos trabalhos acadêmicos,
questionando se estes pesquisadores centraram-se na discussão da dicotomia democracia x
autoritarismo e negligenciaram o conflito político que precedeu o golpe, “ou preferiram a
constituição de uma memória que priorizasse a conciliação nacional em detrimento de outra
que expressasse e, talvez, acentuasse as divergências e os conflitos entre diferentes grupos
da sociedade brasileira?” (p. 73). Vasconcelos indica ainda que, apesar da tentativa,
principalmente dos militares, de se ocultar a memória da ditadura brasileira, isso nem
sempre é possível, pois,
Em geral, essas memórias “proibidas” sobrevivem guardadas em
estruturas de comunicação informais (famílias, associações, redes de
sociabilidade afetiva ou política) e passam despercebidas pela sociedade.
Os problemas que elas encontram são, no longo prazo, o de sua
transmissão intacta, e, cotidianamente, o da complexidade de se encontrar
uma escuta. Se os militares que de tiveram o poder durante 21 anos já
mencionam a dificuldade de combater a memória pública, para os que
lutaram contra eles é difícil conseguir quem simplesmente os ouça
(VASCONCELOS, 2009, p. 73).
Considerando as palavras de Vasconcelos, buscamos aqui revisitar a história de
indivíduos como Enio Cabral, com o objetivo de compreender os embates em torno da
memória que foram travados entre eles e os representantes do Estado autoritário no Brasil
daquele período.
Enio Cabral, brasileiro, professor, comunista, insere-se no contexto das disputas
ideológicas dos anos 1960, e é por meio de sua trajetória que tentaremos compreender as
mesmas. Sua atuação era desenvolvida no interior do centro-oeste brasileiro, espaço no qual
a modernização conservadora e a pauperização das camadas populares se firmavam
rigidamente, deixando pouco ou nenhum espaço para que propostas mais progressistas
fossem erguidas. Apesar disso, Enio, a exemplo de outros, resiste nesse processo,
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
33
articulando suas ações a partir de seu espaço privilegiado como educador, defendendo,
portanto, uma perspectiva de sociedade e de educação em consonância com as propostas
comunistas advindas das experiências europeias e do programa pecebista.
O que observamos no embate entre o Estado, a sociedade e Enio Cabral é uma
disputa pela hegemonia, entendida aqui como um processo e não como algo fixo que,
segundo Williams, não pode ser conseguido totalmente, mantendo assim a dialética da luta
de classes. Afirma ele:
(...) nenhum modo de produção, logo, nenhuma sociedade ou ordem
social, e, portanto, nenhuma cultura dominante, na realidade exaure o
âmbito total da prática, energia e intenção humanas (este âmbito não é o
inventário de uma “natureza humana” original, mas, pelo contrario,
refere-se ao extraordinário campo de variações, na prática e na
imaginação, que os seres humanos têm e já demonstram ter capacidade de
fazer) (WILLIAMS, 2005, p. 220).
Acreditamos que Enio Cabral travava, mesmo com todas as contradições, uma luta
pela hegemonia no sentido cunhado por Gramsci, que procurava “ver e criar, por meio da
organização, uma hegemonia proletária que seria capaz de ameaçar a hegemonia burguesa”
(WILLIAMS, 2005, p. 220). Foi esse o principal motivo que levou o Estado brasileiro, por
meio de seus aparelhos repressivos e apoiado pelas elites conservadoras regionais, a
perseguir o educador por meio de instrumentos jurídicos, como inquéritos policiais
militares, inquéritos judiciais e cassação de sua liberdade. A documentação produzida
naquele momento, que inclui o IPM, transformado em processo criminal, entrevistas
concedidas nos anos 1990 e alguns dados disponibilizados pela câmara municipal, prestamse a nossa análise.
ENIO CABRAL: SUJEITO HISTÓRICO, EXPERIÊNCIA E ATUAÇÃO POLÍTICA.
Enio Cabral nasceu em 1919 em Aquidauana, cidade fundada em 15 de agosto em
1892, que se tornou distrito de Miranda em 1906 e foi elevada a município em 1918 no
então estado do Mato Grosso, que se tornaria Mato Grosso do Sul em 1977, com o
desmembramento confirmado pelo presidente Ernesto Geisel em 1° de janeiro de 1979. Era
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
34
filho de Antonio Alves Cabral e Maria de Castro Cabral. Enio pertencia a uma família
tradicional de Aquidauana – sua mãe era filha do coronel João de Almeida de Castro,
conhecido como coronel Jango de Castro. Em 1944 casou-se com Zilá Proença Leite e teve
dois filhos: Vera Lúcia Cabral Barbosa, nascida em 22 de dezembro de 1945, e Luiz Carlos
Leite Cabral, nascido em 26 de junho de 1949 (REIS, 2014).
Seu pai, segundo o próprio Enio declara, possuía recursos e pôde lhe fornecer uma
boa educação durante sua trajetória escolar. Dizia ele: “Tive uma infância praticamente
bastante tranquila, porque meu pai tinha recursos, minha família era conhecida aqui na
cidade, relacionada com todos...” (ENIO CABRAL, 1993, p. 1)
A ligação da família com os tradicionais coronéis da cidade talvez explique algumas
das relações de amizade contraditórias que Enio carregou durante toda a sua vida, como,
por exemplo, sua ligação com o ex-governador do estado José Fragelli, que seria seu
advogado no processo movido pelo Estado militar, assunto que será discutido nos próximos
capítulos. Vindo, portanto, de família tradicional, teve uma formação escolar de boa
qualidade e se recorda dela com felicidade.
“Entrei no grupo escolar de 30, ai que eu entrei mais em contato, né, por
que o grupo escolar e o... a escola pública, é onde se concentra ali... tem
pobre, tem rico, tem remediado, tem... tem gente de cor, tem... tem de
todas as raças, nacionalidades se concentram ali. É uma escola basi...
basicamente é... socializada quase né, não é bem no sentido de socialista,
mas socializada nesse sentido né. Ali não tem ... não tem divisão de nada,
ali todo mundo é igual ali dentro” (ENIO CABRAL, 1993, p. 2).
O curso primário é realizado no tradicional Grupo Escolar Estadual Antônio Corrêa.
Esse grupo teve grande importância não só para Aquidauana, mas para todo o estado, pois
simbolizava a chegada do movimento Entusiasmo pela Educação, caraterizado por Nagle
(1974) como período em que o Estado republicano acreditava que, por meio da
multiplicação das instituições escolares, seria possível melhorar a qualidade da educação e
promover o desenvolvimento econômico do país. De acordo com Arruda (2011), a situação
da educação primária no estado do Mato Grosso em fins do século XIX e início do XX era
bastante precária. Para se ter uma ideia da situação, em 1895 funcionavam em Mato Grosso
apenas três instituições escolares públicas, regidas pelo decreto n. 10, de 7 de novembro
1891, e nenhuma delas se dedicava ao ensino primário (ARRUDA, 2011, p. 74). Somente
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
35
com ascensão ao poder de Pedro Celestino Corrêa da Costa à presidência do estado, em
1908, é que a situação da educação primária começa a mudar e finalmente o movimento
timidamente adentra ao estado com a Lei Estadual n. 508, de 1908, que cria os grupos
escolares para a capital e cidades do interior. A pesquisadora Mara Regina Jacomelli, em
sua pesquisa sobre as reformas da instrução pública no estado do Mato Grosso, nos
apresenta um amplo exame da questão educacional nessa região no período que vai do final
do século XIX ao início do XX e aponta para as condições econômicas favoráveis que o
governo Pedro Celestino teve para programar a reforma de 1910. Afirma ela:
A Reforma da instrução pública de 1910 abrangeu um período econômico
em Mato Grosso marcado por um maior enriquecimento material, em
função dos preços alcançados pela borracha no comércio exterior e por
um período político de razoável tranqüilidade, como já foi dito. Do ponto
de vista político-administrativo, Pedro Celestino, então Presidente, estaria
realizando mudanças educacionais essenciais, tendo como parâmetro os
moldes adotados por Estados mais desenvolvidos economicamente, como
era o caso de São Paulo. Dessa forma, acreditava a classe governante,
caberia à educação sanar todos os “males” da população, ao mesmo tempo
em que constituir-se-ia em fator de progresso para Mato Grosso
(JACOMELLI, 1998, p. 137).
Jacomelli chama a atenção para o fato de que, embora a reforma da instrução
pública mato-grossense tenha sido inspirada na reforma paulista, sua implementação se deu
de forma tímida, devido às particularidades econômicas e políticas do lugar, principalmente
por causa do mandonismo ali presente. De acordo com ela, em São Paulo, em função de sua
importância econômica e pelo fato de ser o berço da burguesia cafeeira e industrial, havia
uma demanda por escolas, principalmente por conta da imigração; já em Mato Grosso,
estado de base agropecuária, com ênfase na exportação de carne, isso não ocorreu da
mesma forma. Afirma Jacomeli que a população mato-grossense era em número similar, no
ano de 1927, ao de matrículas primárias no estado de São Paulo. Assim,
onde existiam grandes latifúndios nas mãos de poucas pessoas, onde o
poder político, também concentrado nas mãos de poucos, era representado
por frações de classes ligadas ao comércio, às usinas de açúcar ou aos
latifúndios (criação de gado; extração de erva-mate), uma pressão popular
por escolas era praticamente insignificante. A maioria dos trabalhadores,
esparramada pelo vasto território mato-grossense, desenvolvia seu
trabalho nas fazendas. A parcela de trabalhadores urbanos era
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
36
relativamente pequena em relação aos trabalhadores rurais. Dessa forma,
foram criados grupos escolares justamente nas cidades mais
desenvolvidas economicamente e, também, naquelas que serviam como
reduto eleitoreiro, por ingerência de algum “coronel”, marca do
clientelismo político no Estado (JACOMELI, 1998, 141-142).
Mas no caso de Aquidauana, somente em 1912 veio a autorização para a instalação
do primeiro grupo escolar, juntamente com os das cidades de Cuiabá, Cáceres, Poconé e
Rosário Oeste, no norte do estado; já na região sul foram criados os da cidade de Campo
Grande, Aquidauana, Três Lagoas e Ponta Porã. Arruda (2011) lembra que entre a criação
da lei e a finalização das obras houve um grande hiato e, por esse motivo, em Aquidauana
estas só foram finalizadas em 1934, funcionando precariamente desde 1924.
(Grupo Escolar Antônio Corrêa, fundado 1924. ARRUDA, 2011)
Após terminar os estudos primários no grupo escolar, Enio seria admitido em um
colégio particular do professor cuiabano Demétrio Serra, que veio para Aquidauana na
década de 1920. Posteriormente, para conclusão da etapa que hoje chamamos de ensino
médio, Enio foi para Campo Grande, onde estudou no Ginásio Estadual Dom Bosco entre
1934 e 1937 e no Ginásio Osvaldo Cruz, onde fez o curso propedêutico.
Em seu depoimento, Enio revela que havia tomado contato com as discussões
socialistas e se colocava contra os nazistas desde o período em que estudou no Ginásio
Dom Bosco, coordenado por padres alemães, espanhóis e italianos. Sua lembrança não era
muito feliz; de acordo com ele, eram muitos rígidos. O diretor era um padre alemão, grosso
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
37
e malcriado, em suas palavras um verdadeiro nazista. Foi nessa escola que conheceu um
padre, professor de matemática, de nome Schimit, que lhe apresentou algumas revistas
sobre a juventude hitlerista. Dizia ele:
Então, esse Schimit, eu lembro bem, ele aparecia com umas revistas
fabulosas, viu de... de... fotografias um... coisa feita na Alemanha, bem
feita, né... bem mesmo. Fazendo propaganda: era a revista juventude
hitlerista. Então ele fazia propaganda do nazismo, eu já, naquele tempo,
eu já... já pegava em... em discussão com ele (ENIO CABRAL, 1993, p.
2).
Enio afirma ainda que nesse tempo teve contato pela primeira vez com o jornal A
manhã, do partido comunista brasileiro, que um de seus colegas levava embaixo da roupa
para ele ler. Talvez em função dessas leituras, Enio desde a juventude tenha se mostrado
muito crítico em relação às aulas de história e a seus professores. Um episódio presente no
seu depoimento que nos chamou a atenção foi a discussão que teve com o professor de
história João Mendes Dias sobre uma lição do livro didático acerca da Revolução Russa.
E... eu lembro que ali tinha a última lição era a Revolução Russa, tinha
fotografia do Lenin e o padre chegava ali na... nessa... nessa lição que era
a última da... do livro, ele voltava pra outra lição, e tal, enrolava eu fui
percebendo aquilo. Ai um dia eu perguntei, né, (...) o professor e essa
última lição aqui, o senhor não vai dar? Você não tem nada que vê com
isso, o professor aqui sou eu. Fora da Classe (risos) (CABRAL, E.
depoimento. [28 de novembro de 1993]. Aquidauana: Entrevista Enio
Cabral. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo, p. 3).
Depois de concluir o curso propedêutico, Enio foi para o Rio de Janeiro, onde
cursou a Academia de Comércio entre os anos de 1939 e 1940. É interessante destacar que
foi nesse período que sua relação com a visão socialista de mundo consolidou-se, uma vez
que, quando os navios de guerra foram torpedeados, ele, juntamente com outros colegas,
organizou um protesto exigindo que o governo brasileiro declarasse guerra ao regime
nazista.
Sobre esse período, Enio relata na entrevista concedida ao pesquisador Eudes Leite
que foi um momento de grande diversão, embora tivesse chegado à cidade em plena
ditadura Vargas. Segundo o depoimento, apesar de a repressão ser bastante forte em 1939,
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
38
ele ainda muito jovem; só tomaria consciência da situação aos poucos, finalmente passando
a se engajar nas questões políticas.
Então era o tempo da... da ditadura Vargas, ditadura de Filinto, Vargas,
porque o movimento da Aliança Nacional Libertadora, foi em 1935,
quatro anos depois, em 39 a... a repressão era tremenda ainda, né? E na
minha idade, também não tinha.. eu não tinha ainda perspectiva não (...)
podia tê entrado em contato inclusive com algum elemento, tinha um na
pensão que era ligado ao Parido Comunista, mas ele falava muito
vagamente eu também nem percebia nada, queria era diversão (ENIO
CABRAL, 1993, p. 2).
Sua militância política só se tornou mais efetiva quando retornou para Aquidauana.
Lá encontrou comerciários viajantes que passavam pela cidade, simpatizantes das ideias
socialistas – alguns haviam sido presos em 1935. A partir das influências desses amigos e
do contato com os materiais do PCB, Enio decide se aproximar do partido no berço dos
ruralistas do sul do Mato Grosso. Já na década de 1950, com a ajuda de trabalhadores
vindos de cidades maiores e grandes centros para trabalhar na Ferrovia Noroeste do Brasil
(NOB), busca formar um grupo que tinha como objetivo formar sindicatos de trabalhadores
no município. Foi por meio desse núcleo que se formaram diversos embriões de
associações e sindicatos na cidade. Um fato que merece destaque é que, em função de suas
ligações com grandes coronéis da cidade, num primeiro momento a criação das associações
foi apoiada por eles, pois acreditavam que poderiam cooptar os líderes e trabalhadores e
aumentar o espectro do mandonismo na cidade, mas logo as divergências entre os dois
grupos se acirraram. O próprio Enio, em depoimento dado em 1993, relata como foi sua
volta à cidade natal:
E em 40 ... em 40 eu vim pra Aquidauana e já encontrei aqui um
nucleozinho de ... simpatizantes, naquele tempo a União Soviética estava
no auge, né, que dize, era uma ... era um crescimento aí que a gente não
adivinhava, mas que deu no que deu, né? Tá tudo ... tudo desvirtuado,
tudo corrompido, desde a morte de Lenin, foi tudo desvirtuado, tudo
corrompido. E ... e entrei em contato com a ... esse grupo de ...
comerciários, viajantes que eram ligados ao Partido e tinham sido presos
em 35 e já também, e que passavam por aqui eram ... eram um elo,
elemento de ligação na cidade, né? Eles faziam distribuíam boletins
mimeografados, aquela coisa toda. (ENIO CABRAL, 1993, p. 4)
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
39
No depoimento de Enio Cabral encontramos alguns indícios de que a política nas
cidades pequenas abre espaço para algumas contradições. Em 1945, o neto do Coronel
Jango de Castro funda uma célula do Partido Comunista do Brasil em Aquidauana, o que
provavelmente não deve ter agradado a família. Ou seja, podemos pensar que nesses
espaços o posicionamento ideológico não é inviabilizado pelos laços de parentesco e
relações pessoais. Um dos casos emblemáticos é o do protagonismo da senhora Ione Orro,
esposa do ex-deputado Roberto Orro, que apesar pertencer a uma família tradicional de
proprietários de terra em Aquidauana, foi uma das fundadoras do PCB na cidade,
contrariando a lógica de tradição mandonista de classe ali presente. Conforme notícia
veiculada no jornal Aquidauana News em 1° de dezembro de 2003, a senhora Ione Orro
recebeu homenagem do PPS na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul.
O XIV Congresso do PPS em Mato Grosso do Sul, que aconteceu na
Assembléia Legislativa, no último sábado foi marcado por muita emoção,
durante uma homenagem a Ione Orro, fundadora do PCB (Partido
Comunista Brasileira) no Estado e também do PPS, sucedâneo do antigo
"Partidão". O presidente do diretório do PPS na Capital, ex-vereador
Athayde Nery, fez o discurso de homenagem, destacando as qualidades de
Ione, esposa do deputado estadual Roberto Orro, que também se
pronunciou no evento representando o PDT. Ao final do discurso,
Athayde entregou a Ione, em nome do PPS, uma placa e um buque de
rosas (CONGRESSO DO PPS, 2003).
Apesar do pioneirismo de Orro, Enio sempre foi alvo dos militares. De acordo com
seu depoimento, a partir da fundação do partido, em 1945, ele fortaleceu os movimentos
sociais na cidade. Isso dependeu muito do apoio dos operários da ferrovia Noroeste do
Brasil, que vieram de diferentes regiões do país (Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro,
dentre outros). Assim ele se refere à fundação: “(...) a base do partido aqui foi a ferrovia, e
não foi por acaso, porque eram os operários mais desenvolvidos, já tinham tomado parte de
sindicatos e... em São Paulo, Espírito Santo, então traziam ideias novas pra cá” (ENIO
CABRAL, 1993, p. 5).
No início dos anos 1960 as atividades de mobilização dos trabalhadores em função
da chegada da NOB se intensificaram e despertaram a preocupação dos grandes
latifundiários da cidade. Foi precisamente nesse momento que surgiram as “domingueiras”,
nome pelo qual ficaram conhecidas as reuniões promovidas por Enio Cabral e seus
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
40
companheiros à margem esquerda do rio Aquidauana. Nelas eram discutidos temas como a
organização dos trabalhadores e a reforma agrária. As domingueiras criaram uma
verdadeira paranoia na cidade – os ruralistas amedrontados começaram a enviar “espiões”
para observar e relatar os temas debatidos ali. Alguns boatos que circulavam passaram a
aterrorizar ainda mais os ruralistas, como o de que os militantes iriam tomar as
propriedades privadas e fuzilar aqueles que resistissem à revolução. Por esse motivo os
fazendeiros passaram a se armar contra tal possibilidade.
Em relação à prática da denúncia e perseguição contra os comunistas, de
acordo com o autor, no sul de Mato Grosso, ainda no início da década de
1960, existia um grupo paramilitar conhecido como ADEMAT
(Associação Democrática Mato-grossense), ligado à UDN e ao IBAD
(Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Seus militantes eram médicos,
advogados, pecuaristas, comerciantes, professores, intelectuais,
jornalistas, entre outros que na prática aplicavam no sul de mato Grosso a
linha política do IBAD, que por sua vez, apoiava abertamente o golpe de
estado como forma da UDN chegar à presidência da República (LIMA,
2011, p.1335).
AS
CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA EM
AQUIDAUANA: ENIO CABRAL,
COMUNISTA E
VEREADOR PELA UDN?
Como afirmei anteriormente, algumas contradições do cenário político da cidade de
Aquidauana nos chamaram a atenção; a principal delas foi a atuação de Enio Cabral como
suplente de vereador pela UDN (União Democrática Nacional). Durante um curto período,
entre os anos de 1959 a 1961, ele exerceu a vereança, em períodos alternados, durante a
administração do prefeito Antônio Salustiano Areias. Para entender essa contradição
podemos nos ater às suas próprias palavras:
E nós tínhamos um fato, uma influencia aqui na... na cidade porque quase
todos os partidos principalmente a UDN e o PSD, PSD Partido Social
Democrático, era do Felinto Muller, do José Ponce, essa turma... E tinha
sempre uma tentativa de aproximação e... e todas as... todos os períodos
de eleição nós éramos procurados para fazer uma ... um acordo.. um
acordo, mas por influência do Diretório Estadual (...) e por influencia de
alguns elementos do Partido lá, que tinha ligação com a UDN, com o
doutor ... com a família Correa da Costa, Fernando, Vespasiano Martins e
também por ser esse elementos os adversários de Felinto Muller, os
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
41
homens formaram o partido enfrentar Felinto Muller e João Ponce, que
dize, a burguesia se dividia em duas... duas correntes, a verdade era essa,
né? Que tanto fazia se a gente ta apoiando a UDN, como apoia o PSD,
tava apoiando a burguesia, mas a questão não era de saber, era amizade e
de influencia de alguns lideres... (ENIO CABRAL, 1993, p. 7).
À primeira vista parece contraditória a fala de Enio quando afirma que Filinto
Müller controlava a UDN em Aquidauana, pois sabemos que ele era um dos principais
líderes do PSD e ligado a Vargas, tendo sido candidato a governador em 1950 e eleito
senador em 1955 por esse partido. No entanto, cabe ressaltar que, após o golpe, ele se
tornará um dos líderes da Aliança Renovadora Nacional (Arena), elegendo-se ao senado em
1970, ocupando a liderança da Arena e do governo no Senado, assumindo a presidência
desta casa em 1973. Fica claro também na fala de Enio que as questões políticas na cidade
eram resolvidas muito mais em função de relações de compadrio e amizade que por
questões ideológicas – traço talvez característico da política nos interiores do país.
Ou seja, por influência dos líderes estaduais que agiam de acordo com seus
interesses de poder, numa virtual eleição é que eram decididos os apoios. Com a entrada de
Fernando Correa da Costa na disputa política do estado, a rixa entre UDN e PSD se tornou
mais acentuada, como destacam Bittar e Ferreira Jr.:
Além disso, há mais uma peculiaridade que evidencia a força da
oligarquia agrária sulista: as duas vitórias de Fernando Correa da Costa –
a primeira em 1950 e a segunda em 1960 – ocorreram sobre a candidatura
de Filinto Müller, cuiabano, o político mais poderoso de Mato Grosso e
homem da confiança de Getúlio Vargas, cuja maior aspiração era ser
governador de seu estado (BITTAR & FERREIRA Jr., 2008, p. 148).
Como destaca o próprio Enio no depoimento anteriormente citado, Fernando Correa
e seus correligionários se rearticularam no diretório da UDN para se contrapor a Filinto
Müller, que foi derrotado duas vezes nas eleições para o governo do estado. Enio, que se
declarava contrário a Filinto Müller em razão da perseguição que o mesmo fazia a Luiz
Carlos Prestes e sua família, acabou apoiando um candidato do PSD nas primeiras eleições
do município após a ditadura Vargas – que finda em 1945 – com a condição de que Müller
não viesse a Aquidauana durante a campanha. Segundo ele, foi uma decisão difícil, pois
ambos os candidatos eram parentes dele, sendo Antônio Castelo Branco seu primo e o
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
42
candidato opositor pela UDN seu tio-avô, como ele próprio afirma: “qué dizê, ia fica tudo
em família, compreendeu?”.
Segundo Enio, essa foi uma das primeiras derrotas do Coronel Zelito (um dos
líderes da UDN no município, eleito prefeito por três vezes) na cidade de Aquidauana, mas
ele não a aceitou e, por meio de uma manobra jurídico-política, anulou a eleição. Assim ele
relata o episódio:
Foram no cartório e tiraram certidões, enfim deram um golpe político
também, né? Jurídico. E anularam a urna do Bairro Alto, e nosso prefeito
perdeu o mandato e veio de fato a ser prefeito esse candidato do... do
coronel Zelito (ENIO CABRAL, 1993, p. 7).
Segundo Enio Cabral, sua aproximação com a UDN se deu de forma circunstancial,
em função de o PCB estar na ilegalidade e também por relações pessoais na cidade.
Quando, nos anos 1950, Tico Ribeiro, filho do Coronel Zelito, se candidatou a deputado
federal pela UDN e solicitou o apoio do partido, houve uma negociação para que ele, caso
ganhasse, desse a vaga de vereador para Enio. Embora estivessem rompidos, haviam sido
colegas de infância e de ginásio. Na ocasião, Enio disse a Tico:
Nós apoiamo você, se você nos dé uma vaga de vereador (...) Fui o
candidato, num fui eleito, fui... fui primeiro suplente, (...) ocupei a, quase
um ano assim, em períodos alternados. (...) Então a gente brigava, fazia
reunião na câmara e ... fazia comício, e também a Câmara Municipal de
Aquidauana foi uma das primeiras a... a telegrafa para ... a ... para o
presidente da república solicitando a rea... a reabertura de relações
diplomáticas com a união soviética, foi.. foi um projeto meu, foi aprovado
por unamidade (ENIO CABRAL, 1993, p. 7).
Seguindo as diretivas do partido em nível nacional, que possuía um perfil aliancista,
Enio e o diretório municipal estabeleciam acordos em função da conjuntura e das relações
sociais locais, além das circunstâncias históricas. Saliente-se que não era esse um fato
isolado, já que alianças com partidos opositores ocorreram em outras regiões do país.
Fleischer (1981) afirma que o PCB geralmente não se adequava à maioria das propostas de
direita, mas
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
43
dividia seu apoio clandestino entre os candidatos de quase todas as
legendas partidárias, de acordo com as posições políticas destes
candidatos. Durante o período de 1948-1964, este apoio foi concentrado
dentro do PTB, às vezes com o PSP, e ainda de vez em quando com o
PSD e UDN (LIMA, 2011, p. 1334).
As contradições presentes na carreira de Enio Cabral como vereador não se
esgotavam no fato de ele ser suplente na vaga da UDN, mostravam-se também pelo tipo de
propostas que fazia em plenário. Uma das que nos chamou a atenção foi o fato de ele
solicitar ao presidente da república que retomasse as relações diplomáticas com a União
Soviética. O que mais no surpreendeu nesse caso foi o fato de o referido requerimento ter
sito aprovado por unanimidade pela câmara de vereadores, composta em sua maioria por
ruralistas da localidade.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
45
(Certidão de termo de posse de Enio Cabral na Escola Estadual Candido Mariano)
Nesse período Enio ainda não possuía formação em História. Somente no período
de 1962 a 1963 frequentou o Curso de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Médio –
CADES –, obtendo o registro n. 52.217, emitido pelo MEC, para lecionar História do Brasil
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
46
no 1º ciclo. Seu trabalho foi marcado por várias polêmicas com os colegas e alguns alunos,
pois em função de sua visão de mundo, influenciada pelo PCB, acreditava numa educação
que objetivava transformar a sociedade. Por várias vezes Enio, ateu e comunista, acabou
sendo advertido por questionar a existência de Deus e defender a reforma agrária e o
comunismo em suas aulas. As denúncias de pais e alunos serão discutidas no terceiro
capítulo, no qual detalharemos o processo movido contra ele pelos militares em abril de
1964. Ao que parece, Enio, como militante do PCB, acreditava que seu o objetivo como
professor era o de promover uma educação capaz de permitir a divulgação das ideias
comunistas ao maior número de pessoas possível. Acreditava, portanto, que conforme
preconizava a teoria marxista, despertaria nos indivíduos a consciência de classe, primeiro
passo para a efetivação do processo revolucionário. Em função das ideias divulgadas na
escola e fora dela, passou a ser alvo de vigília pelos conservadores da cidade, que
esperavam uma oportunidade para se vingar não só dele, mas de todos os comunistas. Em
sua entrevista, Enio diz que:
“um desses coronéis aqui da cidade, escreveu uma carta pro João Ponce
[de Arruda, ex-governador de Mato Grosso, importante político ligado ao
PSD e, posteriormente, à ARENA]. Dizendo que eu tinha que se demitido
por que eu além de comunista, eu era ... toda vida contra o PSD”. (ENIO
CABRAL, 1993, p. 8)
Com o golpe civil-militar ocorrido em 31 de março de 1964, Enio, que já era um
alvo dos militares da região por causa de suas atividades de organização de sindicatos e
defesa do comunismo, acabou sendo preso em 04 de abril, sob a acusação de crimes contra
a segurança nacional. Após o processo, seus detratores se aproveitaram para depor contra
ele, o que levou à sua demissão em 13 de agosto, conforme consta do Diário Oficial do
estado.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
47
(Diário Oficial do Estado, 13 de agosto de 1964)
Após sua demissão do cargo de professor em função do Inquérito Policial Militar
movido pelo 9º Batalhão de Engenharia de Combate de Aquidauana, transformado em
processo criminal na justiça comum, Enio passou a exercer diversas atividades na iniciativa
privada, tais como na montadora Willys Overland do Brasil (1964-1967), que naquela
época produzia o famoso Jeep, atualmente pertencente à Ford. Trabalhou também no
escritório da empresa Aquidauana Veículos (1967-1980), revendedora da Volkswagen em
Aquidauana, como vendedor de uma banca de revista de seu irmão e prestou um concurso
para a NOB, que foi misteriosamente anulado. Enio, no depoimento dado ao professor
Eudes Fernando Leite em 1993, afirma ter passado por muitas dificuldades nesse período,
chegando inclusive a pedir um emprego para o governador Fragelli, que acabou não
conseguindo:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
48
Aí fui lá fala com ele, ele e... vou ver esse negócio ... e tal ... mas eu acho
que o ... SNI não vai ... não vai da autorização ... porque o SNI, porque e...
você foi preso e tal... deve ter algum processo contra você lá ... E não me
deu (ENIO CABRAL, 1993, p. 7).
Nesse período, além dos trabalhos nas empresas privadas, Enio acabou se dedicando
à organização de sindicatos e associações na cidade, a exemplo da associação dos
pescadores e dos trabalhadores de transporte de carga, e coordenava a escola de corte e
costura para filhas de presidiários. Nunca mais exerceu atividade de professor. Em 1980,
após o julgamento de um pedido de reintegração à carreira de magistério, foi aposentado
em uma posição inferior à de seu concurso pelo governo de Marcelo Miranda.
Seu afastamento do magistério certamente lhe trouxe não só problemas de ordem
financeira, mas também emocional, pois para ele a educação tinha por objetivo transformar
a sociedade. Nessa questão, suas ideias se coadunavam com as concepções debatidas no
interior do PCB, conforme apresentaremos a seguir.
A QUESTÃO EDUCACIONAL NOS ESCRITOS DO PCB E DE INTELECTUAIS COMUNISTAS
Para discutirmos a concepção de educação de Enio Cabral, temos que relacioná-la à
visão acerca da escola pública formulada no interior do PCB. A pesquisadora Aparecida
Favoreto, em sua tese de doutoramento intitulada Marxismo e educação no Brasil (19221935): o discurso do PCB e de seus intelectuais (2008), afirma que não é uma tarefa
simples tratar da concepção de educação do PCB, já que, além de tal ideia estar dispersa, há
ainda que se considerar que o partido tratou muito mais da educação militante do que da
escolar.
Favoreto adverte ainda para o fato de que se o PCB não participou efetivamente do
debate educacional, não foi, com certeza, alheio a ele, uma vez que:
A educação escolar aparece dissolvida em sua concepção de história, da
mesma forma que, no núcleo do pensamento intelectual do partido, nos
seus programas de ação, vários conceitos teóricos e táticas políticas se
mesclavam na busca de explicitação dos agentes mediadores no processo
de transformação ou conservação social. Portanto, a questão que se coloca
é verificar como o PCB, dentro de sua perspectiva de história, se
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
49
posicionou no debate educacional daquela época (FAVORETO, 2008, p.
176).
A tese apresentada por Favoreto nos é importante na medida em que permite pensar
a função de alguns militantes, como o professor Enio Cabral, no processo de divulgação das
ideias comunistas na sociedade, como esclarece a autora ao falar das teses defendidas pelo
intelectual comunista Rodolfo Coutinho:
Da perspectiva da vanguarda leninista, Rodolfo Coutinho acreditava que o
partido, por meio dos “capazes”, ou seja, daqueles que tinham
compreensão do marxismo e conseguiam falar de forma simples, deveria
alfabetizar e educar os trabalhadores e seus filhos, de forma a “despertar”
a vontade revolucionária (FAVORETO, 2008, p. 178).
Tal ideia parece importante para entendermos duas questões primordiais: a) pelo
menos nos anos iniciais de sua atuação, o PCB deu prioridade à educação militante e não à
escolar, que apareceria apenas como complementar, no sentido de permitir o acesso à
instrução para se compreender os escritos marxistas/comunistas; b) tal concepção de
educação com perspectiva de formação militante favorecia a figura do militante como um
transmissor fundamental das ideias comunistas, seja na sociedade em geral ou mesmo no
meio escolar. Isso reforça nosso entendimento sobre o professor de história Enio Cabral,
que atuava nesse espaço muito mais focado na divulgação das ideias comunistas com vistas
à educação revolucionária, em detrimento de uma educação tradicional livresca, que apenas
reforçaria a ordem dominante na cidade de Aquidauana. Para Enio, assim como para os
demais militantes do PCB, a educação, como qualquer outro espaço social, era um campo
de disputa, no qual as contradições afloravam, podendo assim abrir uma brecha para a
consciência revolucionária; no entanto, não era um espaço essencialmente voltado para
impulsionar mudanças, uma vez que a mesma sempre esteve sob o domínio do Estado.
A escola como um espaço de controle estatal, que limita sua capacidade
revolucionária, já foi anteriormente tratada por alguns pesquisadores, a exemplo do
historiador José Luís Sanfelice, que tece críticas a uma vertente tradicional da historiografia
educacional brasileira que trata a educação estatal como sinônimo de pública.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
50
Nossa historiografia, majoritariamente quando se refere à escola pública,
na verdade restringe-se à educação estatal e, raramente, distingue-a da
educação pública, no sentido que este texto sugere: a educação pública é
algo a ser construído no âmbito das relações contraditórias que
impulsionam as sociedades e, portanto, os homens, para a superação
qualitativa do modo de produção capitalista (SANFELICE, 2005, p. 103).
A ideia expressa por Sanfelice vai ao encontro das preocupações dos dirigentes e
militantes comunistas, uma vez que ambos consideram a escola como espaço de domínio
estatal que busca acomodar as contradições sociais e manter a ordem dominante, não sendo,
em si, um espaço revolucionário; pelo menos enquanto estiver no contexto do modo de
produção capitalista. Nesse sentido, podemos entender que tanto os comunistas quanto
Sanfelice acreditam na escola como uma instituição propícia ao debate revolucionário e ao
afloramento das contradições, mas que só se tornaria revolucionária após a superação do
capitalismo e da dominação estatal.
Em seu texto intitulado Da escola estatal burguesa à escola democrática e popular:
considerações historiográficas, Sanfelice nos apresenta uma conclusão sucinta que nos
serve de mote para pensar a educação estatal em detrimento de uma educação pública
transformadora: “O Estado ou o que é estatal não é público ou de interesse público, mas
tende ao favorecimento do interesse privado ou aos interesses do próprio Estado, com sua
autonomia relativa” (SANFELICE, 2005, p. 91).
Tal ideia aparece expressa na concepção de Pascoal Lemme, um dos simpatizantes
do PCB:
Educação democrática é aquela que, fundada no princípio da liberdade e
do respeito à pessoa humana, assegura a expressão da personalidade,
proporcionando a todos igualdade de oportunidades, sem distinção de
raças, classes ou crenças, na base da justiça social e fraternidade humana
indispensável, a uma sociedade informada pelo espírito de cooperação e
consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de
uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a
distribuição do poder econômico não estabeleça nem antagonismos e nem
privilégios (Lemme, 1988, v. 3, p. 12).
Ao que parece, os militantes tinham consciência de que a escola burguesa, em face
de sua filiação ao Estado capitalista, não seria capaz de formar um cidadão militante; tal
formação teria que ocorrer fora dela e apesar dela, no campo da atuação militante, já que,
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
51
como adverte Sanfelice, “a educação dada pela escola pública, aquela em que o Estado é
educador do povo, não pode ser considerada pública ou popular. É a escola estatal do
Estado educador do povo” (SANFELICE, 2005, p. 93).
Conforme destaca Favoreto (2008), para Paschoal Lemme a escola não se constituía
num veículo promotor de transformações sociais que visassem à igualdade entre os
homens. Para ele, uma educação democrática só se faria possível em uma sociedade
democrática, portanto não capitalista. Nesse ponto, o autor se mostrava irredutível: “pensar
que se pode fazer revolução por meio da educação é, no mínimo, uma ingenuidade”
(FAVORETO, 2008, p. 181).
Os dirigentes do PCB manifestavam sua preocupação com a educação sobretudo
numa perspectiva militante, ou seja, aquela capaz de orientar os quadros do partido para
combater as agruras da ditadura militar. Entre os setores estratégicos que deveriam ser
priorizados na cooptação para a luta contra a ditadura, encontram-se os intelectuais e os
estudantes, formadores de opinião que poderiam propagar a ideologia do partido na
sociedade brasileira. Conforme a resolução política do V Congresso do Partido Comunista
Brasileiro, de 1960,
Os comunistas devem dedicar particular atenção à intelectualidade, que,
em sua grande maioria, é partidária do progresso e da emancipação
nacional. A unidade dos intelectuais de diversas tendências políticas e
ideológicas pode ser alcançada em torno de objetivos comuns, como a
defesa da cultura nacional e de seu desenvolvimento, a preservação e
ampliação das liberdades democráticas, a salvaguarda dos interesses
éticos e profissionais dos intelectuais (NOGUEIRA, 1980. p. 65).
Na mesma resolução encontramos referências à importância dos estudantes e de
seus movimentos organizados no fortalecimento de uma frente nacionalista e democrática.
No documento encontram-se os seguintes dizeres:
A unidade dos estudantes de várias tendências doutrinárias e políticas é
fator essencial para o fortalecimento das organizações estudantis
universitárias e secundárias, que constituem baluartes da frente
nacionalista e democrática. A fim de fortalecer essa unidade e ampliar o
caráter de massas do movimento estudantil, é necessário combinar a acção
política com a defesa das reivindicações específicas dos estudantes, com a
luta pela solução dos problemas culturais, econômicos e sociais que
afectam a juventude (NOGUEIRA, 1980. pp. 66).
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
52
A política de recrutamento de intelectuais, estudantes e dos segmentos sociais mais
diversos possíveis era motivada pela clareza do partido em relação ao contexto sombrio que
rondava o país nos anos 1960. Enio, ao que parece, acreditava que os estudantes teriam um
papel importante na luta pela democracia no país, portanto buscava, a partir de sua atuação
como professor, levá-los a debater temas da conjuntura política nacional e internacional
com vistas a formar neles uma consciência crítica. Nessas palestras o professor Enio
sempre apontava o imperialismo como o grande inimigo do país e ainda defendia a
revolução e o comunismo como formas de se criar uma sociedade mais igualitária. No
inquérito policial militar movido contra ele encontramos alguns indícios de que suas aulas
ultrapassam a concepção meramente livresca, característica do ensino tradicional da época.
Quando interrogado pelos militares, ele assim se referia aos conteúdos de suas aulas:
perguntado se admiti seu erro em ministrado assuntos palpitantes e ainda
em discussão no congresso aos seus alunos, declarou que admite e
adiantou que fêz isso com atualizar os conhecimentos de seus alunos.
Admitiu ainda que seu objetivo era de desviar seus alunos de leitura
prejudiciais tais como Meia Noite, X-9, etc. Perguntado se alguma época
determinou que seu alunos fizessem trabalhos escritos sobre a reforma
agrária declarou que sim (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42).
As declarações de Enio sobre as publicações destinadas ao público infanto-juvenil
nos intrigaram, pois o que haveria de mal nas referidas publicações? Por que as mesmas
eram combatidas em suas aulas?
Em busca das repostas nos deparamos com a dissertação de Luiz Carlos Sereza
intitulada Entre criminosos e detetives: um estudo das representações da revista X-9 de
1950 a 1960 (2008). Nela o autor esclarece que as revistas com temas policiais
atravessaram duas décadas no país e tiveram um importante papel na divulgação das ideias
estatais. Sereza demonstra que a preocupação de Enio Cabral não era sem fundamento,
embora procure matizar o pensamento maniqueísta que se formou em algumas
interpretações:
Acreditávamos que a X-9, por ter atravessado décadas de existência, tinha
em sua linha editorial a capacidade de se fundir às políticas de Estado e
que funcionava como um veículo da propaganda política estatal e
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
53
internacional da democracia liberal. E havia elementos chaves para este
pensamento. Na proposta inicial imaginávamos que no Brasil a revista X9 havia se apropriado de um determinado imaginário político, produzindo
imagens que legitimavam as ações e o pensamento de modernização do
Estado. Observamos que, entre os anos de 1955 a 1961, os princípios
básicos do romance policial haviam sido re-significados, o criminoso
havia sido convertido em inimigo político, o crime, em comunismo e o
(heroico) detetive, em representante do capitalismo norte-americano. A
partir destes elementos, pretendíamos então analisar o imaginário
anticomunista produzido nos contos policiais pela revista brasileira X-9,
durante a “Era JK” (SEREZA, 2008, p.13).
Nas palavras de Sereza (2008), percebemos que Enio se mostrava atendo ao que se
passava não só interior da escola, mas também fora dela – ao que parece, tinha
conhecimento de que naquele momento vivia-se naquele espaço, assim como na sociedade
em geral, um clima de disputas ideológicas. Tal preocupação não afligia apenas ele, outros
militantes se mostravam preocupados com as forças conservadores.
Nos documentos do PCB, encontramos referências a forças conservadoras que
atuavam dentro do aparelho estatal e do próprio governo com o objetivo de reprimir as alas
progressistas da sociedade brasileira.
Tais afirmações demonstram que a direção do PCB e seus militantes tinham
consciência de quem eram seus inimigos e chegavam mesmo a nominá-los em seus
documentos internos, a exemplo do informe de balanço do comitê central, divulgado em
dezembro de 1967, após o VI Congresso do Partido Comunista Brasileiro.
As forças reacionárias, baseadas no seu poderio econômico e político
interno, estimuladas e auxiliadas pelo imperialismo norte-americano,
reagrupavam-se e intensificavam sua atividade. Tratavam de manter e
consolidar suas posições no aparelho do Estado, particularmente no
comando das Forças Armadas. Valiam-se da maioria reacionária do
Congresso e de sua participação no governo para impedir reformas e
defender os interesses entreguistas e retrógados. Procuravam, com o
auxílio da “Aliança Para o Progresso”, do IBAD e do IPES, assegurar o
prestígio político de que ainda gozavam muitos seus quadros, influir nas
eleições, mistificar a opinião pública e garantir alguma base de massas
para sua atividade (NOGUEIRA, 1980. p. 77).
Conforme já apontamos anteriormente, a influência de órgãos como o Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
e o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT) – os aparelhos do Estado – já
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
54
foi discutida por alguns pesquisadores brasileiros. Entre eles destaca-se a tese de Eraldo
Leme Batista, intitulada Trabalho e educação profissional nas décadas de 1930 e 1940 no
Brasil: análise do pensamento e das ações da burguesia industrial a partir do IDORT, que
trata da criação de instituições como o IDORT e defende a tese de que, por meio desses
instrumentos, a burguesia industrial articulava um projeto para a formação de uma nova
classe trabalhadora nacional, adestrada, disciplinada e cooptada.
Assim, ganham espaço na sociedade, defendia suas teses, buscando
hegemonia e propondo um modelo de sociedade pautada na organização
racional. Demonstrando articulação e preocupação com este projeto de
sociedade nacional, essa mesma burguesia propõe a criação da Escola
Livre de Sociologia Política em 1933 e a criação da USP em 1934. Este
projeto vai se concretizando a partir da constituição do IDORT. Ressaltase que este Instituto, tinha bem claro o seu projeto de sociedade brasileira,
que pressupunha o controle da sociedade a partir das suas ideias de
racionalização. Para viabilizar esse projeto, seria necessário ser a
referência nas frações da própria classe burguesa, controlar ou estar nos
principais postos do Estado e, ao mesmo tempo, subordinar as classes
subalternas para seus interesses (LEME, 2013, p. 3).
Leme, embora discuta um período anterior à nossa pesquisa, nos auxilia a entender
o porquê de os dirigentes do PCB demonstrarem tanta preocupação com a filiação dos
intelectuais aos seus quadros. Segundo ele,
Os intelectuais orgânicos da burguesia industrial tanto eram do setor
industrial, quanto educacional, sendo que diversos educadores
contribuíram com a fundação do IDORT, como Lourenço Filho, Azevedo,
Anísio Teixeira, Noemy, além de outros professores da USP. O autor
defende a ideia de que esses intelectuais que desenvolviam trabalhos,
projetos para a burguesia industrial, foram cooptados pela mesma que
atuava como um aparelho de estado (LEME, 2013, p. 165).
Como demonstra Leme (2013), durante o regime autoritário brasileiro, diversas
estratégias de cooptação foram utilizadas para atrair os intelectuais do campo adversário,
seja por meio da intimidação, do oferecimento de cargos públicos ou mesmo pelo
convencimento ideológico. Em Aquidauana, na década de 1960, isso não foi diferente.
Muitos dos colegas e alunos de Enio se tornariam seus detratores, a exemplo do professor
catedrático João Jorge Carneiro, que, ao ser nomeado diretor da Escola Cândido Mariano,
testemunhou contra Enio, afirmando que ele era comunista e arruaceiro.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
55
Trataremos mais detalhadamente desse clima de terror e delação no próximo tópico
do capítulo, quando discutiremos o caso de Ênio Cabral, que enfrentou um IPM em função
da delação de colegas e alunos na Escola Cândido Mariano, na qual lecionava a disciplina
de História.
O ESTADO CONTRA ENIO CABRAL, “UM COMUNISTA UTÓPICO”.
Como se observou, apesar de o mandonismo ser a tônica política da cidade de
Aquidauana na década de 1960, isso não impediu que ocorressem resistências de alguns
grupos locais, a exemplo dos militantes comunistas que questionavam a estrutura
econômico-social e buscavam transformar sua realidade com base na inspiração marxista.
Para Leite, os militantes que tentaram organizar atividades do PCB em Aquidauana, mesmo
na clandestinidade, tinham clareza de que suas ações para a consolidação das reformas de
base proclamadas por João Goulart e uma possível revolução no Brasil passavam por
discussões e debates para divulgar na sociedade as ideias marxistas.
Na região Centro-Oeste, e em Aquidauana, a presença de comunistas
sempre causou preocupações à elite agrária. Em Aquidauana, o Partido
chegou a participar da Câmara Municipal, conseguindo eleger suplentes
de vereador. Sua votação, nos anos em que participou de eleições, foi
expressiva quando consideramos o universo mental conservador e
autoritário da cidade. A base de participação e militância política em
discussões encontrava-se nos ferroviários (Depoimento Enio Cabral).
Esses trabalhadores, vindos de outras regiões mais desenvolvidas do
Brasil, conhecedores de outras experiências, souberam filtrar melhor os
limites autoritários de Aquidauana (LEITE, 2009, p. 37).
O autor discorre sobre o processo como se deu a organização das ações dos
militantes marxistas na cidade, destacando que a sindicalização rural e a organização dos
movimentos sociais locais constituíram-se nas suas maiores contribuições. Enio Cabral, em
depoimento dado ao historiador Eudes F. Leite, esclarece como se deu esse processo:
[...] e nesse mesmo período, inclusive, fizemos uma movimentação muito
grande de conscientização popular em Anastácio, não sei se você se
recorda, você conhece, se sabe? Passando a Ponte Velha em direção a
Anastácio, a direita tem uma casinha baixa, pequena, ali era a sede das
associações de Aquidauana, ali foi um núcleo, aqui na cidade, de uma
organização de camponeses, de trabalhadores, sem terra... Isso foi anterior
a 64, ao golpe. Todos os domingos... aí começaram a aderir os
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
56
ferroviários, os comerciários, estávamos organizando a Associação das
Domésticas e todos os domingos a concentração era muito grande,
camponeses dos mais diversos lugares do município de Aquidauana
vinham prá ali aos domingos assistir as reuniões, os debates. Nós
levávamos jornais, livros e tínhamos uma preocupação de não ter cor
partidária, tanto é que era proibida discussão política dentro das reuniões,
justamente, isso para evitar provocação; prá dizer que era de caráter
comunista e que estávamos também acompanhando a orientação do
presidente da República, João Goulart, de criação de Ligas Camponesas
(ENIO CABRAL, 1991, p. 4, citado em LEITE, 2009, p. 54).
Leite, ao comentar o depoimento de Enio, informa-nos sobre a estratégia utilizada
para conduzir as reuniões a fim de burlar suspeitas de atividades subversivas. Ele procurava
falar de temas ligados à vida do trabalhador e não diretamente de política, já que o contexto
inspirava cuidados com o caráter repressivo que já vislumbrava. Ainda segundo Leite, tais
atividades políticas de pessoas que tiveram vínculo com o PCB, então na ilegalidade,
causaram temor à elite local, que considerava as reuniões de domingo o “estopim da
revolução” em Aquidauana. Tal preocupação fica bastante clara nos IPMs2 de Adonis
Gonçalves e Enio Cabral consultados por nós, a exemplo do testemunho de Claudemiro
Nunes da Cunha:
Perguntado se conhecia a Associação dos Trabalhadores Rurais, sita no
antigo Bar São Paulo, nesta cidade, declarou que sim e adiantou que foi lá
quatro vezes, aproximadamente há quatro meses atrás, tendo encontrado
lá o professor Enio de Castro Cabral (...). Perguntado quem discursava
durante as vezes em que foi na Associação, declarou: Professor Enio de
Castro Cabral, Eri Peretro e Osvaldo Sanches. Perguntado de que
tratavam os oradores, declarou que falavam quase sempre de Reformas e
sobre o pobre, que tinha de ser igualado ao rico e o rico afastado, adiantou
que Eri Peretro pregava a reforma violenta e falava em paredão para os
que tentassem impedi-los, prosseguindo, disse que sentiu cheiro de
comunismo e se afastou desse convívio (IPM, Adonis Gonçalves, fl. 24).
O testemunho de Claudemiro também serviu para a conclusão dos militares de que
havia um teor comunista nas ideias divulgadas nas reuniões domingueiras realizadas no
subversivo Bar São Paulo: “Perguntado se sabia que o professor Enio Cabral era comunista,
declarou que sim e foi esse fato que lhe permitiu saber que havia uma infiltração comunista
na Associação” (IPM, Adonis Gonçalves, fl. 24).
2
Cumpre ressaltar que era uma prática comum dos militares juntar num mesmo IPM as acusações contra mais
de um suspeito de atividades contra a pátria; foi o que ocorreu no caso de Adonis Gonçalves e Enio Cabral.
57
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
Enio foi um desses importantes sujeitos políticos que ousou desafiar o poder dos
coronéis e do Estado militar, utilizando-se principalmente de sua condição docente para
divulgar as ideias comunistas e a possibilidade de uma sociedade mais igualitária. Por esse
motivo, juntamente com outros integrantes do PCB, teve que enfrentar a repressão militar.
O MÊS DE ABRIL E OS IPMS CONTRA OS COMUNISTAS
Segundo o historiador Eudes Fernando Leite, os IPMs (Inquéritos Policiais
Militares) eram, até a instituição do AI-5, a principal forma de repressão utilizada contra os
políticos, militantes e movimentos sociais contrários ao Estado. Leite afirma que em
Aquidauana os IPMs passaram a ser montados a partir do dia 20 de Abril de 1964 e se
constituíram na peça fundamental de repressão aos subversivos locais. Porém, eram
contraditórios do ponto de vista processual, pois a investigação era iniciada após a prisão
dos suspeitos (LEITE, 2009, p. 76).
Um dos primeiros IPMs montados foi contra o professor catedrático de História
Enio Cabral, no dia 23 de abril de 1964, ou seja, 23 dias após a instauração do golpe civilmilitar. Inicia-se então a devassa contra os comunistas de Aquidauana. Enio Cabral e
Adonis Gonçalves são presos pelos militares para investigação de atos comunistas e
atentados conta a ordem nacional.
Vale ressaltar que ele já se encontrava preso desde o dia 04 de abril, como afirma
Leite (2009). A data da prisão demonstra que os militares do Batalhão do Oeste já estavam
de olho nas atividades praticadas por comunistas em Aquidauana e esperavam apenas o
momento de legitimação para agir. Nos dias que se seguiram, mais treze suspeitos de
integrar a reorganização do partido comunista na cidade também foram presos para
averiguação. A tabela nº 1 abaixo mostra a relação de supostos militantes presos em função
de supostos crimes contra a pátria.
Tabela 1: militantes presos
NOME
IDADE
Adonis Gonçalves
Antônio Alves Ferreira
25
35
Benedito Eloy Vasco de Toledo
35
PROFISSÃO
ACUSAÇÃO
Vereador
Eletricista e RádioTécnico
Advogado
Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802
Transg. Art. 9 e 10 da Lei 1.802
58
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
Cândido dos Santos
Clealdon Alves de Assis
Enio de Castro Cabral
Ery José Pereto
João Batista do Rosário
João Soares
José Maria Martinez Freixes
Leonardo Nunes da Cunha
Manfredo Metelo Inverso
Osvaldo Jacques Sanches
Rubens Nunes da Cunha
Sebastião de Oliveira
55
37
44
33
60
52
35
28
53
41
27
25
Lavrador
Piloto Civil
Professor
Motorista
Comerciante
Pescador
Comerciante
Advogado
Ferroviário
Comerc. de gado
Médico
Pintor
Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802
Transg. Art. 9 e 10 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802
Transg. Art. 9, 10 e 11da Lei 1.802
(Leite, 2009, pp. 98-99)
O caráter civil-militar do golpe de 1964, assim como em todo o país, se fez presente
em Aquidauana, e pode ser comprovado pela própria escolha das testemunhas arroladas no
processo: entre as de acusação, políticos, pecuaristas, militares e até mesmo um delegado
de polícia; entre as de defesa, um lavrador, um pintor e alguns pequenos comerciantes
(conforme tabela n° 2 abaixo). Sobre este fato, Leite relata:
Na cidade de Aquidauana, não foi possível encontrar documentos que
revelassem uma rede ou, ao menos, nomes de pessoas que cumpriram a
tarefa de informantes. No entanto a lista de testemunhas, especialmente
daquelas que apontam os indiciados como comunistas, expressam as
possibilidades dessas testemunhas terem exercido tal função. Não é difícil
compreender por que essas testemunhas tenham realizado denúncias, pois
elas ocupavam postos importantes nas estruturas de poder políticoeconômico e social no período (LEITE, 2009, p. 75).
Tabela 2: Principais testemunhas
NOME
Antônio Pace
José de Castro
Pedro Nogueira
Enio Cabral
José Manoel F. Fragelli
João Batista do Rosário
Edson Nogueira Paim
Carlos Moacyr da Conceição
Fernando Luiz Alves Ribeiro
Manuel Aureliano da Costa Filho
Antônio Guerra
Nilo Pereira da Rocha
Luciano Gonçalves
Laurinho da Silva
Claudemiro Nunes da Cunha
IDADE
52
48
54
44
48
60
35
54
45
63
54
39
20
56
40
PROFISSÃO
Proprietário
Vice-Prefeito
Funcionário Público
Professor
Advogado – Fazendeiro
Comerciante
Capitão – Dentista
Delegado de Polícia
Prefeito – Fazendeiro
Criador
Comerciante
Comerciante
Cabo - rádio técnico
Lavrador
?
59
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
João Jorge Carneiro
José Carlos Nery
Sebastião de Oliveira
Eustórgio de Andrade Brito
Roberto Scaff
Orides Dias Barbosa
Roberto Ortega Stonis
Lélio Scaffa
Inácio Pereira Ramos
Hipólio Quelho
44
20
25
49
28
24
22
34
22
34
Diretor Escola
20 Estudante
25 Pintor
?
Comerciante
Piloto-Mecânico de Avião
Piloto civil
Pecuarista
Comerciário
Comerciante
(Leite, 2009, pp. 98-99)
Os IPMs, utilizados como instrumentos de coerção contra os ditos comunistas pelos
“homens de bem”, procuravam seguir um procedimento semelhante às investigações
realizadas pelos órgãos da justiça civil, embora os militares envolvidos não tivessem o
menor conhecimento sobre a questão e, por isso mesmo, acabassem por cometer diversos
erros processuais ao agirem com violência e arbitrariedade (LEITE, 2009, pp. 76-77). Os
IPMs eram instituídos pelo comandante do 9º Batalhão de engenharia, o tenente-coronel
Wilson de Freitas, e tinham a participação de outros oficiais que se encarregavam da
realização, de fato, do inquérito. No caso do professor Enio Cabral e do vereador Adonis
Gonçalves, o oficial responsável foi o capitão Oscar da Silva, que nomeou o tenentecoronel Wilson de Freitas para presidir o referido inquérito e o 2º sargento Jayme de
Oliveira Alonso como escrivão. A estrutura organizacional do exército em Aquidauana se
dava da seguinte forma: Ministério da Guerra, Segundo Exército, Nona Região Militar,
Quarta Divisão de Cavalaria e, por fim, 9º Batalhão de Engenharia de Combate, conforme
apresentado no ofício de autuação dos indiciados que reproduzo abaixo:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
60
(IPM Enio Cabral, fl. 6)
AS DOMINGUEIRAS E A PARANOIA MILITAR
Não só em Aquidauana, mas também no restante do país, havia a suspeita de que os
militantes de esquerda estivessem organizando comandos guerrilheiros para resistir ao
regime recém-instaurado no Brasil. Leite esclarece que a elite e o exército de Aquidauana
acreditavam que esses grupos de resistência teriam a função de organizar a tomada de poder
na cidade e, por esse motivo, precisavam ser rapidamente reprimidos.
Instalou-se ali então, nos anos de 1960, um clima de conspiração. Conversas em
praças públicas, bate-papos em bares e rodas de amigos transformavam-se em boatos e
ameaças veladas a atormentar as mentes dos moradores da cidade, como destacou Leite
(2009), para quem tudo tinha origem nas denominadas reuniões dominicais, onde ideias
utópicas poderiam se tornar realidade.
Em seis de julho de 1964, o promotor de justiça Vicente Paschoal Júnior encaminha
ao juiz da comarca de Aquidauana o processo protocolado sob o número 1.583, de 21 de
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
61
junho de 1964, derivado do IPM movido contra Enio de Castro Cabral, que deveria ser
transformado em processo-crime com as seguintes denúncias:
I- Segundo se depara da peça informativa o denunciado transgrediu as
normas contidas nos arts. 9, 10,11 e 12 da lei nº 1.802 de 5 de janeiro de
1953.
II- E tudo porque ficou provado que o denunciado exerceu, sem rodeios,
atividades tendentes a reorganizar o extinto Partido Comunista Brasileiro,
e fazer com que as normas estatutárias do referido Partido funcionassem,
sendo certo, que referido partido, por higiene, por patriotismo e por
decôro foi colocado à margem dos organismos políticos partidários
nacionais;
III- E mais ainda porque contribuiu com serviços e donativos,
ostensivamente, para entidades que foram banidas da legalidade;
IV- Outrossim, certo é que o denunciado, ainda, fazia, publicamente,
propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política e
social;
V- Por fim, resta colocar de realce que o denunciado, diretamente e de
ânimo deliberado incitou classe social à luta pela violência;
VI- Assim sendo denuncio ENIO DE CASTRO CABRAL, já qualificado,
como incurso nos arts. da lei acima referida, requerendo que contra ele se
instaure o competente processo, de acordo com o que é preceituado pelo
código de Processo Penal, em seu artigo 394 e seguintes, requerendo sua
citação para ver-se processar e ser interrogado e para os demais têrmos e
atos do processo –, pena de revelia –, protestando por todas as provas em
direito permitidas, inclusive audiência de testemunhas cujo ról segue
abaixo (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 2).
Como se depreende dos artigos acima citados, o réu foi denunciado por transgredir
os quatro artigos da Lei n. 1.802, que definia os crimes contra o Estado e a ordem pública e
dava outras providências. Transcrevemos, a título de informação, o teor dos artigos
reportados no IMP:
Art. 9. Reorganizar ou tentar reorganizar, de fato ou de direito, pondo
logo em funcionamento efetivo, ainda que sob falso nome ou forma
simulada, partido político ou associação dissolvidos por fôrça de
disposição legal ou fazê-lo funcionar nas mesmas condições quando
legalmente suspenso.
Pena: reclusão de 2 a 5 anos; reduzida da metade, quando se tratar da
segunda parte do artigo.
Parágrafo único. A concessão do registro do novo partido, uma vez
passada em julgado, porá imediatamente têrmo a qualquer processo ou
pena com fundamento neste artigo.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
62
Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou
clandestinamente, mas sempre de maneira inequívoca, a qualquer das
entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo anterior.
Pena: - reclusão de 1 a 4 anos.
Art. 11. Fazer públicamente propaganda:
a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social;
b) de ódio de raça, de religião ou de classe;
c) de guerra.
Pena: reclusão de 1 a 3 anos.
§ 1º A pena será agravada de um têrço quando a propaganda fôr feita em
quartel, repartição, fábrica ou oficina.
§ 2º Não constitui propaganda:
a) a defesa judicial;
b) a exaltação dos fatos guerreiros da história pátria ou do sentimento
cívico de defesa armada do País, ainda que em tempo de paz;
c) a exposição a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas.
§ 3º Pune-se igualmente, nos têrmos dêste artigo, a distribuição ostensiva
ou clandestina, mas sempre inequìvocamente dolosa, de boletins ou
panfletos, por meio dos quais se faça a propaganda condenada nas
letras a, b e c do princípio dêste artigo.
Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta
pela violência.
Pena: reclusão de 6 meses a 2 anos (Lei n. 1.802, de 5 de Janeiro de 1953
– Coleção de Leis do Brasil, 1953, p. 5, Vol. 1).
Essa lei foi o instrumento necessário para que os militares tivessem uma base legal
para processar os subversivos, mas se mostrou insuficiente, pois, por se tratar de uma lei
civil, vários réus recorreram à justiça comum para alegar a incompetência das juntas
militares para julgar tais processos. A pesquisadora Fabrícia Cristina de Sá Santos esclarece
que
De início, a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953 (que definia “os crimes
contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dava outras providências”),
foi o mecanismo legal utilizado pelos militares para enquadrar os
“subversivos” que atentam contra a Segurança Nacional. No entanto, a
mesma lei se mostraria insuficiente para fornecer todo o respaldo jurídico
de que necessitava o regime para proceder aos “expurgos” dos elementos
considerados subversivos. Com a ditadura instaurada, a JM passou a
apreciar vários IPM, nos quais diversos civis eram julgados e, por isso,
recorriam ao Supremo Tribunal Federal, argüindo incompetência da JM
para proferir tais julgamentos e pedindo habeas corpus (SANTOS, 2004,
p. 239).
A respeito da competência dos tribunais militares, a Constituição Federal de 1946
deixa claro em sua seção VII, Dos Juízes e Tribunais Militares:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
63
Art. 106 - São órgãos da Justiça Militar o Superior Tribunal Militar e os
Tribunais e Juízes inferiores que a lei instituir.
Parágrafo único - A lei disporá sobre o número e a forma de escolha dos
Juízes militares e togados do Superior Tribunal Militar, os quais terão
vencimentos iguais aos dos Juízes do Tribunal Federal de Recursos, e
estabelecerá as condições de acesso dos Auditores.
Art. 107 - A inamovibilidade, assegurada aos membros da Justiça Militar
não os exime da obrigação de acompanhar as forças junto às quais tenham
de servir.
Art. 108 - A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes
militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são,
assemelhadas.
§ 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos
em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as
instituições militares (Redação dada pelo Ato Institucional nº 2).
§ 2º - A lei regulará a aplicação das penas da legislação militar em tempo
de guerra (BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de
setembro de 1946).
Como já mencionado anteriormente, durante o regime militar os IPMs tornaram-se
os principais instrumentos da repressão política por parte do exército. E embora buscassem
dar um ar de neutralidade e legalidade, como se agissem em favor da pátria, a inexperiência
dos militares com as questões jurídicas acabou por levá-los a cometer uma série de erros
processuais que mais tarde beneficiariam os acusados. Apesar dessa tentativa de revestir
seus atos inescrupulosos de “certa legalidade”, na maioria das vezes os agentes da caserna
acabaram por utilizar a força para alcançar seus objetivos. No entanto, antes de
entendermos tais pormenores, passemos à apresentação do processo e das etapas que
constituíram o referido documento analisado por nós.
