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“NOSSA ARMA AGORA É A VACINA!”: RELAÇÕES (E
DESLOCAMENTOS) DE SENTIDOS SOBRE A VACINA DA COVID-19*1
Alberto Lopo Montalvão Neto (UNICAMP)
Flávia Novaes Moraes (UNICAMP)
Gustavo Gomes Siqueira da Rocha (UNIREDENTOR)
Resumo: desde o início de 2020 vivenciamos uma crise em decorrência de uma pandemia que
ramifica-se em distintos âmbitos (sanitário, social, político, econômico, entre outros). Não
obstante, observa-se que a gravidade desta crise acentua-se na medida em que ocorre a
polarização e exacerbação de disputas em torno de diferentes pontos de vista nos contextos
políticos nacionais, como por exemplo disputas sobre a relevância das vacinas, sendo que, por
vezes, essas disputas culminam em distorções de cenas e cenários pré-existentes,
ressignificando-os. Destarte, o presente estudo tem por objetivo compreender os possíveis
efeitos de sentidos produzidos a partir da circulação de uma charge, que utiliza-se do
personagem conhecido como “Zé Gotinha” para deslocar e volatilizar gestos de interpretação a
respeito da vacina que visa o enfrentamento à COVID-19. Para tanto, nos filiamos aos
pressupostos da Análise de Discurso pecheutiana, mobilizando noções e princípios como
relações (e deslocamento) de sentido(s), relações de força, formação discursiva, condições de
produção, entre outros. Nossos resultados apontam para o deslocamento de sentidos a partir da
mobilização do “já-dito” para criar rupturas enunciativas, ressignificando e volatilizando
questões (e discursos) referentes à vacina (e à vacinação) apontando para a dicotomia vida
versus morte. Concluímos que a emergência de outros sentidos sobre a vacina se faz necessária
em meio à busca de sujeitos políticos que possam se posicionar diante das controvérsias
constantes e explícitas veiculadas na atualidade. Tal posicionamento possibilita uma
movimentação no sentido de direcionar a população para compreensão sobre a vacina e a
respeito da crise sociopolítica que vivenciamos.
Palavras-chave: vacina; Zé Gotinha; COVID-19; Análise de Discurso; charge.
1 Introdução
A vacina, como proposta imunizante e estratégia na prevenção de doenças, está presente
na humanidade desde o século X, como, por exemplo, em relatos de seu uso rudimentar ocorrido
na China (BIO-MANGUINHOS, 2016). No entanto, somente em 1796, houve o registro de sua
descoberta pelo pesquisador Edward Jenner (BRASIL, 2019).
Questões sobre vacinas e o processo de vacinação se tornaram assuntos prevalentes, em
circulação nas mídias como um todo, principalmente com o advento da pandemia do novo
coronavírus COVID-19, causador da síndrome respiratória aguda SARS-CoV-2. O primeiro
caso de COVID-19 no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020 e, em 3 de março,
havia 488 casos suspeitos notificados, sendo dois confirmados (CRODA; GARCIA, 2020).
Com o avanço da doença no Brasil e no mundo, vários esforços para o incentivo ao
desenvolvimento de uma vacina para a COVID-19 ocorreram.
Foram mais de 150 empresas farmacêuticas, pequenas empresas de biotecnologia e
universidades, além de spin offs de empresas, que atuaram intensamente para que a vacina
pudesse ser desenvolvida e liberada de forma rápida (FERRAZ, 2020). Com a liberação de
algumas vacinas no território nacional, a campanha de vacinação para a COVID-19 se iniciou
em 19 de janeiro de 2021. Em um primeiro momento, dois tipos de vacinas foram usados, com
prioridade para atender aos profissionais da saúde, idosos em ordem decrescente de idade e,
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XV Congresso Internacional de Linguagem e Tecnologia Online
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posteriormente, passou a atender gradualmente os grupos de pessoas com características para
enquadramento como caso prioritário (AGÊNCIA BRASIL, 2021).
