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Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve (1755-1834): Reflexos na arquitetura e no urbanismo

2020, PROMONTORIA, Revista do Departamento de História, Arqueologia e Património da Universidade do Algarve

O cargo de governador do reino do Algarve O cargo de governador com a patente de capitão-mor ou capitão-general do reino do Algarve foi criado no século XVI, para substituir o de fronteiro-mor, que por sua vez tinha substituído o de anadel-mor (também de natureza militar) 1. O primeiro "capitão-mor e governador do Reino do Algarve" foi D. Diogo de Sousa, nomeado para o cargo por D. Sebastião (1557-1578) por carta de 21 de julho de 1573. Aquando da nomeação, o rei terá outorgado ao governador um Regimento, no qual se definiam as obrigações e os poderes inerentes ao cargo, mas o documento não chegou aos nossos dias e tampouco se conhece o seu conteúdo. Não se sabe se por iniciativa própria ou indicação régia, o recém-nomeado governador vai estabelecer-se em Lagos (elevada a cidade nesse ano de 1573), que se assume como local de residência dos governadores e capitães-generais do reino 2. No ano de 1624, sendo o reino do Algarve governado por João de Mendonça Furtado, D. Filipe III (1621-1640), vai outorgar um novo "Regimento dos Governadores do Reino do Algarve", com 21 capítulos, no qual ficam estabelecidos todos os deveres e poderes dos governadores. Segundo este documento, aos governadores cabia a "guarda e defensão" do Reino, o "exercício da gente de ordenança dele", a manutenção das suas fortalezas, a "boa ordem e governo" do território e ainda o "provimento e socorro" dos lugares de África, devendo o cargo ser sempre ocupado por pessoa "de tal experiência, qualidade e confiança" que pudesse ocupar-se de todos os negócios de interesse para a coroa. Aquando da nomeação, todos os governadores recebiam a respetiva "carta de patente", que circulava pelos concelhos da região, sendo transladada para os tombos das respetivas câmaras. No Regimento de 1624, o rei aconselhava o governador a fixar residência na cidade de Lagos ou, preferencialmente, na de Tavira, por ser este o porto mais próximo das praças norte-africanas 3. Não obstante, talvez por respeito ao costume principiado pelos antecessores, os governadores vão optar por manter o seu domicílio em Lagos, no antigo castelo, que por isso passa a ser conhecido como o palácio dos governadores.

Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve (1755-1834): Reflexos na arquitetura e no urbanismo Marco Sousa Santos Doutorando em História da Arte pela Universidade de Coimbra, CEPAC/UAlg O cargo de governador do reino do Algarve O cargo de governador com a patente de capitão-mor ou capitão-general do reino do Algarve foi criado no século XVI, para substituir o de fronteiro-mor, que por sua vez tinha substituído o de anadel-mor (também de natureza militar)1. O primeiro “capitão-mor e governador do Reino do Algarve” foi D. Diogo de Sousa, nomeado para o cargo por D. Sebastião (1557-1578) por carta de 21 de julho de 1573. Aquando da nomeação, o rei terá outorgado ao governador um Regimento, no qual se definiam as obrigações e os poderes inerentes ao cargo, mas o documento não chegou aos nossos dias e tampouco se conhece o seu conteúdo. Não se sabe se por iniciativa própria ou indicação régia, o recém-nomeado governador vai estabelecer-se em Lagos (elevada a cidade nesse ano de 1573), que se assume como local de residência dos governadores e capitães-generais do reino2. No ano de 1624, sendo o reino do Algarve governado por João de Mendonça Furtado, D. Filipe III (1621-1640), vai outorgar um novo “Regimento dos Governadores do Reino do Algarve”, com 21 capítulos, no qual ficam estabelecidos todos os deveres e poderes dos governadores. Segundo este documento, aos governadores cabia a “guarda e defensão” do Reino, o “exercício da gente de ordenança dele”, a manutenção das suas fortalezas, a “boa ordem e governo” do território e ainda o “provimento e socorro” dos lugares de África, devendo o cargo ser sempre ocupado por pessoa “de tal experiência, qualidade e confiança” que pudesse ocupar-se de todos os negócios de interesse para a coroa. Aquando da nomeação, todos os governadores recebiam a respetiva “carta de patente”, que circulava pelos concelhos da região, sendo transladada para os tombos das respetivas câmaras. No Regimento de 1624, o rei aconselhava o governador a fixar residência na cidade de Lagos ou, preferencialmente, na de Tavira, por ser este o porto mais próximo das praças norte-africanas3. Não obstante, talvez por respeito ao costume principiado pelos antecessores, os governadores vão optar por manter o seu domicílio em Lagos, no antigo castelo, que por isso passa a ser conhecido como o palácio dos governadores. Cf. Alberto Iria, Descobrimentos portugueses: O Algarve e os Descobrimentos, volume II, 1944, p. 10. Alberto Iria, Da importância geopolítica do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos XV a XVIII, 1976, pp. 90, 126 a 128, 134, 157 e 158. 3 Cf. João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou Memória económica, estatística e topográfica do Reino do Algarve, 1841, pp. 617 a 623. 