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Marlon Mendes Meira A ESTÁTUA DE NABUCODONOSOR: UMA ANÁLISE HISTÓRICOSOCIAL DOS PÉS DA ESTÁTUA LEVANDO-SE EM CONTA O GÊNERO APOCALÍPTICO Rio de Janeiro, 2018 Marlon Mendes Meira A ESTÁTUA DE NABUCODONOSOR: UMA ANÁLISE HISTÓRICOSOCIAL DOS PÉS DA ESTÁTUA LEVANDO-SE EM CONTA O GÊNERO APOCALÍPTICO Esta Monografia é um trabalho de natureza histórico-social, na área de Teologia Bíblica que objetiva trabalhar os pés da estátua de Nabucodonosor com uma interpretação Bíblica, Histórica e Teológica, sendo orientada pelo Prof. Dr. Dionísio Oliveira Soares. Rio de Janeiro, 2018 M499a Meira, Marlon Mendes A Estátua de Nabucodonosor: uma análise histórico-social dos pés da estátua levando-se em conta o gênero apocalíptico/ Marlon Mendes Meira. – Rio de Janeiro: FABAT, 2018. 57 fls. – Bibliografia Orientador: Prof. Dr. Dionísio Oliveira Soares Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Departamento de Teologia, Faculdade Batista do Rio de Janeiro, 2018. 1. Daniel, profecia de - Crítica, interpretação, etc. 2. Gênero apocalíptico. 3. Análise bíblico-exegética. I. Soares, Dionísio Oliveira II. Título. CDD 224.506 Marlon Mendes Meira A ESTÁTUA DE NABUCODONOSOR: UMA ANÁLISE HISTÓRICOSOCIAL DOS PÉS DA ESTÁTUA LEVANDO-SE EM CONTA O GÊNERO APOCALÍPTICO __________________________________ Prof. Dr. Dionísio Oliveira Soares __________________________________ Prof. Dr. Delambre Ramos de Oliveira Rio de Janeiro, 2018 Ao Senhor Jesus Cristo, Autor e consumador da fé. Aos meus queridos avós José Mendes da Silva e Tereza do Amaral Mendes (in memorian), que muitíssimo contribuíram para minha formação moral, intelectual e espiritual. Ao meu Pastor, Francisco Libório e sua filha Miriam Anna Libório, que acreditaram em minha vocação nos estudos Teológicos. A Igreja Evangélica Assembleia de Deus Matriz em Duque de Caxias, minha tão amada comunidade de fé. A doce e meiga Isabela, minha nova razão de viver. A Deus, toda honra, glória e louvor, amém. A sagrada memória dos meus avós José Mendes da Silva e Tereza do Amaral Mendes, da qual jamais chegaria até aqui. Aos meus queridos pais Edson Gomes Meira e Jessy do Amaral Mendes e meu estimado irmão Theodoro Mendes Meira pelo grande apoio nos anos de curso. Ao meu querido e Reverendíssimo Pastor Francisco Libório, sua filha Miriam Anna Libório e seu neto Pastor Felipe Alexandre Libório da Silva pela confiança no meu chamado ministerial e teológico. A toda família Libório pela grande contribuição em minha jornada teológica. A minha querida e amada Igreja, à Assembleia de Deus em Duque de Caxias por ter me enviado para o Seminário e ter me ajudado muito nesses quatro anos. Ao Pr. Sérgio Ricardo de Carvalho e ao Pr. Jaraitan Eduardo Ferreira, pela compreensão nas tarefas da Secretaria Geral da Assembleia de Deus em Duque de Caxias, ao longo da produção deste trabalho. Ao Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil representado pelo seu Reitor Pr. Fernando Macedo Brandão e seu Diretor Acadêmico Pr. Dr. Valtair Afonso Miranda, instituição de excelência que subsistirá por muitos anos. Ao meu orientador, Prof. Dr. Dionísio Oliveira Soares pela compreensão, dedicação e zelo ao longo deste trabalho. A todo ilustríssimo corpo docente desta casa, homens e mulheres vocacionados por Deus e ricamente cultos e instruídos para o ensino acadêmico e teológico. Ao Centro Acadêmico Doutor Shepard, seu Presidente Raphael Andrade de Godoi e toda sua mesa diretora. A uma família mui amada: Anselmo Ferreira da Silva (in memorian) Mônica Maria Galvão da Silva e Lucas Galvão Ferreira da Silva. A Primeira Igreja Batista de Irajá representada pelo seu Presidente, Pastor João Emílio Cutis Pereira, grande amigo em momentos mui difíceis de minha vida. Aos meus irmãos do coração: Lucas Melo de Souza, Beatriz Patta, Luanda Ribeiro e Filipe Camara. A todos os meus colegas de turma. Aos meus amigos mui chegados: Igor Cutis, Gustavo Albernaz, Viviane Paixão, Gabriel Penido, Gabriel Fievet, Heitor Santos de Paula, Andherson Ramos, Luis Felipe, Danny Reis e Wallace Thimóteo e Gabriel Mafra. “Ele revela o profundo e o escondido; conhece o que está em trevas, e com ele mora a luz” (Daniel 2,22) RESUMO O presente trabalho visa apresentar uma explanação sobre a perícope de Daniel 2, 31-45 sobre os pés da estátua compósita de Nabucodonosor não só abrangendo questões teológicas ligadas a apocalíptica, mas de igual forma, abrangendo questões de historicidade dentro do livro de Daniel, conceituado primeiramente a Literatura Apocalíptica enquanto gênero literário. Para isso é preciso ter o entendimento de seus aspectos literários através de situações e circunstância sociais do denominado “apocalipsismo”. Suas raízes através da influência estrangeira, da literatura sapiencial e profética igualmente é de suma importância para entendermos figuras e termos utilizados dentro dos livros apocalípticos. O livro de Daniel também é trabalhado de forma bem detalhada dentro do estudo, começando por seu personagem histórico que é bastante estudado neste trabalho. As questões de introdução Bíblica, como autoria, datação e gênero literário são abordados para a melhor compreensão do livro de Daniel enquanto literatura apocalíptica. O Sitz im Lebem tem uma importante função dentro destas questões introdutórias, uma vez que explicita o contexto vital dentro da época. No último capítulo faz-se uma análise histórica, exegética e apocalíptica do livro de Daniel 2, explicando detalhadamente a análise literária da perícope, suas vocabulário e sua crítica textual, enfatizando os pés da estátua do rei Nabucodonosor. Por fim, no Apêndice uma aplicação teológico-hermenêutica dentro do estudo tratado ao longo do trabalho. PALAVRAS-CHAVE Estátua de Nabucodonosor, Literatura Apocalíptica, Daniel 2, Exegese, Método Histórico-Crítico, Teologia Bíblica, História Antiga. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10 2. A LITERATURA APOCALÍPTICA COMO GÊNERO LITERÁRIO E SUAS RAÍZES ......................................................................................................................... 12 2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................... 12 2.1.1 HISTÓRICO E CONCEITUAÇÃO .............................................................. 12 2.1.2 DIVISÃO TRÍPLICE .................................................................................... 14 2.1.3 O GÊNERO APOCALÍPSE .......................................................................... 14 2.1.4 A ESCATOLOGIA APOCALÍPTICA ......................................................... 16 2.1.5 APOCALIPSISMO ....................................................................................... 17 2.2 RAÍZES DA LITERATURA APOCALÍPTICA ................................................. 19 2.2.1 AS INFLUÊNCIAS ESTRANGEIRAS ........................................................ 19 2.2.2 APOCALÍPTICA E PROFECIA .................................................................. 20 2.2.3 APOCALÍPTICA E A LITERATURA SAPIENCIAL ................................ 21 3. O LIVRO DE DANIEL COMO LITERATURA APOCALÍPTICA .................. 23 3.1 DANIEL COMO PERSONAGEM BÍBLICO .................................................... 23 3.2 O LIVRO DE DANIEL ........................................................................................ 25 3.2.1 A FORMAÇÃO DO LIVRO ......................................................................... 25 3.2.2 AUTORIA E DATAÇÃO ............................................................................. 27 3.2.3 O SITZ IM LEBEN......................................................................................... 30 3.2.4 O GÊNERO LITERÁRIO ............................................................................. 31 4. O SIGNIFICADO HISTÓRICO-TEOLÓGICO DOS PÉS DA ESTÁTUA ...... 34 4.2 O SONHO DA ESTÁTUA COMPÓSITA NO LIVRO DE DANIEL ................ 34 4.3 A ANÁLISE LITERÁRIA ................................................................................... 36 4.3.1 A UNIDADE LITERÁRIA DO TEXTO ...................................................... 36 4.3.2 A ESTRUTURA DO TEXTO ....................................................................... 37 4.3.3 VOCABULÁRIO .......................................................................................... 37 4.4 CRÍTICA TEXTUAL ........................................................................................... 40 4.5 O SONHO E INTERPRETAÇÃO DOS QUATRO REINOS ............................. 41 4.6 OS PÉS DA ESTÁTUA ........................................................................................... 44 5. CONCLUSÃO....................................................................................................... 47 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 50 APENDICE ........................................................................................................... 53 ANEXOS ............................................................................................................ 56 1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por finalidade abordar a questão dos pés da estátua compósita do rei Nabucodonosor em Daniel 2, 31-45, dando ênfase a junção do ferro com o barro a luz de uma visão exegética e histórico-apocalíptica do livro de Daniel finalizando com uma aplicação hermenêutica. O livro de Daniel sempre é muito discutido quando fala-se em literatura apocalíptica no Primeiro Testamento. Embora não seja completamente apocalíptico, uma boa parte do livro pertence ao gênero em especial a passagem da estátua compósita por isso nela será feita uma análise a luz desta perspectiva teológica. Neste trabalho pretende-se fazer uma contribuição para a comunidade acadêmica brasileira, com um assunto que infelizmente é pouco abordado no meio teológico brasileiro. Muitos livros não dão realmente uma visão completa do livro da Daniel, a começar tratando-o como literatura profética e não como literatura apocalíptica, o que é fruto de uma tradição muito antiga no Cristianismo, porém optamos tratar do assunto com um olhar de uma teologia mais moderna e acadêmica, fornecendo respostas históricas e teológicas do livro. O pesquisador desde sua adolescência se interessa pelo tema do livro de Daniel, em especial pela estátua do rei Nabucodonosor. Embora muitos livros tentem abordar o tema, não conseguem realmente chegar a uma resposta mais concisa do livro de Daniel, ao começar tratando-o como literatura profética e não como literatura apocalíptica. O objetivo geral do trabalho é fazer dois tipos de análises à saber: histórica e apocalíptica, com uma aplicação hermenêutica e teológica. Histórica para estudarmos os o contexto histórico da qual estava inserido o livro de Daniel ou seja, buscando fontes, subsídios históricos, serão muito bem observados os questionamentos da perícope. Apocalíptica pois trabalharemos dentro da visão desta literatura e suas implicações no livro de Daniel. No Apêndice, faremos uma aplicação hermenêutica da perícope escolhida. Através dessas análises poderemos chegar à conclusões embasadas do livro de Daniel e da passagem já mencionada. A hipótese central é que a união entre os dois materiais da estátua são distintos em demasia o que leva a pensar que uma dinastia iria sobrepor à outra. O livro de Daniel sem dúvida alguma é de cunho apocalíptico e deve ser estudado como tal. Deve-se lembrar que seu conteúdo não trata de previsões futurísticas apenas, mas do momento 11 histórico em que o autor do livro está vivendo. O relação do livro com as raízes literatura apocalíptica também é uma chave muito importante para um exame exegético sério e coerente. A metodologia utilizada para examinar o texto, além das análises de cunho histórico-teológico é o Método Histórico-Crítico (MHC) que é muito utilizado nos estudos acadêmicos da atualidade para analisar os livros de cunho apocalíptico, usando autores como John J. Collins, David Syme Russell, Dionísio Oliveira Soares, Louis F. Hartman, Alexander A. Di Lella, Jean-Louis Ska, Gerhard von Rad, Klaus Koch, Luis Alonso Shökel entre outros. Optaremos por uma abordagem diacrônica no desenvolvimento do trabalho e em sua aplicação hermenêutica uma abordagem sincrônica. A pesquisa é de natureza totalmente acadêmica, que foram feitas de forma minuciosa em questionamentos na sala de aula, e em livros que abordassem o tema da literatura apocalíptica. Os artigos via internet também contribuíram muito para a pesquisa feita para este trabalho. As fontes desse trabalho foram obras que abordam o teor de literatura apocalíptica de maneira profunda, como livros que tratam do tema, comentários bíblicos, artigos científicos, dissertações de mestrado e dicionários exegéticos. Dentro dessas fontes foram buscados elementos para a compreensão não só do da perícope trabalhada, mas também para a compreensão melhor do livro de Daniel e da literatura apocalíptica como um gênero literário da antiguidade Serão abordadas neste trabalho, a definição de literatura apocalíptica suas origens, e raízes, uma análise do livro de Daniel dentro da literatura apocalíptica e no Primeiro Testamento e, por fim, a mistura dos elementos ferro e barro nos pés da estátua do sonho de Nabucodonosor no terceiro capítulo deste trabalho. Tentou-se mostrar neste trabalho a influência da apocalítica na Bíblia Hebraica mesmo sendo considerado um gênero tardio, porém sua importância é impressindível para o estudo de muitas passagens do Primeiro Testamento. A historicidade dos relatos do livro de Daniel também é muito bem observada, haja visto que é um livro inserido dentro de um contexto helenístico. A estátua compósita de Nabucodonosor é um grande elemento da literatura apocalíptica e através dela, entendemos o pensamento do homem judeu no período helenístico, por isso a visão apocalíptica do livro de Daniel que dá oportunidade de se trabalhar com uma visão mais fidedigna de sua historicidade. 