Aletheia
ISSN: 1413-0394
mscarlotto@ulbra.br
Universidade Luterana do Brasil
Brasil
Sander, Lucilene; Vieira Zanella, Andréa
Memória e experiência no processo de formação estética de professores(as)
Aletheia, núm. 28, julio-diciembre, 2008, pp. 60-76
Universidade Luterana do Brasil
Canoas, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115012542006
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Aletheia 28, p.60-76, jul./dez. 2008
Memória e experiência no processo de formação estética
de professores(as)
Lucilene Sander
Andréa Vieira Zanella
Resumo: É objetivo deste trabalho refletir sobre a memória e a experiência a partir da análise
das produções discursivas de professoras de séries iniciais do ensino fundamental, participantes de um curso de formação continuada. Com os referenciais de Bakhtin e do enfoque históricocultural em psicologia, entende-se que a memória se constitui nas relações sociais e emerge nos
processos de significação. Com esse pressuposto, analisou-se o discurso das professoras produzido no decorrer de uma das atividades desenvolvidas na última oficina do curso de formação
continuada. Nessa atividade foi proposto um (re)encontro, um (re)olhar, um passeio pelos
materiais que foram utilizados e/ou produzidos nas oficinas anteriores de modo a possibilitar
sua (re)vivência. Constatou-se que nos cenários reproduzidos as memórias emergem diante do
que remete à prática pedagógica ou às vivências da vida pessoal. A palavra, o ver e o ouvir
trabalhados no decorrer do curso capturaram a atenção das professoras que produziram, nesse
encontro, memórias discursivas sobre o vivido.
Palavras-chave: memória; experiência; formação continuada de professores.
Memory and experience of training teachers
Abstract: The objective of this work is to reflect about the memory and experience that are
thought by the analysis of the discursive productions of teachers from the initial grades on
basic school in respect of activities in a course of continued education. The Bakhtin’s references
and the historical-cultural approach in psychology, understands that the memory is constituted
in the social relations and emerges in the process of meaning. By these presupposes, the
teachers’ discourses produced during an activity on the last workshop of the continued education
course was analyzed. In this activity, a (re)union, a (re)looking, a stroll through the materials
utilized and/or produced in the previous workshops was proposed, so it’s (re)experience
would be possible. It has been verified that, in the reproduced scenarios, the memories emerge
in front of what reminds the pedagogic practice or the immediate apprehensions of personal
living. The word, the seeing and hearing, worked during the course, caught the attention of the
teachers who produced, in this meeting, discursive memories about the lived.
Keywords: memory; experience; continued education of teachers.
Introdução
O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste
canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente?
Minha experiência vem de que eu já consegui pintar o halo das coisas. O halo
é mais importante que as coisas e as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a
palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que
projeta sombra. E é trombeta que anuncia. (Lispector, 1973 p.57)
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Reflexões sobre memória, vivência e experiência são desenvolvidas neste trabalho
a partir da análise das produções discursivas de professoras de séries iniciais do
ensino fundamental acerca de atividades desenvolvidas em um curso de formação
continuada. O curso, intitulado “Oficinas Estéticas: atividade criadora e prática
pedagógica”1 , teve por objetivo “refletir sobre as (im)possibilidades de educação
estética e de se engendrar processos de criação em contextos de ensinar e aprender”
(Maheirie & cols., 2006, p.239) e destinava-se a formação continuada dos professores
da rede pública de ensino de Florianópolis/SC. Foi desenvolvido em duas edições: a
primeira, de maio a julho de 2004, e a segunda, de abril a dezembro de 2005, e pautouse na noção de sujeito enquanto produto e produtor da realidade, ou seja, constituinte
do contexto social e expressão deste. Atividades imaginativas e criadoras foram
privilegiadas na medida em que se entende que estas possibilitam a reflexão e reinvenção
das práticas profissionais, a criação de novas possibilidades e formas de existência
para si e para as pessoas com as quais se (com)vive (Maheirie & cols., 2006).
Na edição de 2004 foram realizados oito encontros semanais, com
aproximadamente 3 horas/aula cada um. Participaram desses encontros cerca de 30
professoras de séries iniciais do ensino fundamental da rede municipal de ensino e
organizadas em dois grupos, compostos inicialmente por 18 e por 12 professoras. Os
encontros dessa edição foram realizados sob a forma de oficinas estéticas e criadoras,
almejando que estas subsidiassem a reflexão e ressignificação das práticas docentes
cotidianas e das relações estabelecidas entre essas professoras e o contexto
educacional. Com esse fim as oficinas aconteceram por meio de atividades mediadas
por diversas linguagens artísticas. Os focos dessas oficinas eram o ver, o ouvir, a
palavra e o corpo2 , uma vez que estas temáticas relacionam-se diretamente ao modo
como o mundo é vivido, significado e experienciado pelas professoras, bem como ao
modo como elas se percebem. É por meio do ver, do ouvir, da palavra e do corpo que
tais compreensões e a trajetória de formação estética de cada uma, podem ser
(re)inventadas.
A última oficina foi organizada em cinco atividades. Na segunda delas foi proposto
um (re)encontro, um (re)olhar, um passeio pelos materiais que foram utilizados e/ou
produzidos nas oficinas anteriores de modo a possibilitar sua (re)vivência. Buscavase, com esse passeio, a produção da memória discurvisa sobre o vivido, necessária à
produção de sentidos de modo a que a vivência estética pudesse ser alçada à condição
de experiência.
O passeio, de acordo com Zanella (2006a), quando estético, é um importante
movimento na medida em que contribui para a (re)/(des)/educação do olhar, pois
O referido curso foi proposto por um grupo de pesquisadoras que integram o Núcleo de Pesquisa em Práticas
sociais, relações estéticas e processos de criação, pesquisadoras estas dos Departamentos de Psicologia e
Estudos Especializados em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. É objetivo do núcleo
investigar as temáticas relações estéticas, atividade criadora e constituição do sujeito, tendo como referenciais
o enfoque histórico-cultural em psicologia e a teoria bakhtiniana.