1 2 2 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Em Lagos permanecerão os governadores até ao dia 1 de novembro de 1755, data em que um violento terramoto abala o sul de Portugal, e com maior intensidade o Algarve, arrasando o palácio do governo. Perante a destruição da cidade, o governador, D. Rodrigo António de Noronha e Meneses, decide unilateralmente transferir-se para Tavira, fazendo-se acompanhar na deslocação por parte do regimento então estacionado em Lagos4. Note-se, a transferência do governador para Tavira, apesar de ocorrida em circunstâncias extraordinárias, era legitimada pelo regimento de 1624, segundo o qual se permitia ao titular do cargo residir em Lagos ou em Tavira. Para além disso, uma vez que as fontes documentais sugerem que a cidade do Gilão terá sido das povoações costeiras a que menos sofreu com o sismo de 17555, seria a que dispunha de condições mais favoráveis para acolher a sede do governo regional. De resto, mesmo em Tavira, tudo indica que a parte oriental da cidade terá sido a que menos sofreu, e foi aí que o governador se estabeleceu, no Alto de Sant’Ana. Iniciava-se desse modo um período de aproximadamente oito décadas durante o qual os governadores e capitães-generais do Algarve mantiveram a sua residência oficial em Tavira. Os governadores do reino do Algarve em Tavira (1755-1834) Entre os anos de 1755 e 1834, período em que a sede do governo do reino do Algarve se vai manter oficialmente em Tavira, o cargo de governador e capitãogeneral (de nomeação régia e com um acentuado cariz militar) vai ser exercido por mais de duas dezenas de indivíduos (alguns apenas de forma interina), na sua maioria aristocratas e nobres titulados mas também militares e inclusive um prelado. Sublinhe-se, tudo indica que a maioria dos governadores nomeados para o cargo depois de 1755 terá assistido no Algarve, não se limitando a aceitar a nomeação e a governar à distância, uma vez que a sua presença é regularmente documentada nos registos paroquiais da cidade de Tavira, quase sempre intervindo na qualidade de padrinhos em batismos6. A instalação do governador no Alto de Sant’Ana tem um impacto significativo na dinâmica social da cidade, desde logo porque implica o estabelecimento em Tavira de um contingente militar fixo (que até então não existia), com a respetiva oficialidade, mas também porque os titulares do cargo se faziam acompanhar por todo um séquito de funcionários que serviam nas repartições do governo e no próprio palácio (por exemplo, secretários, oficiais e ajudantes da Secretaria, cocheiros, correios7, cozinheiros, criados e ajudantes das ordens do Cf. Manuel João Paulo da Rocha, Monografia de Lagos, 1991, pp. 140 e 141. ANTT, Memórias paroquiais da freguesia de Santa Maria de Tavira, vol. 36, nº 26, p. 131 a 138. 6 Veja-se, por exemplo: ANTT, Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1765-1769), fl.196; Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1803-1808), fl.53v. 7 Em 1776, referência a José Rodrigues Mano, correio do capitão-general deste Reino do Algarve (Cf. ANTT, Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira, fólio 245v). 4 5 M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 3 governador) constituindo aquilo que se poderá designar como uma pequena corte à escala regional. Note-se, a maior parte desses funcionários não era de origem algarvia. Ao analisar o período de permanência dos governadores em Tavira tornase possível distinguir duas fases. Uma primeira, que grosso modo decorre entre os anos de 1755 e 1808, na qual o cargo é unicamente desempenhado por aristocratas provenientes da corte8, que se carateriza por um longo período de paz9, estabilidade e relativa prosperidade (esta desde logo fomentada pelas reformas pombalinas desenvolvidas no âmbito da Restauração económica setecentista do Reino do Algarve10); e uma segunda, balizada entre 1808 e 1834, marcada por questões de natureza bélica e pela instabilidade causada pelas invasões francesas e pela guerra civil entre liberais e absolutistas, durante a qual o governo do Algarve permanece quase exclusivamente nas mãos de militares. No que respeita ao período que decorre entre 1755 e 1808, um dos governadores cuja atividade e permanência na região está mais documentada é a de D. José Francisco da Costa e Sousa, armador-mor e ainda visconde de Mesquitela (pelo casamento), que esteve à frente do governo do reino durante sete anos (1773-1780). Este governador começa por se estabelecer em Tavira, na companhia da mulher, Dona Maria José de Sousa de Macedo (1755-1816), e é na cidade do Gilão que vão nascer e ser batizados alguns dos filhos11, incluindo D. Luís da Costa de Sousa de Macedo e Albuquerque, futuro 1º conde de Mesquitela, que nasceu no palácio do Alto de Sant’Ana a 25 de Março de 1780 e poucos dias mais tarde foi batizado na vizinha ermida em cerimónia presidida pelo próprio arcebispobispo do Algarve, D. Frei Lourenço de Santa Maria (1752-1783)12. Pouco depois da chegada de D. José Francisco à região, o marquês de Pombal ordena-lhe que se transfira temporariamente para a vila de Castro Marim, para daí melhor acompanhar as obras de edificação de Vila Real de Santo António, negócio da maior importância para a coroa. Em Castro Marim terá permanecido até maio de 1776, data em que a Nomeadamente D. Rodrigo António de Noronha Meneses (1755-1761), D. Francisco Xavier Rafael de Meneses, 2º marquês do Louriçal (1762-1765), D. Tomás da Silveira de Albuquerque Mexia (1765-1773), D. José Francisco da Costa e Sousa, 2º visconde de Mesquitela (1773-1782), D. António José de Castro, 1º conde de Resende (17821786), D. Nuno José Fulgêncio de Moura Barreto, 6º conde de Vale de Reis (1786-1795), ou Francisco de Melo de Mendonça da Cunha e Meneses, que foi feito 1º conde de Castro Marim e depois 1º marquês de Olhão (1795-1808) (Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, 1993, pp. 99). 9 Contudo, esta fase tampouco esteve totalmente isenta de questões bélicas. É a partir de Tavira que, em 1762, quando uma aliança franco-espanhola declara guerra a Portugal, o então governador e capitão-general do Algarve, D. Francisco Xavier de Meneses, Marquês do Louriçal, vai organizar a defesa da fronteira oriental da região, desde a praia de Monte Gordo até à praça de Alcoutim (Cf. ADF, Notariais de Tavira, cota 8-5-361, fólios 44v e 45). 10 A este respeito veja-se, por exemplo: José Eduardo Horta Correia, Vila Real de Santo António – urbanismo e poder na política pombalina, 1997; José Carlos Vilhena Mesquita, O Marquês de Pombal e o Algarve – a Fábrica de tapeçarias de Tavira, 1999. 11 Em Julho de 1773 é batizado na ermida de Sant’Ana, que funcionava como oratório do palácio, D. António, filho do governador (Cf. ANTT, Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira, fólio 143). 12 Cf. ANTT, Livro de registo de batismos de Santa Maria de Tavira, fólio 128. 