ESCRITA DA HISTÓRIA
E (RE)CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS
ARTE E ARQUIVOS EM DEBATE
CRISTINA FREIRE
organizadora
ESCRITA DA
HISTÓRIA
E (RE)CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS
ARTE E ARQUIVOS EM DEBATE
X Congresso Internacional de Estética e História da Arte
Escrita da história e (re)construção das memórias : arte e arquivos em debate
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
Comitê Científico
Cristina Freire (MAC USP / PGEHA USP)
Lisbeth Rebollo Gonçalves (ECA USP / PGEHA USP)
Edson Leite (MAC USP / PGEHA USP)
Vera Pallamin (FAU USP / PGEHA USP)
Comissão Geral do Congresso
Águida Furtado Vieira Mantegna
Andrea de Lima Lopes Pacheco
Guilherme Weffort Rodolfo
Joana D’Arc Ramos Silva Figueiredo
Paulo Cesar Lisbôa Marquezini
Sara Vieira Valbon
Apoio
Universidade de São Paulo
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte – PGEHA USP
Museu de Arte Contemporânea – MAC USP
Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo – PRCEU
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
GEACC - Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu
CALT - Cultura e Arte no Lazer e Turismo
ESCRITA DA
HISTÓRIA
E (RE)CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS
ARTE E ARQUIVOS EM DEBATE
CRISTINA FREIRE
organizadora
São Paulo 2016
© – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História de Arte / Universidade de São Paulo
Rua da Praça do Relógio, 160 – Anexo – sala 01
05508-050 – Cidade Universitária – São Paulo/SP – Brasil
Tel.: (11) 3091.3327
e-mail: pgeha@usp.br - www.usp.br/pgeha
Depósito Legal – Biblioteca Nacional
Ficha catalográfica elaborada pela
Biblioteca Lourival Gomes Machado do
Museu de Arte Contemporânea da USP
Congresso Internacional de Estética e História da Arte (10., 2016, São Paulo) .
Escrita da história e (re)construção das memórias : arte e arquivos em debate / organização Cristina Freire. São Paulo
: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2016.
374 p. ; il.
ISBN 978-85-7229-074-6
1. Estética (Arte). 2. História da Arte. 3. Arquivos de Arte. I. Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação
em Estética e História de Arte. II. Freire, Cristina.
CDD – 701.17
Fotografia capa: Fernando Piola
Tradução dos textos de Ticio Escobar, Sebastián Vidal Valenzuela, Fernando Davis,
Daniella Carvalho e Claudia Rojas: Maria Cristina Caponero
Revisão de textos: André Henriques Fernandes Oliveira
Produção editorial: Águida Furtado Vieira Mantegna, Paulo Cesar Lisbôa Marquezini e Sara Vieira Valbon
Organização: Cristina Freire
Publicação do X Congresso Internacional de Estética e História da Arte - Escrita da história e (re)construção
das memórias : arte e arquivos em debate, realizado nos dias 24 a 27 de outubro de 2016 no Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, organizado pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História de Arte / Universidade de São Paulo.
Sumário
11
À guisa de introdução
O museu-escola na universidade pública: princípio e necessidade
Cristina Freire
ARTE INDÍGENA/ARTE CONTEMPORÂNEA
19
Arte indígena: o desafio do universal
Ticio Escobar
MODOS DE ARQUIVO: O CORPO, A CIDADE, A EXPOSIÇÃO
41
Corpo reflexivo na cidade: um modo de arquivo
João A. Frayze-Pereira
53
“É a minha hora, não há dúvida, e acho que também está na sua hora”:
Lygia Clark e Hélio Oiticica na Europa dos anos 1960
Maria de Fátima Morethy Couto
61
Quando corpo e arte interrogam os espaços da cidade
Vera Pallamin
ARQUIVOS DE ARTE NA AMÉRICA LATINA: LEGADO EM DISPUTA
69
Tous les jours ou seulement le weekend? Deslocamentos e contrapontos na
experimentalidade tecnológica durante a ditadura no Chile
Sebastián Vidal Valenzuela
77
Gerenciar distâncias: Edgardo-Antonio Vigo e o arquivo
Fernando Davis
PUBLICAÇÕES DE ARTE
89
Projetos editoriais como plataformas de ação e pesquisa
Renata Marquez
95
O jornal como veículo da arte: leituras do espaço
Maria Ivone dos Santos
107
Colecionismo alternativo e oferta letiva de publicações artísticas em
universidade federal: um relato
Paulo Silveira
COMUNICAÇÕES
117
Um autômato problemático: entre a forma humana e o diagrama
Vagner Godói
123
Quando imprimir é resistir: a revista Karimbada e as práticas artísticas na rede
internacional de arte postal
Fernanda de Carvalho Porto
129
Estética Relacional: as relações humanas como o lugar das criações artísticas
Fernanda Pulido dos Reis
Lisbeth R. Rebollo Gonçalves
135
Miroslav Tichý: os equipamentos fotográficos artesanais na construção de
uma estética da precariedade
Paula Davies Rezende
141
A escrita de si em “Passagens secretas” de Brígida Baltar
Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque
147
Da antropologia à arte contemporânea: trânsitos da imagem fotográfica de
indígenas em duas obras de arte latino-americana
Daniella Carvalho
153
A mulher e o trabalho doméstico: a maquiagem, a costura e a reclusão como
gestualidade em Valéria Sarmiento e Letícia Parente
Claudia Valdés Rojas
159
A crítica como estímulo para a profissionalização da videoarte no Brasil
Thamara Venâncio de Almeida
Patricia Ferreira Moreno Christofoletti
165
A “Revista da pleura molhada”
Paola Mayer Fabres
Paulo Silveira
171
Emmanuel Nassar e a visualidade amazônica (1979-1984)
Gil Vieira Costa
177
Caravaggio: releituras e reescrituras da arte em Derek Jarman
Donny Correia
Edson Leite
183
A videoarte na XII Bienal de São Paulo: Institucionalização de um novo meio
Luise Boeno Malmaceda
189
Hans Eijkelboom e a autoria no vestir contemporâneo
Heloisa Nobriga
Edson Leite
195
O uso de mapas como proposições conceituais: As Cartografias do
artista argentino Horacio Zabala
Luiza Mader Paladino
201
Reconfigurações da rede de arte postal na América Latina na década de 1980
Bruno Sayão
207
Filmes de artista em Super 8 e imagens de cidade nos anos 1970: À luz
dos filmes “Esplendor do Martírio” (Sérgio Péo) e “Rio de Janeiro” (Luiz
Alphonsus)
Marina Freire da Cunha Vianna
213
A fotografia humanista e a América Latina: aproximações e mediações
artístico-culturais
Erika Zerwes
219
O Carnaval nas obras de Portinari: registro e preservação da memória
Maria Cristina Caponero
Edson Leite
225
Recorrência na Pintura: traços compartilhados nos processos individuais de
criação de Catunda e Milhazes
Andréa Virginio Diogo Garcia
Ana Helena da Silva Duarte Delfino
229
Preservação da artemídia brasileira: questões historiográficas e metodológicas
Ana Pato
Giselle Beiguelman
235
Montagem Mnemosyne, painéis didáticos e cavaletes de vidro: aproximações
possíveis
Cristina Pontes Bonfiglioli
243
Historiografia, museu e mercado: um olhar a partir da perspectiva de gênero
Nadiesda Dimambro
249
O papel social da fotografia no registro do trabalho humano: os precursores
Riis e Hine
Rodrigo Koraicho Gonzaga
Edson Leite
255
Mario Schenberg na VI Bienal: organização da Sala Especial dedicada
a Alfredo Volpi
Ana Paula Cattai Pismel
261
Memória e identidade da Cidade de São Paulo na arte pública de Maria Bonomi
Leonardo Pujatti
Edson Leite
267
Canudos: Novos territórios para a reconstrução de memórias
Mônica Zarattini
Katia Canton
273
Memória, acervo e coleções de performances
Joseane Alves Ferreira
Jane Aparecida Marques
279
Os Novos Museus: preservação de riquezas e cultura ou espetacularização?
Rosane Maria Demeterco Bussmann
Jane Aparecida Marques
285
Considerações sobre o uso de imagens como fontes para a investigação histórica
Robson Xavier da Costa
293
Projeto Humanista dos Jesuítas e o início da Cidade de São Paulo
Alfredo César da Veiga
Daisy Valle Machado Peccinini
299
Cruzamentos entre as Bienais de Havana e Dacar (1984-2006):
Afro-cubanismo e diáspora como eixos discursivos
Sabrina Moura
305
Entre a obra e a imagem: a sobrevivência da escultura “Mademoiselle Pogany
II”, de Constantin Brancusi
Ana Paula Chaves Mello
311
Reconstruindo a memória de Amedeo Modigliani
Olívio Guedes
Edson Leite
315
A Comédia de Salvador Dalí: Considerações sobre dois acervos
Victor Tuon Murari
321
A visão de um americano a respeito do sistema das artes no Brasil nos anos
1940: relatos de Lincoln Kirstein a Nelson Rockefeller e Alfred Barr Jr.
Danielle Misura Nastari
Daisy Valle Machado Peccinini
329
Documentos de cultura e barbárie: a prancha 79 do Atlas Mnemosyne de
Warburg aproximada à tese VII de Benjamin sobre o conceito de história
José Bento Ferreira
335
Danilo Di Prete no Brasil: sobre relatos de vida, a criação da Bienal de São
Paulo e o arquivo da família
Renata Dias Ferraretto Moura Rocco
341
Reflexões sobre Deslocamentos e Metamorfoses do Moleque Cipó na obra de
Mário Gruber
Paulo Marcondes Torres Filho
Daisy Valle Machado Peccinini
349
A invisível luz que projeta a sombra do agora: a poética da memória em
Naomi Gakunga
Janaina Barros Silva Viana
355
Arte moderna brasileira no acervo do MAC USP: “A Boba” e “A Negra”,
criação, recepção e circulação
Renata Gomes Cardoso
361
A Fundação Andréa e Virginia Matarazzo
Renato de Andrade Maia Neto
367
Semelhança e sobrevivência nos acervos de fotografia do MAM-SP e da
Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian
Guilherme Tosetto
À guiSa de introdução
o muSeu-eScola na univerSidade pública:
princípio e neceSSidade
História e memória muitas vezes não coincidem. A modernidade a que estamos condenados, no dizer de Mario Pedrosa, nos impõe formas de construir e ver o
passado pela projeção de um futuro, não raro, incerto.
Essa perspectiva, naturalizada e hegemônica, abstrai o fato que a modernidade
é a outra face da colonialidade e o museu um de seus instrumentos de visão mais eficazes. Nessa medida, tem papel fundamental a função crítica e educacional do museu.
Por conseguinte, o museu-escola é um contraponto ao museu-espetáculo e um potente instrumento contra-hegemônico. Isso porque na perspectiva do mercado midiático
global dominante das sociedades contemporâneas, a memória histórica está em desvantagem e o museu público deve se manter como um repositório privilegiado. Tal
expectativa indica uma práxis museológica que valoriza, necessariamente, o próximo
e sugere a reterritorialização como estratégia poética-política que pode nos orientar,
ao menos potencialmente, para uma nova prática pedagógica-crítica. Isto porque um
museu universitário como o MAC USP tem uma responsabilidade social redobrada
pela estrutura pública que o sustenta. Não obstante, orbita à margem da sociedade do
consumo e do espetáculo dominantes. Nesse contexto, agrega às suas funções museológicas básicas: guarda, preservação, documentação e extroversão de seu acervo, sua
condição universitária fundante, isto é, a missão de produção e extroversão de conhecimentos acadêmicos, gerados no contato cotidiano com acervos e arquivos.
Assim, o campo da pesquisa universitária de escopo interdisciplinar é o princípio essencial do Programa de Pós Graduação Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHA USP). Nesse sentido, formulamos os temas do X Congresso (2016) a partir de uma prática acadêmica que se define por um duplo vínculo
docente e curatorial. Partimos de indagações tais como: Para que servem os arquivos
de arte contemporânea? Como as publicações de arte são articuladas às práticas artís-
12
ticas e acadêmicas? De que maneira podemos constituir um espaço efetivo de criação
transdisciplinar no contexto universitário? Como a produção acadêmica assume ou
relega a um plano subalterno as práticas artísticas e culturais afro-brasileiras, indígenas e populares? Que se visibiliza ou se reveste de invisibilidade na retórica do museu
em relação à racionalidade tecnocrática dominante da sociedade globalizada?
Nessa plataforma ampla e aberta, nossa própria situação geopolítica tem relevância. O conceito de lugar torna-se prerrogativa para pensar a produção e circulação
da arte bem como a reprodução de ideias, sentidos e valores no contexto universitário
e museológico brasileiro.
A questão da arte indígena, como a da arte africana são plataformas privilegiadas para problematizar conceitos como própria noção de “arte”. De que arte falamos?
Tal tema coloca em debate a hegemonia do enfoque eurocêntrico com que operamos
na universidade ao confrontá-lo com outros paradigmas culturais. Para Ticio Escobar,
é importante tensionar o conceito de “arte” em ambos os sentidos. Isto é: tanto para
as definições canônicas que nos formam e se reproduzem no discursos acadêmicos e
críticos, quanto no que se refere àquelas sociedades tradicionais nas quais o estético,
não raro, permeia todo o campo social e político. Assim, não seria possível falar da
mesma “arte” em tão distintos contextos.
Tais perguntas necessariamente nos confrontam com o desafio e a necessidade
premente de incluir outras e novas miradas e práticas investigativas. Acreditamos que
os estudos interdisciplinares em nível de pós-graduação são os espaços privilegiados
para intercâmbios e derivas.
Essas questões iniciais foram mobilizadoras para definir “Escrita da História
e (re)construção das memórias. Arte e Arquivo em Debate” como tema do X Congresso do Programa de Pós Graduação Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo (PGEHA USP).
Tal plataforma de debates logrou reunir entre 24 e 27 de outubro de 2016, no
Museu de Arte Contemporânea da USP pesquisadores, críticos, docentes e alunos,
em especial de pós-graduação, para discutir os temas daí derivados a partir das palestras de professores e pesquisadores convidados do Brasil, Argentina, Paraguai e
Chile. Essa publicação inclui os textos dos pesquisadores participantes bem como
dos alunos de pós-graduação que apresentaram suas pesquisas nas sessões de comunicações que ocorreram no período.
Vale notar que esse Congresso recebeu um expressivo número de participantes, incluindo pesquisadores não apenas de alunos do PGEHA USP, mas também de
outras unidades da USP, além de outros programas de pós-graduacão do país (Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul) contemplando também a apresentação de pesquisas de pós-graduação internacionais (Portugal e Chile).
É digno de nota: as bolsas concedidas pela Universidade Alberto Hurtado do
Chile, instituição com a qual mantemos um convênio acadêmico, possibilitaram a
13
participação de estudantes chilenos, ampliando, nesse intercâmbio, a internacionalização e o conhecimento mútuo.
Os vários grupos de pesquisa ligados ao PGEHA USP tiveram com esse Congresso a oportunidade de disseminar e discutir seus temas e indagações para alavancar novos trabalhos, consolidando redes transdisciplinares e transnacionais de
investigação.
Para a história e também para a crítica e teoria da arte, a questão do documento
e, por extensão, do arquivo é fundamental por ser capaz de expandir seus sentidos
para abarcar outros domínios. O documento surge como índice nas memórias do
corpo, da cidade, das instituições e das exposições abarcando diferentes perspectivas
e abordagens. Isto é, obras, escritos, textos, imagens, exposições existem enquanto
documentos. Mas lembremos que o sentido etimológico da palavra documento é docere – ensinar. O documento ensina, mas não fala sozinho. Engendra-se pelo trabalho
do pesquisador numa construção histórica e social de sentidos.
É certo que a relação entre a escrita de uma história canônica e a construção de
memórias locais ganha relevo com a perspectiva crítica do lugar. Assim, é significativo refletir sobre a geopolítica dos arquivos, as variáveis de sua constituição e acesso.
A questão crítica do documento, em especial, a relação entre a história canônica e as
histórias locais são novamente importantes nesse debate.
Como espaço consagrado de lutas simbólicas, a possibilidade de alavancar
discursos novos e autônomos faz do museu universitário um lugar privilegiado.
No continente latino-americano, existem apenas três museus de arte contemporânea públicos e universitários são eles: o Museu de Arte Contemporânea da Universidade do Chile (1947), o Museu de Arte Contemporânea da Universidade Autônoma do México (2008) e o Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (1963), onde se vincula o Programa Interunidades
Estética e História da Arte. O Programa é uma atividade conjunta da Escola de
Comunicações e Artes (ECA USP), Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH USP), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP), Faculdade de
Medicina – Departamento de Terapia Ocupacional – TO-FM USP, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH USP) e Museu de Arte Contemporânea (MAC USP), sendo que o Museu vem sendo sua Unidade sede desde
sua implantação, em 2003. Desde a implantação do Programa, a relação entre as
diversas Unidades da Universidade tendo o PGEHA como plataforma comum
tem se provado bastante profícua.
Por fim, vale lembrar que, na história do MAC USP, é mais uma vez relevante
o papel do Walter Zanini1: primeiro diretor desse museu universitário, que incentivou, desde o início, o museu como um laboratório de pesquisa permanente. Aliás,
a noção de museu como laboratório é muito recorrente nos relatos da história do
1.
Ver: Freire, Cristina (Org.)Water Zanini. Escrituras Críticas. São Paulo. Editora Annablume, 2013.
14
MAC USP. O museu-laboratório concretizou-se, como sabemos, nas exposições de
vanguarda, na participação de artistas e pesquisadores no cotidiano desse museu que
acolheu o início da videoarte no Brasil, por exemplo. Como docente e curador, Zanini, em meio ao trabalho incessante e junto às exposições que organizava, tomava,
não raro, o próprio Museu como sala de aula, tratando de incentivar seus alunos a
desenvolverem pesquisas sobre o acervo desse Museu. A teoria, a crítica, a história da
arte vicejavam nesse espaço que conjugava sala de aula e espaço expositivo. Vários
trabalhos acadêmicos, pioneiros no Brasil, foram realizados nesses anos iniciais do
MAC USP e confirmam ser esse Museu também um lugar privilegiado de pesquisas.
Colaboradoras próximas de Zanini, hoje nomes de destaque no panorama nacional da história e crítica de arte no Brasil2 e docentes da USP, realizaram no Museu
seus estudos em nível de pós-graduação, surgindo assim as primeiras dissertações e
teses em história da arte, realizadas a partir do acervo do MAC USP, sob a orientação
de Walter Zanini. Nessa medida, o museu configura-se também como um lugar de
resistência; espaço de pesquisa e invenção de práticas de ensino e aprendizagem.
Vale notar que o sentido do museu público e universitário como lugar de resistência
mudou, porém, mantém um sentido de atualidade. Isso porque não estamos mais
vivendo um período de ditadura militar tal como vigorou no Brasil naqueles anos
iniciais do Museu, nas décadas de 1960 e 70. No entanto, são cada vez mais complexas e difíceis as tarefas de um museu público de arte no mundo da sociedade de
mercado globalizada.
Na universidade onde, pelo menos desde o século XIX, domina o paradigma científico na dinâmica que Imanuel Wallerstein3 denominou como “sistema-mundo moderno de economia-mundo-capitalista”, o museu de arte está em desvantagem e também orbita à margem. Isto porque, em uma universidade cindida
entre humanistas e cientistas, com frequência, são as humanidades e as artes as
mais prejudicadas.
Nesse controverso panorama e frente ao domínio atual da razão de mercado, as
iniciativas afeitas à formação de pessoal em nível superior na área de humanidades e
artes são ainda mais desafiadoras e importantes.
2.
3.
Entre as primeiras dissertações e teses orientadas pelo prof. Walter Zanini e baseadas no estudo do
acervo do MAC USP destacam-se :
PECCININI, Daisy. Catálogo crítico da obra de Victor Brecheret. 1969. 174 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1969.
______. Novas figurações, novo realismo e nova objetividade: Brasil anos 60. 1987. 249 f. Tese
(Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.
AMARAL, Aracy A. Tarsila, sua obra e seu tempo. 1971. 2v. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1971.
VERNASCHI, Elvira. Comentário crítico e catalogação da obra de Antonio Gomide: 18951967. 1981. 2v. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1981.
WALLERSTEIN, Immanuel. Como saber a verdade? O universalismo científico. In: ______. O
universalismo europeu: A retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 87.
15
Agradecemos, assim, apoio de todos os professores e alunos do PGEHA, da
direção e dos funcionários do MAC USP e ao auxílio da Fapesp, Capes e Pró-Reitoria
de Cultura e Extensão Universitária da USP, que tornaram possível a realização e o
êxito do X Congresso do PGEHA, bem como seu registro nessa publicação.
São Paulo, dezembro de 2016
Profa. Dra. Cristina freire
Professora Titular MAC USP
Coordenadora do PGEHA
arte indígena/
arte contemporÂnea
arte indígena:
o deSafio do univerSal1
tiCio esCobar2
introdução
Este texto tem como objetivo considerar as possibilidades de afirmação e de
continuidade da arte popular de origem indígena no obscuro cenário globalizado. Já
se sabe que as culturas nativas, assentadas em diversas regiões da América Latina antes da Conquista, desenvolviam formas poderosas de arte: como a das altas culturas
pré-colombianas ou a dos povos das selvas ou das planícies do Cone Sul que, apesar
de não atingirem a institucionalidade monumental daquela, conformaram complexos
sistemas de produção artística. Sabe-se também que o encontro intercultural ocorrido ao longo dos tempos coloniais produziu não apenas casos graves de extinção
e etnocídio, mas também severos processos simbólicos e imaginários de reajuste e
reposição transcultural.
Então, terá a arte proveniente dessas culturas capacidade para sobreviver
e crescer em condições opostas às que lhes deram origem? A pergunta é muito
complicada, porque envolve não só o aspecto geral da cultura, mas especificamente o da arte; e se faz no contexto de uma tradição que discute o artístico de
sistemas diferentes do ocidental num momento em que o próprio lugar da arte
universal é questionado.
Grande parte do debate contemporâneo sobre o cultural implica na reconsideração de figuras que, em suas versões essencialistas, foram consideradas inferiores.
1.
2.
Este artigo foi publicado em Una teoría del arte desde América Latina, edit. José Jiménez, Badajoz:
MEIAC; Madri: Turner, 2011.
Ticio Escobar. Curador, professor, crítico de arte e promotor cultural. Fundador e Diretor (até 2008)
do Museu de Arte Indígena (Assunção, Paraguai). Ministro da Cultura do Paraguai (2008/2013).
Doutor Honoris Causa por la Universidad Nacional de las Artes, Buenos Aires.
20
Analisando-as frente à contingência e ao acaso de mil histórias cruzadas, elas podem
mostrar novas pistas sobre problemas que também ultrapassaram o limite do novo
século e voltaram obstinadamente a suas mesmas perguntas e seus velhos fantasmas.
Portanto, sem ter a intenção de responder àquela complexa pergunta que, obviamente, não pode ser respondida, este artigo se aproxima dela e a rodeia, revisando conceitos que podem enriquecer sua formulação e visando a vinculá-la com outras questões
cabíveis. Com este propósito, discute-se alguns destes conceitos começando com o
do próprio termo “arte indígena”.
Sobre a arte indígena
o cÂnone ocidental
Há uma questão central que aparece ao abordar o tema da arte indígena: como
se pode estabelecer o limite do artístico no contexto de culturas nas quais a beleza, a
estética, impregna todo o corpo social? Assim formulada, essa pergunta é muito semelhante à que se coloca atualmente com relação ao esteticismo difuso contemporâneo. Este tema será abordado posteriormente, mas convém já levantá-lo para ressaltar
um horizonte de coincidências que têm como pano de fundo um cenário atravessado
por diferenças que parecem intransponíveis.
Mas, voltemos agora à arte indígena. Quando se fala de “arte”, refere-se a um
conjunto de objetos e práticas que realçam suas formas para produzir uma interferência no significado comum das coisas e para intensificar a experiência do mundo. A arte
indígena, como qualquer outra, recorre à beleza para representar aspectos da realidade, inacessíveis por outros meios e para assim poder mobilizar o sentido, processar a
memória em conjunto e projetar em imagem o futuro comunitário. Porém, ao outorgar
o título de “arte” a essas operações, surge então uma objeção: no contexto das culturas
indígenas, a estética não pode ser desprendida de um complexo sistema simbólico que
funde em seu espesso interior momentos diferenciados pelo pensamento ocidental
moderno (tais como “arte”, “política”, “religião”, “direito” ou “ciência”). As formas
estéticas encontram-se, nesse contexto, misturadas com outros dispositivos através
dos quais a sociedade organiza seus conhecimentos, crenças e sensibilidades. Quer
dizer, nas culturas indígenas, não cabe isolar o resplendor da forma das utilidades
prosaicas ou os graves destinos transcendentais que requerem seu ofício auratizante.
E mais: tais culturas não apenas ignoram a autonomia da arte, nem tampouco fazem
diferença entre gêneros artísticos: as artes visuais, a literatura, a dança e o teatro misturam suas expressões no decorrer de processos de significação social ambíguos e
fecundos sustentados entre si no fundo obscuro de verdades inacessíveis.
Essas confusões apresentam dificuldades teóricas, muitas das quais derivadas
da própria economia do pensamento moderno que insiste em se estabelecer em terrenos estrangeiros e se desorienta ao neles transitar. Desde Kant, a teoria ocidental da
21
arte autonomiza o espaço da arte, separando forma e função mediante uma sentença
definitiva e grave: apenas são artísticos os fenômenos nos quais a forma impõe-se
sobre as funções que ocultam sua aparência (usos rituais, econômicos, políticos etc.).
Condicionada por razões particulares de sua história, a arte ocidental moderna requer
o cumprimento de determinados requisitos pelas obras que a compõem: não apenas
a autonomia formal, mas também a genialidade individual, a renovação constante, a
inovação transgressora e o caráter único e original de cada uma daquelas obras. O problema é que esses requisitos, específicos de um modelo histórico (o moderno), passam
a funcionar como cânone universal de toda produção artística e como argumento para
desqualificar aquela que não se adeque a suas cláusulas. Por razões fatídicas de hegemonia, converte-se a perspectiva de um setor numa maneira única de olhar o mundo
e de enunciá-lo. Por isso, certos conceitos que definem a arte feita durante um curto
espaço em seu extenso caminho (século XVI a XX) tornam-se arquétipos normativos
e requisitos inevitáveis de toda produção que aspire ao título de artística.
Essa extrapolação abusiva dos traços da modernidade introduz um paradoxo
no próprio sentido do conceito de artístico. Em princípio, a clássica teoria ocidental
da arte entende que esta se constitui a partir de um misterioso cruzamento entre o
momento estético (o da forma sensível, o lugar da beleza) e o poético (o do conteúdo,
o relâmpago de um indício do real, a fugaz manifestação de uma verdade roubada).
Segundo essa definição, a arte resulta na expressão essencial da condição humana
desde suas próprias origens e através de toda sua longa jornada; mas, na hora de
aplicá-la, só se registram como legitimamente artístico os produtos que cumprem as
exigências do estrito formulário moderno.
As expressões da arte indígena, como quase todo tipo de arte não moderna,
não preenchem esses requisitos: não são produto de uma criação individual (apesar de
que cada artista reformule os padrões coletivos), nem geram rupturas transgressoras
(embora representem uma constante renovação do sentido social), nem se manifestam em peças únicas (mesmo quando a obra produzida em série reitere com força as
verdades repetidas de sua própria história). Portanto, a partir do olhar reprovador da
arte moderna, tais expressões são consideradas meros feitos de artesanato, folclore,
“patrimônio imaterial” ou “cultural material”. Não atendem aos requisitos da autonomia formal moderna: não são inúteis, no sentido kantiano do termo; encontram-se
comprometidas com ritos arcaicos e funções prosaicas, atoladas na densidade populacional de suas histórias obscuras e lastreadas pela materialidade de seus suportes e
pelo processo de suas técnicas rudimentares.
A dicotomia entre o grande sistema de arte (fruto de uma criação esclarecida
do espírito) e o circuito das artes menores (produto de comércio, testemunho de crenças simples) sacraliza o âmbito daquele sistema. Por um lado, os terremos da arte
convertem-se em reduto de verdades superiores, livres das condições de produtividade que marcam o artesanato e dos expedientes litúrgicos que demandam o culto bár-
22
baro. Por outro lado, tornam-se reconhecidos recintos do grande artista, em oposição
ao engenhoso e prático artesão ou ao supersticioso e exaltado sacerdote.
doiS apeloS
Não obstante desta desobediência dos paradigmas modernos, continua sendo
conveniente falar de arte indígena. Este reconhecimento supõe assumir a diferença de
outras culturas: significa admitir modelos de arte alternativos aos modelos ocidentais
e implica recusar um modelo colonial que faz a discriminação entre formas culturais superiores e inferiores, dignas ou não de serem consideradas como expressões
privilegiadas do espírito. Sob este título, defende-se o uso do termo “arte indígena”
mediante dois apelos básicos.
Da Diferença e suas formas
Desde o fundo incerto da história e cobrindo o mundo até seus últimos cantos,
diversas sociedades não modernas trabalham a alquimia obscura do sentido através da
manipulação refinada da aparência. Fazem isso entrevendo formas e funções, beleza e
utilidade: a grinalda que exalta a testa do xamã ou enaltece a do caçador, as pinturas que
ornamentam com opulência os corpos humanos para divinizá-los ou fazê-los tocar o
limite de sua condição animal, as vasilhas aperfeiçoadas em seus designs ou sobreornamentadas para o culto ou para a festa profana, assim como o design autêntico de tantos
utensílios comuns, imersos na cotidianidade dos povos indígenas; todos estes gestos e
objetos, antes de apelarem para a fruição estética, buscam reforçar, certamente mediante
à beleza, os significados sociais que crescem muito além dos terrenos da arte. Mais uma
vez: a beleza não tem um valor absoluto: serve como alegação de outras verdades.
Mas, a falta de autonomia da estética não significa ausência de forma. Assim
mimetizada, submergida na trama espessa do conjunto sociocultal e confundida com
as muitas forças que estimulam o fazer coletivo, a forma estética está, sem dúvida,
presente: incita, desde as primeiras certezas, e reforça silenciosamente a memória
profunda e cambiante da comunidade. A beleza trabalha clandestinamente para expressar verdades e funções que exigem o aval de sua própria imagem no cenário da
representação: sublinha funções, inflama verdades, intensifica figuras fundamentais;
tensiona-se até o limite, obrigada a dizer o que está fora de seu alcance e, ao fazê-lo,
enche o horizonte cultural de resplendores, preocupações e presságios.
Assim, nas culturas indígenas, a estética significa um momento intenso, mas
contaminado por funções utilitárias triviais ou finalidades culturais exaltadas, entrelaçado com os resíduos de formas desconhecidas, obscurecido nos limites que nunca
coincidirão com os contornos nítidos de uma ideia prévia do artístico. O belo aponta
para além da harmonia e da fruição: desperta os poderes adormecidos das coisas e as
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investe de surpresa e estranheza; remove-as, rompe sua presença comum e as arranca
de seu enquadramento habitual para analisá-las frente à experiência, sempre inacabada, do extraordinário. Nesses casos, as crenças religiosas e as figuras míticas que animam as representações rituais precisam ser destacadas pela manipulação da sensibilidade e da gestão das formas. As imagens mais intensas e as cores sugestivas, assim
como as luzes, as composições e as figuras perturbadoras ajudam para que o mundo
se transforme em sua complexidade e em suas sombras; em sua incerteza radical,
vagando em torno das primeiras perguntas: aquelas que se desconhece a resposta.
Por outro lado, deve-se considerar que existem operações artísticas que vão
além do alcance da estética. Isto é evidente principalmente nas culturas não modernas
e em determinadas operações da arte contemporânea, mas também atravessa todo o
futuro da arte em geral. Para melhor definir tais operações, tomemos como exemplo
o caso dos rituais, campo privilegiado da arte indígena. O cenário da representação
cerimonial é delimitado por um círculo de contornos bem definidos. Ao nele ingressar, as pessoas e os objetos ficam banhados pela distância luminescente que supõe
estar do outro lado, além da possiblidade de serem tocados, fora do alcance do tempo
comum e do sentido estabelecido. Do lado externo da linha que delimita a área do
espaço cerimonial, homens e objetos obedecem a seus próprios nomes e a suas próprias funções: não são nada além do que utensílios profanos e uma multidão suada,
espectadora, amontoada em torno ao cenário. Ao cruzar a linha invisível que preserva
a distância e amplia o olhar, objetos e homens transformam-se. Cada qual não coincide mais consigo mesmo e, indo além de sua condição, torna-se sacerdote, deus ou
entidade sagrada. O que os consagrou? O que os distanciou e os tornou inquietantes
indícios de algo que está mais além de si mesmo? Diante dessas perguntas, abrem-se
dois caminhos, quase sempre entrecruzados. São os que, titubeante, seguem a arte em
geral: o que privilegia a aparência estética e o que muda a tendência sobre o conceito.
Diante da pergunta sobre o que outorgou um excedente de significação, um
valor excepcional, a determinados objetos e personagens que aparecem, radiantes, no
cenário ritual, a primeira possibilidade é a beleza, supracitada recentemente. O outro
caminho é o que se abre para o conceito: para o que tornou esses objetos e personagens raros e distantes, os sacralizou, para o fato de conhecê-los posicionados no interior do perímetro que os separa do mundo cotidiano e os expõem ao olhar. Esse é um
caminho longo que, ampliando um pouco os limites, poderia ser classificado como
conceitual. Conceitual, no sentido de que coincide, por exemplo, com o caminho
aberto, ou instaurado, pela arte moderna por Duchamp: é a ideia de registro dos objetos, a que os sacraliza, independentemente de seus valores expressivos ou formais:
fora do círculo estabelecido pela galeria ou pelo museu, o urinol ou a roda de bicicleta
não brilham, não se distanciam, não se expõem ao olhar: não significam outra coisa
senão a estabelecida pelas suas funções prosaicas. Fora do círculo consagrado da cultura indígena, as coisas coincidem, opacas, consigo mesmas e não remetem à neces-
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sidade primeira ou à plenitude fundante. Aqui a beleza não tem nada o que fazer: só
importa uma posição; a noção de uma posição. A distância é marcada pelo conceito.
outros Direitos
Mas, há outras razões, de caráter político, para defender o termo “arte indígena”. Reconhecer a existência de uma arte diferenciada pode negar uma posição
discriminatória, que supõe que a cultura ocidental detenha a prerrogativa de acessar
determinadas experiências sensíveis privilegiadas. E pode propor outra visão sobre
o indígena atual: abre a possibilidade de considerá-lo não apenas como um ser marginalizado e humilhado, mas como um criador, um produtor de formas genuínas, um
sujeito sensível e imaginativo capaz de encontrar soluções e figuras novas para o
patrimônio simbólico universal.
Por último, o reconhecimento de uma arte diferente pode apoiar a reivindicação que fazem os povos indígenas de sua autodeterminação e seu direito a um território próprio e uma vida digna. Por um lado, a gestão do projeto histórico de cada etnia
requer um imaginário definido e uma autoestima básica, fundamento e corolário da
expressão artística. Por outro lado, os territórios simbólicos são tão essenciais para os
indígenas quanto os físicos; aqueles são a expressão desses; esses, projeção daqueles.
Portanto, é difícil defender o campo próprio de uma comunidade se não se garante
seu direito à diferença: sua possibilidade de viver e pensar, de acreditar e de criar de
maneira própria.
a arte indígena enquanto arte popular
Uma vez explicado o benefício de empregar o termo arte indígena, convém
fazê-lo como uma modalidade específica de arte popular. Essa conveniência resulta
da expansão de processos coloniais e pós-coloniais de “popularização” do indígena e
de mestiçagem e hibridação intercultural. Mas, também provém da posição assimétrica que ocupam os povos indígenas no contexto das sociedades nacionais latino-
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-americanas; posição que os equipara aos demais setores excluídos de uma participação social plena: aqueles que, em sentido estrito, podem ser chamados populares. A
arte popular, que inclui a indígena e que será abordada mais profundamente a seguir,
afirma-se desde a expressão da diferença e o faz através de muitas práticas diversas
dos setores marginalizados, que precisam reinscrever suas próprias histórias para,
então, assumirem os desafios que lhes impõe ou propõe a cultura hegemônica.
Empregada há décadas por pensadores como García Canclini, a figura gramsciana de hegemonia tornou-se útil para trabalhar o conceito do que é popular na
América Latina. Nesse sentido, o conflito intercultural não supõe necessariamente
uma imposição forçosa exercida por um polo dominante sobre um dominado, mas
um conjunto de processos que inclui tanto a capitulação, o retrocesso e a perda como
complexos jogos de sedução, estratégias de resistência e movimentos de negociação
e acordo. O popular afirma-se diante do poder hegemônico não como sua pura exterioridade, mas como postura alternativa perante a ele: a posição desvantajosa de
grandes maiorias ou minorias que, relegadas de uma participação efetiva no social
(no econômico, no cultural, ou no político), produzem discursos, realizam práticas e
elaboram imagens a favor ou contra o rumo hegemônico: atualmente, marcado pela
cultura capitalista.
Assim, o popular subalterno e o hegemônico relacionam-se não como substâncias completas enfrentadas numa disjunção lógica absoluta, mas como momentos
de um conflito contingente que admite resultados imprevistos e temporários. Esse
fato determina que a tensão entre um e outro termo não implica em posicionamentos
fixos, mas em posições variáveis: disposições aleatórias que podem se repelir ou se
entrecruzar e, ainda, se confundir em algum breve trecho de seus diversos itinerários.
Mas, também determina tendências ambivalentes no seio da cultura popular que, ou
bem promovem posturas conservadoras ou bem impulsionam apostas dissidentes.
