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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Cursos de Inverno 2020 Fundamentos do pensamento liberal: os Ensaios Filosóficos de Adam Smith Curso integral (4 aulas) Ministrante: Dr. Leonardo André Paes Müller Coordenador: Prof. Dr. Pedro Paulo Pimenta Julho/2020 Fundamentos do pensamento liberal: os Ensaios filosóficos de Adam Smith Prof. Dr. Leonardo André Paes Müller Aula 1 – História da astronomia: espanto e síntese (27/07/2020) 1. Filosofia: síntese e imaginação O mais próximo que encontramos de uma definição do que é filosofia para Smith se encontra na História da astronomia: “[Citação 1] Filosofia é a ciência dos princípios conectores da natureza” (EPS, p.45; EF, p.206). De acordo com essa fórmula, a filosofia tem como objeto privilegiado as operações de síntese. Nessa aula analisaremos as duas mais fundamentais, a comparação e a conjectura; na aula 3, analisaremos a analogia, uma comparação entre dois sistemas, isto é, entre dois arranjos conjecturais. Todas essas operações remontam à imaginação, entendida como uma faculdade ou capacidade de que a espécie humana dispõe1 – o que é explicitamente afirmado, por exemplo, no segundo parágrafo da Teoria (TMS I.i.1.2, p.9; TSM, p.6 – trecho que analisaremos na aula 4). Começarei pelo final, pela explicação de Smith a respeito do exemplo mais bem acabado de compreensão da natureza no século XVIII: o sistema newtoniano, capaz de unificar o movimento dos astros e a queda dos corpos a partir de um único princípio explicativo, a gravitação universal, É, ele também, uma “invenção da imaginação”. Não se trata de um sistema qualquer, mas um sistema extremamente persuasivo, e [Citação 2] mesmo nós, que nos esforçamos em representar todos os sistemas filosóficos como meras invenções da imaginação que de outro modo permaneceriam desconexos e discordantes, fomos insensivelmente atraídos por ele, a usar a linguagem que expressa os princípios de reunião desse sistema, como se eles fossem as verdadeiras correntes que a natureza utiliza para juntar suas muitas operações. (EPS, p.105; EF, p.290) Essa força de atração que impele o autor da História da astronomia a confundir a ordem da teoria com a ordem do mundo, a tomar a estrutura do sistema pela estrutura do mundo, pode ser explicada pelos princípios que guiam as investigações filosóficas. Como 1 Na introdução de A filosofia crítica de Kant, Deleuze distingue dois significados para esse termo na segunda metade do século XVIII: modo de relação entre sujeito e objeto (de onde as faculdades de conhecer, de desejar e o sentimento do prazer e da dor) e origem da representação (de onde os três tipos de representação e suas fontes: intuição-sensibilidade, conceito-entendimento e ideia-razão) (2000, pp.9-18). Smith emprega o termo nesses dois sentidos: no primeiro, quando tematiza as faculdades morais; no segundo, quando trata da imaginação, de modo geral. 2 aponta o título completo da obra: “Princípios que conduzem e dirigem a investigação filosófica, ilustrados pela história da astronomia”. 2. Surpresa Quais são esses princípios? Vejamos o primeiro parágrafo desse texto: [Citação 3] Espanto, surpresa e admiração são palavras que, embora se confundam, denotam em nossa língua sentimentos de fato próximos, mas também diferentes em alguns respeitos, e, portanto, distintos. O sentimento que a rigor se denomina espanto é excitado em nós pelo que é novo e singular; o inesperado excita surpresa; o grandioso ou belo, admiração. (EPS, p.33; EF, p.187) Smith os apresenta nos três parágrafos seguintes. O espanto é uma reação a “objetos extraordinários e incomuns”, sejam eles raros ou frequentes, inesperados ou não. A surpresa é uma reação a “coisas que vemos com frequência, mas que não esperávamos encontrar onde as encontramos”. Por fim, a admiração é uma reação a objetos belos ou imponentes (beauty, greatness), independentemente da situação ou de nossa expectativa (EPS, p.33; EF, pp.187-88). Em suma, tratam-se, respectivamente, dos “sentimentos excitados pelo que é novo, pelo que é inesperado, e pelo que é grandioso e belo” (EPS, p.34; EF, p.189). Um mesmo objeto pode suscitar mais de um desses sentimentos ao mesmo tempo, situação na qual eles “se fortalecem e vivificam-se mutuamente” (ibidem) [exemplo: o goleiro dá um chapéu no atacante]. Smith começa pela surpresa. Sempre que algo esperado surge, a reação suscitada por esse algo será “gradual e suave [...], sem violência, dor ou dificuldade”. Ao contrário, quando o objeto é inesperado, “a paixão precipita-se num repente”, muitas vezes de modo violento e convulsivo – precipitação que pode causar a morte ou o êxtase, afetando assim “a unidade [whole frame] da imaginação” (EPS, p.34; EF, p.190). No fundo, “a natureza da surpresa consiste na mudança violenta e súbita produzida sobre a mente/espírito quando, repentinamente, nela se introduz uma emoção qualquer” (EPS, p.35; EF, p.191). Reparem que essa definição implica que a surpresa “não deve ser considerada como uma emoção original”, mas reflexa e secundária, uma emoção que surge a partir de outra emoção (retomaremos a esse tema na aula 4). Por isso, a natureza do objeto inesperado é menos importante que o estado de espírito daquele que sente a emoção. Particularmente complicadas são as “surpresas alegres quando a mente está imersa em pesar, ou pesarosas quando se encontra arrebatada pela alegria” (ibidem). De modo geral, “todas as paixões 3 são mais violentas quando extremos opostos se sucedem” (EPS, p.36; EF, p.193). Dois são os casos relevantes: uma surpresa agradável a alguém triste, e uma surpresa desagradável a alguém alegre. Ao contrário do que tendemos a pensar, para Smith, o primeiro caso é mais perigoso que o segundo e isso por dois motivos: primeiro, como ele desenvolve longamente na Teoria dos sentimentos morais, há uma assimetria entre sensações prazerosas e dolorosas: “seja do espírito ou do corpo, a dor é uma sensação mais pungente do que o prazer [...]” (TMS I.iii.1.3, p.44; TSM, p.52); segundo, “o coração converge para a alegria com uma elasticidade natural, abandonando-se à agradável emoção”, ao passo que, com o pesar, “o coração se retrai e resiste às primeiras aproximações dessa paixão desagradável que leva algum tempo” até que esse objeto cause o seu efeito. Daí porque “a mudança produzida por uma surpresa alegre é mais súbita, e por isso mesmo mais violenta e capaz de ter efeitos mais fatais do que os ocasionados pela surpresa pesarosa” (EPS, p.36; EF, pp.192-93). No fim das contas, para Smith seria menos perigoso anunciar a alguém a morte de um parente do que um prêmio na megasena, por exemplo. Um ponto sobre o qual a análise da surpresa lança luz é a importância do encadeamento das ideias: para que eu espere algo, que eu crie uma expectativa a propósito do surgimento de um objeto em particular, é preciso que eu tenha, de algum modo, estabelecido uma sequência ou uma cadeia na qual esse objeto é um dos elos. Reencontraremos esse tema na análise do espanto. 3. Espanto Começo pela palavra utilizada por Smith: wonder. Trata-se de um termo de complicada tradução dentre outras coisas porque, como outros substantivos em língua inglesa, ele pode ser utilizado como verbo, forma na qual possui duas peculiaridades: 1) denota uma interrogativa; 2) a respeito de uma conjectura precisa: whoever wonders se interroga, se pergunta, inquire a respeito de algo bem delimitado. Além disso, não possuímos um correspondente direto para ele – pode-se pensar em espanto, por exemplo, mas espantar-se não traz consigo o mesmo engajamento da curiosidade que o verbo wonder porta; maravilhar-se está muito mais próximo de admirar-se do que desse questionamento a respeito de uma conjectura precisa; por sua vez, inquirir-se não possui correspondente substantivo adequado no campo sentimental, 4 é intelectual demais. Essa questão terminológica está longe de ser um detalhe, uma vez, como veremos, Smith faz do wonder o motor da pesquisa científica, em seus termos, das investigações filosóficas. Apesar dessas ressalvas, eu vou seguir a tradução brasileira, e utilizar o termo espanto como tradução. De modo sucinto, podemos dizer que o sentimento do espanto dirige e guia a atividade de síntese que caracteriza as investigações filosóficas ou científicas. Esse é o tema da aula de hoje. O espanto consiste em uma espécie de mal-estar perante dois tipos de ausência de ligação, de síntese: o primeiro diz respeito a objetos singulares de difícil classificação, o segundo à ausência de conexão ou a percepção de uma ordem incomum na passagem entre dois fenômenos. [Citação 5] É evidente que a mente se apraz em observar as semelhanças que se pode descobrir entre diferentes objetos. É por meio de tais observações que ela procura organizar e metodizar todas as suas ideias ao reduzi-las a classes e grupos apropriados. [It is evident that the mind takes pleasure in observing the resemblances that are discoverable betwixt different objects. It is by means of such observations that it endeavours to arrange and methodise all its ideas, and to reduce them into proper classes and assortments] (EPS, pp.37-38; EF, p.195) Há muita coisa em jogo nessas duas frases, uma enorme metafísica por trás dessa passagem. Em certo sentido, esse curso como um todo pode ser visto como um comentário desse trecho. Smith parte de um dado que ele considera evidente: sentimos prazer ao observar ou descobrir semelhanças entre objetos diferentes. Esse é o primeiro passo. O segundo passo é o seguinte: ao estabelecer semelhanças também estabelecemos diferenças, e isso é feito através de comparações. Isso nos leva a um terceiro passo: a partir dessas relações de semelhança e diferença, organizamos esses objetos comparados em classes e sortes. 2 Refaçamos as etapas ao inverso: Smith está nos dizendo, 3. que a classificação dos objetos está baseada em relação de semelhança e diferença, 2. que essas relações são estabelecidas pela nossa comparação 1. a partir do prazer que sentimos ao perceber as semelhanças. Esses três passos são importantes, mas o decisivo é o primeiro: Smith está dizendo que todas as classificações e taxonomias criadas pelos seres humanos estão fundadas, em última instância, em sensações prazerosas, isto é, em nossa sensibilidade (e não no entendimento ou na razão). 2 Segundo o Houaiss: “sorte, sf. [...] 13. Subdivisão de uma categoria, gênero, classe, espécie, tipo”. 5 Mas ainda falta algo, o quarto passo, mais precisamente, o elemento capaz de estabilizar essas classificações e taxonomias, o nome: [Citação 6] Onde quer que a mente observe pelo menos uma qualidade comum a uma grande variedade de objetos, por mais diversos que estes sejam em outros respeitos, essa circunstância será suficiente para conectá-los, reduzi-los a uma classe comum e chamá-los por um nome geral. (ibidem) A observação de traços semelhantes é o ponto de partida da construção de classificações e taxonomias, das mais simples às mais complexas, cada classe, gênero, espécie, tipo ou sorte recebendo o seu devido nome. É o que ocorre por exemplo, na taxonomia animal de Lineu [ver ppt]: “Assim todas as coisas dotadas de poder de movimento voluntário, sejam feras, pássaros, peixes ou insetos, são classificadas sob a denominação geral de animal.” (ibidem). Um equívoco a ser evitado aqui consiste em pensar que estaríamos lidando com um tipo especial de sensibilidade, exclusividade de cientistas e filósofos. Ao contrário, Smith parte, de modo radical, de um postulado de homogeneidade no que diz respeito às capacidades dos indivíduos: [Citação 7] Na verdade, a diferença de talentos naturais entre os homens é muito menor do que pensamos, e a grande diferença de talentos que parece distinguir homens de diferentes profissões, quando atingem a maturidade, em muitos casos não é tanto causa como o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre os caracteres [characters] mais diferentes, entre um filósofo e um carregador, por exemplo, parece dever menos à natureza do que ao hábito, aos costumes e à educação. Quando vieram ao mundo, e durante os primeiros sete ou oito anos de sua existência, talvez fossem muito parecidos, e nem os pais nem os amigos podiam perceber alguma diferença notável. Por volta dessa idade, ou pouco depis, vieram a se ocupar de atividade muito diferentes. A diferença de talentos, que então começa a se fazer notar, aos poucos se amplia, até que por fim a vaidade do filósofo o impede de reconhecer alguma semelhança. (WN I.ii.4, p.28; RN1, p.21) Reparem que o tema é o mesmo que estamos analisando: o reconhecimento da semelhança e da diferença. O mesmo processo de comparação e de constatação de semelhanças que estamos analisando nesse trecho da História da astronomia está em jogo na análise da divisão do trabalho e das diferenças entre os talentos individuais, um dos temas que abre a Riqueza das nações e que perpassa a obra econômica de Smith. No fundo, a análise da divisão do trabalho e de suas consequências envolve o estabelecimento das diferentes espécies de profissões e de profissionais – mas que não se tornam diferentes espécies de seres humanos por causa disso. Para Smith, a humanidade se caracteriza por um duplo processo de especificação: 6 i. especialização em uma atividade particular, especificação profissional, ii. concomitante à constituição do eu, de um self, cujos interesses guiam o processo de interação social. Para Smith, seres humanos se assemelham em sua capacidade de se diferenciar uns dos outros, de se individualizar, capacidade que é desenvolvida conforme esses seres interagem uns com os outros. A ordem social própria à humanidade é uma ordem de indivíduos singulares. Da justaposição dessas passagens podemos inferir que a diferença entre um historiador natural e alguém que desconhece essa ciência é meramente de grau: [Citação 8] Quanto mais avançamos em conhecimento e experiência, maior é o número de divisões e subdivisões de gêneros e espécies que somos propensos e mesmo obrigados a fazer. Observamos, então uma maior variedade de particularidades entre coisas que possuem uma semelhança geral, e, ao fazer novas divisões de acordo com as particularidades recém-observadas, muitas vezes não nos satisfazemos mais com a capacidade de referir um objeto a um gênero remoto ou a uma classe muito geral de coisas [...]. Com efeito, uma pessoa que desconhece botânica pode esperar satisfazer sua curiosidade ao contar-vos que tal vegetal é uma erva, ou, em termos ainda mais gerais, que é uma planta. Mas um botânico não daria nem aceitaria essa resposta. (EPS, p.38; EF, pp.195-96) Entre um leigo em botânica e uma criança que se satisfaz em distinguir as coisas em duas categorias, “a das substâncias sólidas, a qual ela chama de coisas, ou à classe das aparências, a que ela chama de não coisas” (ibidem) [veremos na próxima aula a origem da noção de substância] a diferença é menor do que entre esses dois e o botânico que “já debastou e dividiu aquela ampla classe de objetos em uma multidão de agrupamentos inferiores” (ibidem). Entre a criança e o leigo, de um lado, e o botânico, de outro, se encontra o cultivo do espanto. [Citação 9] Em resumo, tudo o que nos ocorre, seja o que for, somos propensos a referir a alguma espécie ou classe de coisas com as quais as primeiras tenha uma semelhança [...]. Mas quando algo muito novo e singular se apresenta, sentimo-nos incapazes de fazê-lo. (EPS, p.38-39; EF, pp.19697) O espanto é essa reação despertada pela incapacidade de localizar esse algo novo e singular, a emoção gerada por essa indecisão, o mal-estar provocado por essa indeterminação: [Citação 9] Essa flutuação, e a busca em vão, juntamente com a emoção ou movimento dos espíritos que estas provocam, constituem o sentimento propriamente chamado de espanto, que causa aqueles 7 olhar fixo, e por vezes, aquele revirar de olhos, aquela suspensão do fôlego e aquele fremência do coração que todos podemos observar em nós mesmos ou nos outros quando nos espantamos com algum objeto novo. Tais são os sintomas naturais do pensamento incerto e indeterminado. (EPS, p. ; EF, p.197) Para explicitá-lo, Smith emprega, mais uma vez, o exemplo do botânico: [Citação 10] Com que curiosa atenção um naturalista examina uma planta singular ou um fóssil singular que lhe apresentam! [...] E quando considera todas as diferentes tribos ou espécies que conhece, todas se recusam a admitir o novo objeto em seu grupo. [...] Ele se esforça para conectá-la com alguma dessas [espécies]. [...] Se não conseguir fazê-lo, nunca a abandonará isolada; antes alargará, por assim dizer, os limites de alguma espécie para acomodá-la, ou então criará uma nova espécie com o propósito de recebê-la [...]. De qualquer modo, deve referir a novidade a uma classe qualquer de objetos conhecidos e encontrar uma ou outra semelhança entre estes e aquela antes que possa se livrar do espanto, da incerteza e da curiosidade ansiosa excitada pela sua aparência singular ou sua dissimilitude para com os objetos já observados. (EPS, pp.39-40; EF, p.198). Esse primeiro tipo de espanto só se aquietará quando esse novo objeto estiver devidamente classificado em um sistema taxonômico, o que exige que ele tenha sido comparado, que tenha tido suas semelhanças e diferenças sistematicamente avaliadas em relação aos membros das espécies anteriormente estabelecidas. O primeiro tipo de síntese operado pela imaginação é, pois, o resultado dessa atividade de comparação. Ao seu lado, porém, há um segundo tipo de síntese, baseado na construção imaginária de séries ordenadas de fenômenos, que sugiro que seja denominada de conjectura. [Citação 11] Quando se observa amiúde que dois objetos [...] se sucedem um ao outro e se apresentam constantemente aos sentidos naquela ordem, eles passam a ser conectados na imaginação [...]. Como as ideias se movem mais rapidamente que os objetos externos, a imaginação constantemente os precede e, portanto, antecipa todo evento que ocorre conforme o curso ordinário das coisas. Quando os objetos se sucedem uns aos outros na mesma sequência [...] eles se harmonizam com o curso natural da imaginação [... de modo que não haja] interrupção, parada, lacuna ou intervalo. (EPS, pp.40-41; EF. pp.199-200) Aqui, a interrupção dessa “conexão costumeira”, o aparecimento de um ou mais objetos “numa ordem completamente diferente daquela a que a imaginação se acostumou e para a qual está preparada”, gera um segundo tipo de espanto associado ao aparecimento de um ordenamento irregular, ou a uma sucessão incomum desses fenômenos. 8 [Citação 12] Primeiro nos surpreendemos pelo caráter inesperado do novo fenômeno, e, quando essa emoção momentânea passa, ainda nos perguntamos como ela pôde ocorrer naquela situação. A imaginação já não sente a facilidade usual para passar de um evento para o seguinte. [...] O movimento ou curso natural com que a fantasia procedia é pausado ou interrompido. Os dois eventos parecem permanecer afastados um do outro. A fantasia se empenha em agrupá-los, mas eles se recusam a se unir. É então que ela sente, ou imagina sentir algo como uma lacuna ou intervalo entre eles, e naturalmente hesita, e como que se detém à beira desse intervalo. Esforça-se para encontrar algo que possa preencher a lacuna, algo que, como uma ponte, possa ao menos provisoriamente unir aqueles objetos aparentemente distantes, de modo a tornar a passagem do pensamento de um ao outro suave, natural e fácil. (EPS, pp.41-42; EF, pp.200-01). Esse trecho é fascinante por diversos motivos. Primeiro, porque ilustra a hesitação e a indeterminação típicas ao espanto. Segundo, porque faz isso a partir do emprego de técnicas narrativas. Como a análise do espanto do botânico já havia indicado (recomendo a leitura do trecho completo, não apenas dos trechos que selecionei na Citação 10), ao longo de toda sua obra, Smith faz um largo uso da narrativa, isso porque a expressão de qualquer emoção apenas adquire sentido ao ser colocada num contexto particular (uma lágrima, por exemplo, pode significar tanto alegria quanto tristeza), o que pode ser alcançado através de sua articulação numa narrativa3 (a lágrima escorre pelo rosto de uma menina cujo sorvete acabou de cair no chão). Terceiro, narrativa que nos convida a tomar parte da história, a nos imaginar como vivendo essas mesmas etapas, oscilando entre a constatação do intervalo e as tentativas de superá-lo. ‘Convite’ ao espectador, ouvinte ou leitor que será explorado à exaustão na Teoria dos sentimentos morais. Quarto, ele encaminha a solução a esse segundo tipo de espanto: [Citação 13] A suposição de um encadeamento de eventos intermediários que, embora invisíveis, articulem os dois fenômenos à parte e, ao mesmo tempo, sucedam uns aos outros numa série semelhante àquela em que a imaginação está acostumada a mover-se, tal é a única ponte que pode, por assim dizer, suavizar a passagem da imaginação de um objeto ao outro. (EPS, p. ; EF, p.201) Sugiro o nome de conjectura para essa ligação, em princípio hipotética, mas que pode ser sucessivamente corrigida e acabar se tornando o próprio curso natural da 3 A recente filosofia da emoção insiste nessa questão. Martha Nussbaum, por exemplo, aponta que: “Emotions, we can now see, have a narrative structure. The understanding of any single emotion is incomplete unless its narrative story is grasped and studied for the light it sheds on the present response” (2001, p.236). 