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Revolução e utopia

2021

AGUINALDO RODRIGUES GOMES REVOLUÇÃO E UTOPIA: EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA EM AQUIDAUANA DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1985) CAMPINAS 2015 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO AGUINALDO RODRIGUES GOMES REVOLUÇÃO E UTOPIA: EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA EM AQUIDAUANA DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1985) Orientador(a): Prof. Dr. José Luís Sanfelice Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Educação, na área de concentração de Filosofia e História da Educação. ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO AGUINALDO RODRIGUES GOMES E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSÉ LUÍS SANFELICE Assinatura do Orientador CAMPINAS 2015 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação Rosemary Passos - CRB 8/5751 G585r Gomes, Aguinaldo Rodrigues, 1971GomRevolução e utopia : embates de um professor comunista em Aquidauana (1964-1985) / Aguinaldo Rodrigues Gomes. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. GomOrientador: José Luís Sanfelice. GomTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Gom1. Educação. 2. Comunismo. 3. Ditadura. I. Sanfelice, José Luis,1949-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título. Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Revolution and utopia : clashes of a communist teacher in Aquidauana (1964-1985) Palavraschave em inglês: Education Communism Military Dictatorship Área de concentração: Filosofia e História da Educação Titulação: Doutor em Educação Banca examinadora: José Luís Sanfelice [Orientador] Azilde Lina Andreotti Mara Regina Martins Jacomelli André Luiz Paulillo Carlos Martins Junior Data de defesa: 11-06-2015 Programa de Pós-Graduação: Educação Aos pais, José Rodrigues Gomes (in memoriam) e Maura Fonseca Rodrigues, trabalhadores dedicados e incansáveis que inspiram a minha luta por um futuro melhor. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a José Luís Sanfelice, por orientação humana e competente, pela atenção e gentileza mesmo nos momentos mais angustiantes, e por ter me permitido autonomia intelectual ao mesmo tempo em que apontava caminhos teóricos e metodológicos fundamentais para a conclusão da tese. À professora Mara Regina Martins Jacomelli, presença constante em minha formação desde meu ingresso no programa de pós-graduação, agradeço pelas contribuições dadas ao trabalho durante as disciplinas cursadas, e à professora Azilde Lina Adreotti, pelas contribuições valiosas no exame de qualificação que, espero, possam ser percebidas na tese, e pelo aceite em participarem, ambas, da defesa. Aos professores Carlos Martins Júnior e André Luiz Paulilo agradeço por aceitarem participar desta banca, pela leitura e pelas contribuições. Ao professor Eudes Fernando Leite, que inspirou com seus estudos e ainda pelo empréstimo de materiais valiosos para a confecção da tese. Agradeço aos colegas do Departamento de História CUR/UFMT que apoiaram e permitiram minha liberação parcial para elaboração da tese. Agradeço aos amigos que dividiram comigo seus afetos em terras paraenses, Magda Costa, Maria Betanha, Júlia, Frederico e Guilherme. Aos meus irmãos e minhas irmãs Júlio, Lucia, Aguimar, Maria de Lourdes e Luciane, que estiveram comigo em todos os momentos e compreenderam minhas ausências durante a elaboração da tese, obrigado. Aos meus queridos sobrinhos Jhonathan, Laura e Laís, que me ensinaram o significado do amor incondicional, também agradeço. Aos meus amigos André e Peterson, Sandra e Zé, Sandra e Eduardo, Cidinha e Emerson, Gilberto e Fabinho, que sempre me incentivaram e me aturaram falando da tal tese que nunca ficava pronta, obrigado pela paciência. Aos amigos de Aquidauana Iara, Edvaldo, Vera, João, Ana Paula Squinelo, Ana Paula Werri, Helen e Edelberto, Débora, agradeço pelo apoio e trocas acadêmicas. Ao Daniel Amorin, obrigado pela correção cuidadosa e competente. Aos meus queridos amigos Luciano, Toni e Robson que tornaram minha chegada em Rondonópolis mais leve e divertida. Agradeço ainda às funcionárias da biblioteca do campus de Aquidauana que, com gentileza e competência, me auxiliaram na localização de alguns dos materiais de pesquisa. Também aos funcionários da BPRAM (Ronaldo, Daniel, Odilson, José, Valmir), que me “aturaram” em seu espaço de trabalho durante a pesquisa e a feitura da tese. Agradeço aos meus amigos e amigas de todas as horas, Jorgetânia, Thaís, Marcos, Sandrinha, Luiz, Cida e Vanda, sem os quais a vida se tornaria mais difícil. Aos queridos amigos Miguel Rodrigues e Gleides Pamplona, que me ensinaram o valor da amizade e o sentido das palavras confiança e cumplicidade, obrigado por tudo! GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Revolução e Utopia: embates de um professor comunista em Aquidauana durante a ditadura militar (1964-1985). 2015, 294 fls. Tese (Doutorado em Filosofia e História da Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. RESUMO: Objetivamos na presente tese analisar os efeitos das transformações econômicas ocorridas na região centro-oeste do Brasil no período compreendido entre 1964 e 1985. No entanto, retrocedemos um pouco para compreender como as metas políticas de Vargas e Juscelino, responsáveis respectivamente pela Marcha para o Oeste e pela industrialização do país, influenciaram na constituição do golpe de 1964. Esclarecemos que, do ponto de vista teórico-metodológico, buscamos nos referenciar no marxismo heterodoxo, dialogando com autores como Hobsbawm, Thompson, Gramsci e Williams. A documentação central utilizada no trabalho trata-se de um inquérito policial militar (IPM), convertido em processo-crime instaurado contra o professor comunista Enio Cabral em 1964, mas foram utilizadas também outras fontes, tais como: a revista Brasil-Oeste, documentos do PCB e entrevistas do réu e do juiz do caso analisado. Procuramos compreender, por meio da pesquisa, o processo de modernização da região centro-oeste e seu imbricamento com o nacional-desenvolvimentismo e a Marcha para o Oeste, com intuito de compreender como esse conservadorismo no plano econômico e social influenciou também a política e a educação e produziu na região condições para a sustentação de regimes autoritários. Para tanto, primeiramente procuramos apresentar o sujeito da pesquisa, focalizando sua origem social, formação escolar e seus primeiros contatos com as ideias do PCB. Em seguida, buscamos esmiuçar a ideia de uma modernização conservadora a partir do diálogo com as fontes, principalmente a partir da revista Brasil-Oeste, e com a historiografia que discutiu o tema da ditadura na região sul do Mato Grosso. Posteriormente, apresentamos alguns aspectos da educação no contexto da ditadura, demonstrando como os professores foram alvo da perseguição dos militares, relacionando aos acontecimentos que se passaram na cidade de Aquidauana. Finalmente, buscamos visualizar como o Estado e seus representantes compreenderam de maneira contraditória as ações de Enio e dos demais comunistas daquele período a partir do debate travado entre acusação e defesa, entendendoos como uma disputa, não meramente jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios de sociedade, ou seja, entre capitalistas e socialistas. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Comunismo e Ditadura. GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Revolução e Utopia: embates de um professor comunista em Aquidauana durante a ditadura militar (1964-1985). 2015, 294 fls. Tese (Doutorado em Filosofia e História da Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. ABSTRACT: We aim in this thesis to analyze the effects of economic transformations in the Midwest region of Brazil, between the years 1964 to 1985. However, retreat a while in time to understand how the political objectives of Vargas and Juscelino, respectively responsible for the March far West and the industrialization of the country, influenced the constitution of the coup d’état of 1964. We clarify so, from the theoretical-methodological point of view, we seek reference to the authors of unorthodox Marxism, dialoguing with authors like Hobsbawm, Thompson, Gramsci and Williams. The central documentation used at work is a military police investigation (IPM), converted to process crime brought against the communist teacher Enio Cabral in 1964, but were also used other sources such as the Brazil-West Magazine (Revista Brasil-Oeste), PCB documents and interviews of the defendant and the Judge of the analyzed case. We tried to understand, through this research, the process of modernization of the Midwest and its interweaving with national developmentalism and the March far West, seeks to understand how this conservatism in economic and social plan also influenced the politics and education and produced in the region conditions for support of authoritarian regimes. Therefore, first we try to present the research subject, focusing on his social background, school education and his first contacts with the PCB ideas. Then, we seek to scrutinize the idea of a conservative modernization from the dialogue with the sources, mainly from Brazil-West magazine, and the historiography, which discussed the theme of dictatorship in southern Mato Grosso. After, we present some aspects of education in the context of dictatorship, demonstrating how the teachers were the object of persecution by the military, relating to the events that followed in Aquidauana city. Finally, we seek to visualize how the State and its representatives understood in contradictory ways the actions of Enio and other communists of that period from the locked debate between prosecution and defense, understanding them as a dispute, not merely legal, but between two contradictory projects of society, that is, between capitalists and socialists. KEYWORDS: Education, Communism, Military Dictatorship. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... A INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA............................................................................................. O CONTEXTO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA........................................................................................... CAPÍTULO I EMBATES DE UM PROFESSOR COMUNISTA CONTRA A DITADURA EM AQUIDAUANA........................................ ENIO CABRAL: SUJEITO HISTÓRICO, EXPERIÊNCIA E ATUAÇÃO POLÍTICA........................................................ AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA EM AQUIDAUANA: ENIO CABRAL, COMUNISTA E VEREADOR PELA UDN?........... ENIO CABRAL E SUA ATUAÇÃO NO MAGISTÉRIO..................................................................................... A QUESTÃO EDUCACIONAL NOS ESCRITOS DO PCB E DE INTELECTUAIS COMUNISTAS....................................... O ESTADO CONTRA ENIO CABRAL, “UM COMUNISTA UTÓPICO”................................................................ O MÊS DE ABRIL E OS IPMS CONTRA OS COMUNISTAS ............................................................................ AS DOMINGUEIRAS E A PARANOIA MILITAR........................................................................................... ENIO CABRAL E SEUS DETRATORES...................................................................................................... CAPÍTULO II A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA E O COMBATE À UTOPIA COMUNISTA NO CENTRO-OESTE BRASILEIRO........ A IMPRENSA E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO SUL DE MATO GROSSO............................................... A REVISTA BRASIL-OESTE................................................................................................................. A REVISTA BRASIL-OESTE E A DEFESA DO PROGRESSO EM MATO GROSSO.................................................... A IMPRENSA E O FAVORECIMENTO DAS ELITES EM MATO GROSSO............................................................. O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO E A PENETRAÇÃO DO CAPITAL ESTRANGEIRO NO GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK.................................................................................................................................. O COMBATE AO PENSAMENTO COMUNISTA NA BRASIL- OESTE.................................................................. DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA À INSTITUIÇÃO DO REGIME MILITAR E ALGUNS DE SEUS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO................................................................................................................................... CAPÍTULO III EDUCAÇÃO, HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA EM AQUIDAUANA NOS ANOS 1960........................................... HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL DOS 1960.............................................. AS ENTIDADES PATRONAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA...................................................................... A VISÃO EDUCACIONAL DO PCB – A CONSTRUÇÃO DA CONTRA-HEGEMONIA................................................. O PCB E A EDUCAÇÃO DO MILITANTE.................................................................................................. O ESPECTRO DA REVOLUÇÃO RONDA O BRASIL...................................................................................... O GRUPO DOS ONZE E A POSSIBILIDADE DE UMA REVOLUÇÃO ARMADA NO PAÍS............................................ ENIO CABRAL E SUA UTOPIA REVOLUCIONÁRIA...................................................................................... CAPÍTULO IV ENIO CABRAL E SEUS EMBATES COM OS APARELHOS REPRESSIVOS DO ESTADO........................................... 9 12 19 28 33 40 44 48 55 57 60 69 81 85 94 98 107 113 129 143 153 155 157 170 178 185 196 206 O PROCESSO-CRIME: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS.......................................................................... A DITADURA EM AQUIDAUANA: O EXÉRCITO BRASILEIRO CONTRA ENIO CABRAL............................................ O PODER JUDICIÁRIO E A RESISTÊNCIA À DITADURA................................................................................ DO PROCESSO CONTRA ENIO............................................................................................................. O ADVOGADO DE ENIO E SUAS RELAÇÕES COM A ELITE LOCAL.................................................................... O DELITOS IMPUTADOS AO RÉU......................................................................................................... O ESTADO CONTRA A AUTONOMIA DIDÁTICA DE ENIO.............................................................................. DAS ALEGAÇÕES DO JUIZ.................................................................................................................. O RECURSO DA PROMOTORIA E DECISÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.................................................. 214 218 224 230 233 239 254 261 271 276 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................................... 283 DOCUMENTOS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................ 293 Toda espécie de virtude tem a sua fonte no encontro que faz o pensamento em seu embate com uma matéria sem indulgência nem perfídia. Não se pode imaginar nada maior para o homem do que um destino que o coloque diretamente no embate com a necessidade nua, sem que tenha nada a esperar senão de si mesmo, e de tal forma que a sua vida seja uma perpétua criação de si mesmo por si mesmo. Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo. Simone Weil, Opressão e liberdade. introdução 10 introdução C omo já afirmou Marx (2006), os homens fazem sua história, mas não como querem, e sim conforme as condições e possibilidades a que estão submetidos em função da base material que os cerca. Creio que podemos nos apropriar dessa premissa para apresentar nossa trajetória de pesquisa, igualmente marcada pela categoria trabalho – processo pelo qual o homem se humaniza –, pois foi em função dela que tomei contato com os meus temas de pesquisa apresentados em forma de projeto de doutoramento à Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Iniciado o processo de investigação sobre um tema de pesquisa que fosse exequível e com documentação disponível para sua realização, recorri ao acervo da Base de Pesquisas Históricas e Culturais das Bacias dos Rios Aquidauana e Miranda – Unidade Técnica do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (BPRAM-UT/CPAQ/UFMS). No entanto, antes mesmo de examinar a documentação ali guardada, deparei-me com uma obra que modificou meu percurso de pesquisa e me sensibilizou para o tema da ditadura: Aquidauana: a baioneta, a toga e a utopia nos entremeios de uma pretensa revolução, do pesquisador Eudes Fernando Leite (2009). Ao lê-la, percebi que o autor fornecia diversas pistas de pesquisa, portanto decidi percorrer a trilha aberta por ele, porém com um novo enfoque, qual seja: entender o pensamento intelectual que serviu de base para a modernização conservadora do Mato Grosso no seio da ditadura militar e seus embates com os intelectuais comunistas que tentavam organizar o PCB na cidade de Aquidauana, além de compreender a atuação de um deles, o professor catedrático Enio Cabral, e sua influência no contexto educacional da cidade. introdução 11 A partir desse tema central, elegi as questões da pesquisa: compreender a construção de uma historiografia acerca da ditadura militar brasileira e as lacunas havidas sobre tal processo na região centro-oeste; analisar o nacional-desenvolvimentismo e sua modernização conservadora na região por meio da produção intelectual expressa na revista Brasil-Oeste; e investigar a atuação do PCB, notadamente a do professor catedrático de história Enio Cabral, a partir de um inquérito policial militar (IPM) que lhe foi impetrado. A pesquisa em questão se circunscreve à região centro-oeste, especialmente à cidade de Aquidauana nos anos 1960/70. Tomei conhecimento da notícia sobre a existência da coleção completa da revista na biblioteca do campus da UFMS em Aquidauana e a partir daí resolvi analisá-la, concentrando-me sobretudo no tema da modernização do estado do Mato Grosso, sua repercussão no apoio ao golpe civil-militar e ainda na organização do sistema educacional da região. Na pesquisa que realizei em fevereiro de 2014 na biblioteca da instituição, encontrei a coleção completa da revista, que abrange 123 edições, publicadas entre os anos de 1956 e 1967. Contudo, como meu interesse se centra, neste estudo, na década de 1960, registrei em arquivos digitais, por meio de recursos fotográficos, apenas as principais matérias do periódico, que versavam sobre a modernização, as críticas ao governo João Goulart e as informações sobre o contexto educacional. Esses ataques ao poder central se intensificaram no período do governo João Goulart, que antecedeu o golpe civil-militar ocorrido em abril de 1964. Este último fato é de suma importância para o estudo que ora desenvolvemos sobre a educação no período da ditadura militar no estado do Mato Grosso uno, no qual focalizamos particularmente o município de Aquidauana, onde se situa boa parte da documentação disponível para essa pesquisa, a saber: a coleção completa da revista Brasil-Oeste, processos-crime contra intelectuais comunistas disponíveis no Fórum do município de Aquidauana e documentos do Partido Comunista Brasileiro, organizados pelo historiador Edgard Carone em forma de livro, intitulado P.C.B. 1964 a 1982, e publicado pela Difel em 1982. Além disso, utilizamos algumas entrevistas, realizadas em 1993, cedidas pelo professor Dr. Eudes Fernandes Leite. 12 introdução A INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA Dentro dos limites dessa introdução, inicio por discutir a velha máxima positivista de que sem documentos não há história – o que não é inteiramente falso, contudo é preciso pensar que os documentos não são capazes de fazer perguntas a si mesmos; portanto, tão importantes quanto eles são as questões que o historiador constrói a partir deles. Podemos afirmar que o oficio do historiador está sempre atravessado pela dicotomia objetividade/subjetividade, verdade/mentira. Portando, proponho acima de tudo uma reflexão que extrapole a noção de fonte como suporte documental e que permita pensá-la em seu sentido político, ou seja, como a partir delas se estruturou uma interpretação oficial dos processos históricos que privilegiou alguns sujeitos e excluiu outros, sobretudo os trabalhadores e marginalizados. Assim, procuro aqui retomar o sentido político da história e, para isso, recorro à epistemologia marxista. Devemos confessar que tal proposta não é fácil, pois vivemos um tempo de revisionismo e anticomunismo, não só na sociedade, mas sobretudo no interior da academia, que perdeu seu caráter social e cada vez menos tem se dedicado aos problemas sociais que a cercam. As ciências, de maneira geral, se tornaram positivas, no pior sentido do termo – perderam seu sentido político-filosófico e voltaram a resolver problemas “práticos” e “filigranas”, abandonando as questões ontológicas que perturbam a humanidade. Como destacou Senna Júnior: Nas duas últimas décadas uma parte da “historiografia” sobre revoluções, movimentos sociais, partidos e organizações de esquerda sofreu um assédio revisionista que pretendeu deslocar o foco dos estudos antes situados no plano político e social para o terreno das subjetividades e da condenação moral. Imbuídos de um discurso que aspira reduzir a história das revoluções, homens, classes e partidos à história dos regimes que se ergueram e foram identificados como “comunistas”, tal “historiografia”, se assim se pode chamar o conjunto de escritos eivados de ideologia e memória surgido nas últimas décadas, travou uma batalha que, à maneira de uma cruzada, reivindicou a condenação dos envolvidos e responsáveis pelo “comunismo” pelo extermínio, genocídio e holocausto de populações em dimensões surpreendentemente superiores às atingidas pelo nazismo (SENNA Jr., 2014, p. 100). O autor, em seu texto intitulado Mito, memória e historiografia: a histografia anticomunista no Brasil e no mundo, afirma que, em que se pese o fato de Marx e Engels 13 introdução estarem entre os autores mais publicados do mundo, a historiografia contemporânea bebe na fonte de um antimarxismo marcante no plano nacional e internacional, tanto em meios midiáticos quanto intelectuais. Os acontecimentos históricos do século XX, como a segunda guerra mundial, a guerra fria, a queda do muro de Berlim, são evocados na memória de certos intelectuais na tentativa de resumi-los como experiências motivadas pela disputa entre capitalistas e comunistas, que foram derrotados e ficaram pelo caminho. A maioria delas foi considerada obra de ditadores do século XX e tachada de totalitária e totalitarista. Embora em alguns casos não discordemos disso, é preciso ressaltar que o principal objetivo dessa historiografia é colocar no mesmo “balaio” experiências históricas diferentes, a exemplo do nazismo, do fascismo e do socialismo. Demian Melo (2014), em seu artigo Revisão e revisionismo na historiografia contemporânea, tece duras críticas à visão de historiadores revisionistas que buscam desqualificar o conceito de revolução e a própria teoria marxista, apontada como responsável pela instauração das experiências totalitárias, desde a Revolução Francesa até a Revolução de 1917. Suas críticas se direcionam a historiadores clássicos, como François Furet e Hannah Arendt, que, segundo o autor, ao proporem uma revisão do conceito de revolução, acabam por estabelecer uma apologia de sua perspectiva liberal. Furet, considerado o maior especialista da Revolução Francesa pela mídia e pela academia, comandou uma espécie de “manifesto” dessa ofensiva revisionista sobre 1789. O historiador busca fazer uma operação de desconstrução de obras importantes sobre o tema, como as de Georges Lefevre e Albert Soboul, que “foram reduzidas a uma ‘linear’ leitura ‘marxista-leninista’, que alegadamente olharia 1789 como prenúncio de 1917, numa espécie de esquema teleológico simplista que Furet denomina de ‘catecismo revolucionário’” (Melo, 2014, p. 21). O propósito de Demian é criticar a tese que percorre a obra de Furet, que objetiva defender o inevitável caráter liberal dos acontecimentos de 1789, como se observa: Sua mais famosa tese, a de que o período jacobino (1793-1794) da Revolução foi uma “derrapagem”, já havia sido enunciada por Furet em seu livro de 1965/1966 com Denis Richet La Revolution Française, e denota uma concepção teleológica segundo a qual o processo histórico francês deveria se dirigir, inevitavelmente, para a democracia e o capitalismo, tendo a revolução, especialmente o período jacobino (17931794), atrapalhado esse curso – daí sua ideia de “derrapagem”. (...) O 14 introdução propósito do revisionismo de Furet era a desqualificação do próprio conceito de “revolução” (MELO, 2014, p. 21). Sobre o propósito da tese de François Furet, Melo (2014) assim se pronuncia: (...) não há dúvida que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer como “desinteressada” e “não ideológica”, se dirigiu ao que chamou de “vulgata lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto, ideologicamente contra a esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar, François Furet também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de vista dos que queriam exorcizar o fantasma da revolução, desconstruindo e ressignificando a reflexão histórica das revoluções mais paradigmáticas do mundo contemporâneo (MELO, 2104, p. 23). As críticas de Melo também se dirigem à obra de Hannah Arendt, especificamente Da revolução (1960) e As origens do totalitarismo (1951), nas quais a filósofa alemã também faz uma clara defesa da perspectiva liberal do conceito de revolução. Como aponta Melo: Em sua resenha arrasadora a este livro de Arendt, Eric Hobsbawm apontou o caráter conservador da tese da filósofa alemã radicada nos EUA, que pressupunha que a ruína de todas as revoluções decorria dos momentos em que esta enfrentava a “questão social”, em suma, com o problema da propriedade, anunciando aquilo que na lavra de Furet consistiria na questão da “derrapagem”. Desde os anos 1950, Arendt já havia tido um papel importante na leitura liberal do século XX calcado no conceito de totalitarismo, presente em seu livro The Origins of Totalitarianism (1951). Tal conceito será fundamental não só para o discurso imperialista estadunidense através da proposição de uma analogia entre fascismo e o regime stalinista da URSS, típica da Guerra Fria, mas também na operação revisionista em tela, ao sugerir a ideia de que movimentos de massa anticapitalistas constituem-se celeiro para experiências totalitárias (MELO, 2014, p. 24). Há um cunho bizarro nessa historiografia que busca enfatizar os dados sobre tiranos, mortos, feridos e incapacitados, tomando a parte pelo todo e, portanto, construindo uma análise parcial desses acontecimentos, numa tentativa clara de desqualificar as ações motivadas pela teoria marxista. Senna Júnior (2014) chama a atenção para o caráter internacional do movimento historiográfico anticomunista de postura raivosa: 15 introdução Apresenta-se como uma verdadeira cruzada mundial pela instauração de um Tribunal de Nuremberg para os regimes “comunistas” desde a URSS, até a China, passando pelo Leste Europeu, Vietnã, Camboja, Coreia do Norte e Cuba. Seu livro mais importante, uma espécie de Bíblia e manifesto desses modernos cruzados, é o Livro negro do comunismo e seu sucedâneo, Cortar o mal pela raiz!, ambos dirigidos por Stéphane Courtois, historiador francês do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e diretor da revista Communisme (SENNA Jr., 2014, pp. 101-102). O autor destaca ainda que tal processo não se limita ao contexto internacional; alguns historiadores brasileiros parecem ter se contaminado por esse anticomunismo latente de inspiração pós-moderna. Afirma ele: No plano nacional, embora mais sutil e sem os compromissos políticos e ideológicos assumidos pela vertente dos cruzados europeus, a obra seminal é Prisioneiros do mito, do professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jorge Ferreira. Neste caso, sem pretender uma condenação moral dos comunistas e nem muito menos esperar por uma efetiva reparação dos crimes cometidos por seus partidários, Ferreira flerta com o anticomunismo internacional ao pretender uma abordagem que ignora o fenômeno de incontestável caráter político e social. Não raras vezes, opta por citar historiadores vinculados ao Livro Negro do Comunismo, quando há alternativas ao alcance das mãos, faz opções metodológicas duvidosas, toma citações descontextualizadas e memorialistas ressentidos para construir seu argumento em boa parte escorado em ilusões que confundem aparência com essência e trazem ao primeiro plano da obra historiográfica sua dimensão de memória e seu vínculo com a ideologia anticomunista atualmente em voga (SENNA Jr., 2014, p. 102). Senna Júnior argumenta que a historiografia anticomunista que tem ganhado força na atualidade se baseia em procedimentos autoconfirmadores, que ocultam suas fontes e premissas. Constata, assim, que há uma contradição entre as evidências e as interpretações desses pensadores no que se refere às leituras feitas sobre temas como a Revolução Russa e demais experiências comunistas. Analisando as obras de historiadores como François Furet, ele aponta que alguns contrariam os ensinamentos de E. P. Thompson, para quem “o discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica, do outro” (Senna Jr., 2014, p. 111). Apoiando-se nas palavras de Thompson para tecer sua 16 introdução crítica aos anticomunistas que tratam o socialismo e o nazismo da mesma forma, o historiador afirma que Desta forma, “descobrimos” que comunismo e nazismo se equivalem na prática da banalização da maldade; que o procedimento de racialização dos nazistas se assemelha à evocação da luta de classes na historiografia marxista; que os campos de concentração na experiência alemã e soviética são dimensões de uma mesma realidade totalitária; que a fome da Guerra Civil Russa, que a fome de 1921 a 1923, que a fome ucraniana dos anos 1930 foram, todas elas, provocadas por decisões da alta cúpula soviética e que Hitler, no final das contas, foi a resposta possível do ocidente ao totalitarismo bolchevista sonhado por Lenin! (SENNA Jr., 2014, pp. 111112). Senna Júnior destaca ainda que para a nova historiografia (pós-moderna), o anticomunismo serviu ainda como um álibi para as maiores atrocidades cometidas pelos líderes capitalistas do ocidente: A lista poderia crescer e se tornar interminável, porque se poderia justificar o macarthismo nos Estados Unidos, o apartheid na África do Sul, todos os golpes de estado que promoveram ditaduras de décadas na América Latina, o Plano Cohen e o Estado Novo no Brasil, a Ditadura Militar de 21 anos entre nós, Salazar, Caetanto, Franco, Antonescu, Pinochet, Videla, Trujillo, Papa Doc, Baby Doc etc. etc. etc. Tudo teria uma justificativa aceitável, desde que fosse uma forma de evitar a implantação do comunismo no mundo (SENNA Jr., 2014, p. 112). Apesar de todas as críticas enumeradas, é preciso afirmar que não concordamos com elas e que a inspiração metodológica deste trabalho se encontra na epistemologia do materialismo histórico dialético, que busca compreender a realidade a partir de sua relação com a base material da sociedade que interaciona com a produção das ideias e ideologias no campo social. Recorremos, portanto, à produção marxiana e, de maneira especial, aos escritos do filósofo italiano Antônio Gramsci, que em sua obra Os intelectuais e a organização da cultura, aponta para a importância dos intelectuais tradicionais e/ou orgânicos na defesa de projetos de determinados grupos sociais. 17 introdução Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc. Deve-se anotar o fato de que o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas ainda em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um organizador de massa de homens: deve ser um organizador da “confiança” dos que investem em sua fábrica, dos compradores de sua mercadoria, etc.) (GRAMSCI, 1978, p. 176). As contribuições de Antônio Gramsci vão além de demonstrar a centralidade dos intelectuais orgânicos na organização da cultura e da sociedade, elas permitem justificar o porquê da escolha da Brasil-Oeste como fonte pesquisa. O autor destaca que uma publicação tem importância não só devido ao conteúdo que veicula, mas também por suas características formais, conforme destaca: Tem grande importância o aspecto exterior de uma revista, tanto comercial como “ideologicamente”, para assegurar fidelidade e afeição; na realidade, neste caso, é difícil distinguir o fato comercial do ideológico... Por certo, o elemento fundamental para a sorte de um periódico é (...) o fato de que satisfaça ou não determinadas necessidades intelectuais, políticas. Mas seria um grande erro crer que este seja o único elemento, notadamente, que este seja válido tomado “isoladamente” (GRAMSCI, 1978, p. 178-179). Para pensarmos a história de Enio Cabral, o professor de história comunista que viu sua vida pessoal atravessada por um fenômeno político de grande vulto na história brasileira, poderíamos escolher várias perspectivas metodológicas, a exemplo dos pesquisadores da história cultural, como os italianos Carlo Ginsburg e Gionvani Levi 1. No 1 O movimento metodológico denominado micro-história surgiu na Itália, nos anos 1970 a partir da obra dos historiadores Carlo Ginzburg, Gionvani Levi e Jacques Revel. Em síntese, pode-se afirmar que a microhistória consiste na redução da escala na análise da “realidade social”, permitindo que as experiências individuais ganhem relevo em sua relação com o global. A micro-história desponta como uma forma de enfrentamento às abordagens econômicas, estruturalistas e, principalmente, ao marxismo. Vejamos o que os próprios autores afirmavam a respeito da perspectiva historiográfica defendia por eles: Carlo Ginzburg afirmou: “A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro 18 introdução entanto, como me situo no campo do materialismo histórico, recorro à obra Tempos interessantes, de Eric Hobsbawm. Na referida obra, o autor justifica os motivos pelos quais resolveu escrever uma autobiografia. Primeiramente, afirma que não se considera uma personalidade/celebridade, cujas biografias ocupavam os espaços das livrarias londrinas. Também diz não ter escrito tal obra como uma viagem em torno de seu ego e que não se compara a Santo Agostinho e Rousseau para merecer uma ego-história. Hobsbawm também afirma que não pretendeu escrever uma apologia da vida e que a autobiografia de um intelectual deve tratar das ideias, ações e atitudes, sem ser uma peça de advocacia, autodefesa. Apesar de suas considerações sobre a relutância de produzir uma autobiografia, ele nos fornece uma bela justificativa para se escrever a história de uma pessoa comum ao afirmar: “o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua época e a interpretação das duas coisas ajudaram de maneira mais profunda a dar forma a uma análise histórica que, espero, a tenha tornado independente de ambas” (HOBSBAWM, p. 11). É nessa perspectiva que buscaremos entender a trajetória de Enio Cabral e sua experiência como sujeito histórico, professor e militante comunista, atravessada pela conjuntura econômica, política e social. Como apontou Hobsbawm, pretendemos fazer aqui Não a história do mundo ilustrada pelas experiências de um indivíduo, mas história do mundo dando forma a essa experiência, ou melhor, oferecendo uma gama de escolhas cambiantes, mas sempre limitadas, com as quais, adaptando a frase de Karl Marx, “os homens fazem [suas vidas], mas não [as] fazem como desejam, não [as] fazem nas circunstâncias escolhidas por eles, e sim nas circunstâncias diretamente encontradas, proporcionadas e transmitidas pelo passado”; poder-se-ia acrescentar: e pelo mundo à volta delas (HOBSBAWM, 2002, p. 11). lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula” (GINSBURG, 1989. pp. 177-178). Para Levi, “a micro-história é essencialmente uma prática historiográfica em que suas referências teóricas são variadas e, em certo sentido, ecléticas. O método está de fato relacionado em primeiro lugar, e antes de mais nada, aos procedimentos reais, detalhados que constituem o trabalho do historiador, e assim, a micro-história não pode ser definida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo” (LEVI, 1992. p. 133). De acordo com Jaques Revel: “Variar a escala de observação não significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e trama” (REVEL, 1998, pp. 1617). 19 introdução As palavras de Hobsbawm nos levam a pensar a história de Enio Cabral relacionando-a à experiência da classe a que pertenceu e pela qual lutou durante toda a sua vida. Sobre a constituição da classe, diz Thompson: A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais (THOMPSON, 1987, p. 10). É importante deixar claro que utilizamos aqui a palavra “classe” e não “classes”, pois partilhamos da perspectiva de E. P. Thompson, que na obra A formação da classe operária inglesa – a árvore da liberdade, tomo I afirma que a classe não surge num dado momento da história, ela se constitui a partir da coesão entre experiências comuns a certos indivíduos, que se opõem às de outros, com interesses antagônicos aos seus. Trata-se, portanto, de um processo histórico, e não de um fenômeno que a sociologia de cunho positivista facilmente explica. O CONTEXTO E A PROBLEMÁTICA DE PESQUISA A ascensão de João Goulart ao poder, com sua proposta de reforma de bases, animou os militantes de esquerda, principalmente os sindicalistas e comunistas, a intensificar as ações de mobilização e organização dos trabalhadores para os mesmos poderem garantir seus direitos perante a nova conjuntura política do país. Tido como herdeiro, até certo ponto, da política trabalhista/nacionalista de Getúlio, e impulsionado pelo apoio popular que julgava ter, Jango acreditou que poderia finalmente realizar a reforma agrária e outras que pudessem modificar a estrutura econômica, que se encontrava em declínio em 1964. A elite brasileira via com temor a movimentação política do novo governante, que no plano interno prometia uma inclusão das classes menos abastadas por 20 introdução meio de suas políticas, e no plano externo parecia se aproximar das grandes potências comunistas. Em Mato Grosso, principalmente em Aquidauana, esse temor era ainda maior, pois a elite local, assentada na tradição ruralista e coronelista que constituiu e ainda constitui a identidade do estado, mostrava-se bastante preocupada com a possibilidade de melhoria nas condições de trabalho de seus empregados, pois isso atingiria certamente a estrutura econômica organizada e o lucro obtido pelos fazendeiros e comerciantes mato-grossenses. A tradição mandonista e coronelista, que foi travestida de identidade local no então estado do Mato Grosso, é discutida pela historiadora Iara Quelho de Castro na dissertação de mestrado defendida em 2002 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, intitulada Vigiar e construir a história: memórias, esquecimentos, comemorações e historiografia nas representações sobre Aquidauana. Na referida obra a autora nos fornece, por meio da discussão sobre a memória da cidade, um riquíssimo quadro de como as relações políticas locais afastam não só materialmente, mas também memorialisticamente, os excluídos (trabalhadores, mulheres, indígenas, comunistas, homossexuais) de sua identidade. Como afirma ela: A perspectiva identitária engendra a produção de representações seletivas e parcelares. Em Aquidauana, as práticas memoriais e historiográficas indicam que os índios, homens e mulheres, trabalhadores pobres, negros, homossexuais, prostitutas e outros grupos não são visualizados na conformação da cidade. Constitui-se uma história fragmentada, na medida em que, ao se interditar o direito à memória e à história àqueles segmentos, se oferece uma visão homogeneizadora da sociedade. A exclusão de outras memórias e a interdição de outras expressões e experiências, desqualificando-as, dificulta a viabilização de qualquer projeto que não seja orientado por ideias e valores dos grupos tradicionais (CASTRO, 2002, p. 59). Como se depreende das palavras da autora, a memória social de Aquidauana é construída na perspectiva tradicional do positivismo, que procura eleger os grandes heróis e momentos celebrativos da história como forma de silenciar os sujeitos que se encontram fora e em oposição à ordem vigente. Nesse sentido, o trabalho procura questionar essa história construída a partir de cima, filiando-se à perspectiva metodológica dos historiadores marxistas, sobretudo Thompson (1966) e Jim Sharpe (1992), de uma história 21 introdução vista de baixo, ou seja, que procurou, a partir do questionamento das práticas memorialistas e cívicas, demonstrar as estratégias de exclusão empregadas para tornar invisíveis os outros sujeitos da história, bem como suas formas de resistência. No que tange ao processo festivo de reconstrução da memória pela elite de Aquidauana, construída em torno dos coronéis fundadores e de seus herdeiros, Castro destaca: O convite à reafirmação de uma identidade local e o apelo às sensibilidades garantem a sensação de se compartilhar um passado comum. Esse tempo pretérito é reconstruído a partir das ações dos fundadores como os alicerces da história local. O sentimento de pertencimento torna-se o fundamento das memorações, lapidar pelos significados implícitos: não é o estatuto histórico que está sendo evocado para se falar da cidade, a sensibilidade, ideia de terra natal, poderoso instrumento na conquista das almas aquidauanenses. Sob essa percepção, Aquidauana transforma-se em um modelo para Mato Grosso, empreendimento realizado por uma gente audaz que desafia a natureza selvagem e implanta um império pecuário, obra dos fazendeiros fundadores e de seus continuadores em uma grande jornada identitária (CASTRO, 2002, pp. 62-63). Como mostra Castro, a cidade e as memórias de Aquidauana foram construídas a partir de cima, privilegiando os feitos dos coronéis, que aqui respondiam, de certa forma, também pelo Estado. Era assim que os “donos do poder”, para lembrar a expressão de Raimundo Faoro, decidiam o que seria feito, dito e mesmo lembrado pelos cidadãos. Nesse contexto, a educação era uma das principais formas de incutir nas novas gerações a velha tradição mandonista. No entanto, sabemos que a história é dialética e também cheia de contradições, como revela Lukács: “A contradição se revela como princípio do ser precisamente porque é possível apreendê-la na realidade enquanto base de processos também desse tipo” (1979, p. 22). Para explicar a dinâmica desses conflitos, estabelecerei um recorte espacial – o município de Aquidauana – e recorrerei a um caso bastante especifico: um inquérito policial militar movido contra um professor de história que intentava organizar o partido comunista na cidade de Aquidauana. Situada a 554 quilômetros da capital e a 181 metros acima do nível do mar, com uma extensão territorial de 22.900 km², Aquidauana possui um clima tropical úmido, o que permite uma divisão entre os períodos de cheia e seca bem delimitados. A formação do 22 introdução núcleo de povoamento que dá origem à cidade ocorreu em função da dificuldade que os fazendeiros da região de Miranda encontravam para se comunicar com os que habitavam a região posterior ao rio Aquidauana, sobretudo nos períodos de cheia. Nesse sentido, a criação de novo núcleo de habitação localizado em terras mais elevadas permitiria que esses moradores pudessem escapar das costumeiras enchentes do Pantanal mato-grossense. Assim, os fazendeiros de Miranda acabaram por se constituir nos primeiros povoadores da região. A região de Aquidauana, em função de suas condições geográficas, sempre favoreceu a agricultura de subsistência e a pecuária e, além disso, deslocou o entreposto comercial que até então se encontrava em Miranda. O que atraía a princípio os fazendeiros para aquela região era o fato que seria possível modificar as formas de locomoção, feitas por vias fluviais em direção a Corumbá, para um deslocamento por terra em direção à região onde se situa hoje a cidade de Campo Grande. A cidade foi erguida, portanto, próxima às ruinas de Santiago de Xerez, antiga cidade fundada em 1579 pelo espanhol Ruy Diaz de Malgarejo, a 180 metros da confluência dos rios Miranda e Mbotetein, hoje Aquidauana. Sua fundação é descrita assim: Sob copado arvoredo, à margem direita do rio, no ponto em que está hoje situada a Igreja da padroeira local, reuniram-se cerca de 40 cidadãos, sendo escolhidos para a comissão diretora os Senhores Major Theodoro Rondon, Coroneis João D’Almeida Castro, Augusto Mascarenhas, Estevão Alves Correa e Manoel Antônio Barros. Nessa reunião foi adotado o nome de Aquidauana para o novo centro de população, sob a invocação de Nossa Senhora da conceição (IBGE, 1960). No documento encontramos ainda a menção a uma ata lavrada em manta de couro que registraria o ato de fundação da cidade, cujos primeiros ranchos foram construídos sob a coordenação dos senhores major Theodoro da Silva Rondon e coronel João D´Almeida Castro. A historiadora Joana Neves, uma das pioneiras nos estudos sobre a cidade, faz menção ao texto da ata. Segundo ela: Este texto existe reproduzido em dois documentos; ambos estão ainda em bom estado e perfeitamente legíveis. Um deles é a lápis, pertence ao Sr. Enio Cabral e é considerado um rascunho da “ATA”: Neste documento faltam os nomes das pessoas presentes à reunião da qual resultou a fundação da cidade. O documento tornou-se do nosso conhecimento em Agosto de 1971, quando seu possuidor o emprestou para uma exposição histórica comemorativa do aniversário da cidade. O outro texto foi doado pelo seu possuidor, Sr. Antônio Pace, à Secção de Obras Raras da 23 introdução Biblioteca do C.P.A. Trata-se de uma folha de papel almaço, escrita em três páginas, à tinta. A caligrafia é a mesma (ou muito semelhante) à do “rascunho”, bem como o texto, acrescido dos nomes dos presentes à reunião de fundação (NEVES, 1973, p. 1681). Em 1906 o povoado é elevado à categoria de município e posteriormente, em 1918, à condição de cidade. De acordo com a historiadora Joana Neves (a citação reproduz a grafia original do texto, conforme registra a autora): Surgindo assim, planejadamente, para atender a propósitos determinados e não ao acaso como a maioria das nossas cidades, Aquidauna tem a peculiaridade de ter tido sua história registrada, por escrito, desde o início. Os primeiros moradores, e idealizadores da cidade, constituiram-se numa Sociedade para organiza-la e essa sociedade documentou-se fartamente. Esses documentos preservados quer pelas instituições públicas como, e principalmente, pelas famílias dos antigos moradores, constituem-se, atualmente, num ótimo material de pesquisa historiográfica (NEVES, 1973, p. 1678). A reconstituição da história de Aquidauana já não é uma tarefa tão simples, como assinala Joana Neves, pois os documentos citados por ela simplesmente desapareceram da biblioteca do Centro Pedagógico de Aquidauana, hoje campus de Aquidauana, portanto não podemos comprovar nenhum dos dados indicados nos referidos documentos. Nesse sentido, temos que lidar com as obras de memorialistas ou fontes secundárias, como a obra de Joana Neves, que nos permitem tomar contato com as informações históricas acerca do processo de formação da cidade. A autora aponta que a urbanização da cidade no início do século XX se deu a partir da concretização da estrada de ferro que ligaria a região do Mato Grosso à zona cafeeira do oeste paulista. Dessa forma, em 1912 a estrada havia chegado a Aquidauana, integrando-a, de forma praticamente definitiva, ao contexto econômico paulista, nas palavras de Neves (2007). Apesar de a estrada de ferro Noroeste do Brasil ter permitido que a cidade tenha se tornado um novo polo distribuidor de mercadorias por vias terrestres, tirando assim a predominância de Corumbá nesse processo, ela continuou sendo uma grande exportadora de gado de corte. A chegada da estrada de ferro permitiu que a cidade desenvolvesse sua urbanização a partir da década de 1950, tornando-se uma das cidades mais prósperas e com maior introdução 24 crescimento nesse período. Assim se referia a ela Virgílio Correa: “Aquidauana, cognominada ‘Princesa do Sul’, possui ruas bem cuidadas, pavimentação moderna (com lajotas de cimento rejuntadas com betume), prédios modernos e serviço telefônico automático” (CORREA, 1958, p. 65). Ainda segundo Correa, Aquidauana foi a primeira cidade mato-grossese a instalar serviços telefônicos automáticos, uma iniciativa particular que mereceu a melhor acolhida dos seus munícipes, inaugurado com 230 aparelhos em pleno funcionamento (CORREA, 1958, p. 66). Como se pôde observar, a cidade de Aquidauana teve um desenvolvimento acelerado a partir da chegada da ferrovia e tornou-se a cidade mais desenvolvida do sul do antigo Mato Grosso. No entanto, em 1917, após a transferência das oficinas para Três Lagoas, a cidade declinou como centro ferroviário. De acordo com o censo de 2010, conta com uma população de 45.623 mil habitantes (ou 1,86% do total estadual) e cerca de 2,69 habitantes por quilômetro quadrado. Por ser fronteiriça, é povoada por inúmeros descendentes de espanhóis, paraguaios, bolivianos, paulistas, portugueses e sírio-libaneses, além de indígenas, que vivem principalmente nas reservas dos Terenas, índios nativos da região. Atualmente a cidade conseguiu diversificar um pouco suas atividades comerciais, que migraram, em parte, da agricultura e pecuária de leite para outras indústrias, tais como: indústria extrativa, frigorífico (abate de bovinos), beneficiamento e fábrica de laticínios, siderúrgica, madeireira, mecânica, fábrica de massas e biscoitos e usina de compostagem de resíduos sólidos. Outro ponto econômico a ser ressaltado é seu potencial turístico, uma vez que possui vários recursos naturais e pontos turísticos, como rios e cachoeiras, que permitem a dinamização da economia. Como visto, a cidade nasceu sob o signo do mandonismo coronelista, e isso com certeza influenciou a cultura política local. Assim, em que se pese ser essa a tônica política de Aquidauana na década de 1960, isso não impediu que ocorressem resistências de alguns grupos locais, a exemplo dos militantes comunistas que questionavam a estrutura econômico-social da cidade e buscavam transformar sua realidade com base na inspiração marxista. Enio Cabral foi um desses importantes sujeitos políticos que ousou desafiar o poder dos coronéis e do Estado militar, utilizando-se principalmente de sua condição docente para 25 introdução divulgar as ideias comunistas e a possibilidade de uma sociedade mais igualitária; por esse motivo, juntamente com outros integrantes do PCB, teve que enfrentar a repressão militar. Foi essa, então, a tônica empreendida na modernização do Brasil, principalmente na região centro-oeste – o que sustentou a intervenção estatal foi a velha e conhecida aliança com as oligarquias locais, também adeptas do mandonismo e da subordinação das classes menos favorecidas. Consideramos então que o desenvolvimento brasileiro, sobretudo nessa região, se deu pelo viés da modernização conservadora. Embora tenhamos consciência do amplo espectro que recobre o termo “modernização conservadora”, utilizado por diversos autores em diferentes períodos históricos, emprego-o aqui como uma categoria de análise no sentido atribuído por Murilo José de Souza Pires em sua tese de doutoramento intitulada As implicações do processo de modernização conservadora na estrutura e nas atividades agropecuárias da região centrosul de Goiás (2008) e por Carlos Nelson Coutinho em O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas (2007). Para Pires, O termo modernização conservadora tem uma fundamentação sociopolítica com implicações econômicas, uma vez que expressa a articulação conservadora tecida entre as elites dominantes para controlar o centro de decisão político do Estado sem causar profundas rupturas com o antigo regime. Desta forma, as sociedades que nascem deste pacto conservador alicerçam-se em regimes capitalistas autocráticos e totalitários (PIRES, 2008, p. 1). Coutinho refere-se à modernização conservadora a partir do pensamento de Lenin, que considera a “via prussiana” um tipo de transição ao capitalismo que conserva elementos da velha ordem e, nessa medida, tem como pressuposto e como resultado um grande fortalecimento do poder do Estado. Coutinho, para a formulação de sua crítica ao processo de modernização do Brasil, baseia-se ainda no pensamento de Gramsci, que compreende isso como “revolução passiva”: um processo de transformação em que ocorre uma conciliação entre as frações modernas e atrasadas das classes dominantes, com a explícita tentativa de excluir as camadas populares de uma participação mais ampla em tais processos (COUTINHO, 2007, 174). Ainda segundo esse autor, o termo modernização conservadora tem sido mais aceito nos meios acadêmicos, conforme preconizado por Barriton Moore Jr., que embora não cite nem Lenin nem Gramsci, distingue os dois introdução 26 caminhos valendo-se de determinações análogas àquelas apontadas pelos dois marxistas – entre outras, a conservação de várias características da propriedade fundiária pré-capitalista e, consequentemente, do poder dos latifundiários, o que resulta do fato de que a moderna burguesia industrial prefere se conciliar com o atraso a aliar-se às classes populares (COUTINHO, 2007, p. 175). A partir do caso de Enio Cabral, buscamos defender algumas ideias no decorrer de nossa tese: primeiramente, demonstrar que a historiografia acerca do período da ditadura civil-militar brasileira produziu reflexões muito centradas no eixo Rio-São Paulo, favorecendo assim a ideia de que as ações ditatoriais não ocorreram nas demais regiões, principalmente nos interiores do país. Ao lado de tal ideia, é preciso frisar que essa historiografia foi muitas vezes marcada por visões dicotômicas: de um lado a visão de direita, de que houve uma revolução em favor da democracia, defendida pelos intelectuais ligados aos militares; de outro, a visão de esquerda, marcada principalmente pela opinião do PCB, de que foi um golpe de grandes proporções que se insurgiu contra as forças progressistas do país e que atingiu a sociedade como um todo. É preciso frisar que não discordamos da visão de esquerda do PCB, no entanto entendemos que tal historiografia deu pouca atenção ao cotidiano da ditadura militar, o que os impediu de visualizar que muitos indivíduos não foram nada revolucionários e passaram incólumes por esse processo ditatorial, seja em função do apoio direto ao regime, da alienação ou mesmo do medo que as ações repressivas exerciam sobre a população. Tal fato levou certa historiografia (ingênua) e a população em geral a afirmar diversas vezes frases como estas sobre o período ditatorial: “aqui não aconteceu nada disso”, ou “na época da ditadura tudo era melhor” etc. Essas afirmações são motivadas pelo que expressamos acima e, principalmente, pelo medo que os militares impuseram sobre a maioria da população, fazendo assim com que a mesma silenciasse sobre o processo, a ponto de introjetar a memória positiva que os militares buscaram construir sobre o período. Nesse sentido, ela suplantou as diversas histórias de tortura, repressão e silenciamentos que ocorreram em diversos rincões brasileiros, a exemplo de Aquidauana. Portanto, a tese que defendemos é a de que o processo de modernização da região centro-oeste, consequência do nacional-desenvolvimentismo e da Marcha para o Oeste, condicionou também a política e a educação e produziu na região condições para a introdução 27 instauração de regimes autoritários que se insurgiram contra a ideia de uma revolução brasileira, capaz de retirar o país de seu atraso econômico, social e político e permitir a constituição de uma sociedade mais progressista. Para sustentar tal tese, me apoio em um inquérito policial militar e em um processo criminal que levaram à perseguição do educador comunista Enio Cabral, que buscou resistir a esse modelo de sociedade e procurou, por meio da educação, conscientizar seus alunos para a possibilidade de uma sociedade mais progressista através de seus embates constantes com o meio conservador em que vivia. É, portanto, sobre esse processo histórico que nos debruçaremos nesta pesquisa, assim organizada: No primeiro capítulo apresento, a partir de um inquérito policial militar e de um processo criminal, o sujeito central deste trabalho, Enio Cabral, e a perseguição que sofreu como educador comunista ao resistir ao modelo de sociedade dominante. Buscamos ainda, a partir dos documentos do PCB, discutir como Enio buscou outra proposta de sociedade, estruturada a partir da ideia de uma revolução brasileira, capaz retirar o país de seu atraso econômico, social e político e permitir a constituição de uma sociedade mais progressista. Aponto também o papel da educação nesse processo e os erros táticos cometidos pelo partido em decorrência de uma tentativa de transposição mecânica da teoria marxista para a conjuntura brasileira. No segundo capítulo tratarei do processo de modernização da região centro-oeste como uma consequência do nacional-desenvolvimentismo e da Marcha para o Oeste, com o intuito de demonstrar como o conservadorismo no plano econômico e social condicionou também a política e a educação e produziu na região condições para instauração de regimes autoritários. Já no terceiro capítulo apresento um panorama da educação na década de 1960, procurando demonstrar como a perseguição aos professores durante a ditadura militar foi intensa, inclusive nas cidades interioranas, como Aquidauana. No quarto capítulo procuro visualizar como o Estado e seus representantes compreenderam de maneira contraditória as ações de Enio e dos demais comunistas daquele período a partir do debate travado entre acusação e defesa, entendendo-o como uma disputa, não meramente jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios de sociedade, ou seja, entre capitalistas e socialistas. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana O 29 processo de modernização do centro-oeste brasileiro, especialmente do estado de Mato Grosso, foi pautado pelo desenvolvimento do capitalismo, agregando-se capital estrangeiro e nacional à produção agropecuária, fato que garantiu a posse de grandes porções de terra nas mãos de poucos proprietários, levando à pauperização das camadas populares. O ideal modernizador era também conservador e foi publicizado pela imprensa do período, da qual destacamos a revista Brasil-Oeste, com a qual dialogaremos no próximo capítulo. Além disso, percebemos que, à época, distintas ideias acerca da revolução se desenvolveram no país. A de cunho liberal foi vencedora, entretanto outras foram tentadas e, por vezes, silenciadas. Ler a história a contrapelo significa retomar versões caladas nesses processos. Nesse sentido, a experiência do professor comunista de História Enio Cabral, catedrático da Escola Estadual Cândido Mariano, importante instituição de ensino da cidade de Aquidauana, localizada ao sul do estado de Mato Grosso (ainda uno), será retomada a partir da conjuntura dos anos 1960, período em que há uma disputa entre dois projetos de sociedade – no plano político-econômico e, consequentemente, na educação – que não se restringem apenas ao Brasil, mas fazem parte de um tensionamento transnacional. Hobsbawm (1995) compreende que as principais disputas do século XX, a despeito dos interesses mais óbvios das grandes potências europeias, seriam pautadas, a partir de 1917, pelos partidários de duas formas distintas de compreender a sociedade e sua transformação – ou sua conservação. A partir de 1945-47, isso delinearia o que foi chamado de “guerra fria”, a tensão entre os blocos capitalista e socialista. Nos anos 1950-60, os dois embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 30 projetos encontravam guarida pelo globo e as disputas davam-se palmo a palmo. Na América Latina, a revolução cubana de 1959 e seu caráter socialista apresentado a partir de 1961-62 tornariam as disputas no Brasil ainda mais acirradas. Assim, “o espectro do comunismo” não ronda mais apenas a Europa, mas também a América Latina e, nela, o Brasil. O temor dessa “fantasmagoria” assombrava, de longa data, as elites brasileiras, que procuravam combater as ações e organizações comunistas, haja vista a própria clandestinidade do Partido Comunista Brasileiro desde os anos 1930. Nosso intuito é colocar em diálogo com essa conjuntura internacional e nacional a experiência de Enio Cabral, comunista que atuava na educação básica na cidade de Aquidauana, compreendendo a indissociabilidade de ambos. Para tanto, ancoramo-nos na obra de Eric Hobsbawm, Tempos interessantes (2010), na qual o historiador britânico indica ser possível pensar a trajetória de um indivíduo a partir de sua conjuntura sóciohistórica, como já apontamos no início deste trabalho. Fazemos a opção por analisar um sujeito sem grande destaque nacional, por considerar necessário pensar os grandes fenômenos políticos e históricos contemporâneos a partir da experiência dos homens comuns, fugindo assim das visões macro e oficiais que geralmente produzem muito mais uma memória positiva do passado do que propriamente uma história que englobe as contradições sociais. Consideramos ser esta uma obrigação dos historiadores que lidam com o campo do político, pois como advertiu Hobsbawm: Mais do que nunca a história é atualmente revista ou inventada por gente que não deseja o passado real, mas somente um passado que sirva a seus objetivos. Estamos hoje na grande época da mitologia histórica. A defesa da história por seus profissionais é hoje mais urgente na política do que nunca. Somos necessários (HOBSBAWM, 2003, p. 326). No caso da ditadura militar, temos observado no Brasil uma tentativa, por parte de alguns sujeitos sociais, como os militares e alguns civis envolvidos no apoio ao golpe, de se construir uma memória positiva do período ditatorial. O pesquisador João Roberto Martins Filho (2003) discute o tema da disputa travada entre militantes de esquerda e militares pela memória em relação à ditadura, afirmando que estes últimos desejariam cobrir sob o manto do esquecimento os acontecimentos daquele período. Os militares, na tentativa de evitar embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 31 uma catarse pública da memória coletiva pela sociedade brasileira, preferem muitas vezes esquecer o tema, evocando a anistia como justificativa: Segundo essa perspectiva, depois da Lei da Anistia de 1979, qualquer esforço de trazer à lembrança o que efetivamente ocorreu na breve e brutal repressão aos grupos da esquerda brasileira (não apenas armada, vale registrar) representaria uma violação ao próprio princípio da Anistia. Conforme essa ótica, anistiar é zerar as contas e, portanto, esquecer. Esse ponto de vista aparece com bastante frequência nos textos e depoimentos de militares das três forças (MARTINS FILHO, p. 2). O historiador em questão explicita que há uma disputa em torno da memória sobre a ditadura, pois enquanto os militantes de esquerda torturados e os demais civis acreditam que é preciso lembrar para que tal situação não se repita, os militares e os civis apoiadores do golpe desejam virar a página e pensar no futuro em nome de um consenso nacional. Ainda de acordo com ele, os militares consideram que a atitude dos atingidos pela ditadura é ação revanchista, perpetua uma memória negativa do golpe, povoando as páginas de obras literárias e acadêmicas, ou mesmo em outros suportes, de caráter sonoro ou fílmico, dentre outros, com relatos das agruras sofridas durante o período. Os militares defendem ainda a ideia de que a anistia deve valer para todos; portanto, se as vítimas foram anistiadas, os algozes também devem ser. Tal pensamento se tornou uma espécie de discurso oficial das forças armadas que se manifesta mesmo em tempos mais recentes, como nos depoimentos de alguns militares concedidos aos pesquisadores Celso Castro e Maria Celina D`Araujo, que são citados por Martins Filho. O primeiro deles é dado pelo ministro da marinha do governo FHC, Mauro César Rodrigues Pereira, e o segundo pelo Brigadeiro Mauro José Miranda Gandra: “Que são feridas, são. Mas houve feridas para todo canto. Um lado tem que calar a boca e ficar quieto. O outro lado tem o direito de ficar a vida inteira dizendo que tem ferida e que tem que dar um jeito de curá-la? Não. Tem que calar a boca também e ficar quieto” (...) A mesma intenção vem à tona no testemunho de outro ministro militar do governo Cardoso. Para o brigadeiro Mauro José Miranda Gandra, o “processo de anistia” teve como finalidade virar uma página da história (que ele considera “se não negra, pelo menos cinza”). A anistia teria o objetivo de trazer a “cicatrização” das feridas do período autoritário (Castro e D’Araújo, 2001, 305). E conclui: “a Nação tinha que, não de maneira literária, virar a embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 32 página. Tinha que virar, efetivamente, essa página” (MARTINS FILHO, 2002, p. 3). Claudio Bezerra de Vasconcelos (2009), em seu artigo As análises da memória militar sobre a ditadura: balanço e possibilidades, lança uma questão importante sobre o tratamento da memória construída sobre a ditadura no Brasil nos trabalhos acadêmicos, questionando se estes pesquisadores centraram-se na discussão da dicotomia democracia x autoritarismo e negligenciaram o conflito político que precedeu o golpe, “ou preferiram a constituição de uma memória que priorizasse a conciliação nacional em detrimento de outra que expressasse e, talvez, acentuasse as divergências e os conflitos entre diferentes grupos da sociedade brasileira?” (p. 73). Vasconcelos indica ainda que, apesar da tentativa, principalmente dos militares, de se ocultar a memória da ditadura brasileira, isso nem sempre é possível, pois, Em geral, essas memórias “proibidas” sobrevivem guardadas em estruturas de comunicação informais (famílias, associações, redes de sociabilidade afetiva ou política) e passam despercebidas pela sociedade. Os problemas que elas encontram são, no longo prazo, o de sua transmissão intacta, e, cotidianamente, o da complexidade de se encontrar uma escuta. Se os militares que de tiveram o poder durante 21 anos já mencionam a dificuldade de combater a memória pública, para os que lutaram contra eles é difícil conseguir quem simplesmente os ouça (VASCONCELOS, 2009, p. 73). Considerando as palavras de Vasconcelos, buscamos aqui revisitar a história de indivíduos como Enio Cabral, com o objetivo de compreender os embates em torno da memória que foram travados entre eles e os representantes do Estado autoritário no Brasil daquele período. Enio Cabral, brasileiro, professor, comunista, insere-se no contexto das disputas ideológicas dos anos 1960, e é por meio de sua trajetória que tentaremos compreender as mesmas. Sua atuação era desenvolvida no interior do centro-oeste brasileiro, espaço no qual a modernização conservadora e a pauperização das camadas populares se firmavam rigidamente, deixando pouco ou nenhum espaço para que propostas mais progressistas fossem erguidas. Apesar disso, Enio, a exemplo de outros, resiste nesse processo, embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 33 articulando suas ações a partir de seu espaço privilegiado como educador, defendendo, portanto, uma perspectiva de sociedade e de educação em consonância com as propostas comunistas advindas das experiências europeias e do programa pecebista. O que observamos no embate entre o Estado, a sociedade e Enio Cabral é uma disputa pela hegemonia, entendida aqui como um processo e não como algo fixo que, segundo Williams, não pode ser conseguido totalmente, mantendo assim a dialética da luta de classes. Afirma ele: (...) nenhum modo de produção, logo, nenhuma sociedade ou ordem social, e, portanto, nenhuma cultura dominante, na realidade exaure o âmbito total da prática, energia e intenção humanas (este âmbito não é o inventário de uma “natureza humana” original, mas, pelo contrario, refere-se ao extraordinário campo de variações, na prática e na imaginação, que os seres humanos têm e já demonstram ter capacidade de fazer) (WILLIAMS, 2005, p. 220). Acreditamos que Enio Cabral travava, mesmo com todas as contradições, uma luta pela hegemonia no sentido cunhado por Gramsci, que procurava “ver e criar, por meio da organização, uma hegemonia proletária que seria capaz de ameaçar a hegemonia burguesa” (WILLIAMS, 2005, p. 220). Foi esse o principal motivo que levou o Estado brasileiro, por meio de seus aparelhos repressivos e apoiado pelas elites conservadoras regionais, a perseguir o educador por meio de instrumentos jurídicos, como inquéritos policiais militares, inquéritos judiciais e cassação de sua liberdade. A documentação produzida naquele momento, que inclui o IPM, transformado em processo criminal, entrevistas concedidas nos anos 1990 e alguns dados disponibilizados pela câmara municipal, prestamse a nossa análise. ENIO CABRAL: SUJEITO HISTÓRICO, EXPERIÊNCIA E ATUAÇÃO POLÍTICA. Enio Cabral nasceu em 1919 em Aquidauana, cidade fundada em 15 de agosto em 1892, que se tornou distrito de Miranda em 1906 e foi elevada a município em 1918 no então estado do Mato Grosso, que se tornaria Mato Grosso do Sul em 1977, com o desmembramento confirmado pelo presidente Ernesto Geisel em 1° de janeiro de 1979. Era embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 34 filho de Antonio Alves Cabral e Maria de Castro Cabral. Enio pertencia a uma família tradicional de Aquidauana – sua mãe era filha do coronel João de Almeida de Castro, conhecido como coronel Jango de Castro. Em 1944 casou-se com Zilá Proença Leite e teve dois filhos: Vera Lúcia Cabral Barbosa, nascida em 22 de dezembro de 1945, e Luiz Carlos Leite Cabral, nascido em 26 de junho de 1949 (REIS, 2014). Seu pai, segundo o próprio Enio declara, possuía recursos e pôde lhe fornecer uma boa educação durante sua trajetória escolar. Dizia ele: “Tive uma infância praticamente bastante tranquila, porque meu pai tinha recursos, minha família era conhecida aqui na cidade, relacionada com todos...” (ENIO CABRAL, 1993, p. 1) A ligação da família com os tradicionais coronéis da cidade talvez explique algumas das relações de amizade contraditórias que Enio carregou durante toda a sua vida, como, por exemplo, sua ligação com o ex-governador do estado José Fragelli, que seria seu advogado no processo movido pelo Estado militar, assunto que será discutido nos próximos capítulos. Vindo, portanto, de família tradicional, teve uma formação escolar de boa qualidade e se recorda dela com felicidade. “Entrei no grupo escolar de 30, ai que eu entrei mais em contato, né, por que o grupo escolar e o... a escola pública, é onde se concentra ali... tem pobre, tem rico, tem remediado, tem... tem gente de cor, tem... tem de todas as raças, nacionalidades se concentram ali. É uma escola basi... basicamente é... socializada quase né, não é bem no sentido de socialista, mas socializada nesse sentido né. Ali não tem ... não tem divisão de nada, ali todo mundo é igual ali dentro” (ENIO CABRAL, 1993, p. 2). O curso primário é realizado no tradicional Grupo Escolar Estadual Antônio Corrêa. Esse grupo teve grande importância não só para Aquidauana, mas para todo o estado, pois simbolizava a chegada do movimento Entusiasmo pela Educação, caraterizado por Nagle (1974) como período em que o Estado republicano acreditava que, por meio da multiplicação das instituições escolares, seria possível melhorar a qualidade da educação e promover o desenvolvimento econômico do país. De acordo com Arruda (2011), a situação da educação primária no estado do Mato Grosso em fins do século XIX e início do XX era bastante precária. Para se ter uma ideia da situação, em 1895 funcionavam em Mato Grosso apenas três instituições escolares públicas, regidas pelo decreto n. 10, de 7 de novembro 1891, e nenhuma delas se dedicava ao ensino primário (ARRUDA, 2011, p. 74). Somente embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 35 com ascensão ao poder de Pedro Celestino Corrêa da Costa à presidência do estado, em 1908, é que a situação da educação primária começa a mudar e finalmente o movimento timidamente adentra ao estado com a Lei Estadual n. 508, de 1908, que cria os grupos escolares para a capital e cidades do interior. A pesquisadora Mara Regina Jacomelli, em sua pesquisa sobre as reformas da instrução pública no estado do Mato Grosso, nos apresenta um amplo exame da questão educacional nessa região no período que vai do final do século XIX ao início do XX e aponta para as condições econômicas favoráveis que o governo Pedro Celestino teve para programar a reforma de 1910. Afirma ela: A Reforma da instrução pública de 1910 abrangeu um período econômico em Mato Grosso marcado por um maior enriquecimento material, em função dos preços alcançados pela borracha no comércio exterior e por um período político de razoável tranqüilidade, como já foi dito. Do ponto de vista político-administrativo, Pedro Celestino, então Presidente, estaria realizando mudanças educacionais essenciais, tendo como parâmetro os moldes adotados por Estados mais desenvolvidos economicamente, como era o caso de São Paulo. Dessa forma, acreditava a classe governante, caberia à educação sanar todos os “males” da população, ao mesmo tempo em que constituir-se-ia em fator de progresso para Mato Grosso (JACOMELLI, 1998, p. 137). Jacomelli chama a atenção para o fato de que, embora a reforma da instrução pública mato-grossense tenha sido inspirada na reforma paulista, sua implementação se deu de forma tímida, devido às particularidades econômicas e políticas do lugar, principalmente por causa do mandonismo ali presente. De acordo com ela, em São Paulo, em função de sua importância econômica e pelo fato de ser o berço da burguesia cafeeira e industrial, havia uma demanda por escolas, principalmente por conta da imigração; já em Mato Grosso, estado de base agropecuária, com ênfase na exportação de carne, isso não ocorreu da mesma forma. Afirma Jacomeli que a população mato-grossense era em número similar, no ano de 1927, ao de matrículas primárias no estado de São Paulo. Assim, onde existiam grandes latifúndios nas mãos de poucas pessoas, onde o poder político, também concentrado nas mãos de poucos, era representado por frações de classes ligadas ao comércio, às usinas de açúcar ou aos latifúndios (criação de gado; extração de erva-mate), uma pressão popular por escolas era praticamente insignificante. A maioria dos trabalhadores, esparramada pelo vasto território mato-grossense, desenvolvia seu trabalho nas fazendas. A parcela de trabalhadores urbanos era embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 36 relativamente pequena em relação aos trabalhadores rurais. Dessa forma, foram criados grupos escolares justamente nas cidades mais desenvolvidas economicamente e, também, naquelas que serviam como reduto eleitoreiro, por ingerência de algum “coronel”, marca do clientelismo político no Estado (JACOMELI, 1998, 141-142). Mas no caso de Aquidauana, somente em 1912 veio a autorização para a instalação do primeiro grupo escolar, juntamente com os das cidades de Cuiabá, Cáceres, Poconé e Rosário Oeste, no norte do estado; já na região sul foram criados os da cidade de Campo Grande, Aquidauana, Três Lagoas e Ponta Porã. Arruda (2011) lembra que entre a criação da lei e a finalização das obras houve um grande hiato e, por esse motivo, em Aquidauana estas só foram finalizadas em 1934, funcionando precariamente desde 1924. (Grupo Escolar Antônio Corrêa, fundado 1924. ARRUDA, 2011) Após terminar os estudos primários no grupo escolar, Enio seria admitido em um colégio particular do professor cuiabano Demétrio Serra, que veio para Aquidauana na década de 1920. Posteriormente, para conclusão da etapa que hoje chamamos de ensino médio, Enio foi para Campo Grande, onde estudou no Ginásio Estadual Dom Bosco entre 1934 e 1937 e no Ginásio Osvaldo Cruz, onde fez o curso propedêutico. Em seu depoimento, Enio revela que havia tomado contato com as discussões socialistas e se colocava contra os nazistas desde o período em que estudou no Ginásio Dom Bosco, coordenado por padres alemães, espanhóis e italianos. Sua lembrança não era muito feliz; de acordo com ele, eram muitos rígidos. O diretor era um padre alemão, grosso embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 37 e malcriado, em suas palavras um verdadeiro nazista. Foi nessa escola que conheceu um padre, professor de matemática, de nome Schimit, que lhe apresentou algumas revistas sobre a juventude hitlerista. Dizia ele: Então, esse Schimit, eu lembro bem, ele aparecia com umas revistas fabulosas, viu de... de... fotografias um... coisa feita na Alemanha, bem feita, né... bem mesmo. Fazendo propaganda: era a revista juventude hitlerista. Então ele fazia propaganda do nazismo, eu já, naquele tempo, eu já... já pegava em... em discussão com ele (ENIO CABRAL, 1993, p. 2). Enio afirma ainda que nesse tempo teve contato pela primeira vez com o jornal A manhã, do partido comunista brasileiro, que um de seus colegas levava embaixo da roupa para ele ler. Talvez em função dessas leituras, Enio desde a juventude tenha se mostrado muito crítico em relação às aulas de história e a seus professores. Um episódio presente no seu depoimento que nos chamou a atenção foi a discussão que teve com o professor de história João Mendes Dias sobre uma lição do livro didático acerca da Revolução Russa. E... eu lembro que ali tinha a última lição era a Revolução Russa, tinha fotografia do Lenin e o padre chegava ali na... nessa... nessa lição que era a última da... do livro, ele voltava pra outra lição, e tal, enrolava eu fui percebendo aquilo. Ai um dia eu perguntei, né, (...) o professor e essa última lição aqui, o senhor não vai dar? Você não tem nada que vê com isso, o professor aqui sou eu. Fora da Classe (risos) (CABRAL, E. depoimento. [28 de novembro de 1993]. Aquidauana: Entrevista Enio Cabral. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo, p. 3). Depois de concluir o curso propedêutico, Enio foi para o Rio de Janeiro, onde cursou a Academia de Comércio entre os anos de 1939 e 1940. É interessante destacar que foi nesse período que sua relação com a visão socialista de mundo consolidou-se, uma vez que, quando os navios de guerra foram torpedeados, ele, juntamente com outros colegas, organizou um protesto exigindo que o governo brasileiro declarasse guerra ao regime nazista. Sobre esse período, Enio relata na entrevista concedida ao pesquisador Eudes Leite que foi um momento de grande diversão, embora tivesse chegado à cidade em plena ditadura Vargas. Segundo o depoimento, apesar de a repressão ser bastante forte em 1939, embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 38 ele ainda muito jovem; só tomaria consciência da situação aos poucos, finalmente passando a se engajar nas questões políticas. Então era o tempo da... da ditadura Vargas, ditadura de Filinto, Vargas, porque o movimento da Aliança Nacional Libertadora, foi em 1935, quatro anos depois, em 39 a... a repressão era tremenda ainda, né? E na minha idade, também não tinha.. eu não tinha ainda perspectiva não (...) podia tê entrado em contato inclusive com algum elemento, tinha um na pensão que era ligado ao Parido Comunista, mas ele falava muito vagamente eu também nem percebia nada, queria era diversão (ENIO CABRAL, 1993, p. 2). Sua militância política só se tornou mais efetiva quando retornou para Aquidauana. Lá encontrou comerciários viajantes que passavam pela cidade, simpatizantes das ideias socialistas – alguns haviam sido presos em 1935. A partir das influências desses amigos e do contato com os materiais do PCB, Enio decide se aproximar do partido no berço dos ruralistas do sul do Mato Grosso. Já na década de 1950, com a ajuda de trabalhadores vindos de cidades maiores e grandes centros para trabalhar na Ferrovia Noroeste do Brasil (NOB), busca formar um grupo que tinha como objetivo formar sindicatos de trabalhadores no município. Foi por meio desse núcleo que se formaram diversos embriões de associações e sindicatos na cidade. Um fato que merece destaque é que, em função de suas ligações com grandes coronéis da cidade, num primeiro momento a criação das associações foi apoiada por eles, pois acreditavam que poderiam cooptar os líderes e trabalhadores e aumentar o espectro do mandonismo na cidade, mas logo as divergências entre os dois grupos se acirraram. O próprio Enio, em depoimento dado em 1993, relata como foi sua volta à cidade natal: E em 40 ... em 40 eu vim pra Aquidauana e já encontrei aqui um nucleozinho de ... simpatizantes, naquele tempo a União Soviética estava no auge, né, que dize, era uma ... era um crescimento aí que a gente não adivinhava, mas que deu no que deu, né? Tá tudo ... tudo desvirtuado, tudo corrompido, desde a morte de Lenin, foi tudo desvirtuado, tudo corrompido. E ... e entrei em contato com a ... esse grupo de ... comerciários, viajantes que eram ligados ao Partido e tinham sido presos em 35 e já também, e que passavam por aqui eram ... eram um elo, elemento de ligação na cidade, né? Eles faziam distribuíam boletins mimeografados, aquela coisa toda. (ENIO CABRAL, 1993, p. 4) embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 39 No depoimento de Enio Cabral encontramos alguns indícios de que a política nas cidades pequenas abre espaço para algumas contradições. Em 1945, o neto do Coronel Jango de Castro funda uma célula do Partido Comunista do Brasil em Aquidauana, o que provavelmente não deve ter agradado a família. Ou seja, podemos pensar que nesses espaços o posicionamento ideológico não é inviabilizado pelos laços de parentesco e relações pessoais. Um dos casos emblemáticos é o do protagonismo da senhora Ione Orro, esposa do ex-deputado Roberto Orro, que apesar pertencer a uma família tradicional de proprietários de terra em Aquidauana, foi uma das fundadoras do PCB na cidade, contrariando a lógica de tradição mandonista de classe ali presente. Conforme notícia veiculada no jornal Aquidauana News em 1° de dezembro de 2003, a senhora Ione Orro recebeu homenagem do PPS na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. O XIV Congresso do PPS em Mato Grosso do Sul, que aconteceu na Assembléia Legislativa, no último sábado foi marcado por muita emoção, durante uma homenagem a Ione Orro, fundadora do PCB (Partido Comunista Brasileira) no Estado e também do PPS, sucedâneo do antigo "Partidão". O presidente do diretório do PPS na Capital, ex-vereador Athayde Nery, fez o discurso de homenagem, destacando as qualidades de Ione, esposa do deputado estadual Roberto Orro, que também se pronunciou no evento representando o PDT. Ao final do discurso, Athayde entregou a Ione, em nome do PPS, uma placa e um buque de rosas (CONGRESSO DO PPS, 2003). Apesar do pioneirismo de Orro, Enio sempre foi alvo dos militares. De acordo com seu depoimento, a partir da fundação do partido, em 1945, ele fortaleceu os movimentos sociais na cidade. Isso dependeu muito do apoio dos operários da ferrovia Noroeste do Brasil, que vieram de diferentes regiões do país (Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro, dentre outros). Assim ele se refere à fundação: “(...) a base do partido aqui foi a ferrovia, e não foi por acaso, porque eram os operários mais desenvolvidos, já tinham tomado parte de sindicatos e... em São Paulo, Espírito Santo, então traziam ideias novas pra cá” (ENIO CABRAL, 1993, p. 5). No início dos anos 1960 as atividades de mobilização dos trabalhadores em função da chegada da NOB se intensificaram e despertaram a preocupação dos grandes latifundiários da cidade. Foi precisamente nesse momento que surgiram as “domingueiras”, nome pelo qual ficaram conhecidas as reuniões promovidas por Enio Cabral e seus embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 40 companheiros à margem esquerda do rio Aquidauana. Nelas eram discutidos temas como a organização dos trabalhadores e a reforma agrária. As domingueiras criaram uma verdadeira paranoia na cidade – os ruralistas amedrontados começaram a enviar “espiões” para observar e relatar os temas debatidos ali. Alguns boatos que circulavam passaram a aterrorizar ainda mais os ruralistas, como o de que os militantes iriam tomar as propriedades privadas e fuzilar aqueles que resistissem à revolução. Por esse motivo os fazendeiros passaram a se armar contra tal possibilidade. Em relação à prática da denúncia e perseguição contra os comunistas, de acordo com o autor, no sul de Mato Grosso, ainda no início da década de 1960, existia um grupo paramilitar conhecido como ADEMAT (Associação Democrática Mato-grossense), ligado à UDN e ao IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Seus militantes eram médicos, advogados, pecuaristas, comerciantes, professores, intelectuais, jornalistas, entre outros que na prática aplicavam no sul de mato Grosso a linha política do IBAD, que por sua vez, apoiava abertamente o golpe de estado como forma da UDN chegar à presidência da República (LIMA, 2011, p.1335). AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA EM AQUIDAUANA: ENIO CABRAL, COMUNISTA E VEREADOR PELA UDN? Como afirmei anteriormente, algumas contradições do cenário político da cidade de Aquidauana nos chamaram a atenção; a principal delas foi a atuação de Enio Cabral como suplente de vereador pela UDN (União Democrática Nacional). Durante um curto período, entre os anos de 1959 a 1961, ele exerceu a vereança, em períodos alternados, durante a administração do prefeito Antônio Salustiano Areias. Para entender essa contradição podemos nos ater às suas próprias palavras: E nós tínhamos um fato, uma influencia aqui na... na cidade porque quase todos os partidos principalmente a UDN e o PSD, PSD Partido Social Democrático, era do Felinto Muller, do José Ponce, essa turma... E tinha sempre uma tentativa de aproximação e... e todas as... todos os períodos de eleição nós éramos procurados para fazer uma ... um acordo.. um acordo, mas por influência do Diretório Estadual (...) e por influencia de alguns elementos do Partido lá, que tinha ligação com a UDN, com o doutor ... com a família Correa da Costa, Fernando, Vespasiano Martins e também por ser esse elementos os adversários de Felinto Muller, os embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 41 homens formaram o partido enfrentar Felinto Muller e João Ponce, que dize, a burguesia se dividia em duas... duas correntes, a verdade era essa, né? Que tanto fazia se a gente ta apoiando a UDN, como apoia o PSD, tava apoiando a burguesia, mas a questão não era de saber, era amizade e de influencia de alguns lideres... (ENIO CABRAL, 1993, p. 7). À primeira vista parece contraditória a fala de Enio quando afirma que Filinto Müller controlava a UDN em Aquidauana, pois sabemos que ele era um dos principais líderes do PSD e ligado a Vargas, tendo sido candidato a governador em 1950 e eleito senador em 1955 por esse partido. No entanto, cabe ressaltar que, após o golpe, ele se tornará um dos líderes da Aliança Renovadora Nacional (Arena), elegendo-se ao senado em 1970, ocupando a liderança da Arena e do governo no Senado, assumindo a presidência desta casa em 1973. Fica claro também na fala de Enio que as questões políticas na cidade eram resolvidas muito mais em função de relações de compadrio e amizade que por questões ideológicas – traço talvez característico da política nos interiores do país. Ou seja, por influência dos líderes estaduais que agiam de acordo com seus interesses de poder, numa virtual eleição é que eram decididos os apoios. Com a entrada de Fernando Correa da Costa na disputa política do estado, a rixa entre UDN e PSD se tornou mais acentuada, como destacam Bittar e Ferreira Jr.: Além disso, há mais uma peculiaridade que evidencia a força da oligarquia agrária sulista: as duas vitórias de Fernando Correa da Costa – a primeira em 1950 e a segunda em 1960 – ocorreram sobre a candidatura de Filinto Müller, cuiabano, o político mais poderoso de Mato Grosso e homem da confiança de Getúlio Vargas, cuja maior aspiração era ser governador de seu estado (BITTAR & FERREIRA Jr., 2008, p. 148). Como destaca o próprio Enio no depoimento anteriormente citado, Fernando Correa e seus correligionários se rearticularam no diretório da UDN para se contrapor a Filinto Müller, que foi derrotado duas vezes nas eleições para o governo do estado. Enio, que se declarava contrário a Filinto Müller em razão da perseguição que o mesmo fazia a Luiz Carlos Prestes e sua família, acabou apoiando um candidato do PSD nas primeiras eleições do município após a ditadura Vargas – que finda em 1945 – com a condição de que Müller não viesse a Aquidauana durante a campanha. Segundo ele, foi uma decisão difícil, pois ambos os candidatos eram parentes dele, sendo Antônio Castelo Branco seu primo e o embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 42 candidato opositor pela UDN seu tio-avô, como ele próprio afirma: “qué dizê, ia fica tudo em família, compreendeu?”. Segundo Enio, essa foi uma das primeiras derrotas do Coronel Zelito (um dos líderes da UDN no município, eleito prefeito por três vezes) na cidade de Aquidauana, mas ele não a aceitou e, por meio de uma manobra jurídico-política, anulou a eleição. Assim ele relata o episódio: Foram no cartório e tiraram certidões, enfim deram um golpe político também, né? Jurídico. E anularam a urna do Bairro Alto, e nosso prefeito perdeu o mandato e veio de fato a ser prefeito esse candidato do... do coronel Zelito (ENIO CABRAL, 1993, p. 7). Segundo Enio Cabral, sua aproximação com a UDN se deu de forma circunstancial, em função de o PCB estar na ilegalidade e também por relações pessoais na cidade. Quando, nos anos 1950, Tico Ribeiro, filho do Coronel Zelito, se candidatou a deputado federal pela UDN e solicitou o apoio do partido, houve uma negociação para que ele, caso ganhasse, desse a vaga de vereador para Enio. Embora estivessem rompidos, haviam sido colegas de infância e de ginásio. Na ocasião, Enio disse a Tico: Nós apoiamo você, se você nos dé uma vaga de vereador (...) Fui o candidato, num fui eleito, fui... fui primeiro suplente, (...) ocupei a, quase um ano assim, em períodos alternados. (...) Então a gente brigava, fazia reunião na câmara e ... fazia comício, e também a Câmara Municipal de Aquidauana foi uma das primeiras a... a telegrafa para ... a ... para o presidente da república solicitando a rea... a reabertura de relações diplomáticas com a união soviética, foi.. foi um projeto meu, foi aprovado por unamidade (ENIO CABRAL, 1993, p. 7). Seguindo as diretivas do partido em nível nacional, que possuía um perfil aliancista, Enio e o diretório municipal estabeleciam acordos em função da conjuntura e das relações sociais locais, além das circunstâncias históricas. Saliente-se que não era esse um fato isolado, já que alianças com partidos opositores ocorreram em outras regiões do país. Fleischer (1981) afirma que o PCB geralmente não se adequava à maioria das propostas de direita, mas embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 43 dividia seu apoio clandestino entre os candidatos de quase todas as legendas partidárias, de acordo com as posições políticas destes candidatos. Durante o período de 1948-1964, este apoio foi concentrado dentro do PTB, às vezes com o PSP, e ainda de vez em quando com o PSD e UDN (LIMA, 2011, p. 1334). As contradições presentes na carreira de Enio Cabral como vereador não se esgotavam no fato de ele ser suplente na vaga da UDN, mostravam-se também pelo tipo de propostas que fazia em plenário. Uma das que nos chamou a atenção foi o fato de ele solicitar ao presidente da república que retomasse as relações diplomáticas com a União Soviética. O que mais no surpreendeu nesse caso foi o fato de o referido requerimento ter sito aprovado por unanimidade pela câmara de vereadores, composta em sua maioria por ruralistas da localidade. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 45 (Certidão de termo de posse de Enio Cabral na Escola Estadual Candido Mariano) Nesse período Enio ainda não possuía formação em História. Somente no período de 1962 a 1963 frequentou o Curso de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Médio – CADES –, obtendo o registro n. 52.217, emitido pelo MEC, para lecionar História do Brasil embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 46 no 1º ciclo. Seu trabalho foi marcado por várias polêmicas com os colegas e alguns alunos, pois em função de sua visão de mundo, influenciada pelo PCB, acreditava numa educação que objetivava transformar a sociedade. Por várias vezes Enio, ateu e comunista, acabou sendo advertido por questionar a existência de Deus e defender a reforma agrária e o comunismo em suas aulas. As denúncias de pais e alunos serão discutidas no terceiro capítulo, no qual detalharemos o processo movido contra ele pelos militares em abril de 1964. Ao que parece, Enio, como militante do PCB, acreditava que seu o objetivo como professor era o de promover uma educação capaz de permitir a divulgação das ideias comunistas ao maior número de pessoas possível. Acreditava, portanto, que conforme preconizava a teoria marxista, despertaria nos indivíduos a consciência de classe, primeiro passo para a efetivação do processo revolucionário. Em função das ideias divulgadas na escola e fora dela, passou a ser alvo de vigília pelos conservadores da cidade, que esperavam uma oportunidade para se vingar não só dele, mas de todos os comunistas. Em sua entrevista, Enio diz que: “um desses coronéis aqui da cidade, escreveu uma carta pro João Ponce [de Arruda, ex-governador de Mato Grosso, importante político ligado ao PSD e, posteriormente, à ARENA]. Dizendo que eu tinha que se demitido por que eu além de comunista, eu era ... toda vida contra o PSD”. (ENIO CABRAL, 1993, p. 8) Com o golpe civil-militar ocorrido em 31 de março de 1964, Enio, que já era um alvo dos militares da região por causa de suas atividades de organização de sindicatos e defesa do comunismo, acabou sendo preso em 04 de abril, sob a acusação de crimes contra a segurança nacional. Após o processo, seus detratores se aproveitaram para depor contra ele, o que levou à sua demissão em 13 de agosto, conforme consta do Diário Oficial do estado. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 47 (Diário Oficial do Estado, 13 de agosto de 1964) Após sua demissão do cargo de professor em função do Inquérito Policial Militar movido pelo 9º Batalhão de Engenharia de Combate de Aquidauana, transformado em processo criminal na justiça comum, Enio passou a exercer diversas atividades na iniciativa privada, tais como na montadora Willys Overland do Brasil (1964-1967), que naquela época produzia o famoso Jeep, atualmente pertencente à Ford. Trabalhou também no escritório da empresa Aquidauana Veículos (1967-1980), revendedora da Volkswagen em Aquidauana, como vendedor de uma banca de revista de seu irmão e prestou um concurso para a NOB, que foi misteriosamente anulado. Enio, no depoimento dado ao professor Eudes Fernando Leite em 1993, afirma ter passado por muitas dificuldades nesse período, chegando inclusive a pedir um emprego para o governador Fragelli, que acabou não conseguindo: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 48 Aí fui lá fala com ele, ele e... vou ver esse negócio ... e tal ... mas eu acho que o ... SNI não vai ... não vai da autorização ... porque o SNI, porque e... você foi preso e tal... deve ter algum processo contra você lá ... E não me deu (ENIO CABRAL, 1993, p. 7). Nesse período, além dos trabalhos nas empresas privadas, Enio acabou se dedicando à organização de sindicatos e associações na cidade, a exemplo da associação dos pescadores e dos trabalhadores de transporte de carga, e coordenava a escola de corte e costura para filhas de presidiários. Nunca mais exerceu atividade de professor. Em 1980, após o julgamento de um pedido de reintegração à carreira de magistério, foi aposentado em uma posição inferior à de seu concurso pelo governo de Marcelo Miranda. Seu afastamento do magistério certamente lhe trouxe não só problemas de ordem financeira, mas também emocional, pois para ele a educação tinha por objetivo transformar a sociedade. Nessa questão, suas ideias se coadunavam com as concepções debatidas no interior do PCB, conforme apresentaremos a seguir. A QUESTÃO EDUCACIONAL NOS ESCRITOS DO PCB E DE INTELECTUAIS COMUNISTAS Para discutirmos a concepção de educação de Enio Cabral, temos que relacioná-la à visão acerca da escola pública formulada no interior do PCB. A pesquisadora Aparecida Favoreto, em sua tese de doutoramento intitulada Marxismo e educação no Brasil (19221935): o discurso do PCB e de seus intelectuais (2008), afirma que não é uma tarefa simples tratar da concepção de educação do PCB, já que, além de tal ideia estar dispersa, há ainda que se considerar que o partido tratou muito mais da educação militante do que da escolar. Favoreto adverte ainda para o fato de que se o PCB não participou efetivamente do debate educacional, não foi, com certeza, alheio a ele, uma vez que: A educação escolar aparece dissolvida em sua concepção de história, da mesma forma que, no núcleo do pensamento intelectual do partido, nos seus programas de ação, vários conceitos teóricos e táticas políticas se mesclavam na busca de explicitação dos agentes mediadores no processo de transformação ou conservação social. Portanto, a questão que se coloca é verificar como o PCB, dentro de sua perspectiva de história, se embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 49 posicionou no debate educacional daquela época (FAVORETO, 2008, p. 176). A tese apresentada por Favoreto nos é importante na medida em que permite pensar a função de alguns militantes, como o professor Enio Cabral, no processo de divulgação das ideias comunistas na sociedade, como esclarece a autora ao falar das teses defendidas pelo intelectual comunista Rodolfo Coutinho: Da perspectiva da vanguarda leninista, Rodolfo Coutinho acreditava que o partido, por meio dos “capazes”, ou seja, daqueles que tinham compreensão do marxismo e conseguiam falar de forma simples, deveria alfabetizar e educar os trabalhadores e seus filhos, de forma a “despertar” a vontade revolucionária (FAVORETO, 2008, p. 178). Tal ideia parece importante para entendermos duas questões primordiais: a) pelo menos nos anos iniciais de sua atuação, o PCB deu prioridade à educação militante e não à escolar, que apareceria apenas como complementar, no sentido de permitir o acesso à instrução para se compreender os escritos marxistas/comunistas; b) tal concepção de educação com perspectiva de formação militante favorecia a figura do militante como um transmissor fundamental das ideias comunistas, seja na sociedade em geral ou mesmo no meio escolar. Isso reforça nosso entendimento sobre o professor de história Enio Cabral, que atuava nesse espaço muito mais focado na divulgação das ideias comunistas com vistas à educação revolucionária, em detrimento de uma educação tradicional livresca, que apenas reforçaria a ordem dominante na cidade de Aquidauana. Para Enio, assim como para os demais militantes do PCB, a educação, como qualquer outro espaço social, era um campo de disputa, no qual as contradições afloravam, podendo assim abrir uma brecha para a consciência revolucionária; no entanto, não era um espaço essencialmente voltado para impulsionar mudanças, uma vez que a mesma sempre esteve sob o domínio do Estado. A escola como um espaço de controle estatal, que limita sua capacidade revolucionária, já foi anteriormente tratada por alguns pesquisadores, a exemplo do historiador José Luís Sanfelice, que tece críticas a uma vertente tradicional da historiografia educacional brasileira que trata a educação estatal como sinônimo de pública. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 50 Nossa historiografia, majoritariamente quando se refere à escola pública, na verdade restringe-se à educação estatal e, raramente, distingue-a da educação pública, no sentido que este texto sugere: a educação pública é algo a ser construído no âmbito das relações contraditórias que impulsionam as sociedades e, portanto, os homens, para a superação qualitativa do modo de produção capitalista (SANFELICE, 2005, p. 103). A ideia expressa por Sanfelice vai ao encontro das preocupações dos dirigentes e militantes comunistas, uma vez que ambos consideram a escola como espaço de domínio estatal que busca acomodar as contradições sociais e manter a ordem dominante, não sendo, em si, um espaço revolucionário; pelo menos enquanto estiver no contexto do modo de produção capitalista. Nesse sentido, podemos entender que tanto os comunistas quanto Sanfelice acreditam na escola como uma instituição propícia ao debate revolucionário e ao afloramento das contradições, mas que só se tornaria revolucionária após a superação do capitalismo e da dominação estatal. Em seu texto intitulado Da escola estatal burguesa à escola democrática e popular: considerações historiográficas, Sanfelice nos apresenta uma conclusão sucinta que nos serve de mote para pensar a educação estatal em detrimento de uma educação pública transformadora: “O Estado ou o que é estatal não é público ou de interesse público, mas tende ao favorecimento do interesse privado ou aos interesses do próprio Estado, com sua autonomia relativa” (SANFELICE, 2005, p. 91). Tal ideia aparece expressa na concepção de Pascoal Lemme, um dos simpatizantes do PCB: Educação democrática é aquela que, fundada no princípio da liberdade e do respeito à pessoa humana, assegura a expressão da personalidade, proporcionando a todos igualdade de oportunidades, sem distinção de raças, classes ou crenças, na base da justiça social e fraternidade humana indispensável, a uma sociedade informada pelo espírito de cooperação e consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a distribuição do poder econômico não estabeleça nem antagonismos e nem privilégios (Lemme, 1988, v. 3, p. 12). Ao que parece, os militantes tinham consciência de que a escola burguesa, em face de sua filiação ao Estado capitalista, não seria capaz de formar um cidadão militante; tal formação teria que ocorrer fora dela e apesar dela, no campo da atuação militante, já que, embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 51 como adverte Sanfelice, “a educação dada pela escola pública, aquela em que o Estado é educador do povo, não pode ser considerada pública ou popular. É a escola estatal do Estado educador do povo” (SANFELICE, 2005, p. 93). Conforme destaca Favoreto (2008), para Paschoal Lemme a escola não se constituía num veículo promotor de transformações sociais que visassem à igualdade entre os homens. Para ele, uma educação democrática só se faria possível em uma sociedade democrática, portanto não capitalista. Nesse ponto, o autor se mostrava irredutível: “pensar que se pode fazer revolução por meio da educação é, no mínimo, uma ingenuidade” (FAVORETO, 2008, p. 181). Os dirigentes do PCB manifestavam sua preocupação com a educação sobretudo numa perspectiva militante, ou seja, aquela capaz de orientar os quadros do partido para combater as agruras da ditadura militar. Entre os setores estratégicos que deveriam ser priorizados na cooptação para a luta contra a ditadura, encontram-se os intelectuais e os estudantes, formadores de opinião que poderiam propagar a ideologia do partido na sociedade brasileira. Conforme a resolução política do V Congresso do Partido Comunista Brasileiro, de 1960, Os comunistas devem dedicar particular atenção à intelectualidade, que, em sua grande maioria, é partidária do progresso e da emancipação nacional. A unidade dos intelectuais de diversas tendências políticas e ideológicas pode ser alcançada em torno de objetivos comuns, como a defesa da cultura nacional e de seu desenvolvimento, a preservação e ampliação das liberdades democráticas, a salvaguarda dos interesses éticos e profissionais dos intelectuais (NOGUEIRA, 1980. p. 65). Na mesma resolução encontramos referências à importância dos estudantes e de seus movimentos organizados no fortalecimento de uma frente nacionalista e democrática. No documento encontram-se os seguintes dizeres: A unidade dos estudantes de várias tendências doutrinárias e políticas é fator essencial para o fortalecimento das organizações estudantis universitárias e secundárias, que constituem baluartes da frente nacionalista e democrática. A fim de fortalecer essa unidade e ampliar o caráter de massas do movimento estudantil, é necessário combinar a acção política com a defesa das reivindicações específicas dos estudantes, com a luta pela solução dos problemas culturais, econômicos e sociais que afectam a juventude (NOGUEIRA, 1980. pp. 66). embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 52 A política de recrutamento de intelectuais, estudantes e dos segmentos sociais mais diversos possíveis era motivada pela clareza do partido em relação ao contexto sombrio que rondava o país nos anos 1960. Enio, ao que parece, acreditava que os estudantes teriam um papel importante na luta pela democracia no país, portanto buscava, a partir de sua atuação como professor, levá-los a debater temas da conjuntura política nacional e internacional com vistas a formar neles uma consciência crítica. Nessas palestras o professor Enio sempre apontava o imperialismo como o grande inimigo do país e ainda defendia a revolução e o comunismo como formas de se criar uma sociedade mais igualitária. No inquérito policial militar movido contra ele encontramos alguns indícios de que suas aulas ultrapassam a concepção meramente livresca, característica do ensino tradicional da época. Quando interrogado pelos militares, ele assim se referia aos conteúdos de suas aulas: perguntado se admiti seu erro em ministrado assuntos palpitantes e ainda em discussão no congresso aos seus alunos, declarou que admite e adiantou que fêz isso com atualizar os conhecimentos de seus alunos. Admitiu ainda que seu objetivo era de desviar seus alunos de leitura prejudiciais tais como Meia Noite, X-9, etc. Perguntado se alguma época determinou que seu alunos fizessem trabalhos escritos sobre a reforma agrária declarou que sim (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42). As declarações de Enio sobre as publicações destinadas ao público infanto-juvenil nos intrigaram, pois o que haveria de mal nas referidas publicações? Por que as mesmas eram combatidas em suas aulas? Em busca das repostas nos deparamos com a dissertação de Luiz Carlos Sereza intitulada Entre criminosos e detetives: um estudo das representações da revista X-9 de 1950 a 1960 (2008). Nela o autor esclarece que as revistas com temas policiais atravessaram duas décadas no país e tiveram um importante papel na divulgação das ideias estatais. Sereza demonstra que a preocupação de Enio Cabral não era sem fundamento, embora procure matizar o pensamento maniqueísta que se formou em algumas interpretações: Acreditávamos que a X-9, por ter atravessado décadas de existência, tinha em sua linha editorial a capacidade de se fundir às políticas de Estado e que funcionava como um veículo da propaganda política estatal e embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 53 internacional da democracia liberal. E havia elementos chaves para este pensamento. Na proposta inicial imaginávamos que no Brasil a revista X9 havia se apropriado de um determinado imaginário político, produzindo imagens que legitimavam as ações e o pensamento de modernização do Estado. Observamos que, entre os anos de 1955 a 1961, os princípios básicos do romance policial haviam sido re-significados, o criminoso havia sido convertido em inimigo político, o crime, em comunismo e o (heroico) detetive, em representante do capitalismo norte-americano. A partir destes elementos, pretendíamos então analisar o imaginário anticomunista produzido nos contos policiais pela revista brasileira X-9, durante a “Era JK” (SEREZA, 2008, p.13). Nas palavras de Sereza (2008), percebemos que Enio se mostrava atendo ao que se passava não só interior da escola, mas também fora dela – ao que parece, tinha conhecimento de que naquele momento vivia-se naquele espaço, assim como na sociedade em geral, um clima de disputas ideológicas. Tal preocupação não afligia apenas ele, outros militantes se mostravam preocupados com as forças conservadores. Nos documentos do PCB, encontramos referências a forças conservadoras que atuavam dentro do aparelho estatal e do próprio governo com o objetivo de reprimir as alas progressistas da sociedade brasileira. Tais afirmações demonstram que a direção do PCB e seus militantes tinham consciência de quem eram seus inimigos e chegavam mesmo a nominá-los em seus documentos internos, a exemplo do informe de balanço do comitê central, divulgado em dezembro de 1967, após o VI Congresso do Partido Comunista Brasileiro. As forças reacionárias, baseadas no seu poderio econômico e político interno, estimuladas e auxiliadas pelo imperialismo norte-americano, reagrupavam-se e intensificavam sua atividade. Tratavam de manter e consolidar suas posições no aparelho do Estado, particularmente no comando das Forças Armadas. Valiam-se da maioria reacionária do Congresso e de sua participação no governo para impedir reformas e defender os interesses entreguistas e retrógados. Procuravam, com o auxílio da “Aliança Para o Progresso”, do IBAD e do IPES, assegurar o prestígio político de que ainda gozavam muitos seus quadros, influir nas eleições, mistificar a opinião pública e garantir alguma base de massas para sua atividade (NOGUEIRA, 1980. p. 77). Conforme já apontamos anteriormente, a influência de órgãos como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT) – os aparelhos do Estado – já embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 54 foi discutida por alguns pesquisadores brasileiros. Entre eles destaca-se a tese de Eraldo Leme Batista, intitulada Trabalho e educação profissional nas décadas de 1930 e 1940 no Brasil: análise do pensamento e das ações da burguesia industrial a partir do IDORT, que trata da criação de instituições como o IDORT e defende a tese de que, por meio desses instrumentos, a burguesia industrial articulava um projeto para a formação de uma nova classe trabalhadora nacional, adestrada, disciplinada e cooptada. Assim, ganham espaço na sociedade, defendia suas teses, buscando hegemonia e propondo um modelo de sociedade pautada na organização racional. Demonstrando articulação e preocupação com este projeto de sociedade nacional, essa mesma burguesia propõe a criação da Escola Livre de Sociologia Política em 1933 e a criação da USP em 1934. Este projeto vai se concretizando a partir da constituição do IDORT. Ressaltase que este Instituto, tinha bem claro o seu projeto de sociedade brasileira, que pressupunha o controle da sociedade a partir das suas ideias de racionalização. Para viabilizar esse projeto, seria necessário ser a referência nas frações da própria classe burguesa, controlar ou estar nos principais postos do Estado e, ao mesmo tempo, subordinar as classes subalternas para seus interesses (LEME, 2013, p. 3). Leme, embora discuta um período anterior à nossa pesquisa, nos auxilia a entender o porquê de os dirigentes do PCB demonstrarem tanta preocupação com a filiação dos intelectuais aos seus quadros. Segundo ele, Os intelectuais orgânicos da burguesia industrial tanto eram do setor industrial, quanto educacional, sendo que diversos educadores contribuíram com a fundação do IDORT, como Lourenço Filho, Azevedo, Anísio Teixeira, Noemy, além de outros professores da USP. O autor defende a ideia de que esses intelectuais que desenvolviam trabalhos, projetos para a burguesia industrial, foram cooptados pela mesma que atuava como um aparelho de estado (LEME, 2013, p. 165). Como demonstra Leme (2013), durante o regime autoritário brasileiro, diversas estratégias de cooptação foram utilizadas para atrair os intelectuais do campo adversário, seja por meio da intimidação, do oferecimento de cargos públicos ou mesmo pelo convencimento ideológico. Em Aquidauana, na década de 1960, isso não foi diferente. Muitos dos colegas e alunos de Enio se tornariam seus detratores, a exemplo do professor catedrático João Jorge Carneiro, que, ao ser nomeado diretor da Escola Cândido Mariano, testemunhou contra Enio, afirmando que ele era comunista e arruaceiro. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 55 Trataremos mais detalhadamente desse clima de terror e delação no próximo tópico do capítulo, quando discutiremos o caso de Ênio Cabral, que enfrentou um IPM em função da delação de colegas e alunos na Escola Cândido Mariano, na qual lecionava a disciplina de História. O ESTADO CONTRA ENIO CABRAL, “UM COMUNISTA UTÓPICO”. Como se observou, apesar de o mandonismo ser a tônica política da cidade de Aquidauana na década de 1960, isso não impediu que ocorressem resistências de alguns grupos locais, a exemplo dos militantes comunistas que questionavam a estrutura econômico-social e buscavam transformar sua realidade com base na inspiração marxista. Para Leite, os militantes que tentaram organizar atividades do PCB em Aquidauana, mesmo na clandestinidade, tinham clareza de que suas ações para a consolidação das reformas de base proclamadas por João Goulart e uma possível revolução no Brasil passavam por discussões e debates para divulgar na sociedade as ideias marxistas. Na região Centro-Oeste, e em Aquidauana, a presença de comunistas sempre causou preocupações à elite agrária. Em Aquidauana, o Partido chegou a participar da Câmara Municipal, conseguindo eleger suplentes de vereador. Sua votação, nos anos em que participou de eleições, foi expressiva quando consideramos o universo mental conservador e autoritário da cidade. A base de participação e militância política em discussões encontrava-se nos ferroviários (Depoimento Enio Cabral). Esses trabalhadores, vindos de outras regiões mais desenvolvidas do Brasil, conhecedores de outras experiências, souberam filtrar melhor os limites autoritários de Aquidauana (LEITE, 2009, p. 37). O autor discorre sobre o processo como se deu a organização das ações dos militantes marxistas na cidade, destacando que a sindicalização rural e a organização dos movimentos sociais locais constituíram-se nas suas maiores contribuições. Enio Cabral, em depoimento dado ao historiador Eudes F. Leite, esclarece como se deu esse processo: [...] e nesse mesmo período, inclusive, fizemos uma movimentação muito grande de conscientização popular em Anastácio, não sei se você se recorda, você conhece, se sabe? Passando a Ponte Velha em direção a Anastácio, a direita tem uma casinha baixa, pequena, ali era a sede das associações de Aquidauana, ali foi um núcleo, aqui na cidade, de uma organização de camponeses, de trabalhadores, sem terra... Isso foi anterior a 64, ao golpe. Todos os domingos... aí começaram a aderir os embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 56 ferroviários, os comerciários, estávamos organizando a Associação das Domésticas e todos os domingos a concentração era muito grande, camponeses dos mais diversos lugares do município de Aquidauana vinham prá ali aos domingos assistir as reuniões, os debates. Nós levávamos jornais, livros e tínhamos uma preocupação de não ter cor partidária, tanto é que era proibida discussão política dentro das reuniões, justamente, isso para evitar provocação; prá dizer que era de caráter comunista e que estávamos também acompanhando a orientação do presidente da República, João Goulart, de criação de Ligas Camponesas (ENIO CABRAL, 1991, p. 4, citado em LEITE, 2009, p. 54). Leite, ao comentar o depoimento de Enio, informa-nos sobre a estratégia utilizada para conduzir as reuniões a fim de burlar suspeitas de atividades subversivas. Ele procurava falar de temas ligados à vida do trabalhador e não diretamente de política, já que o contexto inspirava cuidados com o caráter repressivo que já vislumbrava. Ainda segundo Leite, tais atividades políticas de pessoas que tiveram vínculo com o PCB, então na ilegalidade, causaram temor à elite local, que considerava as reuniões de domingo o “estopim da revolução” em Aquidauana. Tal preocupação fica bastante clara nos IPMs2 de Adonis Gonçalves e Enio Cabral consultados por nós, a exemplo do testemunho de Claudemiro Nunes da Cunha: Perguntado se conhecia a Associação dos Trabalhadores Rurais, sita no antigo Bar São Paulo, nesta cidade, declarou que sim e adiantou que foi lá quatro vezes, aproximadamente há quatro meses atrás, tendo encontrado lá o professor Enio de Castro Cabral (...). Perguntado quem discursava durante as vezes em que foi na Associação, declarou: Professor Enio de Castro Cabral, Eri Peretro e Osvaldo Sanches. Perguntado de que tratavam os oradores, declarou que falavam quase sempre de Reformas e sobre o pobre, que tinha de ser igualado ao rico e o rico afastado, adiantou que Eri Peretro pregava a reforma violenta e falava em paredão para os que tentassem impedi-los, prosseguindo, disse que sentiu cheiro de comunismo e se afastou desse convívio (IPM, Adonis Gonçalves, fl. 24). O testemunho de Claudemiro também serviu para a conclusão dos militares de que havia um teor comunista nas ideias divulgadas nas reuniões domingueiras realizadas no subversivo Bar São Paulo: “Perguntado se sabia que o professor Enio Cabral era comunista, declarou que sim e foi esse fato que lhe permitiu saber que havia uma infiltração comunista na Associação” (IPM, Adonis Gonçalves, fl. 24). 2 Cumpre ressaltar que era uma prática comum dos militares juntar num mesmo IPM as acusações contra mais de um suspeito de atividades contra a pátria; foi o que ocorreu no caso de Adonis Gonçalves e Enio Cabral. 57 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana Enio foi um desses importantes sujeitos políticos que ousou desafiar o poder dos coronéis e do Estado militar, utilizando-se principalmente de sua condição docente para divulgar as ideias comunistas e a possibilidade de uma sociedade mais igualitária. Por esse motivo, juntamente com outros integrantes do PCB, teve que enfrentar a repressão militar. O MÊS DE ABRIL E OS IPMS CONTRA OS COMUNISTAS Segundo o historiador Eudes Fernando Leite, os IPMs (Inquéritos Policiais Militares) eram, até a instituição do AI-5, a principal forma de repressão utilizada contra os políticos, militantes e movimentos sociais contrários ao Estado. Leite afirma que em Aquidauana os IPMs passaram a ser montados a partir do dia 20 de Abril de 1964 e se constituíram na peça fundamental de repressão aos subversivos locais. Porém, eram contraditórios do ponto de vista processual, pois a investigação era iniciada após a prisão dos suspeitos (LEITE, 2009, p. 76). Um dos primeiros IPMs montados foi contra o professor catedrático de História Enio Cabral, no dia 23 de abril de 1964, ou seja, 23 dias após a instauração do golpe civilmilitar. Inicia-se então a devassa contra os comunistas de Aquidauana. Enio Cabral e Adonis Gonçalves são presos pelos militares para investigação de atos comunistas e atentados conta a ordem nacional. Vale ressaltar que ele já se encontrava preso desde o dia 04 de abril, como afirma Leite (2009). A data da prisão demonstra que os militares do Batalhão do Oeste já estavam de olho nas atividades praticadas por comunistas em Aquidauana e esperavam apenas o momento de legitimação para agir. Nos dias que se seguiram, mais treze suspeitos de integrar a reorganização do partido comunista na cidade também foram presos para averiguação. A tabela nº 1 abaixo mostra a relação de supostos militantes presos em função de supostos crimes contra a pátria. Tabela 1: militantes presos NOME IDADE Adonis Gonçalves Antônio Alves Ferreira 25 35 Benedito Eloy Vasco de Toledo 35 PROFISSÃO ACUSAÇÃO Vereador Eletricista e RádioTécnico Advogado Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802 Transg. Art. 9 e 10 da Lei 1.802 58 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana Cândido dos Santos Clealdon Alves de Assis Enio de Castro Cabral Ery José Pereto João Batista do Rosário João Soares José Maria Martinez Freixes Leonardo Nunes da Cunha Manfredo Metelo Inverso Osvaldo Jacques Sanches Rubens Nunes da Cunha Sebastião de Oliveira 55 37 44 33 60 52 35 28 53 41 27 25 Lavrador Piloto Civil Professor Motorista Comerciante Pescador Comerciante Advogado Ferroviário Comerc. de gado Médico Pintor Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802 Transg. Art. 9 e 10 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11 e 12 da Lei 1.802 Transg. Art. 9, 10 e 11da Lei 1.802 (Leite, 2009, pp. 98-99) O caráter civil-militar do golpe de 1964, assim como em todo o país, se fez presente em Aquidauana, e pode ser comprovado pela própria escolha das testemunhas arroladas no processo: entre as de acusação, políticos, pecuaristas, militares e até mesmo um delegado de polícia; entre as de defesa, um lavrador, um pintor e alguns pequenos comerciantes (conforme tabela n° 2 abaixo). Sobre este fato, Leite relata: Na cidade de Aquidauana, não foi possível encontrar documentos que revelassem uma rede ou, ao menos, nomes de pessoas que cumpriram a tarefa de informantes. No entanto a lista de testemunhas, especialmente daquelas que apontam os indiciados como comunistas, expressam as possibilidades dessas testemunhas terem exercido tal função. Não é difícil compreender por que essas testemunhas tenham realizado denúncias, pois elas ocupavam postos importantes nas estruturas de poder políticoeconômico e social no período (LEITE, 2009, p. 75). Tabela 2: Principais testemunhas NOME Antônio Pace José de Castro Pedro Nogueira Enio Cabral José Manoel F. Fragelli João Batista do Rosário Edson Nogueira Paim Carlos Moacyr da Conceição Fernando Luiz Alves Ribeiro Manuel Aureliano da Costa Filho Antônio Guerra Nilo Pereira da Rocha Luciano Gonçalves Laurinho da Silva Claudemiro Nunes da Cunha IDADE 52 48 54 44 48 60 35 54 45 63 54 39 20 56 40 PROFISSÃO Proprietário Vice-Prefeito Funcionário Público Professor Advogado – Fazendeiro Comerciante Capitão – Dentista Delegado de Polícia Prefeito – Fazendeiro Criador Comerciante Comerciante Cabo - rádio técnico Lavrador ? 59 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana João Jorge Carneiro José Carlos Nery Sebastião de Oliveira Eustórgio de Andrade Brito Roberto Scaff Orides Dias Barbosa Roberto Ortega Stonis Lélio Scaffa Inácio Pereira Ramos Hipólio Quelho 44 20 25 49 28 24 22 34 22 34 Diretor Escola 20 Estudante 25 Pintor ? Comerciante Piloto-Mecânico de Avião Piloto civil Pecuarista Comerciário Comerciante (Leite, 2009, pp. 98-99) Os IPMs, utilizados como instrumentos de coerção contra os ditos comunistas pelos “homens de bem”, procuravam seguir um procedimento semelhante às investigações realizadas pelos órgãos da justiça civil, embora os militares envolvidos não tivessem o menor conhecimento sobre a questão e, por isso mesmo, acabassem por cometer diversos erros processuais ao agirem com violência e arbitrariedade (LEITE, 2009, pp. 76-77). Os IPMs eram instituídos pelo comandante do 9º Batalhão de engenharia, o tenente-coronel Wilson de Freitas, e tinham a participação de outros oficiais que se encarregavam da realização, de fato, do inquérito. No caso do professor Enio Cabral e do vereador Adonis Gonçalves, o oficial responsável foi o capitão Oscar da Silva, que nomeou o tenentecoronel Wilson de Freitas para presidir o referido inquérito e o 2º sargento Jayme de Oliveira Alonso como escrivão. A estrutura organizacional do exército em Aquidauana se dava da seguinte forma: Ministério da Guerra, Segundo Exército, Nona Região Militar, Quarta Divisão de Cavalaria e, por fim, 9º Batalhão de Engenharia de Combate, conforme apresentado no ofício de autuação dos indiciados que reproduzo abaixo: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 60 (IPM Enio Cabral, fl. 6) AS DOMINGUEIRAS E A PARANOIA MILITAR Não só em Aquidauana, mas também no restante do país, havia a suspeita de que os militantes de esquerda estivessem organizando comandos guerrilheiros para resistir ao regime recém-instaurado no Brasil. Leite esclarece que a elite e o exército de Aquidauana acreditavam que esses grupos de resistência teriam a função de organizar a tomada de poder na cidade e, por esse motivo, precisavam ser rapidamente reprimidos. Instalou-se ali então, nos anos de 1960, um clima de conspiração. Conversas em praças públicas, bate-papos em bares e rodas de amigos transformavam-se em boatos e ameaças veladas a atormentar as mentes dos moradores da cidade, como destacou Leite (2009), para quem tudo tinha origem nas denominadas reuniões dominicais, onde ideias utópicas poderiam se tornar realidade. Em seis de julho de 1964, o promotor de justiça Vicente Paschoal Júnior encaminha ao juiz da comarca de Aquidauana o processo protocolado sob o número 1.583, de 21 de embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 61 junho de 1964, derivado do IPM movido contra Enio de Castro Cabral, que deveria ser transformado em processo-crime com as seguintes denúncias: I- Segundo se depara da peça informativa o denunciado transgrediu as normas contidas nos arts. 9, 10,11 e 12 da lei nº 1.802 de 5 de janeiro de 1953. II- E tudo porque ficou provado que o denunciado exerceu, sem rodeios, atividades tendentes a reorganizar o extinto Partido Comunista Brasileiro, e fazer com que as normas estatutárias do referido Partido funcionassem, sendo certo, que referido partido, por higiene, por patriotismo e por decôro foi colocado à margem dos organismos políticos partidários nacionais; III- E mais ainda porque contribuiu com serviços e donativos, ostensivamente, para entidades que foram banidas da legalidade; IV- Outrossim, certo é que o denunciado, ainda, fazia, publicamente, propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política e social; V- Por fim, resta colocar de realce que o denunciado, diretamente e de ânimo deliberado incitou classe social à luta pela violência; VI- Assim sendo denuncio ENIO DE CASTRO CABRAL, já qualificado, como incurso nos arts. da lei acima referida, requerendo que contra ele se instaure o competente processo, de acordo com o que é preceituado pelo código de Processo Penal, em seu artigo 394 e seguintes, requerendo sua citação para ver-se processar e ser interrogado e para os demais têrmos e atos do processo –, pena de revelia –, protestando por todas as provas em direito permitidas, inclusive audiência de testemunhas cujo ról segue abaixo (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 2). Como se depreende dos artigos acima citados, o réu foi denunciado por transgredir os quatro artigos da Lei n. 1.802, que definia os crimes contra o Estado e a ordem pública e dava outras providências. Transcrevemos, a título de informação, o teor dos artigos reportados no IMP: Art. 9. Reorganizar ou tentar reorganizar, de fato ou de direito, pondo logo em funcionamento efetivo, ainda que sob falso nome ou forma simulada, partido político ou associação dissolvidos por fôrça de disposição legal ou fazê-lo funcionar nas mesmas condições quando legalmente suspenso. Pena: reclusão de 2 a 5 anos; reduzida da metade, quando se tratar da segunda parte do artigo. Parágrafo único. A concessão do registro do novo partido, uma vez passada em julgado, porá imediatamente têrmo a qualquer processo ou pena com fundamento neste artigo. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 62 Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo anterior. Pena: - reclusão de 1 a 4 anos. Art. 11. Fazer públicamente propaganda: a) de processos violentos para a subversão da ordem política ou social; b) de ódio de raça, de religião ou de classe; c) de guerra. Pena: reclusão de 1 a 3 anos. § 1º A pena será agravada de um têrço quando a propaganda fôr feita em quartel, repartição, fábrica ou oficina. § 2º Não constitui propaganda: a) a defesa judicial; b) a exaltação dos fatos guerreiros da história pátria ou do sentimento cívico de defesa armada do País, ainda que em tempo de paz; c) a exposição a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas. § 3º Pune-se igualmente, nos têrmos dêste artigo, a distribuição ostensiva ou clandestina, mas sempre inequìvocamente dolosa, de boletins ou panfletos, por meio dos quais se faça a propaganda condenada nas letras a, b e c do princípio dêste artigo. Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de 6 meses a 2 anos (Lei n. 1.802, de 5 de Janeiro de 1953 – Coleção de Leis do Brasil, 1953, p. 5, Vol. 1). Essa lei foi o instrumento necessário para que os militares tivessem uma base legal para processar os subversivos, mas se mostrou insuficiente, pois, por se tratar de uma lei civil, vários réus recorreram à justiça comum para alegar a incompetência das juntas militares para julgar tais processos. A pesquisadora Fabrícia Cristina de Sá Santos esclarece que De início, a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953 (que definia “os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dava outras providências”), foi o mecanismo legal utilizado pelos militares para enquadrar os “subversivos” que atentam contra a Segurança Nacional. No entanto, a mesma lei se mostraria insuficiente para fornecer todo o respaldo jurídico de que necessitava o regime para proceder aos “expurgos” dos elementos considerados subversivos. Com a ditadura instaurada, a JM passou a apreciar vários IPM, nos quais diversos civis eram julgados e, por isso, recorriam ao Supremo Tribunal Federal, argüindo incompetência da JM para proferir tais julgamentos e pedindo habeas corpus (SANTOS, 2004, p. 239). A respeito da competência dos tribunais militares, a Constituição Federal de 1946 deixa claro em sua seção VII, Dos Juízes e Tribunais Militares: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 63 Art. 106 - São órgãos da Justiça Militar o Superior Tribunal Militar e os Tribunais e Juízes inferiores que a lei instituir. Parágrafo único - A lei disporá sobre o número e a forma de escolha dos Juízes militares e togados do Superior Tribunal Militar, os quais terão vencimentos iguais aos dos Juízes do Tribunal Federal de Recursos, e estabelecerá as condições de acesso dos Auditores. Art. 107 - A inamovibilidade, assegurada aos membros da Justiça Militar não os exime da obrigação de acompanhar as forças junto às quais tenham de servir. Art. 108 - A Justiça Militar compete processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes são, assemelhadas. § 1º - Esse foro especial poderá estender-se aos civis, nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares (Redação dada pelo Ato Institucional nº 2). § 2º - A lei regulará a aplicação das penas da legislação militar em tempo de guerra (BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946). Como já mencionado anteriormente, durante o regime militar os IPMs tornaram-se os principais instrumentos da repressão política por parte do exército. E embora buscassem dar um ar de neutralidade e legalidade, como se agissem em favor da pátria, a inexperiência dos militares com as questões jurídicas acabou por levá-los a cometer uma série de erros processuais que mais tarde beneficiariam os acusados. Apesar dessa tentativa de revestir seus atos inescrupulosos de “certa legalidade”, na maioria das vezes os agentes da caserna acabaram por utilizar a força para alcançar seus objetivos. No entanto, antes de entendermos tais pormenores, passemos à apresentação do processo e das etapas que constituíram o referido documento analisado por nós. Em 24 de abril de 1964, o capitão Oscar da Silva, encarregado do IPM, apresenta nos autos a qualificação do acusado, conforme segue resumidamente: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 64 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 11) Nos autos são apresentados ainda outros dados sobre a biblioteca do professor, que possuía diversas obras de teor doutrinário comunista, assuntos sexuais e alguns livros didáticos. Os militares responsáveis pelo inquérito destacam também que ele era colaborador de várias associações de lavradores e do pessoal da construção civil e do mobiliário, o que comprovava sua função de doutrinador, de comunista atuante. Aparecem também reclamações de seus alunos, que informavam que ele aproveitava suas aulas para divulgar as ideias comunistas. Segundo eles, Enio afirmava que o momento histórico em que viviam, os anos 1960, era favorável a uma transformação política. O professor, apesar de negar tal fato, era acusado de ter proferido juramento perante a bandeira soviética com os alunos do Colégio Estadual Cândido Mariano. O capitão Oscar da Silva fez constar ainda que ele teria dito a um fazendeiro que “a revolução seria pacífica ou sangrenta, dependendo da atitude dos reacionários”. Os termos lavrados nos autos demonstram que os militares tinham realmente grande preocupação com suas atividades e consideravam que elas poderiam ser muito perigosas para a cidade de Aquidauana, chegando mesmo a se preocupar com questões de foro íntimo referentes ao acusado, conforme se infere na parte final dos autos: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 65 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 12). Observe-se que, pelos documentos transcritos acima, os militares não possuíam contra Enio nenhuma evidência concreta de atividades comunistas, ou mesmo que atentassem contra a ordem vigente. A motivação para a prisão e o interrogatório do acusado deveram-se muito mais às ideologias anticomunistas que povoavam a mente dos militares naquele período. Após a prisão, baseada em fatos subjetivos, como a alusão ao fato de ele ter um filho chamado Luiz Carlos Prestes Cabral (em verdade, o nome era Luiz Carlos Leite Cabral) e de ter obras comunistas na sua casa, foi preciso constituir provas contra ele. Por esse motivo o Capitão Oscar da Silva expede um auto de informação para busca e apreensão de documentos e obras que pudessem sustentar as acusações. No mandado, o capitão deixa bastante claro que os soldados devem empregar todas as diligências necessárias e os meios indispensáveis para a apreensão dos livros e documentos que se encontravam na casa de Enio. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 66 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 13) Um fato interessante do referido mandado de busca e apreensão é que o capitão, preocupado em revestir seus atos de uma determinada legalidade, indica duas testemunhas para acompanhar a diligência. Tal ato seria nobre caso não fossem elas dois soldados que estavam sob seu comando e que, portanto, nada questionariam em relação ao processo. Esse documento, de grande importância para nossa pesquisa, que visou entender a atuação intelectual de Enio Cabral em Aquidauana, revelou as referências de leitura que sustentavam sua prática. Os soldados indicados pelo encarregado do inquérito, acompanhados pelo cunhado do professor, entram em sua casa e, conforme se relata no 67 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana documento, procedem a uma minuciosa busca “em todas as salas, quartos e lugares, fazendo abrir todas as portas, gavetas e armários” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 13), para apreender livros, revistas, recortes de jornais, objetos e documentos que pudessem incriminar o acusado. Pelo referido auto de apreensão, podemos perceber que ele possuía uma vasta biblioteca, com livros que versavam sobre temas como marxismo, militância política, revoluções socialistas e comunismo, conforme destacamos a seguir: (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 15) Como é possível observar no trecho acima, além de documentos do PCB e de obras de Vladimir Lenin sobre o contexto das revoluções na URSS e Cuba, foram encontradas ainda obras como a de Plekhanov, que tratava do papel do indivíduo na história. Essas influências de leitura são importantes, pois revelam como Enio Cabral construía sua visão de mundo ancorada na concepção marxista de história e analisava sua realidade a partir embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 68 dela. Antonio Gramsci, em sua obra Os intelectuais e a organização da cultura, discute tanto o papel dos intelectuais orgânicos quanto a ideia de concepção de mundo como orientadora das práticas individuais. Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um "filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 1982, pp. 6-7). Além das obras destacadas anteriormente, podemos ainda citar as seguintes encontradas em sua biblioteca: de V.I. Lenin: La revolución proletária y el renegado Kautsky, La revolución proletária y la distadura del proletário (sic), A questão agrária, Duas táticas, Um passo adiante, dois passos atrás; de Karl Marx e F. Engels foram encontradas as seguintes obras: Manifesto comunista, As guerras camponesas na Alemanha, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Trabalho assalariado e capital, Trechos escolhidos sobre economia política, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e As lutas de classe na França; de Rosa Luxemburgo: Reforma ou revolução?; De Plekhanov: Questões fundamentais do marxismo e O papel do indivíduo na história; e de Eric Fromm: O conceito marxista do homem. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 15) Além desses teóricos marxistas, Enio recorria a obras nacionais para pensar a conjuntura do país, tais como as de Jorge Amado produzidas antes de sua saída do PCB, a exemplo de Seara vermelha, Vida de Luiz Carlos Prestes e Mundo da paz. De Luiz Carlos Prestes: Por que os comunistas apoiam Lott e Jango, O problema da terra e a Constituição de 1946 e A situação política e a luta por um governo nacional e democrático. Existiam ainda em sua biblioteca jornais e revistas que faziam alusão aos temas do comunismo e uma carteirinha que comprovaria ter sido ele membro do PCB. Todo esse material serviu de prova para que os militares comprovassem suas tendências comunistas (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 16). embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 69 ENIO CABRAL E SEUS DETRATORES As provas materiais não seriam suficientes, com certeza, para garantir a prisão de Enio; por esse motivo foram arroladas algumas testemunhas que teriam a função de comprovar sua atuação comunista na cidade, sobretudo na organização dos trabalhadores e no incitamento dos mesmos contra a ordem vigente. Um testemunho-chave no processo foi o do diretor do Ginásio Estadual Candido Mariano, onde ele atuava como professor de história e sofreu várias advertências por parte dos colegas, dos alunos e do próprio diretor em função de sua maneira peculiar de ensinar história. Por se tratar de um depoimento que pode nos esclarecer sobre sua atuação docente, que se chocava com a visão daquela sociedade, apresentamos um trecho abaixo: (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25) Nesse trecho, o diretor confirma as acusações contra o réu e procura se eximir da responsabilidade de ter contratado um comunista; ao mesmo tempo demonstra sua aversão a tais ideias e imputa a seu antecessor a responsabilidade de ter contratado o professor. Seu depoimento também é esclarecedor sobre as práticas docentes de Enio, que, provavelmente em face de sua concepção de mundo partilhada por outros membros do extinto PCB, utilizava as aulas para conscientizar seus alunos da possibilidade de uma transformação embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 70 social. No entanto, a leitura que a sociedade e os militares fizeram dessa prática foi a de que ele subvertia a ordem e, portanto, deveria ser silenciado. Como afirmei anteriormente, a abordagem de alguns pontos cruciais na conjuntura social brasileira, tais como a reforma agrária, a exploração dos trabalhadores, a possibilidade uma transformação social no país, acabou por levar os alunos de Enio a denunciá-lo para o diretor. Tal ato pode ser facilmente explicado se pensarmos que o Colégio Cândido Mariano foi à época e durante toda a década de 1960 considerado o melhor da cidade e, consequentemente, o reduto de uma elite ruralista e conservadora. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25) Aparece nesse trecho do depoimento do diretor uma questão importante acerca das concepções divergentes de educação e de história que Enio e ele possuíam. Na sua fala aparece implicitamente a noção de que a educação deveria servir para ajustar os alunos à realidade e à ordem capitalista vigente, já que fica claro que o mesmo concorda com as palavras dos militares quando afirmavam que o professor fugia dos temas previamente definidos pelo programa da escola para discorrer sobre “assuntos esquerdistas”, a saber: reforma agrária, revoluções sociais e comunismo. Assim, ao que parece o diretor e os militares partilhavam de uma concepção positivista de mundo, educação e ensino, o que os levava a entender as reflexões sobre temas da conjuntura brasileira e suas contradições como nocivas àquela sociedade. No entanto, se analisarmos as leituras feitas por Enio e sua ligação com o PCB, inferimos que em sua concepção de mundo, o ponto de partida para se embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 71 pensar educação e ensino se volta para o marxismo, que preconiza uma educação capaz de transformar a realidade. Assim, as reflexões sobre aspectos contemporâneos da sociedade em que viviam era algo inerente à sua práxis como educador marxista, que via na educação um espaço primordial para a conscientização dos alunos/cidadãos com os quais convivia. A perspectiva de se pensar a educação articulada com a realidade social dos indivíduos e como espaço de disputas contraditórias em torno de concepções de mundo já foi apontada por José Claudinei Lombardi: No meu entendimento, para o marxismo, não faz o menor sentido analisar abstrata e a-historicamente a educação, pois esta é uma dimensão da vida dos homens que, como qualquer outro aspecto da vida e do mundo existente, se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às transformações do modo como os homens produzem a sua existência. A educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro aspecto e dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida no contexto em que surge e se desenvolve, também vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo das lutas entre classes e frações de classe (LOMBARDI, 2011, 348). Outro traço assinalado no depoimento do diretor dizia respeito ao fato de não ter impedido Enio de divulgar suas ideias durante as aulas. Segundo ele, não era possível fazer nada a respeito pelo fato de o mesmo ser professor catedrático, só podendo ser demitido por meio de processo administrativo. Esse aspecto nos parece importante, pois leva a compreender como certos intelectuais têm a perspicácia de se infiltrar em espaços institucionais, conservadores e atuar nas brechas possíveis para empreender uma mudança a partir de dentro. Como aponta Lombardi, (...) o educador precisa romper com as pedagogias escolares articuladoras dos interesses da burguesia e vincular sua concepção e sua prática a uma perspectiva revolucionária de homem e de mundo. Não se trata simplesmente de aderir a uma concepção científica de mundo e seu poder desvelador da realidade, mas em assumir na teoria e na prática, isto é, na práxis, uma concepção transformadora da vida, do homem e do mundo (LOMBARDI, 2011, p. 364). As palavras de Lombardi expressam, provavelmente, a visão que Enio tinha de sua profissão, ou seja, a partir dos relatos de suas práticas, consideradas insubordinadas na escola e na sociedade, demonstrava seu compromisso com uma educação transformadora. 72 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana Nesse sentido, o fato de ser ocupante de um cargo de professor catedrático vitalício lhe garantia a possiblidade de resistir à visão burguesa de educação, pelo menos até que os militares tomassem o poder e instituíssem um novo aparato legal que feria direitos anteriormente adquiridos. Essa certa autonomia que Enio possuía também foi lembrada como negativa pelo diretor da escola, que se queixava do fato de não poder puni-lo de forma mais rigorosa em função da legislação existente até aquele momento, conforme transcrevemos abaixo: (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 25) Não foi só o diretor da escola que depôs contra Enio; alguns alunos foram convocados pelos militares para prestar informações sobre a conduta do mesmo como professor, bem como sobre os possíveis desvios cometidos. Dentre eles destaca-se o depoimento de um aluno, José Carlos Nery, de 20 anos de idade, que compareceu ao quartel na ocasião do IPM. Perguntado se teria sido aluno do referido professor, afirmou: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 73 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 26) Incitado pelos interrogadores, ele passa a esclarecer a prática do professor, que possuía abordagens didáticas pouco convencionais para aquela época ao desafiar seus alunos a se questionarem sobre temas que perpassavam suas vidas, mas que geralmente não eram discutidos pela maioria dos professores. Buscava expor seu ponto de vista para conscientizá-los, inclusive solicitando que estendessem tais discussões a seus pais, mas não obteve grande êxito, pois acabou denunciado por seus próprios alunos. Quando perguntado sobre quais outros assuntos Enio abordava durante as aulas, o jovem respondeu que ele sempre defendia a reforma agrária, tendo até mesmo solicitado alguns trabalhos sobre o tema, conforme o trecho que apresentamos a seguir: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 74 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30) Em outro trecho da redação do aluno Adão Flores, podemos perceber que Enio Cabral conseguia exercer certa influência sobre os alunos, já que apesar de assumir, em parte, o discurso do vazio demográfico, conseguia fazer algumas críticas ao sistema de distribuição de terras no Brasil, que segundo ele era dominado pelos grandes latifúndios improdutivos. 75 embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 30) Adão Flores conclui seu texto afirmando que a reforma agrária era necessária no Brasil, pois o tornaria um país mais rico e digno de seus filhos. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 31) Nery não foi o único aluno a entrar em confronto com o professor; outros também entravam em debate com ele, principalmente as moças, quando o mesmo questionava a embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 76 existência de Deus. Suas palavras escandalizavam e prejudicavam o desenvolvimento da classe, afirmava Nery. Os pais de alguns de seus alunos também foram chamados a depor sobre a atuação do professor. Um deles foi Eustorgio de Andrade Brito, criador de gado em Aquidauana, que afirmou que suas filhas faziam constantes reclamações sobre os assuntos tratados em sala de aula: (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 28) Novamente nota-se no trecho acima o descontentamento do pai e dos alunos com os temas abordados, que extrapolavam a dimensão programática da disciplina e apontavam para sua postura social. Enio acreditava numa educação transformadora que se projetasse para fora dos muros escolares e pudesse atingir também os pais e demais sujeitos de uma determinada sociedade no despertar de uma consciência revolucionária. Por outro lado, o pai em questão possuía uma visão sobre a educação segundo a qual ela deveria manter a estabilidade social sem grandes transformações, além de permanecer distante de temas como o comunismo, a reforma agrária e as teorias revolucionárias. No pensamento do pai encontramos uma mentalidade fatalista, que entendia o capitalismo como a única e embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 77 definitiva saída para a resolução dos problemas da humanidade. Dessa forma, a educação teria a função apenas de transmitir os espólios dos vencedores e não permitir a transformação do homem. Mészaros expõe com clareza essa perspectiva da educação: A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestação da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (MÉSZAROS, 2008, p. 35). Era precisamente contra essa ordem instituída pela ótica capitalista que o professor Enio se insurgia através de sua prática pedagógica, que buscava a construção do conhecimento por meio da análise da realidade concreta que circundava seus alunos. Talvez seja esse o motivo de sua prática educacional ser tão contestada pela sociedade matogrossense, uma vez que esta, em virtude de sua tradição coronelista e mandonista, certamente acreditava numa educação positivista que levasse à conservação dos valores tradicionais da ordem vigente naquele contexto de autoritarismo. Pelo que pudemos apurar de seu comportamento como docente, percebemos que Enio transformava a própria realidade e suas contradições em matéria para suas reflexões sobre o processo histórico, recorrendo, portanto, a temas como a reforma agrária, o comunismo e possibilidade de uma revolução no país. Isso nos leva a crer que muito provavelmente a inspiração para sua práxis pedagógica vinha da orientação do partido comunista, sintetizada por Favoreto: Em síntese, o PCB, em seu período inaugural, não atribuiu nenhuma tarefa exclusiva à escola, mas se designava a ele mesmo poderes superiores, tanto na divulgação da idéia comunista, na doutrinação das massas como na condução do processo histórico. Com essa concepção de educação partidária, apesar de não encorajar seus militantes ao debate sobre o ensino, diante da demanda escolar, não deixou de defender a escola como direito, como uma possibilidade de formação adequada ao desenvolvimento da industrialização e da democracia brasileira. No conjunto do movimento reformador pedagógico, os militantes comunistas incorporaram a concepção de educação laica, científica e ativa e, semelhantemente aos escolanovistas, criticaram o método repetitivo e a embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 78 cultura literária, livresca e religiosa que acreditavam ser predominante no período (FAVORETO, 2008, p. 220). Como afirma a autora, o PCB não possuía uma política educacional clara, mas fornecia algumas diretrizes para se pensar a educação como um fator de transformação social. A documentação por nós analisada demonstra que a concepção defendida por Enio vai ao encontro da perspectiva do partido, uma vez que sempre fugia das aulas tradicionais e repetitivas, instigando seus alunos ao debate sobre os problemas contemporâneos que afetavam não só o país, mas também a conjuntura internacional. Além disso, buscava afirmar uma educação laica capaz de permitir a transformação social e promover a igualdade entre os indivíduos. Muito provavelmente foi sua capacidade de orador hábil no convencimento de estudantes e operários que chamou a atenção dos militares e dos coronéis de Aquidauana, mesmo antes da deflagração do golpe. Isso se torna claro quando observamos que Enio foi preso no dia 04 de abril de 1964, quatro dias após o golpe, juntamente como outros militantes que o ajudavam na organização/sindicalização dos trabalhadores da região. O que mais nos impressionou na leitura do processo foi o fato de ele, ao contrário de outros militantes, não ter capitulado e ter se mantido firme em sua condição de militante comunista e defensor da revolução. embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 79 A influência do pensamento do PCB era bastante forte na leitura de mundo e de educação que o professor possuía. Isso fica esclarecido quando de seu interrogatório, em que foi perguntado se discutia com as crianças assuntos como a reforma agrária e as reformas de base, e ele respondeu sim, afirmando que isso estava totalmente dentro do programa da disciplina de História. Enio também demonstrava ser bastante hábil para escapar de situações que pudessem incriminá-lo perante os militares. Exemplo disso ocorreu quando os interrogadores lhe perguntaram sobre sua prática na sala de aula. Questionado se admitia que não deveria tratar de assuntos que ainda estavam em discussão no Congresso, ele admitiu que sim, mas justificou que fazia isso com o objetivo de atualizar os conhecimentos históricos a serem repassados a seus alunos. E ainda argumentou que tratava desses temas para desviar a atenção de leituras prejudiciais a formação moral, “tais como: Gibi, Meia Noite, X-9 etc.” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42). Em nenhum momento o professor negou suas ações perante os militares; quando lhe perguntaram se determinava que seus alunos fizessem trabalhos escritos e debates sobre a reforma agrária, respondeu que sim, fazia isso desde o ano de 1963 para os alunos da primeira e da segunda série ginasial e que não via nenhum problema em tais atos, pois eram problemas pertinentes à conjuntura brasileira e, como professor de história, ele teria de abordá-lo e o fazia de forma imparcial, demonstrando certo humor, mesmo numa situação de grande pressão. O interrogatório também objetivava investigar as práticas de leitura de Enio, que revelou ser um leitor de obras sobre o comunismo e a conjuntura da União Soviética. Sobre isso há um detalhe interessante que revela que, apesar de viver numa cidade distante dos grandes centros, nos quais tanto a ditadura quanto o comunismo tiveram maior repercussão, ele demonstrava acompanhar os debates internos do PCB. Isso se torna claro quanto observamos que Enio era leitor da revista Novos Rumos e, provavelmente por este motivo, dava declarações muito parecidas com as do comitê central do PCB no que se referia aos rumos de uma possível revolução socialista no Brasil, como esta, retirada de seu depoimento dados aos militares em abril de 1964: embates de um professor comunista contra a ditadura em aquidauana 80 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 42) Como chamei a atenção anteriormente, Enio se mostrava bastante convicto sobre sua condição comunista. Em seu depoimento, afirmou que passou a trabalhar para o partido comunista em 1953 e que naquele período, juntamente com outros companheiros, liderava o comitê dirigente de Aquidauana. Ao final de seu depoimento, quando inquirido se possuía provas de sua inocência, respondeu que possuía apenas sua palavra como prova e o desejo de melhorar as condições de vida do povo brasileiro. A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros. Os dominadores se estabelecem por dez mil anos. Só a força os garante. Tudo ficará como está. Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores. No mercado da exploração se diz em voz alta: Agora acaba de começar: E entre os oprimidos muitos dizem: Não se realizará jamais o que queremos! Bertolt Brecht, Elogio da dialética capítulo II a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 82 N o transcurso do século XX o Brasil passou por uma série de transformações em sua organização política, econômica e sociocultural. A disputa intraoligárquica que foi nomeada como Revolução de 30 reconfigurou as disputas de poder das camadas abastadas da sociedade brasileira, assim como os governos que se seguiram foram responsáveis pelo incremento do processo de industrialização de alguns dos principais centros urbanos, mudando-lhes a feição com o crescimento de grupos como o proletariado e as classes médias. A conjuntura internacional na qual estava inserido o Brasil foi marcada pelo avanço do socialismo a partir da revolução bolchevique, vitoriosa em 1917, pelos violentos conflitos transnacionais de 1914 até 1945 e pelas disputas havidas em um mundo polarizado a partir de 1947 (HOBSBAWM, 1995, pp. 29-60). Naquele período, as transmissões radiofônicas eram a principal forma de propagação de notícias para as camadas abastadas, médias e populares, sendo utilizadas de maneira eficiente por governantes como Getúlio Vargas (1930-1945; 1951-1954). Para além, a imprensa escrita, sobretudo os jornais diários, fossem eles matutinos, vespertinos ou noturnos, servia para abastecer de notícias e versões diversas as populações urbanas. Periódicos semanais ou mensais também circulavam, com maior ou menor vendagem, e serviam aos interesses vários em disputa naquele momento. Desde o século XIX os periódicos, sobretudo na capital do país, serviam para expressar as rixas ideológicas dos distintos grupos políticos que disputavam espaço nos cenários regional e nacional. É importante ressaltar que o principal foco de interesse dos a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 83 políticos de maior projeção até o final dos anos 1920 estava no campo regional, aquele de dominação de um estado. Após a ascensão de Vargas ao poder, com o objetivo de subtrair esses poderes dispersos e concentrá-los na condução da república, os debates se dariam sobretudo no Rio de Janeiro. As propostas econômicas e políticas de Vargas levariam à formação da indústria de base no país, minando parte da expressão política das antigas oligarquias, das quais ele mesmo fazia parte. Isso fez com que em outros espaços, como São Paulo, novos grupos econômico-políticos emergissem, como o dos industriais. A ideologia modernizadora se fazia presente juntamente a uma veemente negação das propostas transformadoras oriundas das experiências socialistas na Europa. O declínio do fascismo, caro a Vargas, seria um dos elementos justificadores para sua saída do poder. Entretanto, o que vimos não foi a substituição ou a superação daquela ideologia, mas apenas uma disputa no seio das camadas abastadas pela tomada do poder. Assim, o que ocorre na passagem da primeira para a segunda metade do século XX no Brasil – notadamente a partir de 1956, sob o governo de Juscelino Kubitschek – é um incremento da modernização, aqui instalada com sua face conservadora, ou seja, ancorada no capital internacional, na acumulação de capitais por parte das camadas abastadas, seja na forma de bens móveis ou imóveis, excluindo, por sua própria natureza, as classes subalternizadas do país. Isso pôde ser observado nos centros urbanos industrializados, objeto de estudo de grande número de intelectuais, e também, mas menos explorado, no campo. A ideologia e as ações modernizadoras e conservadoras foram as responsáveis, no centro-oeste do país, por abrir suas fronteiras ao capital estrangeiro a partir da concessão de terras, o que, juntamente com o capital nacional, explorou a mão de obra pauperizada pelo modelo de desenvolvimento excludente adotado. Se nos importa conhecer os modos pelos quais as camadas abastadas dessa sociedade subalternizaram – e ainda o fazem – as camadas populares, é preciso também compreender as diversas tentativas de resistência a esse processo, tenham elas obtido maior ou menor sucesso, ou ainda sucesso imediato ou a longo prazo, nos distintos setores da sociedade, ou seja, na organização econômica ou educacional dos agentes envolvidos, ou do país em sua totalidade. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 84 Dessa forma, buscamos compreender o tensionamento havido entre os grupos conservadores e progressistas, a exemplo dos capitalistas estrangeiros e nacionais estabelecidos no centro-oeste, em especial no estado de Mato Grosso, e os militantes ligados ao Partido Comunista Brasileiro que atuavam no estado, principalmente no sul, foco de nossa pesquisa. Esses grupos travaram embates ideológicos em torno do modelo de desenvolvimento a ser adotado no país, influenciando não apenas o campo econômico, mas também o educacional, considerando ambos como políticos. O embate entre esses sujeitos antagônicos se estabeleceu tanto em nível macro quanto micro. No caso do Mato Grosso, ele se tornou mais claro com o advento da Marcha para o Oeste, movimento geopolítico que visava aumentar o controle da porção oeste do território brasileiro e que certamente necessitaria da aliança costumeira entre o Estado e o capital nacional e estrangeiro. Tal processo foi analisado pela historiografia produzida no sul do Mato Grosso como um movimento pela ocupação e expansão territorial do interior do Brasil. Marisa Bittar (2009), na obra Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: poder político e elites dirigentes sul-mato-grossenses, esclarece que a Marcha para o Oeste fundamentava-se numa geopolítica que floresceu um pouco antes do início da primeira guerra, que pensava os Estados como organismos em luta pelo “espaço vital”, que, no caso brasileiro, se voltou para o interior país. Suzana Arakaki (2003) também tratou desse tema na obra Dourados: memórias e representações de 1964, demonstrando que a concepção adotada por Vargas entendia o centro-oeste como um espaço estratégico para seu projeto de expansão interna, que visava a ocupação de áreas estratégicas que impulsionariam o desenvolvimento econômico do país. O historiador Alcir Lenharo (1985), na obra Colonização e trabalho no Brasil: amazônia, nordeste e centro-oeste considera que a ocupação dos denominados “vazios demográficos” pelo Estado visava o alargamento do mercado interno brasileiro por meio da ampliação e diversificação da produção e do agrupamento dos núcleos econômicos, garantindo assim a unidade nacional. Os trabalhos destacados acima demonstram que a partir da Marcha para o Oeste inicia-se no Brasil uma tentativa de modernização conduzida pelo Estado, denominada por Arakaki e Bittar, com quem dialogaremos no decorrer do capítulo, de modernização conservadora, categoria de análise já apresentada na introdução deste trabalho. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 85 A ideia de uma modernização conservadora que girasse em torno da política de concessão de terras no interior do país, com vistas ao incremento da produção interna e à expansão do capitalismo, idealizada pelo governo Vargas e aprimorada durante o governo JK, foi fundamental para que o poder central combatesse os poderes regionais que o ameaçavam e abriria espaço para uma tradição autoritária que se consolidaria na ditadura militar. O pano de fundo da ideologia política que perpassou esses três períodos históricos, distintos entre si em diversos aspectos, era o controle da distribuição dos bens materiais, ou seja, em que se pesem suas diferenças, ambos buscaram favorecer o desenvolvimento capitalista e subalternizar as classes mais pobres da sociedade brasileira. Outro ponto coincidente entre esses governos era o anticomunismo, que se tornou uma preocupação a partir do quarto período de governo de Vargas, perpassou o governo de JK e tornou-se a grande preocupação durante o regime militar. A IMPRENSA E A MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA NO SUL DE MATO GROSSO A historiadora Marisa Bittar, ao discutir o divisionismo no Estado do Mato Grosso, nos apresenta um histórico da região centro-oeste como um espaço estratégico, em função de sua condição fronteiriça e suas potencialidades para os empreendimentos agrícolas e pecuários, o que motivaria múltiplos conflitos entre o poder central e os interesses regionais desde o império. Bittar esclarece que o regionalismo presente no Brasil desde o século XIX era um dos problemas que seriam enfrentados pelo poder central desde 1892 no Mato Grosso, que mesmo não propondo a divisão do estado naquele momento, manteve a animosidade entre os grupos que habitavam o norte, o centro e o sul do estado. Tal regionalismo acabou por desencadear um movimento separatista representado pela Liga Sul-Mato-Grossense, que em 1934 enviou ao governo central uma petição propondo a separação do estado, rejeitada pela federação. As tentativas separatistas continuaram ao longo dos anos até sua consolidação em 1977, mas não vamos aqui detalhar tal processo; interessa-nos apenas demonstrar como o governo Vargas contrapôs-se a esse processo durante seu governo. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 86 Segundo Bittar (2009), a grande preocupação do Estado Novo era adotar medidas centralizadoras para construção de uma sociedade nacional. Dessa forma, afirma ela: “As ações do Estado Novo em Mato Grosso inseriram-se inteiramente no tripé políticoideológico no qual se assentava a ditadura de Vargas: autoritarismo, centralização e intervencionismo” (BITTAR, 2009, p. 249). A preocupação nacionalista de Getúlio Vargas era uma estratégia para combater os poderes regionais representados pela oligarquia remanescente da nova república, que se mostrava descontente com a nova política centralizadora, realizada por meio de interventores nomeados pelo Estado. A figura do interventor, ligada diretamente ao governo federal, esvaziava o poder dos líderes regionais ligados ao Estado e alterava as relações nas diversas regiões brasileiras. Vargas via na intervenção pelo Estado a única forma de empreender uma modernização, derrubar as barreiras regionais e expandir a produção para que o país alcançasse seu verdadeiro desenvolvimento. Foi a partir dessa ideia que formulou, entre os anos 1930 e 1940, a teoria do “vazio demográfico”, que apontava para a necessidade de ocupar as áreas “inabitadas” das regiões norte e centrooeste, consolidada na campanha da Marcha para o Oeste. Segundo Bittar: A campanha “Marcha para o Oeste” iniciou-se nesse quadro sociopolítico, com o estabelecimento das colônias agrícolas nacionais, promovidas pelo governo federal em colaboração com os estaduais. Para tanto, Vargas criou, em 1943, a Fundação Brasil Central, cujo objetivo era desbravar e colonizar áreas no Norte e Centro Oeste (BITTAR, 2009, p. 256). Como é possível observar, a Marcha para o Oeste buscava promover uma interiorização das atividades produtivas que se encontravam concentradas principalmente no litoral brasileiro desde a colonização, buscando assim um incremento do capitalismo pelo viés conservador do nacional-desenvolvimentismo. O Brasil do interior seria uma prova inconteste da proposta de Vargas de estabelecer um novo bandeirantismo, que poderia garantir a integração e a modernização do Brasil. A integração do território era para Vargas uma espécie de antídoto para o regionalismo que propunha movimentos separatistas que poderiam esfacelar a unidade nacional, tão cara a ele. Bittar aponta que teria sido esse sentimento que o levou a criar os territórios federais no sul do Mato Grosso, como demonstra: a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 87 Quanto ao Mato Grosso, foi sob a lógica da interiorização nacional e, portanto, da consolidação do capitalismo pela via autoritária, que Vargas criou, em 1943, o Território Federal de Ponta Porã e a Colônia Agrícola de Dourados, no sul do estado. Interessante observar que o Estado Novo voltou sua atenção para essa parte de Mato Grosso, pretendendo povoá-la e integrá-la ao desenvolvimento capitalista sem, contudo, atender a demanda separatista que havia chegado ás mãos dos constituintes de 1934. Vingança pela adesão do sul de Mato Grosso a São Paulo em 1932? (BITTAR, 2009, p. 256). Bittar esclarece que a criação dos territórios frustrou os interesses da Liga Sul-MatoGrossense, uma vez que excluía a cidade de Campo Grande e deixava claro seu pouco interesse em dividir o estado nos moldes preconizados pela petição de 1932. Como aponta a autora, isso seria uma incoerência de Vargas, considerando-se sua política de integração nacional. No entanto, se a Marcha para o Oeste não atendeu de fato aos interesses separatistas, serviu para distinguir ainda mais o sul do restante do estado, acendendo assim a chama do separatismo. Mas o que nos interessa nos argumentos de Bittar (2009) é que a expansão capitalista nas terras sul-mato-grossenses se deu pela intervenção do Estado, que impunha a ideia de unidade federativa sobre os interesses locais e regionais. Esse modelo de desenvolvimento não foi muito diferente durante o período militar, pelo menos no que se refere à povoação de regiões brasileiras. Segundo Bittar: No que tange ao tipo de desenvolvimento preconizado pelos arautos da “revolução de 1964”, a consolidação do capitalismo como sistema capaz de barrar as “investidas comunistas” no Brasil era incompatível com a existência de largas áreas vazias e despovoadas. A ocupação territorial era fundamental, tanto para atender objetivos de ordem interna quanto externa, uma vez que ambos os objetivos se conjugavam em prol da “vitória capitalista” sobre o mundo comunista. Assim, uma das estratégias internas para o Brasil deveria ser a ocupação, a tempo, dos espaços vazios, entre os quais se incluía o Centro-Oeste (BITTAR, 2009, 273). As estratégias de ocupação territorial eram alicerçadas nas teorias de Golbery do Couto e Silva e se baseavam numa dupla preocupação: integrar o ecumênico território brasileiro e permitir sua defesa de aventuras expansionistas que poderiam surgir. Segundo Bittar (2009), Golbery considerava Campo Grande e o sul de Mato Grosso, assim como 88 a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro Goiânia e o sul de Goiás, regiões fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Talvez por esse motivo tais regiões tenham sido sempre foco de atenção do Estado. Durante o regime militar, a região centro-oeste continuou sendo uma área que merecia grande atenção no projeto de desenvolvimento elaborado a partir das estratégias de segurança concebidas no interior da Escola Superior de Guerra (ESG), principalmente por Golbery, que, juntamente com outros intelectuais, desenvolveu diversos levantamentos e estudos de viabilidade econômica, sobretudo na área de transporte, para integrar essas áreas ao restante do país. A ocupação militar, com a criação e/ou a transferência de comandos do exército para a região, juntamente com teoria de integração nacional e anticomunista, foram de suma importância para que os militares conquistassem o apoio das elites locais, sobretudo no apoio ao golpe de 1964. Segundo Bittar, “a destituição do presidente João Goulart, em 1964, obtivera não apenas anuência do governo mato-grossense, mas das duas elites que simbolizavam a rivalidade norte-sul” (2009, p. 280). Bittar (2009) afirma que os grupos de nortistas e sulistas, que divergiram desde a década de 1930, se uniram em 1964 para apoiar a “revolução”, seduzidos pelo desenvolvimentismo que daria visibilidade ao Mato Grosso e a seus problemas internos, o que poderia favorecer, finalmente, a divisão do estado. Sobre isso afirmava ela: Os governos Militares, saudados pelas elites políticas e econômicas matogrossenses, estavam bem apretrechados de estudos geopolíticos sobre o centro-oeste. A lógica do “progresso” e do “desenvolvimentismo”, como mencionamos, vinculada intimamente ao conceito de segurança nacional, não descuidaria dos destinos de Mato Grosso. A implementação do modelo capitalista preconizado pelos autores de 31 de março de 1964 poderia incluir, como de fato incluiu, a divisão de Mato Grosso de modo a melhor ocupar o Centro-Oeste e integrá-lo “ao Brasil litorâneo e desenvolvido”, cabendo a um dos três principais assessores de Castelo Branco a decisão de criar Mato Grosso do Sul (BITTAR, 2009, p. 283). Outro ponto importante da análise de Bittar é a demonstração de que, quando finalmente a política econômica desenvolvimentista e integracionista regional superou o divisionismo, aconteceu a divisão do estado do Mato Grosso, criado por meio de uma lei complementar assinada pelo governo Geisel. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 89 A historiadora Suzana Arakaki também estudou o processo de modernização do sul do Mato Grosso, mais precisamente na região da cidade de Dourados, e também defende a tese uma modernização conservadora implementada desde a era Vargas e consolidada na ditadura militar. De acordo ela: Após assumir o poder, Getúlio Vargas idealizou o fortalecimento do Estado como forma de combater as oligarquias regionais. Para tanto, nomeou interventores nos Estados vinculados diretamente ao aparelho burocrático, neutralizando o poder das elites estaduais (ARAKAKI, 2003). A autora afirma que a discussão das teorias de segurança e geopolítica encontrou grande acolhimento nos meios militares e constituiu um dos elementos mais importantes para se pensar a governança das regiões brasileiras. Dentre os ideólogos da geopolítica das fronteiras destacam-se os estudos de Everardo Backheuser, que serviram de fundamento para a criação dos territórios federais durante a ditadura. De acordo com sua teoria: A fronteira é a epiderme do organismo estatal, captadora das influências e pressões forâneas e, como tal, deve estar subordinada ao poder central e não às autoridades regionais que manifestam menor sensibilidade para esses problemas. (...) Afigura-se-nos que Backheuser, ao formular tais teorias, estivesse olhando diretamente o estado de Mato Grosso e seu estreito relacionamento com a Companhia Matte Larangeira, onde interesses público e privado se imiscuíam sem pudores, desde os tempos do império (ARAKAKI, 2003, p. 21-22). A criação do território federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola de Dourados era uma iniciativa do governo Vargas que se inseria nas teorias de Backheuser da necessidade de proteção da fronteira. Arakaki argumenta que, além da questão do fortalecimento da divisa por meio de sua ocupação, a criação dos territórios federais traria ainda um alento à população do sul do Mato Grosso, que esperava finalmente ver sua economia se desenvolver através dos recursos federais que seriam injetados na região. No entanto, apesar da euforia inicial sentida pelos atos varguistas no sul do Mato Grosso, a alegria duraria pouco, pois o território de Ponta Porã teria vida curta, sendo criado em 1943 e extinto em 1946. Já a Colônia Agrícola de Dourados teve uma longevidade maior e tornou-se a menina dos olhos do governo Vargas, que divulgava a experiência ali implementada como a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 90 modelo de desenvolvimento para outras áreas interioranas do país. Se não podemos afirmar que o projeto de expansão territorial da Marcha para o Oeste foi um sucesso em todo o território brasileiro, haja vista a curta duração do território de Ponta Porã, no caso de Dourados a experiência se mostrou frutífera, pois, como destaca Arakaki: A partir da implantação do projeto colonizador de Vargas e da criação da Colônia Nacional, verifica-se uma corrida pela terra na região de Dourados. De 13.164 habitantes, a população rural passa para 68.487 em apenas duas décadas, resultado da implantação da CAND, que passou a receber migrantes e imigrantes interessados na exploração agrícola da região. Gaúchos, nordestinos, mineiros, paulistas, catarinenses e paranaenses, além de imigrantes japoneses somaram-se à população já existente na região (ARAKAKI, 2003, p. 27). Suzana Arakaki chama a atenção para o fato de que, embora as autoridades estaduais tivessem usado diversos artifícios para adiar a implantação da colônia, como, por exemplo, retardar a concessão de terras para a criação da mesma, Dourados alcançou destaque nacional e foi prestigiada pela presença de vários presidentes, como Getúlio Vargas em 1941 e 1943, Juscelino Kubitschek em 1957, Jânio Quadros em 1960, João Goulart em 1963, Ernesto Geisel em 1976 e João Batista de Figueiredo em 1982. A partir da análise apresentada por Arakaki em relação à modernização iniciada com a implantação dos territórios federais pelo Estado varguista e principalmente da Colônia Agrícola de Dourados, compreendemos que o sul do Mato Grosso constituía uma região estratégica para a proteção da fronteira nacional e a expansão do capitalismo no período que vai da era Vargas à ditadura militar. Vale lembrar que a preocupação com a região oeste do Brasil se inicia durante o período colonial, com a iminência das invasões espanholas através dos países fronteiriços, como Paraguai e Bolívia. A questão tornou-se mais latente com a guerra na tríplice fronteira, como destaca Arakaki: De fato, foi a partir da guerra que a atenção do poder central voltou-se para a efetiva ocupação das fronteiras, notadamente a oeste, tendo com isso o estado de Mato Grosso passado a merecer atenção especial, face à sua localização privilegiada na Bacia do Prata. O transporte fluvial, via Rio Paraguai, constituía-se no meio mais eficiente de acesso ao estado e, quando por ocasião da guerra esse acesso foi barrado pelas tropas paraguaias, o exército brasileiro viu-se em dificuldades para socorrer a fronteira invadida. Sem outro meio de movimentar-se, o exército brasileiro demorou um ano para alcançar o estado de Mato Grosso após a a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 91 notícia da invasão paraguaia ao território brasileiro, por via terrestre (ARAKAKI, 2003, p. 36). Pode-se afirmar que a guerra foi um fator preponderante para a preparação e a consolidação do militarismo no Brasil, pois foi em decorrência dela que o frágil exército brasileiro se tornou organizado e capaz de conter as ameaças externas e internas, sobretudo nas divisas. Assim, podemos afirmar que nos estados fronteiriços com os países vizinhos o militarismo tornou-se uma forte presença, o que certamente facilitou a implantação do regime ditatorial nessas regiões, como foi o caso de Dourados e Aquidauana. Arakaki (2003) aponta para o fato de que a região sul do estado de Mato Grosso desde a Marcha para o Oeste logrou atenção do poder central como uma área integrada ao sistema capitalista nos anos de 1940; posteriormente seu prestígio se manteve como área de segurança nacional, conforme os parâmetros das teorias geopolíticas formuladas pela ESG. De acordo com ela, a implantação da Colônia Agrícola em Dourados permitiu, não só na cidade, mas também em seu entorno, um aumento da população e um incremento da economia, abrindo possibilidades para o surgimento de lideranças políticas ligadas aos partidos que desempenhariam funções importantes na conjuntura local. Durante a década de 1960 tais lideranças terão um papel importante na disputa entre os dois projetos distintos presentes naquele contexto, a saber: o defendido pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o representado pela União Democrática Nacional (UDN). As querelas políticas entre os dois partidos se tornaram ainda mais intensas no período de João Goulart e nos momentos que antecederam o golpe. Historicizando tal processo, Arakaki afirma que: O projeto colonizador implementado com relativo sucesso por Getúlio Vargas, criador do Partido Trabalhista Brasileiro, fez crescer politicamente o PTB em Dourados. Na década de 60, o partido viveu seu apogeu político com a eleição de Vivaldi de Oliveira para a prefeitura local em 1959. Nas eleições seguintes, em 1963, Oliveira fez seu sucessor, outro petebista, Napoleão Francisco de Souza, um ex-pracinha mineiro radicado em Dourados. Vivaldi de Oliveira, no mesmo período elegeu-se deputado estadual (Arakaki, 2003, p. 50). A partir dos dados apresentados por Arakaki, percebe-se que a região sul do Mato Grosso tornava-se um solo fértil não só para a agricultura, mas também para o fortalecimento político do PTB e de João Goulart, que seria, em breve, seu principal a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 92 expoente. A partir de 1960 o PTB se fortaleceu na região, tendo um presidente da república e um prefeito, numa eleição em que contaram com um importante apoio do PSD. A ascensão do PTB em Dourados, somada à visita de Jango à cidade, em setembro de 1963, para entregar os títulos de propriedade aos colonos da CAND, colocou em alerta os representes da classe ruralista aglutinados na UDN, que se mostravam bastante preocupados com as invasões de terra ocorridas, sobretudo a partir da implementação da CAND, uma vez nem todos os migrantes que para ali se deslocaram conseguiram a terra prometida. A questão da terra pode ser considerada o estopim da reação antijanguista em Dourados, e – poderíamos acrescentar – em todo o sul do Mato Grosso. Além da questão agrária, João Goulart propôs ainda uma reforma urbana que aterrorizou a elite brasileira e sul-mato-grossense, despertando assim um anticomunismo que seria um dos elementos importantes para sua deposição. Arakaki assim definia o sentimento da população naquele momento: Tomar propriedade era coisa de governo comunista, como já se difundira ideologicamente entre os habitantes locais. No imaginário destes, o comunismo era o mais nefasto dos sistemas de governo, visto que, além da expropriação da propriedade privada, também proibia o culto religioso católico. Tais realidades tinham acontecido à Rússia e à Cuba. O ano de 64 inicia-se com expectativas negativas na região de Dourados. A imprensa escrita, que há muito vinha combatendo as Reformas de Base de Jango, desta vez tinha motivos para protestar mais veementemente (Arakaki, 2003, p. 54). Desde o início de seu governo, Jango prometia uma reforma agrária que desapropriaria as terras improdutivas e as distribuiria às famílias que delas necessitassem, dando prioridade para aquelas que viviam na região das terras desapropriadas. O desacordo entre executivo e legislativo em torno da melhor forma de ser promover a reforma agrária fez com o projeto fosse combatido pelo seu próprio partido, que, em função das disputas no congresso, desfez sua aliança histórica com PSD, que posteriormente se aliaria com a UDN. Jango, vendo a impossibilidade de conseguir a reforma por meio do congresso, resolve realizá-la por meio do Decreto Presidencial n. 53.700, de 13 de março de 1964, como destacou Arakaki: a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 93 O decreto, composto de dezessete artigos, previa a desapropriação de áreas rurais que não atendessem à função social da propriedade, ou seja, terras improdutivas que não estivessem sendo devidamente exploradas por seus donos. Tais terras, que preferencialmente deveriam estar localizadas próximas às rodovias e ferrovias federais, e após a desapropriação seriam divididas em lotes de até cem hectares e vendidas ou locadas. As famílias mais numerosas de camponeses que já estivessem de alguma forma estabelecidos na região, teriam a preferência na concessão dos lotes. A repercussão desse decreto em Dourados foi imediata. O deputado federal pelo PSD, Weimar Torres, já na oposição após a aliança desfeita com o PTB, acusou Jango de espalhar pânico no meio rural e incentivar o comunismo. (Arakaki, 2003, p.55) Inicia-se, assim, uma cruzada antijanguista e anticomunista na região sul do Mato Grosso, motivada sobretudo pela disputa da terra, que será de fundamental importância para se compreender a repressão militar a qualquer atividade que indicasse a proximidade com João Goulart ou mesmo com o comunismo. Influenciadas pela IBAD, foram criadas diversas associações pelo Brasil com o objetivo de conter o que denominavam de onda comunista. Como destaca Arakaki, o movimento Ação Democrática Mato-grossense (ADEMAT), sediado em Campo Grande, teve como precursor a família Coelho – latifundiários udenistas, detentores de grandes extensões de terra no estado. A ADEMAT foi a responsável pela perseguição e delação de seus adversários políticos, principalmente os ligados ao PTB, instaurando um verdadeiro terror alimentado pela paranoia anticomunista dos militares. Arakaki (2003), nos depoimentos colhidos na ocasião da realização de seu projeto Memórias de pioneiros e ressonâncias do golpe de 64 na região de Dourados, afirma que “os comunistas, segundo depoimentos de moradores antigos da cidade, existiam apenas na imaginação das pessoas”. A historiadora atesta que as acusações aos comunistas na maioria das vezes não se baseavam em fatos concretos, mas sim na assimilação do discurso de oposição ao PTB e ao presidente João Goulart. Como nas demais cidades do Estado, logo após o golpe, os udenistas passaram a agir, prendendo e delatando pessoas, principalmente adversários políticos. A repressão consistia na busca e prisão dos suspeitos de atividades subversivas e, principalmente, de ativistas comunistas, assim entendidos os partidários do PTB e por conseqüência, dos Grupos de Onze. Mas segundo os entrevistados do projeto a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 94 Ressonâncias do Golpe de 64 na Região de Dourados, não havia comunistas na região. Algumas pessoas eram identificadas como tal, mas na verdade, tratavam-se apenas de simpatizantes (Arakaki, 2003, p. 60). Arakaki demonstra em seu trabalho que a UDN aproveitou-se da situação para se unir aos demais partidos de oposição a Jango e tachar todos os simpatizantes do presidente de comunistas. Na verdade, naquele momento, qualquer motivo serviria ao propósito dos inimigos políticos dos petebistas. A UDN encampou o discurso de defesa da democracia, proposto pelos “revolucionários” e saiu à cata de subversivos. Para essa busca, aglutinaram-se outras forças políticas contrárias ao PTB, partido de Jango e Vargas. O PSD, aliado de outrora, agora inimigo na luta contra a subversão, contra o “comunismo”; a UDN por sua vez, lutou ferozmente contra os petebistas (Arakaki, 2003, p. 64). Tal ideia nos parece interessante, pois em Aquidauana as acusações aos comunistas se deram da mesma forma, na maioria das vezes sem provas concretas, levantadas a partir de denúncias de adversários políticos ou mesmo de ruralistas preocupados com as disputas de terra, como ocorreu no caso de Enio Cabral, processado sem provas contundentes por crime contra a segurança nacional e atos comunistas. Tal situação refletiria não só na historiografia, mas também na imprensa escrita, como no caso da revista Brasil-Oeste, que discutiremos a seguir. A REVISTA BRASIL-OESTE A defesa de uma modernização conservadora e o combate ao anticomunismo aparecem não só na historiografia, mas também na imprensa nacional e regional, como é o caso da revista Brasil-Oeste, produzida em São Paulo por um grupo de intelectuais paulistas que, tendo vivido em Mato Grosso por algum tempo, estava ligado à elite do estado3. Publicada entre os anos de 1956 e 1967, circulou em diversos estados do país. A Brasil-Oeste consistiu-se num importante veículo de divulgação das propostas 3 A coleção completa da revista é composta por 123 edições e se encontra disponível para consulta na Biblioteca do campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A referida coleção encontra-se em bom estado de conservação e foi encadernada em capa dura, de acordo com o agrupamento das edições mensais organizadas por ano. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 95 modernizadoras dos governos autoritários no Brasil e num espaço de denúncia das elites mato-grossenses em relação ao descaso com que o poder central tratava os problemas da região. O caráter de propagadora dos interesses daquele Estado pode ser observado nos próprios dados fornecidos pela revista que, em seu editorial, trazia a informação de que se declara órgão de utilidade pública pela câmara de Mato Grosso, por meio da Lei n. 1.713, de dezembro de 1961. A revista era editada em São Paulo pelo jornalista Fausto Vieira de Campos e pelo diretor-proprietário Alberto Leme, como se visualiza em sua primeira edição: (Brasil-Oeste, 1956, p.02) A revista passaria, posteriormente, por uma mudança na diretoria, e Alberto Leme seria substituído por Fausto Moraes Godoy de Campos, filho de Fausto Vieira de Campos, também jornalista, que atuaria no periódico até o momento de seu fechamento, em 1967. Apesar de ser editada em São Paulo, a revista contava com diversas sucursais nas cidades de Mato Grosso. Os articulistas da Brasil-Oeste buscavam, sobretudo, apresentar em seus editoriais um discurso de caráter duplo: por um lado demonstravam as potencialidades econômicas do Mato Grosso e, por outro, cobravam do governo central mais investimentos no campo da infraestrutura estadual. No primeiro editorial, publicado na seção Notas e Fatos, busca-se esclarecer os leitores sobre quais os objetivos da revista: Nossa revista tem uma finalidade precípua: tornar mais conhecida e melhor compreendida a vasta região do Centro-Oeste brasileiro, compreendida pelos Estados de Mato Grosso e Goiás. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 96 De modo geral, entretanto, merecerão acolhimento, em nossas colunas, todos os fatos relacionados com os Estados que confinam com Mato Grosso, dada a identidade de interêsse que existe entre eles (Brasil-Oeste, 1956, p. 4). Na sequência, tentam ainda se desvincular de qualquer grupo político ou econômico e demonstrar imparcialidade na divulgação das matérias que faziam apologia aos estados de Mato Grosso e Goiás e à política do governo, o que era impossível pelo próprio caráter celebrativo das informações ali veiculadas. Era possível perceber nas páginas da revista a preocupação com a defesa da proposta estadonovista de ocupação do centro-oeste e da política desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck. Isso fica claro logo na matéria de abertura da edição nº 1, de janeiro de 1956, que trata da transferência da capital federal para o interior do país, como é possível observar no trecho a seguir: MUDANÇA DA CAPITAL DO PAÍS Cogita-se da construção de prédios, no Rio de Janeiro, para nova sede do Senado e da Câmara Federal. Essa iniciativa coincide com a notícia da formação de uma comissão de planejamento da futura Capital do país no Planalto Central de Goiás. A contradição entre os dois fatos, entretanto, está gerando a impressão de que não se intenta um esforço sério para efetivar a mudança da Capital do país. A comissão passaria, dessa forma, a constituir mero agrupamento burocrático, de vez que a preocupação maior daqueles que poderiam apressar o cumprimento do preceito constitucional que prevê a transferência da sede do Govêrno é mesmo a de continuar à beira da praia. É lamentável que se corporifiquem medidas como as que se aventam com relação aos novos prédios. Os interêsses da nação aconselham que se poupem gastos dessa natureza, se é realmente cogitação honesta a transferência da Capital da República para o planalto goiano, com a maior brevidade possível (Brasil-Oeste, 1956, p. 4). É interessante notar na matéria destacada acima que os articulistas, que desde seu primeiro editorial se dizem imparciais, defendem argumentos que refletem sabidamente, de um lado, os interesses do governo central, que desde o Estado Novo tinha como meta a transferência da capital para o interior e, de outro, os interesses das elites locais, que ansiavam por este acontecimento, uma vez que seria uma grande possibilidade de lucrar com a modernização decorrente dessa ação. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 97 A necessidade de mudança da capital para a região centro-oeste e os argumentos de favorecimento do estado de Goiás são apresentados na página subsequente da revista, numa matéria intitulada: “Novas perspectivas em Mato Grosso”, publicada na página 6. Nela os autores novamente tratam da aptidão do Mato Grosso para a produção agrícola, sobretudo para a produção de açúcar, leite e outros produtos que seriam facilmente escoados para outras regiões, graças à existência da estrada de ferro Brasil-Bolívia, que permitiria o estreitamento das relações comerciais destes países fronteiriços. O Paraguai é também citado na matéria, ao lado da Bolívia, como país que tinha de importar produtos de outras localidades longínquas, como Cuba, e que por isso poderia se transformar em mercado comercial importante para o Brasil. O caráter fronteiriço do estado do Mato Grosso justificava mais ainda a necessidade da construção da nova capital no coração do Brasil, conforme se expressa no trecho que retiramos da matéria supracitada. O Paraguai e a Bolívia, “países que abastecem precàriamente de outros países longínquos, inclusive Cuba”, são indicados como futuros mercados de açúcar cuiabano, neste surto de renovação do aparelhamento industrial das usinas mato-grossenses. “Nesse aspecto econômico de âmbito internacional já a simples cooperação do Estado não basta”, reconhecem os técnicos. È “indispensável a interferência federal, no sentido de ser facilitada a fundação de usinas de açúcar em Mato Grosso através do crédito e de condições de amparo e, mesmo, proteção” (Brasil-Oeste, 1956, p. 6). Na mesma matéria podemos perceber que a estratégia dos editores da revista era, por meio da propaganda, favorecer alguns grupos da inciativa privada que iriam lucrar com os investimentos de infraestrutura e de capital que o governo injetaria nos estados do centro-oeste, abrindo assim caminho para o desenvolvimento de um maior lucro para a iniciativa privada: A iniciativa privada, a cuja ausência “se deve esse estado lastimável da alimentação básica do povo mato-grossense, notadamente das crianças e dos jovens em crescimento”, dever-se-ia, segundo o parecer dos técnicos, juntar à do Estado “pela instituição de fazendas-modêlo de criação de gado leiteiro, com base na cultura forrageira, principalmente, da alfafa”; pelo incentivo à formação de granjas leiteiras, “nos arredores dos centros de maior densidade populacional, onde condições de meios se ajustam, proporcionando êxito à exploração” (Brasil-Oeste, 1956, p. 6). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 98 A REVISTA BRASIL-OESTE E A DEFESA DO PROGRESSO EM MATO GROSSO Pelos debates do corpo editorial da Brasil-Oeste acerca da situação do centro-oeste sob o governo João Goulart, percebe-se que sua proposição inicial de neutralidade frente a grupos políticos e econômicos estava comprometida. Portanto, é preciso investigar como o grupo que a editava buscava influenciar o processo de colonização/modernização e as políticas públicas no estado do Mato Grosso. Cumpre-me esclarecer que a fonte a que recorro para discutir o processo de modernização em Mato Grosso – a revista Brasil-Oeste – irá me interessar mais do ponto de vista das temáticas que veicula e, embora seja impossível desvinculá-la do contexto em que foi produzida, de seu formato editorial e do grupo que a edita, não irei me aprofundar aqui no debate teórico que pensa a imprensa como fonte e/ou objeto de pesquisa4. Segundo o pesquisador Murilo José de Souza Pires (2008), o termo “modernização conservadora” foi cunhado por Barrington Moore Junior (1975), que em sua obra As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno retratou o processo de desenvolvimento capitalista na Alemanha e no Japão, enfatizando que nesses países realizaram-se revoluções burguesas vindas de cima, caracterizando assim uma modernização tipicamente conservadora, pois, como adverte Pires: O eixo central do processo desencadeado pela modernização conservadora é entender como o pacto político tecido entre as elites dominantes condicionou o desenvolvimento capitalista nestes países, conduzindo-os para regimes políticos autocráticos e totalitários (PIRES, 2008, p. 09). Pires (2009) demonstra que os processos de desenvolvimento do capitalismo se deram de formas diferentes nos diversos países do globo, em função da ocorrência ou não de processos revolucionários que colocaram em xeque, em grau maior ou menor, a 4 Sobre esse assunto, consultar: CORRÊA, Ana Maria Martinez. (Prefácio In: LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. 1ª. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 1999; CRUZ, Heloísa F.; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35, pp. 235-270, dez. 2007; LUCA, Tania Regina de. História Dos, Nos e Por Meio dos Periódicos. In: ___. PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005; SONTANA, Edvaldo Correa. A paz sob suspeita: representações jornalísticas sobre a paz mundial no início da Guerra Fria (1945-1953). Tese de doutorado. UNESP/ASSIS, Ano de obtenção: 2010. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 99 hegemonia da classe dos proprietários de terra. Assim, segundo o referido autor, países como a Inglaterra, França e EUA, em função dos processos revolucionários que enfrentaram, construíram sociedades capitalistas e democráticas que conseguiram minar o poder das classes rurais e transferi-los para a burguesia industrial. Ao passo que em países como Alemanha e Japão, em função de um impulso burguês fraco, foi possível um acordo entre as classes dominantes pré-industriais, muitas vezes advindas do campo, com a classe burguesa industrial e comercial, configurando assim processos de modernização conduzidos de cima para baixo. A partir da análise dos casos dos países estrangeiros, Pires (2008) demonstra como a modernização conservadora engendra formas de desenvolvimento parcial, uma vez que as mudanças sociais determinadas pela industrialização foram condicionadas pela forma em que foram tecidas as relações políticas no seio do Estado Nacional, visto que os interesses entre o moderno e o tradicional permaneceram arraigados, com maior ou menor intensidade, no centro de decisão política do estado (PIRES, 2008, p. 12). Em artigo publicado na Revista Econômica do Nordeste, os autores (PIRES E RAMOS, 2009) se propõem a discutir como os pesquisadores brasileiros têm se apropriado do conceito de modernização conservadora, começando por esclarecer que nos países onde esse processo ocorreu não houve uma grande ruptura com as estruturas sociais do antigo regime. Deste modo, as revoluções burguesas na Alemanha e no Japão não seguiram a versão clássica, como no caso da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, pois foram revoluções burguesas parciais, visto que não destruíram efetivamente as estruturas sociais, políticas e econômicas do antigo regime. Assim, o pacto político orquestrado no interior do Estado nacional alemão e japonês aprofundou os laços políticos entre os terratenentes e a burguesia, excluindo os proletariados e os camponeses do direito pleno à democracia e à cidadania (PIRES E RAMOS, 2009, p. 412). Os referidos pesquisadores, não obstante considerarem que os intelectuais brasileiros tenham utilizado o termo “modernização conservadora” sem as críticas e mediações que se faziam e se fazem necessárias, ao compararem os processos de desenvolvimento ocorridos na Alemanha e no Japão com o que se deram no Brasil, concluem que no caso brasileiro, assim como nos países citados, houve um pacto político a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 100 entre a burguesia nascente e os proprietários de terra que condicionou a formação de uma burguesia dependente. Assim, na modernização brasileira, a burguesia não se constituiu em um poder autônomo e hegemônico para a nação, conduzindo-se, portanto, para os trilhos de uma economia dependente da dinâmica dos países centrais, subdesenvolvida em termos estruturais e autocrática (PIRES E RAMOS, 2009, p. 412). Esses autores tecem uma crítica à análise de Alberto Passos Guimarães (1977), que argumenta que a modernização conservadora tem como estratégia um incremento da produção agropecuária por meio de uma renovação tecnológica, sem que seja tocada ou mesmo grandemente alterada a estrutura agrária de um país ou região, sem levar em conta o fato de a mesma estar relacionada aos pactos políticos construídos entre as classes fundiárias e burguesas. E chamam a atenção para o fato de que o pacto urdido entre a elite dominante teve como resultado interditar o acesso das demais classes sociais “aos mercados de terras, de capital, de trabalho e à democracia e à cidadania” (PIRES, 2008, p. 16). Na visão dos autores, dentre os pesquisadores que melhor compreenderam o conceito de modernização conservadora e que, portanto, souberam analisar numa visão dialética a posição da burguesia nacional, destaca-se Fernando Antônio de Azevêdo na obra As ligas camponesas, publicada em 1982. Para Azevêdo, as classes dominantes sempre ocuparam um papel movediço na relação como o poder estatal, em decorrência de sua ânsia de poder e de seu objetivo de excluir as classes sociais proletárias. (...) dependendo das circunstâncias históricas e nacionais, a burguesia pode desempenhar um papel reacionário ou revolucionário, aliar-se às velhas classes dominantes e promover uma modernização conservadora, através da revolução passiva, de caráter elitista e autoritário, promovendo transformações pelo alto (PIRES, 2008, p. 24). Assim como Pires e Ramos (2009), concordamos com a ideia de Azevêdo de que no Brasil as elites agrárias e a burguesia estabeleceram uma aliança contraditória, com vistas a se perpetuar no poder e impedir uma mudança estrutural no Estado que permitisse a ascensão da maioria da população menos favorecida. Assim, novamente concordamos com a ideia de que no Brasil a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 101 O pacto político construído intestinamente no Estado foi o responsável por criar obstáculos ao acesso democrático à terra por parte das classes sociais inferiores, concentrando-se, assim, ao longo da formação e da evolução econômica brasileira, nas mãos de médios e grandes proprietários rurais (PIRES E RAMOS, 2009, p. 412). Ao observarmos, por meio das fontes que consultamos, o processo de desenvolvimento da região centro-oeste, particularmente no estado do Mato Grosso, foco de nossa pesquisa, constatamos que ele foi pautado, desde o período Vargas até a ditadura militar, pelo viés da modernização conservadora, na perspectiva apontada por PIRES (2008), já que as obras se concentram no campo da infraestrutura (usinas hidroelétricas, ferrovias, rodovias, mecanização do campo) e pouco no campo social (ampla reforma agrária, distribuição de renda, melhorias na saúde e na educação). Coutinho (2007), conforme apontamos na introdução deste trabalho, tratou da questão da modernização conservadora baseando-se nos conceitos de Lenin (via prussiana) e Gramsci (revolução passiva), que, em síntese, apontam para processos em que a modernização capitalista ocorre a partir de uma aliança entre forças modernas (burguesia industrial) e atrasadas (oligarquias agrárias), construída “pelo alto”, ou seja, pelo Estado, que se torna cada vez mais forte e autoritário, alijando as classes subalternas. A ideia de que as transições de regime ocorreram no Brasil “pelo alto” é demonstrada por Coutinho a partir de dois exemplos históricos: o primeiro se refere à independência, em que saímos de um sistema colonial pela mão do filho do rei, que se tornou imperador; o segundo diz respeito à transição democrática, em que o primeiro presidente civil era membro da Arena (base de sustentação dos militares). Dessa forma, Coutinho afirma que: Portanto, se observarmos bem, veremos que o processo de independência não se constituiu absolutamente em uma revolução no sentido forte da palavra, isto é, não representou um rompimento com a ordem estatal e socioeconômica anterior, mas foi apenas, de certo modo, um rearranjo entre as diferentes frações das classes dominantes (COUTINHO, 2007, p. 175). Como se depreende das palavras de Coutinho, a unificação brasileira se deu por meio de uma independência “pelo alto”, criando assim um fenômeno anômalo, em que o Estado se constitui antes da nação, já que não houve a ação das classes populares. Nesse a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 102 sentido o autor aponta: “O Estado moderno brasileiro foi sempre quase sempre uma ‘ditadura sem hegemonia’, ou, para usarmos a terminologia de Florestan Fernandes, uma ‘autocracia burguesa’” (COUTINHO, 2007, p. 176). A partir dessas expressões, Coutinho quer indicar que as elites brasileiras conseguiriam se tornar dominantes, mas não dirigentes, uma vez que, ao contrário do que ocorreu em outros países, o Estado foi o protagonista das transformações sociais. Isso talvez explique o fracasso das teorias acerca de uma possível revolução no Brasil que se ancorasse numa aliança entre burguesia e proletariado, como no caso de alguns países europeus, conforme acreditava o próprio PCB. Ainda de acordo com Coutinho, a direita autoritária brasileira (Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Francisco Campos) defendia uma modernização pela “via prussiana”, na qual o Estado deveria ser construtor do processo. Essa ideia nos pareceu elucidativa na medida em que percebemos a continuidade de um perfil autoritário na condução da modernização, desde a era Vargas até o período militar: Esse modelo de Estado burguês – intervencionista e corporativista – perdura, pelo menos, até o governo Geisel, ainda que conhecendo manifestações fenomênicas bastante variadas nos diferentes períodos históricos de sua evolução. Por exemplo: ao longo do chamado período populista, quando prossegue e se radicaliza a implementação da política econômica nacional-desenvolvimentista iniciada durante o primeiro governo Vargas, mantêm-se as características essenciais desse tipo de Estado. Perdura, em primeiro lugar, a noção de que a modernização, ou seja, o desenvolvimento econômico, tem no Estado um protagonista central (Coutinho, 2007, p. 180). Concordamos com as ideias de Coutinho sobre o protagonismo do Estado no processo de modernização brasileira; isso se mostrou bastante efetivo nos apelos por um Estado forte presentes na revista Brasil-oeste. Uma ressalva importante a ser feita é a de que não estamos desconsiderando as nuances presentes nesses diferentes períodos, ou seja, é claro que a dominação estatal não foi total em todos esses períodos da história brasileira. O próprio Coutinho chama a atenção para o fato de que durante os governos Jango e Juscelino tivemos uma maior participação popular, mas isso não colocou em xeque o Estado. O autor concorda que houve um enfraquecimento do populismo no período, no entanto afirma: a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 103 Mas que tal Estado ainda não estivesse em crise terminal é o que foi comprovado pelo golpe de 1964: o regime que então se instalou destruiu o pacto populista, mas conservou – e até mesmo desenvolveu e reforçou – os traços mais perversos da nossa formação estatal anterior. Por isso, mais uma vez uma “revolução passiva”, na qual as “reformas de base” (agrária, bancária, universitária etc.), reivindicadas pelo movimento social golpeado em 1964, foram realizadas pelo alto, com um sentido nitidamente conservador (COUTINHO, 2007, p. 181). Observemos, então, a modernização ocorrida no estado do Mato Grosso em três períodos distintos (a saber: a Marcha para o Oeste, iniciada no governo de Getúlio, o nacional-desenvolvimentismo de JK e as obras de infraestrutura empreendidas pelos governos militares na década de 1960) por meio das matérias da revista Brasil-Oeste. Sob a égide da ideia de vazio demográfico propalada pelo estado getulista, a primeira iniciativa para ocupar o centro-oeste – a denominada Marcha para o Oeste –, com sua política de colonização ocorrida na década de 1930, em princípio deveria beneficiar famílias de agricultores com distribuição de terra gratuita na região. Para a região migraram, sobretudo, nordestinos em busca de melhoria da qualidade de vida. No entanto, ao chegarem à “terra prometida”, muitas vezes não conseguiram o apoio estatal para empreender a agricultura e se viram obrigados a servir de mão de obra barata para os grandes proprietários de terra locais, principais beneficiados por meio de indenizações pela política de distribuição de terras de Getúlio. Como mostra Daniel Hogan (2010), Transformações como esta foram fruto de políticas deliberadamente voltadas à ocupação de vazios demográficos, principalmente nas Regiões Norte e Centro-Oeste, como a criação em 1941 da Fundação Brasil Central, que tinha a finalidade específica de realizar a colonização da região central do país (CPDOC/FGV, 2001). No fim da década de 30, o Governo Federal criou a Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), formada por onze áreas, com sede em Ceres, na mesorregião do Centro Goiano, nas terras férteis ao norte de Goiânia e Anápolis; inaugurada em 1941, a CANG de Ceres foi viabilizada pela ligação ferroviária de Anápolis com o Sudeste, que desde 1935 promovia a ocupação pioneira da região denominada Mato Grosso de Goiás. Em 1943 foi criada a Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no sul de Mato Grosso, uma área de terras com mais de 6.000 lotes que mediam cerca de 30 hectares em média e eram voltados para a agricultura familiar, centrada na policultura, a distribuição das terras foi feita gratuitamente, atingindo agricultores a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 104 sem-terra, de origem predominantemente nordestina (HOGAN, 2010, p. 182). Vargas, durante o período denominado Estado Novo, tomou outras medidas para financiar a expansão da fronteira agrícola, a exemplo da Carteira de Crédito Cooperativa do Banco do Brasil, criada em 1951 e transformada depois no Banco Nacional de Crédito Cooperativo, que objetivava apoiar as iniciativas particulares de pequenos produtores. Posteriormente, em 1954, foi criado o Instituto Nacional de Imigração e Colonização, que tinha o objetivo de revitalizar os núcleos de colonização existentes no país (CPDOC/FGV, 2001). Além disso, Vargas implantou o Plano Viário Nacional em 1951, que viabilizou a construção de rodovias-tronco em vastas áreas mato-grossenses, que a partir da década de 1950 constituíram o principal determinante para a ocupação realizada com a agricultura de subsistência na região (HOGAN, 2010, p. 183). Os investimentos iniciados pelo governo Vargas continuaram durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-61). Além da transferência da capital para Brasília, que beneficiou imensamente a região centro-oeste, fez diversos investimentos em infraestrutura na referida região em decorrência de seu plano de metas, que visava uma maior integração econômica dessas áreas com o restante do Brasil. Em seu governo, a malha rodoviária mereceu especial atenção. De acordo com Oliveira, JK começou as construções das rodovias Belém-Brasília (inaugurada em 1959, concebida como parte de um projeto maior da rodovia Transbrasiliana – BR-156) e Brasília-Acre (hoje denominada BR-364, concebida no período getulista e até hoje com muitos trechos sem asfaltamento). Outra rodovia importante da época é a BR-070, que se inicia em Brasília-DF e termina no município de Cáceres-MT, na fronteira com a Bolívia. Ela contribuiu para que Goiânia se consolidasse como área de influência socioeconômica sobre o centro-leste mato-grossense, região de Barra do Garças (PEREIRA, 2007). O governo JK promoveu grande venda de terras nas regiões norte e noroeste do atual Mato Grosso no intuito de que as áreas fossem colonizadas. Entretanto, tal tentativa não se efetivou, supostamente por não existir infraestrutura socioeconômica regional. Ao invés de surgirem núcleos urbanos e rurais, houve uma concentração de grandes extensões de terras com particulares, que passaram a especular com a venda das terras. (OLIVEIRA, 2011, p. 57). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 105 Outra preocupação de Juscelino, mas não exclusivamente dele, foi com a garantia de uma autossuficiência na produção de petróleo, uma forma de garantir uma maior integração nacional através das rodovias recém-inauguradas. Como mostrou Moreira, as preocupações com a exploração de petróleo foram justamente o que marcou o início da organização de um projeto nacionalista no país, que começou em 1943 e culminou com a criação da Petrobras: A campanha “O petróleo é nosso” mobilizando a população a partir de 1943 através das conferências patrocinadas pelo Clube Militar e consagrada, em 1953, com a criação da PETROBRÁS, serve como um marco do início da organização do nacionalismo enquanto movimento político preocupado em atingir e mobilizar o mais globalmente possível a sociedade brasileira. Desde então, o nacionalismo deixou de ser uma ideologia predominantemente estatal. Tornou-se também um movimento político e ideológico da sociedade que, mesmo mantendo relações com o Estado e dando apoio a certos governos, não pode ser confundido como um fenômeno puramente estatal. Como disse Antônio Cícero Cassiano Souza, pode-se "(...) afirmar que a campanha ‘o petróleo é nosso’ não acabou na criação da empresa estatal. Prosseguiu em duas frentes: na consolidação da empresa e na construção simbólica" (MOREIRA, 1998, p. 3). A tônica da modernização conservadora, pautada no ideal de integração nacional, e os investimentos em infraestrutura continuaram durante os governos militares. Como destacou Oliveira (2011), nos governos militares (1964-1985), Mato Grosso e a região amazônica foram beneficiadas pela criação da SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) e da SUDECO (Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste), ambas com o objetivo central de coordenar e concentrar a ação governamental de planejamento e implantação de infraestrutura socioeconômica e institucional (OLIVEIRA, 2011, p. 57). Oliveira destaca ainda que os governos militares foram responsáveis pela criação de órgãos federais com o objetivo de dar suporte à colonização, como o Instituto Nacional de Colonização e da Reforma Agrária (INCRA), criado em 09 de julho de 1970, sendo responsável pela criação e demarcação dos espaços vazios de colonização e assentamentos. Com a “federalização das terras amazônicas”, áreas de 100 km de cada lado das margens das rodovias federais no estado foram incorporadas ao patrimônio da União (Decreto-Lei n. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 106 1.164/71) e suscetíveis diretamente aos seus programas de colonização, sendo alvo de projetos de assentamentos do Incra, que teve clientela sulista pelo esgotamento das fronteiras nessa região, impulsionando o seu deslocamento em busca de reproduzir seu modo de vida (OLIVEIRA, 2011, p. 58). Moreno e Higa (2009) destacam que foi a partir de 1970, durante os governos militares, que se intensificou o desenvolvimento econômico do país, porém as indústrias que poderiam levar o Brasil à condição de país em desenvolvimento se concentravam na região sudeste. Por esse motivo os militares deveriam intensificar as atividades de expansão econômica iniciadas por Getúlio e Juscelino para outras áreas do país. Sob a doutrina da integração e da segurança nacional, buscavam integrar as áreas que estavam desconectadas do centro econômico. Em verdade, na região tais doutrinas camuflavam o verdadeiro interesse do governo, que era estabelecer a implementação de atividades agropecuárias em moldes empresariais, eliminando seu caráter extensivo e de baixa produtividade. Por esse motivo, na região os governos militares desenvolveram planos nacionais de desenvolvimento (PDNs), que tinham como atividades estratégicas:  Promover obras de infraestrutura nas áreas de transporte, produção de energia e armazenagem.  Expandir o processo de ocupação por meio de incentivos fiscais com anexação de novas áreas para exploração de grandes grupos capitalistas  Privilegiar os grupos econômicos considerados aptos a inserir a região no cenário econômico nacional através de política de liberação de crédito. Dessa forma, tais políticas, executadas do período de 1930 ao final da ditadura civilmilitar, beneficiaram as elites e a burguesia emergente do centro-oeste, o que explica o fato de esses setores, apesar de críticas parciais e esporádicas a todos os governos, jamais terem contestado de forma contundente as propostas de modernização conservadora. A única exceção fica por conta do governo de João Goulart, considerado num primeiro momento como simples sucessor de Juscelino, mas que se transformou em um “anticristo” comunista que destruiria toda a estrutura anteriormente criada por esses governos, pelo menos na visão dos representantes da elite conservadora mato-grossense, substancialmente beneficiada por essas inciativas governamentais, como destacam Moreno e Higa: a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 107 Nessas áreas, os proprietários de terra (pecuaristas) foram beneficiados duplamente: pela infraestrutura implantada na região e pela consequente valorização. Assim, tiveram a chance de acumular capital por outras vias que não a comercialização de sua produção. Quando a terra, valorizada pela infraestrutura colocada pelo Estado, torna-se mercadoria de maior valor, as possibilidades de acumulação de capital poderiam ocorrer através do arrendamento ou venda de terras (MORENO, 2009, p. 6). Por outro lado, os pequenos produtores que não obtiveram apoio por meio das políticas de créditos acabaram por vender suas terras e se tornaram mão de obra barata para que a concentração capitalista se ampliasse. É importante notar que, tanto nas políticas de expansão para o centro-oeste como na documentação por nós analisada, o eixo central é a produção/expansão econômica, em detrimento das áreas sociais, tais como a saúde e a educação. A IMPRENSA E O FAVORECIMENTO DAS ELITES EM MATO GROSSO Lenharo (1986), Salgueiro (2009) e Leite (2009) deixam claro que, nesse processo de favorecimento das elites e dos interesses governamentais, a imprensa ocupou um papel preponderante, no sentido de disseminar uma ideologia em relação ao estado de Mato Grosso com vista a lograr êxito junto à opinião pública em relação ao apoio necessário ao projeto de modernização levado a cabo nessa região. Por esse motivo, passamos a apresentar as caraterísticas do periódico e do grupo de intelectuais responsáveis por sua organização. Alguns pesquisadores tiveram contato com a referida revista, a exemplo de Eduardo de Melo Salgueiro e Eudes Fernando Leite. Salgueiro, em sua pesquisa de mestrado, analisou a linha editorial da Brasil-Oeste e afirmou: Desde o início, pudemos perceber o quanto o discurso de desenvolvimento e modernidade era forte neste mensário e a paixão das palavras escritas por seus articulistas. Na medida em que fomos manuseando a fontes, nos chamou atenção o fato de que uma questão era especial: ela não era encarada como um simples periódico; havia um projeto por trás de suas reportagens, com o objetivo central de tornar visível o centro-oeste do Brasil (especialmente Mato Grosso), para investidores e políticos de outras regiões do país (SALGUEIRO, 2010 p. 574). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 108 Em outro trecho, Salgueiro afirma que, visando promover o desenvolvimento do Mato Grosso, a Brasil-Oeste estabeleceu um conjunto de metas, uma espécie de manifestoprograma, encarado como um grande projeto, visando pôr em evidência a região centrooeste, que merece ser aqui destacado. Vejamos: Brasil-Oeste tem um programa definido, visando a acelerar o progresso na região Centro-Oeste do país. Dele destacam-se os seguintes itens: 1 – Colonização intensiva nos Estados de Mato Grosso e Goiás; 2 – Fomento da cultura da seringueira nas regiões Norte e Noroeste de Mato Grosso; 3 – Incremento da cafeicultura no Leste e Oeste de Mato Grosso e no Sul de Goiás; 4 – Fomento da triticultura nas áreas de Dourados, Itaporã, Maracaju, Bonito, Guia Lopes da Laguna e Terenos; 5 – Fomento da lavoura de algodão nas áreas de Dourados, Rio Brilhante e Campo Grande; 6 – Introdução de práticas modernas no criatório e incentivo à formação de plantéis de gado leiteiro na região sulina de Mato Grosso; 7 – Pesquisas e exploração do petróleo na zona pantaneira de Mato Grosso; 8 – Expansão da rêde ferroviária em direção de Cuiabá, e ligação, por estrada de ferro, da Capital mato-grossense a Brasília; 9 – Aproveitamento do potencial hidráulico da região da Bacia ParanáUruguai; 10 – Introdução de indústrias de abastecimento nos Estados de Mato Grosso e Goiás. COOPERE PARA O DESENVOLVIMENTO RÁPIDO DÊSSE PROGRAMA ECONÔMICO-SOCIAL, tornando-se assinante da BRASIL-OESTE (SALGUEIRO, 2010, p. 580). Leite, por sua vez, destaca a importância da revista como um projeto ideológico de intelectuais ligados ao Mato Grosso que procuravam, num movimento duplo, exigir investimentos do governo federal, bem como demonstrar a potencialidade da região para a agricultura e pecuária e ainda fazer a defesa de um projeto conservador para o desenvolvimento do estado, conforme podemos observar na seguinte frase de capa da revista, no ano de 1962: Esta é a hora de Mato Grosso! O último censo do IBGE revela que o maior crescimento populacional no país, de 1950 a 1960, verificou-se na região centro-oeste, compreendida pelos estados de Mato Grosso e Goiás. Dois fatores contribuíram para aquele crescimento populacional. 1- a existência de terras férteis e a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 109 adequadas para todos os gêneros de cultura; 2- as excelentes perspectivas que se entreabrem, ali, para as atividades econômicas (Brasil-Oeste, São Paulo, janeiro de 1964, p. 18). O pesquisador afirma, ainda, que a Brasil-Oeste extrapolou seu caráter informativo, servindo como um dos principais meios de divulgação das ideologias da elite matogrossense e dos governos autoritários das décadas de 1950 e 1960, como é possível perceber no trecho a seguir: Dando ênfase aos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país, além, do Centro-Oeste, Brasil-Oeste não poderia ser tomada apenas como veículo informativo sem maior importância. Mesmo porque, para uma revista de seus padrões, que ao cabo dos anos 50 conseguia realizar edições mensais é bastante significativo, especialmente se não dissociarmos este detalhe do contexto geográfico. A Editora Brasil-Oeste, responsável pela Revista montou uma boa infraestrutura [...] Não se tratava, pois, de uma simples aventura editorial, mas de um projeto elaborado e apoiado pela elite mato-grossense (LEITE, 1995, p. 69). As matérias publicadas na revista giram em torno das seguintes temáticas: agricultura, pecuária, economia, política, lar e família, municipalismo e atualidades. A preocupação era a de propagar a ideia do centro-oeste como uma região promissora para investimentos modernizadores, sobretudo no campo agrícola, que contava com o apoio integral do capital estrangeiro, conforme é possível perceber nas peças propagandísticas que nela encontramos. Salgueiro demonstra claramente a preocupação dos jornalistas que assinavam as matérias em criar uma imagem positiva da região e lança questionamentos importantes sobre qual o sentido desse processo de modernização. Destaca ele: São várias as tentativas da revista em demonstrar as benesses da região em detrimento das suas dificuldades, que, aliás, eram sempre atribuídas ao descaso dos políticos de ordem federal, ou seja, à União. O discurso permanente na Brasil-Oeste condiz com o momento histórico vivido pelo país: modernidade e desenvolvimento. Tudo gira em torno destes dois termos, enraizados na proposta editorial do periódico. Para analisar de maneira geral este momento no Brasil, utilizaremos bibliografia que traz o tema para efeitos de discussão. Nossa pergunta principal, neste capítulo, é: Que tipo de desenvolvimento econômico era encarado como ideal nas páginas da revista? Aonde podemos encontrar este discurso nas suas a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 110 páginas? São estas as questões que tentaremos resolver (SALGUEIRO, 2010, p. 584). O pesquisador traz ainda informações estatísticas importantes sobre a publicação. De acordo com ele, a revista atingiu uma tiragem de 18.500 exemplares mensais na década de 1960, tendo conseguido vender um total de 1.500.000 exemplares por meio do auxílio de seus diversos correspondentes espalhados pelo Brasil. Salgueiro, apoiando-se nos trabalhos de Cruz e Peixoto (p. 257), constata que a Brasil-Oeste atuou como uma “força ativa” na modernização do centro-oeste, tendo como foco a discussão dos principais problemas da região. Todos os problemas geoeconômicos que digam respeito aos Estados de Mato Grosso e de Goiás e aos Territórios do Guaporé e do Acre serão gradativamente examinados em nossas colunas, de modo que se esboce, através de uma honesta difusão de opiniões, uma solução adequada e justa para êles. Particular interêsse merecerão de nossa parte os assuntos agropecuários, pois que nesse ramo de atividades se fundamenta a parcela mais ponderável da economia dos Estados do Centro-Oeste (Brasil-Oeste, Ano 01, n. 1, 1956, p. 2) Esse discurso era compreensível, já que, como apontou Salgueiro, a revista possuía ligações claras não só com empresas estrangeiras e nacionais de modernização agrícola, como também com as colonizadoras de terras que atuavam no estado. Aponta ele: Não é de estranhar tal postura, uma vez que a Brasil-Oeste mantinha estreitas relações com algumas colonizadoras de terras da época. Em anúncio de venda de terras no norte de Mato Grosso nos primeiros números da revista, o endereço da empresa anunciante “é o mesmo da revista: Praça da Sé, 184, 4° andar, cj. 401, telefone 350594, São Paulo. A contracapa é tomada por um anúncio referido a Departamento Imobiliário do Oeste Brasileiro”. Este caso não é o único, em outros números é possível encontrarmos diversas propagandas da Colonizadora Norte de Mato Grosso Ltda., conforme o anúncio a seguir: “Compra de terras em Mato Grosso constitui ótimo empate de capital. Consulte-nos sem compromissos”, o endereço da empresa também é o mesmo da revista, neste caso, “Praça da República, 386, 3° - Conj. 33 – São Paulo-SP” (SALGUEIRO, 2009, p. 690). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 111 O historiador Alcir Lenharo também aponta para questão da ligação da BrasilOeste com os negociadores de terra do estado em artigo publicado na Revista Brasileira de História. O autor analisa a política de distribuição de terras no centro-oeste brasileiro, desde o Estado Novo até a década de 1950, e defende a tese de que critérios políticos favoreceram a atribuição de terras aos detentores do capital, em detrimento de trabalhadores pobres (LENHARO, 1986, p 47-64). Segundo ele, as décadas de 1930 a 50 preparam o cenário de conflitos que se acirrariam na década de 1960, apesar do livre exercício democrático e das atividades parlamentares, insuficientes para coibir os abusos e a especulação de terras na região. O autor afirma ainda que os trabalhos historiográficos costumam apreender as lutas pela terra a partir dos governos pós-64, mas para ele tais conflitos datavam de momentos anteriores, a exemplo das ligas camponesas e da formação de sindicatos rurais desde o período de 1945 (ver: ABREU E LIMA, 2005), como desdobramento da política de colonização de terras gestada nos anos 1930 e 50 e incrementada pelos militares na década de 1960. Afirma ele: No caso do Mato Grosso, e para as décadas de 30 a 50, momentos políticos diferentes entre si preparam lentamente a projeção dos conflitos; em particular, atente-se para os anos 50, época de livre exercício democrático e de atividades parlamentares, condições insuficientes, no entanto, para coibir os abusos relativos à farta distribuição de da terra pública e a subsequente especulação do solo, fonte segura de acumulação para grandes capitalistas e empresas do centro-sul, bem antes que o boom da penetração das multinacionais entrasse em evidência (LENHARO, 1986, pp. 47-48). Como fica claro, o jogo partidário e eleitoral, ao contrário de servir de barreira à depredação do bem público, acabou se transformando no canal principal para que grupos políticos associados aos capitalistas convertessem em lucro grandes extensões de terra virgem, obtidas a baixos preços, loteadas em seguida, ou estocadas para gerar riquezas sem trabalho. O favorecimento das classes abastadas no estado não era, com certeza, um fenômeno novo. Os arranjos empreendidos nesse período guardavam resquícios da prática coronelista tão caraterística da região desde o século XVIII, como demonstrou o historiador Valmir Batista Correa na obra “Coronéis e Bandidos no Mato Grosso”, na qual o autor informa: a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 112 Os coronéis mato-grossenses, cuja base econômica assentou-se na grande propriedade rural ou, em alguns casos, na posse de um patrimônio urbano (por exemplo, o comércio importador-exportador), exerceram efetivamente o poder de decisão a nível local, e até estadual, através do controle de empregos, cargos públicos e outros privilégios. Dessa estrutura política surgiram grupos oligárquicos, como os Murtinho, os Corrêa da Costa, os Ponce, os Barros, os Celestino, que se assentaram no poder estadual na medida em que mantiveram o respeito pela independência dos coronéis em seus respectivos domínios (CORRÊA, 1985, p. 53). Alcir Lenharo chama a atenção ainda para o fato de que esse processo de colonização de terras configurava-se num processo desigual de luta entre as classes sociais brasileiras, que poderíamos comparar à fábula de Davi e Golias, embora com um final diferente e trágico. A luta se dava entre “davis” proletários que eram derrotados pelos “golias” – políticos e capitalistas – que tinham um projeto de modernização excludente para a maioria dos brasileiros, a não ser que estes se contentassem a servir apenas como mão de obra para a reprodução do capital. Destaca ele: O problema que mais chama a atenção, no entanto, é o mapeamento de extensos territórios por grupos capitalistas, fechando-se a porteira, já antes dos anos 60, para as populações trabalhadoras que acorriam ao estado de Mato Grosso, em busca da terra própria para plantar. Há diferentes tipos de famílias trabalhadoras que estão sendo expulsas de seus lugares de origem, e se põem a caminho do oeste. Extensos territórios, aparentemente sem dono, despovoados e sem plantação, esperavam o seu trabalho. Pelo modo como a terra estava sendo apropriada, no entanto, não havia lugar aqueles trabalhadores, não. Ou melhor, lugar havia, mas somente para trabalhar para os outros, e continuar sem terra, como antes (LENHARO, 1986, p. 48). O interessante da análise de Lenharo é o fato de o historiador identificar o caráter contraditório do governo Vargas, que, sob um discurso preocupado em fazer justiça para aqueles que trabalhavam e não usufruíam dos frutos, na verdade escamoteava as intenções do governo de intervir sobre o trabalhador, com a finalidade de dirigir seu trajeto migratório, esquadrinhá-lo espacialmente quando de sua chegada e decidir sobre seu jeito de tratar a terra, inculcando-lhe o desejo de retirar lucratividade dela e de subir na vida (LENHARO, 1986, p. 49). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 113 A justificativa do governo Vargas para tal empreitada era o fato de que boa parte da população – diga-se de passagem a população branca – vivia no litoral. Já o interior do Brasil, densamente povoado por populações indígenas, de acordo com o discurso varguista, era pouco ocupado, portanto deveria ser desbravado em um novo movimento bandeirante que traria a “civilização” ao interior do país. Tal discurso do Estado Novo coadunava com uma série de iniciativas que visavam à ocupação produtiva do interior do país – a exemplo das expedições chefiadas pelo Marechal Cândido Rondon nas décadas de 1910, 20 e 30, a Marcha para o Oeste, da qual trataremos a seguir, e a expedição Roncador-Xingu, dos irmãos Villas-Bôas, ocorrida na década de 1940. Como já apontou Lenharo (1986), e ainda como já anunciado na introdução deste capítulo, o processo de modernização do centrooeste, que se intensifica nos anos 1960 com a ditadura militar, foco de nossa análise, se inicia ainda no final dos anos 1920 e ganha maior impulso nas décadas de 1950 e 60, respectivamente nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e dos militares. Assim percebe-se, pela própria análise da revista, que este processo estava intimamente ligado à política de ocupação da região oeste do Brasil, por meio da denominada Marcha para o Oeste, lançada nas vésperas do ano de 1938, período do Estado Novo. O NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO E A PENETRAÇÃO DO CAPITAL ESTRANGEIRO NO GOVERNO DE JUSCELINO KUBITSCHEK. O fenômeno do nacional-desenvolvimentismo foi um sistema político-econômico característico de vários países latino-americanos no período de 1930 a 70 e mereceu atenção de muitos pesquisadores latino-americanos e estrangeiros (ver: BATISTA JR., 2007, pp. 29-35; BRESSER-PEREIRA, 2006, pp. 5-24; SICSÚ, PAULA, & RENAUT, 2005, pp. 3-5; BANDEIRA, 1993; CANTON, 1971; CANTON, MORENO & CIRIA, s.d.; MURMIS, & PORTANTIERO, 1973; PRADO, 1981; SIGAL, & VERÓN, s.d.; KAPLAN, s.d.; BIELSCHOWSKY, 2000; BOSCHI, 2010; BOSCHI, & GAITÁN, 2008). Segundo Bresser-Pereira: Entre os anos de 1930 e 1970, o Brasil e outros países latino americanos cresceram em ritmo extraordinário. Eles se aproveitaram da fragilidade do centro nos anos 30 para formular estratégias nacionais de 114 a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro desenvolvimento que, essencialmente, implicam a proteção da indústria crescente nacional (ou industrialização por substituição de importações) e a promoção de poupança forçado pelo estado. Além disso, julgava que o estado deveria fazer investimentos diretos em infraestrutura e em certas indústrias de base cujos os riscos e necessidades de capital eram grandes. Essa estratégia foi chamada de “nacional-desenvolvimentismo” (BRESSER-PEREIRA, 2012, pp. 31-32). O autor nos esclarece ainda sobre qual o sentido do termo nacionaldesenvolvimentismo. De acordo com ele, o nome tinha a função de enfatizar que o objetivo principal era o desenvolvimento econômico do país e, em segundo plano, mas não menos importante, estabelecer metas compartilhadas pela nação (burocracia do Estado, empresários, classes médias e trabalhadores), com vistas a uma competição internacional dentro do sistema capitalista que teria o Estado como ator principal da ação coletiva. De acordo com a historiadora Vania Lousada Moreira, o nacional- desenvolvimentismo tornou-se uma preocupação da elite política e intelectual brasileira desde o colapso econômico de 1929. O nacionalismo característico dos anos 1930-64 configura-se inicialmente como uma ideologia do Estado e esteve associado não só ao populismo de Getúlio Vargas, mas também ao desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e ao reformismo social de João Goulart, isto é, às três mais importantes orientações políticas daquele período. Mas seria inexato considerar o nacionalismo como uma ideologia exclusiva do Estado brasileiro. A luta política e ideológica dentro dos partidos, sindicatos e associações de intelectuais, estudantes e militares foi matizada pelo vocabulário nacionalista e entre as inúmeras tendências nacionalistas não estatais então existentes, duas, além disso, destacaram-se pela amplitude obtida no cenário da época: o nacionalismo liberal ou nacionaldesenvolvimentismo e o nacionalismo econômico ou popular (MOREIRA, 1998, p. 03). A historiadora aponta as décadas de 1950-60 como fases importantes na gestação e consolidação desse processo de busca de um desenvolvimento autossustentado. Defender tal projeto era de certa forma uma maneira de tecer críticas ao modelo agroexportador e à classe oligárquica latifundiária que lhe deu sustentação nos anos 1930 e 40. Outro argumento interessante de Moreira é que o nacionalismo se tornou uma ideologia que penetrou na esfera tanto da direita quanto da esquerda. Certamente os intelectuais de ambos 115 a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro os lados possuíam objetivos diferentes em relação a ele, no entanto o mesmo servia aos propósitos de ambos os grupos. No movimento nacionalista – seja em sua vertente liberal representada, por exemplo, pelos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ou na orientação popular, característica de comunistas, socialistas e trabalhistas –, um dos maiores "vilões" da então sociedade brasileira (senão o maior) era a elite rural historicamente comprometida com a produção de artigos agrícolas para o mercado externo (MOREIRA, 1998, p. 3). Para se compreender o projeto nacional-desenvolvimentista característico desse período é necessário situá-lo num contexto mais amplo, que vai de 1930, com Getúlio Vargas, a 1964, com a ascensão dos militares ao poder. Contudo, deve-se dar atenção especial ao período de 1951-54 (segundo mandato de Getúlio) a 1956-60 (governo de Juscelino Kubitschek). O cenário político dos anos 1950 foi marcado por uma série de ações que permitiram a gênese e o desenrolar de um longo processo de transição que caracterizou o desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil. De acordo com Souza: De 1933 a 1955, presenciamos uma acumulação de capital pautada numa efetiva expansão industrial, ainda que num contexto econômico restritivo, devido às pressões das políticas da economia agroexportadora; já, de 1956 a 1961, constata-se o desenvolvimento de uma industrialização, com crescimento da capacidade produtiva do setor de bens de produção e do setor de bens duráveis de consumo. (...) O segundo governo de Getúlio Vargas (1951-54) se caracterizou pela concepção de um programa de industrialização voltado para a criação e o fomento de um capitalismo de cunho nacionalista, autônomo e sob controle estatal. Nesse contexto, cabia ao Estado o papel estratégico, fundamental e ativo, apoiado numa função mediadora de caráter interno, entre as classes sociais; e externo, do país com os centros decisórios do capitalismo mundial (SOUZA, 2010, p. 148). Acerca do governo de Juscelino Kubitschek, Souza afirma que este se caracteriza como a segunda etapa de industrialização no Brasil, em continuidade ao desenvolvimentismo iniciado por Vargas. O período que vai de 1956 a 1960 é marcado por um novo estágio econômico, uma vez que se articula ali a integração da economia e do capital nacional à divisão internacional do trabalho no pós-guerra. O Estado ocupa um a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 116 papel central nesse processo, agindo diretamente no impulsionamento de setores estratégicos da economia brasileira, como a construção do setor de bens de produção e o suporte de infraestrutura de capital social básico. Como destaca Souza: Dentre os aspectos que caracterizam a essência da administração JK, destaca-se primeiramente o tripé estratégico centrado no Estado, articulado ao capital estrangeiro e ao empresariado nacional, todos voltados para a criação de uma estrutura industrial mais avançada e integrada à nova divisão internacional do trabalho. Encaminhada pelo núcleo político do governo, a estratégia que tinha no “desenvolvimentismo” sua expressão ideológica e política, atuava de forma a minimizar as possíveis resistências através da negociação de interesses. (...) O segundo aspecto expressa a operacionalização de uma estrutura de poder informal, paralela, eficiente e vinculada diretamente à Presidência. Ao anular os tradicionais processos de tramitação legislativa, caracterizados por intermináveis negociações, essa “administração paralela” concretizava de maneira efetiva as decisões políticas. Finalizando, o governo JK sinalizava uma opção de política estatal centrada em soluções de conveniência, sem restrições quanto a encaminhamentos marginais. O objetivo maior da ação governamental era conseguir encaminhar o gradual avanço e o desenvolvimento do investimento público, sem que se necessitasse recorrer a uma reforma administrativa, fiscal e financeira de profundidade no país. Estas dimensões marcaram os futuros impasses que culminaram na crise de 64. Sobre a ação governamental adotada por JK em relação às políticas sociais, tais como saúde e educação, provavelmente por não estarem sofrendo uma exigência em “consistência e eficiência”, permaneceram, com algumas exceções, sendo gestadas e implementadas no âmbito da administração (SOUZA, 2010, pp. 149-150). Sobre esse período, Souza cita ainda a criação de uma série de órgãos governamentais que objetivavam o aparelhamento do Estado e a criação de uma política nacional de desenvolvimento econômico: São criados, em 1951, diversos órgãos setoriais de atuação nacional: a Comissão Nacional de Política Agrária (CNPA) encarregada de propor possíveis modificações na estrutura agrária; a Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI), com o objetivo de estudar e propor de medidas econômicas, financeiras e administrativas ligadas à política industrial; a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento de Transportes para melhorar os transportes e melhorar o abastecimento interno; a Comissão Nacional de Bem-Estar para cuidar “da melhoria das condições do povo brasileiro”. Nesse mesmo período, somam-se a essas Comissões, outras de atuação específica, além de outros órgãos e agências, totalizando a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 117 a criação de 22 instituições estatais, incluindo a criação da CAPES, da Petrobras, do CNPq e do BNDES, entre outras (SOUZA, 2010, p. 149). Percebe-se, a partir da passagem acima, que as mudanças econômicas no país com vistas à sua modernização pressupunham um aparato técnico que viabilizasse o planejamento e a execução das metas governamentais nos anos 1950. Era preciso, então, um corpo técnico que sustentasse tais órgãos – nesse momento, portanto, os intelectuais são alçados aos postos estratégicos da estrutura governamental. Sobretudo no governo de JK houve uma preocupação por parte do Estado em planejar e justificar ideologicamente suas ações, já que o populismo era a tônica da política do período, dando assim um destaque primordial aos intelectuais que, embora estivessem ligados ao Estado, consideravam-se independentes em relação à estrutura estatal. Dado que estas várias categorias de intelectuais tradicionais sentem com “espírito de grupo” sua ininterrupta continuidade histórica e sua “qualificação”, eles consideram a si mesmos como sendo autônomos e independentes do grupo social dominante. Esta autocolocação não deixa de ter conseqüências de grande importância no campo ideológico e político: toda a filosofia idealista pode ser facilmente relacionada com esta posição assumida pelo complexo social dos intelectuais e pode ser definida como a expressão desta utopia social segundo a qual os intelectuais acreditam ser “independentes”, autônomos, revestidos de características próprias, etc. (GRAMSCI, 1982, p. 6). O final da década de 1940 e o início da de 50 foram importantes pela criação de dois órgãos governamentais que teriam papel preponderante na formulação ideológica da política e da economia brasileira, a saber: a CEPAL (1948) e o ISEB (1955), que congregaram intelectuais vinculados ao poder estatal que se destacaram no cenário político institucional brasileiro ao assumir parte significativa da condução ideológica do projeto nacional-desenvolvimentista almejado pelos governos nacionalistas/populistas das décadas de 1950 e 60. Bresser-Pereira, ao analisar esse fenômeno, afirma: O estadista que primeiro imaginou o nacional-desenvolvimentismo na América Latina foi Getúlio Vargas, que governou o Brasil nos períodos de 1934-1945 e 1950-1954. Por outro lado os notáveis economistas, sociólogos, cientistas políticos e filósofos latino-americanos que formularam essa estratégia nos anos 1950 reuniram-se na Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), em Santiago do a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 118 Chile, e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no Rio de Janeiro. Eles desenvolveram uma teoria do subdesenvolvimento e uma visão nacionalista do desenvolvimento econômico com base na crítica do imperialismo ou da “relação centro-periferia” – um eufemismo próprio de intelectuais públicos associados a uma organização das Nações Unidas. Os economistas latino-americanos, entre eles Raúl Prebisch, Celso Furtado, Osvaldo Sunkel, Aníbal Pinto e Ignácio Rangel, inspiraram-se na economia política clássica de Adam Smith e Karl Marx, na teoria macroeconômica de John Maynard Keynes e Michael Kalecki e nas novas ideias da escola da economia do desenvolvimento (da qual faziam parte) para construir a escola estruturalista latino-americana (BRESSERPEREIRA, 2012, p. 32). Bresser-Pereira destaca que O ISEB foi fundamentalmente uma escola de intelectuais públicos que se reunia sob a liderança de Hélio Jaguaribe para pensar o Brasil e seu processo de desenvolvimento. O grupo, embora com grande capacidade intelectual, não se dedicou diretamente às pesquisas acadêmicas, pois estava mais interessados em participar da vida pública por meio de sua ligação com o Estado. Com a eleição de Juscelino, o ISEB, agora situado no aparelho estatal, transforma-se no principal centro de pensamento nacionalista e desenvolvimentista brasileiro (BRESSER-PEREIRA, 2004, p. 4). O governo, na tentativa de se desvincular da tradição oligárquico-agroexportadora, tão característica do primeiro mandato de Getúlio Vargas, buscou organizar seu governo em torno do ideal de modernização/industrialização do país e, para isso, recorreu a várias pesquisas e levantamentos organizados por pesquisadores nacionais e estrangeiros. Sua visão de abrir o mercado para o capital estrangeiro foi influenciada pelo paradigma cepalino do desenvolvimento dependente. A orientação da CEPAL, que preconizava que o nacional-desenvolvimentismo só poderia ser realizado numa relação de dependência entre o centro (países industrializados) e a periferia (países subdesenvolvidos), é confirmada na documentação que analisamos acerca do processo de modernização do centro-oeste. Em artigo publicado na edição nº 09, de janeiro de 1957, na revista Brasil-Oeste, encontramos um apoio explícito à penetração do capital estrangeiro no Brasil, principalmente em Mato Grosso e Goiás, estados nos quais a elite agrária, “em vias de modernizar-se”, dava grande apoio ao governo de JK. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 119 O dever do Govêrno é amparar os capitais estrangeiros, já investidos no País, garantindo aos seus detentores uma expansão natural de atividades, pois que isso significa maiores possibilidades de emprego de operário, maior riqueza, maior progresso em suma. Sómente dessa forma se poderá estimular outros capitalistas e inverterem capitais no Brasil, a secundarem iniciativas que carecem apenas de forte base financeira para maior desenvolvimento (Brasil-Oeste, 1957, p. 3). A criação da CEPAL pela Organização das Nações Unidas em 1948, no pós-guerra, tinha como objetivo desenvolver estudos e propor ações que permitissem o desenvolvimento da economia latino-americana. Seu grande desafio era superar o passado oligárquico desses países, que levou à organização de suas economias em torno do modelo primário-exportador – ou seja, eram, sobretudo, produtores/exportadores de matériasprimas, o que os deixava sujeitos às crises do mercado internacional. Outro problema a ser superado no cenário econômico latino-americano era a ausência de uma acumulação de capital significativa que permitisse o financiamento do processo de industrialização. Qual seria então a solução para os países da América Latina e, principalmente, para o Brasil? A partir da constatação de que essa realidade econômica era especial em função de seu caráter primário-exportador, a CEPAL adotou como princípio norteador de seu trabalho os processos de planejamento que possibilitassem um desenvolvimento acelerado e equilibrado. Esses processos, bem como seus limites, que foram a base da intervenção do grupo de intelectuais da CEPAL na política e na economia latino-americana, foram analisados por Octávio Rodriguez, que destaca: Diversos aportes têm origem no exame de problemas concretos, sejam de toda a área latino-americana, sejam de algumas economias que a conformam. Em torno dos problemas vai se articulando uma série de argumentos teóricos, reunidos ad hoc para explicar as causas dos mesmos e, especialmente, para justificar as medidas de política econômica que julgava-se adequadas para resolvê-los. Assim os trabalhos da CEPAL tendem a perfilar ad hoc os argumentos teóricos mais pertinentes para fundamentar determinadas ações no campo da política econômica, em detrimento do rigor e da precisão com que ambos se apresentam (RODRIGUEZ, 1986, p. 9). Rodriguez, apesar da crítica que faz ao grupo de intelectuais da CEPAL, por estarem mais preocupados em justificar as intervenções na política econômica do que em a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 120 manter o rigor teórico de seus estudos, considera que as análises e recomendações, acerca da economia, em seu conjunto, são em geral consistentes, ainda que o rigor analítico varie de acordo com cada documento produzido pela comissão. De acordo com ele, a unidade de pensamento no interior da CEPAL é de difícil percepção, uma vez os componentes de pensamento de seus integrantes encontram-se disseminados em vários documentos, publicados em períodos diferentes. No entanto, ressalta que este fato não impediu certa unidade de pensamento entre seus membros, já que o grupo seguia como paradigma originário a teoria do desenvolvimento periférico. Para compreendermos melhor a relação entre a teoria e a prática adotada pelo grupo de intelectuais formuladores da teoria cepalina do subdesenvolvimento, bem como tal postulado conceitual influenciou a política econômica latino-americana, principalmente o Brasil no período de JK, reproduzimos o quadro elaborado por Rodriguez (1986, p. 10): As orientações do grupo oriundo do CEPAL levavam o Estado brasileiro a crer que a melhoria da condição econômica do país viria por meio da industrialização, que permitiria a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 121 a adoção de métodos mais eficazes, típicos dos países do centro. Dessa forma, o progresso técnico aqui empregado poderia permitir a melhoria das condições de produção e, portanto, um desenvolvimento mais rápido dessa zona periférica do capitalismo internacional. Para Rodriguez, o pensamento cepalino sobre o desenvolvimentismo pode ser sintetizado da seguinte forma: os intelectuais que se aglutinaram no interior da estrutura da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe vislumbraram na industrialização e na reforma agrária conduzidas pela mão forte do Estado populista, em consonância com os interesses das elites agrárias, uma forma de promover o nacional-desenvolvimentismo, sem, contudo, modificar a desigualdade social interna. Assim, pode-se dizer que, ao acreditarem numa visão de desenvolvimento policlassista e populista, propondo, de um lado, reforma agrária dentro dos limites constitucionais e por meio de indenizações à elite agrária e, por outro, o aumento do consumo de todas as classes através da industrialização para superar as condições de periferia, os intelectuais quiseram agradar a gregos e troianos. De certa forma, isso funcionou nos governos de Getúlio Vargas – principalmente no segundo mandato – e de Juscelino Kubitschek, conseguindo, com certa eficiência, ludibriar o “povo” com propostas nacionalistas e populistas e garantir vantagens à burguesia nacional, classe privilegiada pelo projeto de modernização empreendido em seus respectivos governos. O caráter contraditório do projeto de desenvolvimento nacionalista para a América Latina, e principalmente para o Brasil, se expressa no fato de que a teoria desenvolvida no interior da CEPAL, centrada na relação de dependência entre centro e periferia, naturaliza a desigualdade social inerente ao modo de produção capitalista, tanto nas sociedades do centro como da periferia. José Luiz Sanfelice chama a atenção para o caráter desigual da sociedade capitalista, na qual os direitos são privilégios daqueles que podem pagar por eles. Afirma ele: A existência do “desenvolvimento” implica miséria e desigualdade. O “desenvolvimento” que fez desta uma das dez potências industriais mais poderosas do planeta não é, nem nunca foi, incompatível com uma sociedade onde os direitos são privilégio dos que têm dinheiro para comprá-los. Alguém poderia dizer que o problema está no tipo ou no modelo de desenvolvimento instituído no país. É verdade, mas essa parece ser uma justificação mais do que óbvia: o desenvolvimento é sempre um a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 122 modelo, nunca um princípio essencial de natureza pré-social ou prépolítica (SANFELICE, 2002, p. 57). É preciso esclarecer que os intelectuais cepalinos definiam como centro os países nos quais as práticas organizativas e técnicas de produção capitalista se estruturaram primeiro e, portanto, permitiram uma esfera de produção distribuída de forma mais equânime, mas diversificada em ramos específicos. Ao lado disso, consideravam periferia os países onde o sistema primário-exportador impediu a introdução de técnicas capitalistas que superassem o caráter especializado e heterogêneo da produção. Observa-se que a CEPAL adotava o nacionalismo por meio da defesa de um Estado interventor que favorecesse a burguesia nacional e, ao mesmo tempo, permitisse a sensação de melhoria de qualidade vida da população em geral por meio dos processos de modernização conservadora. O Estado interventor deveria, portanto, organizar, planejar e prover uma infraestrutura mínima para que o desenvolvimento da indústria pudesse ocorrer. Para isso, era preciso também destinar recursos para setores prioritários demandados pelo mercado interno. Assim, a proposta de intervenção da comissão apontava claramente para uma abertura ao capital estrangeiro, já que os recursos vindos do exterior seriam fundamentais para impulsionar a indústria de base e os setores de produção de energia elétrica, de serviço público e ferroviário. Encontramos evidências documentais que confirmam a prática de financiamento estrangeiro de obras de infraestrutura no Brasil. Na edição de número 09, de janeiro de 1957, da revista Brasil-Oeste, observa-se uma defesa da política de favorecer os investimentos do capital estrangeiro no país, como se visualiza no trecho que transcrevemos a seguir: Tem sido essa, aliás, a conduta do Presidente Juscelino Kubitschek. Os investimentos estrangeiros feitos no Brasil em 1956 montaram a mais de 200 milhões de dólares e para êste ano as perspectivas são muito mais promissoras. Basta destacar, por exemplo, os investimentos que a General Motors começou a fazer em São José dos Campos, os quais são da monta de 10 milhões de dólares em maquinaria e equipamentos e de 400 milhões de cruzeiros em instalações diversas, inclusive construção de edifícios para as fábricas e residências de técnicos e operários (Brasil-Oeste, 1957, p. 3). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 123 O caráter normativo e planejador da CEPAL foi reforçado pelas diretrizes do ISEB, órgão criado em 1948 pelo governo Café Filho e que serviria de forma preponderante aos propósitos de Juscelino Kubitschek. Segundo a historiadora Maria Emília Prado, o ISEB foi um forte aliado na instalação das propostas de JK e, depois de ser criado pelo Decreto n. 37.608, de 14 de julho de 1955 como órgão do Ministério da Educação e Cultura, passou a ocupar um lugar de destaque na formulação de diagnósticos e teorias sobre o Brasil e suas possibilidades de desenvolvimento. Sobre o contexto de sua criação, afirma ela: No Rio de Janeiro no decênio de 1950 um conjunto de intelectuais, dentre os quais antigos assessores do governo Vargas, decidiram se reunir sob a liderança de Hélio Jaguaribe com a finalidade de estudar a realidade brasileira. Essas reuniões eram realizadas na cidade fluminense de Itatiaia, o que fez com que fossem conhecidos pela denominação de “Grupo de Itatiaia”. Em 1954, ainda sob a liderança de Hélio Jaguaribe, foi fundado o Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP) que funcionava na rua do Ouvidor no então escritório de Jaguaribe. O IBESP oferecia diversos cursos sobre História, Sociologia e Política nacionais que funcionavam no auditório do Ministério da Educação. Em 14 de julho de 1955, através do Decreto nº 37.608, era criado o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) como órgão do Ministério da Educação e Cultura. O grupo de intelectuais que estava à sua frente tinha por objetivo o estudo, o ensino e a divulgação das ciências sociais. Objetivava-se, também, que os dados e as categorias aí formuladas servissem para análise e compreensão crítica do Brasil e pudessem contribuir para a promoção do desenvolvimento nacional. A partir de 1956 o ISEB passou para o prédio localizado na rua das Palmeiras, 55 em Botafogo (PRADO, 2007, pp. 2-3). É interessante destacar ainda a relação que Prado estabelece entre o pensamento desenvolvido no interior da CEPAL e do ISEB no que se refere aos rumos que a sociedade brasileira deveria seguir. A historiadora esclarece que uma das formas de incutir nas elites brasileiras as propostas do nacional-desenvolvimentismo era a organização de cursos de formação: Nesses cursos era oferecida uma visão ampla e geral da História do Brasil e do ponto de vista econômico as idéias aí apresentadas conjugavam-se com algumas propostas defendidas pela CEPAL bem como por Celso Furtado, que apesar de não integrar os quadros do ISEB era próximo do Instituto e de alguns de seus intelectuais. Os integrantes do ISEB viram no governo Juscelino o meio pelo qual seria possível que suas idéias fossem a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 124 postas em prática e dessa forma a instituição funcionou como aliada do projeto desenvolvimentista implementado por Juscelino Kubitschek. Em suas declarações públicas, Juscelino prestigiou o ISEB, definindo-o como um centro de cultura, estudos e pesquisa. Diferenciava-os dos demais órgãos universitários ao realçar a vocação do ISEB para o estudo dos problemas brasileiros. Ressalte-se, no entanto, o fato de JK não ter transformado os intelectuais do ISEB em seus assessores na orientação nem na implementação do Plano de Metas para o desenvolvimento. Para isto ele criou o Conselho de Desenvolvimento, que tinha esta missão (PRADO, 2007, p. 3). Edison Bariani (2005), em seu artigo ISEB: fábrica de controvérsias, nos apresenta ao grupo de intelectuais fundadores do instituto: O ISEB – que teve como ‘precursores’ o Grupo de Itatiaia e o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) – nasceu e morreu em circunstâncias curiosas, em momentos confusos, por meio de decretos assinados por figuras inexpressivas da política brasileira exercendo provisoriamente o poder: foi criado em 1955 por um decreto do governo interino de Café Filho e extinto 13 abril de 1964 por decreto de Ranieri Mazzili (presidente provisório). No início, congregava em seus conselhos curador e consultivo uma enorme gama de personalidades das mais variadas tonalidades ideológicas: Anísio Teixeira, Roberto Campos, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Miguel Reale, Horácio Lafer, Pedro Calmon, Augusto Frederico Schmidt, Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Heitor Villalobos, Fernando de Azevedo, San Tiago Dantas etc. Tinha como diretor Roland Corbisier e como responsáveis pelos departamentos Álvaro Vieira Pinto (Filosofia), Cândido Mendes (História), Ewaldo Correia Lima (Economia), Hélio Jaguaribe (Ciência Política) e Alberto Guerreiro Ramos (Sociologia); estes, juntamente com Nelson Werneck Sodré – remanescentes do IBESP – tomaram os rumos do instituto e ficaram conhecidos como os “isebianos históricos” (BARIANI, 2005, p. 1). A relação do ISEB com o governo JK foi amplamente discutida por Bolivar Lamounier no artigo intitulado ISEB: notas à margem de um debate, publicado pela editora Ática em São Paulo, no ano de 1977. No referido texto, ele afirmava que Os estudos e discussões que se têm feito sobre a ideologia nacionaldesenvolvimentista parecem convergir na crítica segunda a qual o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), extinto em 1964, foi um dos grandes responsáveis, senão o grande responsável, por certa intoxicação ideológica, obscurecendo as possibilidades de organização e atuação autônoma por parte da classe operária. Existem, entretanto, inúmeras maneiras de dizer isso, cada uma implicando diferentes juízos a respeito a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 125 do ISEB; e mais que isso, em distintos entendimentos a respeito do que se passava no Brasil ao fim dos anos 50 (LAMOUNIER, 1977, p. 153). No decorrer do artigo, Lamounier chama a atenção para sua discordância em relação à interpretação de Caio Navarro Toledo, expressa no livro ISEB: fábrica de ideologias, no qual o referido autor sistematiza de maneira particular a tese de defesa do nacionaldesenvolvimentismo por parte do ISEB, considerando que o instituto tutelava as classes dominadas e hipotecava o apoio a uma elite nacionalista, transformando-se assim numa “fábrica de ideologias”. Lamounier (1977) discorda da crítica feita por Toledo, segundo a qual “o ISEB fazia mistificação ideológica porque sobrepunha a contradição nação/antinação às contradições de classe, dando prioridade à primeira, ou mesmo absolutizando-a”. Para o pesquisador, essas críticas, que não eram exclusivas de Toledo, mas comum a outros autores, a exemplo de Marilena Chaui e Maria Sylvia de Carvalho Franco (1978), eram pouco esclarecedoras. O autor acredita que os pesquisadores que partilharam a tese de “mistificação ideológica” partiram de uma análise simplista e parcial, pois consideraram tudo que se referia à “nação” como ideologia, e tudo que se referia às classes, verdade/crítica. Para rebater as críticas de Toledo, Lamounier propõe então uma análise que passaria por dois pontos: o primeiro seria uma referência mais exata ao contexto de atuação do ISEB; o segundo, destinado ao reestudo de alguns conceitos implícitos no trabalho de Caio Navarro. Suas considerações sobre o trabalho de Toledo não pararam por aí – aponta ainda para o fato de que ele teria discutido minunciosamente os textos do ISEB sem, contudo, ter um enfrentamento adequado com o contexto. Afirma ele sobre a obra de Toledo: Caio Navarro, como sugeri anteriormente, não acompanhou de perto a relação entre os trabalhos do ISEB e o restante da produção intelectual e política dos anos 50, o que pode ter sido uma boa decisão, no atual estágio das pesquisas sobre o assunto; mas diz o suficiente, na questão da “setorialização das camadas sociais”, para deixar alguns leitores, como é o meu caso, com certa sensação de anacronismo (LAMOUNIER, 1977, p. 155). Lamounier, numa defesa inconteste do ISEB, chama a atenção para o fato de que a interpretação de Caio Navarro de Toledo produziu efeito nocivo nas pesquisas acerca do tema, pois aguçava o apetite de autores que queriam ver o ISEB como causador do que veio a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 126 depois. Para o autor seria fácil, uma vez fracassado o projeto isebiano e que os governos pós-1964 assumissem o “desenvolvimentismo”, voltar e ler nos textos do ISEB as mesmas virtualidades, o mesmo futuro, as mesmas consequências (LAMOUNIER,1977, p. 156). Apesar das críticas de Lamounier, em artigo posterior Caio Navarro Toledo reconhece a diversidade de posições teóricas no interior do ISEB, o que talvez não ferisse o núcleo central do pensamento isebiano. Acerca da importância política e teórica dos intelectuais que compunham o instituto, aponta ele: O ISEB se constitui num dos mais ativos núcleos de debate em torno do nacional-desenvolvimentismo, durante quase década – de meados dos anos 50 até o golpe de 1964. O instituto reuniu intelectuais e técnicos que proviam de diferentes formações filosóficas e ideológicas. Entre elas o marxismo, a sociologia do conhecimento de Mannheim, a fenomenologia existencialista, o humanismo cristão etc.; ideologicamente, entre esses intelectuais encontravam-se, socialistas, liberais democratas, católicos de esquerda, ex-integralistas. Visões diferenciadas do nacionaldesenvolvimentismo se confrontarão abertamente dentro da instituição. Como se sabe, num desses duros confrontos, Hélio Jaguaribe – inspirador e fundador do ISEB – retirou-se do interior da instituição (TOLEDO, 2006, p. 1). De minha parte, considero que as críticas de Lamounier não ofuscam a interpretação de Caio Navarro, uma vez que o autor, como visto na passagem anteriormente citada, demonstra ter consciência da heterogeneidade de posições teóricas e políticas presentes no interior do instituto. Além disso, é preciso ressaltar que, em função do próprio contexto histórico de criação do ISEB apontado por Lamounier – meados da década de 1950 –, certamente seria compreensível uma disputa por hegemonia ideológica em seu interior, já que alguns seus membros encontravam-se divididos entre a tradição getulista e a novidade representada pelo nacional-desenvolvimentismo. Vale lembrar que do ISEB – que teve como “precursores” o Grupo de Itatiaia e o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) – faziam parte os assessores econômicos de Getúlio Vargas, a exemplo de Alberto Guerreiro Ramos. Como se observa, a ligação do grupo de intelectuais do ISEB com o governo Vargas, que embora tenha assumido em seu segundo mandato uma posição favorável ao desenvolvimentismo, ainda possuía em sua base de aliados as “velhas” tradições da oligarquia que defendia um modelo de desenvolvimento centrado na exportação de a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 127 matérias-primas. Bresser-Pereira também indica a filiação entre os intelectuais do ISEB, que veem no pacto populista de Getúlio Vargas um modelo para a revolução capitalista e nacional de países periféricos e em seu populismo político uma primeira expressão do povo e, portanto, da democracia. Anos depois, a Escola de Sociologia de São Paulo terá um olhar negativo para a política populista de Vargas. Sobre a proximidade entre os integrantes do ISEB e o governo, o autor aponta: Nos anos 50, o ISEB identificava a industrialização, que se acelerara desde 1930 com a Revolução Nacional Brasileira, e argumentava que então, sob a direção de Getúlio Vargas, se formara um pacto político nacional-popular unindo burguesia industrial, trabalhadores, técnicos do Estado e a parte da velha oligarquia (a substituidora de importações, como os criadores de gado do Rio Grande do Sul), que lutava contra o imperialismo e a oligarquia agrário-exportadora (BRESSER-PEREIRA, 2005, p. 213). Bresser-Pereira chama a atenção ainda para as características do projeto nacionalista do ISEB, em suas palavras “bismarquiano”, nos moldes dos grandes países capitalistas que só se desenvolveram após a constituição de Estados-nação que lideraram os processos de desenvolvimento. Podemos, assim, completar o conceito de desenvolvimento do ISEB e da CEPAL: é o processo de acumulação de capital, incorporação de progresso técnico e elevação dos padrões de vida da população de um país, que se inicia com uma revolução capitalista e nacional; é o processo de crescimento sustentado da renda dos habitantes de um país sob a liderança estratégica do Estado nacional e tendo como principais atores os empresários nacionais. O desenvolvimento é nacional porque se realiza nos quadros de cada Estado nacional, sob a égide de instituições definidas e garantidas pelo Estado. Nesta definição fica clara a importância das instituições (BRESSER- PEREIRA, 2005, p. 213). A partir das proposições de Bresser-Pereira, pode-se observar que a burguesia nacional teve um papel central no processo de modernização/industrialização empreendido no Brasil no decorrer dos anos de 1930 (governo de Vargas) a 1960 (governo dos militares), mas não foi a protagonista principal desse processo, evidenciando, assim, o caráter conservador da modernização efetivada no país. Podemos compreender também, conforme as orientações da CEPAL e do ISEB, que seria impossível alavancar tal processo a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 128 sem a injeção de capital estrangeiro no país. Logicamente caberia ao Estado facilitar a entrada desse capital no país para o financiamento de obras de infraestrutura, como ferrovias, produção de energia elétrica e exploração de petróleo, que permitissem uma alavancada nos negócios da burguesia nacional, principal classe beneficiada nesse processo. Tais fatos podem ser constatados nas publicações que circularam no país nesse período, a exemplo da revista Brasil-Oeste, que veiculou diversas matérias defendendo investimentos em infraestrutura que pudessem contribuir para o avanço dos negócios do empresariado da região centro-oeste, como demonstraremos no decorrer deste capitulo. Como já evidenciamos, a Brasil-Oeste, editada em São Paulo em janeiro de 1956, tinha como foco editorial apresentar a região centro-oeste como uma área estratégica de investimentos para capitalistas estrangeiros e nacionais. O periódico se moldava perfeitamente ao espírito da época de sua circulação (1956 a 1967), qual seja, o nacionaldesenvolvimentismo. Isso explicaria o fato de, em seus editoriais, encontrarmos diversas vezes a defesa do governo de Juscelino Kubitschek e de suas ideias desenvolvimentistas, que “por coincidência” estavam principalmente voltadas para a região, em função do legado da Marcha para o Oeste proposta no primeiro mandato de Getúlio. Um dos temas caros aos editores da revista e também ao nacional-desenvolvimentismo era a infraestrutura que permitiria a ligação da região ao resto do país e, consequentemente, o escoamento de sua produção, como obras de construção de hidroelétricas, ferrovias, rodovias e a exploração de petróleo e minérios. Já no período militar novamente encontraríamos uma defesa das ideias modernizadores do Estado autoritário, que propagava que somente o desenvolvimento capitalista poderia combater a organização do comunismo no Brasil. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 129 O COMBATE AO PENSAMENTO COMUNISTA NA BRASIL- OESTE Ao lado da defesa da modernização do campo, apontada anteriormente, outro tema recorrente na revista era o ataque às propostas de esquerdistas que defendiam reformas sociais para o país, como é caso da reforma agrária, verdadeiro fantasma comunista que rondava os rurícolas mato-grossenses. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 130 (Brasil-Oeste, n. 89, janeiro de 1964, p. 11) Como já destaquei anteriormente, o apoio ao golpe militar em Mato Grosso e em outras regiões de grande produção rural, como o Paraná, foi bastante intenso, já que os produtores da região associavam, erroneamente, as ideias socialistas e comunistas à destruição da propriedade privada, que de acordo com a uma visão distorcida sobre esse sistema político, seria tomada de seus proprietários e distribuída para os trabalhadores. O artigo destacado acima demonstra o contentamento dos proprietários rurais após o golpe que, segundo eles, devolveu a paz e segurança ao país. Já com o novo regime as associações rurais deixaram de ser contrariadas com as tentativas de agentes subversivos de transformar as associações de trabalhadores rurais em sindicatos, abrindo assim para maiores conflitos entre os trabalhadores e patrões. Ainda segundo os proprietários de terra do Paraná, tais sujeitos subversivos se diziam “trabalhistas”, mas na verdade eram verdadeiros comunistas e criptocomunistas que tentavam introduzir ali ideias estranhas à “vocação” ordeira do país. No artigo assinado pelo presidente de uma associação rural, encontramos referências à verdadeira preocupação desses líderes rurais, que era a de impedir que a ameaça de distribuir as suas terras se realizasse. Segundo eles, tais agentes comunistas mantinham um clima de terror sobre a classe trabalhadora e os ruralistas, que deveriam se unir em torno das associações rurais para impedir a ação comunista no país. Assinalam ainda que a Brasil-Oeste, veículo de imprensa destinado à defesa dos rurícolas, seria uma importante aliada nesse processo. No caso de Mato Grosso, uma das organizações mais combativas em relação ao anticomunismo foi a Ação Democrática Mato-Grossense (ADMAT), que defendeu abertamente a necessidade do golpe militar e se tornou uma grande aliada do regime após a sua instauração, tendo inclusive incentivado seus membros a delatar e caçar os comunistas do estado. Em matéria veiculada na edição n° 89 da Brasil-Oeste, em 1964, encontramos uma descrição da missão da ADMAT, qual seja: “Livrar o país das forças ocultas”. No corpo do artigo os signatários, homens influentes ligados à política e à classe rural do estado, atribuem o adjetivo “forças ocultas” ao comunismo e a outras doutrinas políticas que atentassem contra a ordem vigente. O que fica explícito nas páginas da revista é, na verdade, algo inerente à luta de classes já tão densamente analisada por Marx: as classes conservadoras, imbuídas da paranoia de que uma revolução comunista estava para ser a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 131 implantada no país, temiam as ações de grupos que buscavam mudanças sociais que tornassem o Brasil mais igualitário, portanto tacham todos os opositores do sistema desigual capitalista como agitadores comunistas, conforme observa-se no trecho abaixo: (Brasil-Oeste, 1964, p. 45) a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 132 Em outra matéria, na seção de economia, encontramos também uma denúncia do descontentamento dos moradores de Mato Grosso com a recusa da Petrobras de financiar pesquisas para a abertura de uma refinaria no Pantanal. (Brasil-Oeste, 1964, p. 29) Na matéria, os autores, anônimos, comparam a petrolífera brasileira a um soviete que serviria para financiar ações do partido comunista com o apoio da União Nacional dos Estudantes e da Central Geral dos Trabalhadores, que coordenavam as ações de promoção do comunismo no país. O artigo traz ainda informações estapafúrdias, como a de que a estatal importava até mesmo armas e outros apetrechos bélicos para atender aos atos a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 133 subversivos. Um ponto importante – e, digamos, bastante atual – que aparece na matéria é a acusação de que a Petrobras esbanjava dinheiro em propinas, banquetes e viagens para que os corruptos e comunistas promovessem o incêndio da nação. O governo do presidente João Goulart era apontado na matéria como o momento em que a corrupção e a rapinagem se tornaram recorrentes na instituição – qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. Toda vez que as elites brasileiras se sentem ameaçadas com medidas que alterem a divisão de renda, procuram estratégias para desestabilizar o governo, e a corrupção é sempre o fenômeno evocado para promover tal desmoralização. Uma matéria publicada na edição n° 89, de 1964, demonstra claramente que a grande preocupação da elite brasileira era principalmente a reforma agrária proposta pelo governo, e se a mesma se realizaria nos moldes socialistas ou da democracia burguesa. (Brasil-Oeste, 1964, p. 11) a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 134 No artigo assinado por João Probst, presidente da Associação Rural de Ivaí, no Paraná, encontramos uma associação entre comunismo e a proposta de reforma agrária, pois logo no início há uma saudação ao novo governo que, em suas palavras, restabeleceu a paz e a segurança à nação. Em seguida, ele chama a atenção para o fato de a instituição do regime militar impedir a ação de agitadores sociais que queriam transformar as associações rurais em sindicatos, abrindo espaço para conflitos entre proprietários e trabalhadores. Segundo o signatário, tais indivíduos se apresentavam como “trabalhistas”, mas na verdade eram comunistas e criptocomunistas que divulgavam ideias contrárias ao povo ordeiro do campo e, portanto, necessitavam ser combatidos antes que cumprissem a ameaça de expropriar suas terras e distribuí-las aos seguidores do comunismo. É claro que a defesa da democracia era o álibi utilizado para encobrir a defesa da propriedade privada e da concentração de renda. Esse tema é discutido, ainda, na edição de número 89, em janeiro de 1964, na qual encontramos uma associação entre o governo de João Goulart e o comunismo. No artigo, assinado por Sinizio Leite da Rocha e intitulado A democracia em perigo, ele assinalava em suas páginas iniciais: “O Brasil atravessa presentemente as maiores crises de sua história: crise de democracia, crise de autoridade, crise de justiça, crise financeira...” (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42). Na sequência, o autor chama a atenção para o caráter comodista do brasileiro, que permite problemas como no campo da política econômica e altos índices de inflação, e ainda adverte que os responsáveis, os homens públicos, não se responsabilizam pela questão. Nas entrelinhas, se analisado a partir do contexto em que foi escrito – pouco antes do golpe de 1964 –, percebe-se que o foco do autor é a crítica ao modo como o governo de João Goulart vinha lidando com a política econômica e a reforma agrária. Afirmava Rocha: Não há inflação “incontrolável”, desde que há homens capazes, com boa dose de espirito público. Não se acaba com a inflação usando de métodos que servem para aumentá-la, como as encampações, a criação de monopólios, as desapropriações por simples decretos, as emissões de papel moeda fora da lei (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42). O articulista também protesta contra o Congresso Nacional, que não estaria cumprindo seu papel, já indicado na Constituição Federal. Para ele, o congresso estava a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 135 sendo omisso em relação aos desmandos do presidente: “O poder executivo está legislando tanto ou mais do que o congresso. Ninguém protesta. Acredita-se, em vista desse desinteresse, dessa falta de reação, em um consentimento tácito do poder legislativo” (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42). A intenção clara do autor em atacar o governo Goulart e as organizações de esquerda fica mais clara em outro trecho do artigo, no qual se mostra indignado com o fato de “liberdades políticas e públicas” estarem sendo atacadas. Afirma ele: “São fechados o IBAD, o IPES (e entidades congêneres), mas os agrupamentos da esquerda (Como o CGT, o PUA e a UNE) continuam atuando. Todos os brasileiros conhecem muito bem a atuação desses agrupamentos” (Brasil-Oeste, n. 89, 1964, p. 42). Na edição número 91, de março de 1964, a preocupação dos ruralistas com as agitações sociais que, segundo eles, abririam as portas para o comunismo no Brasil, se torna mais clara. Logo na capa observa-se uma crítica ao governo de João Goulart por parte dos articulistas, que falam em nome dos ruralistas de todo o Brasil e, principalmente, do Mato Grosso: (Capa da revista em março de 1964) No título, percebemos a crítica dos ruralistas às proposições de João Goulart e a tentativa de associar a democracia ao capitalismo conservador, na medida em que se posicionam em defesa da democracia e condenam as agitações sociais e os planos a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 136 demagógicos favorecidos por Jango. Na reportagem publicada na página 21, com o título A classe rural reafirma sua mensagem ao povo, os rurícolas reafirmam os pressupostos defendidos na VI Conferência Rural, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1961. Na mensagem, assinada por 21 membros das federações rurais de todo o país, pela Sociedade Nacional de Agricultura e ainda pela Confederação Rural Brasileira, os ruralistas afirmam o seguinte: A classe rural, embora das mais desamparadas pelos poderes (sic) públicos e das maiores dificuldades encontradas no cumprimento de sua nobre missão, leva, neste instante, quando termina a VI Conferencia Rural, ao povo brasileiro uma palavra de fé e de confiança nos altos destinos da pátria. Conclama todos os brasileiros à ordem, à paz, ao respeito dos princípios democráticos e ao trabalho construtivo (BrasilOeste, 1964, p. 21). É interessante notar o momento em que essa mensagem é reafirmada aos leitores – março de 1964, um mês antes do golpe militar –, o que nos leva a pensar que os ruralistas “pressentiam” ou sabiam que algo estava por vir e transformar o contexto político brasileiro. Esse comportamento dos ruralistas e da sociedade civil, em sua maioria, reforça a tese defendida por diversos historiadores sobre o caráter civil-militar do golpe de 19645. Segundo Marcos Napolitano: No dia 31 de março de 1964, um levante militar, amplamente apoiado por forças civis, pôs fim não apenas no governo reformista de João Goulart, mas também ao regime político conhecido como IV República ou República de 1946. O regime democrático e constitucional que, por sua vez, nascera de um golpe contra o Estado Novo de Getúlio Vargas, caía 5 REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45, p. 171-186, jan./jun.2010; ___. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política (1961-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1993; FERREIRA, Jorge & NEVES, Lucília Delgado Almeida. O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; VILLA, Marco Antonio. Jango: um perfil (1945-1964). Rio de Janeiro: Globo, 2003. As críticas a esse processo podem ser encontradas em: MELO, Demiam Bezerra (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014; POMAR, Pedro. O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar. Brasil de Fato, São Paulo, 10 de agosto de 2012, disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/10300. Acessado em 05 de novembro de 2014; MORAES, João Quartim de. Sobre o “aprimoramento” da expressão ditadura militar. Disponível em http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4891&id_coluna=24. Acessado em 05 de novembro de 2014; TOLEDO, Caio Navarro de. Crônica política sobre um documento contra a “ditabranda”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, pp. 209-217, 2009. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 137 diante de outro golpe contra um dos herdeiros do getulismo em sua fase dita “populista-democrática” O esboço de uma política reformista, calcada em três estratégias – a nacionalização da economia, a ampliação do corpo político da nação e a reforma agrária – seria substituída por um regime militar anti-comunista e anti-reformista, pautado por uma política desenvolvimentista sem a contrapartida distributiva (NAPOLITANO, 2011, p. 2010). É importante destacar que Napolitano identifica uma continuidade de projeto político-econômico entre Getúlio e os governos subsequentes, caraterizado como política reformista típica do nacional-desenvolvimentismo, estendendo sua análise até o período de João Goulart, que aos seus olhos sucumbiu justamente por causa de sua tentativa de ampliar demais o espectro das reformas, apesar de, em princípio, ser mesmo herdeiro do getulismo. De nossa parte, concordamos com a análise de Napolitano e defendemos a ideia de que houve, sobretudo no plano econômico, uma continuidade da modernização conservadora desde Getúlio, mas acreditamos que este continua sendo o projeto adotado pelos militares após a chegada ao poder. Já que num primeiro momento não havia grandes divergências em relação aos rumos econômicos do governo Goulart, as querelas eram políticas, em função da aproximação, na visão dos militares, de Jango aos líderes e propostas comunistas. Apoiando-se nas ideias do historiador uruguaio René Dreifuss, que na obra 1964: a conquista do Estado, a partir da análise dos documentos do IPES e IBAD estabelece uma conexão na articulação e no financiamento do golpe entre militares e civis e deixa claro que o ato, além de militar, também foi civil, Scocuglia demonstra que em princípio não havia uma grande coesão em relação ao golpe no interior das corporações militares e que a pressão veio também de interferências externas dos EUA e de instituições civis, como o IPES e IBAD: A respeito da conspiração, a jovem e média oficialidade de 64, não corrobora, por exemplo, da posição-chave do IPES-IBAD, defendida pelo trabalho de René Dreifuss, na organização-planejamento da conspiração e execução do golpe. No entanto, ficaria difícil contestar tal autor quanto às ocupações de postos chaves no processo (pós-golpe) de instalação e institucionalização do regime civil-militar autoritário, por parte de membros (intelectuais, empresários, tecnocratas e militares) do complexo IPES-IBAD. Os depoimentos orais identificam um grupo de conspiradores "intelectualizados" da “Sorbonne” - Escola Superior de Guerra, e outro mais ligado à tropa. Converge para a dificuldade da adesão do General Castelo Branco, conseguida pelos moderados (que a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 138 devolveriam o poder aos civis com brevidade) - inclusive, com o propósito de "abrandamento preventivo", isto é, de controlar os mais "duros". A adesão de Castelo Branco foi conseguida: 1) pelo desenrolar das radicalizações das esquerdas e do presidente, acrescidas das quebras de disciplina e de hierarquia internas (já em março de 64); 2) pela aproximação com os serviços de inteligência norte-americanos e 3) para evitar a "linha dura" e voltar (em curto tempo) à legalidade (civis no poder, eleições etc.). A extrema necessidade de um líder "máximo" ajuda a mostrar que as forças golpistas estavam longe da coesão nas suas ações e idéias e sabiam contra quem (esquerdas pró-reformas) conflitavam e contra o quê (comunismo, desordem, indisciplina...) estavam impondo a pedagogia da força bruta. Segundo a maioria das declarações, não tinham planos de governo, depois elaborados e executados sob a batuta de exipesianos-ibadianos como Bulhões, Reis Velloso, M. H. Simonsen, Delfim Neto, Roberto Campos - o que não bate com a pesquisa de Dreifuss (SCOCUGLIA, 2007, p. 6). A posição do autor nos parece plausível, já que, a partir da revista por nós analisada, observamos que havia uma preocupação da sociedade civil, pelo menos no centro-oeste, com os destinos do governo Jango, principalmente com o escopo de suas reformas, que poderiam prejudicar os interesses de acumulação de capital dos ruralistas dessa região. Nesse sentido, a tese propagada pelos militares de que o Brasil estava prestes sofrer uma revolução comunista – da qual, diga de passagem, a recente historiografia sobre o tema discorda radicalmente6 –, foi estrategicamente adotada pelos setores conservadores da sociedade, a exemplo dos ruralistas da região. Ainda observando a matéria citada anteriormente, publicada em março de 1964, observamos que os ruralistas retomam os princípios católicos da encíclica Mater et Magistra, cujas diretrizes indicam um momento abertura da igreja para os leigos, porém com o intuito de afastá-los de uma proposta de transformação social profunda oferecida pelo comunismo/socialismo e levá-los a uma a transformação dentro dos limites da ordem estabelecida pela tradição liberal. Dentre os pontos da referida encíclica, sobre a qual não nos deteremos agora, destaco apenas dois que certamente foram tomados pelos ruralistas para ludibriar seus interlocutores menos atentos, como se observa nas transcrições a seguir. 6 O historiador Carlos Fico, na obra O Grande Irmão, contesta a tese de uma conspiração comunista no governo Jango. Para ele, “trata-se de especulação inconsistente não apenas porque é anacrônica. (...) Não há nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasse um golpe e todos sabemos que um golpe era planejado contra ele”. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 139 A defesa da propriedade privada se faz presente em sua décima nona proposição, na qual se defende o seguinte: 19. A propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir. Consigo, intrinsecamente, comporta uma função social, mas é igualmente um direito, que se exerce em proveito próprio e para bem dos outros (JOÃO XXIII, Mater et Magistra, p. 20). Já na trigésima quarta proposição encontramos uma oposição muito evidente entre o cristianismo e comunismo, o que certamente justifica o fato de os ruralistas usarem a referida encíclica para justiçar suas propostas de reformas sociais: 34. Entre comunismo e cristianismo, o pontífice declara novamente que a oposição é radical, e acrescenta não se poder admitir de maneira alguma que os católicos adiram ao socialismo moderado: quer porque ele foi construído sobre uma concepção da vida fechada no temporal, com o bem-estar como objetivo supremo da sociedade; quer porque fomenta uma organização social da vida comum tendo a produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana; quer ainda porque lhe falta todo o princípio de verdadeira autoridade social (JOÃO XXIII, Mater et Magistra, p. 1). Após conclamarem os brasileiros, principalmente os do campo, a seguirem os ensinamentos da encíclica de João XXIII, os representantes da elite ruralista se mostram favoráveis, dentro dos limites da tradição cristão e liberal, às reformas de base, como podemos vislumbrar na passagem a seguir: A classe rural é a favor das reformas de base, tão reclamadas, para atualizar as leis do país e possibilitar a melhor ação governamental, de forma que possam ser satisfeitas as legitimas reivindicações do povo e seus anseios de progresso e de mais justiça econômico-social. (...) É a favor da reforma agrária, democrática, cristã e técnica que atenda às peculiaridades das diversas regiões do país e vise dignificar o homem. Da reforma agrária que facilite o acesso à propriedade da terra; que ampare os ruralistas que vivem em terra alheia, regulamentando-se a locação e parceria agrícola; que institua uma justiça rural especializada, rápida e eficiente; que promova a sindicalização do homem do campo; que possa efetuar a desapropriação de terras no interesse social, dentro dos princípios constitucionais vigentes; que assegure os legítimos direitos dos proprietários, parceiros e arrendatários” (Brasil-Oeste, 1964, p. 21). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 140 É oportuno retomar algumas das ideias que aparecem nas premissas ruralistas sobre a reforma agrária. O primeiro ponto a ser ressaltado, valendo-me aqui da velha e boa ironia marxista, é que o discurso dessa classe mais parece uma oração proclamando um devir de base idealista, em que o mundo harmonioso se desenvolve por meio de um estado liberal onipotente, aparado pelas bênçãos divinas. Um segundo ponto a ser aclarado é a ideia de que a reforma agrária deveria ocorrer por meio da compra de terras pelo Estado, para assim amparar os ruralistas, que são evidentemente contrários à desapropriação de seus latifúndios improdutivos. Tal ideia se coaduna com a terceira premissa defendida no discurso: a de que a reforma agrária deveria ser feita de acordo com os parâmetros constitucionais vigentes, de forma a assegurar os legítimos direitos dos proprietários, parceiros e arrendatários. Apesar desse tom condescendente com as reformas de base, cujas contradições podem ser facilmente lidas implicitamente por leitores mais atentos, os ruralistas acabam retirando seu véu ideológico no decorrer do texto e revelando o verdadeiro objetivo de suas proposições, qual seja: escamotear a luta de classes a partir do viés reformista, como fica claro no seguinte trecho: A classe rural é contra a agitação, a irresponsabilidade e a demagogia; é contra remédios paliativos ministrados pelos poderes públicos para os males da vida rural; é contra a espoliação e a tentativa de desorganizar a produção através da intriga e da luta de classes (Brasil-Oeste, 1964, p. 21). Ao deixar nítida a aversão à luta de classes em sua mensagem, divulgada um mês antes do golpe de 1964, os ruralistas reforçam as teses do golpe civil-militar, apoiado pelas elites (cristã, agrária, industrial) brasileiras contra a possibilidade da instituição do comunismo em nosso país. A aversão à reforma agrária proposta por Jango e aos comunistas se faz presente também em outra página da mesma edição. Na matéria intitulada Demagogia e irresponsabilidade os ruralistas criticam o presidente pela assinatura de um decreto que autoriza a desapropriação de terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes. A indignação dos ruralistas com o governo fica esclarecida quando afirmam: “consuma, assim, a anunciada ‘reforma agrária’, concebida nos bastidores do Palácio do Planalto, com a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 141 assessoria de agitadores comunistas ou comunizantes, que impunemente convulsionam a nação” (Brasil-Oeste, 1964, p. 27). A matéria supracitada aludia ao Decreto n. 53.700, de 13 de março de 1964, assinado por João Goulart, que instituía as bases para a reforma agrária no Brasil: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando das atribuições que lhe confere o artigo 87, item I, da Constituição Federal, e tendo em vista o disposto na Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962 e no Decreto-lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, com as alterações incorporadas ao seu texto, DECRETA: Em seu Art. 1º Ficam declaradas de interêsse social para efeito de desapropriação, nos têrmos e para os fins previstos no art. 147 da Constituição Federal e na Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, as áreas rurais compreendidas em um raio de 10 (dez) quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de irrigação, drenagem e açudagem (Brasil. Decreto nº 53.700, de 13 de Março de 1964, Diário Oficial da União - Seção 1 - 18/3/1964, Página 2604 – Publicação Original). Já no artigo 3º, o decreto presidencial estabelece as competências da Superintendência de Política Agrária (SUPRA), como podemos observar no trecho abaixo: 3º A Superintendência de Política Agrária (SUPRA), fica autorizada a promover, gradativamente, para execução de seus planos e projetos, as desapropriações das áreas situadas nas faixas caracterizadas neste decreto, tendo por fim realizar a justa distribuição da propriedade, condicionando seu uso ao bem-estar social, e visando especialmente: a) O aproveitamento dos terrenos rurais improdutivos ou explorados antieconomicamente; b) A fixação de trabalhadores rurais nas áreas adequadas à exploração de atividades agropastoris; c) A instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não seja obedecido plano de zoneamento agropecuário que vier a ser fixado pela SUPRA; d) O estabelecimento e a manutenção de colônias, núcleos ou cooperativas agropecuárias e de povoamento; e) A proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais. A matéria, que não é assinada por nenhum dos jornalistas responsáveis pela revista, chama a atenção para o fato de que os governadores do Mato Grosso, Amazonas e Maranhão já haviam prometido doar terras para aqueles que quisessem trabalhar, mas não a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 142 obtiveram resposta do governo central e novamente culpam os comunistas por isso. Afirmavam eles: Êsse oferecimento não teve ressonância. E nem poderia ter, pois é sabido que SUPRA só cogita de propiciar as condições para um mais rápido processamento da “revolução” em marcha... Desta forma, essa nação não cumprirá os seus anseios de paz e de progresso. Os homens do governo precisam compreender que a minoria que os cerca, disputando os restos do festim, não representa o povo no seu sentido amplo e universal (BrasilOeste, 1964, p. 27). O conteúdo da matéria demonstra claramente a insatisfação da classe burguesa rural com os rumos do governo de João Goulart, em que os signatários implícitos do texto se colocam como paladinos do povo e prometem pôr fim aos desmandos comunistas, como se observa no trecho a seguir: No governo Goulart o povo vem sendo afrontado nas suas necessidades mais prementes, diante do aumento incontrolável do custo de vida; espoliado nos seus direitos; ameaçado na sua sobrevivência, porque se tornam mais sombrios os dias que despontam e se reproduzem com frequência alarmante os atentados à propriedade privada; atemorizado diante da conduta imponderada do Presidente e dos Ministros de Estado, que infringem leis e cometem desatinos e violências (Brasil-Oeste, 1964, p. 27). Ao longo da matéria, os ruralistas novamente se intitulam como frente única democrática cristã, que intentava naquele momento sustar os desatinos que se praticavam no país. Em seguida arrolavam também as mazelas enfrentadas pelos produtores, homens do campo, trabalhadores e advertiam para o perigo de uma revolta contra o governo e seus desmandos: As classes produtoras reclamam paz e estabilidade financeira, para poderem redobrar esforços e promover novos empreendimentos de progresso. Os homens do campo reclamam segurança, crédito e assistência técnica, para poderem aumentar a produção. Os trabalhadores ordeiros reclamam tranquilidade, estabilização de preços e assistência social, para poderem equilibrar seus orçamentos domésticos e proporcionar a seus filhos educação e saúde. Ordem e progresso são os imperativos do momento, que todos reclamamos, mas que o atual govêrno comprova estar incapacitado de promover. Ainda é tempo de prevenir a explosão de revolta daqueles que sentem na própria carne as a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 143 consequências desastrosas da desordenada administração pública neste país. Para os que subestimam a capacidade de reação do povo, convém relembrar o exemplo das mineiras (que não temeram em apelar para o presidente Goulart, no sentido de prestar valioso serviço à Nação, renunciando à chefia do Govêrno) e dos mineiros que repeliram corajosamente a interferência da SUPRA nos seus negócios internos... (Brasil-Oeste, 1964, p. 27). Na passagem acima a matéria faz referência ao manifesto de mulheres mineiras ligadas ao Clube Militar de Belo Horizonte, que em 07/11/1963 pedem a João Goulart que renuncie à presidência da república. A pesquisadora Ana costa (1998) aponta que os militares viram nas mulheres, principalmente as da classe, garotas-propaganda ideais para propagar a nova ideologia antijanguista e anticomunista. De acordo com ela, os militares, Assumindo de maneira integral a imagem de donas de casa e mães de família, levaram às classes médias urbanas o apelo político-emocional da salvação da pátria contra o comunismo. Assim mesmo, discriminadas no universo político do patriarcado capitalista, as mulheres foram chamadas a participar da luta política, "...mas, note-se bem, ‘para ajudar os homens responsáveis pelo destino da nação...’” (Costa, 1998, p. 81). DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA À INSTITUIÇÃO DO REGIME MILITAR E ALGUNS DE SEUS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO Como já afirmamos anteriormente o autoritarismo foi a tônica utilizada pelo Estado brasileiro, fruto do pacto da elite dominante de origem latifundiária ou burguesa, para conduzir a modernização do país, bem como seus regimes políticos, com vistas a alijar do processo diversos segmentos sociais. Demerval Saviani aponta que o contexto da década de 1960 configurou-se como um período controverso, de grandes expectativas, tanto no campo da esquerda, que considerava essa situação como pré-revolucionária, quanto pela direita, que acreditava ser esse o momento definitivo da expansão econômica brasileira. Ainda segundo ele, o slogan de “50 anos em 5” de Juscelino teve grande repercussão entre a sociedade brasileira. As frações de classe travavam uma luta por interesses políticos, econômicos e sociais naquele momento histórico, que era expressa na prática institucional representada por seus intelectuais e suas visões de mundo, compondo assim um campo de produção ideológica em franca disputa. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 144 Saviani chama atenção também para a formulação ideológica que orientava o governo de Juscelino no período, a saber: o nacionalismo do ISEB, criado um pouco antes de sua eleição, e a doutrina da interdependência, elaborada pelos ideólogos da ESG, considerados a intelligentsia militar mais sólida daquele período. Enquanto o ISEB, de um lado, elaborava a ideologia do nacionalismo desenvolvimentista e a ESG, de outro, formulava a doutrina da interdependência, a industrialização avançava, impulsionada pelo governo Kubitschek, que conseguia assegurar relativa calmaria política, dando curso às franquias democráticas, graças a um equilíbrio que repousava na seguinte contradição: ao mesmo tempo em que estimulava a ideologia política nacionalista, dava sequência ao projeto de industrialização do país, por meio de uma progressiva desnacionalização da economia. Essas duas tendências eram incompatíveis entre si, mas no curso do processo o objetivo comum agregava grupos com interesses distintos, divergentes e até mesmo antagônicos. Nessas condições, a contradição permanecia em segundo plano, em estado latente, tipificando-se na medida em que a industrialização progredia, até emergir como contradição principal quando se esgotou o modelo de substituição de importações (SAVIANI, 2008, p. 292). Como se observa, a situação política e econômica era extremamente contraditória, uma vez que a ideologia da política nacionalista era solapada por uma desnacionalização da economia via uma forte introdução do capital estrangeiro para o financiamento das obras de infraestrutura no Brasil. Embora a situação se mostrasse bastante contraditória, ao que parece o nacionalismo foi, pelo menos por um certo tempo, capaz de unir em torno de si classes e interesses divergentes. A reflexão de Saviani nos parece bastante importante, pois destaca, no campo ideológico de orientação de Juscelino, além do ISEB, já discutido por nós anteriormente neste capítulo, a Escola Superior de Guerra (ESG) como um órgão fundamental no contexto do nacional-desenvolvimento e, sobretudo, na ditadura militar. Hélio Jaguaribe, em uma entrevista concedida em 2008, nos esclarece sobre a importância do ISEB, bem como sobre quais motivos o levaram a sair desse órgão, em função de divergências com alguns intelectuais que pretendiam utilizar o centro de estudos como espaço de militância política. Essa discussão foi muito grande no ISEB e terminou, em dezembro de 1958, numa noite dramática, que começou às nove horas da noite e se encerrou às cinco da madrugada seguinte. Nela terminei vencendo na discussão, por um voto. Mas aí entraram as férias. Roland Corbisier, que a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 145 tinha sido derrotado, deu um pequeno golpe de estado e, aproveitando-se da ignorância de Juscelino Kubitschek a respeito da estrutura do Instituto, converteu o ISEB, que era um órgão parlamentar, num órgão burocrático. Ou seja, o diretor passou a ser designação do Ministro da Educação e não, como era antes, por eleição de um Conselho. Então, resolvi sair do ISEB, porque esse ISEB burocratizado não me interessava mais. Na verdade, o final do ISEB, a meu ver, não foi feliz, porque foi arrastado por uma visão primária do marxismo barato, do comunismo de tipo muito fácil, e se tornou um órgão de “agit prop” e não um Centro de pensamento. Álvaro Pinto, que era um homem de pensamento, que foi o último diretor do ISEB, foi arrastado, por deficiências de sua personalidade e outros problemas complexos de ordem psicológica, a fazer do ISEB uma coisa sem importância. Na verdade, no final, o ISEB era um eco do PC, não tinha mais nenhuma vida própria. Mas eu estava afastado dele desde 1959, de modo que não participei desse ISEB final (Entrevista a Hiro Barros Kumasaka e Luitgarde O. C. Barros. Rio de Janeiro, 9 de março de 1988. p. 12). Além do ISEB, na formulação ideológica de propostas para a situação brasileira durante o nacional-desenvolvimentismo outro órgão importante foi a ESG. Segundo o historiador Luiz Felipe Mundin (2007), o Estado buscou na ESG e em outros órgãos, como o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, seus principais projetos administrativos e sua fundamentação e legitimação como aparelho regulador da vida social. Algumas das grandes motivações para a criação da ESG foram a guerra fria e o anticomunismo provenientes do contexto do pós-Segunda Guerra Mundial. Mundim (2007), em sua dissertação intitulada Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva: Escola Superior de Guerra e a organização do Estado brasileiro (1930-1960), destaca que desde a criação da ESG houve uma evolução conceitual e um desenvolvimento muito fecundo da doutrina ideológica militar para formulação do poder a ser adotado pelo Estado. O autor aponta a década de 1940 como o momento em que ocorre um fenômeno na produção ideológica no Brasil, que passa a se afirmar por meio de práticas institucionais. Órgãos como o ESG, o ISEB e o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), além de instituições partidárias e/ou universitárias, como o PCB e a USP, forneceram aos intelectuais brasileiros os meios práticos para fundamentar seus projetos teóricos. Afirma ainda que Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva tiveram um papel preponderante nesse processo a partir de seus ingressos simultâneos na ESG, instituição responsável pela formulação da “Doutrina de Segurança Nacional” (DSN). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 146 Juarez Távora e Golbery frequentaram a ESG, ambos no mesmo período, quando também sistematizaram e escreveram os seus textos e as suas conferências, depois publicados como livros – Juarez, de 1951 a 1952 como aluno, e de 1952 a 1954, como comandante; e Golbery, de março de 1952 a novembro de 1955, como membro do corpo permanente da Escola (MUNDIM, 2007, p. 24). Mundim afirma que Golbery, fortemente ligado à verdadeira elite brasileira, extrapolou sua simples condição de intelectual militar, demonstrando grande capacidade em auxiliar na estruturação do Estado autoritário brasileiro, na intenção de salvá-lo do que considerava uma total desordem social. O caso de Golbery é emblemático. Só se fala em Golbery remetendo-se diretamente à ESG e, por conseguinte, ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad). A observação da particularidade do lugar em que Golbery produziu o seu projeto teórico para o Brasil torna possível fornecer os elementos necessários para apontar, na relação instituição-intelectual, a composição de um sistema simbólico que se pretendia hegemônico, na medida em que levava adiante a autoconsciência de uma missão de salvação nacional. Esse aspecto é mais claro em Golbery, que em sua atividade intelectual pela ESG, em seus textos e palestras, precisa melhor a tarefa da verdadeira elite brasileira, formada tanto por militares quanto por civis, tecnoburocratas e especialistas da organização da produção no País, como a única capaz de salvar a nação da desordem social e do atraso econômico, características de um momento de anomia que o Brasil vivia em sua história, podendo assim livrar a nação da “ameaça do comunismo” (MUNDIM, 2007, p. 25). Assim como Saviani, Mundim também concorda com a tese da dualidade intelectual contraditória que marcou o Brasil na década de 1950, que encontrava o nacionaldesenvolvimentismo no ISEB e a forma nacional-conservadora e autoritária na ESG, veiculada, sobretudo, no pensamento de Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva. Os embates entre os intelectuais desses dois grupos eram constantes – se, por um lado, os isebianos eram considerados infiltrados pela ESG, estes eram considerados ingênuos e dicionarizados por aqueles, como destacou Hélio Jaguaribe em uma de suas entrevistas, na qual deixava claro que as relações entre os dois grupos não eram muito complicadas na década de 1950, mas se conturbaram na de 1960. Afirmava ele: Eram relações não muito estreitas. Eu fui convidado, naquela época, umas duas vezes, para fazer conferências na Escola Superior de Guerra. Naquela ocasião, quando fui, não tive muito boa impressão da forma pela a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 147 qual os militares estavam tratando as coisas, porque eles tinham uma perspectiva muito ingênua, dicionarizada: A, para a-água, a-ar etc... Compilavam dados sob a forma de tópicos de uma enciclopédia, sem uma estrutura conceitual organizadora, a não ser a concepção pouco civilista do poder nacional. No nível puramente intelectual, a Escola Superior de Guerra era então uma coleção de verbetes. Agora, ao nível da visão do poder nacional, ela tinha uma certa filosofia, que considero inclusive ingênua (Entrevista a Hiro Barros Kumasaka e Luitgarde O. C. Barros. Rio de Janeiro, 9 de março de 1988, p. 16). Para Mundim (2007), a ESG buscou, a partir da integração civil-militar comprometida com o pensamento nacional conservador e autoritário, construir, para além de uma representação instrumental da fração burguesa associada ao capital estrangeiro, as condições de desenvolvimento capitalista dominado por ideólogos, especialistas e técnicos de todas as áreas da produção. Segundo ele, foi por esse motivo que na década de 1960 a referida escola aumentou a participação civil em suas fileiras, tanto na qualidade de estudantes quanto por meio de civis palestrantes que eram convidados para suas atividades, a exemplo de Roberto Campos, Octávio Gouveia de Bulhões, Eugênio Gudin e Lucas Lopes (MUNDIM, 2007). Luiz Felipe Mundim informa ainda que a DSN foi formulada no interior da ESG em função de sua ligação com a FEB (Força Expedicionária Brasileira), com influência e contribuição direta dos EUA em sua implantação, por meio de missão militar americana vinda da National War College. Golbery esclarecia essa preocupação com a segurança na obra Geopolítica do Brasil, conforme destaca: A ESG partiria, assim, do princípio da guerra total como “fenômeno” dado, e da orientação realista nas relações internacionais como premissa para a tomada de posição na Guerra Fria. Quem melhor justificou essa visão, e deu unidade ideológica para esse pensamento, foi Golbery. Tal visão, introdutória ao seu mais conhecido livro, Geopolítica do Brasil, teria a origem justificada no elemento primordial que impulsionaria o homem diante do mundo e, portanto, impulsionaria o próprio Estado, que seria a necessidade e a busca pela segurança (MUNDIM, 2007, p. 56). A partir do estudo do pensamento de Golbery, Mundim demonstra que as estratégias não deveriam mais se limitar ao âmbito militar, mas projetar-se aos mais elevados planos, caracterizando-se como política de segurança nacional. Deveria ser constituída uma “estratégia geral”, que estaria na cúpula da segurança nacional, de competência e a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 148 coordenação do governo. Segundo o historiador, por meio da ESG formar-se-iam, então, os elementos ideológicos que legitimariam a interferência das forças armadas na vida política do país. Ou seja: as forças armadas “melhor” representadas, os militares da ESG, que, em conjunto com os civis “competentes”, definiam a nova elite esclarecida, pronta para se opor à elite dominante, marcada pelo “populismo” dos governantes amparados pela ala perigosamente “esquerdista” e de um “ingênuo nacionalismo” (MUNDIM, 2007, p. 60). Tal estratégia desses órgãos controladores deveria se estender sobre todos os aspectos da sociedade brasileira e, dessa forma, a educação não escaparia de tal controle e vigilância, principalmente no período da ditadura militar. Nesse movimento de relacionar a parte (educação) e o todo (a conjuntura brasileira), Saviani afirma que o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a primeira organização empresarial especificamente voltada para a ação política, foi desses importantes órgãos responsáveis pelo apoio a um pensamento autoritário no país. Segundo Saviani: “Sua finalidade explícita era combater o comunismo e aquilo que seus membros chamavam de ‘estilo populista de Juscelino’” (SAVIANI, 2008, p. 294). O IBAD, juntamente com a ESG e o IPES (Instituto de Estudos Políticos e Sociais), criado em 1961 por um grupo de empresários e que teve como presidente Golbery do Couto e Silva em 1962, foram os principais responsáveis por uma ideologia que visava combater os interesses populares e instaurar um pensamento autoritário, tendo um papel de destaque no golpe civil-militar de 31 de março de 1964. Saviani chama a atenção para o fato de que a justificativa de que o golpe foi dado com objetivo de salvar a conjuntura econômica do país não consegue anular o fato de que o mesmo trouxe uma mudança radical na vida política brasileira por mais de 21 anos, que guarda consequências traumáticas ainda nos dias de hoje. A educação foi um dos alvos desse processo. Segundo ele, após a consumação do golpe, o IPES organizou um seminário em dezembro de 1964 com o objetivo de pensar uma reforma educacional cujo propósito era adequar a educação aos interesses do capital. Sobre esse processo, afirma ele: A orientação geral traduzida nos objetivos indicados e a referência a aspectos específicos, como a profissionalização do nível médio, a integração dos cursos superiores de formação tecnológica com as empresas e a precedência do Ministério do Planejamento sobre o da a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 149 Educação na planificação educacional, são elementos que integrarão as reformas de ensino do governo militar (SAVIANI, 2008, p. 295). Saviani afirma que, em face das atividades realizadas pelos estudantes universitários em maio de 1968, o IPES realiza um novo seminário, no qual deixa mais claro seu objetivo de adequar a educação ao novo regime, sendo decisiva a participação de Roberto Campos, ministro do planejamento do governo Castelo Branco entre 1964 e 1967, que tinha como função aprovar os nomes dos palestrantes convidados. A conferência-síntese do evento girava em torno do conceito de capital humano, que deveria ser orientador do processo educacional a partir daquele momento. Saviani destaca seus principais elementos: Este sentido geral se traduz pela ênfase nos elementos dispostos pela “teoria do capital humano”; na educação como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante habilitações profissionais, a mão de obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração, voltados para o atendimento da demanda de profissionais qualificados; no destaque conferido à utilização dos meios de comunicação de massa e novas tecnologias como recursos pedagógicos; na valorização do planejamento como caminho para racionalização dos investimentos e aumento de sua produtividade; na proposta de criação de um amplo programa de alfabetização centrado nas ações das comunidades locais. Eis aí a concepção pedagógica articulada pelo IPES, que veio a ser incorporada nas reformas educativas instituídas pela lei da reforma universitária, pela lei relativa ao ensino de 1º e 2º graus e pela criação do MOBRAL (SAVIANI, 2008, p. 296-297). Como é possível perceber, a partir desse momento, sobretudo com a parceria dos EUA através dos acordos MEC-USAID, buscou-se implantar uma educação produtivista e reduzir os custos de financiamento para tal área. Um dos pontos centrais desse processo é a Reforma Universitária (Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968). Segundo Saviani: Completando esse processo, foi aprovada, em 11 de agosto de 1971, a Lei n. 5.692/71, que unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando o curso de 1º grau de 8 anos e instituiu a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão-deobra qualificada para o mercado de trabalho (SAVIANI, 2008, p. 298). a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 150 Avaliando o legado educacional da ditadura civil-militar, Saviani destaca que, em que se pese a tese de que o ensino de modo geral tenha crescido durante o período, ela deve ser contraditada com o fato de que o lobby no Conselho Federal de Educação favoreceu principalmente o crescimento das instituições privadas de educação no país. Apesar da adequação aos interesses militares e ao capital, Saviani indica que a educação é um campo de contradições. Alexandre Lira chama a atenção para o fato de que as instituições escolares, fossem de ensino fundamental, médio ou superiores, sofreram fortes represálias, inclusive com a criação de legislação especifica que garantiu institucionalmente esse processo. Foi o caso da Lei n. 4464/1964, instituída por Suplicy de Lacerda, que dizia o seguinte: Fica vedado aos órgãos de representação estudantil qualquer manifestação ou propaganda de caráter político partidário, bem como indicar, ou promover ou apoiar a ausência coletiva dos trabalhos escolares, isto é, manifestações contra o governo. Determinou também que diretores de faculdades, de escola e reitores incorrerão em falta grave se, por atos, omissão ou tolerância, permitirem o não cumprimento da lei (LIRA, 2010, p. 64). A vigilância era constante no interior das escolas e das universidades no período; as denúncias poderiam vir de qualquer lugar, a qualquer momento. Alunos denunciavam professores, professores denunciavam alunos e diretores e vice-versa; ninguém escapava das práticas de delação de agentes infiltrados ou simplesmente favoráveis à ditadura. O clima era de constante tensão e já não se sabia em quem confiar – muitos alunos e professores foram expulsos e/ou mesmo presos e torturados. A principal motivação para que os estudantes brasileiros organizassem uma resistência ao regime era a tentativa de acabar com a Reforma Universitária e cessar os acordos MEC-USAID, além de questionar a Lei n. 4464 (Lei Suplicy de Lacerda), que significou um duro golpe à autonomia universitária na tentativa de transformar as universidades em meras fundações particulares e de buscar extinguir os diretórios centrais de estudantes (DCEs) e a própria UNE, substituindo-os pelo Diretório Nacional de Estudantes (DNE), órgão que ficaria sob a tutela do Ministério da Educação, possibilitando assim maior controle de suas ações. a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 151 José Luis Sanfelice, em sua análise sobre o movimento estudantil, indica que o este não cedeu, mesmo com os processos repressivos: O movimento estudantil continuava nas ruas mais do que nunca, naquele ano de 1968. No mês de março ocorreu a morte do estudante Edson Luís Lima Souto, quando a polícia reprimia uma manifestação no Calabouço (Paz e Terra, abril de 1968: 282-7). Seguiram-se várias manifestações, em diversos pontos do país, que culminaram, em 1º de abril, no maior movimento de protesto contra o regime já conseguido até aquela época. Era o quarto aniversário do movimento de 64 e, na cidade do Rio de Janeiro, o choque de manifestantes com a Polícia Militar, auxiliada pelo DOPS, resultou em mais dois mortos: o estudante Jorge Aprígio de Paula e o escriturário Davi de Souza Neiva. Sessenta populares e 39 policiais ficaram feridos, 321 pessoas presas e a cidade praticamente ocupada por tropas federais. Em Goiânia, com um tiro de fuzil na cabeça, morreu o estudante Ivo Vieira (SANFELICE, 1986, p. 145). Sanfelice afirma que, aos poucos, a repressão foi minando a resistência do movimento. A situação se agravou ainda mais com os acontecimentos repressivos do ano de 1968 e com o fracasso do Congresso de Ibiúna, no qual todos os participantes foram presos. O fato foi noticiado pelo jornal Folha de São Paulo em 13 de outubro de 1968. 13 – Congresso da UNE – todos presos: Cerca de mil estudantes que participavam do XXX Congresso da UNE, iniciado clandestinamente num sitio, em Ibiúna, no Sul do Estado, foram presos ontem de manhã por soldados da Força Pública e policiais do DOPS. Estes chegaram sem serem pressentidos e não encontraram resistência. Toda a liderança do movimento universitário foi presa: José Dirceu, presidente da UEE, Luís Travassos, presidente da UNE, Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana de Estudantes, e Antonio Guilherme Ribeiro Ribas, presidente da União Paulista de Estudantes Secundários, entre outros. Eles foram levados diretamente ao DOPS. Os demais estão recolhidos ao presidio Tiradentes. Desde segunda-feira os habitantes de Ibiuna notaram a presença de jovens desconhecidos, que iam à cidade comprar pão, carne, escovas e pasta de dentes, despertando suspeitas ao adquirir mais de NCr$ 200 de pão de uma só vez. Essas informações foram transmitidas ao DOPS e à Força Pública, que desde quinta-feira já conheciam segundo afirmaram —o local exato do Congresso. A denúncia de um caboclo, que fora barrado ao tentar chegar até o sitio Muduru, onde estavam os estudantes, fortaleceu a convicção da Polícia de que o congresso seria realizado ali. Depois de avançar alguns quilômetros de carro e outro trecho a pé, por causa da lama da estrada, 215 policiais chegaram ao local às 7h15 de ontem, organizaram o cerco aos estudantes e dispararam algumas rajadas de metralhadora para o ar, para intimidá-los. Sem resistir, a modernização conservadora e o combate à utopia comunista no centro-oeste brasileiro 152 os congressistas foram colocados em fila e levados aos ônibus requisitados para transportá-los para a capital. O governador Abreu Sodré, ao ser homenageado por trabalhadores do DAE, no Horto Florestal, referiu-se ao episódio e reafirmou sua disposição de “manter a paz e a tranquilidade para a população que deseja trabalhar”. E acrescentou, referindo-se à prisão dos participantes do congresso da UNE: “Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após horas de angustia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE (Folha de S. Paulo, domingo, 13 de outubro de 1968). De acordo com Sanfelice, esse foi um momento de recrudescimento do movimento estudantil e também de outros movimentos sociais, pois com a publicação do Ato Institucional n° 5 e em função dos acontecimentos de 1968, assim como do fracasso de Ibiúna, a UNE entra para a clandestinidade, enquanto outros segmentos sociais simplesmente se calam, por medo e desânimo. Sobre esse processo de adequação das instituições escolares e das universidades à mercantilização, conforme as orientações dos acordos MEC-USAID, Luiz Antonio Cunha afirmou: [...] a concepção de universidade calcada nos moldes norte-americanos não foi imposta pela Usaid, com a conivência da burocracia da ditadura mas, antes de tudo, foi buscada, desde fins da década de 40, por administradores educacionais, professores e estudantes, principalmente aqueles com um imperativo da modernização e, até mesmo, da democratização do ensino superior em nosso país. Quando os assessores americanos aqui desembarcaram, encontraram um terreno arado e adubado para semear suas idéias (CUNHA, 1988, p. 22). Como apontaram os autores anteriormente, a conjuntura do período militar no Brasil foi marcada por atos repressivos que dificultaram a resistência dos diversos movimentos organizados existentes naquele momento. No entanto, tais autores não descartam o fato de que, mesmo na clandestinidade, os movimentos e sujeitos políticos encontraram diversas formas de criticar e se contrapor ao regime, principalmente no interior das instituições escolares e universitárias. Nestas, o papel dos professores foi fundamental para, a partir de variadas estratégias, propiciar reflexões acerca das mazelas do regime. O que ainda vive não diga: jamais! O seguro não é seguro. Como está não ficará. Quando os dominadores falarem falarão também os dominados. Quem se atreve a dizer: jamais? De quem depende a continuação desse domínio? De quem depende a sua destruição? Igualmente de nós. Os caídos que se levantem! Os que estão perdidos que lutem! Quem reconhece a situação como pode calar-se? Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã. E o "hoje" nascerá do "jamais". Bertolt Brecht, Elogio da dialética capítulo III educação, hegemonia e contra-hegemonia em aquidauana nos anos 1960 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 O 154 processo de modernização conservadora em Mato Grosso acabou por constituir uma sociedade igualmente conservadora e desigual na região, como já mencionado anteriormente. Assim, há de se concluir que a educação organizada nesses moldes só poderia refletir seus ideais e os interesses de uma sociedade capitalista. Do ponto de vista político-econômico, o cenário que vinha se desenhando no estado desde a década de 1930 configurava-se como de atrelamento ao poder estatal de maneira fisiológica, não importando qual fosse a vertente política que ocupava o poder. O desenvolvimento no estado do Mato Grosso seguiu os moldes do restante do país, ou seja, privilegiou as elites e prejudicou os mais pobres, seguindo a lógica contraditória de naturalizar a desigualdade, própria do capitalismo. No entanto, não podemos considerar que esse processo se deu de formar linear e sem maiores embates, pois desde o princípio e em todas as regiões a história do capitalismo é marcada pela resistência das classes menos favorecidas. A discussão do tema da ditadura neste capítulo insere-se no recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do Brasil – eixo Rio-São Paulo. No campo da História da Educação, a reflexão sobre o tema tem maior relevância ainda, na medida em que contribui para o aprofundamento de uma história regional das temáticas educacionais e pelo fato de encontrarmos poucos trabalhos que educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 155 discutam a ditadura em regiões mais interioranas do país 7. No entanto, sabemos que não podemos, sob pena de perdermos a dimensão da totalidade, descontextualizar os acontecimentos que se passaram na pequena Aquidauana, deixando de relacioná-los à conjuntura estadual e nacional. Portanto, buscamos apresentar, minimamente, um panorama sobre a educação brasileira no período da ditadura militar com vistas a relacioná-lo com o contexto local. HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CONTEXTO EDUCACIONAL DOS ANOS 1960 Segundo Luiz Antônio Cunha, os problemas que permitiram a estruturação de um golpe de estado em 1964 remontam, em verdade, aos anos 1950 e estão ligados à conjuntura daquele período. O autor afirma que o Brasil era um país de terceiro mundo e, portanto, possuía uma série de problemas que se colocavam como entraves ao seu desenvolvimento. Dentre eles destacam-se a primazia do latifúndio sobre a pequena propriedade, a ligação da burguesia ao capital internacional, um movimento operário vulnerável em função da intervenção governamental nos sindicatos e o anticomunismo latente nas camadas médias, que levava a uma rejeição ao governo reformista de Jango. Além disso, Cunha também destaca a atuação dos intelectuais orgânicos na manipulação da opinião pública contra as forças progressistas da sociedade. Os intelectuais orgânicos da classe dominante atuavam no Congresso Nacional, formavam opinião pública através dos meios de comunicação de massas, da escola, de parte das igrejas, de organizações tipo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), instrumentalizando conceitos ideológicos de “civilização ocidental e cristã”, corrompendo com dinheiro da embaixada americana (eleições de 1962) com o objetivo político de conservação das estruturas, contra as reformas ou qualquer mudança, escamoteando a discussão da luta de classes (CUNHA, 1994, p. 9). 7 Em recente levantamento, realizado em março de 2014 no banco de dados da CAPES sobre a temática educação e ditadura militar no Mato Grosso, encontramos as seguintes obras: 1. FIGUEIRA, Katia Cristina Nascimento. Forças armadas e educação: o colégio militar de Campo Grande-Mato Grosso do Sul (19332010). Tese de doutorado em Educação defendida no programa de pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos em 01/06/2011; Rodrigues Netto, Miguel. As transformações no mundo do trabalho e os reflexos no sindicalismo em Mato Grosso. 01/03/2011, 157 fls. Mestrado Acadêmico em Política Social Instituição de Ensino: Universidade Federal de Mato Grosso. Biblioteca depositária: UFMT. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 156 Um dos aspectos interessantes do trabalho de Cunha é o de apontar para o fato de que, apesar desse contexto sombrio da sociedade brasileira, alguns educadores, como o pioneiro da década de 1930 Paschoal Lemme, conseguiram tomar consciência de que os problemas que enfrentavam não se circunscreviam apenas ao espaço da sala de aula, mas também ao seu entorno, apesar do trauma repressivo que enfrentaram desde a ditadura do governo Vargas. Segundo Cunha, com a crise de 1950-60, outros educadores começaram a se preocupar com as questões que se passavam além dos muros da escola. Dentre eles, destaca Paulo Freire, que no Congresso de Educação de 1958 denunciou a relação entre pobreza e analfabetismo, propondo uma “educação com o homem e não para o homem”. Nesse momento, Freire demonstrou sua preocupação com o lugar social do educador e da educação, propondo uma visão transformadora para esse campo. Cunha aponta que o referido congresso trouxe novas esperanças para os educadores brasileiros através das 210 teses que surgiram e significavam um alento para um contexto social e educacional tão conturbado como aquele. Talvez elas pudessem significar uma superação dos fracassos enfrentados nas décadas anteriores, conforme listou Cunha: A Alfalit (Agência Alfabetizadora Confessional), a Cruzada Nacional de Educação (1932), a Bandeira Paulista de Educação (1933), a Cruzada de Educação de Adultos (1947), o Sistema Radioeducativo Nacional – SIRENA (1957), a Campanha Nacional de Adultos e Adolescentes (19471954), a Educação Rural (1952-1959), a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (1958) (CUNHA, 1994, p. 12). O autor aponta que, apesar de os governos de Juscelino, Jânio Quadros e o período parlamentarista terem apresentado propostas para a questão educacional, nenhuma causou tanta discussão como a que girou em torno da LDB, que se iniciou em 1948 e foi promulgada pela Lei n. 4.024, de dezembro de 1961. Tal debate se desdobraria até 1964, quando o golpe silenciou a todos e impôs não só uma nova ordem social, mas também educacional, opondo de um lado os privatistas e, de outro, os defensores da escola pública. Essa defesa remontava aos escritos dos pioneiros da década de 1930 – Paschoal Leme e Anísio Teixeira –, que foram responsáveis, dentre outras coisas, pela elaboração do manifesto dos pioneiros da educação nova. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 157 O embate entre privatistas e defensores da escola pública acabou por criar uma LDB que conciliava as propostas de Mariani e Lacerda. Assim, no Brasil, o ensino é de responsabilidade tanto do poder público quanto da iniciativa privada (art. 2). A gratuidade, conquista constitucional, fica sem explicitação. Abre-se a porta para o Estado financiar a escola privada (art. 95) (CUNHA, 1994, p. 13). Como se pode notar a partir das reflexões de Cunha, o campo educacional brasileiro sempre foi marcado pela contradição e pela luta entre grupos que pensavam a educação a serviço do capital e os que defendiam a escola pública como possibilidade de transformação da sociedade. Nesse processo, tanto as entidades patronais, como IPES, IDORT e IBAD, quantos os partidos, como o PCB, tiveram um papel importante, e é sobre isso que trataremos no decorrer deste capítulo. Se de um lado tivemos entidades como IPES e IDORT propondo uma educação conservadora e instrumental para o favorecimento do capitalismo, por outro, tanto nos documentos oficias do PCB quanto na produção de alguns dos intelectuais ligados a ele encontramos várias referências à defesa da escola pública e de uma educação transformadora, bem como uma reflexão sobre a função de educadores e estudantes dentro do processo de superação das desigualdades sociais. AS ENTIDADES PATRONAIS E CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA O IPES, fundado no ano de 1961 por empresários brasileiros, agia fortemente no sentido de desestabilizar o governo João Goulart. Além de editar livros, panfletos e veicular propagandas antigovernistas, atuava como lobista no Congresso Nacional junto a parlamentares contrários a João Goulart, na tentativa de barrar os projetos de governo, sobretudo as reformas de base. Sobre a atuação dos intelectuais do IPES nas atividades de oposição sistemática ao governo de João Goulart, Hernán Ramírez, em sua dissertação de mestrado Os institutos de estudos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996, destaca que, educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 158 Com o objetivo de disseminar na opinião pública o pensamento e atividades do IPES recorreu aos meios de imprensa falada e escrita. Dada a natureza de suas atividades, os membros desse grupo estavam estritamente vinculados com a mídia, entre eles encontramos no Rio de Janeiro a Nei Peixoto do Valle; o proprietário da Denisson Propaganda José Luiz Moreira de Sousa; o escritor e jornalista Glauco Carneiro; José Rubem Fonseca; Hélio Gomide, e o general Golbery do Couto e Silva. Enquanto que em São Paulo, dedicavam-se a essa atividade Paulo Ayres Filho e o proprietário da Norton propaganda, Geraldo Afonso. Também colaboravam Enio Pesce; Flávio Galvão d´O Estado de São Paulo; Luiz Cássio dos Santos Werneck; Silvério Lobo, da Denisson Propaganda; Evaldo Pereira Simas, que viria ser editor da revista da ACRJ, ligado a augusto Trajano de Azevedo Antunes; Jorge Sampaio e Alves de Castro, do “Repórter Esso para todo o Brasil” da TV Tupi, que trabalhavam conjuntamente Arides Viscondi; Antônio Peixoto do Valle e Wilson Figueiredo, editor do Jornal do Brasil (RAMÍREZ, 2005, p. 201). Ramírez afirma que, apesar de sua importância, o IPES teve vida curta, apenas 10 anos; mesmo assim, aponta pelo menos quatro períodos distintos de sua história, a saber: O primeiro, o da criação e organização do órgão, vai de novembro de 1961 a outubro de 1962, quando foram realizadas diversas ações com o objetivo de desestabilizar o governo de João Goulart. O segundo encontra-se circunscrito ao período de 1962 a 27 de maio de 1964, quando as duas filiais do IPES se separam, originando a subsidiária carioca. Esse foi o momento de esplendor do órgão, pois muitos dos empresários filiados passaram a ocupar cargos oficiais e, portanto, a contribuir com quantias mais generosas para a instituição, garantindo maior participação política da entidade. Já no terceiro momento, de 1964 a 1967, o IPES busca se reposicionar dentro do contexto interno e externo do país, tentando encontrar uma função adequada para o instituto, cuja proximidade com autoridades políticas daquele momento dava-lhe grande prestígio; no entanto, essa situação começa a mudar no momento de instauração do golpe civil-militar de 1964, quando a influência dos militares cresce na mesma medida em que o poder do grupo diminui. O quarto período vai de 1967 a 1971, momento em que o IPES encerra suas atividades, após anos de agonia em face das dificuldades de arregimentar novos sócios e educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 159 colaboradores/patrocinadores, assim como define os rumos que a entidade iria seguir dali em diante. Ao longo de sua atuação, o IPES teve como principal objetivo a filiação de empresários e intelectuais com a intenção de formular estudos e realizar palestras e seminários que pudessem influenciar a mudança da conjuntura política do país. Certamente por esse motivo o principal intento era discutir temas candentes na sociedade brasileira, com vistas a influenciar as medidas que seriam tomadas acerca deles. Entre os estudos feitos, destacam-se aqueles sobre as reformas de base, realizados de 1962 a 1963, o clico de debates promovido em 1966, o Fórum de Educação em 1968 e ainda o fracassado estudo sobre entraves entre governo e empresas, ocorrido nesse mesmo ano. O objetivo principal do IPES era, por meio da articulação com outros órgãos, apresentar propostas que pudessem se contrapor às alas mais progressistas da sociedade, formulando planos que atendiam a perspectivas conservadoras do governo, como se observa: Entre 1962 a 1963, o IPES desenvolveu uma ambiciosa tarefa que consistia em fazer análises sobre um ampla gama de questões, fundamentais para a reforma integral do estado do Brasil, com o propósito de participar no debate político e constituir-se num contrapeso às propostas vindas de outros setores, habitualmente englobados sob o adjetivo “progressista”, nessa tarefa precisou articular-se com outros institutos de pesquisa, como o IBAD, nos casos da Reforma Agrária e da Habitação Popular, e a FGV, nos casos de Reforma Administrativa e Reforma Tributária, que já estavam encaminhados (RAMÍREZ, 2005, p. 221). O interesse do IPES era interferir em questões importantes com o objetivo de influenciar as políticas governamentais por meio da pressão de empresários que colaboravam economicamente para seu funcionamento e da influência ideológica de seus intelectuais. Como adverte a pesquisadora Maria Victória Benevides, militares, técnicos e intelectuais tiveram um papel ativo no processo de oposição ao governo de João Goulart. Benevides destaca na ação dos militares a importância da obra de Golbery sobre seus liderados: educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 160 Muito mais importante do que “checar” nomes nas listas de associados do IPES (e vários citados tiveram participação meramente acidental), é perceber, no texto, a sólida articulação entre empresários, intelectuais, técnicos e militares em autênticos grupos de pressão, e não simples conspirações. Quando se entrega um livro ao público nunca se sabe o uso que lhe será dado. É bem possível que aos militares liderados pelo general Golbery tenha agradado o reconhecimento de seu alto grau de eficácia como agentes ativos numa revolução, e não numa quartelada (BENEVIDES, 2003, p. 257). Em relação aos empresários como agentes orgânicos do conservadorismo, Benevides apresenta a tese de que a elite se saiu mal no processo, ou por desconhecimento dos rumos que tomaria o país ou por mera incompetência. Aos empresários (incluindo aqueles que têm feito publicar curiosos desmentidos) deve também ter agrado o papel de intelectuais orgânicos desta “revolução burguesa”. Enganam-se, senhores. A tese é clara, e a continuidade do processo na já chamada “década da infâmia” (pós AI-5), provaria que, sob qualquer ângulo que se observe, a elite orgânica se sai mal... Quanto aos empresários, ou já sabiam dos rumos da revolução (a estatização e a repressão) e se tornaram, portanto, cúmplices do arbítrio e do “estatismo selvagem” (na expressão recente de um indignado representante da classe), ou não sabiam e se mostravam incompetentes, sem uma clara visão do processo histórico. Quanto aos militares, muito ainda precisa ser esclarecido, além da hipótese que reduz seu importante papel no movimento de 64 (BENEVIDES, 2003, p. 257). A título de exemplo, podemos destacar o plano elaborado em parceria com o IBAD para a reforma agrária. O referido estudo foi encomendado para um conjunto bastante amplo de intelectuais, mas foi coordenado por um grupo mais reduzido; entre os signatários do plano podemos nomear José Artur Rios, Ivan Hasslocher, Edgar Teixeira Leite e Paulo Assis Ribeiro (RAMÍREZ, 2005). Ainda como destacou Ramírez, a questão da reforma agrária acabou criando atritos entre os membros do IPES do Rio de Janeiro e de São Paulo, posto que a proposta formulada pelos intelectuais da filial carioca privilegiava os interesses agroindustriais e, portanto, feria os do grupo paulista, ligado aos setores agrários, que teriam muito a perder com tais propostas. Por esse motivo, o IPES acabou apresentando um plano que se pautou em propostas científicas e terminou por divulgá-lo sem fazer referência ao seu nome e ao do IBAD. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 161 Tal plano seria apropriado posteriormente por parlamentares como Aniz Badra, que transformou as propostas num anteprojeto de lei com vistas a determinar os rumos da reforma agrária no Brasil. No entanto, acabou sendo derrotado por João Goulart, que assinou o Decreto de Reforma Agrária e criou a Superintendência para a Reforma Agrária (SUPRA). O IPES apresentou, através dos parlamentares ligados a ele, mais de 24 projetos de lei ao Congresso Nacional, participando assim ativamente do debate acerca dos principais problemas da conjuntura brasileira. Um dos acontecimentos e debates mais importantes ocorreu em 1968, com a organização do Fórum de Educação, patrocinado pelo Jóquei Clube Brasileiro e pela empresa Klabin Irmãos S.A. A questão principal que motivou a realização do congresso foi a preocupação com as manifestações estudantis, que mostravam descontentamento com a conjuntura política e o sistema de ensino vigente. Talvez por esse motivo foram convidadas grandes personalidades do meio educacional do período, que contribuíam para a busca de soluções que pudessem aumentar o controle sobre os estudantes e seus movimentos organizados. Tal premissa se tornava clara no próprio livro que sintetizou as palestras do fórum, que recebeu o título A educação que nos convém, também patrocinado pelas entidades promotoras e pela APEC Editora S.A. O seminário, realizado em outubro/novembro de 1968, foi organizado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES/GB – e teve o patrocínio da Pontifícia Universidade Católica do Rio – PUC/RJ. Na síntese dos debates, publicada pela APEC Editora S.A. em 1969, encontramos o principal objetivo do grupo: organizar a educação brasileira no período posterior ao golpe. Na apresentação da referida obra, feita pelo vice-presidente do IPES, Glycon de Paiva, há a afirmação de que o movimento de maio de 1968 em Paris teve repercussão em todo o mundo; no Brasil eclodiu de forma calculada no segundo semestre daquele ano e “terminou por constituir-se em um dos motivos da aplicação de medidas excepcionais a que o Governo Federal se obrigou a lançar mão para restabelecer a ordem, calculadamente perturbada” (PAIVA, 1969, p. III). Justificando, portanto, que a desordem, com intenções boas ou más, teria sido realizada em função da falta de qualidade de ensino, Paiva afirmava que o IPES e a PUC tinham o objetivo de debater um tipo de educação conveniente aos interesses brasileiros e, educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 162 por esse motivo, o seminário foi organizado. O tema I, “Objetivos e métodos da educação brasileira”, foi debatido pelo padre Fernando Bastos D`Ávila, S. J., que assim definia os objetivos da educação: Ela implica, em primeiro lugar, uma exigência de promoção de valores morais através da educação. Ela implica em segundo lugar, a exigência da formação técnico-cientifica, isto é, de uma educação que prepare o homem a uma tarefa útil para a promoção de sua comunidade (ÁVILA S. J., 1968, p. 2). Para efeito de síntese do pensamento que perpassou os diversos debates do seminário, creio que essas duas afirmações serão suficientes, pois a partir delas podemos inferir que a educação conveniente ao país após o golpe voltava-se para a formação de um cidadão cordato e nacionalista, que respeitasse a religião, a pátria e os símbolos nacionais, e que ainda fosse útil, no sentido positivista da palavra, à sua comunidade e país. Ou seja, como definiu Saviani, baseava-se na teoria do capital humano e preconizava uma educação para formação de recursos humanos que seriam empregados no desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros do sistema capitalista (SAVIANI, 2008). Os conflitos com os dirigentes conservadores eram anteriores ao golpe. Lacerda já havia enfrentado a fúria de alguns estudantes da Faculdade Nacional de Filosofia no ano de 1963. O fato foi noticiado em tom de crítica no jornal Folha de São Paulo, publicado no dia 31 de dezembro de 1963, sob o título Exército intervém em conflito com Lacerda, conforme apresentamos a seguir: O governador Carlos Lacerda foi violentamente hostilizado, esta noite por alunos da Faculdade Nacional de Filosofia, que conseguiram colocar em risco sua segurança. Pressionado pela massa estudantil, o governador respondia a altos brados às ofensas que lhe eram dirigidas. O governador da Guanabara fôra convidado para paraninfar o ato de formatura de 11 alunos do curso de jornalismo, que resolveram fazer a solenidade em separado, contrariando a maioria dos formandos, que haviam escolhido para paraninfo e patrono, respectivamente os professores Celso Cunha e Anísio Teixeira. Chegando à faculdade, o governador foi impedido, pelos estudantes, de entrar no prédio. O reitor Pedro Calmon tentou demover os jovens da idéia, mas não conseguiu. (...) À medida que os atos de hostilidade iam aumentando o governador da Guanabara resolveu, depois de conferenciar com os responsáveis pelo policiamento, passar para o prédio defronte à Faculdade. Durante o trajeto foi acossado pelos alunos educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 163 mas, fortemente protegido pela polícia do exército, conseguir alcançar seu objetivo. (Folha de São Paulo, 1963, p. 1) Esse fato nos dá uma amostra da relação de hostilidade que se estabeleceria entre estudantes e governo após o golpe, uma vez que, num contexto de governos civis, a tensão já se mostrava grande. Isso talvez explique a grande preocupação dos militares recémempossados com a influência das ideias de esquerda nos meios estudantis naquele período. Nesse sentido, o fórum era uma forma de tentar contornar a situação de animosidade entre tais grupos. A respeito do fórum organizado pelo IPES, Demerval Saviani esclarece que, após o golpe, umas das grandes preocupações daquele instituto foi a educação, evidentemente em função da preocupação com o controle da oposição estudantil, como já citamos anteriormente. De acordo com o autor, as atenções do governo militar nesse período voltavam-se para aspectos mais específicos do sistema educacional, como, por exemplo, a profissionalização do nível médio, a integração dos cursos superiores de formação tecnológica com as empresas e uma maior influência do Ministério do Planejamento sobre o da Educação na planificação educacional. A iniciativa da organização do Fórum se pôs como uma resposta da entidade empresarial à crise educacional escancarada com a tomada das escolas superiores pelos estudantes, em junho de 1968. Durante os meses de julho, agosto e setembro, o IPES se dedicou à preparação do evento, que se realizou de 10 de outubro a 14 de novembro de 1968. Teve papel decisivo na organização do evento Roberto de Oliveira Campos, que havia sido ministro do Planejamento do governo Castelo Branco entre 1964 e 1967, situação em que definiu a política econômica do regime militar e implementou suas principais medidas. A ele eram submetidos os temas e os sumários das conferências e os nomes dos participantes a serem convidados. O Fórum contemplou onze temas, sendo quatro abordando a educação de modo geral, seis tratando de “aspectos do ensino superior” e o último, definido como “conferência-síntese”, versou sobre os “Fundamentos para uma política educacional brasileira” (IPES/GB, 1969) (SAVIANI, 2008, p. 296). Ao analisar a proposta de educação defendida pelo Fórum de Educação do IPES, Saviani aponta que ela se centrava na formação do trabalhador e buscava por meio da sondagem de aptidões, planejamento e racionalização das atividades educacionais uma formação rápida de mão de obra para o mercado nacional. Ressalte-se que esses princípios educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 164 influenciaram muito na formulação da reforma universitária, articulada em parceira com a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Como é possível observar, além do IPES, o IBAD também teve uma função primordial na articulação de diversas ações de cunho ideológico que abririam caminho para a intervenção militar. Pode-se observar que o grupo do complexo ligado ao IPES/IBAD se colocava como intelectuais representantes dos interesses da burguesia conservadora. Cabe ressaltar que o conceito de intelectual utilizado por nós permite que caracterizemos assim a agremiação civil-militar que se aglomerou em torno do complexo, conforme a metodologia referenciada nos princípios teóricos de Gramsci (1979) de que todo grupo social carrega consigo intelectuais que procuram lhe dar coesão. Assim, acreditamos que as contribuições apresentadas não eram feitas de forma fortuita, mas sim articuladas organicamente em torno de uma proposta ideológica antijanguista, apoiada pelos setores mais conservadores da sociedade brasileira. O IBAD foi fundado em maio de 1959 por Ivan Hasslocher, norte-americano dono da agência de propaganda chamada Promotion. O instituto sobrevivia recebendo contribuições de empresários brasileiros e estrangeiros que discordavam do governo e consideravam necessário organizarem-se com o objetivo de combater o comunismo no Brasil e influir nos rumos do debate econômico, político e social do país. O principal foco do IBAD era desenvolver ações políticas antiesquerdistas. A elite orgânica empresarial se fez defensora e porta-voz dos pontos de vista moderados do centro, ampliando as perspectivas elitistas e consumistas das classes médias e fomentando o temor às massas. Revigorava a percepção solipsista das classes médias quanto à realidade social brasileira e as influenciava contra o sistema político populista (DREIFUSS, 1987, p. 230). O instituto procurava, através do repasse de verbas e de propagandas, influenciar movimentos organizados de trabalhadores, estudantes e militares, tais como o MSD – Movimento Sindical Democrático –, a Redetral – Resistência Democrática dos Trabalhadores Livres – e o MED – Movimento Estudantil Democrático –, com vistas a desestabilizar os governos progressistas e manter a ordem conservadora no país. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 165 Nesse quadro, a intervenção norte-americana se punha de prontidão, seja ao destinar recursos financeiros, sem passar pelos olhos do Estado, para os governadores comprometidos com o combate ao comunismo, “capazes de sustentar a democracia”. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, recebeu entre 1961 e 1962, cerca de 71 milhões de dólares. Da mesma forma, o IBAD - o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, recebia créditos, mediados, inclusive, pela embaixada dos Estados Unidos, apoiando candidatos a fim de formar uma base parlamentar de direita, agrupada na ADP - Ação Democrática Parlamentar (RAGO FILHO, 1998, p. 102). René Dreifuss, ao analisar a ação do IBAD, afirma que a ação ideológica das elites orgânicas consistia numa doutrinação que se alastrava pelo Congresso Nacional, sindicatos, movimento estudantil e clero. Afirmava ele que “a doutrinação geral visava apresentar as abordagens da elite orgânica aos responsáveis por tomadas de decisão políticas e ao público em geral, assim como causar um impacto ideológico em públicos selecionados e no aparelho do Estado” (DREIFUSS, 1987, p. 231). Esse tipo de doutrinação se dava, sobretudo, por meio da mídia de caráter defensivo-ofensivo, uma vez que buscava neutralizar as ideias de esquerda – atacando o comunismo, o socialismo, a oligarquia rural e a corrupção do populismo – e promover atitudes e pontos de vista tradicionais de direita, buscando manipular a opinião púbica, difundindo a ideia de que o caminho da prosperidade da nação viria pelas mãos da iniciativa privada, e não por meio das ações de intervenção do Estado na economia. Dentre as estratégias utilizadas pela denominada elite orgânica para manipular a opinião pública estava a utilização da propaganda, seja por meio de palestras, simpósios e conferências, ou da mídia impressa, radiofônica e televisiva. De acordo com Dreifuss, o complexo IPES/IBAD, a partir do contato que mantinha com várias editoras, publicava panfletos, periódicos, jornais, revistas, folhetos e veiculava mensagens político-ideológicas no rádio e na televisão, arquitetando, assim, uma verdadeira campanha anticomunista. A penetração da influência dessa elite orgânica nos meios de comunicação não poupou nem mesmo os jornais de grande circulação, como os Diários Associados (ligado a Assis Chateaubriand), a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde. A capacidade de manipulação desses órgãos da opinião pública pode ser visualizada por meio educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 166 de uma reportagem publicada na Folha de São Paulo sob o título: São Paulo parou ontem para defender o regime, no dia 20 de março de 1964. A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos, dentro do mesmo espírito que ditou a revolução de 1932, originou ontem o maior movimento cívico já observado em nosso Estado: “A marcha da Família Com Deus, pela Liberdade” (...). Com “vivas” à democracia e à Constituição, mas vaiando os que consideram “traidores da pátria”, concentram-se defronte da catedral e nas ruas próximas. Ali oraram pelos destinos do país. E, através de diversas mensagens, dirigiram palavras de fé no Deus de todas as religiões e de confiança nos homens de boa vontade. Mas, também de disposição para lutar, em todas as frentes, pelos princípios que já exigiram o sangue dos paulistas para se firmarem (Folha de S. Paulo, 20 de março de 1964. http://acervo.folha.com.br/fsp/1964/03/20/2/). Segundo Daniel Aarão Reis, a marcha representou uma contraofensiva ao governo de João Goulart que, buscando acelerar as reformas de base prometidas em seu governo, organizou um grande comício no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, que contou com a presença de mais 350 mil pessoas que apoiavam suas plataformas de governo. O referido comício foi o estopim para uma reação conservadora que se iniciou em São Paulo e se espalhou pelo Brasil como um todo, com o objetivo de barrar as ações reformistas de Jango. Conforme indica Reis, As direitas unidas, alarmadas, aparentando decisão, também foram às ruas, cerca de quinhentas mil pessoas. Outras marchas se seguiram em várias cidades, em processo até hoje mal estudado. As forças desencadeadas da contra-reforma (REIS, 2005, p. 31). A marcha foi o prenúncio de um movimento da direita que objetivava derrubar o governo de João Goulart. Além dela, o contexto se agravou com uma reunião da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), proibida pelo ministro da Marinha e mantida pela diretoria da associação – ato que mudou os rumos do processo político no Brasil. De uma disputa de projetos entre grupos mais progressistas e conservadores, passou-se a uma crise disciplinar no interior das forças armadas – “o dispositivo militar começou a ruir” – que se agravaria e culminaria no golpe de 1964. (REIS, 2005, p. 32) A educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 167 partir desse momento, as forças conservadoras aguardavam um momento propício para colocar o golpe em prática. O estopim desse processo se daria em Minas Gerais, com a ação do general Olímpio Mourão, que colocou suas tropas em ação. Ainda segundo Reis, Jango, na tentativa de evitar uma guerra civil, (...) foi fugindo do cenário aos soluços: Brasília, Porto Alegre, Montevidéu, deixando atrás de si um rastro de desorientação e desagregação. Apavorado diante do incêndio que provocara sem querer, horrorizado com a hipótese de uma guerra civil que não desejava, decidiu nada decidir e saiu da história pela fronteira com o Uruguai (REIS, 2005, p. 32). Um aspecto interessante discutido por Reis acerca do apoio dos civis à organização do golpe de Estado foi o fato de os cidadãos brasileiros assinarem um cheque em branco em relação ao futuro do país, pois mesmo sem saber o que ocorreria após a instituição da ditadura, preferiram apoiá-la sem maiores questionamentos. Após a vitória imprevista, nas palavras de Reis, os conservadores desfilaram em marcha para comemorar a vitória dos contrarreformistas. Afirma ele: “Uma grandiosa Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, com centenas de milhares de pessoas, no Rio de Janeiro, comemorou o golpe militar e festejou a derrocada de Jango, das forças favoráveis às reformas e do projeto nacional-estatista que encarnavam” (REIS, 2005, p. 33). Os acontecimentos da marcha não podem ser tomados como isolados dentro do contexto que precedeu o golpe, como já apontamos anteriormente. Diversas organizações financiadas pelo capital estrangeiro e cujos membros possuíam ligações com os militares, a exemplo do IBAD e do IPES, agiam, por meio da propaganda, para fazer parecer que o golpe foi um pedido da sociedade. A classe média, com seu conservadorismo latente, foi o principal alvo das campanhas do IPES. Sobre isso René Dreifuss afirmou: A mobilização das classes médias conferia a aparência de amplo apoio popular à elite orgânica e a mídia coordenada pelo IPES proporcionava grande cobertura às atividades dessas classes médias mobilizadas. Na atmosfera elitista do Brasil, as demandas das classes médias eram vistas como o ponto de referência para a identificação da legítima expressão popular (...). Mas a mobilização das classes médias era, sobretudo, uma campanha ofensiva, projetada para acentuar o clima de inquietação e educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 168 insegurança e dar a aparência de um apelo popular às Forças Armadas para uma intervenção militar (DREIFUSS, 1984, p. 291). Como era de se esperar pelo próprio título da marcha, o clero teve um papel ativo no processo de cooptação e controle dos operários por meio da Federação de Trabalhadores Cristãos, fundada pelo Padre Leopoldo Brentano. Essas federações foram estabelecidas em dezessete dos vinte e dois estados do Brasil e chegaram a quatrocentas por toda a extensão do país na década de 1960. Elas tinham como função, além de promover o civismo no meio operário, torná-los favoráveis às forças conservadoras, por isso ofereciam assistência jurídica, médica, dentária e hospitalar, bem como sistemas cooperativos de consumo, crédito habitacional e cursos profissionalizantes. Conforme adverte Dreifuss, sua intenção era clara: Os cursos populares tinham como objetivo neutralizar o potencial de participação das classes trabalhadoras quanto ao seu apoio às propostas e teses nacional-reformistas (...). Segundo o porta-voz do IBAD, a ELO se encarregaria de fazer um teste de extraordinária importância, qual seja, verificar a receptividade entre as classes trabalhadoras da Doutrina Social Cristã (DREIFUSS, 1984, p. 310-311). Para além das confederações de trabalhadores, René Dreifuss ainda aponta uma série de movimentos que eram controlados pelo complexo IPES/IBAD, a saber: o Movimento de Orientação Sindicalista (MOS), o Movimento Renovador Sindical (MRS), a Confederação Brasileira dos Trabalhadores Cristãos (CBTC), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o Movimento Sindical Democrático (MDS) e a Residência Democrática dos Trabalhadores Livres (REDETRAL), dentre outros. O objetivo do complexo nessas organizações era infiltrar líderes capazes de propagar a ideologia direitista entre a classe trabalhadora. Suas ações lograram certo êxito, no entanto, apesar dos financiamentos e esforços, muitos sindicatos se voltaram para os movimentos de esquerda. Uma demonstração clara desse fato foi a derrota estrondosa da chapa patrocinada pelo IPES/IBAD nas eleições da CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria – em 1964. Apesar dos fracassos, tais iniciativas conseguiram dividir os movimentos de trabalhadores, mergulhando-os numa luta intestina que acabou educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 169 por impedi-los de apoiar o governo de João Goulart, levando, assim, ao enfraquecimento de suas propostas de reformas de base. A partir da bibliografia mobilizada, podemos observar que o golpe de 1964 foi construído paulatinamente em duas frentes claras de atuação: a infiltração da ideia de direita no seio das camadas médias da sociedade brasileira, patrocinada pelo complexo IPES/IBAD, e a organização de uma conspiração no interior das forças armadas, capitaneada pela ESG (Escola Superior de Guerra), o que reforça a tese já indicada anteriormente de um golpe-civil militar articulado principalmente pela imprensa, como já exemplificamos no segundo capítulo por meio da revista Brasil-Oeste. René Dreifuss descreve claramente esse processo: A rede militar do complexo IPES/IBAD, assim como oficiais pertencentes a outros grupos que foram ativamente aliciados, operava em sistema de intensa cooperação com civis, apoiando e reforçando algumas das atividades políticas. (...) A ação do complexo IPES/IBAD entre os militares visava, principalmente, envolver o maior número de oficiais na mobilização popular contra o governo (DREIFUSS, 1984, 362). Dreifuss também nos esclarece sobre a atuação de grupos internacionais, da elite orgânica e dos políticos na organização do golpe de 1964: Os líderes do IPES também mantinham contatos estreitos com figuras públicas americanas durante sua campanha e com o governo americano, objetivando assegurar apoio logístico para o golpe. A elite orgânica também estava envolvida em ação paramilitar, apesar de estar muito preocupada em que não fosse feita pública sua ligação a quaisquer grupos encobertos de ação. Além disso, o complexo IPES/IBAD procurou o apoio de figuras nacionais de partidos políticos e dos governadores dos estados-chave de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Guanabara. Os governadores foram úteis ao colocarem a força policial de seus estados à disposição do movimento civil-militar contra João Goulart, medida de maior importância, tendo em vista a localização estratégica das milícias estaduais nas áreas urbanas, treinadas especialmente para lidar com civis e com um tal potencial bélico que as transformava em exércitos de fato (DREIFUSS, 1984, p. 362). Como demonstrou o autor, a função primordial do complexo IPES/IBAD era neutralizar as forças populares de apoio a João Goulart e impedir que o mesmo ganhasse o apoio militar às propostas socialistas e/ou populistas. A elite orgânica, ao semear diversas educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 170 teorias conspiratórias entre civis e militares, acabou parecendo mais forte do que realmente era frente aos olhos dos apoiadores de João Goulart, conseguindo, aos poucos, construir uma contra-hegemonia em relação ao governo. Como advertiu Gramsci: A imposição de um projeto hegemônico exige, dentre outros fatores, a luta pelo monopólio dos órgãos formadores de opinião pública [...] e aquilo a que se chama de “opinião pública” está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política, entre o consenso e a força (GRAMSCI, 2000, p. 16). A VISÃO EDUCACIONAL DO PCB – A CONSTRUÇÃO DA CONTRA-HEGEMONIA É preciso frisar que, se de um lado tivemos todas as inciativas das entidades empresariais para a construção de uma sociedade e uma educação conservadoras por meio do financiamento de obras, seminários e publicações, de outro tivemos uma contraproposta formulada no interior do PCB. Num documento intitulado Ação política, elaborado em 1965 para analisar o golpe de 1º de abril de 1964, que modificou a situação política nacional, encontramos na resolução nº 1 uma primeira referência à concepção de educação defendida pelo PCB. É importante destacar que na referida resolução os dirigentes entendem o golpe de 1964 como um movimento de forças retrógadas e antinacionais que ganharam força a partir da propaganda antijanguista e anticomunista de agentes do imperialismo norte-americano, latifundiários e grandes capitalistas ligados aos monopólios ianques. Ou seja, criou-se um governo exercido por um grupo de generais a serviço da embaixada dos Estados Unidos. Dessa forma, a primeira visão defendida pelo PCB é a da educação como um campo de resistência ao regime, no qual estudantes e intelectuais têm um papel primordial no enfrentamento do regime ditatorial. Assim se referia o partido ao movimento estudantil e ao campo educacional naquele contexto: “Os estudantes se insurgem contra a Lei 4464, em defesa da autonomia do movimento estudantil, na UNE e das suas demais entidades” educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 171 (RESOLUÇÃO POLÍTICA do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, 1965, p. 19).8 A lei, assinada pelo presidente Castelo Branco e por Flávio Lacerda, dispunha sobre a regulamentação das atividades de representação estudantil. Conhecida como Lei Suplicy, representava o fechamento das entidades estudantis, através da criação de órgãos como o Diretório Nacional de Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais de Estudantes (DEEs). Dessa forma, abria caminho para a substituição da UNE (União Nacional dos Estudantes) e das UEEs (União Estadual dos Estudantes). Em 1967, mesmo com vários protestos estudantis contra essa resolução, o governo lançou o Decreto-Lei n. 228, que extinguia esses órgãos, deixando os estudantes sem nenhuma entidade representativa legal e à mercê dos desmandos dos ditadores. Um dos artigos principais da lei, que demonstrava o que os militares pensavam sobre a finalidade dos órgãos de representação estudantil, estava expresso no item d) de seu artigo 1º: Art. 1: Os órgãos de representação dos estudantes de ensino superior, que se regerão por esta Lei, têm por finalidade: organizar reuniões e certames de caráter cívico, social, cultural, científico, técnico, artístico, e desportivo, visando à complementação e ao aprimoramento da formação universitária (Coleção de Leis do Brasil - 1964, Vol. 7, p. 75). A intenção era clara: diminuir a influência subversiva no interior das entidades estudantis e promover o civismo e o patriotismo desse espaço por meio de seu esvaziamento político. Mas esse objetivo não foi alcançado tão facilmente e a Lei Suplicy de Lacerda acabou despertando muitas reações contrárias, mesmo de apoiadores do golpe que, embora fossem contra o aparelhamento comunista no comando das entidades, defendiam o direito de livre organização por parte dos estudantes. A resolução trata ainda de uma dimensão da educação como fruição cultural, como forma de preservar a liberdade democrática de expressão de ideias artísticas e políticas. “Os intelectuais se arregimentam contra o terror cultural e para exigir a restauração das 8 Cumpre esclarecer que todos os documentos do PCB que utilizaremos na tese foram retirados de CARONE, Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982. Vol. 3. Por esse motivo decidimos listar as referências completas dos documentos nas notas de rodapé. Voz operária, Suplemento Especial, Resolução do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, maio de 1965. In: CARONE, Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982, p. 19. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 172 liberdades democráticas e a retomada do desenvolvimento econômico do país” (RESOLUÇÃO POLÍTICA do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, 1965, p. 19). Rodrigo Czajka (2010), apoiando-se em Sodré (1963), assim se refere à relação entre política, intelectuais e cultura no contexto de João Goulart: Muito embora a mobilização das massas tivesse um caráter político evidente, grupos de intelectuais e artistas dispuseram-se a referendar aqueles acontecimentos com a legitimidade que lhes eram próprias. Ou seja, o movimento político de ascensão das massas no início da década de 1960 procurava justificar-se a partir de elementos de uma nova legitimidade, nesse caso, a legitimidade de uma nova cultura que fosse, além de nacional, popular. Daí que a participação política e o engajamento de intelectuais e artistas estavam condicionados à construção de um referencial de cultura popular que também fosse nacional. Era necessário constituir um referencial popular a partir da cultura, pois por meio dele seria possível contemplar o "povo" no interior de uma política voltada para a transformação da realidade nacional (SODRÉ, 1963, p. 25). Ainda segundo Czajka, o que se buscava era uma democratização não só do acesso aos bens sociais, mas também dos bens culturais no contexto dos anos 1960, sobretudo após as propostas de reforma de João Goulart: Essa nova condição permitiu compor um amplo quadro de lutas sociais, engendradas pelas novas condições de organização política e ideológica das organizações de esquerda, contra as "estruturas arcaicas" de uma sociedade que avançava aos poucos, no sentido da democratização dos bens sociais e culturais. Assim, em consonância com a política cultural do PCB, “no pré-64, o nacional, correlato da luta anti-imperialista, reivindicava a afirmação de uma arte não-alienada que refletisse a realidade brasileira que se queria conhecer para transformar. O popular, por sua vez, acenava para a democratização da cultura e a conseqüente crítica à nossa tradição elitista de uma arte concebida como ‘ornamento’, como ‘intimismo à sombra do poder’” (CZAJKA, 2010, p. 98). Assis Tavares, no documento sob o título de Causas da Derrocada de 1º de Abril de 1964, publicado na revista Civilização Brasileira em julho de 1966, também aponta o campo educacional e o movimento estudantil como protagonistas das forças progressistas no Brasil. Afirma ele: educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 173 Núcleos importantes das camadas médias, especialmente entre estudantes e a intelectualidade, assumiram, porém, nítida posição ao lado das forças progressistas. Foi impressionante a transformação da juventude de 1945 e 1964. Enquanto no fim da guerra a juventude estudantil apenas motivada pela luta em favor das liberdades de 1961 em diante ficou claro o engajamento da mocidade universitária no combate pelas modificações estruturais na sociedade brasileira.9 Tavares, nesse trecho, explicita que, para ele, a partir do contexto do golpe, a juventude brasileira despertou sua consciência para lutas que extrapolavam a dimensão escolar e se envolveu com as questões políticas que atingiam o país naquele momento, demonstrando, assim, uma compreensão de educação que supera seu caráter instrumental, alcançando sua função formativa, humanista e transformadora. Talvez por esse motivo o PCB, em seu período de legalidade – 1945 a 1947 –, tenha sido um parceiro importante de intelectuais como Paschoal Leme na defesa da escola pública como forma de, por meio do conhecimento historicamente acumulado pela sociedade, almejar uma sociedade mais justa e equânime. Na sequência desse mesmo texto, Tavares reforça ainda mais a necessidade de a educação se voltar para a reflexão de questões extramuros, demostrando a dimensão social e política das instituições escolares. Ainda se referindo aos estudantes, ele afirma: Passaram-se (sic) a exercer uma importante influência política fora das escolas, tornando-se daquelas ideias ativos propagandistas. A reação procurou fazer crer que o grosso dos estudantes nada tinha a ver com tais atitudes, o que não confirmado pelos fatos posteriores, pós-“revolução”, desde que a mocidade acadêmica sempre manifestou seu repúdio aos novos governantes do País.10 Se no campo da educação básica a situação era de um certo protagonismo, no meio universitário a resistência ficou a cargo de uma vanguarda, nem sempre seguida pela maioria dos estudantes universitários, que muitas vezes estava mais preocupada com questões internas à universidade. 9 TAVARES, Assis. Causas da Derrocada de 1º de Abril de 1964, Revista Civilização Brasileira, Ano I, nº 8, julho de 1966) In: CARONE, Edgard. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982, p. 44. 10 Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 174 Entretanto, mesmo o movimento universitário ainda era a expressão de um grupo de vanguarda, não chegando a mobilizar a grande maioria dos estudantes. Claro que havia exceções nesse quadro. Em determinados lugares e em certas fases, o movimento estudantil chegou a expressar a grande massa universitária. Normalmente, porém, as entidades estudantis estavam isoladas dessa grande massa, em virtude de não prestarem a devida atenção às questões que preocupam os universitários como universitários: problemas da modernização das escolas, bolsas de estudo, mercado de trabalho para os profissionais, jubilação, etc.11 Nas palavras de Tavares encontramos também críticas à conduta da vanguarda do movimento estudantil, por tendências ultraesquerdistas que se mostraram desastrosas para o movimento. Escreveu ele: De outro lado, grassou entre os estudantes, como capim após a estação chuvosa, tendências “ultra-esquerdistas”, responsáveis por muitos erros na condução da luta. A doença infantil do comunismo – “o esquerdismo” – revelou-se, por exemplo, na greve nacional de 63, pela reforma universitária, que sofreu pesada derrota.12 O trecho citado anteriormente nos chama a atenção, pois demonstra certo centralismo no que se refere ao controle dos movimentos que deveriam atuar tutelados conforme suas diretrizes, e ainda pelo fato de um partido de esquerda fazer críticas ao esquerdismo. Os documentos do PCB também nos esclarecem que o engajamento dos estudantes e intelectuais no pós-golpe se deu numa via de mão dupla, uma vez que tais grupos faziam críticas ao regime e recebiam as devidas represálias, o que, por vezes, acabava por aumentar a atuação antiditatorial de estudantes e intelectuais. Conforme se apura nos documentos, o golpe impôs um recuo evidente da vanguarda em nosso país. Embora dirigido fundamentalmente contra o movimento operário, o golpe voltou-se contra a maioria das organizações democráticas, tais como as associações camponesas e entidades estudantis, e contra personalidades políticas e intelectuais de destaque na luta patriótica; assim, com os sindicatos operários sob intervenção policial, e seus dirigentes presos ou perseguidos, com o conjunto das organizações de massa impedido de atuar, com seus aliados e amigos vitimados pela repressão golpista, com a 11 12 Idem. Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 175 imprensa popular fechada ou amordaçada, o Partido ficou privado de seus principais meios de atuação política.13 Em função da repressão maciça ao PCB, foi necessário arregimentar forças em grupos sociais que atuavam fora do partido, uma vez que eram constantes as prisões e a marginalização das lideranças dos movimentos populares, espalhando o terror entre os trabalhadores e, portanto, levando a um recuo da participação do povo no processo de resistência ao regime. Assim, “coube, nesse sentido, papel destacado à intelectualidade em particular aos estudantes”.14 No documento do VI Congresso do PCB, no item Nossa Tática, os dirigentes destacam novamente o papel preponderante dos intelectuais em defesa de uma cultura nacional: O papel da intelectualidade progressista é de grande relevo no combate à ditadura. Os comunistas devem atuar como elemento de estímulo e unificação da luta dos intelectuais em defesa da cultura nacional, pela liberdade de pesquisa, de criação e pela manifestação do pensamento.15 Novamente encontramos nesse documento uma referência à importância da juventude no processo de luta contra a ditadura. No entanto, o centralismo democrático que buscava tutelar o movimento também se fazia presente: A participação da juventude na vida nacional tem significado crescente. Representando mais da metade da população do país, e sendo por natureza mais sensível aos reclamos do futuro da nação, os jovens comunicam seu calor ás lutas do povo. A juventude estudantil tem participado de lutas valorosas contra o regime opressor, embora seus movimentos se ressintam da influencia, em sua liderança, de correntes sectárias. É preciso ganhar a maioria dos estudantes para esses combates, baseando-os mais solidamente na defesa das reivindicações peculiares á juventude escolar.16 Novamente nos causa estranheza o fato de o Comitê Central do partido acusar as lideranças estudantis de sectarismo e ainda restringir as lutas dos estudantes a questões particulares. É claro que temos conhecimento de que, do ponto de vista tático, essa era uma 13 VI Congresso do P.C.B., 1967, p. 54. Idem, ibidem, p. 69. 15 Idem, ibidem, p. 75. 16 Idem. 14 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 176 tentativa de ganhar o maior número possível de simpatizantes para a causa do partido, que era de massa. Consideramos que, ao restringir o escopo de atuação do movimento estudantil, o PCB acabava por despolitizá-lo. A resolução política do CE da Guanabara, publicada em 1970, estabelece algumas diretrizes e linha de trabalhos que os militantes deveriam seguir para que a resistência à ditadura se tornasse efetiva. Dentre elas, destacamos a frente estudantil e a cultural: 1. Na frente Estudantil: luta para dar aos estudantes o direito de gerirem suas organizações e de realizarem livremente suas reuniões e assembleias nos locais de estudo; luta pela revogação do 477 e contra o terror dentro das Universidades e colégios; luta pela libertação dos estudantes presos. 2. Na frente Cultural: luta pela liberdade de criação e de pesquisa: resistência ao terror cultural e á censura ao trabalho de criação artística, de divulgação e de informação.17 O Decreto-Lei n. 477, publicado em fevereiro de 1969 pelo governo de Costa e Silva, define as infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino públicos ou particulares com o objetivo de propagar o terror no interior das instituições. Em seu artigo primeiro, define o seguinte: Art 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que: I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de atividade escolar ou participe nesse movimento; II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos de ensino, como fora dêle; III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dêle participe; IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza; V - Seqüestre ou mantenha em cárcere privado diretor, membro de corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino, agente de autoridade ou aluno; VI - Use dependência ou recinto escolar para fins de subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública.18 17 Resolução Política do C.E. da Guanabara do PCB: março de 1970. Temas, n. 10, pp. 71-91. BRASIL, Decreto-Lei n. 477, de 26 de fevereiro de 1969. In: SANFELICE, José Luís. Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez, 1986.p. 233. 18 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 177 Os termos presentes demonstram a grande preocupação que o regime possuía com as atividades organizadas pelo movimento estudantil. Apontamos, a partir da documentação, os estudantes que, após o desmantelamento das organizações de trabalhadores, passaram a ser, juntamente com os intelectuais, os principais protagonistas da resistência. Nesse contexto, toda ação, por mais simples que fosse, estava sob suspeita; uma simples reunião ou uma passeata poderia ser considerada ato subversivo. Considera-se, ainda, o clima de terror que se espalhou entre professores, alunos e técnicos das instituições escolares, já que qualquer um poderia ser um delator, um censor do regime. Todo cuidado era pouco, pois as penas eram rigorosas e poderiam variar conforme o vínculo que o praticante tinha com a instituição, como observamos no caput do artigo anteriormente citado: § 1º As infrações definidas neste artigo serão punidas: I - Se se tratar de membro do corpo docente, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino com pena de demissão ou dispensa, e a proibição de ser nomeado, admitido ou contratado por qualquer outro da mesma natureza, pelo prazo de cinco (5) anos; II - Se se tratar de aluno, com a pena de desligamento, e a proibição de se matricular em qualquer outro, estabelecimento de ensino pelo prazo de três (3) anos. § 2º Se o infrator fôr beneficiário de bolsa de estudo ou perceber qualquer ajuda do Poder Público, perdê-la-á, e não poderá gozar de nenhum dêsses benefícios pelo prazo de cinco (5) anos. § 3º Se se tratar de bolsista estrangeiro será solicitada a sua imediata retirada de território nacional.19 Como ressaltaram José Augusto Guilhon Albuquerque (1977) e Sanfelice (1986), o objetivo do decreto era estabelecer um controle efetivo sobre o movimento estudantil e enfraquecer sua representatividade política junto aos alunos. Os autores apontam que além das medidas de repressão pura e simples, os militares ainda utilizaram dispositivos “legais”, impetrados por meio de leis e decretos, para conter a resistência dos movimentos organizados dos estudantes. Tal aspecto repressivo desse período se torna ainda mais evidente no artigo segundo do referido decreto, no qual encontramos uma prática recorrente durante o regime militar – os IPMs – como forma de amedrontar e punir, de forma arbitrária, os cidadãos que atentassem contra o regime autoritário instituído no país. 19 Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 178 Art 2º A apuração das infrações a que se refere êste Decreto-lei far-se-á mediante processo sumário a ser concluído no prazo improrrogável, de vinte dias. Parágrafo único. Havendo suspeita de prática de crime, o dirigente do estabelecimento de ensino providenciará, desde logo a instauração de inquérito Policial.20 Como demonstra o artigo segundo, cabia ao dirigente do estabelecimento de ensino a função de instaurar do inquérito policial, o que evidencia que as acusações e apurações vinham dos próprios pares. O PCB E A EDUCAÇÃO DO MILITANTE Em texto publicado na revista Estudos, na data do 49º aniversário do PCB, em março de 1971, intitulado Aspectos da luta contra o subjetivismo, Luís Carlos Prestes demonstra sua preocupação com a formação intelectual dos militantes e dos simpatizantes do PCB. O primeiro aspecto que consideramos importante no documento é a tentativa de Prestes de fazer uma discussão teórica das bases do marxismo para afastar o que denominava subjetivismo dos comunistas brasileiros, como se anuncia logo no trecho inicial do documento: Os comunistas brasileiros, na luta histórica em que se acham empenhados pela democracia e pelo socialismo, enfrentam numerosas dificuldades, tanto práticas como teóricas. Entre estas, como reconheceu o último congresso de nosso Partido, estão “nossas limitações teóricas” e o “domínio insuficiente da realidade do país”. Daí, o subjetivismo que tantos males já nos causou, levando a equívocos, falhas e erros de consequências muitas vezes desastrosas para a luta sustentada pelo movimento operário que cabe aos comunistas orientar e dirigir.21 20 Idem. PRESTES, Luiz Carlos. Aspectos da Luta Contra o Subjetivismo no 49º aniversário do PCB. Estudos, Ano I, n. 2, março de 1971, p. 108. 21 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 179 O que se evidencia nas palavras de Prestes é a dificuldade de os dirigentes e militantes entenderem, de forma adequada, a conjuntura brasileira a partir dos pressupostos da teoria materialista, que preconiza que análise deve ser feita com base na realidade concreta da sociedade, e não a partir de teorias prévias próprias do idealismo. Como deixa implícito o autor, muitos erros foram cometidos pelo partido em função da transposição de experiências de outras realidades sociais e econômicas que não se aplicavam ao contexto brasileiro. Um dos exemplos que poderíamos destacar é a visão mecânica e etapista que o partido e seus dirigentes possuíam da teoria da revolução elaborada por Marx a partir do contexto especifico do século XIX na Europa. A aplicação mecânica do marxismo sem maiores reflexões levou o partido a buscar aliados em parceiros duvidosos, como a burguesia nacionalista, que embora fosse crítica do imperialismo e dos grandes latifúndios, jamais se tornaria adepta do comunismo preconizado pelo PCB. Prestes se referia a esse erro teórico da seguinte maneira: Refiro-me á tendência á transposição mecânica a nosso país da experiência de outros povos. Posição dogmática e, portanto, antimarxista e antileninista, mas que, no entanto, vem-se repetindo em nossas fileiras, servindo de cobertura para as tendências oportunistas, tanto de direita como de esquerda.22 Parece-nos necessário destacar que Prestes considera esse um problema educacional, ou seja, a formação intelectual insuficiente e/ou mesmo equivocada da grande maioria da sociedade, por influência de uma cultura burguesa ou pequeno-burguesa de alguns militantes, seria o que levaria ao equívoco de tal monta, como aponta em outro trecho de seu texto: Um fosso profundo separa, em nosso país, a minoria letrada da maioria esmagadora da nação-miserável, em grande parte analfabeta, e brutalmente explorada e oprimida. Contraste que se agrava com o crescente monopólio imperialista dos meios de comunicação em massa e com a censura oficial, burocrática e reacionária.23 22 23 Idem. Idem, ibidem, p. 109. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 180 Novamente a preocupação com a função dos intelectuais como fomentadores de uma nova instrução educacional e cultural se faz presente em suas palavras: Isto não significa negar o esforço patriótico e honesto dos intelectuais brasileiros, que vão forjando, ao lado e em oposição á chamada cultura nacional, reacionária e dominante, porque é a das classes dominantes, uma cultura progressista e popular, com elementos democráticos e socialistas. São grandes, no entanto, as dificuldades que enfrentam os intelectuais em nosso país para refletir e expressar o que se passa entre o povo, seus sentimentos e reivindicações, e, daí, a tendência à cópia, á transposição mecânica de manifestações alienígenas, ao cosmopolitismo cultural.24 Apoiando-se nos dizeres de Mário de Andrade, intelectual engajado na busca de uma cultura brasileira, Prestes continua suas críticas à importação de ideias externas para o processo de educação no Brasil. Combato atualmente a Europa – dizia Mario de Andrade, em 1942 – mais que posso. Não porque deixe de reconhecê-la, admirá-la, porém, para destruir a europeização do “brasileiro educado”. Mas, como não foi modificada a estrutura sócio-econômica do país, essa destruição não foi possível. “A europeização” transformou-se em americanização do “Brasileiro educado”.25 Segundo Prestes, essa tendência à imitação de teorias que não se aplicam ao contexto do Brasil dos anos 1960, motivada pela pouca instrução do povo brasileiro ou mesmo por leituras aligeiradas da teoria marxista por militantes da ultraesquerda, foi o que levou aos insucessos da luta armada no país, uma vez que se pretendeu aplicar aqui um processo revolucionário nos moldes da revolução cubana. Sobre isso, afirma ele: Mas, como advertia Lenine, é indispensável na aplicação dos princípios fundamentais do comunismo, tomar em consideração as particularidades específicas de cada nação. Olvidar as peculiaridades nacionais é divorciarse da vida e das massas, é negar a ciência do proletariado. Foi esquecendo esses princípios do marxismo-leninismo que se tentou transpor para nosso país a experiência vitoriosa do povo cubano, em geral reduzida, de maneira caricata, aos aspectos da luta armada sustentada por um pequeno grupo de guerrilheiros, sem tomar em consideração numerosos outros fatores – econômicos, políticos, sociais e culturais – específicos de cuba e que contribuíram para a vitória da revolução na ilha 24 25 Idem. Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 181 da Liberdade. E, justamente com isto, levantava-se em nosso país a bandeira da luta armada, da criação de “focos” guerrilheiros isolados das massas, sem cuidar do estudo ou do exame da situação concreta brasileira, dos diversos fatores que conforma essa situação.26 Prestes, assim como a maioria da direção do PCB, considerava a iniciativa da luta armada um caminho pouco adequado para a deflagração de uma revolução no Brasil. Para ele, essa ideia configurava-se numa posição sectária de um pequeno grupo ultraesquerdista que atrapalhava o processo, na medida em que justificava ataques cada vez mais violentos por parte dos militares contra os oposicionistas. Em sua visão, tal ação servia apenas para intensificar o aniquilamento físico de vários “revolucionários, jovens patriotas, abnegados e valentes”.27 De certa forma, Prestes, com essas críticas, explicitava sua divergência não só com a luta armada, mas também com processos revolucionários comandados por militares “pequeno-burgueses” ou mesmo pela burguesia nacional. “A experiência dos últimos quarenta anos já nos ensinou que não é sob a direção dos militares pequeno-burgueses nem da burguesia nacional que poderá avançar o processo revolucionário em nosso país” (Aspectos da Luta Contra o Subjetivismo no 49.º aniversário do PCB, p. 111).28 Prestes aponta os problemas de nosso passado colonial, a exemplo do sistema imperial adotado aqui, como um dos motivos do nosso atraso cultural. Citando Berlinck, ele afirma: “a origem das nossas deficiências (analfabetismo, baixa produtividade, opressão política) e que se podem resumir na formula: falta de valorização do homem brasileiro, provém da nossa formação colonial”.29 Segundo Prestes, nossas escolas ainda ensinam uma história comprometida com os interesses dos setores conservadores. A luta heroica dos oprimidos geralmente não é objeto de estudo nem da historiografia oficial, nem mesmo dos programas escolares que, quase sempre, buscam tratar os processos de mudança de forma linear e pacífica. Sobre o sentido dado pela escola à história de nosso país, pronunciava ele: A título de história, propagam-se as mais cínicas mentiras e bastou que no ISEB fosse feita uma primeira e tímida tentativa no sentido de ser 26 Idem, ibidem, p. 110. Idem. 28 Idem, ibidem, p.111. 29 Idem, ibidem, p. 114. 27 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 182 reescrita a história do país com base em pesquisa menos comprometida com os interesses dos setores mais retrógados das classes dominantes para que seus autores fossem processados juridicamente sob acusação de atentarem contra a segurança nacional.30 Finalizando seu documento contra o subjetivismo no interior do partido comunista, Prestes nos esclarece qual era, para ele, o papel da educação no interior da sociedade brasileira e do partido. Para ele, além de uma convicção revolucionária, era preciso intensificar a educação teórica dos militantes por meio do estudo sistemático do marxismoleninismo. O autor assim finaliza sua reflexão: Será esta a oportunidade de concentrarmos esforços no sentido do estudo científico da realidade brasileira, que não pode deixar de incluir o estudo das condições em que se desenvolve o capitalismo em nosso país, a história de nosso povo, a do movimento operário brasileiro e a indústria de nosso próprio partido.31 Em um documento publicado no jornal Voz Operária, em 1971, que tratava das tarefas do Comitê Central, encontramos, além da preocupação com a educação militante e com a educação em geral como forma de permitir uma compreensão da realidade brasileira, a defesa feita pelo partido de um movimento estudantil livre, de escolas e universidades gratuitas a partir de um aumento das vagas e da proibição de cobrança de mensalidades nessas instituições. No item 5 do referido documento, encontramos os seguintes dizeres: 5- Devemos dar maior contribuição à reativação do movimento estudantil, à base da luta pela ampliação das vagas escolares, contra o aumento das anuidades escolares, contra a instituição do ensino pago nas universidades oficiais, contra o Decreto 477 e o terror estabelecido nas escolas, pelo direito de os estudantes se organizarem livremente, pela solidariedade aos estudantes e professores presos e perseguidos e pela Reforma Universitária.32 Como já apontamos no início desse capítulo, é difícil tratar de uma concepção educacional do PCB, uma vez que, como apontou Favoreto, foi a 30 Idem, ibidem, p 115. Idem, ibidem, p. 120. 32 O Trabalho de Direção do Comitê Central, Voz Operária, n. 77, julho de 1971, p. 124. 31 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 183 concepção de revolução que guiou o PCB em suas ações educacionais e na luta pela escola pública. Ainda de acordo com ela, a teoria da revolução brasileira foi um programa de transformação das estruturas da sociedade, em meio à qual, com base em sua concepção de história e partido, foi construído seu entendimento da relação entre a questão educacional e o processo histórico (FAVORETO, 2010, p. 129). No capítulo dedicado à educação militante, o autor busca destacar como a concepção de revolução interna ao PCB traça a relação entre a teoria social, a educação e ação individual. Uma das formas de pensar a educação no interior do PCB era a de propagar as ideias comunistas por meio de reuniões com militantes, que ao mesmo tempo em que educavam, conscientizavam os trabalhadores e demais segmentos sociais, conforme observamos no Abecedário dos trabalhadores: E’s pobres? E’s um trabalhador? Pois reúne num domingo, em tua casa, três ou quatro companheiros de trabalho; lê e relê estas linhas; discute com eles o que te digo. Faze com que cada um deles proceda da mesma forma. Espalha o mais possível este Abecedário, que é teu, que é o abecedário dos trabalhadores; publica o maior número possível de jornais; manda imprimir milhares de exemplares e os espalha entre os trabalhadores das fábricas, usinas, engenhos, fazendas, oficinas. Mete essas idéias na cabeça dos milhões de trabalhadores de terra e mar; trava discussões em torno delas, em toda a parte – nas cidades industriais, nos grandes navios que fazem a viagem para a Europa, nas jangadas dos praieiros do Norte, no meio dos seringais, na catinga cheia de vaqueiros, nos altos sertões, na rica zona da mata, nos pinheirais e coxilhas do Sul, nos garimpos de Minas Gerais, nas minas de ouro e carvão de pedra. É de teu interesse, é para teu benefício (FAVORETO, 2010, p. 138). O que fica claro nessa passagem é que, para o PCB, a educação tinha como principal função despertar a consciência dos trabalhadores para as contradições que a sociedade brasileira apresentava, permitindo assim a proposição de uma nova ordem, mais condizente com as necessidades da classe trabalhadora. Para Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, o analfabetismo e a pouca escolaridade eram dos principais problemas para a organização de uma revolução no Brasil. Segundo Favoreto (2010), Astrojildo propunha duas formas de melhorar a educação no país: pela escola e pela propaganda: educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 184 A ignorância alfabética é um grande mal, pois que dificulta imensamente a difusão das idéias pelos meios mais fáceis – os impressos de toda a ordem. Devemos então criar escolas por aí fora? Sim, que se abram escolas possíveis, para crianças e adultos. Mas este será apenas um meio secundário, subsidiário de combate à ignorância, do ponto de vista da organização. Deveríamos antes, a meu ver, formar escolas de bons oradores propagandistas, que saibam falar com clareza, precisão e propriedade aos trabalhadores incultos (FAVORETO, 2010, p. 144). (grifos da autora) De acordo com Favoreto, para Astrojildo Pereira a questão do analfabetismo tornava urgente a abertura de novas escolas, mas também era preciso formar bons oradores para educar os militantes incultos que necessitavam de um despertar da consciência revolucionária; nesse sentido, a proposta educacional de Pereira caminharia muito mais pela via da propaganda comunista do que pela educação formal. Como apontou Favoreto (2010), Astrojildo Pereira se mostrava ansioso por divulgar as ideias comunistas ao povo, que as ignorava; acreditava que a formação política através do partido seria urgente. Sem se deter no debate sobre a alfabetização, assumia uma perspectiva revolucionária conduzida pela esfera partidária e centrada na divulgação das ideias comunistas. Assim, em uma perspectiva prática, a revolução resultaria do conhecimento que a massa teria da Revolução Russa, motivo pelo qual a propaganda das ideias comunistas era urgente. Ou seja, a consciência de classe se faria pela propaganda política (FAVORETO, 2010, p. 146). Assim, uma das principais tarefas do partido comunista e de seus militantes era divulgar as ideias comunistas junto ao povo brasileiro, uma vez que a revolução só seria possível a partir dos ensinamentos da Revolução Soviética. Dessa forma, ao analisar as concepções de educação expressas nos documentos do PCB, percebemos que existia uma convergência entre elas e a visão de Enio Cabral, que buscava, por meio da educação, debater os assuntos da conjuntura nacional e internacional com seus alunos, motivando-os a observar as contradições da sociedade e despertar sua consciência crítica. Sua ação visava uma educação transformadora que se iniciaria na escola e extrapolaria esse espaço, permitindo assim, quem sabe, uma sociedade mais justa e igualitária. Contudo, o golpe de Estado de 1964 impediria que seu projeto e do PCB se realizasse num curto prazo. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 185 O ESPECTRO DA REVOLUÇÃO RONDA O BRASIL Segundo Del Roio, desde os anos 1920 havia no Brasil, em virtude da penetração das ideias marxistas ainda incipientes, a formação de uma cultura política que permitiu a difusão do tema da revolução. Del Roio explica que no Brasil a palavra revolução, no âmbito do senso comum, estava ligada a crises políticas institucionais, principalmente militares, mas nunca colocou em xeque a derrocada das classes dominantes e, consequentemente, das estruturas econômico-sociais vigentes. Baseando-se em Gramsci, o autor atenta para uma revolução passiva no Brasil, quando as forças antagônicas à ordem vigente são incapazes de instaurar um novo poder, mas conseguem concessões das velhas classes dominantes que visam à recomposição do bloco histórico. Del Roio esclarece que o espectro da revolução brasileira rondou diferentes classes sociais, como se observa no trecho transcrito a seguir: Numa tumultuada reunião do Clube Militar, realizada em fins de junho de 1922, o tenente Asdrúbal Gwaier de Azevedo previa: “Sr. Presidente, estamos às portas da Revolução.” Nesse mesmo mês, expressando-se em nome do recém-fundado Partido Comunista, Astrojildo Pereira afiançava: “[...] tomamos sobre os ombros o compromisso de uma imensa tarefa: desfraldar e sustentar, nesta parte da América, a bandeira vermelha da revolução mundial” (DEL ROIO, 2000, p. 71). O autor destaca que é obvio que os dois não falavam da mesma revolução, mas tais pronunciamentos demonstravam que o tema se fazia presente nos debates políticos do Brasil como sintoma da insatisfação com a dominação oligárquica, que via brotar em suas fissuras diferentes concepções revolucionárias, tanto no seio do operariado como das próprias forças armadas. Como exemplo de levantes pontuais que em nada abalavam a estrutura econômica vigente, o autor cita o evento de 1924, iniciado pelos militares de São Paulo, que se alastrou pelos estados de Mato Grosso, Amazonas e Rio Grande do Sul, tendo sido o precursor da Coluna Prestes (CORRÊA, 1976). O texto de Del Roio deixa claro que a tese que circulava entre os homens de esquerda no Brasil era a de uma revolução etapista que necessitaria de uma “aliança pequeno-burguesa”. O autor esclarece que a grande dificuldade de pensar o processo brasileiro se devia à exígua literatura disponível naquele momento, que aqui chegava educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 186 através de correspondências da Internacional Comunista (IC). Destaca ainda que o primeiro esforço teórico para se pensar a revolução brasileira foi feito por Octávio Brandão em 1928, em um texto discutido na reunião do PCB, publicado posteriormente sob o título O proletariado perante a revolução democrático-burguesa. Nele, Octávio identifica a juventude militar rebelada contra a oligarquia como “pequena burguesia”, o que na opinião de Del Roio constituía um erro conceitual, como adverte: “Octávio Brandão não conseguiu alcançar o conceito de revolução burguesa como conteúdo econômico-social do processo que estava para se abrir na formação brasileira” (Del Roio, 2000, p. 74). Octávio, estabelecendo comparações com a Revolução Russa e se baseando em suas leituras de algumas formulações de Marx, Lenin e Bukharin, busca convencer um partido – o PCB – ainda reticente, sobre a necessidade de fazer alianças com outros setores sociais para a configuração da revolução. Del Roio chama a atenção para o fato de que, com o compromisso feito perante a Internacional Comunista de eleger o imperialismo como inimigo principal de todos os povos, o PCB preservou o cerne de sua formulação teóricopolítica principal, qual seja: a da aliança estratégica com os “revoltosos pequenoburgueses”. As ideias de Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, que apontavam para a formação da mais ampla frente democrática contra o “czarismo brasileiro”, foram suprimidas em função da interferência pós-stalinista na IC no III congresso do PCB, de 1929, que focava, nas palavras de Del Roio, “em objetivos inexequíveis: a) solução do problema agrário, confisco da terra; b) supressão dos vestígios semifeudais; e c) liberação do jugo do capital estrangeiro” (2000, p. 77). Para o autor, o grande problema da revolução brasileira foi a divergência entre membros da própria esquerda, como assinala: No espectro político, é claro, os comunistas colocavam-se na extrema esquerda, identificando o movimento civil e militar de outubro de 1930 como “contra-revolução” e encaram como inimigo principal as tendências de esquerda, particularmente o “prestismo” e o “trotskismo”. A compreensão dessa postura política exige a abordagem da subjacente concepção da teoria da revolução. Embora o PCB tivesse excluído de suas fileiras praticamente todos os elementos com alguma capacidade de elaboração teórica e com alguma percepção do que vinha a ser o marxismo, havia entre os militantes comunistas uma visão de revolução introjetada a partir da concepção gestada na IC (DEL ROIO, 2000, pp. 7980). educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 187 Ainda sobre a ideia de uma revolução brasileira, Del Roio discorre sobre o longo processo de sua constituição como paradigma da esquerda brasileira e estabelece dois momentos para se pensar a questão. São eles: 1937, quando “os comunistas, ao reduzirem a noção de revolução burguesa à mera industrialização, passaram a entender a burguesia nacional como força motriz essencial da revolução brasileira, deixando à sombra a questão agrária”, (DEL ROIO, 2000, p. 81) e a segunda metade dos anos 1950, quando o tema da revolução ganha novo fôlego com as denúncias sobre os crimes de Stalin e a insurreição de Budapeste, que estimularam a revisão das ideias internas do PCB33. A revelação ocorreu no XX Congresso do PCUS, realizado em fevereiro de 1956, no qual Kruschev fez a leitura do famoso “relatório secreto” dos crimes de Stalin que levaram a uma reordenação das diretrizes internas dos partidos comunistas em todo o mundo. Sobre as mudanças internas no PCB brasileiro, Santos destaca: Os acontecimentos de 24 de agosto vão pôr em discussão e os debates sobre o XX Congresso vão acelerar o questionamento mais definitivo da caracterização da sociedade brasileira que o PCB colocava no seu esquema de revolução nacional-libertadora, de inspiração staliniana, sobreposto ao modelo leninista (SANTOS, 2003, p. 226). Entre os intelectuais importantes para pensar o novo influxo da revolução brasileira, destacam-se Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., cujas ideias passamos a apresentar, rapidamente, a seguir. A tese pecebista de combate ao imperialismo aparece na concepção de Werneck Sodré no capítulo dedicado à reflexão sobre a revolução, publicado na obra Formação econômica do Brasil (1964). O autor aponta que o país apresenta plenas condições para o desenvolvimento, com abundância de terras, de mão de obra, de recursos naturais e que, para isso, não há necessidade de empregar o capital estrangeiro. Werneck Sodré sentencia que não há saída para o desenvolvimento no Brasil com a política de compromissos com o imperialismo americano, que constitui a base das propostas existentes até o presente momento. Destaca o autor: “Uma autêntica política de desenvolvimento não pode servir ao 33 Sobre o assunto, consultar: DEL ROIO, 2000; MORAES & DEL ROIO, 2000. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 188 imperialismo e ao latifúndio, como ficou claro com a experiência realizada” (SODRÉ, 1970, p. 384-385). Werneck Sodré afirma que a ascensão de Getúlio Vargas ao poder representou uma profunda alteração no cenário político brasileiro. Consagrado pelo apoio popular, Vargas encontrou apoio de amplos setores econômicos e políticos, com a particularidade de que encerrava uma contradição. Enaltecendo a visão nacionalista de Vargas, Sodré indica o discurso feito em janeiro de 1954 como um verdadeiro libelo contra a espoliação imperialista. Nele, o governante apontava “o modo como se sangravam as energias de trabalho do povo brasileiro” (SODRÉ, 1970). Mas o bom começo seria anulado pela destruição ou pelo afastamento das forças cujo apoio lhe era necessário para um programa renovador. Tal antinomia conduziria Vargas ao isolamento e à destruição. Werneck chamou atenção para esse problema de estratégia: O erro de Vargas, realmente, foi o de não ter contribuído para criar um dispositivo interno de forças apto a apoiar a política que defendia em palavras. Sem base política, não há política. A destruição dos elementos nacionalistas estava em contradição com a denúncia levantada em janeiro de 1954. E esta denúncia feita sem base política, só poderia levar ao isolamento de Vargas e à sua derrota. Preludiava o suicídio (SODRÉ, 1970, p. 387). Após discorrer sobre o processo econômico brasileiro e as tentativas fracassadas e ou contraditórias de Vargas de se livrar, num primeiro momento, da exploração realizada pelo capital internacional, Sodré continua a apontar o imperialismo como o principal problema também para o governo de Jânio Quadros: Pelas suas origens, pela composição de fôrças que o levaram a condidatarse e mantiveram a sua candidatura, o governo de Jânio Quadros é um prisioneiro do latifúndio e do imperialismo; pelo sentido da escolha popular, recebe as esperanças e as pressões das fôrças democráticas e nacionalistas. A forma como resolverá as suas contradições faz parte do processo da Revolução Brasileira que, em alguns casos, é um processo de tributação rápida de valores reais, tornados obsoletos, e de mitos de curta duração (SODRÉ, 1970, p. 392). 189 educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 Para Werneck Sodré, em países como o Brasil a fraqueza do movimento democrático se explicaria pela desorganização da classe operária, principalmente na sua articulação com outros setores sociais, o que certamente constitui um entrave para o desenvolvimento da revolução brasileira. Ele finaliza sua reflexão sobre o tema afirmando: A composição das forças no quadro mundial como a composição das forças no quadro interno mostram que as perspectivas da Revolução Brasileira são as mais amplas. A rapidez com que se processará ou os retardos que possa sofrer dependem, entretanto, da ação dos homens, da ação política, da ação organizada, da análise e do entendimento como da prática. Para que tal ação possa desenvolver-se, a manutenção e a ampliação do regime democrático aparece como imperiosa necessidade. A emancipação do Brasil não é uma tarefa conspirativa, mas a empresa de todo o povo (SODRÉ, 1970, p. 403). Florestan Fernandes também tratou do tema da revolução brasileira num artigo intitulado A revolução brasileira e os intelectuais, originalmente proferido como discurso para a formatura dos estudantes de Filosofia da turma de 1964 da Universidade de São Paulo (USP) e posteriormente publicado na obra Sociedade de classes e subdesenvolvimento (2009). No texto, ele aponta um problema de deformação de interpretações quanto à datação da chamada revolução brasileira, que ignora não só as origens, mas também sua continuidade como processo e seu fluir para diante. Afirmava ele: “prevalecia a opinião de que a ‘Revolução Brasileira’ poderia ser apropriadamente descrita como a ‘revolução de 1930’”. De acordo com essa interpretação, a insurreição provocada pela Aliança Liberal figura como imprescindível, pois testemunha a primeira grande transformação que se operou no seio das forças histórico-sociais que haviam gerado aquela “revolução” (FERNANDES, 2009, p. 162). Segundo o autor, tal ideia queria atestar que 1930 seria o ponto de maturidade do pacto revolucionário brasileiro, da qual ele discorda totalmente. Fernandes considera tal perspectiva de explicação da revolução brasileira como uma forma de se falsificar a interpretação objetiva dos processos histórico-sociais, motivada por certa dificuldade de se fazer a história do presente, que pode confundir-se com o próprio presente. Assim, a revolução brasileira seria justificada a partir de relatos produzidos pelos agentes desse drama histórico, que teria sua culminância em 1930, ou foi fortemente influenciada por seus impactos. Ainda de acordo com o autor, a disposição de se “criar história” confundiu-se com a disposição de se “explicar a história”, dissociando-se educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 190 assim o presente do passado. Para Fernandes, “passou-se, assim, quase insensivelmente, a interpretar-se a realidade histórica como se fosse um fluir de acontecimentos que lançariam suas raízes no tempo imediato das ações humanas consideradas” (FERNANDES, 2009, p. 162). Sobre o ponto de partida para se pensar a origem da revolução brasileira, afirma ele: Em nosso assunto, o marco para localizar historicamente tais antecedentes parece ser o último quartel do século XIX, onde se evidenciam os efeitos estruturais da cessação do tráfico negreiro e o repúdio moral à ordem escravista, os dois grandes fermentos iniciais da revolução burguesa. [...] No fundo, o que não era pensado como processo histórico, na ligação do atual com o anterior, também deixava de ser pensado como processo histórico numa direção puramente prospectiva, na ligação do atual com o ulterior. Isso impediu que se visse a “revolução brasileira” como algo contínuo e in flux, provocando uma atomização da consciência da realidade sem paralelos e uma ingênua mistificação da natureza do processo global, raramente entendido como autêntica revolução brasileira (FERNANDES, 2009, p. 162). Fernandes também discorda da interpretação de que a revolução de 1930 representou uma crise da oligarquia e que a partir desse período histórico houve um colapso do poder desse bloco histórico: O que muitos autores chamam, com extrema impropriedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um ‘colapso’, mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa (FERNANDES, 1975, p. 203). O autor aponta que na verdade houve uma aliança orgânica e fiel entre a classe agrária e os representantes da burguesia, e que a maior expressão desse processo foi, apesar das divergências, a institucionalização do mandonismo oligárquico como uma segunda natureza da burguesia no Brasil. Através de discórdias circunscritas, principalmente vinculadas a estreitos interesses materiais, ditados pela necessidade de expandir os negócios. Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si mesmo, modificar a história. Além disso, o mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia (FERNANDES, 1975, p. 205). educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 191 Do nosso ponto de vista, a visão de Florestan Fernandes sobre a revolução brasileira é extremamente lúcida ao apontar os acordos pontuais feitos entre a burguesia e a oligarquia para impedir uma verdadeira revolução popular, e ainda por pensar a revolução como um processo contínuo e em curso, retomando a noção utópica a que me reportei anteriormente. No texto publicado em 1966, chamado A revolução brasileira, Caio Prado Júnior inicia por clarear o sentido do termo revolução, alvo de muitas confusões, cujo sentido geralmente utilizado quer dizer emprego de força e violência para tomada do poder, o que deveria ser entendido como insurreição. Segundo ele, o termo poderia ter também o sentido de transformação do regime social vigente, o que via de regra é feito por meio de uma insurreição, mas nem sempre isso ocorre. “O significado próprio se concentra na transformação e não no processo imediato através de que se realiza”. (PRADO JR, 2000, p. 25). O autor exemplifica seus argumentos por meio da Revolução Francesa, que foi instituída através de várias insurreições, embora não seja isso o que a caracterize, e sim seu sentido de mudança de regime. Como destaca ele: “Revolução” em seu sentido real e profundo, significa o processo histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas, que, concentradas em período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade, e em especial das relações econômicas e do equilíbrio reciproco das diferentes classes e categorias sociais.[...] São esses momentos históricos de brusca transição econômica, social e política para outra, e as transformações que então se verificam, que constituem o que propriamente se há de entender por “revolução” (PRADO JR, 2000, p. 26). Na sequência do texto, o autor informa que é esse precisamente o sentido que empregará em seu texto para pensar a revolução no Brasil. Como chamei a atenção anteriormente, A revolução brasileira, escrita no pós-1964, objetivava mostrar a leitura de conjuntura que Prado Jr. tinha daquele momento histórico. O Brasil se encontrava em fase propícia para grandes transformações profundas que buscassem atender às demandas da grande massa da população, que não tinha suas aspirações realizadas, enquanto pequena parcela da sociedade que, por deter as alavancas do poder e da dominação econômica, social e política, considerava que tudo ia bem, precisando apenas de ajustes. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 192 Para Caio Prado, no entanto, o país se encontrava em um momento decisivo para empreender mudanças, pois os desajustamentos de suas instituições básicas eram visíveis. Travava-se de uma sociedade dilacerada por tensões sociais, descontentamentos, insatisfações generalizadas que geravam ceticismo e descrença na busca de soluções dentro da ordem vigente. Tudo isso, para ele, torna o Brasil propício para a busca de uma mudança radical. Antes de continuarmos o debate sobre as ideias de Prado Jr., é importante pensar quem é esse intelectual marxista que em plena ditadura escreve uma história “a contrapelo”, no sentido benjaminiano. Na tese VII sobre o conceito de História, Walter Benjamin nos esclarece sobre a perspectiva marxista de pensar a história como embate dialético entre “vencedores” e “vencidos”, a qual editamos e transcrevemos a seguir: Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em reviver uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. É impossível caracterizar melhor método com o qual rompeu o materialismo histórico. (...) A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece propriamente uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até agora venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. (...) O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco o processo de transmissão em que foi passado adiante. Por isso, o materialista histórico se desvia desse processo, na medida do possível, ele considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 2012, p. 244) José Carlos aponta para a singularidade da trajetória pessoal e acadêmica de Prado Júnior: educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 193 A sua formação superior foi em Direito e Geografia. A trajetória que a sua vida tomou dominará a sua obra. Ele é de origem aristocrática; saiu de uma família cafeicultora paulista, para se tornar o intelectual orgânico do movimento operário brasileiro! Sua vida é marcada pela “ruptura de classe”. Ao se tornar um intelectual ligado à revolução socialista brasileira, Caio Prado não fez uma pequena travessia como se ele fosse apenas um pequeno-burguês. Ele não é filho da classe média proletarizada. Sua mudança na percepção da história do Brasil foi uma “mutação”, afirma Novais. Aristocrata, ele passou a lutar por igualdade e liberdade além dos limites do liberalismo, além do mundo burguês. Ele é um dos intelectuais de origem burguesa que forçaram os limites da “consciência possível” e produziram “obras significativas” (Goldmman) ou “orgânicas” (Gramsci), ao serem um contraponto ao intelectual tradicional. Caio Prado saiu da alta tradição, do passado colonial, para a revolução socialista, para o futuro: eis a dimensão do seu salto, que até sugere a impressão de um “suicídio simbólico”, tamanha a altura ou distância da mudança de posição (REIS, 1999, p. 2). As informações trazidas por Reis se tornam ainda mais relevantes quando pensamos sobre o momento em que Caio Prado Júnior escreve – 1966 –, quando a maioria da sociedade brasileira ainda tentava se recuperar do golpe e buscava alternativas para enfrentar as agruras impostas pelos militares. Muitos intelectuais preferiram a capitulação, ou foram exilados, enquanto Caio Prado e Florestan Fernandes usaram de suas armas teóricas para enfrentar tal estado de coisas. José Luis Sanfelice publica uma instigante análise sobre a relação entre os intelectuais e as estruturas de poder pós-ditadura, intitulada “O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais”, na qual demonstra que o processo de cooptação de estudiosos brasileiros para as fileiras do regime ditatorial foi intenso, mas esclarece também que nem todos sucumbiram perante as conveniências do momento. Sanfelice apresenta as ações de intelectuais que se tornaram ventríloquos dos ditadores, como Flávio Suplicy de Lacerda (ministro da educação no período) e Raimundo Moniz de Aragão, principal responsável por transmitir o pensamento governamental à sociedade no fórum universitário realizado em 1964, mas dá um destaque especial à atuação de Florestan Fernandes e da UNE como protagonistas da luta contra o golpe e da reforma empreendida a partir dele, compondo um claro panorama das contradições inerentes a esse período de nossa história. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 194 Os intelectuais, professores, estudantes, ministros, reitores dividiram-se. Os agentes envolvidos, classes sociais, instituições e outros buscaram cooptá-los. De há muito, parte deles já se encontrava nas lides do reacionarismo conservador pré-64. Outros fizeram parte do projeto reformista e houve aqueles que urdiram a pílula da reforma universitária consentida. Contra os últimos, Florestan Fernandes voltou suas indagações, que não se tornaram anacrônicas para os dias de hoje, quando a educação e a universidade vão sendo reformadas pelas Agências, sob o manto do neoliberalismo mercantil e privatista, com a participação de dezenas de intelectuais que atuam em prol da sua hegemonia e em busca de um consenso bestializante (SANFELICE, 2008, p. 375). Retomando a questão da relação entre intelectuais e sociedade apontadas por Reis e Sanfelice, a posição de classe de um determinado intelectual não determina a priori seu posicionamento político, que é construído no embate com a realidade que o cerca, responsável por despertar sua consciência para as contradições nela presentes e impulsionálo para a busca da transformação, como ocorreu com Caio Prado e Florestan Fernandes. Ao que parece, foi exatamente isso que moveu o primeiro a publicar, num ato corajoso de enfrentamento com a ditadura e com incoerências internas da esquerda, a obra A revolução brasileira, com o objetivo de reavivar as possibilidades de resistência e pensar um país diferente nos “anos de chumbo” no Brasil. Sobre essa conjuntura, informa Reis: Nos anos 60, na Revista Brasiliense, fechada pelo Golpe Militar, Caio Prado publicou uma síntese da sua visão do passado brasileiro e refletiu sobre a ação que deveria ser realizada para a sua transformação na obra A Revolução Brasileira. É a esta obra que daremos atenção especial aqui, pelo esforço de síntese que ela representou e pelo caloroso debate que ela manteve com o PCB e com o marxismo brasileiro dos anos 1922/50, sobre a análise mais adequada à realidade brasileira e à sua mudança revolucionária (REIS, 1999, p. 2). Reis apresenta uma percepção sagaz da intencionalidade da referida obra, afirmando que seu principal propósito era tornar clara sua análise da realidade brasileira pelo viés da dialética na história. O próprio autor anuncia tal intento ao longo da obra, quando, valendose da obra de Marx, chama a atenção para o fato de que a solução dos problemas de uma dada conjuntura se dá no próprio processo que a gerou. A teoria da revolução brasileira, para ser algo de efetivamente prático na condução dos fatos, será simplesmente – mas não simplisticamente – a educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 195 interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta. Processo esse que, na sua projeção futura, dará cabal resposta às questões pendentes. É nisso que consiste fundamentalmente o método dialético. Método de interpretação e não receituário de fatos, dogmas, enquadramento da revolução histórica em esquemas abstratos preestabelecidos (PRADO Jr., 2000 p. 39). É a partir dessa visão dialética que Caio Prado continua acreditando na possibilidade de uma revolução brasileira que possa permitir a socialização dos meios de produção, a supressão da divisão da sociedade em classes antagônicas e o fim da exploração nas relações de trabalho. Mas o autor também aponta quais motivos em seu entender levaram à não realização desse processo no Brasil, surpreendido com o golpe reacionário de 1964. Para ele, o principal problema de João Goulart, de uma minoria oportunista e da própria esquerda comunista foi não conseguir explorar as contradições existentes no país a tal ponto de serem acompanhados em seus propósitos revolucionários pelo sentimento popular. Segundo Caio Prado, é certo que grandes sacrifícios foram enfrentados por diversos setores da população e que eles se agravaram no pós-golpe, mas mesmo assim não foi possível articular um processo revolucionário no país. Para muitos membros da esquerda, esses sintomas pareciam ser o momento de ascensão da revolução, no entanto eles serviram apenas como justificativa para articulação das forças que tomaram o poder no dia primeiro de abril de 1964. A desordem administrativa, a inépcia governamental e a agitação estéril, sem nenhuma penetração no sentimento social popular, estimulado por aspirações mesquinhas ou pessoais, forneceram o pretexto para que os reacionários civis e militares se arvorassem a salvar o país do caos comunista. Em sua análise, nem João Goulart é poupado: Foi isso o governo de João Goulart e seu triste fim. E nele, e para sua infausta trajetória colaboraram as desorientadas esquerdas brasileiras sem outra perspectiva que esta de se servirem, ou melhor, de se porem a serviço de ambições políticas que nada tinham nem podiam ter em comum com seus ideais e finalidades (PRADO Jr., 2000, p. 45). E o próprio PCB que, segundo sua opinião, cometeu erros táticos: Ao analisarmos nos próximos capítulos a “teoria” da revolução brasileira oficializada e consagrada, em linhas gerais, nos círculos dirigentes nossas educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 196 esquerdas, a começar, e em primeiro e principal lugar pelos comunistas, bem como a estratégia e tática dela decorrentes daquela “teoria”, teremos ocasião de verificar como as graves distrações observadas na interpretação da realidade política, econômica e social brasileira contribuíram para os erros que vinham sendo cometidos desde longa data na ação política da esquerda, e que levaram afinal ao desastre de 1º de Abril. Esses erros se agravaram consideravelmente depois da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, degenerando então nesse elementar e grosseiro oportunismo a que fizemos referência, e que caracterizou a situação deposta em Abril de 1964. Não é de admirar que as esquerdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória e capaz de as conduzir com segurança a seus objetivos, se tivessem deixado levar pelas seduções de demagogos instalados no poder. E marchassem com eles para o desastre que qualquer observador menos apaixonado e preconcebido por opiniões estranhas à realidade brasileira, poderia com facilidade ter previsto (PRADO Jr., 2000, pp. 45-46). O interessante nessa análise é que, apesar de apontar os problemas de orientação teórica que guiaram a leitura de conjuntura dos representantes da esquerda brasileira, continuou-se acreditando na possibilidade de uma revolução brasileira. Podemos incluí-lo, talvez, na gama de intelectuais marxistas que compartilham com Marcuse sua noção de utopia. O GRUPO DOS ONZE E A POSSIBILIDADE DE UMA REVOLUÇÃO ARMADA NO PAÍS. Em todo o país os militares procuram justificar o golpe de 1º de abril de 1964 a partir da ideia de uma possível revolução comunista que poderia ocorrer, inclusive por meio da luta armada. Uma das organizações que se encontravam na mira dos militares era o Grupo dos Onze, que estaria sendo organizado em todas as regiões do país. Em Aquidauana, esse boato também se fez presente. Segundo os informantes pró-regime militar, Enio Cabral seria o principal articulador do referido grupo na cidade; por esse motivo uma das preocupações dos militares, quando de sua prisão, era saber como funcionava o grupo em Aquidauana. Em seu interrogatório, os oficiais lhe perguntaram sobre sua ligação com o Grupo dos Onze e ele respondeu que não pertencia a esse grupo. No entanto no imaginário militar tal pronunciamento não era digno de confiança, pois documentos secretos davam como certa a atuação deles no centro-oeste brasileiro. Arakaki educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 197 (2009) aponta que a atuação do Grupo dos Onze era recorrente nos depoimentos colhidos por ela no período de elaboração de sua pesquisa sobre a ditadura militar em Dourados. O Grupo dos Onze era uma organização popular, inspirada nas ideias de Leonel Brizola, que deveria se auto-organizar para defender e ampliar as conquistas democráticas no país. Sobre as estratégias de sua organização, afirma Ferreira: As esquerdas produziam e manejavam imagens e representações, mas também propunham formas de organização. Em sua estratégia de luta extraparlamentar, Brizola, em fins de novembro de 1963, pregava a formação de “grupos de onze companheiros” ou “comandos nacionalistas”. A proposta era a de que o povo se organizasse em grupos de 11 pessoas, como em um time de futebol. Ao formarem um “comando”, os militantes assinavam uma ata em que tinham por objetivo a “defesa das conquistas democráticas de nosso povo, realização imediata das reformas de base (principalmente a agrária) e a libertação de nossa pátria da espoliação internacional, conforme a denúncia que está na cartatestamento de Getúlio Vargas” (FERREIRA, 2004, p. 199). Ferreira descreve a organização do G.11 como uma das importantes estratégias da esquerda para combater os grupos desfavoráveis aos interesses do povo. De acordo com ele, esse grupo era bastante heterógeno, englobando desde estudantes das faculdades de Direito e de Filosofia, responsáveis pelas pichações e colagem de cartazes contra o governo militar, até militantes mais qualificados e experientes, que monitoravam os militares de alta patente, observando seus trajetos e horários para facilitar um possível ataque dos sargentos aliados a Brizola. Ferreira também destaca que o PCB criticou bastante essa estratégia e que “a maior consequência dos ‘comandos’ foi a de gerar o medo-pânico entre os conservadores e a direita civil-militar” (FERREIRA, 2004, p. 199). Brizola buscava, a partir dessa organização popular radical, constituir um partido revolucionário. Embora os comandos não tivessem tido nem mesmo o tempo necessário para se consolidar, geraram uma grande preocupação entre os militares, que por meio de seu serviço de inteligência conseguiram tomar conhecimento de tal organização progressista. Os militares souberam de suas ações e tentaram a todo custo desmantelar tais comandos que poderiam atrapalhar suas ações à frente do governo do país. Mariza Tavares publicou o artigo Memória 1964 – o dossiê do braço armado de Brizola (2009), no qual retrata a preocupação dos militares com a formação de tais grupos, que poderiam significar uma possibilidade de derrubada do governo militar instituído após o golpe. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 198 (Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009) O documento publicado pela CBN demonstra que o exército tinha grande preocupação com o G.11, a ponto de solicitar ao serviço de inteligência uma investigação sobre tal inciativa arquitetada por Leonel Brizola. No documento intitulado Informação nº 79-E2/64, os militares afirmam que, a partir de buscas feitas nas remessas de correio, foi possível constatar diversas evidências que comprovavam a formação dos denominados Grupos dos Onze. Ainda de acordo com tais investigações, esses grupos eram numerosos, congregavam indivíduos das mais variadas categorias e profissões e tinham como principal objetivo implantar um governo com “tendências antidemocráticas” no Brasil. Segundo os militares, os objetivos seriam os seguintes: educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 199 (Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009) Os objetivos expressos no referido documento demonstram que Brizola e os grupos dos onze pretendiam radicalizar a luta contra os militares e demais “forças conservadoras”. Reside provavelmente aí a divergência com o PCB, que buscava uma reforma sem o uso da força, por meio de uma ampla aliança entre os camponeses, setores operários e a pequena e média burguesia para enfrentar os grandes latifundiários e o grande capital nacional e estrangeiro. Jorge Ferreira, apoiando-se no trabalho de Figueiredo (1993), chama a atenção para a criação, no início do governo de João Goulart, de uma “coalizão radical pró-reformas”, composta por (...) ligas camponesas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o bloco parlamentar autodenominado Frente Parlamentar Nacionalista, o movimento sindical, representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores – CGT, organizações de subalternos das Forças Armadas, como sargentos da Aeronáutica e do Exército e marinheiros e fuzileiros da Marinha, os estudantes por meio da União Nacional dos Estudantes – UNE e, também, uma pequena organização trotskista (FERREIRA, 2004). Ferreira afirma ainda que Leonel Brizola, principal liderança nacionalista e de esquerda, pressionava o governo Goulart a realizar as reformas, principalmente a agrária, e costumava dizer que elas ocorreriam “na lei” ou “na marra”. O pesquisador Claudinei educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 200 Rezende, em sua obra O bote do acossado: a ideia de revolução em Marighella, demonstra a divergência existente entre os grupos da esquerda brasileira que optaram ou por uma reforma radical, impulsionada pela luta armada, ou por reformas constituídas por meio da resistência democrática. Esse foi o grande debate travado na década de 1960 entre os dirigentes do PTB e PCB. Sobre tal divergência, destaca Rezende: A característica mais tragicamente problemática entre todos os grupos que deflagraram a luta armada no Brasil entre os anos 1967 e 1973 foi a ausência de uma clara definição sobre a estratégia revolucionária e, algumas vezes, também sobre a tática de luta. Excetuando o que havia sobrado do PCB no pós-golpe e os trotskistas ortodoxos, toda a esquerda revolucionária da época – sem outra saída aparente e completamente acossada pela repressão – embarcou na proposta da luta armada. Como vimos, o processo revolucionário pretendido pela esquerda pecebista do início dos anos 1960 era a revolução burguesa, isto é, completar a modernização capitalista que a burguesia não fizera, incluindo seu estatuto de cidadania burguesa. Essa revolução não implicaria, necessariamente, um processo de insurreição violenta. (...) Todavia, na revolução proposta pela esquerda armada havia uma grande ruptura com o núcleo central dirigente do PCB: o processo iniciado com a guerrilha era de uma algaravia violenta, aliás, uma insurreição na qual não se sabia ao certo se o intento levaria a uma revolução burguesa ou a algo que se poderia chamar, grosso modo, de revolução socialista (REZENDE, 2010, p. 121). No trecho acima, observamos que a proposta do PCB estava em consonância com o sentido empregado por Caio Prado sobre a ideia de revolução, que implicava não mudanças vertiginosas, mas sim um processo permanente de superação das contradições inerentes ao Brasil, que, entre outras coisas, ainda não havia deixado para trás seu caráter agrário e subdesenvolvido. Assim, Caio Prado deixava claro que no país não havíamos conseguido realizar nem mesmo nossa revolução burguesa, etapa fundamental para construção de uma revolução socialista no Brasil. Como já destaquei anteriormente no documento revelado pela CBN, a ideia de uma revolução armada estava presente. A grande inspiração de Leonel Brizola era a Guarda Vermelha da Revolução Socialista de 1917, que teve um papel preponderante no processo desencadeado naquele momento contra o czarismo russo. A revolução cubana, empreitada vitoriosa realizada por Fidel Castro e guerrilheiros contra o ditador Fulgêncio Batista, também serviu de estímulo para os partidários do Grupo dos Onze. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 201 No terceiro capítulo do documento divulgado pela jornalista Mariza Tavares, da CBN, encontramos recomendações aos militantes para que os mesmos conseguissem armamentos e se preparassem para o "Momento Supremo”: (Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009) No documento, o grupo chama a atenção ainda para a ajuda que seria prestada pelos aliados militares infiltrados no exército, que forneceriam armas de grosso calibre para a ação, principalmente nos grandes centros do país. Além dos militares, os camponeses também iriam se mobilizar para atacar fazendas, armazéns, celeiros e depósitos de cereais, numa ação coordenada pelos grupos dos onze locais. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 202 Já na cidade, a tática seria que os líderes do G.11 comandassem um grande número de homens que deveriam incitar a opinião pública com gritos e palavras de ordem para levantar a bandeira de ordem das reivindicações populares. O documento ainda acrescenta que era preciso, “para vitória desta tática, atrair o maior número de mulheres e crianças para frente da massa popular, acobertar a ação dos G.11, da reação policial-militar”. Essa passagem é particularmente interessante, pois demonstra que o machismo não era apenas um pensamento da direita, pois em outro trecho do documento havia a recomendação para que as mulheres se organizassem em grupos separados dos homens e aguardassem instruções sobre quais seriam suas funções no processo revolucionário. Certamente não imaginavam que seriam utilizadas como escudos humanos, juntamente com os seus filhos, encarnando o princípio revolucionário da Marselhesa: “Vêm eles até nós; Degolar nossos filhos, nossas mulheres; Às armas cidadãos!” (Claude Joseph Rouget De Lisle). De acordo com esse documento, o terror e o uso da violência eram males necessários para que se atingisse o processo revolucionário que levaria à construção de uma sociedade socialista e igualitária. Portanto, mesmo medidas consideradas drásticas deveriam ser tomadas, como se verifica no documento a seguir: (Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009) educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 203 De acordo com as instruções expressas, os integrantes dos G.11 deveriam desempenhar a prisão, a guarda e o julgamento sumário dos prisioneiros de guerra. Por esse motivo, era necessário selecionar companheiros que, em função de seu ódio pelos poderosos, fossem capazes de executar até mesmo as ordens mais duras que se fizessem necessárias no momento da luta. O alvo desses militantes seriam as autoridades públicas, tais como prefeitos, juízes e delegados de polícia, dentre outros que pudessem se insurgir contra a ação revolucionária. Eles deveriam ser presos e ficar sob guarda, preferencialmente no meio da mata e, no caso de derrota do movimento – o que os líderes consideravam pouco provável –, deveriam ser imediatamente fuzilados. Vale lembrar que essa informação só deveria ser repassada aos líderes locais do movimento. Tal proposta deixa claro, como já afirmei antes, o caráter divergente da proposta do Grupo dos Onze em relação à do PCB, que devido a disputas internas não era unânime sobre a tese da revolução pela força. Encontramos inclusive uma crítica direta à posição pecebista no referido documento, como se vê a seguir: (Documento do exército sobre o Grupo dos Onze. TAVARAES, 2009) O grande entrave para que o PCB liderasse o processo revolucionário no Brasil eram as disputas entre as facções internas, que fragmentavam o partido e retiravam seu foco principal. A atuação negativa de Luiz Carlos Prestes no interior do partido comunista educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 204 também aparece como um fator dificultador da ação da esquerda no país. Tais representantes são acusados de serem acomodados diante da situação nacional: “Fogem à luta como fogem à realidade e não perderão nada se a situação nacional perdurar por muitos anos ainda”. O foco da divergência do Grupo dos Onze com a linha adotada nos anos 1960 pelo PCB está relacionado à declaração sobre a política do PCB, publicada em março de 1958. Ela redefinia a análise do partido em relação à conjuntura brasileira e aos caminhos da revolução. Segundo Jorge Ferreira, entre os anos de 1954 e 1958, o PCB sofre o impacto de três experiências importantes, a saber: o impacto do suicídio de Vargas, o desenvolvimentismo do governo Kubitschek e os debates provenientes do XX Congresso do PCUS, que levaram a uma nova política expressa na referida declaração. Ferreira afirma que a declaração admitia que o capitalismo estava se desenvolvendo de forma satisfatória no país e dessa maneira poderia favorecer a democracia. No entanto, apontava para o fato de que nem todas as contradições estavam superadas; era preciso vencer o imperialismo que afetava economia nacional, o avanço das forças produtivas e as relações de produção semifeudais no campo. De acordo com o comitê do PCB, portanto, o grande inimigo a ser vencido era o imperialismo, e isso só poderia ocorrer com uma aliança entre diversos setores da sociedade brasileira: Ao inimigo principal da nação brasileira se opõem, porém, forças muito amplas. Estas forças incluem o proletariado, lutador mais consequente pelos interesses gerais da nação; os camponeses, interessados em liquidar uma estrutura retrógrada que se apoia na exploração imperialista; a pequena burguesia urbana, que não pode expandir as suas atividades em virtude dos fatores de atraso do país; a burguesia, interessada no desenvolvimento independente e progressista da economia nacional; os setores de latifundiários que possuem contradições com o imperialismo norte-americano, derivadas da disputa em torno dos preços dos produtos de exportação, da concorrência no mercado internacional ou da ação extorsiva de firmas norte-americanas e de seus agentes no mercado interno; os grupos da burguesia ligados a monopólios imperialistas rivais dos monopólios dos Estados Unidos e que são prejudicados por estes.34 Como se pode notar no trecho acima, os dirigentes do comitê central do PCB, mesmo no contexto dos anos 1960, acreditavam que em face do inimigo imperialista seria 34 Declaração Sobre a Política do PCB. Voz Operária, 22/03/1958. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 205 possível aglutinar em torno de si grupos heterógenos que lutariam por motivos diferentes, mas em prol de uma nação independente que pudesse trilhar um caminho próprio, sem a exploração do capitalismo internacional. Na declaração de 1958, o comitê detalha as etapas da construção de uma revolução burguesa democrática no Brasil. Para eles, a solução dos problemas vitais do povo brasileiro seria a conquista de um governo nacionalista e democrático: Essa conquista poderia ser efetuada através dos seguintes meios mais prováveis; 1. Pela pressão pacífica das massas populares e de todas as correntes nacionalistas, dentro e fora do Parlamento, no sentido de fortalecer e ampliar o setor nacionalista do atual governo, com o afastamento do poder de todos os entreguistas e sua substituição por elementos nacionalistas. 2. Através da vitória da frente única nacionalista e democrática nos pleitos eleitorais. 3. Pela resistência das massas populares, unidas aos setores nacionalistas do Parlamento, das forças armadas e do governo, para impor ou restabelecer a legalidade democrática, no caso de tentativas de golpe por parte dos entreguistas e reacionários, que se proponham implantar no país uma ditadura a serviço dos monopólios norte-americanos.35 As alternativas iniciais apresentadas pelo PCB no campo da resistência democrática passam então por uma pressão nacionalista sobre o governo, inclusive com o intento de se afastarem os entreguistas que estavam no poder, que seriam substituídos por nacionalistas na burocracia estatal. Para realizar tal empreitada, a via eleitoral também era considerada importante, certamente em função da memória da bancada comunista vitoriosa na Assembleia Constituinte de 1946. Finalmente, chama a atenção a aliança entre as massas populares e setores nacionalistas do parlamento, das forças armadas e do governo para conter possíveis golpes com vistas a implantar a ditadura. É importante esclarecer que, em que se pese o fato de os dirigentes pecebistas defenderem uma via democrática para modificar a conjuntura brasileira, eles não descartavam uma solução pela via do uso da força, ao contrário do que afirmava o Grupo dos Onze, seja em 1958 ou mesmo no contexto da ditadura imposta à nação brasileira em 1964. 35 Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 206 A escolha das formas e meios para transformar a sociedade brasileira não depende somente do proletariado e das demais forças patrióticas. No caso em que os inimigos do povo brasileiro venham a empregar a violência contra as forças progressistas da nação é indispensável ter em vista outra possibilidade – a de uma solução não pacífica. Os sofrimentos que recaírem sobre as massas, em tal caso, serão da inteira responsabilidade dos inimigos do povo brasileiro.36 Ao que parece, a via da força só deveria ser utilizada em último caso e como legítima defesa frente às forças conservadoras, que certamente seriam responsabilizadas pelo confronto armado, já que os dirigentes do PCB, com a ascensão de Juscelino ao poder, enxergavam a possibilidade do fortalecimento da economia e, consequentemente, da democracia, que deveria ser defendida a todo custo por uma frente ampla de setores da sociedade e partidos políticos. É preciso confessar que a tentação de um olhar anacrônico, que certamente não cabe aqui, causaria um estranhamento em observar a defesa de aliança entre certas alas do PDS, UDN, PTB, PSP e o PSB em torno do nacionalismo no Brasil. Mas é claro que temos consciência de que os tempos eram outros e de que as contradições internas acerca dos rumos a serem seguidos eram uma constante em todos os partidos. Talvez tenha sido essa conjuntura política de alianças amplas entre diversos setores em alguns momentos antagônicos, diferentes, que tenha animado uma resistência ao regime militar mesmo nas regiões mais isoladas do país, como foi o caso de Aquidauana e seu núcleo comunista, que também seguia as orientações aliancistas do PCB, capitaneadas por Enio Cabral. ENIO CABRAL E SUA UTOPIA REVOLUCIONÁRIA. Enio Cabral, embora não visse nos idos de 1964 a chance de uma revolução radical que implementasse o socialismo no país, acreditava sim na possibilidade de mudanças sociais que pudessem transformar a sociedade brasileira e criar condições mais justas e igualitárias para os trabalhadores. Leite chama a atenção para a localização fronteiriça Brasil-Paraguai de Aquidauana e intui que seria esse o motivo de a cidade ter despertado a 36 Idem. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 207 atenção dos militares, em face da preocupação com a segurança nacional e com a repressão ao comunismo. O autor compõe também o cenário que permitiu entender a singularidade da instauração da ditadura civil-militar na pequena Aquidauana, que, segundo ele, possuía uma tradição autoritária: Por meio da história de Aquidauana, o leitor poderá perceber que a utopia e a Repressão estiveram alicerçadas em um passado definido. Esse passado foi o do autoritarismo, o da violência e o do poder privado fazendo às vezes da presença estatal. Os coronéis, corpos vivos da oligarquia, foram os verdadeiros senhores da região pantaneira durante longos anos. Aquidauana não foi exceção (LEITE, 2009, p. 14). Num trabalho minucioso e com uma documentação instigante, o historiador parte da discussão de um conceito que nos parece extremante importante nos dias de hoje, em que enfrentamos a capitulação frente à possibilidade de uma sociedade mais justa – a utopia. Consideramos tal conceito na perspectiva apontada pelo filósofo Hebert Marcuse: Iniciando por uma verdade óbvia, direi que hoje qualquer forma nova de vida sobre a terra, qualquer transformação no ambiente técnico e natural, é uma possibilidade real, que tem seu lugar próprio no mundo histórico. Podemos fazer do mundo um inferno (...). Mas podemos fazer também o oposto. Este fim da utopia, ou seja, a recusa das ideias e das teorias que ainda se servem de utopias para indicar determinadas possibilidades histórico-sociais, podemos hoje concebê-lo, em termos bastante precisos; também como o fim da história; isto é, no sentido de que as novas possibilidades de uma sociedade humana e de seu ambiente não podem mais ser imaginadas como prolongamento das velhas, nem tão pouco serem pensadas no mesmo continuum histórico (MARCUSE, 1969, p.1415). A perspectiva de interpretação mais corrente a respeito do conceito de utopia quer postulá-la como algo incongruente com a solução dos problemas da realidade, uma vez que ele designa o regime social, econômico e político que, por ser perfeito e ideal, não pode ser encontrado em nenhum lugar. Para Marcuse, ao contrário, a utopia é precisamente aquilo que ainda não se realizou, e não algo irrealizável37. 