Esta mesma ambiguidade faz com que tais culturas se voltem, receosas, sobre suas
próprias reservas de memória e desejo ou incursionem nos terrenos adversários e
tome deles novos argumentos para corroborar suas particularidades e retomar, quiçá,
seus velhos caminhos.
Assumindo essas suposições, podemos caracterizar a cultura popular como o
conjunto de práticas, discursos e figuras particulares de setores inseridos desfavoravelmente no cenário social e marginalizados, portanto, do acesso a diversas instâncias de poder. Essa desvalorização determina que não convém às culturas populares
o modelo instituído de representações e optem por continuar desenvolvendo formas
alternativas de produção simbólica. O conceito de “arte popular” designa um campo específico nos territórios da cultura popular. Refere-se a pontos intensificados,
difíceis e próprios: tensões, discordâncias e rupturas, retrocessos, contradições e irritações formais ocorridos neste campo e direcionados para repensar o sentido social
através de diversas manobras formais. Como defendido, tais manobras, realizadas
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paralelamente às da arte hegemônica, não operam de forma autônoma, mas concorrentemente e até fusionada com outros movimentos que compõem o fazer social.
Com base nestas considerações, a arte popular pode ser identificada através de
suas três características.
a negação
Essa característica parte da posição assimétrica em que se encontram os setores populares: marginalizados de uma presença plena nas decisões que os envolvem,
excluídos de uma participação efetiva na distribuição dos bens e serviços sociais e ignorados na sua contribuição com o capital simbólico da coletividade. Historicamente,
o conceito de povo é, assim, definido por exclusão: a plebs, os resíduos da república
autoconciliada, o Terceiro Estado (que não pertence nem à Nobreza e nem ao Clero),
o não dominante, o não proprietário, o não ocidental, etc. A arte popular abrangeria
o restante do que não é nem erudito, nem massivo, e cresceria marcada pelo estigma
do que não é.
a afirmação
As discussões da teoria crítica cultural debateram o termo “popular” não tanto mediante uma carência (o marginal, o excluído, o subalterno), mas a partir de um
movimento produtivo que intervém na constituição das identidades e na afirmação
da diferença. Portanto, embora o conceito de “arte popular” tenha sido definido a
partir da omissão e desenvolvimento enquanto antagonista (o oposto à arte hegemônica), atualmente, parece conveniente salientar seus momentos positivos: a arte
popular implica num projeto de construção histórica, num movimento ativo de interpretação do mundo, de constituição de subjetividade e da afirmação de diferença.
Através da criação de formas alternativas, diferentes coletividades produzem suas
próprias histórias e antecipam modelos sustentáveis de futuro: realocam os marcos
da memória e reimaginam os argumentos do pacto social. A consistência autoafirmativa da arte popular constitui um ponto de referência fundamental de identificação coletiva e, portanto, um ingrediente de coesão social e um fator de resistência
cultural e contestação política.
a diferença
A criação artística popular tem características particulares, diferentes das que
definem a arte moderna ocidental. Não cria para a beleza um cenário à parte, nem
reivindica a originalidade de cada peça produzida, nem aspira à genialidade, nem à
constante inovação. No entanto, é capaz de propor outras maneiras de representar o
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real e mobilizar (ou interferir, transtornar) o fluxo de significação social. Em diversas
regiões da América Latina, povos afastados e vigorosos criam obras que repetem
ou renovam as normas tradicionais, dependem ou não de várias funções, produzem
individualmente ou em série e correspondem a criadores reconhecidos ou autores
anônimos ou coletivos, capazes de assumirem perspectivas próprias para tentar expressar o que está além da última forma; é essa a função da arte e é esse seu destino
ou sua condenação.
a arte popular enquanto latino-americana
oS lugareS da periferia
Esse item tem o objetivo de aprofundar o tema das relações entre o conceito de
arte popular, confrontando-o com as circunstâncias do cenário global e as exigências
de uma inevitável posição sobre o universal. Visando a fazê-lo, recorre-se então a um
quadro mais amplo e se traz à tona a arte latino-americana enquanto periférica.
A questão que se coloca para todas as formas subalternas de arte e cultura é
determinar até que ponto podem dar conta de suas próprias histórias empregando
(embora parcialmente) sistemas de representação marcados por modelos hegemônicos. Nesse caso, a arte periférica, produzida na América Latina, desenvolve-se tanto mediante a estratégias de resistência e conservação como mediante a práticas de
apropriação, cópia e transgressão dos modelos metropolitanos; tais práticas enfrentam, portanto, as de assimilar, distorcer ou rejeitar os paradigmas centrais em relação
à memória local enfrentando projetos históricos particulares.
O modelo de oposição centro-periferia a partir do qual geralmente é trabalhado o conceito de “arte latino-americana” apresenta problemas. Expressa a partir do
lugar do centro (o chamado “Primeiro Mundo”), a periferia (ou “O Terceiro Mundo”)
ocupa o lugar do outro. Isso significa o inevitável lado obscuro do Eu ocidental: a
cópia degradada ou o reflexo invertido da identidade exemplar. Segundo essa perspectiva, o outro não representa a diferença que deve ser assumida, mas a discrepância
que deve ser corrigida: não atua como um Eu alheio que interpreta equitativamente o
Eu enunciador, move-se como o revés subalterno e necessário desse. E ambos se encontram ligados entre si mediante um enfrentamento essencial e espetacular que congela tais diferenças. A partir desse esquema, a arte indígena é considerada ou como a
matriz a-histórica das verdades originais ou como ingrediente primeiro ou o tempero
da alegre salada pós-moderna: o guizado kitsch que exige o novo mercado do exótico.
Para discutir esse modelo, convém imaginar estratégias para responder à hegemonia central que não passem pelo mero antagonismo reativo. Diante da oposição
metafísica entre o um e o outro (o centro e a periferia, o latino-americano e o universal), cabe assumir a mútua inclusão dos termos opostos e imaginar um terceiro espaço
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de confronto ou de mudanças. Não se deve esperar, portanto, um resultado definitivo
para a oposição centro/periferia, cujos termos flutuam sempre empurrados por discórdias e diversos acordos. O desprendimento desses termos possibilita reivindicar
a diferença da arte latino-americana, não mediante sua impugnação abstrata para os
modelos de arte central, mas a partir de posições próprias, variáveis, determinadas
por interesses específicos. Desprendidas de posicionamentos fixos, oscilantes – assim
como as posições centrais, as artes periféricas adquirem uma mobilidade que lhes
permite deslocarem-se com agilidade. Então, podem mudar suas posições para organizar, discutir ou se enfrentarem em movimentos que respondem aos acasos da contingência histórica antes que a um quadro formal de oposições lógicas. Essa condição
permite exercer a diferença cultural não como mera reação ou resistência defensiva,
mas como gesto político afirmativo, obediente de suas próprias estratégias. Não se
trata, pois, de contestar ou aceitar o que vem do centro porque vem de lá, mas porque
é conveniente, ou não, para um projeto próprio.
A partir dessas considerações, a arte latino-americana pode deixar de ser concebida como uma figura autossuficente, idêntica a si mesma: como um santuário
consagrado à origem mítica, o final feliz de uma heroica síntese histórica ou o outro
lado relegado da arte universal. Por isso, falar de “arte latino-americana” pode ser útil
na medida em que seu conceito não designa uma essência, mas uma seção, pragmaticamente recortada por razões políticas, conveniências históricas ou eficácia metodológica; enquanto permite nomear um espaço, discursivamente construído, no qual
coincidem ou se cruzam jogadas alternativas de significado e propostas que resistem
a ser enunciadas a partir das razões do centro.
elogio do deSencontro
Encobridora de conflitos, a história oficial recorreu ao eufemismo “encontro
de culturas” para se referir ao brutal choque intercultural que a Conquista pressupôs
sobre os territórios indígenas. Felizmente, o termo “encontro” em espanhol deve-se
a dois significados distintos, conflitantes às vezes; tanto designa uma coincidência,
como uma colisão: um mal-entendido. Grande parte da diferença cultural pode ser
considerada assumindo-se este duplo sentido: é cruzamento e choque, mas sobretudo,
é diferimento e deslocamento.
Na América Latina, a modernidade da arte popular, como a de outras formas
de arte, desenvolve-se a partir dos desencontros causados pela linguagem moderna
central ao citar outras histórias e ser nomeada por outros sujeitos. Suas melhores
formas originam-se através de deslizes, equívocos e mal-entendidos; equívocos involuntários e lapsos inevitáveis. Mas, também surgem das distorções que produzem
cópias sucessivas, das dificuldades na adoção de signos que supõem técnicas, razões
e sensibilidades diferentes e, claro, do desejo consciente de adulterar o sentido do
protótipo. Assim, muitas obras destinadas a construir degradadas cópias dos modelos
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metropolitanos recuperam sua originalidade enquanto por erro, ineficácia ou vontade
transgressora pressionam o curso do sentido primeiro. Fiéis, às vezes, às suas aspirações anticolonialistas ou ao ritmo de seus próprios tempos: presas, outras vezes,
aos atos fracassados, aos desatinos e confusões, as diversas formas de arte latino-americana fizeram alterações dramáticas dos tempos, da lógica e dos contextos das
propostas modernas.
Assim, as culturas periféricas são desencaixadas em relação às figuras propostas ou impostas pela modernidade central, que sempre se apresentam diferidas,
diferentes. Apesar de a hegemonia já não ser exercida a partir de posicionamentos
geográficos nem expressa em termos absolutos, as posturas que assumem diante de
seus preceitos ou de seus cantos de sereia continuam sendo uma referência fundamental da arte latino-americana, definida em grande parte a partir dos jogos de olhares que interceptam o centro; a partir das lutas em torno do sentido. E, por isso, a
tensão entre os modelos centrais e as formas apropriadas, transgredidas ou copiadas
pelas periferias, ou as impostas, constituem um tema que permanece em vigor e exige
deslocamentos contínuos.
Este conflito ocorreu nos primórdios e, a seu modo, continua ocorrendo. A
colonização europeia dos territórios latino-americanos significou um processo de
desmantelamento das culturas autóctones e de violenta imposição das linguagens
imperiais. Também, enquanto pode assumir uma postura própria diante desta situação
(seja de resignada aceitação ou de rejeição enfurecida, seja de complacente apropriação ou apreensão calculada), a arte popular colonial consegue definir formas particulares de expressão. Guarda em sua origem a memória de terríveis processos de etnocídio e de rancor, de esvaziamento e perseguição. Mas, suas formas não traduzem
fielmente esses conflitos, e não os resolvem, aliás, nem eficaz e nem simbolicamente.
Simplesmente, afirmam-se animadas por suas tensões, pelo esforço que supõem enfrentar, pelas energias que despendem, quiçá.
Como os primeiros indígenas catequizados, que começaram copiando submissamente os modelos barrocos e terminaram desmontando o sentido do protótipo, assim, muitas outras formas foram capazes de torcer o curso do caminho imposto pela
direção hegemônica. A arte popular mestiça, cultivada, então se consolidou através
das profundas distorções e contratempos, bem como por ferozes lutas em torno do
sentido resultando numa arte diferente. O que foi concebido como produto de cópia
de segunda mão acabou se tornando uma nova expressão.
É que os projetos da dominação nunca puderam ser inteiramente realizados.
E, isso é assim não apenas porque as estratégias do poder tornam-se, a partir de
certo porto, descontroladas, mas porque os terrenos do símbolo são essencialmente
enganosos e abrigam um vazio central que não pode ser preenchido. Assim, os mais
difíceis processos de dominação cultural, os casos mais ferozes de etnocídio, não
podem cobrir a totalidade do campo colonizado e deixem, apesar disto, uma faixa
livre. Nesse vazio opera a diferença; a partir daí, primeiramente os índios, e depois
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os mestiços e os crioulos produziram, às vezes, (sub)versões particulares, obras que
chegaram a ser em algum momento de alguma verdade própria e escaparam, assim,
do falso destino que lhes havia atribuído o projeto colonial. Como referido, em muitos casos os indígenas começaram imitando meticulosamente os patrões ocidentais
e terminaram subjugando o sentido dos modelos. Desse mesmo modo, ao longo do
tempo rompido que começava então, as melhores formas da arte latino-americanas
foram (são) aquelas que conseguiram se afirmar na breve insubstancialidade, deixando abertos os desequilíbrios do poder e a perda da imagem, e puderam se nutrir dos
ímpetos condensados que ali se refugiam.
a arte indígena perante a modernidade
A falência do sistema de produção artesanal, gerada pela revolução industrial,
perturba profundamente o destino da cultura popular; de toda a cultura, na verdade.
Por um lado, ela instaura o divórcio entre os reinos privilegiados da arte – relacionados com a autonomia da forma – e os terrenos inferiores do artesanato – herança
de prosaicos empregos utilitários. Por outro lado, dentro dos próprios produtos utilitários, aquela revolução estabelece uma separação nítida entre os manufaturados
artesanalmente na forma tradicional e os fabricados de maneira industrial. Essas
separações se exacerbaram durante a pós-industrialização e a hegemonia dos mercados globais, quando a massificação tecnomidiática e a mercantilização do cultural
chegaram a extremos nunca antes previstos. Portanto, o futuro das artes populares,
baseadas em grande parte no artesanato, parece estar condicionado por suas oposições, enlaces e confusões com a arte pictórica, de um lado, e a cultura massiva, por
outro. Esse duplo condicionamento refere-se a questões do alcance das mudanças
na arte popular.
oS privilégioS da mudança
Grande parte do discurso sobre a cultura popular indígena encontra-se na
América Latina tingido pelos discursos nacionalistas e populistas que se encontram nas origens das definições oficiais do que é popular. O nacionalismo considera a Nação como uma substância completa encarnada no Povo, concebido como
conjunto social homogêneo e compacto: um sujeito ideal que nada tem a ver com
as exclusões e as misérias que sofrem os indígenas reais. Mitificada, a produção
artística vira fetiche ou relíquia, remanescente fixo de um mundo condenado à
extinção. Congelada em sua versão mais pitoresca, a arte popular é convertida em
exemplar sobrevivente de um mundo nativo arcaico cuja mesmice deve ser preservada nos avatares da história.
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Este argumento romântico, discurso de ideologias nacionalistas que precisam
fundamentar o Ser Nacional sobre bases incólumes, promove uma diferença básica
entre a arte culta e a popular. A primeira é forçada a inovar continuamente sob a
ameaça de perder atualidade; a segunda é destinada a permanecer idêntica a si mesma sob pena de adulterar seus verdadeiros valores e corromper sua autenticidade
original. Assim, usando esse esquema categórico, intransigente, lhes são atribuídos
postos e funções segundo a escrita pré-fixada da história: à arte popular corresponde
o passado; à culta, o futuro. Uma deve dar conta de suas raízes e ser a depositária da
alma indígena ou da mestiça; a outra deve ser rapidamente lançada para o percurso
linear e contínuo do progresso.
Embora voltaremos a esta questão, devemos antecipar que uma dicotomia
equivalente afeta o pensamento da relação entre o universal e o particular: uma arte
própria, local, autêntica e original opõe-se à universalidade como se constituindo
uma substância inteira e fechada, alheia. Tal dicotomia é responsável pelo velho dilema: ou se mantém a pureza ancestral ou se dilui o legado da memória nos fluxos
abstratos do Todo. Essa falsa alternativa promoveu inúmeras e desnecessárias dicotomias e simplificações.
Desde os primórdios modernos, a arte da América Latina tem sido discutida,
cheia de culpas, diante de disjunções geradas sobre o mesmo princípio: a fidelidade
à memória versus o acesso à contemporaneidade. Ou mesmo: o atraso da província
versus a subserviência diante do poder das metrópoles. Mas, está comprovado que
a alternativa entre autoconfinamento e alienação é inútil; a reclusão de identidades
supostamente intactas é tão perigosa como a adoção servil dos cânones coloniais.
O enclausuramento não é uma boa estratégia; a melhor alternativa para a expansão
imperial é manter o passo e tentar reformular e transgredir as regras de seu jogo em
função dos próprios projetos. Por isso, as perguntas sobre se as culturas tradicionais
podem ou não mudar ou o que deveriam conservar de seus próprios acervos e o que
sacrificar desses está mal colocada: em nenhum caso podem ser resolvida fora do
âmbito de suas próprias culturas envolvidas. Qualquer uma delas é capaz de assimilar
os novos desafios e criar respostas e soluções na medida de suas próprias necessidades. Segundo essas, a arte popular pode conservar ou descartar tradições centenárias
tanto como descartar vigorosamente ou aceitar com vontade as inovações repentinas
trazidas pela tecnologia ou pelas vanguardas da arte.
Não existe nenhuma “autenticidade” na arte fora do projeto da comunidade
que a produz. Por isso, qualquer apropriação de elementos externos será válida na
medida em que corresponda a uma opção cultural válida, enquanto que a mínima
imposição de padrões alheios pode prejudicar o ecossistema de uma cultura subordinada. Obviamente, aquela apropriação e o transtorno nada têm a ver com origens nem
com fundamentos: são questões políticas. E enquanto tais, supõem disputas em torno
do sentido e envolvem, novamente, a questão da diferença.
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aS outraS modernidadeS
Embora a arte popular latino-americana compartilhe com o vanguardismo pictórico a condição assimétrica do periférico, existem diferenças que devem ser destacadas em relação ao projeto moderno. Quando os artistas populares, especificamente os indígenas, apropriam-se de imagens modernas ou contemporâneas, não estão
cumprindo um programa explícito de assimilação ou impugnação das linguagens
metropolitanas: respondem a estratégias de sobrevivência ou expansão; incorporam
com naturalidade novos recursos para continuar seus próprios trajetos, iniciados em
tempos pré-colombianos, na maioria das vezes; tomam posse de figuras com as quais
cruzaram um olhar de identificação ou um piscar de olhos sedutor.
Isto é, o emprego que faz a arte indígena do capital simbólico moderno ocidental não é uma postura sistemática assumida diante da questão sobre se cabe ceder
diante dos feitiços da modernidade ou sacrificar a “autenticidade”. Por isso, estas
apreensões, empréstimos ou intercâmbios culturais carecem da gravidade e do ar de
culpados pelas apropriações vanguardísticas da arte pictórica. E, por essa razão, as
culturas populares utilizam, sem muito melindre e cortesia, formas, recursos e procedimentos contemporâneos e ainda disputam artisticamente circuitos tradicionalmente
reservados à cultura massiva ou erudita.
É que o acesso à modernidade, a partir do subalterno, ocorre de forma estranha à lógica moderna e, consequentemente, implica em um incômodo, quando não
em uma contrariedade, para seu desenvolvimento ordenado. Os principais temas da
agenda moderna (a ideologia programática, as figuras de tendência, o progresso, a
atualização e a ruptura, a autonomia do estético, o peso da autoria etc.) continuam
ocultos na produção artística popular, mesmo quando ela se aventura em áreas regidas por racionalidades modernas. Por isso, os artistas indígenas e mestiços aceitam,
ou subtraem, imagens e conceitos novos enquanto úteis para suas próprias histórias.
E, quando o fazem com talento e convicção, produzem resultados genuínos, formas
recentes ou velhas figuras revividas: autênticas em sua radiante impureza.
aS outraS póS-modernidadeS
Esses processos impuros de misturas que produzem as outras modernidades –
as modernidades paralelas ou as submodernidades – são uma das forças que elevam
e interrompem o promíscuo cenário cultural contemporâneo. O conceito de “hibridismo cultural” refere-se em parte ao intercalado espaço global no que coincidem,
parcialmente deformadas, a arte culta, a de massa e a popular, mescladas entre si, às
vezes de maneira demasiadamente precipitada. Sem dúvida, esse conceito permite
assumir melhor a trama espessa de transculturações e, assim, discutir tanto os substancialismos que estereotipam o popular como os historicismos que fazem do futuro
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ilustrado a última forma verdadeira e bem gerenciada. Mas, este mesmo conceito, o
de “hibridismo”, torna-se problemático quando cai na armadilha que trai e se torna,
por sua vez, essencializado. Este risco remete a duas questões. A primeira tem relação
com a absolutização do fragmento; a segunda, com a essencialização do híbrido.
Primeira questão: meDiações
A primeira questão (referente a um tema já mencionado) coloca-se frente às
posições que substancializam a particularidade e fazem da dispersão um destino inevitável. O descrédito das totalidades e dos conceitos e o abandono dos grandes relatos
modernos promovem a abertura de um cenário favorável à diferença pluricultural. No
entanto, a proliferação das demandas particulares ocorre em detrimento dos princípios da emancipação universal de origem pictórica. Fechada em si mesmas, as posições que exaltam a segmentação e a consideram como uma categoria autossuficiente,
acabam promovendo a desarticulação das demandas particulares e atrapalhando a
possibilidade de que elas compartilhem um horizonte comum de sentido. E impedem,
assim, a convergência dos interesses setoriais em projetos coletivos, indispensável
não apenas para a consistência do corpo social, mas também para a eficiência dos
próprios desempenhos particulares. Confrontadas entre si, a partir de códigos comuns
que facilitam a negociação e o intercâmbio, as culturas indígenas têm melhores possibilidades de escreverem suas demandas num campo aberto ao interesse público.
Por outro lado, essencializar a diversidade gera espaço para novos sectarismos
e diversos autoritarismos e pode obscurecer a perspectiva de universalidade que todo
projeto de arte requer como horizonte de possibilidades. Daí a necessidade de refletir
sobre bases mais complexas de tensão entre o particular e o universal. E essa operação requer conceber ambos os termos não como relativamente autônomos nem momentos de uma relação binária inevitável, mas como forças variáveis, cuja interação
mobiliza as negociações e supõe reposicionamentos, avanços e retrocessos, conflitos
nem sempre resolvidos, soluções temporárias, inesperadas. Mas, o cenário confuso,
fecundo, onde essas forças atuam, requer a mediação de políticas culturais, instâncias
públicas localizadas acima das lógicas setoriais. Tanto como garantir a diversidade,
essas mediações devem proporcionar condições adequadas para o confronto intercultural. E devem encorajar a possibilidade de que os direitos das minorias coexistam
com olhares de conjunto. Olhares que permitam cruzar projetos além do imediatismo
das demandas particulares e podem coordenar os discursos e as práticas sem substantivizar todos e nem expor as diferenças.
Por isso, é importante posicionar a questão das identidades locais no espaço da
sociedade civil, cenário preparado para negociar a disputa entre as demandas parciais
e o bem comum. E, ali posicionada, convém vinculá-la com a figura da cidadania. Se
aquelas salientam o momento particular, esse enfatiza o universal. A ideia de cidadania indígena torna-se fundamental para garantir formalmente as condições simétricas
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do jogo do setorial e do geral, do próprio e do alheio, que mobiliza e expõe o curso da
cultura. E se torna imprescindível para imaginar a participação dos povos-outros na
utopia necessária de uma cidadania global firmada sobre as diferenças.
segunDa questão: miscelâneas
Ao exaltar a mistura cultural, certas tendências pós-modernas, geralmente
acadêmicas e relacionadas com o multiculturalismo norte-americano, veem nela um
emblema do latino-americano pós-moderno “típico”: o híbrido marginal e exótico,
que celebra ritos ancestrais bebendo Coca-Cola. Assim, o conceito essencializado da
identidade baseada no “autêntico” é substituído pelo conceito fetichizado de identidade definido em seu momento de pura mistura e se converte num banal pout-pourri;
a imagem folclorizada da extrema alteridade contemporânea: aquela capaz de misturar artisticamente os elementos mais díspares.
Acerca dessa posição, as ideias de abolição de todas as fronteiras interculturais e de desterritorilização absoluta das identidades, reimaginam o espaço simbólico
planetário como uma superfície homogênea e conciliada, implantada. Derrubadas as
fronteiras, misturados entre si todos os signos e as imagens, o novo cenário mundial é
projetado como uma totalidade palpitante e nervosa, em cujo intrincado interior torna-se impossível distinguir os sinais da diversidade. Essa posição impede de reconhecer
o fato que, mesmo que as distintas culturas vejam seus contornos borrarem-se, comercializam entre si técnicas, ideias e imagens e bebem com resignação ou entusiasmo
de um capital simbólico cada vez mais indiferenciado, cada uma delas mantêm os
próprios lugares onde participam do festejo global ou de suas migalhas. E, enquanto
conservarem a validade de seus argumentos, as culturas indígenas serão capazes de
ter cautela com o domínio de suas matrizes de significação e da peculiaridade de seus
projetos históricos. Diante disto, combinarão os ingredientes do menu global de forma
específica e farão com que eles resultem distintos em cada cenário específico.
Por isso, embora a arte indígena não possa ser atualmente considerada como
um corpo completo e fechado, impermeável em suas formas, à cultura erudita e à industrializada, é importante que sua diferença seja preservada. As disjunções binárias
que o popular fatalmente enfrenta – seja com o ilustrado, ou com o massivo – precisam ser removidas. No entanto, essa operação não deve assumir a alegre equivalência
de todas as formas, nem ignorar a pluralidade dos processos de identificação e subjetividade. A partir de suas memórias e suas distintas posições, diante de questões cada
vez mais compartilhadas, as diversas comunidades étnicas atribuem-se o direito de
escrever, a seu modo, a memória comum e produzir objetos e acontecimentos que antecipam possibilidades alternativas para o futuro. Um futuro cujas tantas sombras só
podem ser rompidas pelo corte de imagens construídas pelas próprias coletividades.
35
breveS interSecçõeS
Uma vez salvaguardada a especificidade da arte indígena e antes de encerrar
este artigo, não devermos esquecer da relação que aquela arte mantém com outros
sistemas culturais com os quais compartilha o cenário contemporâneo: a massificação cultural e a arte pictórica.
Desafios massivos
No que se refere ao primeiro sistema, parte-se da informação que as indústrias
culturais e as tecnologias massivas de comunicação e informação causaram um forte
impacto na recomposição da vida cotidiana, da educação, da transformação dos imaginários e das representações sociais e, portanto, na dinâmica do espaço público. É
indiscutível que os processos de massificação dos públicos, assim como os de homogeneização e de cruzamento intercultural que a industrialização da cultura promove,
podem significar um acesso mais amplo e equitativo aos bens simbólicos universais,
podem enriquecer os acervos locais e permitir apropriações ativas dos públicos. Contudo, a efetivação dessas possibilidades requer a oferta de condições históricas propícias: existência de níveis básicos de simetria social e integração cultural, validade
de formas elementares de institucionalidade democrática, mediação estatal e ações
de políticas culturais capazes de promover produções simbólicas próprias e relações
transnacionais equitativas, assim como de regular o mercado e combinar os interesses
desse com os da sociedade civil.
É óbvio que essas condições estão muito longe de serem cumpridas nas castigadas sociedades latino-americanas. Então, corre-se o grave risco de que, superada uma
contrapartida sociocultural desgastada e vulnerável, a expansão avassaladora do novo
complexo tecnológico cultural agrava as desigualdades, arrasa com as diferenças e
acaba adiando as possibilidades de integração cultural e, portanto, as de mobilidades e
de coesão social. E, então, qualquer política que vise a facilitar o acesso democrático
ao novo mercado cultural e pretenda que esse movimento se apoie sobre um capital
simbólico próprio deve enfrentar grandes questões que envolvem distintas dimensões
como: fortalecer a produção significante própria de modo que sirva de base para as
indústrias culturais endógenas e em contrapartida das transnacionais; fazer com que
essas sejam canais de experiências democratizadoras; impulsionar um consumo mais
participativo; e, olhando além, promover integração social e convocar a presença do
Estado no cultural; e mais além ainda, erradicar a exclusão e a assimetria, valorizar a
esfera pública e impulsionar instâncias efetivas de autogestão indígena.
Obviamente, este artigo não se destina a responder a essas perguntas descomedidas. Mas, deseja mantê-las abertas, pois trazem o contorno dos principais desafios
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que as formas tradicionais da arte enfrentam para preservar sua validade em meio a
um cenário bruscamente alterado.
Na verdade, aquelas formas tradicionais sabem como criar formas para transitar nesse espaço confuso. Constitui um lugar comum no âmbito dos estudos sobre
cultura que atualmente negam uma oposição enfática entre o massivo e o popular.
Paralelamente ao caso de milenárias experiências civilizatórias arrasadas, é evidente
a emergência de uma nova cultura popular constituída a partir de um sistema ativo
de consumo: diversas estratégias que, apesar das grandes assimetrias supracitadas,
permitem apropriações dos sistemas tecnológicos e industrializados e geram vínculos com a própria experiência e com o próprio projeto. Mas, coincidentes em grande
parte com esses sistemas e frequentemente entrelaçados com eles, persistem obstinadamente os modelos organizados entorno de matrizes simbólicas próprias de origem
tradicional que lutam por acautelar sua diferença, mesmo apelando para formas cada
vez mais mescladas.
a PromiscuiDaDe Da aura
Quanto à segunda questão, a que se refere às relações entre a arte indígena e
a erudita contemporânea, ocorre uma coincidência imprevista, produzida paralelamente ao interesse que aquela desperta nessa e ao trânsito, mais ou menos furtivo,
que ambas mantêm. Acontece que, ao anular a autonomia da arte, a estetização difusa do mundo cancela a distinção kantiana que separava a forma do objeto, de seus
usos e utilidades. A arte contemporânea vacila diante da alteração imprevista de seus
privilégios e da queda de seus domínios preservados. Em princípio, o martírio da
autonomia da arte, o sacrifício da aura, tem um sentido progressista e corresponde a
um esforço democratizador: permitiria a conciliação da arte e da vida cotidiana e do
acesso massivo à beleza: produziria o feliz reencontro da forma e da função. Mas,
paradoxalmente, a velha utopia de estetizar todas as esferas da vida humana foi cumprida não como conquista emancipatória da arte ou da política, mas como conquista
do mercado (não como princípio de emancipação universal, mas como cifra de rentabilidade na escala planetária). A sociedade global da informação, da comunicação e
do espetáculo estetiza tudo o que encontra no seu caminho. E esse transbordamento
da razão instrumental, essa metástase da bela forma, neutraliza o potencial revolucionário da perda de autonomia da arte. O velho sonho vanguardista fraudou a arte pelas
imagens complacentes, onipresentes, do design, da mídia e da publicidade.
Diante dessa situação, reconquistar o lugar obscuro da arte, recuperar a preocupação da ausência – a dimensão da existência aurática, em suma – pode ser um
gesto político contestatório: uma maneira de resistir ao autoritário nivelamento do
sentido formatado pelas lógicas rentáveis. A autonomia da arte foi cancelada não
em vista da liberação de energias criativas limitadas pelo cânone burguês; o foi em
função dos novos imperativos da produção mundial que fazem dos fatores desagre-
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gados da arte (beleza, inovação, provocação, surpresa, experimentação): o estímulo
da informação, insumo da publicidade e o tempero do espetáculo.
Não se trata, obviamente, de restaurar a tradição autoritária e idealista da aura,
mas de analisar seu potencial dissidente e crítico: a distância aurática abre um lugar
para o jogo dos olhares, relega a plenitude do significado e permite registrar a diferença. Esse é o ponto no qual a arte indígena – isenta de autonomia em suas formas,
tensa de brio aurático – pode demonstrar que as notas que marcam aquela tradição
idealistas são efêmeras. E, então, permite imaginar outras maneiras de precaver o
enigma e, através do trabalho da distância – do domínio dos olhares – manter habilitado o (não) lugar da diferença, o (não) tempo da discrepância.
O segredo da arte indígena mantém aberto o espaço da pergunta e o curso do
desejo, sem participar das notas que fundamentam o privilégio exclusivista da aura
iluminada: da obstinação individualista, do esforço de síntese e de conciliação, da
vocação totalizadora, da pretensão da singularidade, da arrogância da autenticidade
ou da ditadura do significante. Na arte “primitiva”, a aura que anula o objeto e o faz
ficar no instável desacordo com sua própria aparência, não invoca o poder da forma
pura e autossuficiente: ilumina, promiscuamente, por dentro, o corpo inquietante de
toda a cultura. E como bem quisera a arte contemporânea, faz da beleza um vestígio
arisco e breve do real.
modoS de arquivo:
o corpo, a cidade, a expoSição
corpo reflexivo na cidade: um modo de arquivo
João a. frayze-Pereira1
Para considerar a situação do corpo na cidade, um aspecto importante a se
lembrar inicialmente é que a cidade não se oferece àqueles que a ocupam como uma
entidade abstrata ou apenas como um espaço para certos usos técnicos. Há uma dimensão biográfica da cidade em que vivemos, que confere à cidade o sentido de
nosso “lugar de vida”. Nesse caso, mesmo a metrópole contemporânea pode acabar
dando lugar à imagem de uma imensa casa, um espaço imaginário que diria respeito
à cidade própria que muitos atravessam apenas em sonho. (BACHELARD, 1957;
LEDRUT, 1970, p. 85) No entanto, a cidade contemporânea tem insônia. Ou seja,
sempre em vigília, olhos bem abertos como uma mãe sagaz
e diligente, ela permite que nós, seus habitantes, conciliem o
sono e sonhem por ela. Assim, com a cidade, temos pesadelos,
preocupações, dúvidas, desejo de abandono, raiva, desprezo,
certamente amor e, mais do que tudo, uma profunda curiosidade. Conhecê-la intimamente em seus segredos e particularidades, seguindo caminho através dos fios ocultos de sua
trama, podem-nos acomodar e, assim, conciliar o nosso sono.
(TANIS e KHOURY, 2009, s/p.)
Então, se fosse possível registrar graficamente o sentido da cidade resultante
da experiência onírica dos habitantes e nos dispuséssemos a traçar imaginariamente
um mapa dos itinerários percorridos por eles em um só dia, segundo Argan (1992, p.
231), que não é psicanalista, obteríamos um quadro abstrato e expressionista, talvez
1.
João Augusto Frayze-Pereira. Professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP (IP USP) e
do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
42
uma imagem semelhante a uma pintura de Pollock, só que bem mais complicado,
com milhares de sinais desprovidos de qualquer significação. Mais ainda,
[...] se nos empenhássemos em seguir qualquer um desses percursos individuais e tivéssemos condições de compará-lo com
o percurso que aquele dado indivíduo deveria ter seguido, obedecendo aos motivos ‘racionais’ dos seus movimentos (p.ex.:
ir ao trabalho e voltar para casa), perceberíamos o quanto são
diferentes. Enfim, o percurso real tem apenas uma leve relação
com [...] o percurso lógico [...]. (ARGAN, 1992, p. 231-232)
Ora, isso se verifica, porque esse indivíduo é como um personagem de Joyce
que se move nas ruas de Dublin, obedecendo a uma série de hábitos e desejos incontrolados, mas nem por isso sem motivo. Qualquer um de nós que experimente analisar o próprio comportamento na cidade notará como nossas escolhas e itinerários urbanos são muitas vezes imprevistos – é aquela vitrine, a agência do correio, o monumento que desejamos ver sob certa perspectiva. Ou seja, estar na cidade envolve um
conjunto de pequenos rituais. E se observarmos o “quadro de Pollock”, formado por
esses percursos individuais, conhecendo as suas motivações secretas, perceberemos
que nada é arbitrário ou puramente casual. O emaranhado revelará certa ordem, um
ritmo da pulsação das cores, uma medida das distâncias, uma ordenação do espaço.
E assim como a pintura se revela, a paisagem interior da cidade é muito diferenciada,
mas tem uma lógica, um ritmo de fundo constante (ARGAN, 1992, p. 223). Entretanto, se o determinante dessa configuração espacial é o caminhar e a pintura permite a
visualização desse possível “texto urbano”, o mesmo não ocorre se nos colocarmos
no mesmo plano daqueles que se deslocam. Nesse caso, a visibilidade panorâmica
cessa e acabamos por ter que nos resignar à posição de corpos que se movem, criando
um mapa, um desenho que fazemos sem ver. Ora, no campo da experiência estética,
a deambulação citadina foi praticada por muitos artistas, desde os poetas do século
XIX aos artistas contemporâneos que, desde o final dos anos 1950, realizaram suas
intervenções na cidade. (HOLLEVOET, 1992). Nessas manifestações, diferentemente da pintura, realidade e representação confundem-se, pois a arte se realiza no tempo
e no espaço reais da própria cidade, ficando documentada através de esquemas, textos, fotografias e mapas. Quer dizer, se foi possível acreditar que a essência da cidade
moderna poderia ser apreendida graças a uma observação visual aguda e registrada
na forma de imagens miméticas como foi feito pela arte do começo do século XX,
as características da realidade urbana contemporânea têm sido percebidas de maneiras compatíveis com o próprio abalo da modernidade no momento contemporâneo
(BERMAN, 1986). Tais características foram conceptualmente apreendidas e transmitidas sob a forma de índices de uma situação efêmera ou de um conceito imaterial.
São peças de arquivo, dotadas da precariedade de um convite, de um cartaz, de um
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cartão postal, de um diagrama. E essas formas de apreensão do urbano (que podem
se dar através da performance ou do happening cuja função é romper com o instituído para facilitar a emergência de novas percepções), na verdade, acabam, por um
lado, abalando definitivamente o conceito de obra de arte, abalo que se iniciou com
Duchamp e que retoma a própria cidade como objeto artístico, denunciando aspectos
essenciais da contemporaneidade como a fragmentação e a descontinuidade. Mas, ao
mesmo tempo, destacam a presença do corpo como fundamento das suas ações para
além do que é costume supor. Ou seja, o corpo em questão é o “corpo reflexivo” que,
na filosofia contemporânea, ganha o estatuto de fundamento do conhecimento.
Mas, o que é o “corpo reflexivo”?
Para defini-lo é preciso lembrar, inicialmente, a tradição cartesiana que se estende até nós, segundo a qual se existe como coisa ou se existe como consciência. O
filósofo Maurice Merleau-Ponty examina o legado deixado por essa tradição e revela
que as duas posturas teóricas derivadas dela – o subjetivismo filosófico e o objetivismo científico – são apenas aparentemente antagônicas, pois ambas pressupõem a
dicotomia sujeito/objeto do conhecimento que transformou o próprio conhecimento
num problema e a relação com a alteridade num impasse. Ou seja, a relação entre o eu
e o outro, entre o eu e as obras de arte, torna-se impossível. De fato, o campo definido
por essa relação é ambíguo. A propósito, Virginia Woolf pergunta – Que sei eu do eu?
