DOSSIÊ DARCY RIBEIRO
Maíra: a liturgia do
sacrifício indígena
Ednilson Esmério Toledo da Silva
Tabata Pastore Tesser
Estudantes de graduação no curso de
Sociologia e Política, da Escola de Sociologia
e Política de São Paulo
Resumo
Este trabalho objetiva analisar a obra Maíra do
autor Darcy Ribeiro, tendo como base o estudo
da estrutura do romance, ou seja, a forma como
tal obra foi dividida, sendo ela em Antífona,
Homilia, Canon e Corpus. Levando-se em conta
que tal divisão constitui também as partes de
uma liturgia católica, a intenção de tal estudo
se baseia na comparação e na argumentação
da causa pela qual o autor fez tal divisão. Para
isso baseamos nossa análise na conceituação de
cada etapa identiicada e relacionando com os
acontecimentos dos capítulos que formam cada
etapa, utilizando citações da própria obra.
Palavras -Chave
Darcy Ribeiro; Maíra; Romance; Antropologia; Liturgia.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 43-49.
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Maíra: a liturgia do sacrifício indígena
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A obra e o autor
Maíra não é uma obra de leitura simples
e fácil. O próprio Darcy Ribeiro airma que
foi elaborada de uma forma complexa. Darcy
a escrevera três vezes, sendo apenas a terceira
versão publicada em 1981 após seu retorno do
exílio.
Nesta obra Darcy Ribeiro utiliza-se de
uma forma não linear para escrever, de forma
literária, a etnologia indígena da tribo mairum,
uma tribo inventada, mas que representa bem as
relações sociais, e mesmo as questões religiosas
existentes em uma tribo. Isso só foi possível
devido ao conhecimento antropológico do
autor. Darcy Ribeiro, na introdução da edição
comemorativa de vinte anos da publicação da
obra, salienta que não se preocupou em não
misturar icção com realidade, e que se permitiu
extrapolar em todos os sentidos na elaboração do
texto. Observa-se isso na seguinte citação:
Não tive nenhum escrúpulo em
misturar mitos, lendas e contos de
tantos povos, mesmo porque conheço
bem meus índios. Sei que eles não têm
nenhum fanatismo da verdade única.
São perfeitamente capazes de aceitar
múltiplas versões de um mesmo evento,
tomando todas como verdadeiras. Estou
certo de que qualquer índio brasileiro,
lendo a mitologia inscrita em Maíra,
a achará perfeitamente verossímil.
(RIBEIRO, 2001, p.22)
Outro ponto a ser salientado no trecho
citado acima é a questão da cumplicidade que
Darcy tem com os povos indígenas brasileiros.
Por ser antropólogo e ter se tornado um
indigenista, Darcy trata o povo indígena como
o seu povo e o defende com a arma que melhor
possui, o conhecimento. De forma que a obra
Maíra é um manifesto.
Os Índios brasileiros, a Religião Católica e
sua liturgia
Nela, até agora, não pudemos saber que
haja ouro, nem prata, nem coisa alguma
de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém
a terra em si é de muito bons ares, assim
frios e temperados como os de Entre
Douro e Minho, porque neste tempo de
agora os achávamos como os de lá.
Águas são muitas; inindas. E em tal
maneira é graciosa que, querendo-a
aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem
das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se
pode fazer, me parece que será salvar
esta gente. E esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar.(Trecho da Carta de Pero Vaz de
Caminha)
Este pequeno trecho da carta de Pero
Vaz de Caminha, conhecida como a certidão
de nascimento do Brasil, já demonstra bem a
intenção dos portugueses ao abarcar na terra
indígena brasileira. A expropriação de ouro e
prata e, principalmente, a ideia etnocentrista de
que deveriam “salvar esta gente”.