8 4 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 nova vila do Guadiana é inaugurada. Após a inauguração solene o governador regressa de imediato a Tavira, desde logo porque já não havia motivos para permanecer em Castro Marim mas também porque de Lisboa chegavam ordens para que recebesse no palácio de Tavira um alto dignitário francês, o Duque de Chartres (filho do Duque de Orleães e nada menos que primo de Luís XVI rei de França entre 1774 e 1791), comandante de uma esquadra francesa que nessa ocasião se achava de passagem pelo Algarve.13 Portanto, o que se pode concluir é que, pelo menos numa primeira fase (1755-1808), a estada dos governadores do Algarve em Tavira terá sido marcada por uma certa atmosfera cortesã, sendo o cargo desempenhando por aristocratas que se estabeleceram na cidade algarvia na companhia de outros membros da sua família alargada e que nela chegaram inclusive a receber comitivas diplomáticas estrangeiras. A mudança de paradigma, ditada pela conjuntura nacional e pela entrada num período de grande instabilidade, durante o qual se acentua a vertente militar do cargo de governador, coincide com o governo de D. Francisco de Melo da Cunha de Mendonça e Meneses (1795-1808). Logo em 1801, no âmbito da chamada “Guerra das Laranjas”, o governador é obrigado a intervir na fronteira do Guadiana, onde, pela força, consegue travar uma tentativa de invasão espanhola, ação que lhe vale o título de conde de Castro Marim14. Mais tarde, no contexto das invasões francesas (1807-1811), este governador começa por evitar o confronto com as tropas invasoras (seguindo as instruções deixadas pelo príncipe regente antes da partida da corte para o Rio de Janeiro), mas logo após o levantamento popular de Olhão, em 1808, e a ulterior expulsão das tropas francesas da região, organiza uma expedição militar e parte para o Alentejo no encalço do inimigo. Na ausência do governador, é o bispo D. Francisco Gomes do Avelar (1789-1816) quem interinamente fica a governar o Reino do Algarve, a partir do paço episcopal de Faro. Em 1810, o bispo pede para ser revezado em relação às questões militares inerentes ao cargo, que serão confiadas ao coronel John Austin, oficial britânico ao serviço da Coroa, mas mantém o título de governador interino. Após a morte do prelado, em 1816, e até 1834, data em que vai terminar a Guerra Civil portuguesa (1828-1834), e não obstante a nomeação de alguns aristocratas para o lugar, serão sobretudo militares a ser nomeados para o cargo de governador do Algarve, alguns dos quais não permanecem no cargo mais do que semanas ou mesmo dias. Na fase mais conturbada, ou seja, a partir de 24 de junho de 1833, quando desembarca na praia da Alagoa (Vila Real de Santo António) um contingente do exército liberal comandado pelo Duque da Terceira, forçando o visconde de Molelos (governador nomeado por D. Miguel I) a abandonar a cidade de Tavira, chegam a existir em Cf. José Eduardo Horta Correia, Vila Real de Santo António – urbanismo e poder na política pombalina, 1997, pp. 98 e 109. 14 Cf. Manuel Amaral, Olivença 1801 – Portugal em guerra do Guadiana ao Paraguai, 2004, pp. 57 a 60. 13 M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 5 simultâneo dois governadores, um nomeado pelos absolutistas e outro pelos liberais15. A situação só estabiliza quando, após o desembarque das tropas liberais, o futuro marquês de Sá da Bandeira assume interinamente o governo do reino do Algarve, entre 17 de fevereiro e 17 de Maio de 1834, para conter o avanço das guerrilhas miguelistas que enxameavam a serra. Porém, Sá da Bandeira vai estabelecer o seu quartel-general em Faro, e não em Tavira, desde logo porque Faro tinha uma posição mais central a nível regional e oferecia melhores condições de defesa, mas também porque Tavira se havia demonstrado partidária da causa miguelista. A curto prazo, seria esse o primeiro passo para que a cidade perdesse a condição de capital do reino em benefício de Faro. Finalmente, em 1835, na sequência da extinção oficial do cargo de governador do reino do Algarve, e fruto da reforma administrativa encetada pelo regime liberal, é criado o distrito de Faro e o cargo de governador civil do distrito. Nesse contexto, todos os serviços do governo que até então se encontravam em Tavira são transferidos para Faro, onde se acabam por agregar no denominado palacete dos condes de Alte, no qual se viria depois a estabelecer a sede do Governo Civil (aí permanecendo até à sua extinção, em 2012). Rematava-se desse modo um período de cerca de 80 anos durante o qual a cidade de Tavira tinha sido, com toda a propriedade, a capital do reino do Algarve. A arquitetura e o urbanismo Mais do que uma medida meramente formal, a instalação dos governadores do reino do Algarve em Tavira, após 1755, acabaria por constituir um marco decisivo na história da cidade e dar início a um dos seus períodos de maior expansão urbana e atividade construtiva relacionada com obras de natureza pública. Vejamos então, com o pormenor possível, que infraestruturas se construíram nesse contexto específico e com que objetivos, como decorreram as obras e quem foram os principais responsáveis pela sua projeção e execução. O palácio dos governadores Pelo menos do ponto de vista simbólico, a estrutura mais importante construída no período em que os governadores residiram na cidade de Tavira foi o palácio do Alto de Sant’Ana, residência oficial do titular do cargo. Nas palavras do alemão Heinrich Link, Tavira era, no final do século XVIII, “uma linda cidade”, com suas ruas bonitas e asseadas e “casas vistosas, de entre as quais se destaca o Palácio do Governador”16. 15 16 Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, 1993, pp. 99 e 100. Heinrich Friedrich Link, Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, 2005, p. 265. 