9 imaginação. Explorando a metáfora: essa ponte, em princípio improvisada, mas que, após inúmeras reformas, se tornou parte indispensável da infraestrutura da cidade que cresceu ao seu redor. [Citação 14] Dois objetos conectados desse modo deixam de parecer desconexos, e a imaginação desliza suave e facilmente entre eles. Tal é natureza dessa segunda espécie de espanto, resultante de uma sucessão incomum de coisas. A essência dessa emoção consiste na pausa imposta ao curso da imaginação, na dificuldade que ela encontra em transitar pelos objetos desconexos, em como na impressão da existência de uma lacuna ou intervalo entre eles. Diante da clara descoberta de uma cadeia de eventos intermediários a uni-los, tal emoção se dissipa inteiramente. (EPS, p. ; EF, p.202) É óbvio que há conjecturas que não tem como ser corrigidas, tendo de ser completamente abandonadas – para ficarmos nesse texto, a teoria cartesiana dos vértices é um exemplo, para Smith, de ponte para a qual não havia conserto possível (EPS, pp.9298; EF, pp.271-79). A lição que gostaria de enfatizar é que comparação e conjectura são os dois tipos de ligação que tem na imaginação a sua origem. Ao contrário do racionalismo, que funda as operações de síntese próprias ao conhecimento humano no entendimento ou na razão (Citação 15 de Kant). Smith assume que é a imaginação, guiada pelo prazer advindo da observação da semelhança, a origem da atividade sintética própria à teoria e, como veremos na sequência, também à prática dos seres humanos. Invertendo os termos, para Smith a imaginação é a faculdade que compara e conjectura. A questão a esse respeito passa a ser, então, como compreender a espontaneidade da imaginação enquanto faculdade sintética – um dos temas da próxima aula. Dois tipos de espanto e investigação que organizam duas etapas do trabalho científico: especificação e unificação e encadeamento a partir de princípios cada vez mais gerais. Desse segundo tipo de wonder surge essa segunda tarefa, propriamente filosófica, que consiste em unificar os tipos e cadeias a partir de princípios cada vez mais gerais: [Citação 1] A filosofia é a ciência dos princípios conectores da natureza. Ante a mais ampla experiência que a observação comum pode alcançar, a natureza parece abundante em eventos que se mostram solitários e incoerentes com tudo que os precede, o que, consequentemente embaraça a fluência do movimento da imaginação, fazendo que as suas ideias se sucedam umas às outras, por assim dizer, por arrancos e ímpetos irregulares, o que por seu turno, tende, em certa medida, a introduzia as confusões e pertubrações já mencionadas. A filosofia, ao representar os encadeamentos invisíveis que ligam todos aqueles objetos desconexos, busca introduzir ordem nesse caos de 10 aparências discrepantes e incompatíveis, atenuar o tumulto da imaginação e reconduzi-la, quando observa as grande revoluções do unverso, ao tom de tranquilidade e compostura que, além de ser em si mesmo mais agradável, é o mais adequado à sua natureza. (EF, pp.206-07) Philosophy is the science of the connecting principles of nature. Nature (…) seems to abound with events which appear solitary and incoherent with all that go before them, which therefore disturb the easy movement of the imagination (…). Philosophy, by representing the invisible chains which bind together all these disjointed objects, endeavours to introduce order into this chaos of jarring and discordant appearances, to allay this tumult of the imagination, and to restore it, when it surveys the great revolutions of the universe, to that tone of tranquillity and composure, which is both most agreeable in itself, and most suitable to its nature. (EPS, pp.45-6) Ressaltemos dois pontos importantes: 1) o desenvolvimento científico/filosófico serve para apaziguar ou satisfazer um tipo específico de sentimento, o espanto, o wonder, em suas duas versões, o que acaba por resultar em um ordenamento da natureza e 2) a filosofia como um todo “pode ser vista como uma das artes que dizem respeito à imaginação [may be regarded as one of those artas that adress themselves to the imagination]” (ibidem), e não diretamente à razão. Um efeito colateral desse fato, é que as exigências de coerência e completude lógicas não são relevantes em si mesmas, mas apenas na medida em que servem para gerar um sistema capaz de apaziguar essa inquietude e curiosidade próprias ao espanto.4 O resultado desse processo progressivo de apaziguamento do espanto é um sistema ordenado que se desdobra em dois momentos complementares, 1) de especificação 2) a partir de um princípio geral. É isso que lemos a propósito da apresentação da filosofia natural e moral na Riqueza das nações: [Citação 16] Foi nos rudes ensaios para um sistema de filosofia da natureza que se viu, pela primeira vez, nesses tempos antigos, a beleza de uma disposição sistemática das diferentes observações, associadas mediante um pouco princípios. Algo semelhante se tentou fazer mais tarde com a moral. As máximas da vida comum foram dispostas [arranged] numa certa ordem 4 Daí porque hipóteses e teorias equivocadas podem perdurar por bastante tempo (como a teoria dos vórtices de Descartes), basta que seus princípios sejam familiares à imaginação (EPS, p.96). Convém notar que essa falta de verossimilhança (probability) com a realidade pode perdurar na filosofia natural, mas não na filosofia moral: “A system of natural philosophy may appear very plausible, and be for a long time very generally received in the world, and yet have no foundation in nature, nor any sort of resemblance to the truth. The vortices of Des Cartes were regarded by a very ingenious nation, for near a century together, as a most satisfactory account of the revolutions of the heavenly bodies. (...) But it is otherwise with systems of moral philosophy, and na author who pretends to account for the origin of our moral sentiments, cannot deceive us so grossly, nor depart so very far from all resemblance to the truth” (TMS VII.ii.4.14, pp.3134). 11 metódica, e relacionadas entre si por alguns princípios comuns, do mesmo modo com haviam ensaiado dispor e relacionar [arrange and connect] os fenônemos da natureza. A ciência que pretende investigar e explicar esses princípios associativos é o que propriamente se chama de filosofia moral. (WN V.i.f.25, p.769; RN pp.973-74) Esse trecho aponta o que separa o leigo do botânico: um método sistemático de arranjo, isto é, a busca por um ordenamento a partir de um único (ou de poucos) princípio(s) geral(is). 3. Admiração Chegamos assim ao último sentimento que guia e dirige as investigações filosóficas, a admiração perante tal arranjo ou disposição organizada dos fenômenos. Arranjo que Smith não hesita em qualificar de belo. Retomemos o exemplo do naturalista, cuja dinâmica do trabalho da imaginação na atividade taxonômica pode ser assim resumida: um zoólogo que avista um animal até então desconhecido se surpreenderá (surprise) com o inesperado; conforme pesquisa mais e se acostuma com seu novo objeto de pesquisa a surpresa dá lugar ao espanto e seu trabalho passa a ser o de buscar e enumerar as semelhanças capazes de encaixá-lo da melhor maneira possível no quadro taxonômico (dependendo do animal, pode ser necessário alterar o quadro para comportá-lo); uma vez encaixado, a série está novamente completa e o espanto se esgota; sobra apenas a admiração pelo sistema taxonômico que daí resulta (EPS, pp.38-9). O mesmo vale para a série conjectural criada em resposta ao segundo tipo de espanto, nas quais essas pontes vão sendo progressivamente reformadas, as conjecturas sucessivamente rearranjadas a partir de princípios mais gerais e capazes de englobar cada vez mais fenômenos. A História da astronomia de Smith consiste precisamente nisso, na narrativa desses sucessivos rearranjos a propósito dos fenômenos celestes, desde a Grécia antiga até Newton. 4. Lei, segurança e espanto Vou finalizar a aula de hoje comentando a seção III da História da astronomia, intitulada, Da origem da filosofia. A seção anterior termina destacando essa busca por princípios da parte de filósofos e cientistas: 12 [Citação 17] Na verdade, os filósofos sempre à procura de um encadeamento de objetos invisíveis para unir eventos com os quais todo mundo está familiarizado, são os únicos que se esforçam para descobrir um encadeamento desse tipo entre dois eventos [o pão e a subsistência da vida humana], assim como para conectar, através de um desses encadeamentos intermediários, a gravidade, a elasticidade, e mesmo a coesão dos corpos naturais com algumas de suas outras qualidades. Nenhuma dessas combinações de eventos, contudo, constitui obstáculo para as imaginações do grosso da humanidade, de modo que não causam espanto, nem qualquer percepção de que falte uma conexão mais precisa entre eles. (EPS, p. ; EF, pp.205-06) Na citação 7, vimos que, para Smith, a diferença entre o filósofo e o carregador é efeito (e não causa) da divisão do trabalho. De acordo com a passagem que acabamos de ler, perguntar-se sobre a origem dessa busca pelos princípios conectores da natureza é se perguntar pelas origens da figura do filósofo enquanto atividade profissional, enquanto especialista, parte integrante de uma ordem na qual a divisão do trabalho chegou ao ponto de permitir sua existência. As condições desse surgimento são indicadas por Smith logo de partida: [Citação 18] Nos primórdios da sociedade, antes que a lei, a ordem e a segurança se estabelecessem, os homens tinham pouca curiosidade em descobrir as cadeias de eventos que unem fenômenos da natureza aparentemente desconexos entre si. (EPS, p. ; EF, p.209) Assim como qualquer outra atividade, ocupação ou negócio – todas traduções possíveis do termo trade, como veremos na terceira aula –, a filosofia tem sua existência condicionada pelo grau de divisão do trabalho alcançado na sociedade que, por sua vez, como o título do cap. 3 do Livro I da Riqueza das nações, aponta, “é limitada pela extensão do mercado”. A passagem citada indica as condições: lei, ordem e segurança. [Citação 19] quando a lei estabelece a ordem e a segurança, e a subsistência deixa de ser precária, então a curiosidade dos homens aumenta e os seus temores diminuem. O ócio [leisure] de que eles passam a usufruir torna-os mais atentos aos fenômenos da natureza, mais observadores das suas menores irregularidades e mais desejosos de conhecer o encadeamento que os une. (EPS, p. ; EF, p.213) Sob certos aspectos, é quando as relações sociais se tornam reguladas e regulares é que os homens adquirem as condições para enxergar essa mesma regularidade na natureza. Para Smith, no fundo, a ciência nada mais é que a projeção imaginária de uma regularidade sobre a natureza, o que só é possível sob uma condição social da qual essa regularidade seja constitutiva. Em outros termos, indivíduos civilizados (é disso que se 13 trata aqui) projetam sobre a natureza a regularidade que experimentam em seus afazares diários. Nesse ponto, a explicação de Smith não deixa de ecoar a argumentação do ensaio Do surgimento e progresso das artes e das ciências, de David Hume: “Da lei surge a segurança; da segurança, a curiosidade; e da curiosidade, o conhecimento” (in HUME, 2009, p.89). Antes disso apenas eventos grandiosos e pouco frequentes conseguiam atrair atenção suficiente para que uma explicação fosse necessária. Exploremos um pouco mais essa questão retomando as considerações de Smith sobre o homem selvagem. Para Smith, o que caracteriza a vida nos mais baixos graus de civilização é a precariedade e a incerteza, acima de tudo, a propósito de sua subsistência: [Citação 20] Um selvagem cuja subsistência é precária e cuja vida o expõe diariamente aos mais violentos perigos não tem a inclinação de se aprazer com a busca daquilo que, uma vez descoberto, não parece servir a outro propósito que tornar o teatro da natureza um espetáculo mais coeso para a sua imaginação. (EPS, p. ; EF, pp.209-10) Ao contrário do filósofo, filho da civilização e que, consequentemente, fica perplexo mesmo com “pequenas incoerências”, o selvagem se espanta apenas com as “irregularidades mais grandiosas, cujo esplendor ele não pode ignorar”. Retomando a verve narrativa de sua escrita, Smith descreve a sucessão de emoções ou estados de espírito que ele acreditava acometer o selvagem quando da observação de fenômenos naturais da ordem de cometas, meteoros, eclipses e trovões: [Citação 20] ele os encara com uma reverência próxima do temor. A sua inexperiência e incerteza quanto a tudo que lhe diz respeito [...] exacerba o seu sentimento até o terror e a consternação. [...] Assim, visto que essas aparições o aterrorizam, o selvagem é propenso a acreditar em tudo que possa torná-los ainda mais o objeto de seu terror. (EPS, p. ; EF, p.210) Aqui entra em cena dois argumentos: primeiro, a ideia de origem malebrancheana, de que “todas as nossas paixões justificam a si mesmas, isto é, sugerem-nos opiniões que as justificam” (ibidem) e, segundo, a imaginação como faculdade projetiva e que, em sua primeira figura antropomórfica, projeta na natureza aquilo que esses selvagens encontrariam, em princípio, apenas em si mesmos, a volição e a inteligência: [Citação 20] A noção de que esses eventos procedam de uma causa inteligente, embora invisível, e que sejam os sinais ou efeitos de sua vingança ou o seu desagrado, é a mais apta de todas as possíveis para intensificar a paixão do selvagem, e é esta, portanto, que ele está mais propenso a acolher. (EPS, p. ; EF, p.210) 14 O terror sugere as ideias de mau-humor e de vingança, daí a peculiar conjectura projetiva de que tais fenômenos extraordinários se devem à (má)vontade de seres sobrenaturais, invisíveis, mas que teriam o poder de voluntariamente afetar o curso ordinário da natureza, a exemplo dos seres humanos. Mas não é apenas o terror que inspira esse tipo de conjectura antropomórfica, há irregularidades da natureza que “são perfeitamente belas e agradáveis” (EPS, p. ; EF, p.211). Nesse caso, o mecanismo projetivo permanece o mesmo, mas ao invés de mauhumor e ressentimento, é o bom humor e a gratidão que são projetadas sobre a natureza: “Os antigos atenienses, que puniam solenemente o machado que houvesse causado a morte de um homem por acidente, erigiram altares e ofereceram sacrifícios ao arco-íris” (ibidem). Na Teoria dos sentimentos morais, ressentimento e gratidão são longamente analisados, o primeiro estando na base da justiça, o segundo da benevolência, duas das virtudes mais importantes no quadro smithiano. Em sua origem, esse mecanismo imaginário conjectural-projetivo, que no caso de sociedades pouco civilizadas, adquire traços humanos. [Citação 21] Eis a origem do politeísmo e da superstição vulgar que atribui todos os eventos irregulares da natureza às boas graças ou ao descontentamento de seres inteligentes, mas invisíveis, deuses, demônios, bruxas, gênios e fadas. (EF, p.212) Smith insiste que nesses primórdios, apenas eventos irregulares causam espanto, de modo que apenas eles demandavam um esforço explicativo, que era, como vimos, satisfeito através do recurso a essa projeção antropomórfica: [Citação 21] O homem, única potência dotada de intenção com a qual eles eram familiarizados, não age senão para interromper ou alterar o curso natural que os eventos tomariam se abandonados a si mesmos. Assim, naturalmente, supunham que os outros seres inteligentes que eles imaginavam, mas não conheciam, agissem da mesma maneira: não se empregavam na sustentação do curso ordinário das coisas, o qual se mantinha por si mesmo, mas para interrompê-lo, contrariá-lo ou transtorná-lo. (EPS, p. ; EF, pp.212-13) Deparamo-nos aqui, no plano epistemológico e, portanto, o mais geral possível, com aquele que é o problema central do pensamento liberal: o estatuto da intervenção no curso ordinário das coisas. Ao se deparar com essa formulação, costuma-se focar no primeiro elemento, a intervenção. O pensamento liberal teria como um de seus temas centrais a delimitação do momento em que a intervenção se transforma em interferência, em especial, a partir de uma análise das consequências não intencionais desses atos 15 interventores. Contudo, gostaria de sugerir que, talvez, seja mais produtivo se voltar ao segundo termo, o curso ordinário das coisas. Uma vez estabelecida a compreensão correta desse curso, o estatuto das intervenções se esclarece e fica fácil delimitar o momento preciso que uma intervenção se torna interferência. A meu ver, a questão liberal no século XVIII está aí: em que consiste esse curso ordinário do mundo? De onde é possível traçar uma consequência não muito frequentemente notada: no século XVIII, o posicionamento político que costumamos denominar de liberal é decorrência de um modo específico de compreensão filosófica a propósito do funcionamento do mundo. A política é apenas um dos campos onde esse tipo de compreensão opera, mas não é o mais relevante, nem o mais fundamental. O liberalismo clássico é uma filosofia no sentido pleno do termo, um tipo específico de questionamento a respeito de nossa presença no mundo e de nossa compreensão do mundo. A filosofia de Smith é integralmente liberal, não porque empregue explicações forjadas no campo da economia política, ou em um tipo peculiar de posicionamento político, para explicar outros fenômenos, mas porque concebe a experiência humana em termos que podem ser denominados liberais. Em outras palavras, porque ele enxerga na economia e na política o mesmo problema epistemológico geral que acabamos de analisar na História da astronomia, a saber, em que consiste o curso regular e ordinário das coisas. Uma vez descrito esse último, não é difícil determinar o desdobramento provável das possíveis intervenções e interferências. É a propósito dessa intervenção que a metáfora da mão invisível é aparece nesse texto: [Citação 21] Pois em todas as religiões politeístas cultuadas pelos selvagens, bem como pela antiguidade pagã em seus primórdios, observa-se que apenas os eventos irregulares da natureza é que são atribuídos à intervenção ou poder de seus deuses. O fogo queima e a água refresca, corpos pesados descendem e substâncias mais leves ascendem, tudo pela necessidade de sua própria natureza, sem que jamais se tenha considerado que a mão invisível de Júpiter se ocupasse de tais matérias. Mas trovões e relâmpagos, tempestades e dias ensolarados, esses eventos mais irregulares eram atribuídos ou bem às suas boas graças, ou bem à sua ira. (EPS, p. ; EF, p.212) E com essa passagem entramos no último assunto da aula de hoje. A metáfora da mão-invisível era invocada unicamente para explicar os eventos irregulares da natureza, cuja inconstância e imprevisibilidade eram atribuídas à vontade divina concebida nos moldes da vontade humana. No plano epistemológico, a passagem de um estado selvagem para um estado civilizado pode ser medido pelo grau de regularidade próprio ao objeto analisado. O que espanta o filósofo, filho da civilização que, por sua vez, é filha da lei, 16 da ordem e da segurança, não é a irregularidade, mas a regularidade. Essa é a lição que Smith extrai de nossa admiração pelo sistema newtoniano, capaz de unir a “queda dos corpos pesado próximos à superfície da Terra e dos outros planetas por um encadeamento mais geral” (EPS, p.104; EF, p.289), em uma descrição que “nem o mais cético pode furtar-se a reconhecer”. [Citação 22] mesmo nós, que nos esforçamos em representar todos os sistemas filosóficos como meras invenções da imaginação que de outro modo permaneceriam desconexos e discordantes, fomos insensivelmente atraídos por ele, a usar a linguagem que expressa os princípios de reunião desse sistema, como se eles fossem as verdadeiras correntes que a natureza utiliza para juntar suas muitas operações. Podemos imaginar que ele merece total a aprovação geral e completa do gênero humano, e ser considerada não um esforço para conectar na imaginação os fenômenos dos céus, mas a maior descobebrta já feita pelo homem: a descoberta de uma imensa cadeia das mais importantes e sublimes verdades, ligadas estreitamente entre si por um fato capital da realidade que experimentamos diariamente. [And even we, while we have been endeavouring to represent all philosophical systems as mere inventions of the imagination, to connect together the otherwise disjointed and discordant phaenomena of nature, have insensibly been drawn in, to make use of language expressing the connecting principles of this one, as if they were the real chains which Nature makes use of to bind together her several operations. Can we wonder then, that it should have gained the general and complete approbation of mankind, and that it should now be considered, not as an attempt to connect in the imagination the phaenomena of the Heavens, but as the greatest discovery that ever was made by man, the discovery of an immense chain of the most important and sublime truths, all closely connected together, by one capital fact, of the reality of which we have daily experience.] (EPS, p.105; EF, p.290) O sistema newtoniano é construído de tal modo que o espanto que ele nos causa é a sua aprovação universal. O leitor dos Princípios matemáticos da filosofia da natureza não pode deixar de se perguntar se ele estaria diante não apenas de uma mera teoria, mas das próprias engrenagens da natureza. 17 Fundamentos do pensamento liberal: os Ensaios filosóficos de Adam Smith Prof. Dr. Leonardo André Paes Müller Aula 2 – Sentidos externos: comparação e conjectura (28/07/2020) 1. Imaginação como a faculdade que compara e conjectura Retomemos, de modo resumido, a argumentação da aula passada. Vimos que Smith coloca a atividade sintética da imaginação no núcleo da investigação filosófica e da atividade científica. É nesse sentido que Smith interpreta o sistema newtoniano como o exemplo mais bem acabado de teoria capaz de unificar fenômenos tão diversos quanto movimento celeste e queda dos corpos na Terra a partir de um princípio único, a gravidade. O fascínio gerado por esse sistema é tamanho, que quase nos esquecemos que ele continua sendo uma mera “invenção da imaginação”. Isso porque, por trás dele (e de todos os demais sistemas científicos) se encontra o sentimento do espanto e a dupla atividade de síntese que ele dirige e guia. O espanto consiste em uma espécie de mal-estar perante dois tipos de ausência de ligação: o primeiro diz respeito a objetos singulares de difícil classificação, o segundo à ausência de conexão ou ordem incomum na passagem entre dois fenômenos. Esse primeiro tipo de espanto só se aquietará quando esse novo objeto estiver devidamente classificado em um sistema taxonômico, o que exige que ele tenha sido comparado, que tenha tido suas semelhanças e diferenças sistematicamente avaliadas em relação aos membros das espécies anteriormente estabelecidas. O primeiro tipo de síntese operado pela imaginação é, pois, o resultado dessa atividade de comparação. Ao seu lado, porém, há um segundo tipo de síntese, baseado na construção imaginária de séries ordenadas de fenômenos, que sugeri que fosse denominada de conjectural. Hoje, analisaremos a teoria da sensibilidade externa de Smith, tal qual exposta no texto Sentidos externos. A minha análise vai sublinhar o modo como mesmo aí, no campo da sensibilidade externa, a imaginação já está em pleno funcionamento, comparando e conjecturando a respeito dos objetos que percebemos como externos. 