Platão: o erotismo na filosofia como caminho para o divino*
Andre da Paz**
1. Introdução
No Banquete, Platão apresenta o exercício erótico-filosófico como a via de acesso
às Formas, no caso, à do Belo. Erōs é o elemento metafísico que possibilita a articulação
entre a multiplicidade acidental e aparente e a unidade necessária do Ser: intermediário
entre o divino e o mortal. Nesse diálogo, há a apresentação mais explícita das Formas em
todo o corpus platonicum, assim como uma explicação detalhada do movimento de
subida do Múltiplo ao Uno.
As Formas são realidades superiores, que “são cada uma sempre as mesmas” (ἀεὶ
αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι), “uniformes em si mesmas” (μονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ’ αὑτό) e
“igualmente não tendo, de forma alguma, a menor alteração de nenhum modo possível”
(ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαμῇ οὐδαμῶς ἀλλοίωσιν οὐδεμίαν ἐνδέχεται)
(Phd., 78d). Isso significa que elas são eternas, dado que, se não admitem mudança, não
poderiam ter passado do estado de não-ser para o de ser; imutáveis, haja vista a
impossibilidade de mudança; e, por fim, perfeitas, na medida em que possuem um modo
pleno de ser. Isso configura o estatuto divino das Formas na filosofia de Platão, face à
precariedade e efemeridade do material no qual toda a dimensão da sensibilidade e do
devir encontram-se mutualmente coexistentes.
Através da filosofia, nos Diálogos definida como a dialética, é possível a um
indivíduo partir da multiplicidade dos fenômenos e atingir a unidade das Formas. Essa
atividade, contudo, no Banquete é apresentada como correlata ao exercício erótico do
qual ela não pode prescindir, para, através de Erōs, o iniciado nesse exercício espiritual
tornar-se filósofo por meio dessa atividade dialética mediatizada e, finalmente, religarse, no final desse processo, ao divino por meio da reminiscência da Forma do Belo e, por
* Comunicação desenvolvida para apresentação oral no seminário do GT – Filosofia, Literatura e
Religião do “I Congresso Internacional de Ciências da Religião, Religião: Artes e Vozes" do Centro de
Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
**
Graduando do Curso de Filosofia no Centro de Educação, Filosofia e Teologia da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Contato: andredapaz1892@gmail.com.
extensão, da do Bem. Portanto, esse elemento metafísico de ligação do indivíduo às
Formas é o objeto de desenvolvimento deste diálogo, cujo objeto, por sua vez, é o divino.
Por meio de uma análise filosófica tanto, por um lado, da estrutura dialética do
Banquete, caracterizada pela progressão ascensional das falas dos convivas em direção
da essência de Erōs, quanto, por outro lado, da ascensão erótico-filosófica na fala de
Sócrates-Diotima, é possível esclarecer a função do exercício erótico, em conjunto com
o dialético, na ontoepistemologia platônica e a consequente articulação do filósofo à
dimensão divina.
2. O desenvolvimento dialético dos cinco primeiros discursos no Banquete
No momento do Banquete em que a fala de Sócrates-Diotima é desenvolvida,
Platão já havia trilhado um caminho pelo qual desenvolveu, na estrutura do próprio texto,
um movimento dialético similar àquele ensinado por Sócrates nos diálogos socráticos: do
Múltiplo ao Uno, do mais particular ao mais universal, da contraditoriedade à
cognoscibilidade. Esse movimento de subida ao Ser, das múltiplas aparências de amor à
essência una de Erōs, fica muito claro no desenvolvimento das falas dos convivas
presentes: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão e, finalmente, SócratesDiotima.
“Cada proposição apoia-se na série seguinte, em um esquema que não
aceita solução de continuidade. Parece ser legítimo pensar que o
Banquete é um verdadeiro banquete de narrativas míticas, históricas,
políticas, poéticas e filosóficas, que remetem a uma dimensão
ontológica anterior, o lógos universal, cabendo a cada um dos
interlocutores oferecer justa transmissão desse lógos, na medida de suas
forças. Esse diálogo configura uma história rica de incidentes, que
podem ser lidos como passos ou degraus necessários para o
conhecimento da verdade, para me valer de uma metáfora cara a Platão”
(Macedo 2001, p. 53).