Em 24 de abril de 1964, o capitão Oscar da Silva, encarregado do IPM, apresenta
nos autos a qualificação do acusado, conforme segue resumidamente:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
64
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 11)
Nos autos são apresentados ainda outros dados sobre a biblioteca do professor, que
possuía diversas obras de teor doutrinário comunista, assuntos sexuais e alguns livros
didáticos. Os militares responsáveis pelo inquérito destacam também que ele era
colaborador de várias associações de lavradores e do pessoal da construção civil e do
mobiliário, o que comprovava sua função de doutrinador, de comunista atuante. Aparecem
também reclamações de seus alunos, que informavam que ele aproveitava suas aulas para
divulgar as ideias comunistas. Segundo eles, Enio afirmava que o momento histórico em
que viviam, os anos 1960, era favorável a uma transformação política. O professor, apesar
de negar tal fato, era acusado de ter proferido juramento perante a bandeira soviética com
os alunos do Colégio Estadual Cândido Mariano. O capitão Oscar da Silva fez constar
ainda que ele teria dito a um fazendeiro que “a revolução seria pacífica ou sangrenta,
dependendo da atitude dos reacionários”. Os termos lavrados nos autos demonstram que os
militares tinham realmente grande preocupação com suas atividades e consideravam que
elas poderiam ser muito perigosas para a cidade de Aquidauana, chegando mesmo a se
preocupar com questões de foro íntimo referentes ao acusado, conforme se infere na parte
final dos autos:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
65
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 12).
Observe-se que, pelos documentos transcritos acima, os militares não possuíam
contra Enio nenhuma evidência concreta de atividades comunistas, ou mesmo que
atentassem contra a ordem vigente. A motivação para a prisão e o interrogatório do acusado
deveram-se muito mais às ideologias anticomunistas que povoavam a mente dos militares
naquele período. Após a prisão, baseada em fatos subjetivos, como a alusão ao fato de ele
ter um filho chamado Luiz Carlos Prestes Cabral (em verdade, o nome era Luiz Carlos
Leite Cabral) e de ter obras comunistas na sua casa, foi preciso constituir provas contra ele.
Por esse motivo o Capitão Oscar da Silva expede um auto de informação para busca e
apreensão de documentos e obras que pudessem sustentar as acusações. No mandado, o
capitão deixa bastante claro que os soldados devem empregar todas as diligências
necessárias e os meios indispensáveis para a apreensão dos livros e documentos que se
encontravam na casa de Enio.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
66
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 13)
Um fato interessante do referido mandado de busca e apreensão é que o capitão,
preocupado em revestir seus atos de uma determinada legalidade, indica duas testemunhas
para acompanhar a diligência. Tal ato seria nobre caso não fossem elas dois soldados que
estavam sob seu comando e que, portanto, nada questionariam em relação ao processo. Esse
documento, de grande importância para nossa pesquisa, que visou entender a atuação
intelectual de Enio Cabral em Aquidauana, revelou as referências de leitura que
sustentavam sua prática. Os soldados indicados pelo encarregado do inquérito,
acompanhados pelo cunhado do professor, entram em sua casa e, conforme se relata no
67
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
documento, procedem a uma minuciosa busca “em todas as salas, quartos e lugares,
fazendo abrir todas as portas, gavetas e armários” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 13), para
apreender livros, revistas, recortes de jornais, objetos e documentos que pudessem
incriminar o acusado. Pelo referido auto de apreensão, podemos perceber que ele possuía
uma vasta biblioteca, com livros que versavam sobre temas como marxismo, militância
política, revoluções socialistas e comunismo, conforme destacamos a seguir:
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 15)
Como é possível observar no trecho acima, além de documentos do PCB e de obras
de Vladimir Lenin sobre o contexto das revoluções na URSS e Cuba, foram encontradas
ainda obras como a de Plekhanov, que tratava do papel do indivíduo na história. Essas
influências de leitura são importantes, pois revelam como Enio Cabral construía sua visão
de mundo ancorada na concepção marxista de história e analisava sua realidade a partir
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
68
dela. Antonio Gramsci, em sua obra Os intelectuais e a organização da cultura, discute
tanto o papel dos intelectuais orgânicos quanto a ideia de concepção de mundo como
orientadora das práticas individuais.
Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção
intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma,
todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual
qualquer, ou seja, é um "filósofo", um artista, um homem de gosto,
participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de
conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma
concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar
(GRAMSCI, 1982, pp. 6-7).
Além das obras destacadas anteriormente, podemos ainda citar as seguintes
encontradas em sua biblioteca: de V.I. Lenin: La revolución proletária y el renegado
Kautsky, La revolución proletária y la distadura del proletário (sic), A questão agrária,
Duas táticas, Um passo adiante, dois passos atrás; de Karl Marx e F. Engels foram
encontradas as seguintes obras: Manifesto comunista, As guerras camponesas na
Alemanha, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Trabalho assalariado
e capital, Trechos escolhidos sobre economia política, O 18 de brumário de Luís
Bonaparte e As lutas de classe na França; de Rosa Luxemburgo: Reforma ou revolução?;
De Plekhanov: Questões fundamentais do marxismo e O papel do indivíduo na história; e
de Eric Fromm: O conceito marxista do homem. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 15)
Além desses teóricos marxistas, Enio recorria a obras nacionais para pensar a
conjuntura do país, tais como as de Jorge Amado produzidas antes de sua saída do PCB, a
exemplo de Seara vermelha, Vida de Luiz Carlos Prestes e Mundo da paz. De Luiz Carlos
Prestes: Por que os comunistas apoiam Lott e Jango, O problema da terra e a Constituição
de 1946 e A situação política e a luta por um governo nacional e democrático. Existiam
ainda em sua biblioteca jornais e revistas que faziam alusão aos temas do comunismo e
uma carteirinha que comprovaria ter sido ele membro do PCB. Todo esse material serviu de
prova para que os militares comprovassem suas tendências comunistas (IPM, Enio de
Castro Cabral, fl. 16).
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
69
ENIO CABRAL E SEUS DETRATORES
As provas materiais não seriam suficientes, com certeza, para garantir a prisão de
Enio; por esse motivo foram arroladas algumas testemunhas que teriam a função de
comprovar sua atuação comunista na cidade, sobretudo na organização dos trabalhadores e
no incitamento dos mesmos contra a ordem vigente. Um testemunho-chave no processo foi
o do diretor do Ginásio Estadual Candido Mariano, onde ele atuava como professor de
história e sofreu várias advertências por parte dos colegas, dos alunos e do próprio diretor
em função de sua maneira peculiar de ensinar história. Por se tratar de um depoimento que
pode nos esclarecer sobre sua atuação docente, que se chocava com a visão daquela
sociedade, apresentamos um trecho abaixo:
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)
Nesse trecho, o diretor confirma as acusações contra o réu e procura se eximir da
responsabilidade de ter contratado um comunista; ao mesmo tempo demonstra sua aversão
a tais ideias e imputa a seu antecessor a responsabilidade de ter contratado o professor. Seu
depoimento também é esclarecedor sobre as práticas docentes de Enio, que, provavelmente
em face de sua concepção de mundo partilhada por outros membros do extinto PCB,
utilizava as aulas para conscientizar seus alunos da possibilidade de uma transformação
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
70
social. No entanto, a leitura que a sociedade e os militares fizeram dessa prática foi a de que
ele subvertia a ordem e, portanto, deveria ser silenciado. Como afirmei anteriormente, a
abordagem de alguns pontos cruciais na conjuntura social brasileira, tais como a reforma
agrária, a exploração dos trabalhadores, a possibilidade uma transformação social no país,
acabou por levar os alunos de Enio a denunciá-lo para o diretor. Tal ato pode ser facilmente
explicado se pensarmos que o Colégio Cândido Mariano foi à época e durante toda a
década de 1960 considerado o melhor da cidade e, consequentemente, o reduto de uma elite
ruralista e conservadora.
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)
Aparece nesse trecho do depoimento do diretor uma questão importante acerca das
concepções divergentes de educação e de história que Enio e ele possuíam. Na sua fala
aparece implicitamente a noção de que a educação deveria servir para ajustar os alunos à
realidade e à ordem capitalista vigente, já que fica claro que o mesmo concorda com as
palavras dos militares quando afirmavam que o professor fugia dos temas previamente
definidos pelo programa da escola para discorrer sobre “assuntos esquerdistas”, a saber:
reforma agrária, revoluções sociais e comunismo. Assim, ao que parece o diretor e os
militares partilhavam de uma concepção positivista de mundo, educação e ensino, o que os
levava a entender as reflexões sobre temas da conjuntura brasileira e suas contradições
como nocivas àquela sociedade. No entanto, se analisarmos as leituras feitas por Enio e sua
ligação com o PCB, inferimos que em sua concepção de mundo, o ponto de partida para se
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
71
pensar educação e ensino se volta para o marxismo, que preconiza uma educação capaz de
transformar a realidade. Assim, as reflexões sobre aspectos contemporâneos da sociedade
em que viviam era algo inerente à sua práxis como educador marxista, que via na educação
um espaço primordial para a conscientização dos alunos/cidadãos com os quais convivia. A
perspectiva de se pensar a educação articulada com a realidade social dos indivíduos e
como espaço de disputas contraditórias em torno de concepções de mundo já foi apontada
por José Claudinei Lombardi:
No meu entendimento, para o marxismo, não faz o menor sentido analisar
abstrata e a-historicamente a educação, pois esta é uma dimensão da vida
dos homens que, como qualquer outro aspecto da vida e do mundo
existente, se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às
transformações do modo como os homens produzem a sua existência. A
educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como
uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro
aspecto e dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida
no contexto em que surge e se desenvolve, também vivenciando e
expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo das
lutas entre classes e frações de classe (LOMBARDI, 2011, 348).
Outro traço assinalado no depoimento do diretor dizia respeito ao fato de não ter
impedido Enio de divulgar suas ideias durante as aulas. Segundo ele, não era possível fazer
nada a respeito pelo fato de o mesmo ser professor catedrático, só podendo ser demitido por
meio de processo administrativo. Esse aspecto nos parece importante, pois leva a
compreender como certos intelectuais têm a perspicácia de se infiltrar em espaços
institucionais, conservadores e atuar nas brechas possíveis para empreender uma mudança a
partir de dentro. Como aponta Lombardi,
(...) o educador precisa romper com as pedagogias escolares articuladoras
dos interesses da burguesia e vincular sua concepção e sua prática a uma
perspectiva revolucionária de homem e de mundo. Não se trata
simplesmente de aderir a uma concepção científica de mundo e seu poder
desvelador da realidade, mas em assumir na teoria e na prática, isto é, na
práxis, uma concepção transformadora da vida, do homem e do mundo
(LOMBARDI, 2011, p. 364).
As palavras de Lombardi expressam, provavelmente, a visão que Enio tinha de sua
profissão, ou seja, a partir dos relatos de suas práticas, consideradas insubordinadas na
escola e na sociedade, demonstrava seu compromisso com uma educação transformadora.
72
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
Nesse sentido, o fato de ser ocupante de um cargo de professor catedrático vitalício lhe
garantia a possiblidade de resistir à visão burguesa de educação, pelo menos até que os
militares tomassem o poder e instituíssem um novo aparato legal que feria direitos
anteriormente adquiridos. Essa certa autonomia que Enio possuía também foi lembrada
como negativa pelo diretor da escola, que se queixava do fato de não poder puni-lo de
forma mais rigorosa em função da legislação existente até aquele momento, conforme
transcrevemos abaixo:
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25)
Não foi só o diretor da escola que depôs contra Enio; alguns alunos foram
convocados pelos militares para prestar informações sobre a conduta do mesmo como
professor, bem como sobre os possíveis desvios cometidos. Dentre eles destaca-se o
depoimento de um aluno, José Carlos Nery, de 20 anos de idade, que compareceu ao
quartel na ocasião do IPM. Perguntado se teria sido aluno do referido professor, afirmou:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
73
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 26)
Incitado pelos interrogadores, ele passa a esclarecer a prática do professor, que
possuía abordagens didáticas pouco convencionais para aquela época ao desafiar seus
alunos a se questionarem sobre temas que perpassavam suas vidas, mas que geralmente não
eram discutidos pela maioria dos professores. Buscava expor seu ponto de vista para
conscientizá-los, inclusive solicitando que estendessem tais discussões a seus pais, mas não
obteve grande êxito, pois acabou denunciado por seus próprios alunos. Quando perguntado
sobre quais outros assuntos Enio abordava durante as aulas, o jovem respondeu que ele
sempre defendia a reforma agrária, tendo até mesmo solicitado alguns trabalhos sobre o
tema, conforme o trecho que apresentamos a seguir:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
74
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30)
Em outro trecho da redação do aluno Adão Flores, podemos perceber que Enio
Cabral conseguia exercer certa influência sobre os alunos, já que apesar de assumir, em
parte, o discurso do vazio demográfico, conseguia fazer algumas críticas ao sistema de
distribuição de terras no Brasil, que segundo ele era dominado pelos grandes latifúndios
improdutivos.
75
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30)
Adão Flores conclui seu texto afirmando que a reforma agrária era necessária no
Brasil, pois o tornaria um país mais rico e digno de seus filhos.
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 31)
Nery não foi o único aluno a entrar em confronto com o professor; outros também
entravam em debate com ele, principalmente as moças, quando o mesmo questionava a
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
76
existência de Deus. Suas palavras escandalizavam e prejudicavam o desenvolvimento da
classe, afirmava Nery.
Os pais de alguns de seus alunos também foram chamados a depor sobre a atuação
do professor. Um deles foi Eustorgio de Andrade Brito, criador de gado em Aquidauana,
que afirmou que suas filhas faziam constantes reclamações sobre os assuntos tratados em
sala de aula:
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 28)
Novamente nota-se no trecho acima o descontentamento do pai e dos alunos com os
temas abordados, que extrapolavam a dimensão programática da disciplina e apontavam
para sua postura social. Enio acreditava numa educação transformadora que se projetasse
para fora dos muros escolares e pudesse atingir também os pais e demais sujeitos de uma
determinada sociedade no despertar de uma consciência revolucionária. Por outro lado, o
pai em questão possuía uma visão sobre a educação segundo a qual ela deveria manter a
estabilidade social sem grandes transformações, além de permanecer distante de temas
como o comunismo, a reforma agrária e as teorias revolucionárias. No pensamento do pai
encontramos uma mentalidade fatalista, que entendia o capitalismo como a única e
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
77
definitiva saída para a resolução dos problemas da humanidade. Dessa forma, a educação
teria a função apenas de transmitir os espólios dos vencedores e não permitir a
transformação do homem. Mészaros expõe com clareza essa perspectiva da educação:
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu
– no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o
pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do
capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que
legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma
alternativa à gestação da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é,
pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma
dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente
impostas (MÉSZAROS, 2008, p. 35).
Era precisamente contra essa ordem instituída pela ótica capitalista que o professor
Enio se insurgia através de sua prática pedagógica, que buscava a construção do
conhecimento por meio da análise da realidade concreta que circundava seus alunos. Talvez
seja esse o motivo de sua prática educacional ser tão contestada pela sociedade matogrossense, uma vez que esta, em virtude de sua tradição coronelista e mandonista,
certamente acreditava numa educação positivista que levasse à conservação dos valores
tradicionais da ordem vigente naquele contexto de autoritarismo.
Pelo que pudemos apurar de seu comportamento como docente, percebemos que
Enio transformava a própria realidade e suas contradições em matéria para suas reflexões
sobre o processo histórico, recorrendo, portanto, a temas como a reforma agrária, o
comunismo e possibilidade de uma revolução no país. Isso nos leva a crer que muito
provavelmente a inspiração para sua práxis pedagógica vinha da orientação do partido
comunista, sintetizada por Favoreto:
Em síntese, o PCB, em seu período inaugural, não atribuiu nenhuma
tarefa exclusiva à escola, mas se designava a ele mesmo poderes
superiores, tanto na divulgação da idéia comunista, na doutrinação das
massas como na condução do processo histórico. Com essa concepção de
educação partidária, apesar de não encorajar seus militantes ao debate
sobre o ensino, diante da demanda escolar, não deixou de defender a
escola como direito, como uma possibilidade de formação adequada ao
desenvolvimento da industrialização e da democracia brasileira. No
conjunto do movimento reformador pedagógico, os militantes comunistas
incorporaram a concepção de educação laica, científica e ativa e,
semelhantemente aos escolanovistas, criticaram o método repetitivo e a
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
78
cultura literária, livresca e religiosa que acreditavam ser predominante no
período (FAVORETO, 2008, p. 220).
Como afirma a autora, o PCB não possuía uma política educacional clara, mas
fornecia algumas diretrizes para se pensar a educação como um fator de transformação
social. A documentação por nós analisada demonstra que a concepção defendida por Enio
vai ao encontro da perspectiva do partido, uma vez que sempre fugia das aulas tradicionais
e repetitivas, instigando seus alunos ao debate sobre os problemas contemporâneos que
afetavam não só o país, mas também a conjuntura internacional. Além disso, buscava
afirmar uma educação laica capaz de permitir a transformação social e promover a
igualdade entre os indivíduos. Muito provavelmente foi sua capacidade de orador hábil no
convencimento de estudantes e operários que chamou a atenção dos militares e dos
coronéis de Aquidauana, mesmo antes da deflagração do golpe. Isso se torna claro quando
observamos que Enio foi preso no dia 04 de abril de 1964, quatro dias após o golpe,
juntamente como outros militantes que o ajudavam na organização/sindicalização dos
trabalhadores da região. O que mais nos impressionou na leitura do processo foi o fato de
ele, ao contrário de outros militantes, não ter capitulado e ter se mantido firme em sua
condição de militante comunista e defensor da revolução.
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
79
A influência do pensamento do PCB era bastante forte na leitura de mundo e de
educação que o professor possuía. Isso fica esclarecido quando de seu interrogatório, em
que foi perguntado se discutia com as crianças assuntos como a reforma agrária e as
reformas de base, e ele respondeu sim, afirmando que isso estava totalmente dentro do
programa da disciplina de História. Enio também demonstrava ser bastante hábil para
escapar de situações que pudessem incriminá-lo perante os militares. Exemplo disso
ocorreu quando os interrogadores lhe perguntaram sobre sua prática na sala de aula.
Questionado se admitia que não deveria tratar de assuntos que ainda estavam em discussão
no Congresso, ele admitiu que sim, mas justificou que fazia isso com o objetivo de atualizar
os conhecimentos históricos a serem repassados a seus alunos. E ainda argumentou que
tratava desses temas para desviar a atenção de leituras prejudiciais a formação moral, “tais
como: Gibi, Meia Noite, X-9 etc.” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42).
Em nenhum momento o professor negou suas ações perante os militares; quando lhe
perguntaram se determinava que seus alunos fizessem trabalhos escritos e debates sobre a
reforma agrária, respondeu que sim, fazia isso desde o ano de 1963 para os alunos da
primeira e da segunda série ginasial e que não via nenhum problema em tais atos, pois eram
problemas pertinentes à conjuntura brasileira e, como professor de história, ele teria de
abordá-lo e o fazia de forma imparcial, demonstrando certo humor, mesmo numa situação
de grande pressão.
O interrogatório também objetivava investigar as práticas de leitura de Enio, que
revelou ser um leitor de obras sobre o comunismo e a conjuntura da União Soviética. Sobre
isso há um detalhe interessante que revela que, apesar de viver numa cidade distante dos
grandes centros, nos quais tanto a ditadura quanto o comunismo tiveram maior repercussão,
ele demonstrava acompanhar os debates internos do PCB. Isso se torna claro quanto
observamos que Enio era leitor da revista Novos Rumos e, provavelmente por este motivo,
dava declarações muito parecidas com as do comitê central do PCB no que se referia aos
rumos de uma possível revolução socialista no Brasil, como esta, retirada de seu
depoimento dados aos militares em abril de 1964:
embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana
80
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42)
Como chamei a atenção anteriormente, Enio se mostrava bastante convicto sobre
sua condição comunista. Em seu depoimento, afirmou que passou a trabalhar para o partido
comunista em 1953 e que naquele período, juntamente com outros companheiros, liderava
o comitê dirigente de Aquidauana. Ao final de seu depoimento, quando inquirido se possuía
provas de sua inocência, respondeu que possuía apenas sua palavra como prova e o desejo
de melhorar as condições de vida do povo brasileiro.
A injustiça passeia pelas ruas com passos
seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez
mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos
dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz
alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
Bertolt Brecht, Elogio da dialética
capítulo II
a modernização conservadora e o
combate à utopia comunista no
centro-oeste brasileiro
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
82
N
o transcurso do século XX o Brasil passou por uma série de transformações
em sua organização política, econômica e sociocultural. A disputa intraoligárquica que foi
nomeada como Revolução de 30 reconfigurou as disputas de poder das camadas abastadas
da sociedade brasileira, assim como os governos que se seguiram foram responsáveis pelo
incremento do processo de industrialização de alguns dos principais centros urbanos,
mudando-lhes a feição com o crescimento de grupos como o proletariado e as classes
médias. A conjuntura internacional na qual estava inserido o Brasil foi marcada pelo
avanço do socialismo a partir da revolução bolchevique, vitoriosa em 1917, pelos violentos
conflitos transnacionais de 1914 até 1945 e pelas disputas havidas em um mundo
polarizado a partir de 1947 (HOBSBAWM, 1995, pp. 29-60).
Naquele período, as transmissões radiofônicas eram a principal forma de
propagação de notícias para as camadas abastadas, médias e populares, sendo utilizadas de
maneira eficiente por governantes como Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954). Para
além, a imprensa escrita, sobretudo os jornais diários, fossem eles matutinos, vespertinos ou
noturnos, servia para abastecer de notícias e versões diversas as populações urbanas.
Periódicos semanais ou mensais também circulavam, com maior ou menor vendagem, e
serviam aos interesses vários em disputa naquele momento.
Desde o século XIX os periódicos, sobretudo na capital do país, serviam para
expressar as rixas ideológicas dos distintos grupos políticos que disputavam espaço nos
cenários regional e nacional. É importante ressaltar que o principal foco de interesse dos
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
83
políticos de maior projeção até o final dos anos 1920 estava no campo regional, aquele de
dominação de um estado. Após a ascensão de Vargas ao poder, com o objetivo de subtrair
esses poderes dispersos e concentrá-los na condução da república, os debates se dariam
sobretudo no Rio de Janeiro.
As propostas econômicas e políticas de Vargas levariam à formação da indústria de
base no país, minando parte da expressão política das antigas oligarquias, das quais ele
mesmo fazia parte. Isso fez com que em outros espaços, como São Paulo, novos grupos
econômico-políticos emergissem, como o dos industriais. A ideologia modernizadora se
fazia presente juntamente a uma veemente negação das propostas transformadoras oriundas
das experiências socialistas na Europa. O declínio do fascismo, caro a Vargas, seria um dos
elementos justificadores para sua saída do poder. Entretanto, o que vimos não foi a
substituição ou a superação daquela ideologia, mas apenas uma disputa no seio das
camadas abastadas pela tomada do poder.
Assim, o que ocorre na passagem da primeira para a segunda metade do século XX
no Brasil – notadamente a partir de 1956, sob o governo de Juscelino Kubitschek – é um
incremento da modernização, aqui instalada com sua face conservadora, ou seja, ancorada
no capital internacional, na acumulação de capitais por parte das camadas abastadas, seja na
forma de bens móveis ou imóveis, excluindo, por sua própria natureza, as classes
subalternizadas do país. Isso pôde ser observado nos centros urbanos industrializados,
objeto de estudo de grande número de intelectuais, e também, mas menos explorado, no
campo. A ideologia e as ações modernizadoras e conservadoras foram as responsáveis, no
centro-oeste do país, por abrir suas fronteiras ao capital estrangeiro a partir da concessão de
terras, o que, juntamente com o capital nacional, explorou a mão de obra pauperizada pelo
modelo de desenvolvimento excludente adotado.
Se nos importa conhecer os modos pelos quais as camadas abastadas dessa
sociedade subalternizaram – e ainda o fazem – as camadas populares, é preciso também
compreender as diversas tentativas de resistência a esse processo, tenham elas obtido maior
ou menor sucesso, ou ainda sucesso imediato ou a longo prazo, nos distintos setores da
sociedade, ou seja, na organização econômica ou educacional dos agentes envolvidos, ou
do país em sua totalidade.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
84
Dessa forma, buscamos compreender o tensionamento havido entre os grupos
conservadores e progressistas, a exemplo dos capitalistas estrangeiros e nacionais
estabelecidos no centro-oeste, em especial no estado de Mato Grosso, e os militantes
ligados ao Partido Comunista Brasileiro que atuavam no estado, principalmente no sul, foco
de nossa pesquisa. Esses grupos travaram embates ideológicos em torno do modelo de
desenvolvimento a ser adotado no país, influenciando não apenas o campo econômico, mas
também o educacional, considerando ambos como políticos.
O embate entre esses sujeitos antagônicos se estabeleceu tanto em nível macro
quanto micro. No caso do Mato Grosso, ele se tornou mais claro com o advento da Marcha
para o Oeste, movimento geopolítico que visava aumentar o controle da porção oeste do
território brasileiro e que certamente necessitaria da aliança costumeira entre o Estado e o
capital nacional e estrangeiro. Tal processo foi analisado pela historiografia produzida no
sul do Mato Grosso como um movimento pela ocupação e expansão territorial do interior
do Brasil. Marisa Bittar (2009), na obra Mato Grosso do Sul, a construção de um estado:
poder político e elites dirigentes sul-mato-grossenses, esclarece que a Marcha para o Oeste
fundamentava-se numa geopolítica que floresceu um pouco antes do início da primeira
guerra, que pensava os Estados como organismos em luta pelo “espaço vital”, que, no caso
brasileiro, se voltou para o interior país.
Suzana Arakaki (2003) também tratou desse tema na obra Dourados: memórias e
representações de 1964, demonstrando que a concepção adotada por Vargas entendia o
centro-oeste como um espaço estratégico para seu projeto de expansão interna, que visava a
ocupação de áreas estratégicas que impulsionariam o desenvolvimento econômico do país.
O historiador Alcir Lenharo (1985), na obra Colonização e trabalho no Brasil:
amazônia, nordeste e centro-oeste considera que a ocupação dos denominados “vazios
demográficos” pelo Estado visava o alargamento do mercado interno brasileiro por meio da
ampliação e diversificação da produção e do agrupamento dos núcleos econômicos,
garantindo assim a unidade nacional.
Os trabalhos destacados acima demonstram que a partir da Marcha para o Oeste
inicia-se no Brasil uma tentativa de modernização conduzida pelo Estado, denominada por
Arakaki e Bittar, com quem dialogaremos no decorrer do capítulo, de modernização
conservadora, categoria de análise já apresentada na introdução deste trabalho.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
85
A ideia de uma modernização conservadora que girasse em torno da política de
concessão de terras no interior do país, com vistas ao incremento da produção interna e à
expansão do capitalismo, idealizada pelo governo Vargas e aprimorada durante o governo
JK, foi fundamental para que o poder central combatesse os poderes regionais que o
ameaçavam e abriria espaço para uma tradição autoritária que se consolidaria na ditadura
militar. O pano de fundo da ideologia política que perpassou esses três períodos históricos,
distintos entre si em diversos aspectos, era o controle da distribuição dos bens materiais, ou
seja, em que se pesem suas diferenças, ambos buscaram favorecer o desenvolvimento
capitalista e subalternizar as classes mais pobres da sociedade brasileira. Outro ponto
coincidente entre esses governos era o anticomunismo, que se tornou uma preocupação a
partir do quarto período de governo de Vargas, perpassou o governo de JK e tornou-se a
grande preocupação durante o regime militar.
A IMPRENSA E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO SUL DE MATO GROSSO
A historiadora Marisa Bittar, ao discutir o divisionismo no Estado do Mato Grosso,
nos apresenta um histórico da região centro-oeste como um espaço estratégico, em função
de sua condição fronteiriça e suas potencialidades para os empreendimentos agrícolas e
pecuários, o que motivaria múltiplos conflitos entre o poder central e os interesses regionais
desde o império. Bittar esclarece que o regionalismo presente no Brasil desde o século XIX
era um dos problemas que seriam enfrentados pelo poder central desde 1892 no Mato
Grosso, que mesmo não propondo a divisão do estado naquele momento, manteve a
animosidade entre os grupos que habitavam o norte, o centro e o sul do estado. Tal
regionalismo acabou por desencadear um movimento separatista representado pela Liga
Sul-Mato-Grossense, que em 1934 enviou ao governo central uma petição propondo a
separação do estado, rejeitada pela federação. As tentativas separatistas continuaram ao
longo dos anos até sua consolidação em 1977, mas não vamos aqui detalhar tal processo;
interessa-nos apenas demonstrar como o governo Vargas contrapôs-se a esse processo
durante seu governo.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
86
Segundo Bittar (2009), a grande preocupação do Estado Novo era adotar medidas
centralizadoras para construção de uma sociedade nacional. Dessa forma, afirma ela: “As
ações do Estado Novo em Mato Grosso inseriram-se inteiramente no tripé políticoideológico no qual se assentava a ditadura de Vargas: autoritarismo, centralização e
intervencionismo” (BITTAR, 2009, p. 249).
A preocupação nacionalista de Getúlio Vargas era uma estratégia para combater os
poderes regionais representados pela oligarquia remanescente da nova república, que se
mostrava descontente com a nova política centralizadora, realizada por meio de
interventores nomeados pelo Estado. A figura do interventor, ligada diretamente ao
governo federal, esvaziava o poder dos líderes regionais ligados ao Estado e alterava as
relações nas diversas regiões brasileiras. Vargas via na intervenção pelo Estado a única
forma de empreender uma modernização, derrubar as barreiras regionais e expandir a
produção para que o país alcançasse seu verdadeiro desenvolvimento. Foi a partir dessa
ideia que formulou, entre os anos 1930 e 1940, a teoria do “vazio demográfico”, que
apontava para a necessidade de ocupar as áreas “inabitadas” das regiões norte e centrooeste, consolidada na campanha da Marcha para o Oeste. Segundo Bittar:
A campanha “Marcha para o Oeste” iniciou-se nesse quadro sociopolítico,
com o estabelecimento das colônias agrícolas nacionais, promovidas pelo
governo federal em colaboração com os estaduais. Para tanto, Vargas
criou, em 1943, a Fundação Brasil Central, cujo objetivo era desbravar e
colonizar áreas no Norte e Centro Oeste (BITTAR, 2009, p. 256).
Como é possível observar, a Marcha para o Oeste buscava promover uma
interiorização das atividades produtivas que se encontravam concentradas principalmente
no litoral brasileiro desde a colonização, buscando assim um incremento do capitalismo
pelo viés conservador do nacional-desenvolvimentismo. O Brasil do interior seria uma
prova inconteste da proposta de Vargas de estabelecer um novo bandeirantismo, que
poderia garantir a integração e a modernização do Brasil.
A integração do território era para Vargas uma espécie de antídoto para o
regionalismo que propunha movimentos separatistas que poderiam esfacelar a unidade
nacional, tão cara a ele. Bittar aponta que teria sido esse sentimento que o levou a criar os
territórios federais no sul do Mato Grosso, como demonstra:
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
87
Quanto ao Mato Grosso, foi sob a lógica da interiorização nacional e,
portanto, da consolidação do capitalismo pela via autoritária, que Vargas
criou, em 1943, o Território Federal de Ponta Porã e a Colônia Agrícola
de Dourados, no sul do estado. Interessante observar que o Estado Novo
voltou sua atenção para essa parte de Mato Grosso, pretendendo povoá-la
e integrá-la ao desenvolvimento capitalista sem, contudo, atender a
demanda separatista que havia chegado ás mãos dos constituintes de 1934.
Vingança pela adesão do sul de Mato Grosso a São Paulo em 1932?
(BITTAR, 2009, p. 256).
Bittar esclarece que a criação dos territórios frustrou os interesses da Liga Sul-MatoGrossense, uma vez que excluía a cidade de Campo Grande e deixava claro seu pouco
interesse em dividir o estado nos moldes preconizados pela petição de 1932. Como aponta a
autora, isso seria uma incoerência de Vargas, considerando-se sua política de integração
nacional. No entanto, se a Marcha para o Oeste não atendeu de fato aos interesses
separatistas, serviu para distinguir ainda mais o sul do restante do estado, acendendo assim
a chama do separatismo.
Mas o que nos interessa nos argumentos de Bittar (2009) é que a expansão
capitalista nas terras sul-mato-grossenses se deu pela intervenção do Estado, que impunha a
ideia de unidade federativa sobre os interesses locais e regionais. Esse modelo de
desenvolvimento não foi muito diferente durante o período militar, pelo menos no que se
refere à povoação de regiões brasileiras. Segundo Bittar:
No que tange ao tipo de desenvolvimento preconizado pelos arautos da
“revolução de 1964”, a consolidação do capitalismo como sistema capaz
de barrar as “investidas comunistas” no Brasil era incompatível com a
existência de largas áreas vazias e despovoadas. A ocupação territorial era
fundamental, tanto para atender objetivos de ordem interna quanto
externa, uma vez que ambos os objetivos se conjugavam em prol da
“vitória capitalista” sobre o mundo comunista. Assim, uma das estratégias
internas para o Brasil deveria ser a ocupação, a tempo, dos espaços vazios,
entre os quais se incluía o Centro-Oeste (BITTAR, 2009, 273).
As estratégias de ocupação territorial eram alicerçadas nas teorias de Golbery do
Couto e Silva e se baseavam numa dupla preocupação: integrar o ecumênico território
brasileiro e permitir sua defesa de aventuras expansionistas que poderiam surgir. Segundo
Bittar (2009), Golbery considerava Campo Grande e o sul de Mato Grosso, assim como
88
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
Goiânia e o sul de Goiás, regiões fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo
brasileiro. Talvez por esse motivo tais regiões tenham sido sempre foco de atenção do
Estado.
Durante o regime militar, a região centro-oeste continuou sendo uma área que
merecia grande atenção no projeto de desenvolvimento elaborado a partir das estratégias de
segurança concebidas no interior da Escola Superior de Guerra (ESG), principalmente por
Golbery,
que,
juntamente
com
outros
intelectuais,
desenvolveu
diversos
levantamentos e estudos de viabilidade econômica, sobretudo na área de transporte, para
integrar essas áreas ao restante do país.
A ocupação militar, com a criação e/ou a transferência de comandos do exército
para a região, juntamente com teoria de integração nacional e anticomunista, foram de
suma importância para que os militares conquistassem o apoio das elites locais, sobretudo
no apoio ao golpe de 1964. Segundo Bittar, “a destituição do presidente João Goulart, em
1964, obtivera não apenas anuência do governo mato-grossense, mas das duas elites que
simbolizavam a rivalidade norte-sul” (2009, p. 280).
Bittar (2009) afirma que os grupos de nortistas e sulistas, que divergiram desde a
década de 1930, se uniram em 1964 para apoiar a “revolução”, seduzidos pelo
desenvolvimentismo que daria visibilidade ao Mato Grosso e a seus problemas internos, o
que poderia favorecer, finalmente, a divisão do estado. Sobre isso afirmava ela:
Os governos Militares, saudados pelas elites políticas e econômicas matogrossenses, estavam bem apretrechados de estudos geopolíticos sobre o
centro-oeste. A lógica do “progresso” e do “desenvolvimentismo”, como
mencionamos, vinculada intimamente ao conceito de segurança nacional,
não descuidaria dos destinos de Mato Grosso. A implementação do
modelo capitalista preconizado pelos autores de 31 de março de 1964
poderia incluir, como de fato incluiu, a divisão de Mato Grosso de modo a
melhor ocupar o Centro-Oeste e integrá-lo “ao Brasil litorâneo e
desenvolvido”, cabendo a um dos três principais assessores de Castelo
Branco a decisão de criar Mato Grosso do Sul (BITTAR, 2009, p. 283).
Outro ponto importante da análise de Bittar é a demonstração de que, quando
finalmente a política econômica desenvolvimentista e integracionista regional superou o
divisionismo, aconteceu a divisão do estado do Mato Grosso, criado por meio de uma lei
complementar assinada pelo governo Geisel.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
89
A historiadora Suzana Arakaki também estudou o processo de modernização do sul
do Mato Grosso, mais precisamente na região da cidade de Dourados, e também defende a
tese uma modernização conservadora implementada desde a era Vargas e consolidada na
ditadura militar. De acordo ela:
Após assumir o poder, Getúlio Vargas idealizou o fortalecimento do
Estado como forma de combater as oligarquias regionais. Para tanto,
nomeou interventores nos Estados vinculados diretamente ao aparelho
burocrático, neutralizando o poder das elites estaduais (ARAKAKI,
2003).
A autora afirma que a discussão das teorias de segurança e geopolítica encontrou
grande acolhimento nos meios militares e constituiu um dos elementos mais importantes
para se pensar a governança das regiões brasileiras. Dentre os ideólogos da geopolítica das
fronteiras destacam-se os estudos de Everardo Backheuser, que serviram de fundamento
para a criação dos territórios federais durante a ditadura. De acordo com sua teoria:
A fronteira é a epiderme do organismo estatal, captadora das influências e
pressões forâneas e, como tal, deve estar subordinada ao poder central e
não às autoridades regionais que manifestam menor sensibilidade para
esses problemas. (...) Afigura-se-nos que Backheuser, ao formular tais
teorias, estivesse olhando diretamente o estado de Mato Grosso e seu
estreito relacionamento com a Companhia Matte Larangeira, onde
interesses público e privado se imiscuíam sem pudores, desde os tempos
do império (ARAKAKI, 2003, p. 21-22).
A criação do território federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola de Dourados era
uma iniciativa do governo Vargas que se inseria nas teorias de Backheuser da necessidade
de proteção da fronteira. Arakaki argumenta que, além da questão do fortalecimento da
divisa por meio de sua ocupação, a criação dos territórios federais traria ainda um alento à
população do sul do Mato Grosso, que esperava finalmente ver sua economia se
desenvolver através dos recursos federais que seriam injetados na região. No entanto,
apesar da euforia inicial sentida pelos atos varguistas no sul do Mato Grosso, a alegria
duraria pouco, pois o território de Ponta Porã teria vida curta, sendo criado em 1943 e
extinto em 1946.
Já a Colônia Agrícola de Dourados teve uma longevidade maior e tornou-se a
menina dos olhos do governo Vargas, que divulgava a experiência ali implementada como
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
90
modelo de desenvolvimento para outras áreas interioranas do país. Se não podemos afirmar
que o projeto de expansão territorial da Marcha para o Oeste foi um sucesso em todo o
território brasileiro, haja vista a curta duração do território de Ponta Porã, no caso de
Dourados a experiência se mostrou frutífera, pois, como destaca Arakaki:
A partir da implantação do projeto colonizador de Vargas e da criação da
Colônia Nacional, verifica-se uma corrida pela terra na região de
Dourados. De 13.164 habitantes, a população rural passa para 68.487 em
apenas duas décadas, resultado da implantação da CAND, que passou a
receber migrantes e imigrantes interessados na exploração agrícola da
região. Gaúchos, nordestinos, mineiros, paulistas, catarinenses e
paranaenses, além de imigrantes japoneses somaram-se à população já
existente na região (ARAKAKI, 2003, p. 27).
Suzana Arakaki chama a atenção para o fato de que, embora as autoridades
estaduais tivessem usado diversos artifícios para adiar a implantação da colônia, como, por
exemplo, retardar a concessão de terras para a criação da mesma, Dourados alcançou
destaque nacional e foi prestigiada pela presença de vários presidentes, como Getúlio
Vargas em 1941 e 1943, Juscelino Kubitschek em 1957, Jânio Quadros em 1960, João
Goulart em 1963, Ernesto Geisel em 1976 e João Batista de Figueiredo em 1982. A partir
da análise apresentada por Arakaki em relação à modernização iniciada com a implantação
dos territórios federais pelo Estado varguista e principalmente da Colônia Agrícola de
Dourados, compreendemos que o sul do Mato Grosso constituía uma região estratégica
para a proteção da fronteira nacional e a expansão do capitalismo no período que vai da era
Vargas à ditadura militar. Vale lembrar que a preocupação com a região oeste do Brasil se
inicia durante o período colonial, com a iminência das invasões espanholas através dos
países fronteiriços, como Paraguai e Bolívia. A questão tornou-se mais latente com a guerra
na tríplice fronteira, como destaca Arakaki:
De fato, foi a partir da guerra que a atenção do poder central voltou-se
para a efetiva ocupação das fronteiras, notadamente a oeste, tendo com
isso o estado de Mato Grosso passado a merecer atenção especial, face à
sua localização privilegiada na Bacia do Prata. O transporte fluvial, via
Rio Paraguai, constituía-se no meio mais eficiente de acesso ao estado e,
quando por ocasião da guerra esse acesso foi barrado pelas tropas
paraguaias, o exército brasileiro viu-se em dificuldades para socorrer a
fronteira invadida. Sem outro meio de movimentar-se, o exército
brasileiro demorou um ano para alcançar o estado de Mato Grosso após a
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
91
notícia da invasão paraguaia ao território brasileiro, por via terrestre
(ARAKAKI, 2003, p. 36).
Pode-se afirmar que a guerra foi um fator preponderante para a preparação e a
consolidação do militarismo no Brasil, pois foi em decorrência dela que o frágil exército
brasileiro se tornou organizado e capaz de conter as ameaças externas e internas, sobretudo
nas divisas. Assim, podemos afirmar que nos estados fronteiriços com os países vizinhos o
militarismo tornou-se uma forte presença, o que certamente facilitou a implantação do
regime ditatorial nessas regiões, como foi o caso de Dourados e Aquidauana.
Arakaki (2003) aponta para o fato de que a região sul do estado de Mato Grosso
desde a Marcha para o Oeste logrou atenção do poder central como uma área integrada ao
sistema capitalista nos anos de 1940; posteriormente seu prestígio se manteve como área de
segurança nacional, conforme os parâmetros das teorias geopolíticas formuladas pela ESG.
De acordo com ela, a implantação da Colônia Agrícola em Dourados permitiu, não só na
cidade, mas também em seu entorno, um aumento da população e um incremento da
economia, abrindo possibilidades para o surgimento de lideranças políticas ligadas aos
partidos que desempenhariam funções importantes na conjuntura local. Durante a década de
1960 tais lideranças terão um papel importante na disputa entre os dois projetos distintos
presentes naquele contexto, a saber: o defendido pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)
e o representado pela União Democrática Nacional (UDN). As querelas políticas entre os
dois partidos se tornaram ainda mais intensas no período de João Goulart e nos momentos
que antecederam o golpe. Historicizando tal processo, Arakaki afirma que:
O projeto colonizador implementado com relativo sucesso por Getúlio
Vargas, criador do Partido Trabalhista Brasileiro, fez crescer
politicamente o PTB em Dourados. Na década de 60, o partido viveu seu
apogeu político com a eleição de Vivaldi de Oliveira para a prefeitura
local em 1959. Nas eleições seguintes, em 1963, Oliveira fez seu sucessor,
outro petebista, Napoleão Francisco de Souza, um ex-pracinha mineiro
radicado em Dourados. Vivaldi de Oliveira, no mesmo período elegeu-se
deputado estadual (Arakaki, 2003, p. 50).
A partir dos dados apresentados por Arakaki, percebe-se que a região sul do Mato
Grosso tornava-se um solo fértil não só para a agricultura, mas também para o
fortalecimento político do PTB e de João Goulart, que seria, em breve, seu principal
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
92
expoente. A partir de 1960 o PTB se fortaleceu na região, tendo um presidente da república
e um prefeito, numa eleição em que contaram com um importante apoio do PSD. A
ascensão do PTB em Dourados, somada à visita de Jango à cidade, em setembro de 1963,
para entregar os títulos de propriedade aos colonos da CAND, colocou em alerta os
representes da classe ruralista aglutinados na UDN, que se mostravam bastante
preocupados com as invasões de terra ocorridas, sobretudo a partir da implementação da
CAND, uma vez nem todos os migrantes que para ali se deslocaram conseguiram a terra
prometida. A questão da terra pode ser considerada o estopim da reação antijanguista em
Dourados, e – poderíamos acrescentar – em todo o sul do Mato Grosso. Além da questão
agrária, João Goulart propôs ainda uma reforma urbana que aterrorizou a elite brasileira e
sul-mato-grossense, despertando assim um anticomunismo que seria um dos elementos
importantes para sua deposição. Arakaki assim definia o sentimento da população naquele
momento:
Tomar propriedade era coisa de governo comunista, como já se difundira
ideologicamente entre os habitantes locais. No imaginário destes, o
comunismo era o mais nefasto dos sistemas de governo, visto que, além
da expropriação da propriedade privada, também proibia o culto religioso
católico. Tais realidades tinham acontecido à Rússia e à Cuba. O ano de
64 inicia-se com expectativas negativas na região de Dourados. A
imprensa escrita, que há muito vinha combatendo as Reformas de Base de
Jango, desta vez tinha motivos para protestar mais veementemente
(Arakaki, 2003, p. 54).
Desde o início de seu governo, Jango prometia uma reforma agrária que
desapropriaria as terras improdutivas e as distribuiria às famílias que delas necessitassem,
dando prioridade para aquelas que viviam na região das terras desapropriadas. O desacordo
entre executivo e legislativo em torno da melhor forma de ser promover a reforma agrária
fez com o projeto fosse combatido pelo seu próprio partido, que, em função das disputas no
congresso, desfez sua aliança histórica com PSD, que posteriormente se aliaria com a UDN.
Jango, vendo a impossibilidade de conseguir a reforma por meio do congresso, resolve
realizá-la por meio do Decreto Presidencial n. 53.700, de 13 de março de 1964, como
destacou Arakaki:
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
93
O decreto, composto de dezessete artigos, previa a desapropriação de
áreas rurais que não atendessem à função social da propriedade, ou seja,
terras improdutivas que não estivessem sendo devidamente exploradas por
seus donos. Tais terras, que preferencialmente deveriam estar localizadas
próximas às rodovias e ferrovias federais, e após a desapropriação seriam
divididas em lotes de até cem hectares e vendidas ou locadas. As famílias
mais numerosas de camponeses que já estivessem de alguma forma
estabelecidos na região, teriam a preferência na concessão dos lotes. A
repercussão desse decreto em Dourados foi imediata. O deputado federal
pelo PSD, Weimar Torres, já na oposição após a aliança desfeita com o
PTB, acusou Jango de espalhar pânico no meio rural e incentivar o
comunismo. (Arakaki, 2003, p.55)
Inicia-se, assim, uma cruzada antijanguista e anticomunista na região sul do Mato
Grosso, motivada sobretudo pela disputa da terra, que será de fundamental importância para
se compreender a repressão militar a qualquer atividade que indicasse a proximidade com
João Goulart ou mesmo com o comunismo. Influenciadas pela IBAD, foram criadas
diversas associações pelo Brasil com o objetivo de conter o que denominavam de onda
comunista.
Como destaca Arakaki, o movimento Ação Democrática Mato-grossense
(ADEMAT), sediado em Campo Grande, teve como precursor a família Coelho –
latifundiários udenistas, detentores de grandes extensões de terra no estado. A ADEMAT
foi a responsável pela perseguição e delação de seus adversários políticos, principalmente
os ligados ao PTB, instaurando um verdadeiro terror alimentado pela paranoia
anticomunista dos militares. Arakaki (2003), nos depoimentos colhidos na ocasião da
realização de seu projeto Memórias de pioneiros e ressonâncias do golpe de 64 na região
de Dourados, afirma que “os comunistas, segundo depoimentos de moradores antigos da
cidade, existiam apenas na imaginação das pessoas”.
A historiadora atesta que as acusações aos comunistas na maioria das vezes não se
baseavam em fatos concretos, mas sim na assimilação do discurso de oposição ao PTB e ao
presidente João Goulart.
Como nas demais cidades do Estado, logo após o golpe, os udenistas
passaram a agir, prendendo e delatando pessoas, principalmente
adversários políticos. A repressão consistia na busca e prisão dos
suspeitos de atividades subversivas e, principalmente, de ativistas
comunistas, assim entendidos os partidários do PTB e por conseqüência,
dos Grupos de Onze. Mas segundo os entrevistados do projeto
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
94
Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de Dourados, não havia
comunistas na região. Algumas pessoas eram identificadas como tal, mas
na verdade, tratavam-se apenas de simpatizantes (Arakaki, 2003, p. 60).
Arakaki demonstra em seu trabalho que a UDN aproveitou-se da situação para se
unir aos demais partidos de oposição a Jango e tachar todos os simpatizantes do presidente
de comunistas.
Na verdade, naquele momento, qualquer motivo serviria ao propósito dos
inimigos políticos dos petebistas. A UDN encampou o discurso de defesa
da democracia, proposto pelos “revolucionários” e saiu à cata de
subversivos. Para essa busca, aglutinaram-se outras forças políticas
contrárias ao PTB, partido de Jango e Vargas. O PSD, aliado de outrora,
agora inimigo na luta contra a subversão, contra o “comunismo”; a UDN
por sua vez, lutou ferozmente contra os petebistas (Arakaki, 2003, p. 64).
Tal ideia nos parece interessante, pois em Aquidauana as acusações aos comunistas
se deram da mesma forma, na maioria das vezes sem provas concretas, levantadas a partir
de denúncias de adversários políticos ou mesmo de ruralistas preocupados com as disputas
de terra, como ocorreu no caso de Enio Cabral, processado sem provas contundentes por
crime contra a segurança nacional e atos comunistas. Tal situação refletiria não só na
historiografia, mas também na imprensa escrita, como no caso da revista Brasil-Oeste, que
discutiremos a seguir.
A REVISTA BRASIL-OESTE
A defesa de uma modernização conservadora e o combate ao anticomunismo
aparecem não só na historiografia, mas também na imprensa nacional e regional, como é o
caso da revista Brasil-Oeste, produzida em São Paulo por um grupo de intelectuais
paulistas que, tendo vivido em Mato Grosso por algum tempo, estava ligado à elite do
estado3. Publicada entre os anos de 1956 e 1967, circulou em diversos estados do país. A
Brasil-Oeste consistiu-se num importante veículo de divulgação das propostas
3
A coleção completa da revista é composta por 123 edições e se encontra disponível para consulta na
Biblioteca do campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A referida coleção
encontra-se em bom estado de conservação e foi encadernada em capa dura, de acordo com o agrupamento
das edições mensais organizadas por ano.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
95
modernizadoras dos governos autoritários no Brasil e num espaço de denúncia das elites
mato-grossenses em relação ao descaso com que o poder central tratava os problemas da
região. O caráter de propagadora dos interesses daquele Estado pode ser observado nos
próprios dados fornecidos pela revista que, em seu editorial, trazia a informação de que se
declara órgão de utilidade pública pela câmara de Mato Grosso, por meio da Lei n. 1.713,
de dezembro de 1961. A revista era editada em São Paulo pelo jornalista Fausto Vieira de
Campos e pelo diretor-proprietário Alberto Leme, como se visualiza em sua primeira
edição:
(Brasil-Oeste, 1956, p.02)
A revista passaria, posteriormente, por uma mudança na diretoria, e Alberto Leme
seria substituído por Fausto Moraes Godoy de Campos, filho de Fausto Vieira de Campos,
também jornalista, que atuaria no periódico até o momento de seu fechamento, em 1967.
Apesar de ser editada em São Paulo, a revista contava com diversas sucursais nas cidades
de Mato Grosso.
Os articulistas da Brasil-Oeste buscavam, sobretudo, apresentar em seus editoriais
um discurso de caráter duplo: por um lado demonstravam as potencialidades econômicas do
Mato Grosso e, por outro, cobravam do governo central mais investimentos no campo da
infraestrutura estadual. No primeiro editorial, publicado na seção Notas e Fatos, busca-se
esclarecer os leitores sobre quais os objetivos da revista:
Nossa revista tem uma finalidade precípua: tornar mais conhecida e
melhor compreendida a vasta região do Centro-Oeste brasileiro,
compreendida pelos Estados de Mato Grosso e Goiás.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
96
De modo geral, entretanto, merecerão acolhimento, em nossas colunas,
todos os fatos relacionados com os Estados que confinam com Mato
Grosso, dada a identidade de interêsse que existe entre eles (Brasil-Oeste,
1956, p. 4).
Na sequência, tentam ainda se desvincular de qualquer grupo político ou econômico
e demonstrar imparcialidade na divulgação das matérias que faziam apologia aos estados de
Mato Grosso e Goiás e à política do governo, o que era impossível pelo próprio caráter
celebrativo das informações ali veiculadas.
Era possível perceber nas páginas da revista a preocupação com a defesa da
proposta estadonovista de ocupação do centro-oeste e da política desenvolvimentista de
Juscelino Kubitscheck. Isso fica claro logo na matéria de abertura da edição nº 1, de janeiro
de 1956, que trata da transferência da capital federal para o interior do país, como é
possível observar no trecho a seguir:
MUDANÇA DA CAPITAL DO PAÍS
Cogita-se da construção de prédios, no Rio de Janeiro, para nova sede do
Senado e da Câmara Federal. Essa iniciativa coincide com a notícia da
formação de uma comissão de planejamento da futura Capital do país no
Planalto Central de Goiás. A contradição entre os dois fatos, entretanto,
está gerando a impressão de que não se intenta um esforço sério para
efetivar a mudança da Capital do país. A comissão passaria, dessa forma,
a constituir mero agrupamento burocrático, de vez que a preocupação
maior daqueles que poderiam apressar o cumprimento do preceito
constitucional que prevê a transferência da sede do Govêrno é mesmo a de
continuar à beira da praia.
É lamentável que se corporifiquem medidas como as que se aventam com
relação aos novos prédios. Os interêsses da nação aconselham que se
poupem gastos dessa natureza, se é realmente cogitação honesta a
transferência da Capital da República para o planalto goiano, com a maior
brevidade possível (Brasil-Oeste, 1956, p. 4).
É interessante notar na matéria destacada acima que os articulistas, que desde seu
primeiro editorial se dizem imparciais, defendem argumentos que refletem sabidamente, de
um lado, os interesses do governo central, que desde o Estado Novo tinha como meta a
transferência da capital para o interior e, de outro, os interesses das elites locais, que
ansiavam por este acontecimento, uma vez que seria uma grande possibilidade de lucrar
com a modernização decorrente dessa ação.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
97
A necessidade de mudança da capital para a região centro-oeste e os argumentos de
favorecimento do estado de Goiás são apresentados na página subsequente da revista, numa
matéria intitulada: “Novas perspectivas em Mato Grosso”, publicada na página 6. Nela os
autores novamente tratam da aptidão do Mato Grosso para a produção agrícola, sobretudo
para a produção de açúcar, leite e outros produtos que seriam facilmente escoados para
outras regiões, graças à existência da estrada de ferro Brasil-Bolívia, que permitiria o
estreitamento das relações comerciais destes países fronteiriços.
O Paraguai é também citado na matéria, ao lado da Bolívia, como país que tinha de
importar produtos de outras localidades longínquas, como Cuba, e que por isso poderia se
transformar em mercado comercial importante para o Brasil. O caráter fronteiriço do estado
do Mato Grosso justificava mais ainda a necessidade da construção da nova capital no
coração do Brasil, conforme se expressa no trecho que retiramos da matéria supracitada.
O Paraguai e a Bolívia, “países que abastecem precàriamente de outros
países longínquos, inclusive Cuba”, são indicados como futuros mercados
de açúcar cuiabano, neste surto de renovação do aparelhamento industrial
das usinas mato-grossenses.
“Nesse aspecto econômico de âmbito internacional já a simples
cooperação do Estado não basta”, reconhecem os técnicos. È
“indispensável a interferência federal, no sentido de ser facilitada a
fundação de usinas de açúcar em Mato Grosso através do crédito e de
condições de amparo e, mesmo, proteção” (Brasil-Oeste, 1956, p. 6).
Na mesma matéria podemos perceber que a estratégia dos editores da revista era,
por meio da propaganda, favorecer alguns grupos da inciativa privada que iriam lucrar com
os investimentos de infraestrutura e de capital que o governo injetaria nos estados do
centro-oeste, abrindo assim caminho para o desenvolvimento de um maior lucro para a
iniciativa privada:
A iniciativa privada, a cuja ausência “se deve esse estado lastimável da
alimentação básica do povo mato-grossense, notadamente das crianças e
dos jovens em crescimento”, dever-se-ia, segundo o parecer dos técnicos,
juntar à do Estado “pela instituição de fazendas-modêlo de criação de
gado leiteiro, com base na cultura forrageira, principalmente, da alfafa”;
pelo incentivo à formação de granjas leiteiras, “nos arredores dos centros
de maior densidade populacional, onde condições de meios se ajustam,
proporcionando êxito à exploração” (Brasil-Oeste, 1956, p. 6).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
98
A REVISTA BRASIL-OESTE E A DEFESA DO PROGRESSO EM MATO GROSSO
Pelos debates do corpo editorial da Brasil-Oeste acerca da situação do centro-oeste
sob o governo João Goulart, percebe-se que sua proposição inicial de neutralidade frente a
grupos políticos e econômicos estava comprometida. Portanto, é preciso investigar como o
grupo que a editava buscava influenciar o processo de colonização/modernização e as
políticas públicas no estado do Mato Grosso. Cumpre-me esclarecer que a fonte a que
recorro para discutir o processo de modernização em Mato Grosso – a revista Brasil-Oeste
– irá me interessar mais do ponto de vista das temáticas que veicula e, embora seja
impossível desvinculá-la do contexto em que foi produzida, de seu formato editorial e do
grupo que a edita, não irei me aprofundar aqui no debate teórico que pensa a imprensa
como fonte e/ou objeto de pesquisa4.
Segundo o pesquisador Murilo José de Souza Pires (2008), o termo “modernização
conservadora” foi cunhado por Barrington Moore Junior (1975), que em sua obra As
origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do
mundo moderno retratou o processo de desenvolvimento capitalista na Alemanha e no
Japão, enfatizando que nesses países realizaram-se revoluções burguesas vindas de cima,
caracterizando assim uma modernização tipicamente conservadora, pois, como adverte
Pires:
O eixo central do processo desencadeado pela modernização conservadora
é entender como o pacto político tecido entre as elites dominantes
condicionou o desenvolvimento capitalista nestes países, conduzindo-os
para regimes políticos autocráticos e totalitários (PIRES, 2008, p. 09).
Pires (2009) demonstra que os processos de desenvolvimento do capitalismo se
deram de formas diferentes nos diversos países do globo, em função da ocorrência ou não
de processos revolucionários que colocaram em xeque, em grau maior ou menor, a
4
Sobre esse assunto, consultar: CORRÊA, Ana Maria Martinez. (Prefácio In: LUCA, Tânia Regina de. A
Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. 1ª. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1999; CRUZ,
Heloísa F.; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e
imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, pp. 235-270, dez. 2007; LUCA, Tania Regina de. História Dos,
Nos e Por Meio dos Periódicos. In: ___. PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto,
2005; SONTANA, Edvaldo Correa. A paz sob suspeita: representações jornalísticas sobre a paz mundial no
início da Guerra Fria (1945-1953). Tese de doutorado. UNESP/ASSIS, Ano de obtenção: 2010.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
99
hegemonia da classe dos proprietários de terra. Assim, segundo o referido autor, países
como a Inglaterra, França e EUA, em função dos processos revolucionários que
enfrentaram, construíram sociedades capitalistas e democráticas que conseguiram minar o
poder das classes rurais e transferi-los para a burguesia industrial. Ao passo que em países
como Alemanha e Japão, em função de um impulso burguês fraco, foi possível um acordo
entre as classes dominantes pré-industriais, muitas vezes advindas do campo, com a classe
burguesa industrial e comercial, configurando assim processos de modernização
conduzidos de cima para baixo.
A partir da análise dos casos dos países estrangeiros, Pires (2008) demonstra como a
modernização conservadora engendra formas de desenvolvimento parcial, uma vez que
as mudanças sociais determinadas pela industrialização foram
condicionadas pela forma em que foram tecidas as relações políticas no
seio do Estado Nacional, visto que os interesses entre o moderno e o
tradicional permaneceram arraigados, com maior ou menor intensidade,
no centro de decisão política do estado (PIRES, 2008, p. 12).
Em artigo publicado na Revista Econômica do Nordeste, os autores (PIRES E
RAMOS, 2009) se propõem a discutir como os pesquisadores brasileiros têm se apropriado
do conceito de modernização conservadora, começando por esclarecer que nos países onde
esse processo ocorreu não houve uma grande ruptura com as estruturas sociais do antigo
regime.
Deste modo, as revoluções burguesas na Alemanha e no Japão não
seguiram a versão clássica, como no caso da Inglaterra, da França e dos
Estados Unidos, pois foram revoluções burguesas parciais, visto que não
destruíram efetivamente as estruturas sociais, políticas e econômicas do
antigo regime. Assim, o pacto político orquestrado no interior do Estado
nacional alemão e japonês aprofundou os laços políticos entre os
terratenentes e a burguesia, excluindo os proletariados e os camponeses do
direito pleno à democracia e à cidadania (PIRES E RAMOS, 2009, p.
412).
Os referidos pesquisadores, não obstante considerarem que os intelectuais
brasileiros tenham utilizado o termo “modernização conservadora” sem as críticas e
mediações que se faziam e se fazem necessárias, ao compararem os processos de
desenvolvimento ocorridos na Alemanha e no Japão com o que se deram no Brasil,
concluem que no caso brasileiro, assim como nos países citados, houve um pacto político
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
100
entre a burguesia nascente e os proprietários de terra que condicionou a formação de uma
burguesia dependente. Assim, na modernização brasileira, a burguesia não se constituiu em
um poder autônomo e hegemônico para a nação, conduzindo-se, portanto, para os trilhos de
uma economia dependente da dinâmica dos países centrais, subdesenvolvida em termos
estruturais e autocrática (PIRES E RAMOS, 2009, p. 412).
Esses autores tecem uma crítica à análise de Alberto Passos Guimarães (1977), que
argumenta que a modernização conservadora tem como estratégia um incremento da
produção agropecuária por meio de uma renovação tecnológica, sem que seja tocada ou
mesmo grandemente alterada a estrutura agrária de um país ou região, sem levar em conta o
fato de a mesma estar relacionada aos pactos políticos construídos entre as classes
fundiárias e burguesas. E chamam a atenção para o fato de que o pacto urdido entre a elite
dominante teve como resultado interditar o acesso das demais classes sociais “aos mercados
de terras, de capital, de trabalho e à democracia e à cidadania” (PIRES, 2008, p. 16).
Na visão dos autores, dentre os pesquisadores que melhor compreenderam o
conceito de modernização conservadora e que, portanto, souberam analisar numa visão
dialética a posição da burguesia nacional, destaca-se Fernando Antônio de Azevêdo na obra
As ligas camponesas, publicada em 1982.
Para Azevêdo, as classes dominantes sempre ocuparam um papel movediço na
relação como o poder estatal, em decorrência de sua ânsia de poder e de seu objetivo de
excluir as classes sociais proletárias.
(...) dependendo das circunstâncias históricas e nacionais, a burguesia
pode desempenhar um papel reacionário ou revolucionário, aliar-se às
velhas classes dominantes e promover uma modernização conservadora,
através da revolução passiva, de caráter elitista e autoritário, promovendo
transformações pelo alto (PIRES, 2008, p. 24).
Assim como Pires e Ramos (2009), concordamos com a ideia de Azevêdo de que no
Brasil as elites agrárias e a burguesia estabeleceram uma aliança contraditória, com vistas a
se perpetuar no poder e impedir uma mudança estrutural no Estado que permitisse a
ascensão da maioria da população menos favorecida. Assim, novamente concordamos com
a ideia de que no Brasil
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
101
O pacto político construído intestinamente no Estado foi o responsável
por criar obstáculos ao acesso democrático à terra por parte das classes
sociais inferiores, concentrando-se, assim, ao longo da formação e da
evolução econômica brasileira, nas mãos de médios e grandes
proprietários rurais (PIRES E RAMOS, 2009, p. 412).
Ao observarmos, por meio das fontes que consultamos, o processo de
desenvolvimento da região centro-oeste, particularmente no estado do Mato Grosso, foco
de nossa pesquisa, constatamos que ele foi pautado, desde o período Vargas até a ditadura
militar, pelo viés da modernização conservadora, na perspectiva apontada por PIRES
(2008), já que as obras se concentram no campo da infraestrutura (usinas hidroelétricas,
ferrovias, rodovias, mecanização do campo) e pouco no campo social (ampla reforma
agrária, distribuição de renda, melhorias na saúde e na educação).