Que sei eu do outro, o outro mesmo, o de fora, não o nosso outro tão íntimo? Consigo, em algum momento, em um único momento, chegar até ele? A análise feita por
Merleau-Ponty das duas posturas filosóficas mencionadas mostra que ambas não são
capazes de dar conta da problemática encerrada pelo outro. Mas, quando o outro vem
a ser uma questão? A alteridade torna-se imediatamente um problema quando nos
damos conta de que, em nossa experiência cotidiana, o contato com o outro se dá, embora nada, em princípio, a não ser a minha fé ingênua na existência do mundo garante
que diante de mim esteja um outro eu e não uma coisa – algo que é ao mesmo tempo
idêntico a mim e diferente de mim, um ser habitado por uma interioridade. E mais do
que isso o problema se agrava tendo em vista que, nos quadros do objetivismo científico, assim como nos do subjetivismo filosófico, não existe o nós e o mundo social:
é, do ponto de vista ontológico, uma impossibilidade. A esse respeito, Merleau-Ponty
(1971) demonstra que se se concebe a percepção em função de variáveis exteriores,
como procede a Psicologia objetivista, se o homem nada mais é do que um detector
de estímulos, os outros homens, formadores de uma constelação sócio-histórica, só
poderão intervir como estímulos se reconhecermos também a eficiência de conjuntos
que não possuem existência física e que operam sobre ele não segundo suas propriedades imediatamente materiais, mas num espaço e num tempo sociais, conforme um
código social e, finalmente, antes como símbolos do que como causas. Se, entretanto,
não podemos esperar a constituição do outro a partir do objetivismo científico, não
será do ponto de vista do subjetivismo filosófico que veremos o outro nascer. Para
o subjetivismo é uma dificuldade compreender como uma consciência que constitui
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o mundo como ideia ou como representação pode pôr outra que seja sua igual e, em
consequência, também constituinte, dado que, imediatamente, é preciso que a primeira passe a constituída. Do ponto de vista de uma subjetividade constituinte, um “eu
penso” seria impossível deixar de reduzir o outro a um objeto – redução esta que se
constitui num impasse para o aparecimento da intersubjetividade. E só será possível
sairmos dele se renunciarmos à dicotomia sujeito-objeto. Assim, não é no plano da
relação de uma consciência com outra que esse impasse será ultrapassado. Mais precisamente, o que permite a ultrapassagem dessa dicotomia e dos impasses derivados
dela é o próprio corpo. Não o corpo como matéria objetiva, nem o corpo como ideia,
mas o corpo como um ser sensível que é capaz de sentir, isto é, como um sensível
que sente, como um corpo reflexivo. A questão é que meu corpo é simultaneamente
vidente e visível. Ao olhar todas as coisas, ele também pode se olhar e reconhecer
naquilo que vê o outro lado de sua potência. Diz Merleau-Ponty –
Ele se vê vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si
mesmo. É um si, não por transparência, como o pensamento que só pode pensar assimilando o pensado, constituindo-o, transformando-o em pensamento, mas um si por confusão,
narcisismo, inerência daquele que vê, naquilo que vê, daquele
que toca naquilo que toca [...]. Visível e móvel, meu corpo está
no número das coisas, é uma delas, preso no tecido do mundo
e dotado da coesão de uma coisa. Mas, porque vê e se move,
mantêm as coisas em círculo ao seu redor, são um anexo ou
um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do
próprio estofo do corpo. (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 18-9)
Sujeito e objeto para si mesmo e para o outro, ao mesmo tempo, o corpo é a
expressão concreta de uma existência ambígua, capaz de reflexão, afirma Merleau-Ponty, análogo a uma obra de arte. (1945, p. 176) Mas, nesse caso, o que se entende
por obra de arte? Resumidamente, é 1) um corpo autorreferenciado, uma Gestalt, junção insubstituível de uma forma e de uma significação, composta segundo a vocação
de cada artista, por exemplo, com pedras ou cores, com sonoridades musicais ou verbais; 2) uma organização ambígua que tem um duplo aspecto: expressar-se a si mesma
como corpo, com espaço e tempo próprios, em sua imanência, e conter, ao mesmo
tempo, um sentido transcendente, um mundo desconhecido, mais ou menos vasto de
possibilidades de existência, abstratas ou figurativas, aberto às interpretações; 3) um
campo paradoxal que não põe apenas em jogo o artista, mas também o espectador que,
mais cedo ou mais tarde, irá se deparar com questões (o que procura na obra e o que
recebe dela) que o implicam como participante do processo artístico (HAAR, 1994,
PAREYSON, 1984; MERLEAU-PONTY, 1964). Nesse sentido, como uma organiza-
45
ção reflexiva, o corpo permite a superação do clássico problema do conhecimento e
dos seus diversos impasses, assim como também sabemos que é por intermédio desse corpo reflexivo que se instaura ontologicamente a simbolização na percepção, na
linguagem, e no trabalho, portanto, na arte. Nesse sentido, se a experiência do corpo
consigo mesmo propaga-se na relação entre ele e as coisas, por extensão, expande-se na relação entre ele e outros corpos. Ou seja, se meu corpo é uma organização
sinérgica segundo a qual dois olhos veem, duas mãos tocam, realizando a experiência
de um único corpo diante de um único mundo, por que não existiria a sinergia entre
os diferentes organismos, se ela é possível no interior de cada um? Considere-se, por
exemplo, a experiência que advém no cruzamento das mãos. Em primeiro lugar, é
preciso lembrar que minhas duas mãos são as mãos de um só corpo, isto é, elas são
copresentes. Em segundo lugar, note-se que será por extensão dessa copresença que
o outro nos surpreenderá. No aperto de mãos, a mão de outrem vem ocupar o lugar
deixado por uma das minhas, “posso sentir-me tocado ao mesmo tempo que toco.”
(MERLEAU-PONTY, 1971, p. 138) E vale o mesmo para o campo da visão:
[...] assim que os olhares se prendem, já não somos totalmente dois e há dificuldade em ficar só. Esta troca, a palavra é
boa, realiza em muito pouco tempo uma transposição, uma
metátese: um quiasma de dois ‘destinos’, de dois pontos de
vista. Ocorre assim uma espécie de recíproca limitação simultânea. Tu tomas a minha imagem, minha aparência, eu
torno a tua. Não és eu, uma vez que me vês e eu não me vejo.
O que me falta é esse eu que tu vês. E a ti, o que falta é tu
que eu vejo. E por mais que avancemos no conhecimento um
do outro, quanto mais refletirmos, mais seremos outros [...].
(MERLEAU-PONTY, 1960)
Assim, abertos um para o outro, os corpos se entrelaçam. Instaurando-se entre
eles o circuito reflexionante, abre-se, então, a possibilidade de uma intercorporeidade. Em suma: sem precisar cometer qualquer violência epistemológica, pode-se
admitir que a minha perspectiva e a do outro são perspectivas diferentes e simultaneamente possíveis, que antes de ser subjetivo ou objetivo, o mundo é intersubjetivo, ou melhor, intercorporal. Então, pode-se dizer que a corporeidade adquire
filosoficamente um novo sentido, sentido que possui intrínseco caráter estético uma
vez que elaborado por uma reflexão sobre a experiência originária do sensível. E,
ainda segundo Merleau-Ponty, é a arte moderna a que pela primeira vez exprime essa
“deiscência” do ser entre o visível e o vidente criadora de uma profundidade que não
é objetivamente exibida. Tal foi a ambição da pintura moderna que, aderindo ao enigma do corpo, acabou se deixando levar por ele até produzir um espaço autofigurativo,
fragmento da espacialidade originária, parte que é emblemática do todo. E, nesse sen-
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tido, é uma pintura que desejou, como disse Kandinsky, “ver o invisível”, “remontar
do modelo à matriz”, ou, como dizia Klee, “não reproduzir o visível, mas torná-lo
visível”. Nesse movimento, a arte moderna descobriu perspectivas jamais vistas e
descentrou o espectador com relação a si mesmo e ao seu mundo de representações
pré-definidas, abrindo-o como seu outro para novas dimensões do Ser. Pollock com a
pintura e, depois dele, muitos contemporâneos com outras linguagens aprofundaram
a arte nessa direção. Nesse contexto, interior/exterior, corpo/obra, mesmo/outro são
dualidades que a Estética considera para pensar o enigma do envolvimento recíproco
do que vê e do que é visto, da impossível coincidência consigo mesmo do vidente e
do visível, do advento do mesmo à prova do outro, abrindo-se as perspectivas da arte
para um campo necessariamente plural, intersubjetivo e intrinsecamente reflexivo.
Consideremos dois exemplos.
Com uma obra construída ao longo de quarenta anos, marcada por rigor e coerência conceituais, sem se deixar afetar pelas tendências da moda e do mercado, Cristiano Mascaro (1996), arquiteto que se tornou bem conhecido como fotógrafo das
cidades, sempre se manteve longe dos clichês, dos estereótipos e dos lugares-comuns.
De fato, as imagens produzidas por Cristiano são contrárias ao espetáculo, nas quais
se registram com precisão e agilidade o acaso, o imponderável, as atmosferas. Conceitos como tiro fotográfico, instante decisivo, momento roubado e momento construído estão presentes na poética do fotógrafo. Como ele mesmo disse: “a fotografia
consegue capturar algo luminoso que está ali perdido naquela infinidade de coisas que
ninguém vê. Isto só ela é capaz de fazer”. Pode-se reconhecer aqui o “inconsciente
óptico” (Benjamim/Krauss), o “tornar visível o invisível” (Merleau-Ponty), ou, então,
o “fotografar o fundo da figura” (Arnheim). Há, no entanto, um aspecto da poética do
fotógrafo que subjuga todos os anteriores e que deve ser destacado: o ato de caminhar por intermédio do qual Cristiano desenvolveu o olhar. Como Cartier-Bresson,
ele também é um andarilho que percorre o mundo para registrá-lo. E, para definir o
seu processo de trabalho, usa a expressão “criar enquanto caminha” que articula as
ideias de criação e movimento compatíveis com a mobilidade das cidades. Cartier-Bresson dizia que o fotógrafo deve alinhar num mesmo eixo o cérebro, os olhos e o
coração. Esquecendo-se de si para tomar em consideração aquilo que surge diante de
si, Cristiano acrescenta mais um elemento ao eixo ditado por Cartier-Bresson: os pés.
Ou seja, ao olharmos as fotografias de Mascaro, vemos que o outro fotografado é a
cidade – a paisagem urbana – num certo modo se ser. E, nela, o pedestre aparece como
personagem anônimo que corresponde à discreta figura do fotógrafo. Mas, além dessa
correspondência identitária, para problematizar o modo de vida urbano, pode-se dizer
que o processo construtivo posto em ação por Cristiano em contato com o seu outro,
é simultaneamente um processo destrutivo. Nessa medida, alinha-se à tese tematizada por Monica Bonvicini na Bienal de Veneza de 2005: “criar é destruir”. Ora, para
arquitetos e urbanistas, criação e destruição são operações intimamente ligadas. Na
cidade, a maior parte das obras é desenvolvida após a demolição da estrutura anterior.
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Nesse sentido, ao considerarmos a relação entre arquitetura e inconsciente, devemos
lembrar que o trabalho do arquiteto incide em nossa dinâmica psíquica, envolvendo
importantes questões simbólicas sobre a vida e a morte (BOLLAS, 2009). Afinal, demolir uma estrutura existente e abrir caminho a uma nova atinge nosso próprio senso
de limite existencial e prediz nosso fim. Assim, a arquitetura estaria investida da tarefa
de sinalizar a morte na vida. Certos monumentos como o Beaubourg (Roger e Piano) e
Bilbao (Frank Gehry), por exemplo, são objetos altamente ambíguos, pois se criaram
como símbolos da nossa própria morte e, contudo, vão além. Como estruturas construídas, são objetos evocativos e representam marcos para nosso senso de orientação
no presente e de projeção no futuro. Isso significa que as cidades podem ser ambientes
facilitadores. E assim como uma das tarefas maternas é apresentar objetos à criança,
as cidades estão continuamente presenteando seus habitantes com novos objetos e
projetos que, ao circularem na imprensa, constituem importante elemento psíquico
na relação da população com o novo. Então, se um ambiente acolhedor significa um
ato de inteligência psíquica, como pensava Winnicott, uma cidade também pode ser
considerada uma forma viva e continente para sua população. Porém, quando nos
deslocamos através de nossas cidades, acabamos conhecendo relativamente pouco,
se é que de fato conhecemos algo, da grande maioria das construções cujo silêncio é
uma presença premonitória de nossa própria finitude. E mesmo que sejam evocativas,
passam a ser obeliscos silenciosos que demandam um considerável trabalho de decodificação para recuperar suas vozes. Entretanto, certas estruturas construídas, ainda
que delas quase nada saibamos, são importantes para nós. São parte de nossa vida
visual. E talvez existam para permanecer, na ordem da percepção e da imaginação,
como objetos silenciosos, preenchendo nossa necessidade de formas anônimas, de
vivermos na ordem visual e não apenas na ordem verbal. O fato é que nossa ignorância
da nomenclatura dos objetos faculta sermos tocados por sua forma. E assim como vivemos parte de nossa vida regidos pela ordem materna – aquele registro de percepção
que é guiado pelo imaginário – diferente da ordem paterna que nomeia os objetos e os
insere na linguagem, parte de nossas errâncias no mundo visual acontece num mundo
pré-verbal, organizado por afinidades sensoriais. Esse é um mundo que conhecemos,
sobre o qual não pensamos, e que, em muitos aspectos, não existe mais. Nessa medida, movimentando-se nesta organização inconsciente de lugares e de funções que
configuram uma cidade, o indivíduo encontrará lugares mais evocativos do que outros. É que, ao atravessarmos uma cidade, estamos engajados em certo tipo de sonho.
Ao atrair nosso olhar, cada objeto visual pode instaurar um instante de devaneio. Tal
perspectiva não escapa aos arquitetos, que certamente sabem do potencial evocativo
de qualquer obra, mesmo que o idioma psíquico que articula o devaneio advindo dos
cidadãos não seja conhecido. E que a criação de uma nova forma exija a ruptura da
antiga. É desse ponto de vista que as fotografias de Cristiano Mascaro – assim como
os trabalhos de outros que intervém nas cidades, como Ernest Pignon-Ernest (HUMBOLT, 1990) – se encontram com a arquitetura, uma vez que o uso criativo dos obje-
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tos implica destrutividade. Apenas para situar esse artista francês, lembro que, ao lado
de Daniel Buren et Gérard Zlotykamien, Pignon-Ernest inaugurou a arte urbana na
França. Sensível às injustiças sociais e políticas, ele trata temas como a violência e o
aborto (Tours, Nice, Paris, 1975), a exclusão e o exilio (Paris, 1979), a aids (Soweto,
2002) etc. E, no presente momento, o Museu de Arte Moderna e Contemporânea de
Nice aloja uma retrospectiva da sua obra (junho / 2016 –janeiro / 2017). Trata-se de
um artista natural de Nice que sobre o recente atentado, ocorrido na cidade, afirmou:
“esse atentado é o triunfo da incultura. E contra a incultura só temos uma arma – mais
cultura” (DUPONCHELLE, 2016). A proposição feita por esse artista é resumidamente a seguinte: agindo plasticamente sobre as paredes e pedras de cidades que escolhe – faz ressurgir um imaginário que se acreditava sepultado nas mais profundas
camadas do tecido urbano. Com instrumentos simples (o lápis, a tinta, a serigrafia, a
fotografia), o artista intervém na superfície das edificações e as desperta com milhares
de imagens que, coladas em lugares escolhidos por ele, são, a seguir, abandonadas
à própria sorte. Submetidas ao sol, à umidade, à fumaça, à chuva, transformam-se,
degradam-se, desaparecem. Contrárias à lógica publicitária que governa o espaço urbano, tais imagens não operam como out doors. A proposição do artista é criar na rua
um acontecimento visual que perturbe a percepção e force os passantes a rever o ponto
de vista fixo sobre o lugar que costumam atravessar sem vê-lo. E quanto à sua poética,
o próprio artista pondera:
[...] como um pintor se serve de cores, eu próprio sirvo-me dos
lugares, de suas qualidades plásticas, de seu espaço, de seus ritmos, de suas cores, mas também daquilo que não se vê, da história que sustentam, das lembranças que os frequentam e de sua
ressonância no imaginário dos passantes. (HUMBOLT, 1990)
A sua aproximação sensível das coisas dos lugares, o artista acrescenta a história da cidade e a história da arte nessa cidade. Trabalhando sempre à noite, o artista
não avisa ninguém, não pede autorização e espalha as imagens para surpreender a vida
citadina ao amanhecer. Elas, então, aparecem em lugares imprevistos para o passante,
dando margem a interrogações espontâneas do seguinte tipo: por que essa pietá ou esse
corpo dilacerado neste canto da rua? Naquele arco da ponte? No vão sob a escadaria? E
assim por diante. As respostas podem ser muitas. Oferecidas à curiosidade alheia, essas
imagens perturbam o transeunte, instauram uma suspensão imprevista do caminhar mecânico e automático e passam a gerar a divagação e um diálogo novo com as cercanias.
E se, durante meses, essas imagens são protegidas pelas próprias pessoas, moradoras do
lugar, a ação inexorável do tempo as alteram e elas envelhecem e morrem. Porém, em
sua vulnerabilidade, cumpriram uma missão: restituir à cidade seu imaginário e sua memória, não através de algo que dura, mas daquilo que perece, submergindo novamente
no passado dessa cidade para depois de certo tempo, talvez, ressurgir.
49
Mas quais são os fundamentos desse tipo de intervenção? Ora, é preciso lembrar que, apesar das ações dos que andam pela cidade serem efêmeras, são elas um
componente essencial do processo da recepção estética que conta com a associação
livre suscitada pelo contato com as obras, estejam elas em lugares fora ou dentro dos
museus. E o campo intercorporal criado entre as ações do artista e as reações dos
receptores fundamenta uma memória que é psicossocial. Quer dizer, nessas intervenções poético-críticas, um ponto fundamental deve ser destacado: o relevo psicogeográfico que restaura o nexo entre os fragmentos, isto é, as ressonâncias afetivas dos
diferentes lugares, ruas e praças, junto àquele que os percorre. E o dispositivo que
permite essa psicogeografia não é apenas o olhar, mas também a errância que é um
ensaio para romper o modo como a cidade é vista e habitada997)os (Frayze-Pereira,
) oncretos para. Significa que a circulação citadina acontece como abertura para o
Outro, como ação pela qual o espaço urbano é recriado à medida que o andar o executa, colocando a cidade num estado de interrogação permanente. Como diz Cristiano
(1996) – “fotografar é desfazer o feito para refazê-lo”. Ou, como afirma Pignon-Ernst
(1974) com suas intervenções – “criar é refazer o que já foi feito para que seja, com
o tempo, desfeito”. E, apesar das diferenças entre as ações de um e de outro, o ato de
andar, realizado por Cristiano e por Pignon-Ernest, pode ser considerado uma ação
que problematiza a lógica imposta pela modernidade contemporânea, um ato que é
comparável ao ato de fala. Ou seja, é um “ato de fala pedestre”, segundo Michel de
Certeau (1990, p. 148), pois “o ato de andar está para o sistema urbano como a fala
está para a língua”. E, considerando as relações entre essas práticas espaciais e as
práticas significantes, pensa Certeau (1990, p. 158) que tais nexos se estabelecem
não através dos “dispositivos disciplinares” (FOUCAULT, 1979), mas mediadas por
três dispositivos simbólicos singulares: a lenda, da ordem da crença; a lembrança, da
ordem da memória; e o sonho, da ordem primitiva da origem. São dispositivos que
designam aquilo que acreditamos ser autorizado pelas apropriações espaciais, o que
nestas se repete por meio de uma memória silenciosa, significada através de uma origem primitiva, infantil. E Certeau não só considera a “retórica do caminhar” que interroga o espaço, como aponta o nexo existente entre a errância citadina e a narrativa
tradicional. “Na Atenas de hoje”, lembra Certeau, “os transportes coletivos chamam-se metaphorai.” (1990, p. 170) E desde a Poética de Aristóteles, como sabemos, a
metáfora é o transporte de um sentido para outro que uma palavra designa (1999, p.
128). Então, por um lado, para ir ao trabalho ou voltar à casa há que se tomar uma
metáfora. E, por outro, nossas narrativas, diariamente, atravessam e ordenam os lugares, selecionam e articulam os mais diversos recantos mentais, compondo com eles
frases e itinerários. São, nesse sentido, verdadeiros percursos espaciais. Mais do que
isso, são relatos de viagem, assim como toda prática espacial na cidade, qualquer
errância citadina é uma viagem a pé que inventa os espaços. (CERTEAU, 1990, p.
171) São aventuras narrativas que implicam a experiência da viagem, no sentido em
que a viagem, substituta da lenda, abre espaço para a experiência da alteridade, isto
50
é, para “aquilo que exige de nós criação para dele termos experiência.” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 187) Ora, no ensaio Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud
já era ciente da dimensão social da vida mental, ou seja, que o outro é um componente do psiquismo de cada um de nós seja “como um modelo, um objeto, um auxiliar,
um oponente, de maneira que [...] a psicologia individual [...] é, ao mesmo tempo,
também, psicologia social.” (FREUD, 1921, p. 91) Quer dizer, o outro – a cultura, a
sociedade – é um termo que permite as identificações, as ligações e os desligamentos, entre o sujeito e seus objetos. E, nesse sentido, é o termo que relaciona a pratica
cultural-artística-urbana com a praxis psicanalítica, posto que ambas acontecem de
forma semelhante no campo das viagens. Nesse sentido, a errância – que pode ser vista como “um uso político do espaço que constrói novas relações sociais através de um
comportamento lúdico – construtivo” (Mc DONOUGH, 1994, p. 75) – é uma ação
incorporada na prática de muitos artistas, arquitetos e urbanistas que visam resgatar o
espaço público do campo do mito, restaurando a sua riqueza e a sua história. A errância, assim, é um ensaio corporal para romper o modo como a cidade é habitada997)
os (Frayze-Pereira, ) oncretos para. Esta concepção estética, relativa a certa prática
da arte contemporânea, significa que a circulação citadina acontece como abertura
para o Outro, como ação pela qual o espaço urbano é recriado à medida que o andar
o executa, colocando a cidade num estado de interrogação permanente. Ora, cabe
lembrar que desfazer para refazer é uma operação corrente na prática psicanalítica,
assim como a abertura para o outro ou o desconhecido é essencial à arte e também à
psicanálise. Afinal, o que ocorre no processo interpretativo-psicanalítico – processo
narrativo-metafórico que se desenvolve com recursos que muitas vezes se encontram
anestesiados em cada um de nós (ex: associação livre) –, é a ruptura dos campos
psíquicos (HERRMANN, 2001), que limitam o analisando a uma psicogeografia formada por ruas de mão única. Assim, dado que a atenção flutuante é uma operação
essencial ao trabalho psicanalítico e que a errância psíquica é um aspecto desse trabalho, pode-se afirmar que a prática de certos artistas no espaço urbano apresenta certa
analogia com o fazer psicanalítico, uma vez que as suas imagens rompem a nossa
visão da cidade que habitamos sem vê-la, criando a partir daí um modo de arquivo
cujo fundamento é o corpo próprio do artista (assim como do psicanalista e do espectador) que só pode se relacionar com o outro e conservar dessa relação uma memória
porque esse corpo não é apenas um pedaço de matéria animada, mas um ser reflexivo.
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“é a minha hora, não há dúvida, e acho que
também eStá na Sua hora”: lygia clark e hélio
oiticica na europa doS anoS 1960
Maria De fátiMa Morethy Couto1
Em novembro de 1968, Lygia Clark escreve uma longa carta para seu amigo
Hélio Oiticica, na qual o conclama a vir rapidamente para a Europa: “A meu ver é
absolutamente necessário que venha de qualquer maneira”, afirma. “Um artista como
você, com a obra que tens, será reconhecido rápido e olha, no meu caso, se tivesse
vindo mais tarde, talvez nem tivesse adiantado nada. É a minha hora, não há dúvida,
e acho que também está na sua hora”.2
Lygia Clark encontrava-se em Paris desde setembro. Já havia residido na Europa em outras ocasiões, a mais recente em 1964, quando estabeleceu contatos com
artistas, críticos e intelectuais que seriam de grande importância para o reconhecimento de sua obra no circuito europeu. Expusera em Stuttgart (Technische Hochschule), em fevereiro de 1964, e na galeria Signals de Londres, nos meses de maio
e junho de 1965. Nesses mesmos anos, participara de mostras coletivas na França
(Museu de Arras e galeria Denise René) e no Reino Unido (galeria Signals, Royal
Scotish Academy, em Edinburgh, e Kelvingrove Art Gallery, em Glasgow). Essas
mostras coletivas eram, em sua maioria, dedicadas à arte cinética, movimento ao qual
seu nome era então associado.
Em 1968, o trabalho de Clark já havia conquistado admiradores e provocado
reflexões e comentários na imprensa internacional. Além do Signals Newsbulettin
que acompanhara sua exposição individual de 1965, devemos ressaltar o dossiê Fusion generalisée, de oito páginas, no número quatro da revista de vanguarda Robho,
de 1968, editada na França pelo crítico Jean Clay e pelo poeta Julien Blaine. Ambos
1.
2.
Maria de Fátima Morethy Couto. Professora livre-docente do Instituto de Artes da Universidade
de Campinas (Unicamp), pesquisadora do CNPq e ex-presidente do Comitê Brasileiro de História
da Arte (gestão 2010-2013).
Carta de Lygia Clark para Hélio Oiticica, datada de 14 novembro de 1968. In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark. Hélio Oiticica. Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 80.
54
os periódicos traziam uma série de fotos de obras de trabalhos de Clark, além de textos de sua autoria e de comentários qualificados sobre sua obra. O boletim da Signals,
por exemplo, continha um poema de Walmir Ayala sobre seus Bichos, a apresentação
que Max Bense escrevera para a mostra que ele organizara sobre a artista em Stuttgart em 1964, textos de autoria de Clark e instruções para realizar Caminhando,
bem como o artigo Mário Pedrosa de O significado de Lygia Clark. Todos traduzidos
para o inglês, além de uma detalhada biografia.3 O dossiê da Robho, por sua vez, foi
certamente a publicação mais importante realizada sobre a artista, fora do Brasil, no
período. Nele, Clay escreve uma apurada apresentação do trabalho da artista brasileira e conclui que “sua experiência é uma das mais abertas para o futuro, uma das
encruzilhadas da arte atual”.4 Além disso, o dossiê contava com uma tradução para o
francês do Manifesto Neoconcreto.
Menciono também um artigo consagrado a Clark e publicado em fevereiro
de 1967, na revista Studio International, de maior circulação, em edição dedicada à
arte cinética. O texto, de autoria de Cyril Barrett, autor de estudos sobre Op art, toma
como base para discussão a exposição da artista na Signals, em 1965, e tece uma série
de observações sobre a relação entre seu trabalho e as proposições cinéticas. Ao final,
ele compara a obra de Lygia às propostas do GRAV (Groupe de Recherche d’Art
Visuelc) e afirma que que “em relação à participação do espectador, Lygia Clark é a
realização mais sólida até hoje”.5 Ressalto por fim que a artista teve grande destaque
na Bienal de Veneza de 1968, no conjunto da delegação brasileira. Provavelmente em
função do sucesso alcançado por Julio Le Parc na Bienal anterior, o Brasil parecia
apostar quase todas as fichas em Clark e trouxe oitenta e duas obras da artista, em
uma retrospectiva de dez anos de trabalho.6 Portanto, embora Clark continuasse a
queixar-se de problemas financeiros, é certo que desfrutava de posição diferenciada
em relação a outros artistas brasileiros seus contemporâneos.
Oiticica, por sua vez, era um nome ainda desconhecido no circuito europeu
e preparava-se para viajar para Londres para montar uma exposição individual que
deveria ser realizada na mesma galeria Signals, em 1966. Boletins da Signal de 1965
comentavam algumas de suas obras, como seus Bólides, e lançavam notas a seu respeito, seguindo uma estratégia utilizada pelos editores para despertar o interesse por
artistas que exporiam na galeria.7 Contudo, o fechamento abrupto da galeria Signals,
3.
4.
5.
6.
7.
Havia ainda, em português, um poema de Sonia Lins, irmã da artista, e um pequeno texto de Lygia
Clark que discutia a relação entre ideia, espaço e tempo na arte contemporânea.
Refiro-me ao Signals Newsbulletin, nº 7, abr./maio1965 e a Robho. Les carnets de l’Octeor, nº 4,
último trimestre de 1968
BARRETT, Cyril. “Lygia Clark and spectator participation”. Studio International, vol. 1973, nº 886.
Londres, 1967, pp. 83-87.
Diversos livros referem-se a uma sala especial de Lygia Clark na Bienal de Veneza. Trata-se, na
realidade, de uma retrospectiva organizada pela delegação brasileira.
O comentário sobre os Bólides é de autoria de Guy Brett e foi publicado no Signals Newsbulletin nº
8, junho-julho 1966.
55
por falta de fundos, após dois anos de atividades, impediu a realização da mostra
de Oiticica na data programada.8 Guy Brett, grande promotor da arte brasileira de
caráter construtivo em Londres, conseguiu que a galeria Whitechapel, de cunho não
comercial, acolhesse a exposição de Oiticica. Porém, o artista vinha enfrentando uma
série de problemas para sua efetiva realização, desde a hesitação do diretor da galeria,
Bryan Robertson, quando confrontado à ousadia da proposta expográfica, até a falta
de dinheiro para financiar o projeto. Apesar da tensa situação política do Brasil, em
função do golpe militar de 1964, o Ministério das Relações Exteriores prometera
ajudar o artista com sua viagem e com o transporte das obras, o que de fato ocorreria. Mas em novembro de 1968, o Itamaraty solicitava informações precisas sobre
a data da mostra para liberar a verba prometida para a viagem. Uma mudança de
direção na galeria Whitechapel, ocorrida nesse exato momento, colocava a exposição
novamente em risco. Clark escreve para o amigo para alertá-lo sobre esta mudança
e aconselha-o a “ficar calado, mesmo que haja alguma dúvida sobre a exposição de
Londres” e viajar de qualquer maneira.
Oiticica consegue vencer todas as dificuldades práticas e parte para a Inglaterra no início de dezembro de 1968, poucos dias antes da decretação do AI-5 no
Brasil. Sua exposição será inaugurada em fevereiro de 1969. Intitulada The Whitechapel Experiment, ela foi concebida como um “ambiente total”, o Projeto Éden, e
não enquanto uma retrospectiva ou uma sucessão de obras isoladas. A meu ver, ela
deve ser compreendida uma exposição-manifesto, já que evidenciará a rejeição do
artista por “formas antigas de arte” e seu crescente interesse por “experiências que
se prolonguem para o campo sensorial”. Éden consistia em uma ocupação integrada
e completa do espaço da galeria com trabalhos antigos - núcleos, penetráveis (entre
eles Tropicália), bólides e parangolés - e novos, como os Ninhos, “células” para
serem habitadas. A exposição contaria ainda com uma Sala de Sinuca (apropriação:
Mesa de bilhar, d’après O Café noturno de Van Gogh).
No relato de Brett, que escreveu um longo texto de apresentação para o catálogo da mostra, ela “foi um dos mais audaciosos eventos de artes visuais dos anos 1960
e 1970 em Londres. [...] Mais que uma simples e mecânica forma de behaviorismo,
o Éden de Oiticica se revelava um convite para a brincadeira e o devaneio, cujos
fins eram abertos e incondicionais”.9 A exposição, porém, dividiu a crítica inglesa. A
recepção, na imprensa escrita, foi bastante mitigada, reticente. A maioria dos artigos
compara – de modo negativo – a exposição de Oiticica a outras em curso na época e
8.
9.
A galeria funcionava no nº 39 da Wigmore Street, em imóvel de propriedade de Charles Keeler (pai
de Paul Keeler), fabricante de instrumentos óticos de precisão, e contava com seu apoio financeiro.
Talvez em função do pouco retorno comercial do empreendimento, Charles Keeler retira seu apoio,
o que resultou no fechamento da Signals.
BRETT, Guy. “Experimento Whitechapel II”. In: Idem. Brasil experimental. Arte/vida: proposições
e paradoxos.. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 42.
56
tece críticas aos objetivos ambiciosos do artista.10 Oiticica, contudo, mostrou-se bastante satisfeito com os resultados alcançados, não apenas em termos da montagem da
exposição (que ficou como ele planejara), mas também da divulgação e repercussão
de suas ideias em um meio que ele considerava mais informado do que o do Brasil.
Ressalte-se que a BBC realizou pequeno documentário sobre a mostra, que foi exibido em cadeia de televisão. Além disso, faz-se necessário destacar a publicação da
entrevista concedida por Oiticica a Guy Brett na revista Studio International, em
março de 1969, e o texto de autoria do artista, “On the Discovery of Creleisure”, na
Art & Artists, de abril do mesmo ano.
Em que pese a divisão da crítica, Whitechapel Experience foi comprovadamente de grande importância para a trajetória de Oiticica, para seu programa de trabalho
futuro. Como escreveu o próprio artista, a experiência da Whitechapel lhe confirmou
muita coisa, derrubou outras, e lhe conduziu à meta “do que pensar” e “de para onde
ir”.11 Com Éden, Oiticica deu forma a seu conceito de crelazer, com o qual propõe o
inverso do trabalho (de arte): o lazer. Crelazer é uma proposta de suspensão do curso
das coisas banais, de modificação do comportamento frente à arte, de retirada da arte
do campo do espetáculo e do consumo; trata-se para Oiticica de investir não mais na
realização de obras de arte, mas no lazer não repressivo, não representativo, criativo
“que não se deixa aprisionar por valores burgueses, não se submete à mera diversão,
mas busca liberar as aspirações humanas da alienação de um mundo opressivo”.12
Após Londres, Oiticica passará três meses em Brighton, como artista residente
da Sussex University. Visitará Clark em Paris, mas não se interessará pelo circuito
parisiense, ao contrário, comentará em carta à amiga que “se sentiu bem infeliz em
Paris, não viu grandeza em nada”.13 Nessa carta, ele critica o clima de desconfiança
e competição pueril que encontrou em Paris, inclusive da parte de Clark. Menciona
ainda a relação conflituosa entre outros artistas sul-americanos:
10. Edwin Mullins e Nigel Gosling, por exemplo, escreveram em suas colunas do Sunday Telegraph
e The Observer: “Eu nunca imaginei que acharia conveniente atestar, na imprensa, que amo andar
descalço em uma praia, chapinhar na água, ou que gosto da maioria dos outros prazeres sensuais
que a vida nos oferece, sem precisar participar de uma insossa escola de esqui para os sentidos na
Whitechapel” (MULLINS) e “O que está acontecendo na Galeria Whitechapel (sob a nova direção
de Mark Glazebrook, que tem uma tradição formidável a manter) não é uma exposição de arte. Não
é exatamente um parque de diversões; as atrações são muito poucas e muito fracas. Certamente não
é um happening: em comparação com a rua do lado de fora, oferece um refúgio de “não eventos”.
Parece mais uma bolha flutuando acima das emanações de Londres” (GOSLING). Ver também, a
esse respeito, PASQUALINI, Marcos. “A Galeria Whitechapel e a internacionalização da arte brasileira: duas exposições”. In: Anais do XXXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte.
Arte e suas instituições. Rio de Janeiro, 2013, pp. 209-226.
11. OITICICA, Hélio. “Crelazer”. In: Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 114.
12. RIVERA, Tânia. “O reviramento do sujeito e da cultura em Hélio Oticica”. In: Arte & Ensaios.
Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, nº 19, 2009. p. 114.
13. Carta de Hélio Oiticica para Lygia Clark, datada de 7 de junho de 1969. In: FIGUEIREDO, Luciano
(org.). Op. cit., p. 104.
57
[...] esse negócio de sempre comparar meu trabalho com o
seu, tentando diminuir o sentido profundo do meu, me irrita
e na realidade não existe: no meu trabalho posso estabelecer
relações a posteriori ou não com o seu, mas nada devo a ele,
nada devo a ninguém – sei o que faço e penso, por isso há anos
escrevo [sobre seu trabalho] para deixar tudo claro. [...] Essa
merda de competição, da qual você me cita o caso Soto-Le
Parc, penso assim: não pertence a meu mundo depois que formulei a ideia de Eden, e Crelazer: é coisa velha, do passado,
pertence à classe de pensamentos corruptos, opressivos, que
são a contradição do que quero com o Crelazer.14
Dezessete anos mais jovem do que Clark, Oiticica estabeleceu com ela uma
sólida e fecunda amizade, como comprovam as inúmeras cartas que trocaram, mas
defendia a independência de seu trabalho e de suas ideias. Sua rejeição à cena parisiense talvez se deva ao desejo de não permanecer à sombra da amiga, que já conquistara um círculo fiel de admiradores e amigos. Ademais, Oiticica era fluente em inglês,
mas não em francês, o que também o colocava em uma posição de menor autonomia
em Paris. De todo modo, Oiticica também teceria críticas ao circuito londrino e à
Inglaterra, país que, a seu ver “era muito mais conservador do que se pensa”.15 Por
outro lado, Clark articulava com Jean Clay a organização de um dossiê sobre Oiticica
na revista Robho. Oiticica inclusive enviou vários de seus textos para Clay e aguardava ansiosamente pela publicação, que acabou não ocorrendo.16
Deve-se ressaltar que na década de 1960 havia um número expressivo de artistas sul-americanos residindo na Europa, em especial em Paris. Esse número se tornaria ainda maior na medida em que diversos países da América Latina sucumbiriam a
governos ditatoriais durante as décadas de 1960 e 1970. Segundo Isabel Plante, autora de importante estudo sobre os artistas argentinos em Paris, “se em 1946 havia cerca
de 3.800 latino-americanos vivendo na França, em 1968 havia mais de 9.800. Este
número dobraria após os golpes de estado no Chile e na Argentina”.17 Por outro lado,
havia um interesse crescente na França pela produção artística da América Latina,
em função do triunfo da Revolução Cubana, interesse esse que motivou e fomentou
o conhecido boom da literatura latino-americana no período.