2
A descrição detalhada de cada oficina encontra-se em Maheirie e cols. (2006). Para análises pormenorizadas
de atividades específicas, ver Zanella (2006b), Maheirie (2006), Da Ros (2006), entre outros.
1
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constitui-se num exercício de sair do lugar ocupado e produzir outros sentidos e
formas de ad-mirar a realidade. Olhares estéticos dependem da visão e, principalmente,
das relações concretas estabelecidas entre as pessoas e a realidade (Zanella, 2006a).
São, portanto, histórica e socialmente produzidos, o que provoca a reflexão sobre os
contextos que se apresentam como condição de possibilidade para os olhares que são
ali forjados, (trans)formados, (re)criados (Zanella, 2006b).
Junto com os olhares advêm às palavras que vivificam vivências negadas,
afirmadas, revividas nas narrativas que (re)inventam, pintam o halo das coisas, como
na epígrafe que abre esse texto. São justamente olhares e as palavras proferidas nesse
último encontro – o passeio estético – que selecionamos como foco para as reflexões
aqui apresentadas. Delimitou-se, portanto, como objetivo deste trabalho refletir sobre
a memória e a experiência a partir da análise das produções discursivas de professoras
de séries iniciais do ensino fundamental acerca de atividades desenvolvidas em um
curso de formação continuada.
Breves considerações teóricas sobre memória, experiência e vivência
Há muito se busca compreender a memória, como esta se constitui e processa
nas relações cotidianas. Para os gregos, a memória era uma deusa, a Mnemosyne, que
inspirava os poetas, anunciadores da história e da Paidéia grega, homens considerados
com acesso ao divino (Braga, 2000; Smolka, 2000). Entretanto, tal visão transformouse historicamente em razão dos lugares que a narrativa passa a ocupar nas relações
interpessoais. De acordo com Smolka (2006), o discurso passa a ser considerado lócus
de memória e, a partir da obra de Bakhtin, permeado por vozes do que foi dito e de
quem fala. Passou a ser espaço interdiscursivo (Smolka, 2000).
Diferentes campos de conhecimento, como a psicologia, a neurociência, a
antropologia, a filosofia e a sociologia buscam explicar a memória, que processos a
permeiam e a constituem. Braga (1997, 2000) aponta que as ciências biológicas de um
modo geral focam a localização da memória no cérebro, sendo este a sede da memória.
De acordo com os fisiologistas Helene e Gilberto (2003), o sistema nervoso, ao longo
de seu processo histórico de interação com o ambiente, reage a estímulos e também às
contingências temporais e espaciais entre estes e destes com suas respostas,
estabelecendo um processo de aprendizagem que influencia e modifica seu
funcionamento, tendo, assim, um acúmulo de registros das experiências, o que constitui
a memória. Esta, por sua vez, de acordo com esses autores, pode ser distinguida entre
memória de longo prazo e memória operacional, sendo que “compreende um conjunto
de habilidades mediadas por diferentes módulos do sistema nervoso, que funcionam
de forma independente, porém cooperativa.” (Helene & Gilberto, 2003, p.13).
Segundo Braga (1997), muitos modelos de explicação da memória com base na
neurociência subordinam seu estudo unicamente ao desenvolvimento celular; outros
consideram as causas e efeitos dos comportamentos, mas a partir da anatomia celular.
Há também modelos que, conforme a autora, consideram o ambiente, mas esse é
meramente um fornecedor de estímulos e eventos a serem representados e armazenados.
Esse modelo é apresentado por Helene e Gilberto (2003) como reducionista, pois entende
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o processo de recordar como algo unicamente biológico e a memória como uma
capacidade individual, embora, de acordo com Braga (1997, 2000), esse modelo não
negue a importância dos fatores sociais.
Sacks (1995), renomado neurologista, contrapõe-se às perspectivas
localizacionistas predominantes nos estudos das ciências biológicas e mostra ser
possível compreender danos neuronais e seus efeitos também sobre a memória indo
além da anatomia e considerando a história e as experiências sociais das pessoas, o
que é consoante com as contribuições da psicanálise sobre o tema.
Segundo Chnaiderman (2003), a teoria psicanalítica constrói-se a partir de uma
questão colocada pela memória, visto que a psicanálise busca uma prática que permita
o acesso das lembranças esquecidas à consciência. A memória para a psicanálise está
relacionada ao processo de análise ao pretender permitir, de acordo com Rauter (2000),
retomar o passado para melhor viver o presente, sendo para tanto importante ter, além
de muitas lembranças, o passado como foco.
Rauter (2000) reflete também sobre outra concepção de memória, baseada na
teoria do esquecimento3 de Nietzsche, e na obra de Deleuze. A memória intensiva,
concepção tratada pela autora, diverge do posicionamento da psicanálise, uma vez
que acontecimentos passados devem ser resgatados com a finalidade de criar e que o
excesso de história e de lembranças limita a ação e a criação, apontando para a
incapacidade de agir e de esquecer (Rauter, 2000).
Outro autor que contribui com as reflexões sobre memória é Henry Bergson.
Conforme Bosi (1994), a memória na perspectiva de Bergson poderia ser compreendida
como memória-hábito, relacionada aos esquemas comportamentais cotidianos e muito
utilizada pelo homem ativo, e a memória-sonho, relacionada às lembranças puras que
evocam momentos únicos vivenciados por um indivíduo e que estavam latentes no
que Bergson nomeia inconsciente, sendo, portanto, uma memória espontânea e mais
evocada pelo homem maduro, velho. Bosi (1994) aponta que nas considerações sobre
memória que Bergson faz este não reflete sobre ela como um fenômeno social. Essa
reflexão é feita por Bartlett e por Halbwachs a partir dos estudos até então desenvolvidos
sobre memória (Bosi, 1994; Braga, 1997, 2000).