2. O texto O leitor do texto sobre os sentidos externos não pode deixar de sentir um incômodo conforme o argumento vai sendo exposto. Até a seção sobre o sentido da visão, Smith parece estar apresentando sua versão do empirismo das luzes, que remonta a Locke 18 e é compartilhado por autores como Hume e Condillac, tendo como núcleo a então já bem estabelecida distinção entre qualidades primárias e secundárias dos objetos. Ao discutir o sentido da visão, Smith retoma a teoria do visão de Berkeley, mas é principalmente ao apresentar sua resposta à questão de Molyneux, a partir de uma reinterpretação própria da experiência de Chesselden5, que ele sugere a tese (em princípio antiempirista) de que haveria um tipo de percepção capaz de antecipar alguns conhecimentos que não seriam acessíveis através dos sentidos.6 A interpretação que defendi em minha tese vai nesse sentido (Paes Müller, 2016a e 2016b, cap.1). A análise que apresentarei hoje, ao contrário, buscará ler nas operações primordiais dos sentidos externos a origem das operações sintéticas da faculdade da imaginação (comparação e conjectura), de modo a fundamentar uma interpretação empirista da filosofia de Smith. 3. Percepções dos sentidos externos Na breve introdução desse texto, Smith discorre sobre a localização corpórea dos sentidos externos, visão, audição, olfato, paladar e tato. Os quatro primeiros “concentramse em alguma parte ou órgão do corpo”, a saber, olhos, ouvidos (ears), narinas (nostrils) e palato (palate), “[Citação 1] Somente o sentido do tato parece não se concentrar em nenhum órgão em particular, mas ser difuso por quase todo o corpo, com as únicas exceções, creio, dos cabelos e das unhas” (EPS, p.135; EF, p.135). Em contraste, os sentidos internos não têm uma localização precisa, tampouco órgãos ou partes do corpo às quais se refiram diretamente. Após essa breve apresentação, Smith inicia descrevendo o sentido do tato a partir da ideia de resistência de um objeto externo: “[Citação 2] os objetos do toque (of touch) sempre se apresentam como a pressionar ou oferecer resistência à parte específica do corpo que as percebe, ou pela qual as percebemos” (EPS, p.135; EF, pp.135-36). Essa 5 Exposta por Locke (Essay ii.9.8) e retomada, dentre outros (como Diderot), por Berkeley (New Theory, §132, p.225). Sobre ela o comentário de Lebrun: “Em 1690, em seu Ensaio sobre o entendimento humano, Locke menciona o problema proposto pelo óptico Molyneux: ‘O cego de nascença que depois da operação, enxergar pela primeira vez, lado a lado, um cubo e uma esfera de metal, conseguirá reconhecer somente com os olhos o cubo e a esfera que até então ele conhecia apenas com o tato?’. Molyneux e Locke dizem que sim e o médico Chesselden demonstrará (ou dirá ter demonstrado) que a experiência tátil é indispensável para que ele possa reconhecer os dois corpos. É a contraprova da tese de Berkeley, segundo a qual o tato, ou o sentido cinestésico, constitui as significações espaciais que o hábito nos faz traduzir, em seguida em significações óticas” (2006, p.56). 6 Schliesser faz desse aspecto o cerne de sua análise dessa questão (2017, pp.54-62), para um comentário, ver Paes Müller (2019a). Ao longo do texto, indicarei os trechos que abrem espaço para esse tipo de interpretação. 19 percepção da resistência ao toque está longe de ser simples. Três características que acabaremos por associar àquilo que oferece essa resistência podem ser traçadas logo de cara: a externalidade, a independência em relação ao sujeito do toque (de modo geral, em relação ao ser senciente) e os limites desse algo. Primeiro, a externalidade: “[Citação 2] pressão ou resistência sempre pressupõe a externalidade na coisa que pressiona ou resiste. A mesa não poderia pressionar minha mão ou resistir ao seu movimento se não lhe fosse externa” (ibidem). Segundo, a independência: [Citação 2] Com efeito, sinto isso [a mesa que toco] não como mera afecção de minha mão, mas como algo inteiramente externo e independente dela. Sem dúvida, a sensação agradável, indiferente ou dolorosa da pressão, é algo que sinto como uma afecção de minha mão; mas a coisa que pressiona ou resiste, sinto-a como inteiramente diversa dessa afecção, como externa à minha mão e dela independente. (ibidem) Terceiro, a limitação: [Citação 2] Quando movo minha mão ao longo da mesa em qualquer direção, ela logo chega a um lugar em que essa pressão ou resistência cessa. A esse lugar chamamos de limite [boundary] ou fim da mesa, cuja extensão e figura são determinadas pelo comprimento ou direção das linhas ou superfícies que constituem tal limite ou fim. (ibidem) Desse modo, a partir da percepção de sua presença, o tato nos fornece também a extensão e a figura desse objeto. É por isso que mesmo um homem cego – de nascença ou que perdeu a visão muito cedo – seria capaz de “formar a mais distinta ideia da extensão ou figura de todas as partes de seu corpo e de todos os objetos tangíveis que venha a manusear ou examinar” (EPS, pp.135-6; EF, p.136). Reparem que Smith incluiu, sem nenhum comentário mais explícito, um outro tipo de objeto, as partes do próprio corpo do ser que sente: Quando encosta a mão em seu pé, assim como a mão sente a pressão ou resistência do pé, do mesmo modo este sente a da mão. Ambos são externos um ao outro, mas nenhum deles é inteiramente externo a quem os possui. Ele tem sensibilidade em ambos, e naturalmente os considera, se não partes de si mesmo, ao menos pertencentes a ele, e por isso, é necessário para a sua própria felicidade e conforto dedicar-lhes algum cuidado. (ibidem; EF, pp.136-37) Ao perceber a externalidade, independência e extensão/figura dos objetos externos, ele também percebe a diferença (atividade de comparação) entre esses objetos e as partes de seu corpo. Ao comparar o conjunto dessas partes com os objetos externos, outra coisa: 20 Quando põe a mão sobre a mesa, embora sinta a pressão desta, não sente, ao menos não que ele saiba, a pressão daquela. Portanto, ele sente a mesa como algo externo não somente à sua mão, mas a si mesmo, por inteiro, e, consequentemente, a mesa não é algo cujo estado e condição deva necessariamente lhe preocupar. (ibidem) Ao comparar esses dois tipos de percepção, o cego percebe não apenas a externalidade, independência e extensão/figura das partes de seu próprio corpo, mas também adquire uma noção de que elas compõem um único todo, compõem um corpo. Organismo, totalidade organizada. A conclusão da argumentação de Smith é o surgimento das noções de solidez e substância, conjecturas que a imaginação formula a partir dos dados táteis: A tal poder ou qualidade de resistência chamamos solidez [solidity], e à coisa que a possui, corpo sólido ou coisa. Uma vez que a sentimos como externa a nós, necessariamente a concebemos como de todo independente de nós. Consideramo-la, portanto, como aquilo a que denominamos substância, ou seja, algo que subsiste por si mesmo e independentemente de qualquer outra coisa. (EPS, p.136; EF, p.137-38). No fundo, a noção de substância nada mais é que um dispositivo imaginário, uma conjectura, capaz de organizar os dados sensíveis fornecidos pelos cinco sentidos externos7 e, virtualmente, toda nossa experiência externa. Antes de analisar a noção de substância, porém, façamos uma breve parada. O leitor dessas passagens não pode evitar sentir uma certa vertigem com a velocidade da argumentação de Smith. Em pouco mais de duas páginas passamos de um homem cego tateando uma mesa a postulados metafísicos altamente abstratos. Mas Smith faz ainda mais, precisamente ao destacar como o toque percebe outro ser que sente: [Citação 5] Ao colocar a mão sobre o corpo de algum homem ou de qualquer outro animal, embora ele saiba, ou ao menos possa saber, que eles sentem a pressão de sua mão tanto quanto ele sente a de seus corpos, ainda assim, como essa sensação lhe é inteiramente externa, ele muitas vezes não lhe dá atenção, e isso nunca o preocupará mais do que a natureza o obriga, com o mais sábio dos propósitos, por meio do sentimento solidário [fellow-feeling] que em cada homem implantou não Tato: “When we say that the food which we eat has an agreeable or disagreeable taste in every part of it, we do not thereby mean that it has the feeling or sensation of taste in any part of it, but that in every part of it, but that in every part of it, it has the power of exciting that feeling or sensation in our palates” (EPS, p.142). Olfato: “This external body we consider as the cause of this sensation, and we denominate by the same words both the sensation and the power by which the external body produces this sensation” (EPS, p.142). Audição: “We soon learn from experience, indeed, that the sensation is frequently excited by bodies at a considerable distance from us; often at a much greater distance than those ever are which excite the sensation of Smelling” (EPS, p.143). A relação do paladar com os objetos externos é mediada pelo tato (EPS, p.164). O caso da visão será apresentado na seção 4b. 7 21 somente em relação a outros homens, mas (ainda que em muito menor grau) em relação a todos os restantes animais. Ao destinar o homem a ser o animal reinante neste pequenino mundo, parece ter sido sua benévola intenção inspirar-lhe algum grau de respeito até mesmo para com o mais ínfimo e frágil de seus súditos. (ibidem; EF, p.137) Ao tocar outro animal, esse se afastará ou se aproximará. O toque é capaz de sentir a si mesmo e essa capacidade está na base de toda a teoria dos sentimentos morais de Smith, o fellow-feeling, a sensação vicária, o sentimento solidário. Podemos inclusive remeter essa percepção ao princípio analisado na aula passada [Citação 5 – Aula 1]: sentimos prazer ao perceber a semelhança, e isso vale para as próprias faculdades sensórias. 8 3. Os atributos da substância Retomemos o trecho onde a noção de substância aparece pela primeira vez: [Citação 6] A tal poder ou qualidade de resistência chamamos solidez [solidity], e à coisa que a possui, corpo sólido ou coisa. Uma vez que a sentimos como externa a nós, necessariamente a concebemos como de todo independente de nós. Consideramo-la, portanto, como aquilo a que denominamos substância, ou seja, algo que subsiste por si mesmo e independentemente de qualquer outra coisa. Com efeito, na linguagem comum, as palavras ‘sólido’ e ‘substancial’ são reputadas como sinônimos perfeitos ou ao menos aproximados. (EPS, p.136; EF, p.137-38). Na aula passada insistimos na diferença entre um botânico, cujo espanto se satisfaz unicamente com uma taxonomia sofisticada e uma criança que se satisfaz em distinguir as coisas em duas categorias, “a das substâncias sólidas, a qual ela chama de coisas, ou à classe das aparências, a que ela chama de não coisas” (EPS, p. ; EF, pp.19596). Essa aproximação nos dá duas pistas: primeiro, como na História da astronomia, o princípio que guia a criação da noção de substância é o mesmo das demais categorias, o espanto; segundo, a comparação com o botânico nos sugere que a criança se satisfaria com essa sinonímia da linguagem comum, não muito rigorosa entre substância e solidez, ao passo que haveria espaço para o desenvolvimento de uma linguagem mais precisa através de uma delimitação mais rigorosa das semelhanças e diferenças entre esses conceitos. 8 As origens antigas do pensamento liberal estão na virtude da liberalidade. Em Aristóteles, a virtude é determinada pelo grau médio, o que implica que para cada virtude há dois vícios, um na falta, outro no excesso: liberalidade entre avareza e prodigalidade. 22 Smith associa a solidez à extensão nas “três direções, comprimento, largura e espessura”, daí todos os corpos sólidos possuírem “volume ou magnitude. Isso parece essencial à sua natureza, e sem volume ou magnitude não poderíamos sequer conceber como os corpos sólidos são capazes de exercer resistência ou pressão” (EPS, p.136; EF, p.138). Extensão, por sua vez, “pressupõe divisibilidade”; podemos não ter força suficiente para operar esta divisão, mas “podemos sempre ao menos imaginar que ele seja dividido em duas ou mais partes” (EPS, p.137; EF, p.138). Com exceção do universo, passível de ser concebido como infinito, “todo corpo sólido e extenso deve ter algum formato ou figura, ser limitado por certas linhas e superfícies” (ibidem), isto é, é um corpo finito e limitado. Finalmente, a quarta qualidade ou atributo da substância sólida, é a mobilidade, uma vez que tais corpos “devem ser concebidos como capazes de movimento e de repouso, isto é, tanto de alterar como de manter sua situação em relação aos outros corpos que o cercam”9 (ibidem). Temos assim as quatro qualidades ou atributos – extensão, divisibilidade, figura e mobilidade – que [Citação 6] parecem estar necessariamente envolvidas na ideia ou concepção de uma substância sólida. Na realidade, elas são inseparáveis dessa ideia ou concepção, e sem elas não é possível conceber que exista substância sólida. (EF, p.139) Como já apontamos, em última instância, a substância é um dispositivo imaginário, uma conjectura, válido na exata medida em que serve para organizar os dados sensíveis fornecidos pelos demais sentidos externos10 e, virtualmente, toda nossa experiência externa (e, por oposição e em conjunto à nossa percepção do toque, nossa experiência interna). Se quisermos empregar a metáfora que vimos na aula passada, sustância é a ponte que liga esses quatro atributos. Ao contrário do que apressadamente poderíamos pensar, essas quatro não são as únicas qualidades que podem ser atribuídas a objetos sólidos. Através do tato podemos A imaginação tem uma tendência a associar movimento e tamanho do corpo: quanto maior o corpo, menor o movimento que a imaginação associa a este. Mas como as modernas teorias astronômicas demonstram, esta é uma falsa associação (EPS, p.137; cf., Astronomy IV.38, in EPS, p.77-9). 10 Tato: “When we say that the food which we eat has an agreeable or disagreeable taste in every part of it, we do not thereby mean that it has the feeling or sensation of taste in any part of it, but that in every part of it, but that in every part of it, it has the power of exciting that feeling or sensation in our palates” (EPS, p.142). Olfato: “This external body we consider as the cause of this sensation, and we denominate by the same words both the sensation and the power by which the external body produces this sensation” (EPS, p.142). Audição: “We soon learn from experience, indeed, that the sensation is frequently excited by bodies at a considerable distance from us; often at a much greater distance than those ever are which excite the sensation of Smelling” (EPS, p.143). A relação do paladar com os objetos externos é mediada pelo tato (EPS, p.164). O caso da visão será apresentado na seção 4b. 9 23 descobrir sua maciez (softness) ou dureza (hardness) (EPS, p.138) e, a partir dessas características estabelecer duas espécies peculiares de objetos sólidos: os fluidos e o ar (ibidem). A água e o ar aparecem como os casos extremos dessa classe de objetos, indicando resistência e maciez, respectivamente, tal qual demonstrado em experiências científicas11 (EPS, p.139). Uma vez que a resistência é a característica mais importante dos objetos sólidos formamos o princípio da “impenetrabilidade [impenetrability] da matéria, a absoluta impossibilidade de que duas substâncias sólidas, resistentes, ocupem o mesmo lugar ao mesmo tempo” (EPS, p.140; EF, p.142). Smith finaliza essa etapa de sua análise apontando que [Citação 8] não importa qual seja o sistema adotado a respeito da dureza ou maleabilidade, fluidez ou solidez, compreensibilidade ou incompressibilidade da substância resistente, isso em nada afeta a certeza com que nossos sentidos e sensações distinguem sua externalidade, sua completa independência em relação ao órgão que a percebe, ou por meio do qual nós a percebemos. (EPS, p.140; EF, p.142) Esse trecho pode ser facilmente lido no sentido de meu comentário de ontem a respeito da compreensão histórica de Smith: cada uma dessas teorias físicas (nesse parágrafo Smith cita nominalmente Leucipo, Demócrito, Epicuro, Gassendi, Newton) vale na exata medida em que satisfaz ao espanto de seu autor e de sua época. Todas elas são, no fundo, arranjos provisórios a respeito desses fenômenos. E, apesar disso, Smith insiste que a noção de substância permanece como substrato metafísico geral da experiência humana. O que se altera é a teoria particular associada a essa noção, mas não o seu papel de organizador da experiencia humana como um todo. 4. As percepções de temperatura Smith finaliza o seu tratamento do tato analisando a sensação (feeling) de calor e frio. Como ela é sentida em quase todas as partes de nosso corpo, ela geralmente é associada a esse sentido. Mas aqui há um equívoco linguístico: [Citação 9] Em nossa língua não penso ser apropriado dizer que tocamos, mas sim que sentimos as qualidades do calor e do frio. Ora, a palavra sensação [feeling], embora em muitos casos a utilizemos como sinônimo de toque [touching], tem, contudo, um significado muito mais amplo, e Smith insiste que, quando hermeticamente selados num compartimento, os fluidos são capazes de resistir a altíssimas pressões (EPS, p.138); já o ar é facilmente redutível, mas ainda assim oferece alguma resistência (EPS, p.139). 11 24 frequentemente a empregamos para denotar tanto nossas affecções internas quanto as externas. Sentimos fome e sede, sentimos alegria e tristeza, sentimos amor e ódio. (EPS, p.140; EF, p.143) Esse trecho é um excelente exemplo da lógica gramatical de Smith (tema da aula de amanhã): sensação é o gênero do qual são espécies dois tipos de sensações externas, o toque e a sensação de temperatura, e três tipos de sensações internas, os apetites, prazer e dor mentais (alegria e tristeza) e emoções ou paixões. A diferença entre a percepção de corpos sólidos e da temperatura é que os primeiros “são sentidos como algo que pressiona o órgão”, enquanto os segundo “como se estivessem no órgão”, como “algo que ocorre no corpo” (EPS, p.140; EF, p.143). O ponto central é que, com a sensação de temperatura, “não necessariamente nos é sugerida a presença de qualquer objeto externo, nem poderíamos, unicamente a partir disso, inferir a existência de qualquer objeto desse tipo” (ibidem). No fundo, estamos diante de duas percepções de natureza diferente: [Citação 10] primeiramente, a da mesa sólida ou resistente, necessariamente sentida como externa e independente da mão que a percebe; e, em segundo lugar, a do calor ou frio que o contato com a mesa excita na mão, o que é naturalmente sentido como algo que não está em parte alguma, a não ser na própria mão, ou no princípio de percepção que nela sente. (EPS, p.141; EF, pp.143-44) Contudo, apesar do fato de que, em última instância, esse segundo tipo de percepção não nos indicar a existência de um objeto externo e independente, rapidamente “aprendemos por experiência que elas costumam ser provocadas por um objeto” externo, esteja ele em contato ou não com nossa pele. Essa associação entre a sensação interna da temperatura e a noção de uma substância externa e independente serve de modelo para o restante da filosofia de Smith, para a qual, a substância permanece como base de nossa experiência. A noção de substância é uma conjectura sugerida pela percepção de resistência que, uma vez formulada, passa a organizar os demais tipos de percepção, como a temperatura: [Citação 11] Pela frequência e uniformidade dessa experiência, pelo costume e hábito de pensamento que tal frequência e uniformidade necessriamente ocasionam, a sensação interna e sua causa externa passam a estar tão estritamente conectadas em nossa concepção que, em nosso modo habitual e descuidado de pensar, tendemos a considerá-las quase como uma só e mesma coisa, e por isso as denotamos por uma só e mesma palavra. (ibidem) A frequência e uniformidade da experiência faz com que esse dispositivo imaginário (a noção de substância), adquira um novo atributo/qualidade por associação de ideias, a temperatura. E aqui nos deparamos com outro dispositivo típico da filosofia 25 de Smith, a nomeação, que estabiliza essa associação e permite um manejo mais confortável por parte da imaginação e da memória. Na aula passada, analisamos esse problema a partir do exemplo do botânico que se deparava com um espécime até então desconhecido [ver a Citações 8 a 10 da Aula 1]. Apontei ali que a solução ao “pensamento indeciso e indeterminado” que caracteriza o espanto I é a classificação do fenômeno em questão em uma classe ou espécie de coisas, tarefa que cabe ao ato de nomeação. Hoje estamos vendo como a noção de substância serve de suporte para esse ato de nomeação que, como veremos amanhã, é o ponto de partida da teoria de Smith sobre o processo de formação das línguas, e que consiste na atribuição dos nomes substantivos ou, mais simplesmente, das espécies. Nesse trecho dos Sentidos externos, em particular, estamos lidando com um exemplo de funcionamento não inteiramente apropriado desse mecanismo, uma nomeação que provoca ambiguidade por não delimitar corretamente as duas partes que estão associadas. No entanto, Smith insistirá que, nesse caso, a confusão “está mais na palavra do que no pensamento”, uma vez que “ainda retemos alguma noção dessa distinção” que não desenvolvemos (evolve) com o cuidado necessário (ibidem). Daí porque, mesmo sem um desenvolvimento cuidadoso, essa ambiguidade não provoca grandes equívocos, uma vez que, no caso do tato, mesmo “o mais ignorante dos homens nunca cogitou (entertained)” tomar a sensação pela coisa (ibidem). A análise dos demais sentidos externos serve para Smith reafirmar a pertinência da distinção entre as percepções primárias (resistentes) e secundárias (não resistentes) – distinção que não é facilmente observada no caso dos sentidos internos, que analisaremos na última aula.12 Sensação interna e sua causa externa são facilmente distinguíveis não apenas a propósito dos objetos do tato, mas também do paladar, do olfato e da audição. Em oposição às sensações primárias, essas sensações não resistentes têm “quatro qualidades secundárias”: elas não têm extensão nem figura, não são passíveis de movimento nem de serem divididas; além de não sugerirem a noção de substância externa (EPS, p.145). 