Maíra tem o objetivo de ser um manifesto
literário contra essa expropriação que o índio
brasileiro sofreu, e que já foi identiicada na carta
de Pero Vaz. Não se trata apenas da expropriação
da terra, mas da expropriação da identidade e
da cultura indígena. O livro é um grito contra a
opressão sofrida pelo índio, contra a imposição de
proibições dos ritos, mitos e costumes indígenas
e pela castração psicológica do índio efetuada
pelos jesuítas, através da concepção de pecado
instaurada pela religião.
Alfredo Bosi, crítico e historiador de
literatura brasileira, escreveu um artigo chamado
“Morte, onde está tua vitória?” que foi publicado
na edição comemorativa de vinte anos, onde
analisa a obra Maíra e relata o seguinte:
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De todas as extorsões sofridas pelo
índio (e Maíra nos conta que foram
muitas), talvez a mais atroz tenha sido
precisamente esta: o civilizado roubou
violentamente do índio o gozo daquele
tempo-sem-tempo que é a vida alheia
ao trabalho forçado, a vida que se passa
magicamente no rito e se prolonga
no convívio dos mortos. (BOSI apud
RIBEIRO, 2001, p.388)
Em Maíra, como salientado na citação
do Alfredo Bosi, a expropriação da cultura e,
principalmente, da identidade indígena é colocada
como ponto principal e linha condutora. E isso
pode ser observado de forma clara na personagem
do Isaias/Avá, o índio que foi retirado de sua
tribo para viver em Roma e estudar a teologia a
im de se tornar um padre, mas que no inal tem
sua identidade violentada, não sendo nem padre e
nem índio, acabando em um vazio existencial.
Mas Darcy Ribeiro além de um grande
antropólogo demonstra ter um belo senso de
ironia, ao utilizar a divisão da liturgia católica para
dividir os capítulos da obra.
Descobrira que a estrutura de Maíra era
da missa católica, e tudo reescrevi com
essa intencionalidade. Vira bem que o
tema verdadeiro de Maíra era a morte
de Deus, que morria porque o mundo
mairum estava condenado, não tinha
salvação. Isso me permitiu escrever um
capítulo poético e que o próprio Deus,
perplexo, se lamenta e se pergunta que
Deus é ele, e qual será seu destino, com
o desparecimento do seu povo. Ele era
já órfão de seus ilhos. (RIBEIRO, 2001,
p.22)
Pero Vaz de Caminha já falava que ao
chegar em terras tupiniquins, os portugueses
izeram uma missa e que essa missa foi uma das
formas de comunicação e criação de relações com
os indígenas.
Enquanto estivemos à missa e à
pregação, seria na praia outra tanta gente,
pouco mais ou menos como a de ontem,
com seus arcos e setas, a qual andava
folgando. E olhando-nos, sentaram-se.
E, depois de acabada a missa, assentados
nós à pregação, levantaram-se muitos
deles, tangeram corno ou buzina, e
começaram a saltar e dançar um pedaço.
(Trecho da Carta de Pero Vaz de
Caminha)
Mas o que é a liturgia senão um ritual?
Não é uma convenção ritualística como qualquer
outro ritual indígena? No dicionário encontramos
a seguinte deinição para liturgia: “culto público
e oicial instituído por uma igreja; ritual” (Mini
Aurélio, 2012). Para a religião católica apostólica
romana a liturgia é a celebração que comemora
a ceia de Cristo e seu sacrifício pela humanidade,
ou seja, representa a celebração do sacrifício de
Jesus, que tem o seu corpo imolado e comungado,
e que ressuscita redimindo os pecados de todos
os seus seguidores, crentes na religião católica.
Darcy Ribeiro dividiu o romance Maíra
em quatro partes: Antífona, Homilia, Cânon
e Corpus. Partiu do modelo litúrgico da missa
(e dos cultos evangélicos) e fez deslocamento
e inversões do sentido original, exigindo nova
interpretação para o sacrifício. O autor subverteu
textos bíblicos e latinos do ritual antigo,
dessacralizou e ridicularizou o “mistério” – para
evidenciá-lo na pessoa do índio, eucaristiado pela
catequese e pela ganância dos poderosos.