Coutinho (2007), conforme apontamos na introdução deste trabalho, tratou da
questão da modernização conservadora baseando-se nos conceitos de Lenin (via prussiana)
e Gramsci (revolução passiva), que, em síntese, apontam para processos em que a
modernização capitalista ocorre a partir de uma aliança entre forças modernas (burguesia
industrial) e atrasadas (oligarquias agrárias), construída “pelo alto”, ou seja, pelo Estado,
que se torna cada vez mais forte e autoritário, alijando as classes subalternas. A ideia de que
as transições de regime ocorreram no Brasil “pelo alto” é demonstrada por Coutinho a
partir de dois exemplos históricos: o primeiro se refere à independência, em que saímos de
um sistema colonial pela mão do filho do rei, que se tornou imperador; o segundo diz
respeito à transição democrática, em que o primeiro presidente civil era membro da Arena
(base de sustentação dos militares). Dessa forma, Coutinho afirma que:
Portanto, se observarmos bem, veremos que o processo de independência
não se constituiu absolutamente em uma revolução no sentido forte da
palavra, isto é, não representou um rompimento com a ordem estatal e
socioeconômica anterior, mas foi apenas, de certo modo, um rearranjo
entre as diferentes frações das classes dominantes (COUTINHO, 2007, p.
175).
Como se depreende das palavras de Coutinho, a unificação brasileira se deu por
meio de uma independência “pelo alto”, criando assim um fenômeno anômalo, em que o
Estado se constitui antes da nação, já que não houve a ação das classes populares. Nesse
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
102
sentido o autor aponta: “O Estado moderno brasileiro foi sempre quase sempre uma
‘ditadura sem hegemonia’, ou, para usarmos a terminologia de Florestan Fernandes, uma
‘autocracia burguesa’” (COUTINHO, 2007, p. 176).
A partir dessas expressões, Coutinho quer indicar que as elites brasileiras
conseguiriam se tornar dominantes, mas não dirigentes, uma vez que, ao contrário do que
ocorreu em outros países, o Estado foi o protagonista das transformações sociais. Isso
talvez explique o fracasso das teorias acerca de uma possível revolução no Brasil que se
ancorasse numa aliança entre burguesia e proletariado, como no caso de alguns países
europeus, conforme acreditava o próprio PCB.
Ainda de acordo com Coutinho, a direita autoritária brasileira (Oliveira Viana,
Azevedo Amaral e Francisco Campos) defendia uma modernização pela “via prussiana”, na
qual o Estado deveria ser construtor do processo. Essa ideia nos pareceu elucidativa na
medida em que percebemos a continuidade de um perfil autoritário na condução da
modernização, desde a era Vargas até o período militar:
Esse modelo de Estado burguês – intervencionista e corporativista –
perdura, pelo menos, até o governo Geisel, ainda que conhecendo
manifestações fenomênicas bastante variadas nos diferentes períodos
históricos de sua evolução. Por exemplo: ao longo do chamado período
populista, quando prossegue e se radicaliza a implementação da política
econômica nacional-desenvolvimentista iniciada durante o primeiro
governo Vargas, mantêm-se as características essenciais desse tipo de
Estado. Perdura, em primeiro lugar, a noção de que a modernização, ou
seja, o desenvolvimento econômico, tem no Estado um protagonista
central (Coutinho, 2007, p. 180).
Concordamos com as ideias de Coutinho sobre o protagonismo do Estado no
processo de modernização brasileira; isso se mostrou bastante efetivo nos apelos por um
Estado forte presentes na revista Brasil-oeste. Uma ressalva importante a ser feita é a de
que não estamos desconsiderando as nuances presentes nesses diferentes períodos, ou seja,
é claro que a dominação estatal não foi total em todos esses períodos da história brasileira.
O próprio Coutinho chama a atenção para o fato de que durante os governos Jango e
Juscelino tivemos uma maior participação popular, mas isso não colocou em xeque o
Estado. O autor concorda que houve um enfraquecimento do populismo no período, no
entanto afirma:
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
103
Mas que tal Estado ainda não estivesse em crise terminal é o que foi
comprovado pelo golpe de 1964: o regime que então se instalou destruiu o
pacto populista, mas conservou – e até mesmo desenvolveu e reforçou –
os traços mais perversos da nossa formação estatal anterior. Por isso, mais
uma vez uma “revolução passiva”, na qual as “reformas de base” (agrária,
bancária, universitária etc.), reivindicadas pelo movimento social
golpeado em 1964, foram realizadas pelo alto, com um sentido
nitidamente conservador (COUTINHO, 2007, p. 181).
Observemos, então, a modernização ocorrida no estado do Mato Grosso em três
períodos distintos (a saber: a Marcha para o Oeste, iniciada no governo de Getúlio, o
nacional-desenvolvimentismo de JK e as obras de infraestrutura empreendidas pelos
governos militares na década de 1960) por meio das matérias da revista Brasil-Oeste.
Sob a égide da ideia de vazio demográfico propalada pelo estado getulista, a
primeira iniciativa para ocupar o centro-oeste – a denominada Marcha para o Oeste –, com
sua política de colonização ocorrida na década de 1930, em princípio deveria beneficiar
famílias de agricultores com distribuição de terra gratuita na região. Para a região
migraram, sobretudo, nordestinos em busca de melhoria da qualidade de vida. No entanto,
ao chegarem à “terra prometida”, muitas vezes não conseguiram o apoio estatal para
empreender a agricultura e se viram obrigados a servir de mão de obra barata para os
grandes proprietários de terra locais, principais beneficiados por meio de indenizações pela
política de distribuição de terras de Getúlio. Como mostra Daniel Hogan (2010),
Transformações como esta foram fruto de políticas deliberadamente
voltadas à ocupação de vazios demográficos, principalmente nas Regiões
Norte e Centro-Oeste, como a criação em 1941 da Fundação Brasil
Central, que tinha a finalidade específica de realizar a colonização da
região central do país (CPDOC/FGV, 2001). No fim da década de 30, o
Governo Federal criou a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG),
formada por onze áreas, com sede em Ceres, na mesorregião do Centro
Goiano, nas terras férteis ao norte de Goiânia e Anápolis; inaugurada em
1941, a CANG de Ceres foi viabilizada pela ligação ferroviária de
Anápolis com o Sudeste, que desde 1935 promovia a ocupação pioneira
da região denominada Mato Grosso de Goiás. Em 1943 foi criada a
Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no sul de Mato Grosso, uma área
de terras com mais de 6.000 lotes que mediam cerca de 30 hectares em
média e eram voltados para a agricultura familiar, centrada na policultura,
a distribuição das terras foi feita gratuitamente, atingindo agricultores
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
104
sem-terra, de origem predominantemente nordestina (HOGAN, 2010, p.
182).
Vargas, durante o período denominado Estado Novo, tomou outras medidas para
financiar a expansão da fronteira agrícola, a exemplo da Carteira de Crédito Cooperativa do
Banco do Brasil, criada em 1951 e transformada depois no Banco Nacional de Crédito
Cooperativo, que objetivava apoiar as iniciativas particulares de pequenos produtores.
Posteriormente, em 1954, foi criado o Instituto Nacional de Imigração e Colonização, que
tinha o objetivo de revitalizar os núcleos de colonização existentes no país (CPDOC/FGV,
2001). Além disso, Vargas implantou o Plano Viário Nacional em 1951, que viabilizou a
construção de rodovias-tronco em vastas áreas mato-grossenses, que a partir da década de
1950 constituíram o principal determinante para a ocupação realizada com a agricultura de
subsistência na região (HOGAN, 2010, p. 183).
Os investimentos iniciados pelo governo Vargas continuaram durante o governo de
Juscelino Kubitschek (1956-61). Além da transferência da capital para Brasília, que
beneficiou imensamente a região centro-oeste, fez diversos investimentos em infraestrutura
na referida região em decorrência de seu plano de metas, que visava uma maior integração
econômica dessas áreas com o restante do Brasil. Em seu governo, a malha rodoviária
mereceu especial atenção.
De acordo com Oliveira, JK começou as construções das rodovias Belém-Brasília
(inaugurada em 1959, concebida como parte de um projeto maior da rodovia
Transbrasiliana – BR-156) e Brasília-Acre (hoje denominada BR-364, concebida no
período getulista e até hoje com muitos trechos sem asfaltamento). Outra rodovia
importante da época é a BR-070, que se inicia em Brasília-DF e termina no município de
Cáceres-MT, na fronteira com a Bolívia. Ela contribuiu para que Goiânia se consolidasse
como área de influência socioeconômica sobre o centro-leste mato-grossense, região de
Barra do Garças (PEREIRA, 2007). O governo JK promoveu grande venda de terras nas
regiões norte e noroeste do atual Mato Grosso no intuito de que as áreas fossem
colonizadas. Entretanto, tal tentativa não se efetivou, supostamente por não existir
infraestrutura socioeconômica regional. Ao invés de surgirem núcleos urbanos e rurais,
houve uma concentração de grandes extensões de terras com particulares, que passaram a
especular com a venda das terras. (OLIVEIRA, 2011, p. 57).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
105
Outra preocupação de Juscelino, mas não exclusivamente dele, foi com a garantia de
uma autossuficiência na produção de petróleo, uma forma de garantir uma maior integração
nacional através das rodovias recém-inauguradas.
Como mostrou Moreira, as preocupações com a exploração de petróleo foram
justamente o que marcou o início da organização de um projeto nacionalista no país, que
começou em 1943 e culminou com a criação da Petrobras:
A campanha “O petróleo é nosso” mobilizando a população a partir de
1943 através das conferências patrocinadas pelo Clube Militar e
consagrada, em 1953, com a criação da PETROBRÁS, serve como um
marco do início da organização do nacionalismo enquanto movimento
político preocupado em atingir e mobilizar o mais globalmente possível a
sociedade brasileira. Desde então, o nacionalismo deixou de ser uma
ideologia predominantemente estatal. Tornou-se também um movimento
político e ideológico da sociedade que, mesmo mantendo relações com o
Estado e dando apoio a certos governos, não pode ser confundido como
um fenômeno puramente estatal. Como disse Antônio Cícero Cassiano
Souza, pode-se "(...) afirmar que a campanha ‘o petróleo é nosso’ não
acabou na criação da empresa estatal. Prosseguiu em duas frentes: na
consolidação da empresa e na construção simbólica" (MOREIRA, 1998,
p. 3).
A tônica da modernização conservadora, pautada no ideal de integração nacional, e
os investimentos em infraestrutura continuaram durante os governos militares. Como
destacou Oliveira (2011), nos governos militares (1964-1985), Mato Grosso e a região
amazônica foram beneficiadas pela criação da SUDAM (Superintendência do
Desenvolvimento da Amazônia) e da SUDECO (Superintendência do Desenvolvimento do
Centro-Oeste), ambas com o objetivo central de coordenar e concentrar a ação
governamental de planejamento e implantação de infraestrutura socioeconômica e
institucional (OLIVEIRA, 2011, p. 57).
Oliveira destaca ainda que os governos militares foram responsáveis pela criação de
órgãos federais com o objetivo de dar suporte à colonização, como o Instituto Nacional de
Colonização e da Reforma Agrária (INCRA), criado em 09 de julho de 1970, sendo
responsável pela criação e demarcação dos espaços vazios de colonização e assentamentos.
Com a “federalização das terras amazônicas”, áreas de 100 km de cada lado das margens
das rodovias federais no estado foram incorporadas ao patrimônio da União (Decreto-Lei n.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
106
1.164/71) e suscetíveis diretamente aos seus programas de colonização, sendo alvo de
projetos de assentamentos do Incra, que teve clientela sulista pelo esgotamento das
fronteiras nessa região, impulsionando o seu deslocamento em busca de reproduzir seu
modo de vida (OLIVEIRA, 2011, p. 58).
Moreno e Higa (2009) destacam que foi a partir de 1970, durante os governos
militares, que se intensificou o desenvolvimento econômico do país, porém as indústrias
que poderiam levar o Brasil à condição de país em desenvolvimento se concentravam na
região sudeste. Por esse motivo os militares deveriam intensificar as atividades de expansão
econômica iniciadas por Getúlio e Juscelino para outras áreas do país. Sob a doutrina da
integração e da segurança nacional, buscavam integrar as áreas que estavam desconectadas
do centro econômico. Em verdade, na região tais doutrinas camuflavam o verdadeiro
interesse do governo, que era estabelecer a implementação de atividades agropecuárias em
moldes empresariais, eliminando seu caráter extensivo e de baixa produtividade.
Por esse motivo, na região os governos militares desenvolveram planos nacionais de
desenvolvimento (PDNs), que tinham como atividades estratégicas:
Promover obras de infraestrutura nas áreas de transporte, produção de
energia e armazenagem.
Expandir o processo de ocupação por meio de incentivos fiscais com
anexação de novas áreas para exploração de grandes grupos capitalistas
Privilegiar os grupos econômicos considerados aptos a inserir a região no
cenário econômico nacional através de política de liberação de crédito.
Dessa forma, tais políticas, executadas do período de 1930 ao final da ditadura civilmilitar, beneficiaram as elites e a burguesia emergente do centro-oeste, o que explica o fato
de esses setores, apesar de críticas parciais e esporádicas a todos os governos, jamais terem
contestado de forma contundente as propostas de modernização conservadora. A única
exceção fica por conta do governo de João Goulart, considerado num primeiro momento
como simples sucessor de Juscelino, mas que se transformou em um “anticristo” comunista
que destruiria toda a estrutura anteriormente criada por esses governos, pelo menos na visão
dos representantes da elite conservadora mato-grossense, substancialmente beneficiada por
essas inciativas governamentais, como destacam Moreno e Higa:
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
107
Nessas áreas, os proprietários de terra (pecuaristas) foram beneficiados
duplamente: pela infraestrutura implantada na região e pela consequente
valorização. Assim, tiveram a chance de acumular capital por outras vias
que não a comercialização de sua produção. Quando a terra, valorizada
pela infraestrutura colocada pelo Estado, torna-se mercadoria de maior
valor, as possibilidades de acumulação de capital poderiam ocorrer
através do arrendamento ou venda de terras (MORENO, 2009, p. 6).
Por outro lado, os pequenos produtores que não obtiveram apoio por meio das
políticas de créditos acabaram por vender suas terras e se tornaram mão de obra barata para
que a concentração capitalista se ampliasse.
É importante notar que, tanto nas políticas de expansão para o centro-oeste como na
documentação por nós analisada, o eixo central é a produção/expansão econômica, em
detrimento das áreas sociais, tais como a saúde e a educação.
A IMPRENSA E O FAVORECIMENTO DAS ELITES EM MATO GROSSO
Lenharo (1986), Salgueiro (2009) e Leite (2009) deixam claro que, nesse processo
de favorecimento das elites e dos interesses governamentais, a imprensa ocupou um papel
preponderante, no sentido de disseminar uma ideologia em relação ao estado de Mato
Grosso com vista a lograr êxito junto à opinião pública em relação ao apoio necessário ao
projeto de modernização levado a cabo nessa região. Por esse motivo, passamos a
apresentar as caraterísticas do periódico e do grupo de intelectuais responsáveis por sua
organização. Alguns pesquisadores tiveram contato com a referida revista, a exemplo de
Eduardo de Melo Salgueiro e Eudes Fernando Leite.
Salgueiro, em sua pesquisa de mestrado, analisou a linha editorial da Brasil-Oeste e
afirmou:
Desde o início, pudemos perceber o quanto o discurso de
desenvolvimento e modernidade era forte neste mensário e a paixão das
palavras escritas por seus articulistas. Na medida em que fomos
manuseando a fontes, nos chamou atenção o fato de que uma questão era
especial: ela não era encarada como um simples periódico; havia um
projeto por trás de suas reportagens, com o objetivo central de tornar
visível o centro-oeste do Brasil (especialmente Mato Grosso), para
investidores e políticos de outras regiões do país (SALGUEIRO, 2010 p.
574).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
108
Em outro trecho, Salgueiro afirma que, visando promover o desenvolvimento do
Mato Grosso, a Brasil-Oeste estabeleceu um conjunto de metas, uma espécie de manifestoprograma, encarado como um grande projeto, visando pôr em evidência a região centrooeste, que merece ser aqui destacado. Vejamos:
Brasil-Oeste tem um programa definido, visando a acelerar o progresso na
região Centro-Oeste do país. Dele destacam-se os seguintes itens:
1 – Colonização intensiva nos Estados de Mato Grosso e Goiás;
2 – Fomento da cultura da seringueira nas regiões Norte e Noroeste de
Mato Grosso;
3 – Incremento da cafeicultura no Leste e Oeste de Mato Grosso e no Sul
de Goiás;
4 – Fomento da triticultura nas áreas de Dourados, Itaporã, Maracaju,
Bonito, Guia Lopes da Laguna e Terenos;
5 – Fomento da lavoura de algodão nas áreas de Dourados, Rio Brilhante
e Campo Grande;
6 – Introdução de práticas modernas no criatório e incentivo à formação
de plantéis de gado leiteiro na região sulina de Mato Grosso;
7 – Pesquisas e exploração do petróleo na zona pantaneira de Mato
Grosso;
8 – Expansão da rêde ferroviária em direção de Cuiabá, e ligação, por
estrada de ferro, da Capital mato-grossense a Brasília;
9 – Aproveitamento do potencial hidráulico da região da Bacia ParanáUruguai;
10 – Introdução de indústrias de abastecimento nos Estados de Mato
Grosso e Goiás.
COOPERE PARA O DESENVOLVIMENTO RÁPIDO DÊSSE
PROGRAMA ECONÔMICO-SOCIAL, tornando-se assinante da
BRASIL-OESTE (SALGUEIRO, 2010, p. 580).
Leite, por sua vez, destaca a importância da revista como um projeto ideológico de
intelectuais ligados ao Mato Grosso que procuravam, num movimento duplo, exigir
investimentos do governo federal, bem como demonstrar a potencialidade da região para a
agricultura e pecuária e ainda fazer a defesa de um projeto conservador para o
desenvolvimento do estado, conforme podemos observar na seguinte frase de capa da
revista, no ano de 1962:
Esta é a hora de Mato Grosso!
O último censo do IBGE revela que o maior crescimento populacional no
país, de 1950 a 1960, verificou-se na região centro-oeste, compreendida
pelos estados de Mato Grosso e Goiás. Dois fatores contribuíram para
aquele crescimento populacional. 1- a existência de terras férteis e
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
109
adequadas para todos os gêneros de cultura; 2- as excelentes perspectivas
que se entreabrem, ali, para as atividades econômicas (Brasil-Oeste, São
Paulo, janeiro de 1964, p. 18).
O pesquisador afirma, ainda, que a Brasil-Oeste extrapolou seu caráter informativo,
servindo como um dos principais meios de divulgação das ideologias da elite matogrossense e dos governos autoritários das décadas de 1950 e 1960, como é possível
perceber no trecho a seguir:
Dando ênfase aos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país,
além, do Centro-Oeste, Brasil-Oeste não poderia ser tomada apenas como
veículo informativo sem maior importância. Mesmo porque, para uma
revista de seus padrões, que ao cabo dos anos 50 conseguia realizar
edições mensais é bastante significativo, especialmente se não
dissociarmos este detalhe do contexto geográfico. A Editora Brasil-Oeste,
responsável pela Revista montou uma boa infraestrutura [...] Não se
tratava, pois, de uma simples aventura editorial, mas de um projeto
elaborado e apoiado pela elite mato-grossense (LEITE, 1995, p. 69).
As matérias publicadas na revista giram em torno das seguintes temáticas:
agricultura, pecuária, economia, política, lar e família, municipalismo e atualidades. A
preocupação era a de propagar a ideia do centro-oeste como uma região promissora para
investimentos modernizadores, sobretudo no campo agrícola, que contava com o apoio
integral do capital estrangeiro, conforme é possível perceber nas peças propagandísticas
que nela encontramos.
Salgueiro demonstra claramente a preocupação dos jornalistas que assinavam as
matérias em criar uma imagem positiva da região e lança questionamentos importantes
sobre qual o sentido desse processo de modernização. Destaca ele:
São várias as tentativas da revista em demonstrar as benesses da região
em detrimento das suas dificuldades, que, aliás, eram sempre atribuídas ao
descaso dos políticos de ordem federal, ou seja, à União. O discurso
permanente na Brasil-Oeste condiz com o momento histórico vivido pelo
país: modernidade e desenvolvimento. Tudo gira em torno destes dois
termos, enraizados na proposta editorial do periódico. Para analisar de
maneira geral este momento no Brasil, utilizaremos bibliografia que traz o
tema para efeitos de discussão. Nossa pergunta principal, neste capítulo, é:
Que tipo de desenvolvimento econômico era encarado como ideal nas
páginas da revista? Aonde podemos encontrar este discurso nas suas
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
110
páginas? São estas as questões que tentaremos resolver (SALGUEIRO,
2010, p. 584).
O pesquisador traz ainda informações estatísticas importantes sobre a publicação.
De acordo com ele, a revista atingiu uma tiragem de 18.500 exemplares mensais na década
de 1960, tendo conseguido vender um total de 1.500.000 exemplares por meio do auxílio de
seus diversos correspondentes espalhados pelo Brasil.
Salgueiro, apoiando-se nos trabalhos de Cruz e Peixoto (p. 257), constata que a
Brasil-Oeste atuou como uma “força ativa” na modernização do centro-oeste, tendo como
foco a discussão dos principais problemas da região.
Todos os problemas geoeconômicos que digam respeito aos Estados de
Mato Grosso e de Goiás e aos Territórios do Guaporé e do Acre serão
gradativamente examinados em nossas colunas, de modo que se esboce,
através de uma honesta difusão de opiniões, uma solução adequada e justa
para êles. Particular interêsse merecerão de nossa parte os assuntos
agropecuários, pois que nesse ramo de atividades se fundamenta a parcela
mais ponderável da economia dos Estados do Centro-Oeste (Brasil-Oeste,
Ano 01, n. 1, 1956, p. 2)
Esse discurso era compreensível, já que, como apontou Salgueiro, a revista possuía
ligações claras não só com empresas estrangeiras e nacionais de modernização agrícola,
como também com as colonizadoras de terras que atuavam no estado. Aponta ele:
Não é de estranhar tal postura, uma vez que a Brasil-Oeste mantinha
estreitas relações com algumas colonizadoras de terras da época. Em
anúncio de venda de terras no norte de Mato Grosso nos primeiros
números da revista, o endereço da empresa anunciante “é o mesmo da
revista: Praça da Sé, 184, 4° andar, cj. 401, telefone 350594, São Paulo. A
contracapa é tomada por um anúncio referido a Departamento Imobiliário
do Oeste Brasileiro”. Este caso não é o único, em outros números é
possível encontrarmos diversas propagandas da Colonizadora Norte de
Mato Grosso Ltda., conforme o anúncio a seguir: “Compra de terras em
Mato Grosso constitui ótimo empate de capital. Consulte-nos sem
compromissos”, o endereço da empresa também é o mesmo da revista,
neste caso, “Praça da República, 386, 3° - Conj. 33 – São Paulo-SP”
(SALGUEIRO, 2009, p. 690).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
111
O historiador Alcir Lenharo também aponta para questão da ligação da BrasilOeste com os negociadores de terra do estado em artigo publicado na Revista Brasileira de
História. O autor analisa a política de distribuição de terras no centro-oeste brasileiro,
desde o Estado Novo até a década de 1950, e defende a tese de que critérios políticos
favoreceram a atribuição de terras aos detentores do capital, em detrimento de
trabalhadores pobres (LENHARO, 1986, p 47-64). Segundo ele, as décadas de 1930 a 50
preparam o cenário de conflitos que se acirrariam na década de 1960, apesar do livre
exercício democrático e das atividades parlamentares, insuficientes para coibir os abusos e
a especulação de terras na região. O autor afirma ainda que os trabalhos historiográficos
costumam apreender as lutas pela terra a partir dos governos pós-64, mas para ele tais
conflitos datavam de momentos anteriores, a exemplo das ligas camponesas e da formação
de sindicatos rurais desde o período de 1945 (ver: ABREU E LIMA, 2005), como
desdobramento da política de colonização de terras gestada nos anos 1930 e 50 e
incrementada pelos militares na década de 1960. Afirma ele:
No caso do Mato Grosso, e para as décadas de 30 a 50, momentos
políticos diferentes entre si preparam lentamente a projeção dos conflitos;
em particular, atente-se para os anos 50, época de livre exercício
democrático e de atividades parlamentares, condições insuficientes, no
entanto, para coibir os abusos relativos à farta distribuição de da terra
pública e a subsequente especulação do solo, fonte segura de acumulação
para grandes capitalistas e empresas do centro-sul, bem antes que o boom
da penetração das multinacionais entrasse em evidência (LENHARO,
1986, pp. 47-48).
Como fica claro, o jogo partidário e eleitoral, ao contrário de servir de barreira à
depredação do bem público, acabou se transformando no canal principal para que grupos
políticos associados aos capitalistas convertessem em lucro grandes extensões de terra
virgem, obtidas a baixos preços, loteadas em seguida, ou estocadas para gerar riquezas sem
trabalho. O favorecimento das classes abastadas no estado não era, com certeza, um
fenômeno novo. Os arranjos empreendidos nesse período guardavam resquícios da prática
coronelista tão caraterística da região desde o século XVIII, como demonstrou o historiador
Valmir Batista Correa na obra “Coronéis e Bandidos no Mato Grosso”, na qual o autor
informa:
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
112
Os coronéis mato-grossenses, cuja base econômica assentou-se na grande
propriedade rural ou, em alguns casos, na posse de um patrimônio urbano
(por exemplo, o comércio importador-exportador), exerceram
efetivamente o poder de decisão a nível local, e até estadual, através do
controle de empregos, cargos públicos e outros privilégios. Dessa
estrutura política surgiram grupos oligárquicos, como os Murtinho, os
Corrêa da Costa, os Ponce, os Barros, os Celestino, que se assentaram no
poder estadual na medida em que mantiveram o respeito pela
independência dos coronéis em seus respectivos domínios (CORRÊA,
1985, p. 53).
Alcir Lenharo chama a atenção ainda para o fato de que esse processo de
colonização de terras configurava-se num processo desigual de luta entre as classes sociais
brasileiras, que poderíamos comparar à fábula de Davi e Golias, embora com um final
diferente e trágico. A luta se dava entre “davis” proletários que eram derrotados pelos
“golias” – políticos e capitalistas – que tinham um projeto de modernização excludente para
a maioria dos brasileiros, a não ser que estes se contentassem a servir apenas como mão de
obra para a reprodução do capital. Destaca ele:
O problema que mais chama a atenção, no entanto, é o mapeamento de
extensos territórios por grupos capitalistas, fechando-se a porteira, já antes
dos anos 60, para as populações trabalhadoras que acorriam ao estado de
Mato Grosso, em busca da terra própria para plantar. Há diferentes tipos
de famílias trabalhadoras que estão sendo expulsas de seus lugares de
origem, e se põem a caminho do oeste. Extensos territórios,
aparentemente sem dono, despovoados e sem plantação, esperavam o seu
trabalho. Pelo modo como a terra estava sendo apropriada, no entanto, não
havia lugar aqueles trabalhadores, não. Ou melhor, lugar havia, mas
somente para trabalhar para os outros, e continuar sem terra, como antes
(LENHARO, 1986, p. 48).
O interessante da análise de Lenharo é o fato de o historiador identificar o caráter
contraditório do governo Vargas, que, sob um discurso preocupado em fazer justiça para
aqueles que trabalhavam e não usufruíam dos frutos, na verdade escamoteava as intenções
do governo de intervir sobre o trabalhador, com a finalidade de dirigir seu trajeto
migratório, esquadrinhá-lo espacialmente quando de sua chegada e decidir sobre seu jeito
de tratar a terra, inculcando-lhe o desejo de retirar lucratividade dela e de subir na vida
(LENHARO, 1986, p. 49).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
113
A justificativa do governo Vargas para tal empreitada era o fato de que boa parte da
população – diga-se de passagem a população branca – vivia no litoral. Já o interior do
Brasil, densamente povoado por populações indígenas, de acordo com o discurso varguista,
era pouco ocupado, portanto deveria ser desbravado em um novo movimento bandeirante
que traria a “civilização” ao interior do país. Tal discurso do Estado Novo coadunava com
uma série de iniciativas que visavam à ocupação produtiva do interior do país – a exemplo
das expedições chefiadas pelo Marechal Cândido Rondon nas décadas de 1910, 20 e 30, a
Marcha para o Oeste, da qual trataremos a seguir, e a expedição Roncador-Xingu, dos
irmãos Villas-Bôas, ocorrida na década de 1940. Como já apontou Lenharo (1986), e ainda
como já anunciado na introdução deste capítulo, o processo de modernização do centrooeste, que se intensifica nos anos 1960 com a ditadura militar, foco de nossa análise, se
inicia ainda no final dos anos 1920 e ganha maior impulso nas décadas de 1950 e 60,
respectivamente nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e dos militares.
Assim percebe-se, pela própria análise da revista, que este processo estava intimamente
ligado à política de ocupação da região oeste do Brasil, por meio da denominada Marcha
para o Oeste, lançada nas vésperas do ano de 1938, período do Estado Novo.
O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO E A PENETRAÇÃO DO CAPITAL ESTRANGEIRO NO
GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK.
O fenômeno do nacional-desenvolvimentismo foi um sistema político-econômico
característico de vários países latino-americanos no período de 1930 a 70 e mereceu
atenção de muitos pesquisadores latino-americanos e estrangeiros (ver: BATISTA JR.,
2007, pp. 29-35; BRESSER-PEREIRA, 2006, pp. 5-24; SICSÚ, PAULA, & RENAUT,
2005, pp. 3-5; BANDEIRA, 1993; CANTON, 1971; CANTON, MORENO & CIRIA, s.d.;
MURMIS, & PORTANTIERO, 1973; PRADO, 1981; SIGAL, & VERÓN, s.d.; KAPLAN,
s.d.; BIELSCHOWSKY, 2000; BOSCHI, 2010; BOSCHI, & GAITÁN, 2008). Segundo
Bresser-Pereira:
Entre os anos de 1930 e 1970, o Brasil e outros países latino americanos
cresceram em ritmo extraordinário. Eles se aproveitaram da fragilidade do
centro nos anos 30 para formular estratégias nacionais de
114
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
desenvolvimento que, essencialmente, implicam a proteção da indústria
crescente nacional (ou industrialização por substituição de importações) e
a promoção de poupança forçado pelo estado. Além disso, julgava que o
estado deveria fazer investimentos diretos em infraestrutura e em certas
indústrias de base cujos os riscos e necessidades de capital eram grandes.
Essa estratégia foi chamada de “nacional-desenvolvimentismo”
(BRESSER-PEREIRA, 2012, pp. 31-32).
O autor nos esclarece ainda sobre qual o sentido do termo nacionaldesenvolvimentismo. De acordo com ele, o nome tinha a função de enfatizar que o objetivo
principal era o desenvolvimento econômico do país e, em segundo plano, mas não menos
importante, estabelecer metas compartilhadas pela nação (burocracia do Estado,
empresários, classes médias e trabalhadores), com vistas a uma competição internacional
dentro do sistema capitalista que teria o Estado como ator principal da ação coletiva.
De
acordo
com
a
historiadora
Vania
Lousada
Moreira,
o
nacional-
desenvolvimentismo tornou-se uma preocupação da elite política e intelectual brasileira
desde o colapso econômico de 1929.
O nacionalismo característico dos anos 1930-64 configura-se inicialmente
como uma ideologia do Estado e esteve associado não só ao populismo de
Getúlio Vargas, mas também ao desenvolvimentismo de Juscelino
Kubitschek e ao reformismo social de João Goulart, isto é, às três mais
importantes orientações políticas daquele período. Mas seria inexato
considerar o nacionalismo como uma ideologia exclusiva do Estado
brasileiro. A luta política e ideológica dentro dos partidos, sindicatos e
associações de intelectuais, estudantes e militares foi matizada pelo
vocabulário nacionalista e entre as inúmeras tendências nacionalistas não
estatais então existentes, duas, além disso, destacaram-se pela amplitude
obtida no cenário da época: o nacionalismo liberal ou nacionaldesenvolvimentismo e o nacionalismo econômico ou popular
(MOREIRA, 1998, p. 03).
A historiadora aponta as décadas de 1950-60 como fases importantes na gestação e
consolidação desse processo de busca de um desenvolvimento autossustentado. Defender
tal projeto era de certa forma uma maneira de tecer críticas ao modelo agroexportador e à
classe oligárquica latifundiária que lhe deu sustentação nos anos 1930 e 40. Outro
argumento interessante de Moreira é que o nacionalismo se tornou uma ideologia que
penetrou na esfera tanto da direita quanto da esquerda. Certamente os intelectuais de ambos
115
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
os lados possuíam objetivos diferentes em relação a ele, no entanto o mesmo servia aos
propósitos de ambos os grupos.
No movimento nacionalista – seja em sua vertente liberal representada,
por exemplo, pelos intelectuais do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), ou na orientação popular, característica de comunistas,
socialistas e trabalhistas –, um dos maiores "vilões" da então sociedade
brasileira (senão o maior) era a elite rural historicamente comprometida
com a produção de artigos agrícolas para o mercado externo (MOREIRA,
1998, p. 3).
Para se compreender o projeto nacional-desenvolvimentista característico desse
período é necessário situá-lo num contexto mais amplo, que vai de 1930, com Getúlio
Vargas, a 1964, com a ascensão dos militares ao poder. Contudo, deve-se dar atenção
especial ao período de 1951-54 (segundo mandato de Getúlio) a 1956-60 (governo de
Juscelino Kubitschek).
O cenário político dos anos 1950 foi marcado por uma série de ações que
permitiram a gênese e o desenrolar de um longo processo de transição que caracterizou o
desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil. De acordo com Souza:
De 1933 a 1955, presenciamos uma acumulação de capital pautada numa
efetiva expansão industrial, ainda que num contexto econômico restritivo,
devido às pressões das políticas da economia agroexportadora; já, de 1956
a 1961, constata-se o desenvolvimento de uma industrialização, com
crescimento da capacidade produtiva do setor de bens de produção e do
setor de bens duráveis de consumo. (...) O segundo governo de Getúlio
Vargas (1951-54) se caracterizou pela concepção de um programa de
industrialização voltado para a criação e o fomento de um capitalismo de
cunho nacionalista, autônomo e sob controle estatal. Nesse contexto, cabia
ao Estado o papel estratégico, fundamental e ativo, apoiado numa função
mediadora de caráter interno, entre as classes sociais; e externo, do país
com os centros decisórios do capitalismo mundial (SOUZA, 2010, p.
148).
Acerca do governo de Juscelino Kubitschek, Souza afirma que este se caracteriza
como
a
segunda
etapa
de
industrialização
no
Brasil,
em
continuidade
ao
desenvolvimentismo iniciado por Vargas. O período que vai de 1956 a 1960 é marcado por
um novo estágio econômico, uma vez que se articula ali a integração da economia e do
capital nacional à divisão internacional do trabalho no pós-guerra. O Estado ocupa um
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
116
papel central nesse processo, agindo diretamente no impulsionamento de setores
estratégicos da economia brasileira, como a construção do setor de bens de produção e o
suporte de infraestrutura de capital social básico. Como destaca Souza:
Dentre os aspectos que caracterizam a essência da administração JK,
destaca-se primeiramente o tripé estratégico centrado no Estado,
articulado ao capital estrangeiro e ao empresariado nacional, todos
voltados para a criação de uma estrutura industrial mais avançada e
integrada à nova divisão internacional do trabalho. Encaminhada pelo
núcleo político do governo, a estratégia que tinha no
“desenvolvimentismo” sua expressão ideológica e política, atuava de
forma a minimizar as possíveis resistências através da negociação de
interesses. (...) O segundo aspecto expressa a operacionalização de uma
estrutura de poder informal, paralela, eficiente e vinculada diretamente à
Presidência. Ao anular os tradicionais processos de tramitação legislativa,
caracterizados por intermináveis negociações, essa “administração
paralela” concretizava de maneira efetiva as decisões políticas.
Finalizando, o governo JK sinalizava uma opção de política estatal
centrada em soluções de conveniência, sem restrições quanto a
encaminhamentos marginais. O objetivo maior da ação governamental era
conseguir encaminhar o gradual avanço e o desenvolvimento do
investimento público, sem que se necessitasse recorrer a uma reforma
administrativa, fiscal e financeira de profundidade no país. Estas
dimensões marcaram os futuros impasses que culminaram na crise de 64.
Sobre a ação governamental adotada por JK em relação às políticas
sociais, tais como saúde e educação, provavelmente por não estarem
sofrendo uma exigência em “consistência e eficiência”, permaneceram,
com algumas exceções, sendo gestadas e implementadas no âmbito da
administração (SOUZA, 2010, pp. 149-150).
Sobre esse período, Souza cita ainda a criação de uma série de órgãos
governamentais que objetivavam o aparelhamento do Estado e a criação de uma política
nacional de desenvolvimento econômico:
São criados, em 1951, diversos órgãos setoriais de atuação nacional: a
Comissão Nacional de Política Agrária (CNPA) encarregada de propor
possíveis modificações na estrutura agrária; a Comissão de
Desenvolvimento Industrial (CDI), com o objetivo de estudar e propor de
medidas econômicas, financeiras e administrativas ligadas à política
industrial; a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento de Transportes
para melhorar os transportes e melhorar o abastecimento interno; a
Comissão Nacional de Bem-Estar para cuidar “da melhoria das condições
do povo brasileiro”. Nesse mesmo período, somam-se a essas Comissões,
outras de atuação específica, além de outros órgãos e agências, totalizando
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
117
a criação de 22 instituições estatais, incluindo a criação da CAPES, da
Petrobras, do CNPq e do BNDES, entre outras (SOUZA, 2010, p. 149).
Percebe-se, a partir da passagem acima, que as mudanças econômicas no país com
vistas à sua modernização pressupunham um aparato técnico que viabilizasse o
planejamento e a execução das metas governamentais nos anos 1950. Era preciso, então,
um corpo técnico que sustentasse tais órgãos – nesse momento, portanto, os intelectuais são
alçados aos postos estratégicos da estrutura governamental. Sobretudo no governo de JK
houve uma preocupação por parte do Estado em planejar e justificar ideologicamente suas
ações, já que o populismo era a tônica da política do período, dando assim um destaque
primordial aos intelectuais que, embora estivessem ligados ao Estado, consideravam-se
independentes em relação à estrutura estatal.
Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com
“espírito de grupo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua
“qualificação”, eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e
independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não deixa
de ter conseqüências de grande importância no campo ideológico e
político: toda a filosofia idealista pode ser facilmente relacionada com
esta posição assumida pelo complexo social dos intelectuais e pode ser
definida como a expressão desta utopia social segundo a qual os
intelectuais acreditam ser “independentes”, autônomos, revestidos de
características próprias, etc. (GRAMSCI, 1982, p. 6).
O final da década de 1940 e o início da de 50 foram importantes pela criação de dois
órgãos governamentais que teriam papel preponderante na formulação ideológica da
política e da economia brasileira, a saber: a CEPAL (1948) e o ISEB (1955), que
congregaram intelectuais vinculados ao poder estatal que se destacaram no cenário político
institucional brasileiro ao assumir parte significativa da condução ideológica do projeto
nacional-desenvolvimentista almejado pelos governos nacionalistas/populistas das décadas
de 1950 e 60. Bresser-Pereira, ao analisar esse fenômeno, afirma:
O estadista que primeiro imaginou o nacional-desenvolvimentismo na
América Latina foi Getúlio Vargas, que governou o Brasil nos períodos de
1934-1945 e 1950-1954. Por outro lado os notáveis economistas,
sociólogos, cientistas políticos e filósofos latino-americanos que
formularam essa estratégia nos anos 1950 reuniram-se na Comissão
Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), em Santiago do
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
118
Chile, e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no Rio de
Janeiro. Eles desenvolveram uma teoria do subdesenvolvimento e uma
visão nacionalista do desenvolvimento econômico com base na crítica do
imperialismo ou da “relação centro-periferia” – um eufemismo próprio de
intelectuais públicos associados a uma organização das Nações Unidas.
Os economistas latino-americanos, entre eles Raúl Prebisch, Celso
Furtado, Osvaldo Sunkel, Aníbal Pinto e Ignácio Rangel, inspiraram-se na
economia política clássica de Adam Smith e Karl Marx, na teoria
macroeconômica de John Maynard Keynes e Michael Kalecki e nas novas
ideias da escola da economia do desenvolvimento (da qual faziam parte)
para construir a escola estruturalista latino-americana (BRESSERPEREIRA, 2012, p. 32).
Bresser-Pereira destaca que O ISEB foi fundamentalmente uma escola de
intelectuais públicos que se reunia sob a liderança de Hélio Jaguaribe para pensar o Brasil e
seu processo de desenvolvimento. O grupo, embora com grande capacidade intelectual, não
se dedicou diretamente às pesquisas acadêmicas, pois estava mais interessados em
participar da vida pública por meio de sua ligação com o Estado. Com a eleição de
Juscelino, o ISEB, agora situado no aparelho estatal, transforma-se no principal centro de
pensamento nacionalista e desenvolvimentista brasileiro (BRESSER-PEREIRA, 2004, p.
4).
O governo, na tentativa de se desvincular da tradição oligárquico-agroexportadora,
tão característica do primeiro mandato de Getúlio Vargas, buscou organizar seu governo
em torno do ideal de modernização/industrialização do país e, para isso, recorreu a várias
pesquisas e levantamentos organizados por pesquisadores nacionais e estrangeiros. Sua
visão de abrir o mercado para o capital estrangeiro foi influenciada pelo paradigma
cepalino do desenvolvimento dependente. A orientação da CEPAL, que preconizava que o
nacional-desenvolvimentismo só poderia ser realizado numa relação de dependência entre o
centro (países industrializados) e a periferia (países subdesenvolvidos), é confirmada na
documentação que analisamos acerca do processo de modernização do centro-oeste. Em
artigo publicado na edição nº 09, de janeiro de 1957, na revista Brasil-Oeste, encontramos
um apoio explícito à penetração do capital estrangeiro no Brasil, principalmente em Mato
Grosso e Goiás, estados nos quais a elite agrária, “em vias de modernizar-se”, dava grande
apoio ao governo de JK.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
119
O dever do Govêrno é amparar os capitais estrangeiros, já investidos no
País, garantindo aos seus detentores uma expansão natural de atividades,
pois que isso significa maiores possibilidades de emprego de operário,
maior riqueza, maior progresso em suma. Sómente dessa forma se poderá
estimular outros capitalistas e inverterem capitais no Brasil, a secundarem
iniciativas que carecem apenas de forte base financeira para maior
desenvolvimento (Brasil-Oeste, 1957, p. 3).
A criação da CEPAL pela Organização das Nações Unidas em 1948, no pós-guerra,
tinha como objetivo desenvolver estudos e propor ações que permitissem o
desenvolvimento da economia latino-americana. Seu grande desafio era superar o passado
oligárquico desses países, que levou à organização de suas economias em torno do modelo
primário-exportador – ou seja, eram, sobretudo, produtores/exportadores de matériasprimas, o que os deixava sujeitos às crises do mercado internacional. Outro problema a ser
superado no cenário econômico latino-americano era a ausência de uma acumulação de
capital significativa que permitisse o financiamento do processo de industrialização. Qual
seria então a solução para os países da América Latina e, principalmente, para o Brasil?
A partir da constatação de que essa realidade econômica era especial em função de
seu caráter primário-exportador, a CEPAL adotou como princípio norteador de seu trabalho
os processos de planejamento que possibilitassem um desenvolvimento acelerado e
equilibrado.
Esses processos, bem como seus limites, que foram a base da intervenção do grupo
de intelectuais da CEPAL na política e na economia latino-americana, foram analisados por
Octávio Rodriguez, que destaca:
Diversos aportes têm origem no exame de problemas concretos, sejam de
toda a área latino-americana, sejam de algumas economias que a
conformam. Em torno dos problemas vai se articulando uma série de
argumentos teóricos, reunidos ad hoc para explicar as causas dos mesmos
e, especialmente, para justificar as medidas de política econômica que
julgava-se adequadas para resolvê-los. Assim os trabalhos da CEPAL
tendem a perfilar ad hoc os argumentos teóricos mais pertinentes para
fundamentar determinadas ações no campo da política econômica, em
detrimento do rigor e da precisão com que ambos se apresentam
(RODRIGUEZ, 1986, p. 9).
Rodriguez, apesar da crítica que faz ao grupo de intelectuais da CEPAL, por
estarem mais preocupados em justificar as intervenções na política econômica do que em
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
120
manter o rigor teórico de seus estudos, considera que as análises e recomendações, acerca
da economia, em seu conjunto, são em geral consistentes, ainda que o rigor analítico varie
de acordo com cada documento produzido pela comissão. De acordo com ele, a unidade de
pensamento no interior da CEPAL é de difícil percepção, uma vez os componentes de
pensamento de seus integrantes encontram-se disseminados em vários documentos,
publicados em períodos diferentes. No entanto, ressalta que este fato não impediu certa
unidade de pensamento entre seus membros, já que o grupo seguia como paradigma
originário a teoria do desenvolvimento periférico.
Para compreendermos melhor a relação entre a teoria e a prática adotada pelo grupo
de intelectuais formuladores da teoria cepalina do subdesenvolvimento, bem como tal
postulado conceitual influenciou a política econômica latino-americana, principalmente o
Brasil no período de JK, reproduzimos o quadro elaborado por Rodriguez (1986, p. 10):
As orientações do grupo oriundo do CEPAL levavam o Estado brasileiro a crer que
a melhoria da condição econômica do país viria por meio da industrialização, que permitiria
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
121
a adoção de métodos mais eficazes, típicos dos países do centro. Dessa forma, o progresso
técnico aqui empregado poderia permitir a melhoria das condições de produção e, portanto,
um desenvolvimento mais rápido dessa zona periférica do capitalismo internacional.
Para Rodriguez, o pensamento cepalino sobre o desenvolvimentismo pode ser
sintetizado da seguinte forma: os intelectuais que se aglutinaram no interior da estrutura da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe vislumbraram na industrialização e
na reforma agrária conduzidas pela mão forte do Estado populista, em consonância com os
interesses das elites agrárias, uma forma de promover o nacional-desenvolvimentismo, sem,
contudo, modificar a desigualdade social interna.
Assim, pode-se dizer que, ao acreditarem numa visão de desenvolvimento
policlassista e populista, propondo, de um lado, reforma agrária dentro dos limites
constitucionais e por meio de indenizações à elite agrária e, por outro, o aumento do
consumo de todas as classes através da industrialização para superar as condições de
periferia, os intelectuais quiseram agradar a gregos e troianos.
De certa forma, isso funcionou nos governos de Getúlio Vargas – principalmente no
segundo mandato – e de Juscelino Kubitschek, conseguindo, com certa eficiência, ludibriar
o “povo” com propostas nacionalistas e populistas e garantir vantagens à burguesia
nacional, classe privilegiada pelo projeto de modernização empreendido em seus
respectivos governos. O caráter contraditório do projeto de desenvolvimento nacionalista
para a América Latina, e principalmente para o Brasil, se expressa no fato de que a teoria
desenvolvida no interior da CEPAL, centrada na relação de dependência entre centro e
periferia, naturaliza a desigualdade social inerente ao modo de produção capitalista, tanto
nas sociedades do centro como da periferia. José Luiz Sanfelice chama a atenção para o
caráter desigual da sociedade capitalista, na qual os direitos são privilégios daqueles que
podem pagar por eles. Afirma ele:
A existência do “desenvolvimento” implica miséria e desigualdade. O
“desenvolvimento” que fez desta uma das dez potências industriais mais
poderosas do planeta não é, nem nunca foi, incompatível com uma
sociedade onde os direitos são privilégio dos que têm dinheiro para
comprá-los. Alguém poderia dizer que o problema está no tipo ou no
modelo de desenvolvimento instituído no país. É verdade, mas essa parece
ser uma justificação mais do que óbvia: o desenvolvimento é sempre um
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
122
modelo, nunca um princípio essencial de natureza pré-social ou prépolítica (SANFELICE, 2002, p. 57).
É preciso esclarecer que os intelectuais cepalinos definiam como centro os países
nos quais as práticas organizativas e técnicas de produção capitalista se estruturaram
primeiro e, portanto, permitiram uma esfera de produção distribuída de forma mais
equânime, mas diversificada em ramos específicos. Ao lado disso, consideravam periferia
os países onde o sistema primário-exportador impediu a introdução de técnicas capitalistas
que superassem o caráter especializado e heterogêneo da produção.
Observa-se que a CEPAL adotava o nacionalismo por meio da defesa de um Estado
interventor que favorecesse a burguesia nacional e, ao mesmo tempo, permitisse a sensação
de melhoria de qualidade vida da população em geral por meio dos processos de
modernização conservadora. O Estado interventor deveria, portanto, organizar, planejar e
prover uma infraestrutura mínima para que o desenvolvimento da indústria pudesse ocorrer.
Para isso, era preciso também destinar recursos para setores prioritários demandados pelo
mercado interno. Assim, a proposta de intervenção da comissão apontava claramente para
uma abertura ao capital estrangeiro, já que os recursos vindos do exterior seriam
fundamentais para impulsionar a indústria de base e os setores de produção de energia
elétrica, de serviço público e ferroviário. Encontramos evidências documentais que
confirmam a prática de financiamento estrangeiro de obras de infraestrutura no Brasil. Na
edição de número 09, de janeiro de 1957, da revista Brasil-Oeste, observa-se uma defesa da
política de favorecer os investimentos do capital estrangeiro no país, como se visualiza no
trecho que transcrevemos a seguir:
Tem sido essa, aliás, a conduta do Presidente Juscelino Kubitschek. Os
investimentos estrangeiros feitos no Brasil em 1956 montaram a mais de
200 milhões de dólares e para êste ano as perspectivas são muito mais
promissoras. Basta destacar, por exemplo, os investimentos que a General
Motors começou a fazer em São José dos Campos, os quais são da monta
de 10 milhões de dólares em maquinaria e equipamentos e de 400 milhões
de cruzeiros em instalações diversas, inclusive construção de edifícios
para as fábricas e residências de técnicos e operários (Brasil-Oeste, 1957,
p. 3).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
123
O caráter normativo e planejador da CEPAL foi reforçado pelas diretrizes do ISEB,
órgão criado em 1948 pelo governo Café Filho e que serviria de forma preponderante aos
propósitos de Juscelino Kubitschek.
Segundo a historiadora Maria Emília Prado, o ISEB foi um forte aliado na
instalação das propostas de JK e, depois de ser criado pelo Decreto n. 37.608, de 14 de
julho de 1955 como órgão do Ministério da Educação e Cultura, passou a ocupar um lugar
de destaque na formulação de diagnósticos e teorias sobre o Brasil e suas possibilidades de
desenvolvimento. Sobre o contexto de sua criação, afirma ela:
No Rio de Janeiro no decênio de 1950 um conjunto de intelectuais, dentre
os quais antigos assessores do governo Vargas, decidiram se reunir sob a
liderança de Hélio Jaguaribe com a finalidade de estudar a realidade
brasileira. Essas reuniões eram realizadas na cidade fluminense de Itatiaia,
o que fez com que fossem conhecidos pela denominação de “Grupo de
Itatiaia”. Em 1954, ainda sob a liderança de Hélio Jaguaribe, foi fundado
o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP) que
funcionava na rua do Ouvidor no então escritório de Jaguaribe. O IBESP
oferecia diversos cursos sobre História, Sociologia e Política nacionais
que funcionavam no auditório do Ministério da Educação. Em 14 de julho
de 1955, através do Decreto nº 37.608, era criado o ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros) como órgão do Ministério da Educação e
Cultura. O grupo de intelectuais que estava à sua frente tinha por objetivo
o estudo, o ensino e a divulgação das ciências sociais. Objetivava-se,
também, que os dados e as categorias aí formuladas servissem para
análise e compreensão crítica do Brasil e pudessem contribuir para a
promoção do desenvolvimento nacional. A partir de 1956 o ISEB passou
para o prédio localizado na rua das Palmeiras, 55 em Botafogo (PRADO,
2007, pp. 2-3).
É interessante destacar ainda a relação que Prado estabelece entre o pensamento
desenvolvido no interior da CEPAL e do ISEB no que se refere aos rumos que a sociedade
brasileira deveria seguir. A historiadora esclarece que uma das formas de incutir nas elites
brasileiras as propostas do nacional-desenvolvimentismo era a organização de cursos de
formação:
Nesses cursos era oferecida uma visão ampla e geral da História do Brasil
e do ponto de vista econômico as idéias aí apresentadas conjugavam-se
com algumas propostas defendidas pela CEPAL bem como por Celso
Furtado, que apesar de não integrar os quadros do ISEB era próximo do
Instituto e de alguns de seus intelectuais. Os integrantes do ISEB viram no
governo Juscelino o meio pelo qual seria possível que suas idéias fossem
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
124
postas em prática e dessa forma a instituição funcionou como aliada do
projeto desenvolvimentista implementado por Juscelino Kubitschek. Em
suas declarações públicas, Juscelino prestigiou o ISEB, definindo-o como
um centro de cultura, estudos e pesquisa. Diferenciava-os dos demais
órgãos universitários ao realçar a vocação do ISEB para o estudo dos
problemas brasileiros. Ressalte-se, no entanto, o fato de JK não ter
transformado os intelectuais do ISEB em seus assessores na orientação
nem na implementação do Plano de Metas para o desenvolvimento. Para
isto ele criou o Conselho de Desenvolvimento, que tinha esta missão
(PRADO, 2007, p. 3).
Edison Bariani (2005), em seu artigo ISEB: fábrica de controvérsias, nos apresenta
ao grupo de intelectuais fundadores do instituto:
O ISEB – que teve como ‘precursores’ o Grupo de Itatiaia e o IBESP
(Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) – nasceu e
morreu em circunstâncias curiosas, em momentos confusos, por meio de
decretos assinados por figuras inexpressivas da política brasileira
exercendo provisoriamente o poder: foi criado em 1955 por um decreto do
governo interino de Café Filho e extinto 13 abril de 1964 por decreto de
Ranieri Mazzili (presidente provisório). No início, congregava em seus
conselhos curador e consultivo uma enorme gama de personalidades das
mais variadas tonalidades ideológicas: Anísio Teixeira, Roberto Campos,
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Miguel Reale, Horácio
Lafer, Pedro Calmon, Augusto Frederico Schmidt, Sérgio Milliet, Paulo
Duarte, Heitor Villalobos, Fernando de Azevedo, San Tiago Dantas etc.
Tinha como diretor Roland Corbisier e como responsáveis pelos
departamentos Álvaro Vieira Pinto (Filosofia), Cândido Mendes
(História), Ewaldo Correia Lima (Economia), Hélio Jaguaribe (Ciência
Política) e Alberto Guerreiro Ramos (Sociologia); estes, juntamente com
Nelson Werneck Sodré – remanescentes do IBESP – tomaram os rumos
do instituto e ficaram conhecidos como os “isebianos históricos”
(BARIANI, 2005, p. 1).
A relação do ISEB com o governo JK foi amplamente discutida por Bolivar
Lamounier no artigo intitulado ISEB: notas à margem de um debate, publicado pela editora
Ática em São Paulo, no ano de 1977. No referido texto, ele afirmava que
Os estudos e discussões que se têm feito sobre a ideologia nacionaldesenvolvimentista parecem convergir na crítica segunda a qual o ISEB
(Instituto Superior de Estudos Brasileiros), extinto em 1964, foi um dos
grandes responsáveis, senão o grande responsável, por certa intoxicação
ideológica, obscurecendo as possibilidades de organização e atuação
autônoma por parte da classe operária. Existem, entretanto, inúmeras
maneiras de dizer isso, cada uma implicando diferentes juízos a respeito
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
125
do ISEB; e mais que isso, em distintos entendimentos a respeito do que se
passava no Brasil ao fim dos anos 50 (LAMOUNIER, 1977, p. 153).
No decorrer do artigo, Lamounier chama a atenção para sua discordância em relação
à interpretação de Caio Navarro Toledo, expressa no livro ISEB: fábrica de ideologias, no
qual o referido autor sistematiza de maneira particular a tese de defesa do nacionaldesenvolvimentismo por parte do ISEB, considerando que o instituto tutelava as classes
dominadas e hipotecava o apoio a uma elite nacionalista, transformando-se assim numa
“fábrica de ideologias”. Lamounier (1977) discorda da crítica feita por Toledo, segundo a
qual “o ISEB fazia mistificação ideológica porque sobrepunha a contradição
nação/antinação às contradições de classe, dando prioridade à primeira, ou mesmo
absolutizando-a”. Para o pesquisador, essas críticas, que não eram exclusivas de Toledo,
mas comum a outros autores, a exemplo de Marilena Chaui e Maria Sylvia de Carvalho
Franco (1978), eram pouco esclarecedoras. O autor acredita que os pesquisadores que
partilharam a tese de “mistificação ideológica” partiram de uma análise simplista e parcial,
pois consideraram tudo que se referia à “nação” como ideologia, e tudo que se referia às
classes, verdade/crítica. Para rebater as críticas de Toledo, Lamounier propõe então uma
análise que passaria por dois pontos: o primeiro seria uma referência mais exata ao contexto
de atuação do ISEB; o segundo, destinado ao reestudo de alguns conceitos implícitos no
trabalho de Caio Navarro.
Suas considerações sobre o trabalho de Toledo não pararam por aí – aponta ainda
para o fato de que ele teria discutido minunciosamente os textos do ISEB sem, contudo, ter
um enfrentamento adequado com o contexto. Afirma ele sobre a obra de Toledo:
Caio Navarro, como sugeri anteriormente, não acompanhou de perto a
relação entre os trabalhos do ISEB e o restante da produção intelectual e
política dos anos 50, o que pode ter sido uma boa decisão, no atual estágio
das pesquisas sobre o assunto; mas diz o suficiente, na questão da
“setorialização das camadas sociais”, para deixar alguns leitores, como é o
meu caso, com certa sensação de anacronismo (LAMOUNIER, 1977, p.
155).
Lamounier, numa defesa inconteste do ISEB, chama a atenção para o fato de que a
interpretação de Caio Navarro de Toledo produziu efeito nocivo nas pesquisas acerca do
tema, pois aguçava o apetite de autores que queriam ver o ISEB como causador do que veio
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
126
depois. Para o autor seria fácil, uma vez fracassado o projeto isebiano e que os governos
pós-1964 assumissem o “desenvolvimentismo”, voltar e ler nos textos do ISEB as mesmas
virtualidades, o mesmo futuro, as mesmas consequências (LAMOUNIER,1977, p. 156).
Apesar das críticas de Lamounier, em artigo posterior Caio Navarro Toledo
reconhece a diversidade de posições teóricas no interior do ISEB, o que talvez não ferisse o
núcleo central do pensamento isebiano. Acerca da importância política e teórica dos
intelectuais que compunham o instituto, aponta ele:
O ISEB se constitui num dos mais ativos núcleos de debate em torno do
nacional-desenvolvimentismo, durante quase década – de meados dos
anos 50 até o golpe de 1964. O instituto reuniu intelectuais e técnicos que
proviam de diferentes formações filosóficas e ideológicas. Entre elas o
marxismo, a sociologia do conhecimento de Mannheim, a fenomenologia
existencialista, o humanismo cristão etc.; ideologicamente, entre esses
intelectuais encontravam-se, socialistas, liberais democratas, católicos de
esquerda, ex-integralistas. Visões diferenciadas do nacionaldesenvolvimentismo se confrontarão abertamente dentro da instituição.
Como se sabe, num desses duros confrontos, Hélio Jaguaribe – inspirador
e fundador do ISEB – retirou-se do interior da instituição (TOLEDO,
2006, p. 1).
De minha parte, considero que as críticas de Lamounier não ofuscam a interpretação
de Caio Navarro, uma vez que o autor, como visto na passagem anteriormente citada,
demonstra ter consciência da heterogeneidade de posições teóricas e políticas presentes no
interior do instituto. Além disso, é preciso ressaltar que, em função do próprio contexto
histórico de criação do ISEB apontado por Lamounier – meados da década de 1950 –,
certamente seria compreensível uma disputa por hegemonia ideológica em seu interior, já
que alguns seus membros encontravam-se divididos entre a tradição getulista e a novidade
representada pelo nacional-desenvolvimentismo. Vale lembrar que do ISEB – que teve
como “precursores” o Grupo de Itatiaia e o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política) – faziam parte os assessores econômicos de Getúlio Vargas, a
exemplo de Alberto Guerreiro Ramos.
Como se observa, a ligação do grupo de intelectuais do ISEB com o governo
Vargas, que embora tenha assumido em seu segundo mandato uma posição favorável ao
desenvolvimentismo, ainda possuía em sua base de aliados as “velhas” tradições da
oligarquia que defendia um modelo de desenvolvimento centrado na exportação de
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
127
matérias-primas. Bresser-Pereira também indica a filiação entre os intelectuais do ISEB,
que veem no pacto populista de Getúlio Vargas um modelo para a revolução capitalista e
nacional de países periféricos e em seu populismo político uma primeira expressão do povo
e, portanto, da democracia. Anos depois, a Escola de Sociologia de São Paulo terá um olhar
negativo para a política populista de Vargas. Sobre a proximidade entre os integrantes do
ISEB e o governo, o autor aponta:
Nos anos 50, o ISEB identificava a industrialização, que se acelerara
desde 1930 com a Revolução Nacional Brasileira, e argumentava que
então, sob a direção de Getúlio Vargas, se formara um pacto político
nacional-popular unindo burguesia industrial, trabalhadores, técnicos do
Estado e a parte da velha oligarquia (a substituidora de importações, como
os criadores de gado do Rio Grande do Sul), que lutava contra o
imperialismo e a oligarquia agrário-exportadora (BRESSER-PEREIRA,
2005, p. 213).
Bresser-Pereira chama a atenção ainda para as características do projeto nacionalista
do ISEB, em suas palavras “bismarquiano”, nos moldes dos grandes países capitalistas que
só se desenvolveram após a constituição de Estados-nação que lideraram os processos de
desenvolvimento.
Podemos, assim, completar o conceito de desenvolvimento do ISEB e da
CEPAL: é o processo de acumulação de capital, incorporação de
progresso técnico e elevação dos padrões de vida da população de um
país, que se inicia com uma revolução capitalista e nacional; é o processo
de crescimento sustentado da renda dos habitantes de um país sob a
liderança estratégica do Estado nacional e tendo como principais atores os
empresários nacionais. O desenvolvimento é nacional porque se realiza
nos quadros de cada Estado nacional, sob a égide de instituições definidas
e garantidas pelo Estado. Nesta definição fica clara a importância das
instituições (BRESSER- PEREIRA, 2005, p. 213).
A partir das proposições de Bresser-Pereira, pode-se observar que a burguesia
nacional teve um papel central no processo de modernização/industrialização empreendido
no Brasil no decorrer dos anos de 1930 (governo de Vargas) a 1960 (governo dos
militares), mas não foi a protagonista principal desse processo, evidenciando, assim, o
caráter conservador da modernização efetivada no país. Podemos compreender também,
conforme as orientações da CEPAL e do ISEB, que seria impossível alavancar tal processo
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
128
sem a injeção de capital estrangeiro no país. Logicamente caberia ao Estado facilitar a
entrada desse capital no país para o financiamento de obras de infraestrutura, como
ferrovias, produção de energia elétrica e exploração de petróleo, que permitissem uma
alavancada nos negócios da burguesia nacional, principal classe beneficiada nesse processo.
Tais fatos podem ser constatados nas publicações que circularam no país nesse
período, a exemplo da revista Brasil-Oeste, que veiculou diversas matérias defendendo
investimentos em infraestrutura que pudessem contribuir para o avanço dos negócios do
empresariado da região centro-oeste, como demonstraremos no decorrer deste capitulo.
Como já evidenciamos, a Brasil-Oeste, editada em São Paulo em janeiro de 1956,
tinha como foco editorial apresentar a região centro-oeste como uma área estratégica de
investimentos para capitalistas estrangeiros e nacionais. O periódico se moldava
perfeitamente ao espírito da época de sua circulação (1956 a 1967), qual seja, o nacionaldesenvolvimentismo. Isso explicaria o fato de, em seus editoriais, encontrarmos diversas
vezes a defesa do governo de Juscelino Kubitschek e de suas ideias desenvolvimentistas,
que “por coincidência” estavam principalmente voltadas para a região, em função do
legado da Marcha para o Oeste proposta no primeiro mandato de Getúlio. Um dos temas
caros aos editores da revista e também ao nacional-desenvolvimentismo era a infraestrutura
que permitiria a ligação da região ao resto do país e, consequentemente, o escoamento de
sua produção, como obras de construção de hidroelétricas, ferrovias, rodovias e a
exploração de petróleo e minérios. Já no período militar novamente encontraríamos uma
defesa das ideias modernizadores do Estado autoritário, que propagava que somente o
desenvolvimento capitalista poderia combater a organização do comunismo no Brasil.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
129
O COMBATE AO PENSAMENTO COMUNISTA NA BRASIL- OESTE
Ao lado da defesa da modernização do campo, apontada anteriormente, outro tema
recorrente na revista era o ataque às propostas de esquerdistas que defendiam reformas
sociais para o país, como é caso da reforma agrária, verdadeiro fantasma comunista que
rondava os rurícolas mato-grossenses.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
130
(Brasil-Oeste, n. 89, janeiro de 1964, p. 11)
Como já destaquei anteriormente, o apoio ao golpe militar em Mato Grosso e em
outras regiões de grande produção rural, como o Paraná, foi bastante intenso, já que os
produtores da região associavam, erroneamente, as ideias socialistas e comunistas à
destruição da propriedade privada, que de acordo com a uma visão distorcida sobre esse
sistema político, seria tomada de seus proprietários e distribuída para os trabalhadores. O
artigo destacado acima demonstra o contentamento dos proprietários rurais após o golpe
que, segundo eles, devolveu a paz e segurança ao país. Já com o novo regime as
associações rurais deixaram de ser contrariadas com as tentativas de agentes subversivos de
transformar as associações de trabalhadores rurais em sindicatos, abrindo assim para
maiores conflitos entre os trabalhadores e patrões.