5. A linguagem da natureza: percepções visuais Um campo novo da experiência se abre com as percepções visuais. Smith inicia seu tratamento da visão remetendo à Nova teoria da visão de Berkeley, dizendo que tudo 12 No senso de conveniência, por exemplo, a sensação agradável primária não é tão facilmente distinguida da percepção da concordância entre emoção original e simpática. 26 o que ele tem a dizer a esse respeito “foi, se não diretamente tomado de sua obra, ao menos sugerido por suas palavras” (EPS, p.148; EF, p.155). Sendo de natureza não resistente, por si só, os dados visuais não sugerem a distância nem o tamanho dos objetos que enxergamos: [Citação 12] Os objetos visíveis, a cor e todas as suas diversas modificações, em si mesmos não passam de meras sombras ou figuras [shadows or pictures], que parecem, por assim dizer, flutuar diante do órgão da visão. Em si mesmos e independentemente de sua conexão com os objetos tangíveis que representam, não têm importância alguma para nós, pois não nos beneficiam nem nos prejudicam. (EPS, p.152; EF, p.161) Ainda assim, “Tendemos a imaginar que vemos os objetos a uma distância de nós, e que, consequentemente, percebemos de imediato a exterioridade de sua existência por meio de nossa visão” (EPS, p.148; EF, p.155). Como explicar esse descompasso? Pela associação que fazemos entre dados visuais e táteis, de modo que associamos às sensações visuais as características das percepções tangíveis, sua magnitude e mesmo sua estabilidade e autonomia. Apontei acima que a associação entre a sensação de temperatura e a noção de substância externa e independente servia de paradigma a Smith, eis seu primeiro desdobramento. A segunda característica da análise de Smith também já foi apresentada acima: essa relação é entendida a partir do modelo da linguagem. De fato, essa qualidade representativa dos dados visuais é o que Smith mantém de mais importante a respeito da tese central de Berkeley sobre a compreensão da visão como uma linguagem: [Citação 14] Em conjunto, penso que podemos concluir, com justiça, que os objetos próprios da visão constituem uma linguagem universal do Autor da natureza, instruindo-nos sobre como regular nossas ações a fimm de alcançar as coisas que são necessárias à preservação e ao bem-estar de nossos corpos, bem como evitar tudo o que lhes possa ser danoso ou destrutivo. (BERKELEY, New theory, §147; p.231) Percepções visuais são signos de objetos tangíveis, como combinações de fonemas (sons) são signos de objetos ou combinações de letras são signos da combinação de fonemas, mas sua conexão é muito mais estável que aquela encontrada nas línguas humanas13 (New theory, §144; EPS, p.158). A questão da estabilidade da relação já apareceu a propósito da frequência e uniformidade da sensação de temperatura (EPS, 13 Em seu comentário a Berkeley, Smith aponta que ele oscila entre essas duas relações, ora se referindo a relação entre som e significado, ora entre escrita e som, mas que isso não afeta o sentido e a pertinência da aproximação (EPS, pp.157-58; EF, pp.168-69). O grande filósofo do signo à época de Smith era Condillac, de quem Smith possuía todas as obras publicadas em sua biblioteca pessoal. 27 p.141; EF, p.144). Não obstante essa maior estabilidade, o aprendizado é tão indispensável aqui quanto em qualquer outro tipo de linguagem, uma vez que [Citação 15] essa afinidade e correspondência entre objetos visíveis e objetos tangíveis não poderia por si mesma, sem a assistência da observação e da experiência, ensinar-nos [...] a inferir qual objeto tangível em particular representaria cada um dos objetos visíveis (EPS, p.158; EF, p.169). É a experiência e o hábito que nos ensinam a ver a distância. 14 Esse é o pano de fundo da resposta de Smith à questão proposta por Molyneux [Citação 16], a partir de uma reinterpretação um tanto inusitada do relato do Dr. Chesselden a respeito do caso de um menino de 13 anos que, após uma cirurgia, passa a enxergar pela primeira vez. 6. Preconcepções da externalidade Em pouco menos de um ano, esse jovem teria aprendido a língua da natureza em três etapas. A primeira, onde ele confusamente dizia que “sentia como se os objetos que tocavam seus olhos tocassem a sua pele [he thought all objects whatever touched his eyes as what he felt did his skin]” (apud EPS, p.159; EF, p.171), representa para Smith o início do processo de aprendizagem do manejo dos dados visuais. O segundo passo decisivo teria ocorrido após dois meses, quando ele começou a se dar conta que pinturas eram representações (bidimensionais) de objetos sólidos: “até aquele momento, pensara que eram planos parcialmente coloridos, ou superfícies diversificadas por uma variedade de tinturas” (ibidem). Para Smith isso é um sinal claro que ele havia começado a dominar as regras de perspectiva (EPS, p.160). A terceira etapa, definitiva, teria acontecido ao redor de um ano após ele ter começado a enxergar: numa viagem a Epsom-downs, ele se maravilha com a vista, nomeando a experiência de “um novo tipo de visão [a new kind of seeing]”. Smith lê isso como indício claro que ele havia dominado por completo a linguagem visual ao ponto de se deleitar com a vista de objetos que ele nunca havia previamente tocado (ibidem). A rapidez do progresso se deve, primeiro e acima de tudo, ao do baixo grau de arbitrariedade envolvida na linguagem visual, nela “há menos regras, e elas não admitem 14 David Levy reconstrói a análise econômica de Smith a partir dessa questão (1992, 1993 e 2001). De modo extremamente significativo, e com implicações muito interessantes, ele a analisa em termos econométricos. O que estaria em jogo na determinação da distância e do tamanho dos objetos pela angulação da visão é “the classical identification problem. We have one sense datum, Θ [ie, o ângulo da visão], and two unknowns, size and distance. Looking at the problem this way, we can easily appreciate why touch is important for Berkeley's argument. Touch gives another piece of information to help with identification” (1992, p.515; cf. 2001, cap.8). A se levar esse argumento a sério, o empirismo de Adam Smith teria como herdeira um tipo específico de econometria, a “robust statistics” (2001, p.208). 28 exceções” (EPS, p. 161; EF, p.174) Porém, aqui o elemento inusitado do texto (que abre espaço para interpretações fora do quadro empirista), também permite que se suspeite de que há algo a mais em ação: [Citação 17] Mas, do fato de esse jovem cavalheiro ter adquirido o conhecimento da conexão entre os objetos visíveis e os tangíveis gradualmente, por observação e experiência, não se pode inferir ao certo que os recém-nascidos não tenham um poder instintivo de mesmo gênero. É possível que tal poder, por não ter sido exercido no momento apropriado, tenha gradualmente decaído, até que, pelo desuso, tenha sido obliterado por completo. Ou, talvez, é igualmente possível que traços remanescentes de tal poder, tenham de alguma maneira, facilitado a aquisição de uma capacidade que, de outro modo, seria bem mais difícil de ser obtida. (EPS, p.161; EF, p.174) Deparamo-nos aqui com um belo exemplo do tipo de argumentação que Smith emprega em várias situações e que não facilita em nada a interpretação de seu pensamento. Temos um efeito (a destreza no emprego da linguagem da natureza pelo jovem curado de catarata) para o qual há três conjecturas possíveis: (1) essa destreza se deve unicamente ao processo de aprendizado dessa linguagem (hipótese empirista pura) ou (2) já haveria um poder inato em nossa natureza que nos impele a essa destreza (hipótese, a rigor, não-empirista) e (2a) que poderia ter sido atrofiado pelo não uso (daí não a rapidez, mas a demora de um ano) ou (2b) que, apesar da atrofia, ainda teria facilitado o aprendizado (daí a relativa rapidez do processo). Um segundo caso, de outro cego de nascença que fosse curado, poderia nos ajudar a refinar nossas conjecturas... melhor ainda se houvesse um terceiro, um quarto e assim sucessivamente. Todavia, na ausência de uma amostragem maior, só nos resta conjecturar e não excluir hipóteses apressadamente. Aqui, a hipótese a respeito de uma espécie de instinto capaz de auxiliar em nossa interação com o mundo exterior, ainda que a forma como esse auxílio ocorra não seja clara. Em casos como esse, onde não há experiência direta a qual recorrer (ou ela é escassa e mais sugere questões e incita a curiosidade do que serve de prova) e a questão em jogo diz respeito à sobrevivência (de indivíduos ou da espécie como um todo), vale empregar um tipo de raciocínio de tipo teleológico: [Citação 18] parece evidente que os filhotes da maioria, senão de todos os animais, possuem, anteriormente a toda experiência, alguma percepção instintiva desse gênero. [...] Quase no momento em que rompe a casca, o filhote de perdiz corre em meio à grama e ao milho, o filhote de ganso em meio à charneca, e é certo que ambos se feririam gravemente se não tivessem a mais aguda e distinta percepção de objetos tangíveis que não apenas os cercam como os pressionam por todos os lados. (EPS, p.161; EF, p.175) 29 Notemos que se trata de um exemplo no qual o raciocínio envolve a ideia de que a sobrevivência desses animais depende da observação do bom funcionamento desse mecanismo instintual. Animais que, como as aves que “Lineu classifica nas ordens do gavião, da pega e do pardal” e nascem sem o emprego imediato da visão permanecem por algum tempo inteiramente indefesos, sua sobrevivência inteiramente baseada nos “esforços de ambos os progenitores [the joint labour of both parents]” (EPS, p.162; EF, pp.175-76). O mesmo raciocínio vale para a espécie humana, uma vez que “parece difícil conceber que o homem seja o único animal cujo filhote não seja dotado [endowed] de alguma percepção instintiva do tipo*” (EPS, p.163; EF, p.177). Nesse quesito, a diferença entre nós e os demais animais é apenas o maior período de “inteira dependência” em relação aos pais, período no qual as crianças desenvolveriam um manejo preciso dessa linguagem visual através de “observação e experiência” e “através do conhecido princípio da associação de ideias” (ibidem). Apesar disso, a precocidade com que um bebê dá sinais de controle dos dados visuais sugere para Smith a existência de algum tipo de percepção instintiva antecipando o desenvolvimento posterior da linguagem visual (EPS, pp.163-4). Tal instinto trabalharia, fundamentalmente, sugerindo a existência de um mundo externo povoado por objetos externos e independentes, “substâncias sólidas e resistentes” que, a rigor, apenas o tato pode acessar (EPS, p.164; EF, p.178). A partir desse momento do texto, Smith busca tais sugestões ou preconcepções nos outros sentidos externos, um por um. Paladar é o primeiro, mas, como é impossível para qualquer um degustar algo sem, ao mesmo tempo, tocar a comida, qualquer preconcepção que esse sentido fosse capaz de fornecer estaria diretamente associada ao último, não tendo como ser adequadamente isolada e estudada. Algo diverso ocorre com o olfato. Assim que mamíferos nascem, eles buscam o mamilo da mãe, o que só pode ser feito através do cheiro do leite: [Citação 19] Todos sabemos, por experiência própria, que, quando o estômago está vazio, o odor* [smell] de um prato saboroso excita e estimula o apetite. Mas o estômago de um animal recém nascido só pode estar vazio. No útero, o feto é alimentado pelo cordão umbilical. [...] Assim que vem ao mundo, esse novo conjunto de tubos e canais, cuidadosamente preparados, por um longo tempo, pela providência da natureza, de repente se abrem de maneira instantânea. Estão todos vazios e têm de ser preenchidos. O odor da substância apropriada para preenchê-los intensifica e estimula essa sensação de desconforto [uneasy sensation], produzindo fome, ou apetite por alimento. (EPS, p.164; EF, p.180) 30 A preconcepção da exterioridade fornecida pelo olfato opera através do processo de alimentação: a falta de alimento gera uma sensação desagradável, comer uma sensação agradável. O ato de sentir o odor da comida incita essa sensação desagradável, forçando o animal a buscar sua fonte: [Citação 19] O olfato [smell] não apenas excita o apetite, como direciona para o único objeto que poderia gratificá-lo. Mas ao sugerir a direção rumo ao objeto, o olfato deve, necessariamente, sugerir alguma noção de distância e de exterioridade, componentes necessárias da ideia de direção, da ideia de linha de deslocamento pela qual a distância pode ser vencida, e a boca posta em contato com a substância desconhecida que é o objeto do apetite. Parece pouco provável que o olfato seja capaz por si mesmo de sugerir uma preconcepção do aspecto ou da magnitude do corpo exterior para o qual ele direciona. [...] Mas o olfato sugere a direção pela qual o corpo externo deve ser alcançado, e sugere ao menos uma vaga ideia ou preconcepção da existência desse corpo, da coisa à qual ele dirige, embora talvez não do formato* [shape] e da magnitude precisa da coisa. [...] É provável também que o olfato sugira alguma percepção minimamente distinta do sabor [taste] da comida ao qual dirige. (EPS, pp.165-6; EF, pp.180-81) Nesse trecho encontramos os cinco níveis da preconcepção do mundo exterior fornecida pelo odor ao olfato: (1) ao sugerir uma direção na qual se encontra objeto que é capaz de saciar a fome, (2) necessariamente sugerindo a noção de distância e de exterioridade, implícitas na ideia de direção, (3) ele igualmente sugere a ideia de movimento necessário para alcançar esse objeto e trazê-lo à boca, (4) objeto cujo existência também é sugerida por esse sentido, mas cujo formato e tamanho são inteiramente desconhecidos. De modo geral, as preconcepções dos sentidos externos não fornecem nenhuma informação particular das substâncias, com exceção de uma (5) o sabor da comida. Obviamente, tal preconcepção não é uma ideia clara e desenvolvida de alimento, mas uma antecipação que abre o caminho para maiores investigações (incluindo aí, é claro, o processo de comer). Um pouco antes, Smith havia generalizado essa sugestão perceptiva para aquilo que ele denominará na Teoria de “paixões que se originam no corpo”, ou apetites (TMS I.ii.1, pp.27-31 – ver 2.4a), a partir da análise da presença do apetite pelo sexo já em crianças: [Citação 20] Os apetites que se originam em certo estado do corpo parecem sugerir os meios de sua própria gratificação, e mesmo, muito antes da experiência, uma antecipação ou preconcepção do prazer atinente a essa gratificação. É algo que se mostra de maneira evidente e distinta no apetite pelo sexo, que, que tendo a pensa, quase sempre se manifesta antes da puberdade. O apetite pela comida sugere ao bebê recém-nascido a operação de sugar, único meio pelo qual esse apetite pode ser gratificado. Por isso ele suga continuamente. Suga tudo o que se apresente à sua boca. E suga 31 mesmo quando nada se apresenta, e parece que uma antecipação ou preconcepção do prazer de que desfruta ao sugar explica o deleite que ele tem de conformar sua boca à configuração do ato pelo qual unicamente pode desfrutar desse prazer. (EPS, p.165; EF, p.180) E mais um tema diretamente ligado à sobrevivência da espécie (a reprodução sexual) é assim incluído no rol de comportamento regidos por esses instintos. Esse é o sentido geral da argumentação desse trecho do texto: a sobrevivência dos indivíduos e da espécie (inclusive a humana) é garantida por instintos inscritos na própria constituição orgânica. Mesmo a percepção (ou sensação) de temperatura tem como causa final a autopreservação (EPS, pp.167-8). Em casos de calor ou frio extremo, o animal se move, buscando alívio, o que envolve “uma noção ou preconcepção da exterioridade” (EPS, p.167; EF, p.183). Algo semelhante ocorre com as preconcepções da audição: sons particularmente altos e barulhos desconhecidos nos põem em estado de alerta, gerando um “medo de um mal incerto” (EPS, p.168; EF, p.185). A causa final desses três sentidos pode então ser apontada no parágrafo que finaliza o texto: [Citação 21] Os três sentidos, da visão, da audição e do olfato, parecem ter sido dados a nós pela natureza não tanto para nos informar sobre a situação de nosso corpo como sobre a situação dos outros corpos externos, que, apesar de estarem a alguma distância de nós, podem, cedo ou tarde, afetar essa situação, e, eventualmente, beneficiar-nos ou nos prejudicar. (EPS, p.168; EF, p.185) A função primordial dessas preconcepções é auxiliar a sobrevivência dos indivíduos e das espécies animais. O que elas antecipam diz respeito, fundamentalmente, ao desempenho de funções vitais (alimentação, reprodução) e de defesa (em relação ao meio ou contra predadores). Tais preconcepções estão enraizadas na constituição mesma dos organismos, sendo delas inseparáveis, de modo a articularem, em um plano afetivo (prérracional, portanto), as questões da ordem e da totalidade. No caso dos seres humanos, isso permitirá a Smith pensar a instauração e a manutenção das sociedades humanas a partir delas – o que, por outro lado, não significa que elas sejam suficientes para a vida humana, em especial para a vida em sociedade. Podemos, enfim, resumir as três funções básicas dessas preconcepções: elas servem (1) de critério e (2) de ponto de partida para conhecimentos que podem ser posteriormente desenvolvidos. No campo moral, elas ainda 32 funcionam como (3) critério para as faculdades morais como um todo, podendo guiar o seu uso.15 7. Função dirigente As preconcepções de um sentido externo não apresentam nenhuma semelhança com as de outro sentido, com uma exceção, a antecipação do sabor pelo olfato: [Citação 22] O olfato parece ter nos sido dado pela natureza como o dirigente do gosto* [director of taste]. Ele como que anuncia, antes de provarmos, qual seve ser o sabor da comida que é servida a nós. Embora seja percebida por um órgão diferente, parece ser, em muitos casos, uma sensação mais fraca, praticamente do mesmo tipo* que o sabor que anuncia. Portanto, é muito natural supor sugere ao bebê uma preconcepção minimamente distinta do sabor da comida por ele anunciada, e pode, assim, mesmo antes da experiência, fazer que sua boca, como se diz, salive pela comida. (EPS, p.166; EF, p.182) O olfato dirige o paladar ao indicar quais objetos esse último sentido pode ou não pode experimentar: o aroma agradável de uma refeição seduz o apetite, o odor desagradável de algo apodrecido indica que ele deve ser evitado. A função dirigente do olfato sobre o paladar mimetiza no campo mais rude da sensibilidade (o dos sentidos externos) o papel do que Smith chama de “faculdades morais” sobre a totalidade da sensibilidade humana (sentidos externos e internos), sobre os juízos morais e estéticos e mesmo sobre algumas ações. A importância do texto sobre os Sentidos externos pode ser então resumida. Primeiro, dados de um sentido (em especial dados tangíveis) podem ser utilizados para corrigir percepções de outro sentido, cabendo à imaginação a tarefa de operar essa correção. Segundo, além de suas percepções próprias (resistentes e sensações), os sentidos externos fornecem preconcepções de coisas fora de seu alcance (olfato, audição e visão sugerem o que pode ser propriamente percebido apenas pelo tato), incitando a pesquisas ulteriores. Terceiro, tais sentidos fornecem, portanto, um duplo ponto de partida ao conhecimento, percepções sensoriais puras do que eles podem propriamente sentir e preconcepções daquilo que foge de seu alcance. Quarto, o texto sobre os sentidos externos apresenta modelos mais simples para a compreensão das operações mais complexas dos sentidos internos (o papel dirigente do olfato sobre o paladar sendo um deles). Finalmente, 15 Em minha tese (2016a e 2016b), sustentei, a propósito das preconcepções, que Smith estaria reformulando o conceito helênico de prolepses, em especial, em sua versão estoica, onde essas três funções são claramente articuladas. 