Contudo, o processo de compra e liberação de vacinas no Brasil passou por uma série
de entraves promovidos pelas instâncias governamentais. Tais entraves envolveram desde
negociações que retardaram a chegada das vacinas no país e posicionamentos por parte de
representantes do poder executivo que questionavam a validade e a importância das vacinas
disponíveis, até a possibilidade de desvios financeiros em seu processo de compra 2. Esse
cenário provocou uma disparada incessante de informações, não somente de procedência
científica, mas também em seus aspectos pouco precisos ou mesmo sob o caráter de notícias
falsas, as chamadas “fake news” (MONTALVÃO NETO et al., 2020). O alto volume de
notícias, tanto de comprovação científica como de imprecisões, gerou uma instabilidade de
sentidos entre as pessoas, bem como olhares distorcidos em relação ao papel das vacinas e do
próprio processo de vacinação.
Nesse sentido, neste trabalho objetivamos analisar os possíveis efeitos de sentido
produzidos a partir do deslocamento de sentidos decorrente da criação de uma charge (SILVA,
2016) que utiliza-se do personagem “Zé Gotinha”, armado com uma vacina, para representar a
luta contra a COVID-19. Enquanto um texto multimodal (ROJO; MOURA, 2012), isto é, que
agencia múltiplas linguagens de modo a construir a sua significação, para a análise desta charge
serão mobilizados noções e princípios da Análise de Discurso (PÊCHEUX, 1990; ORLANDI,
2003), de modo a observar os deslocamentos discursivos que ocorrem na construção da charge
enquanto um acontecimento discursivo.
2 Referencial teórico-metodológico
Cotejando refletir sobre discursos relacionados à vacina e ao processo de vacinação em
meio à pandemia da COVID-19, mobilizamos noções e princípios da Análise de Discurso (AD)
que teve em Michel Pêcheux, na França, um de seus principais precursores, e em Eni Orlandi,
no Brasil, uma de suas principais estudiosas.
Na AD, o discurso é compreendido como “efeito de sentido entre interlocutores”
(ORLANDI, 2003, PÊCHEUX, 1990). É por meio do discurso que materializa-se a ideologia
e, consequentemente, “pela ideologia se naturaliza o que é produzido pela história" (ORLANDI,
1994, p. 57). Orlandi complementa que “a ideologia é interpretação de sentidos em certa
direção, determinada pela relação da linguagem com a história, em seus mecanismos
imaginários” (ORLANDI, 1994, p. 57). Nessa relação, “podemos procurar entender o modo
como os textos produzem sentidos e a ideologia será então percebida como o processo de
produção de um imaginário, isto é, produção de uma interpretação particular” (ORLANDI,
1996, p. 65).
Em outras palavras, ao colocar em questão as representações sociais que influenciam na
produção de sentidos e que relacionam-se a uma instância imaginária, Orlandi (1994, 1996,
2003) aponta que, no discurso, marcam-se determinadas posições sociais (posição-sujeito),
hierárquicas, que constituem-se no limiar da história, e que, por isso, são posições às quais os
sujeitos filiam-se para que possam enunciar, implicando assim em efeitos de sentidos distintos.
Há, então, uma formação discursiva, ou seja, “aquilo que, numa conjuntura dada [...] determina
o que pode e deve ser dito [...]” (PÊCHEUX, 1995, p. 160). Assim, a formação discursiva é um
conjunto de dizeres (e discursos) necessários para que um determinado sujeito signifique. Um
exemplo disso é a própria posição-cientista, pois, para ocupá-la (ou dizer a partir dela) não se
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/corrupcao-na-compra-de-vacinas-quem-e-quemesquema/. Acesso em: 23 ago. 2021.
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pode dizer qualquer coisa. Há uma gama de dizeres, característicos, e que autorizam a quem a
eles filiar-se.
É válido pontuar que, apesar da ação do interdiscurso comumente levar-nos a crer que
a linguagem é transparente e que aquilo que falamos não poderia ser dito de outra forma, o dizer
não possui origem no sujeito, mas é efeito da memória discursiva. É o “já-dito” que, relacionado
a outros dizeres, permite o emergir e o (res)significar, apontando para o que Foucault (1996)
compreende não como a criação do novo, mas como a retomada do mesmo sob outras formas.
Orlandi (2003) aponta que os efeitos de sentidos produzidos relacionam-se às condições
de produção, em seu sentido estrito (imediato) ou amplo (histórico). Destarte, “a interpretação
é sempre regida por condições de produção específicas que, no entanto, aparecem como
universais, eternas” (ORLANDI, 1994, p. 57). Ademais, outros mecanismos da linguagem
perpassam a produção de sentidos, tais como as relações de força, as relações de sentido e o
mecanismo de antecipação. Resumidamente, para Orlandi (2003), todo sujeito é capaz de se
colocar no lugar do outro, antecipando-se e regulando a sua argumentação de acordo com o que
pensa que o ouvinte interpretará. Todo dizer tem relações com outro dizeres (relações de
sentido) e, como dissemos, devido ao interdiscurso, o lugar a partir do qual o sujeito fala
influenciará na produção de sentidos (relações de força).