14.
15.
16.
Idem. p. 102. Grifos constantes do original.
Carta de Hélio Oiticica para Lygia Clark, datada de 23 de dezembro de 1969. Idem, p. 131.
Na edição de número 5/6 da Robho, publicada em 1971, o trabalho de Oiticica é comentado em um
dossiê dedicado ao corpo e à unidade do campo perceptivo (Unité du champ perceptif: interaction
des corps: architectures vivantes: pivots humais: pratique tribale), juntamente com obras de diversos
outros artistas, de diferentes nacionalidades. Este foi o último número da Robho.
17. PLANTE, Isabel. Argentinos de Paris. Arte y viajes culturales durante los años sesenta. Buenos
Aires: Edhasa, 2013, p. 228.
58
Vários desses artistas conquistariam, já na década de 1960, reconhecimento
internacional para seu trabalho. Dos construtivos/cinéticos, o venezuelano Jesús Rafael Soto e o argentino Julio Le Parc talvez sejam os que receberam maior atenção da
crítica especializada (e também do mercado), sobretudo em função do interesse crescente por propostas de cunho cinético.18 Soto chegara em Paris em 1950, com vinte
e sete anos de idade e em busca de formação. Participou da mostra Le mouvement,
organizada na galeria Denise René e na qual figuraram obras de Agam, Bury, Calder, Duchamp, Jacobsen, Tinguely e Vasarely.19 Obteve apoio de Denise René e na
segunda metade dos anos 1960 já seria um artista disputado pelo circuito comercial.
Le Parc obteve grande destaque ao receber o Grande Prêmio da Bienal de Veneza de
1966. Tinha então trinta e oito anos de idade e residia em Paris há seis anos. Fundara
o grupo GRAV (Groupe de Recherche d’Art Visuel) em 1960, juntamente com Horacio Garcia, Francisco Sobrinho, François Morellet, Joël Stein and Jean-Pierre Yvaral,
grupo este que que se notabilizara por ações que incitavam o espectador à ação por
meio da criação de lugares de lazer e de ativação.
Embora possamos estabelecer diversas relações e conexões entre os artistas
sul-americanos (construtivos) que residiam na Europa naquele momento, não é possível considerar que se tratava de um grupo homogêneo. Nem todos eram amigos,
embora alguns se frequentassem e acompanhassem com interesse a obra do outro.
Clark comentava recorrentemente com Oiticica a situação de vida e de trabalho de
outros sul-americanos na Europa, nem sempre de modo positivo. Durante sua estada
em 1964, tecera diversas críticas a respeito do que via, comentando de modo negativo
o trabalho de Marta Minujín20 e dos Novos Realistas franceses.21 No final dos anos
1960, rejeitaria de modo enfático a associação de seu trabalho às propostas de outros
artistas que, como Julio Le Parc, também estimulavam a participação do espectador.
Em novembro de 1968, escreveria a Oiticica afirmando que
18. Naquele momento a arte cinética encontrava-se em plena expansão na Europa e o termo cinetismo
era recorrentemente utilizado, por vezes de modo estratégico, para referir-se a obras/propostas que,
embora de caráter e intenção distintos, almejavam estabelecer uma nova relação com o espectador e
não mais se esgotavam em si mesmas. Cabe também lembrar de outros artistas sul-americanos que
também residiram na Europa e tiveram suas obras analisadas pelo viés do cinetismo, como Sérgio
Camargo, Alejandro Otero e Carlos Cruz-Diez.
19. Trata-se de mostra considerada fundamental para a história da arte cinética na Europa.
20. “Vi ontem uma exposição de uma argentina que me lembrou muito nossas discussões a respeito
de toda esta espécie de arte: - ela faz colchões listrados costurados uns nos outros fazendo volumes
diferentes dependurados no espaço ou na parede. Sem crítica (não merece)”. Carta de Lygia Clark
para Hélio Oiticica, sem data (1964). In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Op. cit., p. 17.
21. A arte defendida pelo Restany é arte morta: sempre me dá a sensação da própria morte do objeto,
do bric-à-brac cheio de vivências obscuras e nojentas. A crise é geral e terrível. Você vê todos em
busca de uma originalidade pela originalidade... matérias orgânicas cheirando mal (quase) feitas
sem o mínimo sentido de síntese ou transposição. É absolutamente outra espécie de naturalismo de
péssima qualidade – não é arte de jeito nenhum”. Carta de Lygia Clark para Hélio Oiticica, sem data
(1964). In: Idem, p. 34.
59
[...] quanto à ideia de participação, existem artistas fracos que
não podem realmente se expressar com pensamento e portanto ilustram o problema. [...] No meu trabalho, não é a participação pela participação e não é dizer como o grupo do Le Parc
que arte é um problema da burguesia.22
Clark e Oiticica não obtiveram naquele momento o reconhecimento almejado,
na dimensão esperada, apesar de terem conquistado fiéis admiradores e terem sido
amparados por críticos que reconheceram a originalidade de suas propostas. Na realidade, por muito tempo, o trabalho de ambos permaneceu excluído das grandes narrativas sobre a história da arte ocidental, sendo “recuperado” ao final dos anos 1990,
por meio de retrospectivas apresentadas em diferentes museus europeus.23 Por outro
lado, devemos lembrar que suas ideias e ações os levaram a afastar-se progressivamente do circuito de arte tradicional e a privilegiar outras formas de atuação.
Gostaria porém de destacar, em guisa de conclusão, que, ao partirem do Brasil,
Clark e Oiticica possuíam uma trajetória sólida, densa, que fora amparada e fundamentada pelas discussões e exposições do grupo neoconcreto e seguiram para a
Europa seguros de que deixariam sua marca e que apontariam novos caminhos para
outros artistas. Embora fossem oriundos de uma cultura considerada periférica, não
se consideravam alheios ou avessos à tradição ocidental e estavam preparados a reivindicar um lugar de destaque no modernismo internacional. Não modificaram em
nada suas propostas de trabalho em busca de fáceis aliados.
referênciaS bibliográficaS
BARRETT, Cyril. “Lygia Clark and spectator participation”. In: STUDIO INTERNATIONAL, vol.
1973, nº 886. Londres, 1967, pp. 83-87.
BRETT, Guy. “Experimento Whitechapel II”. In: Idem. Brasil experimental. Arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005, p. 42.
FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark. Hélio Oiticica. Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1996.
OITICICA, Hélio. “Crelazer”. In: ASPIRO AO GRANDE LABIRINTO. Rio de Janeiro: Rocco,
1986.
SIGNALS NEWSBULLETIN. Londres, nº 7, abr./maio1965.
______. Londres, nº 8, junho-julho 1966.
22. Carta de Lygia Clark para Hélio Oiticica, datada de 14 de novembro de 1968. In: Idem, p. 84
23. Entre os anos de 1992 e 1994, foi organizada a primeira grande mostra internacional da obra de
Oiticica, a qual percorreu as cidades de Roterdã, Paris, Barcelona, Lisboa e Mineápolis. Entre 1997
e 1999, foi a vez do trabalho de Lygia Clark ser reapresentada na Europa: Caminhando – Retrospectiva Lygia Clark, teve seu vernissage na Fundação Tàpies, Barcelona, e circulou por outras cidades
da Europa (Marselha, Porto, Bruxelas).
60
RIVERA, Tânia. “O reviramento do sujeito e da cultura em Hélio Oticica”. In: ARTE & ENSAIOS.
Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, nº 19, 2009.
ROBHO. LES CARNETS DE L’OCTEOR. Paris, nº 4, último trimestre de 1968.
quando corpo e arte interrogam oS eSpaçoS
da cidade
Vera PallaMin1
[...] há que se insistir que nunca seremos capazes de pensar
novos sujeitos políticos sem nos perguntarmos inicialmente
sobre como produzir outros corpos. Não será com os mesmos
corpos construídos por afetos que até agora sedimentaram
nossa subserviência que seremos capazes de criar realidades
políticas ainda impensadas. (SAFATLE, 2015)
A cena contemporânea nos tem colocado perante impasses políticos e conflitos
urbanos consideráveis, sobretudo diante do acirramento das estratégias do capital na
produção de excedente, sem que este se defronte com uma contraposição à altura de
sua potência. Os modos de apreensão do presente e as linguagens e estruturas interpretativas que mobilizamos para enfrentá-lo mostram constantemente seus limites,
exigindo-nos um estado de prontidão e de enorme disposição para a reformulação de
respostas, diante da questão: “o que fazer?” Os tempos mudaram e, de algum modo,
“há coisas que já não se podem fazer, ideias em que já não se pode acreditar, futuros
que já não se podem imaginar. ‘Não se pode’ significa claramente, ‘não se deve’.”
(RANCIÈRE, 2014, p. 204)
Nessa condição, busca-se refletir sobre como a arte tem se colocado entre um
e outro, entre o que fazer e o que já ‘não pode’ ser feito, e como o artístico tem interrogado determinados aspectos da situação atual. Interessa-nos, em especial, trabalhos
de arte sensíveis à fricção entre espaço urbano e corporeidade, em torno das dimensões da privação, afirmação ou evocação de formas de vida, considerados a partir
das relações corpo-multidão, corpo-exposição, corpo sem sujeito e corpo-memória.
corpoS, SujeitoS e temporalidadeS
Do ponto de vista sistêmico, a normatividade das sociedades capitalistas – voltada às formas de sujeição às leis impessoais de valorização do capital – tem atuado
no sentido de impor uma normalização dos corpos de tipo particular: a subjetividade
1.
Vera Maria Pallamin. Professora livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
USP (FAU USP) e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da USP (PGEHA USP).
62
neoliberal. Nos termos de Dardot e Laval (2016), o sujeito neoliberal é o correlato
do dispositivo de rendimento e aproxima-se à ideia de sujeito-empresarial. Distinto
do sujeito ‘calculador’ do mercado do século XIX, e do sujeito ‘produtivo’ do período industrial, o sujeito neoliberal – ou o ‘neosujeito’ – é o sujeito competitivo,
empresarial, atuando em meio a uma lógica geral das relações humanas submetidas à
regra do máximo proveito. Articulado ao legado do individualismo moderno, o neosujeito é conduzido a comprometer-se plenamente com sua atividade profissional, a
implicar-se nela por inteiro. Nessa cultura, o termo empresa “é também o nome que
se deve dar ao governo de si na era neoliberal.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 328
– grifos nossos) As novas estratégias aí mobilizadas assentam-se no medo social do
desemprego, na efetiva precarização do trabalho, na diminuição das remunerações,
ampliando-se a pressão cotidiana sobre os indivíduos.
A novidade em relação às épocas anteriores é a modulação desses sujeitos
para que suportem as condições cada vez mais duras do mundo do trabalho, tendo
como um de seus eixos a produção de sujeitos empreendedores que assimilam a
ideia de competição constante em suas condutas e comportamentos. Para que sejam
bem-sucedidos, eles devem mostrar-se flexíveis, abertos às variações, exigências
e incertezas do mercado e ao ritmo contínuo de seu aperfeiçoamento. No âmbito
do trabalho, a ideia-guia, em termos sistêmicos, é a eliminação da relação salarial
substituindo-a ao máximo pela contratação de serviços, projetos e tarefas por tempo
determinado, modelando esse novo paradigma de cada um converter-se numa pequena empresa. Múltiplos procedimentos são assimilados para tal finalidade, visando incrementar o domínio de si e a eficácia na relação com os demais. O neosujeito
figura-se como um eu capaz, eficaz, motivado e exposto ao risco constante, comprometido com rendimento e avaliação.
Esse conjunto pressupõe um trabalho de “racionalização levado até o mais
íntimo do próprio sujeito: uma ‘racionalização do desejo’”, à qual associa-se a máxima “produza cada vez mais e goze cada vez mais.” (DARDOT; LAVAL, 2016, pp.
333-355) Essa ideia de ‘sempre mais’ sintoniza-se com a cultura da superação constante de limites própria à máquina econômica. Um de seus efeitos é alimentar a ousadia, algo frequentemente empregado pela indústria publicitária ao fomentar o imperativo do gozo. Numa sociedade aberta, afirmam Dardot e Laval, “todo indivíduo
tem direito de viver como bem entende, escolher o que quiser, seguir as modas que
preferir. A livre escolha não foi recebida inicialmente como uma ideologia econômica de ‘direita’, mas como norma de conduta de ‘esquerda’, segundo a qual ninguém
pode opor-se à realização de seus desejos.” (2016, p. 360) Essa organização flexível,
que interioriza muito das exigências do mercado, faz com que o tempo cotidiano, em
certo sentido, seja menos linear, predominantemente voltado para o aqui e agora, e
menos programável, o que torna os projetos de longo prazo cada vez mais difíceis.
Hoje em dia, o trabalhador assalariado conta pouco, ou quase nada, com garantias futuras ao longo da sua vida profissional. Essa instabilidade não ocorre sem sofrimento
63
psíquico, mesmo porque efetiva-se num terreno social fragilizado em seus vínculos
de reciprocidade e solidariedade, em função da concorrência ininterrupta.
A normatividade neoliberal sobre os corpos, como se sabe, inclui também em
seu arcabouço a vigilância gradualmente mais detalhada sobre o espaço urbano, público, e sobre os movimentos executados nas redes sociais, figurando, em síntese, o
que Gilles Deleuze denominou como sociedade de controle.
Entretanto, se esses traços figuram em grande parte o que se apresenta como imposições e sujeições, como o tratamento do tempo no sentido da depreciação da experiência,
há que se pensar sobre outras dimensões do tempo em que este atue não como limitação
ou exclusão, mas como possibilidade e como potência, principalmente do político.
Nesse período de consolidação da ordem neoliberal afirmou-se o fim das grandes narrativas, especialmente da narrativa marxista que incluía o horizonte de um
outro tempo do mundo associado à perspectiva revolucionária, à utopia da emancipação e superação da exploração do homem pelo homem, um mundo novo. Estava
ali em jogo uma certa ideia de transformação da história, hoje tida como uma ficção
descartada, uma promessa social desfeita como sendo impossível: “o que ontem era
a necessidade de a evolução levar ao socialismo torna-se hoje a necessidade que a
evolução tem de levar ao triunfo [do] mercado global.” (RANCIÈRE, 2014, p. 205)
As formas de resistência a essa coerção histórica espalham-se, pulverizadamente, por toda parte. Frequentemente são tachadas pelo poder do mercado como
ações atrasadas e ineficazes. Entretanto, a despeito de se ter, discursivamente, decretado o fim das grandes narrativas, todo o corpus de crítica social, política e urbana elaborada naquela matriz, passando-se por Adorno, Debord e linhagens afins,
observa Rancière, continua ativo na atualidade, desdobrando suas fundamentações
acerca dos processos de mercantilização, de fetichização, de produção de fantasmagorias e do individualismo de massa. O que mudou – e isso importa sobremaneira
para o campo da produção artística contemporânea sobre o qual aqui nos inclinamos – “foi o modo como passou a ser encenado e a percepção do possível que traz
consigo.” (RANCIÈRE, 2014, p. 208)
As narrativas ora dominantes convergem no sentido de afirmar a impossibilidade de resistência, afiançando uma temporalidade homogeneizante, mundial, que
transcorre num mesmo sentido, embora diferenciada internamente. Elas pressupõem
uma coincidência entre o tempo global e o tempo das pessoas, polarizando numa
mesma identidade temporal a produção, o consumo, a informação, etc. Rancière contrapõe essa tese da homogeneidade do tempo, evitando considerá-lo apenas a partir
do desenvolvimento do capital. Assume como fundamental defini-lo também “pelas
instituições que determinam a coincidência e a não coincidência dos tempos”. Essas
instituições regulam certos ritmos da vida pública (como as eleições), de programas de longa duração (como aqueles definidos para os sistemas educacionais), assim
como a construção de divergências dos tempos, como pode ser observado em ações
da mídia. (RANCIÈRE, 2014, pp. 211-214)
64
Repensando a potência do tempo, importa ao filósofo desfazer a concepção que
submeteria todas as cadências do tempo individual e coletivo a uma homogeneidade
global, eliminando-as. A temporalidade dominante no nosso mundo e suas agendas tende
a definir o que se toma por presente, passado e porvir. Contudo, há outras formas de temporalidade, dissensuais, que advêm de quebras e rupturas em certas divisões existentes,
resultando na experiência de um tempo distinto daquele imposto. Para Rancière, é nisso
que se fundamenta a emancipação, “construir outro tempo no tempo da dominação, criar
o tempo da igualdade dentro do tempo da desigualdade.” (RANCIÈRE, 2014, p. 215)
corporeidadeS e eSpacialidadeS urbanaS
O campo artístico, por ser produtor de temporalidades outras, é uma via privilegiada para se pensar a criação desse tempo da igualdade, suas dimensões simbólicas, potências e ambiguidades, em tensão com aquele decorrente das coerções
neoliberais. Em relação à cidade e à vida urbana, algumas ações artísticas têm propiciado, direta ou indiretamente, uma reflexão sobre os compassos do tempo coletivo,
propensões, tendências e inclinações, sintonias e divergências, que serão considerados a partir das seguintes relações:
... corpo-multidão
As multidões nas ruas têm sido recorrentes no mundo contemporâneo, recolocando-se como fenômeno enfrentado nos planos conceitual, sociocultural, filosófico,
histórico, estético e político. Atuando na práxis coletiva, as multidões têm recolocado na ordem do dia o repensar sobre a conjunção de forças subjetivas em torno
de contestações, mobilizações políticas por motivos locais ou supranacionais. Nelas
convergem distintas formas de agenciamentos, passando pelas novas tecnologias da
informação e redes sociais, as quais têm tido um papel inquestionável nos encontros
sociais e na reconfiguração da esfera pública.
Compreendidas como sujeitos coletivos voltados para uma ação em comum,
as multidões conformam uma temporalidade heterogênea diante daquela predominante, e sua presença urbana aciona instantaneamente um estado de alerta às forças
de controle do status quo e à malha de dispositivos de manutenção do consenso.
Dentre as questões que suscita, uma diz respeito a como se efetiva e qual seu modo
de organização, o que tem gerado respostas nem sempre convergentes, quando pensada como ação contra-hegemônica. Outra questão refere-se à discussão sobre se a
multidão, em seus formatos presentes, aciona, ou não, poderes instituintes, os quais
têm sido seus limiares e escalas de força enquanto agente coletivo. Em sua conceituação, procura-se demarcar sua distinção em relação à moderna acepção de massa
popular: enquanto esta é caracterizada como homogênea e atenta às indicações de
65
seus caminhos dadas pelos comandos de seus líderes, a multidão inclina-se a ser incontrolável pelos poderes e ser capaz de definir seu próprio caminho. Evidenciando o
atual esvaziamento da representação política, as ações da multidão imantam de modo
emblemático o debate sobre os atuais desafios postos à democracia.
... corpo-expoSição
A articulação entre o ‘valor de exposição’ e a produção do ‘sujeito estético’
tem participado dos dispositivos mercadológicos e de consumo, numa franca inversão de suas acepções nobilitantes, elogiadas na matriz moderna. A fatura do espetáculo, nos termos críticos de Debord, e o uso da estética na superação das dificuldades
da mercadoria em seus processos de totalização – conformando ‘usuários sensibilizados’ – perfazem dois campos de atrito incontornáveis para o trabalho de criação da
imagem fotográfica em escala urbana. Alguns trabalhos nessa linguagem, seu contexto local e seus protagonistas motivam a reflexão sobre as formas de vida ali contidas
e imaginadas, a partir de metonímias visuais do corpo que exploram a tensão entre
visibilidade e invisibilidade social.
... corpo Sem Sujeito
A ideia de corpo sem sujeito avizinha-se, sem superpor-se, à acepção de vida
nua, sacrificável, trabalhada por Giorgio Agamben. Aproxima-se também ao sentido
de trato do outro em perspectiva de drástico rebaixamento, ou negação de sua individualidade e subjetividade. Trabalhos de arte recentes no país têm lidado com essa
temática, mobilizando aspectos sombrios de nossa história social: violência, desaparecimentos, eliminações, esquecimentos. Estes trabalhos efetivam novas disputas
simbólicas quanto aos modos e valores de certas presenças/ausências e seus territórios na cidade, assim como a questão da privação de formas de vida, interrogando, ao
mesmo tempo, arraigadas práticas punitivas do estado.
... corpo-memória
Em relação direta com o núcleo anterior, corpo-memória e corpos políticos
partilham, como destacado na epígrafe deste texto, da desconstrução de afetos que
levam à continuidade de relações de submissão, a fim de que desejos de igualdade
possam arriscar-se e efetivar-se em dimensões agora impensadas. Essa desconstrução
implica retomada, reconstituição, revisão e reelaboração crítica do que passou, como
passou e do que ficou. A memória, como “um modo de pensar o tempo e sua relação
com a verdade [...] deve se construir como ligação entre dados, entre os testemunhos dos fatos, dos traços de ações [...]. A memória é obra de ficção.” (RANCIÈRE,
66
1999:37) Nem sempre se trata somente de conservá-la, mas de efetivamente criá-la:
entre memória coletiva e produção de saberes, o ato artístico, nessa criação, encena-se como forma de inteligibilidade da realidade social.
referênciaS
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016 (orig.: 2009).
RANCIÉRE, Jacques. La Fiction de mémoire. Á propos du Tombeau d’Alexandre. Trafic, 1999.
______. Em que tempos estamos? In: REVISTA SERROTE, n.16, 2014, pp.203-223. Trad. Donaldson M. Garschagen.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São
Paulo: Cosac Naify, 2015.
arquivoS de arte na américa latina:
legado em diSputa
tous les jours ou seulement le weekenD?
deSlocamentoS e contrapontoS na
experimentalidade tecnológica durante
a ditadura no
chile
sebastián ViDal Valenzuela1
Há vinte anos, em 1995, o Estado chileno lançou-se num dos projetos tecnológicos mais ambiciosos de sua história: colocar em órbita o primeiro satélite chileno. Desse modo, o projeto FASat Alfa respondeu a um esforço tecnológico entre
os engenheiros da empresa inglesa Surrey Satellite Technology Ltd (SSTL) e os da
Força Aérea do Chile. O FASat Alfa foi um microssatélite de órbita baixa, que media
aproximadamente 70 cm de comprimento e 36 cm de largura, pesava quase cinquenta
quilos e, por dia, daria entre três e quatro voltas no globo. Dentre as diversas tarefas
que o FASat Alfa deveria realizar, encontravam-se: monitoramento da camada de
ozônio, mapeamento de zonas urbanas, cadastros de bosques, conectividade e atividades meteorológicas e de comunicação. Era tal o fervor quanto a ele, que o comandante chefe da Força Aérea do Chile, Fernando Rojas Vender, naquela época afirmou:
“Nós subimos no trem muito tarde, mas estamos no trem. E isso é o importante!”
(tradução livre). O Ministro da Defesa, Edmundo Pérez-Yoma, por sua vez, declarou
enfaticamente: “Na verdade, aqui temos um exemplo do que pode fazer um programa
de longo prazo conduzido com muito profissionalismo” (tradução livre).
Com uma enorme expectativa, às três da manhã do dia 31 de agosto de 1995,
os olhos de milhares de chilenos voltaram-se para as televisores para assistirem a
transmissão do lançamento do foguete que deveria enviar para o espaço o satélite
Sich-1, no qual estava alojado o FASat Alfa, que partiria da base de lançamentos
espaciais russa de Plesetsk, na Rússia. Entre risos e aplausos, a delegação chilena
comemorou aquele importante avanço para o país, porém, algumas horas mais tarde
foi confirmado que a desconexão entre ambos os satélites não ocorreu e o FASat
Alfa ficou inutilmente preso à estrutura de quase duas toneladas do Sich-1. Após o
1.
Sebastián Vidal Valenzuela. Diretor e professor do Programa de Licenciatura em Teoria e História
da Arte da Universidad Alberto Hurtado, Santiago do Chile.
70
fracasso do FASat Alfa, os gracejos e piadas a respeito sobre ele estavam na ordem
do dia. Inclusive, a imprensa russa parodiou a situação dizendo que o satélite chileno
era uma mosca pousada sobre uma vaca. Curiosamente, num momento em que as
aspirações do país baseavam-se na implantação de uma herança neolibral, na qual
altas operações de marketing internacional, como o iceberg do Pavilhão da Expo
Sevilla 92, serviam para alimentar o ego aspiracional de um país que não conseguia
sair do isolamento.
O FASat Alfa simbolizava o desejo de competir tecnologicamente com a geopolítica e a integração comunicacional do Chile, num momento vertiginoso sobre o
assunto. No entanto, o resultado de dependência falida do satélite maior simbolizou
também a desmedida subordinação das aspirações locais quanto à hegemonia tecnológica do Norte. O satélite chileno ficou, assim, flutuando inutilmente no espaço,
como o ímpeto da transição para demonstrar as proezas tecnológicas que supostamente aproximariam os chilenos dos centros hegemônicos do Norte, distantes da
própria realidade e da vizinhança.
Assim, proponho rever o caso do FASat Alfa como uma forma de refletir sobre
alguns dos mecanismos utilizados pelas artes visuais no Chile, em sua relação por
integrar criticamente a política e a tecnologia, sob a condição de utopia e fracasso do
período de ditadura e de transição. Diferentemente do individualismo tecnocrático
reinante nas administrações governamentais das primeiras décadas dos anos noventa,
os artistas pretendiam potenciar um diálogo crítico que tendia a operar fortemente a
partir de exercícios de colaboração nos quais a tecnologia ocupava um papel central.
Sugiro a leitura de tal metáfora do deslocamento do satélite como uma forma de reconstruir a ideia de utopia de conexão num contexto de severas restrições políticas,
culturais e materiais. Assim, tomando como ponto de partida a ideia de sincronias
latino-americanas proposto pela historiadora Andrea Giunta, tenho a intenção de discutir os modos de articulação conceitual de encontro/desencontros, pontos/contrapontos, de um cenário chileno socialmente destruído, que se abriu para experimentar
criticamente os limites e tempos por meio do vídeo e da fotografia. Tal leitura foi
possível graças ao acesso aos arquivos em centros de documentação e em bibliotecas de museus. Assim, a poética condição de deslocamento orbital associada com
o satélite nos direciona para pensar em redes multinacionais baseadas na ideia de
conectividade cultural.
Nesse cenário, quiçá a obra mais emblemática do contexto latino-americano
seja realizada em outubro de 1966, por Marta Minujín, Alan Kaprow e Wolf Vostell,
intitulada “Three Country Happening”. Trata-se de uma ação global baseada nas interconexões disponíveis para a época como o telefone, o telex e o rádio. Como bem
sabemos, nela foi utilizado o Early Bird (primeiro e único satélite disponível naquele
momento para o contato global direto imediato) para realizar um happening que duraria vinte e quatro horas, realizado simultaneamente nas cidades de Nova Iorque,
Buenos Aires e Berlim.
71
Na sala de teatro do Instituto Torcuato Di Tella, como parte do “Three Country
Happening”, Minujín realizou sua performance “Simultaneidad em simultaneidade”.
A sala (que pode ser comparada com uma sala de comando de Houston) foi transformada num set multicanal de onde a ação ocorria em duas etapas, na qual celebridades
e pessoas conhecidas da mídia argentinas foram convidadas para serem primeiramente gravadas e depois teriam suas próprias casas invadidas2. O registro de tal invasão
foi transmitido pela televisão, da mesma forma que a performance projetada por
Vostell e outra projetada por Kaprow. Assim, Minujín apelava para criticar os meios
de comunicação em massa e seu impacto na sociedade. Em paralelo, Minujín estava
em contato permanente com seus pares da Europa e dos Estados Unidos, via telefone
e fax, embora nunca conseguisse entrar em contato via satélite através do Early Bird.
Desde o exemplo inicial do FASat Alfa, a inoperabilidade do Early Bird na performance de Minujín pode ser lida não necessariamente a partir do fracasso quanto ao
desejo tecnológico por consolidar politicamente uma imagem de desenvolvimento,
mas também como o desejo utópico de se consolidar em igualdade de condições
num cenário que, desde o desenvolvimento tecnológico, começa a se unificar e a se
conectar cada vez mais a partir das linguagens da arte contemporânea. Assim, Minujín se posiciona em igualdade de condições com os Estados Unidos e com a Europa,
gerando uma cartografia triangular de três pontos equidistante onde o satélite conecta
no centro sua possibilidade de diálogo sincrônico.
weekenD viDeomakers
Como mencionei no início desta apresentação, o profissionalismo da área de
videoarte e da experimentação tecnológica com mídia como a fotografia manteve-se
condicionado por um cenário desaparecido na repressão, na censura e na precariedade material. Isso levou os artistas chilenos a buscarem fórmulas inovadoras para
superar tais complexidades. Entre as estratégias, o uso paralelo e o empréstimo de
equipamentos profissionais, de produtores de audiovisual ligados ao mundo da publicidade, possibilitaram o desenvolvimento de um campo extremamente novo como
o da videoarte ou da fotografia. Nesse sentido, proponho trabalhar o uso do vídeo
como um mecanismo de crítica por meio da transmissão internacional e o contraponto como um sistema de combinações harmônicas de diferente procedência autoral.
2.
A primeira foi realizada em 13 de outubro de 1966, quando sessenta celebridades, incluindo atores,
jornalistas, críticos, esportistas e políticos foram chamados para serem fotografadas e registradas (por
meio de fichas). Todos estes personagens foram chamados pelo seu alto impacto nos meios de comunicação. A segunda ocorreu na semana seguinte e foi assistida somente por 35 dos 60 espectadores
iniciais. Ao chegar na sala, eles dispunham de um aparelho de TV e outros de rádio, nos quais viam
seus próprios rostos em loop durante dez minutos cada um. Paralelamente, três deles participavam de
outra ação, chamada “Invasión Instantánea”, na qual por diferentes meios de comunicação tiveram
suas respectivas casas invadidas, recebendo faxes, telefonemas ou sendo mencionados na rádio.
72
O satélite como metáfora de rede de colaboração ocorreu no Chile, no projeto
de vídeo experimental chamado Satelitenis. Satelitenis foi um trabalho colaborativo
entre o artista visual Eugenio Dittborn, o cineasta Carlos Flores e o vídeo artista Juan
Downey, durante 1982 e 1984. O projeto consistiu em criar um diálogo audiovisual
múltiplo sobre o deslocamento geográfico, cultural e político que vivia o Chile na
ditadura, com uma contraparte localizada num influente polo de arte contemporânea:
a cidade de Nova Iorque3.
Satelitenis propunha explorar os alcances do vídeo, estabelecendo como pontos de conexão iniciais as cidades de Santiago e de Nova Iorque. Cabe destacar que o
nome do projeto resumia sua missão. Satelitenis é o resultado da união de dois conceitos: satélite e tênis. Ou seja, uma partida aérea de imagens em movimento entre dois
jogadores, neste caso, o trabalho do videomaker de Santiago e o de Nova Iorque. O
trânsito, por sua vez, não seria através de uma postalidade convencional, mas por meio
de pessoas ou, como normalmente costuma se chamar, “à mão”. Isso serviria para
expandir o formato original da postalidade, dando conta de uma realidade conflitiva
da política naquele momento, no sentido da clandestinidade do transporte e da própria
lógica da videoarte como imagem em movimento múltiplo em rede. Também é importante destacar que as Pinturas Aeropostales de Dittborn começaram a ser desenvolvidas ao mesmo momento em que se iniciou o envio de vídeos de Satelitenis. Nesse
sentido, podemos deduzir que, para Dittborn, o processo de deslocamento não apenas
estabelecia os marcos na ampla possibilidade da arte postal, como também tinha a intenção de se converter num padrão visual para a internacionalização de sua produção.
Durante 1982, Dittborn e Flores fizeram reuniões preparatórias para Satelitenis. O conceito e o processo foram explicados num protocolo escrito por Dittborn
especialmente para este projeto. Nele se estabelecia a realização de uma série de
vídeos de exatamente três minutos de duração na sequência Dittborn-Flores. Esses
seriam posteriormente enviados para Nova Iorque numa mesma fita para que Juan
Downey respondesse com outro vídeo. A nova sequência Dittborn-Flores-Downey
seria então enviada para outros videomakers internacionais, gerando assim uma
sucessão de acontecimentos que finalmente compilaria um longa-metragem de uma
hora e meia de duração.
Entre janeiro e fevereiro de 1982, foram realizados os vídeos de Dittborn e
Flores. No vídeo de Dittborn, o ator chileno Jaime Vadell4 aparece num estúdio sentado em frente a uma câmara com óculos escuros – semelhantes aos utilizados por
agentes de segurança – apresentando-se como Eugenio Dittborn. Em seguida, Vadell
começa a ler um texto em inglês, em que se reconhece como um videomaker de do-
3.
4.
A primeira parte de Satelitenis pode ser visualizada em baixa resolução no site www.umatic.cl.
Vadell anteriormente havia representado o pintor Guillermo Arredondado Galleguillos na capa do
catálogo Delachilenapintura, história de 1976.
73
mingo, dizendo: “Sou um videomaker de domingo5 como todos os que existem no
Chile, com a única exceção de Juan Downey, que vive em Nova Iorque” (tradução
livre). A seu lado, coloca numa vitrola um disco de vinil do popular cantor mexicano
Pedro Vargas, apresentado pelo ator como contemporâneo do cantor norte-americano
Bing Crosby. Finalmente, volta a ler o mesmo texto, mas desta vez em espanhol.
Parece-me importante enfatizar essa ideia da profissionalização baseada nos
conceitos de “artista de semana” ou “artista de fim de semana”. A propósito desse
último, numa entrevista realizada por Nelly Richard e Jaime Muñoz, Eugenio Dittborn ressaltou o seguinte: “Considero que com cinco esboços preparatórios para a
história da música, deixei de ser um videomaker de domingo para me transformar
num videomaker de meio período. O único videomaker de período integral é Juan
Downey. Eu sou um videomaker de meio período, porque para a produção do meu
trabalho em vídeo ainda dependo da infraestrutura dos meus amigos, que ganham
a vida fazendo spots publicitários para a televisão” (tradução livre). Isso está relacionado com a dicotomia existente no trabalho altamente especializado realizado
pelos videomakers europeus e norte-americanos em oposição às condições precárias
de trabalho e de circuito dos videomakers locais. Dessa forma, Dittborn fazia uma
tácita crítica à não profissionalização da atividade, assim como à falta de difusão da
videoarte no Chile. Da mesma forma, Carlos Flores comenta que junto com Eugenio
Dittborn e Carlos Leppe brincavam com a ideia de serem artistas “A tout le jour”.
Um conceito próprio da imputação prematura pompier, característica em alguns artistas conservadores do período.
Assim, o vídeo de Flores o mostrava de costas, enquanto dirigia seu veículo do
seu trabalho para sua casa. Enquanto dirigia, ia comentando suas percepções sobre a
produção de vídeo e como o olhar do espaço urbano em filmes e séries norte-americanas refere-se a um não lugar na percepção do observador. O vídeo de Flores – como
o de Dittborn – durava exatos três minutos e nele também se fazia referência a um
personagem do mainstream cultural – o cineasta Francis Ford Copolla.
A resposta de Downey chegou em julho daquele ano. A ideia original de incorporar mais videomakers do cenário nova-iorquino não ecoara nos pares de Downey.
Além disso, Downey havia ido mais além dos marcos protocolares estabelecidos por
Dittborn, fazendo um vídeo de sete minutos de duração. Essa junção continha imagens de Nova Iorque e de Paris, acompanhadas por uma música constante do grupo
inglês Bow Wow6. No final do vídeo, Downey editou os três vídeos juntos através de
experimentos técnicos, reiterando imagens, sobrepondo planos e produzindo acoplamentos de microfone com o alto-falante do monitor.
É importante destacar as diferenças profundas na linguagem e na técnica entre
Downey e seus pares no Chile. Downey expunha uma conceituação do vídeo muito
5.
6.
Véase, em entrevista a Eugenio Dittborn, no catálogo do Sexto Festival Franco-Chileno de Video
Arte, Santiago, Instituto Francês de Cultura, 1986.
A música utilizada por Downey foi Sexy Eiffel Tower.
74
mais avançada – se é que podemos chamá-la assim – que sua contraparte local, assumindo um certo papel pedagógico nesse primeiro envio. Segundo ele, os videomakers chilenos ainda estavam presos à linguagem do cinema e não exploravam as
perspectivas que o vídeo oferecia.
Como era comum naquela época, os artistas em Satelitenis exibiram vários
processos metonímicos como resposta ao isolamento imposto pela ditadura. Retomando o ponto anterior, uma destas críticas apontava ironicamente para a necessidade de realizar vídeos no Chile da mesma forma como no primeiro mundo, como
indicado na frase de Dittborn: “sou um videomaker de domingo, como todos os videomakers chilenos, com a única exceção de Juan Downey, que vive em Nova Iorque” (tradução livre). O ato metonímico, neste caso, apontava ironicamente para o
vácuo das condições de produção da arte no contexto do apagão cultural na ditadura.
A operação ocorre ao expelir o significado “amateur” e substituí-lo por uma continuação lógica das palavras “videomaker e domingo”.