12 2. A LITERATURA APOCALÍPTICA COMO GÊNERO LITERÁRIO E SUAS RAÍZES 2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS A Literatura Apocalíptica é um gênero literário, por isso sempre é bom ter em mente como ele foi composto, em que situação, em todos os aspectos, como por exemplo o teológico, o religioso e o histórico. 2.1.1 HISTÓRICO E CONCEITUAÇÃO Sempre foi bastante estranho aos teólogos e demais pesquisadores os apocalipses do período de intertestamento e dos primeiros séculos da chamada Era Cristã. Contudo, no início do século XX, graças à fabulosa descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, esse tipo de pesquisa ficou aflorado e interessante. A Apocalíptica Judaica, ao que tudo indica, surge no período intertestamentário, que foi um período marcado pela helenização, por Alexandre Magno dentro do território da palestina, indo até o início do segundo século da Era Cristã (entre 250 a C. e 100 d.C.). Porém, as comunidades cristãs primitivas deram continuidade a esse tipo de literatura ao longo dos séculos1. Esta conclusão não seria totalmente definitiva, pois existe a hipótese de que, anteriormente a esse período, houve na cultura semítica uma forte influência estrangeira da cultura babilônica com sua sabedoria chamada de “mântica” e posteriormente ao Apocalipsismo Persa2 que era totalmente ligado ao zoroastrismo. Sob essa ótica, suas origens nos remontariam para antes do período helênico. Em suma, sua origem ainda é considerada uma incógnita para muitos pesquisadores. Dentro deste novo cenário helênico, um grupo seleto de judeus começa a produzir vários textos como resposta a muitos problemas sociais e políticos vividos pelas comunidades nesse período. Com as descobertas de Qumran, cresceram as pesquisas sobre as origens da apocalíptica e, com elas, o grau de importância de estudos mais aprofundados sobre os temas da apocalíptica que se multiplicaram no meio acadêmico, englobando não só a teologia, mas, também, a história e a arqueologia.3 1 RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino. São Paulo: Paulus, 1997.p. 28 COLLINS, John. J. A Imaginação Apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010. p. 52-55 3 SOARES, Dionísio Oliveira. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor. 2006. 201 f. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Teologia, 2006. p. 91 2 13 A hermenêutica de gêneros do Primeiro Testamento como as Profecias, é melhor interpretada sob essa ótica. No Segundo Testamento, muitas leituras dos Evangelhos e das Epístolas sob uma leitura de cunho apocalíptico, passam também a ter todo sentido, uma vez que dentro de uma visão de futuro, colocaria em ordem os problemas que comunidades cristãs nos primeiros séculos estavam passando, como perseguições e problemas sociais. Os escritos davam respostas a muitos anseios dos primeiros cristãos.4 Ao longo dos anos, vários especialistas tentaram definir o termo Apocalíptica. Muitas correntes surgiram desvirtuando totalmente o sentido histórico dos textos, mas com o desenvolvimento das pesquisas e das descobertas, buscou-se definições para um sentido mais histórico da palavra. D.S. Russell especialista nessa literatura, dá a seguinte definição: A palavra “apocalíptico” é derivada do substantivo grego apokalypsis, que significa “revelação”. Entretanto, seu uso, com referência a esse gênero de literatura, é devido com toda probabilidade não ao caráter revelatório dos livros em questão, mas preferivelmente ao fato de que eles têm muito em comum com o Apocalipse do Novo Testamento, com seu linguajar esotérico, sua imaginação bizarra e seus pronunciamentos relativos à consumação de todas as coisas em cumprimento das promessas de Deus.5 D.S. Russell ainda completa dizendo que em definições da apocalíptica não se pode ficar somente nos termos “descobrir” ou “desvelar”. Essa palavra vai muito além desse tipo de significado, haja vista que essa conceituação e definição é muito pequena para o grande leque não só da palavra mas da própria Literatura de cunho Apocalíptico que envolve outros gêneros. Em suma, a definição de Apocalíptica atualmente é algo difícil de ter apenas uma única definição, haja vista que a tradução da palavra não dá a entender a complexidade dos escritos apocalípticos.6 Por ter uma linguagem totalmente metafórica e simbólica, a literatura apocalíptica muitas vezes foi totalmente mal interpretada ou ignorada como “fantástica demais”. Essa linha de pensamento fez com que a Literatura Apocalíptica fosse por muito tempo desprezada nos ensinos acadêmicos. Mas o que cercaria esse tipo de literatura? O que é preciso saber para entendê-la de forma mais profunda? 4 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 91 5 apud. Idem. Ibidem. p. 92 6 RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino, p.5. 14 2.1.2 DIVISÃO TRÍPLICE O Professor Paul D. Hanson da Universidade de Havard, para facilitar mais essa compreensão sobre o assunto, divide o estudo da literatura apocalíptica em três termos: Apocalipse, Escatologia Apocalíptica e Apocalipsismo. O termo apocalipse é mais ligado à figura do livros, do gênero apocalíptico e seus subgêneros.7 O segundo termo, que é a Escatologia Apocalíptica, é mais ligado à compreensão de interferências transcendentais e divinas no destino da humanidade. Apocalipsismo seria o fenômeno religioso-social em que o escritor está inserido e deseja passar para seu público, normalmente, também inserido neste contexto.8 J.J. Collins em sua obra A Imaginação Apocalíptica, também divide o gênero dentro da proposta feita por Hanson.9 2.1.3 O GÊNERO APOCALÍPSE A linguagem apocalíptica é sempre cheia de mistérios e símbolos esotéricos da religião judaica e cristã pois esse gênero transitou entre as duas. Para decifrar essa linguagem totalmente simbólica é preciso conhecer as formas e os elementos que envolvem a literatura apocalíptica. É um conjunto de fatores identificáveis, como por exemplo os meios de revelação que geralmente são visões ou jornadas celestiais. A mediação de um anjo ou um ser celestial também é um elemento de suma importância na literatura apocalíptica pois as revelações não são feitas no mundo terreno mas sempre no mundo celestial, imanente e transcendente.10 Isto é totalmente ratificado através da tese elaborada no Projeto de Gêneros da Sociedade de Literatura Bíblica (Society of Biblical Literature) em sua obra Semeia 14 editada por J.J. Collins: Um gênero de literatura revelatória com estrutura narrativa, no qual a revelação a um receptor humano é mediada por um ser sobrenatural, desvendando uma realidade transcendente que tanto é temporal, na medida que vislumbra salvação escatológica, quanto espacial, na medida que envolve outro mundo, sobrenatural11 7 apud. SOARES, Dionísio Oliveira. A Literatura Apocalíptica: o gênero como expressão. Revista Horizonte – Puc-Minas Belo Horizonte:, v. 7, n. 13, p. 99-113, dez. 2008. p. 103. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/425 Acesso em: 02/12/2017 8 apud. RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino, p. 30-31 9 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p. 19-35 10 Idem. Ibidem. p. 23 11 apud. COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p. 22 15 O gênero apocalíptico é marcado como uma obra de escape do mundo natural para o mundo sobrenatural, o que seria outra marca dentro deste tipo de Literatura, porém a mesma pode estar inserida e situada em contextos históricos bem fortes, como no caso do livro de Daniel. A esse tipo de apocalipse J.J. Collins chama de “históricos”, pois tem por contexto uma história que leva à “jornada celestial”, porém existem livros na literatura apocalíptica que ficam somente na esfera e “jornada” sobrenatural e espiritual, sem uma história, à esses J.J. Collins chama de “Jornadas sobrenaturais”12. J.J. Collins ainda aponta que existe uma grande problemática para usar o termo “apocalipse” em livros desse gênero, principalmente os que foram escritos no judaísmo tardio. O termo apocalipse aparece pela primeira vez para designar uma obra, ao que constam, no Apocalipse de João mas com a problemática de que o termo não é o suficiente para sua conceituação. Isto deixa claro que além de não ser um termo anacrônico, o termo não estaria apontando para gênero.13D.S. Russell, também sobre isso, afirma que o termo usado para o Apocalipse de João foi apenas uma espécie de “expressão técnica” utilizada pelos primeiros cristãos e que ficou como nome do livro.14 O conceito de guerra espiritual e de dualismo também é muito presente dentro do pano de fundo do gênero apocalíptico, onde acontece uma batalha travada entre o Reino de Deus e o Reino das trevas, que algumas vezes é representado, mesmo que em termos simbólicos, como um reino temporal, lembrando o conceito de guerra santa entre os povos Oriente Próximo no Primeiro Testamento. J.J. Collins ratifica essa posição dizendo: “Em suma, a vida humana está limitada, no presente, pelo mundo sobrenatural de anjos e demônios, e no futuro, pela inevitabilidade do julgamento final”. 15 Tudo o que acontece dentro da esfera humana é resultado das implicações do mundo sobrenatural, como os fatos ocorridos no passado, o presente e o futuro já estão comprometidos também por causa desse fator mas sempre apontando para o momento histórico em que o escritor e o leitor em sua primeira audiência estão inseridos.16 A Pseudoepigrafia também é um traço muito presente dentro dos escritos de cunho apocalíptico. A pseudoepigrafia seria um “empréstimo”17 ou seja, a uma forma de se remeter ao um personagem histórico de suma importância para a autoria de um 12 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p. 24-26 Idem. Ibidem. p. 20 14 RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino, p. 25. 15 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p. 28 16 Idem. Ibidem p. 28 17 RÖMER, Thomas et al. (Org.). Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 843 13 16 escrito. É comum ver nesses escritos personagens de importantíssimos da Bíblia Hebraica como “autores”, para justificar o seu escrito, dando-lhe legitimidade e autoridade.18 Ganhando essa credibilidade autoral, o apocalipse era lido por toda a comunidade com uma confiabilidade considerável. O Vaticinium ex eventum (ou profecia ex evento) também é uma marca dos escritos apocalípticos. Esse termo é utilizado para uma profecia depois do evento. O autor se utiliza do fato ocorrido, para o seu escrito cuja a datação é remontada para tempos anteriores. Essa é uma característica presente não só nos escritos de cunho apocalíptico mas também em outras partes da Bíblia, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento. Essas duas marcas estão presentes no livro de Daniel. Em suma, por tratar-se de um gênero ainda precisa ser estudado e mais compreendido em muitas áreas, porém não se pode esquecer que existem subgêneros nos chamados “apocalipses” ou na “literatura apocalíptica”. 2.1.4 A ESCATOLOGIA APOCALÍPTICA Por ter ampla discussão sobre a definição do que seria a literatura apocalíptica ou um apocalipse em si, como foi exposto acima, a escatologia apocalíptica também é muito discutida entre os especialistas. J.J. Collins afirma que a priori escatologia apocalíptica não se dá apenas em uma esfera coletiva mas também em uma esfera individual: Devemos ter em mente que, assim como há tipos diferentes de apocalipses, correspondentemente existem diferentes tipos de escatologia apocalíptica. O equacionamento comum de “apocalíptica” como o cenário do final da história se baseia apenas no tipo “histórico” como Daniel, e os estudiosos objetaram corretamente que isso não é típico de todos os apocalipses. Todos os apocalipses, no entanto, envolvem uma escatologia transcendente que visa a retribuição além das fronteiras da história. Em alguns casos (3 Baruc, Apocalipse de Sofonias), isso assume a forma de um julgamento de indivíduos após a morte, sem referências ao final da história.19 Isso mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a escatologia apocalíptica não está somente limitada à questão do fim do mundo, ou a destruição deste, porém em 18 VALDEZ, Ana. A literatura apocalíptica enquanto género literário (300 a.C. - 200 d.C.) Revista Portuguesa de Ciência das Religiões, Lisboa, v.1, p. 55-66, 2002. Disponível e: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cienciareligioes/article/view/4677/3174 Acesso em: 29/12/2017 19 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p.32 17 alguns livros de cunho apocalíptico, preocupam-se com o fim do indivíduo, como uma espécie de retribuição dos feitos dele na vida terrena. Porém, J.J. Collins ainda deixa claro em seu texto que embora essas duas escatologias sejam presentes nos escritos apocalípticos, não existe na literatura apocalíptica uma escatologia “distintiva”20 como bem afirmou Rowland, o que existe na verdade é que o gênero em si é marcado por uma combinação de jornadas e também por vários tipos de elementos distintivos dentro dele.21 J.J. Collins também aponta a problemática da mistura da escatologia apocalíptica com a escatologia dos escritos paulinos e dos evangelhos: Um problema mais significativo se coloca se quisermos falar de escatologia apocalíptica fora dos apocalipses, por exemplo, nos Evangelhos ou em Paulo. O que está em discussão aqui é a afinidade entre as alusões escatológicas e os cenários que são encontrados de maneira elaborada nos apocalipses. As afinidades variam em grau, e, apesar de o rótulo “escatologia apocalíptica” ser útil para apontar as implicações de certos textos, devemos sempre ter ciência de que o adjetivo é utilizado em um sentido lato22 Em suma, a escatologia apocalíptica é um modelo de escatologia individual de cada livro em que será estudado e pesquisado. Não há uma uniformidade. Por isso não é recomendável uma mistura entre a escatologia presente em outros gêneros a até em livros do próprio gênero apocalíptico. É preciso fazer uma análise teológica do próprio livro que está sendo estudado. 