Apesar dos efeitos da memória discursiva, há acontecimentos discursivos, ou seja,
rupturas com enunciados que permitem filiações históricas e, consequentemente, a
reformulação destes, indo de encontro ao parafrástico e abrindo margens para o deslocamento
de sentidos, formulando sentidos outros que se inscrevem na história (PÊCHEUX, 1990).
Considerando que forma e conteúdo são indissociáveis (ORLANDI, 2003), e que diferentes
gestos de interpretação ao longo da pandemia da COVID-19 culminaram em rupturas e
deslocamentos, neste texto refletimos sobre uma charge enquanto um acontecimento discursivo
que produz efeitos de sentidos a partir da retomada/modificação do “já-dito”.
3 A charge enquanto gênero textual
Compreender uma charge implica relacionar a sua crítica a um fato contemporâneo
(SILVA, 2016), que, no caso deste estudo, refere-se à campanha de vacinação contra a COVID19. A construção do humor no gênero textual em questão se dá uma vez que:
[...] observamos haver uma situação atualizada pelo artista, na medida em que
ele produz de forma risível, seja na maneira exacerbada do traço, na junção das
formas de ridicularização visual e/ou linguístico discursiva ou na interface de
ambos. (SILVA, 2016, p. 155).
Ainda segundo a autora, uma característica predominante nas charges é o seu teor
irônico, sendo a ironia responsável pelo paradoxo de seus textos enquanto “uma mistura de riso
e crítica” (SILVA, 2016, p. 156).
O linguista Sírio Possenti desenvolveu trabalhos que caracterizam-se como grandes
contribuições aos estudos do humor, entendendo o recurso com o fato de que “permite dizer
alguma coisa mais ou menos proibida, mas não necessariamente crítica [...]” (POSSENTI, 1998,
p. 49). O autor também disserta que o humor não cria novos discursos, no entanto, explora “de
forma específica discursos correntes [...]” (POSSENTI, 2010, p. 82)
Nesse contexto, é válido ressaltar que nosso objeto de análise, a charge, é um gênero
textual multimodal (ROJO; MOURA, 2012, p. 19), isto é, caracteriza-se como um texto que é
composto por múltiplas linguagens, cuja compreensão demanda capacidades em cada uma
delas de modo a construir a significação.
Silva (2016, p. 157) propõe uma série de características que precisam ser observadas
em uma charge, tendo em vista seu entendimento. Algumas dessas características são:
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sujeito-político representado na caricatura; do cenário compreendido como não
verbal; contexto linguístico expresso na charge, ainda que com relações
extralinguísticas, contexto sócio-histórico-político que envolve a charge; dos
mecanismos do humor, isto é, o “gatilho” que dispara o humor; da percepção
de recursos argumentativos que contribuíam para a construção do humor; de
recursos não verbais, também de cunho argumentativo e da crítica política
explícita na charge.
Considerando que a materialidade analisada possui muitos dos elementos mencionados
pelo autor, principalmente por se tratar de um texto multimodal (associação de imagens e de
um texto - twitte) de caráter político e sócio-historicamente localizado, a caracterizamos como
charge e buscamos compreender os elementos que o compõem.
4 Algumas análises
Conforme exposto na Figura 1, a charge (SILVA, 2016) mostra o personagem “Zé
Gotinha”, símbolo de campanhas de vacinação no Brasil, segurando uma seringa como se
representasse um fuzil. A imagem foi postada no dia 12 de março de 2021 no Twitter pessoal
do deputado federal Eduardo Bolsonaro3, filho do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Na legenda foi utilizada a seguinte frase: “Nossa arma é a vacina”. Vale ressaltar que a charge
foi uma resposta a declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferida no dia 10 de
março de 20214, que afirmou que Jair Bolsonaro teria abandonado a figura do “Zé Gotinha” por
associá-lo a um partido político.