Ainda segundo os proprietários de terra do Paraná, tais sujeitos subversivos se
diziam “trabalhistas”, mas na verdade eram verdadeiros comunistas e criptocomunistas que
tentavam introduzir ali ideias estranhas à “vocação” ordeira do país. No artigo assinado
pelo presidente de uma associação rural, encontramos referências à verdadeira preocupação
desses líderes rurais, que era a de impedir que a ameaça de distribuir as suas terras se
realizasse. Segundo eles, tais agentes comunistas mantinham um clima de terror sobre a
classe trabalhadora e os ruralistas, que deveriam se unir em torno das associações rurais
para impedir a ação comunista no país. Assinalam ainda que a Brasil-Oeste, veículo de
imprensa destinado à defesa dos rurícolas, seria uma importante aliada nesse processo.
No caso de Mato Grosso, uma das organizações mais combativas em relação ao
anticomunismo foi a Ação Democrática Mato-Grossense (ADMAT), que defendeu
abertamente a necessidade do golpe militar e se tornou uma grande aliada do regime após a
sua instauração, tendo inclusive incentivado seus membros a delatar e caçar os comunistas
do estado. Em matéria veiculada na edição n° 89 da Brasil-Oeste, em 1964, encontramos
uma descrição da missão da ADMAT, qual seja: “Livrar o país das forças ocultas”. No
corpo do artigo os signatários, homens influentes ligados à política e à classe rural do
estado, atribuem o adjetivo “forças ocultas” ao comunismo e a outras doutrinas políticas
que atentassem contra a ordem vigente. O que fica explícito nas páginas da revista é, na
verdade, algo inerente à luta de classes já tão densamente analisada por Marx: as classes
conservadoras, imbuídas da paranoia de que uma revolução comunista estava para ser
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
131
implantada no país, temiam as ações de grupos que buscavam mudanças sociais que
tornassem o Brasil mais igualitário, portanto tacham todos os opositores do sistema
desigual capitalista como agitadores comunistas, conforme observa-se no trecho abaixo:
(Brasil-Oeste, 1964, p. 45)
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
132
Em outra matéria, na seção de economia, encontramos também uma denúncia do
descontentamento dos moradores de Mato Grosso com a recusa da Petrobras de financiar
pesquisas para a abertura de uma refinaria no Pantanal.
(Brasil-Oeste, 1964, p. 29)
Na matéria, os autores, anônimos, comparam a petrolífera brasileira a um soviete
que serviria para financiar ações do partido comunista com o apoio da União Nacional dos
Estudantes e da Central Geral dos Trabalhadores, que coordenavam as ações de promoção
do comunismo no país. O artigo traz ainda informações estapafúrdias, como a de que a
estatal importava até mesmo armas e outros apetrechos bélicos para atender aos atos
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
133
subversivos. Um ponto importante – e, digamos, bastante atual – que aparece na matéria é a
acusação de que a Petrobras esbanjava dinheiro em propinas, banquetes e viagens para que
os corruptos e comunistas promovessem o incêndio da nação.
O governo do presidente João Goulart era apontado na matéria como o momento em
que a corrupção e a rapinagem se tornaram recorrentes na instituição – qualquer
semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. Toda vez que as elites brasileiras
se sentem ameaçadas com medidas que alterem a divisão de renda, procuram estratégias
para desestabilizar o governo, e a corrupção é sempre o fenômeno evocado para promover
tal desmoralização.
Uma matéria publicada na edição n° 89, de 1964, demonstra claramente que a
grande preocupação da elite brasileira era principalmente a reforma agrária proposta pelo
governo, e se a mesma se realizaria nos moldes socialistas ou da democracia burguesa.
(Brasil-Oeste, 1964, p. 11)
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
134
No artigo assinado por João Probst, presidente da Associação Rural de Ivaí, no
Paraná, encontramos uma associação entre comunismo e a proposta de reforma agrária,
pois logo no início há uma saudação ao novo governo que, em suas palavras, restabeleceu a
paz e a segurança à nação. Em seguida, ele chama a atenção para o fato de a instituição do
regime militar impedir a ação de agitadores sociais que queriam transformar as associações
rurais em sindicatos, abrindo espaço para conflitos entre proprietários e trabalhadores.
Segundo o signatário, tais indivíduos se apresentavam como “trabalhistas”, mas na verdade
eram comunistas e criptocomunistas que divulgavam ideias contrárias ao povo ordeiro do
campo e, portanto, necessitavam ser combatidos antes que cumprissem a ameaça de
expropriar suas terras e distribuí-las aos seguidores do comunismo. É claro que a defesa da
democracia era o álibi utilizado para encobrir a defesa da propriedade privada e da
concentração de renda.
Esse tema é discutido, ainda, na edição de número 89, em janeiro de 1964, na qual
encontramos uma associação entre o governo de João Goulart e o comunismo. No artigo,
assinado por Sinizio Leite da Rocha e intitulado A democracia em perigo, ele assinalava em
suas páginas iniciais: “O Brasil atravessa presentemente as maiores crises de sua história:
crise de democracia, crise de autoridade, crise de justiça, crise financeira...” (Brasil-Oeste,
n. 89, 1964, p. 42).
Na sequência, o autor chama a atenção para o caráter comodista do brasileiro, que
permite problemas como no campo da política econômica e altos índices de inflação, e
ainda adverte que os responsáveis, os homens públicos, não se responsabilizam pela
questão. Nas entrelinhas, se analisado a partir do contexto em que foi escrito – pouco antes
do golpe de 1964 –, percebe-se que o foco do autor é a crítica ao modo como o governo de
João Goulart vinha lidando com a política econômica e a reforma agrária. Afirmava Rocha:
Não há inflação “incontrolável”, desde que há homens capazes, com boa
dose de espirito público. Não se acaba com a inflação usando de métodos
que servem para aumentá-la, como as encampações, a criação de
monopólios, as desapropriações por simples decretos, as emissões de
papel moeda fora da lei (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42).
O articulista também protesta contra o Congresso Nacional, que não estaria
cumprindo seu papel, já indicado na Constituição Federal. Para ele, o congresso estava
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
135
sendo omisso em relação aos desmandos do presidente: “O poder executivo está legislando
tanto ou mais do que o congresso. Ninguém protesta. Acredita-se, em vista desse
desinteresse, dessa falta de reação, em um consentimento tácito do poder legislativo”
(Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42).
A intenção clara do autor em atacar o governo Goulart e as organizações de
esquerda fica mais clara em outro trecho do artigo, no qual se mostra indignado com o fato
de “liberdades políticas e públicas” estarem sendo atacadas. Afirma ele: “São fechados o
IBAD, o IPES (e entidades congêneres), mas os agrupamentos da esquerda (Como o CGT,
o PUA e a UNE) continuam atuando. Todos os brasileiros conhecem muito bem a atuação
desses agrupamentos” (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42).
Na edição número 91, de março de 1964, a preocupação dos ruralistas com as
agitações sociais que, segundo eles, abririam as portas para o comunismo no Brasil, se
torna mais clara. Logo na capa observa-se uma crítica ao governo de João Goulart por parte
dos articulistas, que falam em nome dos ruralistas de todo o Brasil e, principalmente, do
Mato Grosso:
(Capa da revista em março de 1964)
No título, percebemos a crítica dos ruralistas às proposições de João Goulart e a
tentativa de associar a democracia ao capitalismo conservador, na medida em que se
posicionam em defesa da democracia e condenam as agitações sociais e os planos
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
136
demagógicos favorecidos por Jango. Na reportagem publicada na página 21, com o título A
classe rural reafirma sua mensagem ao povo, os rurícolas reafirmam os pressupostos
defendidos na VI Conferência Rural, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1961. Na
mensagem, assinada por 21 membros das federações rurais de todo o país, pela Sociedade
Nacional de Agricultura e ainda pela Confederação Rural Brasileira, os ruralistas afirmam o
seguinte:
A classe rural, embora das mais desamparadas pelos poderes (sic)
públicos e das maiores dificuldades encontradas no cumprimento de sua
nobre missão, leva, neste instante, quando termina a VI Conferencia
Rural, ao povo brasileiro uma palavra de fé e de confiança nos altos
destinos da pátria. Conclama todos os brasileiros à ordem, à paz, ao
respeito dos princípios democráticos e ao trabalho construtivo (BrasilOeste, 1964, p. 21).
É interessante notar o momento em que essa mensagem é reafirmada aos leitores –
março de 1964, um mês antes do golpe militar –, o que nos leva a pensar que os ruralistas
“pressentiam” ou sabiam que algo estava por vir e transformar o contexto político
brasileiro. Esse comportamento dos ruralistas e da sociedade civil, em sua maioria, reforça
a tese defendida por diversos historiadores sobre o caráter civil-militar do golpe de 19645.
Segundo Marcos Napolitano:
No dia 31 de março de 1964, um levante militar, amplamente apoiado por
forças civis, pôs fim não apenas no governo reformista de João Goulart,
mas também ao regime político conhecido como IV República ou
República de 1946. O regime democrático e constitucional que, por sua
vez, nascera de um golpe contra o Estado Novo de Getúlio Vargas, caía
5
REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45, p.
171-186, jan./jun.2010; ___. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; FICO,
Carlos. O Grande Irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a
ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; FIGUEIREDO, Argelina. Democracia
ou reformas? Alternativas democráticas à crise política (1961-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1993;
FERREIRA, Jorge & NEVES, Lucília Delgado Almeida. O Brasil republicano: o tempo da experiência
democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003; VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2003. As
críticas a esse processo podem ser encontradas em: MELO, Demiam Bezerra (org.). A miséria da
historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014; POMAR,
Pedro. O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar. Brasil de Fato, São Paulo, 10 de agosto de
2012, disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/10300. Acessado em 05 de novembro de 2014;
MORAES, João Quartim de. Sobre o “aprimoramento” da expressão ditadura militar. Disponível em
http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4891&id_coluna=24. Acessado em 05 de
novembro de 2014; TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “ditabranda”.
Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, pp. 209-217, 2009.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
137
diante de outro golpe contra um dos herdeiros do getulismo em sua fase
dita “populista-democrática” O esboço de uma política reformista, calcada
em três estratégias – a nacionalização da economia, a ampliação do corpo
político da nação e a reforma agrária – seria substituída por um regime
militar anti-comunista e anti-reformista, pautado por uma política
desenvolvimentista sem a contrapartida distributiva (NAPOLITANO,
2011, p. 2010).
É importante destacar que Napolitano identifica uma continuidade de projeto
político-econômico entre Getúlio e os governos subsequentes, caraterizado como política
reformista típica do nacional-desenvolvimentismo, estendendo sua análise até o período de
João Goulart, que aos seus olhos sucumbiu justamente por causa de sua tentativa de ampliar
demais o espectro das reformas, apesar de, em princípio, ser mesmo herdeiro do getulismo.
De nossa parte, concordamos com a análise de Napolitano e defendemos a ideia de que
houve, sobretudo no plano econômico, uma continuidade da modernização conservadora
desde Getúlio, mas acreditamos que este continua sendo o projeto adotado pelos militares
após a chegada ao poder. Já que num primeiro momento não havia grandes divergências em
relação aos rumos econômicos do governo Goulart, as querelas eram políticas, em função
da aproximação, na visão dos militares, de Jango aos líderes e propostas comunistas.
Apoiando-se nas ideias do historiador uruguaio René Dreifuss, que na obra 1964: a
conquista do Estado, a partir da análise dos documentos do IPES e IBAD estabelece uma
conexão na articulação e no financiamento do golpe entre militares e civis e deixa claro que
o ato, além de militar, também foi civil, Scocuglia demonstra que em princípio não havia
uma grande coesão em relação ao golpe no interior das corporações militares e que a
pressão veio também de interferências externas dos EUA e de instituições civis, como o
IPES e IBAD:
A respeito da conspiração, a jovem e média oficialidade de 64, não
corrobora, por exemplo, da posição-chave do IPES-IBAD, defendida pelo
trabalho de René Dreifuss, na organização-planejamento da conspiração e
execução do golpe. No entanto, ficaria difícil contestar tal autor quanto às
ocupações de postos chaves no processo (pós-golpe) de instalação e
institucionalização do regime civil-militar autoritário, por parte de
membros (intelectuais, empresários, tecnocratas e militares) do complexo
IPES-IBAD. Os depoimentos orais identificam um grupo de
conspiradores "intelectualizados" da “Sorbonne” - Escola Superior de
Guerra, e outro mais ligado à tropa. Converge para a dificuldade da
adesão do General Castelo Branco, conseguida pelos moderados (que
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
138
devolveriam o poder aos civis com brevidade) - inclusive, com o
propósito de "abrandamento preventivo", isto é, de controlar os mais
"duros". A adesão de Castelo Branco foi conseguida: 1) pelo desenrolar
das radicalizações das esquerdas e do presidente, acrescidas das quebras
de disciplina e de hierarquia internas (já em março de 64); 2) pela
aproximação com os serviços de inteligência norte-americanos e 3) para
evitar a "linha dura" e voltar (em curto tempo) à legalidade (civis no
poder, eleições etc.). A extrema necessidade de um líder "máximo" ajuda
a mostrar que as forças golpistas estavam longe da coesão nas suas ações
e idéias e sabiam contra quem (esquerdas pró-reformas) conflitavam e
contra o quê (comunismo, desordem, indisciplina...) estavam impondo a
pedagogia da força bruta. Segundo a maioria das declarações, não tinham
planos de governo, depois elaborados e executados sob a batuta de exipesianos-ibadianos como Bulhões, Reis Velloso, M. H. Simonsen,
Delfim Neto, Roberto Campos - o que não bate com a pesquisa de
Dreifuss (SCOCUGLIA, 2007, p. 6).
A posição do autor nos parece plausível, já que, a partir da revista por nós analisada,
observamos que havia uma preocupação da sociedade civil, pelo menos no centro-oeste,
com os destinos do governo Jango, principalmente com o escopo de suas reformas, que
poderiam prejudicar os interesses de acumulação de capital dos ruralistas dessa região.
Nesse sentido, a tese propagada pelos militares de que o Brasil estava prestes sofrer uma
revolução comunista – da qual, diga de passagem, a recente historiografia sobre o tema
discorda radicalmente6 –, foi estrategicamente adotada pelos setores conservadores da
sociedade, a exemplo dos ruralistas da região.
Ainda observando a matéria citada anteriormente, publicada em março de 1964,
observamos que os ruralistas retomam os princípios católicos da encíclica Mater et
Magistra, cujas diretrizes indicam um momento abertura da igreja para os leigos, porém
com o intuito de afastá-los de uma proposta de transformação social profunda oferecida
pelo comunismo/socialismo e levá-los a uma a transformação dentro dos limites da ordem
estabelecida pela tradição liberal. Dentre os pontos da referida encíclica, sobre a qual não
nos deteremos agora, destaco apenas dois que certamente foram tomados pelos ruralistas
para ludibriar seus interlocutores menos atentos, como se observa nas transcrições a seguir.
6
O historiador Carlos Fico, na obra O Grande Irmão, contesta a tese de uma conspiração comunista no
governo Jango. Para ele, “trata-se de especulação inconsistente não apenas porque é anacrônica. (...) Não há
nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasse um golpe e todos sabemos que um golpe era planejado
contra ele”.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
139
A defesa da propriedade privada se faz presente em sua décima nona proposição, na qual se
defende o seguinte:
19. A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito
natural que o Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente,
comporta uma função social, mas é igualmente um direito, que se exerce
em proveito próprio e para bem dos outros (JOÃO XXIII, Mater et
Magistra, p. 20).
Já na trigésima quarta proposição encontramos uma oposição muito evidente entre o
cristianismo e comunismo, o que certamente justifica o fato de os ruralistas usarem a
referida encíclica para justiçar suas propostas de reformas sociais:
34. Entre comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a
oposição é radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma
que os católicos adiram ao socialismo moderado: quer porque ele foi
construído sobre uma concepção da vida fechada no temporal, com o
bem-estar como objetivo supremo da sociedade; quer porque fomenta uma
organização social da vida comum tendo a produção como fim único, não
sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo
o princípio de verdadeira autoridade social (JOÃO XXIII, Mater et
Magistra, p. 1).
Após conclamarem os brasileiros, principalmente os do campo, a seguirem os
ensinamentos da encíclica de João XXIII, os representantes da elite ruralista se mostram
favoráveis, dentro dos limites da tradição cristão e liberal, às reformas de base, como
podemos vislumbrar na passagem a seguir:
A classe rural é a favor das reformas de base, tão reclamadas, para
atualizar as leis do país e possibilitar a melhor ação governamental, de
forma que possam ser satisfeitas as legitimas reivindicações do povo e
seus anseios de progresso e de mais justiça econômico-social. (...) É a
favor da reforma agrária, democrática, cristã e técnica que atenda às
peculiaridades das diversas regiões do país e vise dignificar o homem. Da
reforma agrária que facilite o acesso à propriedade da terra; que ampare os
ruralistas que vivem em terra alheia, regulamentando-se a locação e
parceria agrícola; que institua uma justiça rural especializada, rápida e
eficiente; que promova a sindicalização do homem do campo; que possa
efetuar a desapropriação de terras no interesse social, dentro dos
princípios constitucionais vigentes; que assegure os legítimos direitos dos
proprietários, parceiros e arrendatários” (Brasil-Oeste, 1964, p. 21).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
140
É oportuno retomar algumas das ideias que aparecem nas premissas ruralistas sobre
a reforma agrária. O primeiro ponto a ser ressaltado, valendo-me aqui da velha e boa ironia
marxista, é que o discurso dessa classe mais parece uma oração proclamando um devir de
base idealista, em que o mundo harmonioso se desenvolve por meio de um estado liberal
onipotente, aparado pelas bênçãos divinas.
Um segundo ponto a ser aclarado é a ideia de que a reforma agrária deveria ocorrer
por meio da compra de terras pelo Estado, para assim amparar os ruralistas, que são
evidentemente contrários à desapropriação de seus latifúndios improdutivos. Tal ideia se
coaduna com a terceira premissa defendida no discurso: a de que a reforma agrária deveria
ser feita de acordo com os parâmetros constitucionais vigentes, de forma a assegurar os
legítimos direitos dos proprietários, parceiros e arrendatários.
Apesar desse tom condescendente com as reformas de base, cujas contradições
podem ser facilmente lidas implicitamente por leitores mais atentos, os ruralistas acabam
retirando seu véu ideológico no decorrer do texto e revelando o verdadeiro objetivo de suas
proposições, qual seja: escamotear a luta de classes a partir do viés reformista, como fica
claro no seguinte trecho:
A classe rural é contra a agitação, a irresponsabilidade e a demagogia; é
contra remédios paliativos ministrados pelos poderes públicos para os
males da vida rural; é contra a espoliação e a tentativa de desorganizar a
produção através da intriga e da luta de classes (Brasil-Oeste, 1964, p.
21).
Ao deixar nítida a aversão à luta de classes em sua mensagem, divulgada um mês
antes do golpe de 1964, os ruralistas reforçam as teses do golpe civil-militar, apoiado pelas
elites (cristã, agrária, industrial) brasileiras contra a possibilidade da instituição do
comunismo em nosso país.
A aversão à reforma agrária proposta por Jango e aos comunistas se faz presente
também em outra página da mesma edição. Na matéria intitulada Demagogia e
irresponsabilidade os ruralistas criticam o presidente pela assinatura de um decreto que
autoriza a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes. A
indignação dos ruralistas com o governo fica esclarecida quando afirmam: “consuma,
assim, a anunciada ‘reforma agrária’, concebida nos bastidores do Palácio do Planalto, com
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
141
assessoria de agitadores comunistas ou comunizantes, que impunemente convulsionam a
nação” (Brasil-Oeste, 1964, p. 27).
A matéria supracitada aludia ao Decreto n. 53.700, de 13 de março de 1964,
assinado por João Goulart, que instituía as bases para a reforma agrária no Brasil:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe
confere o artigo 87, item I, da Constituição Federal, e tendo em vista o
disposto na Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962 e no Decreto-lei nº
3.365, de 21 de junho de 1941, com as alterações incorporadas ao seu
texto, DECRETA:
Em seu Art. 1º Ficam declaradas de interêsse social para efeito de
desapropriação, nos têrmos e para os fins previstos no art. 147 da
Constituição Federal e na Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, as
áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez) quilômetros dos eixos
das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas
por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e
açudagem (Brasil. Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964, Diário
Oficial da União - Seção 1 - 18/3/1964, Página 2604 – Publicação
Original).
Já no artigo 3º, o decreto presidencial estabelece as competências da
Superintendência de Política Agrária (SUPRA), como podemos observar no trecho abaixo:
3º A Superintendência de Política Agrária (SUPRA), fica autorizada a
promover, gradativamente, para execução de seus planos e projetos, as
desapropriações das áreas situadas nas faixas caracterizadas neste decreto,
tendo por fim realizar a justa distribuição da propriedade, condicionando
seu uso ao bem-estar social, e visando especialmente:
a) O aproveitamento dos terrenos rurais improdutivos ou explorados
antieconomicamente;
b) A fixação de trabalhadores rurais nas áreas adequadas à exploração de
atividades agropastoris;
c) A instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração
não seja obedecido plano de zoneamento agropecuário que vier a ser
fixado pela SUPRA;
d) O estabelecimento e a manutenção de colônias, núcleos ou cooperativas
agropecuárias e de povoamento;
e) A proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de
reservas florestais.
A matéria, que não é assinada por nenhum dos jornalistas responsáveis pela revista,
chama a atenção para o fato de que os governadores do Mato Grosso, Amazonas e
Maranhão já haviam prometido doar terras para aqueles que quisessem trabalhar, mas não
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
142
obtiveram resposta do governo central e novamente culpam os comunistas por isso.
Afirmavam eles:
Êsse oferecimento não teve ressonância. E nem poderia ter, pois é sabido
que SUPRA só cogita de propiciar as condições para um mais rápido
processamento da “revolução” em marcha... Desta forma, essa nação não
cumprirá os seus anseios de paz e de progresso. Os homens do governo
precisam compreender que a minoria que os cerca, disputando os restos
do festim, não representa o povo no seu sentido amplo e universal (BrasilOeste, 1964, p. 27).
O conteúdo da matéria demonstra claramente a insatisfação da classe burguesa rural
com os rumos do governo de João Goulart, em que os signatários implícitos do texto se
colocam como paladinos do povo e prometem pôr fim aos desmandos comunistas, como se
observa no trecho a seguir:
No governo Goulart o povo vem sendo afrontado nas suas necessidades
mais prementes, diante do aumento incontrolável do custo de vida;
espoliado nos seus direitos; ameaçado na sua sobrevivência, porque se
tornam mais sombrios os dias que despontam e se reproduzem com
frequência alarmante os atentados à propriedade privada; atemorizado
diante da conduta imponderada do Presidente e dos Ministros de Estado,
que infringem leis e cometem desatinos e violências (Brasil-Oeste, 1964,
p. 27).
Ao longo da matéria, os ruralistas novamente se intitulam como frente única
democrática cristã, que intentava naquele momento sustar os desatinos que se praticavam
no país. Em seguida arrolavam também as mazelas enfrentadas pelos produtores, homens
do campo, trabalhadores e advertiam para o perigo de uma revolta contra o governo e seus
desmandos:
As classes produtoras reclamam paz e estabilidade financeira, para
poderem redobrar esforços e promover novos empreendimentos de
progresso. Os homens do campo reclamam segurança, crédito e
assistência técnica, para poderem aumentar a produção. Os trabalhadores
ordeiros reclamam tranquilidade, estabilização de preços e assistência
social, para poderem equilibrar seus orçamentos domésticos e
proporcionar a seus filhos educação e saúde. Ordem e progresso são os
imperativos do momento, que todos reclamamos, mas que o atual govêrno
comprova estar incapacitado de promover. Ainda é tempo de prevenir a
explosão de revolta daqueles que sentem na própria carne as
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
143
consequências desastrosas da desordenada administração pública neste
país. Para os que subestimam a capacidade de reação do povo, convém
relembrar o exemplo das mineiras (que não temeram em apelar para o
presidente Goulart, no sentido de prestar valioso serviço à Nação,
renunciando à chefia do Govêrno) e dos mineiros que repeliram
corajosamente a interferência da SUPRA nos seus negócios internos...
(Brasil-Oeste, 1964, p. 27).
Na passagem acima a matéria faz referência ao manifesto de mulheres mineiras
ligadas ao Clube Militar de Belo Horizonte, que em 07/11/1963 pedem a João Goulart que
renuncie à presidência da república. A pesquisadora Ana costa (1998) aponta que os
militares viram nas mulheres, principalmente as da classe, garotas-propaganda ideais para
propagar a nova ideologia antijanguista e anticomunista. De acordo com ela, os militares,
Assumindo de maneira integral a imagem de donas de casa e mães de
família, levaram às classes médias urbanas o apelo político-emocional da
salvação da pátria contra o comunismo. Assim mesmo, discriminadas no
universo político do patriarcado capitalista, as mulheres foram chamadas a
participar da luta política, "...mas, note-se bem, ‘para ajudar os homens
responsáveis pelo destino da nação...’” (Costa, 1998, p. 81).
DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA À INSTITUIÇÃO DO REGIME MILITAR E ALGUNS DE
SEUS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO
Como já afirmamos anteriormente o autoritarismo foi a tônica utilizada pelo Estado
brasileiro, fruto do pacto da elite dominante de origem latifundiária ou burguesa, para
conduzir a modernização do país, bem como seus regimes políticos, com vistas a alijar do
processo diversos segmentos sociais.
Demerval Saviani aponta que o contexto da década de 1960 configurou-se como um
período controverso, de grandes expectativas, tanto no campo da esquerda, que considerava
essa situação como pré-revolucionária, quanto pela direita, que acreditava ser esse o
momento definitivo da expansão econômica brasileira. Ainda segundo ele, o slogan de “50
anos em 5” de Juscelino teve grande repercussão entre a sociedade brasileira. As frações de
classe travavam uma luta por interesses políticos, econômicos e sociais naquele momento
histórico, que era expressa na prática institucional representada por seus intelectuais e suas
visões de mundo, compondo assim um campo de produção ideológica em franca disputa.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
144
Saviani chama atenção também para a formulação ideológica que orientava o
governo de Juscelino no período, a saber: o nacionalismo do ISEB, criado um pouco antes
de sua eleição, e a doutrina da interdependência, elaborada pelos ideólogos da ESG,
considerados a intelligentsia militar mais sólida daquele período.
Enquanto o ISEB, de um lado, elaborava a ideologia do nacionalismo
desenvolvimentista e a ESG, de outro, formulava a doutrina da
interdependência, a industrialização avançava, impulsionada pelo governo
Kubitschek, que conseguia assegurar relativa calmaria política, dando
curso às franquias democráticas, graças a um equilíbrio que repousava na
seguinte contradição: ao mesmo tempo em que estimulava a ideologia
política nacionalista, dava sequência ao projeto de industrialização do
país, por meio de uma progressiva desnacionalização da economia. Essas
duas tendências eram incompatíveis entre si, mas no curso do processo o
objetivo comum agregava grupos com interesses distintos, divergentes e
até mesmo antagônicos. Nessas condições, a contradição permanecia em
segundo plano, em estado latente, tipificando-se na medida em que a
industrialização progredia, até emergir como contradição principal quando
se esgotou o modelo de substituição de importações (SAVIANI, 2008, p.
292).
Como se observa, a situação política e econômica era extremamente contraditória,
uma vez que a ideologia da política nacionalista era solapada por uma desnacionalização da
economia via uma forte introdução do capital estrangeiro para o financiamento das obras de
infraestrutura no Brasil. Embora a situação se mostrasse bastante contraditória, ao que
parece o nacionalismo foi, pelo menos por um certo tempo, capaz de unir em torno de si
classes e interesses divergentes.
A reflexão de Saviani nos parece bastante importante, pois destaca, no campo
ideológico de orientação de Juscelino, além do ISEB, já discutido por nós anteriormente
neste capítulo, a Escola Superior de Guerra (ESG) como um órgão fundamental no contexto
do nacional-desenvolvimento e, sobretudo, na ditadura militar. Hélio Jaguaribe, em uma
entrevista concedida em 2008, nos esclarece sobre a importância do ISEB, bem como sobre
quais motivos o levaram a sair desse órgão, em função de divergências com alguns
intelectuais que pretendiam utilizar o centro de estudos como espaço de militância política.
Essa discussão foi muito grande no ISEB e terminou, em dezembro de
1958, numa noite dramática, que começou às nove horas da noite e se
encerrou às cinco da madrugada seguinte. Nela terminei vencendo na
discussão, por um voto. Mas aí entraram as férias. Roland Corbisier, que
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
145
tinha sido derrotado, deu um pequeno golpe de estado e, aproveitando-se
da ignorância de Juscelino Kubitschek a respeito da estrutura do Instituto,
converteu o ISEB, que era um órgão parlamentar, num órgão burocrático.
Ou seja, o diretor passou a ser designação do Ministro da Educação e não,
como era antes, por eleição de um Conselho. Então, resolvi sair do ISEB,
porque esse ISEB burocratizado não me interessava mais. Na verdade, o
final do ISEB, a meu ver, não foi feliz, porque foi arrastado por uma visão
primária do marxismo barato, do comunismo de tipo muito fácil, e se
tornou um órgão de “agit prop” e não um Centro de pensamento. Álvaro
Pinto, que era um homem de pensamento, que foi o último diretor do
ISEB, foi arrastado, por deficiências de sua personalidade e outros
problemas complexos de ordem psicológica, a fazer do ISEB uma coisa
sem importância. Na verdade, no final, o ISEB era um eco do PC, não
tinha mais nenhuma vida própria. Mas eu estava afastado dele desde 1959,
de modo que não participei desse ISEB final (Entrevista a Hiro Barros
Kumasaka e Luitgarde O. C. Barros. Rio de Janeiro, 9 de março de 1988.
p. 12).
Além do ISEB, na formulação ideológica de propostas para a situação brasileira
durante o nacional-desenvolvimentismo outro órgão importante foi a ESG. Segundo o
historiador Luiz Felipe Mundin (2007), o Estado buscou na ESG e em outros órgãos, como
o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, seus principais projetos administrativos e
sua fundamentação e legitimação como aparelho regulador da vida social. Algumas das
grandes motivações para a criação da ESG foram a guerra fria e o anticomunismo
provenientes do contexto do pós-Segunda Guerra Mundial.
Mundim (2007), em sua dissertação intitulada Juarez Távora e Golbery do Couto e
Silva: Escola Superior de Guerra e a organização do Estado brasileiro (1930-1960),
destaca que desde a criação da ESG houve uma evolução conceitual e um desenvolvimento
muito fecundo da doutrina ideológica militar para formulação do poder a ser adotado pelo
Estado. O autor aponta a década de 1940 como o momento em que ocorre um fenômeno na
produção ideológica no Brasil, que passa a se afirmar por meio de práticas institucionais.
Órgãos como o ESG, o ISEB e o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS),
além de instituições partidárias e/ou universitárias, como o PCB e a USP, forneceram aos
intelectuais brasileiros os meios práticos para fundamentar seus projetos teóricos. Afirma
ainda que Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva tiveram um papel preponderante nesse
processo a partir de seus ingressos simultâneos na ESG, instituição responsável pela
formulação da “Doutrina de Segurança Nacional” (DSN).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
146
Juarez Távora e Golbery frequentaram a ESG, ambos no mesmo período,
quando também sistematizaram e escreveram os seus textos e as suas
conferências, depois publicados como livros – Juarez, de 1951 a 1952
como aluno, e de 1952 a 1954, como comandante; e Golbery, de março de
1952 a novembro de 1955, como membro do corpo permanente da Escola
(MUNDIM, 2007, p. 24).
Mundim afirma que Golbery, fortemente ligado à verdadeira elite brasileira,
extrapolou sua simples condição de intelectual militar, demonstrando grande capacidade
em auxiliar na estruturação do Estado autoritário brasileiro, na intenção de salvá-lo do que
considerava uma total desordem social.
O caso de Golbery é emblemático. Só se fala em Golbery remetendo-se
diretamente à ESG e, por conseguinte, ao Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (Ipes) e ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). A
observação da particularidade do lugar em que Golbery produziu o seu
projeto teórico para o Brasil torna possível fornecer os elementos
necessários para apontar, na relação instituição-intelectual, a composição
de um sistema simbólico que se pretendia hegemônico, na medida em que
levava adiante a autoconsciência de uma missão de salvação nacional.
Esse aspecto é mais claro em Golbery, que em sua atividade intelectual
pela ESG, em seus textos e palestras, precisa melhor a tarefa da
verdadeira elite brasileira, formada tanto por militares quanto por civis,
tecnoburocratas e especialistas da organização da produção no País, como
a única capaz de salvar a nação da desordem social e do atraso
econômico, características de um momento de anomia que o Brasil vivia
em sua história, podendo assim livrar a nação da “ameaça do comunismo”
(MUNDIM, 2007, p. 25).
Assim como Saviani, Mundim também concorda com a tese da dualidade intelectual
contraditória que marcou o Brasil na década de 1950, que encontrava o nacionaldesenvolvimentismo no ISEB e a forma nacional-conservadora e autoritária na ESG,
veiculada, sobretudo, no pensamento de Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva. Os
embates entre os intelectuais desses dois grupos eram constantes – se, por um lado, os
isebianos eram considerados infiltrados pela ESG, estes eram considerados ingênuos e
dicionarizados por aqueles, como destacou Hélio Jaguaribe em uma de suas entrevistas, na
qual deixava claro que as relações entre os dois grupos não eram muito complicadas na
década de 1950, mas se conturbaram na de 1960. Afirmava ele:
Eram relações não muito estreitas. Eu fui convidado, naquela época, umas
duas vezes, para fazer conferências na Escola Superior de Guerra.
Naquela ocasião, quando fui, não tive muito boa impressão da forma pela
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
147
qual os militares estavam tratando as coisas, porque eles tinham uma
perspectiva muito ingênua, dicionarizada: A, para a-água, a-ar etc...
Compilavam dados sob a forma de tópicos de uma enciclopédia, sem uma
estrutura conceitual organizadora, a não ser a concepção pouco civilista
do poder nacional. No nível puramente intelectual, a Escola Superior de
Guerra era então uma coleção de verbetes. Agora, ao nível da visão do
poder nacional, ela tinha uma certa filosofia, que considero inclusive
ingênua (Entrevista a Hiro Barros Kumasaka e Luitgarde O. C. Barros.
Rio de Janeiro, 9 de março de 1988, p. 16).
Para Mundim (2007), a ESG buscou, a partir da integração civil-militar
comprometida com o pensamento nacional conservador e autoritário, construir, para além
de uma representação instrumental da fração burguesa associada ao capital estrangeiro, as
condições de desenvolvimento capitalista dominado por ideólogos, especialistas e técnicos
de todas as áreas da produção. Segundo ele, foi por esse motivo que na década de 1960 a
referida escola aumentou a participação civil em suas fileiras, tanto na qualidade de
estudantes quanto por meio de civis palestrantes que eram convidados para suas atividades,
a exemplo de Roberto Campos, Octávio Gouveia de Bulhões, Eugênio Gudin e Lucas
Lopes (MUNDIM, 2007).
Luiz Felipe Mundim informa ainda que a DSN foi formulada no interior da ESG em
função de sua ligação com a FEB (Força Expedicionária Brasileira), com influência e
contribuição direta dos EUA em sua implantação, por meio de missão militar americana
vinda da National War College. Golbery esclarecia essa preocupação com a segurança na
obra Geopolítica do Brasil, conforme destaca:
A ESG partiria, assim, do princípio da guerra total como “fenômeno”
dado, e da orientação realista nas relações internacionais como premissa
para a tomada de posição na Guerra Fria. Quem melhor justificou essa
visão, e deu unidade ideológica para esse pensamento, foi Golbery. Tal
visão, introdutória ao seu mais conhecido livro, Geopolítica do Brasil,
teria a origem justificada no elemento primordial que impulsionaria o
homem diante do mundo e, portanto, impulsionaria o próprio Estado, que
seria a necessidade e a busca pela segurança (MUNDIM, 2007, p. 56).
A partir do estudo do pensamento de Golbery, Mundim demonstra que as estratégias
não deveriam mais se limitar ao âmbito militar, mas projetar-se aos mais elevados planos,
caracterizando-se como política de segurança nacional. Deveria ser constituída uma
“estratégia geral”, que estaria na cúpula da segurança nacional, de competência e
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
148
coordenação do governo. Segundo o historiador, por meio da ESG formar-se-iam, então, os
elementos ideológicos que legitimariam a interferência das forças armadas na vida política
do país. Ou seja: as forças armadas “melhor” representadas, os militares da ESG, que, em
conjunto com os civis “competentes”, definiam a nova elite esclarecida, pronta para se
opor à elite dominante, marcada pelo “populismo” dos governantes amparados pela ala
perigosamente “esquerdista” e de um “ingênuo nacionalismo” (MUNDIM, 2007, p. 60).
Tal estratégia desses órgãos controladores deveria se estender sobre todos os aspectos da
sociedade brasileira e, dessa forma, a educação não escaparia de tal controle e vigilância,
principalmente no período da ditadura militar.
Nesse movimento de relacionar a parte (educação) e o todo (a conjuntura brasileira),
Saviani afirma que o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a primeira
organização empresarial especificamente voltada para a ação política, foi desses
importantes órgãos responsáveis pelo apoio a um pensamento autoritário no país. Segundo
Saviani: “Sua finalidade explícita era combater o comunismo e aquilo que seus membros
chamavam de ‘estilo populista de Juscelino’” (SAVIANI, 2008, p. 294).
O IBAD, juntamente com a ESG e o IPES (Instituto de Estudos Políticos e Sociais),
criado em 1961 por um grupo de empresários e que teve como presidente Golbery do Couto
e Silva em 1962, foram os principais responsáveis por uma ideologia que visava combater
os interesses populares e instaurar um pensamento autoritário, tendo um papel de destaque
no golpe civil-militar de 31 de março de 1964.
Saviani chama a atenção para o fato de que a justificativa de que o golpe foi dado
com objetivo de salvar a conjuntura econômica do país não consegue anular o fato de que o
mesmo trouxe uma mudança radical na vida política brasileira por mais de 21 anos, que
guarda consequências traumáticas ainda nos dias de hoje. A educação foi um dos alvos
desse processo. Segundo ele, após a consumação do golpe, o IPES organizou um seminário
em dezembro de 1964 com o objetivo de pensar uma reforma educacional cujo propósito
era adequar a educação aos interesses do capital. Sobre esse processo, afirma ele:
A orientação geral traduzida nos objetivos indicados e a referência a
aspectos específicos, como a profissionalização do nível médio, a
integração dos cursos superiores de formação tecnológica com as
empresas e a precedência do Ministério do Planejamento sobre o da
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
149
Educação na planificação educacional, são elementos que integrarão as
reformas de ensino do governo militar (SAVIANI, 2008, p. 295).
Saviani afirma que, em face das atividades realizadas pelos estudantes universitários
em maio de 1968, o IPES realiza um novo seminário, no qual deixa mais claro seu objetivo
de adequar a educação ao novo regime, sendo decisiva a participação de Roberto Campos,
ministro do planejamento do governo Castelo Branco entre 1964 e 1967, que tinha como
função aprovar os nomes dos palestrantes convidados. A conferência-síntese do evento
girava em torno do conceito de capital humano, que deveria ser orientador do processo
educacional a partir daquele momento. Saviani destaca seus principais elementos:
Este sentido geral se traduz pela ênfase nos elementos dispostos pela
“teoria do capital humano”; na educação como formação de recursos
humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da
ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o
trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio
de formar, mediante habilitações profissionais, a mão de obra técnica
requerida pelo mercado de trabalho; na diversificação do ensino superior,
introduzindo-se cursos de curta duração, voltados para o atendimento da
demanda de profissionais qualificados; no destaque conferido à utilização
dos meios de comunicação de massa e novas tecnologias como recursos
pedagógicos; na valorização do planejamento como caminho para
racionalização dos investimentos e aumento de sua produtividade; na
proposta de criação de um amplo programa de alfabetização centrado nas
ações das comunidades locais. Eis aí a concepção pedagógica articulada
pelo IPES, que veio a ser incorporada nas reformas educativas instituídas
pela lei da reforma universitária, pela lei relativa ao ensino de 1º e 2º
graus e pela criação do MOBRAL (SAVIANI, 2008, p. 296-297).
Como é possível perceber, a partir desse momento, sobretudo com a parceria dos
EUA através dos acordos MEC-USAID, buscou-se implantar uma educação produtivista e
reduzir os custos de financiamento para tal área. Um dos pontos centrais desse processo é a
Reforma Universitária (Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968). Segundo Saviani:
Completando esse processo, foi aprovada, em 11 de agosto de 1971, a Lei
n. 5.692/71, que unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando
o curso de 1º grau de 8 anos e instituiu a profissionalização universal e
compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão-deobra qualificada para o mercado de trabalho (SAVIANI, 2008, p. 298).
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
150
Avaliando o legado educacional da ditadura civil-militar, Saviani destaca que, em
que se pese a tese de que o ensino de modo geral tenha crescido durante o período, ela deve
ser contraditada com o fato de que o lobby no Conselho Federal de Educação favoreceu
principalmente o crescimento das instituições privadas de educação no país.
Apesar da adequação aos interesses militares e ao capital, Saviani indica que a
educação é um campo de contradições.
Alexandre Lira chama a atenção para o fato de que as instituições escolares, fossem
de ensino fundamental, médio ou superiores, sofreram fortes represálias, inclusive com a
criação de legislação especifica que garantiu institucionalmente esse processo. Foi o caso
da Lei n. 4464/1964, instituída por Suplicy de Lacerda, que dizia o seguinte:
Fica vedado aos órgãos de representação estudantil qualquer manifestação
ou propaganda de caráter político partidário, bem como indicar, ou
promover ou apoiar a ausência coletiva dos trabalhos escolares, isto é,
manifestações contra o governo. Determinou também que diretores de
faculdades, de escola e reitores incorrerão em falta grave se, por atos,
omissão ou tolerância, permitirem o não cumprimento da lei (LIRA, 2010,
p. 64).
A vigilância era constante no interior das escolas e das universidades no período; as
denúncias poderiam vir de qualquer lugar, a qualquer momento. Alunos denunciavam
professores, professores denunciavam alunos e diretores e vice-versa; ninguém escapava
das práticas de delação de agentes infiltrados ou simplesmente favoráveis à ditadura. O
clima era de constante tensão e já não se sabia em quem confiar – muitos alunos e
professores foram expulsos e/ou mesmo presos e torturados.
A principal motivação para que os estudantes brasileiros organizassem uma
resistência ao regime era a tentativa de acabar com a Reforma Universitária e cessar os
acordos MEC-USAID, além de questionar a Lei n. 4464 (Lei Suplicy de Lacerda), que
significou um duro golpe à autonomia universitária na tentativa de transformar as
universidades em meras fundações particulares e de buscar extinguir os diretórios centrais
de estudantes (DCEs) e a própria UNE, substituindo-os pelo Diretório Nacional de
Estudantes (DNE), órgão que ficaria sob a tutela do Ministério da Educação, possibilitando
assim maior controle de suas ações.
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
151
José Luis Sanfelice, em sua análise sobre o movimento estudantil, indica que o este
não cedeu, mesmo com os processos repressivos:
O movimento estudantil continuava nas ruas mais do que nunca, naquele
ano de 1968. No mês de março ocorreu a morte do estudante Edson Luís
Lima Souto, quando a polícia reprimia uma manifestação no Calabouço
(Paz e Terra, abril de 1968: 282-7). Seguiram-se várias manifestações, em
diversos pontos do país, que culminaram, em 1º de abril, no maior
movimento de protesto contra o regime já conseguido até aquela época.
Era o quarto aniversário do movimento de 64 e, na cidade do Rio de
Janeiro, o choque de manifestantes com a Polícia Militar, auxiliada pelo
DOPS, resultou em mais dois mortos: o estudante Jorge Aprígio de Paula
e o escriturário Davi de Souza Neiva. Sessenta populares e 39 policiais
ficaram feridos, 321 pessoas presas e a cidade praticamente ocupada por
tropas federais. Em Goiânia, com um tiro de fuzil na cabeça, morreu o
estudante Ivo Vieira (SANFELICE, 1986, p. 145).
Sanfelice afirma que, aos poucos, a repressão foi minando a resistência do
movimento. A situação se agravou ainda mais com os acontecimentos repressivos do ano
de 1968 e com o fracasso do Congresso de Ibiúna, no qual todos os participantes foram
presos. O fato foi noticiado pelo jornal Folha de São Paulo em 13 de outubro de 1968.
13 – Congresso da UNE – todos presos: Cerca de mil estudantes que
participavam do XXX Congresso da UNE, iniciado clandestinamente num
sitio, em Ibiúna, no Sul do Estado, foram presos ontem de manhã por
soldados da Força Pública e policiais do DOPS. Estes chegaram sem
serem pressentidos e não encontraram resistência. Toda a liderança do
movimento universitário foi presa: José Dirceu, presidente da UEE, Luís
Travassos, presidente da UNE, Vladimir Palmeira, presidente da União
Metropolitana de Estudantes, e Antonio Guilherme Ribeiro Ribas,
presidente da União Paulista de Estudantes Secundários, entre outros. Eles
foram levados diretamente ao DOPS. Os demais estão recolhidos ao
presidio Tiradentes. Desde segunda-feira os habitantes de Ibiuna notaram
a presença de jovens desconhecidos, que iam à cidade comprar pão, carne,
escovas e pasta de dentes, despertando suspeitas ao adquirir mais de NCr$
200 de pão de uma só vez. Essas informações foram transmitidas ao
DOPS e à Força Pública, que desde quinta-feira já conheciam segundo
afirmaram —o local exato do Congresso. A denúncia de um caboclo, que
fora barrado ao tentar chegar até o sitio Muduru, onde estavam os
estudantes, fortaleceu a convicção da Polícia de que o congresso seria
realizado ali. Depois de avançar alguns quilômetros de carro e outro
trecho a pé, por causa da lama da estrada, 215 policiais chegaram ao local
às 7h15 de ontem, organizaram o cerco aos estudantes e dispararam
algumas rajadas de metralhadora para o ar, para intimidá-los. Sem resistir,
a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro
152
os congressistas foram colocados em fila e levados aos ônibus
requisitados para transportá-los para a capital. O governador Abreu Sodré,
ao ser homenageado por trabalhadores do DAE, no Horto Florestal,
referiu-se ao episódio e reafirmou sua disposição de “manter a paz e a
tranquilidade para a população que deseja trabalhar”. E acrescentou,
referindo-se à prisão dos participantes do congresso da UNE: “Agi com
energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após
horas de angustia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que
participavam do congresso da UNE (Folha de S. Paulo, domingo, 13 de
outubro de 1968).
De acordo com Sanfelice, esse foi um momento de recrudescimento do movimento
estudantil e também de outros movimentos sociais, pois com a publicação do Ato
Institucional n° 5 e em função dos acontecimentos de 1968, assim como do fracasso de
Ibiúna, a UNE entra para a clandestinidade, enquanto outros segmentos sociais
simplesmente se calam, por medo e desânimo.
Sobre esse processo de adequação das instituições escolares e das universidades à
mercantilização, conforme as orientações dos acordos MEC-USAID, Luiz Antonio Cunha
afirmou:
[...] a concepção de universidade calcada nos moldes norte-americanos
não foi imposta pela Usaid, com a conivência da burocracia da ditadura
mas, antes de tudo, foi buscada, desde fins da década de 40, por
administradores educacionais, professores e estudantes, principalmente
aqueles com um imperativo da modernização e, até mesmo, da
democratização do ensino superior em nosso país. Quando os assessores
americanos aqui desembarcaram, encontraram um terreno arado e
adubado para semear suas idéias (CUNHA, 1988, p. 22).
Como apontaram os autores anteriormente, a conjuntura do período militar no Brasil
foi marcada por atos repressivos que dificultaram a resistência dos diversos movimentos
organizados existentes naquele momento. No entanto, tais autores não descartam o fato de
que, mesmo na clandestinidade, os movimentos e sujeitos políticos encontraram diversas
formas de criticar e se contrapor ao regime, principalmente no interior das instituições
escolares e universitárias. Nestas, o papel dos professores foi fundamental para, a partir de
variadas estratégias, propiciar reflexões acerca das mazelas do regime.
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não
ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse
domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode
calar-se?
Os vencidos de agora serão os
vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".
Bertolt Brecht, Elogio da dialética
capítulo III
educação, hegemonia e contra-hegemonia
em aquidauana nos anos 1960
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
O
154
processo de modernização conservadora em Mato Grosso acabou por
constituir uma sociedade igualmente conservadora e desigual na região, como já
mencionado anteriormente. Assim, há de se concluir que a educação organizada nesses
moldes só poderia refletir seus ideais e os interesses de uma sociedade capitalista. Do ponto
de vista político-econômico, o cenário que vinha se desenhando no estado desde a década
de 1930 configurava-se como de atrelamento ao poder estatal de maneira fisiológica, não
importando qual fosse a vertente política que ocupava o poder. O desenvolvimento no
estado do Mato Grosso seguiu os moldes do restante do país, ou seja, privilegiou as elites e
prejudicou os mais pobres, seguindo a lógica contraditória de naturalizar a desigualdade,
própria do capitalismo. No entanto, não podemos considerar que esse processo se deu de
formar linear e sem maiores embates, pois desde o princípio e em todas as regiões a história
do capitalismo é marcada pela resistência das classes menos favorecidas.
A discussão do tema da ditadura neste capítulo insere-se no recente debate
historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político,
um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do Brasil –
eixo Rio-São Paulo. No campo da História da Educação, a reflexão sobre o tema tem maior
relevância ainda, na medida em que contribui para o aprofundamento de uma história
regional das temáticas educacionais e pelo fato de encontrarmos poucos trabalhos que
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
155
discutam a ditadura em regiões mais interioranas do país 7. No entanto, sabemos que não
podemos, sob pena de perdermos a dimensão da totalidade, descontextualizar os
acontecimentos que se passaram na pequena Aquidauana, deixando de relacioná-los à
conjuntura estadual e nacional. Portanto, buscamos apresentar, minimamente, um panorama
sobre a educação brasileira no período da ditadura militar com vistas a relacioná-lo com o
contexto local.
HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL DOS ANOS 1960
Segundo Luiz Antônio Cunha, os problemas que permitiram a estruturação de um
golpe de estado em 1964 remontam, em verdade, aos anos 1950 e estão ligados à
conjuntura daquele período. O autor afirma que o Brasil era um país de terceiro mundo e,
portanto, possuía uma série de problemas que se colocavam como entraves ao seu
desenvolvimento. Dentre eles destacam-se a primazia do latifúndio sobre a pequena
propriedade, a ligação da burguesia ao capital internacional, um movimento operário
vulnerável em função da intervenção governamental nos sindicatos e o anticomunismo
latente nas camadas médias, que levava a uma rejeição ao governo reformista de Jango.
Além disso, Cunha também destaca a atuação dos intelectuais orgânicos na
manipulação da opinião pública contra as forças progressistas da sociedade.
Os intelectuais orgânicos da classe dominante atuavam no Congresso
Nacional, formavam opinião pública através dos meios de comunicação
de massas, da escola, de parte das igrejas, de organizações tipo IPES
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de
Ação Democrática), instrumentalizando conceitos ideológicos de
“civilização ocidental e cristã”, corrompendo com dinheiro da embaixada
americana (eleições de 1962) com o objetivo político de conservação das
estruturas, contra as reformas ou qualquer mudança, escamoteando a
discussão da luta de classes (CUNHA, 1994, p. 9).
7
Em recente levantamento, realizado em março de 2014 no banco de dados da CAPES sobre a temática
educação e ditadura militar no Mato Grosso, encontramos as seguintes obras: 1. FIGUEIRA, Katia Cristina
Nascimento. Forças armadas e educação: o colégio militar de Campo Grande-Mato Grosso do Sul (19332010). Tese de doutorado em Educação defendida no programa de pós-graduação da Universidade Federal de
São Carlos em 01/06/2011; Rodrigues Netto, Miguel. As transformações no mundo do trabalho e os reflexos
no sindicalismo em Mato Grosso. 01/03/2011, 157 fls. Mestrado Acadêmico em Política Social Instituição de
Ensino: Universidade Federal de Mato Grosso. Biblioteca depositária: UFMT.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
156
Um dos aspectos interessantes do trabalho de Cunha é o de apontar para o fato de
que, apesar desse contexto sombrio da sociedade brasileira, alguns educadores, como o
pioneiro da década de 1930 Paschoal Lemme, conseguiram tomar consciência de que os
problemas que enfrentavam não se circunscreviam apenas ao espaço da sala de aula, mas
também ao seu entorno, apesar do trauma repressivo que enfrentaram desde a ditadura do
governo Vargas. Segundo Cunha, com a crise de 1950-60, outros educadores começaram a
se preocupar com as questões que se passavam além dos muros da escola. Dentre eles,
destaca Paulo Freire, que no Congresso de Educação de 1958 denunciou a relação entre
pobreza e analfabetismo, propondo uma “educação com o homem e não para o homem”.
Nesse momento, Freire demonstrou sua preocupação com o lugar social do educador e da
educação, propondo uma visão transformadora para esse campo.
Cunha aponta que o referido congresso trouxe novas esperanças para os educadores
brasileiros através das 210 teses que surgiram e significavam um alento para um contexto
social e educacional tão conturbado como aquele. Talvez elas pudessem significar uma
superação dos fracassos enfrentados nas décadas anteriores, conforme listou Cunha:
A Alfalit (Agência Alfabetizadora Confessional), a Cruzada Nacional de
Educação (1932), a Bandeira Paulista de Educação (1933), a Cruzada de
Educação de Adultos (1947), o Sistema Radioeducativo Nacional –
SIRENA (1957), a Campanha Nacional de Adultos e Adolescentes (19471954), a Educação Rural (1952-1959), a Campanha Nacional de
Erradicação do Analfabetismo (1958) (CUNHA, 1994, p. 12).
O autor aponta que, apesar de os governos de Juscelino, Jânio Quadros e o período
parlamentarista terem apresentado propostas para a questão educacional, nenhuma causou
tanta discussão como a que girou em torno da LDB, que se iniciou em 1948 e foi
promulgada pela Lei n. 4.024, de dezembro de 1961. Tal debate se desdobraria até 1964,
quando o golpe silenciou a todos e impôs não só uma nova ordem social, mas também
educacional, opondo de um lado os privatistas e, de outro, os defensores da escola pública.
Essa defesa remontava aos escritos dos pioneiros da década de 1930 – Paschoal Leme e
Anísio Teixeira –, que foram responsáveis, dentre outras coisas, pela elaboração do
manifesto dos pioneiros da educação nova.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
157
O embate entre privatistas e defensores da escola pública acabou por criar uma LDB
que conciliava as propostas de Mariani e Lacerda.
Assim, no Brasil, o ensino é de responsabilidade tanto do poder público
quanto da iniciativa privada (art. 2). A gratuidade, conquista
constitucional, fica sem explicitação. Abre-se a porta para o Estado
financiar a escola privada (art. 95) (CUNHA, 1994, p. 13).
Como se pode notar a partir das reflexões de Cunha, o campo educacional brasileiro
sempre foi marcado pela contradição e pela luta entre grupos que pensavam a educação a
serviço do capital e os que defendiam a escola pública como possibilidade de
transformação da sociedade. Nesse processo, tanto as entidades patronais, como IPES,
IDORT e IBAD, quantos os partidos, como o PCB, tiveram um papel importante, e é sobre
isso que trataremos no decorrer deste capítulo.
Se de um lado tivemos entidades como IPES e IDORT propondo uma educação
conservadora e instrumental para o favorecimento do capitalismo, por outro, tanto nos
documentos oficias do PCB quanto na produção de alguns dos intelectuais ligados a ele
encontramos várias referências à defesa da escola pública e de uma educação
transformadora, bem como uma reflexão sobre a função de educadores e estudantes dentro
do processo de superação das desigualdades sociais.
AS ENTIDADES PATRONAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA
O IPES, fundado no ano de 1961 por empresários brasileiros, agia fortemente no
sentido de desestabilizar o governo João Goulart. Além de editar livros, panfletos e veicular
propagandas antigovernistas, atuava como lobista no Congresso Nacional junto a
parlamentares contrários a João Goulart, na tentativa de barrar os projetos de governo,
sobretudo as reformas de base.
Sobre a atuação dos intelectuais do IPES nas atividades de oposição sistemática ao
governo de João Goulart, Hernán Ramírez, em sua dissertação de mestrado Os institutos de
estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em
perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996, destaca que,
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
158
Com o objetivo de disseminar na opinião pública o pensamento e
atividades do IPES recorreu aos meios de imprensa falada e escrita. Dada
a natureza de suas atividades, os membros desse grupo estavam
estritamente vinculados com a mídia, entre eles encontramos no Rio de
Janeiro a Nei Peixoto do Valle; o proprietário da Denisson Propaganda
José Luiz Moreira de Sousa; o escritor e jornalista Glauco Carneiro; José
Rubem Fonseca; Hélio Gomide, e o general Golbery do Couto e Silva.
Enquanto que em São Paulo, dedicavam-se a essa atividade Paulo Ayres
Filho e o proprietário da Norton propaganda, Geraldo Afonso. Também
colaboravam Enio Pesce; Flávio Galvão d´O Estado de São Paulo; Luiz
Cássio dos Santos Werneck; Silvério Lobo, da Denisson Propaganda;
Evaldo Pereira Simas, que viria ser editor da revista da ACRJ, ligado a
augusto Trajano de Azevedo Antunes; Jorge Sampaio e Alves de Castro,
do “Repórter Esso para todo o Brasil” da TV Tupi, que trabalhavam
conjuntamente Arides Viscondi; Antônio Peixoto do Valle e Wilson
Figueiredo, editor do Jornal do Brasil (RAMÍREZ, 2005, p. 201).
Ramírez afirma que, apesar de sua importância, o IPES teve vida curta, apenas 10
anos; mesmo assim, aponta pelo menos quatro períodos distintos de sua história, a saber:
O primeiro, o da criação e organização do órgão, vai de novembro de 1961 a
outubro de 1962, quando foram realizadas diversas ações com o objetivo de desestabilizar o
governo de João Goulart.
O segundo encontra-se circunscrito ao período de 1962 a 27 de maio de 1964,
quando as duas filiais do IPES se separam, originando a subsidiária carioca. Esse foi o
momento de esplendor do órgão, pois muitos dos empresários filiados passaram a ocupar
cargos oficiais e, portanto, a contribuir com quantias mais generosas para a instituição,
garantindo maior participação política da entidade.
Já no terceiro momento, de 1964 a 1967, o IPES busca se reposicionar dentro do
contexto interno e externo do país, tentando encontrar uma função adequada para o
instituto, cuja proximidade com autoridades políticas daquele momento dava-lhe grande
prestígio; no entanto, essa situação começa a mudar no momento de instauração do golpe
civil-militar de 1964, quando a influência dos militares cresce na mesma medida em que o
poder do grupo diminui.
O quarto período vai de 1967 a 1971, momento em que o IPES encerra suas
atividades, após anos de agonia em face das dificuldades de arregimentar novos sócios e
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
159
colaboradores/patrocinadores, assim como define os rumos que a entidade iria seguir dali
em diante.
Ao longo de sua atuação, o IPES teve como principal objetivo a filiação de
empresários e intelectuais com a intenção de formular estudos e realizar palestras e
seminários que pudessem influenciar a mudança da conjuntura política do país. Certamente
por esse motivo o principal intento era discutir temas candentes na sociedade brasileira,
com vistas a influenciar as medidas que seriam tomadas acerca deles. Entre os estudos
feitos, destacam-se aqueles sobre as reformas de base, realizados de 1962 a 1963, o clico de
debates promovido em 1966, o Fórum de Educação em 1968 e ainda o fracassado estudo
sobre entraves entre governo e empresas, ocorrido nesse mesmo ano.
O objetivo principal do IPES era, por meio da articulação com outros órgãos,
apresentar propostas que pudessem se contrapor às alas mais progressistas da sociedade,
formulando planos que atendiam a perspectivas conservadoras do governo, como se
observa:
Entre 1962 a 1963, o IPES desenvolveu uma ambiciosa tarefa que
consistia em fazer análises sobre um ampla gama de questões,
fundamentais para a reforma integral do estado do Brasil, com o propósito
de participar no debate político e constituir-se num contrapeso às
propostas vindas de outros setores, habitualmente englobados sob o
adjetivo “progressista”, nessa tarefa precisou articular-se com outros
institutos de pesquisa, como o IBAD, nos casos da Reforma Agrária e da
Habitação Popular, e a FGV, nos casos de Reforma Administrativa e
Reforma Tributária, que já estavam encaminhados (RAMÍREZ, 2005, p.
221).
O interesse do IPES era interferir em questões importantes com o objetivo de
influenciar as políticas governamentais por meio da pressão de empresários que
colaboravam economicamente para seu funcionamento e da influência ideológica de seus
intelectuais. Como adverte a pesquisadora Maria Victória Benevides, militares, técnicos e
intelectuais tiveram um papel ativo no processo de oposição ao governo de João Goulart.
Benevides destaca na ação dos militares a importância da obra de Golbery sobre seus
liderados:
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
160
Muito mais importante do que “checar” nomes nas listas de associados do
IPES (e vários citados tiveram participação meramente acidental), é
perceber, no texto, a sólida articulação entre empresários, intelectuais,
técnicos e militares em autênticos grupos de pressão, e não simples
conspirações. Quando se entrega um livro ao público nunca se sabe o uso
que lhe será dado. É bem possível que aos militares liderados pelo general
Golbery tenha agradado o reconhecimento de seu alto grau de eficácia
como agentes ativos numa revolução, e não numa quartelada
(BENEVIDES, 2003, p. 257).
Em relação aos empresários como agentes orgânicos do conservadorismo,
Benevides apresenta a tese de que a elite se saiu mal no processo, ou por desconhecimento
dos rumos que tomaria o país ou por mera incompetência.
Aos empresários (incluindo aqueles que têm feito publicar curiosos
desmentidos) deve também ter agrado o papel de intelectuais orgânicos
desta “revolução burguesa”. Enganam-se, senhores. A tese é clara, e a
continuidade do processo na já chamada “década da infâmia” (pós AI-5),
provaria que, sob qualquer ângulo que se observe, a elite orgânica se sai
mal... Quanto aos empresários, ou já sabiam dos rumos da revolução (a
estatização e a repressão) e se tornaram, portanto, cúmplices do arbítrio e
do “estatismo selvagem” (na expressão recente de um indignado
representante da classe), ou não sabiam e se mostravam incompetentes,
sem uma clara visão do processo histórico. Quanto aos militares, muito
ainda precisa ser esclarecido, além da hipótese que reduz seu importante
papel no movimento de 64 (BENEVIDES, 2003, p. 257).
A título de exemplo, podemos destacar o plano elaborado em parceria com o IBAD
para a reforma agrária. O referido estudo foi encomendado para um conjunto bastante
amplo de intelectuais, mas foi coordenado por um grupo mais reduzido; entre os signatários
do plano podemos nomear José Artur Rios, Ivan Hasslocher, Edgar Teixeira Leite e Paulo
Assis Ribeiro (RAMÍREZ, 2005).