Bartlett considera a experiência social de um grupo para compreender a memória
e o processo que leva à lembrança (Bosi, 1994). Halbwachs, por sua vez, afirma que a
memória de uma pessoa depende da tradição e do grupo com qual aquela pessoa
convive e se relaciona (Bosi, 1994). Este autor afirma que as lembranças podem parecer
criações puras e individuais, mas são símbolos ou representações de situações que se
deram em grupo e que não são revividas por meio da lembrança, entendendo que a
memória individual se dá pelo encontro de várias correntes de pensamento, da memória
coletiva (Halbwachs citado por Braga, 1997). Concordando com Bartlett e Halbwachs,
Bosi (1994) destaca que é preciso duvidar da sobrevivência do passado na memória tal
como foi vivido, uma vez que lembrar é reconstruir e repensar as experiências do
3 Nessa outra concepção os momentos de plenitude da vida, como a paixão, são momentos de esquecimento
(Rauter, 2000).
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passado a partir de imagens atuais, sendo a vida atual, desse modo, inerente ao
processo de reconstrução do passado.
Outros autores que estudaram a memória foram os representantes do enfoque
Histórico-Cultural em Psicologia. Estes contribuíram ao questionarem a compreensão
de memória como uma capacidade mental preexistente, entendendo-a como emergente
nos processos de significação e elaborada no contexto social (Braga, 1997).4
Para o enfoque histórico-cultural a memória humana é mediada pelas relações
estabelecidas com a realidade, produto dos entrecruzamentos das experiências sociais,
das condições do desenvolvimento histórico e social, das significações (Braga, 1997,
2006). Luria (1999) indaga-se sobre os efeitos que a memória e sua capacidade podem
ter sobre a personalidade de uma pessoa, sobre as relações que estabelece com outras
pessoas e, portanto, sobre sua constituição enquanto sujeito, pois essa perspectiva
entende que a memória é constituidora das subjetividades, das relações humanas e do
social. É um processo ativo de (re)construção das experiências, influenciando, desse
modo, as informações de ordem ideológica, as configurações de valores (Braga, 2000).
De acordo com Pino (2006), a memória é uma função humana e lembrar é uma
função da memória; é, portanto, um processo psicológico caracteristicamente humano
e, portanto, é uma obra humana, social, e não da natureza (Vigotski, 1995; Pino, 2006).
Segundo Vigotski (2000), todo processo psicológico é social e foi uma relação
entre pessoas antes de se tornar singular; nesse sentido, toda possibilidade psicológica
é social e historicamente produzida. Ou seja, a memória é social e se constitui como
processo psicológico pela apropriação de significações de experiências no decorrer da
história humana (Vigotski, 1991). A memória coletiva, para Vigotski, abarca as memórias
individuais, uma vez que as recordações individuais são envolvidas pelas noções e
imagens dos meios sociais dos quais fazemos parte (Braga & Smolka, 2005).
De acordo com Smolka (2000), o discurso organiza e/ou institui recordações,
constitui esquecimentos e lembranças se tornando um lócus do público e do privado,
da recordação partilhada, sendo, então, fundamental para a socialização da memória e
das experiências por meio da linguagem. Esta é constitutiva da memória, remete a
fatos, objetos, a imagens, cria modos de ação e de relação, ou seja, forja e (trans)forma
a memória que se inscreve no discurso (Smolka, 2000).
Pino (2006) acrescenta que o esquecimento e a lembrança auxiliam na compreensão
da história humana, visto que apontam para a impossibilidade de excluir desta o
indesejável, uma vez que esquecer, para este autor, é “fazer de conta” que uma dada
experiência não existiu, pois ela não pode ser apagada ou substituída.
A compreensão da memória na perspectiva do enfoque histórico-cultural em
psicologia está ligada, portanto, à experiência. Esta, de acordo com a obra de Vigotski,
media os processos de memória e determina a consciência, visto que para ser experiência
esta deve ser significada (Vigotski, 1996). “Falar de experiência é falar de corpo/sujeito
afetado pelo outro/signo. É falar da vida impregnada de sentido” (Smolka, 2006, p.125).
Braga (1997) afirma que o modo de entender a memória desse grupo difere do modo de compreensão de
Bartlett e Halbwachs na medida que aqueles dão importância ao signo na constituição do sujeito.
4
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A experiência, segundo Vigotski (1996), é social na medida em que esta se produz na
relação com um outro, e também histórica, uma vez que, ao longo da história humana,
transmite-se a experiência das gerações anteriores.
Mas aquilo que se institui como experiência se funda no vivido. Vivência5
enquanto acontecimento que, uma vez significado, uma vez objeto do discurso que o
relembra, revive e reinventa, é alçado à condição de experiência. Geraldi (2006, p.12)
afirma que “Todo acontecimento que eu vivencio se transforma em uma experiência.
Todo acontecimento que eu não vivencio, só vivo, não é experiência, é vivido. (...)
Experiência é aquilo que ‘se nos passa’, que nos toca, que se passa em nós, que mexe
em nós.” Experiência e vivência, portanto, são entrelaçadas através de produções
discursivas que se reinventam como memória na relação com outros discursos cuja
origem e autoria nos escapam: são vozes várias a ecoar tempos, contextos e condições
reinventados nos encontros com outros onde ao mesmo tempo as pessoas ali se
reinventam.
Método
A oficina foco de análise foi intitulada ‘Juntando supostos fragmentos e suas
possibilidades de devir’ e objetivou integrar as vivências estéticas e os sentidos
experienciados ao longo do processo de formação estética de professores. Dessa
oficina, selecionamos para análise a proposta da segunda atividade, o passeio, que
consistiu numa retrospectiva geral das oficinas anteriores, momento em que as
participantes socializaram lembranças em relação ao vivido e, de certa forma, foram
convidadas a refletir sobre as atividades desenvolvidas.