37 Para Norberto Bobbio, a tentativa de definição da utopia é complicada pela multiplicidade de aproximações possíveis. Bobbio destaca ainda que: “Na acepção mais generalizada, a utopia (política, social e tecnológica) não pretende destruir a realidade atual que aceita no que ela tem de melhor; portanto, a sociedade que ela mostra é apenas sua projeção, na qual os aspectos positivos são “maximizados”. Com base nessa lógica, moveram-se tanto um literato como H. G. Wells – que chama de “cinética” a utopia moderna, estruturada não educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 208 Para sustentar sua premissa, Marcuse questiona o sentido da palavra irrealizável, demonstrando que geralmente ela indica algo não passível de realização, aquilo que atenta contra a realidade presente e a ordem vigente. No entanto, a utopia deve ser projetada como uma perspectiva futura. Assim, certas realidades que são ilusórias no presente podem se tornar concretas em momentos futuros. As revoluções eram para ele um exemplo concreto disso. A utopia serviria então para ampliar as possibilidades de futuro, reforçando a ideia de ruptura com as velhas ideias e de combate à noção de permanência, tão comum ao campo da história. Pisani afirma que o pensamento utópico em Marcuse procura estabelecer um “choque” que tem a dupla função de acusação das condições dadas de exploração e de criação de uma imagem de liberdade possível para além das condições dadas. Segundo ela a utopia desperta o pensamento crítico pela via dos critérios de uma liberdade e felicidade não realizadas, mas possíveis. Afirma ela: A utopia tem uma função crítica reguladora como práxis criativa, como expressão da inadequação histórica do sujeito em relação à realidade experimentada que se revela no mundo, mas aponta para além do dado, para outro nível de realidade; é um fazer imaginário que permite acessar o ideal frente ao confronto entre o real e possível (PISANI, 2010, p. 3). Michael Lowy, em “Marxismo e utopia”, também discute o conceito, apontando para o fato de que sem a dimensão utópica seria impossível pensar numa sociedade socialista. Afirmava ele: como um estado permanente – como um promissor estado intermediário de uma longa escala de níveis sucessivos – quanto um filósofo como Ernest Bloch, com sua contraposição de uma utopia concreta ao fantasiar o socialismo utopístico. Com muito mais coerência, Herbert Marcuse, considerando que a utopia esteja ultrapassada porque hoje qualquer transformação do ambiente técnico e natural é uma possibilidade real, propõe que o termo seja usado somente para designar um projeto de transformação social que esteja em contradição com leis cientificas “realmente determinadas e determinantes. Quem pode, porém, hipotecar o futuro da ciência e o futuro ainda mais longínquo da evolução da espécie? Em lugar de morrer, utopia abandona o adjetivo de ‘moderna’ e torna às origens. A relação com a história é incompatível com a utopia que é atemporal. A Utopia de Bloch, de Wells, de Marcuse não tem suas raízes nos modelos clássicos de regeneração, mas na antiga alma semítica dos profetas bíblicos, enquanto a outra – contestadora da realidade existente e enraizada nas próprias instâncias – nasce do ódio cristão contra a natureza corrupta, mas desenvolve-se em contraste com a resignação religiosa, visando uma palingenesia toda terrena, o que, porém, não significa que esteja limitada ao simples bem-estar material. (Marx, profeta da ‘História Prometida’ como saída para a pré-história, na qual ainda vivemos, pode validamente exemplificar esta posição” (BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política (volume 2). Trad. Carmen C. Varrialle et al.; coord. de trad. João Ferreira, rev. geral: João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 9 ed., 1997. Vol. 2. 656, p.1286) educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 209 Finalmente, o desenvolvimento criativo do marxismo e a superação de sua “crise” atual exige o reestabelecimento de sua dimensão utópica. Uma crítica irreconciliável e radical das formas atuais do capitalismo tardio e das sociedades burocráticas pós-capitalistas é necessária mas insuficiente. A credibilidade de um projeto de transformação revolucionária do mundo requer a existência de modelos de uma sociedade alternativa, visões de um futuro radicalmente diferente e a perspectiva de uma humanidade verdadeiramente livre (LOWY, 2000, pp. 126-127). Lowy chama a atenção para o fato de que se o socialismo ainda existe em nossa realidade/sociedade atual, deveria ser reinventado como um projeto futuro. Apoiando-se nas proposições de Marx, elenca quais princípios utópicos deveriam ser explorados para a busca de uma nova sociedade, a saber: 1- novo sistema produtivo e tecnológico que permitisse um desenvolvimento sem o aparelhamento do Estado, com a renovação de recursos energéticos não poluentes; 2- emancipação do trabalho, supressão da divisão sexual e separação entre as atividades manuais e intelectuais; 3- livre distribuição de bens e serviços; 4- igualdade de gênero; e 5- organização democrática e descentralizada da vida econômica, social e política, na qual haja um autocontrole por parte dos trabalhadores em substituição à burocracia estatal (LOWY, 2000, p. 128). Tomando como referência as ideias de Marcuse e Lowy, buscamos então entender o personagem central de nossa tese: um professor comunista que acreditava “utopicamente” na possibilidade de uma revolução no país nos idos dos 1960. Ao que parece, o professor Enio Cabral, militante comunista que se utilizava não só de suas aulas, mas também de lugares públicos, especialmente conversas de bares, praças e rodas de amigos, para se contrapor ao regime militar, também partilhava da visão utópica desses autores; por esse motivo foi o principal mentor de atividades políticas que aterrorizavam as elites em Aquidauana. Suzana Arakaki relata em sua tese que em Dourados a perseguição dos militares não se limitou apenas aos colonos da CAND e aos militantes do PTB, dirigiu-se também aos trabalhadores do magistério, constantemente vigiados pelo regime para evitar que críticas fossem feitas durante suas aulas. Muitos dos professores eram vigiados pelos próprios colegas, que, como mencionei anteriormente, eram cooptados em troca de cargos e benefícios. A exemplo do que ocorria em Aquidauana, o patrulhamento ideológico sobre os professores era feito sem maiores rodeios, principalmente por parte de alunos e pais de educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 210 alunos que reportavam aos diretores qualquer conduta inadequada de seus professores. Um jornal da época, citado pela pesquisadora, nos dá a dimensão de tal situação: COMISSÃO DE INVESTIGAÇÃO ESCOLAR No dia 28/7/64 realizou-se na vizinha cidade de Ponta Porã, inquérito por uma comissão especial com elementos de Belo Horizonte, Bauru e Campinas, onde prestaram depoimentos todos os diretores de escolas de ensino médio da região sul de Mato Grosso, inclusive os diretores das escolas de Dourados, no sentido de que venham a ser afastados do magistério todos os professores portadores de idéias marxistas e subversivas. Esta comissão foi de iniciativa e oficializada pelo Ministério de Educação e Cultura. Assim esta comissão está percorrendo o Brasil inteiro no sentido de prestar o seu trabalho a uma democracia sadia, pois milhões de alunos têm passado sob as orientações de professores comunistas, que conseguem incutir na memória de seus pupilos as mais desastrosas idéias (O Progresso, ARAKAKI, 2003, p. 92). Observe-se que o foco da comissão era a divulgação das ideias marxistas, que eram largamente combatidas nesse período – vale lembrar que no caso de Enio Cabral, boa parte de suas obras foi confiscada pelo exército brasileiro, e algumas delas nunca mais foram devolvidas. Naquele tempo não só em Dourados, como em outras regiões, professores eram afastados, interrogados e, muitas vezes, presos e torturados. A organização de uma resistência entre os professores era bastante difícil, pois como destacou Arakaki (2003), além da repressão, que era constante, a profissionalização dos professores era também precária, já que uma grande maioria deles, pelo menos no sul do Mato Grosso, não possuía formação acadêmica e vivia alheia aos direitos da profissão. Os contratos e nomeações quase sempre se davam por apadrinhamento de autoridades locais civis e militares. Arakaki aponta que tal situação só iria se transformar com a chegada de professores oriundos dos grandes centros do país. No caso do magistério, a situação viria a mudar anos mais tarde, com a vinda de professores de outros estados, quando o governo de Mato Grosso substituiu os professores leigos da rede estadual de ensino. Assim, houve inserção de novas pessoas e novas idéias. Nesse processo, teve importância a criação, em 1971, do Centro Pedagógico de Dourados – CPD, unidade da Universidade Estadual de Mato Grosso, instalado na cidade de Dourados exatamente para formar professores destinados a atuarem nas redes municipais e estadual de ensino. Alguns professores educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 211 vindos de outros estados, que já estavam trabalhando na rede estadual, passaram também a ministrar aulas no Centro (ARAKAKI, 2003, p. 94). O Centro Pedagógico de Dourados também foi alvo de patrulhamento ideológico. Dirigido por um advogado apoiador do regime militar, o referido centro passou a ser um reduto de apadrinhamento de professores, e os que fizessem críticas à direção ou algum aspecto do regime eram sumariamente demitidos. Segundo Arakaki (2003), na década de 1970 diversos professores foram demitidos da instituição. Dentre eles destacam-se Ivan Aparecido Manoel, que hoje leciona na UNESP, e José Luiz Sanfelice, atualmente na UNICAMP. A demissão dos professores gerou insatisfação entre os colegas e alunos, que buscaram todas as medidas legais para readmissão dos mesmos – isso acabou forçando o pedido de demissão do diretor da CPD. Os professores Antonio Luiz Lachi e Wilson Valentin Biasotto foram readmitidos posteriormente, mas tiveram que abrir mão das indenizações a que teriam direito pelo período que ficaram afastados. A perseguição aos professores no interior das universidades brasileiras foi relatada no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no qual encontramos várias referências a afastamentos, demissões e ainda a interferência em projetos e linhas de pesquisa em diferentes universidades do país. Os relatores no texto temático sobre a ditadura nas universidades federais informam que: Além das cassações (reitores e professores), outro instrumento amplamente utilizado pelos militares foram os Inquéritos PolicialMilitares (IPM). Vários IMPS foram abertos ainda no mês de abril de 1964, para investigar entidades associativas, como a UNE, instituições de ensino e pesquisa como o Instituito Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), e partidos, como o PCB (Relatório da Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 269). Hoje sabemos, a partir do avanço das pesquisas no campo da história da educação, que a vigilância e a violência contra os professores não se limitaram apenas às universidades brasileiras, mas chegaram às salas de aulas do ensino fundamental e médio em várias regiões do país. Em reportagem de O Globo, publicada em 2014, encontramos informações de que o controle da educação básica no país não se deu somente pela educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 212 perseguição dos profissionais com histórico de militância; ele se voltou para um controle mais amplo, que incluía o controle dos conteúdos ministrados por todos os professores. O exemplo da introdução de disciplinas como OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e EMC (Educação Moral e Cívica), através do Decreto-Lei n. 869, de 12 de setembro de 1969, demonstra isso. Segundo um dos professores entrevistados pelo jornal O Globo, havia uma autocensura, pois muitas vezes os próprios funcionários da escola atuavam como delatores dos colegas. Foi o que aconteceu com ele em 1969. Em 1969, Antonio Rodrigues já tivera um exemplo não só da repressão contra escolas, mas dentro das próprias; “uma autocensura que era talvez pior”. Ao vê-lo debatendo sobre músicas de um LP de Geraldo Vandré com alunos do 2° grau, uma orientadora educacional do Centro Educacional de Niterói (CEN) disse à direção do colégio que o professor Antonio estaria fazendo “proselitismo político”, pois falava com os alunos de música “proibidas”. Ele foi demitido imediatamente (O Globo, 17/03/2014). O quadro apontado pela Jornalista Alessandra Duarte no jornal O Globo coincide com a situação vivenciada pelas escolas do sul do Mato Grosso, onde, por meio das fontes pesquisadas, pudemos perceber que a vigilância foi grande, não só sobre os professores, mas também no que se refere aos conteúdos38. Dalpiaz (2008) trata da perseguição de professores das áreas de ciências humanas em Campo Grande, e o resultado de seu estudo demonstra que o medo era sempre uma constante nas falas de seus entrevistados. Segundo ele, nesse contexto buscava-se driblar a censura e os censores dentro e fora de casa, nos encontros clandestinos, nas leituras proibidas, nos programas de rádio que ouviam, pois tinham a impressão de serem vigiados o tempo todo. Em Aquidauana o contexto não era muito diferente. Como mencionamos no capítulo anterior, Enio Cabral, professor de História do Brasil do Colégio Cândido 38 Sobre as reformas curriculares ocorridas no contexto da ditadura militar consultar os autores: NUNES, Silma do Carmo. Concepções de mundo no ensino de História. 2 ed. Campinas: Papirus, 2002; FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas,. Papirus, 1993; MUNAKA, Kazumi (2001). História que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In M. C. Freitas (org.), Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Contexto, pp. 271-298; BITTENCOURT, C. M. F (Org.). O saber histórico na sala de aula. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998. educação, hegemonia e contra-hegemonia em Aquidauana nos anos 1960 213 Mariano, enfrentou diversos problemas de censura, sendo acusado por colegas, alunos e pais de alunos de desviar os assuntos de sua disciplina para a promoção do comunismo. Certamente por esse motivo um dos primeiros inquéritos montados na cidade foi contra ele, que foi preso no dia 04 de abril de 1964, cinco dias após o golpe. Enio foi considerado pelos representantes do Estado na cidade como inimigo número um da segurança nacional, não só por conta de sua atuação como docente, mas principalmente por atividades à frente do PCB. Foi provavelmente por esse motivo que o referido professor se tornou o principal alvo da repressão militar logo no início do regime. É, portanto, sobre o confronto de Enio Cabral com o contexto conservador executado pela modernização conservadora na região sul do Mato Grosso, e sobre os meandros do processo movido contra ele, que trataremos no próximo capítulo. Recuperar a memória significa trazer ao presente o passado, aquele que ficou ausente. É no cultivo e no resgate dessa e de todas as histórias negadas pelo avanço impiedoso da civilização que se poderá ser capaz de se tornar mais humano, de voltar a se indignar com as injustiças e de não esquecer a barbárie que se esconde por trás de cada cena da vida cotidiana. José Carlos Moreira da Silva Filho, O anjo da história e a memória das vítimas. capítulo IV enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 215 N este capítulo procuro visualizar como o Estado e seus representantes compreenderam as ações de Enio e dos demais comunistas daquele período a partir do debate travado entre acusação e defesa, entendendo-o como uma disputa não meramente jurídica, mas sim entre dois projetos contraditórios de sociedade, ou seja, entre capitalistas e socialistas. Com vistas a apresentar tais embates, recorro ao processo-crime imputado pelo Estado militar contra o professor catedrático Enio Cabral, buscando esclarecer os principais argumentos das autoridades representantes do Estado para a condenação do réu, bem como as estratégias da defesa para inocentá-lo. Baseando-nos nas reflexões do marxismo heterodoxo de Williams (2005), busco compreender a complexidade do conceito de hegemonia e as disputas teóricas que se travam em torno dele. Williams assim considera o conceito: Temos de deixar claro que a hegemonia não é algo unívoco; que, de fato, suas próprias estruturas internas são altamente complexas, e têm de ser renovadas, recriadas e defendidas continuamente; e que do mesmo modo elas podem ser continuamente desafiadas e em certos aspectos modificadas. É por isso que ao invés de falar simplesmente de “a hegemonia”, ou em “uma hegemonia”, eu proporia um modelo que permitisse a variação e a contradição, com seu conjunto de alternativas e processos de mudança (WILLIAMS, 2005, p. 216). Essa proposição nos é importante aqui para que possamos esclarecer que, ao tratarmos do caso de Enio Cabral, lidamos com uma situação complexa e contraditória e que não poderíamos seguir o modelo clássico base x superestrutura, sob o risco de enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 216 resumirmos a questão a “o Estado (capitalista) contra Enio (comunista)” ou, simplificadamente, dominantes x dominado. Entendemos, como Williams, que a hegemonia é constituída a partir de um campo de conflitos e tensões, no que podem ser engendradas contra-hegemonias. Segundo o modelo teórico apresentado por Williams, podemos partir do pressuposto de que qualquer sociedade, independente do período histórico, possui um conjunto de práticas, significados e valores que podemos considerar dominantes e efetivos. Sobre esse sistema ele afirma: De qualquer modo, o que tenho em mente é o sistema de significados e valores central, efetivo e dominante, que não é meramente abstrato, mas organizado e vivido. É por isso que a hegemonia não deve ser entendia no nível da mera opinião ou manipulação. (...) Pelo contrário, nós só podemos entender uma cultura dominante e efetiva se entendermos o processo social do ela depende: o processo de incorporação (WILLIAMS, 2005, p. 217). Como se depreende das palavras de Williams, a disseminação de uma cultura dominante depende das estratégias de sua transmissão/naturalização para que se torne parte do ser social por meio de pressões e limites, exercidos pelas práticas de dominação nas relações específicas entre classes sociais em uma determinada sociedade. Nesse processo a educação ocupa, segundo Gramsci (1982), um papel central: Os modos de incorporação têm grande significado social. As instituições educacionais são geralmente os agentes principais na transmissão de uma cultura dominante, e esta é, em nossos dias, uma atividade de grande importância, tanto econômica quanto cultural; de fato, é as duas coisas ao mesmo tempo (WILLIAMS, 2005, p. 217). Um ponto importante apontado por Williams, que nos permite pensar o caso de Enio Cabral em sua atuação como educador dentro e fora da escola, é o que se refere à tradição seletiva, descrita pelo autor como “aquilo que, no interior dos termos de uma cultura dominante e efetiva, é sempre transmitido como a ‘tradição’, ‘o passado importante’” (WILLIAMS, 2005, p. 217). Ou seja, o processo educacional é sempre marcado pela seleção de certos aspectos do passado ou do presente que são enfatizados e/ou negligenciados. E é contra tal processo que se mobilizava Enio, que buscava, a partir de sua enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 217 prática de educador comunista, construir outra visão de sociedade, ou seja, uma contrahegemonia, dando à educação um sentido mais amplo, típico da visão compartilhada com o PCB, conforme apontamos nos capítulos anteriores. A situação de Enio no interior da escola, como a de qualquer educador engajado, é a de conseguir lidar com esse processo seletivo que busca privilegiar a visão de uma classe, problematizando e desconstruindo os valores arraigados na experiência escolar tradicional, na tentativa de demonstrar outras possibilidades de compreensão da realidade, pois, como afirma Williams: Os processos educacionais; os processos mais amplos de treinamento no interior de instituições como a família; as definições práticas e a organização do trabalho; a tradição seletiva no nível intelectual e teórico: todas essas forças estão envolvidas na elaboração e reelaboração contínuas da cultura dominante efetiva, e sua realidade, como experiência, como algo construído em nossa vivência, dependente delas. Se o que aprendemos fosse meramente ideologia imposta, ou tratasse apenas dos significados e práticas isoláveis da classe dominante, ou de um setor da classe dominante que se impõe a outros, ocupando somente a superfície de nossas mentes, seria – e isso seria ótimo – algo muito mais fácil de ser derrubado (WILLIAMS, 2005, pp. 217-218). O que Williams argumenta é que a construção de uma visão de mundo, de um modo de vida e de uma cultura dominante alcança camadas mais profundas, selecionando, organizando e interpretando a experiência do ser social e, portanto, não se configura numa ideologia ultrapassada que podemos simplesmente ultrapassar. Assim, lidamos na sociedade moderna com um contexto contraditório em que “esses elementos” são solapados por experiências, opiniões e visões de mundo contra-hegemônicas. Para sintetizar nosso pensamento em relação à construção de uma contra-hegemonia, efetivada por Enio em relação Estado militar, recorremos às palavras de Williams: A realidade de qualquer hegemonia no sentido político e cultural ampliado, é de que, embora por definição seja sempre dominante, jamais será total ou exclusiva. A qualquer momento, formas políticas e cultura alternativas, ou diretamente opostas, existem como elementos significativos na sociedade. (...) A ênfase política e cultural alternativa, e as muitas formas de oposição e luta, são importantes não só em si mesmas, mas como características indicativas daquilo que o processo hegemônico procurou controlar, na prática (WILLIAMS, 1979, p. 116). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 218 É, portanto, partindo dos conceitos de cultura política dominante e cultura política de oposição que se encontram no bojo do conceito de hegemonia preconizado por Williams que buscaremos compreender as nuances do processo movido pelo Estado contra Enio Cabral e as contradições que se apresentaram no interior dele. O PROCESSO-CRIME: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Antes de iniciarmos a discussão do processo, cabe uma advertência sobre as motivações que nos levaram a trilhar esse caminho de uma fonte tão rica e ao mesmo tempo difícil, pois como chamou a atenção Certeau: Em história, tudo começa com o gesto de selecionar, de reunir, de, dessa forma, transformar em “documentos” determinados objetos distribuídos de outra forma. Essa nova repartição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo fato de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos mudando, ao mesmo tempo, seu lugar e seu estatuto (CERTEAU, 1996, p. 13). A advertência de Michel de Certeau nos é importante, pois trata de algo que é próprio do ofício do historiador, ou seja, a seleção e organização de suas fontes de pesquisa, fase primordial para o estudo dos processos sociais que nos cercam. Além disso, nos leva a pensar também sobre as especificidades das fontes com as quais o historiador lida, principalmente num momento em que vivemos uma abertura nos campos da História e da História da Educação para uma multiplicidade de novos objetos, métodos e fontes. Em nosso caso em particular, é preciso justificar a escolha em trabalhar com os processoscrime, fonte ainda pouco utilizada na História da Educação, mas extremamente rica em informações e discursos que se chocam no seu próprio interior. Daí a importância de se buscar, por meio da dialética marxista, as contradições sociais presentes na realidade, mas que também se manifestam no discurso jurídico. De acordo com o historiador Boris Fausto, ao se trabalhar com o processo-crime estamos diante de acontecimentos de caráter duplo, ou seja: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 219 Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois “acontecimentos” diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Este último tem como móvel aparente reconstituir um acontecimento originário, com o objetivo de estabelecer a “verdade” da qual resultará a punição ou a absolvição de alguém. Entretanto, a relação entre o processo penal, entendido como atividade do aparelho policialjudiciário e dos diferentes atores, e o fato considerado delituoso não é linear, nem pode ser compreendida através de critérios de verdade. Por sua vez, os autos, exprimindo a materialização processo penal, constituem uma transcrição/elaboração do processo, como um acontecimento vivido no cenário policial ou judiciário. Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver (FAUSTO, 2001, p. 21). As questões levantadas por Fausto nos são imprescindíveis para pensar o caso do processo-crime instaurado contra Enio Cabral, uma vez que a própria ideia de quebra da norma é discutível nesse caso, pois era difícil precisar o que seriam “atividades que atentavam contra a nação”, e mesmo “práticas comunistas”. Para demonstrar a visão do Estado a respeito do caso, iniciamos pela apresentação do relatório produzido no ano de 1964 pelo capitão Oscar da Silva, responsável pelo IPM que indiciava o professor pela prática de atividades comunistas na cidade de Aquidauana. O relatório traz os seguintes dizeres: Enio de Castro Cabral, professor catedrático de História do Brasil do Colégio estadual Cândido Mariano, desta cidade, foi preso dia 04 de Abril de 1964 às 02:00 horas por ordem do Sr. Tenente Cel. CMT do 9º Batalhão de Engenharia de Combate na Vila Noroeste S/nº, em Aquidauana, por Suspeição de crimes contra a segurança do País, Regime democrático, Probidade da Administração Pública, Atos de Guerra Revolucionária em virtude de constar informes a seu respeito ( Fls 6,7) de que pregava idéias comunistas, pregava revolução pacífica ou sangrenta, dependendo da atitude dos reacionários; processava a difusão de Boletins subversivos; pregava idéias comunistas aos seus alunos do Colégio Estadual Cândido Mariano e frequentava reuniões na Associação dos trabalhadores da Construção Civil e Imobiliária, nesta cidade (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 48). Observe-se que o trecho inicial do relatório/IPM em momento algum menciona a lei que permitia sua prisão – o instrumento jurídico que legitimará a ação, se é que existiu, permaneceu implícito. A prisão se baseou em “informes a seu respeito”, o que corrobora as palavras de Boris Fausto de que o aparelho repressivo muitas vezes se sobrepõe à norma enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 220 jurídica. Nesse caso específico, coube a esse aparelho, representado aqui pelo exército, definir o crime, muito mais do que a própria lei. Cabe ressaltar que ao longo do processocrime me deparei com fatos no mínimo inusitados que foram considerados crimes – por exemplo, possuir exemplares das obras de Marx em sua biblioteca. Assim, precisar o que era delito nesse caso era uma atividade extremamente subjetiva. Os subterfúgios pseudojurídicos dos regimes autoritários foram também criticados por autores como Giorgio Agamben na obra Estado de exceção. Nela o autor afirma: O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN, 2004, p. 13). Diversos historiadores já se utilizaram dos processos-crime para compreender as relações sociais e o cotidiano de diversos sujeitos sociais. Dentre eles podemos destacar o brilhante trabalho de Sidney Chalhoub Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, no qual retrata as particularidades do cotidiano dos trabalhadores. Afirma ele: O interesse em ler e analisar processos criminais estava exatamente na expectativa de que tais documentos flagrassem trabalhadores – homens e mulheres – agindo e descrevendo os sentidos de suas relações cotidianas fora do espaço do movimento operário, do lugar da fala política articulada (CHALHOUB, 2001). Na referida obra, Sidney Chalhoub nos apresenta um importante estudo sobre a belle époque feito por meio da análise de processos criminais, buscando mostrar as contradições de um período em que o surgimento de prédios modernos conviveu com a exclusão social e a insegurança de um poder público municipal que custava a se impor. Chalhoub elege os processos criminais como fonte principal para sua pesquisa, com o objetivo de revelar as práticas e representações sociais no interior da sociedade carioca na passagem do século XIX para o XX. O historiador adverte, no entanto, que em tais fontes enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 221 encontramos respostas prontas e acabadas; é preciso explorar as contradições presentes nos autos criminais: [...] ler processos criminais não significa partir em busca “do que realmente se passou”, porque esta seria uma expectativa inocente, da mesma forma como é pura inocência objetar a utilização de processos criminais porque eles “mentem”. O importante é estar atento às coisas que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muitas vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência (CHALHOUB, 1986, p. 41). O processo-crime é uma fonte privilegiada para os historiadores, pois se apresenta como um grande quebra-cabeça, em função das várias versões do acontecimento, relatado de forma particular por diversas pessoas. No entanto, sempre faltam algumas peças que devem ser buscadas pelo historiador, responsável por colocá-las no lugar e tentar compreender esse emaranhado de informações diversas. Na obra Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da belle époque”, a historiadora Martha de Abreu Esteves também realiza a análise de processos-crime para tratar de casos contra a honra e estupros. De acordo com ela: Através da análise dos discursos e pareceres dos promotores, advogados e juízes, presentes nos processos, e as publicações ligadas à jurisprudência (...), minha intenção maior foi de estabelecer os padrões sociais de comportamentos e valores aceitos, definidos e difundidos no processo de formação de culpa e inocência da época em questão (ESTEVES, 1989, p. 31). Segundo Boris Fausto, o que faz de um processo-crime uma fonte intrigante é a sua fisionomia própria: Na sua materialidade, cada processo é no período considerado uma peça artesanal, com fisionomia própria, revelado no rosto dos autos, na letra caprichada ou indecifrável do escrivão, na forma de traçar uma linha que inutiliza páginas em branco. Não por acaso, as resistências à introdução da datilografia de depoimentos articulam-se historicamente, nos meios forenses, em torno dos riscos da perda de autenticidade do processo. A peça artesanal contém uma rede de signos que se impõe à primeira vista, antes mesmo de uma leitura cuidadosa do discurso (FAUSTO, 2001, p. 20). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 222 Fausto nos fornece ainda um importante suporte para pensar o processo-crime e sua relação com fatores sociais que se internalizam nos debates travados entre os juristas, sejam eles promotores, juízes ou advogados, sujeitos que, longe de proferirem discursos neutros, baseados na lei, são condicionados pela estrutura material da sociedade. Afirma Fausto a respeito de tais discursos: Os discursos de acusação e defesa representam uma fonte importante para a apreensão de valores e representações sociais, permitindo localizar pontos sensíveis, capazes de determinar as opções do corpo de jurados. Não por acaso, a metáfora teatral nos vem à mente na referência aos debates do júri: um espetáculo onde dois atores básicos dramatizam versões diversas de um fato reelaborado no processo, utilizando os recursos de expressão (a repulsa, a comiseração, a ironia etc.) adequados ao momento (FAUSTO, 2001). A pesquisadora Regina Célia Lima Caleiro nos esclarece sobre as possibilidades e vicissitudes de se trabalhar com os processos-crime, demonstrando que atualmente os arquivos judiciais constituem um rico manancial de fontes para o trabalho historiográfico: A estrutura interna dos processos é de formato praticamente invariável e compõe-se, quase sempre, da denúncia apresentada ao Juiz de Direito, auto de qualificação e termo de declarações do réu, exame do corpo de delito das vítimas e declarações das testemunhas arroladas. Essas peças fundamentais para a composição da pesquisa apresentam lacunas com relação a vários dados: idade, estado civil, profissão. Outro limite imposto à investigação refere-se ao fato de que poucos processos contêm a transcrição dos debates perante o Tribunal do Júri, fonte importante para a percepção de valores e representações sociais do período pesquisado. Mesmo com todas essas restrições, se percorrermos com a cautela necessária os vários caminhos apontados pelas fontes é possível reconstruir e interpretar, mesmo que parcialmente alguns aspectos significativos destas micro-histórias. (CALEIRO et al., 2011, pp. 303304). Outra importante pesquisadora que nos permite pensar a riqueza dos processoscrime como fonte de pesquisa é Mariza Corrêa, que em sua obra Morte em família (1983) nos apresenta uma análise pormenorizada das etapas que constituem o processo criminal como um conjunto de discursos, muitas vezes contraditórios, que devem ser compreendidos pelo pesquisador. Para a referida autora, os processos são como uma fábula construída enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 223 pelos operadores jurídicos que buscam, conforme seus interesses, construir uma verdade singular. Sobre isso afirma a autora: A morte de uma pessoa pela outra é imediatamente despojada de seu peso concreto, espesso, da espessura que possui em sua esfera de ação e transformada numa parábola, numa fábula, onde estão contidas todas as mortes possíveis de acontecer nesse mundo para o qual se volta a visão jurídica, uma visão que ordena a realidade de acordo com normas legais (escritas), preestabelecidas, mas também de acordo com normas sociais (não escritas), que serão debatidas perante o grupo julgador (Corrêa, 1983, p. 24). É importante frisar que o trabalho com tais fontes sobre o período da ditadura nem sempre é fácil, pois muitas vezes encontram-se dificuldades para acessar tais documentos, já que, principalmente no Brasil, os militares, além de buscar construir uma memória positiva de seu governo, ainda cercearam a consulta aos documentos que poderiam mostrar uma versão diferente daquela construída por eles. A historiadora Suzana Arakaki, em sua dissertação de mestrado Dourados: memórias e representações de 1964, nos relata tal dificuldade: Buscamos no Arquivo Público de Mato Grosso, eventuais registros das prisões feitas logo após o regime. Mas, nada encontramos. Além disso, nos foi informado que as fichas do DEOPS mato-grossense desapareceram. Outra surpresa tivemos no Arquivo Geral do Fórum de Dourados, onde não encontramos nenhum inquérito arquivado envolvendo as pessoas presas no período pesquisado. O Arquivo é totalmente computadorizado, com registros de processos desde 1930. Averiguamos cada nome citado pelas fontes, mas nada foi encontrado (ARAKAKI, 2003, p. 12). A situação descrita por Arakaki em relação às fontes também se repetiu em Aquidauana; encontramos poucos documentos em relação ao período da ditadura nos arquivos disponíveis na cidade. No entanto, graças à organização do Fórum local, pudemos ter acesso ao processo criminal movido contra Enio Cabral e outros presos políticos do período. No que se refere à educação, encontramos pouquíssimo material, pois nem sempre os arquivos escolares são tão organizados, o que ocasiona a perda de uma rica documentação para a história da educação no município. enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 224 A DITADURA EM AQUIDAUANA: O EXÉRCITO BRASILEIRO CONTRA ENIO CABRAL O historiador Leite (2009) narra que a ditadura em Aquidauana, assim como no restante do país, trouxe no alvorecer da cidade, junto aos raios solares, o verde-oliva das forças do exército sediado na cidade. Relata ainda que, em princípio, nem toda a população tinha conhecimento do que estava acontecendo e, curiosa, acompanhava os acontecimentos daquela manhã que mudaria as vidas, se não de todos, de alguns cidadãos de Aquidauana, que teriam de fugir para longe para escapar das prisões e torturas. O Regime repressivo, a partir de suspeitas de atitudes contrárias ao poder, argumentava que a preservação do modelo constitucional necessitava do combate à subversão (Arquidiocese de São Paulo, 1991). O resultado configurou-se pelo confisco da cidadania, materializado pelo seqüestro e, muitas vezes, pelo extermínio do cidadão. No interior do País, como em Aquidauana, por exemplo, as forças militares, especificamente o exército, constituíram-se como força de caça aos comunistas locais (LEITE, 2009, p. 75). Adentremos, portanto, no processo movido pelo Exército Brasileiro contra o professor comunista Enio Cabral. Na sequência do trecho já citado anteriormente, encontramos informações de que procedeu-se “uma minuciosa e rigorosa investigação” sobre o indiciado: Foi procedida rigorosa investigação e apuração dos citados informes; foi determinado um mandado de busca e apreensão à residência do indiciado; foram feitas investigações e inquirição das testemunhas que se seguem: CLAUDEMIRO NUNES DA CUNHA, pedreiro; JOÃO JORGE CARNEIRO, Diretor do Colégio Estadual Cândido Mariano e Professor Catedrático; José Carlos Nery, estudante da 3ª Série Ginasial do Colégio Estadual Cândido Mariano; SEBASTIÃO DE OLIVEIRA, Presidente da Associação dos Trabalhadores de Construção Civil e Imobiliária; EUSTORGIO DE ANDRADE BRITO, creador; CARLOS MOACYR DA CONCEIÇÃO, delegado de Polícia desta cidade e conclui-se que: ficou provado que o Professor Catedrático ENIO DE CASTRO CABRAL é atualmente comunista militante, Secretário em exercício do Comité do Partido Comunista Brasileiro nesta cidade de Aquidauana, conforme me o próprio indiciado declarou (Fls. 36, 37, 38) (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 48). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 225 É interessante frisar que os autos concluem que o réu era militante comunista em função de afirmações de testemunhas advindas de segmentos sociais extremamente conservadores, tais como um pecuarista e um delegado de polícia, assim como declarações do próprio indiciado. Resta pensar como estas confissões se deram, pois uma ampla historiografia já evidenciou a maneira como se produziam provas contra os indivíduos presos durante o regime militar. O historiador Carlos Fico já afirmou que a tortura era um fato de amplo conhecimento dos militares brasileiros, que a consideravam uma necessidade justificada pelo bem maior de garantir a segurança nacional: A tortura e o extermínio eram aceitos pelos comandantes e governos militares, como hoje já se comprovou. Curiosamente, tanto para os linhasduras apenas “ideológicos” (militares radicalmente contrários à “subversão” mas que não atuavam diretamente na repressão) quanto para os pragmáticos rigorosos (supostos moderados, como Ernesto Geisel, que no entanto admitiam a tortura e o assassinato como necessidade conjuntural), a tortura tinha o mesmo significado: era um “mal menor” (FICO, 2004, p. 9). Além dos historiadores, líderes religiosos, como Dom Paulo Evaristo Arns, também denunciaram os crimes de tortura no Brasil, que eram de ordem física e até mesmo psicológica e não poupavam nem mesmos as mulheres e as crianças: A tortura foi indiscriminadamente aplicada no Brasil, indiferente a idade, sexo ou situação moral, física e psicológica em que se encontravam as pessoas suspeitas de atividades subversivas. Não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória. Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentavam sobre relações efetivas de parentesco. Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos (ARNS, 1987, p. 43). Encontramos no próprio auto de interrogatório constante no processo informações sobre as torturas sofridas, que foram narradas quando da transformação do IPM em processo-crime. Assim relatou o réu ao juiz de direito Heliophar de Almeida Serra, quando questionado se mandou queimar documentos que comprovassem sua ligação com o partido comunista local: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 226 Que não é verdade que tivesse pedido que sua família queimasse documentos de caráter comprometedores que se encontram em uma pasta em sua casa; Precionado que foi durante o I.P.M, acabou confessando o que não era verdade. Que declarou no I.P.M. que não pagava mensalidade ao Partido Comunista, mas sim de quanto em vez remetia a importância de cem cruzeiros as redações que lhe mandavam jornais, porem que o encarregado do I.P.M. forçava dizer que o acusado pagava mensalidades. Que anteriormente no depoimento que prestou no I.P.M e durante o mesmo, o acusado varias umiliações e maus tratos, castigos corpóreos, ameaças, por parte de alguns Aspirantes (sic) (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 60). Em outro trecho do depoimento, as torturas físicas eram mais explícitas e graves, conforme relatou Enio Cabral: Que numa dessas vezes quanto foi chamado uma sala (biblioteca) Um aspirante apontou uma metralhadora contra a cabeça de acusado; noutra ocasião, durante o interrogatório a portas fechadas, e quando se encontrava sentado em uma cadeira, um aspirante subiu no pescoço do acusado; em quanto ensaiava um estrangulamento enrrolando uma camiseta no pescoço do acusado. Que varias vezes foi obrigado a permanecer de joelhos; que em outra ocasião, quando dava sua interpretação sobre a figura de Jesus Cristo, recebeu um soco no nariz; Que em outra ocasião foi levado a noite numa das Baias do quartel, quando agarrado por dois soldados de porte avantajado, teve a braguilha da calça aberta e retirados o seu membro e o escroto, ensaiando-se uma como que castração do acusado (sic) (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 61). Além das psicológicas, Enio Cabral também sofreu torturas físicas que objetivavam arrancar-lhe à força confissões sobre sua ligação com o partido comunista, bem como suas atividades subversivas na cidade de Aquidauana: (...) fizeram-no subir a uma arvore, dizendo-lhe que era um macaco soviético, disparando em torno da arvore alguns tiros de pistola; Que esses fatos se passaram em uma noite muito escura e chuvosa; Que nessa noite sendo obrigado a sair quando já se preparava pra dormir, estava descalço, e quando quiz por os sapatos, ordenaram-lhe que saísse descalço mesmo; Por isso, tendo andado descalço sobre o cascalho, praticando as ações já referidas, por vezes puchado pelos dois soldados, acabou tendo a planta do calcanhar esquerdo deslocada, pelo que no dia seguinte o Cap. Médico da Unidade, depois de examinar o acusado, mandou que o enfermeiro o atendesse; Que em vista dessas torturas, inclusive morais, infligidas ao acusado, as suas declarações constantes de Fls. 41 e 43 do I.P.M., não refletem a verdade em numerosos pontos (sic) (IPM, Ênio de Castro Cabral, fl. 61). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 227 Para um melhor entendimento do processo, é necessário esclarecer como se deu sua sequência para que possamos, em seguida, discutir as alegações de cada um dos agentes que nele atuaram. Assim ele se desenrolou: primeiramente o 9º Batalhão de Engenharia de Combate de Aquidauana manda instaurar o IPM, em 06 de julho de 1964. Posteriormente, em 23 de julho, o inquérito é remetido ao cartório do Terceiro Oficio do Fórum da Justiça Comum da cidade e transformado em processo criminal, ficando a cargo do juiz de direito da comarca de Aquidauana, Dr. Heliophar Serra, que procede à referida investigação, inclusive decretando a prisão preventiva do acusado para averiguação. O Ministério Público, por meio do promotor de justiça Vicente Paschoal Junior, ofereceu apreciação ao caso de Enio Cabral na data de 24 de julho de 1964 e opinou favoravelmente pela revogação da sua prisão preventiva, indicando que sua soltura não oferecia prejuízos à investigação de seus atos. Após a defesa do réu pelo influente advogado José Manuel Fontanillas Fragelli, ligado à UDN, ele foi absolvido das acusações. Mesmo tendo sido demonstrados os erros processuais contidos no IPM, outro promotor de justiça, Hermínio Batista de Azeredo, recorreu da sentença de absolvição ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme termo de apelação que apresentamos a seguir: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 228 (IPM Enio Cabral, fl. 160) Em que se pese a opinião favorável ao provimento do recurso do promotor Vicente Paschoal, de 1º de março de 1967, por parte de alguns ministros do colendo Tribunal Superior de Justiça, o pleno do colegiado do Supremo Tribunal Federal o negou por unanimidade (conforme o termo de apelação criminal que apresentamos a seguir). No entanto, os autos desse processo, graças à morosidade da justiça brasileira, só foram enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 229 concluídos em 24 de fevereiro de 1986; manteve-se a absolvição de Enio Cabral, finalizando assim 22 anos de processo. (IPM Enio Cabral, fl. 193) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 230 O PODER JUDICIÁRIO E A RESISTÊNCIA À DITADURA O promotor de justiça Vicente Paschoal Junior ofereceu denúncia contra o professor Enio de Castro Cabral com base no IPM instaurado pelo Exército Brasileiro, cumprindo a formalidade legal que o caso requeria do judiciário, no entanto teceu diversas considerações sobre o fato, muitas vezes explicitando sua crítica à condução do caso: primeiramente considera que “(...) pelo I.P.M vê-se que a denuncia calcou-se em fatos tais que, só tinha uma solução:_ a sua procedência e a consequente condenação do acusado (sic)” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 124). É importante analisar as palavras do promotor, pois nota-se implícita nelas uma crítica ao procedimento de condução do inquérito, demonstrando que ele só poderia mesmo culminar na condenação do acusado, colocando sub judice os meios e métodos adotados. Defendemos tal tese ao nos depararmos, na sequência de suas alegações, com um questionamento sobre a competência dos militares para realizar tal inquérito. Afirma ele: II – De grande valor analisar-se se a competência para a formação da peça informativa era da alçada militar ou alçada civil. As poucas luzes que nos sobram, levam-nos a aceitar a tese de que à polícia civil estava afeta a missão Ex-vi o disposto no art. 4º do Código do Processo Penal, “ a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais do território de suas jurisdições...” E nada nos autoriza afirmar que o presente caso, como os demais que perante a justiça Pública da Comarca se desenrolaram, _da mesma natureza que o presente-, eram da competência militar (sic) (IPM, Enio de Castro Cabral, p.124). Na sequência, o promotor embasa-se na Lei n. 1.802, de 1953, que estabelece as autoridades civis como competentes para conduzir os procedimentos relativos aos inquéritos policiais militares. III- E nossa assertiva se consolida, frente ao parecer de fls. 52. Efetivamente, o art.42 da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1.953, não tira a competência civil para o processamento e julgamento dos delitos imputador do acusado. E nem o ato institucional o fez (IPM, Enio, p.124). Uma das questões importantes a serem destacadas no caso da perseguição dos militares ao professor comunista Enio Cabral é a participação do poder judiciário, que teve um papel fundamental na absolvição do acusado. Tal fato nos leva a defender que, pelo enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 231 menos em Aquidauana, se os representantes do judiciário não eram contra o regime militar, tiveram no mínimo o cuidado de defender o cumprimento dos princípios legais e garantir aos investigados o amplo direito de defesa. Em princípio isso pode não parecer uma surpresa, posto que sua função, teoricamente, é garantir a aplicação estrita da lei, mas sabemos que em diversos momentos da história a lei privilegiou as classes mais abastadas. O primeiro fato que nos chamou a atenção foi a identidade do advogado de defesa: o ex-governador José Fragelli, político ligado à UDN e à elite ruralista conservadora do então Mato Grosso – posteriormente Mato Grosso do Sul. Outro fato que nos causou estranheza foi que o promotor de justiça Vicente Paschoal Junior, mesmo tendo acolhido a denúncia, por força do procedimento legal, apontou em suas alegações os erros processuais que teriam ocorrido e ainda mostrou a insuficiência de provas contra, o que facilitaria a defesa do acusado. Finalmente, a decisão do Juiz Heliophar Serra e do Supremo Tribunal de Justiça de absolver o réu das acusações demonstra que os representantes do judiciário brasileiro, ao menos nesse caso, observaram o estrito cumprimento da lei, não agindo apenas em favor do regime. O historiador E. P. Thompson, na obra Senhores e caçadores, aponta para o sentido contraditório do aparato jurídico, afastando-se da ideia presente no marxismo vulgar de que a lei é uma decorrência mecânica do domínio de classe, um simples reflexo da superestrutura, e defende que ela pode ser vista como ideologia ou regras e procedimentos próprios que mantêm uma relação ativa com as normas sociais. É inerente ao caráter específico da lei, como corpo de regras e procedimentos, que aplique critérios lógicos referidos a padrões de universalidade e igualdade. É verdade que certas categorias de pessoas podem ser excluídas dessa lógica (como as crianças ou os escravos), que outras categorias tenham seu acesso vedado a partes da lógica (como mulheres ou, para muitas formas do direito do século 18, aqueles sem certos tipos de propriedade) e que os pobres muitas vezes possam ser excluídos, pela miséria, dos dispendiosos procedimentos legais. Tudo isso, e ainda mais, é verdade. Mas, se um excesso disso for verdade, as consequências serão francamente contraproducentes. A maioria dos homens tem um forte senso de justiça, pelo menos em relação aos seus próprios interesses. Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça justa. Não conseguirá parecê-lo sem enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 232 preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade; na verdade, às vezes sendo realmente justa (THOMPSON, 1987, pp. 354-355). No sentido apresentado por Thompson, a lei, assim como qualquer outro aspecto da vida social, é um campo de conflitos e contradições que guarda uma íntima relação com a práxis social. No caso de Enio Cabral entendemos que os operadores do direito (juiz e promotor) agiram em um duplo sentido: primeiramente procurando preservar a lógica própria do ordenamento jurídico, resguardando o sentido de igualdade e universalidade que a própria ideologia do Estado moderno requer, e em segundo lugar guardando certa independência em relação às pressões militares que envolviam o julgamento de um comunista. No entanto, cabe ressaltar que suas atitudes também engendravam contradições de um caráter igualmente duplo, uma vez que certamente buscaram resguardar a lógica própria do direito com um mecanismo de defesa frente a um contexto de incertezas, no qual o autoritarismo não poupava nem mesmo os magistrados. E ainda porque a independência de suas decisões no caso de Enio Cabral ocorria, muito provavelmente, em função das relações de classe que o mesmo, neto de coronel e frequentador das rodas sociais, estava inserido. É claro que temos consciência de que isso não ocorreu em todos os casos, mas esse, em particular, nos serve para demonstrar as contradições do poder judiciário brasileiro. Como demonstra Denise Rollemberg, em seu artigo Memória, opinião e cultura política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974), a OAB, de forma geral, hipotecou seu apoio “à revolução de 1964 e entendeu-a como um ato que se deu dentro da normalidade e da legalidade”. Afirma ela: Nas discussões que mobilizaram o país, a OAB demonstrou a incorporação do ideário, da argumentação, do vocabulário, dos valores anticomunistas típicos da Guerra Fria dos anos 1960 e de instituições brasileiras militares e civis, como a Escola Superior de Guerra/ESG, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática/IPES-IBADE, a Campanha da Mulher pela Democracia/CAMDE93, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB etc. Em outras palavras, na documentação das atas, registro de posições individuais, de grupos e da Instituição, é evidente a identidade da OAB com a cultura política de direita que estruturou as forças civis na derrubada do governo eleito democraticamente. Essas instituições, mais do que apoiarem o golpe, dele participaram (ROLLEMBERG, p. 31). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 233 Apesar de ser taxativa em relação ao apoio da OAB aos militares no período da instauração do golpe, Rollemberg não deixa de apontar que, com a chamada distensão, as posições divergentes se evidenciavam no interior do conselho nacional da entidade. Conselheiros como Sobral Pinto e Miguel Seabra Fagundes expressaram suas críticas pontuais ao regime, no entanto, segundo a autora, tiveram suas falas silenciadas por uma cultura política de direita que perpassava a Ordem. Em que se pesem os argumentos da autora e a ideia recorrente de que os juristas, em sua maioria, apoiaram o golpe, preferimos nos inspirar nos preceitos da teoria marxista, de que todo sistema engendra contradições internas, mesmo o judiciário. As opiniões desses conselheiros e dos juristas que atuaram no caso de Enio Cabral demonstram isso e é sobre tal contradição que trataremos no decorrer do capítulo. DO PROCESSO CONTRA ENIO O pesquisador Eudes F. Leite nos esclarece sobre os fundamentos legais que embasavam a prisão dos acusados no IPM, demonstrando que os motivos eram muito mais políticos que legais, embora o promotor quisesse afirmar o contrário: A promotoria realizou a denúncia dos presos, enquadrando os na Lei número 1.802, de janeiro de 1953, que define os crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, e dá outras providências. A partir desse recurso legal, em certos casos, combinados com outros dispositivos legais, o processo teve seu desenrolar até o julgamento dos prisioneiros. Novos interrogatórios, novas convocações de testemunhas, aliás, as mesmas dos IPMs tendiam a estabelecer no passado o lugar que cada um tinha ocupado no movimento político sob a influência do PCB (LEITE, 2009, p. 86). Estava claro, como demonstra Leite (2009), que a intenção era muito mais mapear as atividades que poderiam contrariar a ordem política, lançando mão dos IPMs como forma de reprimir as ações de oposição política à ordem vigente na cidade e no país, uma vez que a investigação, ao seu final, demonstrou que não havia grande fundamento nas acusações feitas contra os réus, principalmente no caso de Enio, cujo único “crime” constatado foi o fato de ser comunista. 235 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Como é possível depreender do trecho acima, o promotor de justiça busca fundamentar o oferecimento da denúncia no simples cumprimento do ato legal cabível nesse caso; no entanto, vale lembrar que o código de procedimento do promotor público indica as seguintes possibilidades para acolhimento de uma denúncia: a) oferecer denúncia, acolhendo as conclusões do inquérito; b) oferecer denúncia, alterando as conclusões do inquérito; c) determinar novas investigações; d) arquivar o inquérito (http://www.diaulas.com.br:80/artigos/codigo_proced.asp). É em função dessas possiblidades que podemos considerar contraditória ou mesmo parcial a conduta do promotor Vicente Paschoal Junior, que apesar de ter a prerrogativa de determinar novas investigações ou mesmo arquivar o inquérito, preferiu acatar o que foi descrito no IPM. Note-se então que seu procedimento foi muito mais condizente com suas relações e concepções políticas do que calcadas num ato meramente jurídico, o que atesta o caráter social da lei penal e mesmo de sua aplicação. Ou seja, na tentativa de não se indispor com os militares da cidade, o promotor acata a denúncia para o que os fatos pudessem ser apurados. Nos trechos que apresentaremos a seguir podemos observar o grau de contradição que marcava sua atitude política e jurídica: (IPM, Enio Cabral, fl. 125) 236 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado No fragmento acima, observamos que o referido promotor, expressando, ao que parece, uma possível parcialidade no encadeamento dos fatos e na formulação das provas no IPM, considera que a descrição e a organização dos fatos no inquérito levariam indubitavelmente à consequente condenação do réu. O professor Afonso Celso Scocuglia, que estudou os IPMs instaurados na Paraíba e em Recife, afirma que: a tônica do processo foi a tentativa permanente dos militares de incriminar os indiciados por meio de provas forjadas, de depoimentos adequados conforme as necessidades da acusação, do incentivo da delação com a correspondente insinuação das vantagens que tal procedimento traria ao depoente. O objetivo era sempre o mesmo: incriminar os “subversivos”, “comunistas”, “inimigos e traidores da pátria”, mesmo que tal processo se fizesse atabalhoadamente e sem o rigor da aplicação das próprias leis que o Estado militar aprovara (SCOCUGLIA, 2009, p. 11). Além de lançar mão do princípio do contraditório, questionando a veracidade dos fatos expostos no referido IPM, o promotor ainda questiona a competência dos militares para apurar tais denúncias contra o professor Enio Cabral, considerando que estava a polícia civil afeita ao processo de investigação de tais acontecimentos, já que era o acusado civil e não militar. O promotor lembra ainda que o artigo 42 da Lei n. 1.802, de janeiro de 1953, que embasa os IPMs, não retira a competência civil para o julgamento dos delitos imputados ao acusado. Embora conteste a competência militar para a apuração dos fatos e ainda se mostre convencido do erro processual, o promotor de justiça dá prosseguimento ao caso, com o objetivo de confrontar o IPM – para ele, peça meramente informativa, com as provas colhidas e analisadas no plenário do júri. O promotor considera que no caso de Enio havia uma grande distância entre os fatos alegados no processo e o que realmente se provou depois, pelas apurações pela justiça. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125) 237 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Na sequência de suas alegações, Vicente Paschoal coloca também em dúvida o fato de Enio Cabral ter confessado seus supostos crimes, dadas as circunstâncias em que foram conseguidas as confissões constantes no Inquérito Policial Militar: (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125) Note-se que no trecho acima o promotor questiona a validade da confissão de Enio, aludindo a uma situação semelhante ocorrida em um tribunal de São Paulo, buscando a mesma jurisprudência para sua absolvição. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 125) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 238 Além da jurisprudência, o promotor ainda ironiza os relatos das testemunhas de acusação, mostrando que uma delas, Estorgio de Andrade, apenas confirmou o que lhe disseram seus filhos menores. Já o Dr. Fernando Alves Ribeiro somente ratificou seu depoimento no IPM, mas nenhum deles conseguiu apontar qualquer fato concreto que incriminasse o acusado nos artigos contidos na denúncia. Esses fatos foram provavelmente imprescindíveis para que o magistrado solicitasse a absolvição do réu e finalizasse suas alegações em tom bastante jocoso: (IPM, Enio Cabral, fl. 125) No caso dos argumentos do promotor, encontramos outro tipo de contradição, qual seja: apesar de estar convencido da inocência de Enio Cabral em relação aos crimes imputados, dá prosseguimento ao processo, com a ressalva de que em suas alegações finais praticamente solicita a absolvição do réu. Podemos compreender isso como uma crença de que o direito seria sempre justo e, portanto, o processo investigativo garantiria o estabelecimento da verdade. De acordo com Thompson, o estamento jurídico nas sociedades ocidentais desde o século XVII é revestido de uma ideologia dominante, necessitando, assim, de mecanismos de legitimação: E, ademais, não é frequentemente que se pode descartar uma ideologia dominante como mera hipocrisia; mesmo os dominantes têm necessidade de legitimar seu poder, moralizar suas funções, sentir-se úteis e justos. No enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 239 caso de uma formação histórica tão antiga como o direito, matéria cujo domínio exige anos de estudo exaustivo, sempre existirão alguns homens que acreditam ativamente em seus procedimentos próprios e na lógica da justiça. O direito pode ser retórico, mas não necessariamente uma retórica vazia (THOMPSON, 1987, p. 354). Ao que parece, o pensamento do promotor no caso de Enio Cabral seguiu a lógica apontada por Thompson, segundo a qual era necessário, para que sua função se mostrasse útil e legítima frente à sociedade, preservar a lógica e os critérios próprios da aplicação do direito. O ADVOGADO DE ENIO E SUAS RELAÇÕES COM A ELITE LOCAL Ao analisarmos a defesa de Enio Cabral, algumas peças começaram a se encaixar e pudemos e pudemos entender como, apesar da gravidade dos fatos ocorridos, seu desfecho final foi menos trágico do que poderia ter sido. Pois, ao observarmos quem foi o responsável por fazer sua defesa no processo, tivemos uma surpresa, pois se tratava de ninguém menos que o ex-governador José Fragelli, figura importante ligada à elite rural do estado. Genro do “coronel” Zelito, representante nato do mandonismo característico da região de Aquidauana e adjacências, foi considerado um dos seus herdeiros políticos, já que foi secretário de estado, deputado estadual, governador de Mato Grosso e senador de Mato Grosso do Sul, conforme atestou Fausto Matogrosso: A partir da segunda metade da década de 1950 até meados da década de 1960 também foi sendo reconfigurado o segmento coronelista. Os velhos “coronéis” foram sendo substituídos pelos seus herdeiros políticos, mais sintonizados com as mudanças políticas que aconteciam no país (MATOGROSSO, 2013, p. 70). A influência política de Fragelli com certeza pesou favoravelmente no caso de Enio Cabral. Segundo Fausto Matogrosso (2013), o golpe de 1964, mediante sua institucionalização no regime militar, foi consolidando uma nova elite dirigente em Aquidauana. Fausto aponta que “após 1964, acabou a época dos coronéis tradicionais. Zelito, e Antonio Trindade, que já tinham deixado seus ‘sucessores’ com roupagem mais moderna”, referindo-se respectivamente a Rudel Trindade, filho do “coronel” Antônio enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 240 Trindade, que se tornou prefeito de Aquidauana em 1966, e a José Fragelli, genro do “coronel” Zelito, que se tornaria govenador do estado de Mato Grosso, dentre outros cargos que ocupou. Enquanto isso, afirma ele, os Nunes da Cunha, que já haviam exercido grande influência no cenário do estado, saíram de cena, marginalizados politicamente. (MATOGROSSO, 2013, p. 70). O historiador Eudes Leite também atesta a influência de Fragelli junto aos principais nomes envolvidos na perseguição aos comunistas em Aquidauana e esclarece que ali O ataque às atitudes arbitrárias da ação policialesca e repressiva dos militares em Aquidauana projetava notadamente um limite. Limite que se configurava nas relações de poder na cidade. Tanto juiz quanto advogado perseguiam a manutenção de velhas e tradicionais formas de poder em Aquidauana. Basta lembrar que o Advogado José Fragelli mantinha boas relações com a maior parte das testemunhas da acusação de seu cliente, como, por exemplo, o prefeito Fernando Ribeiro e o senhor Arsenio Serrou Camy. O juiz, por seu lado, pensara expressar a figura da imparcialidade, no cumprimento de seu dever, contudo tal postura estivera envolta no emaranhado das relações sociopolíticas da cidade (LEITE, 2009, p. 90). No campo da política, o que se consubstanciou foi um processo de modernização conservadora, sem rupturas. Fragelli, como herdeiro político do coronel Zelito, com certeza fazia parte desse acordo tácito entre a oligarquia remanescente e nova classe urbana que se ligou aos governos militares no então Mato Grosso. Talvez por esse motivo tivesse trânsito tanto com elite ruralista, que ocupava o poder naquele período e apoiava os militares, e com Enio Cabral, de quem era primo distante. Na esfera desse microespaço, todos os interesses foram se acomodando sem grandes rupturas. Afora suas ligações políticas tanto com os denunciantes quanto com o denunciado, Fragelli demonstrou uma formação jurídica bastante eficiente e fundamental para absolver Enio Cabral. Vejamos, então, a partir do IPM, sua atuação jurídica. Demonstrando conhecimento de causa em relação ao erro processual que acometeu o IPM, o advogado solicita que tal erro seja considerado nos arrazoados da defesa: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 241 (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 127) O apontamento do erro processual foi a base para que Fragelli desenvolvesse a defesa do réu, uma vez que colocava em xeque as decisões que poderiam ser tomadas pelo juiz, alicerçadas na peça jurídica eivada de erros. O erro era caracterizado pela incompetência da justiça militar para julgar os crimes imputados a Enio Cabral. A partir dessa premissa inicial, de certa forma Fragelli consegue intimidar os magistrados, que poderiam ter suas decisões revogadas por falta de fundamentos legais. Há que se ressaltar que, no caso em tela, tal estratégia da defesa funcionou, mas como se tratava de um regime de exceção – a ditadura militar – e de uma acusação eminentemente política, poderia não ser considerada pelos operadores do direito. Já a lei e sua aplicação, como já afirmamos anteriormente, possui uma motivação social e, portanto, não está nunca isenta de seu componente ideológico. O conselheiro da Comissão de Anistia/MJ José Carlos Moreira da Silva Filho, em seu artigo O anjo da história e memória das vítimas: o caso da ditadura militar no Brasil, afirma que durante a ditadura na América Latina, e principalmente no país, foi montado Todo um aparato técnico de informações e ações organizadas foi montado e colocado a serviço de crimes em massa como: prisões arbitrárias sem direito a qualquer contraditório ou garantia torturas e sevícias cruéis que deixaram seqüelas permanentes ou resultaram em mortes; seqüestros de crianças, pais, mães e filhos; assassinatos e desaparecimentos; monitoramentos e ameaças constantes que resultavam em prisões e mortes; banimentos e pessoas compelidas ao exílio; a descartabilidade de qualquer garantia ou qualificativo jurídico (SILVA FILHO, 2008, p. 156). É notório, como destaca Fernandes (2005), que boa parte das medidas repressivas não era respaldada pela própria legislação da ditadura, a começar pela Carta de 1969 e o próprio Ato Institucional n° 5, o qual suspendia os direitos políticos e os habeas corpus em enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 242 casos de crimes políticos, contra a segurança nacional e outros, mas não autorizava, em hipótese nenhuma, os desaparecimentos forçados, as torturas e as execuções extrajudiciais, que eram inconstitucionais mesmo para os padrões da ordem jurídica ditatorial – mas elas continuaram acontecendo. (IPM, Enio Cabral, fl. 127) Referenciando-se no Código Penal Brasileiro, o advogado busca demonstrar que qualquer decisão condenatória seria prejudicada em função de ter sido conduzida por autoridade militar e não civil, como orienta o referido código. Além disso, outro fato que poderia anular a decisão seria a incomunicabilidade do acusado, que foi preso, como afirmamos anteriormente, no dia 04 de abril de 1964, ou seja, três dias após o golpe. Em sua peça de defesa, o advogado considera a incomunicabilidade como um ato de intimidação contra Enio Cabral e demais indiciados, que foram detidos no 9º Batalhão de Engenharia de Combate de Aquidauana. Relata ainda que foi utilizada violência física contra a maioria dos acusados, principalmente contra Enio Cabral, conforme já mencionamos no primeiro capítulo, sem que, supostamente, nem mesmo o comandante do 9º BEC soubesse. Os acontecimentos apontados por José Fragelli certamente teriam força de tornar imprestável o inquérito como elemento probatório das acusações sofridas pelos réus e, assim, facilitariam a defesa de Enio Cabral, que realizou todas as suas confissões sob ameaças psicológicas ou mesmo torturas físicas. enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 243 (IPM, Enio Cabral, fl. 128) No tópico 2 do documento intitulado “Outros fatos que tornam o I.P.M nulo, como elemento probatório”, Fragelli afirma que as violências e intimidações contra os detidos, principalmente seu cliente, “eram fatos de conhecimento e convencimento geral, antes mesmo da notoriedade nacional que adquiriram, como lamentável processo empregado em inúmeros casos” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 128). Fragelli infelizmente tinha razão sobre a recorrência desses atos de violência praticados pelos agentes da ditadura. Dom Evaristo Arns, em sua obra Brasil nunca mais, nos traz vários relatos de tortura, a exemplo do ocorrido com a professora de história Dulce Pandolfi: Na Polícia do Exército, (...) foi submetida a espancamento inteiramente despida, bem como a choques elétricos e outros suplícios, com o “pau-dearara”. Estudante Dulce C. Pandolfi, 24 anos. Torturada em 1970 (ARNS, 1985, p. 32). A historiadora Dulce Pandolfi, que nasceu e foi criada em Recife, foi aluna do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco e secretária geral do Diretório Central dos Estudantes em 1968. Nesse mesmo ano ingressou na Ação Libertadora Nacional (ALN) e se tornou um dos alvos da repressão no país. Dulce Pandolf foi presa no dia 20 de outubro de 1970 e relatou em 2013 à Comissão da Verdade as agruras que sofreu durante o período em que ficou nos porões da ditadura. Uma das frases que mais chamam a atenção ao ler seu depoimento é a seguinte: “Eu acuso todos os torturadores, civis e militares, inclusive aqueles que diziam e continuam dizendo que estavam apenas cumprindo ordens dos seus superiores” (Pandolfi, 28.05.2013). Diante de tal frase, a “cumplicidade” da sociedade local com os crimes de tortura levantados pelo advogado não nos causam estranheza – essa foi uma prática comum durante a ditadura. Muitos cidadãos foram presos e torturados com a conivência de diversas enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 244 instituições (igrejas, sindicatos, universidades, dentre outras) e da própria sociedade brasileira, restando apenas alguns poucos protestos de alguns indivíduos. Sobretudo no interior das corporações militares, era prática comum que oficiais e soldados de baixa patente fossem designados para empreender os atos de tortura, com o objetivo de resguardar os altos oficiais, que quase sempre omitiam seu conhecimento sobre tais ações. Felizmente a historiografia mais recente tem contrariado tais teses: Os crimes de tortura e assassinato de presos políticos foram cometidos com a conivência dos oficiais-generais responsáveis pelas diretrizes e operações de segurança interna. Foram, aliás, os oficiais-generais moderados que criaram a idéia de uma grande autonomia dos responsáveis diretos pela tortura e assassinato, com isso, talvez, procurando justificar o que, em última instância, deve ser caracterizado como omissão (FICO, 2001, p. 24-25). O historiador Jacob Gorender esclarece que a conivência com o regime militar não ocorreu apenas entre o alto oficialato das forças armadas; também entre os civis notava-se certa passividade perante o regime. Muitos cidadãos preferiram “tocar a vida em frente”, pelo menos até que as ações ditatoriais se aproximassem de seu cotidiano. O fato é que, seja por discordância dos rumos da resistência, por medo ou omissão, alguns preferiram se calar. Deve-se levar em consideração que a repressão atuou numa conjuntura em que as organizações da esquerda armada estavam isoladas dos segmentos populares, seja porque houve uma passividade, seja porque houve conivência de parcela da sociedade com o regime, desde seu início, e o discurso dessa esquerda não tenha mobilizado a sociedade. A proposta de luta armada não atraiu a maioria da população. É preciso destacar que com a derrota das organizações guerrilheiras, a repressão voltou-se contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que recusava – em princípio - a luta armada para derrotar a ditadura. Em suma, a violência não foi utilizada apenas contra os militantes da luta armada, ela também atingiu outros setores engajados ou não da sociedade que se opuseram à ditadura. (GORENDER. In: FICO, 2001, p. 11) O historiador Eudes Fernandes Leite mostra que perseguição ao PCB, que começou nos grandes centros, chegou também à pequena cidade de Aquidauana, fazendo com que, a partir de 1947, a esquerda local se dispersasse, mantendo algumas atividades clandestinas até a década de 1960. Leite relata, porém, que alguns militantes mais atuantes prosseguiram suas atividades como membros de outras siglas ou como pessoas afastadas de uma estrutura enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 245 partidária legal. A partir disso, as pessoas que participavam de reuniões com objetivos alheios aos interesses políticos da oligarquia passavam a ser suspeitas, serviam de motivo para boatos sobre as atividades políticas das entidades de trabalhadores na cidade (LEITE, 2009, p. 51). Enio Cabral foi um desses militantes que prosseguiram lutando contra a ordem autoritária vigente naquela cidade até sua prisão. Seu advogado, como já mencionamos, além de insistir no erro de competência dos militares para tratar tal caso, também se valeu do argumento de nulidade das provas conseguidas por meio de confissão, uma vez que as mesmas foram obtidas mediante tortura. (IPM, Enio Cabral, fl. 133) Após destacar os maus tratos sofridos pelo seu cliente, o advogado ainda questiona o fato de a autoridade encarregada pelo julgamento não ter promovido uma acareação para se comprovar se as alegações do réu eram verídicas. A ausência de tal procedimento por parte do juiz facilitou, ainda mais, a defesa do réu. (IPM, Enio Cabral, fl. 133) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 246 Na sequência, o advogado apresenta o depoimento de Sebastião de Oliveira, que foi companheiro de cela de Enio Cabral, como testemunha arrolada pelo promotor para atestar a veracidade dos relatos. (IPM, Enio Cabral, fl. 133) Além de utilizar os próprios testemunhos da promotoria a favor de Enio Cabral, Fragelli afirmou que ocorreram várias deturpações nos depoimentos dos acusados e testemunhas, o que demonstra mais uma fragilidade do IPM. (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 134) Fragelli busca utilizar inclusive os depoimentos das testemunhas de acusação para provar que todas foram conseguidas por meio de coação física ou moral – foi o que ocorreu com Sebastião de Oliveira, que depôs contra Enio Cabral, atestando que o mesmo era o responsável pelas atividades subversivas na cidade. 