Figura 1: Charge postada por Eduardo Bolsonaro sob o título “Nossa arma agora é a vacina”. Fonte:
https://www.terra.com.br/diversao/gente/criador-do-ze-gotinha-se-diz-horrorizado-com-versao-armada-dosbolsonaro,9c67e1b4084fd8cf7c3ea298afca1a0age19mgcq.html. Acesso em: 23 ago. 2021.
Elementos imagéticos aliados aos textuais entoam o deslocamento discursivo em meio
ao jogo político. Conforme mencionamos com Orlandi (1994, 1996, 2003), e como aponta
Eduardo Bolsonaro postou a charge no Twitter. Disponível em:
https://www.sbtnews.com.br/noticia/congresso/163192-eduardo-bolsonaro-posta-desenho-de-ze-gotinhaarmado-com-vacina. Acesso em: 18 ago. 2021.
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No discurso, o ex-presidente critica o incentivo a compra de armas e o atraso da vacinação no Brasil.
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/10/leia-a-integra-do-primeiro-discurso-de-lula-aposanulacao-de-condenacoes-da-lava-jato. Acesso em: 08 set. 2021.
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Pêcheux (1997), existe no imaginário social a imagem de determinadas posições. Pelo efeito
do interdiscurso, é a partir dessas posições que o sujeito, ao filiar-se a elas, enuncia, bem como
produz gestos de interpretação. É nessa relação que a charge exposta direciona a produção de
determinados efeitos de sentido sobre a vacina/vacinação.
Por exemplo, há elementos relacionados ao discurso de guerra (ou discurso bélico), a
partir dos quais determinadas características são associadas a essa formação discursiva, estando
entre elas o porte de armas, temática muito discutida na gestão governamental atual. Outro
ponto que se tornou latente na imagem está muito associado ao militarismo através da posiçãopatriota, que historicamente é representada pela bandeira nacional e que está sendo utilizada
como uma capa fazendo alusão à figura heroica. Nesse contexto, o personagem “Zé Gotinha”,
que, no imaginário social do povo brasileiro associa-se às campanhas de vacinação ao longo de
décadas, ao ser revestido por uma bandeira tal como uma capa de super-herói e ao segurar um
fuzil, faz clara alusão às forças armadas. Ou seja, reforça há a ideia de que o herói usa armas e,
nesse caso, isso faz um paralelo com a vacina como sendo heroica na “morte” do vírus.
O discurso militarista reafirma-se no enunciado “Nossa arma é a vacina”. Dialogando
com elementos imagéticos que mobilizam gestos de leitura característicos, sobre a charge em
questão, se faz necessário refletir a respeito de suas condições de produção, principalmente em
seu sentido amplo, ou seja, em relação às questões históricas em que os discursos que a
atravessam constituem-se, são produzidos e circulam (ORLANDI, 2003) em diferentes meios,
principalmente na internet.
Nessa relação, é preciso considerar que a ideologia, ao materializar-se por meio da
linguagem, leva à construção de relações de sentido (e de força) que convergem com os campos
das disputas políticas atuais. Fato é que Jair Bolsonaro tem em seu histórico a questão de ser
um militar reformado, e que, em busca de distanciar-se (e “combater”) discursivamente de um
de seus principais rivais políticos, o ex-presidente Lula5, suas narrativas filiam-se às formações
discursivas deste gênero. Outrossim, alicerçados nas narrativas de seu progenitor, Eduardo
Bolsonaro, ao fazer emergir a charge, provoca deslocamentos de sentidos, principalmente ao
dar outra roupagem ao clássico personagem “Zé Gotinha”. Trata-se, portanto, de um
acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 1990), visto que ocorre uma ruptura com certas filiações
históricas ao passo que enunciados são reformulados, permitindo a inscrição de outros sentidos.
Em outras palavras, há o retorno de elementos que estão no imaginário social dos brasileiros
como efeito da memória discursiva (já-dito), mas que são ressignificados em outros dizeres.
Todavia, é válido considerar que aqui levamos em conta que, em meio à pandemia da
COVID-19, esse tipo de deslocamento de sentidos leva tanto a discursivos impositivos, que
materializam as relações de força perpetradas pelo atual governo (discursos hegemônicos),
quanto permitem a emergência de discursos contra-hegemônicos, ou seja, de formas de
resistência. Dizemos isso pelo fato de que o post da charge em questão numa rede social gerou
polêmica e revolta em muitos internautas, chamando a atenção, inclusive, do idealizador do
personagem, Darlan Rosa, artista plástico que criou o Zé Gotinha em 1986 durante o governo
de José Sarney6.
