Longe demais das capitais: entrevista com Douglas Ceccagno
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23/06/2020 10:04
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Longe demais das capitais: entrevista
com Douglas Ceccagno
{ } Entrevista concedida a André Tessaro Pelinser, Vitor Cei e Letícia Malloy
em abril de 2020.
Douglas Ceccagno nasceu em 1979, em Farroupilha (RS), e cresceu em Bento
Gonçalves (RS), onde reside atualmente. Professor e escritor, Ceccagno realizou
graduação e mestrado na área de Letras na Universidade de Caxias do Sul (RS) e
obteve doutorado em Teoria da Literatura pela PUC-RS, com estágio de pesquisa na
Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. Publicou seus primeiros poemas em 1996,
inicialmente em jornais. No ano de 2006, participou no Grupo Neblina, formado pelos
também poetas João Claudio Arendt, Clóvis Da Rolt e Marli Tasca, do qual resultou a
antologia poética intitulada Calendário. Em 2015, foi publicado seu primeiro volume
individual de poesia, Rábula, pela editora wwlivros. Três anos depois, Ceccagno
estreia na narrativa, com os contos de Ópera subterrânea, editado pela Metamorfose,
em 2018. No ano seguinte, Ceccagno foi o escritor homenageado da 34ª Feira do Livro
de Bento Gonçalves.
Na entrevista que segue, concedida por e-mail em abril de 2020 aos professores André
Tessaro Pelinser (UFRN), Vitor Cei (UFES) e Letícia Malloy (Unifal-MG), Ceccagno lança
um olhar sobre sua carreira e seu processo criativo, refletindo sobre as motivações
iniciais despertadas pelo contato com a música. Congregando as qualidades de
professor, escritor e crítico, o autor discorre, ainda, sobre essas diferentes dimensões
na composição de sua obra e sobre as relações entre literatura e ensino na área de
Letras no contexto brasileiro. Tendo em vista suas pesquisas e sua formação na área
teatral, Ceccagno aborda também o papel da dramaturgia na universidade.
Esta entrevista é resultado do projeto “Notícia da atual literatura brasileira:
entrevistas”, coordenado por Cei, com a colaboração de Pelinser e Malloy. Nas
reflexões expostas por Ceccagno encontra-se a motivação do projeto, que se apresenta
como um esforço de mapear a produção literária brasileira do final do século XX e
início do século XXI a partir da perspectiva dos próprios escritores. A partir da
realização e publicação de uma série de entrevistas com autores de todas as regiões
do país, o projeto pretende constituir-se em atividade voltada para a formação de
leitores de literatura brasileira contemporânea, além de oferecer um material de
Vamos conversar por chat!
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pesquisa para os futuros críticos e historiadores da literatura brasileira das últimas
décadas.
Seu percurso literário se iniciou
em 1996, quando você começou a
publicar poemas em jornais. Em
seguida, participou do Grupo
Neblina, do qual resultou o volume
coletivo intitulado Calendário –
antologia poética do Grupo Neblina
(edição dos autores, 2006).
Recentemente, você retornou à
poesia, com a publicação de Rábula
(wwlivros, 2015), e estreou no
conto, com Ópera subterrânea
(Metamorfose, 2018). Houve um
momento inaugural ou o caminho
se fez gradualmente? Em que
Douglas Ceccagno
momento da vida você se percebeu
um escritor?
Foi tudo muito aos poucos. Eu sempre fui leitor, mas inicialmente era mais
interessado em música: queria ter uma banda de rock – tive várias –, mas para isso
queria também escrever boas letras. Os letristas de quem eu gostava eram leitores e
deixavam suas referências explícitas nas canções. Sou da geração que cresceu
ouvindo rock brasileiro e que via MPB na televisão. Então, eu quis ler o que esses
artistas liam e desenvolvi uma fascinação pela palavra escrita. Comecei, portanto,
escrevendo letras de música, logo poemas, e os contos apareceram um pouco mais
tarde, mas ainda na adolescência. Como eu não sabia – e ainda não sei – o que era
preciso fazer para ser escritor – quantos textos, quantos livros –, eu só fui escrevendo,
esperando um dia, claro, ser reconhecido. Acho que comecei a me considerar escritor
mesmo quando passei a receber e-mails me convidando a participar de atividades
como escritor, não só como professor.