Ainda como destacou Ramírez, a questão da reforma agrária acabou criando atritos
entre os membros do IPES do Rio de Janeiro e de São Paulo, posto que a proposta
formulada pelos intelectuais da filial carioca privilegiava os interesses agroindustriais e,
portanto, feria os do grupo paulista, ligado aos setores agrários, que teriam muito a perder
com tais propostas. Por esse motivo, o IPES acabou apresentando um plano que se pautou
em propostas científicas e terminou por divulgá-lo sem fazer referência ao seu nome e ao
do IBAD.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
161
Tal plano seria apropriado posteriormente por parlamentares como Aniz Badra, que
transformou as propostas num anteprojeto de lei com vistas a determinar os rumos da
reforma agrária no Brasil. No entanto, acabou sendo derrotado por João Goulart, que
assinou o Decreto de Reforma Agrária e criou a Superintendência para a Reforma Agrária
(SUPRA).
O IPES apresentou, através dos parlamentares ligados a ele, mais de 24 projetos de
lei ao Congresso Nacional, participando assim ativamente do debate acerca dos principais
problemas da conjuntura brasileira. Um dos acontecimentos e debates mais importantes
ocorreu em 1968, com a organização do Fórum de Educação, patrocinado pelo Jóquei
Clube Brasileiro e pela empresa Klabin Irmãos S.A.
A questão principal que motivou a realização do congresso foi a preocupação com
as manifestações estudantis, que mostravam descontentamento com a conjuntura política e
o sistema de ensino vigente. Talvez por esse motivo foram convidadas grandes
personalidades do meio educacional do período, que contribuíam para a busca de soluções
que pudessem aumentar o controle sobre os estudantes e seus movimentos organizados. Tal
premissa se tornava clara no próprio livro que sintetizou as palestras do fórum, que recebeu
o título A educação que nos convém, também patrocinado pelas entidades promotoras e
pela APEC Editora S.A.
O seminário, realizado em outubro/novembro de 1968, foi organizado pelo Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES/GB – e teve o patrocínio da Pontifícia Universidade
Católica do Rio – PUC/RJ. Na síntese dos debates, publicada pela APEC Editora S.A. em
1969, encontramos o principal objetivo do grupo: organizar a educação brasileira no
período posterior ao golpe. Na apresentação da referida obra, feita pelo vice-presidente do
IPES, Glycon de Paiva, há a afirmação de que o movimento de maio de 1968 em Paris teve
repercussão em todo o mundo; no Brasil eclodiu de forma calculada no segundo semestre
daquele ano e “terminou por constituir-se em um dos motivos da aplicação de medidas
excepcionais a que o Governo Federal se obrigou a lançar mão para restabelecer a ordem,
calculadamente perturbada” (PAIVA, 1969, p. III).
Justificando, portanto, que a desordem, com intenções boas ou más, teria sido
realizada em função da falta de qualidade de ensino, Paiva afirmava que o IPES e a PUC
tinham o objetivo de debater um tipo de educação conveniente aos interesses brasileiros e,
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
162
por esse motivo, o seminário foi organizado. O tema I, “Objetivos e métodos da educação
brasileira”, foi debatido pelo padre Fernando Bastos D`Ávila, S. J., que assim definia os
objetivos da educação:
Ela implica, em primeiro lugar, uma exigência de promoção de valores
morais através da educação. Ela implica em segundo lugar, a exigência da
formação técnico-cientifica, isto é, de uma educação que prepare o
homem a uma tarefa útil para a promoção de sua comunidade (ÁVILA S.
J., 1968, p. 2).
Para efeito de síntese do pensamento que perpassou os diversos debates do
seminário, creio que essas duas afirmações serão suficientes, pois a partir delas podemos
inferir que a educação conveniente ao país após o golpe voltava-se para a formação de um
cidadão cordato e nacionalista, que respeitasse a religião, a pátria e os símbolos nacionais, e
que ainda fosse útil, no sentido positivista da palavra, à sua comunidade e país. Ou seja,
como definiu Saviani, baseava-se na teoria do capital humano e preconizava uma educação
para formação de recursos humanos que seriam empregados no desenvolvimento
econômico dentro dos parâmetros do sistema capitalista (SAVIANI, 2008).
Os conflitos com os dirigentes conservadores eram anteriores ao golpe. Lacerda já
havia enfrentado a fúria de alguns estudantes da Faculdade Nacional de Filosofia no ano de
1963. O fato foi noticiado em tom de crítica no jornal Folha de São Paulo, publicado no dia
31 de dezembro de 1963, sob o título Exército intervém em conflito com Lacerda, conforme
apresentamos a seguir:
O governador Carlos Lacerda foi violentamente hostilizado, esta noite por
alunos da Faculdade Nacional de Filosofia, que conseguiram colocar em
risco sua segurança. Pressionado pela massa estudantil, o governador
respondia a altos brados às ofensas que lhe eram dirigidas. O governador
da Guanabara fôra convidado para paraninfar o ato de formatura de 11
alunos do curso de jornalismo, que resolveram fazer a solenidade em
separado, contrariando a maioria dos formandos, que haviam escolhido
para paraninfo e patrono, respectivamente os professores Celso Cunha e
Anísio Teixeira. Chegando à faculdade, o governador foi impedido, pelos
estudantes, de entrar no prédio. O reitor Pedro Calmon tentou demover os
jovens da idéia, mas não conseguiu. (...) À medida que os atos de
hostilidade iam aumentando o governador da Guanabara resolveu, depois
de conferenciar com os responsáveis pelo policiamento, passar para o
prédio defronte à Faculdade. Durante o trajeto foi acossado pelos alunos
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
163
mas, fortemente protegido pela polícia do exército, conseguir alcançar seu
objetivo. (Folha de São Paulo, 1963, p. 1)
Esse fato nos dá uma amostra da relação de hostilidade que se estabeleceria entre
estudantes e governo após o golpe, uma vez que, num contexto de governos civis, a tensão
já se mostrava grande. Isso talvez explique a grande preocupação dos militares recémempossados com a influência das ideias de esquerda nos meios estudantis naquele período.
Nesse sentido, o fórum era uma forma de tentar contornar a situação de animosidade entre
tais grupos.
A respeito do fórum organizado pelo IPES, Demerval Saviani esclarece que, após o
golpe, umas das grandes preocupações daquele instituto foi a educação, evidentemente em
função da preocupação com o controle da oposição estudantil, como já citamos
anteriormente. De acordo com o autor, as atenções do governo militar nesse período
voltavam-se para aspectos mais específicos do sistema educacional, como, por exemplo, a
profissionalização do nível médio, a integração dos cursos superiores de formação
tecnológica com as empresas e uma maior influência do Ministério do Planejamento sobre
o da Educação na planificação educacional.
A iniciativa da organização do Fórum se pôs como uma resposta da
entidade empresarial à crise educacional escancarada com a tomada das
escolas superiores pelos estudantes, em junho de 1968. Durante os meses
de julho, agosto e setembro, o IPES se dedicou à preparação do evento,
que se realizou de 10 de outubro a 14 de novembro de 1968. Teve papel
decisivo na organização do evento Roberto de Oliveira Campos, que havia
sido ministro do Planejamento do governo Castelo Branco entre 1964 e
1967, situação em que definiu a política econômica do regime militar e
implementou suas principais medidas. A ele eram submetidos os temas e
os sumários das conferências e os nomes dos participantes a serem
convidados. O Fórum contemplou onze temas, sendo quatro abordando a
educação de modo geral, seis tratando de “aspectos do ensino superior” e
o último, definido como “conferência-síntese”, versou sobre os
“Fundamentos para uma política educacional brasileira” (IPES/GB, 1969)
(SAVIANI, 2008, p. 296).
Ao analisar a proposta de educação defendida pelo Fórum de Educação do IPES,
Saviani aponta que ela se centrava na formação do trabalhador e buscava por meio da
sondagem de aptidões, planejamento e racionalização das atividades educacionais uma
formação rápida de mão de obra para o mercado nacional. Ressalte-se que esses princípios
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
164
influenciaram muito na formulação da reforma universitária, articulada em parceira com a
USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
Como é possível observar, além do IPES, o IBAD também teve uma função
primordial na articulação de diversas ações de cunho ideológico que abririam caminho para
a intervenção militar.
Pode-se observar que o grupo do complexo ligado ao IPES/IBAD se colocava como
intelectuais representantes dos interesses da burguesia conservadora. Cabe ressaltar que o
conceito de intelectual utilizado por nós permite que caracterizemos assim a agremiação
civil-militar que se aglomerou em torno do complexo, conforme a metodologia referenciada
nos princípios teóricos de Gramsci (1979) de que todo grupo social carrega consigo
intelectuais que procuram lhe dar coesão. Assim, acreditamos que as contribuições
apresentadas não eram feitas de forma fortuita, mas sim articuladas organicamente em
torno de uma proposta ideológica antijanguista, apoiada pelos setores mais conservadores
da sociedade brasileira.
O IBAD foi fundado em maio de 1959 por Ivan Hasslocher, norte-americano dono
da agência de propaganda chamada Promotion. O instituto sobrevivia recebendo
contribuições de empresários brasileiros e estrangeiros que discordavam do governo e
consideravam necessário organizarem-se com o objetivo de combater o comunismo no
Brasil e influir nos rumos do debate econômico, político e social do país. O principal foco
do IBAD era desenvolver ações políticas antiesquerdistas.
A elite orgânica empresarial se fez defensora e porta-voz dos pontos de
vista moderados do centro, ampliando as perspectivas elitistas e
consumistas das classes médias e fomentando o temor às massas.
Revigorava a percepção solipsista das classes médias quanto à realidade
social brasileira e as influenciava contra o sistema político populista
(DREIFUSS, 1987, p. 230).
O instituto procurava, através do repasse de verbas e de propagandas, influenciar
movimentos organizados de trabalhadores, estudantes e militares, tais como o MSD –
Movimento Sindical Democrático –, a Redetral – Resistência Democrática dos
Trabalhadores Livres – e o MED – Movimento Estudantil Democrático –, com vistas a
desestabilizar os governos progressistas e manter a ordem conservadora no país.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
165
Nesse quadro, a intervenção norte-americana se punha de prontidão, seja
ao destinar recursos financeiros, sem passar pelos olhos do Estado, para os
governadores comprometidos com o combate ao comunismo, “capazes de
sustentar a democracia”. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda,
recebeu entre 1961 e 1962, cerca de 71 milhões de dólares. Da mesma
forma, o IBAD - o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, recebia
créditos, mediados, inclusive, pela embaixada dos Estados Unidos,
apoiando candidatos a fim de formar uma base parlamentar de direita,
agrupada na ADP - Ação Democrática Parlamentar (RAGO FILHO, 1998,
p. 102).
René Dreifuss, ao analisar a ação do IBAD, afirma que a ação ideológica das elites
orgânicas consistia numa doutrinação que se alastrava pelo Congresso Nacional, sindicatos,
movimento estudantil e clero. Afirmava ele que “a doutrinação geral visava apresentar as
abordagens da elite orgânica aos responsáveis por tomadas de decisão políticas e ao público
em geral, assim como causar um impacto ideológico em públicos selecionados e no
aparelho do Estado” (DREIFUSS, 1987, p. 231).
Esse tipo de doutrinação se dava, sobretudo, por meio da mídia de caráter
defensivo-ofensivo, uma vez que buscava neutralizar as ideias de esquerda – atacando o
comunismo, o socialismo, a oligarquia rural e a corrupção do populismo – e promover
atitudes e pontos de vista tradicionais de direita, buscando manipular a opinião púbica,
difundindo a ideia de que o caminho da prosperidade da nação viria pelas mãos da
iniciativa privada, e não por meio das ações de intervenção do Estado na economia.
Dentre as estratégias utilizadas pela denominada elite orgânica para manipular a
opinião pública estava a utilização da propaganda, seja por meio de palestras, simpósios e
conferências, ou da mídia impressa, radiofônica e televisiva. De acordo com Dreifuss, o
complexo IPES/IBAD, a partir do contato que mantinha com várias editoras, publicava
panfletos, periódicos, jornais, revistas, folhetos e veiculava mensagens político-ideológicas
no rádio e na televisão, arquitetando, assim, uma verdadeira campanha anticomunista. A
penetração da influência dessa elite orgânica nos meios de comunicação não poupou nem
mesmo os jornais de grande circulação, como os Diários Associados (ligado a Assis
Chateaubriand), a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde. A
capacidade de manipulação desses órgãos da opinião pública pode ser visualizada por meio
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
166
de uma reportagem publicada na Folha de São Paulo sob o título: São Paulo parou ontem
para defender o regime, no dia 20 de março de 1964.
A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da pátria
para defender a Constituição e os princípios democráticos, dentro do
mesmo espírito que ditou a revolução de 1932, originou ontem o maior
movimento cívico já observado em nosso Estado: “A marcha da Família
Com Deus, pela Liberdade” (...). Com “vivas” à democracia e à
Constituição, mas vaiando os que consideram “traidores da pátria”,
concentram-se defronte da catedral e nas ruas próximas. Ali oraram pelos
destinos do país. E, através de diversas mensagens, dirigiram palavras de
fé no Deus de todas as religiões e de confiança nos homens de boa
vontade. Mas, também de disposição para lutar, em todas as frentes, pelos
princípios que já exigiram o sangue dos paulistas para se firmarem (Folha
de
S.
Paulo,
20
de
março
de
1964.
http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/03/20/2/).
Segundo Daniel Aarão Reis, a marcha representou uma contraofensiva ao governo
de João Goulart que, buscando acelerar as reformas de base prometidas em seu governo,
organizou um grande comício no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, que contou
com a presença de mais 350 mil pessoas que apoiavam suas plataformas de governo. O
referido comício foi o estopim para uma reação conservadora que se iniciou em São Paulo e
se espalhou pelo Brasil como um todo, com o objetivo de barrar as ações reformistas de
Jango. Conforme indica Reis,
As direitas unidas, alarmadas, aparentando decisão, também foram às
ruas, cerca de quinhentas mil pessoas. Outras marchas se seguiram em
várias cidades, em processo até hoje mal estudado. As forças
desencadeadas da contra-reforma (REIS, 2005, p. 31).
A marcha foi o prenúncio de um movimento da direita que objetivava derrubar o
governo de João Goulart. Além dela, o contexto se agravou com uma reunião da
Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), proibida pelo
ministro da Marinha e mantida pela diretoria da associação – ato que mudou os rumos do
processo político no Brasil.
De uma disputa de projetos entre grupos mais progressistas e conservadores,
passou-se a uma crise disciplinar no interior das forças armadas – “o dispositivo militar
começou a ruir” – que se agravaria e culminaria no golpe de 1964. (REIS, 2005, p. 32) A
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
167
partir desse momento, as forças conservadoras aguardavam um momento propício para
colocar o golpe em prática. O estopim desse processo se daria em Minas Gerais, com a ação
do general Olímpio Mourão, que colocou suas tropas em ação. Ainda segundo Reis, Jango,
na tentativa de evitar uma guerra civil,
(...) foi fugindo do cenário aos soluços: Brasília, Porto Alegre,
Montevidéu, deixando atrás de si um rastro de desorientação e
desagregação. Apavorado diante do incêndio que provocara sem querer,
horrorizado com a hipótese de uma guerra civil que não desejava, decidiu
nada decidir e saiu da história pela fronteira com o Uruguai (REIS, 2005,
p. 32).
Um aspecto interessante discutido por Reis acerca do apoio dos civis à organização
do golpe de Estado foi o fato de os cidadãos brasileiros assinarem um cheque em branco em
relação ao futuro do país, pois mesmo sem saber o que ocorreria após a instituição da
ditadura, preferiram apoiá-la sem maiores questionamentos. Após a vitória imprevista, nas
palavras de Reis, os conservadores desfilaram em marcha para comemorar a vitória dos
contrarreformistas. Afirma ele: “Uma grandiosa Marcha da Família com Deus e pela
Liberdade, com centenas de milhares de pessoas, no Rio de Janeiro, comemorou o golpe
militar e festejou a derrocada de Jango, das forças favoráveis às reformas e do projeto
nacional-estatista que encarnavam” (REIS, 2005, p. 33).
Os acontecimentos da marcha não podem ser tomados como isolados dentro do
contexto que precedeu o golpe, como já apontamos anteriormente. Diversas organizações
financiadas pelo capital estrangeiro e cujos membros possuíam ligações com os militares, a
exemplo do IBAD e do IPES, agiam, por meio da propaganda, para fazer parecer que o
golpe foi um pedido da sociedade. A classe média, com seu conservadorismo latente, foi o
principal alvo das campanhas do IPES. Sobre isso René Dreifuss afirmou:
A mobilização das classes médias conferia a aparência de amplo apoio
popular à elite orgânica e a mídia coordenada pelo IPES proporcionava
grande cobertura às atividades dessas classes médias mobilizadas. Na
atmosfera elitista do Brasil, as demandas das classes médias eram vistas
como o ponto de referência para a identificação da legítima expressão
popular (...). Mas a mobilização das classes médias era, sobretudo, uma
campanha ofensiva, projetada para acentuar o clima de inquietação e
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
168
insegurança e dar a aparência de um apelo popular às Forças Armadas
para uma intervenção militar (DREIFUSS, 1984, p. 291).
Como era de se esperar pelo próprio título da marcha, o clero teve um papel ativo no
processo de cooptação e controle dos operários por meio da Federação de Trabalhadores
Cristãos, fundada pelo Padre Leopoldo Brentano. Essas federações foram estabelecidas em
dezessete dos vinte e dois estados do Brasil e chegaram a quatrocentas por toda a extensão
do país na década de 1960. Elas tinham como função, além de promover o civismo no meio
operário, torná-los favoráveis às forças conservadoras, por isso ofereciam assistência
jurídica, médica, dentária e hospitalar, bem como sistemas cooperativos de consumo,
crédito habitacional e cursos profissionalizantes. Conforme adverte Dreifuss, sua intenção
era clara:
Os cursos populares tinham como objetivo neutralizar o potencial de
participação das classes trabalhadoras quanto ao seu apoio às propostas e
teses nacional-reformistas (...). Segundo o porta-voz do IBAD, a ELO se
encarregaria de fazer um teste de extraordinária importância, qual seja,
verificar a receptividade entre as classes trabalhadoras da Doutrina Social
Cristã (DREIFUSS, 1984, p. 310-311).
Para além das confederações de trabalhadores, René Dreifuss ainda aponta uma
série de movimentos que eram controlados pelo complexo IPES/IBAD, a saber: o
Movimento de Orientação Sindicalista (MOS), o Movimento Renovador Sindical (MRS), a
Confederação Brasileira dos Trabalhadores Cristãos (CBTC), o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), o Movimento Sindical Democrático (MDS) e a Residência Democrática
dos Trabalhadores Livres (REDETRAL), dentre outros.
O objetivo do complexo nessas organizações era infiltrar líderes capazes de
propagar a ideologia direitista entre a classe trabalhadora. Suas ações lograram certo êxito,
no entanto, apesar dos financiamentos e esforços, muitos sindicatos se voltaram para os
movimentos de esquerda. Uma demonstração clara desse fato foi a derrota estrondosa da
chapa patrocinada pelo IPES/IBAD nas eleições da CNTI – Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria – em 1964. Apesar dos fracassos, tais iniciativas conseguiram
dividir os movimentos de trabalhadores, mergulhando-os numa luta intestina que acabou
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
169
por impedi-los de apoiar o governo de João Goulart, levando, assim, ao enfraquecimento de
suas propostas de reformas de base.
A partir da bibliografia mobilizada, podemos observar que o golpe de 1964 foi
construído paulatinamente em duas frentes claras de atuação: a infiltração da ideia de
direita no seio das camadas médias da sociedade brasileira, patrocinada pelo complexo
IPES/IBAD, e a organização de uma conspiração no interior das forças armadas,
capitaneada pela ESG (Escola Superior de Guerra), o que reforça a tese já indicada
anteriormente de um golpe-civil militar articulado principalmente pela imprensa, como já
exemplificamos no segundo capítulo por meio da revista Brasil-Oeste. René Dreifuss
descreve claramente esse processo:
A rede militar do complexo IPES/IBAD, assim como oficiais pertencentes
a outros grupos que foram ativamente aliciados, operava em sistema de
intensa cooperação com civis, apoiando e reforçando algumas das
atividades políticas. (...) A ação do complexo IPES/IBAD entre os
militares visava, principalmente, envolver o maior número de oficiais na
mobilização popular contra o governo (DREIFUSS, 1984, 362).
Dreifuss também nos esclarece sobre a atuação de grupos internacionais, da elite
orgânica e dos políticos na organização do golpe de 1964:
Os líderes do IPES também mantinham contatos estreitos com figuras
públicas americanas durante sua campanha e com o governo americano,
objetivando assegurar apoio logístico para o golpe. A elite orgânica
também estava envolvida em ação paramilitar, apesar de estar muito
preocupada em que não fosse feita pública sua ligação a quaisquer grupos
encobertos de ação. Além disso, o complexo IPES/IBAD procurou o
apoio de figuras nacionais de partidos políticos e dos governadores dos
estados-chave de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e
Guanabara. Os governadores foram úteis ao colocarem a força policial de
seus estados à disposição do movimento civil-militar contra João Goulart,
medida de maior importância, tendo em vista a localização estratégica das
milícias estaduais nas áreas urbanas, treinadas especialmente para lidar
com civis e com um tal potencial bélico que as transformava em exércitos
de fato (DREIFUSS, 1984, p. 362).
Como demonstrou o autor, a função primordial do complexo IPES/IBAD era
neutralizar as forças populares de apoio a João Goulart e impedir que o mesmo ganhasse o
apoio militar às propostas socialistas e/ou populistas. A elite orgânica, ao semear diversas
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
170
teorias conspiratórias entre civis e militares, acabou parecendo mais forte do que realmente
era frente aos olhos dos apoiadores de João Goulart, conseguindo, aos poucos, construir
uma contra-hegemonia em relação ao governo. Como advertiu Gramsci:
A imposição de um projeto hegemônico exige, dentre outros fatores, a luta
pelo monopólio dos órgãos formadores de opinião pública [...] e aquilo a
que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia
política, ou seja, o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade
política, entre o consenso e a força (GRAMSCI, 2000, p. 16).
A VISÃO EDUCACIONAL DO PCB – A CONSTRUÇÃO DA CONTRA-HEGEMONIA
É preciso frisar que, se de um lado tivemos todas as inciativas das entidades
empresariais para a construção de uma sociedade e uma educação conservadoras por meio
do financiamento de obras, seminários e publicações, de outro tivemos uma contraproposta
formulada no interior do PCB. Num documento intitulado Ação política, elaborado em
1965 para analisar o golpe de 1º de abril de 1964, que modificou a situação política
nacional, encontramos na resolução nº 1 uma primeira referência à concepção de educação
defendida pelo PCB. É importante destacar que na referida resolução os dirigentes
entendem o golpe de 1964 como um movimento de forças retrógadas e antinacionais que
ganharam força a partir da propaganda antijanguista e anticomunista de agentes do
imperialismo norte-americano, latifundiários e grandes capitalistas ligados aos monopólios
ianques. Ou seja, criou-se um governo exercido por um grupo de generais a serviço da
embaixada dos Estados Unidos.
Dessa forma, a primeira visão defendida pelo PCB é a da educação como um campo
de resistência ao regime, no qual estudantes e intelectuais têm um papel primordial no
enfrentamento do regime ditatorial. Assim se referia o partido ao movimento estudantil e ao
campo educacional naquele contexto: “Os estudantes se insurgem contra a Lei 4464, em
defesa da autonomia do movimento estudantil, na UNE e das suas demais entidades”
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
171
(RESOLUÇÃO POLÍTICA do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, 1965, p.
19).8
A lei, assinada pelo presidente Castelo Branco e por Flávio Lacerda, dispunha sobre
a regulamentação das atividades de representação estudantil. Conhecida como Lei Suplicy,
representava o fechamento das entidades estudantis, através da criação de órgãos como o
Diretório Nacional de Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais de Estudantes (DEEs).
Dessa forma, abria caminho para a substituição da UNE (União Nacional dos Estudantes) e
das UEEs (União Estadual dos Estudantes). Em 1967, mesmo com vários protestos
estudantis contra essa resolução, o governo lançou o Decreto-Lei n. 228, que extinguia
esses órgãos, deixando os estudantes sem nenhuma entidade representativa legal e à mercê
dos desmandos dos ditadores. Um dos artigos principais da lei, que demonstrava o que os
militares pensavam sobre a finalidade dos órgãos de representação estudantil, estava
expresso no item d) de seu artigo 1º:
Art. 1: Os órgãos de representação dos estudantes de ensino superior, que
se regerão por esta Lei, têm por finalidade: organizar reuniões e certames
de caráter cívico, social, cultural, científico, técnico, artístico, e
desportivo, visando à complementação e ao aprimoramento da formação
universitária (Coleção de Leis do Brasil - 1964, Vol. 7, p. 75).
A intenção era clara: diminuir a influência subversiva no interior das entidades
estudantis e promover o civismo e o patriotismo desse espaço por meio de seu
esvaziamento político. Mas esse objetivo não foi alcançado tão facilmente e a Lei Suplicy
de Lacerda acabou despertando muitas reações contrárias, mesmo de apoiadores do golpe
que, embora fossem contra o aparelhamento comunista no comando das entidades,
defendiam o direito de livre organização por parte dos estudantes.
A resolução trata ainda de uma dimensão da educação como fruição cultural, como
forma de preservar a liberdade democrática de expressão de ideias artísticas e políticas. “Os
intelectuais se arregimentam contra o terror cultural e para exigir a restauração das
8
Cumpre esclarecer que todos os documentos do PCB que utilizaremos na tese foram retirados de CARONE,
Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982. Vol. 3. Por esse motivo decidimos listar as referências
completas dos documentos nas notas de rodapé. Voz operária, Suplemento Especial, Resolução do Comitê
Central do Partido Comunista Brasileiro, maio de 1965. In: CARONE, Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São
Paulo: Difel, 1982, p. 19.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
172
liberdades democráticas e a retomada do desenvolvimento econômico do país”
(RESOLUÇÃO POLÍTICA do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, 1965, p.
19).
Rodrigo Czajka (2010), apoiando-se em Sodré (1963), assim se refere à relação
entre política, intelectuais e cultura no contexto de João Goulart:
Muito embora a mobilização das massas tivesse um caráter político
evidente, grupos de intelectuais e artistas dispuseram-se a referendar
aqueles acontecimentos com a legitimidade que lhes eram próprias. Ou
seja, o movimento político de ascensão das massas no início da década de
1960 procurava justificar-se a partir de elementos de uma nova
legitimidade, nesse caso, a legitimidade de uma nova cultura que fosse,
além de nacional, popular. Daí que a participação política e o engajamento
de intelectuais e artistas estavam condicionados à construção de um
referencial de cultura popular que também fosse nacional. Era necessário
constituir um referencial popular a partir da cultura, pois por meio dele
seria possível contemplar o "povo" no interior de uma política voltada
para a transformação da realidade nacional (SODRÉ, 1963, p. 25).
Ainda segundo Czajka, o que se buscava era uma democratização não só do acesso
aos bens sociais, mas também dos bens culturais no contexto dos anos 1960, sobretudo após
as propostas de reforma de João Goulart:
Essa nova condição permitiu compor um amplo quadro de lutas sociais,
engendradas pelas novas condições de organização política e ideológica
das organizações de esquerda, contra as "estruturas arcaicas" de uma
sociedade que avançava aos poucos, no sentido da democratização dos
bens sociais e culturais. Assim, em consonância com a política cultural do
PCB, “no pré-64, o nacional, correlato da luta anti-imperialista,
reivindicava a afirmação de uma arte não-alienada que refletisse a
realidade brasileira que se queria conhecer para transformar. O popular,
por sua vez, acenava para a democratização da cultura e a conseqüente
crítica à nossa tradição elitista de uma arte concebida como ‘ornamento’,
como ‘intimismo à sombra do poder’” (CZAJKA, 2010, p. 98).
Assis Tavares, no documento sob o título de Causas da Derrocada de 1º de Abril de
1964, publicado na revista Civilização Brasileira em julho de 1966, também aponta o
campo educacional e o movimento estudantil como protagonistas das forças progressistas
no Brasil. Afirma ele:
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
173
Núcleos importantes das camadas médias, especialmente entre estudantes
e a intelectualidade, assumiram, porém, nítida posição ao lado das forças
progressistas. Foi impressionante a transformação da juventude de 1945 e
1964. Enquanto no fim da guerra a juventude estudantil apenas motivada
pela luta em favor das liberdades de 1961 em diante ficou claro o
engajamento da mocidade universitária no combate pelas modificações
estruturais na sociedade brasileira.9
Tavares, nesse trecho, explicita que, para ele, a partir do contexto do golpe, a
juventude brasileira despertou sua consciência para lutas que extrapolavam a dimensão
escolar e se envolveu com as questões políticas que atingiam o país naquele momento,
demonstrando, assim, uma compreensão de educação que supera seu caráter instrumental,
alcançando sua função formativa, humanista e transformadora. Talvez por esse motivo o
PCB, em seu período de legalidade – 1945 a 1947 –, tenha sido um parceiro importante de
intelectuais como Paschoal Leme na defesa da escola pública como forma de, por meio do
conhecimento historicamente acumulado pela sociedade, almejar uma sociedade mais justa
e equânime.
Na sequência desse mesmo texto, Tavares reforça ainda mais a necessidade de a
educação se voltar para a reflexão de questões extramuros, demostrando a dimensão social
e política das instituições escolares. Ainda se referindo aos estudantes, ele afirma:
Passaram-se (sic) a exercer uma importante influência política fora das
escolas, tornando-se daquelas ideias ativos propagandistas. A reação
procurou fazer crer que o grosso dos estudantes nada tinha a ver com tais
atitudes, o que não confirmado pelos fatos posteriores, pós-“revolução”,
desde que a mocidade acadêmica sempre manifestou seu repúdio aos
novos governantes do País.10
Se no campo da educação básica a situação era de um certo protagonismo, no meio
universitário a resistência ficou a cargo de uma vanguarda, nem sempre seguida pela
maioria dos estudantes universitários, que muitas vezes estava mais preocupada com
questões internas à universidade.
9
TAVARES, Assis. Causas da Derrocada de 1º de Abril de 1964, Revista Civilização Brasileira, Ano I, nº 8,
julho de 1966) In: CARONE, Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982, p. 44.
10
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
174
Entretanto, mesmo o movimento universitário ainda era a expressão de
um grupo de vanguarda, não chegando a mobilizar a grande maioria dos
estudantes. Claro que havia exceções nesse quadro. Em determinados
lugares e em certas fases, o movimento estudantil chegou a expressar a
grande massa universitária. Normalmente, porém, as entidades estudantis
estavam isoladas dessa grande massa, em virtude de não prestarem a
devida atenção às questões que preocupam os universitários como
universitários: problemas da modernização das escolas, bolsas de estudo,
mercado de trabalho para os profissionais, jubilação, etc.11
Nas palavras de Tavares encontramos também críticas à conduta da vanguarda do
movimento estudantil, por tendências ultraesquerdistas que se mostraram desastrosas para o
movimento. Escreveu ele:
De outro lado, grassou entre os estudantes, como capim após a estação
chuvosa, tendências “ultra-esquerdistas”, responsáveis por muitos erros na
condução da luta. A doença infantil do comunismo – “o esquerdismo” –
revelou-se, por exemplo, na greve nacional de 63, pela reforma
universitária, que sofreu pesada derrota.12
O trecho citado anteriormente nos chama a atenção, pois demonstra certo
centralismo no que se refere ao controle dos movimentos que deveriam atuar tutelados
conforme suas diretrizes, e ainda pelo fato de um partido de esquerda fazer críticas ao
esquerdismo.
Os documentos do PCB também nos esclarecem que o engajamento dos estudantes
e intelectuais no pós-golpe se deu numa via de mão dupla, uma vez que tais grupos faziam
críticas ao regime e recebiam as devidas represálias, o que, por vezes, acabava por
aumentar a atuação antiditatorial de estudantes e intelectuais. Conforme se apura nos
documentos, o golpe impôs um recuo evidente da vanguarda em nosso país.
Embora dirigido fundamentalmente contra o movimento operário, o golpe
voltou-se contra a maioria das organizações democráticas, tais como as
associações camponesas e entidades estudantis, e contra personalidades
políticas e intelectuais de destaque na luta patriótica; assim, com os
sindicatos operários sob intervenção policial, e seus dirigentes presos ou
perseguidos, com o conjunto das organizações de massa impedido de
atuar, com seus aliados e amigos vitimados pela repressão golpista, com a
11
12
Idem.
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
175
imprensa popular fechada ou amordaçada, o Partido ficou privado de seus
principais meios de atuação política.13
Em função da repressão maciça ao PCB, foi necessário arregimentar forças em
grupos sociais que atuavam fora do partido, uma vez que eram constantes as prisões e a
marginalização das lideranças dos movimentos populares, espalhando o terror entre os
trabalhadores e, portanto, levando a um recuo da participação do povo no processo de
resistência ao regime. Assim, “coube, nesse sentido, papel destacado à intelectualidade em
particular aos estudantes”.14
No documento do VI Congresso do PCB, no item Nossa Tática, os dirigentes
destacam novamente o papel preponderante dos intelectuais em defesa de uma cultura
nacional:
O papel da intelectualidade progressista é de grande relevo no combate à
ditadura. Os comunistas devem atuar como elemento de estímulo e
unificação da luta dos intelectuais em defesa da cultura nacional, pela
liberdade de pesquisa, de criação e pela manifestação do pensamento.15
Novamente encontramos nesse documento uma referência à importância da
juventude no processo de luta contra a ditadura. No entanto, o centralismo democrático que
buscava tutelar o movimento também se fazia presente:
A participação da juventude na vida nacional tem significado crescente.
Representando mais da metade da população do país, e sendo por natureza
mais sensível aos reclamos do futuro da nação, os jovens comunicam seu
calor ás lutas do povo. A juventude estudantil tem participado de lutas
valorosas contra o regime opressor, embora seus movimentos se ressintam
da influencia, em sua liderança, de correntes sectárias. É preciso ganhar a
maioria dos estudantes para esses combates, baseando-os mais
solidamente na defesa das reivindicações peculiares á juventude escolar.16
Novamente nos causa estranheza o fato de o Comitê Central do partido acusar as
lideranças estudantis de sectarismo e ainda restringir as lutas dos estudantes a questões
particulares. É claro que temos conhecimento de que, do ponto de vista tático, essa era uma
13
VI Congresso do P.C.B., 1967, p. 54.
Idem, ibidem, p. 69.
15
Idem, ibidem, p. 75.
16
Idem.
14
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
176
tentativa de ganhar o maior número possível de simpatizantes para a causa do partido, que
era de massa. Consideramos que, ao restringir o escopo de atuação do movimento
estudantil, o PCB acabava por despolitizá-lo.
A resolução política do CE da Guanabara, publicada em 1970, estabelece algumas
diretrizes e linha de trabalhos que os militantes deveriam seguir para que a resistência à
ditadura se tornasse efetiva. Dentre elas, destacamos a frente estudantil e a cultural:
1.
Na frente Estudantil: luta para dar aos estudantes o direito de
gerirem suas organizações e de realizarem livremente suas reuniões e
assembleias nos locais de estudo; luta pela revogação do 477 e contra o
terror dentro das Universidades e colégios; luta pela libertação dos
estudantes presos.
2.
Na frente Cultural: luta pela liberdade de criação e de pesquisa:
resistência ao terror cultural e á censura ao trabalho de criação artística, de
divulgação e de informação.17
O Decreto-Lei n. 477, publicado em fevereiro de 1969 pelo governo de Costa e
Silva, define as infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou
empregados de estabelecimentos de ensino públicos ou particulares com o objetivo de
propagar o terror no interior das instituições. Em seu artigo primeiro, define o seguinte:
Art 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou
empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a
paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento;
II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de
qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle;
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos,
passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe;
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito,
distribua material subversivo de qualquer natureza;
V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo
docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente
de autoridade ou aluno;
VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para
praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.18
17
Resolução Política do C.E. da Guanabara do PCB: março de 1970. Temas, n. 10, pp. 71-91.
BRASIL, Decreto-Lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969. In: SANFELICE, José Luís. Movimento
estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez, 1986.p. 233.
18
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
177
Os termos presentes demonstram a grande preocupação que o regime possuía com
as atividades organizadas pelo movimento estudantil. Apontamos, a partir da
documentação, os estudantes que, após o desmantelamento das organizações de
trabalhadores, passaram a ser, juntamente com os intelectuais, os principais protagonistas
da resistência. Nesse contexto, toda ação, por mais simples que fosse, estava sob suspeita;
uma simples reunião ou uma passeata poderia ser considerada ato subversivo. Considera-se,
ainda, o clima de terror que se espalhou entre professores, alunos e técnicos das instituições
escolares, já que qualquer um poderia ser um delator, um censor do regime. Todo cuidado
era pouco, pois as penas eram rigorosas e poderiam variar conforme o vínculo que o
praticante tinha com a instituição, como observamos no caput do artigo anteriormente
citado:
§ 1º As infrações definidas neste artigo serão punidas:
I - Se se tratar de membro do corpo docente, funcionário ou empregado de
estabelecimento de ensino com pena de demissão ou dispensa, e a
proibição de ser nomeado, admitido ou contratado por qualquer outro da
mesma natureza, pelo prazo de cinco (5) anos;
II - Se se tratar de aluno, com a pena de desligamento, e a proibição de se
matricular em qualquer outro, estabelecimento de ensino pelo prazo de
três (3) anos.
§ 2º Se o infrator fôr beneficiário de bolsa de estudo ou perceber qualquer
ajuda do Poder Público, perdê-la-á, e não poderá gozar de nenhum dêsses
benefícios pelo prazo de cinco (5) anos.
§ 3º Se se tratar de bolsista estrangeiro será solicitada a sua imediata
retirada de território nacional.19
Como ressaltaram José Augusto Guilhon Albuquerque (1977) e Sanfelice (1986), o
objetivo do decreto era estabelecer um controle efetivo sobre o movimento estudantil e
enfraquecer sua representatividade política junto aos alunos. Os autores apontam que além
das medidas de repressão pura e simples, os militares ainda utilizaram dispositivos “legais”,
impetrados por meio de leis e decretos, para conter a resistência dos movimentos
organizados dos estudantes. Tal aspecto repressivo desse período se torna ainda mais
evidente no artigo segundo do referido decreto, no qual encontramos uma prática recorrente
durante o regime militar – os IPMs – como forma de amedrontar e punir, de forma
arbitrária, os cidadãos que atentassem contra o regime autoritário instituído no país.
19
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
178
Art 2º A apuração das infrações a que se refere êste Decreto-lei far-se-á
mediante processo sumário a ser concluído no prazo improrrogável, de
vinte dias.
Parágrafo único. Havendo suspeita de prática de crime, o dirigente do
estabelecimento de ensino providenciará, desde logo a instauração de
inquérito Policial.20
Como demonstra o artigo segundo, cabia ao dirigente do estabelecimento de ensino
a função de instaurar do inquérito policial, o que evidencia que as acusações e apurações
vinham dos próprios pares.
O PCB E A EDUCAÇÃO DO MILITANTE
Em texto publicado na revista Estudos, na data do 49º aniversário do PCB, em
março de 1971, intitulado Aspectos da luta contra o subjetivismo, Luís Carlos Prestes
demonstra sua preocupação com a formação intelectual dos militantes e dos simpatizantes
do PCB.
O primeiro aspecto que consideramos importante no documento é a tentativa de
Prestes de fazer uma discussão teórica das bases do marxismo para afastar o que
denominava subjetivismo dos comunistas brasileiros, como se anuncia logo no trecho
inicial do documento:
Os comunistas brasileiros, na luta histórica em que se acham empenhados
pela democracia e pelo socialismo, enfrentam numerosas dificuldades,
tanto práticas como teóricas. Entre estas, como reconheceu o último
congresso de nosso Partido, estão “nossas limitações teóricas” e o
“domínio insuficiente da realidade do país”. Daí, o subjetivismo que
tantos males já nos causou, levando a equívocos, falhas e erros de
consequências muitas vezes desastrosas para a luta sustentada pelo
movimento operário que cabe aos comunistas orientar e dirigir.21
20
Idem.
PRESTES, Luiz Carlos. Aspectos da Luta Contra o Subjetivismo no 49º aniversário do PCB. Estudos, Ano
I, n. 2, março de 1971, p. 108.
21
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
179
O que se evidencia nas palavras de Prestes é a dificuldade de os dirigentes e
militantes entenderem, de forma adequada, a conjuntura brasileira a partir dos pressupostos
da teoria materialista, que preconiza que análise deve ser feita com base na realidade
concreta da sociedade, e não a partir de teorias prévias próprias do idealismo. Como deixa
implícito o autor, muitos erros foram cometidos pelo partido em função da transposição de
experiências de outras realidades sociais e econômicas que não se aplicavam ao contexto
brasileiro. Um dos exemplos que poderíamos destacar é a visão mecânica e etapista que o
partido e seus dirigentes possuíam da teoria da revolução elaborada por Marx a partir do
contexto especifico do século XIX na Europa. A aplicação mecânica do marxismo sem
maiores reflexões levou o partido a buscar aliados em parceiros duvidosos, como a
burguesia nacionalista, que embora fosse crítica do imperialismo e dos grandes latifúndios,
jamais se tornaria adepta do comunismo preconizado pelo PCB. Prestes se referia a esse
erro teórico da seguinte maneira:
Refiro-me á tendência á transposição mecânica a nosso país da
experiência de outros povos. Posição dogmática e, portanto, antimarxista
e antileninista, mas que, no entanto, vem-se repetindo em nossas fileiras,
servindo de cobertura para as tendências oportunistas, tanto de direita
como de esquerda.22
Parece-nos necessário destacar que Prestes considera esse um problema
educacional, ou seja, a formação intelectual insuficiente e/ou mesmo equivocada da grande
maioria da sociedade, por influência de uma cultura burguesa ou pequeno-burguesa de
alguns militantes, seria o que levaria ao equívoco de tal monta, como aponta em outro
trecho de seu texto:
Um fosso profundo separa, em nosso país, a minoria letrada da maioria
esmagadora da nação-miserável, em grande parte analfabeta, e
brutalmente explorada e oprimida. Contraste que se agrava com o
crescente monopólio imperialista dos meios de comunicação em massa e
com a censura oficial, burocrática e reacionária.23
22
23
Idem.
Idem, ibidem, p. 109.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
180
Novamente a preocupação com a função dos intelectuais como fomentadores de
uma nova instrução educacional e cultural se faz presente em suas palavras:
Isto não significa negar o esforço patriótico e honesto dos intelectuais
brasileiros, que vão forjando, ao lado e em oposição á chamada cultura
nacional, reacionária e dominante, porque é a das classes dominantes, uma
cultura progressista e popular, com elementos democráticos e socialistas.
São grandes, no entanto, as dificuldades que enfrentam os intelectuais em
nosso país para refletir e expressar o que se passa entre o povo, seus
sentimentos e reivindicações, e, daí, a tendência à cópia, á transposição
mecânica de manifestações alienígenas, ao cosmopolitismo cultural.24
Apoiando-se nos dizeres de Mário de Andrade, intelectual engajado na busca de
uma cultura brasileira, Prestes continua suas críticas à importação de ideias externas para o
processo de educação no Brasil.
Combato atualmente a Europa – dizia Mario de Andrade, em 1942 – mais
que posso. Não porque deixe de reconhecê-la, admirá-la, porém, para
destruir a europeização do “brasileiro educado”. Mas, como não foi
modificada a estrutura sócio-econômica do país, essa destruição não foi
possível. “A europeização” transformou-se em americanização do
“Brasileiro educado”.25
Segundo Prestes, essa tendência à imitação de teorias que não se aplicam ao
contexto do Brasil dos anos 1960, motivada pela pouca instrução do povo brasileiro ou
mesmo por leituras aligeiradas da teoria marxista por militantes da ultraesquerda, foi o que
levou aos insucessos da luta armada no país, uma vez que se pretendeu aplicar aqui um
processo revolucionário nos moldes da revolução cubana. Sobre isso, afirma ele:
Mas, como advertia Lenine, é indispensável na aplicação dos princípios
fundamentais do comunismo, tomar em consideração as particularidades
específicas de cada nação. Olvidar as peculiaridades nacionais é divorciarse da vida e das massas, é negar a ciência do proletariado. Foi
esquecendo esses princípios do marxismo-leninismo que se tentou
transpor para nosso país a experiência vitoriosa do povo cubano, em geral
reduzida, de maneira caricata, aos aspectos da luta armada sustentada por
um pequeno grupo de guerrilheiros, sem tomar em consideração
numerosos outros fatores – econômicos, políticos, sociais e culturais –
específicos de cuba e que contribuíram para a vitória da revolução na ilha
24
25
Idem.
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
181
da Liberdade. E, justamente com isto, levantava-se em nosso país a
bandeira da luta armada, da criação de “focos” guerrilheiros isolados das
massas, sem cuidar do estudo ou do exame da situação concreta brasileira,
dos diversos fatores que conforma essa situação.26
Prestes, assim como a maioria da direção do PCB, considerava a iniciativa da luta
armada um caminho pouco adequado para a deflagração de uma revolução no Brasil. Para
ele, essa ideia configurava-se numa posição sectária de um pequeno grupo ultraesquerdista
que atrapalhava o processo, na medida em que justificava ataques cada vez mais violentos
por parte dos militares contra os oposicionistas. Em sua visão, tal ação servia apenas para
intensificar o aniquilamento físico de vários “revolucionários, jovens patriotas, abnegados e
valentes”.27 De certa forma, Prestes, com essas críticas, explicitava sua divergência não só
com a luta armada, mas também com processos revolucionários comandados por militares
“pequeno-burgueses” ou mesmo pela burguesia nacional. “A experiência dos últimos
quarenta anos já nos ensinou que não é sob a direção dos militares pequeno-burgueses nem
da burguesia nacional que poderá avançar o processo revolucionário em nosso país”
(Aspectos da Luta Contra o Subjetivismo no 49.º aniversário do PCB, p. 111).28
Prestes aponta os problemas de nosso passado colonial, a exemplo do sistema
imperial adotado aqui, como um dos motivos do nosso atraso cultural. Citando Berlinck, ele
afirma: “a origem das nossas deficiências (analfabetismo, baixa produtividade, opressão
política) e que se podem resumir na formula: falta de valorização do homem brasileiro,
provém da nossa formação colonial”.29
Segundo Prestes, nossas escolas ainda ensinam uma história comprometida com os
interesses dos setores conservadores. A luta heroica dos oprimidos geralmente não é objeto
de estudo nem da historiografia oficial, nem mesmo dos programas escolares que, quase
sempre, buscam tratar os processos de mudança de forma linear e pacífica. Sobre o sentido
dado pela escola à história de nosso país, pronunciava ele:
A título de história, propagam-se as mais cínicas mentiras e bastou que no
ISEB fosse feita uma primeira e tímida tentativa no sentido de ser
26
Idem, ibidem, p. 110.
Idem.
28
Idem, ibidem, p.111.
29
Idem, ibidem, p. 114.
27
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
182
reescrita a história do país com base em pesquisa menos comprometida
com os interesses dos setores mais retrógados das classes dominantes para
que seus autores fossem processados juridicamente sob acusação de
atentarem contra a segurança nacional.30
Finalizando seu documento contra o subjetivismo no interior do partido comunista,
Prestes nos esclarece qual era, para ele, o papel da educação no interior da sociedade
brasileira e do partido. Para ele, além de uma convicção revolucionária, era preciso
intensificar a educação teórica dos militantes por meio do estudo sistemático do marxismoleninismo. O autor assim finaliza sua reflexão:
Será esta a oportunidade de concentrarmos esforços no sentido do estudo
científico da realidade brasileira, que não pode deixar de incluir o estudo
das condições em que se desenvolve o capitalismo em nosso país, a
história de nosso povo, a do movimento operário brasileiro e a indústria
de nosso próprio partido.31
Em um documento publicado no jornal Voz Operária, em 1971, que tratava das
tarefas do Comitê Central, encontramos, além da preocupação com a educação militante e
com a educação em geral como forma de permitir uma compreensão da realidade brasileira,
a defesa feita pelo partido de um movimento estudantil livre, de escolas e universidades
gratuitas a partir de um aumento das vagas e da proibição de cobrança de mensalidades
nessas instituições. No item 5 do referido documento, encontramos os seguintes dizeres:
5- Devemos dar maior contribuição à reativação do movimento estudantil,
à base da luta pela ampliação das vagas escolares, contra o aumento das
anuidades escolares, contra a instituição do ensino pago nas universidades
oficiais, contra o Decreto 477 e o terror estabelecido nas escolas, pelo
direito de os estudantes se organizarem livremente, pela solidariedade aos
estudantes e professores presos e perseguidos e pela Reforma
Universitária.32
Como já apontamos no início desse capítulo, é difícil tratar de uma concepção
educacional do PCB, uma vez que, como apontou Favoreto, foi a
30
Idem, ibidem, p 115.
Idem, ibidem, p. 120.
32
O Trabalho de Direção do Comitê Central, Voz Operária, n. 77, julho de 1971, p. 124.
31
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
183
concepção de revolução que guiou o PCB em suas ações educacionais e
na luta pela escola pública. Ainda de acordo com ela, a teoria da
revolução brasileira foi um programa de transformação das estruturas da
sociedade, em meio à qual, com base em sua concepção de história e
partido, foi construído seu entendimento da relação entre a questão
educacional e o processo histórico (FAVORETO, 2010, p. 129).
No capítulo dedicado à educação militante, o autor busca destacar como a
concepção de revolução interna ao PCB traça a relação entre a teoria social, a educação e
ação individual. Uma das formas de pensar a educação no interior do PCB era a de
propagar as ideias comunistas por meio de reuniões com militantes, que ao mesmo tempo
em que educavam, conscientizavam os trabalhadores e demais segmentos sociais, conforme
observamos no Abecedário dos trabalhadores:
E’s pobres? E’s um trabalhador? Pois reúne num domingo, em tua casa,
três ou quatro companheiros de trabalho; lê e relê estas linhas; discute
com eles o que te digo. Faze com que cada um deles proceda da mesma
forma. Espalha o mais possível este Abecedário, que é teu, que é o
abecedário dos trabalhadores; publica o maior número possível de jornais;
manda imprimir milhares de exemplares e os espalha entre os
trabalhadores das fábricas, usinas, engenhos, fazendas, oficinas. Mete
essas idéias na cabeça dos milhões de trabalhadores de terra e mar; trava
discussões em torno delas, em toda a parte – nas cidades industriais, nos
grandes navios que fazem a viagem para a Europa, nas jangadas dos
praieiros do Norte, no meio dos seringais, na catinga cheia de vaqueiros,
nos altos sertões, na rica zona da mata, nos pinheirais e coxilhas do Sul,
nos garimpos de Minas Gerais, nas minas de ouro e carvão de pedra. É de
teu interesse, é para teu benefício (FAVORETO, 2010, p. 138).
O que fica claro nessa passagem é que, para o PCB, a educação tinha como
principal função despertar a consciência dos trabalhadores para as contradições que a
sociedade brasileira apresentava, permitindo assim a proposição de uma nova ordem, mais
condizente com as necessidades da classe trabalhadora.
Para Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, o analfabetismo e a pouca escolaridade
eram dos principais problemas para a organização de uma revolução no Brasil. Segundo
Favoreto (2010), Astrojildo propunha duas formas de melhorar a educação no país: pela
escola e pela propaganda:
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
184
A ignorância alfabética é um grande mal, pois que dificulta imensamente
a difusão das idéias pelos meios mais fáceis – os impressos de toda a
ordem. Devemos então criar escolas por aí fora? Sim, que se abram
escolas possíveis, para crianças e adultos. Mas este será apenas um
meio secundário, subsidiário de combate à ignorância, do ponto de vista
da organização. Deveríamos antes, a meu ver, formar escolas de bons
oradores propagandistas, que saibam falar com clareza, precisão e
propriedade aos trabalhadores incultos (FAVORETO, 2010, p. 144).
(grifos da autora)
De acordo com Favoreto, para Astrojildo Pereira a questão do analfabetismo tornava
urgente a abertura de novas escolas, mas também era preciso formar bons oradores para
educar os militantes incultos que necessitavam de um despertar da consciência
revolucionária; nesse sentido, a proposta educacional de Pereira caminharia muito mais
pela via da propaganda comunista do que pela educação formal. Como apontou Favoreto
(2010), Astrojildo Pereira se mostrava ansioso por divulgar as ideias comunistas ao povo,
que as ignorava; acreditava que a formação política através do partido seria urgente. Sem se
deter no debate sobre a alfabetização, assumia uma perspectiva revolucionária conduzida
pela esfera partidária e centrada na divulgação das ideias comunistas. Assim, em uma
perspectiva prática, a revolução resultaria do conhecimento que a massa teria da Revolução
Russa, motivo pelo qual a propaganda das ideias comunistas era urgente. Ou seja, a
consciência de classe se faria pela propaganda política (FAVORETO, 2010, p. 146).
Assim, uma das principais tarefas do partido comunista e de seus militantes era
divulgar as ideias comunistas junto ao povo brasileiro, uma vez que a revolução só seria
possível a partir dos ensinamentos da Revolução Soviética.
Dessa forma, ao analisar as concepções de educação expressas nos documentos do
PCB, percebemos que existia uma convergência entre elas e a visão de Enio Cabral, que
buscava, por meio da educação, debater os assuntos da conjuntura nacional e internacional
com seus alunos, motivando-os a observar as contradições da sociedade e despertar sua
consciência crítica. Sua ação visava uma educação transformadora que se iniciaria na
escola e extrapolaria esse espaço, permitindo assim, quem sabe, uma sociedade mais justa e
igualitária. Contudo, o golpe de Estado de 1964 impediria que seu projeto e do PCB se
realizasse num curto prazo.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
185
O ESPECTRO DA REVOLUÇÃO RONDA O BRASIL
Segundo Del Roio, desde os anos 1920 havia no Brasil, em virtude da penetração
das ideias marxistas ainda incipientes, a formação de uma cultura política que permitiu a
difusão do tema da revolução.
Del Roio explica que no Brasil a palavra revolução, no âmbito do senso comum,
estava ligada a crises políticas institucionais, principalmente militares, mas nunca colocou
em xeque a derrocada das classes dominantes e, consequentemente, das estruturas
econômico-sociais vigentes. Baseando-se em Gramsci, o autor atenta para uma revolução
passiva no Brasil, quando as forças antagônicas à ordem vigente são incapazes de instaurar
um novo poder, mas conseguem concessões das velhas classes dominantes que visam à
recomposição do bloco histórico. Del Roio esclarece que o espectro da revolução brasileira
rondou diferentes classes sociais, como se observa no trecho transcrito a seguir:
Numa tumultuada reunião do Clube Militar, realizada em fins de junho de
1922, o tenente Asdrúbal Gwaier de Azevedo previa: “Sr. Presidente,
estamos às portas da Revolução.” Nesse mesmo mês, expressando-se em
nome do recém-fundado Partido Comunista, Astrojildo Pereira afiançava:
“[...] tomamos sobre os ombros o compromisso de uma imensa tarefa:
desfraldar e sustentar, nesta parte da América, a bandeira vermelha da
revolução mundial” (DEL ROIO, 2000, p. 71).
O autor destaca que é obvio que os dois não falavam da mesma revolução, mas tais
pronunciamentos demonstravam que o tema se fazia presente nos debates políticos do
Brasil como sintoma da insatisfação com a dominação oligárquica, que via brotar em suas
fissuras diferentes concepções revolucionárias, tanto no seio do operariado como das
próprias forças armadas. Como exemplo de levantes pontuais que em nada abalavam a
estrutura econômica vigente, o autor cita o evento de 1924, iniciado pelos militares de São
Paulo, que se alastrou pelos estados de Mato Grosso, Amazonas e Rio Grande do Sul, tendo
sido o precursor da Coluna Prestes (CORRÊA, 1976).
O texto de Del Roio deixa claro que a tese que circulava entre os homens de
esquerda no Brasil era a de uma revolução etapista que necessitaria de uma “aliança
pequeno-burguesa”. O autor esclarece que a grande dificuldade de pensar o processo
brasileiro se devia à exígua literatura disponível naquele momento, que aqui chegava
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
186
através de correspondências da Internacional Comunista (IC). Destaca ainda que o primeiro
esforço teórico para se pensar a revolução brasileira foi feito por Octávio Brandão em 1928,
em um texto discutido na reunião do PCB, publicado posteriormente sob o título O
proletariado perante a revolução democrático-burguesa. Nele, Octávio identifica a
juventude militar rebelada contra a oligarquia como “pequena burguesia”, o que na opinião
de Del Roio constituía um erro conceitual, como adverte: “Octávio Brandão não conseguiu
alcançar o conceito de revolução burguesa como conteúdo econômico-social do processo
que estava para se abrir na formação brasileira” (Del Roio, 2000, p. 74).
Octávio, estabelecendo comparações com a Revolução Russa e se baseando em suas
leituras de algumas formulações de Marx, Lenin e Bukharin, busca convencer um partido –
o PCB – ainda reticente, sobre a necessidade de fazer alianças com outros setores sociais
para a configuração da revolução. Del Roio chama a atenção para o fato de que, com o
compromisso feito perante a Internacional Comunista de eleger o imperialismo como
inimigo principal de todos os povos, o PCB preservou o cerne de sua formulação teóricopolítica principal, qual seja: a da aliança estratégica com os “revoltosos pequenoburgueses”. As ideias de Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, que apontavam para a
formação da mais ampla frente democrática contra o “czarismo brasileiro”, foram
suprimidas em função da interferência pós-stalinista na IC no III congresso do PCB, de
1929, que focava, nas palavras de Del Roio, “em objetivos inexequíveis: a) solução do
problema agrário, confisco da terra; b) supressão dos vestígios semifeudais; e c) liberação
do jugo do capital estrangeiro” (2000, p. 77).
Para o autor, o grande problema da revolução brasileira foi a divergência entre
membros da própria esquerda, como assinala:
No espectro político, é claro, os comunistas colocavam-se na extrema
esquerda, identificando o movimento civil e militar de outubro de 1930
como “contra-revolução” e encaram como inimigo principal as tendências
de esquerda, particularmente o “prestismo” e o “trotskismo”. A
compreensão dessa postura política exige a abordagem da subjacente
concepção da teoria da revolução. Embora o PCB tivesse excluído de suas
fileiras praticamente todos os elementos com alguma capacidade de
elaboração teórica e com alguma percepção do que vinha a ser o
marxismo, havia entre os militantes comunistas uma visão de revolução
introjetada a partir da concepção gestada na IC (DEL ROIO, 2000, pp. 7980).
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
187
Ainda sobre a ideia de uma revolução brasileira, Del Roio discorre sobre o longo
processo de sua constituição como paradigma da esquerda brasileira e estabelece dois
momentos para se pensar a questão. São eles: 1937, quando “os comunistas, ao reduzirem a
noção de revolução burguesa à mera industrialização, passaram a entender a burguesia
nacional como força motriz essencial da revolução brasileira, deixando à sombra a questão
agrária”, (DEL ROIO, 2000, p. 81) e a segunda metade dos anos 1950, quando o tema da
revolução ganha novo fôlego com as denúncias sobre os crimes de Stalin e a insurreição de
Budapeste, que estimularam a revisão das ideias internas do PCB33. A revelação ocorreu no
XX Congresso do PCUS, realizado em fevereiro de 1956, no qual Kruschev fez a leitura do
famoso “relatório secreto” dos crimes de Stalin que levaram a uma reordenação das
diretrizes internas dos partidos comunistas em todo o mundo.
Sobre as mudanças internas no PCB brasileiro, Santos destaca:
Os acontecimentos de 24 de agosto vão pôr em discussão e os debates
sobre o XX Congresso vão acelerar o questionamento mais definitivo da
caracterização da sociedade brasileira que o PCB colocava no seu
esquema de revolução nacional-libertadora, de inspiração staliniana,
sobreposto ao modelo leninista (SANTOS, 2003, p. 226).
Entre os intelectuais importantes para pensar o novo influxo da revolução brasileira,
destacam-se Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., cujas ideias
passamos a apresentar, rapidamente, a seguir.
A tese pecebista de combate ao imperialismo aparece na concepção de Werneck
Sodré no capítulo dedicado à reflexão sobre a revolução, publicado na obra Formação
econômica do Brasil (1964). O autor aponta que o país apresenta plenas condições para o
desenvolvimento, com abundância de terras, de mão de obra, de recursos naturais e que,
para isso, não há necessidade de empregar o capital estrangeiro. Werneck Sodré sentencia
que não há saída para o desenvolvimento no Brasil com a política de compromissos com o
imperialismo americano, que constitui a base das propostas existentes até o presente
momento. Destaca o autor: “Uma autêntica política de desenvolvimento não pode servir ao
33
Sobre o assunto, consultar: DEL ROIO, 2000; MORAES & DEL ROIO, 2000.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
188
imperialismo e ao latifúndio, como ficou claro com a experiência realizada” (SODRÉ,
1970, p. 384-385).
Werneck Sodré afirma que a ascensão de Getúlio Vargas ao poder representou uma
profunda alteração no cenário político brasileiro. Consagrado pelo apoio popular, Vargas
encontrou apoio de amplos setores econômicos e políticos, com a particularidade de que
encerrava uma contradição. Enaltecendo a visão nacionalista de Vargas, Sodré indica o
discurso feito em janeiro de 1954 como um verdadeiro libelo contra a espoliação
imperialista. Nele, o governante apontava “o modo como se sangravam as energias de
trabalho do povo brasileiro” (SODRÉ, 1970).
Mas o bom começo seria anulado pela destruição ou pelo afastamento das forças
cujo apoio lhe era necessário para um programa renovador. Tal antinomia conduziria
Vargas ao isolamento e à destruição. Werneck chamou atenção para esse problema de
estratégia:
O erro de Vargas, realmente, foi o de não ter contribuído para criar um
dispositivo interno de forças apto a apoiar a política que defendia em
palavras. Sem base política, não há política. A destruição dos elementos
nacionalistas estava em contradição com a denúncia levantada em janeiro
de 1954. E esta denúncia feita sem base política, só poderia levar ao
isolamento de Vargas e à sua derrota. Preludiava o suicídio (SODRÉ,
1970, p. 387).
Após discorrer sobre o processo econômico brasileiro e as tentativas fracassadas e
ou contraditórias de Vargas de se livrar, num primeiro momento, da exploração realizada
pelo capital internacional, Sodré continua a apontar o imperialismo como o principal
problema também para o governo de Jânio Quadros:
Pelas suas origens, pela composição de fôrças que o levaram a condidatarse e mantiveram a sua candidatura, o governo de Jânio Quadros é um
prisioneiro do latifúndio e do imperialismo; pelo sentido da escolha
popular, recebe as esperanças e as pressões das fôrças democráticas e
nacionalistas. A forma como resolverá as suas contradições faz parte do
processo da Revolução Brasileira que, em alguns casos, é um processo de
tributação rápida de valores reais, tornados obsoletos, e de mitos de curta
duração (SODRÉ, 1970, p. 392).
189
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
Para Werneck Sodré, em países como o Brasil a fraqueza do movimento
democrático se explicaria pela desorganização da classe operária, principalmente na sua
articulação com outros setores sociais, o que certamente constitui um entrave para o
desenvolvimento da revolução brasileira. Ele finaliza sua reflexão sobre o tema afirmando:
A composição das forças no quadro mundial como a composição das
forças no quadro interno mostram que as perspectivas da Revolução
Brasileira são as mais amplas. A rapidez com que se processará ou os
retardos que possa sofrer dependem, entretanto, da ação dos homens, da
ação política, da ação organizada, da análise e do entendimento como da
prática. Para que tal ação possa desenvolver-se, a manutenção e a
ampliação do regime democrático aparece como imperiosa necessidade. A
emancipação do Brasil não é uma tarefa conspirativa, mas a empresa de
todo o povo (SODRÉ, 1970, p. 403).
Florestan Fernandes também tratou do tema da revolução brasileira num artigo
intitulado A revolução brasileira e os intelectuais, originalmente proferido como discurso
para a formatura dos estudantes de Filosofia da turma de 1964 da Universidade de São
Paulo
(USP)
e
posteriormente
publicado
na
obra
Sociedade
de
classes
e
subdesenvolvimento (2009). No texto, ele aponta um problema de deformação de
interpretações quanto à datação da chamada revolução brasileira, que ignora não só as
origens, mas também sua continuidade como processo e seu fluir para diante. Afirmava ele:
“prevalecia a opinião de que a ‘Revolução Brasileira’ poderia ser apropriadamente descrita
como a ‘revolução de 1930’”. De acordo com essa interpretação, a insurreição provocada
pela Aliança Liberal figura como imprescindível, pois testemunha a primeira grande
transformação que se operou no seio das forças histórico-sociais que haviam gerado aquela
“revolução” (FERNANDES, 2009, p. 162). Segundo o autor, tal ideia queria atestar que
1930 seria o ponto de maturidade do pacto revolucionário brasileiro, da qual ele discorda
totalmente. Fernandes considera tal perspectiva de explicação da revolução brasileira como
uma forma de se falsificar a interpretação objetiva dos processos histórico-sociais,
motivada por certa dificuldade de se fazer a história do presente, que pode confundir-se
com o próprio presente. Assim, a revolução brasileira seria justificada a partir de relatos
produzidos pelos agentes desse drama histórico, que teria sua culminância em 1930, ou foi
fortemente influenciada por seus impactos. Ainda de acordo com o autor, a disposição de se
“criar história” confundiu-se com a disposição de se “explicar a história”, dissociando-se
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
190
assim o presente do passado. Para Fernandes, “passou-se, assim, quase insensivelmente, a
interpretar-se a realidade histórica como se fosse um fluir de acontecimentos que lançariam
suas raízes no tempo imediato das ações humanas consideradas” (FERNANDES, 2009, p.