Enquanto isso, no hemisfério norte, Juan Downey usava as duas peças para desenvolver um terceiro produto híbrido. Essa edição reuniu recursos técnicos simples
para deslocar os trabalhos anteriores por meio de uma sinédoque. A mesma edição
atuou como um código metonímico de rede. A peça consistia em expor diferentes
locais de Nova Iorque e de Paris, cidades que representam locais hegemônicos da
cultura ocidental. Em outras palavras, a operação expositiva de ícones culturais do
primeiro mundo contrasta com a edição dos dois vídeos (de Dittborn e de Flores) que
não expõem a “alta cultura”, mas, com razão, criticam a clausura e a impossibilidade
de desenvolvimento de um gênero alternativo; entendendo este último como circuito,
academia e crítica.
Entre agosto de 1982 e janeiro de 1984, foram realizados mais dois envios de
ida e volta. Finalmente, o material foi editado e exibido em 1984, no Quarto Encontro Franco-Chileno de videoarte na Galeria Espacio Cal. O master foi arquivado por
Juan Downey e recuperado vinte anos mais tarde para ser exibido.
Rever uma obra como Satelitenis não é apenas um convite para olhar as
fronteiras geopolíticas no contexto da ditadura, mas também para questionar sobre os
cruzamentos entre disciplinas como a arte postal e o vídeo. Uma operação visual que
visou a subverter as condições de isolamento cultural baseadas numa ideia de interconectividade global. O uso de estratégias postais entre centros e periferias, sob um
novo código audiovisual posiciona Satelitenis como um projeto pioneiro na América
Latina. Uma discussão que, atualmente, no mundo digitalmente codificado por um
formato de vídeo na internet, é plenamente válida.
Tanto as explorações tecnológicas e colaborativas sob o estatuto de deslocamentos por satélite como o contraponto da mídia ampliam a noção de identidade
e referencialidade de centro e de periferia desde a utopia de conectiva na experimentalidade tecnológica. Intitulei esta apresentação Tous les jours ou seulement le
weekend? justamente para evidenciar que a experimentação de inovação em vídeo
75
e em fotografia operou como uma forma de contrastar o exercício do diálogo, em
momentos de diferenciação irônica entre carências tecnológicas e reconhecimento
da ausência de formação que tenderam a se resolver de forma colaborativa, tomando
como referentes os elementos da cultura de mídia.
Finalmente, considero que a utopia/ironia que se noticia em Downey, Dittborn
e Flores reflete formalmente sobre os mecanismos de diálogo crítico num momento
de tensão política e social da América Latina. Afirmo que esses casos operam como
novas formas de destacar a complexa relação dos artistas do Cone Sul com respeito
a seus pares no Hemisfério Norte, deixando claro que a condição do weekend videomaker ou o contraponto com o artista mainstream foi aplicada como uma modalidade
discursiva frente ao aparato de precariedade de um circuito não consolidado sob um
regime de opressão e censura. Um desejo de conexão utópico que se antecipou à
realidade da Internet hoje em dia e que marcou um acontecimento na exploração de
linguagens pioneiras no continente.
As peças que apresentei podem ser lidas historicamente como pequenas conquistas para o trabalho artístico e para a história da arte latino-americana e contrastam ironicamente com o destino trágico do FASat Alfa, que depois de ter sido sucata
espacial acabou se desintegrando no espaço em 2006.
gerenciar diStÂnciaS: edgardo-antonio vigo
e o arquivo
fernanDo DaVis1
circulaçõeS oblíquaS
Estamos na DIAGONAL CERO, no centro da questão, observando nossos espectadores, atraindo-nos e nos deixando atrair.
Estamos na DIAGONAL CERO, que não é estar e nem ser
o centro. Somos contraditórios. Contradição equivalente à
liberdade de expressão. Estamos na DIAGONAL CERO do
contemporâneo, estamos numa cidade identificável e numa
largada.2
Em 1962, o artista Edgardo-Antonio Vigo publicou esse breve manifesto na
cidade de La Plata, na Argentina, inaugurando o primeiro número da revista Diagonal Cero. Nesse texto, La Plata – conhecida coloquialmente como a “cidade das
diagonais” – era evocada na imagem de um centro “descentrado”, de um território
gravitacional deslocalizado. Diagonal Cero anunciava um cenário artístico e o abria
para deslocamentos oblíquos. O texto referia-se a uma gestão das distâncias, diagramava um duplo movimento que se dobrava de maneira centrípeta sobre o próprio
terreno de La Plata, para dinamizá-lo e ativá-lo e, ao mesmo tempo, descentrar tal
cenário na mobilidade centrífuga que o projetava fora de si, inscrevendo-a na contemporaneidade.
1.
2.
Fernando Davis. Professor da Universidad Nacional de La Plata e da Universidad Nacional de las
Artes (Argentina). Dirige o LABIAL, Laboratorio de Investigación sobre Arte Contemporáneo y
Política en América Latina, na Facultad de Bellas Artes de la Universidad Nacional de La Plata.
“Editorial”, Diagonal Cero nº 1, La Plata, 1962. As letras maiúsculas pertencem ao original, tradução livre.
78
Nas páginas de sua revista, Vigo colocou em circulação poesia latino-americana, manifestos e ensaios, notas sobre a situação das artes em La Plata, gravuras
xilográficas e poesia visual e experimental.3 Esse programa heterogêneo concentrava o duplo compromisso de dar visibilidade às produções da vanguarda de La Plata
e, ao mesmo tempo, difundir uma série de práticas internacionais, que tiveram nas
redes de publicações de artistas, iniciadas na década de 60, um de seus mais importantes espaços de difusão e intercâmbio. Nesse sentido, Diagonal Cero introduziu
suas alternativas críticas em articulação com outras iniciativas editorias surgidas
da mesma forma na América Latina e em outras partes do mundo. Uma série de
projetos que, desde a circulação postal e a multiplicação de redes coletivas, apontou
para construir outros circuitos para a arte, para ampliar suas formas de ativação para
além dos limites da instituição artística, desafiando as ordens geopolíticas diagramadas no cenário da guerra fria.
Como muitas outras revistas, o projeto de Vigo implicou o intercâmbio com
publicações semelhantes4 e contou com colaboradores em outros países, que foram
se incorporando nas edições sucessivas.5 O ritmo desses intercâmbios também definiu a circulação em Diagonal Cero de uma série de pronunciamentos que fazia
parte dos compromissos políticos de artistas e intelectuais naqueles anos, como a
declaração do México do Movimiento Nueva Solidaridad (Movimento Nova Solidariedade), em 19646, ou a denúncia da ocupação militar estadunidense da República Dominicana, em 1965.7
Em dezembro de 1966, com a publicação do número 20 de Diagonal Cero,
dedicado à “Nueva Poesía Platense” (“Nova Poesia de La Plata”), Vigo redefiniu o
perfil editorial de sua revista. Desde então, a revista focou na difusão e conceituação
crítica das práticas da poesia experimental, então reunidas sob a categoria ampliada
de “nova poesia”. Desde as diversas manifestações da poesia concreta, visual e sonora, à poesia semiótica e cinética, do “poema-processo” brasileiro aos incipientes desenvolvimentos de uma poesia de ação e “Para y/o a realizar”8, a introdução destas
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Diagonal Cero foi dirigida, editada e diagrama por Vigo entre 1962 e 1969. Foram publicados 28 números com tiragem trimestral, com excepção do nº 25, que não foi publicado por ter sido dedicado ao nada.
Conforme foi crescendo essa rede de intercâmbios, Diagonal Cero incluiu uma lista de revistas
com as quais mantinha intercâmbio, acompanhadas por seu endereço postal. Entre as publicações
nacionais encontravam-se Eco Contemporáneo y Cuadernos de poesía e, entre as internacionais, a
mexicana El Corno Emplumado, a uruguaia Los huevos del Plata e a francesa Approches.
Desde 1965, a revista apresentava como “representantes” em outros países, Miguel Ángel Fernández, no Paraguai, Jorge Casterán, no Uruguai, Francisco Coello V., no Equador e Guillermo
Deisler, no Chile.
“A manera de editorial. Primer encuentro Americano de poetas - Movimiento ‘Nueva Solidaridad’.
Declaración de México”, Diagonal Cero nº 11, La Plata, agosto de 1964.
Edgardo-Antonio Vigo. “A los dominicanos todos”, Diagonal Cero nº 14, La Plata, 1965.
“Poesía para y/o a realizar” foi o nome com o qual Vigo se referiu desde 1969 a uma poesia de
proposições, na qual o poema foi construído pelo destinatário a partir de uma série de instruções ou
“chaves mínimas” fornecidas pelo artista ou poeta. A este respeito, ver Edgardo-Antonio Vigo. De
la poesía/proceso a la poesía para y/o a realizar. La Plata, Diagonal Cero, 1970 e Fernando Davis.
79
propostas na revista foi conformando uma situação, um tipo de arquivo das práticas
poéticas contemporâneas.
Em 1969, ano de encerramento da publicação de sua revista, Vigo elaborou,
no Instituto Di Tella, em Buenos Aires, uma exposição dedicada às práticas da nova
poesia, reunindo mais de cem artistas de dezesseis países. A Expo/Internacional de Novísima Poesía/69 – nome que Vigo determinou para a mostra – propunha um balanço
das poéticas experimentais, organizado em três seções. Na primeira, Vigo reuniu publicações de seu arquivo, junto com outras cedidas por artistas participantes: revistas,
livros, catálogos de exposições internacionais dedicadas à nova poesia e edições experimentais, como livros de artistas e “livros-objeto”. Uma segunda seção compreendia
as diversas manifestações da poesia visual, desde as que demandavam o suporte bidirecional até os enfoques objetais e cinéticos, próximos, em alguns casos, à ambientação.
Uma terceira aérea de exposição foi dedicada às audições de poesia sonora.
É possível interpretar a exposição no Di Tella como uma extensão do projeto
que Vigo vinha articulando nas páginas de Diagonal Cero. A rede de intercâmbios,
mantida em torno da circulação da revista, de fato, não só foi crucial na concepção
da mostra enquanto se originou de uma série de contatos e propostas, além de que a
mesma exposição, em certo sentido, trasladava para o espaço da instituição artística
o tecido de conexões mantidas pelas redes de publicações.
o muSeu itinerante
A revista Diagonal Cero constituiu uma plataforma móvel, um arquivo circulante em torno do qual Vigo mobilizou, simultaneamente, diversos projetos editoriais
e coletivos, desde a publicação de pastas de xilogravuras e de “objetos poéticos”
múltiplos, até a organização de exposições – como a mencionada Expo/Internacional
de Novísima Poesía/69 – e a criação de um “museu itinerante”.9 A xilogravura, que
desde os primeiros números da revista constituiu um dos recursos mais utilizados por
Vigo na ilustração das capas e no interior da publicação, mobilizou outras propostas
editorias. Para Vigo, a xilogravura era, em suas potencialidades múltiplas, um dispositivo crítico que desmantelava a integridade institucional da obra de arte como
objeto único, destinado à contemplação, enquanto impulsionava uma circulação e
apropriação expandidas, democráticas e coletivas da prática artística fora da autoridade legitimada de seus circuitos estabelecidos.
9.
Práticas ‘revulsivas’: Edgardo-Antonio Vigo nas margens do conceitualismo”. In: Cristina Freire
e Ana Longoni (Orgs.). Concetualismos do Sul / Conceptualismos del Sur. São Paulo, MAC-USP,
Annablume, AECID, 2009.
Diagonal Cero não foi só uma revista, mas também o nome de uma marca editorial e de um “movimento”, impulsionado por Vigo desde 1966, por artistas plásticos e poetas experimentais. A este
respeito, ver Fernando Davis. “Poéticas oblicuas. Grabado, cuerpos y poesía en Diagonal Cero”,
Separata, ano XIII, n º 18, Rosário, Centro de Investigaciones del Arte Argentino y Latinoamericano, Faculdade de Humanidades e Artes, Universidad Nacional de Rosário, dezembro de 2013.
80
Entre 1964 e 1966, Vigo publicou, simultaneamente à revista, uma série de
“livretos de xilogravuras”, compondo uma separata com três gravuras xilográficas.
Essas foram o ponto de partida para outros dois projetos: a edição, sob o selo Diagonal Cero, de uma coleção de doze pastas de gravuras, intitulada “Xilógrafos de Hoy”
(“Xilógrafos de Hoje”) (1966-1969) e a fundação, em 1967, do Museo de la Xilografía de La Plata, um museu “itinerante”, sem sede fixa.
A coleção do Museu de la Xilografía foi composta a partir da troca de gravuras
e das edições xilográficas publicadas por Vigo e circulou numa série de caixas de madeira, dispositivo móvel que pode ser entendido como uma extensão do formato do
livreto ou da pasta de xilogravuras. O museu articulou seu programa em torno da “necessidade de abrir novos canais”, ampliados na “circulação manual” e na condição
multiplicável da gravura xilográfica.10 O dispositivo itinerante de Vigo – um museu
que operava por sua vez como artefato, questionando ou deslocando a própria ideia
de Museu – implicava na ocupação transitória, como sede de exposição, não apenas
em alguns espaços artísticos, mas, fundamentalmente em clubes de bairro, escolas,
bares, bibliotecas, associações de profissionais e casas particulares. As xilogravuras
eram exibidas, geralmente, numa corda, evocando a tradição popular da literatura
de cordel, e acompanhadas por dispositivos pedagógicos destinados à educação e à
socialização da técnica xilográfica, tais como brochuras e demonstrações práticas do
procedimento de impressão.11 O dispositivo “Todo el proyeto del Museo de la Xilografia” pode ser interpretado a partir de um compromisso para cancelar as distâncias
na circulação móvel da caixa-museu, mas também na capacidade da proximidade
“tátil”,12 que Vigo atribuía à gravura xilográfica. Enquanto Diagonal Cero teve nas
redes postais de revistas sua principal plataforma de intercâmbio, o Museo de la Xilografía – com exceção de algumas exposições em Buenos Aires e em algumas poucas localidades bonaerenses – focou sua circulação em La Plata, na imagem de um
artefato portátil e itinerante que traçava suas condições expositivas no deslocamento
pela geografia da cidade.
O compromisso pela inserção da arte no espaço urbano mobilizou em Vigo
muitos outros projetos. Em 1971, ele publicou um manifesto no qual se pronunciava
10.
Muestra Internacional de Xilografía, cat. exp., La Plata, Colegio de Médicos de la Provincia de
Buenos Aires, 1980, s/ p. O texro assim argumenta: “A gravura tem uma qualidade íntima que se
protege nas dimensões de seus formatos comuns de simples manipulação. Esta circulação manual
da impressão remonta originariamente às manifestações mais arraigadas nos costumes e tradições
populares [...] Além disso, o calor do toque de tudo o que é recebido de forma “direta” e na mão,
sem as típicas mediatizações que supõe suas irmãs, as obras de arte, redunda em benefício de uma
desacralização, entronizado na distância “imposta” ao observador pela mesma conformação dos
ambientes de exposição (galerias e museus) pelos elementos subsidiários (vidros e quadros) que
fixam o diálogo”.
11. Fernando Davis. “El Museo de la Xilografía de La Plata y la poética de un ‘arte a realizar’. In:
Edgardo-Antonio Vigo”, Muestra acervo del Museo de la Xilografía de La Plata. Re-vuelta, cat.
exp., La Plata, Fundación Centro de Artes Visuales, 2002.
12. Muestra Internacional de Xilografía, cat. cit., 1980, s/p.
81
a favor de uma ativação poética da rua.13 Alguns anos antes, em outubro de 1968,
Vigo havia proposto sua primeira “sinalização”, intitulada Manojo de semáforos
(Grupo de semáforos – tradução livre). Tratava-se da convocatória – dirigida por um
jornal e uma rádio de La Plata – para, numa data e horário precisos ir para a esquina
das avenidas 1 e 60 da cidade, para contemplar, do ponto de vista de sua potencialidade estética, um objeto corriqueiro na paisagem urbana, o semáforo, localizado
no cruzamento de ambas as ruas com a diagonal 79. Em seu Manifiesto/ Primera
no-presentación Blanca (Manifesto/Primeira não apresentação Branca – tradução
livre), publicado simultaneamente à convocatória, Vigo argumentou: “A funcionalidade de caráter prático-utilitário de algumas construções devem ser ASSINALADAS
e assim produzir questionamentos que não surgem da mera e vertical abordagem
utilitarista, mas da ‘DIVAGAÇÃO ESTÉTICA’”.14 Assim, na simples ação de assinalar o semáforo, o projeto propunha a ativação de um olhar inusitado e prolongado
que, além da ordem técnico-instrumental do artefato, fosse susceptível para mobilizar
outras coordenadas de sentido. A arte e a poesia constituíam, para Vigo, estratégias
de realce do entorno atual e suas rotinas naturalizadas. A dinâmica da circulação dos
corpos e da dispersão do olhar habilitado pelos deslocamentos e ritmos do urbano, o
Manojo de semáforos – assim como o Manifesto de 1971 – contrapunha a ativação
de uma distância poética, de um olhar demorado, detido, para a contramão dos fluxos
da cidade, que interrompia e estranhava – apostando na transformação – as ordens
normalizadas do cotidiano.
interrupçõeS poéticaS no circuito
Na diagramação de Diagonal Cero, Vigo recorreu, desde os primeiros números da revista, à exploração da forma tipográfica, à disposição não convencional de
alguns títulos e à tensão visual entre o corpo do texto e o espaço da página. Mas, desde 1966, com a introdução da nova poesia, a experimentação com o formato de página levou à multiplicação de furos, cortes e curvas de apoio. Assim, Diagonal Cero
tornou-se um dispositivo tridimensional, “receptáculo de folhas soltas”,15 “coisa”.16
Ao perfurar e dispersar a página, Vigo fazia explodir a unidade estrutural da publicação – seu próprio estatuto como “revista” – e conduzia os potenciais leitores
na ativação de outros percursos possíveis, mediante uma manipulação inventiva e
modificadora do objeto. O programa sintético que Vigo tinha anunciado na edição nº
13. Edgardo-Antonio Vigo. “La calle: escenario del arte actual”, OVUM 10 n. º 6, Montevidéu, março
de 1971. Posteriormente, Vigo publicou o texto em sua revista Hexágono ’71 be, La Plata, 1972.
14. Edgardo-Antonio Vigo. Manifiesto/ Primera no-presentación Blanca, La Plata, Diagonal Cero,
1968, s/p. As letras maiúsculas pertencem ao original (tradução livre).
15. “Edgardo-Antonio Vigo habla de su arte”, La Tribuna, Assunção, 25 de junho de 1968.
16. A partir do número 24, publicado em 1967, Vigo caracterizou sua revista como “coisa trimestral”.
82
1 de Diagonal Cero, aparecia radicalizado no desmanche da revista, na interpelação
oblíqua, desestabilizadora, de sua unidade sequencial.
Em Diagonal Cero Vigo publicou suas “poesias matemáticas”, desenhos em
tinta trasladados para clichés tipográficos, nos quais a unidade do espaço da página
aparece tensionada pelas relações visuais entre números, letras e signos algébricos,
associados a insólitas fórmulas aritméticas e equações inexistentes, que remitiam ao
sistema de codificação da matemática. Trata-se de artefatos visuais maquínico-poéticos que articulam sua operatividade crítica numa apropriação contraproducente de
signos e “gramáticas” do sistema matemático, interrompendo ou deslocando sua racionalidade, para abri-los aos desfazeres de sentido da poesia.17
Durante os mesmos anos em que publicou Diagonal Cero, Vigo também fez
objetos poéticos e peças gráficas múltiplas as quais chamou, genericamente, “cosas
visuales” (coisas visuais). Mas, muito mais do que simples extensão das formas experimentais da poesia visual em “cosas” o objeto operava como dispositivo desencadeante de uma experiência que ultrapassava sua materialidade – e seu estatuto como
“obra” – e se torna processo, acontecimento. A revolta dos signos amparada pela
nova poesia devia se estender para o cotidiano, para comprometer, para reinventar os
limites do existente. A produção de múltiplos diagramava uma estratégia micropolítica destinada a interferir nas ordens de sentido da sociedade do espetáculo, na administração do tempo de ócio pela indústria cultural e pelo consumo. Assim, muito mais
do que um gesto de provocação ou do que uma mera proposta lúdica e participativa,
a poesia experimental apontava para mobilizar processos de subjetivação suscetíveis
de interromper o uso capitalista do tempo de ócio, para ativar a invenção coletiva de
novas estratégias criativas e vitais.
Nesse sentido crítico, localizavam-se os Poemas matemáticos (in)comestibles
(Poemas matemáticos (in)comestíveis), editados por Vigo em 1968, um múltiplo feito com duas latas de conserva soldadas entre si, com um objeto desconhecido em seu
interior, que produzia um som ao ser movimentado. Esse feito poético acontece na
tensão entre a manipulação do múltiplo, o cancelamento da distância na dimensão
portátil do que Vigo caracterizou, então, como “arte palpável”,18 e a distância habilitada pela pergunta sobre o objeto inacessível e secreto, contido entre as latas seladas.
Esta tensão reaparece na intervenção com que Vigo encerrou, em 1969, a revista Diagonal Cero. A última página da publicação consistia em uma folha solta,
17. Vigo realizou suas primeiras poesias de matemática entre 1956 e 1960, desenhos de tinta e colagem - alguns dos quais reproduzidos nos programas do Cineclub de La Plata – nos quais utilizou
instrumentos de desenho técnico, selos de borracha e máquina de escrever. A referência à máquina
está presente em várias destas poesias.
18. Entre 1968 e 1969 Vigo escreveu um manifesto no qual se posicionou por uma arte “palpável” e
com “erros”, baseada no “uso de materiais ‘ignóbeis’” e num “aproveitamento ao máximo da estética do ‘temor’”, de “armadilha por via lúdica” e que “facilite a participação ativa do espectador,
através do absurdo”.
83
com um círculo furado no centro e umas breves instruções que interpelavam o leitor
com a explicação de uma ação a ser executada:
Concretize seu poema visual / pintura / objeto / escultura / paisagem / natureza
morta / nu / (auto) retrato / interior e todo outro tipo e gênero de arte. Mantenha uma
distância prudencial de um olho e o furo e enquadre com plena liberdade o gênero
que se deseja.
O dispositivo da página furada convidava para escapar dos limites da revista
e mover a ação poética no desvio aberto pela operação de olhar através do furo circular. Uma interpelação oblíqua do espaço que descentralizava, na ação transitória
de “recortá-lo” e enfocá-lo, de mantê-lo nos limites do círculo para, em seguida,
mudá-lo de lugar, toda uma política do olhar. Como no Manojo de semáforos, a
proposta de Vigo na página final de Diagonal Cero apontava para a sinalização do
cotidiano, a partir da distância poética de um olhar inusitado ou não habituado, mobilizado, nesse caso, por um artefato portátil que, solto da continuidade da revista,
convidava a ver através do mesmo.
fluxoS poStaiS
No início dos anos 70, os circuitos alternativos e as estratégias de colaboração
que as redes de revistas experimentais vinham articulando desde a década anterior,
constituíram a plataforma na qual foram mobilizados muitos outros projetos. Nesse contexto, as práticas de arte postal conformaram uma cartografia móvel e descentrada que, ultrapassando em muito as redes de revistas, colocou em circulação
um corpo múltiplo e inclassificável de materiais gráficos, imagens e textos. Nesse
cenário latino-americano, esse compromisso viu-se articulado com a demanda para
desafiar as ordens disciplinares e repressivas impostas aos corpos e às subjetividades
pela violência das ditaduras nos países do Cone Sul. Em muitos casos, a arte postal
operou como um canal de denúncia das condições de censura e repressão, através da
multiplicação e dispersão de demandas políticas. Vigo utilizou as redes postais para
ampliar a denúncia da prisão e desaparecimento de seu filho, Abel Luis “Palomo”
Vigo, pela ditadura argentina, através de carimbos e selos com o enunciado “SET
FREE PALOMO”19 (“LIBERTE PALOMO” – tradução livre).
Na arte postal, a “obra” não pode ser compreendida fora de sua circulação.
O correio, como se sabe, não constituiu nessa prática um mero meio de transporte.
Pelo contrário, a obra de arte postal aparece vinculada à sua circulação postal: o fato
de que devesse percorrer uma determinada distância é parte de sua estrutura e opera,
nesse sentido, condicionando a materialidade e o formato da peça. Em seu projeto
19. Abel Luis Vigo foi militante da UES (Unión de Estudiantes Secundarios - União dos Estudantes do
Ensino secundário). Aos 19 anos, foi sequestrado em sua casa por um grupo armado, em 30 de julho
de 1976. Ainda continua desaparecido.
84
Viaje de esta tarjeta postal (Viagem deste cartão postal), de 1975, Vigo enviou pelo
correio, para diversos artistas, um postal sem nenhuma imagem – um envio que infringia a mesma lógica do dispositivo da arte postal –, com a única indicação para
que fosse feita a intervenção com uma imagem ou texto e posteriormente devolvido,
também pelo correio. Assim, cada cartão postal inscrevia em seu corpo escritural as
marcas de seu desvio – de sua viagem –, nos selos e carimbos postais do serviço de
correios. Vigo inscreveu a arte postal no que chamou “comunicações marginais à
distância”,20 denominação formulada a partir da noção de marginal media, proposta
por Hervé Fisher, para se referir a uma série de práticas undergrounds, desenvolvidas
como reação ao mass-media.21 A prática da arte postal apropriou-se da gramática e de
signos da instituição postal, numa direção contrária a seus ordenamentos burocrático-administrativos. Através da ocupação dos circuitos de distribuição dos correios oficiais e apontando para ultrapassar as localizações e trajetos da instituição artística, a
arte postal fez proliferar a interferência, a falha e o desvio, como estratégias micropolíticas que alteravam a produtividade disciplinar dos canais de comunicação das
redes postais, para voltá-los para uma plataforma tática e em permanente mobilidade
de onde dispersam mensagens, convocatórias e projetos. Cada participante operava
como um potencial receptor e transmissor de múltiplos envios, desde cartões postais
e envelopes com intervenções, até carimbos de borracha e selos apócrifos, poesias
visuais, colagens, fotocópias e montagens de todo tipo de imagens impressas, de diversas filiações e proveniências. As redes postais também foram suporte de diferentes
convocatórias para exposições itinerantes e para edições de livros de artistas e outras
publicações alternativas. Vigo referia-se ao artista postal como um tipo de conector e dispersor de trajetos, de ativador de fluxos: “Hoje, um praticante da corrente
converte-se automaticamente em ARMADOR de exposições, CENTRALIZADOR-RETRANSMISSOR de trabalhos de pesquisas e experimentais e em CENTRO DE
ABERTURA para novos canais de entrada”.22
O formato da exposição, tanto nos espaços “artísticos” como nos outros
alheios a tal circuito, é uma estratégia amplamente disseminada entre os participantes da arte postal. Se as redes postais questionaram os pedágios institucionais da
arte e a autoridade de seus circuitos normalizados, ao mesmo tempo, as exposições
de arte postal foram uma opção tática através da qual difundiram estas práticas nos
contextos locais e, ao mesmo tempo, disputaram o sentido do artístico na ocupação desafiadora de seus espaços.23 Em dezembro de 1975, juntamente com Horacio
20.
Edgardo-Antonio Vigo. “Arte-Correo: Una nueva etapa en el proceso revolucionario de la creación”, Caixa de Art n° 2, Caracas, março de 1976, s/p.
21. Hervé Fisher. Art et communication marginale. Tampons d’artistes, Paris, Balland, 1974.
22. Vigo, Op. cit., 1976, s/p. As letras maiúsculas pertencem ao original, tradução livre.
23. Para o desenvolvimento da arte postal e suas relações com o Museu, ver Cristina Freire. Poéticas
do Processo. Arte Conceitual no Museu. São Paulo, Iluminuras, 1999 e Cristina Freire (Org.). Terra
incógnita. Conceitualismos da América Latina no acervo do MAC USP. São Paulo, Museu de Arte
Contemporanea da Universidade de São Paulo, 2015.
85
Zabala, Vigo organizou a Última Exposición Internacional de Arte Correo (Última
Exposição Internacional de Arte Postal), na Galeria Arte Nuevo de Buenos Aires.
Ambos os artistas ali exibiram materiais de seus arquivos, juntamente com envios
que foram solicitados para a mostra aos quase duzentos artistas participantes. No
entanto, a opção pela galeria como espaço não deixava de supor suas aparentes contradições. Na verdade, Vigo apontava, então, que “a arte postal é uma forma de arte
palpável que sob qualquer ponto de vista não deve utilizar as plataformas tradicionais
herdadas e sim procurar novas formas de apresentação”.24 Assim, o nome da mostra,
Última Exposición Internacional de Arte Correo, buscava explicitar essa tensão ao se
articular com um tipo de “interrupção simbólica”25 da continuidade traçada naqueles
anos por sucessivas exposições de arte postal. Tanto Vigo como Zabala vinham participando de algumas delas, como do Festival de la Postal Creativa, organizado pelo
artista uruguaio Clemente Padín, em 1974, na Galeria U de Montevidéu, ou da 1ª
Exposição Internacional de Arte Postal, apresentada pelos brasileiros Paulo Bruscky
e Ypiranga Filho, num hospital de Recife, em 1975. A exposição de Padín forneceu
a Vigo e a Zabala o esquema para a apresentação em Buenos Aires. O dispositivo,
idealizado por Padín e adotado pelos artistas argentinos, consistia em uns tubos de
nylon transparente dispostos verticalmente em todo o espaço da galeria. Os diversos
envios formavam, assim, uma estrutura envolvente e tridimensional que transtornava
o território preservado da sala de exposição com a densidade conflituosa e inclassificável de uma prática que optou por privilegiar os nexos e fluxos entre as lógicas
disciplinares da “obra individual”.
gerenciar diStÂnciaS
Toda a produção de Vigo aparece articulada pela pergunta sobre a distância.
Por um lado, sua obra insiste na proliferação do fluxo diagonal, na articulação de
redes postais, na proposta de uma arte palpável, na invenção de dispositivos portáteis
e de artefatos itinerantes. Por outro lado, esses mesmos artefatos suspendem o imediatismo de sua acessibilidade, ao aplicar uma demora, uma ruptura que impede o
desvio, que secciona um fragmento do tecido múltiplo para dispô-lo a um olhar inusitado, a uma interrupção que descarrega e descentraliza obliquamente as coordenadas
de sentido do artefato em questão. Se a obra de Vigo é indissociável da construção de
canais alternativos de comunicação e intercâmbio através das redes de publicações
experimentais e a arte postal, ao mesmo tempo aparece sustentada pela concepção de
dispositivos que detêm a mobilidade do circuito e dispõem seus materiais ao olhar no
formato de revista, da exposição ou do arquivo. Na atividade de Vigo, como editor
24.
Edgardo-Antonio Vigo. “Arte/Correo una nueva propuesta de comunicación”, inédito, 1975. Arquivo Centro de Arte Experimental Vigo, tradução livre.
25. Horacio Zabala. “Los últimos y los primeros”. In: Fernando García Delgado e Juan Carlos Romero
(Comp.). El Arte Correo en Argentina. Buenos Aires: Vórtice Argentina Ediciones, 2005, p. 56.
86
e como organizador de exposições, opera uma certa vontade de arquivista por organizar e classificar uma série de materiais, bem como por conceber um conjunto de
dispositivos para torná-los visíveis. O próprio arquivo pessoal de Vigo é atravessado
por esta exigência. Vigo organizou seu trabalho, em ordem cronológica, de 1953 a
1997, numa série de caixas etiquetadas com o título “BIOPSIA”.26 Este título também
apareceu em inúmeros envios postais e como nome de uma edição de caixas de artista
ou livros-objeto, publicados entre 1993 e 1997.27 As caixas e edições Biopsia evocavam a imagem do processo de extração de uma mostra de tecido para ser analisada.
Mais uma vez, a interrupção do circuito, a produtivização poética da distância, o
olhar inusitado e prolongado no recorte de uma parte da trama múltipla.
Vigo foi um gestor de distâncias, um “poeta da distância”, de acordo com a
denominação que ele mesmo adotou para sua mostra individual, em 1997, no Centro Cultural Español del Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI) de Buenos
Aires. Tal denominação resume um programa poético e político que se articula como
tensão suportada: por um lado, pelo compromisso de encurtar as distâncias na cartografia itinerante do Museo de la Xilografía, pela dimensão tátil da imprensa xilográfica, da postal ou do múltiplo acessível à mão; por outro lado, pela intermediação
da distância no atraso poético e pulsante com que a sinalização ou o objeto palpável
clamaram para novas formas de envolvimento com o ambiente cotidiano, para mover
as ordens sensíveis naturalizadas e promover novas formas de invenção subjetiva.
26. Vigo ordenou os documentos de sua atividade pessoal em 37 caixas contendo “recortes jornalísticos sobre exposições, reportagens, ensaios escritos por ele, críticas e comentários para suas obras,
catálogos, folhetos, cartazes, convites e chamadas para exposições nacionais e internacionais de
gravura, arte conceitual, poesia visual e arte postal, atuações como jurado, comunicações via postal,
fotografias, desenhos e gravuras originais, provas, desenhos, correspondência, manuscritos”, entre
outros materiais. Disponível em: <http://www.caev.com.ar/>.
27. Vigo publicou seis caixas Biopsia. Cada uma delas contém um objeto feito por Horacio Zabala
(1993), o restante do grupo (1993), o próprio Vigo (1995), Juan Carlos Romero (1997), Hilda Paz
(1997) e Jorge Pereira (1997).
publicaçõeS de arte
projetoS editoriaiS como plataformaS de
ação e peSquiSa
renata Marquez1
Michel de Certeau escreveu que “a historiografia (quer dizer ‘história’ e ‘escrita’) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase o oximoro – do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso.” (CERTEAU, 2000) Longe
de ser sinônimo indiscutível de “verdade”, a escrita da história sempre é conduzida
pela tensão entre uma suposta realidade e um modo de olhar que lhe confere um certo
discurso. Assim, debater arte e arquivos por meio da discussão das publicações é
uma oportunidade para abordar práticas interessadas em um projeto historiográfico
brasileiro atual.
Se, como nos lembra ainda o autor, a escrita da história do “Novo Mundo” é
uma “escrita conquistadora”, “uma colonização do corpo pelo discurso do poder”,
é imprescindível a novas narrativas partirem da revisão desse projeto colonizador
de escrita da história, evidenciando o contexto atual de “despertar epistemológico”.
(CERTAU, 2000)
A articulação entre o “real” e os seus discursos epistemológicos possíveis implica em fazer a ciência dialogar com outras cosmologias, investigar micro-histórias
invisibilizadas ou amnésicas, elaborar exercícios de tradução intercultural e arriscar
proposições narrativas imaginativas, sejam elas textuais ou visuais – um projeto historiográfico no qual atua um olhar sobretudo prospectivo.
Conscientes de que “[...] o reexame da operatividade historiográfica desemboca, por um lado, num problema político (os procedimentos próprios ao ‘fazer história’) e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra enunciadora),
questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita ‘científica’” (CERTEAU, 2000), interessa-nos novas plataformas de produção do conheci1.
Renata Moreira Marquez. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi curadora do Museu de Arte da Pampulha (2011 e 2012). Editora da revista PISEAGRAMA desde 2011.
90
mento, a partir de muitos campos disciplinares, saberes e ações estéticas, fomentando
diálogos entre a ciência e a arte.
Se a ciência é questionada por um lado, por outro também se faz necessária
uma expansão das definições de arte, em cujo esforço há certamente um teor político (as possibilidades de uma política da arte que questiona os lugares estabelecidos
para a arte, a obra, os artistas e o público), mas há também um teor antropológico
que discute os paradigmas sociais (vividos, projetados, desejados) numa espécie de
antropologia de nós mesmos.
Entendemos por plataforma editorial uma confluência de publicações impressas e publicações online, mas também uma série de ações e intervenções no espaço
público bem como a organização de pesquisas, seminários, exposições, cartilhas e
outras coletividades móveis.
Piseagrama é uma plataforma editorial que surgiu em 2010 no contexto de um
Edital do Programa Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura. Contemplados
com um dos prêmios do Edital, foram editados seis números da revista Piseagrama
– espaço público periódico2, uma revista temática e, na sua primeira temporada sob
recursos públicos, gratuita, sobre espaços públicos existentes, urgentes e imaginários.
A revista conta hoje com nove números editados, sendo que os três últimos, já não
previstos pelo Edital, foram financiados, de forma mista, por assinantes em crowdfunding e outros apoios.
As capas dos nove números da revista têm sido baseadas numa pesquisa arquivística de fotografias que apontam situações emblemáticas nos espaços públicos
no Brasil, visando recuperar micro-histórias e acontecimentos esquecidos da vida no
país, recontextualizando as urgências da vida urbana atual. Mesclando técnicas gráficas
contemporâneas com outras que remetem às fotografias colorizadas, em cada capa, um
texto narra aquela situação, substituindo a ideia de um editorial descritivo de apresentação do conteúdo da revista por uma escavação prospectiva. Um prosaico memorial
para um país desmemoriado e um catálogo de possibilidades concretas, factíveis.
Ao longo daquelas primeiras seis edições, o grupo (formado por professores
da Escola de Arquitetura e Design da UFMG e por uma cientista política) entendeu
que outros formatos de discussão poderiam complementar, enriquecer e mesmo desafiar a publicação impressa. A seguir narramos algumas das ações que se deram em
espaços públicos de Belo Horizonte no período de 2011 a 2014.
atlaS ambulante
O Atlas Ambulante3 foi um projeto de pesquisa contemplado em 2010 pela
Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e
2.
3.
Conteúdo total disponível em www.piseagrama.org
Conteúdo total disponível em http://sites.itaucultural.org.br/cidadegrafica/atlas-ambulante.html
91
Culturas Populares. Gerou uma publicação impressa e uma exposição itinerante, cuja
última aparição, ainda que parcial, foi no contexto da exposição “Este não é um museu: artefatos móveis à espreita”, no CCSP, em 2015. O Atlas Ambulante é formado
pela experiência da cidade de Belo Horizonte do ponto de vista de seis ambulantes:
Antônio Lamas, vendedor de biju; Osmar Fernandes, amolador de facas; Robson de
Souza, vendedor de pirulitos; Jefferson Batista, vendedor de algodão doce; e Agnaldo
e Marlene Figueiredo, empalhadores de cadeiras.