Fedro faz uma apologia a um Erōs guerreiro pederástico, amor cujo enfoque
funda-se na hipótese de desenvolver-se em “uma cidade um exército de amantes e
amados” (μηχανή τις γένοιτο ὥστε πόλιν γενέσθαι ἢ στρατόπεδον ἐραστῶν τε καὶ
παιδικῶν) (Smp., 178e), de modo que “todos lutariam estimulando-se uns aos outros para
praticarem o bem, visto que o amor do amado ao amante faria com que aquele fizesse de
2
tudo para proteger este” (οὐκ ἔστιν ὅπως ἂν ἄμεινον οἰηήσειαν τὴν ἑαυτῶν ἢ ἀπεχόμενοι
πάντων τῶν αἰσχρῶν καὶ φιλοτιμούμενοι πρὸς ἀλλήλους) (Smp., 179a). Trata-se de um
amor carnal sexual. Entre amante e amado, há uma relação homoerótica na qual a virtude,
a ἀρετή, fundamenta essa relação, levando-os à coragem guerreira. O amante quer ser um
exemplo, um paradigma para o amado. Quando o amado vê a coragem do amante na
batalha, ele busca ser como tal. Trata-se, portanto, de um amor ligado fundamentalmente
por uma relação pedagógico-pederástica, na qual o amor educa o indivíduo a tornar-se
mais virtuoso. Vale notar, contudo, que a virtude em questão é a coragem guerreira. Deste
modo, o ponto forte desse amor exalta a beleza do corpo, a coragem na batalha e a valentia
guerreira.
Por outro lado, o problema no discurso do Fedro é a efemeridade do amor, uma
vez que ele é estritamente carnal, sendo assim, passageiro: mais aparentado à
multiplicidade. Apesar de distante da proposta final platônica no Banquete, o ponto
positivo da fala de Fedro a ser suprassumido na fala de Sócrates-Diotima está no fato de
erōs ser um instrumento para o desenvolvimento da virtude. Essa característica de Erōs
será sintetizada e desenvolvida dialeticamente no discurso Sócrates-Diotima: tendo em
vista outro tipo de virtude.
Pausânias, por sua vez, começa a dar os primeiros passos em direção do Uno,
afastando-se mais do Múltiplo do que Fedro. Ele desenvolve um discurso no qual “há
dois tipos de Erōs, dado que há duas Afrodites” (ἐπεὶ δὲ δὴ δύο ἐστόν, δύο ἀνάγκη καὶ
Ἔρωτε εἶναι) (Smp., 180d): um “Erōs Celeste”, que acompanha a Afrodite Celeste, e um
“Erōs Humano”, que acompanha sua correlata mundana (ἣν δὴ καὶ Οὐρανίαν
ἐπονομάζομεν· ἣν δὴ Πάνδημον καλοῦμεν) (Smp., 180e). Com isso, apesar de seu
discurso falhar em estar demasiadamente preso à beleza dos corpos, ele desenvolve
aspectos importantes a serem retrabalhados na fala de Sócrates-Diotima. Em primeiro
lugar, esse amor é o erōs que deve haver entre o mestre e o discípulo. Não é mais o amor
militar e carnal. O amor agora é mais espiritualizado e filosófico. Pausânias formula a
necessidade de uma “confluência entre essa paiderastia e uma educação filosófica para o
amado, proporcionada por seu amante, que é o mestre da relação homoerótica, para que
possa haver tanto o desenvolvimento espiritual do amado quanto o da virtude” (δεῖ δὴ τὼ
νόμω τούτω συμβαλεῖν εἰς ταὐτόν, τόν τε περὶ τὴν παιδεραστίαν καὶ τὸν περὶ τὴν
φιλοσοφίαν τε καὶ τὴν ἄλλην ἀρετήν, εἰ μέλλει συμβῆναι καλὸν γενέσθαι τὸ ἐραστῇ
παιδικὰ χαρίσασθαι) (Smp., 184 c-d). Há um ganho grande, portanto, perante o Erōs de
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Fedro, na medida em que ele é mais duradouro. A relação espiritualizada dura muito mais
do que a carnal.