A oficina aconteceu com a presença de sete professoras. Para o passeio estético
os materiais e portifólios das oficinas anteriores foram distribuídos e organizados, na
ordem cronológica em que foram propostos nos encontros, em duas salas de grupos
do Serviço de Atendimento Psicológico (SAPSI) da Universidade Federal de Santa
Catarina, local onde as oficinas foram realizadas.
Alguns materiais estavam dispostos de acordo com o local que ocuparam durante
a oficina da qual fizeram parte. Como muitos foram produzidos ao longo de oficinas ou
então se tratavam de cartões e cartazes, estes estavam dispostos de modo a serem
visíveis, assim, estavam afixados nas paredes, dispostos sobre um biombo, no chão
ou sobre mesas escolares.
A atividade se deu pela visitação de cenários que possibilitavam às pessoas
lembrar suas vivências, que provocavam o deslocamento em relação ao supostamente
experienciado e a expressarem o discurso sobre o vivenciado ou falarem sobre o que
foi somente vivido. Esse discurso foi evocado pelos materiais expostos ou, então, em
resposta à mediação das pesquisadoras que organizaram o curso de formação
5
De acordo com Fariñas León (1999), Vigotski é precursor de um novo pensamento que reflete sobre o lugar
do conceito de vivência, sendo esta, para Vigotski, a unidade onde está representado o que a pessoa
experimentou e as relações afetivas dela com o meio, suas habilidades cognoscitivas e sociais.
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continuada, mediação essa que ocorreu por meio de perguntas como: ‘Eles estavam
todos na parede, lembram?’, ‘O que a gente trabalhou aqui?’
O ‘passeio’ foi registrado em imagens com o auxílio de uma câmera digital móvel.
Essas imagens foram assistidas várias vezes, o que permitiu identificar os cenários
que mais mobilizaram as participantes e para os quais houve significativa produção
discursiva. O cenário que suscitou a maior produção discursiva foi o referente à oficina
7, que objetivou a leitura corporal e a compreensão do corpo como signo6 . O cenário
da oficina 6, que tratava da palavra enquanto signo, capturou também o olhar das
professoras e suscitou discursos sobre a prática pedagógica. Diante do cenário da
oficina 5 houve a re-vivência do encontro. O cenário 4 evocou poucos e dispersos
discursos. O cenário 3, por sua vez, evocou muitos discursos, mas esses eram
fragmentados. O cenário 2 trouxe discursos sobre o ambiente da oficina, este colocado
como produzido, elaborado com diferentes materiais que suscitavam outros
significados. Já o cenário 1 suscitou poucos discursos sobre o vivido e muitos como:
‘Eu não lembro dessa impressão digital’, ‘O desenho a gente não viu’. São discursos
sobre o não visto, o não lembrado e o passeio por esse cenário possibilitou o contato,
por parte das professoras, com o material não significado.
Os discursos produzidos foram transcritos e analisados, buscando-se evidenciar
como se (re)produziram na dialogia com outros discursos e as lembranças do processo
de formação que, com a mediação daquele passeio e seus diferentes cenários, foram
produzidos. Ao mesmo tempo, problematizou-se nas análises as situações
‘despercebidas’, os cenários que se constituíram como meros lugares de passagem e
que não provocaram discursos. Para análise neste trabalho, foram destacados dizeres
que exemplificam o (re)significar, o (re)conhecer, o lembrado, o vivido e o experienciado.
O caminho a ser percorrido é delimitado por almofadas e, ao seu lado, como
paisagem aos que caminham, encontram-se cenários compostos com os materiais
produzidos e/ou utilizados nas oficinas. Esses materiais foram afixados nas paredes e/
ou distribuídos no chão, de modo a ocupar cada cenário o espaço relativo a meia
parede de uma sala de aula convencional. O primeiro cenário diz respeito à primeira
oficina e assim sucessivamente, sendo, conforme já mencionado, os participantes
convidados a transitar cronologicamente por cada paisagem, acompanhados pelo
coordenador.
O estudo dos discursos produzidos pelas professoras no passeio proposto se
deu a partir da análise do discurso na perspectiva trabalhada por Bakhtin (2004),
especificamente em sua teoria enunciativa. Segundo este autor, a linguagem é um
fenômeno sócio-ideológico, e somente se compreendida assim pode ser analisada em
sua complexidade. Deste modo, só pode ser apreendida em seu vínculo com a vida,
com a materialidade social concreta, ou seja, no fluxo da história (Bakhtin, 2004), pois
a língua é o constante movimento que segue a vida social e não uma petrificação desta
6
As oficinas são descritas detalhadamente em Maheirie e cols. (2006), enquanto as temáticas são revisadas
e as atividades específicas são analisadas pormenorizadamente em Zanella (2006b), Maheirie (2006), Da Ros
(2006), entre outros.
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(Zanella, Werner & Sander, 2006). De acordo com Bakhtin (1993), o enunciado só se
realiza quando se compreende a situação social que o provoca.
Ao referir-se aos aportes teórico-metodológicos bakhtinianos, Freitas (2005, p.98)
afirma que podemos “pensar que o olhar extraposto a partir do qual [o autor] via a
linguagem lhe permitiu valorizar o discurso múltiplo, dialógico, a compreensão de que
todo discurso recolhe o discurso alheio”. De acordo com Bakhtin (2004), o produto do
ato de fala, ou seja, a enunciação, não pode ser considerada como individual, uma vez
que a enunciação é a interação de pelo menos duas enunciações, é diálogo, é de
natureza social. Faraco (2006) citando Bakhtin (1984) afirma que o discurso é a língua
em sua totalidade viva e concreta. Deste modo, a análise do discurso busca apreender
a dimensão do outro na produção e leitura de um enunciado, assim como a relação
dialógica que constitui o discurso, pois a significação e a direção dada à palavra é
social e historicamente mutante. O discurso é sempre dirigido ao outro, e este, o
interlocutor, participa de forma ativa na elaboração do dito e do não dito (Zanella &
cols., 2006).