A proposta funde a estratégia do retrato com a cartografia. O retrato, sem perder as suas inerentes atribuições de identidade, é posto a operar como um atlas, instância cuja função é o entendimento espacial. Mas nele o ambulante não é uma abstração ou idealização nem é o sujeito anônimo ou o homem comum: ele tem nome,
endereço e itinerários específicos, é possuidor de “modos de fazer” e conhecimentos
espaciais únicos.
campanha não-eleitoral
Figura 1 - Campanha não-eleitoral em Porto Alegre, 2016.
Fotografia Hélio Fervenza.
No dia 14 de setembro de 2012, em Belo Horizonte, uma pequena tropa de
coladores de cartazes saiu do galpão de distribuição de material na hora costumeira,
às quatro da manhã. Em vez dos cartazes usuais – propaganda política, espetáculos ou
produtos de consumo – os rapazes e moças levavam coleções de cinco cartazes, cada
um com uma cor, cada um com uma frase. Seguindo as suas rotas normais, colaram os
cartazes nas superfícies transitoriamente disponíveis da cidade, no processo repetido
de mudar, a cada madrugada, a paisagem urbana. Já as frases dos cartazes propunham
mudanças na paisagem menos transitórias, mais duradouras, estabelecendo aí o primeiro paradoxo. Como alternativa à retórica desse parlatório político surdo-mudo que
92
toma conta da cidade nas vésperas das eleições, foi oferecida a palavra que manifesta o
desentendimento, ação direta e duplamente direcionada ao âmbito da prática espacial.
Se o primeiro paradoxo da ação está na coincidência efemeridade/permanência,
o segundo paradoxo está na associação do cartaz com um nome, rosto ou partido. As
frases, sem assinatura, se lançavam livres para serem captadas e capturadas por qualquer nome, rosto ou partido. Sem reinvindicação de autoria, as palavras veiculadas
pelos cartazes coloridos procuravam resgatar, no deserto político em que nos encontramos, o vínculo entre as palavras e as coisas. Enquanto coisas, as palavras desenham propostas, imaginários, paisagens e práticas de código aberto: disponíveis à livre
apropriação, concretização no território e, inclusive, ao intercâmbio nacional – do rio
Arrudas partimos ao Tietê, ao Capibaribe e ao Guaíba, numa bacia hidrográfica urbana
conectada pela ideia de nadar, pescar e navegar novamente nos nossos rios mortos.
Também presentes em adesivos, cartazes, cavaletes, sacolas e camisetas, as
cinco frases iniciadas por um hashtag configuram espécies de pílulas de projetos para
o espaço público. Conformam uma prática espacial que aplica a palavra na paisagem
política árida e, ao mesmo tempo, reivindica o uso coletivo e público do espaço
cada vez mais privatizado. Essas pílulas de projeto, ao não apresentarem um desenho
técnico específico, são formuladas para a legibilidade de qualquer um e para a livre
imaginação de todos. Sinalização para imaginários ao mesmo tempo novos e nostálgicos; estratégicos e retrospectivos.
córrego do leitão
No dia 25 de maio de 2013, uma placa indicando uma obra pública fictícia de
“Renaturalização do Córrego do Leitão”, canalizado e coberto por concreto há quarenta anos, foi instalada na rua Padre Belchior, na região central de Belo Horizonte.
Os passantes paravam curiosos. Alguns elogiavam o projeto, outros se surpreendiam
com a iniciativa e muitos a atacavam com argumentos variados. A inesperada utopia
que o poder público prometia realizar rapidamente se espalhou pelos jornais locais e
viralizou nas redes sociais.
Na segunda-feira, dia 27, o jornal Hoje em Dia estampou na capa uma foto da
placa e dedicou uma página inteira à reportagem sob o título “Córrego do Leitão de
volta à cena: ousadia ou pegadinha?”, que além de ouvir moradores e comerciantes
locais, reavivou a memória de seus leitores relatando brevemente o destino trágico
do Leitão nas últimas décadas e ampliou a discussão ao mostrar o exemplo de renaturalização do rio Cheonggyecheon, em Seul, na Coréia do Sul, há cerca de dez anos.
Na terça-feira, dia 28, a placa já não estava mais lá. Os jornais Hoje em Dia
e O Tempo anunciavam que a Prefeitura procurava os responsáveis por desrespeitar
o Código de Posturas (multa: R$ 238,49) e a Polícia Federal abrira um inquérito
para investigar os autores da “brincadeira com obra fictícia” por uso indevido das
logomarcas do governo e dos ministérios. A criminalização e a multa deram mais
93
visibilidade para a questão. Nas redes sociais, foram centenas de manifestações de
apoio aos autores, ainda que desconhecidos. Chegou a ser organizada uma vaquinha
online para cotizar a multa.
Mas autoria, bem sabemos, costuma ser reivindicada por artistas ou terroristas.
E diante da inquietante ausência de autores para a placa, resta refletir: se não se trata
de uma ação artística e se a placa não é exatamente um ataque violento ao governo ou
à população com o objetivo de incutir o medo, ainda que tenha inesperadamente iniciado uma fobia coletiva pela água limpa e cheia de peixes, não seria essa placa simplesmente uma ação política? Política não no sentido partidário ou eleitoral, mas no
sentido pleno da política que se refere à construção coletiva da polis, ou seja, da vida
comum na cidade? E afinal, não é a política uma prerrogativa de qualquer cidadão?
eScavar o futuro
“Escavar o Futuro” foi uma exposição com curadoria minha e Felipe Scovino
realizada na virada de 2013 para 2014 no Palácio das Artes, Belo Horizonte. Nesse
duplo movimento de escavar o futuro, propusemos uma reflexão sobre a produção artística dos anos de 1960 e 70, momento histórico no qual o espaço é entendido como
matéria-prima da arte, investigando, em suas continuidades e rupturas, o interesse
atual dos artistas pela produção social do espaço.
Optamos por iniciar a pesquisa curatorial com um levantamento historiográfico local, na contramão da amnésia insistentemente cultivada no país, trazendo novamente à tona o trabalho do artista, crítico e curador Frederico Morais. Ele propôs,
em abril de 1970 no Palácio das Artes, os eventos “Objeto e Participação” e “Do
Corpo à Terra”, emblemáticos no contexto da arte brasileira por sua força de ruptura
histórica em plena ditadura. No trabalho “Quinze Lições sobre Arte e História da
Arte – Apropriações: Homenagens e Equações”, Morais desvia a categoria artística
de paisagem da galeria para as ruas da cidade, apresentando como primeira lição ilustrada a “Arqueologia do urbano – escavar o futuro”, entendendo a paisagem como
ação prospectiva no ambiente. A frase de Frederico carrega um movimento duplo e
simultâneo de retrospecção e prospecção e dá título à exposição fomentando, na sua
aplicação atual, uma merecida homenagem e múltiplas novas equações.
A proposta de substituir o catálogo da exposição por um livro4 entendido também como obra produzida nesse processo – capaz de provocar levantamento de dados, gerar conhecimentos, novas elucidações e recortes críticos a partir da exposição
–, vem de encontro à intenção historiográfica local presente no início do processo
curatorial. O livro, cujo projeto editorial ficou a cargo de Piseagrama, empreendeu
uma série de conversas gravadas e transcritas e ensaios fotográficos originais sobre a
4.
Conteúdo total disponível em https://issuu.com/piseagrama/docs/escavar_o_futuro_final_web
94
história recente de Belo Horizonte, suas dinâmicas de confronto com os modelos de
modernidade e as insurgências populares recentes.
***
Entende-se, assim, que os projetos editoriais aqui descritos não têm um fim em
si mesmos e que, ao assumir diferentes materialidades, diversas aparições públicas
e circular em muitos grupos, meios e instituições, acadêmicas e não acadêmicas, desenvolvem plataformas de conhecimento, que têm o intuito de ativar o sensível das
pessoas – lembremos que Jacques Rancière (2005) escreveu que a arte faz política
antes mesmo que os artistas o façam –, quanto à memória brasileira e quanto à imaginação de futuros.
referênciaS
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo/Ed. 34, 2005
O jornal como veículo da arte: leituraS do eSpaço
Maria iVone Dos santos1
A imprensa é, sem dúvida, a mais antiga das mídias. Publicar é ir na direção de numerosos leitores. Os jornais são um modo, uma técnica, um intermediário,
um suporte ou vetor de informação e desempenham diferentes funções. Na origem
do “Mass Media”, o jornal, por seu suporte físico, é simultaneamente um veículo e
um registro de memória. Serve à formação de opiniões e é testemunha do “ar dos
tempos”. Jornais transportam fatos, compartilhados pela leitura, articulando textos e
imagens. Jornais são mídias frágeis, amarelam e deterioram-se facilmente, impondo
desafios aos arquivos, acervos e bibliotecas. Como esse veículo frágil, do ponto de
vista de seu suporte, abriu possibilidades de expansão para a arte, tornando-se paradoxalmente um documento importante para suas narrativas?
A relação dos artistas com os jornais é um assunto que me interessa e sobre o
qual retorno de tempos em tempos. Neste texto, introduzirei alguns aspectos dessa
questão para, na sequência, adentrar-me no estudo de caso preciso, os cinco números
dos jornais do projeto Formas de Pensar a Escultura- Perdidos no Espaço, editados
em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e que concernem minha prática enquanto
artista, pesquisadora e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Trago inicialmente alguns exemplos, para pensar sobre a função do jornal para
alguns artistas, como forma de ampliação do âmbito da recepção de sua arte, de seu
pensamento e de seus públicos. No Journal d’unseuljour, de Yves Klein, publicado
e distribuído gratuitamente no dia 27 de novembro de 1960 em bancas de revistas de
Paris durante o Festival d’Art d’Avant garde, o artista reuniu em quatro páginas um
1.
Maria Ivone dos Santos. Professora do Departamento de Artes Visuais (DAV) e do Programa de
Pós-Graduação em Artes (PPGAV) do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Coordena o projeto Formas de Pensar a Escultura - Perdidos no Espaço e o Grupo de
Pesquisa Veículos da Arte (CNPq).
96
conjunto de informações, agenciando imagens e textos que davam a ver sobre suas
inquietações acerca do vazio. Na primeira página, aparece a famosa fotografia de
Yves Klein se lançando no espaço. O jornal que editou e publicou Yves Klein emprestava o formato e a familiaridade que as pessoas tinham com o cotidiano France
Soir. O “Teatro do Vazio” manifestava o desejo do artista de inserir-se na vida mesma
das pessoas, “para que, neste dia preciso, um sujeito centrado na leitura experimente
o prazer de ser e de viver o momento presente.” (ORTIZ-ECHAGÜE, 2004 p. 78)
Vemos que, no processo de Yves Klein, o Dimanche – Le journal d’un seul
jour, novembre 27, 1960, o jornal foi a mídia escolhida para expandir sua prática para
além da exposição, apresentando o manifesto que contextualizava seus gestos artísticos no Teatro do Vazio, expondo ali o pensamento que o motivava enquanto um artista que se lança no espaço. É nesse veículo que ele traz ao público uma compreensão
mais ampla de seu pensamento, que expande as interpretações instrumentalizadas de
suas obras tais como eram agenciadas pelo mercado de arte centrado no formalismo,
produzindo uma ruptura com o sentido hegemônico desses discursos.
Na proposição Space-media: 150 cm² de papier journal, Fred Forest explora
uma relação com o público leitor, propondo um anúncio em branco, acompanhado
de uma breve instrução, publicado no Jornal Le Monde, que foi distribuído no dia
12 de janeiro de 1972. Entre notícias e informações, Forest propõe esse espaço vago
para que o leitor dele se aproprie e nele se manifeste, devolvendo-o ao artista com
sua mensagem, que seria reunida às demais recebidas em uma exposição posterior.
Sabe-se que Forest realizou essa proposição também no Brasil, na Folha de São
Paulo do dia 10 de outubro de 1973.2 Flusser comenta que o trabalho de Forest é
resultado de um envolvimento que visava alterar a própria estrutura dos media – isto
é, as pré-condições daquilo que pode vir a existir nesse campo – com vista à sua
abertura para o diálogo.3
Antônio Manuel, artista português radicado no Brasil, publica, em 1973, um
encarte no jornal O Dia, do Rio de Janeiro. Trabalhando com a temporalidade e materialidade próprias do cotidiano de grande circulação, inserindo-se num veículo de
comunicação existente, assim como fez Forest, o artista propõe a inclusão de um caderno de seis páginas, com conteúdo por ele elaborado a partir de imagens extraídas
daqueles mesmos meios4. A motivação que o levou a fazer aquele encarte era uma
resposta à adversidade que se vivia no Brasil, quando o artista teve censurada uma
2.
A inserção da página branco no jornal foi associada à ação “O branco invade a cidade”, realizada por
Fred Forest pelas ruas de São Paulo em 1973, disponível em: http://www.webnetmuseum.org/php/
image_catalogue/index_pt.php?d=Photos_Panorama&p=0009.jpg
3. Vilén Flusser, em Dialogue and discourse (Considerations with regard to Fred Forest’s work). Manuscrito consultado no VilémFlusserArchiv, documento nº 2994, sem data, citado no artigo Scroll
e stream: encontrar as margens da web, de Teresa Laranjeiro. Disponível em: http://blog.goethe.de/
streamingegos/index.php?archives/223-Portuguese
4. Segundo nos esclarece no texto A política da imagem, de Luiz Camillo Osorio e de Antonio Manuel,
publicado em 24 de julho de 2014 na Revista ZUM.
97
exposição sua, que deveria ter ocorrido no MAM do RJ. Diante dessa impossibilidade de expor aqueles trabalhos, ele elaborou o Caderno Cultural 0 a 24 horas, com a
cumplicidade tácita de Washington Novaes, então editor. Ali ele veiculou a série de
proposições que convidavam o leitor a pensar sobre essa arte que reflete as tensões
do meio e a política repressiva que pairava sobre nosso país.
Essa introdução sobre práticas de artistas com os meios de comunicação, em
específico com o jornal, nos instrui sobre as potencialidades dessas estratégias editoriais que visam criar um ambiente e explorar esse espaço movente das mídias impressas de forma propositiva, estabelecendo por meio da difusão modos anti-hegemônicos de pensar, circular e dialogar.
As questões levantadas guardam sua atualidade e pertinência e são consideradas nos jornais do projeto Formas de Pensar a Escultura-Perdidos no Espaço5,
atividade que eu coordeno e que está interligada à minha atividade docente e de artista-pesquisadora na área da escultura, no Instituto de Artes da UFRGS. Foi iniciada
como atividade de extensão em 2002, na qual eu me propus confrontar metodologias
da arte e da arquitetura no desenvolvimento de propostas artísticasfeitas para espaços
específicos da cidade. Essa atividade decorreu da dificuldade que eu encontrei em
desenvolver uma prática que considerasse o espaço e os contextos para o desenho de
proposições em arte ficando no ambiente restrito da sala de aula. Assim, reunimosum
grupo de estudantes da graduação e da pós-graduação, além de artistas externos, e
juntos partimos em uma prospecção pelos espaços do Campus Central da UFRGS,
distante algumas quadras de nosso Instituto. Deslocando-nos a pé, observamos os
distintos recantos e edifícios, e intercambiamos impressões em narrativas que foram
compartilhadas entre os participantes. Encontramos situações que poderiam ser um
locus de propostas artísticas quetencionassem aqueles espaços. Um intenso laboratório de ideias, leituras, surgidas pela delimitação de um lugar para ativar, e que resultou em doze projetos, pensados para os distintos contextos do campus, e que ficaram
prontos a espera de uma circunstância para serem realizados.
Por ocasião do III Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre, em 2003,
submetemos uma proposta interligada que somava as intervenções a um seminário
realizado no Museu da UFRGS. Para essa ocasião, decidimos nos lançar na publicação dojornalPerdidos no Espaço do III Fórum Social Mundial, que circulou em Porto
Alegre a partir do dia 20 de janeiro de 2003.6
5.
Mais informações sobre Formas de Pensar a Escultura - Perdidos no espaço, podem ser encontradas na entrevista realizada por Michel Zózimo da Rocha, artista integrante do Grupo de pesquisa
Veículos da Arte(CNPq), que pode ser acessada na página: http://www.ufrgs.br/escultura/z/wp-content/uploads/2011/11/recorteperdidos.pdf.
6. Jornal Perdidos no Espaço III Fórum Social Mundial (2003) Maria Ivone dos Santos, Fernando
Falcão. Projeto Gráfico: Glaucis de Morais. Revisão Mariana Silva. Colaboradores: Andrea Costa
Braga, Cláudia Zanatta, Cristina Ribas, Elida Tessler, Fernando Lindote, Julio Castro, Maria Helena
Bernardes, Muriel Caron, Mônica Hoff, StephaneHuchet, Paulo Reis, Raquel Stolff.
98
Que possibilidades se abriram para nós artistas ao definimos as pautas e organizarmos os conteúdos, difundindo ideias e publicando nosso próprio jornal? Para o
grupo, essa aventura desempenhou uma função importante, pois pudemos nos integrar
nas prospecções do III Fórum Social Mundial – Um outro mundo é possível – num
contexto de discussões não hegemônicas, no qual nosso jornal foi distribuído e onde
pudemos compartilhar processos e reflexões, assim como ações realizadas no Brasil.
Muriel Caron, crítica de arte francesa e uma das fundadoras da revista Odradek.org, fez sua participação no jornal Perdidos no espaço do III Fórum Social Mundial, abrindo ali um campo de dúvidas:
Perdidos no Espaço? Constatação ou questão? De que espaço
se trata? O espaço planetário que percorremos a uma velocidade cada vez maior? De um dia ao outro, passamos de Paris
a Porto Alegre, do inverno ao verão, do francês ao brasileiro.
De um contexto a outro... É, portanto, apesar de, e graças aos
diferentes pontos de vista que um projeto reúne mulheres e
homens do mundo inteiro. [...] e lança uma derradeira pergunta, ainda atual: Quais alternativas a um sistema de economia
liberal pouco regulado que visa abolir fronteiras, mascarar
diferenças, fluidificar trocas, em proveito de grupos multinacionais inundando sempre o planeta de novos produtos?
Que olhar particular os artistas, extraterrestres, se for o caso,
jogam sobre nosso mundo em mutação? Como eles se apropriam do espaço e do meio da internet, terreno de experimentações democráticas encorajadoras, mas também autoestrada
da informação, portal da livre expressão e da net-economia,
largamente abertos a todos os excessos?
Paulo Reis, pesquisador no Paraná, contribuiu com o artigo Corpo e cidade,
no qual ele comenta nossa história da arte recente. Nele, aponta muitos momentos
em que o espaço da cidade esteve interligado com a arte e descreve uma crise aguda pela qual passa o sujeito contemporâneo face a uma sociedade excludente, com
políticas públicas dirigidas a particulares, sendo a cidade, cada vez mais, um lugar
de passagem entre um e outro percurso de consumo. Seu texto problematizava esses
territórios do corpo e da cidade, trazendo também um olhar sobre as ações do Grupo
Entorno e sobre a performance de Babidou, do Grupo Empreza, na qual o artista
arremessava-se contra as paredes e pilotis do Ministério da educação, no palácio Capanema no Rio de Janeiro, num enfrentamento carnal com o espaço público.
Stephane Huchet, no texto Estratégias templárias, discute as muitas fraturas
dos espaços simbólicos nas cidades brasileiras e se pergunta sobre a função de um
Museu, mais propriamente o da Pampulha, em Belo Horizonte. Seu texto expõe a
99
complexidade de gestão desse Museu e a indecisão das políticas públicas, para pensar
com mais profundidade no que seria a função de uma arte de intervenção pública,
que, segundo ele, seria de ordem política: “A arte não pode tampar feridas sociais, ela
deve testemunhá-las não as acompanhando, mas as ressaltando e salientando”. Citando o artista Hans Haacke, que diz que “a opinião pública é um ‘campo de batalha’”,
Huchet situa “o espaço social no qual uma estratégia templária concreta e mental, ao
mesmo tempo em que poderia e deveria atuar para contribuir, a partir de pontos de
vista não utilitários, a uma ‘reinvenção’da cidade”.
Nesse primeiro jornal, a artista Cristina Ribas, de Porto Alegre, publica otexto
Colagens pela cidade, no qual comenta algumas propostas gráficas realizadas por
ela e inseridas na cidade de Porto Alegre desde o início dos anos 2000, quando colou
cartazes em Xerox nos tapumes que encobriam canteiros de obras na cidade, em
fachadas de cinemas desativados, contendo a frase “Cinema Mudo”. Fazia, por essa
inserção, a marcação de espaços em transição, informando sobre a perda dos cinemas
de rua e de equipamentos de lazer importantes para a cidade.
Na página central do jornal, o mapa localizava e informava sobre o conjunto
de doze proposições realizadas no Campus Central da UFRGS durante o III Fórum
Social de 2003. Destacarei algumas propostas que elaboraram a noção de inserção.
Andrei Thomaz, com seus Espelhos Verbais, nos propôs uma ação para o Bar do
Antônio. Sua proposta era direcionada aos usuários daquele café. Em acordo com o
proprietário, ele substituiu a louça do bar por peças similares, impressas em serigrafia, com os pronomes pessoais “eu tu, vós, eles”. Ao manipular as taças e pratos, o
público deparava-se com os pronomes e cada múltiplo-utilitário ativava uma trama
das relações e de alteridades que podem ocorrer num bar. Numa outra intervenção,
Fabiana Wielewicki e Mariana Silva inseriram textos que mimetizavam a tipografia
usada nos painéis de sinalização do campus, propondo outras direções: “espaço para
um tempo lento”, “mesa para piquenique” e “Futuro Instituto de Artes”. Os painéis
de sinalização utilizados pela Universidade, chamados por elas de lugares coadjuvantes, eram o suporte de uma inserção que apontava outras direções, potencialidades
e usos para os espaços do Campus. Hélio Fervenza, com Furtivo (o mito produz
desertos), disseminou recortes em vinil adesivo transparente na tela dos monitores
de distribuidores de dinheiro. Produzidos a partir da silhueta do avião de combate
norte-americano F117, essas aderências discretas visavam criar um estranhamento
naquele público, podendo também passar desapercebidas. O jornal foi o espaço de
difusão desses gestos e ideias. Hélio Fervenza, em um pequeno texto, comentava
sobre Furtivo como transparências, pensando sobre o fluxo de dinheiro que transita
velozmente entre continentes.
Ocupando e problematizando outros espaços do Campus (ICBS, Fachadas
do Cinema Universitário, o Restaurante, pátios e o Observatório), os artistas que
propuseram esses projetos ativavam uma potência poético-crítica nos contextos de
seus cotidianos. O ambiente instaurado por esse evento propiciou uma abertura e
100
uma reflexão consequentes, permitindo que retornássemos a nossa sala de aulas, ali
propondo o projeto Espaço de Montagem, que teve várias edições nos anos a seguir.7
Nele, propúnhamos que o Laboratório fosse ocupado por um artista convidado, que
ali desenvolveria uma proposta in situ, por uma semana, reservando um dia para uma
conversa aberta sobre essa ocupação, disponível também para a comunidade externa
à UFRGS. Esses deslocamentos dos espaços de ensino produziram impactos, e observamos que houve uma alteração nas metodologias de ensino. Passamos a explorar
mais o Instituto de Artes e seu entorno como espaço de ensino, explorando também
as potencialidades reflexivas decorrentes desses deslocamentos.
Um segundo jornal seria publicado por ocasião do V Fórum Social Mundial,
em 2005, e, no processo de edição desse número, observamos que havia um incremento de propostas e ações e ali dávamos informações sobre uma mostra de vídeos
dos envolvidos.8 O grupo viu-se motivado e novos participantes viriam se agregar,
aportando ideias. Definimos as noções de “Efeito de borda” e de “ecótono”, emprestadas da biologia, como motes que nos auxiliavam a entender o que ocorria nas
relações e tensões existentes entre os diversos grupos sociais no espaço urbano. Associados à noção de intermídia, tal como Kaprow a concebia, esses termos reunidos
eram uma base conceitual que nos permitia desenhar um formato para esse outro
evento que propomos. O jornal veiculou textos e relatos de propostas em andamento.
Anunciava as oficinas, debates e atividades que se distribuíampela cidade. Textos
críticos, uma mostra de vídeo, experimentações, inserções e pontuações nos espaços
de Porto Alegre encontravam-se também na versão expandida, disponibilizada em
português, inglês e francês na página do evento. Todo esse processo era realizado por
nós, alunos e professores.
Daniele Marx, que havia participado da intervenções no campus com uma
instalação em vídeo e mais tarde passou a residir em Barcelona, propôs ali veicular
uma entrevista com Monica Narula, do coletivo Sarai da Índia, uma plataforma de
reflexão crítica e um laboratório de Mídia interessado igualmente nos assuntos do
urbanismo contemporâneo.9 Muriel Caron retorna ao segundo número com Marie
Linnman, curadora dos projeto Nouveaux Comanditaires, relatando a experiência de
reapropriação coletiva do espaço público e do protagonismo possível da arte numa
requalificação urbana, comandada por grupos de moradores de um condomínio em
Estocolmo. O projeto de qualificação de um conjunto de moradias dos anos 70 (qui7.
8.
9.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/escultura/espaco_montagem/index.htm
Jornal Perdidos no Espaço V Fórum Social Mundial (2005). Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza. Projeto Gráfico: Gláucis de Morais. Revisão: Mariana Silva da Silva. Colaboradores: Cláudia Zanatta, Cristina Ribas, Daniele Cidade, Daniele Marx, Elaine Tedesco, Fabiola Tasca, Hélio
Fervenza, Maria Helena Bernardes, Grupo GIA, Grupo POIS, Grupo PORO, Grupo Urbomaquia,
Stéphane Huchet, Gláucis de Morais, Maria Ivone dos Santos, Mabe Bethônico, Marie Lidmann,
Muriel Caron, Raquel Stolff.
Esse coletivo integra uma rede de discussão global, intersectada com algumas iniciativas de Molly
Nesbit Tiravanija e do crítico de arte Hans Ulrich Obrist, com sua estação Utopia.
101
nhentos apartamentos) abria uma complexa negociação entre artista e moradores,
agentes públicos e locatários de uma galeria comercial presente no condomínio em
questão. O que se colocava ali era a necessidade premente de uma invenção de modos
de viver juntos, de forma a resistir a uma sociedade individualista e tecnicista.
Claudia Zanatta publica, nesse segundo número, um relato da proposta intitulada Ação orgânica, realizada junto a uma comunidade de coletores de lixo da cidade
de Porto Alegre, e que repercute na consciência de suas atividades. Sua proposta não
visava uma exposição. O vídeo realizado foi mostrado apenas a essa comunidade, o
que parecia bastar, uma vez que ela tinha grandes restrições sobre a exibição pública
desse trabalho específico, ali relatado.
Raquel Stolf propôs veicular pela cidade de Porto Alegre a ação Cigarra
(2004), em um carro de som, a partir das 18 horas, em trajetos definidos na cidade
de Porto Alegre. “Como escutar os rumores mínimos? Como perceber e pensar o que
parece insignificante e insensato, o que repete sobre e sob camadas sonoras do espaço
tempo cotidiano? Como reinventar a própria escuta, a partir de uma relação com um
entorno sonoro, seja ele um espaço interno ou externo?”.
Stephane Huchet retorna no segundo jornal com o texto A cidade como ignorância da arquitetura, perguntando-se como seria possível aproximar a arquitetura
da cidade real e nos advertindo sobre o uso do conceito de fluxo, próprio da globalização, e que, segundo ele, não dá conta das lentidões, das barreiras e do peso que
cidade real nos impõe com seus (des)funcionamentos. Alerta-nos para a necessidade
de se ter uma visão ambientalista de nossas cidades, já no plano do projeto, o que
articularia um conjunto complexo de noções, como dentro fora, rumo a, frente a,
atrás de, perto de.
Daniela Cidade propõe a reflexão Arquitetura, fotografia e apropriação em
um universo belo e sujo, texto que nos convidava a pensar que a arte e a arquitetura
estão ambas implicadas na construção do espaço urbano. Quando se refere ao que
as ocupações informais produzem na paisagem urbana, a autora alerta para o fato de
que a cidade é constituída por um programa de formas agregadas às contingências,
sendo necessário incluir o sujo, como ruído e tensão, a impermanência sendo parte da
cidade e a fotografia contribuindo com esse conhecimento espacial.
No texto As extensões da memória: a experiência artística e outros espaços,
eu publico as bases da minha pesquisa, apresentando uma prospecção continuada
que realizo até hoje em Porto Alegre e que consiste em percorrer, observar e relatar,
sozinha ou em pequenos grupos, segmentos dos 17 km do Arroio Dilúvio, hoje degradado. Como pensar a arte em relação ao espaço onde vivemos, seja ele casa, cidade
ou rua? As caminhadas ao longo do rio nutrem minha prática, na qual elaboro a noção
de endereçamento, propondo vídeo-cartas mostradas em exposições, nas quais o visitante é convidado a implicar-se nesses lugares.
Com o deslocamento do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, nós passamos
a incrementar nossos métodos de observação e de experimentação dos espaços da
102
cidade. As caminhadas passaram a integrar as atividades de ensino na graduação
e deram as bases para propor a disciplina Ações públicas: arte e contexto, na pós-graduação do PPGAV-UFRGS.
O terceiro Jornal, Perdidos no Centro de Porto Alegre, surge em 2006, a partir
do convite do Santander Cultural.10 Delimitamos o interesse em prospectar o entorno do Centro Cultural, fixando-nos à praça da Alfândega e suas ruas adjacentes, em
paralelo à exposição em exibição. Fizemos uma chamada para observarmos juntos
aquele contexto da cidade, seu centro histórico, cujos resultados foram veiculados
num jornal, sendo o mesmo endereçado e distribuído ao público frequentador da praça
da Alfândega. As propostas elaboravam aspectos singulares daquele lugar público,
observando seus usos e contradições, que, quando reunidos, pensam sobre aquela realidade social. A praça e seus fluxos e serviços foram o ponto central a partir do qual se
pode pensar nas relações entre o passado, o presente e o futuro de Porto Alegre.
Destaco, dentre os projetos desenvolvidos e publicados no Perdidos do espaço
do centro, o Trocações, de Lílian Minsky, uma ação que partia da observação do comércio informal que ali ocorria, para propor um deslocamento de posição entre ela e
um vendedor de antenas. Lilian convidou-o a visitar a exposição no Santander, agendado com a equipe de mediadores, enquanto ela se colocava em seu lugar anunciando
antenas no centro da cidade. Soubemos que essa foi a primeira vez que o vendedor
se dirigiu ao Santander Cultural para ver uma exposição, cujo acesso é, entretanto,
gratuito. Questão que motivou também a deriva ficcional feita por Michel Zózimo,
também publicada no jornal, na qual ele comenta sobre o peso da porta e o medo que
essa infringe a um visitante hipotético, que teme, ao entrar, nunca poder dali sair.
Márcia Rosa ali publica a entrevista com a representante do NEP (Núcleo de
Estudos sobre a Prostituição), na qual ela apresenta o seu ponto de vista, pouco escutado e acolhido, que, trazido ao jornal, nos faz compreender um pouco melhor as
questões inerentes a essa atividade e sua relação com a comunidade. Larissa Madsen
propôs os Manuscritos anônimos, em que reunia papéis coletados do chão, plenos de
anotações, que escrevem um pouco da “história cotidiana, banal e descartável, restos
do tempo que transcorre, irrefreável e voraz, por entre tantos corpos e prédios do centro de Porto Alegre”. Eduarda Gonçalves propõe os cartões de vistas, peças gráficas
impressas com fotografias mostrando o ponto de vista de trabalhadores da praça e que
foram editados e disponibilizados para que eles os distribuíssem.
O jornal foi distribuído na Praça da Alfândega três semanas depois de havermos percorrido e prospectado aquele local, de haver conversado e trabalhado sobre
aquela ambiência. Fomos ao encontro do público, devolvendo-lhes um olhar acerca
10. Jornal Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre (2006). Maria Ivone dos Santos, Hélio Fervenza. Projeto Gráfico: Glaucis de Morais. Revisão: Mariana Silva da Silva. Colaboradores: Ana
Becker, Andre Venzon, Cecília Fonseca Dutra, Eduarda Gonçalves, Fabrizio Rodrigues, Fernanda
Gassen, Janaina Czolpinski, Jaqueline Peixoto, KatlinJeske, Larissa Madsen,Marcia Sousa Rosa,
Marcio Lima, Bitta Marin, Michel Zózimo, Pablo Paniágua, Rosana Bones, Sandro Bustamante.
103
daquela leitura de espaço que realizamos. Não foi apenas no interior do Santander
que uma experiência se produziu, mas sim naquele outro espaço, configurado por
um banco de praça, batizado por nós de centro cultural, que uma experiência da arte
transitou. Tudo estava no jornal e na praça. Essa experiência abriu uma perspectiva
importante para o projeto, pois a dimensão do local ativou-se de forma potente pela
distribuição localizada e pelo endereçamento. Em apenas seis páginas, divulgávamos
os resultados de um processo de trabalho feito para aquele local e que correspondia
a um estado da praça em um tempo específico, podendo ser realizado novamente em
uma ocasião futura, com outros usuários e gerando outros resultados.
Em 2011, se apresenta a circunstância de voltar a um local anteriormente explorado para, a partir dele, desenvolver outros olhares e proposições. A UFRGS nos
convidou a desenvolver um projeto para o Campus Central, onde havíamos estado
anteriormente, em 2003. Reunimos um grupo de alunos da graduação e da pós-graduação e trabalhamos de julho a novembro. Propusemos ocupar o salão nobre do
ICBS (Futuro Instituto de Artes) como sede do projeto, ali estabelecendo uma plataforma de encontros e de trabalho. No editorial do Jornal que publicamos, situamos
a Universidade em sua relação com a cidade: “Com exceção do lugar onde trabalhamos, é pouco provável que circulemos por outros institutos e espaços que abrigam
a grande diversidade das atividades da universidade”. Importantes aspectos, porém,
interligam a UFRGS à história de Porto Alegre, desde aqueles relativos à evolução
urbana até os relacionados com os imaginários que nos habitam. Sabemos que o município destinou à Universidade uma ponta de uma área, os Campos da Várzea, hoje
Parque Farroupilha, o que possibilitou, desde 1898, que fosse iniciada a ocupação
e construção paulatina dos institutos, faculdades e setores administrativos. Assim,
algumas construções antigas avizinham-se a prédios modernos, compondo um conjunto variado. O Campus Central teve sua configuração alterada pela construção de
uma avenida que cortou os fluxos de circulação dos usuários do campus. Aliada a
esses aspectos históricos e materiais, consideramos também a dimensão viva dada
pelos usos que se fazem desses espaços hoje.
Ao conjunto de ações, somando treze propostas realizadas no campus da UFRGS para o projeto Diálogos Abertos e publicadas em um jornal de dezesseis páginas,
agregaram-se a informação sobre os sete cartazes que publicamos para a ocasião11.
O processo desse jornal configurou uma abordagem que decorria da experiência do
lugar e era, como ocorreu na experiência realizada no centro da cidade, pensada para
11. Jornal Formas de pensar a escultura: diálogos aberto/Perdidos no espaço (2011). Maria Ivone
dos Santos. Projeto Gráfico: Eduardo Monteli. Colaboradores: Alice Monsel, Eduarda Gonçalvez,
Claudia Zanatta, Ariana Gomide e William Anzolin, Cláudia Zimmer, Eduardo Monteli, Fabiana
Wielewicki, Fernanda Gassen, HeleneSacco, HelioFervenza, Jéssica Becker, Joubert Vidor, Mariana
Silva da Silva, Michel Zózimo da Rocha, Tiago Giora, Raquel Stolf, Sergio Tomasini. Informações
complementares sobre o evento encontram-se publicadas na página criada para essa ocasião. Disponível em: http://www.ufrgs.br/escultura/z/
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aquele público. Destaco o trabalho Assonância de silêncios [biblioteca], de Raquel
Stolf, no qual a artista desenvolve um conjunto de seis papéis volantes, que ela denomina de notas-desenhos, para uma escuta simultânea, associada a registros sonoros
coletados numa visita prévia à biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS. A artista fez o que ela denomina uma coleta de silêncios, produzindo singulares notações,
conforme vemos publicado na página três do nosso jornal, remetendo ao arquivo
de áudio disponibilizado em sua página.12 Nessa experiência de escuta, ela disponibilizou fones para uma escuta de silêncio ocioso e irrecuperável, em tempos lento
ou acelerado, em tempos duplo, miúdo, útil e vago, compartilhada entre o dia 8 e
10 de novembro, ocupando um recanto de leitura da biblioteca. Esse jornal acompanha os treze processos desenvolvidos para aquele contexto e dá aos participantes
a possibilidade de investirem-se mais nos espaços da página dos jornais. Um outro
aspecto notável é que esses processos, em sua maioria, integram as pesquisas em arte
realizadas pelos participantes e desenvolvidas no âmbito da UFRGS, como poderemos circunstanciar melhor quando fizermos um paralelo com as dissertações e teses
realizadas no PPGAV-UFRGS.
O quinto número, Perdidos no Espaço Público, vem em uma edição ampliada,
ocupando trinta e duas páginas, editada em cores, e insere-se no evento Cidade e
universidades, promovido pela UFRGS e pelo Grupo Montevidéu, ocorrido em Porto
Alegre, em abril de 2016, e para o qual fui convidada a colaborar.13 Organizei o Jornal Ocupa Espaço Público e fiz a curadoria do projeto Ocupa Tapumes, assim como
organizei a mesa Arte, Cultura e Espaço Público14.