162). Sobre o ponto de partida para se pensar a origem da revolução brasileira, afirma ele:
Em nosso assunto, o marco para localizar historicamente tais antecedentes
parece ser o último quartel do século XIX, onde se evidenciam os efeitos
estruturais da cessação do tráfico negreiro e o repúdio moral à ordem
escravista, os dois grandes fermentos iniciais da revolução burguesa. [...]
No fundo, o que não era pensado como processo histórico, na ligação do
atual com o anterior, também deixava de ser pensado como processo
histórico numa direção puramente prospectiva, na ligação do atual com o
ulterior. Isso impediu que se visse a “revolução brasileira” como algo
contínuo e in flux, provocando uma atomização da consciência da
realidade sem paralelos e uma ingênua mistificação da natureza do
processo global, raramente entendido como autêntica revolução brasileira
(FERNANDES, 2009, p. 162).
Fernandes também discorda da interpretação de que a revolução de 1930
representou uma crise da oligarquia e que a partir desse período histórico houve um colapso
do poder desse bloco histórico:
O que muitos autores chamam, com extrema impropriedade, de crise do
poder oligárquico não é propriamente um ‘colapso’, mas o início de uma
transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma
recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam,
historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa (FERNANDES,
1975, p. 203).
O autor aponta que na verdade houve uma aliança orgânica e fiel entre a classe
agrária e os representantes da burguesia, e que a maior expressão desse processo foi, apesar
das divergências, a institucionalização do mandonismo oligárquico como uma segunda
natureza da burguesia no Brasil.
Através de discórdias circunscritas, principalmente vinculadas a estreitos
interesses materiais, ditados pela necessidade de expandir os negócios.
Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si
mesmo, modificar a história. Além disso, o mandonismo oligárquico
reproduzia-se fora da oligarquia (FERNANDES, 1975, p. 205).
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
191
Do nosso ponto de vista, a visão de Florestan Fernandes sobre a revolução brasileira
é extremamente lúcida ao apontar os acordos pontuais feitos entre a burguesia e a
oligarquia para impedir uma verdadeira revolução popular, e ainda por pensar a revolução
como um processo contínuo e em curso, retomando a noção utópica a que me reportei
anteriormente.
No texto publicado em 1966, chamado A revolução brasileira, Caio Prado Júnior
inicia por clarear o sentido do termo revolução, alvo de muitas confusões, cujo sentido
geralmente utilizado quer dizer emprego de força e violência para tomada do poder, o que
deveria ser entendido como insurreição. Segundo ele, o termo poderia ter também o sentido
de transformação do regime social vigente, o que via de regra é feito por meio de uma
insurreição, mas nem sempre isso ocorre. “O significado próprio se concentra na
transformação e não no processo imediato através de que se realiza”. (PRADO JR, 2000, p.
25). O autor exemplifica seus argumentos por meio da Revolução Francesa, que foi
instituída através de várias insurreições, embora não seja isso o que a caracterize, e sim seu
sentido de mudança de regime. Como destaca ele:
“Revolução” em seu sentido real e profundo, significa o processo
histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e
políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente
curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade, e em especial
das relações econômicas e do equilíbrio reciproco das diferentes classes e
categorias sociais.[...] São esses momentos históricos de brusca transição
econômica, social e política para outra, e as transformações que então se
verificam, que constituem o que propriamente se há de entender por
“revolução” (PRADO JR, 2000, p. 26).
Na sequência do texto, o autor informa que é esse precisamente o sentido que
empregará em seu texto para pensar a revolução no Brasil. Como chamei a atenção
anteriormente, A revolução brasileira, escrita no pós-1964, objetivava mostrar a leitura de
conjuntura que Prado Jr. tinha daquele momento histórico. O Brasil se encontrava em fase
propícia para grandes transformações profundas que buscassem atender às demandas da
grande massa da população, que não tinha suas aspirações realizadas, enquanto pequena
parcela da sociedade que, por deter as alavancas do poder e da dominação econômica,
social e política, considerava que tudo ia bem, precisando apenas de ajustes.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
192
Para Caio Prado, no entanto, o país se encontrava em um momento decisivo para
empreender mudanças, pois os desajustamentos de suas instituições básicas eram visíveis.
Travava-se de uma sociedade dilacerada por tensões sociais, descontentamentos,
insatisfações generalizadas que geravam ceticismo e descrença na busca de soluções dentro
da ordem vigente. Tudo isso, para ele, torna o Brasil propício para a busca de uma mudança
radical.
Antes de continuarmos o debate sobre as ideias de Prado Jr., é importante pensar
quem é esse intelectual marxista que em plena ditadura escreve uma história “a contrapelo”,
no sentido benjaminiano. Na tese VII sobre o conceito de História, Walter Benjamin nos
esclarece sobre a perspectiva marxista de pensar a história como embate dialético entre
“vencedores” e “vencidos”, a qual editamos e transcrevemos a seguir:
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em reviver uma
época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. É
impossível caracterizar melhor método com o qual rompeu o materialismo
histórico. (...) A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos
perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece
propriamente uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o
vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de
todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia
sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o
materialista histórico. Todos os que até agora venceram participam do
cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos
que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo,
como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. (...) O
materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os
bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode
refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos
grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus
contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse
também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta
de barbárie, não o é, tampouco o processo de transmissão em que foi
passado adiante. Por isso, o materialista histórico se desvia desse
processo, na medida do possível, ele considera sua tarefa escovar a
história a contrapelo. (BENJAMIN, 2012, p. 244)
José Carlos aponta para a singularidade da trajetória pessoal e acadêmica de Prado
Júnior:
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
193
A sua formação superior foi em Direito e Geografia. A trajetória que a sua
vida tomou dominará a sua obra. Ele é de origem aristocrática; saiu de
uma família cafeicultora paulista, para se tornar o intelectual orgânico do
movimento operário brasileiro! Sua vida é marcada pela “ruptura de
classe”. Ao se tornar um intelectual ligado à revolução socialista
brasileira, Caio Prado não fez uma pequena travessia como se ele fosse
apenas um pequeno-burguês. Ele não é filho da classe média
proletarizada. Sua mudança na percepção da história do Brasil foi uma
“mutação”, afirma Novais. Aristocrata, ele passou a lutar por igualdade e
liberdade além dos limites do liberalismo, além do mundo burguês. Ele é
um dos intelectuais de origem burguesa que forçaram os limites da
“consciência possível” e produziram “obras significativas” (Goldmman)
ou “orgânicas” (Gramsci), ao serem um contraponto ao intelectual
tradicional. Caio Prado saiu da alta tradição, do passado colonial, para a
revolução socialista, para o futuro: eis a dimensão do seu salto, que até
sugere a impressão de um “suicídio simbólico”, tamanha a altura ou
distância da mudança de posição (REIS, 1999, p. 2).
As informações trazidas por Reis se tornam ainda mais relevantes quando pensamos
sobre o momento em que Caio Prado Júnior escreve – 1966 –, quando a maioria da
sociedade brasileira ainda tentava se recuperar do golpe e buscava alternativas para
enfrentar as agruras impostas pelos militares. Muitos intelectuais preferiram a capitulação,
ou foram exilados, enquanto Caio Prado e Florestan Fernandes usaram de suas armas
teóricas para enfrentar tal estado de coisas.
José Luis Sanfelice publica uma instigante análise sobre a relação entre os
intelectuais e as estruturas de poder pós-ditadura, intitulada “O movimento civil-militar de
1964 e os intelectuais”, na qual demonstra que o processo de cooptação de estudiosos
brasileiros para as fileiras do regime ditatorial foi intenso, mas esclarece também que nem
todos sucumbiram perante as conveniências do momento.
Sanfelice apresenta as ações de intelectuais que se tornaram ventríloquos dos
ditadores, como Flávio Suplicy de Lacerda (ministro da educação no período) e Raimundo
Moniz de Aragão, principal responsável por transmitir o pensamento governamental à
sociedade no fórum universitário realizado em 1964, mas dá um destaque especial à
atuação de Florestan Fernandes e da UNE como protagonistas da luta contra o golpe e da
reforma empreendida a partir dele, compondo um claro panorama das contradições
inerentes a esse período de nossa história.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
194
Os intelectuais, professores, estudantes, ministros, reitores dividiram-se.
Os agentes envolvidos, classes sociais, instituições e outros buscaram
cooptá-los. De há muito, parte deles já se encontrava nas lides do
reacionarismo conservador pré-64. Outros fizeram parte do projeto
reformista e houve aqueles que urdiram a pílula da reforma universitária
consentida. Contra os últimos, Florestan Fernandes voltou suas
indagações, que não se tornaram anacrônicas para os dias de hoje, quando
a educação e a universidade vão sendo reformadas pelas Agências, sob o
manto do neoliberalismo mercantil e privatista, com a participação de
dezenas de intelectuais que atuam em prol da sua hegemonia e em busca
de um consenso bestializante (SANFELICE, 2008, p. 375).
Retomando a questão da relação entre intelectuais e sociedade apontadas por Reis e
Sanfelice, a posição de classe de um determinado intelectual não determina a priori seu
posicionamento político, que é construído no embate com a realidade que o cerca,
responsável por despertar sua consciência para as contradições nela presentes e impulsionálo para a busca da transformação, como ocorreu com Caio Prado e Florestan Fernandes. Ao
que parece, foi exatamente isso que moveu o primeiro a publicar, num ato corajoso de
enfrentamento com a ditadura e com incoerências internas da esquerda, a obra A revolução
brasileira, com o objetivo de reavivar as possibilidades de resistência e pensar um país
diferente nos “anos de chumbo” no Brasil. Sobre essa conjuntura, informa Reis:
Nos anos 60, na Revista Brasiliense, fechada pelo Golpe Militar, Caio
Prado publicou uma síntese da sua visão do passado brasileiro e refletiu
sobre a ação que deveria ser realizada para a sua transformação na obra A
Revolução Brasileira. É a esta obra que daremos atenção especial aqui,
pelo esforço de síntese que ela representou e pelo caloroso debate que ela
manteve com o PCB e com o marxismo brasileiro dos anos 1922/50, sobre
a análise mais adequada à realidade brasileira e à sua mudança
revolucionária (REIS, 1999, p. 2).
Reis apresenta uma percepção sagaz da intencionalidade da referida obra, afirmando
que seu principal propósito era tornar clara sua análise da realidade brasileira pelo viés da
dialética na história. O próprio autor anuncia tal intento ao longo da obra, quando, valendose da obra de Marx, chama a atenção para o fato de que a solução dos problemas de uma
dada conjuntura se dá no próprio processo que a gerou.
A teoria da revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na
condução dos fatos, será simplesmente – mas não simplisticamente – a
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
195
interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que
resulta. Processo esse que, na sua projeção futura, dará cabal resposta às
questões pendentes. É nisso que consiste fundamentalmente o método
dialético. Método de interpretação e não receituário de fatos, dogmas,
enquadramento da revolução histórica em esquemas abstratos
preestabelecidos (PRADO Jr., 2000 p. 39).
É a partir dessa visão dialética que Caio Prado continua acreditando na possibilidade
de uma revolução brasileira que possa permitir a socialização dos meios de produção, a
supressão da divisão da sociedade em classes antagônicas e o fim da exploração nas
relações de trabalho. Mas o autor também aponta quais motivos em seu entender levaram à
não realização desse processo no Brasil, surpreendido com o golpe reacionário de 1964.
Para ele, o principal problema de João Goulart, de uma minoria oportunista e da própria
esquerda comunista foi não conseguir explorar as contradições existentes no país a tal
ponto de serem acompanhados em seus propósitos revolucionários pelo sentimento popular.
Segundo Caio Prado, é certo que grandes sacrifícios foram enfrentados por diversos
setores da população e que eles se agravaram no pós-golpe, mas mesmo assim não foi
possível articular um processo revolucionário no país. Para muitos membros da esquerda,
esses sintomas pareciam ser o momento de ascensão da revolução, no entanto eles serviram
apenas como justificativa para articulação das forças que tomaram o poder no dia primeiro
de abril de 1964. A desordem administrativa, a inépcia governamental e a agitação estéril,
sem nenhuma penetração no sentimento social popular, estimulado por aspirações
mesquinhas ou pessoais, forneceram o pretexto para que os reacionários civis e militares se
arvorassem a salvar o país do caos comunista. Em sua análise, nem João Goulart é
poupado:
Foi isso o governo de João Goulart e seu triste fim. E nele, e para sua
infausta trajetória colaboraram as desorientadas esquerdas brasileiras sem
outra perspectiva que esta de se servirem, ou melhor, de se porem a
serviço de ambições políticas que nada tinham nem podiam ter em comum
com seus ideais e finalidades (PRADO Jr., 2000, p. 45).
E o próprio PCB que, segundo sua opinião, cometeu erros táticos:
Ao analisarmos nos próximos capítulos a “teoria” da revolução brasileira
oficializada e consagrada, em linhas gerais, nos círculos dirigentes nossas
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
196
esquerdas, a começar, e em primeiro e principal lugar pelos comunistas,
bem como a estratégia e tática dela decorrentes daquela “teoria”, teremos
ocasião de verificar como as graves distrações observadas na interpretação
da realidade política, econômica e social brasileira contribuíram para os
erros que vinham sendo cometidos desde longa data na ação política da
esquerda, e que levaram afinal ao desastre de 1º de Abril. Esses erros se
agravaram consideravelmente depois da renúncia de Jânio Quadros em
agosto de 1961, degenerando então nesse elementar e grosseiro
oportunismo a que fizemos referência, e que caracterizou a situação
deposta em Abril de 1964. Não é de admirar que as esquerdas brasileiras,
privadas de uma teoria satisfatória e capaz de as conduzir com segurança
a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas seduções de demagogos
instalados no poder. E marchassem com eles para o desastre que qualquer
observador menos apaixonado e preconcebido por opiniões estranhas à
realidade brasileira, poderia com facilidade ter previsto (PRADO Jr.,
2000, pp. 45-46).
O interessante nessa análise é que, apesar de apontar os problemas de orientação
teórica que guiaram a leitura de conjuntura dos representantes da esquerda brasileira,
continuou-se acreditando na possibilidade de uma revolução brasileira. Podemos incluí-lo,
talvez, na gama de intelectuais marxistas que compartilham com Marcuse sua noção de
utopia.
O GRUPO DOS ONZE E A POSSIBILIDADE DE UMA REVOLUÇÃO ARMADA NO PAÍS.
Em todo o país os militares procuram justificar o golpe de 1º de abril de 1964 a
partir da ideia de uma possível revolução comunista que poderia ocorrer, inclusive por meio
da luta armada. Uma das organizações que se encontravam na mira dos militares era o
Grupo dos Onze, que estaria sendo organizado em todas as regiões do país. Em
Aquidauana, esse boato também se fez presente. Segundo os informantes pró-regime
militar, Enio Cabral seria o principal articulador do referido grupo na cidade; por esse
motivo uma das preocupações dos militares, quando de sua prisão, era saber como
funcionava o grupo em Aquidauana. Em seu interrogatório, os oficiais lhe perguntaram
sobre sua ligação com o Grupo dos Onze e ele respondeu que não pertencia a esse grupo.
No entanto no imaginário militar tal pronunciamento não era digno de confiança, pois
documentos secretos davam como certa a atuação deles no centro-oeste brasileiro. Arakaki
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
197
(2009) aponta que a atuação do Grupo dos Onze era recorrente nos depoimentos colhidos
por ela no período de elaboração de sua pesquisa sobre a ditadura militar em Dourados. O
Grupo dos Onze era uma organização popular, inspirada nas ideias de Leonel Brizola, que
deveria se auto-organizar para defender e ampliar as conquistas democráticas no país.
Sobre as estratégias de sua organização, afirma Ferreira:
As esquerdas produziam e manejavam imagens e representações, mas
também propunham formas de organização. Em sua estratégia de luta
extraparlamentar, Brizola, em fins de novembro de 1963, pregava a
formação de “grupos de onze companheiros” ou “comandos
nacionalistas”. A proposta era a de que o povo se organizasse em grupos
de 11 pessoas, como em um time de futebol. Ao formarem um
“comando”, os militantes assinavam uma ata em que tinham por objetivo
a “defesa das conquistas democráticas de nosso povo, realização imediata
das reformas de base (principalmente a agrária) e a libertação de nossa
pátria da espoliação internacional, conforme a denúncia que está na cartatestamento de Getúlio Vargas” (FERREIRA, 2004, p. 199).
Ferreira descreve a organização do G.11 como uma das importantes estratégias da
esquerda para combater os grupos desfavoráveis aos interesses do povo. De acordo com
ele, esse grupo era bastante heterógeno, englobando desde estudantes das faculdades de
Direito e de Filosofia, responsáveis pelas pichações e colagem de cartazes contra o governo
militar, até militantes mais qualificados e experientes, que monitoravam os militares de alta
patente, observando seus trajetos e horários para facilitar um possível ataque dos sargentos
aliados a Brizola. Ferreira também destaca que o PCB criticou bastante essa estratégia e
que “a maior consequência dos ‘comandos’ foi a de gerar o medo-pânico entre os
conservadores e a direita civil-militar” (FERREIRA, 2004, p. 199).
Brizola buscava, a partir dessa organização popular radical, constituir um partido
revolucionário. Embora os comandos não tivessem tido nem mesmo o tempo necessário
para se consolidar, geraram uma grande preocupação entre os militares, que por meio de
seu serviço de inteligência conseguiram tomar conhecimento de tal organização
progressista. Os militares souberam de suas ações e tentaram a todo custo desmantelar tais
comandos que poderiam atrapalhar suas ações à frente do governo do país. Mariza Tavares
publicou o artigo Memória 1964 – o dossiê do braço armado de Brizola (2009), no qual
retrata a preocupação dos militares com a formação de tais grupos, que poderiam significar
uma possibilidade de derrubada do governo militar instituído após o golpe.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
198
(Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009)
O documento publicado pela CBN demonstra que o exército tinha grande
preocupação com o G.11, a ponto de solicitar ao serviço de inteligência uma investigação
sobre tal inciativa arquitetada por Leonel Brizola. No documento intitulado Informação nº
79-E2/64, os militares afirmam que, a partir de buscas feitas nas remessas de correio, foi
possível constatar diversas evidências que comprovavam a formação dos denominados
Grupos dos Onze. Ainda de acordo com tais investigações, esses grupos eram numerosos,
congregavam indivíduos das mais variadas categorias e profissões e tinham como principal
objetivo implantar um governo com “tendências antidemocráticas” no Brasil. Segundo os
militares, os objetivos seriam os seguintes:
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
199
(Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009)
Os objetivos expressos no referido documento demonstram que Brizola e os grupos
dos onze pretendiam radicalizar a luta contra os militares e demais “forças conservadoras”.
Reside provavelmente aí a divergência com o PCB, que buscava uma reforma sem o uso da
força, por meio de uma ampla aliança entre os camponeses, setores operários e a pequena e
média burguesia para enfrentar os grandes latifundiários e o grande capital nacional e
estrangeiro.
Jorge Ferreira, apoiando-se no trabalho de Figueiredo (1993), chama a atenção para
a criação, no início do governo de João Goulart, de uma “coalizão radical pró-reformas”,
composta por
(...) ligas camponesas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o bloco
parlamentar autodenominado Frente Parlamentar Nacionalista, o
movimento sindical, representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores
– CGT, organizações de subalternos das Forças Armadas, como sargentos
da Aeronáutica e do Exército e marinheiros e fuzileiros da Marinha, os
estudantes por meio da União Nacional dos Estudantes – UNE e, também,
uma pequena organização trotskista (FERREIRA, 2004).
Ferreira afirma ainda que Leonel Brizola, principal liderança nacionalista e de
esquerda, pressionava o governo Goulart a realizar as reformas, principalmente a agrária, e
costumava dizer que elas ocorreriam “na lei” ou “na marra”. O pesquisador Claudinei
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
200
Rezende, em sua obra O bote do acossado: a ideia de revolução em Marighella, demonstra
a divergência existente entre os grupos da esquerda brasileira que optaram ou por uma
reforma radical, impulsionada pela luta armada, ou por reformas constituídas por meio da
resistência democrática. Esse foi o grande debate travado na década de 1960 entre os
dirigentes do PTB e PCB. Sobre tal divergência, destaca Rezende:
A característica mais tragicamente problemática entre todos os grupos que
deflagraram a luta armada no Brasil entre os anos 1967 e 1973 foi a
ausência de uma clara definição sobre a estratégia revolucionária e,
algumas vezes, também sobre a tática de luta. Excetuando o que havia
sobrado do PCB no pós-golpe e os trotskistas ortodoxos, toda a esquerda
revolucionária da época – sem outra saída aparente e completamente
acossada pela repressão – embarcou na proposta da luta armada. Como
vimos, o processo revolucionário pretendido pela esquerda pecebista do
início dos anos 1960 era a revolução burguesa, isto é, completar a
modernização capitalista que a burguesia não fizera, incluindo seu
estatuto de cidadania burguesa. Essa revolução não implicaria,
necessariamente, um processo de insurreição violenta. (...) Todavia, na
revolução proposta pela esquerda armada havia uma grande ruptura com o
núcleo central dirigente do PCB: o processo iniciado com a guerrilha era
de uma algaravia violenta, aliás, uma insurreição na qual não se sabia ao
certo se o intento levaria a uma revolução burguesa ou a algo que se
poderia chamar, grosso modo, de revolução socialista (REZENDE, 2010,
p. 121).
No trecho acima, observamos que a proposta do PCB estava em consonância com o
sentido empregado por Caio Prado sobre a ideia de revolução, que implicava não mudanças
vertiginosas, mas sim um processo permanente de superação das contradições inerentes ao
Brasil, que, entre outras coisas, ainda não havia deixado para trás seu caráter agrário e
subdesenvolvido. Assim, Caio Prado deixava claro que no país não havíamos conseguido
realizar nem mesmo nossa revolução burguesa, etapa fundamental para construção de uma
revolução socialista no Brasil.
Como já destaquei anteriormente no documento revelado pela CBN, a ideia de uma
revolução armada estava presente. A grande inspiração de Leonel Brizola era a Guarda
Vermelha da Revolução Socialista de 1917, que teve um papel preponderante no processo
desencadeado naquele momento contra o czarismo russo. A revolução cubana, empreitada
vitoriosa realizada por Fidel Castro e guerrilheiros contra o ditador Fulgêncio Batista,
também serviu de estímulo para os partidários do Grupo dos Onze.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
201
No terceiro capítulo do documento divulgado pela jornalista Mariza Tavares, da
CBN, encontramos recomendações aos militantes para que os mesmos conseguissem
armamentos e se preparassem para o "Momento Supremo”:
(Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009)
No documento, o grupo chama a atenção ainda para a ajuda que seria prestada pelos
aliados militares infiltrados no exército, que forneceriam armas de grosso calibre para a
ação, principalmente nos grandes centros do país. Além dos militares, os camponeses
também iriam se mobilizar para atacar fazendas, armazéns, celeiros e depósitos de cereais,
numa ação coordenada pelos grupos dos onze locais.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
202
Já na cidade, a tática seria que os líderes do G.11 comandassem um grande número
de homens que deveriam incitar a opinião pública com gritos e palavras de ordem para
levantar a bandeira de ordem das reivindicações populares. O documento ainda acrescenta
que era preciso, “para vitória desta tática, atrair o maior número de mulheres e crianças
para frente da massa popular, acobertar a ação dos G.11, da reação policial-militar”.
Essa passagem é particularmente interessante, pois demonstra que o machismo não
era apenas um pensamento da direita, pois em outro trecho do documento havia a
recomendação para que as mulheres se organizassem em grupos separados dos homens e
aguardassem instruções sobre quais seriam suas funções no processo revolucionário.
Certamente não imaginavam que seriam utilizadas como escudos humanos, juntamente
com os seus filhos, encarnando o princípio revolucionário da Marselhesa: “Vêm eles até
nós; Degolar nossos filhos, nossas mulheres; Às armas cidadãos!” (Claude Joseph Rouget
De Lisle).
De acordo com esse documento, o terror e o uso da violência eram males
necessários para que se atingisse o processo revolucionário que levaria à construção de uma
sociedade socialista e igualitária. Portanto, mesmo medidas consideradas drásticas
deveriam ser tomadas, como se verifica no documento a seguir:
(Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009)
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
203
De acordo com as instruções expressas, os integrantes dos G.11 deveriam
desempenhar a prisão, a guarda e o julgamento sumário dos prisioneiros de guerra. Por esse
motivo, era necessário selecionar companheiros que, em função de seu ódio pelos
poderosos, fossem capazes de executar até mesmo as ordens mais duras que se fizessem
necessárias no momento da luta.
O alvo desses militantes seriam as autoridades públicas, tais como prefeitos, juízes e
delegados de polícia, dentre outros que pudessem se insurgir contra a ação revolucionária.
Eles deveriam ser presos e ficar sob guarda, preferencialmente no meio da mata e, no caso
de derrota do movimento – o que os líderes consideravam pouco provável –, deveriam ser
imediatamente fuzilados. Vale lembrar que essa informação só deveria ser repassada aos
líderes locais do movimento. Tal proposta deixa claro, como já afirmei antes, o caráter
divergente da proposta do Grupo dos Onze em relação à do PCB, que devido a disputas
internas não era unânime sobre a tese da revolução pela força. Encontramos inclusive uma
crítica direta à posição pecebista no referido documento, como se vê a seguir:
(Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009)
O grande entrave para que o PCB liderasse o processo revolucionário no Brasil
eram as disputas entre as facções internas, que fragmentavam o partido e retiravam seu foco
principal. A atuação negativa de Luiz Carlos Prestes no interior do partido comunista
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
204
também aparece como um fator dificultador da ação da esquerda no país. Tais
representantes são acusados de serem acomodados diante da situação nacional: “Fogem à
luta como fogem à realidade e não perderão nada se a situação nacional perdurar por muitos
anos ainda”.
O foco da divergência do Grupo dos Onze com a linha adotada nos anos 1960 pelo
PCB está relacionado à declaração sobre a política do PCB, publicada em março de 1958.
Ela redefinia a análise do partido em relação à conjuntura brasileira e aos caminhos da
revolução. Segundo Jorge Ferreira, entre os anos de 1954 e 1958, o PCB sofre o impacto de
três experiências importantes, a saber: o impacto do suicídio de Vargas, o
desenvolvimentismo do governo Kubitschek e os debates provenientes do XX Congresso
do PCUS, que levaram a uma nova política expressa na referida declaração. Ferreira afirma
que a declaração admitia que o capitalismo estava se desenvolvendo de forma satisfatória
no país e dessa maneira poderia favorecer a democracia. No entanto, apontava para o fato
de que nem todas as contradições estavam superadas; era preciso vencer o imperialismo
que afetava economia nacional, o avanço das forças produtivas e as relações de produção
semifeudais no campo. De acordo com o comitê do PCB, portanto, o grande inimigo a ser
vencido era o imperialismo, e isso só poderia ocorrer com uma aliança entre diversos
setores da sociedade brasileira:
Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito
amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente
pelos interesses gerais da nação; os camponeses, interessados em liquidar
uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista; a
pequena burguesia urbana, que não pode expandir as suas atividades em
virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia, interessada no
desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; os
setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo
norte-americano, derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos
de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação
extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado
interno; os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais
dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes.34
Como se pode notar no trecho acima, os dirigentes do comitê central do PCB,
mesmo no contexto dos anos 1960, acreditavam que em face do inimigo imperialista seria
34
Declaração Sobre a Política do PCB. Voz Operária, 22/03/1958.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
205
possível aglutinar em torno de si grupos heterógenos que lutariam por motivos diferentes,
mas em prol de uma nação independente que pudesse trilhar um caminho próprio, sem a
exploração do capitalismo internacional.
Na declaração de 1958, o comitê detalha as etapas da construção de uma revolução
burguesa democrática no Brasil. Para eles, a solução dos problemas vitais do povo
brasileiro seria a conquista de um governo nacionalista e democrático: Essa conquista
poderia ser efetuada através dos seguintes meios mais prováveis;
1. Pela pressão pacífica das massas populares e de todas as correntes
nacionalistas, dentro e fora do Parlamento, no sentido de fortalecer e
ampliar o setor nacionalista do atual governo, com o afastamento do poder
de todos os entreguistas e sua substituição por elementos nacionalistas. 2.
Através da vitória da frente única nacionalista e democrática nos pleitos
eleitorais. 3. Pela resistência das massas populares, unidas aos setores
nacionalistas do Parlamento, das forças armadas e do governo, para impor
ou restabelecer a legalidade democrática, no caso de tentativas de golpe
por parte dos entreguistas e reacionários, que se proponham implantar no
país uma ditadura a serviço dos monopólios norte-americanos.35
As alternativas iniciais apresentadas pelo PCB no campo da resistência democrática
passam então por uma pressão nacionalista sobre o governo, inclusive com o intento de se
afastarem os entreguistas que estavam no poder, que seriam substituídos por nacionalistas
na burocracia estatal. Para realizar tal empreitada, a via eleitoral também era considerada
importante, certamente em função da memória da bancada comunista vitoriosa na Assembleia
Constituinte de 1946. Finalmente, chama a atenção a aliança entre as massas populares e setores
nacionalistas do parlamento, das forças armadas e do governo para conter possíveis golpes com
vistas a implantar a ditadura.
É importante esclarecer que, em que se pese o fato de os dirigentes pecebistas
defenderem uma via democrática para modificar a conjuntura brasileira, eles não
descartavam uma solução pela via do uso da força, ao contrário do que afirmava o Grupo
dos Onze, seja em 1958 ou mesmo no contexto da ditadura imposta à nação brasileira em
1964.
35
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
206
A escolha das formas e meios para transformar a sociedade brasileira não
depende somente do proletariado e das demais forças patrióticas. No caso
em que os inimigos do povo brasileiro venham a empregar a violência
contra as forças progressistas da nação é indispensável ter em vista outra
possibilidade – a de uma solução não pacífica. Os sofrimentos que
recaírem sobre as massas, em tal caso, serão da inteira responsabilidade
dos inimigos do povo brasileiro.36
Ao que parece, a via da força só deveria ser utilizada em último caso e como
legítima defesa frente às forças conservadoras, que certamente seriam responsabilizadas
pelo confronto armado, já que os dirigentes do PCB, com a ascensão de Juscelino ao poder,
enxergavam a possibilidade do fortalecimento da economia e, consequentemente, da
democracia, que deveria ser defendida a todo custo por uma frente ampla de setores da
sociedade e partidos políticos.
É preciso confessar que a tentação de um olhar anacrônico, que certamente não cabe
aqui, causaria um estranhamento em observar a defesa de aliança entre certas alas do PDS,
UDN, PTB, PSP e o PSB em torno do nacionalismo no Brasil. Mas é claro que temos
consciência de que os tempos eram outros e de que as contradições internas acerca dos
rumos a serem seguidos eram uma constante em todos os partidos.
Talvez tenha sido essa conjuntura política de alianças amplas entre diversos setores
em alguns momentos antagônicos, diferentes, que tenha animado uma resistência ao regime
militar mesmo nas regiões mais isoladas do país, como foi o caso de Aquidauana e seu
núcleo comunista, que também seguia as orientações aliancistas do PCB, capitaneadas por
Enio Cabral.
ENIO CABRAL E SUA UTOPIA REVOLUCIONÁRIA.
Enio Cabral, embora não visse nos idos de 1964 a chance de uma revolução radical
que implementasse o socialismo no país, acreditava sim na possibilidade de mudanças
sociais que pudessem transformar a sociedade brasileira e criar condições mais justas e
igualitárias para os trabalhadores. Leite chama a atenção para a localização fronteiriça
Brasil-Paraguai de Aquidauana e intui que seria esse o motivo de a cidade ter despertado a
36
Idem.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
207
atenção dos militares, em face da preocupação com a segurança nacional e com a repressão
ao comunismo. O autor compõe também o cenário que permitiu entender a singularidade da
instauração da ditadura civil-militar na pequena Aquidauana, que, segundo ele, possuía uma
tradição autoritária:
Por meio da história de Aquidauana, o leitor poderá perceber que a utopia
e a Repressão estiveram alicerçadas em um passado definido. Esse
passado foi o do autoritarismo, o da violência e o do poder privado
fazendo às vezes da presença estatal. Os coronéis, corpos vivos da
oligarquia, foram os verdadeiros senhores da região pantaneira durante
longos anos. Aquidauana não foi exceção (LEITE, 2009, p. 14).
Num trabalho minucioso e com uma documentação instigante, o historiador parte da
discussão de um conceito que nos parece extremante importante nos dias de hoje, em que
enfrentamos a capitulação frente à possibilidade de uma sociedade mais justa – a utopia.
Consideramos tal conceito na perspectiva apontada pelo filósofo Hebert Marcuse:
Iniciando por uma verdade óbvia, direi que hoje qualquer forma nova de
vida sobre a terra, qualquer transformação no ambiente técnico e natural, é
uma possibilidade real, que tem seu lugar próprio no mundo histórico.
Podemos fazer do mundo um inferno (...). Mas podemos fazer também o
oposto. Este fim da utopia, ou seja, a recusa das ideias e das teorias que
ainda se servem de utopias para indicar determinadas possibilidades
histórico-sociais, podemos hoje concebê-lo, em termos bastante precisos;
também como o fim da história; isto é, no sentido de que as novas
possibilidades de uma sociedade humana e de seu ambiente não podem
mais ser imaginadas como prolongamento das velhas, nem tão pouco
serem pensadas no mesmo continuum histórico (MARCUSE, 1969, p.1415).
A perspectiva de interpretação mais corrente a respeito do conceito de utopia quer
postulá-la como algo incongruente com a solução dos problemas da realidade, uma vez que
ele designa o regime social, econômico e político que, por ser perfeito e ideal, não pode ser
encontrado em nenhum lugar. Para Marcuse, ao contrário, a utopia é precisamente aquilo
que ainda não se realizou, e não algo irrealizável37.
37
Para Norberto Bobbio, a tentativa de definição da utopia é complicada pela multiplicidade de aproximações
possíveis. Bobbio destaca ainda que: “Na acepção mais generalizada, a utopia (política, social e tecnológica)
não pretende destruir a realidade atual que aceita no que ela tem de melhor; portanto, a sociedade que ela
mostra é apenas sua projeção, na qual os aspectos positivos são “maximizados”. Com base nessa lógica,
moveram-se tanto um literato como H. G. Wells – que chama de “cinética” a utopia moderna, estruturada não
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
208
Para sustentar sua premissa, Marcuse questiona o sentido da palavra irrealizável,
demonstrando que geralmente ela indica algo não passível de realização, aquilo que atenta
contra a realidade presente e a ordem vigente. No entanto, a utopia deve ser projetada como
uma perspectiva futura. Assim, certas realidades que são ilusórias no presente podem se
tornar concretas em momentos futuros. As revoluções eram para ele um exemplo concreto
disso. A utopia serviria então para ampliar as possibilidades de futuro, reforçando a ideia de
ruptura com as velhas ideias e de combate à noção de permanência, tão comum ao campo
da história.
Pisani afirma que o pensamento utópico em Marcuse procura estabelecer um
“choque” que tem a dupla função de acusação das condições dadas de exploração e de
criação de uma imagem de liberdade possível para além das condições dadas. Segundo ela
a utopia desperta o pensamento crítico pela via dos critérios de uma liberdade e felicidade
não realizadas, mas possíveis. Afirma ela:
A utopia tem uma função crítica reguladora como práxis criativa, como
expressão da inadequação histórica do sujeito em relação à realidade
experimentada que se revela no mundo, mas aponta para além do dado,
para outro nível de realidade; é um fazer imaginário que permite acessar o
ideal frente ao confronto entre o real e possível (PISANI, 2010, p. 3).
Michael Lowy, em “Marxismo e utopia”, também discute o conceito, apontando
para o fato de que sem a dimensão utópica seria impossível pensar numa sociedade
socialista. Afirmava ele:
como um estado permanente – como um promissor estado intermediário de uma longa escala de níveis
sucessivos – quanto um filósofo como Ernest Bloch, com sua contraposição de uma utopia concreta ao
fantasiar o socialismo utopístico. Com muito mais coerência, Herbert Marcuse, considerando que a utopia
esteja ultrapassada porque hoje qualquer transformação do ambiente técnico e natural é uma possibilidade
real, propõe que o termo seja usado somente para designar um projeto de transformação social que esteja em
contradição com leis cientificas “realmente determinadas e determinantes. Quem pode, porém, hipotecar o
futuro da ciência e o futuro ainda mais longínquo da evolução da espécie? Em lugar de morrer, utopia
abandona o adjetivo de ‘moderna’ e torna às origens. A relação com a história é incompatível com a utopia
que é atemporal. A Utopia de Bloch, de Wells, de Marcuse não tem suas raízes nos modelos clássicos de
regeneração, mas na antiga alma semítica dos profetas bíblicos, enquanto a outra – contestadora da realidade
existente e enraizada nas próprias instâncias – nasce do ódio cristão contra a natureza corrupta, mas
desenvolve-se em contraste com a resignação religiosa, visando uma palingenesia toda terrena, o que, porém,
não significa que esteja limitada ao simples bem-estar material. (Marx, profeta da ‘História Prometida’ como
saída para a pré-história, na qual ainda vivemos, pode validamente exemplificar esta posição” (BOBBIO,
Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política (volume 2). Trad. Carmen
C. Varrialle et al.; coord. de trad. João Ferreira, rev. geral: João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. –
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 9 ed., 1997. Vol. 2. 656, p.1286)
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
209
Finalmente, o desenvolvimento criativo do marxismo e a superação de sua
“crise” atual exige o reestabelecimento de sua dimensão utópica. Uma
crítica irreconciliável e radical das formas atuais do capitalismo tardio e
das sociedades burocráticas pós-capitalistas é necessária mas insuficiente.
A credibilidade de um projeto de transformação revolucionária do mundo
requer a existência de modelos de uma sociedade alternativa, visões de
um futuro radicalmente diferente e a perspectiva de uma humanidade
verdadeiramente livre (LOWY, 2000, pp. 126-127).
Lowy chama a atenção para o fato de que se o socialismo ainda existe em nossa
realidade/sociedade atual, deveria ser reinventado como um projeto futuro. Apoiando-se
nas proposições de Marx, elenca quais princípios utópicos deveriam ser explorados para a
busca de uma nova sociedade, a saber: 1- novo sistema produtivo e tecnológico que
permitisse um desenvolvimento sem o aparelhamento do Estado, com a renovação de
recursos energéticos não poluentes; 2- emancipação do trabalho, supressão da divisão
sexual e separação entre as atividades manuais e intelectuais; 3- livre distribuição de bens e
serviços; 4- igualdade de gênero; e 5- organização democrática e descentralizada da vida
econômica, social e política, na qual haja um autocontrole por parte dos trabalhadores em
substituição à burocracia estatal (LOWY, 2000, p. 128).
Tomando como referência as ideias de Marcuse e Lowy, buscamos então entender o
personagem central de nossa tese: um professor comunista que acreditava “utopicamente”
na possibilidade de uma revolução no país nos idos dos 1960. Ao que parece, o professor
Enio Cabral, militante comunista que se utilizava não só de suas aulas, mas também de
lugares públicos, especialmente conversas de bares, praças e rodas de amigos, para se
contrapor ao regime militar, também partilhava da visão utópica desses autores; por esse
motivo foi o principal mentor de atividades políticas que aterrorizavam as elites em
Aquidauana.
Suzana Arakaki relata em sua tese que em Dourados a perseguição dos militares não
se limitou apenas aos colonos da CAND e aos militantes do PTB, dirigiu-se também aos
trabalhadores do magistério, constantemente vigiados pelo regime para evitar que críticas
fossem feitas durante suas aulas. Muitos dos professores eram vigiados pelos próprios
colegas, que, como mencionei anteriormente, eram cooptados em troca de cargos e
benefícios. A exemplo do que ocorria em Aquidauana, o patrulhamento ideológico sobre os
professores era feito sem maiores rodeios, principalmente por parte de alunos e pais de
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
210
alunos que reportavam aos diretores qualquer conduta inadequada de seus professores. Um
jornal da época, citado pela pesquisadora, nos dá a dimensão de tal situação:
COMISSÃO DE INVESTIGAÇÃO ESCOLAR
No dia 28/7/64 realizou-se na vizinha cidade de Ponta Porã, inquérito por
uma comissão especial com elementos de Belo Horizonte, Bauru e
Campinas, onde prestaram depoimentos todos os diretores de escolas de
ensino médio da região sul de Mato Grosso, inclusive os diretores das
escolas de Dourados, no sentido de que venham a ser afastados do
magistério todos os professores portadores de idéias marxistas e
subversivas. Esta comissão foi de iniciativa e oficializada pelo Ministério
de Educação e Cultura. Assim esta comissão está percorrendo o Brasil
inteiro no sentido de prestar o seu trabalho a uma democracia sadia, pois
milhões de alunos têm passado sob as orientações de professores
comunistas, que conseguem incutir na memória de seus pupilos as mais
desastrosas idéias (O Progresso, ARAKAKI, 2003, p. 92).
Observe-se que o foco da comissão era a divulgação das ideias marxistas, que eram
largamente combatidas nesse período – vale lembrar que no caso de Enio Cabral, boa parte
de suas obras foi confiscada pelo exército brasileiro, e algumas delas nunca mais foram
devolvidas. Naquele tempo não só em Dourados, como em outras regiões, professores eram
afastados, interrogados e, muitas vezes, presos e torturados. A organização de uma
resistência entre os professores era bastante difícil, pois como destacou Arakaki (2003),
além da repressão, que era constante, a profissionalização dos professores era também
precária, já que uma grande maioria deles, pelo menos no sul do Mato Grosso, não possuía
formação acadêmica e vivia alheia aos direitos da profissão. Os contratos e nomeações
quase sempre se davam por apadrinhamento de autoridades locais civis e militares. Arakaki
aponta que tal situação só iria se transformar com a chegada de professores oriundos dos
grandes centros do país.
No caso do magistério, a situação viria a mudar anos mais tarde, com a
vinda de professores de outros estados, quando o governo de Mato Grosso
substituiu os professores leigos da rede estadual de ensino. Assim, houve
inserção de novas pessoas e novas idéias. Nesse processo, teve
importância a criação, em 1971, do Centro Pedagógico de Dourados –
CPD, unidade da Universidade Estadual de Mato Grosso, instalado na
cidade de Dourados exatamente para formar professores destinados a
atuarem nas redes municipais e estadual de ensino. Alguns professores
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
211
vindos de outros estados, que já estavam trabalhando na rede estadual,
passaram também a ministrar aulas no Centro (ARAKAKI, 2003, p. 94).
O Centro Pedagógico de Dourados também foi alvo de patrulhamento ideológico.
Dirigido por um advogado apoiador do regime militar, o referido centro passou a ser um
reduto de apadrinhamento de professores, e os que fizessem críticas à direção ou algum
aspecto do regime eram sumariamente demitidos. Segundo Arakaki (2003), na década de
1970 diversos professores foram demitidos da instituição. Dentre eles destacam-se Ivan
Aparecido Manoel, que hoje leciona na UNESP, e José Luiz Sanfelice, atualmente na
UNICAMP. A demissão dos professores gerou insatisfação entre os colegas e alunos, que
buscaram todas as medidas legais para readmissão dos mesmos – isso acabou forçando o
pedido de demissão do diretor da CPD. Os professores Antonio Luiz Lachi e Wilson
Valentin Biasotto foram readmitidos posteriormente, mas tiveram que abrir mão das
indenizações a que teriam direito pelo período que ficaram afastados. A perseguição aos
professores no interior das universidades brasileiras foi relatada no relatório da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), no qual encontramos várias referências a afastamentos,
demissões e ainda a interferência em projetos e linhas de pesquisa em diferentes
universidades do país.
Os relatores no texto temático sobre a ditadura nas universidades federais informam
que:
Além das cassações (reitores e professores), outro instrumento
amplamente utilizado pelos militares foram os Inquéritos PolicialMilitares (IPM). Vários IMPS foram abertos ainda no mês de abril de
1964, para investigar entidades associativas, como a UNE, instituições de
ensino e pesquisa como o Instituito Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB), e partidos, como o PCB (Relatório da Comissão Nacional da
Verdade, 2014, p. 269).
Hoje sabemos, a partir do avanço das pesquisas no campo da história da educação,
que a vigilância e a violência contra os professores não se limitaram apenas às
universidades brasileiras, mas chegaram às salas de aulas do ensino fundamental e médio
em várias regiões do país. Em reportagem de O Globo, publicada em 2014, encontramos
informações de que o controle da educação básica no país não se deu somente pela
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
212
perseguição dos profissionais com histórico de militância; ele se voltou para um controle
mais amplo, que incluía o controle dos conteúdos ministrados por todos os professores. O
exemplo da introdução de disciplinas como OSPB (Organização Social e Política
Brasileira) e EMC (Educação Moral e Cívica), através do Decreto-Lei n. 869, de 12 de
setembro de 1969, demonstra isso. Segundo um dos professores entrevistados pelo jornal O
Globo, havia uma autocensura, pois muitas vezes os próprios funcionários da escola
atuavam como delatores dos colegas. Foi o que aconteceu com ele em 1969.
Em 1969, Antonio Rodrigues já tivera um exemplo não só da repressão
contra escolas, mas dentro das próprias; “uma autocensura que era talvez
pior”. Ao vê-lo debatendo sobre músicas de um LP de Geraldo Vandré
com alunos do 2° grau, uma orientadora educacional do Centro
Educacional de Niterói (CEN) disse à direção do colégio que o professor
Antonio estaria fazendo “proselitismo político”, pois falava com os alunos
de música “proibidas”. Ele foi demitido imediatamente (O Globo,
17/03/2014).
O quadro apontado pela Jornalista Alessandra Duarte no jornal O Globo coincide
com a situação vivenciada pelas escolas do sul do Mato Grosso, onde, por meio das fontes
pesquisadas, pudemos perceber que a vigilância foi grande, não só sobre os professores,
mas também no que se refere aos conteúdos38. Dalpiaz (2008) trata da perseguição de
professores das áreas de ciências humanas em Campo Grande, e o resultado de seu estudo
demonstra que o medo era sempre uma constante nas falas de seus entrevistados. Segundo
ele, nesse contexto buscava-se driblar a censura e os censores dentro e fora de casa, nos
encontros clandestinos, nas leituras proibidas, nos programas de rádio que ouviam, pois
tinham a impressão de serem vigiados o tempo todo.
Em Aquidauana o contexto não era muito diferente. Como mencionamos no
capítulo anterior, Enio Cabral, professor de História do Brasil do Colégio Cândido
38
Sobre as reformas curriculares ocorridas no contexto da ditadura militar consultar os autores:
NUNES, Silma do Carmo. Concepções de mundo no ensino de História. 2 ed. Campinas: Papirus, 2002;
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas,. Papirus, 1993; MUNAKA,
Kazumi (2001). História que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In M. C.
Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Contexto, pp. 271-298; BITTENCOURT,
C. M. F (Org.). O saber histórico na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998.
educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960
213
Mariano, enfrentou diversos problemas de censura, sendo acusado por colegas, alunos e
pais de alunos de desviar os assuntos de sua disciplina para a promoção do comunismo.
Certamente por esse motivo um dos primeiros inquéritos montados na cidade foi contra ele,
que foi preso no dia 04 de abril de 1964, cinco dias após o golpe. Enio foi considerado
pelos representantes do Estado na cidade como inimigo número um da segurança nacional,
não só por conta de sua atuação como docente, mas principalmente por atividades à frente
do PCB. Foi provavelmente por esse motivo que o referido professor se tornou o principal
alvo da repressão militar logo no início do regime. É, portanto, sobre o confronto de Enio
Cabral com o contexto conservador executado pela modernização conservadora na região
sul do Mato Grosso, e sobre os meandros do processo movido contra ele, que trataremos no
próximo capítulo.
Recuperar a memória significa trazer ao
presente o passado, aquele que ficou
ausente. É no cultivo e no resgate dessa e
de todas as histórias negadas pelo avanço
impiedoso da civilização que se poderá
ser capaz de se tornar mais humano, de
voltar a se indignar com as injustiças e de
não esquecer a barbárie que se esconde
por trás de cada cena da vida cotidiana.
José Carlos Moreira da Silva Filho,
O anjo da história e a memória das vítimas.
capítulo IV
enio cabral e seus embates com os
aparelhos repressivos do estado
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
215
N
este capítulo procuro visualizar como o Estado e seus representantes
compreenderam as ações de Enio e dos demais comunistas daquele período a partir do
debate travado entre acusação e defesa, entendendo-o como uma disputa não meramente
jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios de sociedade, ou seja, entre capitalistas
e socialistas. Com vistas a apresentar tais embates, recorro ao processo-crime imputado
pelo Estado militar contra o professor catedrático Enio Cabral, buscando esclarecer os
principais argumentos das autoridades representantes do Estado para a condenação do réu,
bem como as estratégias da defesa para inocentá-lo. Baseando-nos nas reflexões do
marxismo heterodoxo de Williams (2005), busco compreender a complexidade do conceito
de hegemonia e as disputas teóricas que se travam em torno dele. Williams assim considera
o conceito:
Temos de deixar claro que a hegemonia não é algo unívoco; que, de fato,
suas próprias estruturas internas são altamente complexas, e têm de ser
renovadas, recriadas e defendidas continuamente; e que do mesmo modo
elas podem ser continuamente desafiadas e em certos aspectos
modificadas. É por isso que ao invés de falar simplesmente de “a
hegemonia”, ou em “uma hegemonia”, eu proporia um modelo que
permitisse a variação e a contradição, com seu conjunto de alternativas e
processos de mudança (WILLIAMS, 2005, p. 216).
Essa proposição nos é importante aqui para que possamos esclarecer que, ao
tratarmos do caso de Enio Cabral, lidamos com uma situação complexa e contraditória e
que não poderíamos seguir o modelo clássico base x superestrutura, sob o risco de
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
216
resumirmos a questão a “o Estado (capitalista) contra Enio (comunista)” ou,
simplificadamente, dominantes x dominado. Entendemos, como Williams, que a
hegemonia é constituída a partir de um campo de conflitos e tensões, no que podem ser
engendradas contra-hegemonias.
Segundo o modelo teórico apresentado por Williams, podemos partir do pressuposto
de que qualquer sociedade, independente do período histórico, possui um conjunto de
práticas, significados e valores que podemos considerar dominantes e efetivos. Sobre esse
sistema ele afirma:
De qualquer modo, o que tenho em mente é o sistema de significados e
valores central, efetivo e dominante, que não é meramente abstrato, mas
organizado e vivido. É por isso que a hegemonia não deve ser entendia no
nível da mera opinião ou manipulação. (...) Pelo contrário, nós só
podemos entender uma cultura dominante e efetiva se entendermos o
processo social do ela depende: o processo de incorporação (WILLIAMS,
2005, p. 217).
Como se depreende das palavras de Williams, a disseminação de uma cultura
dominante depende das estratégias de sua transmissão/naturalização para que se torne parte
do ser social por meio de pressões e limites, exercidos pelas práticas de dominação nas
relações específicas entre classes sociais em uma determinada sociedade. Nesse processo a
educação ocupa, segundo Gramsci (1982), um papel central:
Os modos de incorporação têm grande significado social. As instituições
educacionais são geralmente os agentes principais na transmissão de uma
cultura dominante, e esta é, em nossos dias, uma atividade de grande
importância, tanto econômica quanto cultural; de fato, é as duas coisas ao
mesmo tempo (WILLIAMS, 2005, p. 217).
Um ponto importante apontado por Williams, que nos permite pensar o caso de
Enio Cabral em sua atuação como educador dentro e fora da escola, é o que se refere à
tradição seletiva, descrita pelo autor como “aquilo que, no interior dos termos de uma
cultura dominante e efetiva, é sempre transmitido como a ‘tradição’, ‘o passado
importante’” (WILLIAMS, 2005, p. 217). Ou seja, o processo educacional é sempre
marcado pela seleção de certos aspectos do passado ou do presente que são enfatizados e/ou
negligenciados. E é contra tal processo que se mobilizava Enio, que buscava, a partir de sua
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
217
prática de educador comunista, construir outra visão de sociedade, ou seja, uma contrahegemonia, dando à educação um sentido mais amplo, típico da visão compartilhada com o
PCB, conforme apontamos nos capítulos anteriores.
A situação de Enio no interior da escola, como a de qualquer educador engajado, é a
de conseguir lidar com esse processo seletivo que busca privilegiar a visão de uma classe,
problematizando e desconstruindo os valores arraigados na experiência escolar tradicional,
na tentativa de demonstrar outras possibilidades de compreensão da realidade, pois, como
afirma Williams:
Os processos educacionais; os processos mais amplos de treinamento no
interior de instituições como a família; as definições práticas e a
organização do trabalho; a tradição seletiva no nível intelectual e teórico:
todas essas forças estão envolvidas na elaboração e reelaboração
contínuas da cultura dominante efetiva, e sua realidade, como experiência,
como algo construído em nossa vivência, dependente delas. Se o que
aprendemos fosse meramente ideologia imposta, ou tratasse apenas dos
significados e práticas isoláveis da classe dominante, ou de um setor da
classe dominante que se impõe a outros, ocupando somente a superfície
de nossas mentes, seria – e isso seria ótimo – algo muito mais fácil de ser
derrubado (WILLIAMS, 2005, pp. 217-218).
O que Williams argumenta é que a construção de uma visão de mundo, de um modo
de vida e de uma cultura dominante alcança camadas mais profundas, selecionando,
organizando e interpretando a experiência do ser social e, portanto, não se configura numa
ideologia ultrapassada que podemos simplesmente ultrapassar.
Assim, lidamos na
sociedade moderna com um contexto contraditório em que “esses elementos” são solapados
por experiências, opiniões e visões de mundo contra-hegemônicas. Para sintetizar nosso
pensamento em relação à construção de uma contra-hegemonia, efetivada por Enio em
relação Estado militar, recorremos às palavras de Williams:
A realidade de qualquer hegemonia no sentido político e cultural
ampliado, é de que, embora por definição seja sempre dominante, jamais
será total ou exclusiva. A qualquer momento, formas políticas e cultura
alternativas, ou diretamente opostas, existem como elementos
significativos na sociedade. (...) A ênfase política e cultural alternativa, e
as muitas formas de oposição e luta, são importantes não só em si
mesmas, mas como características indicativas daquilo que o processo
hegemônico procurou controlar, na prática (WILLIAMS, 1979, p. 116).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
218
É, portanto, partindo dos conceitos de cultura política dominante e cultura política
de oposição que se encontram no bojo do conceito de hegemonia preconizado por Williams
que buscaremos compreender as nuances do processo movido pelo Estado contra Enio
Cabral e as contradições que se apresentaram no interior dele.
O PROCESSO-CRIME: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Antes de iniciarmos a discussão do processo, cabe uma advertência sobre as
motivações que nos levaram a trilhar esse caminho de uma fonte tão rica e ao mesmo tempo
difícil, pois como chamou a atenção Certeau:
Em história, tudo começa com o gesto de selecionar, de reunir, de, dessa
forma, transformar em “documentos” determinados objetos distribuídos
de outra forma. Essa nova repartição cultural é o primeiro trabalho. Na
realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo fato de recopiar,
transcrever ou fotografar esses objetos mudando, ao mesmo tempo, seu
lugar e seu estatuto (CERTEAU, 1996, p. 13).
A advertência de Michel de Certeau nos é importante, pois trata de algo que é
próprio do ofício do historiador, ou seja, a seleção e organização de suas fontes de pesquisa,
fase primordial para o estudo dos processos sociais que nos cercam. Além disso, nos leva a
pensar também sobre as especificidades das fontes com as quais o historiador lida,
principalmente num momento em que vivemos uma abertura nos campos da História e da
História da Educação para uma multiplicidade de novos objetos, métodos e fontes. Em
nosso caso em particular, é preciso justificar a escolha em trabalhar com os processoscrime, fonte ainda pouco utilizada na História da Educação, mas extremamente rica em
informações e discursos que se chocam no seu próprio interior. Daí a importância de se
buscar, por meio da dialética marxista, as contradições sociais presentes na realidade, mas
que também se manifestam no discurso jurídico.
De acordo com o historiador Boris Fausto, ao se trabalhar com o processo-crime
estamos diante de acontecimentos de caráter duplo, ou seja:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
219
Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a
dois “acontecimentos” diversos: aquele que produziu a quebra da norma
legal e um outro que se instaura a partir da atuação do aparelho
repressivo. Este último tem como móvel aparente reconstituir um
acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a “verdade” da
qual resultará a punição ou a absolvição de alguém. Entretanto, a relação
entre o processo penal, entendido como atividade do aparelho policialjudiciário e dos diferentes atores, e o fato considerado delituoso não é
linear, nem pode ser compreendida através de critérios de verdade. Por
sua vez, os autos, exprimindo a materialização processo penal, constituem
uma transcrição/elaboração do processo, como um acontecimento vivido
no cenário policial ou judiciário. Os autos traduzem a seu modo dois
fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou
absolver (FAUSTO, 2001, p. 21).
As questões levantadas por Fausto nos são imprescindíveis para pensar o caso do
processo-crime instaurado contra Enio Cabral, uma vez que a própria ideia de quebra da
norma é discutível nesse caso, pois era difícil precisar o que seriam “atividades que
atentavam contra a nação”, e mesmo “práticas comunistas”. Para demonstrar a visão do
Estado a respeito do caso, iniciamos pela apresentação do relatório produzido no ano de
1964 pelo capitão Oscar da Silva, responsável pelo IPM que indiciava o professor pela
prática de atividades comunistas na cidade de Aquidauana. O relatório traz os seguintes
dizeres:
Enio de Castro Cabral, professor catedrático de História do Brasil do
Colégio estadual Cândido Mariano, desta cidade, foi preso dia 04 de Abril
de 1964 às 02:00 horas por ordem do Sr. Tenente Cel. CMT do 9º
Batalhão de Engenharia de Combate na Vila Noroeste S/nº, em
Aquidauana, por Suspeição de crimes contra a segurança do País, Regime
democrático, Probidade da Administração Pública, Atos de Guerra
Revolucionária em virtude de constar informes a seu respeito ( Fls 6,7) de
que pregava idéias comunistas, pregava revolução pacífica ou sangrenta,
dependendo da atitude dos reacionários; processava a difusão de Boletins
subversivos; pregava idéias comunistas aos seus alunos do Colégio
Estadual Cândido Mariano e frequentava reuniões na Associação dos
trabalhadores da Construção Civil e Imobiliária, nesta cidade (IPM, Ênio
de Castro Cabral, fl. 48).
Observe-se que o trecho inicial do relatório/IPM em momento algum menciona a lei
que permitia sua prisão – o instrumento jurídico que legitimará a ação, se é que existiu,
permaneceu implícito. A prisão se baseou em “informes a seu respeito”, o que corrobora as
palavras de Boris Fausto de que o aparelho repressivo muitas vezes se sobrepõe à norma
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
220
jurídica. Nesse caso específico, coube a esse aparelho, representado aqui pelo exército,
definir o crime, muito mais do que a própria lei. Cabe ressaltar que ao longo do processocrime me deparei com fatos no mínimo inusitados que foram considerados crimes – por
exemplo, possuir exemplares das obras de Marx em sua biblioteca. Assim, precisar o que
era delito nesse caso era uma atividade extremamente subjetiva. Os subterfúgios
pseudojurídicos dos regimes autoritários foram também criticados por autores como
Giorgio Agamben na obra Estado de exceção. Nela o autor afirma:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a
instauração, por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também
de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de
emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no
sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN,
2004, p. 13).
Diversos historiadores já se utilizaram dos processos-crime para compreender as
relações sociais e o cotidiano de diversos sujeitos sociais. Dentre eles podemos destacar o
brilhante trabalho de Sidney Chalhoub Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, no qual retrata as particularidades do
cotidiano dos trabalhadores. Afirma ele:
O interesse em ler e analisar processos criminais estava exatamente na
expectativa de que tais documentos flagrassem trabalhadores – homens e
mulheres – agindo e descrevendo os sentidos de suas relações cotidianas
fora do espaço do movimento operário, do lugar da fala política articulada
(CHALHOUB, 2001).
Na referida obra, Sidney Chalhoub nos apresenta um importante estudo sobre a
belle époque feito por meio da análise de processos criminais, buscando mostrar as
contradições de um período em que o surgimento de prédios modernos conviveu com a
exclusão social e a insegurança de um poder público municipal que custava a se impor.
Chalhoub elege os processos criminais como fonte principal para sua pesquisa, com o
objetivo de revelar as práticas e representações sociais no interior da sociedade carioca na
passagem do século XIX para o XX. O historiador adverte, no entanto, que em tais fontes
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
221
encontramos respostas prontas e acabadas; é preciso explorar as contradições presentes nos
autos criminais:
[...] ler processos criminais não significa partir em busca “do que
realmente se passou”, porque esta seria uma expectativa inocente, da
mesma forma como é pura inocência objetar a utilização de processos
criminais porque eles “mentem”. O importante é estar atento às coisas que
se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes,
aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que
aparecem com freqüência (CHALHOUB, 1986, p. 41).
O processo-crime é uma fonte privilegiada para os historiadores, pois se apresenta
como um grande quebra-cabeça, em função das várias versões do acontecimento, relatado
de forma particular por diversas pessoas. No entanto, sempre faltam algumas peças que
devem ser buscadas pelo historiador, responsável por colocá-las no lugar e tentar
compreender esse emaranhado de informações diversas. Na obra Meninas perdidas: os
populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da belle époque”, a historiadora Martha
de Abreu Esteves também realiza a análise de processos-crime para tratar de casos contra a
honra e estupros. De acordo com ela:
Através da análise dos discursos e pareceres dos promotores, advogados e
juízes, presentes nos processos, e as publicações ligadas à jurisprudência
(...), minha intenção maior foi de estabelecer os padrões sociais de
comportamentos e valores aceitos, definidos e difundidos no processo de
formação de culpa e inocência da época em questão (ESTEVES, 1989, p.
31).
Segundo Boris Fausto, o que faz de um processo-crime uma fonte intrigante é a sua
fisionomia própria:
Na sua materialidade, cada processo é no período considerado uma peça
artesanal, com fisionomia própria, revelado no rosto dos autos, na letra
caprichada ou indecifrável do escrivão, na forma de traçar uma linha que
inutiliza páginas em branco. Não por acaso, as resistências à introdução da
datilografia de depoimentos articulam-se historicamente, nos meios
forenses, em torno dos riscos da perda de autenticidade do processo. A
peça artesanal contém uma rede de signos que se impõe à primeira vista,
antes mesmo de uma leitura cuidadosa do discurso (FAUSTO, 2001, p.
20).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
222
Fausto nos fornece ainda um importante suporte para pensar o processo-crime e sua
relação com fatores sociais que se internalizam nos debates travados entre os juristas, sejam
eles promotores, juízes ou advogados, sujeitos que, longe de proferirem discursos neutros,
baseados na lei, são condicionados pela estrutura material da sociedade. Afirma Fausto a
respeito de tais discursos:
Os discursos de acusação e defesa representam uma fonte importante para
a apreensão de valores e representações sociais, permitindo localizar
pontos sensíveis, capazes de determinar as opções do corpo de jurados.
Não por acaso, a metáfora teatral nos vem à mente na referência aos
debates do júri: um espetáculo onde dois atores básicos dramatizam
versões diversas de um fato reelaborado no processo, utilizando os
recursos de expressão (a repulsa, a comiseração, a ironia etc.) adequados
ao momento (FAUSTO, 2001).
A pesquisadora Regina Célia Lima Caleiro nos esclarece sobre as possibilidades e
vicissitudes de se trabalhar com os processos-crime, demonstrando que atualmente os
arquivos judiciais constituem um rico manancial de fontes para o trabalho historiográfico:
A estrutura interna dos processos é de formato praticamente invariável e
compõe-se, quase sempre, da denúncia apresentada ao Juiz de Direito,
auto de qualificação e termo de declarações do réu, exame do corpo de
delito das vítimas e declarações das testemunhas arroladas. Essas peças
fundamentais para a composição da pesquisa apresentam lacunas com
relação a vários dados: idade, estado civil, profissão. Outro limite imposto
à investigação refere-se ao fato de que poucos processos contêm a
transcrição dos debates perante o Tribunal do Júri, fonte importante para a
percepção de valores e representações sociais do período pesquisado.