A compreensão das práticas discursivas na perspectiva bakhtiniana abrange as
múltiplas vozes que as caracterizam, as intenções não necessariamente explicitadas,
os subtextos, enfim, as condições materiais, expressas em signos, que as constroem, e
não somente seus elementos formais e normativos, caracteristicamente ligados à
lingüística tradicional (Zanella, Werner & Sander, 2006). Bakhtin (2004, p.95) destaca,
nesse sentido, que “Não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, (...) a palavra
está sempre carregada de um discurso ideológico e vivencial”.
Resultados
A revisitação do cenário da sétima oficina mobilizou as professoras. Esta oficina
foi intitulada ‘Corpo em que se imprimem e se expressam histórias’ e nela as
participantes, divididas em pequenos grupos, foram convidadas a representar, a partir
de uma imagem, cenas corporais através das quais se trabalhou a noção de corpo
como signo e que, portanto, fala. A imagem consistia em uma gravura fotográfica onde
se via uma moça sentada com as mãos no rosto e os cotovelos apoiados nas coxas;
havia também uma menina em segundo plano, de costas, e próxima a ela um homem
também sentado e com as palmas das mãos unidas a sua frente.
O contato com o cenário onde essa imagem se destacava foi a situação que mais
produziu discursos, sendo esses também provocados pela pesquisadora que
acompanhava o grupo e mediava o passeio.
Pesquisadora – “Vocês lembram esse dia?”
Alice7 – “Ahã. Todo mundo viu uma gravura e falou o que entendeu. Ela fez de
conta que cada um tinha uma gravura (...)”
7
Todos os nomes aqui apresentados, das professoras participantes das oficinas, são fictícios.
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Carla – “Que bárbaro pra se fazer com os alunos!”
Pesquisadora – “E foi bem interessante, né? E aí, o que que a Marlene estava
dizendo que todo mundo viu?”
Marlene – “É, um velório, né? Que teve aquele... enterro”
Alice – É, nós também. Achamos que... tinha... alguém veio e deu uma notícia
ruim... que já tava esperando, a mulher ali já sabia, a menininha foi consolar ali o cara...”
Berenice – “Nós já demos, né, (...) uma criança carente (...) é a nossa
preocupação... O pai absorto nos seus problemas, a mãe (...)”
Pesquisadora – “E vocês lembram o que mais a gente fez naquele dia? Porque
isso da história ficou bem marcante, né? (...) O que que a gente tava trabalhando
nisso?”
Alice – “Ih, caramba... Tinha o ver, o ouvir...” (apontando para os cenários já
visitados e que tratavam respectivamente do ver e do ouvir)
Pesquisadora – “(...) É bem isso: o ver, o ouvir, a palavra... (apontando para os
cenários já visitados e que tratavam desses temas) E aqui?”
Eliane – “As emoções?”
Pesquisadora – “Vocês lembram a brincadeira que a gente fez?”
Várias – “Aaah!!!”
Alice – “Das mímicas, não?”
Marlene – “Dos bonequinhos de... de... de fantoche.”
Pesquisadora – “Isso... A gente trabalhou o corpo, a questão da leitura do corpo
(...) ler o corpo e aí ler a emoção como tudo... (...) e aí trabalhamos a questão do corpo
como signo.”
O que os discursos produzidos diante do cenário que relembrava a oficina 7 nos
revela? A partir das lembranças de Alice, Carla reconhece a riqueza da atividade realizada
como uma possibilidade pedagógica quando afirma ser “(...) bárbara para se fazer
com os alunos”. Sua fala sugere que ela fez uma relação entre a atividade realizada e
sua prática docente, porém guardou essa relação para si, não a compartilhou naquele
momento. Por que não o fez? Pode-se considerar que o mercado de trabalho foca a
capacitação e o destaque individual como meio de crescimento e ascensão profissional.
Desse modo, há que se considerar que essas professoras buscaram um curso de
formação continuada com essas vozes permeando seus fazeres, e o não compartilhar
de Carla sugere a presença dessa lógica.
Alguns outros discursos relembram o que viram, o que foi vivido no dia da
atividade. Esses são pontuais e suscitam novos discursos sobre o visto. Outros dizeres
são provocados pelas perguntas da pesquisadora e se apresentam como respostas à
atividade de leitura de imagem. Essas perguntas, portanto, suscitam lembranças,
produzem discursos. Percebe-se, no entanto, que as lembranças não são sobre o
objetivo da atividade, sobre a intencionalidade teórica que orientou a proposição da
oficina, sobre a leitura do corpo enquanto signo. Alice e Eliane tateiam em busca de
respostas às perguntas que as provocam, mas o que emerge são lembranças do vivido
que deixaram escapar as reflexões teóricas pretendidas, necessárias à emergência de
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outra relação com a atividade proposta. Reflexões necessárias à transcendência do
vivido à condição de experiência.
Na sexta oficina, intitulada ‘Palavras que inscrevem, escrevem e descrevem
sujeitos’, foram lidas a clássica história infantil ‘A galinha vermelha’ e o livro ‘A
galinha xadrez’, de autoria de Rogério de Stacchini Terezza (1996) e que consiste em
uma releitura e recriação da história clássica. A partir dessas leituras, as professoras
foram convidadas a empreender o mesmo movimento de releitura e recriação de uma
história infantil e, com suas produções, a refletir a respeito do signo lingüístico e de
sua influência na constituição da realidade. Durante o passeio, o cenário deste encontro
apresentava as histórias lidas e as histórias produzidas pelas professoras. Essas se
detiveram por dois minutos e trinta segundos lendo os materiais e conversando a
respeito do vivido e da prática pedagógica, tempo esse relativamente longo
considerando o tempo em que se dedicavam a ad-mirar os outros cenários. Apesar
disso, poucos discursos foram produzidos sobre a atividade realizada, e estes eram
denotativos, como: ‘Ah! O nosso desenho é aquele!’ (Berenice), ou referentes às
práticas pedagógicas. Pode-se afirmar que as professoras foram capturadas pela palavra
cotidianamente utilizada por elas como ferramenta e objeto de ensino.