Na Apresentação de Rábula , Atilio
Bergamini destaca como
característica de sua obra “uma
soturna melancolia irônica – e,
como toda melancolia, autoirônica
–, que resgata, do esfarelamento da
linguagem e da vida, elementos
para ainda contar, ainda cantar,
ainda viver.” Você poderia nos
falar um pouco sobre as opções
formais e temáticas que norteiam
seu projeto literário?
Não posso dizer que eu tenha um
projeto literário além do intuito de
continuar escrevendo. Tenho alguns livros publicados, mais alguns inéditos, e vejo
inúmeras diferenças entre eles. Concordo com a “melancolia irônica” no caso do
Rábula, mas não me comprometo a manter, nos próximos livros, qualquer
característica dos trabalhos que já fiz.
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Cada autor possui um método e estilo de trabalho próprios. Você é professor
universitário, escritor, crítico e já trabalhou com teatro. No ato da escrita, há
algum diálogo entre essas diferentes funções e formações?
Sim, deve haver. Não há como separar tudo em caixas com cores diferentes, mas eu
considero isso uma coisa positiva. Sempre achei que o estudo acadêmico da literatura
poderia contribuir com a minha escrita, e contribui mesmo, não tanto na hora de
escrever, mas na hora de revisar, limpar o texto dos excessos, trocar as palavras que
não ficaram bem. A leitura atenta e o conhecimento teórico dão opções ao escritor na
hora de modificar o texto. Além disso, a carreira universitária me permite
permanecer em contato com as minhas leituras durante muito tempo, e me obriga a
aprofundar o nível de compreensão dos textos, se eu tiver que levá-los para a sala de
aula ou para a pesquisa. Essa prática de anotar os textos, de atentar para as escolhas
dos outros escritores também abre possibilidades para a escrita, sem dúvida.
Em sua trajetória como pesquisador, você se debruçou sobre o teatro de
Qorpo-Santo no mestrado e de Nelson Rodrigues no doutorado.
Recentemente, você estudou aspectos práticos e teóricos do teatro com o
grupo Tem Gente Teatrando. Como essas duas dimensões convergem no seu
percurso? Você tem planos de atuar ou escrever para teatro?
O teatro passou de um gosto esporádico para um arrebatamento. Começou no
mestrado, na verdade, quando minha opção de pesquisa foram as comédias de QorpoSanto. Não escolhi pelo gênero, mas porque esse era um escritor que me interessava.
E, mesmo assim, era um mestrado em Letras, portanto minha abordagem recaía sobre
o texto, não sobre a montagem. Ao mesmo tempo, comecei a fazer umas oficinas de
teatro aqui e ali, mas o intuito era só conhecer melhor a linguagem. No doutorado, eu
achei que continuar pesquisando textos dramáticos seria uma forma de marcar o meu
lugar como pesquisador e mergulhei de cabeça no gênero, porque os textos todos me
interessavam. Pesquisei Nelson Rodrigues, mas também pesquisei vários autores
modernos franceses e li muito do teatro do absurdo. Essa estética eu vejo que deixou
marcas no Ópera subterrânea, meu livro de contos; não nos diálogos, mas nas
situações. Há alguns anos, retomei os estudos de teatro no espaço cultural Tem Gente
Teatrando. Fui só para participar de uma peça e acabei fazendo um curso
profissionalizante. Hoje eu tenho carteira profissional de ator. Mas não me vejo como
um escritor de teatro, embora tenha escrito uma comédia curta e o monólogo de final
do curso. Agora, também não sei o que vou inventar daqui a um ano ou dois. Como
pesquisador, continuo sendo da área da literatura: meu estudo acadêmico do teatro é
um estudo literário. Eu não pesquiso a montagem das peças, mas o texto, como
literatura.
Ainda no que se refere à dramaturgia e à docência, como você vê, na
qualidade de professor e pesquisador, o trabalho com teatro nas
universidades e nos cursos de Letras no Brasil? A dramaturgia tem espaço na
academia e no ensino no país?
Não posso falar muito do teatro nas universidades porque não conheço bem a
realidade dos cursos específicos. Conheço professores que trabalham nessa interface
entre teatro e literatura e que levam o texto dramático para a sala de aula. No caso
dos cursos de Letras, a gente sabe que depende muito de o professor fazer a escolha
dos textos com os quais vai trabalhar, aí a narrativa tem um lugar predominante. Às
vezes, até vemos nos programas das disciplinas que o teatro vai ter que se consolar
com uma aula em um semestre inteiro, porque tem muito romance para ser
trabalhado, além do conto e um pouco de poesia; aí precisa adaptar. É muito bom
trabalhar com texto dramático em sala de aula, começando pela leitura, porque ele
pressupõe a interação dos alunos desde o começo. E, aliás, um gênero que nos rendeu
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as tragédias gregas, Shakespeare, Molière, Beckett ou Nelson Rodrigues não pode ser
desprezado pelas aulas de literatura.