2.1.5 APOCALIPSISMO Um outro fator muito importante dentro da literatura apocalíptica é o chamado apocalipsismo. Segundo D.S. Russell e Hanson, apocalipsismo é: Um movimento religioso-social que adota a perspectiva da escatologia apocalíptica; mas, uma vez que esse “movimento” se expressa de diversas maneiras como resultado de condições históricas mutantes, não é possível dar “definição formal cognitiva do apocalipsismo”. Não se interessa tanto por “consciência sistemática” como pelas “exigências da crise imediata”. Sua malha como que varre diferentes temas, tradições e gêneros, de sorte que “o resultado é com frequência 20 apud. COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p.32 Idem. Ibidem. p. 32. 22 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica, p. 33 21 18 uma coleção de conceitos e motivos de alta natureza eclética e caracterizada pelo esotérico, bizarro e arcano”.23 Com isso, os tipos de movimentos denominados apocalipsismo tornam-se de difícil definição, coesa e única, como toda a literatura apocalíptica. Porém, entende-se como um movimento social, religioso, e histórico, que serviu como pano de fundo para a produção de vários escritos de cunho apocalíptico, inclusive boa parte do livro de Daniel que é o livro abordado nessa monografia. Como se daria o movimento apocalíptico? De que forma ele surgiria? J.J. Collins afirma o seguinte: Um movimento poderia razoavelmente ser chamado de apocalíptico se partilhasse a estrutura conceitual do gênero, endossando uma visão de mundo no qual a revelação sobrenatural, o mundo celestial e o julgamento escatológico desempenhassem papéis essenciais. [...] Se considerarmos a palavra “apocalipsismo” como significando a ideologia de um movimento que partilha a estrutura conceitual dos apocalipses, então devemos reconhecer que pode ter havido diferentes tipos de movimentos apocalípticos, assim como existem diferentes apocalipses.24 Esses três fatores apontados por J.J. Collins se fazem totalmente presentes em muitos dos escritos apocalípticos e, baseando neles, podemos inseri-los naturalmente como intrinsicamente ligados ao movimento apocalíptico também chamado de apocalipsismo, mas sempre levando em consideração que por não ser um “movimento” único e coeso, preferencialmente seria melhor chamar-se de “movimentos apocalípticos”. Porém é importante ressaltar que nem todos os escritos são produzidos dentro de um contexto de apocalipsismo. Esse conceito aplica-se de forma ampla nos livros chamados de “apocalipses históricos” na qual inclui-se Daniel como já foi citado acima. J.J. Collins, sobre os apocalipses históricos afirma: “negligenciaram aqueles que se inclinaram ao misticismo e especulação cósmica”.25 23 apud. RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino, p. 31 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.34 25 Idem. Ibidem, p.35 24 19 2.2 RAÍZES DA LITERATURA APOCALÍPTICA Como em todos os aspectos da literatura apocalíptica, é difícil também encontrar uma raiz para ela, entretanto depois de muitos anos de estudo a respeito, os estudiosos chegaram a conclusões sobre suas possíveis raízes. 2.2.1 AS INFLUÊNCIAS ESTRANGEIRAS Já foi dito neste trabalho que a maioria dos estudiosos chegam a conclusão que a literatura apocalíptica teve seu início em torno do segundo século a.C. isto é, no período de intertestamento. Quando pensa-se neste período, lembramos logicamente da época helenística feita por Alexandre Magno. D. O. Soares afirma que “religiosamente, entretanto, o helenismo possuía um culto muito mais oriental que helenizado”26, mostrando a influência do helenismo no antigo oriente próximo e vice-versa. Sobre esse diálogo entre as duas culturas políticas e religiosas, pode se afirmar que o helenismo trazia consigo um sincretismo de várias religiões antigas do médio oriente, inclusive babilônica e persa que exerciam muitíssima influência sobre a cultura helênica. Já dentro do território e cultura da palestina, o Zoroastrismo tomou uma força muito expressiva na religião judaica em especial, com a ideia do dualismo que consistia ser uma luta de poderes entre duas divindades a saber, Ahura Mazda que era o espírito do bem e Angra Mainyu que era o espírito mal. E os judeus naturalmente, tiveram uma relação intrínseca com a cultura perso-babilônica. A influência persa e babilônica foi muito forte entre os judeus nos períodos exílios, principalmente tendo o aramaico como o idioma proeminente. Vê-se claramente o embate entre anjos caídos e os anjos de Iahweh nesse tipo de literatura como por exemplo no livro de 1º Enoque, que na realidade pode ser interpretado como um traço bem forte do dualismo persa. Fica clara a participação de influências estrangeiras na apocalíptica judaica em especial a do Zoroastrismo, através de seu dualismo na luta constante entre o bem e o mal, que foi possível através da diáspora oriental e do helenismo. Contudo, D.S. Russell critica a posição desse tipo de influência na literatura apocalíptica dizendo que não há fontes para o Apocalipsismo e sua literatura fora e 26 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 110 20 Israel: “Nessa base, afirma-se, não há nenhuma necessidade de buscar, por exemplo, fontes persas para explicar as origens de semelhante expressão mitológica”27. Mas qual seria essa base citada por D.S. Russell? Veremos nos tópicos abaixo. 2.2.2 APOCALÍPTICA E PROFECIA O movimento profético, segundo os estudiosos tem grande relevância dentro da literatura apocalíptica, sendo considerada por muitos autores a maior de todas as raízes dentro dela. Tem-se também reconhecido que a origem do movimento do apocalipsismo vai além do segundo século a. C. O argumento é que a profecia escatológica teve um papel fundamental de cunho evolutivo dentro do gênero apocalíptico. Esse pensamento é sustentado por vários estudiosos entre eles Russell e Hanson28. A ideia de um ponto final na história da humanidade encontra-se não só na literatura apocalíptica mas no livro de Isaías 20,23 e 28,28 por exemplo. De acordo com D.S. Russell, esses comentários de cunho apocalípticos dentro do livro são tardios. Reaparecem posteriormente em Daniel 9,27.29 D.S. Russell acrescenta mais afirmando o seguinte: Acreditava-se que essas profecias continham saber acerca dos mistérios do futuro julgamento de Israel e das nações e tomaram essencialmente a forma de escatologia de tipo apocalíptico.30 Outros livros de cunho profético contêm seu próprio apocalipse, como caso de Zacarias 11-13 e nos chamados Deutero e Trito-Isaías. É sempre bom lembrar que a atmosfera religiosa onde surgiu o chamado movimento profético teve por pano de fundo a esfera espiritual e transcendental da qual a humanidade é reflexo, o que é também marca muito forte também no gênero apocalíptico. 31 Porém a principal diferença entre os dois tipos de literatura, segundo D. O. Soares é a seguinte: Entretanto, uma diferença fundamental é a concepção de história, francamente diferente: na apocalíptica ela é esquematizada com fim 27 RUSSELL, D. S. Desvelamento Divino, p. 48-49 RUSSELL D. S. Desvelamento Divino, p. 41 29 Idem. Ibidem. p. 42 30 Idem. Ibidem. p. 42 31 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 114 28 21 específico, ao passo que na profecia ela é o palco dos atos salvíficos de Deus para com Israel.32 Porém ainda existe outra fonte muito forte que é sustentada pelo estudioso Gerhard von Rad, veremos logo a seguir. 2.2.3 APOCALÍPTICA E A LITERATURA SAPIENCIAL Embora não seja de tanta importância quanto a profecia, a sabedoria exerce influência sobre o chamado apocalipsismo. Von Rad foi o principal estudioso que enfatizou a sabedoria como fonte principal da apocalíptica, com ajuda de algumas fontes fora do berço judaico33. Von Rad ainda aponta uma questão muito interessante, como resposta à tese de que a apocalíptica tem fonte no profetismo. Ele aponta que os principais escritos da apocalíptica apontam para homens sábios como Daniel, Enoque e Esdras e pouco para os profetas, e que ainda, a preocupação cosmológica, meteorológica, astronômica e geográfica são assuntos concernentes à sabedoria e não aos escritos de cunho profético. Além disso, a separação da história em épocas predeterminadas pela divindade (no caso Iahweh) e a interpretação de sonhos e visões não seria a função do profeta e sim do chamado “homem sábio”.34 D. O. Soares comenta sobre a questão do predeterminismo dentro da literatura profética: O predeterminismo da história, segundo o qual esta é dividida por Deus em períodos que conduzem ao estabelecimento de uma nova Era, é estanho ao profetismo, que via a história como a arena em que Deus se deu a conhecer pelos seus atos salvíficos.35 No profetismo não existe essa questão de domínio da história em eras, algo que é muito forte na apocalíptica, uma vez que vários livros do gênero fazem esse tipo de divisão, como Daniel, por exemplo, com suas setenta semanas. Todavia, existem divergências consideráveis em relação à posição de Von Rad por vários estudiosos e especialistas como D.S. Russell, vendo-a como um tanto radical, não podendo desprezar totalmente o movimento profético como raiz principal da 32 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 121 33 apud. RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino, p. 43 34 Idem. Ibidem. p. 43 35 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 121 22 apocalíptica. A questão da escatologia, por exemplo, fica em aberto, pois ela se faz muito presente em ambos os gêneros, mas não nos escritos sapienciais e, ainda como vimos acima, a interferência da escatologia apocalíptica nos escritos proféticos mostra um relacionamento muito próximo entre os dois gêneros.36 Outro pesquisador chamado Peter Von der Osten-Sacken, embora também não concorde totalmente como Von Rad, afirma que houve uma interferência da sabedoria na literatura apocalíptica, porém a posteriori do profetismo. Segundo Osten-Sacken: O apocalipsismo é filho legítimo, se bem que tardio e muito peculiar, do profetismo, e mesmo que já demonstrasse erudição em sua juventude, apenas com o avanço da idade abriu as partes à sabedoria.37 Existem dúvidas de que a sabedoria faz parte da construção da literatura apocalíptica inclusive sendo uma de suas raízes, porém é importante ressaltar que não se pode exonerar a rica contribuição do profetismo dentro da apocalíptica, em especial na sua escatologia. Isso não exime de maneira nenhuma nem a primeira nem a segunda, pelo contrário, já está mais que provado que as duas raízes se fazem altamente presentes na apocalíptica e em escritos do cunho, em especial no livro de Daniel que faz referência aos sábios. As questões de histórico, divisões e raízes da literatura apocalíptica são abundantes e ainda existem muitos fatores a serem pesquisados e descobertos no meio acadêmico, por isso, o pesquisador viu por bem tratar esse assunto no primeiro capítulo desta monografia, a fim de que os leitores pudessem entender melhor do que se trata o livro de Daniel, que pertence a esse tipo de literatura, embora como já foi dito acima seja considerado um apocalipse histórico. 36 RUSSELL, D. S. Desvelamento Divino, p. 42 apud. SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 118 37 23 3. O LIVRO DE DANIEL COMO LITERATURA APOCALÍPTICA 3.1 DANIEL COMO PERSONAGEM BÍBLICO Tendo-se entendido do que se trata ser literatura apocalíptica, abordar-se-á o livro de Daniel como sendo boa parte pertencente ao gênero apocalíptico. Para isso, precisaremos entender sua autoria, datação e local, embora ainda haja divergências sobre essas questões. Os estudiosos mais conservadores ainda preservam a ideia de que Daniel, (cujo o significado do nome é “Deus é o meu Juiz”) foi um homem que viveu em Babilônia durante o exílio do reino de Judá,38 porém com as pesquisas mais avançadas sobre o livro de Daniel principalmente em relação ao seu gênero literário, os estudiosos da atualidade chegaram à conclusão de que se trata de uma pseudonímia39, o que é algo comum nos escritos apocalípticos. Se tratarmos o livro de Daniel como uma literatura pseudonímica, por que o autor usaria o nome de Daniel para ratificar sua autoria? Apenas lembrando que o livro de Daniel não é inteiramente pseudônimo, e sim do capítulo 7 em diante, os capítulos 1-6 são considerados anônimos.40 Em relação a pseudonímia dentro da literatura apocalíptica, D. O. Soares afirma que: “A maior parte dos autores apocalípticos lança suas profecias a um passado remoto e escrevem em nome de uma figura honrada, a qual teria recebido a revelação” 41. Isso foi empregado no livro de Daniel? Existe uma grande parcela de estudiosos que afirmam que sim, pois há uma tradição muito antiga acerca de um sábio chamado Daniel não só nos ambientes judaicos mas também em literaturas estrangeiras 42. Essa suspeita começou ao deparar-se com personagem de Daniel que em seu livro é apresentado de várias maneiras à saber: adivinho e chefe dos magos (4,5; 5,10-12), político e administrador (2,48; 6,3; 8,27). Na versão deuterocanônica (também chamada de “Daniel grego”), aparece como adolescente desconhecido e sacerdote (13.45; 14.2)43. A maioria dos estudiosos da atualidade fazem uma ligação de Daniel com o personagem lendário e justo em Ezequiel 14, 14-2044, onde é citado como Dan’el, que 38 SILVA, Antônio Gilberto da. Daniel e Apocalipse: como entender o plano de Deus para os últimos dias. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1984. p. 9 39 Segundo Hömer: “Procedimento literário que consiste em escrever sob um nome de empréstimo. O autor fictício é geralmente um personagem importante da tradição”. RÖMER, Thomas et al. (Org.). Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 843 40 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 106 41 Idem. Ibidem. p. 106 42 Idem. Ibidem. p. 104 43 SHÖKEL, Luís Alonso. Profetas I (2º ed.). São Paulo: Paulus, 2004. p. 1264 44 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.135 24 era um sábio nos dias de Noé e Jó e é lembrado por sua justiça e poder de intercessão e ainda no capítulo 28,3 por sua sabedoria e conhecimento.45 No livro de Esdras, Daniel é mencionado como um sacerdote do pós-exílio46. D.S. Russell comenta o seguinte sobre isso: Parecia que o (s) autor (es) convenientemente combinou (aram) a figura do lendário sábio de antanho com a do desconhecido sacerdote para servir ao propósito que ele (s) tinha (m) em mente, ou seja, encorajar os fiéis de sua época (o século segundo a.C.), valendo-se de profecias de que se presumiam proceder de tempos antigos (século sexto a.C.) e demonstrar por este expediente que se aproximava o fim suas tribulações.47 Essa argumentação de D.S. Russell mostra claramente o fenômeno do Vaticínio ex eventum dentro do livro de Daniel, pois o autor usou como figura um personagem lendário de um passado remoto para dar autoridade ao seu escrito, inserindo-o dentro do cativeiro babilônico, e pertencendo a corte. É muito importante ressaltar que em nenhum momento Daniel é visto como um profeta, e sim na maioria das vezes como um sábio. Em fontes fora da Bíblia, Daniel também seria supostamente apresentado em um poema ugarítico de Aqhart, da qual J.J. Collins afirma que: “Daniel é pai de Aqhart e é exemplar na oferenda de oblações aos deuses e no julgamento de viúvas e órfãos”48, o que mostraria além das evidências em Ezequiel, também influências estrangeiras envolvendo o personagem de Daniel. No livro e Enoque 6,7 e 69,2 há uma citação de um anjo decaído chamado de “Dan’el” ou “Daniel”, porém antes de sua queda ele era uma figura que teria alcançado “status angélico”49. Ainda no livro dos Jubileus 4,20, Daniel teria sido o nome do irmão da esposa de Enoque. Todas essas evidências nos mostram que o personagem Daniel (embora bastante controverso) foi uma grande figura em uma antiguidade bem remota em comparação ao período do cativeiro babilônico e que um livro de sua “autoria” teria uma ampla aceitação, mostrando mais uma forte ênfase de que a autoria é pseudômica. Hartman e Di Lella comentam sobre a historicidade do personagem Daniel: 45 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 104 46 RUSSELL, D. S. Desvelamento Divino, p. 70 47 Idem. Ibidem. p. 70 48 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.135 49 RUSSELL, D. S. Desvelamento Divino, p. 71 25 Nós não temos nenhuma maneira de saber se o Daniel desses relatos foi realmente um personagem histórico, sobre quem as lendas populares se aglomeraram gradualmente, ou se foi simplesmente uma criação do folclore judeu.50 Mais uma vez percebermos que existem uma imensa impossibilidade de Daniel ter vivido realmente em Babilônia no sexto século e sim um personagem engendrado e adaptado para essa época. 3.2 O LIVRO DE DANIEL No mundo acadêmico é praticamente aceitável com totalidade duas informações primordiais sobre o livro de Daniel. A primeira delas é que Daniel pertence aos livros de cunho apocalíptico. J. L. Ska afirma que “é, de fato, o único texto apocalíptico verdadeiro na diversificada biblioteca nacional de Israel”51, opinião ratificada por J.J. Collins, especialista em literatura apocalíptica: “O livro de Daniel contém o único exemplo pleno de literatura apocalíptica na Bíblia hebraica”52. A segunda informação é sobre sua datação, que é amplamente aceita no período de intertestamento.53 3.2.1 A FORMAÇÃO DO LIVRO O livro de Daniel é composto de três idiomas: hebraico, aramaico e grego. As partes hebraicas do livro são os capítulos 1,1 a 2,4a e de 8,1 a 12,12. Em aramaico de 2,4b a 7,854. As partes em grego do livro são 3. 24-90, 13 e 1455, lembrando que essas partes são presentes na LXX e não na Bíblia hebraica, e ainda, estão presentes no cânon de tradição católica e ausentes no cânon de tradição protestante. Shökel comenta sobre essa situação dizendo: É isso um fenômeno curioso único dentro do AT, que nos faz entrever complicado processo de formação do livro. É muito mais fácil separar os fragmentos gregos como adição posteriores, escritas nessa língua ou traduzidas de original semítico. Porém, a mistura do hebraico e do 50 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Academia Cristã; Paulus, 2007. p. 808 51 SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento: explicado aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. São Paulo: Paulus, 2015. p. 158 52 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.133 53 A questão da datação de Daniel será tratada em um tópico especial para o assunto. 54 RÖMER, Thomas et al. (Org.). Antigo Testamento: história, escritura e teologia, p. 688 55 Idem. Ibidem. p. 740-741 26 aramaico torna-se difícil de explicar. Propuseram-se numerosas teorias, porém todos os estudiosos acabam por reconhecer que nenhuma solução é, até hoje, plenamente satisfatória. 56 Além dessas divisões idiomáticas dentro da formação do livro de Daniel, existe mais uma divisão que se dá dentro do conteúdo do livro. Os primeiros capítulos do livro (1-6) contam seis histórias edificantes à respeito da trajetória de Daniel e seus companheiros dentro do império neobabilônico, que são chamadas de “relatos da corte”57. No capítulo 2 no entanto, contém uma parte considerada apocalíptica que corresponde ao sonho de Nabucodonosor e a intepretação desse sonho (que é da estátua). Logo em seguida, a segunda divisão tem por finalidade de mostrar visões e sonhos de Daniel à respeito de reinos gentílicos e o destino do povo judeu, essa seria a parte apocalíptica do livro. A terceira divisão encontra-se dentro do Daniel grego, onde temos a oração de Azarias e o cântico dos três jovens na fornalha no capítulo 3. 24-90, e três histórias de Daniel com Suzana e com os sacerdotes de Bel (cap.13), e o dragão (cap.14).58 Existe ainda uma outra divisão muito relevante dentro do livro de Daniel, que é feita através das narrativas e suas pessoas gramaticais. As narrativas de 1-6 que são concernentes aos relatos da corte, estão na 3ª pessoa. Já a sessão apocalíptica do livro estão narradas na 1ª pessoa, porém a introdução da visão dos animais (cap.7) está na 3ª pessoa, mas a partir do versículo 2 onde efetivamente começa a narrativa da visão, está em 1ª pessoa.59 Entre muitas teorias existentes para tentar resolver esse tipo de questão, J.J. Collins afirma que a parte de língua aramaica foram escritas antes das partes hebraicas do livro, com exceção do capítulo 7 que teria sido mantido em aramaico a fim de fazer uma ligação com as entre as duas partes linguísticas do livro60. Tudo isso nos leva a acreditar que o livro de Daniel tem sua cronologia bastante conturbada, pois no meio dessas divisões ele volta a períodos anteriores do livro, por exemplo nas visões dos quatro animais no capítulo 7 onde o autor começa dizendo: “No primeiro ano de Baltazar, rei de Babilônia, Daniel, estando em seu leito, teve um sonho, 56 SHÖKEL, Luís Alonso. Profetas I, p. 1261 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 130 58 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Academia Cristã; Paulus, 2007. p. 808 59 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 130 60 apud. Idem. Ibidem.p. 132 57 27 e visões lhe assomaram à cabeça”61 (Dn 7,1). O problema é que no capítulo 5 o livro narra a morte de Belsazar (ou Baltazar), mostrando uma incoerência cronológica grande no livro62. Com certeza as divisões linguísticas, narrativas e de pessoas gramaticais corroboram para isso. É importante salientar que essas divisões são completamente divergentes, o que causa esse tipo de problema dentro do livro63. 3.2.2 AUTORIA E DATAÇÃO Durantes muitos séculos, a autoria do livro de Daniel foi remetida a um homem chamado Daniel (tido como profeta) que viveu em Babilônia no sexto século a. C. Entretanto, atualmente sua autoria é considerada dentro da ficção. Isso não somente no livro de Daniel mas na maioria dos livros dentro da literatura apocalíptica, onde o autor finge ser um profeta e finge receber oráculos e mensagens de Deus.64 O livro de Daniel é considerado uma obra anônima nos relatos da corte, e sua autoria uma pseudoepigrafia dentro da parte concernentes as visões, isso porque o livro apresenta evidências de acréscimos posteriores como é o caso de suas partes em grego da LXX e nas versões deuterocanônicas.65Estudiosos como Hartman e Di Lella por exemplo, acreditam que a parte das visões do livro foram escritas por mais de dois autores chagando inclusive à conclusão de que foram quatro autores66. Acredita-se que a primeira parte do livro de Daniel, que são concernentes aos contos da corte, seria de um período mais primitivo sendo a parte considerada como uma introdução do livro (capítulos 1,1 a 2,4a) chegando-se a conclusão de que embora primitivos, foram escritos em um período mais tardio. Essas histórias poderiam ser conhecidas pelo redator do livro ou fruto de da tradição oral. Os capítulos da parte apocalíptica do livro, avaliados como sendo pseudoepígrafos, foram acréscimos de um período bem mais tardio, em uma época concernente aos Selêucidas, ou seja, conclui-se que o livro naturalmente tem no mínimo um autor, sendo fruto de um longo processo redacional,67 sendo difícil a defesa de sua unidade literária. 61 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. SILVA, Antônio Gilberto da. Daniel e Apocalipse: como entender o plano de Deus para os últimos dias, p. 41 63 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 130 64 SHÖKEL, Luís Alonso. Profetas I, p. 1260 65 Idem. Ibidem. p.1265 66 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 811 67 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 128 62 28 As questões de datação (assim como de autoria) desde cedo foi bastante questionada, à começar pelo filósofo neoplatônico Porfírio que viveu aproximadamente no terceiro século da era cristã. J.J. Collins ao citar Porfírio afirma o seguinte: Porfírio argumentava que Daniel não havia sido escrito no decurso do exílio babilônico, mas na época em de Antíoco Epífanes. Seu argumento básico era que Daniel “predizia” o curso de eventos de forma acurada até a época de Antíoco Epífanes, mas não além dela.68 Hoje a datação de Daniel é aceita quase com totalidade pela comunidade acadêmica entre os anos de 167 a.C. e 164 a.C. sendo proposta por S.R. Driver no início do século XX69 e recentemente por J.J. Collins, Gerhard von Rad, D.S Russell, Klaus Koch entre outros70. Isso nos remontaria à época helenística. Esses estudiosos acreditam que Daniel tem um traço muito forte com a perseguição de Antíoco Epífanes aos judeus da palestina. Existem muitos traços dentro do livro que comprovam esse tipo de pensamento, como por exemplo o relato dos três jovens na fornalha no capítulo 3, onde Nabucodonosor faz um decreto condenando a quem não adorar sua estátua de ouro ser jogado na fornalha ardente, faz nos lembrar do decreto de Antíoco Epífanes que condenou judeus para serem queimados por desobedecer suas ordens de adoração ao templo profanado em 2º Mc 6,11.71: “Outros, que tinham acorrido juntos às cavernas vizinhas, a fim de aí celebrarem ocultamente o sétimo dia, sendo denunciados a Filipe, foram juntos entregues às chamas: tiveram escrúpulo em esboçar qualquer defesa, por respeito ao veneradíssimo dia”72. Ska por exemplo, também sustenta essa opinião: Foi escrito em período de perseguições sob o reino dos Selêucidas da Síria (200-142), por volta de 160 a.C. Os relatos e as visões Daniel oferecem uma solução para a angústia que reinava no mundo judaico, oprimido pelos Selêucidas.73 68 apud. COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.136 apud. BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1983. p. 20 70 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 123 71 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 817 72 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. 