Mesmo com todas essas restrições, se percorrermos com a cautela
necessária os vários caminhos apontados pelas fontes é possível
reconstruir e interpretar, mesmo que parcialmente alguns aspectos
significativos destas micro-histórias. (CALEIRO et al., 2011, pp. 303304).
Outra importante pesquisadora que nos permite pensar a riqueza dos processoscrime como fonte de pesquisa é Mariza Corrêa, que em sua obra Morte em família (1983)
nos apresenta uma análise pormenorizada das etapas que constituem o processo criminal
como um conjunto de discursos, muitas vezes contraditórios, que devem ser compreendidos
pelo pesquisador. Para a referida autora, os processos são como uma fábula construída
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
223
pelos operadores jurídicos que buscam, conforme seus interesses, construir uma verdade
singular. Sobre isso afirma a autora:
A morte de uma pessoa pela outra é imediatamente despojada de seu peso
concreto, espesso, da espessura que possui em sua esfera de ação e
transformada numa parábola, numa fábula, onde estão contidas todas as
mortes possíveis de acontecer nesse mundo para o qual se volta a visão
jurídica, uma visão que ordena a realidade de acordo com normas legais
(escritas), preestabelecidas, mas também de acordo com normas sociais
(não escritas), que serão debatidas perante o grupo julgador (Corrêa, 1983,
p. 24).
É importante frisar que o trabalho com tais fontes sobre o período da ditadura nem
sempre é fácil, pois muitas vezes encontram-se dificuldades para acessar tais documentos,
já que, principalmente no Brasil, os militares, além de buscar construir uma memória
positiva de seu governo, ainda cercearam a consulta aos documentos que poderiam mostrar
uma versão diferente daquela construída por eles. A historiadora Suzana Arakaki, em sua
dissertação de mestrado Dourados: memórias e representações de 1964, nos relata tal
dificuldade:
Buscamos no Arquivo Público de Mato Grosso, eventuais registros das
prisões feitas logo após o regime. Mas, nada encontramos. Além disso,
nos foi informado que as fichas do DEOPS mato-grossense
desapareceram. Outra surpresa tivemos no Arquivo Geral do Fórum de
Dourados, onde não encontramos nenhum inquérito arquivado
envolvendo as pessoas presas no período pesquisado. O Arquivo é
totalmente computadorizado, com registros de processos desde 1930.
Averiguamos cada nome citado pelas fontes, mas nada foi encontrado
(ARAKAKI, 2003, p. 12).
A situação descrita por Arakaki em relação às fontes também se repetiu em
Aquidauana; encontramos poucos documentos em relação ao período da ditadura nos
arquivos disponíveis na cidade. No entanto, graças à organização do Fórum local, pudemos
ter acesso ao processo criminal movido contra Enio Cabral e outros presos políticos do
período. No que se refere à educação, encontramos pouquíssimo material, pois nem sempre
os arquivos escolares são tão organizados, o que ocasiona a perda de uma rica
documentação para a história da educação no município.
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
224
A DITADURA EM AQUIDAUANA: O EXÉRCITO BRASILEIRO CONTRA ENIO CABRAL
O historiador Leite (2009) narra que a ditadura em Aquidauana, assim como no
restante do país, trouxe no alvorecer da cidade, junto aos raios solares, o verde-oliva das
forças do exército sediado na cidade. Relata ainda que, em princípio, nem toda a população
tinha conhecimento do que estava acontecendo e, curiosa, acompanhava os acontecimentos
daquela manhã que mudaria as vidas, se não de todos, de alguns cidadãos de Aquidauana,
que teriam de fugir para longe para escapar das prisões e torturas.
O Regime repressivo, a partir de suspeitas de atitudes contrárias ao poder,
argumentava que a preservação do modelo constitucional necessitava do
combate à subversão (Arquidiocese de São Paulo, 1991). O resultado
configurou-se pelo confisco da cidadania, materializado pelo seqüestro e,
muitas vezes, pelo extermínio do cidadão. No interior do País, como em
Aquidauana, por exemplo, as forças militares, especificamente o exército,
constituíram-se como força de caça aos comunistas locais (LEITE, 2009,
p. 75).
Adentremos, portanto, no processo movido pelo Exército Brasileiro contra o
professor comunista Enio Cabral. Na sequência do trecho já citado anteriormente,
encontramos informações de que procedeu-se “uma minuciosa e rigorosa investigação”
sobre o indiciado:
Foi procedida rigorosa investigação e apuração dos citados informes; foi
determinado um mandado de busca e apreensão à residência do indiciado;
foram feitas investigações e inquirição das testemunhas que se seguem:
CLAUDEMIRO NUNES DA CUNHA, pedreiro; JOÃO JORGE
CARNEIRO, Diretor do Colégio Estadual Cândido Mariano e Professor
Catedrático; José Carlos Nery, estudante da 3ª Série Ginasial do Colégio
Estadual Cândido Mariano; SEBASTIÃO DE OLIVEIRA, Presidente da
Associação dos Trabalhadores de Construção Civil e Imobiliária;
EUSTORGIO DE ANDRADE BRITO, creador; CARLOS MOACYR
DA CONCEIÇÃO, delegado de Polícia desta cidade e conclui-se que:
ficou provado que o Professor Catedrático ENIO DE CASTRO CABRAL
é atualmente comunista militante, Secretário em exercício do Comité do
Partido Comunista Brasileiro nesta cidade de Aquidauana, conforme me o
próprio indiciado declarou (Fls. 36, 37, 38) (IPM, Ênio de Castro Cabral,
fl. 48).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
225
É interessante frisar que os autos concluem que o réu era militante comunista em
função de afirmações de testemunhas advindas de segmentos sociais extremamente
conservadores, tais como um pecuarista e um delegado de polícia, assim como declarações
do próprio indiciado. Resta pensar como estas confissões se deram, pois uma ampla
historiografia já evidenciou a maneira como se produziam provas contra os indivíduos
presos durante o regime militar. O historiador Carlos Fico já afirmou que a tortura era um
fato de amplo conhecimento dos militares brasileiros, que a consideravam uma necessidade
justificada pelo bem maior de garantir a segurança nacional:
A tortura e o extermínio eram aceitos pelos comandantes e governos
militares, como hoje já se comprovou. Curiosamente, tanto para os linhasduras apenas “ideológicos” (militares radicalmente contrários à
“subversão” mas que não atuavam diretamente na repressão) quanto para
os pragmáticos rigorosos (supostos moderados, como Ernesto Geisel, que
no entanto admitiam a tortura e o assassinato como necessidade
conjuntural), a tortura tinha o mesmo significado: era um “mal menor”
(FICO, 2004, p. 9).
Além dos historiadores, líderes religiosos, como Dom Paulo Evaristo Arns, também
denunciaram os crimes de tortura no Brasil, que eram de ordem física e até mesmo
psicológica e não poupavam nem mesmos as mulheres e as crianças:
A tortura foi indiscriminadamente aplicada no Brasil, indiferente a idade,
sexo ou situação moral, física e psicológica em que se encontravam as
pessoas suspeitas de atividades subversivas. Não se tratava apenas de
produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em conflito
com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o
desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença
condenatória. Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura
visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites
emocionais que se assentavam sobre relações efetivas de parentesco.
Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas
tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus
maridos (ARNS, 1987, p. 43).
Encontramos no próprio auto de interrogatório constante no processo informações
sobre as torturas sofridas, que foram narradas quando da transformação do IPM em
processo-crime. Assim relatou o réu ao juiz de direito Heliophar de Almeida Serra, quando
questionado se mandou queimar documentos que comprovassem sua ligação com o partido
comunista local:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
226
Que não é verdade que tivesse pedido que sua família queimasse
documentos de caráter comprometedores que se encontram em uma pasta
em sua casa; Precionado que foi durante o I.P.M, acabou confessando o
que não era verdade. Que declarou no I.P.M. que não pagava mensalidade
ao Partido Comunista, mas sim de quanto em vez remetia a importância
de cem cruzeiros as redações que lhe mandavam jornais, porem que o
encarregado do I.P.M. forçava dizer que o acusado pagava mensalidades.
Que anteriormente no depoimento que prestou no I.P.M e durante o
mesmo, o acusado varias umiliações e maus tratos, castigos corpóreos,
ameaças, por parte de alguns Aspirantes (sic) (IPM, Ênio de Castro
Cabral, fl. 60).
Em outro trecho do depoimento, as torturas físicas eram mais explícitas e graves,
conforme relatou Enio Cabral:
Que numa dessas vezes quanto foi chamado uma sala (biblioteca) Um
aspirante apontou uma metralhadora contra a cabeça de acusado; noutra
ocasião, durante o interrogatório a portas fechadas, e quando se
encontrava sentado em uma cadeira, um aspirante subiu no pescoço do
acusado; em quanto ensaiava um estrangulamento enrrolando uma
camiseta no pescoço do acusado. Que varias vezes foi obrigado a
permanecer de joelhos; que em outra ocasião, quando dava sua
interpretação sobre a figura de Jesus Cristo, recebeu um soco no nariz;
Que em outra ocasião foi levado a noite numa das Baias do quartel,
quando agarrado por dois soldados de porte avantajado, teve a braguilha
da calça aberta e retirados o seu membro e o escroto, ensaiando-se uma
como que castração do acusado (sic) (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 61).
Além das psicológicas, Enio Cabral também sofreu torturas físicas que objetivavam
arrancar-lhe à força confissões sobre sua ligação com o partido comunista, bem como suas
atividades subversivas na cidade de Aquidauana:
(...) fizeram-no subir a uma arvore, dizendo-lhe que era um macaco
soviético, disparando em torno da arvore alguns tiros de pistola; Que esses
fatos se passaram em uma noite muito escura e chuvosa; Que nessa noite
sendo obrigado a sair quando já se preparava pra dormir, estava descalço,
e quando quiz por os sapatos, ordenaram-lhe que saísse descalço mesmo;
Por isso, tendo andado descalço sobre o cascalho, praticando as ações já
referidas, por vezes puchado pelos dois soldados, acabou tendo a planta
do calcanhar esquerdo deslocada, pelo que no dia seguinte o Cap. Médico
da Unidade, depois de examinar o acusado, mandou que o enfermeiro o
atendesse; Que em vista dessas torturas, inclusive morais, infligidas ao
acusado, as suas declarações constantes de Fls. 41 e 43 do I.P.M., não
refletem a verdade em numerosos pontos (sic) (IPM, Ênio de Castro
Cabral, fl. 61).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
227
Para um melhor entendimento do processo, é necessário esclarecer como se deu sua
sequência para que possamos, em seguida, discutir as alegações de cada um dos agentes
que nele atuaram. Assim ele se desenrolou: primeiramente o 9º Batalhão de Engenharia de
Combate de Aquidauana manda instaurar o IPM, em 06 de julho de 1964.
Posteriormente, em 23 de julho, o inquérito é remetido ao cartório do Terceiro
Oficio do Fórum da Justiça Comum da cidade e transformado em processo criminal,
ficando a cargo do juiz de direito da comarca de Aquidauana, Dr. Heliophar Serra, que
procede à referida investigação, inclusive decretando a prisão preventiva do acusado para
averiguação.
O Ministério Público, por meio do promotor de justiça Vicente Paschoal Junior,
ofereceu apreciação ao caso de Enio Cabral na data de 24 de julho de 1964 e opinou
favoravelmente pela revogação da sua prisão preventiva, indicando que sua soltura não
oferecia prejuízos à investigação de seus atos.
Após a defesa do réu pelo influente advogado José Manuel Fontanillas Fragelli,
ligado à UDN, ele foi absolvido das acusações. Mesmo tendo sido demonstrados os erros
processuais contidos no IPM, outro promotor de justiça, Hermínio Batista de Azeredo,
recorreu da sentença de absolvição ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme termo de
apelação que apresentamos a seguir:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
228
(IPM Enio Cabral, fl. 160)
Em que se pese a opinião favorável ao provimento do recurso do promotor Vicente
Paschoal, de 1º de março de 1967, por parte de alguns ministros do colendo Tribunal
Superior de Justiça, o pleno do colegiado do Supremo Tribunal Federal o negou por
unanimidade (conforme o termo de apelação criminal que apresentamos a seguir). No
entanto, os autos desse processo, graças à morosidade da justiça brasileira, só foram
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
229
concluídos em 24 de fevereiro de 1986; manteve-se a absolvição de Enio Cabral,
finalizando assim 22 anos de processo.
(IPM Enio Cabral, fl. 193)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
230
O PODER JUDICIÁRIO E A RESISTÊNCIA À DITADURA
O promotor de justiça Vicente Paschoal Junior ofereceu denúncia contra o professor
Enio de Castro Cabral com base no IPM instaurado pelo Exército Brasileiro, cumprindo a
formalidade legal que o caso requeria do judiciário, no entanto teceu diversas considerações
sobre o fato, muitas vezes explicitando sua crítica à condução do caso: primeiramente
considera que “(...) pelo I.P.M vê-se que a denuncia calcou-se em fatos tais que, só tinha
uma solução:_ a sua procedência e a consequente condenação do acusado (sic)” (IPM, Enio
de Castro Cabral, fl. 124).
É importante analisar as palavras do promotor, pois nota-se implícita nelas uma
crítica ao procedimento de condução do inquérito, demonstrando que ele só poderia mesmo
culminar na condenação do acusado, colocando sub judice os meios e métodos adotados.
Defendemos tal tese ao nos depararmos, na sequência de suas alegações, com um
questionamento sobre a competência dos militares para realizar tal inquérito. Afirma ele:
II – De grande valor analisar-se se a competência para a formação da peça
informativa era da alçada militar ou alçada civil. As poucas luzes que nos
sobram, levam-nos a aceitar a tese de que à polícia civil estava afeta a
missão Ex-vi o disposto no art. 4º do Código do Processo Penal, “ a
polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais do território de
suas jurisdições...” E nada nos autoriza afirmar que o presente caso, como
os demais que perante a justiça Pública da Comarca se desenrolaram, _da
mesma natureza que o presente-, eram da competência militar (sic) (IPM,
Enio de Castro Cabral, p.124).
Na sequência, o promotor embasa-se na Lei n. 1.802, de 1953, que estabelece as
autoridades civis como competentes para conduzir os procedimentos relativos aos
inquéritos policiais militares.
III- E nossa assertiva se consolida, frente ao parecer de fls. 52.
Efetivamente, o art.42 da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1.953, não tira a
competência civil para o processamento e julgamento dos delitos
imputador do acusado. E nem o ato institucional o fez (IPM, Enio, p.124).
Uma das questões importantes a serem destacadas no caso da perseguição dos
militares ao professor comunista Enio Cabral é a participação do poder judiciário, que teve
um papel fundamental na absolvição do acusado. Tal fato nos leva a defender que, pelo
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
231
menos em Aquidauana, se os representantes do judiciário não eram contra o regime militar,
tiveram no mínimo o cuidado de defender o cumprimento dos princípios legais e garantir
aos investigados o amplo direito de defesa.
Em princípio isso pode não parecer uma surpresa, posto que sua função,
teoricamente, é garantir a aplicação estrita da lei, mas sabemos que em diversos momentos
da história a lei privilegiou as classes mais abastadas. O primeiro fato que nos chamou a
atenção foi a identidade do advogado de defesa: o ex-governador José Fragelli, político
ligado à UDN e à elite ruralista conservadora do então Mato Grosso – posteriormente Mato
Grosso do Sul. Outro fato que nos causou estranheza foi que o promotor de justiça Vicente
Paschoal Junior, mesmo tendo acolhido a denúncia, por força do procedimento legal,
apontou em suas alegações os erros processuais que teriam ocorrido e ainda mostrou a
insuficiência de provas contra, o que facilitaria a defesa do acusado. Finalmente, a decisão
do Juiz Heliophar Serra e do Supremo Tribunal de Justiça de absolver o réu das acusações
demonstra que os representantes do judiciário brasileiro, ao menos nesse caso, observaram
o estrito cumprimento da lei, não agindo apenas em favor do regime. O historiador E. P.
Thompson, na obra Senhores e caçadores, aponta para o sentido contraditório do aparato
jurídico, afastando-se da ideia presente no marxismo vulgar de que a lei é uma decorrência
mecânica do domínio de classe, um simples reflexo da superestrutura, e defende que ela
pode ser vista como ideologia ou regras e procedimentos próprios que mantêm uma relação
ativa com as normas sociais.
É inerente ao caráter específico da lei, como corpo de regras e
procedimentos, que aplique critérios lógicos referidos a padrões de
universalidade e igualdade. É verdade que certas categorias de pessoas
podem ser excluídas dessa lógica (como as crianças ou os escravos), que
outras categorias tenham seu acesso vedado a partes da lógica (como
mulheres ou, para muitas formas do direito do século 18, aqueles sem
certos tipos de propriedade) e que os pobres muitas vezes possam ser
excluídos, pela miséria, dos dispendiosos procedimentos legais. Tudo
isso, e ainda mais, é verdade. Mas, se um excesso disso for verdade, as
consequências serão francamente contraproducentes. A maioria dos
homens tem um forte senso de justiça, pelo menos em relação aos seus
próprios interesses. Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai
mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de
classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua
função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a
manipulações flagrantes e pareça justa. Não conseguirá parecê-lo sem
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
232
preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes
sendo realmente justa (THOMPSON, 1987, pp. 354-355).
No sentido apresentado por Thompson, a lei, assim como qualquer outro aspecto da
vida social, é um campo de conflitos e contradições que guarda uma íntima relação com a
práxis social. No caso de Enio Cabral entendemos que os operadores do direito (juiz e
promotor) agiram em um duplo sentido: primeiramente procurando preservar a lógica
própria do ordenamento jurídico, resguardando o sentido de igualdade e universalidade que
a própria ideologia do Estado moderno requer, e em segundo lugar guardando certa
independência em relação às pressões militares que envolviam o julgamento de um
comunista.
No entanto, cabe ressaltar que suas atitudes também engendravam contradições de
um caráter igualmente duplo, uma vez que certamente buscaram resguardar a lógica própria
do direito com um mecanismo de defesa frente a um contexto de incertezas, no qual o
autoritarismo não poupava nem mesmo os magistrados. E ainda porque a independência de
suas decisões no caso de Enio Cabral ocorria, muito provavelmente, em função das relações
de classe que o mesmo, neto de coronel e frequentador das rodas sociais, estava inserido.
É claro que temos consciência de que isso não ocorreu em todos os casos, mas esse,
em particular, nos serve para demonstrar as contradições do poder judiciário brasileiro.
Como demonstra Denise Rollemberg, em seu artigo Memória, opinião e cultura política. A
Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974), a OAB, de forma geral,
hipotecou seu apoio “à revolução de 1964 e entendeu-a como um ato que se deu dentro da
normalidade e da legalidade”. Afirma ela:
Nas discussões que mobilizaram o país, a OAB demonstrou a
incorporação do ideário, da argumentação, do vocabulário, dos valores
anticomunistas típicos da Guerra Fria dos anos 1960 e de instituições
brasileiras militares e civis, como a Escola Superior de Guerra/ESG, o
Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação
Democrática/IPES-IBADE,
a
Campanha
da
Mulher
pela
Democracia/CAMDE93, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil/CNBB etc. Em outras palavras, na documentação das atas, registro
de posições individuais, de grupos e da Instituição, é evidente a identidade
da OAB com a cultura política de direita que estruturou as forças civis na
derrubada do governo eleito democraticamente. Essas instituições, mais
do que apoiarem o golpe, dele participaram (ROLLEMBERG, p. 31).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
233
Apesar de ser taxativa em relação ao apoio da OAB aos militares no período da
instauração do golpe, Rollemberg não deixa de apontar que, com a chamada distensão, as
posições divergentes se evidenciavam no interior do conselho nacional da entidade.
Conselheiros como Sobral Pinto e Miguel Seabra Fagundes expressaram suas críticas
pontuais ao regime, no entanto, segundo a autora, tiveram suas falas silenciadas por uma
cultura política de direita que perpassava a Ordem. Em que se pesem os argumentos da
autora e a ideia recorrente de que os juristas, em sua maioria, apoiaram o golpe, preferimos
nos inspirar nos preceitos da teoria marxista, de que todo sistema engendra contradições
internas, mesmo o judiciário. As opiniões desses conselheiros e dos juristas que atuaram no
caso de Enio Cabral demonstram isso e é sobre tal contradição que trataremos no decorrer
do capítulo.
DO PROCESSO CONTRA ENIO
O pesquisador Eudes F. Leite nos esclarece sobre os fundamentos legais que
embasavam a prisão dos acusados no IPM, demonstrando que os motivos eram muito mais
políticos que legais, embora o promotor quisesse afirmar o contrário:
A promotoria realizou a denúncia dos presos, enquadrando os na Lei
número 1.802, de janeiro de 1953, que define os crimes contra o Estado e
a Ordem Política e Social, e dá outras providências. A partir desse recurso
legal, em certos casos, combinados com outros dispositivos legais, o
processo teve seu desenrolar até o julgamento dos prisioneiros. Novos
interrogatórios, novas convocações de testemunhas, aliás, as mesmas dos
IPMs tendiam a estabelecer no passado o lugar que cada um tinha
ocupado no movimento político sob a influência do PCB (LEITE, 2009, p.
86).
Estava claro, como demonstra Leite (2009), que a intenção era muito mais mapear
as atividades que poderiam contrariar a ordem política, lançando mão dos IPMs como
forma de reprimir as ações de oposição política à ordem vigente na cidade e no país, uma
vez que a investigação, ao seu final, demonstrou que não havia grande fundamento nas
acusações feitas contra os réus, principalmente no caso de Enio, cujo único “crime”
constatado foi o fato de ser comunista.
235
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Como é possível depreender do trecho acima, o promotor de justiça busca
fundamentar o oferecimento da denúncia no simples cumprimento do ato legal cabível
nesse caso; no entanto, vale lembrar que o código de procedimento do promotor público
indica as seguintes possibilidades para acolhimento de uma denúncia: a) oferecer denúncia,
acolhendo as conclusões do inquérito; b) oferecer denúncia, alterando as conclusões do
inquérito;
c)
determinar
novas
investigações;
d)
arquivar
o
inquérito
(http://www.diaulas.com.br:80/artigos/codigo_proced.asp).
É em função dessas possiblidades que podemos considerar contraditória ou
mesmo parcial a conduta do promotor Vicente Paschoal Junior, que apesar de ter a
prerrogativa de determinar novas investigações ou mesmo arquivar o inquérito, preferiu
acatar o que foi descrito no IPM. Note-se então que seu procedimento foi muito mais
condizente com suas relações e concepções políticas do que calcadas num ato meramente
jurídico, o que atesta o caráter social da lei penal e mesmo de sua aplicação. Ou seja, na
tentativa de não se indispor com os militares da cidade, o promotor acata a denúncia para o
que os fatos pudessem ser apurados. Nos trechos que apresentaremos a seguir podemos
observar o grau de contradição que marcava sua atitude política e jurídica:
(IPM, Enio Cabral, fl. 125)
236
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
No fragmento acima, observamos que o referido promotor, expressando, ao que
parece, uma possível parcialidade no encadeamento dos fatos e na formulação das provas
no IPM, considera que a descrição e a organização dos fatos no inquérito levariam
indubitavelmente à consequente condenação do réu. O professor Afonso Celso Scocuglia,
que estudou os IPMs instaurados na Paraíba e em Recife, afirma que:
a tônica do processo foi a tentativa permanente dos militares de incriminar
os indiciados por meio de provas forjadas, de depoimentos adequados
conforme as necessidades da acusação, do incentivo da delação com a
correspondente insinuação das vantagens que tal procedimento traria ao
depoente. O objetivo era sempre o mesmo: incriminar os “subversivos”,
“comunistas”, “inimigos e traidores da pátria”, mesmo que tal processo se
fizesse atabalhoadamente e sem o rigor da aplicação das próprias leis que
o Estado militar aprovara (SCOCUGLIA, 2009, p. 11).
Além de lançar mão do princípio do contraditório, questionando a veracidade dos
fatos expostos no referido IPM, o promotor ainda questiona a competência dos militares
para apurar tais denúncias contra o professor Enio Cabral, considerando que estava a
polícia civil afeita ao processo de investigação de tais acontecimentos, já que era o acusado
civil e não militar. O promotor lembra ainda que o artigo 42 da Lei n. 1.802, de janeiro de
1953, que embasa os IPMs, não retira a competência civil para o julgamento dos delitos
imputados ao acusado.
Embora conteste a competência militar para a apuração dos fatos e ainda se mostre
convencido do erro processual, o promotor de justiça dá prosseguimento ao caso, com o
objetivo de confrontar o IPM – para ele, peça meramente informativa, com as provas
colhidas e analisadas no plenário do júri.
O promotor considera que no caso de Enio havia uma grande distância entre os fatos
alegados no processo e o que realmente se provou depois, pelas apurações pela justiça.
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125)
237
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Na sequência de suas alegações, Vicente Paschoal coloca também em dúvida o fato
de Enio Cabral ter confessado seus supostos crimes, dadas as circunstâncias em que foram
conseguidas as confissões constantes no Inquérito Policial Militar:
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125)
Note-se que no trecho acima o promotor questiona a validade da confissão de Enio,
aludindo a uma situação semelhante ocorrida em um tribunal de São Paulo, buscando a
mesma jurisprudência para sua absolvição.
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
238
Além da jurisprudência, o promotor ainda ironiza os relatos das testemunhas de
acusação, mostrando que uma delas, Estorgio de Andrade, apenas confirmou o que lhe
disseram seus filhos menores. Já o Dr. Fernando Alves Ribeiro somente ratificou seu
depoimento no IPM, mas nenhum deles conseguiu apontar qualquer fato concreto que
incriminasse o acusado nos artigos contidos na denúncia. Esses fatos foram provavelmente
imprescindíveis para que o magistrado solicitasse a absolvição do réu e finalizasse suas
alegações em tom bastante jocoso:
(IPM, Enio Cabral, fl. 125)
No caso dos argumentos do promotor, encontramos outro tipo de contradição, qual
seja: apesar de estar convencido da inocência de Enio Cabral em relação aos crimes
imputados, dá prosseguimento ao processo, com a ressalva de que em suas alegações finais
praticamente solicita a absolvição do réu. Podemos compreender isso como uma crença de
que o direito seria sempre justo e, portanto, o processo investigativo garantiria o
estabelecimento da verdade. De acordo com Thompson, o estamento jurídico nas
sociedades ocidentais desde o século XVII é revestido de uma ideologia dominante,
necessitando, assim, de mecanismos de legitimação:
E, ademais, não é frequentemente que se pode descartar uma ideologia
dominante como mera hipocrisia; mesmo os dominantes têm necessidade
de legitimar seu poder, moralizar suas funções, sentir-se úteis e justos. No
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
239
caso de uma formação histórica tão antiga como o direito, matéria cujo
domínio exige anos de estudo exaustivo, sempre existirão alguns homens
que acreditam ativamente em seus procedimentos próprios e na lógica da
justiça. O direito pode ser retórico, mas não necessariamente uma retórica
vazia (THOMPSON, 1987, p. 354).
Ao que parece, o pensamento do promotor no caso de Enio Cabral seguiu a lógica
apontada por Thompson, segundo a qual era necessário, para que sua função se mostrasse
útil e legítima frente à sociedade, preservar a lógica e os critérios próprios da aplicação do
direito.
O ADVOGADO DE ENIO E SUAS RELAÇÕES COM A ELITE LOCAL
Ao analisarmos a defesa de Enio Cabral, algumas peças começaram a se encaixar e
pudemos e pudemos entender como, apesar da gravidade dos fatos ocorridos, seu desfecho
final foi menos trágico do que poderia ter sido. Pois, ao observarmos quem foi o
responsável por fazer sua defesa no processo, tivemos uma surpresa, pois se tratava de
ninguém menos que o ex-governador José Fragelli, figura importante ligada à elite rural do
estado. Genro do “coronel” Zelito, representante nato do mandonismo característico da
região de Aquidauana e adjacências, foi considerado um dos seus herdeiros políticos, já que
foi secretário de estado, deputado estadual, governador de Mato Grosso e senador de Mato
Grosso do Sul, conforme atestou Fausto Matogrosso:
A partir da segunda metade da década de 1950 até meados da década de
1960 também foi sendo reconfigurado o segmento coronelista. Os velhos
“coronéis” foram sendo substituídos pelos seus herdeiros políticos, mais
sintonizados com as mudanças políticas que aconteciam no país
(MATOGROSSO, 2013, p. 70).
A influência política de Fragelli com certeza pesou favoravelmente no caso de Enio
Cabral. Segundo Fausto Matogrosso (2013), o golpe de 1964, mediante sua
institucionalização no regime militar, foi consolidando uma nova elite dirigente em
Aquidauana. Fausto aponta que “após 1964, acabou a época dos coronéis tradicionais.
Zelito, e Antonio Trindade, que já tinham deixado seus ‘sucessores’ com roupagem mais
moderna”, referindo-se respectivamente a Rudel Trindade, filho do “coronel” Antônio
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
240
Trindade, que se tornou prefeito de Aquidauana em 1966, e a José Fragelli, genro do
“coronel” Zelito, que se tornaria govenador do estado de Mato Grosso, dentre outros cargos
que ocupou. Enquanto isso, afirma ele, os Nunes da Cunha, que já haviam exercido grande
influência no cenário do estado, saíram de cena, marginalizados politicamente.
(MATOGROSSO, 2013, p. 70).
O historiador Eudes Leite também atesta a influência de Fragelli junto aos principais
nomes envolvidos na perseguição aos comunistas em Aquidauana e esclarece que ali
O ataque às atitudes arbitrárias da ação policialesca e repressiva dos
militares em Aquidauana projetava notadamente um limite. Limite que se
configurava nas relações de poder na cidade. Tanto juiz quanto advogado
perseguiam a manutenção de velhas e tradicionais formas de poder em
Aquidauana. Basta lembrar que o Advogado José Fragelli mantinha boas
relações com a maior parte das testemunhas da acusação de seu cliente,
como, por exemplo, o prefeito Fernando Ribeiro e o senhor Arsenio
Serrou Camy. O juiz, por seu lado, pensara expressar a figura da
imparcialidade, no cumprimento de seu dever, contudo tal postura estivera
envolta no emaranhado das relações sociopolíticas da cidade (LEITE,
2009, p. 90).
No campo da política, o que se consubstanciou foi um processo de modernização
conservadora, sem rupturas. Fragelli, como herdeiro político do coronel Zelito, com certeza
fazia parte desse acordo tácito entre a oligarquia remanescente e nova classe urbana que se
ligou aos governos militares no então Mato Grosso. Talvez por esse motivo tivesse trânsito
tanto com elite ruralista, que ocupava o poder naquele período e apoiava os militares, e com
Enio Cabral, de quem era primo distante. Na esfera desse microespaço, todos os interesses
foram se acomodando sem grandes rupturas.
Afora suas ligações políticas tanto com os denunciantes quanto com o denunciado,
Fragelli demonstrou uma formação jurídica bastante eficiente e fundamental para absolver
Enio Cabral. Vejamos, então, a partir do IPM, sua atuação jurídica. Demonstrando
conhecimento de causa em relação ao erro processual que acometeu o IPM, o advogado
solicita que tal erro seja considerado nos arrazoados da defesa:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
241
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 127)
O apontamento do erro processual foi a base para que Fragelli desenvolvesse a
defesa do réu, uma vez que colocava em xeque as decisões que poderiam ser tomadas pelo
juiz, alicerçadas na peça jurídica eivada de erros.
O erro era caracterizado pela incompetência da justiça militar para julgar os crimes
imputados a Enio Cabral. A partir dessa premissa inicial, de certa forma Fragelli consegue
intimidar os magistrados, que poderiam ter suas decisões revogadas por falta de
fundamentos legais. Há que se ressaltar que, no caso em tela, tal estratégia da defesa
funcionou, mas como se tratava de um regime de exceção – a ditadura militar – e de uma
acusação eminentemente política, poderia não ser considerada pelos operadores do direito.
Já a lei e sua aplicação, como já afirmamos anteriormente, possui uma motivação social e,
portanto, não está nunca isenta de seu componente ideológico. O conselheiro da Comissão
de Anistia/MJ José Carlos Moreira da Silva Filho, em seu artigo O anjo da história e
memória das vítimas: o caso da ditadura militar no Brasil, afirma que durante a ditadura na
América Latina, e principalmente no país, foi montado
Todo um aparato técnico de informações e ações organizadas foi montado
e colocado a serviço de crimes em massa como: prisões arbitrárias sem
direito a qualquer contraditório ou garantia torturas e sevícias cruéis que
deixaram seqüelas permanentes ou resultaram em mortes; seqüestros de
crianças, pais, mães e filhos; assassinatos e desaparecimentos;
monitoramentos e ameaças constantes que resultavam em prisões e
mortes; banimentos e pessoas compelidas ao exílio; a descartabilidade de
qualquer garantia ou qualificativo jurídico (SILVA FILHO, 2008, p. 156).
É notório, como destaca Fernandes (2005), que boa parte das medidas repressivas
não era respaldada pela própria legislação da ditadura, a começar pela Carta de 1969 e o
próprio Ato Institucional n° 5, o qual suspendia os direitos políticos e os habeas corpus em
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
242
casos de crimes políticos, contra a segurança nacional e outros, mas não autorizava, em
hipótese nenhuma, os desaparecimentos forçados, as torturas e as execuções extrajudiciais,
que eram inconstitucionais mesmo para os padrões da ordem jurídica ditatorial – mas elas
continuaram acontecendo.
(IPM, Enio Cabral, fl. 127)
Referenciando-se no Código Penal Brasileiro, o advogado busca demonstrar que
qualquer decisão condenatória seria prejudicada em função de ter sido conduzida por
autoridade militar e não civil, como orienta o referido código. Além disso, outro fato que
poderia anular a decisão seria a incomunicabilidade do acusado, que foi preso, como
afirmamos anteriormente, no dia 04 de abril de 1964, ou seja, três dias após o golpe. Em
sua peça de defesa, o advogado considera a incomunicabilidade como um ato de
intimidação contra Enio Cabral e demais indiciados, que foram detidos no 9º Batalhão de
Engenharia de Combate de Aquidauana. Relata ainda que foi utilizada violência física
contra a maioria dos acusados, principalmente contra Enio Cabral, conforme já
mencionamos no primeiro capítulo, sem que, supostamente, nem mesmo o comandante do
9º BEC soubesse. Os acontecimentos apontados por José Fragelli certamente teriam força
de tornar imprestável o inquérito como elemento probatório das acusações sofridas pelos
réus e, assim, facilitariam a defesa de Enio Cabral, que realizou todas as suas confissões
sob ameaças psicológicas ou mesmo torturas físicas.
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
243
(IPM, Enio Cabral, fl. 128)
No tópico 2 do documento intitulado “Outros fatos que tornam o I.P.M nulo, como
elemento probatório”, Fragelli afirma que as violências e intimidações contra os detidos,
principalmente seu cliente, “eram fatos de conhecimento e convencimento geral, antes
mesmo da notoriedade nacional que adquiriram, como lamentável processo empregado em
inúmeros casos” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 128). Fragelli infelizmente tinha razão
sobre a recorrência desses atos de violência praticados pelos agentes da ditadura. Dom
Evaristo Arns, em sua obra Brasil nunca mais, nos traz vários relatos de tortura, a exemplo
do ocorrido com a professora de história Dulce Pandolfi:
Na Polícia do Exército, (...) foi submetida a espancamento inteiramente
despida, bem como a choques elétricos e outros suplícios, com o “pau-dearara”. Estudante Dulce C. Pandolfi, 24 anos. Torturada em 1970 (ARNS,
1985, p. 32).
A historiadora Dulce Pandolfi, que nasceu e foi criada em Recife, foi aluna do curso
de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco e secretária geral do Diretório
Central dos Estudantes em 1968. Nesse mesmo ano ingressou na Ação Libertadora
Nacional (ALN) e se tornou um dos alvos da repressão no país. Dulce Pandolf foi presa no
dia 20 de outubro de 1970 e relatou em 2013 à Comissão da Verdade as agruras que sofreu
durante o período em que ficou nos porões da ditadura. Uma das frases que mais chamam a
atenção ao ler seu depoimento é a seguinte: “Eu acuso todos os torturadores, civis e
militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas
cumprindo ordens dos seus superiores” (Pandolfi, 28.05.2013).
Diante de tal frase, a “cumplicidade” da sociedade local com os crimes de tortura
levantados pelo advogado não nos causam estranheza – essa foi uma prática comum
durante a ditadura. Muitos cidadãos foram presos e torturados com a conivência de diversas
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
244
instituições (igrejas, sindicatos, universidades, dentre outras) e da própria sociedade
brasileira, restando apenas alguns poucos protestos de alguns indivíduos. Sobretudo no
interior das corporações militares, era prática comum que oficiais e soldados de baixa
patente fossem designados para empreender os atos de tortura, com o objetivo de
resguardar os altos oficiais, que quase sempre omitiam seu conhecimento sobre tais ações.
Felizmente a historiografia mais recente tem contrariado tais teses:
Os crimes de tortura e assassinato de presos políticos foram cometidos
com a conivência dos oficiais-generais responsáveis pelas diretrizes e
operações de segurança interna. Foram, aliás, os oficiais-generais
moderados que criaram a idéia de uma grande autonomia dos
responsáveis diretos pela tortura e assassinato, com isso, talvez,
procurando justificar o que, em última instância, deve ser caracterizado
como omissão (FICO, 2001, p. 24-25).
O historiador Jacob Gorender esclarece que a conivência com o regime militar não
ocorreu apenas entre o alto oficialato das forças armadas; também entre os civis notava-se
certa passividade perante o regime. Muitos cidadãos preferiram “tocar a vida em frente”,
pelo menos até que as ações ditatoriais se aproximassem de seu cotidiano. O fato é que, seja
por discordância dos rumos da resistência, por medo ou omissão, alguns preferiram se
calar.
Deve-se levar em consideração que a repressão atuou numa conjuntura em
que as organizações da esquerda armada estavam isoladas dos segmentos
populares, seja porque houve uma passividade, seja porque houve
conivência de parcela da sociedade com o regime, desde seu início, e o
discurso dessa esquerda não tenha mobilizado a sociedade. A proposta de
luta armada não atraiu a maioria da população. É preciso destacar que
com a derrota das organizações guerrilheiras, a repressão voltou-se contra
o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que recusava – em princípio - a
luta armada para derrotar a ditadura. Em suma, a violência não foi
utilizada apenas contra os militantes da luta armada, ela também atingiu
outros setores engajados ou não da sociedade que se opuseram à ditadura.
(GORENDER. In: FICO, 2001, p. 11)
O historiador Eudes Fernandes Leite mostra que perseguição ao PCB, que começou
nos grandes centros, chegou também à pequena cidade de Aquidauana, fazendo com que, a
partir de 1947, a esquerda local se dispersasse, mantendo algumas atividades clandestinas
até a década de 1960. Leite relata, porém, que alguns militantes mais atuantes prosseguiram
suas atividades como membros de outras siglas ou como pessoas afastadas de uma estrutura
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
245
partidária legal. A partir disso, as pessoas que participavam de reuniões com objetivos
alheios aos interesses políticos da oligarquia passavam a ser suspeitas, serviam de motivo
para boatos sobre as atividades políticas das entidades de trabalhadores na cidade (LEITE,
2009, p. 51).
Enio Cabral foi um desses militantes que prosseguiram lutando contra a ordem
autoritária vigente naquela cidade até sua prisão. Seu advogado, como já mencionamos,
além de insistir no erro de competência dos militares para tratar tal caso, também se valeu
do argumento de nulidade das provas conseguidas por meio de confissão, uma vez que as
mesmas foram obtidas mediante tortura.
(IPM, Enio Cabral, fl. 133)
Após destacar os maus tratos sofridos pelo seu cliente, o advogado ainda questiona
o fato de a autoridade encarregada pelo julgamento não ter promovido uma acareação para
se comprovar se as alegações do réu eram verídicas. A ausência de tal procedimento por
parte do juiz facilitou, ainda mais, a defesa do réu.
(IPM, Enio Cabral, fl. 133)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
246
Na sequência, o advogado apresenta o depoimento de Sebastião de Oliveira, que foi
companheiro de cela de Enio Cabral, como testemunha arrolada pelo promotor para atestar
a veracidade dos relatos.
(IPM, Enio Cabral, fl. 133)
Além de utilizar os próprios testemunhos da promotoria a favor de Enio Cabral,
Fragelli afirmou que ocorreram várias deturpações nos depoimentos dos acusados e
testemunhas, o que demonstra mais uma fragilidade do IPM.
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 134)
Fragelli busca utilizar inclusive os depoimentos das testemunhas de acusação para
provar que todas foram conseguidas por meio de coação física ou moral – foi o que ocorreu
com Sebastião de Oliveira, que depôs contra Enio Cabral, atestando que o mesmo era o
responsável pelas atividades subversivas na cidade.
247
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
(IPM, Enio Cabral, fl. 129)
Valendo-se desse depoimento e ainda de outro, prestado pelo médico Rudel
Trindade, que espontaneamente havia atestado o conhecimento das violências sofridas
pelos presos políticos, Fragelli conseguiu provar que o IPM, peça inicial que se
transformou em processo-crime, foi fruto de arbitrariedades, com uso de força física com
vistas a forjar as confissões, o que, portanto, poderia invalidar seu prosseguimento.
Fragelli recorreu também a outros processos movidos contra presos políticos que
foram indiciados juntamente com seu cliente e encontrou neles diversos indícios de que
ocorreram deturpações nos depoimentos das testemunhas e dos réus com o objetivo claro
de conseguir elementos para suas condenações. Um dos exemplos foi o depoimento do Sr.
João Pace, que falou sobre outro preso político, Adonis Gonçalves, e viu suas declarações
alteradas para incriminar Enio Cabral:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
248
(IPM, Enio Cabral, fl. 130)
A negativa em assinar o depoimento foi enaltecida pelo advogado e fundamental
para demonstrar que dados eram acrescidos depois pelos militares, para não restarem
dúvidas sobre a culpabilidade dos réus.
(IPM, Enio Cabral, fl. 130)
Até o depoimento do delegado de polícia foi deturpado no IPM e refeito quando de
sua oitiva em plenário, afirmará o delegado:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
249
(IPM, Enio Cabral, fl. 130)
Nesse mesmo sentido, ocorreram outros casos de manipulação, como foi o caso do
tabelião Sr. José Múcio Teixeira, que, tendo prestado declarações que desmentiam as
versões incriminatórias contra os acusados, foi informado pela autoridade que conduzia o
inquérito de que seu depoimento lhe seria enviado para que pudesse assiná-lo. No entanto,
isso nunca ocorreu, demonstrando que o mesmo fora descartado, pois não auxiliaria na
condenação dos réus. Tal fato levou José Fragelli a declarar: “Não era a verdade o que
interessava apurar – sim colecionar acusações condenatórias” (IPM, Enio de Castro Cabral,
fl. 130).
A partir da demonstração de que os fatos contidos no IPM tinham sido manipulados
para que as conclusões nas apurações dos delitos fossem sempre desfavoráveis aos
acusados, assim concluía o advogado:
(IPM, Enio Cabral, fl. 130)
250
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
A partir desses indícios levantados no processo e com base nas jurisprudências
encontradas na teoria do direito, Fragelli consegue invalidar os argumentos presentes no
inquérito, abrindo assim caminho para absolvição de seu cliente. Afirma ele sobre o IPM:
“Não pode o Juiz formar a sua convicção com essa fonte de prova indevidamente colhida”.
Na espécie, podíamos acrescentar: criminosamente colhida. Porque a prova deste I.P.M é
fruto de coação e dolo” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 132).
Com esses argumentos de nulidade de competência da justiça militar e da confissão
conseguida pelo emprego de métodos violentos, o advogado de defesa solicita ao juiz que o
réu possa se retratar das declarações feitas no IPM, uma vez que foram feitas sob pressão e
não refletem a verdade. Para tornar inválida a confissão do réu, Fragelli lança mão da
jurisprudência apontada pelo jurista Sylos Cintra, que considera sem valor e passíveis de
retratação confissões que sejam conseguidas por meio da força. Afirma ele:
(IPM, Enio Cabral, fl. 134)
Usando a teoria jurídica de Sylos Cintra, argumenta que no caso de Enio Cabral a
situação se tornava ainda mais grave, uma vez que o mesmo ficou vários meses
incomunicável, sofrendo atos de intimidação. Um dos exemplos do forjamento de provas é
transcrito no processo e trata da tentativa do agente militar de comprovar o pagamento de
contribuição por parte do acusado ao Partido Comunista.
251
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
(IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 134)
A partir do trecho acima, percebe-se que a tortura tinha uma função essencial dentro
do sistema autoritário implantado em Aquidauana nos idos de 1964. Ela constituía uma
ferramenta de interrogatório e controle de presos, visando a obtenção de confissões
forçadas ou punição extrajudicial de desobediências, ou seja, antes mesmo do julgamento o
réu já pagava fisicamente por seus supostos atos criminosos. Se estabelecermos um
comparativo com a sociedade atual, em que muito se fala sobre a implantação de normas
mais rígidas para punição de crimes, chegando inclusive a se cogitar a pena de morte,
perceberemos que pode ser um resquício da ditadura.
Assim sendo, podemos acreditar que para um certo grupo da sociedade, sobretudo
no período da ditadura, a tortura e a execução sumária de parcelas não desprezíveis da
população, tais como comunistas, guerrilheiros, sindicalistas e agitadores, poderiam ser
vistas como punições paralelas “merecidas” pelos suspeitos e condenados. Se encontramos
argumentos no seio da população brasileira, que é omissa ou conivente com esses atos, o
que dizer da aceitação de uma confissão forjada com vistas à condenação de um comunista
e agitador? Muito provavelmente os militares que empreendiam tais atos encontravam
respaldo na ideia de que faziam isso em prol de uma causa maior, qual seja: proteger a
sociedade da ameaça comunista! Também muito provavelmente esses soldados
encontravam respaldo no apoio familiar, pois certamente possuíam mães, pais, esposas e
filhos que viviam alheios aos seus atos, ou simplesmente não davam importância a eles,
uma vez que eram necessários para proteger a nação brasileira.
Se isso for verdade, cabe-nos aqui uma pequena digressão sobre o caráter civilmilitar do golpe de 1964, pois existem ainda muitas perguntas não respondidas sobre como
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
252
a população se portou frente à ditadura. Um trecho de uma reportagem da Carta Maior
talvez sintetize algumas de nossas questões:
O vizinho do torturador não sabe o que ele fez na ditadura. A filha sabe
que ele foi torturador, que ele estuprou? Um dos militares que participou
do atentado no Riocentro continua na ativa e ainda por cima é professor (o
hoje coronel Wilson Dias Machado). E os médicos que controlavam para
os presos não morrerem, quem são eles? Os jovens de hoje, para ter
cidadania plena, precisam ter conhecimento disso (CAMPANELLA,
Carta Maior, 30/09/2011).
Questões como essas são importantes para pensarmos que a maioria dos brasileiros
apoiou inicialmente o golpe de 1964 como algo necessário. A resistência foi aumentando
aos poucos, mesmo assim muitos cidadãos continuaram a apoiar ou mesmo a fazer “vista
grossa” aos acontecimentos. Isso reforça nossa tese, defendida na introdução deste trabalho,
de que uma parcela da população não foi tão afetada assim pela ditadura e seguiu sua vida
normalmente. A historiadora Catia Faria afirma em sua dissertação:
Dentro do país notícias de prisões arbitrárias, tortura e morte dos
revolucionários, graças à censura, vazaram muito pouco, tanto que a
maioria da população até hoje afirma que “nada sabia”. Porém, se
internamente não ocorreram reações mais enfáticas a esses fatos foi por
que em 1964, houve apoio de segmentos civis da sociedade ao golpe. A
“tão falada” resistência ao regime limitou se a parcelas muito minoritárias.
A luta armada nunca despertou simpatias e abertura “lenta, segura e
gradual, foi feita por iniciativa do próprio governo, ou seja, de cima para
baixo. Este jamais perdeu o controle do processo e mais, imprimiu nele a
sua marca (FARIA, 2005, p. 14).
Embora concorde com a premissa inicial da referida autora, de que houve apoio de
segmentos civis à instalação e manutenção da ditadura, não podemos ser tão maniqueístas;
há de se lembrar que ocorreram manifestações contrárias ao golpe desde 1964, a exemplo
da passeata dos cem mil, de junho de 1968, que desencadeou a instalação do Ato
Institucional número 5, que suspendia as garantias constitucionais em decorrência das
pressões internas de parte da população, e ainda das greves de 1978 a 1981, estudadas por
Maroni (1983), só para lembrar alguns.
Em Aquidauana, localidade pertinente ao nosso estudo, também encontramos o
apoio civil de parte da população, como a classe ruralista, que agia com vistas a proteger
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
253
seus interesses. Leite mostra como os fazendeiros foram importantes para a perseguição aos
sindicalistas/comunista da cidade:
Outro fator importante é a própria natureza da ditadura. Com o poder sob
seu quepe, os generais tornaram-se autoridades máximas em todos os
cantos do País. De detentores de prestígio sociopolítico, passam a
autoridades inquestionáveis em Aquidauana. O controle do Estado legava
a esses oficiais a submissão dos poderes judiciário e legislativo. Em
Aquidauana, as prisões foram muito bem recebidas pelos fazendeiros
locais, a ponto de as principais testemunhas serem constituídas por
fazendeiros, membros da velha oligarquia ou pessoas a eles ligados
(LEITE, 2009, p. 80).
Eudes Leite chama a atenção ainda para o temor que o “espectro comunista”
causava na população ruralista local, que se mostrava preocupada com a modificação da
estrutura de poder numa eventual revolução:
Com a prisão dos membros da esquerda em Aquidauana, deflagrada a
investigação por meio dos IPMs, os militares criaram uma situação de
terror e temor, de um lado, e, de outro, instalaram a sensação de alívio
para os ameaçados com a possível “República Sindicalista” (LEITE,
2009, p. 80).
Como vimos, a prisão de Enio Cabral e dos demais sindicalistas/agitadores foi
recebida com alívio por uma parte dos cidadãos da cidade, que se omitiu não somente
frente à prisão, mas também a todas as torturas sofridas pelos acusados. Empregou-se ali
uma cultura do silêncio, do olhar desviado e da omissão; tudo corria bem desde que nada
fosse visto, dito ou feito contra o regime ditatorial. As poucas “vozes” que conseguimos
encontrar acerca desse período acabaram sendo filtradas pelo viés jurídico, uma vez que se
encontram organizadas em IPMs, que certamente limitaram o sentido e abrangência do que
foi dito, tanto pelas testemunhas de defesa como de acusação. A sensação de alívio com a
instituição desses inquéritos, apontada por Leite, se expressava em um duplo sentido:
primeiramente como consolo em ver a “ameaça oculta” contida, e depois pelo fato de que,
uma vez identificados os culpados, ninguém mais teria de se envolver na questão, pelos
menos até que uma nova caça às bruxas fosse iniciada. É preciso salientar novamente que,
com a boa relação de seu advogado, também ruralista, com as principais testemunhas de
254
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
acusação e seus conhecimentos jurídicos, foi possível amenizar o ódio dos inimigos de Enio
e refutar cada uma das acusações feitas contra ele.
OS DELITOS IMPUTADOS AO RÉU
(IPM, Enio Cabral, fl. 134)
Com objetivo de desqualificar as denúncias feitas contra seu cliente, Fragelli
explicita o artigo 9º da Lei n. 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que diz o seguinte:
Para integrar a figura delituosa aí contemplada, são necessários dois
requisitos:
a. Organizar, ou tentar reorganizar, agremiação político-partidária
dissolvida por lei;
b. Pô-la em funcionamento efetivo.
Posteriormente, lançou mão do sentido etimológico das palavras para demonstrar
que reorganizar significa “organizar de novo” e efetivo é “o que tem efeito real”, o que não
ficou provado no caso do PCB em Aquidauana, uma vez que a atuação dos comunistas na
cidade era bastante restrita, limitando-se às ações de uns poucos militantes, cujo principal
representante era Enio Cabral. Fragelli demonstra que nos autos não ficou provado que
havia um comitê do partido em funcionamento em Aquidauana.
255
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
(IPM, Enio Cabral, fl. 136-A)
A única coisa apurada pelo inquérito era que a célula comunista de Aquidauana foi
responsável pela criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que se reunia na margem
esquerda do rio Aquidauana. Fragelli também contesta essa afirmação:
(IPM, Enio Cabral, fl. 136-A)
Na fala de Fragelli encontramos uma contradição, pois embora estivesse defendendo
um comunista, deixava transparecer em seu discurso sua proximidade com a mentalidade
ruralista e antijanguista da região, quando imputa à SUPRA e ao governo a criação de
vários sindicatos em todo o território rural. A preocupação em apontar a Superintendência
de Política Agrária como responsável pela criação dos sindicatos não era exclusiva dos
ruralistas de Aquidauana – no país inteiro a classe dos latifundiários se mostrava
incomodada com a atuação desse órgão criado no governo Jango.
No Brasil inteiro, e principalmente no Mato Grosso, a questão agrária foi um dos
pontos polêmicos do governo de João Goulart, envolvendo por motivos diferentes, é claro,
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
256
os partidos, a igreja, os movimentos sociais e toda a opinião pública, que se debruçaram
sobre a necessidade de uma reforma agrária que acabasse com os latifúndios e promovesse
um desenvolvimento mais equânime. Essa, com certeza, não era uma preocupação
infundada, já que Jango criou o Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, que estendia os
direitos trabalhistas aos homens do campo.
Com a vitória de Jango em 1964, os ruralistas, sobretudo no sul do Mato Grosso,
ligaram seus alertas para a iminência de uma reforma agrária que poderia mudar toda a
estrutura de poder daquela região. A historiadora Suzana Arakaki, que estudou as
representações e memórias da ditadura na cidade de Dourados desde a era Vargas até a
implantação da ditadura, afirma que a terra e sua posse sempre foram pontos de disputa,
sobretudo no sul do Mato Grosso. Segundo ela:
Uma comunidade de proprietários que se formou sob os auspícios do
progresso e do desenvolvimento não aceitaria pacificamente a situação.
Os conflitos pela posse da terra eram vistos como invasão, atividades
subversivas, coisa de comunista. Um passado recente reavivou
lembranças sobre o perigo comunizante que significava, sobretudo após a
revolução russa de 1917, a perda da liberdade individual e da propriedade
privada, principalmente da terra. Tais lembranças passam pelo uso
cotidiano da palavra revolução, banalizada pelos grupos rivais matogrossenses que se revezavam no poder, mas também pela passagem da
Coluna Prestes na região, em 1924 (ARAKAKI, 2003, p. 34).
Frente ao contexto apontado pela autora, seria de se esperar que os líderes que
fomentavam as lutas sociais e buscavam mudanças por meio das reformas de base
propostas por João Goulart fossem perseguidos pelos ruralistas em diferentes regiões do
país.
O caso de Enio Cabral foi emblemático nesse sentido, pois creio que ele foi
denunciado muito mais por suas atividades sindicais e de defesa da reforma agrária do que
por conta de um comunismo que nunca ficou efetivamente provado. Fragelli demonstra,
através de um depoimento presente no processo, que em momento algum as testemunhas
conseguiram apontar, ou mesmo provar, de forma contundente que houvesse alguma
atividade do PCB em Aquidauana.
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
257
(IPM, Enio Cabral, fl. 136-A)
No depoimento fica claro que as afirmações feitas não passavam de suposições,
portanto não eram passíveis de ser provadas. Além disso, a testemunha em questão
afirmava que já havia tido arestas políticas com o acusado, o que já serviria para colocar
sob suspeição seu depoimento. No entanto, o advogado expôs quais eram os temas frutos da
divergência entre a testemunha e o réu:
(IPM, Enio Cabral, fl.136-A)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
258
Na sequência, o advogado argumenta que se a simples defesa desses temas
configurasse atos comunistas, poderíamos considerar o gal. Castelo Branco também um
agitador seguidor de tal doutrina, pois:
(IPM, Enio Cabral, fl. 137)
Com esses argumentos, o advogado de defesa consegue desmontar a estratégia da
promotoria, provando, portanto, que se não houve reorganização do partido em
Aquidauana, não se poderia condenar por tal crime imposto. Dessa forma, conclui Fragelli:
(IPM, Enio Cabral, fl. 137)
259
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
A partir do depoimento da testemunha de acusação, Fragelli consegue provar que
não havia um comitê do PCB em Aquidauana de forma efetiva e, portanto, em pleno
funcionamento. Assim, não havia a menor possibilidade de o réu ter prestado serviços ou
feito donativos a essa organização, como se afirmou no referido IPM. Afirma Fragelli:
(IPM, Enio Cabral, fl. 137)
Fragelli argumenta ainda que, quanto aos serviços prestados por Enio Cabral ao
PCB, não é possível especificá-los nem mesmo no IPM, não passando de suposições dos
inquiridores que, na prática, nada conseguiram provar. Ou seja, defender uma filosofia de
vida que pregue a organização dos trabalhadores no sindicato e a utopia de uma sociedade
mais igualitária, como fez Enio, não significava estar a serviço do PCB. Fragelli demonstra
ainda, a partir de jurisprudência, que a reunião de ex-partidários na ex-sede do partido
extinto, desde que não seja para tratar de temas partidários, não configura crime previsto
em lei.
(IPM, Enio Cabral, fl. 138)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
260
Além da denúncia de reorganizar o PCB na cidade de Aquidauana, pairavam sobre
Enio outras acusações que nunca foram devidamente fundamentadas, algumas baseadas em
boatos e outras em testemunhas que admitiram posteriormente que foram forçadas a fazêlas sob coação militar. Destacamos uma, que nos pareceu anedótica, relativa ao cenário
religioso que ocorreria no pós-revolução em Aquidauana, conforme destacou Leite:
No entanto, a grande indignação tomou forma quando se espalhou o boato
de que os comunistas pintariam a igreja matriz de vermelho e a
transformariam em um bordel. Seria a sacralização da prostituição? Tal
aberração escandalizou a cidade, além de gerar violentos bate-bocas entre
os possíveis “pintores” da igreja e os cidadãos assustados com tal
possibilidade. Ameaças como essas fizeram com que alguns fazendeiros
providenciassem armas para a sua defesa e se tornasse mais tenso, ainda,
o clima político de Aquidauana (LEITE, 2009, p. 66).
Nas palavras de Leite, creio que encontramos muito mais fundamento para a prisão
de Enio Cabral do que numa possível organização comunista que supostamente estivesse
atuando. A moral religiosa e ruralista criou uma verdadeira boataria sobre esse personagem
político da cidade, baseada mais em suposições do que em ações efetivas, que porventura
levariam à reorganização do PCB em Aquidauana. A cada ação sua, mesmo que não
lograsse êxito, a cidade se mostrava indignada, como quando, então vereador, Enio
apresentou um requerimento, não aprovado, que deveria ser enviado ao presidente da
República, parabenizando-o pela sua reaproximação com a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). Tal fato teve ressonâncias dentro e fora da Câmara
Municipal – todos se mostraram preocupados com um ato que não surtiu grandes efeitos
para a cidade, mas mesmo assim incomodou bastante.
Outra denúncia imputada a Enio era a de fazer publicamente propaganda de
processos violentos para a subversão da ordem política e social, atos que feriam o artigo 11
da Lei n. 1.802 e eram, portanto, passiveis de punição.
Sobre esse crime, baseado no testemunho do depoente Sebastião Oliveira, Fragelli
consegue provar que as mesmas não expressavam a opinião da testemunha, que teria sido
induzida a declarar tal fato com base em acusações feitas por autoridades militares que
conduziam o IPM.
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
261
(IPM, Enio Cabral, fl. 139)
Acerca dessa acusação, Fragelli aponta que ela não poderia ser levada em
consideração, uma vez que foi respaldada em uma única testemunha, cujo depoimento foi
tomado sob coação e, portanto, não teria valor probatório algum para o processo em curso.
O ESTADO CONTRA A AUTONOMIA DIDÁTICA DE ENIO
Uma das questões que nos motivaram a pesquisar as práticas autoritárias em
Aquidauana nos anos iniciais da década de 1960 foi a figura de Enio Cabral como
educador, que trazia para a atuação pedagógica toda sua visão de mundo e buscava mais do
que ensinar, queria mesmo transformar o mundo por meio da educação. Os temas de suas
aulas de História do Brasil guardavam sempre relação com os temas mais gerais de seu
tempo, tais como a conjuntura nacional e internacional e as revoluções. Eudes Leite (2009)
assim se referia a ele:
O professor e líder comunista Ênio Cabral é outro nome destacável entre
os entrevistados. Sua fala é a de um militante de esquerda convicto e
convincente. Com pouca escolaridade, o professor Ênio pode ser
considerado um autodidata. Em sua entrevista, demonstra conhecimentos
gerais sobre os conceitos mais comuns em 1964, denunciando que suas 27
leituras de cunho marxista eram bastante freqüentes. Embora sua memória
apresente algumas falhas, ele narra os fatos com segurança e convicção de
que estava correto em 1964. Sua narrativa é rica e envolvente, levandonos a exercitar a imaginação ao ouvi-lo. Faz questão de relembrar 1964
como um acontecimento onde o povo foi traído. Na sua visão os militares
assumiram o poder para defender “interesses burgueses e internacionais”
(LEITE, 2009, p. 26-27).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
262
Sua atuação em sala de aula foi alvo de diversas controvérsias na Escola Candido
Mariano, reduto da elite aquidauanense durante a década de 1960, onde acabou motivando
diversas denúncias contra si. Um dos pontos mais interessantes que encontramos nos autos
do processo refere-se à acusação de que ele, durante suas aulas, ministrava noções de
comunismo a seus alunos, fatos denunciados por seus colegas professores e também por
alguns de seus alunos.
Na folha 139 do processo, Fragelli faz menção a esse fato, alegando que o mesmo
nem sequer configura crime, mas, como fazia parte do IPM, considerava ser necessário
demonstrar a improcedência de tais acusações.
(IPM, Enio Cabral, fl.139)
Embora não configurasse crime contra a segurança nacional, a atuação como
professor de Enio Cabral sempre foi alvo de denúncias e boatos intra e extramuros na
Escola Candido Mariano, onde lecionou durante os anos iniciais da década de 1960. Vale
lembrar aqui que, após sua prisão, ele acaba perdendo o emprego de professor e é obrigado
a trabalhar em diversos serviços não relacionados à sua formação. Um de seus colegas, e
também diretor da escola, foi um dos denunciantes que alegou:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
263
(IPM, Enio Cabral, fl. 139)
Note-se pelo trecho acima que a denúncia da testemunha de acusação baseia-se em
“ouvir dizer” e não em situações concretas em que o colega de trabalho tenha realmente
apurado algum ato incriminatório contra o professor. Mas é importante destacar que tal
testemunha, em outro ponto do IPM, informa aos interrogadores que foi contrário à
contratação de Enio Cabral, e que ela só ocorreu na gestão do Sr. Leonardo da Cunha, exdiretor da referida escola. Tal informação comprova a má-fé da testemunha contra o
acusado e certamente daria munição ao advogado para contestar suas declarações em juízo.
Outro testemunho importante para incriminar Enio como professor subversivo foi o
de José Carlos Nery, seu aluno durante o curso cientifico, que informou aos interrogadores
o seguinte:
(IPM, Enio Cabral, fl. 140)
No trecho acima alguns fatos no chamam a atenção. Por exemplo, a ressalva que o
aluno faz de que, uma vez terminada a matéria de História do Brasil, o professor aproveitou
o tempo para ministrar aulas sobre socialismo e religião, o que de certa forma atenua sua
denúncia.
264
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Fragelli, durante o processo-crime, utiliza sua astúcia para fazer com que os
depoentes caiam em contradição sobre as acusações e eles acabam revendo suas
declarações, como é possível perceber nos trechos que destacamos a abaixo:
(IPM, Enio Cabral, fl. 140)
Após ter declarado, supostamente sob coação, que Enio Cabral tratava de conteúdos
relativos ao comunismo na sala de aula, o professor Carneiro procura se retratar no
processo judicial, afirmando que não eram verdadeiras as acusações que lhe foram
atribuídas no IPM.
José Carlos Nery também se retrata no processo judicial e aponta que, embora o
professor Enio apresentasse sua interpretação sobre a história do Brasil, isso não impedia
que os alunos pudessem manifestar suas opiniões próprias.