O Brasil tem como um dos grandes desafios a democratização do acesso à
literatura e a outras artes e, por consequência, a tarefa educativa de formar
público. Como professor universitário que leciona não apenas em cursos de
Letras, como você avalia o papel das universidades na tarefa educativa de
formar leitores? O que você vê a partir de sua experiência em sala de aula?
Qual é o papel da literatura nesse trabalho?
Na minha experiência, e não vou generalizar, percebo que os estudantes de Letras
costumam ter mais experiência de leitura que os outros. E isso se justifica, se
considerarmos o curso universitário que eles escolheram. Mas, em geral, o cenário é
catastrófico. Tem alunos de ensino superior que não lembram de ter lido um livro na
vida. Não digo literatura, digo qualquer livro. Existe a responsabilidade do indivíduo
por isso? Existe. Mas também é preciso ver que ele faz parte de uma sociedade que
relega a literatura a um papel insignificante. Agora, como coletividade, também já
entramos na era de achar que tudo se pode aprender com vídeos explicativos, o que
acaba acarretando grandes prejuízos aos estudantes no que tange ao uso da
linguagem, à compreensão leitora, à administração das emoções, à sensibilidade
estética e à constituição de um repertório cultural significativo. Tudo isso se
desenvolve com a leitura, e principalmente com a leitura literária. Fomentar a leitura
é um dever de todas as instituições de ensino, desde a educação básica até a
universidade.
Você nasceu e reside na Serra Gaúcha (RS), um espaço distante de centros
culturais e acadêmicos hegemônicos brasileiros. Você percebe alguma
influência das dinâmicas culturais próprias às relações entre centro e
periferia no reconhecimento crítico da sua obra? Ou, ampliando a questão,
no reconhecimento de escritores nessa mesma posição? Nesse contexto, quais
os principais desafios para a edição de novos escritores no Brasil de hoje?
Há alguma vantagem e muitas desvantagens em residir longe das capitais. A
vantagem é que é possível, depois de muita teimosia, consolidar o seu trabalho numa
esfera regional, até porque você compete com menos nomes na memória das pessoas.
Então, depois de tanto tempo estudando literatura, dando aula, pesquisando e
escrevendo livros, as pessoas começam a olhar você com alguma seriedade. Porém, é
inevitável a percepção de que o coleguismo nas regiões mais metropolitanas ainda
exerce muita influência na inserção do escritor em um sistema literário mais amplo.
Por isso, apesar da profusão de novas editoras, creio que a entrada no mercado
editorial para quem está escrevendo de um lugar periférico ainda é bastante difícil.
Na verdade, essas relações são mais complexas do que isso, porque às vezes o
mercado elege uma determinada periferia para ser mostrada, enquanto as outras são
escondidas. Essa também é uma discussão importante.
Diante do panorama da literatura brasileira atual, o que você vê? Que
autores você tem lido? Gostaríamos que você nos falasse um pouco sobre
suas principais inquietações e estímulos em face da produção literária
brasileira contemporânea.
Eu gosto de descobrir coisas novas, mas elas podem ser novas para mim, mesmo que
não tenham sido publicadas recentemente. Como eu ministro várias disciplinas de
literaturas em inglês, tenho me voltado aos clássicos e aos contemporâneos
anglófonos. De qualquer modo, tento ficar por dentro dos lançamentos literários
brasileiros, e para isso me nutro de publicações especializadas. Aí vejo o que anda
acontecendo, busco alguns livros e às vezes tenho boas surpresas. Mas confesso que
não leio tanto de literatura brasileira contemporânea quanto gostaria. Para mim, o
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que faz boa literatura é, basicamente, o uso criativo da linguagem e a abordagem
inteligente do tema. Acredito que o livro precisa trazer inquietações, mesmo que o
tema pareça banal. Também considero importante o diálogo com uma tradição
literária, quando o autor sabe quem são seus precursores; e ele não precisa declarar
explicitamente: a gente percebe. Não gosto de ler livros em que o autor acha que está
inventando o que todo mundo já fez. Mas isso vale para todos, não só para os
contemporâneos. A verdade é que não compartilho dessa obsessão pela novidade que
existe por aí. Para mim, tudo que eu leio é contemporâneo.