Esse jornal retornou seu olhar sobre Porto Alegre, centrando seu enfoque sobre a área da orla, objeto de uma revitalização e que se encontrava recoberta por
12. Raquel Stolff, Assonâncias e silêncios [Biblioteca], disponível em: www.sondcloud.com/irrecuperavel-ou-ocioso.
13. Jornal Formas de Pensar a Escultura: Perdidos no Espaço Público (2016). Maria Ivone dos Santos.
Projeto gráfico: Marcela Morado Marcelo Damasceno Colaboradores: Alexandre de Nadal, Alexis
Chevalier, Anouk Moyaux, Cláudia Zimmer, Daniele Marx, Diego Passos, Eber Pires Marzulo, Elaine
Tedesco, Hélio Fervenza, Herbert Gouvêa, Juliano Ventura, Klaus W. Einsenlohr, Marcelo Damasceno, Nicolás Cuello, Ricardo Moreno, Valentina Martins, Pauline Gaudin Indicati, Evelyn Lima, Luiza
Abrantes, Cláudia Zanatta, Daniela Mendes Cidade, Mariana Silva da Silva, Marcelo Chardosin, Juan
Carlos Romero, Rosa Blanca, Guilherme Zamboni Ferreira, Sylvia Furegatti (Pparalelo) Marcela Morado, Fernando Fuão, Renata Marquez (PISEAGRAMA), Raquel Stolff, Sandro Ka.
14. Arte, Cultura e Espaço Público. Acervos e Projetos – Arte e cidade, mesa organizada por Maria Ivone dos Santos com o DDC-UFRGS, integrou as Atividade do III Encontro Cidades e Universidades,
do Grupo Montevidéu, e buscou apresentar pesquisas, iniciativas curatoriais, publicações realizadas
a partir de acervos em Museu Universitário e Centros de documentação de arte contemporânea e
projetos que se desdobram em práticas sociais, processos educacionais e de difusão. Contou com
a participação de Cristina Freire (Mac-USP), Descolonizar o Museu: América Latina, curadoria e
pesquisa; Fernando Davis (UNLP), Asperezas gráficas. Poética y política en los afiches callejeros
de Juan Carlos Romero; Renata Marquez (UFMG), Ações de pesquisa: curadorias e propostas
editoriais; Sebastián Alonso (UDELAR), Modos de hacer colectivo: “Proyecto CasaMario”. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cidadeseuniversidades/
105
tapumes, e que vem sendo objeto de muitas discussões e conflitos. Recebemos
também colaborações de Campinas, Belo Horizonte e de La Plata. Os dois editores
convidados para desenvolver a proposta gráfica do jornal, Marcela Morado, doutoranda do PPGAV, e Marcelo Damasceno, mestrando do PROPUR, propuseram a
chamada do jornal para nossa rede de colaboradores, enfatizando o conceito de ocupação. Recebemos as propostas, que foram sendo alojadas nos zoneamentos por eles
propostos. O jornal propõe interligações entre narrativas de processo desenvolvidas
a partir de reconhecimentos de espaços da cidade – numa ênfase forte sobre as relações de Porto Alegre com o Guaíba e outros rios – e reflexões críticas, assim como
proposições e trabalhos gráficos do tipo Lambe, que integraram o Ocupa Tapumes.
Relações e reverberações que deverão ser melhor explicitadas por nós em um próximo texto. Destacamos, no jornal, a presença do trabalho Violência (1973), de Juan
Carlos Romero, artista, docente, arquivista, militante, curador e nosso convidado especial, bem como das proposições de alguns dos artistas participantes do projeto, que
ocuparam os trezentos metros de tapumes15.
Os cinco números dos jornais Formas de pensar a Escultura – Perdidos no
espaço, publicados em 2003, 2005, 2006, 2011 e 2016, vistos a partir de suas pautas, circunstâncias, experiências e audiências, nos indicam algumas pistas de análise.
Vemos que proposições desenvolvidas no quadro desse projeto estão interligadas a
outros textos e a dissertações e teses, assim como a curadorias, desdobrando-se também em outros Grupos de pesquisa16.
Ao reler, visualizar e folhear as páginas desses jornais, eu pude constatar que
eles são documentos que testemunham muitas leituras de espaço e são um ambiente
de compartilhamento de processos artísticos e de processos reflexivos sobre a cidade.
Seria importante, na sequência, aprofundar a leitura transversal dessas distintas edições do FPES-Perdidos, buscando estabelecer outras conexões e nexos, averiguando
o desenrolar das prospecções de artistas ali veiculadas e seu desdobramento em suas
15.
Ocupa Tapumes, curadoria: Maria Ivone dos Santos para o Encontro Cidade e Universidades,
realização e produção do DDC-UFRGS. Ocupação de 300 metros de tapumes da orla do Guaíba,
separando o canteiro de obras da revitalização da orla. Nessa ocasião, propusemos realizar uma
retrospectiva de proposições de Juan Carlos Romero (Argentina) apresentando as propostas gráficas
Violência (1973), La desaparición (2002), Resistexist- Las palavras se pudren en el papel (2003),
En medio de las tinieblas prendo fuego a mi prisión (2016), totalizando mais de 30 metros lineares
de intervenção. Também foram coladas nos tapumes as proposições de Alexandre de Nadal, Alexis
Chevalier, Anouk Moyaux, Claudia Zanatta, Claudia Zimmer, Daniela Cidade, Daniele Marx, Diego
Passos e Juliano Ventura, Elias Maroso, Evelyn Lima, GPIT, Guilherme, Hélio Fervenza, Karina
das Oliveiras e Marcelo Damasceno, Marcela Morado, Marcelo Chardosin, Maria Ivone dos Santos,
Raquel Stolf, Renata Marquez – PISEAGRAMA, Ricardo Moreno, Sandro Ka, Sylvia Furegati e
Herbert Viana –Paralelo e Valdir L. de Andrade Jr.
16. Raquel Stolff e Cláudia Zimmer integram os Veículos e também atuam nos Grupo de pesquisa
Proposições artísticas contemporâneas e seus processos experimentais (UDESC-CNPq). Eduarda
Gonçalvez e Alice Monsel integram o Grupo Veículos da Arte (UFRGS -CNPq) coordenado por
mim e por Hélio Fervenza (UFRGS-CNPq), e coordenam, desde 2011, o Grupo de Pesquisa Deslocamentos, Observâncias e Cartografias Contemporâneas – DESLOCC (UFPel/CNPq).
106
práticas artísticas e docentes e também na sociedade. Olhares que podem gerar uma
melhor compreensão dessa cena, e a partir dos quais será possível estabelecer as bases para a escrita dessa história.
referênciaS:
SANTOS, Maria Ivone dos. Jornais e outros veículos: Formas e pensar a escultura/Perdidos no
espaço, In: PUCCELI, Roberta, SOUZA, Roberta de Oliveira, VILLA, Danilo. Micropolíticas.
Londrina: EDUEL, 2014.
SANTOS, Maria Ivone dos. A observação de um lugar urbano como ação da arte. In: Colóquio
Poéticas do urbano (4.: 2008 set. 3-5: Florianópolis). Camelódromo Cultural. Florianópolis:
UDESC, 2008
SANTOS, Maria Ivone dos (Org.). Formas de pensar a escultura: diálogos abertos: perdidos no
espaço. Porto Alegre: UFRGS, n. 3, nov. 2011.
SANTOS, Maria Ivone dos (Org.). Formas de Pensar a Escultura: Perdidos no Espaço Público,
Porto Alegre: UFRGS, n. 4, abr. 2016.
SANTOS, Maria Ivone dos; FALCÃO, Fernando (Orgs.). Perdidos no Espaço III Fórum Social
Mundial, Porto Alegre: UFRGS, n. 0, jan. 2003.
SANTOS, Maria Ivone; FERVENZA, Hélio (Orgs.). Perdidos no Espaço V Fórum Social Mundial,
Porto Alegre: UFRGS, n. 1, jan. 2005.
SANTOS, Maria Ivone; FERVENZA, Hélio (Orgs.). Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre. Perdidos no Espaço, Porto Alegre: UFRGS, n. 2, maio/jun. 2006.
FREIRE, Cristina (Org.). Terra Incógnita: conceitualismos na América latina no Acervo do MAC
USP. São Paulo: Museu de Arte Contemporâneo da Universidade de São Paulo, 2015.
MCLUHAN, Stephanie, STEINES, David (Org.) Mcluhan por Mcluhan: Entrevistas e conferências inéditas do profeta da globalização. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005.
ORTIZ-ECHAGÜE, Javier. Yuri Gagarin y el conde de Orgaz. Mistica y estética de la era espacial (Jorge Oteiza, Ives Klein, Jose Val delOrme), Fundación Museu Jorge Oteiza, FundazioMuseoa, 2014.
ROCHA, Michel Zózimo da. Estratégias expansivas: publicações de artistas e seus espaços moventes. Porto Alegre: Edição do Autor, 2011.
WYE, Deborah, WEITMAN, Wendy. Eye in Europe: Prints, books, multiples / 1960 to now. New
York Museus of Modern Art, 2006.
colecioniSmo alternativo e oferta letiva de
publicaçõeS artíSticaS em univerSidade federal:
um relato
Paulo silVeira1
Ocasionalmente, deparamo-nos com fotos mostrando voluntários abnegados
levando livros e outras publicações – e, portanto, educação – para povoados isolados, distantes, usando transportes inusitados. Entre as imagens recorrentes e pitorescas estão aquelas com a presença de semoventes, como o cavalo, o camelo e o
elefante. Em especial, palmas para os muares, que, dentre todos os animais nessa
tarefa, cumprem sua função com gáudio. Não se trata de ficção.2 Carregar livros
sobre um burro é uma de tantas estratégias muito rudimentares, piedosas e até mesmo divertidas, que namoram o folclore enquanto pertencem à generosa e abnegada
entrega do ser humano aos seus ideais civis. Do ponto de vista objetivo das práticas
operativas – ainda assim retornando à relação de analogia e aproveitando o recurso da metáfora do animal de carga –, no contato entre um professor de história da
arte com os estudantes as estratégias de ambulante, podem ser a forma possível da
manutenção de um comprometimento com o ensino qualificado. Este é o caso que
se apresenta aqui, em forma de relato, como resultado possibilitado pela articulação
entre uma pequena coleção pessoal e a constituição de um mecanismo alternativo de
formação de acervo institucional.
1.
2.
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira. Professor adjunto do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – (UFRGS). Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte
e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Pesquisador CNPq.
São bons exemplos: Luis Soriano e a Biblioburro, biblioteca itinerante sobre seus burros Alfa e Beto,
atuando na Colômbia desde 1997 (a Fundación Biblioburro foi legalmente constituída em 2010); a
Mobile Camel Library, atendendo o Quênia rural a partir de três dromedários; o serviço de Dashdondog Jamba, autor e tradutor, sobre camelo no deserto de Gobi, na Mongólia desde o início dos anos
1990; a Donkey Mobile Library, iniciada em 2006 na Etiópia pelo Ethiopian Books for Children
and Educational Foundation; a Elephant Mobile Library, do Room to Read Laos, na província de
Xaybouly, Laos; e o programa Books-by-Elephants, do governo da Tailândia, incluindo laptops e
conexão à internet, atuando no norte do país.
108
A coleção pessoal (deste pesquisador) é de porte pequeno, formada
principalmente por publicações de artistas, geralmente não periódicas, embora
também conte com alguns exemplares avulsos de jornais e revistas. Possui cerca
de vinte anos, o que deve ser considerado muito pouco em termos comparativos.
Teve início mais ou menos regular a partir de 1996 com as atividades de pesquisa no
Mestrado em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
com ênfase em História, Teoria e Crítica, o que explicará sua condução dirigida a
objetivos metodológicos possíveis. Nos primeiros tempos, sofreu muita intermitência
devido às limitações financeiras, em certos momentos extremas. Concluído o mestrado, a coleção prosseguiu discretamente, recuperando o entusiasmo durante as investigações de doutorado, na mesma área de concentração, voltada à história da arte.
Como o tema específico de pesquisa do mestrado ao doutorado foi mantido dentro
da categoria do livro de artista (embora sempre com os olhos abertos para todo tipo
de publicação artística que pudesse ser considerada relevante), a visita a bibliotecas,
museus, coleções e livrarias foi muito intensa, tanto no Brasil como no exterior. As
compras foram mais discretas, já que os compromissos pessoais regulares consumiam os recursos. Em 2010, com a troca do cargo estável de técnico-administrativo
(com chefia e outros benefícios) para professor concursado da mesma universidade
federal, a UFRGS, os vencimentos sofreram redução significativa,3 implicando em
renovação no ajuizamento das escolhas, o repensar das prioridades.
Por outro lado, o cotidiano de sala de aula deixava cada vez mais evidente
que os conhecimentos adquiridos sobre os procedimentos fundacionais históricos
de instituição da arte contemporânea obrigavam o professor à instrumentalização
metodológica do ensino de história da arte brasileira e internacional a partir dos anos
1960. Dita instrumentalização, embora muito bem apoiada na leitura e nos recursos
virtuais, somente poderia ser efetivada através do contato direto do aluno com os
meios utilizados pelos artistas mesmos, em seu tempo, prioritariamente os que envolvessem estratégias comunicacionais: livros, revistas, jornais, cartazes, discos, cassetes fonográficos, filmes, vídeos, múltiplos em geral. No caso específico das publicações, aquilo que o Instituto de Artes tinha a oferecer não passava de alguns exemplares em sua biblioteca e no seu acervo artístico. Caberia ao próprio professor fazer o
aporte do que estivesse ao seu alcance. Este era o procedimento mais imediato.
O procedimento efetivamente profissional a ser tomado deveria ser (assim acreditamos) a constituição de um fomento regular de publicações notáveis para o acervo
da instituição, suprindo parte de seu débito de oferecimento de fontes primárias. Em
outras palavras, promover a constituição de uma coleção de publicações de artista.
3.
Naquele momento, a formação de pós-graduação completa incidia vigorosamente no salário-base
de um técnico de nível superior (raramente doutor) próximo do fim de carreira, que era maior do
que o de um professor adjunto (sempre doutor) em início de carreira. A diferença era importante o
suficiente para fomentar a dúvida: valeria a pena passar a professor e receber menos? A resposta é
positiva, mas seu detalhamento foge ao âmbito deste relato.
109
Isso foi tentado em duas ocasiões. A primeira tentativa, voluntariosa, utópica e solitária, a partir do doutorado e logo após o seu término, falhou sem mesmo dar um segundo passo (não havendo bibliotecária pesquisadora, não havia interlocução para algo
desafiador). E a segunda, pensada a partir de premissas objetivas, fracassou, mesmo
que tenha surgido diretamente de dentro da instituição, apoiada na instrumentalização
do Bacharelado em História da Arte, recém-criado (primeiros ingressantes em 2010),
e com auxílio de outra professora também vinculada à graduação e à pós-graduação,
do Bacharelado em Artes Visuais. Nesse último esforço, a partir de 2010 (concomitante ao novo curso), dois professores, Paulo Silveira e Maria Lucia Cattani (1958-2015),
propunham-se a acompanhar a formação da coleção, oferecendo as suas experiências,
mais a possibilidade de contato com alguns técnicos e pesquisadores de outras instituições, inclusive internacionais. Pela proposta, a coleção poderia ficar sediada na
Biblioteca Barão de Santo Ângelo ou no acervo da Pinacoteca (como se chama historicamente o órgão responsável pela exibição, acervo e restauro de obras no Instituto
de Artes). Ou, o que seria ainda melhor, dividida entre os dois setores. Não deu certo.
O principal motivo alegado por ambos os setores era a falta de espaço físico, o que é
verdadeiro (o IA ocupa um edifício já antigo no centro histórico da cidade, mais um
pequeno prédio anexo, ao lado, além de salas em outros locais do Campus Central da
UFRGS). Entretanto, reconhecido o problema inquestionável, também é verdade que
não houve demonstração de real interesse por parte da instituição.
Tomando como base o reconhecimento da necessidade de pelo menos iniciar
a resolução do problema logístico e os argumentos em favor do aprimoramento da
metodologia de pesquisa em história da arte, buscou-se uma construção teórica propositiva que subsidiasse os novos esforços a serem despendidos – conforme argumentação oferecida em Silveira (2012a e 2012b). A solução seria ser “marginal” ou
“alternativo”, seja lá o que estes conceitos realmente signifiquem hoje, dentro da
instituição. Uma pesquisa já vinha sendo realizada metodicamente desde 2010, intitulada Livro de artista e ambiente acadêmico: relações sistêmicas e estéticas na
universidade e que pretendia, conforme o projeto cadastrado no sistema de pesquisa
da UFRGS:
[...]avaliar criticamente a presença do livro de artista [...] na
vida universitária de ensino, pesquisa e extensão, coletando
informações históricas, estéticas e metodológicas de instituições acadêmicas que tenham relações programáticas teóricas
com essas manifestações [...]
Para o caso doméstico, as justificativas relembravam experiências passadas,
as obras coletivas Proposiciones creativas: curso de creatividad realizado en Brasil,
em 1972 (uma edição com participação coletiva, coordenada por Julio Plaza, concluída no Centro de Investigaciones Recinto Universitário de Mayaguez, Porto Rico), e
110
Ciranda (Paulo Silveira, org.), em 2005, além de desenvolvimentos de alguns docentes, como nos livros da já citada Maria Lucia Cattani e de Helio Fervenza. Os fundamentos dessa pesquisa foram apresentados no Encontro Nacional da ANPAP, em
Salvador, 2010, retornando em maior ou menor grau em outras manifestações (ver
referências). A partir desse projeto (que segue em desenvolvimento), outro surgiu,
mais pragmático, visando resultados extremamente objetivos, o Repositório auxiliar
de publicações artísticas ou especiais, implantado nos primeiros meses de 2014, tornado ativo previamente no ano anterior.
O Repositório vem se efetivando de forma proativa, obedecendo o compromisso de sua temática:
A pesquisa é conceitual e instrumentalizadora, tendo como
tema e problema a compreensão de causas e o sobrepujamento
das dificuldades de atualização de acervos de publicações especiais em instituições superiores de ensino da arte, especialmente o Instituto de Artes da UFRGS, e a operacionalização
de meios alternativos ou não para coleta e guarda de fontes
primárias e secundárias bibliográficas ou afins, como publicações não periódicas e periódicas, peças ou produtos gráficos
auxiliares ao exercício do artista visual (ephemera) e múltiplos com significado expressivo ou documental da produção
artística, especialmente se relacionados à arte contemporânea.
(SILVEIRA, 2014a, p. 82)
Suas metas imediatas e de médio prazo são igualmente claras, assim transcritas: (1) busca de informação histórica em fontes mais precisas e pontuais sobre as
relações de publicações, impressos e pequenos múltiplos em geral com a instauração
da arte moderna e contemporânea (nesta meta, complementa-se o projeto de pesquisa
de dezembro de 2014 que dá fundamento ao Fundar: grupo de pesquisa sobre instauradores da arte contemporânea, já homologado pela UFRGS e CNPq); (2) busca
de fontes de informação técnica específicas ao problema artístico em questão (colecionismo dirigido); (3) formulação de princípios para um protocolo mínimo para
tarefas de aceite ou aquisição de itens e posterior colecionação ou encaminhamento
para agentes colecionadores na UFRGS (ou outras universidades, se impossível a
manutenção na sede da pesquisa); e (4) para os casos de obras ofertadas em doação,
estabelecer pela fé pública do projeto de pesquisa a segurança e legitimação esperada
pelo doador, com a guarda provisória do pesquisador responsável pelo tempo que for
necessário até uma localização final, de preferência a transferência para os acervos do
Instituto de Artes. Imediatamente após sua implantação formal, buscou-se apresentar
o projeto em evento ou publicação acadêmica, publicitando sua presença e métodos
111
(SILVEIRA, 2014a, p. 82), como uma operação de afirmação de que não mais se
tratava de uma pré-estreia.
Observe-se que a pesquisa regular com publicações vem sendo mantida há
mais de vinte anos, que, por conta da credibilidade, muitos artistas ofereceram trabalhos em doação e que, igualmente durante anos, sobretudo devido aos insucessos
apresentados na UFRGS, a recomendação era de que as ofertas fossem dirigidas para
o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) e para
a Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Neste
momento presente, o procedimento leva em consideração o público final, nosso estudante, nosso pesquisador, que está distante das coleções do centro do país, tendo no
Rio Grande do Sul apenas uma instituição com centro de documentação que abarque
impressos e múltiplos conceituais e afins.4 A publicação captada por doação ao Repositório, nele permanece, na residência do pesquisador responsável ou em dependências provisórias no Instituto de Artes, até que possa ser encaminhada em definitivo
para a Biblioteca Carlos Barbosa (se for livro comum, periódico ou livro de artista)
ou para o acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (se for livro-objeto, múltiplos
tridimensionais ou peças únicas). O número de transferências já feitas pelo Repositório para a biblioteca ainda é pequeno, mal ultrapassando duas dezenas, quase sempre de livros e catálogos incluídos em planos de ensino (de presença obrigatória no
sistema). Para a Pinacoteca, apenas um trabalho foi transferido até o momento, após
guarda temporária de pouco mais de um ano.5 Um número significativo de exemplares é mantido sob os cuidados do Repositório, em reserva domiciliar, disponível aos
estudantes para consulta agendada.
Voltando ao tema das estratégias rudimentares de dedicação aos seus compromissos civis, é a soma de dois pequenos acervos o que está à disposição dos estudantes e que chega até a sala de aula. Os livros são levados pessoalmente pelo professor,
às vezes em malas.6 Como alguns são raros, a supervisão presencial é obrigatória. Por
exemplo, para colaboração em uma aula de uma professora do bacharelado em Artes
4.
5.
6.
A região possui uma coleção importante, mantida pela Fundação Vera Chaves Barcellos em Viamão
e Porto Alegre, com convênio de colaboração com o Instituto de Artes. Seu Centro de Documentação e Pesquisa tem origem no Centro Alternativo de Cultura Espaço N.O (1979-1999), na Galeria
Obra Aberta (1999-2002) e no Arquivo Espaço NO (de Nervo Óptico, grupo atuante entre 1976 e
1978). O contato pessoal com o arquivo deu-se em meados dos anos 1990, sendo ele uma das bases
primárias para o estudo das publicações de artistas.
Publicações de Antonio Claudio Carvalho da série P.O.W. (poetry/oppose/war), 2012-2013, inspiradas na série Futura, de Hansjörg Mayer, publicada de 1965 a 1968.
Para a apresentação em São Paulo no X Congresso Internacional de Estética e História da Arte, no
MAC-USP, a demonstração foi inteiramente visual, quase inteiramente pautada na ilustração do
presente seguimento, com projeção de alguns exemplos: estado da organização da coleção pessoal
e do Repositório; aporte a aula de livros sobre editora associada ao Fluxus nos anos 1960 e 1970;
reflexão a partir de imagens de calendários alemães dos anos 1920 em aula sobre busca de fontes
primárias em arte moderna; análise de reedições contemporâneas para estudos comparados; uso de
publicações de artista para exemplificação de possíveis grupos formais ou temáticos; e exemplos
dos impressos sob guarda.
112
Visuais, foram levados alguns catálogos mais ou menos recentes, juntamente com
algumas publicações dos anos 1960 e 1970, incluindo nove títulos da Something Else
Press, de difícil aquisição, o que justifica a permanência na sala. Excetuando-se os
casos pontuais, geralmente os livros, catálogos7 ou revistas são trazidos à sala de aula
nas disciplinas sob responsabilidade do titular do Repositório, entre elas Metodologia
da Pesquisa em História da Arte, História da Arte VII, Seminário de Arte Contemporânea, Arte e Comunicação e Produção Editorial em Artes, todas do Bacharelado
em História da Arte, embora algumas turmas ofereçam parte das vagas para alunos
de Artes Visuais (bacharelado e licenciatura),8 Museologia, Design, Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas). Na pós-graduação, alguns livros de artista foram levados aos alunos de Tópico Especial III: Estética e discurso da publicação em artes,
oferecido experimentalmente no primeiro semestre de 2014 (com a intenção de novo
oferecimento em 2017).
Embora não seja o caso de aqui arrolar os exemplares em acervo (da coleção
pessoal ou do Repositório), pode-se destacar a presença de boa representação brasileira recente, livros de artistas internacionais dos nomes mais conhecidos, alguns
exemplares avulsos de periódicos internacionais, alguns cartazes e impressos diversos, catálogos de algumas grandes exposições e outros documentos. Embora possua
um número elevado de publicações tendo o livro de artista como assunto, o acervo
deve ser considerado modesto, consideradas as ausências. Porém, é suficiente para
cobrir os principais temas da arte contemporânea brasileira e internacional estudados
no ensino de graduação e pós-graduação, incluindo estudos comparados, além de
contribuir pontualmente à pesquisa. E, deve ser acrescentado, como decisão já declarada aos familiares, o destino eventual da integralidade da coleção pessoal será o
Instituto de Artes da UFRGS.
referênciaS
SILVEIRA, Paulo. Colecionismo alternativo: o Repositório Auxiliar de Publicações Artísticas ou
Especiais. Revista da Fundarte, Montenegro, v. 14, n. 28, p. 82-91, 2014.
_______. Meio acadêmico e livro de artista: primeiros apontamentos. In: Encontro da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 19, 2010, Cachoeira, BA. Anais do... Salvador:
EDUFBA, 2010. p. 765-773. 1 CD-ROM.
7.
8.
A respeito do contato com catálogos em sua dimensão histórica, assim como a relação com certas
disciplinas, ver as referências, especialmente a comunicação no evento Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX: Perfis e Trânsitos, Lisboa (SILVEIRA, 2014b).
Exercícios de articulação teórico-prática foram realizados em Seminários de Tópicos Especiais em
três oferecimentos (é uma disciplina com professores e temas diversos a cada semestre). A pressuposição é de que deva ser considerada a diferença entre o caráter de protótipo presente em um livro
único e a dimensão política ou funcional de uma publicação, situação que pode justificar professores
ou planos de ensino diferentes, como sugerido em artigo para periódico (SILVEIRA, 2012).
113
_______. O catálogo como assunto da História da Arte: um estudo de caso. In: Coleções de Arte
em Portugal e Brasil nos Séculos XIX e XX: Perfis e Trânsitos. Lisboa: Caleidoscópio, 2014. p.
615-626.
_______. O livro de artista como assunto acadêmico. Estudio, Lisboa, v. 3, p. 273-277, 2012.
_______. O livro de artista como documento na metodologia da pesquisa em história da arte. In:
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, 22, 2012, Brasília. Anais do XXII Colóquio do
Comitê Brasileiro de História da Arte: direções e sentidos da história da arte. Campinas: Comitê
Brasileiro de História da Arte - CBHA, 2012. p. 1427-1442.
comunicaçõeS
um autômato problemático: entre a forma
humana e o diagrama
Vagner goDói1
o autômato
O desenvolvimento da ideia de autômato, de criaturas artificiais que se aparentam com o homem ou animais, acompanha tanto a História da Arte como a da Tecnologia. O autômato, tal como existiu entre o Renascimento e o século XIX, contém
em si o mito da origem e a antecipação utópica do Futurismo e da Ficção Científica.
O século XX viu surgir inúmeros artistas que trabalharam sobre a mitologia do robô,
através da modificação da representação do corpo: dando qualidade ou forma humana
às máquinas ou tentando conferir forma e qualidades maquínicas ao que é humano.
Os ‘autômatos’ da Arte de Agora não diferem, porém, de sua antiga definição, como
em um sonho, estado de pura abstração ou um diagrama. A metáfora do homem-máquina, segundo Jack Burnham (1968, p. 199-200), pode ser vista desde os bonecos representando deuses encontrados na antiguidade até os autômatos hidráulicos
da Idade Média, dos relógios do século XVII aos sistemas cibernéticos de Wiener.
Podemos ligar o termo autômato com as criaturas fantásticas de várias culturas e de
várias épocas: Galatea, trazida à vida pelos deuses; o Golem de barro da antiga lenda
judaica; Frankenstein de Mary Shelley. O século XVIII é a época de ouro do autômato, pois surgem neste momento duas características novas: o não antropomorfismo e
a autonomia. Blaise Pascal inventou, em 1642, uma máquina de cálculo precursora
dos computadores modernos. Este fato marca o aparecimento de autômatos que não
pretendem ter a forma humana. A experiência de Pascal foi seguida por Leibniz, em
seu pioneiro trabalho em lógica simbólica.
1.
Vagner Godói. Doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e
História da Arte da USP (PGEHA USP). Atualmente é professor do IED - Istituto Europeo di Design.
118
SubeScultura
Os autômatos sempre foram considerados como algo que estava à parte da
escultura das Belas Artes. São elementos do passado resgatados pela arte de ruptura,
pois possuem elementos estéticos que vão contra a tradição e a cultura erudita ocidental. Várias outras manifestações de ruptura vão resgatar estes pontos que estavam
à margem da alta cultura, ou da cultura erudita – movimento de expansão para a arte-vida, contra uma noção de Belo pré-estabelecido. Todas as réplicas humanas e de
animais, tais como fetiches, ídolos, amuletos, imagens de funeral, bonecas, bonecos
de cera, fantoches, marionetes e, principalmente, o autômato, foram consideradas,
por historiadores, como algo inferior à tradição da escultura, um tipo de subescultura,
tal como é colocado por Burnham (1968, p. 185). Possuem menos ligação com o conceito ocidental de beleza do que com outros propósitos e práticas variados. História
do Autômato como História da Tecnologia como a outra História da Arte.
a magia da tecnologia
Como explicou Munford (1971, p.54), a magia e a alquimia foram estágios necessários ao desenvolvimento da ciência. Não só porque, como no caso da alquimia,
tenha ajudado com seus instrumentos e métodos, mas também por que, por trás de
todas estas fábulas, desejos e utopias, havia a ambição de dominar a natureza, um dos
sonhos mais antigos do homem. Outro caráter que a ciência atual possui é o de conservar da magia o que ela tem de mais fascinante: um imaginário que instiga e assusta
as pessoas, um mistério desvendado, mas nem tanto. Do mesmo modo, a tecnologia
tanto quanto a natureza, vista pela magia e pela religião, possui aspectos sublimes do
grandioso, do absoluto e do desconhecido. A ciência, de fato, adquire agora algumas
características e funções que antes tinha a magia, a alquimia e a mitologia. Como
modelo de explicação do mundo, a ciência oferece modelos similares de fascinação
tão miraculosos como antes a magia oferecia. Para o leigo, a aparência científica já é
algo que fascinaria. Os signos da ciência e da tecnologia, o funcionamento imaginário de uma máquina, assim como a ficção científica, são objetos presentes no projeto
poético de muitos artistas de agora.
o autômato moderniSta
A História do Autômato desenvolve-se paralelamente à da Tecnologia e também à da arte. Com o início do século XX, através das vanguardas e com o desenvolvimento da arqueologia, os historiadores foram forçados a considerar os méritos
estéticos, que aqui já não eram da ordem tradicional do Belo, destas formas de escultura. O autômato e outros tipos de subescultura serão amplamente utilizados nos
119
mais variados movimentos de vanguarda, não só por serem elementos para o usual
ataque contra a arte tradicional, mas também pelas ligações com o novo mundo
mecânico que surgia. O autômato, a partir de então, passa a acompanhar o espírito
da máquina moderna, ultrafuncional, em que o adorno e a decoração são retirados,
revestindo-se de uma Estética da Máquina. Este espírito ou estes valores de precisão, racionalidade são tanto da máquina como da própria arte. O mesmo movimento
que fazia com que os elementos maquínicos do autômato transformassem a arte
daquele período, voltava novamente sobre o autômato com a modificação pela estética geométrica e funcional desenvolvida por aqueles movimentos artísticos. Houve
uma influência do autômato, mas a inspiração autêntica era a própria racionalidade,
limpeza e geometria da máquina. Deste modo, a noção de autômato é suplantada
pela noção de robô, termo cunhado em 1924 pelo tcheco Karel Capek na peça teatral
R.U.R. (Rossum’s Universal Robots).
O robô é diferente do autômato sobretudo pelo que ele possui do espírito da
máquina moderna ultrafuncional e também por certa distância com a forma humana:
na falta de cor da pele, de pelos e cabelo e de movimentos naturais. Jean Baudrillard (1993, p. 120) define o robô como a síntese entre a funcionalidade absoluta e
o absoluto antropomorfismo, resumindo todas as vias do inconsciente no domínio
do objeto. Segundo Burnham (1968, p. 325), várias obras de arte antropomórficas
do século XX não imitavam o humano, mas imitavam robôs tentando ser humanos,
os pseudorrobôs, como nas obras de Eduardo Paolozzi. Os robôs não precisam ter a
forma humana. As máquinas não precisam ter a forma humana. Nem os humanos necessitam parecer humanos. Isso pode ser associado com toda a ruptura vanguardista
com os elementos tradicionais que compõe a representação humana.
o cyborg e a abStração
Depois do surgimento do não antropomorfismo das máquinas de Pascal, Leibniz e Babbage, o projeto de autômatos seguiu por duas linhas diferentes. A primeira
continua com a antiga preocupação de simular o vivo através da aplicação da aparência humana em mecanismos, iniciando uma larga produção de brinquedos, a partir
de meados do século XIX. A segunda abre-se ao campo novo da simulação da inteligência, traçando os indícios dos atuais computadores e da inteligência artificial. Em
contraposição a uma simples ilusão, imitação ou simulação do que é vivo, tal como
foi visto com o autômato e desenvolvido mais recentemente na ideia de robô, a noção
de cyborg (cybernetics organisms – organismos cibernéticos) ultrapassa tanto a ideia
de uma máquina seguindo linhas humanas, como passa a não sustentar a existência
de uma forma humana aplicada ao próprio humano: representação transformativa do
homem mais metamorfose tecnológica do ser humano.
Lewis Munford (1971, p. 47) esclarece que o desejo ingênuo de reproduzir
o orgânico, em vez de idear seu equivalente abstrato, atrasou o desenvolvimento da
120
máquina. Deste modo, é o que o pensamento anímico pode ser considerado como a
maior dificuldade encontrada na dissociação do mecânico, que começou pelo século XVI – que resgata a imagem do corpo humano como uma máquina iluminista. Os
autômatos só se tornaram máquinas relevantes para a ciência quando se descolaram
de ideias anímicas, miméticas ou antropomórficas. A natureza pode, de fato, ajudar
na abstração técnica, ou melhor, neste movimento de virtualização técnica. Porém,
um conjunto de instrumentos foi inventado sem que descrevesse com precisão uma
função fisiológica.
Podemos caracterizar duas direções que o envolvimento da arte com o biológico tomou. A primeira confere à máquina uma forma ou qualidade humana. Este
antropomorfismo tenta simular ou imitar o humano ou biológico conferindo qualidades humanas à máquina. Hiper-realidade e simulação. Este é o caso do autômato,
do robô, dos pseudorrobôs de Eduardo Paolozzi e da Inteligência Artificial – em que
o comportamento do biológico é simulado em computadores. A outra direção é a
que confere uma forma ou qualidade maquiniza ao que é humano. A maquinização
do corpo humano em Oskar Schlemmer e Fernand Léger, a inserção da máquina no
ser vivo ou a modificação cubista ou cirúrgica das formas humanas. A virtualização
operada pela técnica volta ao corpo. O movimento que coloca o corpo na tecnologia
é invertido para o movimento que coloca a tecnologia no corpo.
O Diagrama ou A Máquina Problemática
A tecnologia, antes de se resolver naquilo que é funcional e tecnológico, é uma
abstração, uma ideia que se tem da tecnologia ou uma tecnologia por vir. O autômato
é sempre uma máquina, real ou imaginada, e pode ser um termo mais amplo para
designar os esforços e anseios por determinada tecnologia futura. A ideia de autômato
difere da ideia de máquina, não pelo grau de automatismo ou de simulação ou imitação do que é vivo, mas sim pelo que esta ideia tem de utópica e potencial. O autômato
como máquina-utopia pode ser considerado como signo do que é tecnológico e está
na gênese do desenvolvimento tecnológico, ao oferecer imagens para este mesmo desenvolvimento. A diluição do caráter mítico do autômato, através de sua atualização
em alguma máquina ou ferramenta conforme o desenvolvimento das tecnologias,
pode ser explicada também pelo deslocamento de fascinação, pela arte, do autômato
em direção às abstrações tecnológicas dos diagramas da máquina.
Autômatos e obras de arte maquínicas são máquinas abstratas e, portanto, não
possuem, obrigatoriamente, a função e o grau tecnológico de uma máquina. As qualidades utópicas e diagramáticas do autômato também revelam obras de arte que usaram
a tecnologia enquanto ideia ou que exibem formas da ciência e da tecnologia. Artistas
expressaram e expressam estas condições, utilizando-se dos diagramas da máquina,
para construir uma obra que é tecnológica, senão de fato, ao menos problemática.
121
referênciaS
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 1993.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial,
2006.
BEAUNE, Jean-Claude. The Classical Age of Automata. In: FEHER, Michel (Ed.).
Fragments for a History of the Human Body. New York: Zone, 1989.
BURNHAM, Jack. Beyond Modern Sculpture: the effects of science and technology on the
sculpture of this century. New York: Brazilier, 1968.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de
Janeiro: ed. 34, 1995.
HULTÉN, Pontus (Ed.). Futurism & Futurisms. London: Thames and Hudson, 1992.
MUNFORD, Lewis. Técnica y civilización. Madri: Alianza, 1971.
The Machine As Seen At The End of The Mechanical Age. New York: The Museum of Modern
Art, 1968.
quando imprimir é reSiStir: a reviSta karimbaDa e aS
práticaS artíSticaS na rede internacional
de arte poStal
fernanDa De CarValho Porto1
Nos anos 1960 e 1970, tendo como quadro social e político uma Europa dividida
pela polarização da Guerra Fria e uma América Latina com a liberdade cerceada por
regimes ditatoriais, surge uma produção artística pautada na experimentação de novas
linguagens, crítica às instituições artísticas, interessada em esgarçar os limites entre
arte e sociedade, por meio de uma poética insurgente e questionadora.