33 tais preconcepções estão ligadas, acima de tudo, às funções de autoconservação dos organismos, desempenhando um papel fundamental na sobrevivência dos indivíduos e das espécies. Finalizarei apontando as duas consequências que Smith tira de sua intepretação da teoria da visão de Berkeley. Primeiro, é possível encontrar essas duas atividades sintéticas da imaginação em operação já no plano da sensibilidade externa: há comparação entre as percepções dos diferentes sentidos externos (em especial entre os dados visuais e os dados tácteis) e conjectura (primeiro a propósito da distância e do tamanho dos objetos enxergados, segundo, a propósito da natureza do espaço, com a noção de substância). Segundo, ao articular a relação entre dados visuais e táteis como uma linguagem, Berkeley permite a acoplagem da estrutura lógico-gramatical da linguagem diretamente em sua teoria da sensibilidade: [Citação 23] Os objetos da visão, como nota o Dr. Berkeley com agudeza, constituem uma espécie de língua, que o Autor da natureza dirige a nossos olhos e por meio da qual nos informa a respeito de muitas coisas que são de suma importância para nós. Como na linguagem comum, as palavras ou sons não têm qualquer semelhança com as coisas que eles denotam, também nessa outra linguagem os objetos visíveis não têm qualquer semelhança com o objeto tangível por eles representados, e cuja posição relativa a nós e aos demais objetos que eles nos informam. (EPS, p.156; EF, p.167) Esse encaixe permite a Smith pensar a gramática como lógica. Esse é o objeto da próxima aula. 34 Fundamentos do pensamento liberal: os Ensaios filosóficos de Adam Smith Prof. Dr. Leonardo André Paes Müller Aula 3 – Formação das línguas: analogia e sistema (29/07/2020) 1. Gramática razoada e lógica Na primeira aula vimos que Smith definia a filosofia a partir da noção de síntese, como a ciência dos princípios unificadores da natureza. Essa definição é retomada no início da Riqueza das nações, quando ele apresenta o filósofo como aquele cujo “negócio [trade]” (discutiremos essa tradução ainda hoje) consiste em “nada fazer, mas tudo observar; e que, por isso mesmo, são muitas vezes capazes de combinar os poderes* dos objetos mais distantes e diferentes [“not to do anything, but to observe everything; and, [who] upon that account, are often capable of combining together the powers of the most distant and dissimilar objects]” (WN I.i.9, p.21; RN, p.14). Já vimos duas dessas operações em ação, a comparação e a conjectura. Hoje analisaremos o terceiro dispositivo, a analogia, isto é, uma comparação entre dois sistemas, se quisermos, uma comparação entre dois arranjos de conjecturas. Finalizamos a aula passada comentando o modo como Smith se apropria de Berkeley, em especial as duas consequências que o escocês tira de sua intepretação da Nova teoria da visão. Primeiro, é possível encontrar essas duas atividades sintéticas da imaginação em operação já no plano da sensibilidade externa: há comparação entre as percepções dos diferentes sentidos externos (em especial entre os dados visuais e os dados tácteis) e conjectura (primeiro a propósito da distância e do tamanho dos objetos enxergados, segundo, a propósito da natureza do espaço, com a noção de substância). Segundo, ao articular a relação entre dados visuais e táteis como uma linguagem, Berkeley permite a acoplagem da estrutura lógico-gramatical da linguagem diretamente em sua teoria da sensibilidade [Citação 23 – Aula 2]. Encontramos a teoria da linguagem de Smith no texto intitulado Considerações sobre a primeira formação das línguas e sobre o diferente gênio das línguas originais e das línguas compostas, de 1761. Publicado originalmente em uma revista pouco conhecida, a Philosophical Miscellany, esse texto foi republicado como apêndice da Teoria dos sentimentos morais a partir da terceira edição, de 1767. Como veremos, esse texto se estrutura, fundamentalmente, em uma análise comparativa do latim e do inglês moderno, de modo a jogar luz sobre dois temas, a abstração e a analogia. Antes de entrar no comentário propriamente dito, contudo, gostaria de citar uma carta de Smith, de 1763: 35 [Citação 1] Aprovo enfaticamente o plano de uma Gramática Razoada e estou convencido de que uma obra desse gênero [...] poderia ser não apenas o melhor Sistema de Gramática como também o melhor Sistema de Lógica jamais escrito em qualquer língua, bem como a melhor história do progresso natural da mente humana na formação das mais importantes abstrações de que todo raciocínio depende. (Carta a George Baird, 07/02/1763; traduzida em EF, p.77, nota 11) No século XVIII, a gramática razoada, ou universal ou, ainda, geral, era uma ciência dedicada à compreensão e exposição dos vínculos lógicos entre os termos gerais que formam a linguagem e são responsáveis pela abstração e pelo raciocínio. O imbricamento entre linguagem e pensamento é uma das características mais marcantes da tradição empirista dos séculos XVII e XVIII. Seguindo a via aberta por Locke (Ensaio sobre o entendimento humano, de 1690) que, em sua tentativa de demonstrar como todos os nossos conhecimentos têm origem em nossas sensações, define as palavras como signos do pensamento, estabelecendo assim uma dupla função para elas, de fixação e de comunicação das ideias (Essay, III.I). Essa via será aprofundada por Condillac que, em seu Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de 1746, busca demonstrar como não apenas nossos conhecimentos, mas também nossas faculdades (memória, imaginação, entendimento etc.), têm origem nas sensações. Além de Smith, outro pensador que desempenharia um papel decisivo na formação da ciência econômica, Anne-Robert Jacques Turgot, também iniciou seus estudos como um gramático. Em seus escritos gramaticais, o jovem Turgot enfatiza a mútua dependência do nosso pensamento em relação a uma língua bem construída:16 [Citação 1] Locke e, depois dele, o abade de Condillac, mostraram que a linguagem é na verdade uma espécie de cálculo, e que a gramática, e mesmo em grande parte a lógica, são as suas regras. Mas esse cálculo é bem mais complicado que o dos números, e está sujeito a muito mais erros e dificuldades.17 (verbete Etimologia, in Diderot & d’Alembert, 2015, v.2, p.267) 16 As referências mais importantes de Condillac para Turgot são: Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos (1746), Tratado dos sistemas (1750) e Tratado das sensações (1754) (ver Condillac, 1947, v.1). Em textos posteriores (a partir de 1770), Condillac expõe com clareza a dupla tese, de que toda língua é um método e todo método é uma língua (ver a introdução e os textos traduzidos em Condillac, 2017). 17 “A verdadeira metafísica, para a qual Locke nos abriu o primeiro caminho, foi a que melhor provou [a encore mieux prouvé] o quanto o estudo das línguas poderia se tornar intrigante [curieuse] e importante ao nos ensinar o uso que fazemos dos signos para progressivamente nos elevarmos das ideias sensíveis em direção às ideias metafísicas, e para ligar o tecido [tissu] de nossos raciocínios. [...] O estudo bem feito das línguas talvez seja a melhor das lógicas: ao analisar e ao comparar as palavras que as compõem, ao seguilas desde sua formação até os diferentes significados que lhe foram atribuídos posteriormente, reconheceríamos o encadeamento [fil] das ideias, veríamos através de quais graus, de quais nuances, os homens passaram de uma à outra; apreenderíamos a ligação e a analogia que existe entre elas; poderíamos chegar a descobrir quais foram aquelas que se apresentaram primeiro aos homens, e que ordem elas mantiveram em sua combinação dessas primeiras ideias. Essa espécie de metafísica experimental seria ao 36 A principal dessas dificuldades consiste na fixação do(s) sentido(s) dos signos que, se no campo das matemáticas é unívoca, no campo das línguas correntes (francês, inglês, português etc.) é fluido, aberto a deslocamentos e mesmo ao estabelecimento de novas relações. A fonte dessa instabilidade é dupla: as necessidades ou carências [besoins] humanas, sempre renascentes e em número crescente; e a imaginação, capaz tanto de satisfazer essas carências, quanto de multiplicá-las.18 Essa concepção antropológica, baseada na ideia do homem como um animal insatisfeito (motivado por carências), inventivo (sempre imaginando o novo) e social (ele só existe em comunidade) serve de solo comum de compreensão tanto da linguagem como da economia.19 Um dos conceitos centrais nesse esforço teórico é o de necessidades ou carências recíprocas, através do qual alguns economistas insistirão que a satisfação de qualquer carência individual envolve, necessariamente, a satisfação de carências alheias. O que está em jogo é a descrição e teorização de um processo de socialização das carências que envolve, ao menos, dois processos que se complementam: por um lado, tanto como aquilo que o indivíduo sente pode ser compartilhado e, de outro, de que modo o que ele sente é afetado pelas relações sociais em que ele se encontra. Mesmo as carências mais diretamente ligadas à subsistência e à manutenção da vida animal adquirem uma textura social. Trata-se de uma espécie de substrato instintual ou passional que serve de base para o estabelecimento de uma série de instituições próprias ao que, posteriormente, será designado pelo nome de sociedade civil (aqui entendida em oposição ao estado). Esse conceito é o ponto de partida da compreensão das línguas por Smith. 2. Abstração [Citação 2] É natural que dois selvagens que cresceram longe das sociedades humanas e nunca foram ensinados a falar começassem a forma a língua pela qual tentariam tornar inteligíveis suas mútuas necessidades [mutual needs] pela emissão de certos sons, sempre que quisessem denotar certos mesmo tempo a história do espírito do gênero humano e do progresso de seus pensamentos sempre proporcionais à carência que as fez nascer. As línguas são, a um só tempo, sua expressão e sua medida” (Turgot, Reflexões sobre a linguagem, 1751; D.29, S1, pp.307-308). 18 “As metáforas multiplicadas pela necessidade [besoin] e por uma espécie de luxo da imaginação, que também nesse gênero cria falsas necessidades, tornaram cada vez mais complicados os desvios desse imenso labirinto em que o homem é introduzido, ouso dizer, com os olhos fechados, e do qual desconhece os meandros” (Turgot, in Diderot & D’Alembert, 2015, v.2, p.268). 19 Essa concepção, que também pode ser remontada a Locke (ver Monzani, 1996), era compartilhada por vários dos economistas políticos do período, como Galiani, Tucker, Quesnay e Smith. 37 objetos. Receberiam nomes particulares apenas os objetos mais familiares mencionados com mais frequência. (LRBL, p.203; EF, p.45) A expressão “necessidades mútuas” carrega consigo toda essa concepção da humanidade como uma espécie social, insatisfeita e inventiva. A linguagem é um dos campos onde essa natureza desabrocha. A questão da nomeação é o ponto de partida da investigação de Smith. A caverna onde esses dois ‘selvagens’ vivessem, a macieira de onde colhessem maças, o riacho de onde bebessem água, “seriam denominadas por palavras como caverna, árvore, fonte”, nomes em princípio particulares mas que, conforme sua experiência fosse expandindo, incorporariam mais e mais objetos, e, finalmente, por uma antonomásia (LRBL, p.204; EF, p.46), torna-se um nome geral uma espécie [rever Citação 6 – Aula 1]: [Citação 3] Uma espécie é formada por certo número de objetos com algum grau de semelhança entre si, e que por isso são denominados por um mesmo nome que pode ser aplicado para exprimir qualquer um deles. (LRBL, p.205; EF, p.47). Como vimos na primeira aula, espécie se conjuga no plural: ao agrupar objetos por semelhança, o resultado é, sempre, um quadro taxonômico, uma classificação. Porém, uma vez estabelecida, toda classificação traz consigo um problema de localização dos indivíduos particulares: [Citação 4] quando a maior parte dos objetos estivesse arranjado sob classes e sortimentos próprios distinguidos por nomes gerais, seria impossível que a maioria do quase infinito número de indivíduos compreendidos sob cada um dos sortimentos ou espécies particulares pudesse ter nomes próprios peculiares distintos do nome geral da espécie. Por isso, sempre que houvesse ocasião para mencionar um objeto particular seria com frequência necessário distingui-lo de outros objetos compreendidos sob o mesmo nome, seja por suas qualidades peculiares, seja pela relação peculiar entre ele e outra coisa. Daí a necessária origem de dois outros conjuntos de palavras, um deles para exprimir a qualidade, o outro, relação. (LRBL, p.205; EF, p.48) Uma vez estabelecido um quadro classificatório a partir das semelhanças específicas, a questão que se impõe é a da diferenciação entre indivíduos de mesma espécie, o que pode ser feito de dois modos: por uma qualidade particular desse objeto (ou de uma subclasse da espécie) ou pela relação entre dois (ou mais) objetos. O primeiro modo de diferenciação está na base dos “nomes adjetivos”, “palavras que exprimem uma qualidade considerada qualificadora, ou [...] a qualidade concreta de um objeto particular”. Smith insiste na evidência dessa função de distinção entre “certos objetos 38 particulares de outros compreendidos sob a mesma denominação geral”. Árvore verde, esse é seu exemplo, “serve para distinguir uma árvore particular de outras secas ou murchas” (LRBL, p.205; EF, p.48). Porém, há casos em que uma distinção desse tipo não é possível, quando, por exemplo, temos duas árvores verdes e queremos denotar apenas uma delas. Precisamos então de um segundo modo de diferenciação, base das preposições: “palavras que exprimem uma relação entre dois objetos considerada em concreto”. Palavras como “de, para, por, com, acima, abaixo etc. denotam uma relação subsistente entre os dois objetos exprimidos pelas palavras entre as quais a preposição é colocada”. O exemplo de Smith: “Quando dizemos a árvore verde do prado, distinguimos uma árvore particular não apenas pela qualidade que pertence a ela como também pela relação entre ela e outro objeto” (LRBL, pp.205-06; EF, pp.48-49). O primeiro grande tema desse texto, a abstração, aparece aqui. Estabelecida a função desses dois tipos de palavras, Smith conjectura a respeito de sua origem, insistindo que é mais provável que termos menos abstratos tenham surgido antes de seus correlatos abstratos: verde antes de verdejante, azul antes de azulado, acima e abaixo antes de superior e inferior. “Inventar palavras desta última espécie requer um esforço muito maior do que inventar palavras da primeira”, ainda que a invenção de palavras do primeiro tipo também [Citação 5] requer considerável grau de abstração e generalização. Por exemplo, o inventor das palavras verde, azul, vermelho e outros nomes de cores teria de observar e comparar entre si um grande número de objetos, notar semelhanças e diferenças na cor como qualidade, e arranjá-los em sua própria mente em diferentes classes e sortimentos, de acordo com tais semelhanças e diferenças. (LRBL, p.206; EF, p.49) Temos aqui as mesmas atividades de comparação e conjectura, de especificação e classificação através da observação de semelhanças e diferenças que vimos no texto sobre a História da astronomia, o espanto guiando e dirigindo todo o processo. Com uma diferença: [Citação 6] Um adjetivo é, por natureza, uma palavra geral, em alguma medida abstrata, que necessariamente pressupõe a ideia de uma certa espécie ou sortimento de coisas às quais é aplicável sem distinção. Diferentemente do que supusemos no caso da palavra caverna, a palavra verde não poderia ter sido originalmente o nome de um indivíduo e depois, em virtude do que os gramáticos chamam de antonomásia, tornar-se o nome de uma espécie. Pois, como a palavra verde não denota o nome de uma substância, mas a qualidade peculiar de uma substância, ela seria desde o início uma 39 palavra geral indistintamente aplicável a toda outra substância dotada da mesma qualidade. (LRBL, pp.206-07; EF, p.50) Adjetivos são termos essencialmente abstratos porque pressupõe uma taxonomia prévia, o que, como vimos na Aula 1, envolve uma série de atos mentais: [Citação 7] Quem primeiro inventasse essa denominação teria de distinguir a qualidade do objeto a que ela pertencia e conceber o objeto como capaz de subsistir sem essa qualidade. Portanto mesmo a invenção do mais simples dos nomes adjetivos requereria mais metafísica do que se costuma imaginar. Operações mentais* [mental operations] como classificação, comparação e abstração teriam de ser empregadas antes mesmo que os nomes das diferentes cores, que são adjetivos menos metafísicos, pudessem ser instituídos. (LRBL, p.207; EF, pp.49-50) Para as preposições, que denotam relações, o caso é ainda mais complicado, uma vez que [Citação 8] uma relação é, por si mesma um objeto mais metafísico do que uma qualidade. [...] Qualidades são sempre objetos de nossos sentidos externos, relações nunca o são. Não admira, portanto, que o conjunto daqueles objetos seja muito mais compreensível que o destes. [...] Uma preposição denota uma relação e nada mais que uma relação. Mas, antes que os homens pudessem instituir uma palavra que significasse uma relação e nada mais, eles teriam, em alguma medida, de considerar tal relação em abstrato, separada dos objetos relacionados, pois a ideia desses objetos não entra na significação da preposição. (LRBL, pp.209-10; EF, p.54) Para sequer poder formular palavras como acima, abaixo, ao lado, é preciso “conceber essas palavras como exprimindo uma sorte ou espécie particular de relação distinta de toda outra, o que só seria possível mediante um esforço considerável de comparação e generalização” (LRBL, p.210; EF, p.55). E mais uma vez nos deparamos com a constatação de que mesmo as transações mais corriqueiras da vida de um indivíduo envolvem um alto grau de metafísica. 3. Analogia Nem todas as línguas operam a partir dessa base abstrata. Há línguas que operam sobre uma base menos metafísica, como o latim, onde a diferenciação qualificadora aparece como declinação do próprio substantivo. Para Smith, o latim é o modelo de língua bem arranjada e o paradigma mais importante de como uma língua deveria operar. Apesar de ser uma língua composta, sua gramática é mais simples que a de suas predecessoras (o grego e o toscano), com menos casos de declinações e menos tempos verbais, mas ainda 40 não tão simples como as línguas excessivamente prolixas que o sucederam (as línguas europeias modernas, o italiano, o francês, o espanhol, o português e o inglês), balanceando perfeitamente as exigências gramaticais e os propósitos de comunicação de seu falantes (LRBL, pp.222-224). Smith parte do tipo mais simples de declinação, o gênero dos nomes substantivos: [Citação 9] em muitas línguas, as qualidades do gênero sexual ou de sua ausência são exprimidas por diferentes terminações nos nomes substantivos que denotam os objetos qualificados. [...] Tanto o gênero sexual quanto sua ausência são naturalmente considerados como qualidades modificadoras inseparáveis das substâncias particulares a que pertencem, e seria natural exprimi-las antes por uma modificação no nome substantivo do que por uma palavra geral e abstrata que exprimisse essa espécie de qualidade em particular. Desse modo, a expressão traz, evidentemente, uma analogia muito mais precisa com o objeto ou ideia por ela denotado. (LRBL, p.207; EF, p.51) Em analogia aos objetos que denotam, os nomes sofrem uma pequena variação em seu sufixo que indica o gênero (lupus/lupa, equus/equa etc.) ou sua ausência (forum, pratum etc.). As primeiras palavras a serem inventadas, tais nomes guardam uma semelhança direta com os objetos que designam. Acompanhando essa declinação dos nomes, os adjetivos que qualificam esses nomes substantivos também declinam em gênero (magnus lupus/magna lupa/magum patrum): [Citação 10] Seria natural que recebessem as mesmas terminações dos substantivos a que teriam sido de início aplicados, e, graças à afinidade com sons similares e ao deleito com o retorno das mesmas sílabas – coisas que estão no fundamento da analogia em todas as línguas – poderiam variar a terminação dos adjetivos conforme fosse oportuno aplicá-los ao substantivo, não importa se masculino, feminino ou neutro. (LRBL, p.208; EF, p.52) Acima apontei a abstração como o primeiro grande tema desse texto e a analogia como o segundo. De fato, ela é a principal força motriz do desenvolvimento das línguas, como o paralelo entre as preposições no inglês moderno e o tipo declinação que opera a mesma função no latim, demonstra com clareza. [Citação 11] Nas expressões fructus arboris, “o fruto da árvore”, sacer Herculi, “consagrado a Hércules”; as variações nas palavras correlatadas arbor e Herculi, exprimem as mesmas relações exprimidas em inglês pelas preposições of e to [de e para]. (LRBBL, pp.210-11; EF, p.55) Tais expressões denotam relações sem qualquer “esforço de abstração”, uma vez que não há emprego “de uma palavra peculiar que denote relação”, mas sim, uma expressão dessa relação “tal como aparece na natureza, como algo não à parte, mas que adere e se mistura 41 por completo ao objeto correlato” (LRBL, p.211; EF, pp.55-56). Como Smith insiste, “exprimir assim uma relação não teria requerido esforço algum de generalização” e “tampouco seria necessário qualquer esforço de comparação” (ibidem). Através de suas declinações, o latim é uma língua que envolve muito menos metafísica que o inglês moderno. [Citação 12] Um dispositivo como esse provavelmente não tardaria a ser adotado como um exemplo, e qualquer que tivesse de exprimir uma relação similar entre outros objetos poderia fazê-lo com uma variação similar do nome dos objetos correlatos. É provavelmente ou certamente o que teria acontecido, mesmo sem a inteligência ou a previsão daqueles que primeiro dessem o exemplo e que não tinham a intenção de estabelecer uma regra geral. (LRBL, p.211; EF, p.56) O inventor desse dispositivo visa um caso particular, mas através de um processo gradual e inteiramente não intencional, ele está na origem de uma regra geral gramatical: o adjetivo declina por analogia sonora com o substantivo. [Citação 12] A regra geral se estabeleceria imperceptivelmente por si mesma, e gradualmente, em consequência da afinidade de analogia e da similaridade de sons que está no fundamento da imensa maioria das regras da Gramática. (ibidem; EF, p.56) 4. Sistemas Contudo, nem todas as partes do latim foram formada analogicamente. Em todas as línguas, os verbos requerem abstração e envolvem a associação de palavras. Para Smith, os primeiros verbos a serem inventados seriam os [Citação 13] verbos impessoais, que exprimem um evento completo em uma única palavra, que preservam na expressão a perfeita simplicidade e unidade que invariavelmente existem no objeto na ideia e que não pressupõem abstração alguma, ou nenhuma divisão metafísica do evento em seus membros constituintes, sujeito e atributo [...]