73 SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento: explicado aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele, p. 158 69 29 Outro traço identificado no livro é em relação ao seu hebraico que nos remonta à uma época mais tardia do que o sexto século, não só o hebraico mas também seu aramaico que ao que tudo indica é mais tardio do que os papiros de Elefantina que são datados no final do século V. Sua cosmologia, angelologia e visão de ressurreição também sustentam a data tardia de sua composição final74. Porém, existe um grupo de teólogos de cunho fundamentalista ainda defendem a autoria para o sexto século, como no caso de J. G. Baldwin, falecida em 1995: Levando-se em conta todos os fatores relevantes, incluindo-se aí os argumentos para a unidade do livro, uma data no fim do sexto ou no início do quinto século para o livro como um todo nos parece ser a que melhor corresponde às evidências.75 Esses tipos de autores tentam provar e comprovar relatos do livro de Daniel através de uma certa historicidade um tanto controversa, de fatos narrados no livro76. Também é o caso do teólogo A. G. da Silva, que também compartilha da mesma opinião e ainda assevera a unidade autoral do livro: Época e local do livro: O livro de Daniel foi escrito de 606 a 534 a.C., durante o exílio do povo de Deus em Babilônia. (O exílio foi mesmo de 606 a 536 a.C.) Babilônia era a capital do império. (Susã, a capital de Ciro, no Elão, é mencionada em Dn 8.2, mas numa visão de Daniel).77 Outra opinião sustentada por Silva e outros autores fundamentalistas, é que o livro de Daniel é de gênero profético78e não apocalíptico o que causa mais desconforto a esse tipo de posição, porém esse assunto será tratado em um tópico específico sobre o seu Gênero Literário. Sobre esse tipo de argumento, J.J. Collins afirma o seguinte: O que está em questão em tudo isso não é a veracidade da “palavra de Deus”, como os literalistas normalmente a interpretam, mas uma questão de gênero literário. O pressuposto de que a “palavra de Deus” deve consistir de relatos historicamente factuais, e não pode ser ficção literária, é injustificável teologicamente. Se dada passagem é historicamente correta ou não é uma questão de probabilidade relativa 74 Idem. Ibidem. p. 810 BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário, p. 50 76 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 123 77 SILVA, Antônio Gilberto da. Daniel e Apocalipse: como entender o plano de Deus para os últimos dias, p. 9-10 78 Idem. Ibidem. p. 10 75 30 à luz da totalidade de evidência que temos. Nada se ganha ao se esticar credibilidade com esperança de salvar as aparências históricas.79 3.2.3 O SITZ IM LEBEN O contexto histórico do livro de Daniel dar-se dentro do período de intertestamento. Quando os judeus voltaram de sua terra natal através do edito de Ciro em 539 a.C., houve uma completa liberdade religiosa por um bom período de tempo. Em 331 a.C. Alexandre Magno dominou a palestina e que ficou sob comando dos gregos, todavia após a sua morte o império Macedônico se dividiu em quatro partes correspondentes aos seus generais de Alexandre, à saber: Cassandro, Lisímaco, Seleuco e Ptolomeu. Durante o século III os Ptolomeus governaram a Palestina com sua dinastia, cuja capital encontrava-se em Alexandria. Já no II século, depois da batalha de Panion em 198 a.C.80 a dinastia dos selêucidas tomaram a Palestina e sua capital era Antioquia da Síria.81 82 Na dinastia dos selêucidas no entanto, essa liberdade religiosa foi reprimida. Os selêucidas eram mais opressores com os judeus do que os Ptolomeus. Antíoco III a priori, conseguiu manter a mesma relação que os Ptolomeus mantinham com os judeus, todavia depois de várias guerras e batalhas inclusive com Roma, ele teve seu território reduzido na batalha de Magnésia em 190 a.C., e se viu obrigado a aumentar as taxas de impostos. Seleuco IV Filopátor, que sucedeu Antíoco III tentou saquear o Templo da Jerusalém, porém sem sucesso. Isso ato foi extremamente mal visto pelo povo judeu. Antíoco IV Epífanes assume a dinastia selêucida e juntamente a Palestina. Ele faz uma campanha de helenização judaica, começando à saquear o Templo de Jerusalém, algo que Seleuco IV não havia conseguido. Logo após, estabeleceu um culto helenizado para os judeus, profanando assim o Templo de Jerusalém e dedicando o culto a Zeus na praça do Templo. Isso fez com que os judeus se dividissem entre os que apoiavam e os que desprezavam esse movimento promovido por Antíoco, que até mesmo o cargo de Sumo 79 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p.134 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 128 81 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 808 82 Ver as dinastias detalhadamente em anexo A na p. 56 deste trabalho. 80 31 Sacerdote foi disputado entre os oníadas e os tobíadas. Esse quadro teve como última consequência a Revolta dos Macabeus em 167 a.C.83 Em relação a esses fatos mencionados e os contos da corte do livro de Daniel, H. H. Rowley afirma: Não se referiam a Nabucodonosor, Belsazar, Dario, nem pretendiam ridicularizar simplesmente Antíoco relacionado a estes nomes. Eram histórias primeiro e acima de tudo a respeito de homens leais, que se recusaram a comprometer sua fé e foram salvos por Deus84 D. O. Soares afirma também que “À luz dessa situação, o livro de Daniel pode ser entendido: as histórias da primeira parte (capítulos 1-6) serviram para sustentar os fiéis neste tempo de crise”.85 Podemos chegar à conclusão que as histórias da corte do livro de Daniel são na verdade, figuras que ajudariam a compreensão do povo judeu em relação a pessoa de Antíoco Epífanes. 3.2.4 O GÊNERO LITERÁRIO A começar ainda existem muitos teólogos fundamentalistas que veem o livro de Daniel como um livro de gênero profético como foi exposto acima, sem entender a totalidade da mensagem de daniélica, bem como outros livros e escritos da Literatura Apocalíptica, como os de Enoque e Jubileus e os Testamentos por exemplo. Os mesmo que defendem esse tipo de vertente, geralmente sustentam a unidade autoral historicidade do livro e da pessoa de Daniel em Babilônia no sexto século. R. G. Fialho, aponta as principais diferenças entre os dois gêneros: Apocalíptica • Produto do parsismo (Irã e Pérsia) dualista É através da destruição cósmica do mundo que se origina o novo mundo • • O juízo de condenação é evento irrevogável • • A história é universal e Israel reflete esta história • • 83 • Profecia Produto do judaísmo Monista O humano é o sujeito da transformação do mundo quando ele próprio parte para o cumprimento O juízo de condenação não é irrevogável, pode haver arrependimento A história centraliza-se em Israel SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 128-129 84 apud. Idem. Ibidem. p. 129 85 Idem. Ibidem. p. 129 32 • Os apocalípticos só escrevem • Os profetas atuam na história além de escrever sobre ela.86 Ao nos depararmos com essas prerrogativas peculiares a cada gênero, fica suficientemente claro o pertencimento de Daniel à literatura apocalíptica, tendo-se em vista tudo o que já foi esmiuçado neste trabalho, tornando insustentável defender a profecia (como gênero) em Daniel. D. O. Soares afirma o seguinte sobre a impossibilidade do profetismo em Daniel: Pela época que o livro de Daniel deixa transparecer com seu conteúdo e gênero, ele já não representa mais a corrente profética primitiva, mas o desenvolvimento do apocalipsismo, como se observa também em outras obras do período judaico intertestamentário.87 Porém, ainda há uma questão que ainda divide os estudiosos, não à respeito da parte das visões do livro, aceita por totalitariamente como como literatura apocalíptica, mas a parte correspondente as histórias de corte. D. O. Soares o seguinte sobre o gênero literário: A questão do gênero literário do livro de Daniel, a exemplo das outras discussões até aqui apresentadas, não é uma questão simples, dada a diversidade da composição do livro.88 Isso porque muitos estudiosos afirmam que a parte dos contos da corte livro de Daniel existe também o gênero hagádico89. Segundo Hartman e Di Lella o gênero hagático é “usado frequentemente com o sentido de ‘relato’ que não tem quase nenhuma base histórica real mas é contada para inculcar uma lição moral” 90. Contudo, muitos estudiosos consideram na literatura apocalíptica também existem subgêneros, o que 86 FIALHO, Renato Gimenes. Isaías 24,1-6 na perspectiva da profecia apocalipsista resultante de um complexo processo sócio-teológico em transição.2009.171 fl. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 2009. p. 76 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp091313.pdf Acessado em: 02/02/2018 87 SOARES, D. O. As influências persas no chamado judaísmo pós-exílico. Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 6ª Edição, V.5 - Nº2 – Dezembro de 2009. p. 15 Disponível em: http://www.revistatheos.com.br/Artigos/Artigo_06_2_02.pdf Acesso em: 31/01/2018. 88 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 142 89 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 810 90 Idem. Ibidem. p. 810 33 seria o caso dessa primeira parte do livro de Daniel. J.J. Collins afirma o seguinte sobre isso: Tomado como um todo, Daniel é um apocalipse, pela definição dada na discussão desse gênero acima. Mais especificamente, ele pertence ao sub-gênero apocalipse “histórico”, o qual não implica uma viagem a outro mundo, mas é caracterizado pela profecia ex eventu da história e pela escatologia que é cósmica no intuito e possui um foco político.91 Levando-se em conta que no gênero apocalíptico existem subgêneros, seria natural a parte histórica contida no livro de Daniel. Dentro do livro de Daniel existem traços que são peculiares aos do gênero apocalíptico. Dentro do quadro feito por Semeia 1492, vemos esses traços em Daniel, que são: Rememoração do passado, Profecia ex evento, perseguição, outros distúrbios escatológicos, julgamento/ destruição dos perversos, julgamento/ destruição dos seres sobrenaturais, transformação cósmica e ressurreição93. Na realidade, não existem somente esses traços e elementos dentro da literatura apocalíptica, pois ela é vasta em literatura no mundo antigo, porém Daniel preenche vários elementos dentro do desse quadro elaborado por Semeia 14. A Cosmovisão também torna-se muito importante, pois como já foi dito anteriormente, os escritores apocalípticos escreviam muito dentro da esfera sobrenatural. Em suma, conhecendo o gênero, também conheceremos questões principais como autoria, datação e unidade e contexto histórico do livro e estaremos prontos para fazer uma pesquisa acadêmica séria dentro de qualquer assunto no livro de Daniel, sem o risco de ficarmos sem uma base sólida para a sua exegese e hermenêutica, para uma aplicação melhor de sua leitura. 91 apud. SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 143 92 apud. COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 26 93 Ver mais detalhes em Anexo B na p. 57 deste trabalho. 34 4. O SIGNIFICADO HISTÓRICO-TEOLÓGICO DOS PÉS DA ESTÁTUA 4.2 O SONHO DA ESTÁTUA COMPÓSITA NO LIVRO DE DANIEL Faremos um exame mais detalhado da perícope do sonho da Estátua compósita de Nabucodonosor, dando ênfase a sua exegese e historicidade finalizando com uma análise dos pés da Estátua. 94 Como já foi explicitado95, o capítulo dois do livro de Daniel está dividido em duas seções ou gêneros: do versículo 1 ao 27 é uma história de relato da corte e do 28 ao 45 seria a parte apocalíptica do capítulo96, onde trabalhar-se-á boa parte nesta pesquisa. A narrativa do sonho de Nabucodonosor dentro do livro de Daniel é vista como uma demonstração de superioridade sabedoria de Daniel e seus amigos diante dos sábios e astrólogos de Babilônia. Essa hipótese é defendida por autores como Di Lella, D. O. Soares e J.J. Collins. D. O. Soares ainda argumenta: “Nisto reside o clímax no final do capítulo (2,47-49): a ‘profissão de fé’ do Rei Nabucodonosor no Deus de Daniel”97. É importante salientar que a sabedoria de Daniel, diferente da sapiencial por exemplo é mântica ou seja, que é ligada a sonhos e mistérios.98 Algo ainda interessantíssimo na narrativa é a similaridade com o relato da história de José do Egito. J.J. Collins citando S. Nidith e R. Doran afirma o seguinte: Num primeiro nível, a história em Daniel 2 pode ser lida como uma adaptação de um conto popular tradicional, no qual uma pessoa de status inferior é convocada por um superior para resolver um problema aparentemente insolúvel, logra sucesso nesse propósito e é recompensada. Esse tipo de conto é amplamente conhecido. Procedentes importantes do Oriente Próximo incluem o conto de Ahikar e a história bíblica de José. Nesse caso, Daniel é um exilado judaico na corte babilônica, e seu desafio é contar ao rei não apenas o significado de seu sonho, mas também o próprio sonho, quando os sábios babilônicos haviam falhado.99 Essa argumentação é muito interessante, pois nos leva a pensar que talvez o autor de Daniel e o conto de José tenham bebido da mesma fonte. Também chama atenção que nesse capítulo existe discrepâncias com o contexto da história do livro em sua cronologia. Citando J.J. Collins, D. O. Soares afirma o seguinte: 94 A perícope trabalhada encontra-se no Apêndice nas p. 53-54 deste trabalho Ver detalhadamente na p. 26 deste trabalho 96 SHÖKEL, Luís Alonso. Profetas I, p. 1281 97 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 173 98 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 142 99 apud. COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 140 95 35 Já foram assinaladas anteriormente as discrepâncias em termos de cronologia presentes no livro. Assim, não é de se estranhar que Daniel 2,1 coloque o sonho da estátua compósita e sua interpretação pelo sábio visionário Daniel no “segundo ano do reinado” de Nabucodonosor ao passo que o primeiro capítulo do livro estabelece o prazo de três anos no preparo de Daniel e dos demais jovens (Daniel 1,5), prazo estabelecido pelo próprio rei, sendo Daniel introduzido na presença dele somente ao final desses três anos (Daniel 1,18). A data colocada no início do capítulo 2 serve para colocar o incidente do sonho próximo ao início da carreira de Daniel, revelando assim como ele tomou proeminência, bem como também seus companheiros (Daniel 2,49).100 Para os teólogos que tem uma abordagem mais fundamentalista, é um sério problema a questão cronológica no livro de Daniel. No âmbito do método históricocrítico, a cronologia do livro ajuda muito na interpretação de seu conteúdo, haja visto o capítulo dois é um exemplo disso como foi explicitado acima. É mais uma forma de mostrar a superioridade de Daniel ante os sábios da Babilônia, lembrando que ele tinha pouco tempo entre os demais sábios. Daniel ainda é visto como um modelo a ser seguido da então diáspora babilônica. Assim, os que estavam vivendo na diáspora helenística ao ler Daniel tinham uma espécie de conforto ante os males na época dos Macabeus e serviria ainda como um pano de fundo para a parte considerada apocalíptica do livro.101 Os sonhos na antiguidade tinham um papel muito importante e não é diferente no livro de Daniel, pois através deles os deuses comunicavam-se com a humanidade, não só no meio gentílico mas também na Bíblia Hebraica102. Daniel não apenas interpreta o sonho, como também o revela para o Nabucodonosor, o que seria uma forma de validar a interpretação dada ao sonho. Hartman e Di Lella à respeito disso afirma: Os homens sábios não devem somente interpretar seu sonho, eles devem dizer-lhe o próprio sonho! Nabucodonosor não tinha se esquecido do sonho [...] usava na verdade este recurso para ver quão exatas seriam as interpretações dos “adivinhos”.103 A parte apocalíptica do texto fala sobre a estátua compósita de Nabucodonosor. São quatro reinos de metais sendo o último misturado com ferro e barro onde iremos 100 apud. SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 173 101 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 141 102 Idem. Ibidem. p.141 103 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 815 36 nos atentar. O texto em sua forma final como é conhecido ficou pronto nos dias de Antíoco Epífanes,104 por isso iremos examinar sua unidade literária. 