Intitulada como ‘Sons, ritmos e tons: possibilidades acústicas daqui e dacolá’,
a oficina de número cinco trabalhou a temática do ouvir através do (des)conforto na
escuta de ritmos e estilos musicais variados, o que foi feito concomitantemente à
exploração e produção de sons por meio de diversos tipos de papel. O cenário dessa
atividade, reproduzido para o ‘passeio’, expunha os vários tipos de papel utilizados e
um aparelho de som. Diante do cenário a re-vivência da atividade ficou evidente nos
discursos, principalmente por parte de Marlene que, por meio de uma memória
cinestésica/acústica, re-viveu a experiência estética que a escuta de uma determinada
música provocou:
Pesquisadora – “E esse aqui, vocês lembram?”
Fernanda – “Ahã.”
Marlene – “Esse eu lembro. Já olhei e já me deu até um arrepio. É aquela da
música...”
Pesquisadora – “Ah... Da música! Deixa até eu colocar, a gente trouxe de novo
pra vocês escutarem.”
Carla – “Eu lembro que tinha uma música que eu não queria ouvir...” (afasta-se)
Pesquisadora – “Qual música que te arrepia Marlene?”
Marlene – “Aquela música que ela, ela tinha... Tinha um ritmo e ela misturava
com outro, aquela que deu uma sensação, assim, de... Me trouxe lembranças de
momentos, assim, horríveis da minha vida. (...) Eu não consegui nem ficar com o papel
que eu tinha na mão. Até aquilo estava me incomodando! Estava... Foi assim bem...
Espero nunca mais ouvir aquela música, bota uma melhorzinha. (riso)” (afasta-se e fica
conversando com Berenice, as demais professoras ouvem partes de músicas)
Marlene expressa o desconforto sentido e vivenciado no momento da oficina e,
pela sua expressão e por sua produção discursiva, re-vive as sensações daquele dia.
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Marlene viveu, sentiu e significou essa oficina. Esta consistiu uma experiência e
Marlene, ao rever o cenário, sente um arrepio, pois este é signo que media sua lembrança
do vivenciado, ali revivido, reinventado.
Carla diz ‘que tinha uma música que não queria ouvir’, mas não fala sobre as
sensações e impressões que possa ter sentido/tido, parece não ter refletido sobre o
porquê do incômodo. Parece que naquele dia, naquela atividade, viveu, não vivenciou
e tampouco experienciou. Fernanda responde à pergunta da pesquisadora com um
‘ahã’ e as demais professoras não se expressam. Esse não dizer sugere que as músicas
foram ouvidas, algumas consideradas estranhas outras não, mas não significaram e,
provavelmente, não fizeram sentido, não foram relacionadas com os papéis que
manuseavam.
Nesse cenário, as respostas às perguntas da pesquisadora também suscitam
lembranças fragmentadas sobre a atividade, não discursos sobre a temática trabalhada
e os objetivos da oficina.
Pesquisadora – “E vocês lembram que no final, daí, a gente fez uma...”
Alice – “(...) vário papéis. De todas, de texturas diferentes...”
Pesquisadora – “(...) a gente fez uma orquestra de papel.”
Fernanda – “Ah... Foi legal!”
Pesquisadora – “Foi, foi, foi gostoso...”
Berenice – “Tem muito caminho pela frente?”
Pesquisadora – “Tem bastante... Tem alguns ainda.”
São lembranças fragmentadas sobre o que foi realizado e, depois de provocadas
pela pesquisadora, Berenice pergunta se “Tem muito caminho pela frente?”. Expressa
incômodo, o desejo de seguir em frente, ver o que mais há para ver e, ao que parece,
não se envolver. Passeio em seu caso é simplesmente passar pelos lugares. Mas que
pressa é essa? É uma pressa porque ela também se mobilizou diante do cenário, mas, ao
contrário de Marlene, não quer falar sobre o vivido? Ou é uma pressa em razão de
outros motivos? Será que o que a trouxe ali foi a necessidade de ter mais um certificado
de conclusão de curso emoldurado na parede? Pode também a atividade ter sido
considerada enfadonha, e aí cabe problematizar: que relações Berenice estabelece com
a vida, com os outros? Que relações estabeleceu naquele contexto, com aquelas
pessoas, cenários e atividades?
Destaca Peixoto (1988) que contemporaneamente o indivíduo é como um
passageiro metropolitano que passa rapidamente e em movimento permanente, sendo
que, quanto mais rápido ele passa, mais achatadas e menos profundidade as paisagens
têm. Para este autor, os habitantes e as cidades passam por um processo de
superficialização que determina tanto o modo de olhar quanto o modo com que as
coisas se apresentam. Serão relações sem profundidade que Berenice estabeleceu?
Como o curso se apresentou para ela e como ela o percebeu?
A oficina quatro, intitulada “Olhar estético: serão os olhos a ‘Janela da alma’?”,
visou refletir a respeito da constituição social e histórica do olhar. Nessa oficina,
coordenada por um artista plástico, a discussão foi mediada pela produção e análise
de desenhos e do questionamento sobre a cristalização de traços. A oficina foi rica e
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suscitou relevantes reflexões a exemplo do que aconteceu com acadêmicos de
Psicologia que passaram por experiência semelhante (Reis, Zanella, França & Ros,
2004). Entretanto, o cenário relativo a esse encontro em que estavam expostos os
desenhos produzidos não engendrou memórias discursivas do vivido. Duas professoras
expressaram discursos rápidos e superficiais a respeito:
Alice – “Você (pesquisadora) não estava.”
Pesquisadora – “Eu que não estava. E como é que foi?”
Alice – “Foi ótimo.”
Berenice – “A nossa figura aqui. Ah meu Deus...”