Muitos escritores e intelectuais têm mantido atividade constante nas redes
sociais, sobretudo para expressar engajamento político. Você mantém
atuação discreta no Facebook, utilizando-o majoritariamente para a
divulgação do seu trabalho. Por quê? E como vê essa face do intelectual
contemporâneo?
Há sempre um desconforto em trabalhar nas redes sociais, porque, na verdade, é isso
mesmo: você está lá trabalhando para o dono do Facebook ou de qualquer outra rede.
Como meus livros são publicações independentes, eu tenho que divulgar, aí acabei
abrindo uma página para fazer isso, mas também para postar curiosidades do mundo
literário. Basicamente, é uma reunião de conteúdo sobre literatura vindo de diversas
fontes, então quem curte a minha página recebe atualizações de vários sites
diferentes e também fica sabendo dos meus projetos. Eu sei que já existe muita gente
usando essas redes de modo criativo, formatando seus escritos para caberem em um
tweet ou uma imagem de Instagram. Na verdade, os escritores sempre se adaptaram
aos meios disponíveis; não é algo a se condenar; exceto a banalização do conteúdo,
mas isso é algo que pode acontecer em qualquer plataforma, nova ou velha. Talvez eu
publique nas redes também um dia, mas quando penso nisso sempre lembro que
estou sem tempo.
A política não é o motivo condutor de sua obra, porém certa visão desiludida
do mundo comparece em alguns de seus textos, como no poema “Zen”, do
Calendário : “quando cai da corda bamba / o futuro se estilhaça – / só não fere
a imensa graça / de não se ter esperança”. Ou no sujeito poético de Rábula ,
que questiona: “bater em alguém é fácil / já tentou ioga no espelho?” Como
você vê a relação entre literatura e posicionamento político, ou, em sentido
mais amplo, entre literatura e política? Escrever é um ato de resistência?
Pode ser um ato de resistência, como pode ser um ato de violência, ou de reafirmação
de valores ultrapassados. Os textos têm a intenção que nós, autores e leitores,
atribuímos a eles. O fato de se relacionar a escrita, e as artes, de um modo geral, a um
lugar de enfrentamento ou de resistência tem a ver com a marginalização que elas
vêm sofrendo num momento em que o governo federal e uma parte considerável da
população as desprezam, mas não podemos esquecer que a literatura também pode
ser uma forma de divulgar os valores dominantes. E isso não tem relação com a
qualidade do texto. Quanto à minha escrita, eu considero impossível dissociá-la das
questões políticas, às vezes até a despeito do autor. Quando eu vejo, as questões
políticas estão lá. Porém, é importante não querer plantar soluções definitivas, não
fazer proselitismo, não ser panfletário. A literatura tem que se limitar a colocar a
pulga atrás da orelha do leitor, não matar a pulga para ele; porque às vezes ele nem
percebeu a pulga ainda, ou nem se incomoda com ela. Mas a gente continua criando
pulga. Neste momento, o texto literário pode ser uma forma importante de
resistência, sim; principalmente ao dar sentido à nossa vivência coletiva e ao apontar
outras formas possíveis de viver nesse mundo.
Nos últimos anos, o Brasil e o mundo têm presenciado o fortalecimento de
ondas reacionárias que trazem matizes autoritários, opressores, fascistas,
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racistas, misóginos e homofóbicos. Sua obra mostra que o escritor não pode
se calar diante de tal contexto. O que você imagina ou espera como desfecho
do atual estágio da humanidade?
Essas ondas reacionárias aparecem de vez em quando, mas, nesse caso, vão acabar
consumidas pela exposição contínua dos próprios absurdos. As pessoas vão se cansar
de ter suas liberdades e seus direitos usurpados só porque não aguentam ver os
outros tendo as mesmas liberdades e direitos. Agora, eu acredito ainda que essas
coisas são cíclicas. Não acho que os problemas políticos vão se resolver de uma vez
por todas em algum momento, porque sempre vai haver gente querendo incomodar
os outros ou levar vantagem; gente que acha que precisa ter direitos que os outros
não têm e que vai continuar defendendo seus privilégios. Então, o jeito é seguir
denunciando e brigando, cada um com seus meios, para que a balança pese mais para
o lado do respeito e da igualdade. É uma atividade difícil e muitas vezes cansativa,
mas os que a praticam estão com as melhores companhias.
OUTRAS OBRAS DE DOUGLAS CECCAGNO
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