247 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado (IPM, Enio Cabral, fl. 129) Valendo-se desse depoimento e ainda de outro, prestado pelo médico Rudel Trindade, que espontaneamente havia atestado o conhecimento das violências sofridas pelos presos políticos, Fragelli conseguiu provar que o IPM, peça inicial que se transformou em processo-crime, foi fruto de arbitrariedades, com uso de força física com vistas a forjar as confissões, o que, portanto, poderia invalidar seu prosseguimento. Fragelli recorreu também a outros processos movidos contra presos políticos que foram indiciados juntamente com seu cliente e encontrou neles diversos indícios de que ocorreram deturpações nos depoimentos das testemunhas e dos réus com o objetivo claro de conseguir elementos para suas condenações. Um dos exemplos foi o depoimento do Sr. João Pace, que falou sobre outro preso político, Adonis Gonçalves, e viu suas declarações alteradas para incriminar Enio Cabral: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 248 (IPM, Enio Cabral, fl. 130) A negativa em assinar o depoimento foi enaltecida pelo advogado e fundamental para demonstrar que dados eram acrescidos depois pelos militares, para não restarem dúvidas sobre a culpabilidade dos réus. (IPM, Enio Cabral, fl. 130) Até o depoimento do delegado de polícia foi deturpado no IPM e refeito quando de sua oitiva em plenário, afirmará o delegado: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 249 (IPM, Enio Cabral, fl. 130) Nesse mesmo sentido, ocorreram outros casos de manipulação, como foi o caso do tabelião Sr. José Múcio Teixeira, que, tendo prestado declarações que desmentiam as versões incriminatórias contra os acusados, foi informado pela autoridade que conduzia o inquérito de que seu depoimento lhe seria enviado para que pudesse assiná-lo. No entanto, isso nunca ocorreu, demonstrando que o mesmo fora descartado, pois não auxiliaria na condenação dos réus. Tal fato levou José Fragelli a declarar: “Não era a verdade o que interessava apurar – sim colecionar acusações condenatórias” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 130). A partir da demonstração de que os fatos contidos no IPM tinham sido manipulados para que as conclusões nas apurações dos delitos fossem sempre desfavoráveis aos acusados, assim concluía o advogado: (IPM, Enio Cabral, fl. 130) 250 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado A partir desses indícios levantados no processo e com base nas jurisprudências encontradas na teoria do direito, Fragelli consegue invalidar os argumentos presentes no inquérito, abrindo assim caminho para absolvição de seu cliente. Afirma ele sobre o IPM: “Não pode o Juiz formar a sua convicção com essa fonte de prova indevidamente colhida”. Na espécie, podíamos acrescentar: criminosamente colhida. Porque a prova deste I.P.M é fruto de coação e dolo” (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 132). Com esses argumentos de nulidade de competência da justiça militar e da confissão conseguida pelo emprego de métodos violentos, o advogado de defesa solicita ao juiz que o réu possa se retratar das declarações feitas no IPM, uma vez que foram feitas sob pressão e não refletem a verdade. Para tornar inválida a confissão do réu, Fragelli lança mão da jurisprudência apontada pelo jurista Sylos Cintra, que considera sem valor e passíveis de retratação confissões que sejam conseguidas por meio da força. Afirma ele: (IPM, Enio Cabral, fl. 134) Usando a teoria jurídica de Sylos Cintra, argumenta que no caso de Enio Cabral a situação se tornava ainda mais grave, uma vez que o mesmo ficou vários meses incomunicável, sofrendo atos de intimidação. Um dos exemplos do forjamento de provas é transcrito no processo e trata da tentativa do agente militar de comprovar o pagamento de contribuição por parte do acusado ao Partido Comunista. 251 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 134) A partir do trecho acima, percebe-se que a tortura tinha uma função essencial dentro do sistema autoritário implantado em Aquidauana nos idos de 1964. Ela constituía uma ferramenta de interrogatório e controle de presos, visando a obtenção de confissões forçadas ou punição extrajudicial de desobediências, ou seja, antes mesmo do julgamento o réu já pagava fisicamente por seus supostos atos criminosos. Se estabelecermos um comparativo com a sociedade atual, em que muito se fala sobre a implantação de normas mais rígidas para punição de crimes, chegando inclusive a se cogitar a pena de morte, perceberemos que pode ser um resquício da ditadura. Assim sendo, podemos acreditar que para um certo grupo da sociedade, sobretudo no período da ditadura, a tortura e a execução sumária de parcelas não desprezíveis da população, tais como comunistas, guerrilheiros, sindicalistas e agitadores, poderiam ser vistas como punições paralelas “merecidas” pelos suspeitos e condenados. Se encontramos argumentos no seio da população brasileira, que é omissa ou conivente com esses atos, o que dizer da aceitação de uma confissão forjada com vistas à condenação de um comunista e agitador? Muito provavelmente os militares que empreendiam tais atos encontravam respaldo na ideia de que faziam isso em prol de uma causa maior, qual seja: proteger a sociedade da ameaça comunista! Também muito provavelmente esses soldados encontravam respaldo no apoio familiar, pois certamente possuíam mães, pais, esposas e filhos que viviam alheios aos seus atos, ou simplesmente não davam importância a eles, uma vez que eram necessários para proteger a nação brasileira. Se isso for verdade, cabe-nos aqui uma pequena digressão sobre o caráter civilmilitar do golpe de 1964, pois existem ainda muitas perguntas não respondidas sobre como enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 252 a população se portou frente à ditadura. Um trecho de uma reportagem da Carta Maior talvez sintetize algumas de nossas questões: O vizinho do torturador não sabe o que ele fez na ditadura. A filha sabe que ele foi torturador, que ele estuprou? Um dos militares que participou do atentado no Riocentro continua na ativa e ainda por cima é professor (o hoje coronel Wilson Dias Machado). E os médicos que controlavam para os presos não morrerem, quem são eles? Os jovens de hoje, para ter cidadania plena, precisam ter conhecimento disso (CAMPANELLA, Carta Maior, 30/09/2011). Questões como essas são importantes para pensarmos que a maioria dos brasileiros apoiou inicialmente o golpe de 1964 como algo necessário. A resistência foi aumentando aos poucos, mesmo assim muitos cidadãos continuaram a apoiar ou mesmo a fazer “vista grossa” aos acontecimentos. Isso reforça nossa tese, defendida na introdução deste trabalho, de que uma parcela da população não foi tão afetada assim pela ditadura e seguiu sua vida normalmente. A historiadora Catia Faria afirma em sua dissertação: Dentro do país notícias de prisões arbitrárias, tortura e morte dos revolucionários, graças à censura, vazaram muito pouco, tanto que a maioria da população até hoje afirma que “nada sabia”. Porém, se internamente não ocorreram reações mais enfáticas a esses fatos foi por que em 1964, houve apoio de segmentos civis da sociedade ao golpe. A “tão falada” resistência ao regime limitou se a parcelas muito minoritárias. A luta armada nunca despertou simpatias e abertura “lenta, segura e gradual, foi feita por iniciativa do próprio governo, ou seja, de cima para baixo. Este jamais perdeu o controle do processo e mais, imprimiu nele a sua marca (FARIA, 2005, p. 14). Embora concorde com a premissa inicial da referida autora, de que houve apoio de segmentos civis à instalação e manutenção da ditadura, não podemos ser tão maniqueístas; há de se lembrar que ocorreram manifestações contrárias ao golpe desde 1964, a exemplo da passeata dos cem mil, de junho de 1968, que desencadeou a instalação do Ato Institucional número 5, que suspendia as garantias constitucionais em decorrência das pressões internas de parte da população, e ainda das greves de 1978 a 1981, estudadas por Maroni (1983), só para lembrar alguns. Em Aquidauana, localidade pertinente ao nosso estudo, também encontramos o apoio civil de parte da população, como a classe ruralista, que agia com vistas a proteger enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 253 seus interesses. Leite mostra como os fazendeiros foram importantes para a perseguição aos sindicalistas/comunista da cidade: Outro fator importante é a própria natureza da ditadura. Com o poder sob seu quepe, os generais tornaram-se autoridades máximas em todos os cantos do País. De detentores de prestígio sociopolítico, passam a autoridades inquestionáveis em Aquidauana. O controle do Estado legava a esses oficiais a submissão dos poderes judiciário e legislativo. Em Aquidauana, as prisões foram muito bem recebidas pelos fazendeiros locais, a ponto de as principais testemunhas serem constituídas por fazendeiros, membros da velha oligarquia ou pessoas a eles ligados (LEITE, 2009, p. 80). Eudes Leite chama a atenção ainda para o temor que o “espectro comunista” causava na população ruralista local, que se mostrava preocupada com a modificação da estrutura de poder numa eventual revolução: Com a prisão dos membros da esquerda em Aquidauana, deflagrada a investigação por meio dos IPMs, os militares criaram uma situação de terror e temor, de um lado, e, de outro, instalaram a sensação de alívio para os ameaçados com a possível “República Sindicalista” (LEITE, 2009, p. 80). Como vimos, a prisão de Enio Cabral e dos demais sindicalistas/agitadores foi recebida com alívio por uma parte dos cidadãos da cidade, que se omitiu não somente frente à prisão, mas também a todas as torturas sofridas pelos acusados. Empregou-se ali uma cultura do silêncio, do olhar desviado e da omissão; tudo corria bem desde que nada fosse visto, dito ou feito contra o regime ditatorial. As poucas “vozes” que conseguimos encontrar acerca desse período acabaram sendo filtradas pelo viés jurídico, uma vez que se encontram organizadas em IPMs, que certamente limitaram o sentido e abrangência do que foi dito, tanto pelas testemunhas de defesa como de acusação. A sensação de alívio com a instituição desses inquéritos, apontada por Leite, se expressava em um duplo sentido: primeiramente como consolo em ver a “ameaça oculta” contida, e depois pelo fato de que, uma vez identificados os culpados, ninguém mais teria de se envolver na questão, pelos menos até que uma nova caça às bruxas fosse iniciada. É preciso salientar novamente que, com a boa relação de seu advogado, também ruralista, com as principais testemunhas de 254 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado acusação e seus conhecimentos jurídicos, foi possível amenizar o ódio dos inimigos de Enio e refutar cada uma das acusações feitas contra ele. OS DELITOS IMPUTADOS AO RÉU (IPM, Enio Cabral, fl. 134) Com objetivo de desqualificar as denúncias feitas contra seu cliente, Fragelli explicita o artigo 9º da Lei n. 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que diz o seguinte: Para integrar a figura delituosa aí contemplada, são necessários dois requisitos: a. Organizar, ou tentar reorganizar, agremiação político-partidária dissolvida por lei; b. Pô-la em funcionamento efetivo. Posteriormente, lançou mão do sentido etimológico das palavras para demonstrar que reorganizar significa “organizar de novo” e efetivo é “o que tem efeito real”, o que não ficou provado no caso do PCB em Aquidauana, uma vez que a atuação dos comunistas na cidade era bastante restrita, limitando-se às ações de uns poucos militantes, cujo principal representante era Enio Cabral. Fragelli demonstra que nos autos não ficou provado que havia um comitê do partido em funcionamento em Aquidauana. 255 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado (IPM, Enio Cabral, fl. 136-A) A única coisa apurada pelo inquérito era que a célula comunista de Aquidauana foi responsável pela criação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que se reunia na margem esquerda do rio Aquidauana. Fragelli também contesta essa afirmação: (IPM, Enio Cabral, fl. 136-A) Na fala de Fragelli encontramos uma contradição, pois embora estivesse defendendo um comunista, deixava transparecer em seu discurso sua proximidade com a mentalidade ruralista e antijanguista da região, quando imputa à SUPRA e ao governo a criação de vários sindicatos em todo o território rural. A preocupação em apontar a Superintendência de Política Agrária como responsável pela criação dos sindicatos não era exclusiva dos ruralistas de Aquidauana – no país inteiro a classe dos latifundiários se mostrava incomodada com a atuação desse órgão criado no governo Jango. No Brasil inteiro, e principalmente no Mato Grosso, a questão agrária foi um dos pontos polêmicos do governo de João Goulart, envolvendo por motivos diferentes, é claro, enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 256 os partidos, a igreja, os movimentos sociais e toda a opinião pública, que se debruçaram sobre a necessidade de uma reforma agrária que acabasse com os latifúndios e promovesse um desenvolvimento mais equânime. Essa, com certeza, não era uma preocupação infundada, já que Jango criou o Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, que estendia os direitos trabalhistas aos homens do campo. Com a vitória de Jango em 1964, os ruralistas, sobretudo no sul do Mato Grosso, ligaram seus alertas para a iminência de uma reforma agrária que poderia mudar toda a estrutura de poder daquela região. A historiadora Suzana Arakaki, que estudou as representações e memórias da ditadura na cidade de Dourados desde a era Vargas até a implantação da ditadura, afirma que a terra e sua posse sempre foram pontos de disputa, sobretudo no sul do Mato Grosso. Segundo ela: Uma comunidade de proprietários que se formou sob os auspícios do progresso e do desenvolvimento não aceitaria pacificamente a situação. Os conflitos pela posse da terra eram vistos como invasão, atividades subversivas, coisa de comunista. Um passado recente reavivou lembranças sobre o perigo comunizante que significava, sobretudo após a revolução russa de 1917, a perda da liberdade individual e da propriedade privada, principalmente da terra. Tais lembranças passam pelo uso cotidiano da palavra revolução, banalizada pelos grupos rivais matogrossenses que se revezavam no poder, mas também pela passagem da Coluna Prestes na região, em 1924 (ARAKAKI, 2003, p. 34). Frente ao contexto apontado pela autora, seria de se esperar que os líderes que fomentavam as lutas sociais e buscavam mudanças por meio das reformas de base propostas por João Goulart fossem perseguidos pelos ruralistas em diferentes regiões do país. O caso de Enio Cabral foi emblemático nesse sentido, pois creio que ele foi denunciado muito mais por suas atividades sindicais e de defesa da reforma agrária do que por conta de um comunismo que nunca ficou efetivamente provado. Fragelli demonstra, através de um depoimento presente no processo, que em momento algum as testemunhas conseguiram apontar, ou mesmo provar, de forma contundente que houvesse alguma atividade do PCB em Aquidauana. enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 257 (IPM, Enio Cabral, fl. 136-A) No depoimento fica claro que as afirmações feitas não passavam de suposições, portanto não eram passíveis de ser provadas. Além disso, a testemunha em questão afirmava que já havia tido arestas políticas com o acusado, o que já serviria para colocar sob suspeição seu depoimento. No entanto, o advogado expôs quais eram os temas frutos da divergência entre a testemunha e o réu: (IPM, Enio Cabral, fl.136-A) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 258 Na sequência, o advogado argumenta que se a simples defesa desses temas configurasse atos comunistas, poderíamos considerar o gal. Castelo Branco também um agitador seguidor de tal doutrina, pois: (IPM, Enio Cabral, fl. 137) Com esses argumentos, o advogado de defesa consegue desmontar a estratégia da promotoria, provando, portanto, que se não houve reorganização do partido em Aquidauana, não se poderia condenar por tal crime imposto. Dessa forma, conclui Fragelli: (IPM, Enio Cabral, fl. 137) 259 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado A partir do depoimento da testemunha de acusação, Fragelli consegue provar que não havia um comitê do PCB em Aquidauana de forma efetiva e, portanto, em pleno funcionamento. Assim, não havia a menor possibilidade de o réu ter prestado serviços ou feito donativos a essa organização, como se afirmou no referido IPM. Afirma Fragelli: (IPM, Enio Cabral, fl. 137) Fragelli argumenta ainda que, quanto aos serviços prestados por Enio Cabral ao PCB, não é possível especificá-los nem mesmo no IPM, não passando de suposições dos inquiridores que, na prática, nada conseguiram provar. Ou seja, defender uma filosofia de vida que pregue a organização dos trabalhadores no sindicato e a utopia de uma sociedade mais igualitária, como fez Enio, não significava estar a serviço do PCB. Fragelli demonstra ainda, a partir de jurisprudência, que a reunião de ex-partidários na ex-sede do partido extinto, desde que não seja para tratar de temas partidários, não configura crime previsto em lei. (IPM, Enio Cabral, fl. 138) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 260 Além da denúncia de reorganizar o PCB na cidade de Aquidauana, pairavam sobre Enio outras acusações que nunca foram devidamente fundamentadas, algumas baseadas em boatos e outras em testemunhas que admitiram posteriormente que foram forçadas a fazêlas sob coação militar. Destacamos uma, que nos pareceu anedótica, relativa ao cenário religioso que ocorreria no pós-revolução em Aquidauana, conforme destacou Leite: No entanto, a grande indignação tomou forma quando se espalhou o boato de que os comunistas pintariam a igreja matriz de vermelho e a transformariam em um bordel. Seria a sacralização da prostituição? Tal aberração escandalizou a cidade, além de gerar violentos bate-bocas entre os possíveis “pintores” da igreja e os cidadãos assustados com tal possibilidade. Ameaças como essas fizeram com que alguns fazendeiros providenciassem armas para a sua defesa e se tornasse mais tenso, ainda, o clima político de Aquidauana (LEITE, 2009, p. 66). Nas palavras de Leite, creio que encontramos muito mais fundamento para a prisão de Enio Cabral do que numa possível organização comunista que supostamente estivesse atuando. A moral religiosa e ruralista criou uma verdadeira boataria sobre esse personagem político da cidade, baseada mais em suposições do que em ações efetivas, que porventura levariam à reorganização do PCB em Aquidauana. A cada ação sua, mesmo que não lograsse êxito, a cidade se mostrava indignada, como quando, então vereador, Enio apresentou um requerimento, não aprovado, que deveria ser enviado ao presidente da República, parabenizando-o pela sua reaproximação com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Tal fato teve ressonâncias dentro e fora da Câmara Municipal – todos se mostraram preocupados com um ato que não surtiu grandes efeitos para a cidade, mas mesmo assim incomodou bastante. Outra denúncia imputada a Enio era a de fazer publicamente propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política e social, atos que feriam o artigo 11 da Lei n. 1.802 e eram, portanto, passiveis de punição. Sobre esse crime, baseado no testemunho do depoente Sebastião Oliveira, Fragelli consegue provar que as mesmas não expressavam a opinião da testemunha, que teria sido induzida a declarar tal fato com base em acusações feitas por autoridades militares que conduziam o IPM. enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 261 (IPM, Enio Cabral, fl. 139) Acerca dessa acusação, Fragelli aponta que ela não poderia ser levada em consideração, uma vez que foi respaldada em uma única testemunha, cujo depoimento foi tomado sob coação e, portanto, não teria valor probatório algum para o processo em curso. O ESTADO CONTRA A AUTONOMIA DIDÁTICA DE ENIO Uma das questões que nos motivaram a pesquisar as práticas autoritárias em Aquidauana nos anos iniciais da década de 1960 foi a figura de Enio Cabral como educador, que trazia para a atuação pedagógica toda sua visão de mundo e buscava mais do que ensinar, queria mesmo transformar o mundo por meio da educação. Os temas de suas aulas de História do Brasil guardavam sempre relação com os temas mais gerais de seu tempo, tais como a conjuntura nacional e internacional e as revoluções. Eudes Leite (2009) assim se referia a ele: O professor e líder comunista Ênio Cabral é outro nome destacável entre os entrevistados. Sua fala é a de um militante de esquerda convicto e convincente. Com pouca escolaridade, o professor Ênio pode ser considerado um autodidata. Em sua entrevista, demonstra conhecimentos gerais sobre os conceitos mais comuns em 1964, denunciando que suas 27 leituras de cunho marxista eram bastante freqüentes. Embora sua memória apresente algumas falhas, ele narra os fatos com segurança e convicção de que estava correto em 1964. Sua narrativa é rica e envolvente, levandonos a exercitar a imaginação ao ouvi-lo. Faz questão de relembrar 1964 como um acontecimento onde o povo foi traído. Na sua visão os militares assumiram o poder para defender “interesses burgueses e internacionais” (LEITE, 2009, p. 26-27). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 262 Sua atuação em sala de aula foi alvo de diversas controvérsias na Escola Candido Mariano, reduto da elite aquidauanense durante a década de 1960, onde acabou motivando diversas denúncias contra si. Um dos pontos mais interessantes que encontramos nos autos do processo refere-se à acusação de que ele, durante suas aulas, ministrava noções de comunismo a seus alunos, fatos denunciados por seus colegas professores e também por alguns de seus alunos. Na folha 139 do processo, Fragelli faz menção a esse fato, alegando que o mesmo nem sequer configura crime, mas, como fazia parte do IPM, considerava ser necessário demonstrar a improcedência de tais acusações. (IPM, Enio Cabral, fl.139) Embora não configurasse crime contra a segurança nacional, a atuação como professor de Enio Cabral sempre foi alvo de denúncias e boatos intra e extramuros na Escola Candido Mariano, onde lecionou durante os anos iniciais da década de 1960. Vale lembrar aqui que, após sua prisão, ele acaba perdendo o emprego de professor e é obrigado a trabalhar em diversos serviços não relacionados à sua formação. Um de seus colegas, e também diretor da escola, foi um dos denunciantes que alegou: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 263 (IPM, Enio Cabral, fl. 139) Note-se pelo trecho acima que a denúncia da testemunha de acusação baseia-se em “ouvir dizer” e não em situações concretas em que o colega de trabalho tenha realmente apurado algum ato incriminatório contra o professor. Mas é importante destacar que tal testemunha, em outro ponto do IPM, informa aos interrogadores que foi contrário à contratação de Enio Cabral, e que ela só ocorreu na gestão do Sr. Leonardo da Cunha, exdiretor da referida escola. Tal informação comprova a má-fé da testemunha contra o acusado e certamente daria munição ao advogado para contestar suas declarações em juízo. Outro testemunho importante para incriminar Enio como professor subversivo foi o de José Carlos Nery, seu aluno durante o curso cientifico, que informou aos interrogadores o seguinte: (IPM, Enio Cabral, fl. 140) No trecho acima alguns fatos no chamam a atenção. Por exemplo, a ressalva que o aluno faz de que, uma vez terminada a matéria de História do Brasil, o professor aproveitou o tempo para ministrar aulas sobre socialismo e religião, o que de certa forma atenua sua denúncia. 264 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Fragelli, durante o processo-crime, utiliza sua astúcia para fazer com que os depoentes caiam em contradição sobre as acusações e eles acabam revendo suas declarações, como é possível perceber nos trechos que destacamos a abaixo: (IPM, Enio Cabral, fl. 140) Após ter declarado, supostamente sob coação, que Enio Cabral tratava de conteúdos relativos ao comunismo na sala de aula, o professor Carneiro procura se retratar no processo judicial, afirmando que não eram verdadeiras as acusações que lhe foram atribuídas no IPM. José Carlos Nery também se retrata no processo judicial e aponta que, embora o professor Enio apresentasse sua interpretação sobre a história do Brasil, isso não impedia que os alunos pudessem manifestar suas opiniões próprias. (IPM, Enio Cabral, fl. 140) 265 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Fragelli, aproveitando desses depoimentos, demonstra que a Lei n. 1.802, na qual se baseava a denúncia contra Enio, não dizia nada a respeito de discutir temas pertinentes à política ou mesmo relativas ao comunismo e ao socialismo, e ainda argumenta que estes eram assuntos pertinentes à matéria de História, como se depreende do trecho abaixo: (IPM, Enio Cabral, fl. 140) A Historiadora Suzana Arakaki (2003) também trata da perseguição a professores no centro pedagógico de Dourados. De acordo com ela, o professor Biasotto foi um dos protagonistas do movimento de resistência ao regime em Dourados. O caso envolvendo os professores do Centro Pedagógico de Dourados – CPD, em 1978, é um exemplo do mandonismo que se estabeleceu nos órgãos públicos em várias partes do país. Segundo ela, havia situações em que rivalidades pessoais e políticas eram motivo suficiente para perseguições e demissões. O que estava em xeque, tanto no caso de Enio Cabral como no retratado por Arakaki, era a questão da autonomia dos professores em contextos autoritários. Assim, a escola impunha à pratica de seus professores e a seus alunos um tipo de conteúdo e de aula que fosse favorável à conjuntura autoritária imposta pelo militarismo. Enio Cabral, assim como os demais professores perseguidos, buscava uma autonomia pedagógica que lhe permitisse construir uma educação transformadora, capaz de mudar o contexto social em que vivia. Provavelmente esse foi um dos motivos de seu confronto com a nova ordem autoritária estabelecida pós-1964. O período entre 1964 a 1985 foi uma época marcada pela intervenção militar, pela burocratização do ensino público, por teorias e métodos pedagógicos que buscavam restringir a autonomia de educadores e educandos, reprimindo, inclusive através da violência, qualquer enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 266 movimento que se caracterizasse barreira para o pleno desenvolvimento dos ideais do regime político vigente, conduzindo o sistema de instrução brasileiro a uma submissão aos ditames da política centralizada e tecnocrática adotada pelo regime militar até o momento, inigualável (HAMMEL & COSTA, 2011, p. 2). As represálias contra Enio certamente se enquadravam na burocratização do ensino, pois o que incomodava os demais colegas da escola, e principalmente os pais de alunos, não eram exatamente os temas tratados nas aulas de história, mas sim a influência que estas reflexões poderiam causar nos futuros cidadãos, que poderiam começar a questionar a conjuntura em que viviam. Nesse sentido, Enio Cabral se chocava com a concepção de educação daquele período, que considerava a educação sinônimo de controle social. No texto Os românticos, Thompson (2002) tece críticas à concepção liberal de educação, entendida pelos educadores partidários do capitalismo como a única capaz de produzir uma relação de interação entre professores e alunos. Thompson discorda totalmente dessa ideia. Afirma ele: Toda educação que faz jus a esse nome envolve a relação de mutualidade, uma dialética, e nenhum educador que se preze pensa no material a seu dispor como uma turma de passivos recipientes de educação (THOMPSON, 2002, p. 13). A partir do conceito de experiência, o historiador britânico consegue sintetizar com maestria a singularidade da educação, mostrando que ela, a experiência, modifica sutilmente, e às vezes radicalmente, todo o processo educacional, influenciando os métodos de ensino, a seleção e o aperfeiçoamento dos mestres e o currículo, podendo até mesmo revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas acadêmicas tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo (THOMPSON, 2002). Thompson realiza ainda uma profunda crítica ao sistema liberal de educação a partir do discurso de um inspetor-chefe de escolas inglesas chamado Edmond Holmes, lançado em 1911, no qual condena o sistema de Código Revisto (pagamento por resultados), que funcionou até 1897 e buscava dominar a criança e matar sua criatividade. Thompson afirma que somente quando a vontade estivesse anulada e “ela tivesse sido reduzida a um estado de servidão mental e moral, chegava a hora de o sistema de educação, através da obediência mecânica, ser-lhe aplicado com todo rigor” (THOMPSON, 2002, p. 35). 267 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Para o autor, os educadores da classe média tinham atitudes em relação à classe social, à cultura popular e à educação que não distinguiam o trabalho educacional do controle social e impunham com frequência uma repressão à validade da experiência da vida dos alunos ou sua própria negação. Enio Cabral, ao contrário de seus colegas, buscava partir da experiência dos alunos, no sentido de problematizá-las, questionando as normas e os valores presentes naquela sociedade com o objetivo de conscientizá-los. Um exemplo disso é o depoimento de um pai de aluno, Sr. Eustorgio de Andrade Brito, que afirmou ter ouvido de suas filhas que o acusado pregava o regime comunista em aula, negava a existência de Deus e que, além disso, incitava o uso da violência contra os militares. O advogado Fragelli considera que tal depoimento não poderia ser considerado pelo simples fato de se tratar de algo que se “ouviu dizer” e, além disso, porque era contrariado pelos outros dois depoentes que haviam retratado suas declarações constantes nos autos do processo judicial. Fragelli afirmava que: (IPM, Enio Cabral, fl. 141) Enio Cabral foi acusado ainda de, por meio de suas aulas, incitar a violência contra o Estado, ficando, portanto, enquadrado na Lei de Segurança Nacional. (IPM, Enio Cabral, fl. 141) O referido artigo previa o seguinte: “Art. 12. Incitar diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência. Pena: reclusão de 6 meses a 2 anos”. 268 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado Assim, podemos perceber que o intuito do depoente, ao acusar Enio Cabral de tal incitação, era retirar o mesmo da sala de aula, do ambiente escolar, por encontrar perigo nas palavras do professor. O que se vê, portanto, é uma disputa ideológica que, levada às últimas consequências em um período de forte instabilidade no país, se expressa na delação. Tal estratégia já foi noticiada nas terras brasileiras desde os tempos coloniais, quando, mesmo sem qualquer prova, denunciavam-se indivíduos às visitações do Santo Ofício para se verem livres de desafetos ou de concorrentes. Tal prática, infelizmente tão comum na vigência da ditadura militar brasileira, foi abordada por Magalhães (1997), que afirma: Aos olhos do informante, a delação mais preciosa é a de um verdadeiro comunista. Quando isto ocorre, ele descreve suas informações de forma extremamente minuciosa, seja para comprovar a veracidade de seu informe, seja para deixar clara a importância de sua descoberta (MAGALHÃES, 1997, p. 09). Enio Cabral era, assim, uma importante personagem a ser delatada, um comunista verdadeiro a ser retirado da sociedade e que poderia servir para o ingresso do delator aos círculos de poder ou torná-lo “bem-visto” para a sociedade conservadora na qual ambos estavam incluídos. Entretanto, Fragelli se contraporia a este depoimento, desqualificando-o, já que não se conseguiu provar. (IPM, Enio Cabral, fl. 141) Um fato que corrobora para que nada de objetivo fosse provado contra Enio no que se refere à incitação direta do uso da violência contra o Estado ou mesmo contra a sociedade aquidauanense era o fato de o mesmo não se encontrar na cidade à época do golpe, conforme depoimentos constantes no IPM e utilizados por Fragelli na defesa do acusado: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 269 (IPM, Enio Cabral, fl. 142) Notamos, novamente, o caráter contraditório, marcadamente conservador, da posição de Fragelli, que reputa os acontecimentos tumultuados de 1964 ao presidente da República e a seu comício de 13 de março de 1964 na estação Central do Brasil, explicitando sua proximidade ideológica com os indivíduos que acusavam Enio Cabral. Cabe lembrar que João Goulart era herdeiro político de Getúlio Vargas, tendo sido seu ministro do trabalho, indústria e comércio entre os anos de 1953 e 1954, com quem comungava das ideias nacionalistas e reformistas que despertaram, mesmo antes de sua chegada ao poder, em 8 de setembro de 1961, a fúria e a desconfiança da elite das forças armadas, das elites econômicas e de parte da classe média, temerosas de perder seus privilégios. Jango sabia que somente com a ajuda das camadas populares (trabalhadores, estudantes, sindicalistas, dentre outros) poderia dar prosseguimento às reformas que se encontravam bloqueadas no Congresso Nacional. Entretanto, como conhecemos o desenrolar dessa crise, sabemos que Goulart seria deposto por essas forças reacionárias em 1º de abril de 1964, num golpe que colocou fim ao curto período de democracia vivido a partir de 1945 no Brasil. Enio Cabral, assim como outros cidadãos brasileiros daquele período, comungava das ideias de João Goulart e acreditava que as reformas empreendidas por ele poderiam finalmente abrir o caminho para o surgimento do comunismo no país. Como afirmei anteriormente, entendo Enio Cabral como um comunista utópico, no sentido que atribui à utopia o filósofo Herbert Marcuse, ou seja, como algo que se encontra no vir-a-ser, na iminência de se realizar. Talvez, mesmo tendo se filiado ao Partido Comunista aos 27 anos de idade e observado a cassação do partido em 1947, Enio ainda continuasse acreditando 270 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado nas ideias de uma sociedade mais justa, mesmo que sem exercer atividades no partido (provavelmente, dada sua ilegalidade), conforme o trecho destacado abaixo: (IPM, Enio Cabral, fl. 142) Um dos pontos de atrito de Enio Cabral, um intelectual marxista, com a sociedade aquidauanense referia-se à sua visão de mundo, construída a partir de um repertório de leituras que era incomum para aquela sociedade. Como já apontamos no início deste trabalho, Enio possuía uma vasta biblioteca de obras marxistas, que inevitavelmente o levaria a acreditar na possibilidade de mudanças sociais que pudessem alterar as relações de poder, tanto em Aquidauana como no restante do país. No entanto, não há de se subestimar suas leituras, como se elas fossem apenas apologéticas à teoria marxista, já que em sua biblioteca se encontravam várias obras críticas em relação à deturpação das ideias de Lenin e Marx. (IPM, Enio Cabral, fl. 142) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 271 No trecho acima podemos perceber que Fragelli consegue captar que o “único crime” cometido por Enio foi se contrapor à ideologia dominante a partir da teoria marxista, não devendo ser condenado por possuir uma opinião divergente de parte daquela sociedade. E é por esse motivo que pede ao juiz sua absolvição dos crimes que nunca ficaram provados. (IPM, Enio Cabral, fl. 142) DAS ALEGAÇÕES DO JUIZ O processo contra Enio Cabral foi instaurado com base em inquérito policial militar determinado pelo comandante do 9º Batalhão de Engenharia de Combate e em denúncia do promotor de justiça da Comarca de Aquidauana. Foram ouvidas as testemunhas e realizadas as considerações de acusação e defesa; cabia, então, em novembro de 1964, remeter os autos conclusos ao juiz de Direito Heliophar Serra, que tornou pública sua decisão dois meses depois, aos 23 dias de janeiro de 1965. Antes, porém, de discutir a sentença, cabe esmiuçar um ponto: a figura do juiz em questão, que em depoimento dado ao historiador Eudes Fernandes Leite intitulava-se como um juiz aberto à comunidade e que tinha relações de proximidade com vários dos acusados no IPM. Assim se referia ele às prisões ocorridas: É. Quando das prisões, efetuadas pelas autoridades militares 90% eram pessoas conhecidas e alguns bons amigos. Foi preso aqui, aliás foi por meu intermédio, eu não quis que ele sofresse vexame de sai escoltado para o quartel. E atendendo à solicitação do coronel Wilson de Freitas eu procurei esse advogado, Dr. Brito, que havia sido juiz em Porto Murtinho – Juiz de direito – era o juiz de Direito na ocasião. E convidei eu o levei até o quartel foi preso, não tinha nada de comunista. É preso também Enio de Castro, Antonio Ramon Gonçalves – era um cidadão da mais alta enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 272 honestidade, filiado ao PTB, fã ardoroso de Getúlio Vargas, tinha uma pessoa... um escritório de contabilidade em Aquidauana, o maior escritório, cidadão pacífico, foi preso como comunista, ele é o pai da Arlene, casada com Dr. Rudel Trindade hoje ministro do Tribunal de Contas (Depoimento de Heliophar Serra a Eudes Fernando Leite, 1993, p 4). O juiz de direito apresenta inicialmente uma síntese das acusações constantes do IPM e da denúncia organizada em quatro itens, que transcrevemos de forma sintetizada:  Tentativa de reorganização do extinto PCB.  Contribuição favorável a entidades ilegais, como o PCB.  Propaganda da ordem política e social.  Incitação da classe social a luta pela violência. O juiz segue reunindo enxertos das provas testemunhais, especialmente aquelas oferecidas pela defesa. Aqui cumpre apontar para a natureza dessas testemunhas (Claudemiro Nunes da Cunha, João Jorge Carneiro, José Carlos Nery Sebastião de Oliveira, Eustorgio de Andrade Brito, Antônio Pace, Carlos Moacyr da Conceição, Arsênio Serrou Camy, Fernando Luiz A. Ribeiro, Antônio Guerra, Nilo Pereira da Rocha, Luciano Gonçalves, Lauriano da Silva, Roberto Scaff, Manoel Aureliano da C. Filho), tratando-se, em sua maioria, de integrantes da elite agrária aquidauanense, constando entre eles diretor de escola, prefeito, proprietário rural, estudante, delegado de polícia, fazendeiros, comerciantes, professor e funcionário público, dentre outros, o que explica aspectos de seus depoimentos, como o fato de a maioria demonstrar seu descontentamento com o acusado, muito menos pelo fato de o mesmo ser comunista do que por ser favorável a reforma agrária. A compreensão do juiz de direito pode ser analisada da seguinte maneira: Em primeiro lugar a desqualificação do inquérito, haja visto o emprego de tortura e ameaça no interrogatório do acusado e na oitiva das testemunhas, conforme confirmado nas alegações finais da promotoria. Parto, repito, do digno representante do Ministério Público haver praticamente pedido a absolvição do acusado, depois de acentuar que “a peça informativa militar e o sumário se afastarem tanto que de um a outro não escuta” eco da verdade real que é o mister prejuízo da justiça; “ o enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 273 acusado nega a confissão que soltou no IPM, e sustenta que ele” foi produto dos maus tratos que recebeu durante o interrogatório. Testemunhas reafirmam a circunstância que macula uma confissão. “E nos processos da mesma natureza que o presente, que se descortinaram perante a justiça da Comarca, as afirmações se repetiram”.” E interroga a promotoria: “ Teria a confissão inserta no I.P.M. valor jurídico? (sic) (Heliophar Serra. Sentença. IPM. Enio de Castro Cabral, fl. 152-B). Em que se pese o momento histórico em que a sentença foi proferida, esse juiz não fugiu da necessidade premente de, reportando-se às peças legais brasileiras e à jurisprudência, condenar veemente a tortura, que posteriormente se tornaria uma das piores lembranças do regime autoritário instalado naquele ano e encerrado duas décadas depois. Para atenuar o caso de Enio Cabral, o juiz lança mão de um acórdão do tribunal de São Paulo. Diz ele: A decisão do ilustre e letrado juiz Azevedo Franceschini – uma das raras que encontramos sobre a espécie – vem demonstrar, limpidamente, que a confissão do acusado no I.P.M. não pode gerar o efeito jurídico aos quais uma acusação conscienciosa se apegue (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 152-B). Para embasar sua sentença, o juiz cita ainda outros processualistas que apontam que a confissão mediante tortura não pode se levada em conta para a condenação do réu. Um deles é Irineu Lima, para quem Limitações várias, decorrentes dos princípios constitucionais de proteção e garantia a pessoa humana, impedem que para a procura da verdade lance-se mão de meios condenáveis e iníquos de investigação e prova, além de outras fundadas em superstições, crendices as práticas não consagradas pela ciência processual (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 153). Outro motivo fundamental para atenuar a situação jurídica de Enio Cabral foi o entendimento de que confissões obtidas por meio do uso da violência poderiam ser retratadas em juízo, conforme orientação do Código Penal Brasileiro. Em sua sentença, Heliophar Serra afirma ainda que o artigo 183 do Código de Justiça Militar proibia o uso da violência contra os investigados. Esse argumento, embora surtisse efeito no referido processo, era revestido de um caráter retórico, pois os militares quase sempre não enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 274 respeitavam os limites da legalidade em suas ações, ignorando as leis vigentes no país e fora dele, alegando sempre o estado de exceção. No texto intitulado “Bagulhão”: a voz dos presos políticos contra os torturadores, documento de 1975 que foi a primeira denúncia pública contra os agentes da ditadura militar, publicado pela Carta Capital, encontramos relatos de que a prisão de militantes jamais seguiu as formalidades legais. A prisão de nenhum de nós se revestiu das mínimas formalidades legais. A determinação de que ninguém será preso se não em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade competente (art.153, § 12 da Constituição em vigor e art. 221 do Código de Processo Penal Militar) é letra morta da qual não fazem uso os chamados órgãos de segurança. Todos nós fomos sequestrados, muitos em plena via pública, por bandos de homens armados, sem nenhum mandado judicial e que não poucas vezes desferiram tiros à queima-roupa, causando-nos ferimentos e ferindo transeuntes (há vários casos de outros presos políticos em cuja prisão ocorreram mortes de pessoas atingidas pelos policiais). Outras vezes nossas casas foram invadidas, seja de dia ou em altas horas da noite, as portas arrombadas, bens roubados, e sofremos espancamentos em nossos próprios lares na presença da esposa, de filhos, pais ou vizinhos; algemados, e muitas vezes amarrados, fomos conduzidos sob capuz para lugar ignorado. Muitos de nós tivemos parentes presos que passaram pelas mesmas vicissitudes. Crianças que presenciaram torturas, quando não as sofreram diretamente; mães ameaçadas, esposas posteriormente processadas, tudo isso apenas por serem nossos familiares (BECKER et al, 2014, p. 33). Em segundo lugar, para o juiz de direito as testemunhas não confirmam a acusação; assim, acolhe o argumento de Fragelli de que não seria próprio para a instituição judiciária condenar qualquer indivíduo em suposições tais como: “ouvi dizer que”. Para além, Heliophar lista os trechos dos depoentes em que a tônica é: “que não tem conhecimento de que o acusado cometeu tais crimes”: A 1ª testemunha de acusação- Professor João Jorge Carneiro- declarou em juízo, as 96: “Que não tem conhecimento de que o acusado haja pregado em público processo violentos de reforma da reforma agrária do Brasil, disso tem conhecimento penas indiretamente: - ouvi dizer que o acusado era comunista, e quando se fala que um individuo é comunista se subentende que o elemento é subversivo, ... que não ache, nem ouviu dizer que o acusado é filiado ao Partido Comunista; que ignora que o acusado ajudou com serviços ou donativos ao Partido Comunista (sic) (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 156). enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 275 Outro importante aspecto a ser considerado é aquele que se refere às suas aulas sobre o comunismo e a revolução. O juiz astutamente atenta que, além da ausência de provas quanto ao fato, não há na Lei de Segurança do Estado brasileiro nenhum dispositivo que ampare a denúncia, razão pela qual seria impossível condená-lo. Assim ele se refere a questão: Relativamente ao fato de o acusado, como professor do Colégio Estadual Cândido Mariano , haver ministrado aulas aos seus alunos sobre comunismo- o que aliás, não foi questionado na denuncia e não se empenha em nenhum dispositivo da lei de segurança do Estado (sic) (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 156). Finalmente, baseado no direito constitucional brasileiro e na jurisprudência disponível, afirma o juiz não ser crime um homem publicar e professar o que entenda por arte, religião, ciência ou técnica. Ou seja, ele compreendia que Enio Cabral exercia um direito constitucional ao se declarar e atuar como um comunista. O acusado Enio de Castro Cabral é comunista. Não o nega nem no truculento I.P.M., nem em juízo, e poderia livremente continuar a sê-lo na plenitude do que lhe assegure expressamente a nossa Constituição Federal, no seu artigo 141, paragrafo 8º- Em matéria impessoal afirma o interprete Sampaio Dória – a liberdade de pensamento é sem limites. Pode o homem publicar e professar o que entenda por ciência, arte, religião técnica, seja no que for, não há delito de opinião. Nada justifica perseguição política, por ser alguém ateu ou crente, republicano ou monarquista, governista ou oposicionista, capitalista ou comunista (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 155-B). Vale ressaltar que, antecedendo a parte final do rito da sentença, Heliophar Serra abre espaço para elogiar a inteligência de José Fragelli, defensor de Enio, “Lider político da U.D.N e cujo trabalho nesses autos, merece o louvor desse juízo, pelo esforço dignificante, pela honestidade e retidão” (Heliophar Serra. Sentença. IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 155-B). Como argumentei anteriormente, nos idos de 1964 o advogado já possuía uma longa carreira na política, tendo sido deputado constituinte em 1947, estadual de 1947 a 1950 e federal de 1955 a 1959. Era membro da elite agrária da região de Aquidauana e, por esse motivo, transitava bem pelo cenário político e judiciário regional. Portanto, não nos causa estranheza a deferência com que foi tratado pelo juiz nesse caso. Em decorrência da 276 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado consideração que tinha pela trajetória jurídica e política do advogado, e ainda pelos motivos que o mesmo expôs e transcrevemos acima, ele absolve Enio Cabral. (IPM, Enio Cabral, fl. 158-B) O RECURSO DA PROMOTORIA E DECISÃO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O caso de Enio Cabral, que parecia ter um desfecho final e favorável no ano de 1965, se arrastaria ainda até o ano de 1985, em face da apelação da promotoria pública, cujo promotor responsável, Vicente Paschoal Junior, havia sido substituído por Herminio B. de Azeredo, que não concordou com a decisão do juiz e de seu antecessor. Por esse motivo recorreu ao Supremo Tribunal Federal, conforme o termo de apelação que apresentamos a abaixo: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 277 (IPM, Enio Cabral, fl. 160) O promotor de justiça apresenta os seguintes argumentos para apelar da sentença proferida pelo juiz: 1. Que o juiz, considerando truculento o IPM produzido pela autoridade militar, descartou as provas dele constantes; 2. Que não acredita que as provas tenham sido forjadas, uma vez que outro indiciado no mesmo processo foi absolvido, após o inquérito procedido pela autoridade militar; 278 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 3. Que pelo fato de que, mesmo provadas as sevícias contra o acusado, não haveria razão para absolvê-lo, mas sim para que o juiz punisse os responsáveis pelos maus tratos; 4. Que a inércia do Ministério Público, comprovada no processo que deixou mal a acusação, praticamente pediu a absolvição do acusado; 5. Que pelo fato de o acusado divulgar suas ideias comunistas em sala de aula, conforme o testemunho de Eustorgio de Andrade Brito, que declarou “que suas filhas também afirmaram que o acusado pregava o regime comunista em aula” e ainda pela comprovação de tal fato pelo depoimento de Jose Carlos Nery, solicitava a reforma da sentença provida pelo Juiz. (IPM, Enio Cabral, fl. 165) Além do resumo dos argumentos do promotor de justiça que recorreu da sentença, algumas de suas declarações no termo de apelação merecem destaque, pois demonstram sua convicção em relação à nova ordem vigente a partir de 1964, o que o levava a não ter dúvidas de que o acusado deveria ser condenado pelos supostos crimes cometidos, mesmo com a precariedade das provas. Em muitos momentos ele minimiza os atos de tortura e manipulações ocorridas no IPM. Sobre as torturas sofridas pelo acusado, ele declara: 279 enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado (IPM, Enio Cabral, fl. 162) Em outro trecho afirma ele: “Isso vem provar, mais uma vez, que o diabo não tão feio como se pinta (sic)”... (IPM, Enio de Castro Cabral, fl. 162). No trecho abaixo, o promotor resumia toda a sua aversão à conduta de Enio Cabral e, portanto, esclarecia as razões pelas quais lutava pela sua condenação. (IPM, Enio Cabral, fl. 164) Em que se pese a demora na decisão do caso na última instância da justiça brasileira, que só ocorreu em março de 1967, o pleno do Supremo Tribunal Federal negou por unanimidade o recurso da promotoria pública, com voto do relator Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, conforme decisão que apresentamos na sequência: enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 280 (IPM Enio Cabral, fl. 193) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 281 O ministro Gonçalves de Oliveira inicia seu voto acerca do caso de Enio Cabral justificando que a sentença era muito longa e que, portanto, apenas exporia os delitos que foram imputados ao acusado para posteriormente manifestar sua decisão. Assim expunha as razões de seu voto: Conforme consta nos autos, as atividades atribuídas ao recorrido não provam os atos delituosos; O próprio ministério público admite que o acusado foi vítima de sevícias no inquérito. Portanto, nego o provimento do recurso fundamentando-me na sentença proferida pelo Juiz. (IPM, ENIO CABRAL, Folha.193) Apesar de a decisão do Supremo Tribunal Federal ter sido dada no ano de 1967, os autos do processo, pela morosidade da justiça, só foram encerrados em fevereiro de 1986, com a entrega da carteirinha de filiação ao PCB de Enio Cabral, como mostra o documento abaixo. (IPM Enio Cabral, fl. 197) enio cabral e seus embates com os aparelhos repressivos do estado 282 Enio Cabral, mesmo não tendo cometido nenhum crime que pudesse ser provado, teve sua vida transfigurada pela ditadura durante todo o período de sua vigência. Sua história nos lembra a do moleiro Doménico Scandela, queimado pela inquisição no século XVI na Itália. Para lembrar sua história, fazemos nossas as palavras de Renato Janine Ribeiro no posfácio da obra O queijo e o vermes, de Carlo Ginzburg: “Suas palavras são um protesto, são a recusa desse horror. Sua curiosidade, opiniões e destino fazem dele um desses homens para quem dizer o que pensam é tão importante que, por isso, arriscam a própria vida. Nem toda confissão é uma vitória da tortura; porque às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”. (RIBEIRO, 2006, p. 241) Eu sou um comunista hormonal, meu corpo contém hormônios que fazem crescer minha barba e outros que me tornam um comunista. Mudar, pra quê? Eu ficaria envergonhado, eu não quero me tornar outra pessoa. José Saramago considerações finais considerações finais 284 A o longo da tese investigamos a trajetória do professor catedrático de História Enio Cabral por meio de Inquérito Policial Militar que lhe foi impetrado no ano de 1964, com vistas a compreender como suas ideias de esquerda e sua atuação nos quadros políticos do PCB geraram atritos com a elite agrária da cidade de Aquidauana, que, em função de sua tradição mandonista, expressou seu apoio à ditadura desde os momentos iniciais do golpe. Ao lado disso, buscou-se compreender como o regime, por meio do aparato militar, representado pelo 9º Batalhão de Engenharia de Combate, se estruturou no estado e em Aquidauana, impondo um clima de medo, coerção e, de certa forma controlou a memória produzida pela população local, que nos momentos iniciais de nossa pesquisa afirmava que ali o cotidiano não mudou muito após o golpe de 1964. No entanto, a partir dos IPMs promovidos pelo 9º BEC, encontramos mais de 15 cidadãos que foram presos ou mesmo torturados durante o regime, gerando sequelas não só nos próprios investigados, mas também em outros sujeitos que com eles se relacionavam, tais como familiares e amigos. Durante a pesquisa, pudemos constatar também que existe atualmente uma vasta produção acadêmica sobre a ditadura e o golpe no Brasil, no entanto ainda concentrada no eixo Rio-São Paulo, sendo incipiente fora destes grandes centros. Esse cenário evidencia que a produção das pesquisas e da memória sobre o tema não é imparcial e se insere numa disputa politico-ideológica em torno da memória pública acerca do assunto. considerações finais 285 Dessa forma percebe-se, como destacou Hobsbawm, que a história tem um sentido político e pode assumir tanto um caminho de conservação como de desconstrução de uma memória pública, conforme os interesses dos grupos que a requisitam e a mobilizam. Em 2014, em função dos 50 anos do golpe, observamos um intenso debate em torno do assunto, que foi retomado por diversos pesquisadores, políticos e militares a partir de diferentes olhares, que permitiram uma reflexão da sociedade acerca desse acontecimento traumático de nossa história. Diversos intelectuais, entre eles historiadores, sociólogos, educadores, diretores e artistas, dentre outros, procuraram reavivar o trauma vivido pela sociedade brasileira, demonstrando as atrocidades perpetradas pelos militares. Dentre os estudos acadêmicos encontramos uma profusão de obras que apontam as atrocidades do regime, mas nos limites dessa reflexão apresentaremos apenas algumas das que foram lançadas mais recentemente, principalmente na área de história, por autores como Carlos Fico (2001), Rodrigo Pato Sá Motta (2002), Elio Gaspari (2003), Marcelo Ridenti (2000), Daniel Arão Reis (2004), Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2007), Beatriz Kushnir (2004), dentre outros. Apesar da vasta produção, evidenciou-se também uma lacuna na historiografia em relação ao tema nas regiões que se encontram fora desse eixo, bem como seus desdobramentos no campo educacional, o que demonstrou a necessidade de um aprofundamento do assunto nessas áreas mais distantes do país, na tentativa de fornecer uma contribuição capaz de melhorar a formulação de uma síntese histórica. Pensar o contexto de Aquidauana, pequena cidade do sul do Mato Grosso, local onde a ditadura e o anticomunismo foram também bastante fortes, nos pareceu fundamental com o objetivo de ampliarmos o debate acerca da repercussão da ditadura fora do eixo Rio-São Paulo. Ao longo da investigação, pudemos constatar que na referida cidade as acusações contra os comunistas se deram da mesma forma que ocorreram no restante do país, na maioria das vezes sem provas concretas, levantadas a partir de denúncias de adversários políticos ou mesmo de ruralistas preocupados com as disputas de terra, como ocorreu no caso do professor Enio Cabral, processado por crime contra a segurança nacional e atos comunistas sem provas contundentes, conforme aponta o estudo de Eudes Fernando Leite (2009), que teve como foco os mecanismos utilizados pelos militares para reprimir a utopia comunista que se fazia presente na cidade no período pré e pós-1964, momento em que considerações finais 286 alguns sujeitos ligados ao PCB acreditavam que a chegada de João Goulart ao poder permitiria a realização das tão sonhadas reformas de base. Partindo do contexto de Aquidauana, foi possível descortinar as ações autoritárias e a violência empregada, primeiramente pelos coronéis e posteriormente pelos militares, que ali muitas vezes desempenharam o papel ordenador que deveria competir ao Estado, subordinando as demais classes. Constamos ainda que após o golpe a situação de animosidade que já existia entre “os donos da cidade” e os trabalhadores se acirrou ainda mais, já que estes, incentivados pelas propostas janguistas de reformas de base, acreditaram que finalmente poderiam ter uma vida mais justa e começaram a se organizar para exigir seus direitos. Um dos exemplos dessas ações foram as famosas reuniões domingueiras que ocorriam no Bar São Paulo, situado à margem esquerda do rio Aquidauana. Diante de tal contexto, os ruralistas se mostravam preocupados com a possibilidade de uma revolução e passaram a ficar atentos a qualquer manifestação pública que poderia significar o início de uma atividade subversiva. Uma simples aglomeração em locais abertos ou fechados despertava o medo dos produtores rurais e dos militares, que consideravam uma ação coletiva, por mais simples que fosse, como o estopim da revolução. Como é possível inferir a partir da obra de Leite (2009), as ações repressivas em Aquidauana dirigiram-se aos mesmos grupos historicamente perseguidos no restante do país, assim como os instrumentos utilizados, já que aqui os inquéritos policiais, as prisões arbitrárias e a violência foram utilizadas em larga escala para conter a possibilidade de mudança, que parecia estar em curso naquele momento inicial dos anos 1960, mas que não se realizou, pois, como advertiu Leite, ali “as ações dos atores dão-se mais como exercício de cidadania, mesclada à utopia do novo-melhor, do que como atividade política mais elaborada” (LEITE, 2009, p. 15). Outro autor que nos foi importante para pensar a situação dos professores no contexto da ditadura militar na região sul do Mato Grosso foi Altemir Dalpiaz (2008), que procurou compreender a construção da identidade cultural dos professores de Campo Grande durante o regime militar. Inspirando-se nos estudos culturais, buscou, a partir das histórias relatadas, entender como o contexto autoritário da ditadura influenciou o trabalho deles naquele período. considerações finais 287 A pesquisa de Dalpiaz adquire uma grande importância na medida em que trata de um tema ainda pouco discutido pela historiografia produzida no Mato Grosso do Sul. O autor tem ainda o mérito de apontar algumas marcas produzidas pelo contexto repressivo nos entrevistados, advertindo que o medo estava sempre presente em suas falas. Demonstra também a astúcia utilizada pelos professores para driblar a censura e os censores, inclusive no espaço privado dos encontros clandestinos, e a sensação de estar sendo vigiado (também em sala de aula), nas leituras de jornais “marginais”, na sintonia para ouvir rádios estrangeiras, de modo que construíram jeitos de ser e viver (identidades), articulados com os interesses (coletivos e particulares) e com as necessidades para “conviver” com a situação que lhes era contrária (DALPIAZ, 2008). Um dos pontos importantes no trabalho de Dalpiaz é o de mostrar que a construção da identidade do professor deu-se de múltiplas formas, inclusive pelo viés da resistência. De acordo com ele, eles se articulavam sobretudo nos sindicatos, com o objetivo de alcançar conquistas para a categoria ou para determinado partido político. Além disso, procuravam resistir, em função de seus sentimentos éticos e morais para com a sociedade em que viviam. Como pudemos depreender, em que se pese encontrarmos uma vasta produção acadêmica e cultural acerca da ditadura militar, esses trabalhos ainda se encontram concentrados no eixo Rio-São Paulo. Nesse sentido, a tese que ora apresentamos, somada aos demais trabalhos focados no sul do Estado do Mato Grosso que arrolamos anteriormente, cumprem um importante papel como contribuições para preencher a lacuna existente acerca de tal período nessas regiões. Esses trabalhos adquirem maior importância ainda por tratarem de um período, como apontou Vasconcelos, “cujas memórias foram silenciadas, sufocadas, reprimidas pela memória pública construída em torno do tema e para as quais as fontes oficiais ou são raras, ou não estão disponíveis à pesquisa” (Vasconcelos, 2009, p. 80). O silêncio ou o controle da memória pública acerca da ditadura militar, lembrado por Vasconcelos, foi presença constante em nossa trajetória de pesquisa e nos inquietou fortemente, na medida em que, a partir do caso do professor comunista Enio Cabral, pudemos compreender que estávamos diante não de um caso singular, pitoresco, à moda da micro-história, mas sim de um acontecimento, processo/fato histórico, imerso na disputa considerações finais 288 entre dois sistemas econômico-sociais que dividiram o mundo desde o período da instalação da guerra fria – capitalismo e comunismo – numa luta pela hegemonia. Nesse sentido, o texto de Williams (2005), Base e superestrutura, foi primordial para compreendermos como os atritos entre ruralistas e os comunistas que se organizavam em torno do professor Enio Cabral se inseriam no contexto nacional e internacional, uma vez que tais sujeitos sociais expressavam dois projetos antagônicos que dividiram o mundo a partir do final da segunda guerra mundial e que se evidenciaram nos diversos conflitos motivados pela guerra fria, a exemplo do caso do Vietnã e da Coreia. Os ruralistas e os comunistas de Aquidauana em verdade defendiam projetos de sociedade e visões de mundo diferentes e que, portanto, deveriam ser apresentadas e defendidas junto à sociedade local. Tratava-se, portanto, de uma disputa em torno dos conceitos de hegemonia e contrahegemonia, elaborados por Gramsci e retomados no texto de Williams. A luta de Enio Cabral contra o regime militar permitiu-nos ainda entender como os intelectuais representantes das classes subalternas desempenharam a imprescindível tarefa de romper com a hegemonia burguesa a partir da formulação do questionamento e da crítica social, capazes de abalar e superar a ideologia dominante e, numa segunda etapa, desenvolver as bases de uma nova ideologia que daria sustentação e suporte à ação prática, ou seja, a práxis revolucionária. Nesse sentido, o que procuramos compreender a partir da trajetória do professor Enio Cabral foi como esse intelectual orgânico defendeu os interesses das classes excluídas do processo de modernização conservadora implantado no Mato Grosso por meio de sua atuação como militante comunista e educador. Consideramos tal tarefa importante, na medida em que atualmente temos uma redução dos estudos que tratam do tema dos movimentos sociais inseridos num plano político-econômico e uma profusão de trabalhos acadêmicos no campo de uma história cultural de base idealista, que se desloca para o campo de uma subjetividade desmedida, que pode descontextualizar as ações dos sujeitos pesquisados, como se não fossem práticas socioculturais. Como já demonstrou Senna Júnior (2014), apesar de encontrarmos no mercado editorial uma grande quantidade de obras de Marx e Engels em nível mundial e nacional, no que se refere à historiografia contemporânea temos como característica um antimarxismo marcante, tanto em meios midiáticos quanto intelectuais. No campo ideológico as estratégias para desqualificação do marxismo foram muitas, no entanto uma considerações finais 289 das mais impactantes foi a tentativa de equiparar, numa tentativa de homogeneizar todos os líderes e períodos, as experiências dos regimes socialistas implantados em países como União Soviética e Cuba às atrocidades das experiências nacionalistas do fascismo e do nazismo, considerando todas igualmente totalitárias, sem as devidas diferenciações. Assim, consideramos importante a retomada de temas que permitam uma reflexão acerca de como a sociedade atual tem pensado o debate em torno dos movimentos sociais e da disputa pela hegemonia social, travado tanto no contexto do Estado e das instituições de poder quanto no cotidiano, no qual podemos perceber a utopia (tomada como algo ainda não realizado, nos termos de Marcuse), ainda viva. Nesse sentido, defendemos, no campo acadêmico, um reengajamento da intelectualidade na defesa de uma guinada à esquerda no plano político, econômico, social e educacional. Tal intento se mostra necessário pois, apesar de estarmos tratando de um fato “longínquo”, que remonta a 50 anos, encontramos um cenário parecido no contexto atual, em que um governo de esquerda “supostamente” representa o “perigo comunista” de outrora e, por meio do aparelho estatal, favorece seus seguidores através de atos ilícitos, financiando assim a burocracia comunista, alijando o “povo” dos frutos do processo econômico capitalista. O discurso que ouvimos, seja na mídia ou no senso comum, é bastante parecido com o que foi ouvido em 1964. A Petrobras (“antro de comunistas corruptos”) é novamente o centro das atenções, o ataque às políticas de distribuição de renda parece retomar as críticas às reformas de base de Jango, a aversão à reforma agrária e o anticomunismo (hoje antipetismo), tanto naquele período como atualmente se fazem presentes. As propostas de mudança no campo político também não se diferenciam muito – a ideia de uma intervenção militar aos moldes da ditadura, que supostamente devolveria a estabilidade econômica e política ao país também se encontra em pauta. Assim, ao que parece, a história, como lembrou Marx, realmente pode se repetir, seja como tragédia, como a ditadura militar de 1964 a 1985, ou como farsa, como querem atualmente os conservadores que mobilizam esse discurso reacionário para favorecer líderes políticos que se mostraram omissos no passado e mesmo agora. Se compararmos a situação atual àquilo que se apresentava nos idos de 1964, perceberemos algumas semelhanças no que se refere ao contexto econômico, político e social. No plano econômico encontramos uma aliança entre frações da burguesia em torno do velho modelo de desenvolvimento conservador do considerações finais 290 passado, baseado na superexploração da mão de obra da classe operária, no aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza no país, demonstrando que o modelo, mesmo tímido, de transferência de renda (bolsa-família, bolsa-escola, renda mínima etc.), iniciado no governo Lula e ampliado no governo Dilma, não foi eficaz para transformar a conjuntura econômica do país. No passado, como agora, os detratores entendem as reformas de base como as responsáveis pelo aprofundamento da crise econômica no país. Apontam como solução o ajuste fiscal, que deve ser estruturado em torno da política de abertura para o capital estrangeiro, da política de juros altos e da superinflação, que deve recair sobretudo sobre os ombros das classes menos favorecidas, como vem ocorrendo atualmente. As críticas à reforma agrária, comuns em 1964, também se mostram presentes nos dias atuais, sob o argumento de que ela representa um ataque ao regime da propriedade privada e expropria os grandes proprietários rurais que tanto contribuem para o desenvolvimento do campo. Além disso, há que se apontar ainda como empecilho para seu desenvolvimento efetivo a capacidade do sistema capitalista de se apropriar até mesmo das formas de resistência organizadas pelos trabalhadores. Hoje é comum encontrarmos fazendeiros que negociam a ocupação de suas propriedades pelos movimentos de luta pela terra para serem indenizados pelo governo, e ainda assentamentos arrendados para as grandes empresas transnacionais que plantam soja, milho e outros produtos transgênicos, fazendo com que o modelo do agronegócio penetre inclusive na esfera da agricultura familiar, descaracterizando o discurso agroecológico em torno do qual se organiza o movimento internacional de luta pela terra e pela agricultura familiar. A corrupção nos órgãos estatais, como já mencionamos, também é retomada como um fator responsável pela crise atravessada pelo país e como justificativa para o ataque frontal aos governos de esquerda, como ocorreu com João Goulart e, atualmente, com Dilma Roussef. Nem mesmo o órgão atacado mudou após 50 anos: a Petrobras era alvo de críticas no período de 1964 e conhecida como um reduto comunista, um soviete a serviço da comunização do país; hoje novamente a empresa é o centro das atenções como antro de petistas corruptos que expropriam a nação e impedem seu o verdadeiro desenvolvimento econômico. Em que se pese não podermos rebater totalmente as críticas sobre as ações considerações finais 291 petistas no interior da Petrobras, temos que lembrar que essa foi, infelizmente, uma prática comum, institucionalizada desde os idos do governo Vargas. Ao que parece, os fantasmas do passado rondam o presente e se mostram novamente úteis aos conservadores para a formulação de uma crítica às propostas que, mesmo com caráter populista, buscam melhorias no campo social, como ocorreu nos governos de João Goulart (herdeiro político de Vargas) e Dilma (herdeira política de Lula). Talvez a explicação para essa recorrência histórica, que se apresenta como tragédia e como uma possível farsa, possa ser encontrada no modelo de desenvolvimento adotado pelo país, que, como apontamos no decorrer da tese, se deu nos moldes da modernização conservadora, que favoreceu a construção de um Estado centralizador e autoritário, que impediu a participação popular na constituição da nação brasileira. Como já apontamos, Pires e Ramos (2009) destacam que as elites agrárias e a burguesia estabeleceram uma aliança contraditória, com vistas a se perpetuar no poder e impedir uma mudança estrutural que permitisse a ascensão da maioria da população menos favorecida. No Brasil, o pacto político construído entre o Estado e a burguesia industrial emergente foi o responsável por interditar o acesso democrático à terra por parte das classes sociais menos abastadas, concentrando-se, assim, ao longo da formação e da evolução econômica brasileira, nas mãos de médios e grandes proprietários rurais, constituindo o que os pesquisadores denominaram modernização conservadora. Tal processo se aplica ao conceito de via prussiana, preconizado por Lenin para compreender como esses países resolveram a questão da reforma agrária, segundo o qual existiram ao longo da história processos clássicos de modernização, como nos casos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França, em que eles se deram por meio de revoluções sociais, e outros não clássicos, como o caso da Prússia, em que a transição para ao capitalismo ocorreu através da conservação de elementos da velha ordem social e política, tendo como característica o fortalecimento do Estado como o centralizador das ações de modernização, como apontou Coutinho (2008). Aqui, ao que parece, a modernização se deu por meio de um acordo feito pelo alto, ou seja, um arranjo entre o Estado, as elites agrárias e a burguesia industrial emergente, com vistas a excluir a classe operária do processo. Assim, a centralização do poder estatal e o acordo tácito com a elite agrária e a burguesia emergente fizeram com que o favorecimento das classes abastadas e o autoritarismo se considerações finais 292 tornassem traços característicos da sociedade brasileira. Nesse sentido, acreditamos ser necessário que os trabalhos históricos se engajem na discussão das experiências políticas autoritárias de nosso país, com o objetivo de contribuir para que experiências tão traumáticas não sejam invocadas de forma tão leviana por grupos que se beneficiaram das mazelas da ditadura e que se valem da pouca informação sobre o período, sobretudo entre os mais jovens, para defender de maneira inescrupulosa a volta da ditadura militar. Precisamos lutar cada dia mais pela abertura dos arquivos que nos permitam reflexões mais acuradas sobre o período, quebrando a cultura do silêncio e o cerceamento da memória pública que, tanto no passado como agora, foram evocados para manter sob o manto do esquecimento as atrocidades cometidas pelo regime ditatorial brasileiro. documentos e referências bibliográficas documentos e referências bibliográficas 294 DOCUMENTOS Inquéritos Policiais-Militares: Adônis Gonçalves Enio de Castro Cabral Observação: os inquéritos de Adônis Gonçalves e Enio Cabral foram unidos em um único processo. Revistas: Revista Brasil-Oeste, São Paulo ano I, n. 06, outubro de 1956, São Paulo (SP). Revista Brasil-Oeste, São Paulo, ano II, n. 14, junho de 1957, São Paulo (SP). Revista Brasil-Oeste, São Paulo, Ano IX, n. 89, janeiro de 1964, São Paulo (SP). Partidário: CARONE, Edgard. O PCB (1964-1982). São Paulo: Difel, 1982. Entrevistas: CABRAL, Enio. Depoimento. [10 de outubro de 1991]. Aquidauana. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo. CABRAL, Enio. Depoimento. [28 de novembro de 1993]. Aquidauana. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo. SERRA, Heliophar. Depoimento. [27 de novembro de 1993]. Aquidauana. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite. Mimeo. documentos e referências bibliográficas 295 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos, projetos. Recife: Editora da UFPE/Oito de Março, 2005. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004 ARAKAKI, Suzana. Dourados: memórias e representações de 1964. Dissertação (Mestrado em História), UFMS, Campus de Dourados, 2003. ARNS, Paulo Evaristo (Dom.). Brasil nunca mais: um relato para a história. Petrópolis: Vozes, 1987. ARRUDA, Ângelo Marcos Vieira de. Arquitetura escolar em mato grosso (1890-1930). Linhas, v. 12, n. 1, p. 73-94, 2011. BANDEIRA, Moniz. 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