4.3 A ANÁLISE LITERÁRIA Na análise literária será observada algumas questões da perícope de Daniel 2 para melhor compreensão dentro da exegese. 4.3.1 A UNIDADE LITERÁRIA DO TEXTO É importante ressaltar que a perícope não foi escrita somente em um idioma mas em dois: o hebraico e o aramaico105, o que também é muito importante na análise. Estudiosos como J. J. Collins, D. O. Soares, Hartman e Di Lella chegam a conclusão de que na perícope existem muitas glosas, ou seja, ela não tem uma redação de um único autor, como já foi explicitado acima. Hartman e Di Lella afirmam sobre o início da narrativa: “uma glosa que diz ao leitor que o que segue daqui até 7,28 está em aramaico e não hebraico”,106 o que mostra a importância da mudança de língua no meio na narrativa. D. O. Soares fornece uma outra explicação relevante sobre acréscimos na perícope: A fórmula introdutória em 41a ‫[ התָ יְ ַ֜זח־יד‬vedy chazyeta] (“o que viste”) se repete em 43a e 45a, além de aparecer de forma similar em 41d. Em 41a, a fórmula é usada para apontar uma característica em 41c já bastante enfatizada no verso 40. Em 43a, ela introduz uma nova explicação para a mistura (43a-d), e, em 45a, parte-se com a fórmula do relato original para a informação adicional de que a pedra foi cortada ‫[ ֩א ָרּוּטמ‬mitura] (“da montanha”), tendo em vista que, provavelmente, essa informação não fazia parte do relato original em 34b.107 J.J. Collins ainda afirma que “um glosador pode ter copiado a fórmula para introduzir suas adições”.108 Isso mostra de forma bem clara como foi explicitada acima que o texto está cheio de acréscimos e glosas, ficando evidente a unidade textual da perícope, porém a pluralidade redacional da narrativa.109 104 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 815 Ver detalhadamente na p. 25 deste trabalho. 106 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 815 107 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 152 108 apud. SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 153 109 Idem. Ibidem. p. 152 105 37 4.3.2 A ESTRUTURA DO TEXTO Relato da corte de Nabucodonosor (v. 1-19); hino de Daniel (v. 20-23);110 o sonho de Nabucodonosor (v.24-35);111 interpretação do sonho (v. 37-45);112 exaltação de Nabucodonosor a Iahweh (v. 46-49).113 4.3.3 VOCABULÁRIO Sonho (chalom): Segundo VanGeremen é: Textos individuais egípcios (Tutmés IV; Memepta), mesopotâmicos (Gilgamés, Nabônido), hititas (Quessi; Hatusilis), ugaríticos (Danel; Querete); gregos (Homero) e bíblicos (Abimeleque de Gerar, Nabucodonosor) testemunham a importância dos sonhos para os nãoisraelitas. Era comum que a pessoa que sonhava cresse que seu sonho era a revelação de um espírito divino ou maligno. Enquanto alguns sonhos continham mensagens claras, outros continham imagens bizarras e simbólicas que precisavam ser interpretadas, geralmente por um intérprete de sonhos profissional. Livros de sonhos eram copiados para ajudar os intérpretes a explicarem o significado das imagens ou ações contidas nos sonhos. Algumas vezes, os indivíduos tentavam ter sonhos (por incubação, ou por dormir no templo), mas outros sonhos eram fortuitos. O vb. heb. hlm ocorre 27 vezes, e o subs. halôm é usado 65x no AT. A porção aram. de Daniel usa o subs. hêlem 22 vezes. Esses sonhos podem ser divididos em três grupos: a. sonhos naturais, que refletiam situações de alegria ou de dificuldade da vida, e eram parte comum do sono noturno (SI 126.1; Is 29.7-8; Ec 5.7[6]); b. sonhos inverídicos ou imaginários de pensamentos demoníacos de um falso profeta ou sonhadores vãos (Jr 23.25, 32; 27.9-10; 29.8; Zc 10.2); c. e sonhos reveladores da parte de Deus, nos quais revela sua vontade ou algum acontecimento futuro (Gn 20.3; 28.12; Nm 12.6; lRs 3.5; Dn 2.28). Embora o relato de alguns sonhos contenha somente uma mensagem oral e não haja indicação de que a pessoa que sonhou tenha visto qualquer objeto ou pessoa (Gn 20.3,6; 31.24), isso pode ser devido ao fato do autor bíblico ter preferido omitir detalhes desnecessários, relatando somente a parte mais importante do sonho. A maioria das descrições de sonhos inclui objetos ou eventos literais (Gn 31.10) ou altamente simbólicos (Gn 37.5-7,9-11; 40.9-19; 41.1 -7) (Literatura Apocalíptica). Quando o significado do simbolismo não era claro, uma explicação divina podia ser dada por uma pessoa especialmente dotada (José; Daniel), que tinha a habilidade de interpretar sonhos (Gn 40.8; Dn 2.28). Em alguns casos a pessoa que tinha o sonho revelador aparecia no tal sonho (Gn 41.17) ou conversava com Deus no meio do sonho (1 Rs 3.5-15). Deus, o anjo de Deus ou alguém santo podia falar num sonho. 110 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 815 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 170 112 Idem. Ibidem. p. 170 113 Idem. Ibidem. p. 173 111 38 Sonhos reveladores e visões não eram estritamente distinguidos (Nm 12.6; Jó 20.8; 33.15; Dn 7.1-2), mas pode ser significativo que as referências a sonhos estejam concentradas em Gênesis e em Daniel, quando os israelitas estavam vivendo entre gentios que criam que os sonhos eram uma maneira legítima de se receber mensagens divinas (Apesar de serem relativamente poucos os que tinham o privilégio de receber mensagens divinas por meio de um sonho no AT, no reino futuro Deus irá derramar abundantemente do seu Espírito sobre todo o povo (alguns demonstrarão isso por sonhos ou visões: J12.28; cf. At 2.17-21).114 Estátua (selem): Strong afirma o seguinte sobre esta palavra: Uma figura idólatra – forma de imagem. Substantivo aramaico masculino que significa estátua, imagem [...] Ela foi usada para descrever a estátua no sonho de Nabucodonosor (Dn 2,31,32,34,35); a imagem que Nabucodonosor construiu (Dn 3. 1-3, 5,7); e a distorção do rosto irado de Nabucodonosor ao ouvir a resposta de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego (Dn 3.19).115 Mistura (raah): De acordo com Strong: Verbo aramaico que significa misturar, combinar-se, juntar-se. Daniel usou esta palavra para descrever os pés da imagem que Nabucodonosor viu em seu sonho (Dn 2, 41,43). Eles eram de uma mistura esquisita de barro e ferro. Assim a palavra implica um amalgamento de dois materiais não complementares, que, na melhor da hipóteses, é instável.116 Interpretação de sonho (peshar) VanGeremen comenta o grupo de palavras da qual pertence esse vocábulo: Esse grupo de palavras é usado principalmente em relação com a interpretação de sonhos, e em duas passagens em particular: Gênesis 40-41 e Daniel 2-7. A maioria dos que tiveram sonhos é de nãoisraelitas (o copeiro-chefe e o padeiro-chefe de faraó; faraó; Nabucodonosor), mas, em cada caso, quem os interpreta é israelita (José; Daniel). O mesmo grupo de palavras é usado em Daniel 5, em que Daniel interpreta a escritura na parede da visão de Belsazar, e em Daniel 7 o próprio Daniel tem uma visão em um sonho, ao qual se segue a interpretação (7.16). Rabinowitz (219-26) observa que psr / 114 VANGEREMEN, Willem A [org]. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 150-151 v. 2 115 STRONG, James. Dicionário Hebraico do Antigo Testamento de James Strong Anotado pelo AMG in: Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego. 2º ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2011. p. 1888 116 Idem. Ibidem. p.1852 39 ptr e palavras correlatas não denotam a mera compreensão intelectual de um problema, antes denotam a percepção de uma realidade futura antevista em sonhos ou visões [...] Os métodos de discernimento da vontade divina dos nãoisraelitas são incisivamente apresentados como ineficazes. Tanto em Gênesis como em Daniel os magos e os astrólogos não israelitas não são capazes de interpretar o sonho (Gn 41.8, 15; Dn 2.10-11; 4.6-7; 5.7-9; cf. Ex 7—8, em que os magos do Egito, igualmente, não conseguem se equiparar aos milagres realizados por Moisés e Arão). Esse ponto não está indevidamente destacado em Gênesis, mas foi desenvolvido numa sátira ampliada em Daniel 2 (ver Goldingay, 55). Como reação às repetidas demandas de Nabucodonosor, os magos babilónicos entram em pânico (vv. 10-11) a ponto de afirmarem que as habilidades deles não passavam de sabedoria humana (v. 11). Em contraste, Daniel calmamente pede um prazo para interpretar o sonho (vv. 14-16) e no dia seguinte ele relata para Nabucodonosor o sonho e a interpretação deste (vv. 29-45). Consequentemente, os magos babilónicos devem a vida a Daniel (vv. 16, 24), que em seguida foi feito chefe deles (v. 48). Isso é uma nítida polêmica contra as práticas e a sabedoria religiosas não israelitas. Por implicação, o Deus dos israelitas é o único Deus verdadeiro (explicitamente conforme Dn 2.46- 47; 6.26-27). De fato, um dos aspectos mais extraordinários da raiz “ins, é o uso polêmico ao qual o tema teológico da interpretação é elevado [...].117 Ferro (parzel) De acordo VanGeremen: O nom. é comum no OMA. O acad. parzillu é encontrado em documentos antigos, muitos deles do tempo de Hamurábi (século XVIII a. C.). O ugar. brdl é encontrado em uma transferência de bens relacionados item por item, possivelmente para tributo; a correspondência fonética incomum de b para p e d para z toma provável que a palavra não seja originalmente sem. (UT, 511); pode ser um derivado caucasiano (HALAT148). O nom. é encontrado em fen. e púnico (DISO. 43). Em Jeremias 17.1, o profeta descreve o testamento de Judá como uma tábula de pedra sobre a qual os pecados dessa terra são inscritos com uma ponta de ferro; o tendão de ferro de Jacó é um símbolo de obstinação (ls 48.4). Em Jó, as “barras de ferro” do hipopótamo retratam a força física dos ossos dele (Jó 40.18). Os vários aspectos do ferro em termos de processamento e função possibilitam uma rica variedade de aplicações teológicas. O domínio de Deus como uma vara de ferro esmagará os chifres das nações como um pote de barro; por outro lado, o julgamento de servidão a outra nação executado por Deus, é um jugo de ferro. O exílio pode ser descrito como prisão com grilhões de ferro, uma situação que é remediada pela purificação do povo efetuada por Deus na fornalha de fundição do sofrimento. Uma 117 VANGEREMEN, Willem A [org]. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 120-121 v. 3 40 variação dessa imagem é transformar a nação em um metal puro e precioso purgando-a da escória de ferro e estanho.118 Barro (hasap) De acordo com Harris, Júnior e Waltke essa palavra aparece apenas em Daniel: O vocábulo não é usado em hebraico. Seu emprego no aramaico bíblico se restringe aos pés e artelhos da imagem de Daniel 2. A única pergunta é: o barro era mola ou já era cozido, como cerâmica (2, 41, NVI)? Uma vez que o quadro é de despedaçar coisas quebráveis, provavelmente a referência seja a barro cozido119 4.4 CRÍTICA TEXTUAL120 Uma questão bem interessante é sobre a palavra barro (hasap) no aramaico que está estritamente ligada aos pés da Estátua de Nabucodonosor. Existindo a dúvida se era barro cozido ou não121. Montgomery sugere o termo “argila plástica” para a tradução por ser acompanhada da palavra dyfechar “de oleiro”122. D. O. Soares optou por lodo123. Alguns Manuscritos optaram por retirar a palavra, porém isso não interfere muito em sua fidedignidade. D. O. Soares comenta sobre isso: Alguns eruditos preferem, neste mesmo trecho, deletar ‫[ אפ ְָסח‬chasepa] (“a argila”) de seus textos críticos (B. Kennicott, G. B. de Rossi e C. D. Ginsburg), pois esse termo está ausente em manuscritos medievais. Entretanto, a retirada do termo carece de maior argumentação, pois ele está representado, como vimos, na LXX e na Vulgata, testemunhos de grande peso. Essa postura reflete uma tendência comum entre exegetas do século passado, especialmente na primeira metade dele: alterar, com liberdade, o TM; atualmente essa postura é rejeitada, sendo as conjecturas pouco apreciadas pela crítica moderna.124 118 VANGEREMEN, Willem A [org]. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 118-119 v. 1 119 HARRIS, R. Laird; JR, Gleason L. Archer; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 1682 120 O Pesquisador optou por analisar na crítica textual somente a palavra barro, pois está estritamente ligada a pesquisa da junção com o ferro. 121 HARRIS, R. Laird; JR, Gleason L. Archer; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 1682 122 apud. SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 164 123 Idem. Ibidem. p. 164 124 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 161-162 41 Portanto, a palavra que pode ser traduzida por “barro” “argila”, “barro cozido” e “lodo” é totalmente importante para entender o contexto e a junção dos pés, para a crítica textual, visto que os críticos modernos não apreciam a retirada desta palavra, pois se encontra na Septuaginta e na Vulgata Latina. 