“A dualidade mítica entre Erōs celestial e Erōs humano, em Pausânias,
pode ser desdobrada na relação filosófica sensível-inteligível no
diálogo entre Sócrates e Diotima, fazendo com que o Banquete se
constitua remissivamente, quer dizer, fazendo com que não haja cortes
na economia do diálogo, o que assegura, sem dúvida, uma coerência
argumentativa notável entre seus conceitos e imagens. É o diálogo
inteiro que é investido de unidade conceitual imagética” (Macedo 2001,
p. 26).
Platão enaltece um Erōs que instaura uma paideia, mudando a maneira através da
qual se dá a formação do indivíduo, visto que a sua espiritualização torna o Erōs uma
ferramenta na formação filosófica. Para Pausânias, o amante transmite ao amado as
virtudes, estas não mais se restringindo apenas ao campo de batalha e aos assuntos da
virtude guerreira paradigmática no mundo grego antigo. Apesar disso, Pausânias, por seu
turno, leva a efeito um discurso no qual o objeto de erōs, aquilo para o qual este elemento
metafísico impulsiona o indivíduo, ainda se encontra circunscrito na dimensão do
indivíduo. Continua, portanto, muito próximo do Individual e distante do Geral.
Ao desenvolver seu elogio a Erōs, Erixímaco estabelece outra subida em direção
do Uno, em direção da essência de Erōs. Se por um lado Pausânias foi capaz de dar um
salto qualitativo no que diz respeito ao amor, dado que, diferente de Fedro, foi capaz de
alcançar uma maior espiritualidade e estruturar o modelo formativo do amor pedagógico
de Platão, Erixímaco, por outro, eleva quantitativamente o domínio do alcance de Erōs
de “somente estar circunscrito na relação amante e amado” (οὐ μόνον ἐστὶν ἐπὶ ταῖς
ψυχαῖς τῶν ἀνθρώπων πρὸς τοὺς καλοὺς) para abranger uma dimensão universal e
totalizante: “Erōs diz respeito a todas as coisas” (ὡς ἔπος εἰπεῖν ἐν πᾶσι τοῖς οὖσι) (Smp.,
186a). Através da medicina, Erixímaco percebe que o amor no que é sadio proporciona a
saúde, assim como, na música, ocorre a harmonia. Amar o que não é sadio causa a doença,
ou “desarmonia”, enquanto amar o que é sadio causa a saúde, harmonia. Isso vale para
todos os elementos da natureza. Apesar de seu caráter naturalista, dado que o amor erótico
da relação paiderástica entre amante e amado torna-se somente mais um elemento de um
erotismo cósmico, Erixímaco abre espaço para os elementos universalizantes a serem
desenvolvidos posteriormente na fala de Sócrates-Diotima.
4
Na fala de Aristófanes, sua grande contribuição ao movimento dialético na
estrutura do diálogo é a busca pela apresentação da natureza de Erōs: a aspiração pelo
Todo. Se de um lado os discursos que o precederam tiveram seu enfoque na dimensão
moral e pedagógica de Erōs, Aristófanes, como defende Dion Davi Macedo (2001, p. 37),
desenvolve seu discurso instaurando uma “antropologia do Amor”, abrindo margem para
o percurso ontológico de Erōs na fala de Sócrates-Diotima.
Erōs em Aristófanes aparece como a busca pelo todo, um impulso que leva
indivíduos a desejar, através do amor, partir da multiplicidade à “unidade que caracteriza
sua verdadeira natureza” (ἡ ἀρχαία φύσις ημῶν ἦν αὔτη καὶ ἦμεν ὅλοι) (Smp., 192e). Ele
é responsável por uma religação do indivíduo à sua verdadeira natureza. Em outras
palavras, para Aristófanes a natureza de erōs é fundamentalmente “a restauração de uma
falta”, “de uma precariedade” através de uma plenitude (ἕκαστος οὖν ἡμῶν ἐστιν
ἀνθρώπου σύμβολον) (Smp., 191d).