6 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Estabelecido na margem oriental da cidade, no Alto de Sant’Ana, o denominado palácio dos governadores, residência do governador e capitão-general do reino do Algarve em Tavira, terá provavelmente começado a ser construído ainda durante o governo de D. Rodrigo António de Noronha e Meneses (o primeiro governador a instalar-se em Tavira), ou seja, entre 1755 e 1761. Não se sabe se existiam no local algumas construções anteriores que tenham sido aproveitadas, mas o mais provável é que todo o conjunto, com exceção da preexistente ermida de Sant’Ana, posteriormente integrada no complexo como capela privativa do palácio, tenha sido edificado de raiz, circunstância sugerida pela sua planta em “U”, típica da arquitetura palaciana do século XVIII, mas também pelas características formais dos seus vãos de cantaria, de inegável fábrica setecentista. Combinando os vestígios materiais ainda existentes com a documentação gráfica conhecida, é possível afirmar que o palácio dos governadores de Tavira era um edifício térreo, com planta em duplo “U” formando dois pátios de planta quadrangular, constituído por três corpos longitudinais paralelos, unidos numa das extremidades por outro corpo longitudinal, perpendicular aos demais, que articulava o conjunto. As molduras de cantaria das portas e janelas eram de verga reta com cornija saliente, merecendo destaque o portal principal do palácio, belo exemplar de arquitetura setecentista, de verga reta, rematado por segmentos de frontão curvos e precedido por pequena escadaria. A cobertura do edifício, diferenciada, era constituída por telhados de duas águas e de tesouro (quatro águas). No extremo norte do complexo (delimitando um dos pátios interiores) estava a ermida de Sant’Ana, antigo templo de fundação tardo-medieval (remodelado em 1722) constituído por nave única de planta longitudinal, capela-mor quadrangular e sacristia anexa, que passa a funcionar como capela privativa dos governadores. Como já foi referido, ao longo da 2ª metade do século XVIII o palácio de Tavira terá efetivamente funcionado como residência dos governadores do Algarve, os quais nele assistiram com as suas famílias e chegaram a receber comitivas diplomáticas. É de admitir, portanto, que o edifício dispusesse das indispensáveis condições de conforto e aparato ajustadas à categoria e foros dos seus ocupantes, maioritariamente membros da aristocracia cortesã. Porém, no início da centúria de Oitocentos, provavelmente como consequência da instabilidade provocada pelas invasões francesas e posterior partida do governador, mas também pela falta de qualidade construtiva da estrutura, o palácio entra em acelerado processo de degradação. Prova disso é um requerimento enviado em 1816 pelo então governador, o coronel John Austin, no qual o militar afirma habitar há mais de cinco anos na “residência destinada para os capitães-generais” do Algarve, em Tavira, “sofrendo os maiores incómodos possíveis pelo mau estado em que ela se acha por falta de reparos”. Pede o oficial que, para o bem-estar e segurança da sua família, no mínimo se substituam os vidros quebrados de portas e janelas, porque quando chovia se tornava necessário fechar as portadas, permanecendo no escuro, e as M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 7 fechaduras das portas, para que estas se pudessem segurar “de noite contra os insultos de ladrões”. Para além disso, as paredes da sala principal apresentavam alguma “indecência”, pelo facto de serem pintadas e de se terem reposto porções de reboque caído sem lhe aplicar uma nova pintura17. Em 1818 o coronel Austin renova o pedido para se levarem a cabo obras no palácio ao informar o brigadeiro Duarte José Fava do “estado de ruína” em que estava o edifício, circunstância que, segundo ele, decorria sobretudo “da pouca solidez” com que fora edificado. De Lisboa chegam então instruções para que o capitão de engenheiros José Clemente dos Santos, destacado no Algarve, examinasse o edifício e preparasse um orçamento com vista à sua reparação ou reedificação. O engenheiro visita o edifício e testemunha a falta de condições de segurança das casas, que declara estarem “muito mal-arranjadas do seu princípio” e com as paredes-mestras apoiadas sobre “restos de parede de pedra e barro”. Como ações a levar a cabo de imediato o militar identifica a necessidade de se levantarem contrafortes para reforço das paredes, de se elevarem os telhados que não tinham declive suficiente para garantir o escoamento das águas, de se pintarem portas e janelas, para evitar que as madeiras se degradassem mais, e trocarem as que já estavam podres18. Não se sabe se as obras reclamadas no início do século XIX terão ou não sido levadas a cabo mas a verdade é que a curto prazo, com a extinção do cargo e com a instalação do governador civil do distrito em Faro, o antigo palácio dos governadores de Tavira acabaria por ficar devoluto. O edifício vai permanecer sob a alçada direta da administração militar até meados do século XX, quando é adquirido pela câmara municipal, procedendo esta à demolição controlada das partes mais deterioradas do imóvel e deixando de pé apenas a antiga ala sul do palácio. Na parte da estrutura preservada funcionariam mais tarde, até ao último quartel do século XX, as instalações da Polícia de Segurança Pública. Hoje, do conjunto edificado em que durante oito décadas residiram os governadores do reino do Algarve resta uma das antigas alas habitacionais (na qual se incluí o portal principal do palácio) e a ermida de Sant’Ana, outrora capela privativa dos governadores19. AHM, Correspondência do coronel John Austin para Duarte José Fava, PT/AHM/DIV/1/16/068/45 (fundo de folhas avulsas). 18 AHM, Processo de obras com orçamentos inclusos assinados pelo brigadeiro Duarte José Fava, PT/AHM/DIV/1/16/100/10 19 No Alto de Sant’Ana existe ainda hoje um pequeno torreão-miradouro, sobranceiro ao Gilão, que se admite ter estado integrado no complexo edificado, apesar de não existir qualquer testemunho material ou documental que o comprove. Para além do complexo habitacional do Alto de Sant’Ana, constituído por palácio e capela, é possível que tenham existido na cidade outras estruturas de apoio aos governadores. Refira-se, por exemplo, a documentada existência, na Rua do Trem (na margem oriental), de um armazém do “escaler do rei” (Cf. ADF, Notariais de Tavira, cota 8-6514, fls. 33v a 34v), o qual terá servido também para nele se guardar o escaler (barco movido a remos e utilizado para fazer a condução rio acima, até à cidade) de que se serviam os governadores quando assistiam na cidade e cujos custos de manutenção eram deduzidos do imposto do Real d’Água (Cf. Diário das Cortes da Nação portuguesa, 1822, pp. 158 e 159). 