Nas palavras do artista: “O Zé Gotinha é um personagem do bem, criado com fins
educativos. Colocá-lo com uma arma na mão é um péssimo exemplo que se pode dar a uma
criança. Apologia de arma é coisa séria”. Nesse sentido, podemos dizer que a charge evidencia
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-03-13/bolsonaro-pro-vacina-busca-se-reaproximar-dacupula-empresarial-apos-ser-acuado-por-lula.html. Acesso em: 18 ago. 2021.
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Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/eduardo-bolsonaro-posta-charge-de-ze-gotinha-milicianoe-e-detonado-na-web/ Acesso em: 18 ago. 2021
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um caráter controverso, favorecendo a volatilização de sentidos, aliada ao distanciamento da
realidade e da materialidade histórica sobre o papel da vacina. Tal como apontam Moraes,
Montalvão Neto e Morais (2021), há uma falta de materialidade histórica nas questões que
relacionam-se às vacinas, principalmente no que toca aos aspectos (e termos) biotecnológicos,
por vezes empregados na produção de algumas delas.
Todavia, outros sentidos podem ser produzidos a partir da interação entre texto (charge)
e leitor (internautas que tiveram acesso ao conteúdo). Por exemplo, a figura promove o papel
do armamento enquanto salvação, ou seja, de luta contra a COVID-19, num momento em que
a população encontra-se fragilizada pelos altos índices de mortes ocasionadas pelo vírus. Dessa
forma, pode-se encarar o armamento de “Zé Gotinha”, símbolo da vacinação, como uma forma
de filiar-se a discursos de saúde existentes, ou seja, ao fato de que há muito considera-se que as
vacinas salvam vidas. Esta seria uma das interpretações mais imediatas, porém, apontamos
primeiramente o jogo político para caracterizar a filiação a redes de sentidos que convergem
com um cenário de disputas pelo poder, o qual temos vivenciado nos últimos anos.
Numa relação, podemos dizer ainda que o núcleo central da charge pode estar na
antítese: vacina = saúde e vida / arma = morte. Em outras palavras, ao serem deslocados
sentidos, cria-se uma contradição, a partir da qual elementos associados a imaginários distintos
(vida versus morte) são mobilizados para um mesmo fim: o de representar a luta contra a
COVID-19 por meio da vacina. A vacina nesta imagem se apresenta com uma significação de
vida, de modo que, ao promover a imunização da população e uma consequente queda nos
índices de mortes ocasionados pela doença, traz a possibilidade de vida. Já o fato da seringa
que contém a vacina estar sendo empunhada como arma, traz a significação da vacina que tem
o papel de matar (o vírus), instaurando, desse modo, a seguinte controvérsia: a vacina que traz
vida, mas que também traz morte. No entanto, se faz necessário salientar que a alusão a vacina
como arma que irá matar o vírus COVID-19 representa uma significação errônea e imprecisa
do papel da vacina, que se destaca por fortalecer o organismo humano no combate ao vírus e
não atua como instrumento letal do mesmo.
Do ponto de vista da figura do patriota heroico que usa a arma-seringa, é importante
ponderar que esse discurso bélico é comum a ambos os lados (oposição e situação política), e
que, no caso mais específico da posição ocupada pelo pai de Eduardo Bolsonaro, leva à
compreensão de gestos de interpretação particulares, principalmente pelo fato de associar-se a
determinadas formações discursivas devido à posição ocupada pelo sujeito (Jair Bolsonaro),
que aponta para direcionamentos de sentidos que deslocam o significado inicial do texto
(charge) e que direciona para uma afirmação da figura do cidadão armado.
Cabe pontuar que esse movimento busca não apenas deslocar sentidos da/sobre a vacina,
como também demarcar a transparência da linguagem em busca de produzir sentidos unívocos.
Todavia, para além das condições de produção históricas que permitem o emergir do enunciado
(ressignificado), é necessário ressaltar que a mobilização desses discursos ocorre mediante a
busca por uma (re)afirmação de um governo que, até então, era francamente negacionista, indo
contra as questões advindas da Ciência e negando, inclusive, os efeitos devastadores do
coronavírus e a própria eficácia da vacina7. Essa nova “estratégia de guerra” se dá em meio à
ameaça e pressões políticas que o governo bolsonarista sofre por distintos setores da sociedade,
seja por outras figuras políticas, seja por meio de manifestações populares8.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/17/bolsonaro-diz-que-contaminacao-e-maiseficaz-que-vacina-estrategia-pode-levar-a-morte-diz-sanitarista.ghtml. Acesso em: 24 ago. 2021.