“Assim, em Aristófanes os temas do anelo do todo e da completude e a
cura da natureza humana pelo poder restaurador do amor se articulam
e parecem indicar também um desejo metafísico pelo outro, desejo
próprio de cada ser humano atualmente dividido, sendo, “portanto, ao
desejo e procura do todo que se dá o nome de amor (ἔρος ὄνομα)”. Erōs
é a aspiração de retorno ao Todo e ao Uno, ele tende a fazer de dois um
só, devolvendo ao homem sua antiga natureza e tornando-o feliz”
(Macedo 2001, p. 34).
Todavia, essa falta ainda não satisfaz as necessidades ontoepistemológicas
platônicas, na medida em que o Erōs aristofânico diz respeito a uma dimensão particular:
é o amor tão somente pela outra metade humana, “a busca pelo outro indivíduo do qual
originalmente fomos cindidos” – um “todo individual” (ἐξ ἑνὸς δύο· ζητεῖ δὴ ἀεὶ τὸ αὑτοῦ
ἕκαστος σύμβολον) (Smp., 191d); não de uma busca pelo Todo geral, universal e divino,
pelo Uno característico da dimensão do Ser. Como demonstra Dion Davi Macedo, “em
Aristófanes, a restauração das partes ontológicas e primordialmente divididas parece
configurar somente uma antropologia; em Sócrates, ela assume uma dimensão
verdadeiramente espiritual e cósmica. Pois é da busca da totalidade que se trata” (2001,
p. 37).
Em outras palavras, na fala de Aristófanes, o exercício erótico-filosófico cessa no
momento em que o indivíduo consegue concretizar seu amor por sua outra metade. As
5
necessidades ontoepistemológicas platônicas, todavia, necessitam ir para além deste amor
ao indivíduo amado, haja vista que, como demonstra Vlastos (1973, p. 33-34) o objeto do
Erōs platônico é o Belo em si mesmo, por isso há sempre uma proeminência da Forma
em relação ao particular, do Uno em detrimento do Múltiplo, do Ser e não do indivíduo
amado. Este será o ponto através do qual a fala posterior de Sócrates-Diotima ultrapassa
dialeticamente a tese de Aristófanes.
Agatão, após essas sucessivas subidas em direção ao Uno, é o primeiro a apontar
para a essência de Erōs como o alvo das falas. Ele inicia seu discurso dizendo que os
convivas que o precederam falharam em discursar sobre as qualidades de Erōs, em vez
de efetivamente falarem sobre “o que é Erōs”, sua natureza e “as causas pelas quais ele
pode fazer o que os convivas disseram que ele faz” (εἷς δὲ πρότος ὀρθὸς παντὸς ἐπαίνου
περὶ παντός, λόγῳ διελθεῖν οἷος οἵων αἴτιος ὢν τυγχάνει περὶ οὗ ἂν ὁ λόγος ᾖ) (Smp.,
195a). A princípio, o leitor pensa que, finalmente, a fala de um conviva irá alcançar a
unidade, coroando o movimento de subida da dialética platônica em direção à essência
de Erōs. Entretanto, apesar de metodologicamente estabelecer um caminho a ser seguido,
a saber, um discurso eminentemente filosófico sobre Erōs, Agatão desenvolve um
discurso oratório e retórico, fazendo Sócrates “lembrar-se de Górgias” (με Γοργίου ὁ
λόγος ἀνεμίμνῃσκεν) (Smp., 198c), “discurso cuja beleza de palavras enfeitiça os
ouvintes, que emociona a todos” (τὸ δὲ ἐπὶ τελευτῆς τοῦ κάλλους τῶν ὀνομάτων καὶ
ῥημάτων τίς οὐκ ἂν ἐξεπλάγη ἀκούων) (Smp., 198b), deixando-os tão arrebatados que
eles não percebem a falsidade do discurso. Esse discurso prende-se às aparências e ao
corpo, dando um passo atrás em detrimento a um Erōs espiritualizado dos discursos
antecedentes.