17 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 8 A secretaria e as cavalariças do governo Inevitavelmente, o estabelecimento em Tavira dos governadores do reino do Algarve vai tornar indispensável a instalação na cidade de uma secretaria do governo, repartição pública onde se despachavam todos os assuntos relativos ao governo e administração da região. Esta secretaria estava localizada na designada rua do Palácio (atual Calçada de Sant’Ana), a pouca distância do palácio dos governadores. Com a construção da secretaria do governo, o palácio passava a servir unicamente como residência do governador, já que todos os assuntos quotidianos seriam despachados na dita repartição. O responsável pela instalação da secretaria do governo em casas civis vizinhas ao palácio (mas estruturalmente separadas deste) terá sido D. Francisco Xavier Rafael de Menezes, 6º Conde da Ericeira e 2º Marquês do Louriçal, governador do Algarve entre 1762 e 1765. Prova disso é um documento de 1763 no qual se dá conta da aquisição de umas casas que se “compraram para nelas instalar a secretaria do governo no Alto de Santana”20. A secretaria do governo funcionou numas casas térreas de pedra e cal, com cobertura de telhados de duas águas, que ainda hoje existem e que só se distinguiam das demais pela moldura de cantaria da sua porta principal, com verga reta e cornija saliente. Acedia-se ao edifício por intermédio de um único degrau. Estes elementos de cantaria, de caráter simultaneamente ornamental e funcional, garantiam a monumentalidade possível daquelas casas dedicadas ao serviço público e permitiam diferenciá-las das demais que formavam a frente de rua. Na década de 30 do século XIX, com a extinção oficial do cargo de governador e capitão-general do Algarve, a secretaria do governo é também extinta, permanecendo as instalações como propriedade da coroa. Note-se, nesta secretaria terá ainda estado instalado o arquivo do reino do Algarve, que sucedeu ao arquivo do procurador-geral do reino Algarve, o qual se achava “muito arruinado e depauperado” na sequência do terramoto de 175521. Algures no século XX, o edifício da antiga secretaria do governo do Alto de Sant’Ana passa a acolher um destacamento militar da Guarda Nacional Republicana, que nele permanece até o final do século XX. Durante o seu governo, o marquês do Louriçal terá ainda mandado construir uma cavalariça no Alto de Sant’Ana, a qual serviria para albergar os animais da tropa, e os do governador, e estava situada entre a secretaria do governo e o palácio (no local onde depois se instalam as cavalariças da Guarda Nacional Republicana). A edificação destas cavalariças, por determinação do 20 21 ADF, Notariais de Tavira, cota 8-5-331, fólio 70. ADF, Notariais de Tavira, cota 8-5-352, fólio 37. M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 9 governador marquês de Louriçal, é mencionada num documento datado de dezembro de 176222. O hospital militar Ao transferir-se de Lagos para Tavira, no ano de 1755, o governador D. Rodrigo António de Noronha e Meneses vai fazer-se acompanhar por um destacamento militar, circunstância que a curto prazo tornaria urgente dotar a cidade do Gilão de estruturas não só capazes de acolher como também de garantir cuidados médicos para um grande número de tropas. É nesse contexto que se toma a decisão de construir em Tavira um hospital militar, à semelhança do que já existia na cidade de Lagos. O hospital militar de Tavira terá sido fundado algures em 1761, ainda durante o governo do dito Rodrigo António de Noronha e Meneses (1754-1762), provavelmente num edifício preexistente e provisoriamente adaptado a esse fim, situado no designado Largo do Cano, na margem direita do Gilão, no limite ocidental do núcleo urbano e junto a uma das principais vias de acesso à cidade. Tudo indica que o hospital militar já estaria em atividade em julho de 1763, data em que, para além de servir a guarnição da cidade, este estabelecimento de saúde acumulava a obrigação de cuidar os “soldados e oficiais de guerra” da guarnição da praça de Castro Marim, já que o hospital que existia nesta povoação tinha ficado destruído na sequência dos terramotos de 1755 e de março de 176323. Poucos anos depois, no fim do século XVIII, durante o governo do conde de Vale de Reis (1786-1795), provavelmente em resultado da transferência para Tavira do regimento de infantaria de Faro, por volta de 178024, torna-se necessário avançar com a remodelação e ampliação no hospital do Largo do Cano. O projeto de restruturação, da autoria de José de Sande Vasconcelos, datado de 1795 e constituído por duas plantas (do piso inferior e do superior), foi encomendado pelo conde de Val de Reis e aprovado a 24 de junho de 179525. As obras terão começado logo após obtida a aprovação. Segundo o projeto de José de Sande de Vasconcelos, na fachada, de remate curvilíneo e enquadrada por fogaréus ornamentais, seria colocada uma pedra com as Armas Reais, acompanhada por uma inscrição comemorativa na qual se poderia ler: “Por ordem do Ill.mo e Ex.mo Conde d’Val de Reys…” Note-se, o engenheiro militar faz questão de usar no projeto duas cores distintas ao desenhar a planta, de modo a diferenciar o que já existia (a rosa) do que se pretendia edificar (a amarelo). Segundo o projeto de 1795, no piso inferior, onde já estavam o Corpo da Guarda, a casa do comandante, ADF, Notariais de Tavira, cota 8-5-331, fls. 37v a 40. ADF, Notariais de Tavira, cota 8-5-331, fl. 104. 24 Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, 1993, p.259. 