4.5 O SONHO E INTERPRETAÇÃO DOS QUATRO REINOS É importante ressaltar que a comparação de reinos com metais não é exclusiva no livro de Daniel. Na antiguidade existiam várias comparações similares a que foi feita em Daniel 2. Uma das mais evidentes é o mito das cinco raças de Hesíodo, da qual ele descreve cinco raças da humanidade à saber: ouro, prata, bronze e ferro. Ambos concordam com o declínio da humanidade, e que talvez no final venha algo melhor, no caso de Daniel um Reino eterno125. D. O. Soares comenta acerca da fonte adquirida pelos dois autores: A aproximação entre eles se dá, primeiramente, em termos das fontes de que se serviram. Muito anteriores a Hesíodo, elas brotaram na Antiga Mesopotâmia, berço da civilização humana. Os motivos e as características literárias, como vimos, estão presentes nesses paralelos orientais mais antigos.126 Outro exemplo de comparação entre metais e Reinos é o que J.J. Collins menciona, dessa vez no Zoroastrismo que também utiliza-se do mesmo método para referir-se as etapas da humanidade: Uma instância intrigante do esquema de quatro reinos é fornecida pelo Zand-i Vohuman Yasn ou Bahman Yahst persa, que combina os quatro reinos em um sequência de metais de maneira similar a Daniel. O Capítulo de abertura do Zand descreve um sonho no qual Ahuda Mazdã mostrou a Zaratustra uma árvore com quatro galhos: um de ouro, um de prata, um de aço e um de ferro misturado. Explicam-se esses galhos como quatro períodos: o primeiro é a época de Zaratustra do rei Hystaspes, o segundo e o terceiro são os reinos dos reis sassânidas posteriores, e o quarto é a soberania dos “divs”, com cabelos desgranhados, quando o décimo século de Zaratustra estará no final.127 125 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 143 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 185 127 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 145 126 42 Podemos então concluir que a configuração do esquema utilizado no livro de Daniel não é algo inédito, mas que já fora utilizado antes em outras culturas e ocasiões, diante disso D. O. Soares afirma: Fica claro que a sequência não surgiu em solo judaico; o redator de Daniel a adaptou para seu propósito. O oráculo original deve ter sido escrito sob o quarto reino, enxergando este reino como o ponto mais baixo numa linha vertical cujo oposto é a Era de Ouro, o período ideal do primeiro grande reino.128 Uma outra questão seria que devido aos acréscimos no capítulo 2 a primeira composição do texto fosse diferente, o que também iria diferir do sonho original. Uma das propostas, é que no primeiro sonho a estátua simbolizaria Nabucodonosor e sua dinastia, que seriam Amel-Marduk, Neriglissar e Nabonidus. A corregência de Belsazar e Nabonidus seriam o ferro e barro misturados.129 Outra hipótese muito interessante apontada por Hartman e Di Lella mostra que o conto foi mudado por causa de uma tradição judaica popular que prevaleceu no livro de Daniel: As inscrições do antigo império persa falam de três impérios sucessivos: o assírio, o medo e o persa. Após a época de Alexandre o Grande, os historiadores gregos adicionaram um quarto império a esta tradicional série - o império grego. Os judeus da idade helenista, tomando todas as dinastias assírio-babilônicas como uma unidade, substituíram a Assíria (com a qual estavam mais familiarizados) pela Babilônia em seu cálculo dos quatro impérios do mundo. Além disso, uma vez que Ciro, o conquistador da Babilônia, e seus sucessores se chamaram "os reis dos medos e dos persas", era natural para os judeus colocar cronologicamente os medos entre os babilônios e os persas. Embora esta situação resultasse no equívoco histórico de ter a Babilônia sido capturada pelo medos (ver 6,1), visto que foi capturada realmente pelos persas, que tinham conquistado previamente os medos, nosso autor seguiu esta ideia judaica popular da história do mundo.130 J.J. Collins também aponta que a figura de Nabucodonosor não era tão querida pela cultura judaica, o que mostra que ele ser comparado com a cabeça de ouro da estátua poderia ser um sinal de alguma fonte babilônica no período helenístico.131 Com a narrativa em sua formal final a interpretação seria outra totalmente diferente. Para os 128 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 178 129 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 146 130 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 816 131 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 147 43 teólogos de cunho tradicional e fundamentalistas, a narrativa se basearia no seguinte: a cabeça de ouro seria a Babilônia, o peitoral e braços de prata seria a Medo-pérsia, o ventre de bronze a Grécia e os pernas e pés o Império Romano. Lembrando que os pés de ferro e barro apontariam para um Reino futuro da qual reinaria o Anticristo.132 Segundo J. W. Swain é uma forte contradição pois antes mesmo do Império Romano existir diante do que já foi exposto, a ideia de quatro reinos mundiais já existia133. Hartman e Di Lella explicam a origem dessa interpretação e sua implicação atualmente: Os quatro reinos de Daniel foram compreendidos, primeiramente, como sendo babilônico, o Medo-Persa, o Greco-Selêucida e o Império Romano. Embora esta teoria, defendida por Jerônimo, fosse considerada como a interpretação católica "tradicional" (em relação à tentativa de explicar as "setenta semanas dos anos" em 9,24-27 culminando na morte de Jesus Cristo), encontra agora poucos exegetas católicos modernos para apoiá-la.134 Como já foi explicitado já neste trabalho, que os pesquisadores que sustentam a opinião tradicional, normalmente enxergam o livro de Daniel como profético e não como apocalíptico como já foi explicitado, o que dificulta muito sua hermenêutica e análise exegética. Com o advento da modernidade, mudou-se a interpretação da perícope, buscando mais a historicidade do relato, tendo uma visão do livro de Daniel dentro do contexto da época em que foi escrito, ou seja no período helenístico. Qual seria então a interpretação da estátua sob essa ótica? O primeiro reino como diz a própria narrativa, é a Babilônia: “és tu que és a cabeça de ouro.”135 (Dn 2.38). A Média teria sido a prata, o segundo metal, mesmo ela tendo sido conquistada pela Pérsia antes da Babilônia como já foi exposto. J.J. Collins afirma que: “A inclusão da Média poderia ser explicada somente por referência ao esquema”,136 deixando claro que Daniel 2 não é uma suma histórica, mas um relato que tinha um público que devia ser atendido. O terceiro metal é a Pérsia: “e depois ainda um terceiro reino, de bronze, que dominará a terra inteira” (Dn 2,39b)137 Hartman e Di Lella comentam que: “Na época de seu 132 SILVA, Antônio Gilberto da. Daniel e Apocalipse: como entender o plano de Deus para os últimos dias, p. 19-20 133 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 185 134 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 815 135 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. 136 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p. 179 137 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. 44 poder, o império persa era quem dominou quase de todo o mundo civilizado”138, mostrando o poder influência do Império Persa. As pernas de “ferro que reduz tudo a pó e tudo esmaga” (Dn 2,40b) é o Império Macedônico, representado por Alexandre Magno e a pedra que simboliza o Reino de Deus ou seja uma esperança judaicomessiânica.139 4.6 OS PÉS DA ESTÁTUA A princípio o barro nos pés da estátua mostram a sua fragilidade diante da pedra que a pulverizou. O escritor do livro de Daniel afirma que seria um reino unidos através de casamentos porém não se uniriam pois ferro e barro não se misturam (Dn, 43). Mas quais reinos os representam? Como já foi explicado, após a morte de Alexandre os Ptolomeus e os Selêucidas invadiram a Palestina140. Lawrence dá uma explicação mais detalhada sobre isso: Depois da morte de Alexandre, o Grande, o Egito passou a ser controlado por Ptolomeu I (323-285 a.C.), chamado de “Lagi” (lebre), talvez devido as orelhas grandes, e “Soter” (salvador). Ele escolheu Alexandria, a cidade que Alexandre havia fundado na costa do Mediterrâneo, como sua capital. Todos os reis subsequentes do Egito, até a conquista romana em 30 a.C., se chamaram Ptolomeu. Na Síria, o novo governante Seleuco I Nicator (311-200), que estabeleceu uma linhagem de reis na Síria, os quais receberam o nome de selêucidas.141 Sobre a divisão do Império após a morte de Alexandre, Perego informa o seguinte: O império é divido em quatro partes: a Macedônia, a Grécia e a Trácia constituem a primeira; o Egito a segunda, confinado a Tolomeu (dinastia dos Lágidas); a Ásia Menor a terceira; a Babilônia a quarta, confinada a Seleuco I (dinastia dos Selêucidas). A Síria e a Palestina são disputadas entre os dois generais do Egito e Babilônia [...].142 138 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 816 Idem. Ibidem, p. 817 140 Ver nas p. 30-31 deste trabalho. 141 LAWRENCE, Paul. Atlas Histórico e Geográfico da Bíblia. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. p. 120 142 PEREGO, Giocomo. Atlas Bíblico Interdisciplinar: escritura, história, geografia, arqueologia, teologia: análise comparativa. Aparecida: Editora Santuário; São Paulo: Paulus, 2001. p. 62 139 45 Entre 261 e 285 a.C. Ptolomeu II do Egito e Antíoco II da Síria resolveram fazer uma aliança. Antíoco II casou-se com a filha de Ptolomeu II, Berenice, porém Antíoco já era casado com Laodice, que mandou matar Antíoco e Berenice. Essa morte foi vingada por Ptolomeu III, o que gerou mais conflitos entre as duas nações. Em 194 a. C. houve mais uma tentativa de união que fracassou. Ptolomeu V casou-se com Cleópatra, filha de Ptolomeu III. Porém em Antíoco III foi derrotado em 190 a.C. na batalha de Magnésia e morreu em 187 a.C. tentando saquear o Templo de Elymais no Irã.143 Isso mostra de forma muito clara, que a continuação do Império de Alexandre foi totalmente dividida em termos políticos em especial na Palestina, lembrando que ele é representado pelas pernas de ferro da Estátua de Nabucodonosor. Os especialistas chegam a conclusão que os pés de ferro e barro representam a dinastia dos Ptolomeus e dos Selêucidas. J.J. Collins afirma que: A interpretação de Daniel 2 requer claramente uma data no período selêucida, uma vez que se refere aos casamentos malsucedidos entre as casas selêucida e ptolomaica [...]. De qualquer forma, o uso do esquema de quatro reinos aponta para uma data após a conquista de Alexandre.144 Se levarmos em conta as considerações feitas por J.J. Collins, uma chave muito importante de Daniel 2 é justamente a questão das alianças entre as duas dinastias. D. O. Soares afirma o seguinte: O quarto reino possui indicações claras de que se trata de Alexandre e seus sucessores (o ferro e a argila), época do redator judeu: chega-se, então, ao nadir do esquema, o ponto mais baixo e terrível (a época dos Ptolomeus e Selêucidas), o contraponto ao primeiro reinado magnífico de Nabucodonosor.145 Hartman e Di Lella também asseveram e ratificam o posicionamento dos casamentos que culminaram em guerra pelas duas nações: Não mencionado no sonho e consequentemente talvez na inserção do autor na história mais antiga, um reino dividido: o império grego depois da morte de Alexandre foi dividido entre seus generais, particularmente (tanto quanto os judeus na Palestina) no reino dos Ptolomeus do Egito e no reino dos Seleucidas da Síria [...]. Referência 143 LAWRENCE, Paul. Atlas Histórico e Geográfico da Bíblia, p. 120-121 COLLINS, John J. A imaginação apocalíptica, p. 149 145 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p.179 144 46 é provavelmente à união de Antíoco II com Bernice, filha de Ptolemeu II Fila- delfo, em 250 a. C, que terminou não na paz mas na guerra entre os dois reinos.146 Podemos dizer em cima dessas afirmações, que o ferro representava a dinastia Selêucida, uma vez que dela veio Antíoco IV Epífanes que fez a tentativa de helenização judaica e o barro os Ptolomeus, embora aparentemente fosse o Reino de Alexandre, encontrava-se totalmente dividido. Os teólogos de cunho mais fundamentalista ainda discordam mesmo diante das comprovações históricas do relato de Daniel 2, porém haja vista que o pesquisador escolheu analisar a perícope não só do ponto de vista teológico mas também em reminiscentes históricos assim como teólogos mais recentes que mostram-se dar mais importância acerca dos dados históricos narrados no livro apocalíptico de Daniel. 146 BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, p. 816 47 5. CONCLUSÃO Esta monografia, que teve por objetivo analisar a perícope da Estátua de compósita de Nabucodonosor, em especial a junção de ferro e barro de maneira histórica e apocalítpca, na parte 2, “A Literatura Apocalíptica como Gênero Literário e suas Raízes”, apresentou de brevemente uma pesquisa para entendermos melhor do que se trata a essa literatura. Para essa a pesquisa buscou-se conceituar o termo “apocalíptico” usando as definições de especialistas. Usando a tríplice divisão de Paul Hanson, conceituamos a diferenças entre gênero apocalipse, escatologia apocalíptica e apocalipsismo147, colocando os termos em seu devido lugar para a melhor compreensão da pesquisa. Foi abordado igualmente as suas raízes respondendo algumas perguntas sobre as origens da Literatura Apocalíptica, não só dentro mas fora do contexto judaico. Dos temas abordados, constatou-se que que para a pesquisa não só dentro do livro de Daniel, mas de qualquer livro desta Literatura é preciso sua compreensão mínima, e sem ela, pode-se chegar a conclusões muito equivocadas. Na parte 3, “O Livro de Daniel como Literatura Apocalíptica”, apresentou-se questões ligadas a introdução bíblica do livro de Daniel, a começar sobre o personagem de Daniel dentro do livro a luz de sua historicidade, teologia e da Bíblia. Abordou-se também as questões de autoria e datação do livro, mostrando que uma vez que ele pertence a essa classificação literária ele pertencia a uma outra época, diferente da tradicionalmente atribuída. O Sitz in Lebem também foi explanado neste capítulo, vendo de uma forma mais detalhada o contexto histórico em que o livro de Daniel foi escrito e a importância de personagens e situações históricas dentro do livro como por exemplo, a pessoa de Antíoco IV Epífanes e a guerra dos Macabeus. O Gênero Literário do livro mais uma vez foi mencionado, comparando ao gênero profético que difere de forma evidente no livro de Daniel que não pertence a essa classificação e ainda com questionamentos sobre subgêneros dentro do livro. Dos temas abordados, constatou-se que a pesquisa minuciosa sobre o livro de Daniel é totalmente necessária para um estudo sério do livro em especial para uma pesquisa acadêmica. Na parte 4, “O significado histórico-teológico dos pés da estátua”, apresentou-se primeiramente o que representava o sonho da estátua dentro do livro de Daniel, mostrando qual a sua importância e o porquê da perícope encontra-se no livro. Após 147 apud. SOARES, Dionísio Oliveira. A Literatura Apocalíptica: o gênero como expressão, p. 103. 