Lembranças do vivido, das pessoas, das ausências; registro de algo agradável,
mas nenhum outro dizer foi naquele momento proferido que pudesse indicar algum
possível eco, que pudesse transcender o vivido ao nível de experiência e, portanto,
significativo para situações outras.
Na oficina três, intitulada “Memórias e histórias: as experiências estéticas na
constituição da educadora”, buscou-se trabalhar e refletir sobre a formação estética
de professores. Cada educadora trouxe um objeto que representasse alguma memória
docente ou acadêmica. Num segundo momento, elas foram convidadas a se estetizarem
com roupas e adereços, visando representar o que julgavam ser e, depois, tomando
emprestados objetos de colegas, o que desejariam ser.
O cenário do passeio apresentava alguns objetos disponibilizados e utilizados
pelas professoras nas atividades; todos tinham como suporte um biombo, também
utilizado na oficina. Esse cenário suscitou os seguintes discursos:
Pesquisadora – “(...) Lembram desse dia!?”
(risos)
Alice – “Lembro... ahãm... O chapéu dela, a peruca da outra”
Eliane – “O chapéu era dela”
Carla – “Aquele chapéu vermelho eu não lembro”
Eliane – “O chapéu com laço, a peruca da... da... o microfone...”
Marlene – “Ah! O boné que ela usou, né?”
Alice – “O chapéu todo mundo queria”
Pesquisadora – “O que que nesse dia a gente... Vocês lembram...”
Carla – “Aquele dia eu fotografei um monte!”
No entanto, a produção discursiva suscitada por esse cenário, como se pode
perceber, foi fragmentada. Não há discursos sobre o tema trabalhado e sim sobre os
objetos que cada uma escolheu. Lembrar do objeto escolhido por si ou pelas colegas,
e das relações ali estabelecidas sugere que as imagens de si e dos seus desejos de vir
a ser não significaram, uma vez que não são proferidos, não revividos. As produções
discursivas foram vagas, desconexas, ainda que na relação com o discurso da outra
algum sentido tenha sido ali produzido.
Essa oficina, de acordo com Maheirie et. al (2006), tendo como base entrevistas
realizadas com as professoras depois do término do curso de formação, foi percebida
pelas professoras como a mais significativa do curso de formação. Curioso isso, o que de
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certa forma relativiza o próprio olhar que ora tecemos sobre o dito e o não dito, sobre os
discursos desconexos. Porém, mesmo quando provocadas pela pesquisadora, o discurso
permanece fragmentado e não relacionado com os objetivos ou o tema trabalhado:
Pesquisadora – “Lembram desse dia que a gente trabalhou, né? (...) E o que mais
que a gente fez no começo (...) antes de vocês representarem, de vocês se vestirem...
Vocês lembram?”
Eliane – “Tinha os objetos, né? Da... objetos da...”
Carla – “Da nossa vida pessoal...”
Eliane – “Da nossa memória...”
Se esta foi a oficina mais significativa, por que o cenário que lhes foi oferecido
nesse passeio estético não provocou discursos sobre o vivido? Há não ditos? As
professoras parecem lembrar da oficina, lembram de detalhes (de quem era o boné,
quem o usou, etc.), mas não das relações estabelecidas com aqueles objetos e os
significados que supostamente teriam sido atribuídos a eles. Isso sugere que não
ficou claro o objetivo da oficina, as reflexões que as atividades pretendiam provocar e,
assim, não há o que ser dito além de enunciados vagos, fragmentados. Também se
pode afirmar que seus desejos de vir a ser não se tornaram projetos de vir a ser, que
talvez tenham cumprido a solicitação da atividade, mas sem uma reflexão sobre suas
práticas cotidianas, sejam pedagógicas ou não. Deste modo, a atividade não significaria,
não seria experienciada, nem vivenciada. O que impediu tal movimento? O que as
impede de questionar, de agir como desejam, quais são as vozes que dizem não? Quais
discursos foram tornados próprios e quais relações dialógicas essas professoras
engendram com os discursos sociais?
Intitulado “Vidas de professoras(es): o trajeto pedagógico”, o encontro dois, a
partir do texto de Ziraldo “Professora Maluquinha”, trabalhou a identificação de
características pessoais e da prática pedagógica semelhantes e diferentes das
professoras com a protagonista do texto. O cenário visitado apresentava a imagem da
Professora Maluquinha fixada na parede.
Pesquisadora – “O outro encontro nosso foi esse aqui, oh...”
Carla – “Esse eu lembro”
Pesquisadora – “É? O que foi significativo? Vocês lembram?”
Carla – “Assim, aquela televisão com um espelho, bem interessante, né? E a sala
tava produzida, assim, com um monte de... de... de sucata em volta, assim, na televisão,
né? (...) as coisas tendo outro significado, né? (...) e a Professora Maluquinha. E foi
bem legal ouvir a história por que assim, a gente ficou bem à vontade, deitada e tal. E
depois a gente fez os trabalhos em cima dele (da história). Com o que que a gente se
identificava e o que a gente faz (...)”
Marlene – “A partir desse dia eu comecei a fazer a chamada diferente... (risos)”
Pesquisadora – “Ah é?”
(Troca de experiências pedagógicas)
Com a mediação da pesquisadora, Carla descreve, re-apresenta o ambiente onde
foi realizada a oficina. Ela amplia o cenário visitado resgatando o contexto da oficina tal
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como originalmente produzido, do que experienciou. Pode-se afirmar que esse cenário
e o que ali foi vivido foi significativo. Ela afirma que os objetos presentes no ambiente
tinham outro significado, mas que significado era esse? Foi um significado que ela
construiu?
Carla, em seu discurso, descreve também as atividades realizadas e vai além, fala
sobre como se sentiu, como foram para ela aquelas atividades. Ela diz sobre suas
sensações, sobre como seu corpo estava naquela oficina. Percebe-se um envolvimento
com as atividades realizadas. Qual o motivo desse envolvimento? Essas atividades
eram relacionadas ao pedagógico e à prática docente. Isso sugere que o que tem
relação com o cotidiano faz sentido mais facilmente e, portanto, atividades como essa
são significadas e valoradas, a exemplo das trocas pedagógicas feitas diante do cenário
da sexta oficina que tratava da palavra.