“Ora, apesar da distinção por ele próprio formulada, o tragediógrafo
Agatão incorre no mesmo erro dos que o antecederam na ordem dos
discursos, pois define Erōs por suas qualidades, e não por sua essência
ou natureza, como propusera inicialmente. Contra seu próprio preceito,
ele desliza, quase sem o perceber talvez, da busca da essência e da
natureza de Erōs para a enumeração de suas funções, dons, méritos e
benefícios, abandonando a norma que ele mesmo havia fixado”
(Macedo 2001, p. 43).
Esse descompasso entre o que Agatão diz que irá fazer e o que efetivamente faz
será o ponto pelo qual Sócrates encadeará seu discurso, de modo a corrigir aquilo que
6
fora feito até então pelos elogios ao amor. Sócrates nega-se a elogiar o amor, a fazer como
os convivas fizeram, a saber, falar das qualidades de Erōs e desviar de sua essência, dado
que para ele “o que é importa é dizer a verdade” (ἐγὼ μὲν γὰρ ὑπ’ ἀβελτερίας ᾤμην δεῖν
τἀληθῆ λέγειν) (Smp., 198d).
“Por um lado, o discurso de Agatão é o negativo do discurso de
Sócrates, mas, por outro, ele é a matéria que possibilita ao filósofo
elaborar seu ajuste de contas e, por fim, acertar o passo no elogio de
Erōs, alcançando e dizendo a verdade. Essa descrição negativa é a outra
face do elogio de Erōs, a partir da qual Sócrates fará derivar sua própria
argumentação” (Macedo 2001, 47).
Deste modo, Platão constrói um movimento dialético através de sucessivas teses
que, articuladas entre si por uma ordem de razões, constroem a estrutura do Banquete e
possibilitam-no progressivamente alcançar a essência de Erōs e introduzir o aspecto de
sua “Teoria do Amor” apresentado nesse diálogo, na fala de Sócrates-Diotima, ao
suprassumir dos discursos anteriores — os mais próximos da multiplicidade —, os
elementos necessários para alcançar a Unidade desejada e construir esse exercício como
o acesso às Formas, ao divino.
3. Sócrates e Diotima: o erōs mais próximo do divino
Depois do esforço dialético de ascender da Multiplicidade à Unidade através de
cada uma e todas as falas dos convivas, na fala de Sócrates-Diotima Platão finalmente
apresenta a posição de erōs nessa ontologia: intermediário entre as Formas, que são
unidades fixas e plenas, e a multiplicidade de fenômenos, precários e transitórios,
“intermediário entre deuses e mortais” (μεταξύ ἐστι θεοῦ τε καὶ θνητοῦ) (Smp., 202e).
Erōs é o que possibilita à alma do filósofo “sempre desejar as coisas belas” que, por
conseguinte, “também são boas”1 (ὁ ἔρως τοῦ τὸ ἀγαθὸν αὑτῷ εἶναι ἀεί) (Smp., 206a).
Aquele que está “no meio termo, não é nem sábio, nem completamente ignorante” (οὐ τι
μεταξὺ σοφίας καὶ ἀμαθίας) (Smp., 202a), é capaz de, “através de erōs, partir da
multiplicidade das coisas belas à unidade característica do Ser” (ὅταν δή τις ἀπὸ τῶνδε
διὰ τὸ ὀρθῶς παιδεραστεῖν ἐπανιὼν ἐκεῖνο τὸ καλὸν ἄρχηται καθορᾶν) (Smp., 211b).
Erōs encontra-se “entre ambos”, “permitindo que haja a ligação com o Todo” (ἐν μέσῳ
1
Cf. Lísis, 212c-220a.
7
δὲ ὂν ἀμφοτέρων συμπληροῖ, ὥστε τὸ πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συνδεδέσθαι) (Smp., 202e), com o
divino. Como defende Giovanni Reale (2004, p. 360), “Erōs, que envolve toda a realidade
em particular e em geral e se manifesta como o laço que estreita os homens com os deuses,
o sensível com o suprassensível e o cosmo no seu conjunto, centra-se no seu ponto focal
na alma”. Trata-se de um duplo movimento, erótico-filosófico, um amor espiritualizado
e filosófico: amor à Beleza. Ele é o veículo para o Ser. Entretanto, como característica
desse método de pensamento, este Erōs é uma atividade, um processo, um trabalho, um
esforço dialético de ascensão à Unidade, tal como desenvolvido na estrutura do Banquete,
cujo início encontra-se imerso completamente na multiplicidade de fenômenos: na beleza
dos corpos.