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Disponível em: https://www.gazetadigital.com.br/editorias/politica-de-mt/com-governo-pressionadomanifestantes-vo-s-ruas-em-cuiab-por-impeachment-de-bolsonaro/659321. Acesso em: 24 ago. 2021.
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Por fim, ressaltamos que a imagem não apenas representa uma controvérsia (socio)
política e científica, como favorece a volatilização de sentidos9, aliada ao distanciamento da
realidade e da materialidade histórica sobre o papel da vacina. Neste ínterim, podemos dizer
que a dispersão de sentidos, ocasionada pelo acontecimento discursivo em questão, faz com
que, assim como a vacinação surja como a salvação diante de uma crise sanitária (e social), ela
também coloca-se como armamento para a área da saúde e como arma política e, porque não,
ideológica, na disputa pelo simbólico, ou seja, na busca por criar outras representações a
respeito das redes de sentidos que ali são mobilizadas. Assim, há a busca por controlar
interpretações da população com determinadas finalidades governamentais.
5 Considerações finais
O presente estudo teve como objetivo analisar um acontecimento discursivo: a produção
e circulação da charge do “Zé Gotinha” recentemente veiculada por Eduardo Bolsonaro;
considerando nessa relação analítica as condições de produção históricas nas quais ela se insere:
a crise social, política e sanitária ocasionada pela pandemia da COVID-19.
Por meio desse gesto de interpretação, compreendemos que os discursos que perpassam
a construção da charge no Twitter, e o consequente deslocamento de elementos textuais e
imagéticos pertencentes a outras formações discursivas, apontam para a produção de efeitos de
sentidos que relacionam-se às questões políticas que atravessam a nação na atualidade,
principalmente no que relaciona-se ao atual governo, que, frequentemente, filia-se aos discursos
bélicos, de guerra e militaristas para empregar estratégias por meio de relações de força
materializadas nas posições assumidas por sujeitos no jogo enunciativo político.
A ruptura com o processo de significação histórica de determinados elementos
conhecidos, ou seja, o “já-dito” (o personagem Zé gotinha, a vacina, a arma, a bandeira do
Brasil) demonstra um anseio, por parte do sujeito que enuncia, em validar as suas ideias (e
ideais), contrapondo outros discursos, numa busca por reafirmação política e direcionamento
de sentidos dos interlocutores (a população). Todavia, em meio à construção de outras
representações, ao romper com enunciados outrora estabilizados, ocorre também um
esvaziamento de sentidos, a partir da volatilização e dispersão do próprio significado e da
importância da vacina.
Por fim, apontamos para a necessidade de outros estudos, com diferentes referenciais
teóricos e/ou metodológicos, que possam se debruçar sobre as questões discursivas que
perpassam os diferentes posicionamentos que circulam em distintos setores sociais durante a
crise ocasionada pela pandemia da COVID-19. Acreditamos que tais olhares possam colaborar
não apenas para a compreensão de questões contemporâneas relativas ao cenário sanitário,
social e político, como também podem auxiliar no entendimento dos caminhos históricos que
nos levaram à mencionada crise sociopolítica, apontando para possibilidades de superação em
cenários pós-pandêmicos. Considerando as limitações da análise de uma única materialidade
(charge), acreditamos que este estudo contribui com a pesquisa em Ciências Humanas ao lançar
olhares para um acontecimento discursivo que nos afeta diretamente na atualidade.
Referência à fala proferida por Eni Orlandi em 2020, “Volatilidade da interpretação: política, imaginário e
fantasia”, no canal de Youtube da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=MjCsJxfiXtg&t=1228s. Acesso em: 24 ago. 2021.
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Referências
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<https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/vacinacao-contra-covid-19começa-em-todo-o-pais > Acesso em: 31 maio 2021.
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2016. Disponível em: <https://www.bio.fiocruz.br/index.php/noticias/1263-vacinas-asorigens-a-importancia-e-os-novos-debates-sobre-seu-uso> Acesso em: 03 out. 2021.
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