. (LRBL, p.215; EF, p.62). Todos os demais verbos pessoais, ao contrário, pressupõem essa [Citação 14] divisão do evento em duas partes [que] é, portanto, inteiramente artificial, um efeito da imperfeição da linguagem que, em muitas ocasiões, supre com algumas palavras a ausência de uma única que pudesse expressar, de maneira simultânea e integral, a questão de fato de que se trata. Todos percebem que a expressão natural pluit é muito mais simples e menos artificial do que outras como imber decidit, ‘a chuva cai’, ou tempestas est pluvia, ‘o tempo está chuvoso’. Nestas, o evento simples ou questão de fato é artificialmente dividido e decomposto em duas ou três partes, e é 42 exprimido por uma espécie de circunlocução gramatical [grammatical circumlocution] cuja significação funda-se numa análise metafísica determinada das partes componentes da ideia exprimida pela palavra pluit. (LRBL, p.216; EF, pp.62-63) Os economistas desenvolveram uma teoria para lidar com um fenômeno semelhante, envolvendo ganhos de produtividade através da adoção de meios ou métodos intermediários: roundabout economies. Uma espécie de atalho por um caminho mais longo. A condição geral para a implementação de um método intermediário é a existência de retornos crescentes de escala.20 Smith enxerga a distinção entre sujeito e predicado como um tipo de roundabout method, ou circunlocução gramatical, para empregarmos o termo do texto, uma distinção que envolve dependência de trajetória (path dependencies) significantes. Uma vez distinguidos, sujeito e ação são subdivididos, o primeiro em pessoa (primeira, segunda e terceira) e em número (singular e plural), o segundo em tempo (passado, presente e futuro), modo (indicativo, subjuntivo etc.), voz (ativa e passiva) etc. Todas a línguas analisadas por Smith (latim, o inglês e o italiano) envolvem alguma combinação desses dois mecanismos, mas com uma inversão: no latim a analogia prevalece, nas línguas modernas é a abstração. Com efeito, em muitas ocasiões, as línguas modernas precisam substituir os mecanismos analógicos por mecanismos muito mais complexos porque, primeiro, há muito mais comparação e abstração (muito mais metafísica) envolvidas na invenção das palavras necessárias para a expressão e comunicação das ideias (Languages 12, LRBL pp.209-210); segundo, o significado exprimido pelas declinações nas línguas antigas, nas línguas modernas “que não admitem variação nas terminações dos nomes substantivos, as relações correspondentes são exprimidas pela posição das palavras na sentença e pela ordem e construção desta” (Languages 21, LRBL p.213; EF, p.59). O resultado é uma composição muito mais intricada e complexa que, terceiro, é muito mais prolixa, menos agradável e mais restritiva em termos da disposição das palavras nas sentenças (Languages 43-45, LRBL pp.224225; EF, p.). O famoso trecho final desse Ensaio lida precisamente com essa questão da concomitante simplificação nos princípios e complexificação nos usos através de uma analogia entre as línguas e as máquinas. 20 The general condition for implementing such roundabout methods is increasing return of scale. One of the first economists to analyze this phenomenon, Allyn Young, explicitly acknowledges Smith as a forerunner (see 1929). 43 [Citação 15] os rudimentos e princípios de uma língua se tornam mais simples quanto mais complexa seja a sua composição. Acontece aqui o mesmo que em dispositivos mecânicos. Todas as máquinas em geral têm, quando de sua invenção, princípios extremamente complexos, e com frequência encontra-se um princípio particular de movimento para cada movimento particular a ser realizado. Observa-se, com o tempo, que um mesmo princípio pode ser aplicado para produzir muitos movimentos, e assim a máquina se torna cada vez mais simples e produz os mesmos efeitos com menos mecanismos e princípios de movimento. Da mesma maneira a linguagem, cada caso de nome e tempo de cada verbo seria exprimido originalmente por uma palavra particular distinta, que serviria a esse e nenhum outro propósito. A observação sucessiva descobriria que um conjunto de palavras poderia ocupar o lugar desse número infinito, e que quatro ou cinco preposições e meia dúzia de verbos auxiliares são suficientes para responder à finalidade de todas as declinações e conjugações, como se verifica nas línguas antigas. (LRBL p.223; EF, p.73) Gostaria de fazer dois comentários a partir desse trecho. Primeiro, essa é uma das analogias que estrutura a filosofia smithiana como um todo: ela faz parte da série línguasmáquinas-sistemas-divisão do trabalho-sociedade-organismo. É precisamente a analogia entre sistemas que organiza a filosofia smithana em seu mais alto grau: a linguagem dos sentidos é análoga à linguagem comum, que é análoga à uma máquina (LRBL, p.223; EF, p.73), que é análoga a um sistema (EPS, p.66; EF, p.235) e à divisão do trabalho (WN I.i.8-9, pp.19-22). Em outro registro, as leis ligadas à virtude da justiça deveriam funcionar como as regras da gramática, ao passo que as regras das demais virtudes, como regras do bom gosto (TMS III.6.11, p.175). Em seu ápice, a filosofia de Smith se baseia no manejo adequado, conveniente ou próprio das mais diversas analogias, todas elas construídas a partir dessa dupla síntese da imaginação. Propriedade ou conveniência (propriety, não property) que é o cerne de sua teoria moral – e assim voltamos a tema central desse livro, a filosofia moral de Smith. Segundo, o tratamento de Smith de todos esses fenômenos está baseado na ideia de que o progresso nesses campos se dá à revelia da intenção do agentes. Já apontamos que o desenvolvimento da ciência ocorre pela busca da satisfação do espanto, estamos vendo que o desenvolvimento das línguas é movido pela analogia dos sons, processos semelhantes estão em jogo no que tange à divisão do trabalho e a sociedade. Contudo, a despeito dessas semelhanças, cada um desses fenômenos é específico e comporta características únicas. Em termos gerais, toda analogia tem limites. É o que nos indica a continuação do trecho que acabamos de ler: [Citação 16] Mas a simplificação das línguas, embora talvez surja de causas similares às que atuam na correspondente simplificação das máquinas, não tem, de modo algum, os mesmos efeitos que 44 exerce nestas. A simplificação de máquinas aperfeiçoa cada vez mais, ao passo que a simplificação dos rudimentos das línguas as torna cada vez mais imperfeitas, e menos apropriadas aos muitos propósitos da linguagem [...]. (LRBL, p.224; EF, pp.73-74) Se no que tange às máquinas, essa simplificação envolve uma indiscutível melhora na performance – como discutido no capítulo 1 do Livro I da Riqueza das nações –, no que tange às línguas, ela traz consigo três consequências não necessariamente benéficas: aumento da prolixidade, perda da sonoridade e composição menos agradável, porque mais rígida e monótona. 5. A gramática da economia I: os sentidos de Trade Vou finalizar a aula de hoje tentando demonstrar essa lógica-gramatical em atuação na economia política de Smith. Farei isso através de dois pontos: primeiro, discutindo o significado do termo trade, isto é, discutindo a atribuição de um nome geral a uma espécie de atividade humana; segundo, discutindo os dois tipos de diferenciação entre os indivíduos de uma mesma espécie, tarefa dos adjetivos e das preposições no campo da linguagem, isto é, discutindo os dois modos de se diferenciar uma mercadoria, o valor no uso e valor na troca. Num estágio avançado de desenvolvimento econômico (como a Grã-Bretanha e a França do século XVIII), a produção de qualquer bem comporta tantos tipos diferentes de trabalho que “o número de pessoas” envolvida em sua produção “supera todas as possibilidade de cálculo [exceeds all computation]” (WN I.i.11, p.22, RN, p.15). Mesmo assim ainda é possível compreendê-la por analogia com uma manufatura “trivial” como a de alfinetes, com pouco empregados e na qual “é possível reunir na mesma oficina todos os que se ocupam os diferentes ramos do trabalho, de modo que todos se coloquem ao mesmo tempo à vista do observador [under the view of the spectator]” (WN I.i.2, p.14; RN, p.7). Em seu famoso exemplo de abertura da Riqueza, Smith mostra como, em algumas fábricas, as dezoito diferentes operações envolvidas na fabricação de um alfinete “são todas executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas” (WN I.i.3, p.15; RN 1, p.66). Um aspecto importante, raramente destacado, é que não há diferença entre dentro e fora de um negócio: [Citação 17] da maneira como essa atividade [business] é atualmente realizada, não só o conjunto do trabalho constitui uma ocupação específica [peculiar trade], como a maior parte das tarefas em 45 que o trabalho está subdividido consiste, igualmente, em ocupações especializadas [peculiar trades]. (ibidem, pp.14-5; RN, p.8). Para Smith, portanto, trade é menos sinônimo de commerce que de business.21 A totalidade de um negócio é uma ocupação especializada, subdividida em inúmeras outras ocupações, como a colocação da cabeça na parte superior do alfinete: “o encaixe da cabeça é uma ocupação específica [peculiar business], assim como é o alvejar os alfinetes; mesmo a embalagem dos alfinetes é uma tarefa distinta [trade by itself]” (ibidem, p.15; RN, ibidem). Do ponto de vista conceitual, Smith parece sugerir que compreensão da economia ocorre a partir das ocupações ou atividades específicas e tem como modelo a divisão do trabalho interna à manufatura – economistas diriam hoje, à firma.22 Em última instância, as necessidades particulares de cada um desses negócios ou ocupações específicos (sua ‘natureza’) determinam a “divisão e distribuição naturais do trabalho”: [Citação 17] A atividade [trade] do comerciante de trigo [corn merchant] compõe-se de quatro diferentes segmentos, os quais, embora possam às vezes ser levados a cabo pela mesma pessoa, constituem por sua natureza quatro atividades separadas e distintas. (WN IV.v.b.2, p.524; RN, p.659) O grau de desenvolvimento pode ser assim determinado pelo grau de aprofundamento de duas coisas, simplificação e especialização: [Citação 17] A separação* entre as diversas atividades e empregos [separation of different trades and employments] parece ter-se realizado em consequência dessa vantagem. Aliás, verifica-se que essa separação* é geralmente levada mais longe nos países que desfrutam um nível mais elevado de atividade e aperfeiçoamento[highest degree of industry and improvement]: o que constitui o trabalho [work] de um homem num estágio primitivo [rude stage] da sociedade corresponde comumente ao de vários homens numa sociedade mais desenvolvida. (WN I.i.4, p.15; RN, p.9) O paralelo com o desenvolvimento das línguas fica claro: o que no latim era tarefa de um único dispositivo, a declinação dos casos, no inglês deve ser desempenhada por duas ou mais palavras, às vezes por uma frase inteira. A diferença é que o caso econômico, 6. A gramática da economia II: utilidade e valor 21 A crítica de Smith à doutrina mercantil da balance of trade começa aqui, no primeiro capítulo do primeiro livro. 22 Ele talvez tenha sido o primeiro a fazê-lo, ver Sylvie e Daniel Diatkine (1991). Convém lembrar que firma (firm) não é um termo empregado por Smith. 46 De modo característico, Smith inicia sua discussão sobre o valor econômico discutindo os significados dessa palavra: [Citação 18] É preciso observar que a palavra “VALOR” possui dois diferentes significados; algumas vezes expressa a utilidade de algum objeto em particular, e outras, o poder de comprar outros bens, que a posse desse objeto transmite. O primeiro pode ser designado por “valor de uso [value in use]”; o segundo, por “valor de troca [value in exchange].” (WN I.iv.13, p.44; RN, p.36) O paralelo que proponho aqui é com as considerações de Smith a propósito dos adjetivos e das preposições, palavras que “servem para distinguir objetos particulares de outros da mesma espécie” (LRBL, p.206; EF, p.49). Minha hipótese: o valor serve para distinguir entre as diferentes “espécies de mercadorias [species of commodities]” (WN I.vii.17, p.76) – cada uma delas produto de diversas “espécies de trabalho [species of labour]” (WN I.vi.1-2, p.65) operando em conjunto e – que compõem a riqueza das nações (WN Intro.1, p.10), o que ocorre de dois modos. Assim como os adjetivos indicam “certa qualidade concreta do objeto particular” (LRBL, p.206; EF, p.48), o valor de uso dos bens se refere às qualidades concretas das mercadorias. Por sua vez, assim como as preposições indicam diferenças “quando tais objetos particulares não podem ser propriamente assinalados por qualidades que lhe são peculiares”, mas o são pela “relação entre dois objetos considerada em concreto” (LRBL, p.206; EF, pp.48-49), o valor de troca também se refere a essas relações entre bens: “o que se pode chamar de valor relativo, ou de troca, dos bens [what may be called the relative or exchangeable value of goods]” (WN I.iv.12, p.44; RN, p.36 – itálicos meus). Valor de uso e de troca estão para as mercadorias como adjetivos e preposições estão para os nomes (ou espécies).23 Em outros termos, o valor é aquilo que qualifica essa espécie que são as mercadorias; qualificação que pode ser de dois tipos: pela utilidade, uma “qualidade concreta” dessas mercadorias, “valor no uso [value in use]”, ou pela posição dessa mercadoria em relação aos demais nas transações comerciais, no processo de intercâmbio social, como “valor na troca [value in exchange]”. Ao contrário de seus amigos Anne-Robert Jacques Turgot e Andre Morellet, que poucos anos antes (em 1769 e 1770, respectivamente), articularam esses dois níveis a partir de uma sofisticada teoria do valor econômico baseada na comparação entre as Não custa lembrar que, como visto, Smith opera com uma noção nominalista de espécie: “Uma espécie é formada por certo número de objetos com algum grau de semelhança entre si, e que por isso são denominados por um mesmo nome que pode ser aplicado para exprimir qualquer um deles” (LRBL, p.205; EF, p.47). 23 47 avaliações individuais de duas pessoas isoladas em uma ilha,24 Smith dissocia valor no uso e na troca. O famoso ‘paradoxo da água e do diamante’, como ficou conhecido, serve de argumento decisivo a esse respeito: [Citação 19] As coisas que possuem o maior valor de uso frequentemente possuem pouco ou nenhum valor de uso. Nada é mais útil que a água e, no entanto, ela não permite comprar quase nada; poucas coisas se podem obter em troca dela. Um diamante, pelo contrário, não possui quase nenhum valor de uso, mas normalmente é possível obter em troca dele uma enorme quantidade de outras mercadorias. (WN I.iv.13, pp.44-45; RN, p.36) Smith remete o valor no uso às qualidades materiais e formais dos objetos e o valor na troca à quantidade de trabalho que esse bem pode comandar no mercado. Dois capítulos antes, Smith conclui seu argumento sobre o estabelecimento da divisão e do aumento da produtividade do trabalho a partir do comércio apontando, para a espécie canina, Por falta da capacidade ou da propensão para a troca, não é possível reunir os efeitos desses diferentes gênios ou talentos em num patrimônio comum [common stock], e por isso, nenhum cão contribui minimamente para satisfazer as necessidades e melhorar o conforto da espécie [do not in the least contribute to the better accommodation and conveniency of the species]. (WN I.ii.5, p.30; RN, p.22) A fortuna determina o grau de participação de cada indivíduo nesse patrimônio ou fundo comum, de onde cada pessoa “pode adquirir todas as partes produzidas pelos talentos de outros, de acordo com suas necessidades [he has occasion for]” (ibidem). Uma participação que Smith compreende como um poder, cuja quantidade é determinada por sua extensão: [Citação 20] Riqueza é poder, como diz Hobbes. [...] O poder que a posse dessa fortuna lhe assegura, de forma imediata e direta, é o poder de compra; um certo comando sobre todo o trabalho ou sobre todo o produto do trabalho que está então no mercado. Sua fortuna é maior ou menor, exatamente na proporção da extensão desse poder; ou seja, de acordo com a quantidade de trabalho alheio ou – o que é a mesma coisa – do produto do trabalho alheio que esse poder lhe dá condições de comprar ou comandar. O valor de troca de cada coisa será sempre exatamente igual à extensão desse poder que essa coisa traz para o seu proprietário. (WN I.v.3, p.48; RN I, p.88) 24 Ver, de Turgot, Valores e moedas (1769; S3, pp.78-83 e ss.) e, de Morellet, a digressão sobre o valor em seu Prospecto a um novo dicionário de comércio (1770, pp.89-182). Para comentários, ver Perrot (1992, pp.97-125) e Van den Berg (2014). 48 Riqueza é poder e, por consequência, a economia é política25 – essencialmente política, porque é caracterizada por um tipo específico de poder, o poder de comandar trabalho alheio. A peculiaridade desse tipo de poder é mais facilmente delimitada a partir da analogia com a linguagem: a abstração. Como vimos, é precisamente por ocasião de sua análise dos adjetivos e das preposições que Smith introduz a questão da abstração no campo da linguagem. Se levarmos isso em conta, não surpreende que a análise do valor na troca, do valor relativo, seja tão complexa. Antes mesmo de poder ser sequer designado, é necessário o emprego de todo um largo aparato metafísico, de uma série sucessiva e recursiva de operações de classificação, comparação, abstração e generalização. É o que Smith admite de partida. Logo após elencar as questões que sua teoria do valor na troca busca elucidar (WN I.iv.15-17, p.46), ele aponta que, apesar de seus melhores esforços, sua exposição ainda pode envolver “certa obscuridade por se tratar de um assunto que é, por sua própria natureza, extremamente abstrato” (WN I.iv.18, p.46; RN, p.37). Tomemos a primeira das questões elencadas por Smith, a da medida real do valor na troca. A operação central aqui é a comparação. Na sequência ao parágrafo com a referência a Hobbes, ele aponta que “embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as mercadorias, não é por trabalho que normalmente se estima o valor delas”. Ao tentarmos comparar diferentes tipos de trabalhos, duas dificuldades aparecem, porque i. há diversos tipos de trabalhos e ii. porque “é preciso também levar em conta os diferentes graus de dificuldade* [hardship] e de engenho [ingenuity]” (WN I.v.4, p.48; RN, pp.38-39). Contudo, é raramente em termos de trabalho que comparamos as mercadorias, geralmente empregamos outras mercadorias: [Citação 21] Além disso, é mais frequente que cada mercadoria seja trocada por outras mercadorias do que por trabalho e que, por conseguinte, seja àquelas comparadas. Assim, é mais natural estimar o seu valor de troca pela quantidade de alguma outra mercadoria do que pela quantidade de trabalho que ela pode comprar. A maior parte das pessoas, ademais, compreende melhor o significado de [what is meant by] uma quantidade de uma certa mercadoria do que de uma quantidade de trabalho. Uma consiste num objeto simples e palpável [plain palpable object]; a outra, numa noção abstrata [abstract notion] que, embora possa tornar-se suficientemente inteligível, de maneira geral não é tão natural e evidente. (WN I.v.5, p.49; RN, p.40 – itálicos meus) “As riquezas [riches] e, na medida em que o poder depende das riquezas, o poder de um país devem ser sempre proporcionais ao valor de sua produção anual, o fundo [fund] com base no qual todos os impostos são, em última instância, pagos. Mas o grande objetivo da economia política em cada país é aumentar as riquezas e o poder desse país” (WN II.v.31, p.372; RN, p.466). 25 49 Um comentário pormenorizado dessa espinhosa questão foge ao escopo desse curso. O que nos interessa é mostrar que a análise lógico-gramatical de Smith busca isolar a abstração: nessas passagens está em jogo duas comparações (entre trabalhos, entre mercadorias), uma analogia (entre o sistema dos trabalhos e o sistema das mercadorias) 26 e uma abstração (do trabalho). Assim como na análise comparativa do latim e do inglês, cabe ao economista político smithiano isolar o elemento abstrato para melhor lidar com ele. 26 A questão fica ainda mais complicada com a introdução da moeda e a substituição do escambo por trocas monetárias: “É mais natural e simples para ele, portanto, estimar seu valor pela quantidade de dinheiro, que é a mercadoria pela qual o açougueiro imediatamente a troca, do que pela quantidade de pão e cerveja, que são as mercadorias pelas quais ele poderá trocá-la apenas pela mediação de outras mercadorias; ele prefere dizer que a carne vale 3 ou 4 pence por libra, a dizer que vale 3 ou 4 libras de pão, ou 3 ou 4 quartas de cerveja. Daí resulta que com frequência estimemos o valor de troca de qualquer mercadoria mais pela quantia em dinheiro do que pela quantidade de trabalho ou de qualquer outra mercadoria por que se pode trocar tal mercadoria” (WN I.v.6, p.49; RN, pp.40-41). 50 Fundamentos do pensamento liberal: os Ensaios filosóficos de Adam Smith Prof. Dr. Leonardo André Paes Müller Aula 4 – Sentimentos morais: simpatia e valor (30/07/2020) 1. Sentimentos morais Nessa nossa última aula do curso, vou indicar para vocês como os princípios apresentados nos Ensaios filosóficos organizam a filosofia moral de Smith. Para isso inicia apresentando o significado técnico de sentimento para Smith, que envolve a simpatia, para então apresentar essa faculdade como um caso peculiar da faculdade da imaginação em sua dupla atividade de comparação e conjectura. Começarei com uma definição: sentimento é uma paixão validada socialmente. Uma paixão ou emoção (sinônimos perfeitos no vocabulário de Smith) consiste em uma reação afetiva individual a uma situação específica. Esse processo de validação social dessas reações emocionais individuais acontece em duas etapas diferentes, apesar de inseparáveis: justificação e comunicação. Sobre o primeiro, Smith cita Malebranche: “[Citação 1] como o padre Malebranche observa, nossas paixões todas justificam a si mesmas, isto é, sugerem-nos opiniões que as justificam” (EPS, p.48). Esse ponto é fundamental. Para Smith as paixões são, a um só tempo, sensíveis e racionais (ou, mais corretamente, judicativas). Toda emoção ou paixão é uma sensação mais ou menos refinada e espontânea a respeito de um objeto julgado (mesmo que implicitamente) como adequado a ser o objeto desse afeto. A reflexão opera a partir e sobre essa ‘decisão’, corrigindo e refinando-a. No que diz respeito a seres humanos em sociedade, o nome desse processo de constituição e correção das emoções é simpatia. Uma paixão ou emoção27 que justifique a si mesma será uma excelente primeira definição de sentimento se dentro desse processo de justificativa se encontra também a comunicação: Os termos emoção e paixão são usados de forma indistinta por Smith: “When the original passions of the person principally concerned are in perfect concord with the sympathetic emotions of the spectator” (TMS I.i.3.1, p.16). Em outra passagem ele fala em “sympathetic passions” (TMS I.ii.3.1, p.34). Ele não fala em emoção original, mas apresenta a reação do agente a uma situação como uma “emoção” (TMS I.i.1.6, p.11). Ele também apresenta o mesmo esquema, seja “the original and sympathetic feelings” (TMS III.3.35, p.152), como “the original sensations (…) the reflected or sympathetic images of those sensations” (TMS VI.ii.1.1, p.219), apesar de que, nessa última passagem o contexto claramente indica que ele fala de prazer e dor. Outra forma de ver esse uso indistinto é o seguinte: pesar e ressentimento são apresentados tanto como emoções (TMS I.i.2.5, p.15), quanto como paixões (TMS I.ii.3, pp.34-8). O ressentimento também é apresentado como um sentimento (TMS II.i.1.2, p.68). Afeto (affection), por sua vez, tem o significado preciso de “habitual sympathy” (TMS VI.ii.1.7, p.220), no qual, contudo, ele se confunde com o sentimento (TMS III.6.2, p.171). 