48 isso, foi feita uma análise literária da perícope seguindo os padrões da exegese, especificamente do Método Histórico-Crítico, seguindo uma linha diacrônica. Nesta análise, discorreu-se sobre unidade literária do texto, observando que a perícope é dividida em dois idiomas: hebraico e o aramaico e que além disso e existem dois tipos de gêneros dentro da do capítulo 2 de Daniel, o conto da corte e a parte apocalíptica. Ainda dentro desta análise, mostrou-se a estrutura do texto de Daniel e seus palavraschave dentro da perícope selecionada. Depois da análise, a crítica textual também foi considerada para o estudo da perícope com algumas questões que trazem à tona o valor de um estudo acadêmico sobre ela. O sonho e a interpretação foram abordados de forma teológica e histórica para enfatizar a visão apocalíptica do livro de Daniel e suas questões históricas. O pés da estátua, assunto mais importante do trabalho, foi abordado de forma minuciosa, mostrando uma visão acadêmica do assunto tratado com comprovações dentro da historicidade do relato daníelico. Dos temas abordados, constatou-se que a visão da estátua da forma tradicional é muito diferente da realidade que está inserida no livro de Daniel e que os pés da estátua representam duas dinastias do da divisão do Império Grego à saber: os Selêucidas e os Ptolomeus. Embora a aplicação hermenêutica esteja no apêndice, ela foi importante para o desenvolvimento e as conclusões da pesquisa, por isso, faremos uma pequena consideração sobre esse texto. Na aplicação falou-se sobre a unidade e fidelidade ao Reino de Deus, mostrando que Deus não pode agir em meio a divisão, como foi no caso dos reinos representados pelos pés da Estátua e nem na infidelidade, como as nações gentílicas no livro de Daniel. O Reino de Deus presente não se dá em meio as circunstâncias de infidelidade, e o texto nos chama para sermos fieis a Deus e unidos pelo Reino. Concluindo, esta monografia contribuiu para a interpretação de forma acadêmica e minuciosa da perícope de Daniel 2. 31-45, mostrando uma maneira histórica de interpretação do livro de Daniel juntamente ao olhar teológico. Também para a perspectiva a apocalíptica do livro de Daniel muito desconhecida no meio eclesiástico, e pouco trabalhada no meio acadêmico brasileiro, mas que é de suma importante para a sua exegese e bastante significativa para sua hermenêutica aplicativa para o contexto atual. Apesar de todas as contribuições apresentadas, esta temática ainda reserva investigações posteriores a respeito dos dedos da estátua por exemplo e da interpretação 49 de dos outros elementos da estátua os metais e a pedra e a similaridade do relato de Daniel 2 com o relato de Gênesis 41, onde José interpreta o sonho de Faraó, além disso à similaridade da narrativa dos dois personagens, ambos sendo membros de cortes. É um tema que vale muito à pena se estudado com bastante dedicação aos especialistas da área teológica acadêmica e especialmente para os estudantes da área de Teologia Bíblica. 50 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros BALDWIN, Joyce G. Daniel: Introdução e Comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1983. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Academia Cristã; Paulus, 2007 COLLINS, John J. A Imaginação Apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010. HARRIS, R. Laird; JR, Gleason L. Archer; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. LAWRENCE, Paul. Atlas Histórico e Geográfico da Bíblia. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. LUND E.; NELSON, P.C. Hermenêutica. Editora Vida: São Paulo, 1968. PEREGO, Giocomo. Atlas Bíblico Interdisciplinar: escritura, história, geografia, arqueologia, teologia: análise comparativa. Aparecida: Editora Santuário; São Paulo: Paulus, 2001. RÖMER, Thomas et al. (Org.). Antigo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004. RUSSELL, D.S. Desvelamento Divino. São Paulo: Paulus, 1997. SHÖKEL, Luís Alonso. Profetas I (2º ed.). São Paulo: Paulus, 2004. 51 SILVA, Antônio Gilberto da. Daniel e Apocalipse: como entender o plano de Deus para os últimos dias. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1984. SKA, Jean-Louis. O Antigo Testamento: explicado aos que conhecem pouco ou nada a respeito dele. São Paulo: Paulus, 2015. STRONG, James. Dicionário Hebraico do Antigo Testamento de James Strong Anotado pelo AMG in: Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego. 2º ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2011. VANGEREMEN, Willem A. [org]. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.v. 1, 2 e 3 Dissertações FIALHO, Renato Gimenes. Isaías 24,1-6 na perspectiva da profecia apocalipsista resultante de um complexo processo sócio-teológico em transição. 2009.171 fl. Dissertação Mestrado em Ciências da Religião. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 2009. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp091313.pdf Acesso em: 02/02/2018 SOARES, Dionísio Oliveira. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor. 2006. 201 f. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Teologia, 2006. Periódicos SOARES, Dionísio Oliveira. As influências persas no chamado judaísmo pós-exílico. Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 6ª Edição, V.5 - Nº2 – Dezembro de 2009. Disponível em: http://www.revistatheos.com.br/Artigos/Artigo_06_2_02.pdf Acesso em: 31/01/2018. 52 ________________________. A Literatura Apocalíptica: o gênero como expressão. Revista Horizonte – PUC-Minas Belo Horizonte:, v. 7, n. 13, p. 99-113, dez. 2008. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/425 Acesso em: 02/12/2017 VALDEZ, Ana. A literatura apocalíptica enquanto género literário (300 a.C. – 200 d.C.) Revista Portuguesa de Ciências das Religiões, Lisboa, ano I, 2002. Disponível em: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cienciareligioes/article/view/4677/3174. em: 29/12/2017. Acesso 53 • APENDICE • TEXTO BÍBLICO 31Tiveste, ó rei, uma visão. Era uma estátua. Enorme, extremamente brilhante, a estátua erguia-se diante de ti, de aspecto terrível. 32A cabeça da estátua era de ouro fino; de prata eram seu peito e os braços; o ventre e as coxas eram de bronze; 33as pernas eram de ferro; e os pés, parte de ferro e parte de argila. 34Estavas olhando, quando uma pedra, sem intervenção de mão alguma, destacou-se e veio bater na estátua, nos pés de ferro e de argila, e os triturou. 35Então se pulverizaram ao mesmo tempo o ferro e a argila, o bronze, a prata e o ouro, tornando-se iguais à palha miúda na eira de verão: o vento os levou sem deixarem traço algum. E a pedra que havia atingido a estátua tornou-se uma grande montanha, que ocupou a terra inteira. 36Tal foi o sonho. E agora exporemos a sua interpretação, diante do rei. 37Tu, ó rei, rei dos reis, a quem o Deus do céu concedeu o reino, o poder, a força e a honra;38em cujas mãos ele entregou, onde quer que habitem, os filhos dos homens, os animais do campo e as aves do céu, fazendo-te soberano deles todos, és tu que és a cabeça de ouro. 39Depois de ti se levantará outro reino, inferior ao teu, e depois ainda um terceiro reino, de bronze, que dominará a terra inteira. 40Haverá ainda um quarto reino, forte como o ferro, como o ferro que reduz tudo a pó e tudo esmaga; como o ferro que tritura, este reduzirá a pó e triturará todos aqueles. 41Os pés que viste, parte de argila de oleiro e parte de ferro, designam um reino que será dividido: haverá nele parte da solidez do ferro, uma vez que viste ferro misturado à argila de oleiro. 42Como os pés são parcialmente de ferro e parcialmente de argila de oleiro, assim esse reino será parcialmente forte e, também, parcialmente fraco. 43O fato de teres visto ferro misturado à argila de oleiro indica que eles se misturarão por casamentos, mas não se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro não se funde com a argila. 44No tempo desses reis o Deus do céu suscitará um reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre. 45Foi o que pudeste ver na pedra que se destacou da montanha, sem que mão alguma a tivesse tocado, e reduziu a pó o ferro, o bronze, a argila, a prata e o ouro. O grande Deus manifestou ao rei o que deve acontecer depois disso. O sonho é verdadeiramente este, e digna de fé é a sua interpretação".148 148 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. 54 • HERMENÊUTICA a) Ideia central do texto: Sem dúvidas a ideia central do texto é a superioridade de Deus diante de todos os reinos do mundo em todos os tempos.149 Nabucodonosor sente-se orgulhoso e prepotente diante de Deus, mas ele mostra através de Daniel que ele tem o domínio através da história. Mas qual seria o motivo dos reinos do mundo serem destruídos pela pedra? Porque eles encontram-se divididos, em especial os pés da estátua que mesmo tentado se unir não conseguem pois são de elementos diferentes. Os Reinos que não serviam a Iahweh, o Deus vivo e verdadeiro. Não eram fieis a Ele nem a sua lei. Por isso o livro de Daniel faz questão de enfatizar o Reino de Deus que além de destruir os reinos representados na estátua ele é universal e eterno. Isso serviu de alerta ao povo judeu da época, que sempre foi dividido em partidos religiosos e políticos. A unidade é de suma importância para a instauração do Reino de Deus, por isso o insucesso dos Ptolomeus e Selêucidas. b) Dados Teológicos: É preciso compreender que o capítulo 2 de Daniel é muito simbólico, pois isso é comum na literatura apocalíptica e para extrair seus dados teológicos é bom ter isso em mente. Lund e Nelson afirmam que: “Pode-se compreender a grande necessidade de nos familiarizarmos com as figuras e modos próprios e peculiares linguagem bíblica”.150 O maior dado teológico do texto de Daniel sem dúvida é a divisão é a representação dos Reinos do mundo na forma de uma estátua compósita. Isso serve de reflexão ao leitor, mostrando que para o Deus vivo e verdadeiro nem os metais preciosos deste mundo tem valor diante dos princípios estabelecidos por seu Reino que é eterno. O Material do Reino é diferente dos demais, que é muito bem representado pela pedra que se transforma em montanha, mostrando assim o diferencial do desse Reino. Mais um bem interessante é sobre o termo barro hasap no aramaico que encontra-se somente ali no livro de Daniel, que difere por exemplo, no barro citado em 149 SOARES, D. O. Hesíodo e Daniel: as relações entre o mito das cinco raças e o sonho de Nabucodonosor, p.180 150 LUND E.; NELSON, P.C. Hermenêutica. Editora Vida: São Paulo, 1968. p 31 55 Gênesis 2. É uma forma de entendermos melhor que a mensagem de Daniel era estritamente ligada ao contexto do sonho do Rei Nabucodonosor. Outro dado Teológico de suma importância é a confissão de Nabucodonosor após a revelação do sonho e interpretação. Isso mostra que magnitude do Reino de Deus é tão incomensurável, que os próprios líderes dos outros reinos reconhecem toda a sua grandeza e majestade, não por imposição de poder, mas através dos seus feitos miraculosos, como foi no caso do jovem Daniel. c) Aplicação Teológica: Que o exemplo exposto em Daniel também sirva para todos os cristãos da atualidade. O povos e as nações sempre foram totalmente dividas e infiéis a Deus, por isso sempre tendem a se extinguir. Como Iahweh desejava transmitir a mensagem da unidade e da fidelidade para os judeus da época, sendo perseguidos por Antíoco, assim ele deseja para todos nos dias atuais. O que levou a queda da estátua foi justamente a fragilidade de seus pés, quando a pedra os atingiu esmiuçou em pedaços a estátua. A solidificação daqueles que desejam fazer parte do Reino de Deus, ao contrários das nações vigentes nos dias de Daniel, deve ser na fidelidade a Deus e sua santa Palavra. Somente assim poderemos alcançar a plenitude do Reino. Ser fiel a Deus implica em várias questões como por exemplo o amor ao próximo, o que Nabucodonosor não teve ao mandar chacinar todos os sábios da Babilônia. Implica ainda em busca-lo a Deus, como fez Daniel ao saber que todos seriam mortos a mando do Rei. A confiança em Deus de igual forma é necessária, simbolizada na busca de Daniel, mesmo sabendo que sua vida corria risco, mostrando assim que a fidelidade a Deus deve ser integral, ou seja doando a própria vida em função do Reino e de sua mensagem. O amor ao próximo também é implícito, pois mesmo sabendo que corria risco de vida Daniel deseja falar com o rei, para evitar uma grande catástrofe. Que os cristãos consigam ser fiéis a Deus em unidade. Rebelar-se contra o irmão é rebelar-se contra Deus. Deus deseja que todos os cristãos sejamos unidos para o bem do seu Reino e principalmente para Reino de Deus seja vivido hoje entre nós, não como algo futurístico ou vindouro, mas presente desde já, através da fidelidade e da unidade. 56 • ANEXOS Anexo A: Sumário dos Governantes das dinastias que controlaram o Oriente Médio do VI ao II século a. C. FONTE: BROWN, R. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. p. 809 57 Anexo B: Tabela adaptada de Semeia 14 de elementos temporais e escatológicos. FONTE: COLLINS, John. J. A Imaginação Apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010. p. 26