(IPM, Enio Cabral, fl. 140)
265
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Fragelli, aproveitando desses depoimentos, demonstra que a Lei n. 1.802, na qual se
baseava a denúncia contra Enio, não dizia nada a respeito de discutir temas pertinentes à
política ou mesmo relativas ao comunismo e ao socialismo, e ainda argumenta que estes
eram assuntos pertinentes à matéria de História, como se depreende do trecho abaixo:
(IPM, Enio Cabral, fl. 140)
A Historiadora Suzana Arakaki (2003) também trata da perseguição a professores
no centro pedagógico de Dourados. De acordo com ela, o professor Biasotto foi um dos
protagonistas do movimento de resistência ao regime em Dourados. O caso envolvendo os
professores do Centro Pedagógico de Dourados – CPD, em 1978, é um exemplo do
mandonismo que se estabeleceu nos órgãos públicos em várias partes do país. Segundo ela,
havia situações em que rivalidades pessoais e políticas eram motivo suficiente para
perseguições e demissões.
O que estava em xeque, tanto no caso de Enio Cabral como no retratado por
Arakaki, era a questão da autonomia dos professores em contextos autoritários. Assim, a
escola impunha à pratica de seus professores e a seus alunos um tipo de conteúdo e de aula
que fosse favorável à conjuntura autoritária imposta pelo militarismo. Enio Cabral, assim
como os demais professores perseguidos, buscava uma autonomia pedagógica que lhe
permitisse construir uma educação transformadora, capaz de mudar o contexto social em
que vivia. Provavelmente esse foi um dos motivos de seu confronto com a nova ordem
autoritária estabelecida pós-1964.
O período entre 1964 a 1985 foi uma época marcada pela intervenção
militar, pela burocratização do ensino público, por teorias e métodos
pedagógicos que buscavam restringir a autonomia de educadores e
educandos, reprimindo, inclusive através da violência, qualquer
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
266
movimento que se caracterizasse barreira para o pleno desenvolvimento
dos ideais do regime político vigente, conduzindo o sistema de instrução
brasileiro a uma submissão aos ditames da política centralizada e
tecnocrática adotada pelo regime militar até o momento, inigualável
(HAMMEL & COSTA, 2011, p. 2).
As represálias contra Enio certamente se enquadravam na burocratização do ensino,
pois o que incomodava os demais colegas da escola, e principalmente os pais de alunos,
não eram exatamente os temas tratados nas aulas de história, mas sim a influência que estas
reflexões poderiam causar nos futuros cidadãos, que poderiam começar a questionar a
conjuntura em que viviam. Nesse sentido, Enio Cabral se chocava com a concepção de
educação daquele período, que considerava a educação sinônimo de controle social.
No texto Os românticos, Thompson (2002) tece críticas à concepção liberal de
educação, entendida pelos educadores partidários do capitalismo como a única capaz de
produzir uma relação de interação entre professores e alunos. Thompson discorda
totalmente dessa ideia. Afirma ele:
Toda educação que faz jus a esse nome envolve a relação de mutualidade,
uma dialética, e nenhum educador que se preze pensa no material a seu
dispor como uma turma de passivos recipientes de educação
(THOMPSON, 2002, p. 13).
A partir do conceito de experiência, o historiador britânico consegue sintetizar com
maestria a singularidade da educação, mostrando que ela, a experiência, modifica
sutilmente, e às vezes radicalmente, todo o processo educacional, influenciando os métodos
de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo, podendo até mesmo
revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas acadêmicas tradicionais e levar à
elaboração de novas áreas de estudo (THOMPSON, 2002).
Thompson realiza ainda uma profunda crítica ao sistema liberal de educação a partir
do discurso de um inspetor-chefe de escolas inglesas chamado Edmond Holmes, lançado
em 1911, no qual condena o sistema de Código Revisto (pagamento por resultados), que
funcionou até 1897 e buscava dominar a criança e matar sua criatividade. Thompson afirma
que somente quando a vontade estivesse anulada e “ela tivesse sido reduzida a um estado
de servidão mental e moral, chegava a hora de o sistema de educação, através da obediência
mecânica, ser-lhe aplicado com todo rigor” (THOMPSON, 2002, p. 35).
267
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Para o autor, os educadores da classe média tinham atitudes em relação à classe
social, à cultura popular e à educação que não distinguiam o trabalho educacional do
controle social e impunham com frequência uma repressão à validade da experiência da
vida dos alunos ou sua própria negação. Enio Cabral, ao contrário de seus colegas, buscava
partir da experiência dos alunos, no sentido de problematizá-las, questionando as normas e
os valores presentes naquela sociedade com o objetivo de conscientizá-los.
Um exemplo disso é o depoimento de um pai de aluno, Sr. Eustorgio de Andrade
Brito, que afirmou ter ouvido de suas filhas que o acusado pregava o regime comunista em
aula, negava a existência de Deus e que, além disso, incitava o uso da violência contra os
militares.
O advogado Fragelli considera que tal depoimento não poderia ser considerado pelo
simples fato de se tratar de algo que se “ouviu dizer” e, além disso, porque era contrariado
pelos outros dois depoentes que haviam retratado suas declarações constantes nos autos do
processo judicial. Fragelli afirmava que:
(IPM, Enio Cabral, fl. 141)
Enio Cabral foi acusado ainda de, por meio de suas aulas, incitar a violência contra
o Estado, ficando, portanto, enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
(IPM, Enio Cabral, fl. 141)
O referido artigo previa o seguinte: “Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo
deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de 6 meses a 2 anos”.
268
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
Assim, podemos perceber que o intuito do depoente, ao acusar Enio Cabral de tal incitação,
era retirar o mesmo da sala de aula, do ambiente escolar, por encontrar perigo nas palavras
do professor. O que se vê, portanto, é uma disputa ideológica que, levada às últimas
consequências em um período de forte instabilidade no país, se expressa na delação. Tal
estratégia já foi noticiada nas terras brasileiras desde os tempos coloniais, quando, mesmo
sem qualquer prova, denunciavam-se indivíduos às visitações do Santo Ofício para se
verem livres de desafetos ou de concorrentes. Tal prática, infelizmente tão comum na
vigência da ditadura militar brasileira, foi abordada por Magalhães (1997), que afirma:
Aos olhos do informante, a delação mais preciosa é a de um verdadeiro
comunista. Quando isto ocorre, ele descreve suas informações de forma
extremamente minuciosa, seja para comprovar a veracidade de seu
informe, seja para deixar clara a importância de sua descoberta
(MAGALHÃES, 1997, p. 09).
Enio Cabral era, assim, uma importante personagem a ser delatada, um comunista
verdadeiro a ser retirado da sociedade e que poderia servir para o ingresso do delator aos
círculos de poder ou torná-lo “bem-visto” para a sociedade conservadora na qual ambos
estavam incluídos. Entretanto, Fragelli se contraporia a este depoimento, desqualificando-o,
já que não se conseguiu provar.
(IPM, Enio Cabral, fl. 141)
Um fato que corrobora para que nada de objetivo fosse provado contra Enio no que
se refere à incitação direta do uso da violência contra o Estado ou mesmo contra a
sociedade aquidauanense era o fato de o mesmo não se encontrar na cidade à época do
golpe, conforme depoimentos constantes no IPM e utilizados por Fragelli na defesa do
acusado:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
269
(IPM, Enio Cabral, fl. 142)
Notamos, novamente, o caráter contraditório, marcadamente conservador, da
posição de Fragelli, que reputa os acontecimentos tumultuados de 1964 ao presidente da
República e a seu comício de 13 de março de 1964 na estação Central do Brasil,
explicitando sua proximidade ideológica com os indivíduos que acusavam Enio Cabral.
Cabe lembrar que João Goulart era herdeiro político de Getúlio Vargas, tendo sido seu
ministro do trabalho, indústria e comércio entre os anos de 1953 e 1954, com quem
comungava das ideias nacionalistas e reformistas que despertaram, mesmo antes de sua
chegada ao poder, em 8 de setembro de 1961, a fúria e a desconfiança da elite das forças
armadas, das elites econômicas e de parte da classe média, temerosas de perder seus
privilégios. Jango sabia que somente com a ajuda das camadas populares (trabalhadores,
estudantes, sindicalistas, dentre outros) poderia dar prosseguimento às reformas que se
encontravam bloqueadas no Congresso Nacional. Entretanto, como conhecemos o
desenrolar dessa crise, sabemos que Goulart seria deposto por essas forças reacionárias em
1º de abril de 1964, num golpe que colocou fim ao curto período de democracia vivido a
partir de 1945 no Brasil.
Enio Cabral, assim como outros cidadãos brasileiros daquele período, comungava
das ideias de João Goulart e acreditava que as reformas empreendidas por ele poderiam
finalmente abrir o caminho para o surgimento do comunismo no país. Como afirmei
anteriormente, entendo Enio Cabral como um comunista utópico, no sentido que atribui à
utopia o filósofo Herbert Marcuse, ou seja, como algo que se encontra no vir-a-ser, na
iminência de se realizar. Talvez, mesmo tendo se filiado ao Partido Comunista aos 27 anos
de idade e observado a cassação do partido em 1947, Enio ainda continuasse acreditando
270
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
nas ideias de uma sociedade mais justa, mesmo que sem exercer atividades no partido
(provavelmente, dada sua ilegalidade), conforme o trecho destacado abaixo:
(IPM, Enio Cabral, fl. 142)
Um dos pontos de atrito de Enio Cabral, um intelectual marxista, com a sociedade
aquidauanense referia-se à sua visão de mundo, construída a partir de um repertório de
leituras que era incomum para aquela sociedade. Como já apontamos no início deste
trabalho, Enio possuía uma vasta biblioteca de obras marxistas, que inevitavelmente o
levaria a acreditar na possibilidade de mudanças sociais que pudessem alterar as relações de
poder, tanto em Aquidauana como no restante do país. No entanto, não há de se subestimar
suas leituras, como se elas fossem apenas apologéticas à teoria marxista, já que em sua
biblioteca se encontravam várias obras críticas em relação à deturpação das ideias de Lenin
e Marx.
(IPM, Enio Cabral, fl. 142)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
271
No trecho acima podemos perceber que Fragelli consegue captar que o “único
crime” cometido por Enio foi se contrapor à ideologia dominante a partir da teoria
marxista, não devendo ser condenado por possuir uma opinião divergente de parte daquela
sociedade. E é por esse motivo que pede ao juiz sua absolvição dos crimes que nunca
ficaram provados.
(IPM, Enio Cabral, fl. 142)
DAS ALEGAÇÕES DO JUIZ
O processo contra Enio Cabral foi instaurado com base em inquérito policial militar
determinado pelo comandante do 9º Batalhão de Engenharia de Combate e em denúncia do
promotor de justiça da Comarca de Aquidauana. Foram ouvidas as testemunhas e realizadas
as considerações de acusação e defesa; cabia, então, em novembro de 1964, remeter os
autos conclusos ao juiz de Direito Heliophar Serra, que tornou pública sua decisão dois
meses depois, aos 23 dias de janeiro de 1965. Antes, porém, de discutir a sentença, cabe
esmiuçar um ponto: a figura do juiz em questão, que em depoimento dado ao historiador
Eudes Fernandes Leite intitulava-se como um juiz aberto à comunidade e que tinha relações
de proximidade com vários dos acusados no IPM. Assim se referia ele às prisões ocorridas:
É. Quando das prisões, efetuadas pelas autoridades militares 90% eram
pessoas conhecidas e alguns bons amigos. Foi preso aqui, aliás foi por
meu intermédio, eu não quis que ele sofresse vexame de sai escoltado para
o quartel. E atendendo à solicitação do coronel Wilson de Freitas eu
procurei esse advogado, Dr. Brito, que havia sido juiz em Porto Murtinho
– Juiz de direito – era o juiz de Direito na ocasião. E convidei eu o levei
até o quartel foi preso, não tinha nada de comunista. É preso também Enio
de Castro, Antonio Ramon Gonçalves – era um cidadão da mais alta
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
272
honestidade, filiado ao PTB, fã ardoroso de Getúlio Vargas, tinha uma
pessoa... um escritório de contabilidade em Aquidauana, o maior
escritório, cidadão pacífico, foi preso como comunista, ele é o pai da
Arlene, casada com Dr. Rudel Trindade hoje ministro do Tribunal de
Contas (Depoimento de Heliophar Serra a Eudes Fernando Leite, 1993, p
4).
O juiz de direito apresenta inicialmente uma síntese das acusações constantes do
IPM e da denúncia organizada em quatro itens, que transcrevemos de forma sintetizada:
Tentativa de reorganização do extinto PCB.
Contribuição favorável a entidades ilegais, como o PCB.
Propaganda da ordem política e social.
Incitação da classe social a luta pela violência.
O juiz segue reunindo enxertos das provas testemunhais, especialmente aquelas
oferecidas pela defesa. Aqui cumpre apontar para a natureza dessas testemunhas
(Claudemiro Nunes da Cunha, João Jorge Carneiro, José Carlos Nery Sebastião de Oliveira,
Eustorgio de Andrade Brito, Antônio Pace, Carlos Moacyr da Conceição, Arsênio Serrou
Camy, Fernando Luiz A. Ribeiro, Antônio Guerra, Nilo Pereira da Rocha, Luciano
Gonçalves, Lauriano da Silva, Roberto Scaff, Manoel Aureliano da C. Filho), tratando-se,
em sua maioria, de integrantes da elite agrária aquidauanense, constando entre eles diretor
de escola, prefeito, proprietário rural, estudante, delegado de polícia, fazendeiros,
comerciantes, professor e funcionário público, dentre outros, o que explica aspectos de seus
depoimentos, como o fato de a maioria demonstrar seu descontentamento com o acusado,
muito menos pelo fato de o mesmo ser comunista do que por ser favorável a reforma
agrária.
A compreensão do juiz de direito pode ser analisada da seguinte maneira:
Em primeiro lugar a desqualificação do inquérito, haja visto o emprego de tortura e
ameaça no interrogatório do acusado e na oitiva das testemunhas, conforme confirmado nas
alegações finais da promotoria.
Parto, repito, do digno representante do Ministério Público haver
praticamente pedido a absolvição do acusado, depois de acentuar que “a
peça informativa militar e o sumário se afastarem tanto que de um a outro
não escuta” eco da verdade real que é o mister prejuízo da justiça; “ o
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
273
acusado nega a confissão que soltou no IPM, e sustenta que ele” foi
produto dos maus tratos que recebeu durante o interrogatório.
Testemunhas reafirmam a circunstância que macula uma confissão. “E
nos processos da mesma natureza que o presente, que se descortinaram
perante a justiça da Comarca, as afirmações se repetiram”.” E interroga a
promotoria: “ Teria a confissão inserta no I.P.M. valor jurídico? (sic)
(Heliophar Serra. Sentença. IPM. Enio de Castro Cabral, fl. 152-B).
Em que se pese o momento histórico em que a sentença foi proferida, esse juiz não
fugiu da necessidade premente de, reportando-se às peças legais brasileiras e à
jurisprudência, condenar veemente a tortura, que posteriormente se tornaria uma das piores
lembranças do regime autoritário instalado naquele ano e encerrado duas décadas depois.
Para atenuar o caso de Enio Cabral, o juiz lança mão de um acórdão do tribunal de São
Paulo. Diz ele:
A decisão do ilustre e letrado juiz Azevedo Franceschini – uma das raras
que encontramos sobre a espécie – vem demonstrar, limpidamente, que a
confissão do acusado no I.P.M. não pode gerar o efeito jurídico aos quais
uma acusação conscienciosa se apegue (Heliophar Serra. Sentença. IPM,
Enio de Castro Cabral, fl. 152-B).
Para embasar sua sentença, o juiz cita ainda outros processualistas que apontam que
a confissão mediante tortura não pode se levada em conta para a condenação do réu. Um
deles é Irineu Lima, para quem
Limitações várias, decorrentes dos princípios constitucionais de proteção
e garantia a pessoa humana, impedem que para a procura da verdade
lance-se mão de meios condenáveis e iníquos de investigação e prova,
além de outras fundadas em superstições, crendices as práticas não
consagradas pela ciência processual (Heliophar Serra. Sentença. IPM,
Enio de Castro Cabral, fl. 153).
Outro motivo fundamental para atenuar a situação jurídica de Enio Cabral foi o
entendimento de que confissões obtidas por meio do uso da violência poderiam ser
retratadas em juízo, conforme orientação do Código Penal Brasileiro. Em sua sentença,
Heliophar Serra afirma ainda que o artigo 183 do Código de Justiça Militar proibia o uso da
violência contra os investigados. Esse argumento, embora surtisse efeito no referido
processo, era revestido de um caráter retórico, pois os militares quase sempre não
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
274
respeitavam os limites da legalidade em suas ações, ignorando as leis vigentes no país e
fora dele, alegando sempre o estado de exceção. No texto intitulado “Bagulhão”: a voz dos
presos políticos contra os torturadores, documento de 1975 que foi a primeira denúncia
pública contra os agentes da ditadura militar, publicado pela Carta Capital, encontramos
relatos de que a prisão de militantes jamais seguiu as formalidades legais.
A prisão de nenhum de nós se revestiu das mínimas formalidades legais.
A determinação de que ninguém será preso se não em flagrante delito ou
por ordem escrita da autoridade competente (art.153, § 12 da Constituição
em vigor e art. 221 do Código de Processo Penal Militar) é letra morta da
qual não fazem uso os chamados órgãos de segurança. Todos nós fomos
sequestrados, muitos em plena via pública, por bandos de homens
armados, sem nenhum mandado judicial e que não poucas vezes
desferiram tiros à queima-roupa, causando-nos ferimentos e ferindo
transeuntes (há vários casos de outros presos políticos em cuja prisão
ocorreram mortes de pessoas atingidas pelos policiais). Outras vezes
nossas casas foram invadidas, seja de dia ou em altas horas da noite, as
portas arrombadas, bens roubados, e sofremos espancamentos em nossos
próprios lares na presença da esposa, de filhos, pais ou vizinhos;
algemados, e muitas vezes amarrados, fomos conduzidos sob capuz para
lugar ignorado. Muitos de nós tivemos parentes presos que passaram pelas
mesmas vicissitudes. Crianças que presenciaram torturas, quando não as
sofreram diretamente; mães ameaçadas, esposas posteriormente
processadas, tudo isso apenas por serem nossos familiares (BECKER et
al, 2014, p. 33).
Em segundo lugar, para o juiz de direito as testemunhas não confirmam a acusação;
assim, acolhe o argumento de Fragelli de que não seria próprio para a instituição judiciária
condenar qualquer indivíduo em suposições tais como: “ouvi dizer que”. Para além,
Heliophar lista os trechos dos depoentes em que a tônica é: “que não tem conhecimento de
que o acusado cometeu tais crimes”:
A 1ª testemunha de acusação- Professor João Jorge Carneiro- declarou em
juízo, as 96: “Que não tem conhecimento de que o acusado haja pregado
em público processo violentos de reforma da reforma agrária do Brasil,
disso tem conhecimento penas indiretamente: - ouvi dizer que o acusado
era comunista, e quando se fala que um individuo é comunista se
subentende que o elemento é subversivo, ... que não ache, nem ouviu dizer
que o acusado é filiado ao Partido Comunista; que ignora que o acusado
ajudou com serviços ou donativos ao Partido Comunista (sic) (Heliophar
Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 156).
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
275
Outro importante aspecto a ser considerado é aquele que se refere às suas aulas
sobre o comunismo e a revolução. O juiz astutamente atenta que, além da ausência de
provas quanto ao fato, não há na Lei de Segurança do Estado brasileiro nenhum dispositivo
que ampare a denúncia, razão pela qual seria impossível condená-lo. Assim ele se refere a
questão:
Relativamente ao fato de o acusado, como professor do Colégio Estadual
Cândido Mariano , haver ministrado aulas aos seus alunos sobre
comunismo- o que aliás, não foi questionado na denuncia e não se
empenha em nenhum dispositivo da lei de segurança do Estado (sic)
(Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 156).
Finalmente, baseado no direito constitucional brasileiro e na jurisprudência
disponível, afirma o juiz não ser crime um homem publicar e professar o que entenda por
arte, religião, ciência ou técnica. Ou seja, ele compreendia que Enio Cabral exercia um
direito constitucional ao se declarar e atuar como um comunista.
O acusado Enio de Castro Cabral é comunista. Não o nega nem no
truculento I.P.M., nem em juízo, e poderia livremente continuar a sê-lo na
plenitude do que lhe assegure expressamente a nossa Constituição
Federal, no seu artigo 141, paragrafo 8º- Em matéria impessoal afirma o
interprete Sampaio Dória – a liberdade de pensamento é sem limites. Pode
o homem publicar e professar o que entenda por ciência, arte, religião
técnica, seja no que for, não há delito de opinião. Nada justifica
perseguição política, por ser alguém ateu ou crente, republicano ou
monarquista, governista ou oposicionista, capitalista ou comunista
(Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 155-B).
Vale ressaltar que, antecedendo a parte final do rito da sentença, Heliophar Serra
abre espaço para elogiar a inteligência de José Fragelli, defensor de Enio, “Lider político da
U.D.N e cujo trabalho nesses autos, merece o louvor desse juízo, pelo esforço dignificante,
pela honestidade e retidão” (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl.
155-B). Como argumentei anteriormente, nos idos de 1964 o advogado já possuía uma
longa carreira na política, tendo sido deputado constituinte em 1947, estadual de 1947 a
1950 e federal de 1955 a 1959. Era membro da elite agrária da região de Aquidauana e, por
esse motivo, transitava bem pelo cenário político e judiciário regional. Portanto, não nos
causa estranheza a deferência com que foi tratado pelo juiz nesse caso. Em decorrência da
276
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
consideração que tinha pela trajetória jurídica e política do advogado, e ainda pelos motivos
que o mesmo expôs e transcrevemos acima, ele absolve Enio Cabral.
(IPM, Enio Cabral, fl. 158-B)
O RECURSO DA PROMOTORIA E DECISÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O caso de Enio Cabral, que parecia ter um desfecho final e favorável no ano de
1965, se arrastaria ainda até o ano de 1985, em face da apelação da promotoria pública,
cujo promotor responsável, Vicente Paschoal Junior, havia sido substituído por Herminio
B. de Azeredo, que não concordou com a decisão do juiz e de seu antecessor. Por esse
motivo recorreu ao Supremo Tribunal Federal, conforme o termo de apelação que
apresentamos a abaixo:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
277
(IPM, Enio Cabral, fl. 160)
O promotor de justiça apresenta os seguintes argumentos para apelar da sentença
proferida pelo juiz:
1. Que o juiz, considerando truculento o IPM produzido pela autoridade
militar, descartou as provas dele constantes;
2. Que não acredita que as provas tenham sido forjadas, uma vez que outro
indiciado no mesmo processo foi absolvido, após o inquérito procedido pela
autoridade militar;
278
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
3. Que pelo fato de que, mesmo provadas as sevícias contra o acusado, não
haveria razão para absolvê-lo, mas sim para que o juiz punisse os
responsáveis pelos maus tratos;
4. Que a inércia do Ministério Público, comprovada no processo que deixou
mal a acusação, praticamente pediu a absolvição do acusado;
5. Que pelo fato de o acusado divulgar suas ideias comunistas em sala de aula,
conforme o testemunho de Eustorgio de Andrade Brito, que declarou “que
suas filhas também afirmaram que o acusado pregava o regime comunista
em aula” e ainda pela comprovação de tal fato pelo depoimento de Jose
Carlos Nery, solicitava a reforma da sentença provida pelo Juiz.
(IPM, Enio Cabral, fl. 165)
Além do resumo dos argumentos do promotor de justiça que recorreu da sentença,
algumas de suas declarações no termo de apelação merecem destaque, pois demonstram sua
convicção em relação à nova ordem vigente a partir de 1964, o que o levava a não ter
dúvidas de que o acusado deveria ser condenado pelos supostos crimes cometidos, mesmo
com a precariedade das provas. Em muitos momentos ele minimiza os atos de tortura e
manipulações ocorridas no IPM. Sobre as torturas sofridas pelo acusado, ele declara:
279
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
(IPM, Enio Cabral, fl. 162)
Em outro trecho afirma ele: “Isso vem provar, mais uma vez, que o diabo não tão
feio como se pinta (sic)”... (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 162). No trecho abaixo, o
promotor resumia toda a sua aversão à conduta de Enio Cabral e, portanto, esclarecia as
razões pelas quais lutava pela sua condenação.
(IPM, Enio Cabral, fl. 164)
Em que se pese a demora na decisão do caso na última instância da justiça
brasileira, que só ocorreu em março de 1967, o pleno do Supremo Tribunal Federal negou
por unanimidade o recurso da promotoria pública, com voto do relator Sr. Ministro
Gonçalves de Oliveira, conforme decisão que apresentamos na sequência:
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
280
(IPM Enio Cabral, fl. 193)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
281
O ministro Gonçalves de Oliveira inicia seu voto acerca do caso de Enio Cabral
justificando que a sentença era muito longa e que, portanto, apenas exporia os delitos que
foram imputados ao acusado para posteriormente manifestar sua decisão. Assim expunha as
razões de seu voto:
Conforme consta nos autos, as atividades atribuídas ao recorrido não
provam os atos delituosos;
O próprio ministério público admite que o acusado foi vítima de sevícias
no inquérito.
Portanto, nego o provimento do recurso fundamentando-me na sentença
proferida pelo Juiz. (IPM, ENIO CABRAL, Folha.193)
Apesar de a decisão do Supremo Tribunal Federal ter sido dada no ano de 1967, os
autos do processo, pela morosidade da justiça, só foram encerrados em fevereiro de 1986,
com a entrega da carteirinha de filiação ao PCB de Enio Cabral, como mostra o documento
abaixo.
(IPM Enio Cabral, fl. 197)
enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado
282
Enio Cabral, mesmo não tendo cometido nenhum crime que pudesse ser provado,
teve sua vida transfigurada pela ditadura durante todo o período de sua vigência. Sua
história nos lembra a do moleiro Doménico Scandela, queimado pela inquisição no século
XVI na Itália. Para lembrar sua história, fazemos nossas as palavras de Renato Janine
Ribeiro no posfácio da obra O queijo e o vermes, de Carlo Ginzburg: “Suas palavras são
um protesto, são a recusa desse horror. Sua curiosidade, opiniões e destino fazem dele um
desses homens para quem dizer o que pensam é tão importante que, por isso, arriscam a
própria vida. Nem toda confissão é uma vitória da tortura; porque às vezes a pior tortura é
ter a voz silenciada”. (RIBEIRO, 2006, p. 241)
Eu sou um comunista hormonal, meu
corpo contém hormônios que fazem
crescer minha barba e outros que me
tornam um comunista. Mudar, pra quê?
Eu ficaria envergonhado, eu não quero
me tornar outra pessoa.
José Saramago
considerações finais
considerações finais
284
A
o longo da tese investigamos a trajetória do professor catedrático de História
Enio Cabral por meio de Inquérito Policial Militar que lhe foi impetrado no ano de 1964,
com vistas a compreender como suas ideias de esquerda e sua atuação nos quadros políticos
do PCB geraram atritos com a elite agrária da cidade de Aquidauana, que, em função de sua
tradição mandonista, expressou seu apoio à ditadura desde os momentos iniciais do golpe.
Ao lado disso, buscou-se compreender como o regime, por meio do aparato militar,
representado pelo 9º Batalhão de Engenharia de Combate, se estruturou no estado e em
Aquidauana, impondo um clima de medo, coerção e, de certa forma controlou a memória
produzida pela população local, que nos momentos iniciais de nossa pesquisa afirmava que
ali o cotidiano não mudou muito após o golpe de 1964. No entanto, a partir dos IPMs
promovidos pelo 9º BEC, encontramos mais de 15 cidadãos que foram presos ou mesmo
torturados durante o regime, gerando sequelas não só nos próprios investigados, mas
também em outros sujeitos que com eles se relacionavam, tais como familiares e amigos.
Durante a pesquisa, pudemos constatar também que existe atualmente uma vasta
produção acadêmica sobre a ditadura e o golpe no Brasil, no entanto ainda concentrada no
eixo Rio-São Paulo, sendo incipiente fora destes grandes centros. Esse cenário evidencia
que a produção das pesquisas e da memória sobre o tema não é imparcial e se insere numa
disputa politico-ideológica em torno da memória pública acerca do assunto.
considerações finais
285
Dessa forma percebe-se, como destacou Hobsbawm, que a história tem um sentido
político e pode assumir tanto um caminho de conservação como de desconstrução de uma
memória pública, conforme os interesses dos grupos que a requisitam e a mobilizam. Em
2014, em função dos 50 anos do golpe, observamos um intenso debate em torno do assunto,
que foi retomado por diversos pesquisadores, políticos e militares a partir de diferentes
olhares, que permitiram uma reflexão da sociedade acerca desse acontecimento traumático
de nossa história. Diversos intelectuais, entre eles historiadores, sociólogos, educadores,
diretores e artistas, dentre outros, procuraram reavivar o trauma vivido pela sociedade
brasileira, demonstrando as atrocidades perpetradas pelos militares. Dentre os estudos
acadêmicos encontramos uma profusão de obras que apontam as atrocidades do regime,
mas nos limites dessa reflexão apresentaremos apenas algumas das que foram lançadas
mais recentemente, principalmente na área de história, por autores como Carlos Fico
(2001), Rodrigo Pato Sá Motta (2002), Elio Gaspari (2003), Marcelo Ridenti (2000), Daniel
Arão Reis (2004), Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2007), Beatriz Kushnir
(2004), dentre outros. Apesar da vasta produção, evidenciou-se também uma lacuna na
historiografia em relação ao tema nas regiões que se encontram fora desse eixo, bem como
seus desdobramentos no campo educacional, o que demonstrou a necessidade de um
aprofundamento do assunto nessas áreas mais distantes do país, na tentativa de fornecer
uma contribuição capaz de melhorar a formulação de uma síntese histórica. Pensar o
contexto de Aquidauana, pequena cidade do sul do Mato Grosso, local onde a ditadura e o
anticomunismo foram também bastante fortes, nos pareceu fundamental com o objetivo de
ampliarmos o debate acerca da repercussão da ditadura fora do eixo Rio-São Paulo.
Ao longo da investigação, pudemos constatar que na referida cidade as acusações
contra os comunistas se deram da mesma forma que ocorreram no restante do país, na
maioria das vezes sem provas concretas, levantadas a partir de denúncias de adversários
políticos ou mesmo de ruralistas preocupados com as disputas de terra, como ocorreu no
caso do professor Enio Cabral, processado por crime contra a segurança nacional e atos
comunistas sem provas contundentes, conforme aponta o estudo de Eudes Fernando Leite
(2009), que teve como foco os mecanismos utilizados pelos militares para reprimir a utopia
comunista que se fazia presente na cidade no período pré e pós-1964, momento em que
considerações finais
286
alguns sujeitos ligados ao PCB acreditavam que a chegada de João Goulart ao poder
permitiria a realização das tão sonhadas reformas de base.
Partindo do contexto de Aquidauana, foi possível descortinar as ações autoritárias e
a violência empregada, primeiramente pelos coronéis e posteriormente pelos militares, que
ali muitas vezes desempenharam o papel ordenador que deveria competir ao Estado,
subordinando as demais classes. Constamos ainda que após o golpe a situação de
animosidade que já existia entre “os donos da cidade” e os trabalhadores se acirrou ainda
mais, já que estes, incentivados pelas propostas janguistas de reformas de base, acreditaram
que finalmente poderiam ter uma vida mais justa e começaram a se organizar para exigir
seus direitos. Um dos exemplos dessas ações foram as famosas reuniões domingueiras que
ocorriam no Bar São Paulo, situado à margem esquerda do rio Aquidauana. Diante de tal
contexto, os ruralistas se mostravam preocupados com a possibilidade de uma revolução e
passaram a ficar atentos a qualquer manifestação pública que poderia significar o início de
uma atividade subversiva. Uma simples aglomeração em locais abertos ou fechados
despertava o medo dos produtores rurais e dos militares, que consideravam uma ação
coletiva, por mais simples que fosse, como o estopim da revolução.
Como é possível inferir a partir da obra de Leite (2009), as ações repressivas em
Aquidauana dirigiram-se aos mesmos grupos historicamente perseguidos no restante do
país, assim como os instrumentos utilizados, já que aqui os inquéritos policiais, as prisões
arbitrárias e a violência foram utilizadas em larga escala para conter a possibilidade de
mudança, que parecia estar em curso naquele momento inicial dos anos 1960, mas que não
se realizou, pois, como advertiu Leite, ali “as ações dos atores dão-se mais como exercício
de cidadania, mesclada à utopia do novo-melhor, do que como atividade política mais
elaborada” (LEITE, 2009, p. 15).
Outro autor que nos foi importante para pensar a situação dos professores no
contexto da ditadura militar na região sul do Mato Grosso foi Altemir Dalpiaz (2008), que
procurou compreender a construção da identidade cultural dos professores de Campo
Grande durante o regime militar. Inspirando-se nos estudos culturais, buscou, a partir das
histórias relatadas, entender como o contexto autoritário da ditadura influenciou o trabalho
deles naquele período.
considerações finais
287
A pesquisa de Dalpiaz adquire uma grande importância na medida em que trata de
um tema ainda pouco discutido pela historiografia produzida no Mato Grosso do Sul. O
autor tem ainda o mérito de apontar algumas marcas produzidas pelo contexto repressivo
nos entrevistados, advertindo que o medo estava sempre presente em suas falas. Demonstra
também a astúcia utilizada pelos professores para driblar a censura e os censores, inclusive
no espaço privado dos encontros clandestinos, e a sensação de estar sendo vigiado (também
em sala de aula), nas leituras de jornais “marginais”, na sintonia para ouvir rádios
estrangeiras, de modo que construíram jeitos de ser e viver (identidades), articulados com
os interesses (coletivos e particulares) e com as necessidades para “conviver” com a
situação que lhes era contrária (DALPIAZ, 2008).
Um dos pontos importantes no trabalho de Dalpiaz é o de mostrar que a construção
da identidade do professor deu-se de múltiplas formas, inclusive pelo viés da resistência.
De acordo com ele, eles se articulavam sobretudo nos sindicatos, com o objetivo de
alcançar conquistas para a categoria ou para determinado partido político. Além disso,
procuravam resistir, em função de seus sentimentos éticos e morais para com a sociedade
em que viviam.
Como pudemos depreender, em que se pese encontrarmos uma vasta produção
acadêmica e cultural acerca da ditadura militar, esses trabalhos ainda se encontram
concentrados no eixo Rio-São Paulo. Nesse sentido, a tese que ora apresentamos, somada
aos demais trabalhos focados no sul do Estado do Mato Grosso que arrolamos
anteriormente, cumprem um importante papel como contribuições para preencher a lacuna
existente acerca de tal período nessas regiões. Esses trabalhos adquirem maior importância
ainda por tratarem de um período, como apontou Vasconcelos, “cujas memórias foram
silenciadas, sufocadas, reprimidas pela memória pública construída em torno do tema e
para as quais as fontes oficiais ou são raras, ou não estão disponíveis à pesquisa”
(Vasconcelos, 2009, p. 80).
O silêncio ou o controle da memória pública acerca da ditadura militar, lembrado
por Vasconcelos, foi presença constante em nossa trajetória de pesquisa e nos inquietou
fortemente, na medida em que, a partir do caso do professor comunista Enio Cabral,
pudemos compreender que estávamos diante não de um caso singular, pitoresco, à moda da
micro-história, mas sim de um acontecimento, processo/fato histórico, imerso na disputa
considerações finais
288
entre dois sistemas econômico-sociais que dividiram o mundo desde o período da
instalação da guerra fria – capitalismo e comunismo – numa luta pela hegemonia. Nesse
sentido, o texto de Williams (2005), Base e superestrutura, foi primordial para
compreendermos como os atritos entre ruralistas e os comunistas que se organizavam em
torno do professor Enio Cabral se inseriam no contexto nacional e internacional, uma vez
que tais sujeitos sociais expressavam dois projetos antagônicos que dividiram o mundo a
partir do final da segunda guerra mundial e que se evidenciaram nos diversos conflitos
motivados pela guerra fria, a exemplo do caso do Vietnã e da Coreia. Os ruralistas e os
comunistas de Aquidauana em verdade defendiam projetos de sociedade e visões de mundo
diferentes e que, portanto, deveriam ser apresentadas e defendidas junto à sociedade local.
Tratava-se, portanto, de uma disputa em torno dos conceitos de hegemonia e contrahegemonia, elaborados por Gramsci e retomados no texto de Williams.
A luta de Enio Cabral contra o regime militar permitiu-nos ainda entender como os
intelectuais representantes das classes subalternas desempenharam a imprescindível tarefa
de romper com a hegemonia burguesa a partir da formulação do questionamento e da crítica
social, capazes de abalar e superar a ideologia dominante e, numa segunda etapa,
desenvolver as bases de uma nova ideologia que daria sustentação e suporte à ação prática,
ou seja, a práxis revolucionária. Nesse sentido, o que procuramos compreender a partir da
trajetória do professor Enio Cabral foi como esse intelectual orgânico defendeu os
interesses das classes excluídas do processo de modernização conservadora implantado no
Mato Grosso por meio de sua atuação como militante comunista e educador.
Consideramos tal tarefa importante, na medida em que atualmente temos uma
redução dos estudos que tratam do tema dos movimentos sociais inseridos num plano
político-econômico e uma profusão de trabalhos acadêmicos no campo de uma história
cultural de base idealista, que se desloca para o campo de uma subjetividade desmedida,
que pode descontextualizar as ações dos sujeitos pesquisados, como se não fossem práticas
socioculturais. Como já demonstrou Senna Júnior (2014), apesar de encontrarmos no
mercado editorial uma grande quantidade de obras de Marx e Engels em nível mundial e
nacional, no que se refere à historiografia contemporânea temos como característica um
antimarxismo marcante, tanto em meios midiáticos quanto intelectuais. No campo
ideológico as estratégias para desqualificação do marxismo foram muitas, no entanto uma
considerações finais
289
das mais impactantes foi a tentativa de equiparar, numa tentativa de homogeneizar todos os
líderes e períodos, as experiências dos regimes socialistas implantados em países como
União Soviética e Cuba às atrocidades das experiências nacionalistas do fascismo e do
nazismo, considerando todas igualmente totalitárias, sem as devidas diferenciações.
Assim, consideramos importante a retomada de temas que permitam uma reflexão
acerca de como a sociedade atual tem pensado o debate em torno dos movimentos sociais e
da disputa pela hegemonia social, travado tanto no contexto do Estado e das instituições de
poder quanto no cotidiano, no qual podemos perceber a utopia (tomada como algo ainda
não realizado, nos termos de Marcuse), ainda viva. Nesse sentido, defendemos, no campo
acadêmico, um reengajamento da intelectualidade na defesa de uma guinada à esquerda no
plano político, econômico, social e educacional.
Tal intento se mostra necessário pois, apesar de estarmos tratando de um fato
“longínquo”, que remonta a 50 anos, encontramos um cenário parecido no contexto atual,
em que um governo de esquerda “supostamente” representa o “perigo comunista” de
outrora e, por meio do aparelho estatal, favorece seus seguidores através de atos ilícitos,
financiando assim a burocracia comunista, alijando o “povo” dos frutos do processo
econômico capitalista. O discurso que ouvimos, seja na mídia ou no senso comum, é
bastante parecido com o que foi ouvido em 1964. A Petrobras (“antro de comunistas
corruptos”) é novamente o centro das atenções, o ataque às políticas de distribuição de
renda parece retomar as críticas às reformas de base de Jango, a aversão à reforma agrária e
o anticomunismo (hoje antipetismo), tanto naquele período como atualmente se fazem
presentes. As propostas de mudança no campo político também não se diferenciam muito –
a ideia de uma intervenção militar aos moldes da ditadura, que supostamente devolveria a
estabilidade econômica e política ao país também se encontra em pauta. Assim, ao que
parece, a história, como lembrou Marx, realmente pode se repetir, seja como tragédia, como
a ditadura militar de 1964 a 1985, ou como farsa, como querem atualmente os
conservadores que mobilizam esse discurso reacionário para favorecer líderes políticos que
se mostraram omissos no passado e mesmo agora. Se compararmos a situação atual àquilo
que se apresentava nos idos de 1964, perceberemos algumas semelhanças no que se refere
ao contexto econômico, político e social. No plano econômico encontramos uma aliança
entre frações da burguesia em torno do velho modelo de desenvolvimento conservador do
considerações finais
290
passado, baseado na superexploração da mão de obra da classe operária, no
aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza no país, demonstrando que o
modelo, mesmo tímido, de transferência de renda (bolsa-família, bolsa-escola, renda
mínima etc.), iniciado no governo Lula e ampliado no governo Dilma, não foi eficaz para
transformar a conjuntura econômica do país. No passado, como agora, os detratores
entendem as reformas de base como as responsáveis pelo aprofundamento da crise
econômica no país. Apontam como solução o ajuste fiscal, que deve ser estruturado em
torno da política de abertura para o capital estrangeiro, da política de juros altos e da
superinflação, que deve recair sobretudo sobre os ombros das classes menos favorecidas,
como vem ocorrendo atualmente.
As críticas à reforma agrária, comuns em 1964, também se mostram presentes nos
dias atuais, sob o argumento de que ela representa um ataque ao regime da propriedade
privada e expropria os grandes proprietários rurais que tanto contribuem para o
desenvolvimento do campo. Além disso, há que se apontar ainda como empecilho para seu
desenvolvimento efetivo a capacidade do sistema capitalista de se apropriar até mesmo das
formas de resistência organizadas pelos trabalhadores.
Hoje é comum encontrarmos fazendeiros que negociam a ocupação de suas
propriedades pelos movimentos de luta pela terra para serem indenizados pelo governo, e
ainda assentamentos arrendados para as grandes empresas transnacionais que plantam soja,
milho e outros produtos transgênicos, fazendo com que o modelo do agronegócio penetre
inclusive na esfera da agricultura familiar, descaracterizando o discurso agroecológico em
torno do qual se organiza o movimento internacional de luta pela terra e pela agricultura
familiar.
A corrupção nos órgãos estatais, como já mencionamos, também é retomada como
um fator responsável pela crise atravessada pelo país e como justificativa para o ataque
frontal aos governos de esquerda, como ocorreu com João Goulart e, atualmente, com
Dilma Roussef. Nem mesmo o órgão atacado mudou após 50 anos: a Petrobras era alvo de
críticas no período de 1964 e conhecida como um reduto comunista, um soviete a serviço
da comunização do país; hoje novamente a empresa é o centro das atenções como antro de
petistas corruptos que expropriam a nação e impedem seu o verdadeiro desenvolvimento
econômico. Em que se pese não podermos rebater totalmente as críticas sobre as ações
considerações finais
291
petistas no interior da Petrobras, temos que lembrar que essa foi, infelizmente, uma prática
comum, institucionalizada desde os idos do governo Vargas. Ao que parece, os fantasmas
do passado rondam o presente e se mostram novamente úteis aos conservadores para a
formulação de uma crítica às propostas que, mesmo com caráter populista, buscam
melhorias no campo social, como ocorreu nos governos de João Goulart (herdeiro político
de Vargas) e Dilma (herdeira política de Lula).
Talvez a explicação para essa recorrência histórica, que se apresenta como tragédia
e como uma possível farsa, possa ser encontrada no modelo de desenvolvimento adotado
pelo país, que, como apontamos no decorrer da tese, se deu nos moldes da modernização
conservadora, que favoreceu a construção de um Estado centralizador e autoritário, que
impediu a participação popular na constituição da nação brasileira. Como já apontamos,
Pires e Ramos (2009) destacam que as elites agrárias e a burguesia estabeleceram uma
aliança contraditória, com vistas a se perpetuar no poder e impedir uma mudança estrutural
que permitisse a ascensão da maioria da população menos favorecida. No Brasil, o pacto
político construído entre o Estado e a burguesia industrial emergente foi o responsável por
interditar o acesso democrático à terra por parte das classes sociais menos abastadas,
concentrando-se, assim, ao longo da formação e da evolução econômica brasileira, nas
mãos de médios e grandes proprietários rurais, constituindo o que os pesquisadores
denominaram modernização conservadora.
Tal processo se aplica ao conceito de via prussiana, preconizado por Lenin para
compreender como esses países resolveram a questão da reforma agrária, segundo o qual
existiram ao longo da história processos clássicos de modernização, como nos casos dos
Estados Unidos, da Inglaterra e da França, em que eles se deram por meio de revoluções
sociais, e outros não clássicos, como o caso da Prússia, em que a transição para ao
capitalismo ocorreu através da conservação de elementos da velha ordem social e política,
tendo como característica o fortalecimento do Estado como o centralizador das ações de
modernização, como apontou Coutinho (2008). Aqui, ao que parece, a modernização se deu
por meio de um acordo feito pelo alto, ou seja, um arranjo entre o Estado, as elites agrárias
e a burguesia industrial emergente, com vistas a excluir a classe operária do processo.
Assim, a centralização do poder estatal e o acordo tácito com a elite agrária e a burguesia
emergente fizeram com que o favorecimento das classes abastadas e o autoritarismo se
considerações finais
292
tornassem traços característicos da sociedade brasileira. Nesse sentido, acreditamos ser
necessário que os trabalhos históricos se engajem na discussão das experiências políticas
autoritárias de nosso país, com o objetivo de contribuir para que experiências tão
traumáticas não sejam invocadas de forma tão leviana por grupos que se beneficiaram das
mazelas da ditadura e que se valem da pouca informação sobre o período, sobretudo entre
os mais jovens, para defender de maneira inescrupulosa a volta da ditadura militar.
Precisamos lutar cada dia mais pela abertura dos arquivos que nos permitam reflexões mais
acuradas sobre o período, quebrando a cultura do silêncio e o cerceamento da memória
pública que, tanto no passado como agora, foram evocados para manter sob o manto do
esquecimento as atrocidades cometidas pelo regime ditatorial brasileiro.
documentos e
referências bibliográficas
documentos e referências bibliográficas
294
DOCUMENTOS
Inquéritos Policiais-Militares:
Adônis Gonçalves
Enio de Castro Cabral
Observação: os inquéritos de Adônis Gonçalves e Enio Cabral foram unidos em um único
processo.
Revistas:
Revista Brasil-Oeste, São Paulo ano I, n. 06, outubro de 1956, São Paulo (SP).
Revista Brasil-Oeste, São Paulo, ano II, n. 14, junho de 1957, São Paulo (SP).
Revista Brasil-Oeste, São Paulo, Ano IX, n. 89, janeiro de 1964, São Paulo (SP).
Partidário:
CARONE, Edgard. O PCB (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982.
Entrevistas:
CABRAL, Enio. Depoimento. [10 de outubro de 1991]. Aquidauana. Entrevista concedida
a Eudes Fernando Leite. Mimeo.
CABRAL, Enio. Depoimento. [28 de novembro de 1993]. Aquidauana. Entrevista
concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo.
SERRA, Heliophar. Depoimento. [27 de novembro de 1993]. Aquidauana. Entrevista
concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo.
documentos e referências bibliográficas
295
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos,
projetos. Recife: Editora da UFPE/Oito de Março, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004
ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Dissertação (Mestrado
em História), UFMS, Campus de Dourados, 2003.
ARNS, Paulo Evaristo (Dom.). Brasil nunca mais: um relato para a história. Petrópolis:
Vozes, 1987.
ARRUDA, Ângelo Marcos Vieira de. Arquitetura escolar em mato grosso (1890-1930).
Linhas, v. 12, n. 1, p. 73-94, 2011.
BANDEIRA, Moniz. Estado Nacional e política internacional na América Latina: o
continente nas relações Argentina-Brasil (1930-1992). São Paulo: Ensaio, 1993.
BARIANI, Edson. ISEB: fábrica de controvérsias. Espaço acadêmico, n. 45, 2005.
BATISTA JR., Paulo Nogueira. Nacionalismo e desenvolvimento. Novos Estudos
CEBRAP, n. 77, março 2007, p. 29-35.
BATISTA, Eraldo Leme. Trabalho e educação profissional nas décadas de 1930 e 1940 no
Brasil: análise do pensamento e das ações da burguesia industrial a partir do IDORT.
Campinas: [s.n.], 2013.
BENEVIDES, Maria Victoria. 64, um golpe de classe? (Sobre um livro de René Dreifuss).
Lua Nova, n. 58, 2003, pp. 255-261.
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro:
Record/Cepal/Cofecon, 2000.
BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: regionalismo e
divisionismo no sul de Mato Grosso. Campo Grande: Editora da UFMS, v. 1, 2009.
BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política
(volume 2). 9 ed. Brasília: Editora da UnB, 1997.
BOSCHI, Renato R. Políticas de desenvolvimento no Brasil: continuidades, crise e
incertezas. Anais do VII Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).
Recife: Agosto, 2010.
documentos e referências bibliográficas
296
___ e GAITÁN, Flavio. Gobiernos progresistas, agendas neodesarrollistas y capacidades
estatales: la experiencia reciente en Argentina, Brasil y Chile. In: LIMA, Maria Regina
Soares de (org). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas
ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições IUPERJ, 2008.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Do ISEB e da CEPAL à Teoria da Dependência. In:
TOLEDO, Caio Navarro de (org.). Intelectuais e política no Brasil: a experiência do ISEB.
São Paulo: Revan, 2005, p. 201-235.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia
convencional. São Paulo em perspectiva, v. 20, n. 3, pp. 5-24, jul./set. 2006.
CALEIRO, Regina Célia Lima; SILVA, Márcia Pereira da e JESUS, Alysson Luiz Freitas
de. Os processos-crime e os arquivos do Judiciário. Dimensões, n. 26, Vitória, 2011, pp.
302-320.
CAMPANELLA, Rodrigo. Exposição recorda cotidiano de violência da ditadura militar.
Carta
Maior,
30/09/2011.
Disponível
em
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Exposicao-recorda-cotidiano-deviolencia-da-Ditadura-Militar/4/17676, consultado em 03 de abril de 2015.
CANTÓN, Darío. La política de los militares argentinos: 1900-1971. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 1971.
___; MORENO José L. e CIRIA, Alberto. Argentina: la democracia constitucional y su
crisis. 2 ed. Buenos Aires: Paidós, 2005.
CARONE, Edgar. O PCB (1958-1964). Vol II. São Paulo: Difel, 1982.
CASTRO, Iára Quelho de. Vigiar e construir a história: memória, esquecimentos,
comemorações e historiografia nas representações sobre Aquidauana. 124 fls. Dissertação
(Mestrado em História) Programa de Pós-graduação em História. Universidade Federal do
Mato Grosso do Sul, Dourados. 2002.
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce e MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar,
cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996.
CORRÊA, Mariza. Morte em família – representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de
Janeiro: Graal, 1983, p. 40.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
CHAUÍ, Marilena; CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de. Ideologia e mobilização
popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 1978.
documentos e referências bibliográficas
297
CORRÊA, Anna Maria Martinez. O tenentismo na década de 1920. Anais de história.
Assis, n. 8, 1976, pp. 135-165.
CORRÊA, Anna Maria Martinez. Prefácio. In: LUCA, Tânia Regina de. A Revista do
Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.
CORREIA, Valmir Batista. Coronéis e bandidos em Mato Grosso. Campo Grande: Editora
da UFMS, 1985.
COSTA, Ana Alice Alcantara. As donas no poder: mulher e política na Bahia. Salvador:
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher/FFCH/UFBA, 1998.
COUTINHO, Carlos Nelson. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas. In: LIMA,
Júlio César França e NEVES, Lúcia Maria Wanderley. Fundamentos da educação escolar
do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006, pp.173-200.
CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na Oficina do
Historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, pp.
235-270, dez. 2007.
CUNHA, Luiz Antonio. A universidade reformanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1988, pp. 125-218.
___ e GÓES, Moacyr de. O golpe na educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
CZAJKA, Rodrigo. A revista civilização brasileira: projeto editorial e resistência cultural
(1965-1968). Sociologia Política. 18.35, 2010, pp. 95-117.
DALPIAZ, Altemir Luiz. A construção da identidade cultural do professor durante o
regime militar no Brasil – 1964 a 1985. Campo Grande, 2008. 133 fls. Dissertação
(Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2008.
DEL ROIO, Marcos. A teoria da revolução brasileira: tentativa de particularização de uma
revolução burguesa em processo. In: ___ e MORAES, João Quartim de (orgs.). História do
marxismo no Brasil. Volume 4. Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
DREYFUS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1987.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FARIA, Cátia. Revolucionários, bandidos e marginais: presos políticos e comuns sob a
ditadura militar. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2005.
documentos e referências bibliográficas
298
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São
Paulo: Editora da USP, 2001.
FAVORETO, Aparecida. Marxismo e educação no Brasil (1922-1935): o discurso do PCB
e de seus intelectuais. 247 fls. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal do
Paraná, 2008.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 6 ed. rev. São Paulo:
Global, 2009.
FERREIRA JR., Amarilio; BITTAR, Marisa. Educação e ideologia tecnocrática na ditadura
militar. Cadernos CEDES. Campinas, n. 76, v. 28, pp. 333-355, set./dez. 2008. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/ccedes/v28n76/a04v2876.pdf. Acesso em 20 de outubro de
2014.
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista
Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v. 24, n. 47, jan-jun. 2004, pp. 181-212.
___ & NEVES, Lucília Delgado Almeida. O Brasil republicano: o tempo da experiência
democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
___ & REIS, Daniel Aarão (orgs). Nacionalismo e reformismo radical (as esquerdas no
Brasil, vol. 2). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
FICO, Carlos. Como eles agiam – os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e
polícia política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
___. Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:
Record, 2004.
___. O Grande Irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos
Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise
política (1961-1964). São Paulo: Paz e Terra,1993.
GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GOMES, Ângela de Castro. & FERREIRA, Jorge. Jango, as múltiplas faces. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007.
documentos e referências bibliográficas
299
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
GRAMSCI, Antônio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: os intelectuais, o princípio educativo,
jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HAMMEL, Ana Cristina; COSTA, Gelson Kruk da & MEZNEK, Ivone. A ditadura militar
brasileira e a política educacional: leis n. 5.540/68 e n. 5.692/71. Anais do 5º Seminário
Nacional Estado e Políticas Sociais. UNIOESTE, Cascavel, 2011.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
___. Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
HOGAN, Daniel J. (coord.). Um breve perfil ambiental da região centro-oeste. Migração e
ambiente no centro-oeste. Campinas: Núcleo de Estudos de População, Unicamp, Pronex,
2002.
JACOMELI, Mara Regina Martins. A instrução pública primária em Mato Grosso na
Primeira República: 1891 a 1927. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
KAPLAN, Marcos. Gobierno peronista y politica del petroleo en argentina: 1946-1955.
Caracas: Edicines de la Biblioteca de la Universidad Central de Venezuela, s.d.
KUSHNIR , Beatriz. Cães de guarda. Jornalistas e censores. Rio de Janeiro, Boitempo,
2004.
LAMOUNIER, Bolívar. O ISEB: notas à margem de um debate. In: ___. Discursos. São
Paulo: [s/n], 1979, pp. 153-158.
LEITE, Eudes Fernando. Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma
pretensa revolução. Dourados: Editora da UFGD, 2009.
LEME, Pascoal. Memórias. Vida de família, formação profissional, opção política. Brasília:
Cortez/Inep, 1988.
LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste.
Campinas: Editora da Unicamp, 1985.
___. Sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.
documentos e referências bibliográficas
300
LIMA, Ana Paula Picolí de. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Campo Grande
(Mato Grosso Do Sul) – 1945-1964: História e Memória. Anais do Congresso
Internacional de História. UEM, 21 a 23 de setembro de 2011.
LIRA, Alexandre Tavares do Nascimento. A legislação da educação no Brasil durante a
ditadura militar (1964-1985). 367f. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010.
LOMBARDI, José Claudinei. Educação e ensino na obra de Marx e Engels. Campinas:
Alínea, 2011.
___; SAVIANI, Demerval & SANFELICE, José Luís (eds.). Capitalismo, trabalho e
educação. Campinas: Autores Associados, 2002.
LÖWY, Michael. Marxismo e utopia. In: LEITE, José Correa; LÖWY, Michael &
BENSAID, Daniel (orgs.). Marxismo, modernidade e utopia. São Paulo: Xamã, 2000, pp.
124-130.
LUCA, Tânia Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
LUKACS, George. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências
Humanas, 1979.
MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos
repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Revista Brasileira de História, v. 17, n.
34, 1997, pp. 203-220.
MARCUSE. Hebert. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
MARONI, Amnéris. A estratégia da recusa. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra da memória. A ditadura militar nos
depoimentos de militantes e militares. Varia História, UFMG, n. 28, dezembro 2002.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
MATOGROSSO, Francisco Fausto. Coronelismo, poder e desenvolvimento em Aquidauna
(1945-1965). Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Local). Universidade Católica
Dom Bosco, 2013.
MELO, Demian Bezerra de (org). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
documentos e referências bibliográficas
301
MÉSZAROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2006.
MORAES, João Quartim de. Sobre o “aprimoramento” da expressão ditadura militar.
Disponível
em
http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4891&id_coluna=24. Acessado
em 05 de novembro de 2014.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Nacionalismos e reforma agrária nos anos 50. Revista
Brasileira de História, v. 18, n. 35, 1998, pp. 329-360.
MORENO, Gislaene & HIGA, Tereza Cristina Souza. Geografia de Mato Grosso. Cuiabá:
Entrelinhas, 2005.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no
Brasil. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2002.
___. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
MUNDIM, Luiz Felipe Cezar. Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva: Escola Superior
de Guerra e a organização do Estado brasileiro (1930-1960). 157 f. Dissertação (Mestrado
em História), Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2007.
MURMIS, Miguel & PORTANTIERO, Juan Carlos. Estudos sobre as origens do
peronismo. São Paulo: Brasiliense, 1973.
NAPOLITANO, Marcos. O golpe de 1964 e o regime militar brasileiro. Apontamentos para
uma revisão historiográfica. Contemporânea – Historia y problemas del siglo XX, v. 2, pp.
208-217,
2011.
Disponível
em
http://www.geipar.udelar.edu.uy/wpcontent/uploads/2012/07/Napolitano.pdf, consultado em 07 de março de 2015
NOGUEIRA, Marco Aurélio. PCB: vinte anos de política, 1958-1979. São Paulo: LCH,
1980.
OLIVEIRA, Ademir Machado de; ORLANDI, Marines & BORBA, Beatriz Aparecida S.
de O. Elementos condicionantes da evolução socioeconômica de Mato Grosso e da
Mesorregião norte Matogrossense. Revista de Estudos Sociais, v. 13, n. 25, 2014, pp. 5270.
PAIVA, Glycon de. Apresentação. In: IPES (org.). A educação que nos convém. Rio de
Janeiro: Apec, 1969.
PEREIRA, Benedito Dias. Mato Grosso: principais eixos viários e a modernização da
agricultura. Cuiabá: EdUFMT, 2007.
PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
documentos e referências bibliográficas
302
PIRES, Murilo José de Souza. As implicações do processo de modernização conservadora
na estrutura e nas atividades agropecuárias da região centro-sul de Goiás. Tese
(Doutorado em Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente), Instituto de
Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
___ & RAMOS, Pedro. O termo modernização conservadora: sua origem e utilização no
Brasil. Revista Econômica do Nordeste, v. 40, n. 3, 2009, pp. 411-424.
PISANI, Marilia Mello. Sobre o conceito de revolução em Walter Benjamin e Herbert
Marcuse. Anais do III Seminário de Políticas de la Memória. Buenos Aires, 2010.
Disponível em: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/2010/10/mesa-42/pisani_mesa_42.pdf,
consultado em 22/02/2015.
POMAR, Pedro. O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar. Brasil de
Fato,
São
Paulo,
10
de
agosto
de
2012.
Disponível
em
http://www.brasildefato.com.br/node/10300, acessado em 05 de novembro de 2014.
PRADO JUNIOR, Caio. & FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução
brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
PRADO, Maria Emilia. Os intelectuais e a nação. Considerações acerca das concepções de
Hélio Jaguaribe e do papel do Instituto Superior de Estudos Brasileiros no decênio de 1950.
LEAL, Elisabete (org. do disco óptico). Anais do XXIV Simpósio Nacional de História. São
Leopoldo: Unisinos, 2007.
PRADO, Maria Lígia. O populismo na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1981.
RAGO FILHO, Antonio. A ideologia 1964: os gestores do capital atrófico. Tese
(Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1998.
RAMIREZ, Hernán Ramiro. Os institutos de estudos econômicos de organizações
empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil,
1961-1996. Tese (Doutorado em História), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.
___. Ditadura militar e sociedade: as reconstruções da memória. Ciclo de Palestras
Pensando 1964. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil. 1º de abril de 2004.
___. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45,
jan./jun.2010, pp. 171-186.
REIS, José Carlos. Anos 1960: Caio Prado Jr. e "A Revolução Brasileira". Revista
Brasileira de História, 19.37, 1999, pp. 245-277.
documentos e referências bibliográficas
303
REZENDE, Claudinei Cássio de. Suicídio revolucionário: a luta armada e a herança da
quimérica revolução em etapas. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da
TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
RODRIGUEZ, Octavio. La teoría del subdesarrollo de la CEPAL. 5 ed. México: Siglo
XXI, 1986.
ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento
guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
SALGUEIRO, Eduardo de Melo. Representatividade Impressa: terra e poder nas páginas da
Revista Brasil-Oeste. Anais do IV Congresso Internacional de História, Maringá, 2009. pp.
683-693.
Disponível
em
http://www.pph.uem.br/cih/anais/trabalho.php?tid=309,
consultado em 03 de abril de 2015.
SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São
Paulo: Cortez, 1986.
___. Da escola estatal burguesa à escola democrática e popular: considerações
historiográficas. In. LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval &
NASCIMENTO, Maria Isabel Moura (orgs.). A escola pública no Brasil: história e
historiografia. Campinas: Autores Associados, 2005, pp. 89-105.
___. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Caderno CEDES. vol. 28, n. 76,
2008, pp. 357-378.
SANTOS, Fabrícia Cristina de Sá. O Supremo Tribunal Federal e os processos de habeas
corpus (1964-69). Projeto História, São Paulo, (29) tomo 1, dez. 2004, pp. 325-335.
SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do regime militar. Caderno CEDES, v. 28, n.
76, 2008, pp. 291-312.
SCOCUGLIA, Afonso Celso; FARIAS, Dianatijacy S. & FAÇANHA, Sabrina Carla M.
Educação política: algumas considerações sobre a história educacional paraibana nos
primeiros anos de 1960. In: SAVIANI, Demerval & LOMBARDI, José Claudinei. Anais do
Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”
realizado de 30 de junho a 3 de julho de 2009, na UNICAMP. Disponível em
www.histedbr.fe.unicamp.br/acer.../seminario/seminario8/_.../uptr6S3.do..., consultado em
03 de abril de 2015.
SCOCUGLIA, Afonso Celso. Goulart e o Golpe de 1964: Por uma nova historiografia.
2007.
Disponível
em
http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Afonso_Celso_Scocuglia_artigo.
pdf, consultado em 03 de abril de 2015.
documentos e referências bibliográficas
304
SENNA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. Mito, memória e história: a historiografia
anticomunista no Brasil e no mundo. In: Demian Bezerra de Melo (org.). A miséria da
historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência,
2014, pp. 99-121.
SEREZA, Luiz Carlos. Entre criminosos e detetives: um estudo das representações da
revista X-9 de 1950 a 1960. 188 fls. Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pósgraduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2008.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 39-62.
SICSÚ, João; PAULA, Luiz Fernando & RENAUT, Michel. Por que um novo
desenvolvimentismo? Jornal dos Economistas, n. 186, janeiro de 2005, pp. 3-5.
SIGAL, Silvia & VERÓN, Eliseu. Perón o muerte: los fundamentos discursivos del
fenómeno peronista. Buenos Aires: Logus, s.d.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso
da ditadura militar no Brasil. Veritas. Porto Alegre, v. 53, n. 2, 2008, pp. 150-178.
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de história da cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
SONTANA, Edvaldo Correa. A paz sob suspeita: representações jornalísticas sobre a paz
mundial no início da Guerra Fria (1945-1953). Tese (Doutorado em História), UNESP,
Assis, 2010.
SOUZA, Edson Rezende. O ISEB: a Intelligentsia Brasileira a serviço do
nacionadesenvolvimentismo na década de 1950. Tempo, Espaço e Linguagem, v. 1, jan/jul,
2010, pp. 147-164.
THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa (3 vols.). São Paulo:
Paz e Terra, 1987.
___. Os românticos – a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977.
___. Crônica política sobre um documento contra a “ditabranda”. Sociologia e Política,
Curitiba, v. 17, n. 34, 2009, pp. 209-217.
VASCONCELOS, Cláudio Bezerra de. As análises da memória militar sobre a ditadura:
balanço e possibilidades. Estudos Históricos, v. 22, n. 43, jun. 2009. Disponível em
documentos e referências bibliográficas
305
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1545/1007, consultado em 03
de abril de 2015.
VILLA, Marco Antônio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2003.
WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Revista USP, n.
66, 2005, pp. 209-224.