27 51 [Citação 2] Se fosse possível que uma criatura humana vivesse em algum lugar solitário até alcançar a idade adulta*, sem qualquer comunicação com sua própria espécie, não poderia pensar em seu próprio caráter, a conveniência ou demérito de seus próprios sentimentos e conduta, a beleza ou deformidade de seu próprio espírito, mais do que na beleza ou deformidade de seu próprio rosto. (TMS III.1.3, p.110; TSM, p.140) Essa passagem associa explicitamente sociedade, comunicação e (auto)avaliação moral: alguém que crescesse em completo isolamento seria incapaz de julgar moralmente seus próprios atos (com a exceção da beleza de utilidade [TMS IV.2.12, p.192]). O nome que Smith dá a esse processo de comunicação emocional é simpatia. Comunicar uma paixão ou afeto pode significar apenas uma coisa: compartilhamento emocional. A tarefa fundamental da simpatia é compartilhar as reações emocionais individuais a uma situação em particular (i.e., o caso de alguém) ao maior número possível de espectadores. A reação individual busca ser compartilhada num processo em que ambos, agente e espectador, têm de lidar com um número enorme de obstáculos, demandando modulação dessa emoção em ambos os lados para que o objetivo seja alcançado. A primeira parte da definição de sentimento dada acima (uma paixão justificada) deve ser completada por uma segunda: sentimento é uma paixão comunicável. Como não há justificação sem comunicação (no duplo sentido de que é a comunicação que provê o objetivo da justificativa – se não for para comunicar, para que justificar? – e o critério dessa justificação – que tipo de espectador quero convencer?), igualmente não há comunicação sem justificação. Qualitativamente, a expressão primária da emoção apenas adquire sentido ao ser colocada num contexto particular (uma lágrima, por exemplo, pode significar tanto alegria quanto tristeza), especialmente através de sua articulação numa narrativa (a lágrima escorre pelo rosto de uma menina cujo sorvete acabou de cair no chão). Quantitativamente, toda reação emocional primária deve ser modulada para que possa ser compartilhada (para que atinjam o seu tom [pitch] adequado, seu grau médio). Sentimentos são, pois, paixões justificadas e comunicáveis. Justificadas porque comunicáveis, comunicáveis porque justificadas. [Citação 3] Todos esses sentimentos [i.e., a noção de merecer recompensa ou a suspeita de uma merecida punição] supõem a ideia de algum outro ser que fosse o juiz natural [natural judge] da pessoa que os experimenta; e é apenas por simpatia com as decisões desse árbitro de sua conduta, que pode conceber ou o triunfo de aplaudir-se a si mesmo, ou a vergonha de condenar-se a si mesmo. (TMS IV.2.12, p.193; TSM, p.236) 52 Mas os sentimentos também podem ser apresentados em sua dinâmica interativa com a sensibilidade individual, com os sentidos internos. Falar em sentidos é um modo de lidar com a operação conjunta de sensibilidade, imaginação e razão envolvidas no processo de se sentir algo numa situação particular, como a origem da reação emocional a um contexto específico e concreto. Nos termos dessa seção, sense designa o processo de emergência e justificação dessa reação primária, essa última pressupondo a comunicação (mesmo se apenas como uma comunicação virtual). Dessa perspectiva, sentidos internos e sentimentos são os dois lados da mesma moeda. Focar nos sentidos internos é insistir na dimensão individual, focar nos sentimentos significa jogar luz sobre a dimensão social (esse é o principal motivo pelo qual a simpatia adquire tanta importância para Smith). No entanto, eles são dois cortes possíveis do mesmo todo. Um verdadeiro sentido interno se faz sentir socialmente; ao passo que, um verdadeiro sentimento estará justificado quando sentido [exemplo do remorso]. Se quisermos brincar com os termos: sentidos internos são sentimentos agindo no indivíduo, ao passo que sentimentos são sentidos internos agindo em sociedade. Essa interação permite a Smith advogar que a sociabilidade é predicado natural da humanidade, que a sociedade está inscrita em nossa natureza (Parte V da TMS como um todo). Ou, inversamente, pressupor que a sociabilidade natural tem como consequência essa concorrência mútua entre sentidos internos e sentimentos. Para Smith, sentimentos existem apenas para indivíduos sociais exercendo suas capacidades naturais (sensibilidade, imaginação, entendimento) ou, mais precisamente, sentimentos são produzidos por indivíduos em interação social de modo a serem sentidos, contestados, justificados, refinados e, por vezes, até mesmo admirados. Como apontado, a simpatia é o mecanismo por trás dessas operações. 2. O termo simpatia Etimologicamente, o termo simpatia vem do grego συμπαθεια (sumpatheia) que é composto pelas partes sum (com, juntamente) e pathos (o que se experimenta, no sentido de sensação/emoção/paixão). Simpatizar significa, portanto, “sentir em conjunto” ou, mais simplesmente, “com paixão”. Aqui também Smith discute o significado da palavra simpatia: 53 [Citação 4] Piedade e compaixão são palavras que com propriedade denotam nossa solidariedade [fellow-feeling] pelo sofrimento alheio. Simpatia, embora talvez originalmente sua significação fosse a mesma, pode agora ser usada, sem grande impropriedade, para denotar nossa solidariedade com qualquer paixão. (TMS I.i.1.5, p.10; TSM, p.8) O uso corrente (mais restrito porque circunscrito à partilha de sentimentos dolorosos) esconde o significado mais amplo, precisamente aquele que Smith quer trazer à tona desde o início de sua Teoria: [Citação 5] Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela fortuna* dos outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela. (TMS I.i.1.1, p.9; TSM, p.5) Piedade e a compaixão são provas desse traço natural, uma vez que mesmo “o maior rufião, o mais empedernido infrator das leis da sociedade, não é totalmente desprovido desse sentimento” (ibidem). Mesmo um indivíduo com essas características, ao observar ou assistir o que se passa com alguém em uma situação de tristeza irá simpatizar com essa pessoa. Smith a denomina de “pessoa principalmente atingida ou diretamente afetada [person principally concerned]” (TMS I.i.1.4, p.10), por vezes de “agente” (TMS II.i.3.1, p.71) e mesmo de “ator” (TMS VI.concl.6, p.264), a saber, a pessoa que vivencia em primeira mão a situação em questão. Do outro lado, aqueles que a assistem serão chamados de “espectadores” (TMS I.i.1.4, p.10) ou “observadores” (TMS I.iii.3.2, p.62) e, em algumas situações, “ouvintes” (TMS I.iii.1.12, p.47). A questão de abertura da Teoria é saber como podemos ver a felicidade alheia, isto é, um estado emocional e, portanto, invisível. Em termos gerais: como podemos sentir o que os outros sentem? 3. Simpatia e imaginação As emoções alheias (tristeza, alegria) não são visíveis, mas, seus sinais externos, (choro, riso) o são, a ponto da observação desses últimos ser frequentemente acompanhada pelo surgimento de uma emoção semelhante no espectador: [Citação 7] Em algumas ocasiões, a simpatia parece surgir da mera visão de certa emoção em outra pessoa. Em algumas ocasiões, as paixões parecerão transfundidas [transfused] de um homem a outro 54 instantaneamente, previamente a qualquer conhecimento do que as estimulou na pessoa primeiramente atingida. (TMS I.i.1.6, p.11; TSM, p.8) Smith começa criticando uma espécie de explicação da simpatia pela leitura dos sinais externos das emoções, como se fosse possível inferir o estado de espírito de outra pessoa através da visão de expressões faciais e de gestos. 28 É verdade que, em várias situações, a mera observação de dor ou alegria “intensamente expressas no olhar ou gestos” pode ser sucedida pelo surgimento da mesma emoção no observador, mas “isso não é universalmente válido, ou válido para todas as paixões”. Um primeiro problema desse tipo de explicação é a falta de generalidade. Isso, por si só, seria suficiente para colocar em questão esse tipo de teoria, mas Smith aponta ainda um segundo e um terceiro problemas. Como de praxe nas obras de Smith, eles são explorados (sem serem devidamente diferenciados) a partir de um exemplo: “o comportamento furioso de um homem irado” é mais propenso a gerar aversão ou mesmo medo que nos incitar a compartilhar a emoção que está sendo expressa. Em princípio, estaríamos lidando apenas com o primeiro problema: há um tipo de emoção cujos sinais externos não sugerem a emoção de base. A continuação do texto nos apresenta o segundo problema: nesse caso, é mais provável que simpatizemos com o “medo ou ressentimento” daquele que é o alvo de sua ira, ao invés de simpatizar com ele. O nó da questão é que não sabemos qual é o motivo desse comportamento (TMS I.i.1.7; TSM, p.8; cf. LJB, p.527). Nesse tipo de caso, a mera observação do comportamento ou de sinais externos da reação emocional de uma pessoa não é suficiente para inferirmos algum tipo de conhecimento a respeito de sua motivação (o porquê de sua ira) e, portanto, não temos como simpatizar com ela de imediato. Enquanto observarmos apenas os sinais externos do que ocorre internamente, não teremos acesso às causas da ação (não saberemos a motivação do agente). Pior ainda, aqui o terceiro problema, ao destacar a possibilidade de simpatizarmos com o ressentimento daquele que sofre a ira do agente, Smith remete à sua teoria da justiça. Contra aqueles que acreditam que a simpatia opere inteiramente (ou mesmo principalmente) a partir da observação dos sinais externos das emoções Smith aponta que, por não ser geral o suficiente, a mera observação dos sinais externos e inferência a partir deles da emoção do agente pode nos induzir não apenas a erros, mas à injustiça. Sem 28 Os principais alvos de Smith são dois: algumas formulações de David Hume no Livro II do Tratado da natureza humana, de 1739-40 (veremos alguns desses trechos abaixo) e a “linguagem de ação” de Condillac, desenvolvida no Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de 1746 (ver Parte II, caps. 1 a 8). 55 saber o porquê da ira desse primeiro agente contra um segundo não temos como formular um juízo a respeito da conveniência de sua atitude. Ao julgar incorretamente a ira desse agente, o perigo é acabar ofendendo-o (por simpatizar com um ressentimento sem fundamento). A solução para esses três problemas (i. falta de generalidade, ii. impossibilidade de estabelecimento da motivação e iii. possibilidade de injustiça contra o agente) é a mesma, o recurso à imaginação: [Citação 6] Embora nosso irmão esteja sendo torturado, enquanto nós mesmos estamos tranquilos, nossos sentidos [senses] jamais nos informarão sobre o que ele sofre. Pois não podem, e jamais poderão, levar-nos para além de nossa própria pessoa, e apenas pela imaginação nos é possível conceber em parte quais as suas sensações [sensations]. (TMS I.i.1.2, p.9; TSM, p.6) Por si só, a sensibilidade não pode nos levar para além de nós mesmos. A esse respeito cabe destacar que a filosofia moral de Smith tem como ponto de partida lógico o indivíduo em sua corporeidade. Para superar a estreiteza da reação emocional individual é preciso que a imaginação entre em cena, projetando-nos para além de nossa situação presente. Mas como isso é possível? [Citação 6] Tampouco essa faculdade nos pode ajudar senão representando para nós as próprias [sensações] se nos encontrássemos em seu lugar. Nossa imaginação apenas reproduz [copy] as impressões de nossos sentidos, e não as alheias. Por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma ideia das suas sensações, e até sentido algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas. (ibidem) Na primeira aula apresentamos a imaginação como a faculdade que liga fenômenos dispersos através da comparação e da conjectura. Aqui, ela é definida como a faculdade humana capaz de nos colocar no lugar de outrem – através de uma conjectura do que sentiríamos se fossemos essa outra pessoa na situação em questão – e de decidir a respeito da adequação ou não de sua reação emocional – através de uma comparação entre o que ela sente e o que sentiríamos em seu lugar. A imaginação simpática é uma espécie do gênero imaginação, a saber, aquela que conjectura sobre outros seres humanos em situações específicas e que compara a reação emocional imaginária com a observada.29 Para Smith, somos capazes de nos imaginar nas mais variadas situações e de assumir os mais variados papéis (podemos nos imaginar como personagens históricos ou 29 Há um problema com o último elemento dessa formulação, ao qual retornaremos na seção 6. 56 mesmo fictícios, podemos mesmo nos imaginar como animais e objetos inanimados), vivenciando-os de forma representada. O resultado dessa representação da situação alheia, contudo, é semelhante ao de uma vivência imediata dessa situação particular: “assim incorporadas em nós mesmos, adotadas e tornadas nossas, suas agonias começam finalmente a nos afetar” (ibidem). O resultado esperado da atuação correta desse mecanismo simpático (que, como podemos entrever, envolve um grande esforço por parte do espectador) é a sensação de afinidade ou solidariedade [fellow-feeling] e que, em seu primeiro grau, ainda concreto e dizendo respeito a um afeto particular, caracteriza-se por ser “uma emoção análoga que brota no peito de todo espectador atento [attentive spectator] ao pensar na situação das outras” (TMS I.i.1.4, p.10; TSM, p.7). Smith insiste que, mesmo em casos onde a transfusão de sentimentos é imediata (como no caso da visão de um sorriso), essa afinidade depende de imaginarmos situações concretas que poderiam ter provocado a emoção em questão. O sorriso nos sugere “a ideia geral de alguma boa fortuna* [fortune] que sucedeu à pessoa em quem as observamos”, mas que ainda não sabemos qual é. Isso torna essa simpatia incompleta, uma vez que, enquanto não soubermos qual é sua causa, apenas a ideia geral da emoção será transmitida. Nesse caso, “mesmo nossa simpatia pela dor ou alegria de outrem [...] é sempre muito imperfeita”, incitando mais nossa “curiosidade” e “alguma disposição de simpatizar” do que uma emoção análoga em nosso peito (TMS I.i.1.8-9, p.11; TSM, pp.89). A conclusão do raciocínio de Smith: “a simpatia não surge tanto de contemplar a paixão, como da situação que a provoca” (TMS I.i.1.12, p.12; TSM, p.9). Seu argumento para provar tal asserção é dado a partir de quatro exemplos. O primeiro consiste naquilo que contemporaneamente denominamos de vergonha alheia: aquelas situações em que sentimos algo que a pessoa observada não sentiu (seja por despudor, seja por rudeza de sensibilidade) “embora ela mesma pareça nem suspeitar da impropriedade de seu comportamento, [...] não podemos evitar de sentir [o] constrangimento que nos invadiria se nos portássemos de maneira tão absurda*” (TMS I.i.1.10, p.12; TSM, p.9). O segundo caso, da loucura entendida enquanto perda da razão, aprofunda a ideia de que a simpatia não é resultado do reflexo de uma emoção efetivamente sentida pelo agente. A “angústia” que sentimos ao nos depararmos com tal cena “não pode, pois, ser reflexo de nenhum sentimento do sofredor. A compaixão do espectador tem de surgir da consideração que ele próprio sentiria se fosse reduzido à mesma infeliz situação” (TMS I.i.1.11, p.12; TSM, p.10). O terceiro exemplo é o de uma mãe agoniada com o sofrimento de seu bebê doente, 57 apesar dele não ser capaz de expressá-lo, tampouco de projetar as terríveis consequências possíveis de sua situação: Na sua ideia do que a criança está sofrendo, ela soma ao real desamparo da criança sua própria consciência desse desamparo, e seu próprio terror das consequência desconhecidas dessa perturbação [...]. O bebê, entretanto, sente apenas o desconforto do momento presente, que nunca pode ser muito grande. (TMS I.i.1.12, p.12; TSM, p.10) Em certo sentido, apenas a imaginação é capaz causar sofrimentos e tormentos duradouros: tão logo é curada, uma dor de dente é rapidamente esquecida. Inveja e angústia, por outro lado, são companheiras de vida (TMS I.ii.1.8, p.29; cf., a crítica de Smith a Epicuro como um todo em VII.ii.2, mas especialmente VII.ii.2.12, pp.297-8). Essa capacidade de nos imaginarmos nas mais diversas situações é tão poderosa, eis o quarto e derradeiro exemplo, que somos capazes de simpatizar inclusive com os mortos, mesmo tendo completa consciência de que eles não são mais capazes de qualquer tipo de sensação ou emoção: [Citação 9] A ideia dessa terrível e interminável melancolia, que a imaginação naturalmente atribui à condição [de alguém morto], origina-se de associarmos, à mudança que se produziu sobre eles, nossa própria consciência dessa mudança; origina-se de nos colocarmos em seu lugar e, se me permitem a expressão, de alojarmos nossas almas vivas em seu corpos inanimados, concebendo assim quais seriam nossas emoções nesses casos. (TMS I.i.13, pp.12-3; TSM, p.11) Não à toa, pois, Smith denomina essa conjunção inusitada de alma própria e corpo alheio de uma “ilusão da imaginação” e que estaria na origem de nosso temor da morte (ibidem). Todos esses casos insistem na necessidade de um engajamento efetivo (não necessariamente consciente, mas que pode o ser) da parte do espectador, deixando claro que, para Smith, simpatia é menos uma questão de contágio passional involuntário que de esforço imaginário. A esse respeito, não me parece exagero apontar que a teoria moral de Smith se funda em uma imaginação simpática ou, invertendo os termos, uma simpatia imaginativa – ainda que tais termos não sejam de autoria de Smith, mas de uma leitora atenta de sua obra, George Eliot.30 Em As impressões de Theophrastus Such (1879) ela faz menciona uma “sympathetic imagination”; já em Daniel Deronda (1870) ela usa o termo inverso, “imaginative sympathy.” Essa última expressão é igualmente utilizada por Oscar Wilde em De profundis, de 1897, para caracterizar os atos de Cristo: “He realised in the entire sphere of human relations that imaginative sympathy which in the sphere of Art is the sole secret of creation.” 30 58 Tais casos extremos mostram que a simpatia ocorre mesmo na ausência de uma emoção original, seja porque o agente não emprega corretamente suas faculdades (1º caso), porque não as possui (2º caso), porque ainda não as desenvolveu (3º caso) ou porque cessou de ter a capacidade de empregá-las (4º caso). Eles também apontam que a simpatia em sentido estrito, o primeiro nível de fellow-feeling, é resultado da capacidade conjectural e projetiva de nossa imaginação, vale dizer, da simpatia em sentido amplo, como o mecanismo imaginário que nos coloca na situação de outrem. Vemos assim que a simpatia é tanto o mecanismo de comunicação quanto o seu bom resultado, a emoção compartilhada e a sensação do compartilhamento. A simpatia é, ao mesmo tempo, meio e fim dessa comunicação. Ela é tanto o objetivo a ser alcançado (a boa comunicação emocional) quanto o instrumento para alcançá-lo (a própria comunicação). E, como visto no início da aula, a comunicação é parte constitutiva do processo de justificação das paixões (ao menos para seres sociais, como nós humanos) e sentimento é o nome do resultado desse duplo processo. 4. Limites da simpatia Apesar da naturalidade desse mecanismo imaginário que está na base da simpatia, ele não opera sempre do mesmo modo e com a mesma intensidade. Há casos em que ele simplesmente não opera (mais comuns do que uma leitura isolada da primeira parte da obra faria suspeitar). Mesmo que o espectador se esforce ao máximo para simpatizar com o sujeito da situação, busque todas as informações disponíveis e tome o tempo necessário para ponderar mesmo sobre as menores circunstâncias, isto é, ele seja o Smith denomina de “espectador atento” (TMS I.i.4.4 e 6), a simpatia esbarra sempre em sua principal limitação, sua natureza imaginária: [Citação 10] Mas depois de tudo isso as emoções do espectador muito provavelmente ainda não alcançarão toda a violência do que o sofredor sente. Embora naturalmente simpáticos*, os homens* nunca concebem o que sobreveio a alguém com aquele grau de paixão que naturalmente anima a pessoa atingida. Essa mudança imaginária de situação, sobre a qual se baseia sua simpatia, é apenas momentânea. O pensamento de sua própria segurança, o pensamento de que é eles próprios não são os verdadeiros sofredores, constantemente se intromete* [intrudes itself upon]; e embora não os impeça de conceber uma paixão em alguma medida* [somewhat] análoga à que experimenta o sofredor, impede-o de concebê-la com o mesmo grau de violência.* (TMS I.i.4.7, pp.21-2; TSM, p.22) 59 Essa diferença de intensidade impede a identificação dos afetos original e simpático e os mantém numa relação analógica. Ela é sentida por ambos os envolvidos no julgamento moral e acaba por movê-los em direção ao mesmo objetivo, qual seja, o acordo de uma “simpatia* mais completa”, alcançada pela “concordância total dos afetos”, marcada pelo encontro de um tom e ritmo comuns às duas emoções. Para tanto o agente da situação deve “rebaixar sua paixão até aquele limite em que os espectadores são capazes de acompanhar [going along with him]”. Por seu turno, o espectador busca o sentido inverso, isto é, intensificar seu sentimento simpático em direção a essa almejada harmonização. Contudo, o que os espectadores sentem “sempre será, de fato, em alguns aspectos, diferente” do que sente o agente: [Citação 10] [a] compaixão jamais será exatamente idêntica à dor original, uma vez que a consciência secreta de que a mudança de situações, da qual se origina o sentimento simpático*, é apenas imaginária, não apenas a reduz em grau, mas, em certa medida, altera seu gênero [varies it in kind], dando-lhe uma modificação bastante diferente. (ibidem, p.22; TSM, p.22) O que parecia ser mera diferença de intensidade se desdobra em uma diferença de gênero ou de tipo. Isso, porém, não impede que a modulação dos sentimentos original e simpático atinjam “uma tal correspondência mútua que é suficiente para a harmonia da sociedade.