Aqui o autor utiliza seu lado irônico,
pois em Maíra, Darcy prescreve uma missa, um
ritual, uma celebração (como a católica) onde
quem morre não é o Cristo, mas um povo, o
povo mairum. Na verdade, não apenas o povo
mairum, mas o povo indígena brasileiro. Maíra
é a liturgia da celebração da trágica extinção do
índio brasileiro. Extinção que começa através da
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imposição da catequese católica. O colonizador
que dissera que deveria “salvar esta gente” acabou
matando-os.
A liturgia
Neste contexto de divisão da obra
em partes da liturgia, encontramos: Antífona,
Homilia, Canon e Corpus.
No dicionário conceitua-se antífona
como: “versículo cantado pelo celebrante, antes
e depois de um salmo” (Mini Aurélio, 2012). Na
liturgia católica, a antífona é o momento inicial da
celebração em que se tem o canto de entrada do
padre e são apresentadas as intenções da missa.
A Antífona é a primeira parte em Maíra,
parte em que são apresentadas as personagens
principais do livro, Alma e Isaias. Nesta parte
também é relatada a morte da Alma. Esta morte
não se trata apenas da personagem Alma, mas
a morte da alma indígena, que será mostrada
com o desenvolvimento da história. Nessa
parte também é relata a morte de Anacã, chefe
guerreiro da tribo, que morre para dar lugar ao
próximo novo chefe, que será Isaias, o índio que
foi tirado da tribo pela igreja, quando era ainda
novo e que agora não é mais índio e não é padre.
Assim a tribo mairum icará sem chefe, sem
guerreiro, devido à intervenção católica. Ainda na
antífona encontramos três capítulos que mostram
a experiência de aculturação sofrida pelo Isaías
através da educação teológica em Roma. Isso
pode ser observado na seguinte citação:
Todos os homens nascem em Jerusalém.
Eu também? Padre serei, ministro de
Deus na Igreja de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Mas gente eu sou? Não, não sou
ninguém. Melhor que seja padre, assim
poderei viver quieto e talvez até ajudar
o próximo. Isto é, se o próximo deixar
que um índio de merda o abençoe, o
confesse, o perdoe.
Reconheço que estou com complexo,
obsessivo: paranoico ou esquizofrênico?
Sei lá. (RIBEIRO, 1981, p. 29)
Assim como na liturgia católica, em
Maíra, a antífona é o canto inicial, a apresentação
do sacrifício que será celebrado, no caso de Maíra
o sacrifício dos índios e não do Cristo.
A segunda parte da obra é a Homilia. A
homilia é conceituada como: exortação religiosa
fundada num ponto do Evangelho; discurso
sobre coisas religiosas; discurso cansativo sobre
moral. Na liturgia católica a homilia é a segunda
parte mais importante da celebração, tendo a
frente apenas a eucaristia, neste momento da
missa o padre discursa para seus iéis sobre o
evangelho, é uma alusão às pregações do Cristo
que ensinava aos seus seguidores através de
metáforas, parábolas e alegorias. Neste momento
da missa o padre utiliza toda retórica para passar
à sua audiência os conceitos e interpretações da
religião católica referentes aos textos da bíblia.
Em Maíra esta parte possui alguns
capítulos cujos nomes se referem ao ato da fala,
como “A Boca”, “A Língua” e “Verbo”. Este
último capítulo “Verbo” é uma representação
da retórica que os padres utilizam em suas
celebrações. Neste capítulo se vê a retórica da
personagem Xisto, que é um beato, um índio que
lê a bíblia e faz a interpretação das passagens do
livro discursando para os índios que se juntam
para ouvi-lo.
Assim está escrito, está aqui! É a
verdade inteira. Assim é. Ninguém sabe
porque, ninguém explica. Mas é assim
que aconteceu aqui, agora, todo dia
toda hora. O rico enricando e o pobre
penando. Pra mim, nisto está a mão do
Demo, trapaceira, é a parte dele. É a
mão do maligno, é o dedo do Demo, é
o sinal do furtivo. O mundo é a fazenda
de Deus, mas o zelador, quem é? É o
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Diabo! Que é o que este livro ensina?