Marlene conta sobre a mudança em sua prática pedagógica a partir daquela
oficina. Ela percebe possibilidades e as projeta em sua vida. Há produção a partir do
que foi trabalhado, deste modo, o discurso mostra que participar daquela atividade
produziu um efeito na prática docente.
A primeira oficina teve objetivos de sistematização e de estabelecimento de
contratos de trabalho, bem como a autorização à filmagem das atividades e
consentimento de participação da pesquisa. O cenário desse encontro apresentava
gravuras, cartazes, textos que, juntamente com o material explicativo da proposta do
curso de formação continuada, foram expostos no cenário do passeio. Estes elementos
do cenário não foram lembrados pelas participantes que, no momento do passeio,
entraram em contato com eles, os contemplaram e os leram.
Eliane – “Desse texto... Eu não me lembro desse texto aqui...”
Pesquisadora – “Isso aí a gente colocou como transparência, lembra? Pra explicar
mais ou menos o que a gente ia trabalhar...”
Várias participantes – “Hmmm...”
Carla – “Eu não lembro dessa impressão digital”
Alice – “Também não”
Carla – “O desenho a gente não viu...”
Pesquisadora – “Tava na parede também”
Alice – “Hmmm...”
Os discursos produzidos sobre esse encontro afirmam a não lembrança daqueles
materiais. Por que não foram lembrados? Segundo os discursos, por não terem sido
vistos. Mas que olhar é esse que não tateia um ambiente estranho? Que olhar é esse que
não ousa descobrir, que prefere ficar na inércia do lugar da segurança? Que educação
recebeu esse olhar e a quem interessa que formadoras o (re)produzam? Ampliar as
possibilidades de perceber e ler o mundo realmente era necessário para esse grupo de
professoras. Retomando Peixoto (1988), questiona-se a que velocidade essas professoras
estavam e passaram para que no primeiro dia do curso todo o ambiente fosse visto
achatado, plano, sem profundidade. O que buscavam naquele encontro? O que viam, o
que ouviam, o que sentiam? O que as levou a perceberem o contexto desse modo? Em
seus discursos a respeito da oficina elas não acrescentam lembranças sobre o que foi
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trabalhado naquele dia, sobre os compromissos e combinados assumidos, nem sobre a
proposta do curso de formação que foi apresentada. Mais uma vez: o que elas buscavam?
Importava o objetivo ou a temática do curso? O que será que foi vivenciado e
experimentado num curso cuja proposta não é lembrada?
Conclusões
O transitar pelos cenários das vivências de formação continuada foi utilizado,
nesta pesquisa, como dispositivo a provocar novos olhares e uma memória discursiva.
O passeio, porém, não foi suficiente para produzir as lembranças esperadas – a
(re)produção discursiva dos objetivos das oficinas propostas, as reflexões teóricas
pretendidas. Fez-se necessária a mediação do discurso de um outro, uma das
proponentes das oficinas, co-produtora do discurso teórico proposto e que
aparentemente não foi apropriado.
A memória discursiva evocada com os cenários e as perguntas, quando emergiu,
foi fragmentada, ou então visceral, como no caso de uma das professoras que sequer
pôde pensar na possibilidade de voltar a ouvir uma determinada música. Vivido no
corpo cuja imagem engendrou a re-vivência. É possível dizer que, de modo geral, as
professoras estabeleceram relações entre o visto e o vivido diante dos cenários que
evocam imagens do processo de formação continuada. Estas relações são, em sua
grande maioria, relacionadas às práticas pedagógicas cotidianas. O pedagógico traz a
memória da prática, ou seja, o pedagógico é o dispositivo e o investimento no
pedagógico é a preocupação das professoras.
Entretanto, a oportunidade do curso de formação parece não significar um
momento que venha ao encontro dessas preocupações, pois o foco não era a prática
docente, mas sim as vivências e experiências estéticas. A busca das professoras era
por dicas de como “ensinar melhor”, busca compreendida posto que remete à lógica
social que preza por um investimento de retorno direto e imediato, preferencialmente
que não exija a reflexão e a ampliação do ver, do sentir, do ouvir, que não invista na
compreensão da expressão corporal e sim na instrumentalização deste para o trabalho
e a produção. Isso é corroborado ao perceber-se que a memória se apresenta em
atividades que envolvem leitura e escrita, “ferramentas” do trabalho educacional, que
são significadas e (re)lembradas.
Percebe-se também que os discursos são mais presentes nas últimas oficinas, ou
seja, as mais recentes ao passeio. Entretanto, tanto esses discursos quanto os
produzidos frente aos cenários das oficinas mais antigas, apresentam-se fragmentados,
uma vez que falam das atividades e dos ambientes das oficinas, mas não se reportam
aos objetivos e aos aspectos teóricos destas. Por que isso aconteceu? Difícil responder,
porém é importante refletir sobre a proposta do curso e sua efetividade. Ainda que
essa seja uma tarefa para outro momento, arriscamos afirmar a necessidade de um
maior esclarecimento das professoras sobre os objetivos pretendidos com as vivências
para que estas e seus objetivos sejam compreendidos e significados, ou seja, que se
objetivem em memórias discursivas a possibilitar um processo contínuo de reflexão e
reinvenção de novos saberes e fazeres na prática educacional.
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Recebido em dezembro de 2007
Aceito em maio de 2008
Lucilene Sander: acadêmica da graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina;
bolsista do Programa PIBIC/CNPq -BIP/UFSC 2006/2007.
Andréa Vieira Zanella: mestre e doutora em Psicologia da Educação (PUC-SP); professora do Departamento
e do Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista em
produtividade do CNPq.
Endereço para contato: lucilene.sander@yahoo.com.br
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