25 Cf. BNP, Planta do plano inferior e alçado do hospital militar de Tavira, cota d-53-r_2). 22 23 10 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 uma arrecadação para camas e outras divisões, seria construída uma enfermaria, para presos, e uma sala de cirurgia; no piso superior, onde existia uma enfermaria, a cozinha, as latrinas, a casa do receituário, a despensa, a casa da lenha e outras divisões devolutas, seria edificada outra enfermaria, uma casa para o médico e uma casa de convalescença. Como se percebe, estas obras visavam sobretudo aumentar a capacidade do hospital, como se deduz da intenção de construir novas enfermarias. Já no século XX, o hospital militar de Tavira, entretanto desativado, passará a funcionar como aquartelamento para as tropas estacionadas na cidade e mais tarde como dormitório e messe de oficiais e sargentos. Permanece ainda hoje na posse militar e em funcionamento. O casão da atalaia A primeira estrutura destinada a alojamento de tropas construída em Tavira após a transferência do governador do Reino do Algarve para a cidade terá sido o intitulado “casão” da Atalaia, que existiu nas traseiras da ermida de São Sebastião, no espaço hoje compreendido entre a Ladeira de São Sebastião e a Travessa da Feira26. O casão da Atalaia terá sido edificado no princípio da década de 60 do século XVIII (c.1762-63) num terreno propriedade do concelho e às custas da população civil, que o fez para se livrar da obrigação de alojar nas próprias cavalariças os cavalos das tropas que a Tavira costumavam “vir em diferentes serviços de Vossa Alteza Real”. Porém, devido à fraca qualidade da construção, nos primeiros anos do século XIX (por volta de 1803), o casão estaria já incapaz do uso para que fora edificado, o que leva o então governador do Reino do Algarve, D. Francisco de Melo da Cunha Menezes, a autorizar um tal José Salgado, oleiro oriundo de Sevilha, a nele instalar uma “fábrica” de louça.27 Em 1815, o Príncipe regente, futuro D. João VI (1816-1826), vai incumbir o arcebispo-bispo D. Francisco Gomes do Avelar, prelado que esteve à frente da diocese algarvia entre 1789 e 1816 (e que desde 1808 desempenhava ainda, de modo interino, as funções de governador e capitão-general), de averiguar se o edifício conhecido como o “casão da Atalaia”, em Tavira, teria capacidade para servir como aquartelamento, como opinava o coronel Duarte José Fava, oficial do Real Corpo de engenheiros e Intendente Geral das Obras Militares. Seguindo as instruções do Príncipe, D. Francisco Gomes desloca-se então a Tavira, acompanhado pelos “mais hábeis” mestres-de-obras da região, para averiguar as Cf. Marco Sousa Santos, “Tavira: O “Casão” da Atalaia (1762-1815)”, in Jornal do Algarve n.º 2980, edição de 8 de Maio de 2014. 27 AHM, Carta de D. Francisco Gomes do Avelar para o Príncipe regente, cota PT AHM-DIV-1-14-092-08 (fundo de folhas avulsas). 26 M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 11 condições da estrutura. Segundo o seu relatório, as paredes do casão eram de pedra e cal até à altura de três palmos e daí para cima de taipa (barro e cascalho compactados). A taipa não era, porém, de qualidade, pelo que apresentava já sinais de degradação. Também o madeiramento da cobertura estava em ruínas, havia carência de portas e janelas e nem as ferragens se poderiam aproveitar, por se acharem corroídas pela ferrugem. Na verdade, de todo o edifício, somente algumas telhas se poderiam vir a aproveitar, razão pela qual o autor do relatório conclui que o casão da Atalaia era, pelas suas dimensões, capaz para alojar toda uma companhia, ou até mais, mas, atendendo ao estado péssimo de conservação, e “má construção”, não apresentava condições estruturais para esse fim. Nessa ocasião, apesar de desaconselhar vivamente o aproveitamento do casão da Atalaia para servir de aquartelamento, D. Francisco Gomes recomenda que, em benefício da população algarvia, nele se conservasse a “Fábrica de Louça”28. Na atualidade nada resta do Casão da Atalaia, cuja estrutura terá sido totalmente demolida no século XX ou ainda na centúria de Oitocentos. A única representação do casão da Atalaia atualmente conhecida está incluída numa carta parietal setecentista, da autoria de José de Sande Vasconcelos, na qual o edifício em causa vai ser identificado com a designação de “Quartéis”29. O quartel da atalaia Conforme se explica na inscrição hoje colocada sobre a sua monumental Porta de Armas, a construção do quartel da Atalaia (um dos mais antigos do país) terá tido início em 1795, ou seja, no último ano do governo do conde de Val de Reis e durante o reinado de Dona Maria I (1777-1815). O edifício é constituído por quatro corpos de formato longitudinal articulados de modo a formar uma ampla Praça de Armas central, de planta retangular. A fachada principal, virada a norte, é constituída por um corpo central, de dois pisos, sendo este dominado pela Porta de Armas com portal de cantaria rematado por epígrafe comemorativa, óculo elíptico e escudo com as armas reais (com o colar da Ordem de Cristo), dois torreões com telhados de mansarda nos extremos, e corpos intermédios com um só piso. No piso superior destacam-se as janelas de peitoril com moldura de recorte setecentista. Até ao início da segunda metade do século XVIII, não existiu em Tavira nenhum tipo de aquartelamento militar de natureza permanente. As tropas que passavam pela cidade acomodavam-se nas casas dos particulares ou em alojamentos temporários instalados no Campo da Atalaia, junto à ermida de São Sebastião. A necessidade de avançar com a construção de um aquartelamento terse-á feito sentir logo a partir de 1755, data em que D. Rodrigo António de Noronha e Idem, Ibidem. Cf. Marco Sousa Santos, “Tavira: O Casão da Atalaia (1762-1815)”, in Jornal do Algarve n.º 2980, edição de 8 de Maio de 2014. 