Ensina tudo. Mas o que este livro mostra
a quem quer ver é a guerra de Deus
contra o Diabo e do Diabo contra nós.
Contra os homens e contra as mulheres.
(RIBEIRO, 1981, p. 193)
O discurso da personagem Xisto é uma
mistura dos ensinamentos religiosos com os
mitos indígenas. A retórica utilizada pelo beato
é igual a dos padres católicos ao interpretarem a
bíblia.
Além do capítulo “Verbo”, outro que
chama a atenção nesta parte da homilia é o
denominado “Missa”, onde Darcy relata o
comportamento das pessoas que trabalham como
missionários da missão Nossa Senhora Grávida
de Deus, uma missão católica que auxilia na
catequização dos índios da região. No capítulo
são apresentadas as diiculdades, os conlitos dos
missionários em reprimir suas vontades sexuais
e seus comportamentos condenados como
pecaminosos. No im do capítulo, o autor deixa
uma questão irônica.
Rezas conluentes, águas reluzentes,
navalhas, tesouras, penitências. Cal e
silício. Arrependimentos. Cada um em
seu mister, reconsagra almas ressacraliza
corpos a Deus doados. Ele a tudo assiste,
do alto. Talvez aprove, comovido, quem
sabe? (RIBEIRO, 1981, p. 166)
Nessa parte temos a liturgia da palavra,
a partir do texto sagrado Mairahu, o Gênesis da
tribo mairum, tudo criado pelo Sem-Nome que
sabia ser o mundo muito ruim, mas dava risadas
e maltratava suas criaturas com um aguaceiro
medonho. Há também o salmo do “messias
sofredor” (Isaías) e o Apocalipse na segunda
leitura, onde João de Deus, na boca de Xisto,
prega sobre o Armagedom, com anjos-sargentos,
urubus-rei, juízo inal, besta-fera, Cristo-cordeiro,
enxofre e trono branco. E os índios atrás da terra
sem males, isto é, terra sem brancos.
A terceira parte do livro é chamada de
Canon, é a parte central da missa católica, também
conceituada como forma de imitação polifônica.
Essa intepretação da polifonia é bem observada
nesta parte, pois aqui Darcy Ribeiro deu voz às
suas personagens através da incorporação dos
deuses Maíra e Micura. Nos capítulos “Maíra:
Remui”, “Maíra: Teidju”, “Maíra: Jaguar”, “Maíra:
Avá” e “Micura: Canindejub” os deuses Maíra
e Micura se incorporam em cada personagem
e a narrativa passa a ser feita através da voz da
própria personagem, como a forma da polifonia.
Na liturgia católica o canon é a parte que
precede a eucaristia, o momento da comunhão
com o corpo de Jesus imolado. Esta parte se trata
de uma preparação para o momento principal da
missa.
Assim como na liturgia católica, o
canon em Maíra (a liturgia mairum) é uma
preparação para o sacrifício do povo mairum.
Essa preparação já começa com a chegada do
aguardado Isaias/Ava que deve tomar o lugar do
guerreiro da tribo, mas o Isaias que chega não é o
guerreiro esperado. Isaias retorna e é questionado
pelos homens da tribo acerca dos conhecimentos
adquiridos no mundo civilizado, mas não
consegue assumir sua condição de reintegrado
à cultura, devido à castração de sua identidade,
resultante da catequização sofrida. Ele não atende
às expectativas dos mairuns e se isola na tribo.