“No Banquete, esse movimento de comunicação com o belo é
explicitado como uma atividade, exercício (ἄσκησις) erótico que parte
da multiplicidade do sensível e busca a unificação inteligível do
princípio anipotético (ἀνυπόθετον, que dispensa hipóteses) do belo e,
em última instancia, do Bem. Na economia do diálogo, podemos divisar
duas ordens desse esforço que, independentes entre si, ao fim e ao cabo
se complementam: a ascensão dos discursos sobre Erōs, na passagem
do elogio à verdade, e a ascensão erótico-filosófica, no movimento dos
belos corpos à contemplação do próprio belo” (Macedo 2001, p. 15).
Eis a construção platônica desse esforço erótico-filosófico que permite aos
indivíduos cujas almas esqueceram-se do que é verdadeiramente, do divino, pleno e
necessário, identificarem no seio da multiplicidade os elementos característicos da
unidade das Formas e, efetivamente, conhecerem, ou melhor, relembrarem o que já estava
na alma. Embora todas as almas já tenham contemplado a verdadeira realidade, “não é
fácil para todas as almas relembrarem do que viram” (ἀναμιμνῄσκεσθαι δὲ ἐκ τῶνδε
ἐκεῖνα οὐ ῥᾴδιον ἁπάσῃ, οὔτε ὅσαι βραχέως εἶδον τότε τἀκεῖ) (Phdr., 250a). De todas as
Formas que a alma conheceu, das mais elevadas “como a Justiça, a Temperança e todas
as outras, a multiplicidade de fenômenos é sempre privada de brilho” (δικαιοσύνης μὲν
οὖν καὶ σωφροσύνης καὶ ὄσα ἅλλα τίμια ψυχαῖς οὐκ ἔνεστι φέγγος οὐδὲν ἐν τοῖς τῇδε
ὁμοιώμασιν). Entretanto, “a Beleza é muito mais fácil de se reconhecer, dado que possui
um brilho peculiar, daquele cuja alma gozou da contemplação com maior estima no lugar
de onde veio” (κάλλος δὲ τότ’ ἦν ἰδεῖν λαμπρόν, ὅτε σὺν εὐδαίμονι χορῷ μακαρίαν ὄψιν
τε καὶ θέαν) (Phdr., 250b). A busca pelo Ser acaba confundindo-se com a busca pelo
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Saber, movimento necessário a todo e qualquer indivíduo, para que suas almas retornem
à sua verdadeira natureza divina. Atingir o Ser através da beleza, com efeito, é
possibilitado pelo movimento da multiplicidade à unidade.
Esse exercício de educação da alma, esse desenvolvimento de impulsos generosos
que leva o indivíduo a desejar o espiritual em detrimento do corpóreo, precisa “começar
desde a infância” (ἄρχεσθαι μὲν νέον ὄντα) (Smp., 210a). Ele começa imerso na
multiplicidade de fenômenos. Assim, com um guia seguro, que o iniciará no caminho do
amor e da filosofia, ele “amará apenas um belo corpo e, com isso, poderá gerar belos
discursos”2 (ἑνὸς αὐτὸν σώματος ἐρᾶν καὶ ἐνταῦθα γεννᾶν λόγους καλούς) (Smp., 210a).