28 29 12 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Meneses se transfere para Tavira com as tropas estacionadas em Lagos, mas sobretudo após a transferência para a cidade do regimento de infantaria de Faro, nos anos oitenta do século XVIII30. Seja como for, é só durante o governo do conde de Val de Reis (1787-1795), que avançam as diligências no terreno e tem início a construção de um aquartelamento, obra cujo projeto terá sido confiado ao coronel José de Sande Vasconcelos31. O mais antigo testemunho documental do estado das obras será um levantamento topográfico do Largo da Atalainha encomendado pelo governador (e executado pelo mesmo José de Sande Vasconcelos), no qual se demarca o espaço destinado à futura construção (com 535 palmos de comprimento e 332 palmos de largura)32. Não obstante o que se afirma na epígrafe colocada na fachada do quartel (que remeterá para a data de colocação da primeira pedra) as obras terão tido início em junho de 1794, data em que a Fazenda Pública regista um primeiro gasto de 110.000 réis com a construção dos “Quartéis de Tavira”, provavelmente relacionado com a preparação do terreno. Até ao final desse ano serão despendidos na obra 998.635 réis, no ano seguinte a quantia de 4.660.330 réis e em 1796 um total de 2.277.132 réis33. Os trabalhos terão avançado a bom ritmo até 1798, data em que as religiosas do convento do Santíssimo Coração de Jesus da Estrela da cidade de Lisboa, como donatárias do reguengo de Tavira, o desembargador José Bernardo da Gama e Ataíde, como dono da Horta d’El Rei, e os Padres do convento de Santo António de Tavira vão interpor uma ação judicial conjunta com o objetivo de parar as obras do quartel da Atalaia. Queixavam-se os requerentes que a água da nascente da Atalaia, que “desde antigos tempos, que excedem a memória dos homens, e por uma posse nunca interrompida” se utilizava para regar as suas hortas urbanas, tinha sido desviada para as obras por ordem de José Caetano de Andrade e Castro, inspetor das mesmas, causando-lhes prejuízo. Acrescentavam ainda os queixosos que no ano de 1798, por uma “conta menos ingénua” do inspetor se tinha inclusive interferido na nascente, “rompendo-se a rocha mais para o fundo e para os lados” e provocando o desaparecimento de “grande quantidade de água, do que resultou o gravíssimo prejuízo de ficar até ao presente grande parte de cada uma das hortas sem se poder cultivar nem produzir hortaliças e frutos”. Em agosto de 1799, enquanto não era resolvida a questão da água, as obras acabam por ser temporariamente interrompidas34. Terá sido neste contexto que o então brigadeiro José de Sande Vasconcelos executa (a modo de relatório) dois desenhos relativos ao quartel de Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, 1993, p.259. Cf. José Eduardo Horta Correia, Vila Real de Santo António – urbanismo e poder na política pombalina, 1997, p.32. 32 BNP, Planta do Largo da Atalainha da cidade de Tavira, cota D-58-R. 33 BNP, Mapa da despesa das fortificações e mais obras do Reino do Algarve, cota D-60-R. 34 AHM, Correspondência do coronel João Austin e de Francisco, bispo, governadores das Armas do Reino do Algarve, para D. Miguel Pereira Forjaz…, cota PT/AHM/DIV/1/14/092/06 (fundo de folhas avulsas). 30 31 M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 13 Tavira (incluindo uma planta com as divisões no interior da estrutura), dando conta do que se encontrava construído e do que faltava ainda construir. A partir da análise destes dois desenhos é possível perceber que no final do século XVIII, quando as obras são compulsivamente interrompidas, apenas se encontravam de pé a fachada Norte, incluindo os torreões e a Porta de Armas, e uma pequena parte do corpo lateral oriental. Tudo o mais permanecia ainda por construir e a maior parte da área do pátio central continuava inclusive por desentulhar35. Não se sabe ao certo durante quanto tempo estiveram paradas as obras do quartel da Atalaia, mas é provável que a instabilidade provocada pelas invasões francesas e a consequente partida da corte para o Brasil (1807) tenha dificultado a progressão dos trabalhos. Seja como for, sabe-se que em 1812 um oficial com a patente de tenente-coronel vai pedir ao então governador interino, o arcebispo-bispo D. Francisco Gomes do Avelar, a indispensável licença para ocupar “um quarto pertencente aos Quartéis que em Tavira se principiaram”, o qual se achava devoluto, tal como “outros mais dos mesmos Quartéis”. O prelado mostra-se favorável ao pedido, porque, argumentava na ocasião, “seria muito útil que aquele principiado edifício” estivesse habitado “nas partes em que está completo”, de modo a garantir a sua manutenção, porque fechado e desocupado, como estava, rapidamente se viria a perder36. Deduz-se, portanto, que as obras continuavam interrompidas e o edifício por concluir. Na verdade as obras terão permanecido “suspensas e imanentes” pelo menos até 1815, data em que, perante a alegada iminência do recomeço dos trabalhos no quartel, as religiosas da Estrela, donatárias das Hortas das Canas e do Tiro, pedem que se tomem medidas para inibir o inspetor José Caetano de voltar a “bulir na rocha e nascente de água” da Atalaia, sublinhando-se o facto de existir no dito quartel “uma grande cisterna com abundância de água, que bem pode servir para as obras” sem lesar terceiros37. Não se sabe ao certo quando foram retomados os trabalhos no quartel da Atalaia. Não obstante, tudo indica que a obra terá avançado de forma lenta, prolongando-se até ao último quartel do século XX38. Hoje, o quartel continua em funcionamento, alojando o Regimento de Infantaria nº1. Cf. AHM, Borrão do quartel do regimento de Tavira Reino do Algarve; Perspetiva do interior do Quartel (de Tavira). 36 AHM, Carta de D. Francisco Gomes do Avelar para D. Miguel Pereira Forjaz, PT AHM-DIV-1-14-083-15 (fundo de folhas avulsas). 37 AHM, Correspondência do coronel João Austin e de Francisco, bispo, governadores das Armas do Reino do Algarve, para D. Miguel Pereira Forjaz…, cota PT/AHM/DIV/1/14/092/06 (fundo de folhas avulsas). 38 Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, 1993, pp. 259 e 260. 