O Avá veio e não veio. Este que veio
é e não é o verdadeiro Avá. O que eu
esperava, e que vi vindo dia-a-dia por
terras e águas, não chegou. Aquele sim,
era o Avá mesmo, inteiro. Este é o que
restou de meu ilho Avá, depois que
os pajés-sacacas mais poderosos dos
caraíbas roubaram sua alma. (RIBEIRO,
1981, p.270)
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Na liturgia católica o canon é inalizado
com um louvor de gloriicação ao Cristo que será
sacriicado. Na obra Maíra, o canon é inalizado
com o capítulo denominado “Armagedom”, uma
alusão ao Apocalipse católico. Neste capítulo, o
beato Xisto volta a discursar sobre os textos da
bíblia, neste caso, sobre o há-de-vir, sobre o que
será, e assim o beato relata o apocalipse bíblico,
salientando a condenação dos pecadores.
Deus é grande. Talvez até demais. Será
que a Ele importam nossas louvações,
nossas lamentações, nossas rezas e
hinos? Pode que não. Ignoramos. Só
sabemos com certeza certa que Ele
abomina os nossos pecados. E isso
sabemos, por que está escrito no livro do
sopro de Deus. (RIBEIRO, 1981, p. 339)
A quarta e última parte do livro é o
Corpus, na liturgia católica o auge da celebração,
o momento em que o corpo de Cristo é imolado e
comungado. Apresenta a comunhão, a Eucaristia,
quando se bebe do sangue e se come do corpo
daquele que foi imolado. Sendo que no im desta
parte se tem a ressureição de Jesus, que morreu
pela remissão dos pecados dos homens.
Em Maíra, esta parte demonstra que o
im é inevitável. Alma descobre que está grávida
de gêmeos, mas a gravidez não inda, o sacrifício
é estéril, não renovador. Nessa parte acontecem
várias mortes, Juca, Boca, o Oxum e a índia Cori.
Isaias/Avá se isola cada vez mais.
No capítulo chamado “Mairañee”, Darcy
Ribeiro dá voz ao próprio Deus, que já não sabe
se haverá ressureição nessa liturgia, e questiona a
sua imortalidade.
mairum-mairuns não estará contado,
de mim também despojado? (...) Como
evitar o desastre inevitável que eles e
talvez a mim, a nós também, soçobrará?
Que Deus sou eu? Um Deus mortal?
(RIBEIRO, 1981, p. 354-355)
E a parte corpus é inalizada, e também o
livro, com o capítulo “Indez”. Indez é um termo
que designa um ovo que é deixado no ninho de
uma ave, para que ela volte a pôr ovos naquele
lugar. Indez é um ovo que não dará uma nova
vida. Por isso é o im, não há nova vida, não há
ressureição nessa liturgia mairum, é a extinção da
identidade mairum, da identidade indígena. Tratase de uma liturgia onde o sacrifício não se dá com
o Cristo, mas com o povo mairum.
Considerações Finais
A partir da análise feita através da divisão
das partes da liturgia e da constituição dos
capítulos de cada parte da obra Maíra, veriicase que se trata de uma obra crítica, sem deixar
de ser literária. Um verdadeiro manifesto contra
a violação e expropriação da identidade e da
cultura indígena. É o relato da morte da Alma e
também da alma indígena. Darcy Ribeiro chama
a tribo de Mairum, mas poderia ser Bororo,
Kinja, Xetá e muitas outras tribos brasileiras que
foram extintas, devido à integração impositiva
do homem branco, da religião católica e de seus
costumes. A integração, da forma forçada como
foi feita, extinguiu a identidade indígena. E foi
para criticar esta integração forçada, que Darcy
Ribeiro escreveu Maíra.
Sobe a mim o murmúrio sem im. É o
meu povo lá embaixo pedindo o milagre:
a exceção. Quer icar (...) Sem eles quem
me há de lembrar, louvar? Povo meu
que reiz quebrando molde de DeusPai (...) Um mundo despovoado de
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CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de
Caminha. Em acervo digital da Biblioteca
Nacional: http://objdigital.bn.br/Acervo_
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______. Maíra. 21ª ed. (Edição comemorativa de
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SANTOS, Luiza Aparecida, O percurso da
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