* Embora nunca sejam uníssonos, podem ser concordes, e isso é tudo o que se exige ou de que se carece” (ibidem). Além de não precisar ser perfeito, tal acordo é facilitado pela constante troca de posição entre agente e espectador(es), de tal modo que o primeiro possa se imaginar na posição de espectador de si mesmo e assim conceber uma paixão imaginária e simpática de sua própria situação. [Citação 11] E como a paixão refletida [reflect passion] que ele assim concebe é muito mais débil [weaker] que a original, necessariamente reduz a violência do que sentia antes de estar em presença dos espectadores, antes de começar a lembrar de que maneira seriam afetados, e antes de considerar sua própria sob essa luz franca e imparcial. (TMS I.i.4.8, p.22; TSM, p.23). Essa primeira limitação da simpatia, a variação de tipo entre a emoção original e a emoção simpática, traz duas consequências: uma duplicação da reação emocional primária por uma paixão refletida, formada a partir da internalização de um ponto de vista externo, e a necessidade de se buscar uma espécie de atuação, como se para viver em sociedade fosse preciso ser, em alguma medida, ator. A segunda dificuldade a ser superada se encontra na natureza da emoção a ser replicada pelo observador: 60 [Citação 12] Ademais, seja do espírito ou do corpo, a dor é uma sensação mais pungente do que o prazer, e nossa simpatia* com a dor, embora seja inferior ao que naturalmente o sofredor sente, é em geral uma percepção mais viva e distinta do que a nossa simpatia pelo prazer, embora [...] essa última se aproxime mais da vivacidade natural da paixão original. (TMS I.iii.1.3, p.44; TSM, p.52) Retoma-se aqui o problema da intensidade da sensação, qualificando-o. Se é verdade que toda sensação compartilhada pelo espectador não apenas é de outra natureza (imaginária), mas ela é também sempre mais fraca que a original, esse problema é mais agudo no caso em que a sensação original é dolorosa. A maior pungência da dor faz dela uma percepção mais forte e viva no peito do agente, dificultando ainda mais o já intricado trabalho da imaginação simpática. Contudo, devido ao compartilhamento da sensação dolorosa, ainda que em menor grau, o espectador também sente a pungência desagradável. Sabendo disso todo espectador passará a tentar evitar simpatizar com agentes envolvidos em situações dolorosas: Acima de tudo, frequentemente lutamos para inibir nossa simpatia pelo sofrimento alheio. Sempre que não estamos sob o olhar do sofredor, tentamos para nosso próprio bem suprimi-la o máis possível, e nem sempre somo bem sucedidos. A oposição que fazemos a essa simpatia, e a relutância com que nos rendemos a ela, necessariamente nos obrigam a pretar-lhe uma atenção mais particular. (TMS I.iii.1.4, p.44; TSM, p.52) Eis a causa daquela ambiguidade própria ao termo simpatia, que faz com que tendamos a restringi-lo ao compartilhamento de sensações dolorosas e de sofrimento: a maior pungência da sensação dolorosa que o espectador compartilha faz com ele volte sua atenção a ela. Isso não ocorre nos casos de compartilhamento de sensações prazerosas, onde “nunca temos a oportunidade de exercer essa oposição sobre a simpatia [we never have occasion to make this opposition to our sympathy with joy]” (TMS I.iii.1.4, p.44). A distinção entre sensações prazerosas e dolorosas perfaz assim o primeiro nível da questão da qualidade das emoções, mas não a esgota. 5. A percepção do fellow-feeling O tratamento smithiano da assimetria entre sensações prazerosas e dolorosas e de seus efeitos no funcionamento da simpatia não passaram despercebidos aos olhos atentos de David Hume. Numa carta, datada de 27 de julho de 1759, enviada a Smith por ocasião da segunda edição da Teoria dos sentimentos morais ele insiste nessa questão. 61 [Citação 13] Gostaria que você tivesse provado mais particulamente na totalidade [fully] que todos os tipos de simpatia são necessariamente agradáveis. Esse é o eixo [hinge] de seu sistema, e você apenas menciona o tópico superficialmente [TMS I.i.2.6]. Agora, parece que existe uma simpatia desagradável tanto quanto uma agradável, e, de fato, como a paixão simpática é uma imagem refletida [reflex image] da principal, ela deve compartilhar de suas qualidades, e ser dolorosa onde aquela o é. [...] Explicar o prazer que recemos das lágrimas, sofrimentos e simpatia de tragédias sempre foi considerado um problema difícil; o que não seria o caso, se a simpatia fosse sempre agradável. Um hospital seria um local mais agradável que um baile. (Letter 36, p.43) O cerne da crítica de Hume consiste em insistir que o fellow-feeling é “imagem refletida” da emoção original, preservando, portanto, a mesma natureza prazerosa ou dolorosa. A resposta de Smith veio numa nota de rodapé na segunda edição: [Citação 14] Objetam-me que, na medida em que fundamento sobre a simpatia o sentimento de aprovação [sentiment of approbation], o qual é sempre agradável, admitir qualquer simpatia desagradável seria inconsistente com o meu sistema. A isso, respondo que há dois aspectos a considerar no sentimento de aprovação: primeiro, a paixão simpática do espectador; segundo, a emoção suscitada no espectador, ao observar a perfeita coincidência* [coincidence] entre sua paixão simpática e a paixão original da pessoa principalmente afetada. Essa última emoção, em que consiste propriamente o sentimento de aprovação, é sempre agradável e deliciosa. A outra tanto pode ser agradável, quanto desagradável, de acordo com a natureza da paixão original, cujos traços deve sempre em alguma medida reter. (TMS I.iii.1.9.note, p.46; TSM, p.54, nota 1) Em sua resposta, Smith propõe um esquema em dois momentos: o primeiro é a emoção simpática no espectador que surge a partir de sua capacidade de se imaginar na situação do agente, precisamente a emoção compartilhada (ou paixão simpática, o fellowfeeling em seu primeiro nível) entre agente e espectador que será da mesma natureza (a raiva ou alegria do agente que é compartilhada pela raiva ou alegria do espectador). Num segundo momento, a emoção original do agente será julgada a partir dessa emoção simpática do espectador; se elas concordarem o espectador aprovará a emoção do agente, se não ele a desaprovará. A aprovação gera outra emoção, de segundo nível, isto é, uma segunda sensação agradável que caracteriza a aprovação. A desaprovação, ao contrário, gera uma sensação desagradável a partir do desacordo entre emoções primária e simpática. Essa é a descrição básica do funcionamento do senso de conveniência (propriety), resultando em uma emoção própria ao espectador que pode ser compartilhada pelo agente, transformando-se em uma segunda sensação compartilhada, em um segundo fellow-feeling (especialmente quando ela é prazerosa porque resultado do acordo sentimental). Mesmo aqui, nesse primeiro momento (ou nessa exposição de seu 62 funcionamento mais simples e fundamental), a afinidade já começa a se destacar da emoção primária, a ser abstraída (sua completa abstração e isolamento numa sensação de pertencimento a determinado grupo, comunidade e, no limite, da humanidade como um todo depende da repetição desse processo em inúmeras situações e com diferentes emoções, em diferentes graus de intensidade). Em outros termos, simpatizar com a aprovação do espectador (isto é, simpatizar com sua simpatia) significa adquirir, em um nível emocional, um tipo de conhecimento ou de consciência de que o que senti estava correto ou de que agi de modo apropriado, e essa sensação só pode ser prazerosa. Na primeira aula insisti que na História da astronomia encontrava-se formulado em termo gerais aquele que talvez seja o princípio mais fundamental da filosofia de Smith: a percepção da semelhança gera prazer [Citação 5 – aula 1]. É precisamente isso o que encontramos aqui. Na segunda aula, por sua vez, apontei que o funcionamento dos sentidos externos servia como modelo de compreensão das operações mais complexas dos sentidos internos. Como vimos, a lição que Smith tira da teoria da visão de Berkeley é que, mesmo nas operações mais básicas dos sentidos externos, já há comparação (entre os dados da visão e do tato) e conjectura (a noção de substância). Um esquema muito parecido atua aqui, a propósito do senso de conveniência: há uma conjectura simpática (espectador no lugar do agente) e comparação (entre essa reação imaginária e a reação original do agente). O que falta ao campo da sensibilidade externa é o sentimento de aprovação, a agradável constatação da concordância (ou desagradável constatação da discordância), uma emoção de segunda ordem, o verdadeiro substrato da vida moral, uma vez que será objeto de um segundo movimento simpático, do espectador para o agente. É isso que permite a Smith explicar nossa busca por companhia tanto em caso de alegria quanto de tristeza: [Citação 15] A simpatia que meus amigos expressam pela minha alegria pode de fato proporcionarme prazer, reanimando [enlivening] essa alegria; mas a que expressam com relação à minha dor não pode me causar nenhum, se serviu apenas para reavivar [enliven] essa dor. Porém, a simpatia reaviva a alegria e alivia a dor. Reavivar a alegrai apresentando outra fonte de satisfação; e alivia a dor insinuando, no coração, quase a única sensação agradável que nesse momento é capaz de receber. (TMS I.i.2.2, p.14; TSM, p.13) O compartilhamento de minha alegria pelos meus amigos é motivo de reafirmação e reanimação de minhas emoções alegres, o que por si só gera prazer. Dobrando essa emoção reanimada obtenho prazer também da observação da concordância dessa minha 63 emoção com a emoção compartilhada por meus amigos. No caso de um sentimento triste ou doloroso, o compartilhamento da aprovação da concordância (isto é, o segundo nível de afinidade) entre minha emoção original e aquela de meus amigos é “a única sensação agradável” capaz de me proporcionar algum prazer e diminuir minha aflição, uma vez que ao notar esse compartilhamento o sentimento triste e doloroso também voltou a meu peito causando, evidentemente, dor e tristeza: [Citação 15] Como ficam aliviados os desfortunados* quando encontram uma pessoa com quem podem comunicar a causa de sua dor! Com essa simpatia parecem se livrar de parte de su aflição; e não sem razão se diz que essa pessoa partilha dela [to share it with them]. Não apenas sente uma dor da mesma espécie que ele sente, mas é como se houvesse transposto parte dela para si própria; o que ela experimenta parece aliviar o peso do que eles sentem. Não obstante, ao relatarem [by relating] seus infortúnios, renovam em alguma medida sua dor. Desperta na memória a lembrança das circunstâncias que provocam sua aflição. De modo que as lágrimas correm mais rápidas que antes, e com facilidade, se abandonam aos excessos do sofrimento. Mas em tudo isso têm algum gosto [they take pleasure], e é evidente que ficam sensivelmente aliviados; porque a doçura da simpatia dessa pessoa mais do que compensa a margura dessa dor que, a fim de provocar essa simpatia, tiveram de reavivar e renovar. (TMS I.i.2.4, p.15; TSM, p.13) Devido à natureza mais pungente da dor em relação ao prazer, “não desejamos tanto [we are not half so anxious] que nossos amigos aceitem nossas amizades mas que partilhem de nossos ressentimentos”. Por ser a única fonte possível de alívio, a simpatia é exigida com mais força nesses casos de pesar, ou, inversamente, porque a alegria é prazerosa em si mesma não necessitamos de qualquer tipo de compensação ao senti-la e toda simpatia com ela será suplementar, um excedente. Daí porque nossos amigos “podem facilmente evitar de ser amigos de nossos amigos, mas dificilmente podem evitar de ser inimigos daqueles de quem estamos afastados [at variance]” (TMS I.i.2.5, p.15; TSM, p.14). 6. Simpatia e linguagem Em sua resposta à objeção de Hume, Smith insiste que a simpatia funciona em dois momentos: um primeiro de projeção (ou conjectura) imaginária na situação de outrem e apreensão da reação emocional que esse espectador imaginaria sentir ali e um segundo de comparação dessa emoção simpática com a emoção original do agente. Esse esquema traz um problema que a teoria de Smith terá de resolver: como é possível 64 apreender a emoção original? Dito de outra forma, como o espectador tem acesso à emoção original para que ela possa ser comparada à sua reação imaginária? Não teríamos aí uma inconsistência lógica no cerne da Teoria? O problema de abertura gira em torno das dificuldades envolvidas no processo de simpatizar com o agente e a solução proposta por Smith consiste em recorrer à capacidade projetiva da imaginação. Mas em sua resposta a Hume ele propõe um esquema em que esse problema é ignorado, sugerindo que a emoção obtida através da projeção imaginária seja comparada à emoção original, como se o acesso a essa última pudesse ocorrer de outra forma. A solução mais explícita consiste na constante troca de posições (o sujeito é ora agente, ora espectador), fundamental para o autojulgamento. Enquanto agente, o sujeito tem acesso a sua resposta emocional primária, isto é, a seus afetos originais. De fato, é apenas o agente que está em posição de solucionar de forma definitiva o problema do julgamento de conveniência (a respeito do motivo da ação), uma vez que ele é o único que tem acesso à emoção original. O autojulgamento (e a teoria da consciência construída sobre ele) é o ápice da filosofia moral smithiana porque o agente é único a ter acesso a todos esses dados, além de ser o maior interessado nos motivos e nas consequências de seus atos (o que ele nem sempre detém é o tempo necessário a operar os juízos necessários, assim como lhe podem faltar sensibilidade e capacidade cognitiva para tanto, além de um critério não parcial). Mas o filósofo exige mais de sua teoria. Como vimos acima, a troca constante de posições está na base da modulação dos sentimentos que permite o funcionamento da sociedade; o que implica que sua teoria da simpatia deve funcionar também intersubjetivamente, e não apenas subjetivamente (como fundamento de sua teoria da consciência). A solução intersubjetiva é composta por dois momentos complementares: a transformação da emoção original numa emoção imaginária e sua comunicação verbal (TMS I.i.2.4, p.15). O paradigma do funcionamento da simpatia para Smith é o agente que relata seu caso a um ouvinte interessado (concerned – uma espécie de duplo do “expectador atento”) que, por sua vez, imagina-se agente do relato. A simpatia smithiana exige a narração para que possa operar por completo: ao rememorar e narrar sua experiência, o agente a revive mas agora de forma imaginária. Ao ser revivida internamente, a experiência emocional primária adquire uma natureza imaginária que permite o seu compartilhamento. Em certo sentido, o agente torna ficcional sua reação emocional original, permitindo assim sua comunicação, solucionando o problema das diferenças de tipo e de intensidade entre a emoção original e a emoção simpática ao 65 transformar a reação original em imaginária. Essa “paixão refletida [reflected passion]” (TMS I.i.4.8, p.22) resolve o problema da simpatia: qualitativamente, a experiência relatada é da mesma natureza da experiência simpática; quantitativamente, a intensidade da reação emocional obtida através da memória é menos intensa que a reação original, facilitando o trabalho do espectador simpático – mesmo que certos signos externos dessa emoção reanimada e revivida sejam mais intensos que os originais (no momento em que vive a situação o agente não tem como saber se encontrará um espectador disposto a simpatizar, o que ocorre durante o relato, daí a maior intensidade da expressão afetiva). O segundo momento é a comunicação oral, via língua ordinária: [Citação 16] Até mesmo nossa simpatia pela dor ou alegria de outrem, antes de sermos informados das causas de uma ou outras é sempre muito imperfeita. Lamentações genéricas, que nada expressam senão a angústia do sofredor, criam mais curiosidade de investigar sua situação, junto com alguma disposição de simpatizar com ele, do que uma verdadeira simpatia bastante perceptível. A primeira pergunta que fazemos é: O que lhe aconteceu? Até que obtenhamos a resposta, nossa solidariedade [fellow-feeling] não será de muita monta, a despeito da inquietação que sentimos pela vaga ideia de seu infortúnio e, sobretudo por nos torturarmos com conjecturas sobre o que poderia ser. (TMS I.i.1.9, pp.11-2; TSM, p.9) A grande dificuldade dessa capacidade sugestiva das palavras consiste em sua natureza geral, ao passo que cada sentimento real é particular, dependente de uma série de variáveis próprias a seu contexto preciso: [Citação 17] Apenas quando se dão exemplos particulares podemos perceber com distinção o acordo e o desacordo entre nossos próprios afetos e os do agente, ou ainda sentir, num caso, que surge uma gratidão social por ele, ou de ressentimento simpatico, no outro. Quando consideramos virtude e vício de maneira abstrata e geral, parece que as qualidades que provocam esses diversos sentimentos em boa parte desaparecem, e os sentimentos mesmos tornam-se menos óbvios e discerníveis. (TMS IV.2.2, pp.187-8; TSM, p.230) É isso que o relato fornece: um contexto específico que permite ao espectador/ouvinte particularizar as emoções recebidas, determinando seu sentido específico. Em todo o caso, a questão-chave aqui consiste em determinar de que modo as emoções podem ser transmitidas através da linguagem comum, na qual os nomes são espécies [ver Introdução]. Na Teoria, Smith insiste que eles designam a “ideia geral” ou os “traços gerais” dos sentimentos e que “Para distinguir tais traços não é necessária uma observação penetrante [nice observation]; é necessária, ao contrário, uma observação muito delicada para descobrir suas variações”. (TMS VII.iii.3.13, p.324; TSM, p.403). 66 Os traços gerais são facilmente apreendidos e corretamente designados por seus nomes, de modo que toda a dificuldade está na apreensão e transmissão dessas variações, para as quais “a linguagem carece de nomes”. Para comunicá-las será preciso, então, uma descrição ao mesmo tempo delicada e acurada – é necessária uma “pena [pencil] a um tempo precisa e delicada” (TMS VII.iv.4, p.328) –, capaz de sugerir inclusive o invisível: [Citação 17] A linguagem é incapaz de expressar, por assim dizer, os traços invisíveis de todas as diferentes modificações da paixão tal como se mostram internamente. Não há outro modo de designá-las e distingui-las uma das outras, senão descrevendo os efeitos que produzem, as alterações que ocasionam no semblante, no aspecto e comportamente exterior, as resoluções que sugerem, os atos que nos incitam. (TMS VII.iv.5, pp.328-9; TSM, p.411) Em seu curso de retórica, Smith denomina essa estratégia de método indireto de descrição (LRBL, p.68 e ss.; p.75 e ss.), utilizado sobretudo pelos moralistas antigos em seus tratados de ética (TMS VII.iv.3 e 8, pp.328-9). O sucesso dessa empreitada variará de acordo com o estado de espírito dos envolvidos (o ideal é que ambos, narrador e ouvinte estejam tranquilos) e com o tipo de paixão a ser transmitida, numa análise que é potencialmente infinita (LRBL, p.69). O quadro geral da comunicação emocional, contudo, pode ser traçado a partir da interação entre situação (causa externa fortuita), reação emocional (efeitos internos), semblante e ação do agente (efeitos externos imediatos) e julgamentos de terceiros (efeitos externos mediados) – interação de mão dupla (que vai tanto do externo ao interno quanto em sentido contrário) e que se desdobra de modo auto referencial e recursivo (as interações subsequentes são determinadas pelas interações anteriores). É a partir dessas idas e vindas entre interno e externo que a escrita propriamente moral de Smith se erige. Há situações, entretanto, em que a comunicação emocional pode ocorrer através da linguagem, mesmo sem a intenção consciente dos envolvidos: [Citação 18] Uma palavra descuidada de um amigo ocasionará um desconforto mais duradouro [do que uma dor corpórea]. A agonia que isso cria não termina com a palavra. O que inicialmente nos perturba não é o objeto dos sentidos [senses], mas a ideia da imaginação. Por ser uma ideia, portanto, o que ocasiona nosso desconforto, até que o tempo e outros acidentes* em alguma medida a apaguem de nossa memória, esse pensamento continua a corroer e ferir por dentro a imaginação. (TMS I.ii.1.8, p.29; TSM, p.32) Em casos como esse, a palavra age como uma faísca que gera um incêndio de proporções avassaladoras devido à atividade incontrolada da imaginação do ouvinte. Fica 67 claro aqui o duplo papel da linguagem no funcionamento da simpatia, tanto onde ela funciona (a capacidade sugestiva das palavras: a ideia geral da emoção/paixão é transmitida), quanto aonde não funciona (o contexto que particulariza essa ideia geral não é comunicado, deixando espaço aberto para a imaginação preenchê-lo a seu modo). O perigo é particularmente relevante quando a imaginação receptora é ociosa. 68 Bibliografia adicional Berkeley, G. (2010). Tratados sobre a visão. (Marques, J.O.A., ed. e trad.). Campinas: Editora da Unicamp. Condillac, E. (1993). Tratado das sensações. Campinas: Unicamp. Condillac, E. (2018). Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos (org. P.Pimenta). São Paulo: Unesp. Diderot, D. & D’Alembert, J. (1751-65). Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (Robert Morrissey, ed.). University of Chicago: ARTFL Encyclopédie Project. 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