35 14 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Notas finais Durante quase oito décadas, entre 1755 e 1834, o governador e capitãogeneral do Algarve vai residir em Tavira, que se assume como a capital políticoadministrativa e militar da região. É nessa conjuntura que se constrói na cidade do Gilão um conjunto de novos edifícios relacionadas com a administração do reino (palácio do governador e secretaria do governo) e com a logística militar (casão da Atalaia, hospital militar e quartel da Atalaia). Todas essas infraestruturas, projetadas no âmbito de um programa de obras públicas que teve como principal objetivo transformar Tavira na capital do reino do Algarve, têm em comum o facto de terem sido principiadas no último quartel do século XVIII e por iniciativa ou sob a orientação direta do então governador e capitão-general. Algumas tiveram de ser construídas depressa, o que se acabaria por refletir na qualidade da construção, mas em todas se procurou aliar ao indispensável caráter utilitário alguma monumentalidade inerente aos edifícios públicos. Por serem infraestruturas de grandes dimensões, praticamente todas foram estabelecidas nos limites do então núcleo urbano, contribuindo desse modo para a expansão da cidade e para a ocupação de novos espaços nos arrabaldes. M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve 15 Fontes Manuscritas Arquivo Distrital de Faro (ADF) Notariais de Tavira, cota 8-5-361; Notariais de Tavira, cota 8-6-514; Notariais de Tavira, cota 8-5-331; Notariais de Tavira, cota 8-5-352. Arquivo Histórico Militar (AHM) Carta de D. Francisco Gomes do Avelar para D. Miguel Pereira Forjaz, PT AHM-DIV-1-14-083-15 (fundo de folhas avulsas). Carta de D. Francisco Gomes do Avelar para o Príncipe regente, cota PT AHM-DIV-1-14-092-08 (fundo de folhas avulsas). Correspondência do coronel João Austin e de Francisco, bispo, governadores das Armas do Reino do Algarve, para D. Miguel Pereira Forjaz…, cota PT/AHM/DIV/1/14/092/06 (fundo de folhas avulsas). Correspondência do coronel John Austin para Duarte José Fava, PT/AHM/DIV/1/16/068/45 (fundo de folhas avulsas). José de Sande Vasconcelos, Borrão do quartel do regimento de Tavira Reino do Algarve; Perspetiva do interior do Quartel (de Tavira). Processo de obras com orçamentos inclusos assinados pelo brigadeiro Duarte José Fava, PT/AHM/DIV/1/16/100/10. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1765-1769). Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1769-1776). Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1776-1782). Livro de registo de batismos da freguesia de Santa Maria de Tavira (1803-1808). Memórias paroquiais da freguesia de Santa Maria de Tavira, vol. 36, nº 26, p. 131 a 138. Biblioteca Nacional do Brasil(BNB) José de Sande Vasconcelos, Borrão do alçado da planta de Tavira. Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) José de Sande Vasconcelos, Planta do plano inferior e alçado do hospital militar de Tavira, cota d-53r_2. Planta do Largo da Atalainha da cidade de Tavira, cota D-58-R. Mapa da despesa das fortificações e mais obras do Reino do Algarve, cota D-60-R. Fontes impressas e Bibliografia AMARAL, Manuel, Olivença 1801 – Portugal em guerra do Guadiana ao Paraguai, Tribuna da História editora, Lisboa, 2004. ANICA, Arnaldo Casimiro, Tavira e o seu Termo – memorando histórico, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 1993. CORREIA, José Eduardo Horta, Vila Real de Santo António – urbanismo e poder na política pombalina, Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, Porto, 1997. Diário das Cortes da Nação portuguesa, Lisboa, 1822. 16 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 IRIA, Alberto, Descobrimentos portugueses: O Algarve e os Descobrimentos, volume II, Instituto para a Alta Cultura, Lisboa, 1944. IRIA, Alberto, Da importância geopolítica do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos XV a XVIII, Academia Portuguesa de História, Lisboa, 1976. LINK, Heinrich Friedrich, Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha, Biblioteca Nacional, Lisboa, 2005. LOPES, João Baptista da Silva, Corografia ou Memória económica, estatística e topográfica do Reino do Algarve, 1841. MENDONÇA, D. Filipe Folque de, “O primeiro Duque de Loulé – uma personalidade no Portugal de Oitocentos”, in Atas do I Seminário de Estudos Históricos sobre o Algarve, Associação de Estudo e Defesa do Património de Tavira, Tavira, 2005. MESQUITA, José Carlos Vilhena, O marquês de Pombal e o Algarve – A Fábrica de tapeçarias de Tavira, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 1999. ROCHA, Manuel João Paulo da, Monografia de Lagos, Algarve em Foco editora, Faro, 1991. SANTOS, Marco Sousa, “Tavira: O Casão” da Atalaia (1762-1815)”, in Jornal do Algarve n.º 2980, edição de 8 de Maio de 2014. M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve Figura 1 – D. Nuno de Moura Barreto, 6º conde de Vale de Reis, governador do Algarve entre 1786 e 1795. (Mendonça, 2005:64) 17 Figura 2 – Francisco de Borja Garção Stockler, 1º barão da Vila da Praia, governador do Algarve entre 1828 e 1829. Figura 3 – O palácio dos governadores e a vizinha ermida de Sant’Ana no final do século XVIII. José de Sande Vasconcelos, Borrão do alçado da planta de Tavira. (BNB) 18 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Figura 4 – O que resta do antigo palácio dos governadores, no Alto de Sant’Ana. Figura 5 – Antigas casas da secretaria do governo e respetivas cavalariças.1795. Figura 6 – Porta da antiga secretaria do governo, entre 1828 e 1829. M. SANTOS Tavira enquanto sede do governo do reino do Algarve Figura 7 – Projeto de remodelação e ampliação do hospital militar de Tavira (1795). José de Sande Vasconcelos, Planta do plano inferior e alçado do hospital militar de Tavira (BNP) Figura 8 – Planta do quartel da Atalaia em finais do século XVIII. José de Sande Vasconcelos, Borrão do quartel do regimento de Tavira Reino do Algarve (AHM) 19 20 PROMONTORIA Ano 13 Número 13, 2020 - 2021 Figura 9 - Representação em perspetiva do quartel da Atalaia em finais do século XVIII. José de Sande Vasconcelos, Perspetiva do interior do Quartel (de Tavira) (AHM)