Entretanto, esse exercício erótico não se encerra em si mesmo. Ele é correlato à reflexão
filosófica. Deste modo, o jovem iniciado começará a desenvolver abstrações de ordem
quantitativas: “a beleza deste belo corpo que ele ama é a mesma que a dos demais belos
corpos” (ἔπειτα δὲ αὐτὸν κατανοῆσαι ὅτι τὸ κάλλος τὸ ἐπὶ ὁτῳοῦν σώματι τῷ ἐπὶ ἑτέρῳ
σώματι ἀδελφόν ἐστι) (Smp., 210b). A primeira abstração do Um no Múltiplo. Neste
ponto, “ele passará a amar a beleza de todos os belos corpos”, não se restringindo na
beleza de somente aquele belo corpo inicial (τοῦτο δ’ ἐννοήσαντα καταστῆναι πάντων
τῶν καλῶν σωμάτων ἐραστήν) (Smp., 210b). Com efeito, esta abstração possibilita a ele
desprezar o amor ao corpo, na medida em que o iniciado a depreende da multiplicidade a
beleza dos corpos. A partir desse momento, através da reflexão, ele desenvolve abstrações
de ordem qualitativas: se todos os corpos são belos, por que será que ele amava, no
princípio, somente um corpo? Deve-se ao fato de “a alma ser superior ao corpo”: as ações
e o ethos do indivíduo amado eram a razão do amor (μετὰ δὲ ταῦτα τὸ ἐν ταῖς ψυχαῖς
κάλλος τιμιώτερον ἡγήσασθαι τοῦ έν τῷ σώματι) (Smp., 210b). Mas o exercício de
ascensão não cessa nessa etapa: o objeto do amor não é alma do indivíduo amado, mas
algo muito mais universal. Nesse estágio, ele será capaz de levar a efeito reflexões cujas
abstrações sejam tanto de ordem quantitativa quanto qualitativa: a beleza por detrás das
ações do amado, “a beleza por detrás dos costumes, das leis, das ciências e etc., são uma
e a mesma” (ἵνα ἀναγκασθῇ αὖ θεάσασθαι τὸ ἐν τοῖς ἐπιτηδεύμασι καὶ τοῖς νόμοις καλὸν
καὶ τοῦτ’ ἰδεῖν πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) (Smp., 210c). Mais uma abstração do Uno
2
logous [λογούς], termo que possui uma amplidão que abarca muito do que diz respeito ao
racional: discurso, razão, intelecção, racionalidade, palavra, etc.
9
no Múltiplo. Não há mais nenhum valor à beleza corpórea comparada com a espiritual.
Nesse ponto, o exercício de ascensão erótico-filosófica permite que o iniciado tenha, por
um lado, um total desprendimento do corporal e, por outro, “um total mergulho no vasto
mar da Beleza, voltado para aquilo do qual o filósofo poderá desenvolver raciocínios
grandiosos, belos discursos em seu infindável amor à sabedoria” (ἐπὶ τὸ πολὺ πέλαγος
τετραμμένος τοῦ καλοῦ καὶ θεωρῶν πολλοὺς καὶ καλοὺς λόγους καὶ μεγαλοπρερεῖς τίκτῃ
καὶ διανοήματα ἐν φιλοσοφίᾳ ἀφθόνῳ) (Smp., 210d). Finalmente, após atingir o ponto
máximo na educação do corpo à espiritualidade, ao finalizar o exercício eróticofilosófico, o iniciado torna-se filósofo e poderá, somente então, alcançar a unidade, a
reminiscência da Forma do Belo, o acesso ao divino.
“O que Platão oferece é uma teoria do amor que se expressa em um
discurso autofundante da experiência amorosa, discurso e experiência
que têm em vista alcançar a verdade e o belo. Através do entendimento
de Erōs como um intermediário, Platão vincula a natureza indigente do
ser humano ao mundo dos deuses, em uma operação simultaneamente
dialética e mística. Em função de determinados fins que persegue no
diálogo, tal entendimento revelar-se-á o ponto de onde poderá ser
plenamente realizada a atividade erótica e a atividade filosófica. Eis aí
talvez o mistério da filosofia: ela é inteligência e amor, exercício e
inclinação ao saber” (MACEDO 2001, p. 61).
4. Conclusão
Portanto, esse movimento dialético e esse exercício erótico culminam em um
acesso ao divino, dimensão inteligível das Formas suprassensíveis nas quais há a
inscrição de uma reminiscência da Verdade, do Belo e, em última instância, do Bem. A
volta ao Todo, a apreensão do Ser, consiste no modo pelo qual o mortal consegue na
medida do possível, através de sua parte mais aparentada dos deuses, tornar-se divino.
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