Inscrita nesse meio, a arte postal se apresenta como uma rede intercontinental
de câmbio de ideias, denúncias, trabalhos e produções colaborativas. O correio que, a
princípio, tem a função de garantir o envio e a entrega de correspondências, torna-se,
na arte postal, parte essencial de ativação do trabalho artístico, atuando “como veículo,
como meio e como fim, fazendo parte/sendo a própria obra” (BRUSCKY, 2006, p. 375).
Nessa produção artística transversal, em que “o espaço privado toca o público;
a esfera pessoal e política se mesclam” (FREIRE, 2015, p. 30), surgem diversas
proposições entre cartões postais, publicações coletivas, livros de artista etc., nas
quais é frequente o uso dos meios de reprodução, tais como xerox, serigrafia,
xilogravura, mimeógrafo, carimbo etc. Devido ao baixo custo, fácil reprodutibilidade
e por possibilitar uma rápida e larga distribuição e circulação, tornaram-se suportes
comuns para os artistas.
O artista francês Hervé Fischer, no livro Arte e Comunicação Marginal (1974),
ao compreender o correio como uma atividade que integra a arte à sociedade, apresenta
o carimbo como um dispositivo gráfico inserido em um circuito de comunicação
marginal. Sob à regulamentação do sistema postal e à margem das galerias e museus,
o carimbo subverte o cotidiano e se apresenta nessas práticas artísticas autônomas aos
espaços instituídos pelo sistema da arte.
1.
Fernanda de Carvalho Porto. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
124
Inserida nesse circuito marginal, surge a Karimbada, revista organizada pelo
artista paraibano Unhandeijara Lisboa, voltada exclusivamente para a produção de
carimbos. Entre 1978 e 1979, a revista conta com três edições, nas quais Unhandeijara
se utiliza de um procedimento bastante comum na arte postal: o de convocar artistas
a colaborarem na revista, solicitando trabalhos em formato pré-determinado e
produzindo em tiragem limitada.
No caso da Karimbada, o formato é de 16x21cm e a tiragem é de cento e
cinquenta exemplares. Um envelope meio-ofício funciona como capa da publicação,
apresentando o nome da revista, o número da edição e o subtítulo Arte em Carimbo /
Tenkoku2 / Rubber Stamp / Experiences Stamp Art, todos impressos em xilogravura.
Para Unhandeijara, a escolha do carimbo como tema central da revista foi uma
consequência natural de sua prática, por já “trabalhar muito com gravura, ser professor
de gravura, gostar da xilogravura e estudar muito isso” (informação verbal)3. Ainda
que existissem “alguns pequenos detalhezinhos de colagem, a maioria era carimbo;
não só o carimbo tradicional, como carimbos artísticos, alguns artistas usaram até a
própria mão, eu mesmo usei” (informação verbal)4, ele acrescenta.
A Karimbada era produzida na casa de Unhandeijara – no Jaguaribe, bairro
periférico de João Pessoa – conhecida como Vila 777, que serviu de ancoradouro
para os artistas de todo o Nordeste brasileiro nos anos 1970 e 1980. Passaram por
ali diversos artistas plásticos e músicos; com os artistas postais, os encontros eram
constantes. Sob o espírito colaborativo, além da Karimbada, os artistas levavam outros
projetos para compartilhar e produzir juntos na Vila 777, tais como a Gaveta, editada
por Marconi Notaro e Silvio; a Povis/Projeto, por Jota Medeiros; Multipostais, por
Paulo Bruscky e Daniel Santiago.
A primeira edição da Karimbada contou com a participação5 de artistas das
cidades de João Pessoa, Natal e Recife, além do mexicano Ulises Carrión6 e do
holandês Aart van Barneveld7 – ambos personagens essenciais na divulgação8 do
carimbo como linguagem artística. Nessa edição, há um grande número de trabalhos
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Tenkoku significa gravura em japonês.
Entrevista com Unhandeijara Lisboa realizada em 01 de dez. 2015 em João Pessoa, Paraíba.
Entrevista com Unhandeijara Lisboa realizada em 01 de dez. 2015 em João Pessoa, Paraíba.
A primeira edição da Karimbada contou com a participação de artistas de João Pessoa (PB), como
Paulo Ró, Bené Siqueira, Pedro Osmar, Marcos Pinto, Marcondes Silva, Vania Lucila Valério, J.
Genesio Vieiral e Unhandeijara Lisboa. De Natal (RN), participaram Falves Silva, Jota Medeiros,
Carlos Humberto Dantas; e de Recife (PE), Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Leonhard Frank Duch.
Ulises Carrión criou a editora, livraria e arquivo Other Books and So, em 1975, dedicada a livros
de artista.
Aart van Barneveld foi diretor da galeria/editora Stempelplaats, criada em 1976 na cidade de Amsterdã, Holanda. Nesta, Barneveld promoveu diversas exposições e publicações de artista tendo prioritariamente o carimbo como linguagem.
Ao reconhecer a intensa produção de stamp art no Nordeste brasileiro, Aart van Barneveld realiza
no ano seguinte, em fevereiro de 1979, uma exposição dos artistas Paulo Bruscky, Leonhard Frank
Duch, Unhandeijara Lisboa e Jota Medeiros em sua galeria Stempelplaats, em Amsterdã, Holanda. A
edição no. 02 da revista Rubber, editada por Barneveld, funcionou com um catálogo dessa exposição.
125
que utilizam superfícies já existentes como matrizes de impressão. O trabalho de
Jota Medeiros, por sua vez, destaca-se pela mensagem declaradamente política,
com a presença da suástica formada a partir de pequenos círculos perfurados. Logo
abaixo do símbolo do regime nazista, aparece seu carimbo emblemático Ra-ta-tata-ta-ta-taamericalatina. Com essa onomatopeia, o carimbo carrega o som de uma
metralhadora e evoca a violência vivida pelos países da América Latina com a
instauração dos regimes ditatoriais.
A segunda Karimbada9, por sua vez, ganha um acento político ainda maior.
Assinada sob o pseudônimo G.E Marx-Vigo – parceria dos argentinos EdgardoAntonio Vigo e Graciela Gutiérrex Marx –, uma xilogravura de uma silhueta de
dois braços acorrentados é impressa no papel. Uma borboleta carimbada em outra
superfície está presa por um barbante centralizada entre os dois braços. O trabalho
trata-se de uma denúncia dos artistas à repressão sofrida pelos habitantes da cidade
de La Plata, Argentina.
Ainda na segunda edição, o paraibano Pedro Osmar critica a ditadura vivida
no Brasil. Um recorte de jornal com o formato do mapa do País recebe – carimbada
em caixa alta e na cor vermelha – a palavra censurado. Ao abordar o mesmo tema,
Jota Medeiros traz a expressão denuncia(R)te! carimbada com um X que, segundo
o artista10, é uma forma de representar a censura. O artista Luís11, da cidade de
Brusque, ao tratar da resistência à violência, estampa a folha com dois fuzis na cor
vermelha e carimba por cima o seguinte poema de Teresinka Pereira: Ellos fulminam
de luz nuestra manos también armadas12. Unhandeijara Lisboa, por sua vez, traz
uma mensagem de apelo ecológico ao utilizar o código universal de socorro, S.O.S ,
substituindo a letra “o” por uma folha.
Para Unhandeijara era importante tratar da censura em seus trabalhos naquele
momento. Ele conta: “eu fazia o carimbo de minha cara e colocava uma grade em
cima, porque sofria o problema da censura, da alfândega, nossas cartas eram violadas
e isso tudo tinha que procurar denunciar de uma forma visual” (LISBOA, 1985, p.
273). Além desses episódios de censura via correios, o artista teve sua casa invadida
e levaram a quarta edição da Karimbada. Ele relata:
Eu sofri com a Karimbada. Foram lançados dois números. O terceiro estava
pronto e o quarto para ser fechado, quando invadiram minha casa. Não sei se era
DOPS ou Federal. Depois, através de um amigo, soube que na Federal tinha um
9.
Da segunda edição da Karimbada, participaram, do Brasil: Pedro Osmar, Unhandeijara Lisboa e
Vania Lucila Valério (João Pessoa/PB); Marconi Edson e Jaldete Soares (Campina Grande/PB); Leonhard Frank Duch e Paulo Bruscky (Recife/PE); Jota Medeiros (Natal/RN); A. Harrigam (Rio de Janeiro/RJ), Gilmar Cardoso (Arapongas/PR); Luis (Brusque/SC); Claudia (Santos/SP); Orlando Pinho
(Salvador/BA). Da Argentina, G.E. Marx-Vigo e Luis Catriel. Da Bélgica, Guy Schraenen. Da Polônia, Tomas Schulz. Da Holanda, Stempelplaats e Michael Gibbs. Dos Estados Unidos, Bill Gaglione.
10. Entrevista com Jota Medeiros realizada em 27 de nov. 2015 em Natal, Rio Grande do Norte.
11. O artista Luís assina somente com o primeiro nome.
12.
Tradução: Eles fulminam de luz nossas mãos também armadas.
126
camarada que disse que tinha um material jogado lá, se eu não me interessava, porque
ele achava que era um material ligado a mim. Voltaram algumas coisas pra mim […]
Eu tô até pensando em fazer o último número com esse material, juntar algumas
pessoas mais recentes e lançar, fazer uma revista comemorativa.13
A terceira14 e última Karimbada (1979) foi lançada com um número ainda maior
número de participantes e das mais diversas localidades, o que contribuiu ainda mais
para uma pluralidade visual. A expressão política permanece pungente. Jota Medeiros
apresenta novamente o Ra-ta-ta-ta-ta-ta-taamericalatina, dessa vez acompanhado
do carimbo de uma cegonha. Esse, estampado diversas vezes sobre a folha, forma
uma espécie de percurso de voo da ave. O Ra-ta-ta-ta parece interromper o fluxo da
ave que, em seguida, aparece em declínio. Enquanto a convocação Vamos Lutar, de
Luís, ocupa quase toda a superfície da página, o artista Pena carimba a palavra Brasil
no canto esquerdo da página e exibe, no centro, manchas vermelhas – simbolizando
as torturas, os desaparecimentos e as mortes na ditadura militar brasileira.
Por persistirem em todas as edições da revista Karimbada, as mensagens de
denúncias – sempre com grande impacto visual e forte acento político – nos apontam para
a importância da manutenção desse espaço de comunicação marginal que caminha às
margens das instituições artísticas. Proposições colaborativas como a revista Karimbada,
que permearam os anos 1960 a 1980, apresentam práticas notadamente marcadas pelo uso
de novos meios que caminham longe das esferas de legitimação da arte. A compreensão
conceitual dessas produções passa, dentre tantas camadas, pela percepção dos suportes
utilizados e pelo posicionamento dos artistas frente à arte, à cultura e à política.
Presente nessas produções, o carimbo se desloca da função burocrática e
se apresenta como um meio de reprodução acessível, de caráter marginal, distante
das noções tradicionais da arte. Destacada pelo argentino Edgardo-Antonio Vigo
(1975) como uma nova expressão, o carimbo, apartado do “uso-comum-cotidianoadministrativo”, torna-se uma linguagem artística acessível e de fácil reprodução.
Portanto, pode-se dizer que no uso do carimbo, enquanto dispositivo gráfico e
político, está impresso o desejo dos artistas por uma arte democrática, que se faz pela
comunicação. Em seus três números, a revista Karimbada foi elo entre muitos artistas,
fazendo do carimbo um meio de denúncia e comunicação. Com intencionalidades que
se interconectam pelos correios, a Karimbada reforça outra geografia de circulação,
para além das missivas íntimas e do envio de documentos oficiais.
13. Entrevista com Unhandeijara Lisboa realizada em 01 de dez. 2015 em João Pessoa, Paraíba.
14. Na terceira edição da Karimbada (1979), do Brasil, participaram: Falves Silva e J. Medeiros (Natal/
RN); Pedro Osmar e Unhandeijara Lisboa (João Pessoa/PB); Marconi Edson (Campina Grande/
PB); Leonhard Frank Duch e Paulo Bruscky (Recife/PE); Orlando Pinho e Bráulio Tavares (Bom
Retiro/BA); A. Harrigam (Rio de Janeiro/RJ); Fabio Diegoli e Luis (Brusque/SC); (Pena) Borbuleta,
Ivanilde Mendes e Gilmar Cardoso (Arapongas/PR); Claudia (Santos/SP); Paulo Klein (São Paulo/
SP); Karin Lambrecht (Porto Alegre/RS). Da Polônia, Tomas Schulz e Pawel Petasz. Dos Estados
Unidos, Robert Saunders, Image Fatory e Bill Gaglione. Da Itália, Ferruccio Dragoni. Da Iugoslávia, Bálint Szombathy. Da Suiça, Soft Art Press.
127
Diante de uma ditadura militar vigente no Brasil desde 1964, a Vila 777 foi
um espaço de encontro, produção e resistência no Nordeste brasileiro. Através da
rede internacional de arte postal, a produção que se fez ali, incluso a Karimbada,
ultrapassou fronteiras geográficas e políticas e possibilitou a construção de pontes
solidárias e colaborativas, promovendo o diálogo entre artistas de territórios distantes
e aparentemente tão diversos.
Figura 01 - Jota Medeiros,
na 1a Edição da Karimbada.
Fonte: Acervo Paulo
Bruscky
Figura 02 - G.E Marx-Vigo na
2a edição da Karimbada.
Fonte: Acervo Paulo Bruscky
Figura 03 - Luís, na 3a edição da
Karimbada.
Fonte: Acervo Paulo Bruscky
referênciaS
BRUSCKY, Paulo. Arte Correio e a grande rede: hoje, a arte é este comunicado. In. FERREIRA,
Glória; COTRIM, Cecília (Org.). Escritos de Artista: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2006. p.374.
FISCHER, Hervé. Art et communication marginale: Tampons d’artistes = Art and Marginal
Communication : Stamp Activity = Kunst und Randkommunication : Künstlers Stempelmarken.
Paris: Balland, 1974.
FREIRE, Cristina (Org.). Terra Incógnita: Conceitualismos da América Latina no acervo do MAC
USP. vol. 1. São Paulo: MAC USP, 2015.
LISBOA, Unhandeijara. Depoimento ao Instituto de Pesquisa da FAAP – Setor Arte em agosto
de 1985. In. PECCININI, Daisy (Org.). Arte novos meios/multimeios: Brasil 70/80. São Paulo:
Fundação Armando Álvares Penteado, 1985.
VIGO, Edgardo-Antonio. Sellado a Mano. In: Hexágono ‘71, edição e. 1975. Disponível em:
http://sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/45944/Documento_completo.pdf?sequence=1.
Acesso em: 10 de jun de 2016.
eStética relacional: aS relaçõeS humanaS como o
lugar daS criaçõeS artíSticaS
fernanDa PuliDo Dos reis1
lisbeth r. rebollo gonçalVes2
A arte contemporânea suscita debates importantes em torno de suas plataformas, seus registros e modos de produção. Questionada sobre a continuidade ou ruptura da modernidade artística, essa arte (que emergiu nos últimos cinquenta anos,
aproximadamente) apresenta um panorama de diagnósticos diversos e que são provenientes de distintos fundamentos teóricos, entre os quais se destaca a chamada
Estética Relacional, de Nicolas Bourriaud.
Ao constatar a interação e a intersubjetividade como elementos recorrentes
nas criações artísticas surgidas em meados dos anos 1960/1970 – as performances, os
happenings, os coletivos e outros –, Nicolas Bourriaud denomina como Arte Relacional aquela que privilegia a esfera das relações humanas e seu contexto social como o
verdadeiro lugar da obra de arte. Trata-se de um fenômeno que remonta à urbanização geral e crescente que se dá a partir da Segunda Guerra Mundial. Este fenômeno
tem como resultado a promoção dos intercâmbios sociais, cujos reflexos se dão em
diversos campos, incluindo-se aí a experiência artística. Com isso, o autor explica
que é a cidade que, ao impor aos homens um “estado de encontro” (ALTHUSSER
Apud BOURRIAUD, 2009, p. 14), possibilita as novas formas estéticas que se testemunhou a partir da metade do século XX3.
1.
2.
3.
Fernanda Pulido dos Reis. Mestranda pelo Programa de Pós Graduação Interunidades de Estética
e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Lisbeth Ruth Rebollo Gonçalves. Professora titular da Escola de Comunicação e Artes da USP
(ECA-USP) e docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da USP (PGEHA USP). Atualmente é Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Interunidades
em Integração da América Latina da USP (PROLAM USP).
Bourriaud afirma: “Esse regime de encontro casual intensivo, elevado à potência de uma regra absoluta de civilização, acabou criando práticas artísticas correspondentes, isto é, uma forma de arte
cujo substrato é dado pela intersubjetividade e tem como tema central o estar-juntos, o ‘encontro’
entre observador e quadro, a elaboração coletiva do sentido”. BOURRIAUD, Nicolas, 2009, p. 14.
130
Engendrada neste cenário e promovendo uma alteração significativa dos objetivos estéticos, culturais e políticos, preconizados pela arte moderna, a obra de arte
contemporânea já não se mostra sob a forma matéria; nela, o visitante não é mais um
colecionista, pois o que ela provê não é mais um objeto, mas uma “duração a ser experimentada”. A isso está ligada a grande explosão do corpo como o veículo artístico,
experimentada nas últimas décadas. Essa prática articula múltiplos discursos, mas
significa, sobretudo, contestar o sistema da arte e sua noção mercadológica do objeto
artístico; as novas plataformas da arte dita contemporânea tratam de recorrer a um
modelo que a este se oponha e que tem o papel de um “interstício” social (que escaparia à lógica mercantilista). Trata-se, assim, de um espaço-tempo diferenciado, distante, e mesmo indiferente ao sistema vigente: um espaço para as relações humanas,
que possibilite formas distintas daquelas experimentadas no cotidiano e um tempo
em que são suspensas aflições, preconceitos e conflitos de toda ordem.
Eis o caráter fundamental, observa Bourriaud, da exposição de arte contemporânea: ela “cria espaços livres […] e favorece um intercâmbio humano diferente das
‘zonas de comunicação’ que nos são impostas”4. Em outras palavras, ela cria espaços
que permitem ao espectador desfrutar de uma relação intersubjetiva e desinteressada
– de uma qualidade de tempo-espaço não só diferenciada, mas, sobretudo, compartilhada, onde espectador é convertido em “participador” da obra – o que faz dele,
cumpre citar, um elemento fundamental para o resultado das obras, uma vez que é a
sua interação com elas que define a estrutura do evento. O valor dessa arte está, pois,
na tentativa de libertar-se dos esquemas sociais padronizados – disciplinados pela
comunicação de massa – e produzir modelos alternativos de relações (“constroem
modelos do social, aptos a produzir relações humanas”). Em termos práticos, os artistas contemporâneos identificam no próprio cotidiano um solo fértil para suas criações
artísticas e dele recolhem o seu “material”, sendo as obras um resultado das próprias
relações humanas. Elas nos forçam, enquanto espectador-participador, a vivenciar
um novo tempo e um novo espaço – “espaço-tempo relacionais” – e a fruirmos, necessariamente, daquele momento, uma vez que já não há a “coisa” a ser consumida
(BOURRIAUD, 2009, p. 46).
Nesse sentido, pode-se pensar, a arte contemporânea apresenta um projeto genuinamente político, uma vez que, além de refutar o aspecto lucrativo do sistema da
arte, problematiza também a esfera das relações, indicando-a como um espaço em
perigo; um espaço ameaçado pelo caráter reificador e mercantilista de um mundo
capitalista cada vez mais voraz. Essa arte coloca em questão, ainda, a autoridade do
museu e das galerias de arte como o lugar – único e legítimo – das obras de arte. Ao
dessacralizá-las, levando-as às ruas ou a espaços os mais diversificados, permitindo
sua manipulação ou outras formas de participação interativa, o artista contemporâneo
4.
O autor refere-se a uma “mecanização geral das funções sociais” como o problema a que o espaço
relacional se opõe. BOURRIAUD, 2009 p. 23.
131
busca dar uma resposta às questões do seu tempo e isso caracteriza um engajamento
político – implícito, embora não menos elaborado.
Bourriaud explica, ainda, que “as obras já não perseguem a meta de formar
realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou
modelos de ação dentro da realidade existente [...]” (BOURRIAUD, 2009, p. 18). Se
a obra de arte tem como alvo a produção do sentido da existência ou da experiência
humana, na estética relacional o sentido é produto da própria interação entre o artista
e o chamado espectador-participador. Desse modo, o que o artista contemporâneo
produz é a relação entre pessoas – delas entre si, mas também delas para com o mundo – formando, assim, uma arte que “cria modelos e não propriamente representações
[...] [que] se insere no tecido social sem propriamente se inspirar nele [...] [e ainda
assim] remete a valores transferíveis para a sociedade” (BOURRIAUD, 2009, p. 25).
parangolé e domingoS da criação
Expostas brevemente as análises de Bourriaud, acerca das produções artísticas contemporâneas, destacamos duas obras de arte, de artistas brasileiros, em que
se pode identificar essas noções (de uma estética que é voltada, de um modo ou de
outro, para a esfera relacional): Parangolé (1965), de Hélio Oiticica, e Domingos da
criação (1971), de Frederico Morais.
No caso do Brasil, R. Fabbrini explica que, no período do regime militar, “a
única saída possível, na perspectiva dos artistas de vanguarda, era a criação de espaços
alternativos de produção e circulação de arte como forma de resistência ao endurecimento do regime” (FREITAS, 2013, p. 15), o que corresponde, pode-se notar, à
realidade de F. Morais, e não menos a de H. Oiticica. O autor assinala que, se os anos
1990 e 2000 foram marcados por um autoritarismo de mercado, nas décadas de 1960
e 1970 havia um autoritarismo de Estado. Observa-se, com isso, que os dois períodos
guardam semelhanças no que se refere à necessidade de “estratégias”, se assim pudermos chamar, de expressão e comunicação, que pudessem preservar sua autonomia
em meio a um ambiente estandardizado e ideologizado – no segundo caso, censurado.
Nesse sentido, os espaços alternativos para obras de arte compõem uma estratégia na medida em que promovem a interação de indivíduos e nela suscita novas
formas de apreensão do mundo. Parangolé (1965), a obra emblemática, ou a antiobra de Hélio Oiticica, nasce, segundo o próprio artista relata, “de uma necessidade
vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre
expressão” (JUSTINO, 1998). Esse anseio por novas formas de expressão se dá em
uma visita, em 1964, ao morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, em que Oiticica
entra em contato com o samba e toda sua efervescência, ao lado de uma comunidade
que, voltada para o evento do ano – o carnaval – organizava-se em torno da criação,
segundo sua interpretação. É diante de todo o êxtase da música e do movimento que
nasce essa obra, a princípio composta de simples capas e bandeiras a serem vestidas/
132
carregadas pelos participantes do que seria um legítimo happening. Desse modo, a
obra só existia plenamente com a participação do espectador, que se tornava, por sua
vez, a própria obra, ao incorporá-la – embaralhando, com isso, vida e arte.
Oiticica, desse modo, dá início a uma nova noção em que homem e obra
de arte podem integrar-se, remetendo-nos ao que seria a passagem de espectador a
participante da obra. Em Parangolé, nota-se que o ato de “vestir” contrapõe-se ao
simples “assistir”, fundando, assim, uma metáfora perspicaz que se refere à oposição
entre ação e passividade: significa que demanda, para além da participação, também
a criatividade do espectador. Além disso, destaca-se o poder da obra em aniquilar
– com seu espaço alternativo – o próprio conceito de exposição, tradicionalmente
admitido, uma vez que Parangolé não pode ser “exposto”, pois, por si só, ele não se
realiza enquanto obra.
Exposto isso, pode-se pensar que Parangolé é mais um “lugar” do que uma
obra; um lugar que permite ao indivíduo trocar a percepção artística pela própria criação artística. Mais que isso, pode-se dizer, em conexão com as noções de Bourriaud,
que Parangolé fazia das relações humanas o “lugar” da obra de arte. Tratando a arte
como objeto de experiência (e não de materialidade), Oiticica acabou por questionar,
ainda, a instituição da própria autoria. Com a ideia embrionária de que “museu é o
mundo”, ele afirma:
Pretendo estender o princípio de apropriação às coisas do
mundo com que me deparo nas ruas, nos terrenos baldios, nos
campos, no mundo ambiente, enfim - coisas que não seriam
transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação - seria isso um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte etc. e ao próprio conceito de ‘exposição’ - ou nós
o modificamos ou continuamos na mesma. Museu é o mundo,
é a experiência cotidiana.5
De forma geral, observa-se que Oiticica propunha uma estética da existência;
das formas (possíveis) de vida, onde a obra é o ato de criar a obra. Assim, ao propor
a experiência como o núcleo do ato artístico, e ao mobilizar a intersubjetividade,
Oiticica opera uma estética essencialmente relacional e esse é o vórtice de seu experimentalismo.
Em um outro momento, destaca-se a obra de Frederico Morais. Crítico ao
sistema de arte e adotando uma postura similar à de Oiticica (de caráter ético-estético), Morais também se interessou em mobilizar a esfera das relações humanas
para suas criações.
5.
OITICICA Apud JUSTINO, 1998.
133
Em 1971, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ele convida
um grupo de artistas para criar manifestações livres, no grande vão do MAM-RJ, que
deveriam ocorrer nos últimos domingos de cada mês e que, utilizando-se de materiais
diversos como: terra, tecido, papel, entre outros, além do próprio corpo, teria como
objetivo estimular a interatividade e a livre participação do público. Assim, os domingos temáticos - “Um domingo de papel”; “O tecido do domingo”; “O domingo por
um fio” – compunham o projeto Domingos da Criação que realizava, a um só tempo,
uma crítica ao espaço do museu e do seu uso por parte da população.
Para pensar o valor da obra, cumpre lembrar que se tratava de um momento
controverso em que precisavam conviver a efervescência intelectual de uma geração
e a censura de um governo austero. A reunião das pessoas em torno da arte em espaço
público, em plena ditadura militar, era, por si só, um feito marcante. Mas o evento (a
obra) destacava-se por questionar não só o uso que se fazia do “tempo livre” aos domingos, pensava-se ainda, nas palavras de Morais, “o próprio significado do domingo
[...] as polaridades lazer e trabalho, meio e fim de semana, burocracia e criatividade,
arte e sociedade, infância e terceira idade, etc”6.
Perguntado pelas suas intenções mais profundas na realização da obra, o artista diz pensar que “a arte não pertence aos museus, às galerias de arte, aos colecionadores e, no limite da interpretação, aos artistas”. Afirmando que a arte não pertence
a ninguém, porque “pertence a todos”; ele explica ainda que a considera “um bem
comum do cidadão, da humanidade”, princípio que regia seu projeto no MAM-RJ,
naquele ano de 1971.
A importância dessa obra, bem como a de Oiticica, para a abertura de caminhos na produção artística contemporânea no Brasil (e até fora dele, como é comumente reconhecido em H. Oiticia) é incontestável e o próprio artista enfatiza:
[...] de forma subjacente, os Domingos da criação reviveram,
de forma alegre e descontraída, boa parte da história da arte
contemporânea, ou, para ser mais preciso, a passagem do moderno ao pós-moderno. Estava tudo ali: Dada, Fluxus, Pop-art, arte cinética, arte conceitual, body art, performances,
happenings, Earth-art, etc. 7
As produções de H. Oiticica e F. Morais, conclui-se, ilustram em boa medida
as descrições que fez Bourriaud acerca da arte contemporânea. Com critérios particulares, elas representaram um momento inaugural para o universo artístico pós-vanguarda, e se provaram fecundas nas gerações posteriores, cujas produções podem ser
6.
7.
Fonte: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/18-entrevista_fredrico_morais.pdf
Fonte: https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/18-entrevista_fredrico_morais.pdf
134
entendidas como a evolução ou o desenvolvimento deste modelo; um modelo que
ensaiava a “estética relacional”.
referênciaS
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
FREITAS, Artur. Arte de guerrilha. Vanguarda e conceitualismo no Brasil. São Paulo: Edusp,
2013.
JUSTINO, José Maria. Seja Marginal, Seja Herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio
Oiticia. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998.
Websites consultados (acesso de 06/07/2016):
https://www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/18-entrevista_fredrico_morais.pdf
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=856&titulo=Parangole:_antiobra_de_Helio_Oiticica
miroSlav tichý: oS equipamentoS fotográficoS
arteSanaiS na conStrução de uma eStética
da precariedade
Paula DaVies rezenDe1
Este trabalho tem o objetivo de discutir a atuação da tecnologia na produção
fotográfica do artista checo Miroslav Tichý (1926-2011). Trata-se de investigar, mais
especificamente, como o uso de equipamentos artesanais determinou características
estéticas específicas. Por diversas vezes, tais características independem do fotógrafo
e evidenciam como os elementos não humanos têm agência na criação fotográfica2.
Para levar a cabo tal análise, parte-se da hipótese de que, entre o olhar do
fotógrafo e a cena que será registrada, a câmera ocupa lugar fundamental, como mediadora da relação que o ser humano estabelece com o mundo físico. O filósofo Vilém
Flusser reconhece essa função da câmera, afirmando que, no caso da imagem técnica,
diferentemente da pintura, a transformação do mundo físico em imagens não se dá
apenas a partir da subjetividade do ser humano, mas é também determinada pela
câmera (FLUSSER, 1985, pp. 10-11). O professor e pesquisador Arlindo Machado
corrobora o pensamento de Flusser, afirmando que há nas câmeras uma “força formadora mais que reprodutora”, sendo elas responsáveis por suas próprias estruturas
simbólicas: mais do que reproduzir passivamente, dão significado às informações
luminosas provenientes do mundo físico, construindo representações (MACHADO,
1.
2.
Paula Davies Rezende. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte
da USP (PGEHA USP).
Existem algumas perspectivas teóricas que dizem respeito à atuação de elementos não-humanos na
atividade social. Uma teoria determinante neste âmbito foi a chamada Teoria Ator-Rede, que teve
origem na década de 1980 com o antropólogo francês Bruno Latour, o sociólogo francês Michel
Callon e o sociólogo inglês John Law (LATOUR, 2012, p. 29). Latour afirma que a tendência da
sociologia tradicional é restringir o social ao seres humanos, ignorando que sua esfera é mais ampla
e não é necessariamente centrada no indivíduo. Assim, a ANT propõe uma revisão do papel atribuído aos elementos não-humanos, reconhecendo-os como atores e não apenas projeções simbólicas,
capazes de “[...] um tipo de ação mais aberto que a tradicional causalidade natural - e mais eficiente
que a simbólica [...]” (LATOUR, 2012, pp. 24-30).
136
2015, p. 14). É possível, portanto, afirmar que o funcionamento da câmera fotográfica, dá-se como um processo de codificação, implicando diretamente nas transformações estéticas que podem ser reconhecidas na imagem fotográfica.
Para entender a implicação da técnica na estética, convém analisar brevemente
os primeiros processos fotográficos. Segundo a historiadora da arte Annateresa Fabris, apesar das criações de Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851), William
Henry Fox-Talbot (1800-1877) e Hyppolite Bayard (1801-1887) terem surgido aproximadamente na mesma época, a de Daguerre obteve maior aceitação social por apresentar maior nitidez, precisão e detalhamento em seu registro da realidade (FABRIS,
1991, pp. 12-14). A pesquisadora mexicana Laura Gonzáles Flores ressalta que esses
valores, associados a mecanicidade e a revolução industrial, marcaram não apenas
o surgimento da fotografia, mas a primazia de um tipo específico de fotografia, que
busca mimetizar nítida e fielmente o objeto representado (FLORES, 2011, pp. 139).
Os valores preconizados por esse tipo específico de fotografia, que neste trabalho
será chamada de fotografia tradicional, acabam por impulsionar o desenvolvimento
de novas tecnologias, tendo como resultado uma quantidade expressiva de novas
câmeras no mercado.
Do outro lado do espectro, na contramão da corrida tecnológica empreendida
pela indústria fotográfica, estão os equipamentos fotográficos de baixa fidelidade,
dentre os quais encontram-se os equipamentos artesanais, construídos pelo próprio
usuário, que contam com um mecanismo simples e oferecem um registro fotográfico
que não é tão fiel nem exato. O tipo de câmera artesanal mais fácil de ser construída
é a câmera estenopeica, conhecida também por pinhole, tipo de câmera que não faz
uso de lentes para formação da imagem fotográfica. Além das câmeras estenopeicas,
existem as câmeras artesanais que usam lentes para a formação da imagem fotográfica. Frequentemente, tais equipamentos produzem imagens com características
que seriam consideradas como falhas do ponto de vista da fotografia tradicional, tais
como foco suave, manchas devido a vazamento de luz, baixa fidelidade na reprodução das cores e outras imprecisões. Tais características peculiares serão tratadas neste
trabalho por estética da precariedade.
Para dar corpo a essa discussão, escolhi a produção fotográfica do artista checo Miroslav Tichý, que construía, ele próprio, todo o seu equipamento fotográfico,
incluindo as câmeras e ampliadores. Esta análise busca evidenciar de forma concreta
a atuação do equipamento fotográfico na produção de uma estética da precariedade.
Tichý nasceu em 1926, na cidade de Kyjov, ao sul da República Checa. Em
1945, o artista iniciou os seus estudos na Academia de Belas Artes (AVU), em Praga,
mas não terminou o curso. Apesar de também pintar e desenhar, é no campo da fotografia que Tichý terá sua produção mais reconhecida. É difícil estimar as datas exatas
em que suas obras foram produzidas, por conta da escassez de documentação, posto
que o artista raramente assinava ou datava seus trabalhos. Interessa aqui o período
durante o qual ele fotografou, aproximadamente da década de 1960 até meados da
137
década de 1980, segundo estimativa do historiador da arte e curador Quentin Bajac
(BAJAC, 2008, p. 10).
Uma das características da produção fotográfica de Tichý é a baixa fidelidade
manifesta em suas imagens, consequência de seu processo técnico peculiar. Por diversas vezes, as imagens que despontavam nos negativos e ampliações afastavam-se
do ideal de nitidez e precisão do registro do mundo visível. Nesse sentido, suas fotografias não são apenas índices, vestígios de um “isto-foi” (cf. BARTHES, 2012, p.
72), pois apesar de terem um referente, por vezes nem sequer o “isto-foi” é identificável. São imagens que guardam com seu referente uma relação muito mais simbólica
do que indicial. O processo de produção de Tichý é um desvio do rigor técnico da
fotografia tradicional e, ao invés de resultar em mimese – característica basilar deste
tipo de fotografia –, esfacela-se em destruição da indexicalidade. É uma fotografia
que deixa de se constituir como uma representação para tornar-se uma apresentação,
uma ficção, uma cena que nunca existiu, e que passa a existir somente a partir da impressão em uma superfície sensível. É uma reconfiguração do mundo visível.
Na produção das imagens de Tichý, além da intenção do fotógrafo, outros
agentes não humanos também participavam ativamente e determinavam diversas peculiaridades estéticas. Dentre esses agentes estavam: os equipamentos fotográficos,
o acaso e as falhas que interferiam nos processos de revelação e ampliação, as intervenções manuais feitas a lápis ou caneta na fotografia ampliada e os processos de
deterioração pelos quais passavam as imagens, depois de finalizadas.
Os equipamentos fotográficos utilizados por Tichý eram todos construídos por
ele mesmo, incluindo as câmeras, as lentes e até mesmo o ampliador. As únicas exceções eram os químicos para revelação, filme e papel fotográfico, que eram comprados
prontos. Seus mecanismos artesanais eram funcionais, mas não reproduziam os resultados finais idealizados pelos equipamentos fotográficos industrializados tradicionais. Suas objetivas criavam imagens com contornos borrados, foco suave, algumas
sem nitidez alguma. O corpo mal vedado da câmera ocasionava vazamentos de luz
imprevisíveis, que despontavam como pequenos clarões, apagando contornos das
cenas fotografadas.
Ao buscar obter resultados que atendam à precisão almejada pela fotografia
tradicional, o processo de revelação demanda ser realizado de acordo com rígidas regras, concedendo pouco espaço para erros. Segundo Buxbaum, Tichý conduzia seus
processos químicos sem preocupar-se com essa precisão técnica, deixando grande
espaço para que as falhas e o acaso agissem sobre o produto final. Os tempos de exposição do papel fotográfico à luz do ampliador e dos banhos químicos eram marcados intuitivamente (BUXBAUM, 2008a, p. 17). Esse processo peculiar de revelação
deixava algumas marcas nas cópias. Além das bordas rasgadas, algumas imagens
emergiam claras ou escuras demais, às vezes com granulação bem aparente. O registro fotográfico, que já carregava características específicas produzidas pela câmera
e objetiva artesanais, ganhava mais uma camada de névoa que borrava ou mesmo
138
escondia contornos e vestígios do mundo visível. A reprodutibilidade, uma das principais características da fotografia, era recusada pelo artista, que ampliava apenas
uma cópia de cada imagem.
Depois de ampliada, a imagem passava por uma espécie de revisão, para ser
então eventualmente emoldurada. A revisão consistia em usar lápis ou caneta para
completar o tratamento da imagem. As vezes a intenção era reforçar com riscos alguns contornos pouco visíveis, ou mesmo consertar falhas, cobrindo com tinta ou
grafite abrasões ou manchas na fotografia. Tichý parece recusar, ou pelo menos é
indiferente, a busca pela especificidade da fotografia, tão manifesta nas vanguardas
fotográficas e na fotografia moderna, que recusavam enfaticamente as intervenções
pictorialistas. Algumas imagens eram acomodadas em passepartout ou fixadas em
papel mais espesso, trazendo molduras decoradas manualmente pelo próprio artista.
Por fim, as cópias fotográficas podiam passar ainda por um processo de “maturação”, onde recebiam uma última camada de intervenções estéticas. Essa etapa
final era fruto do descaso de Tichý , já que, segundo Buxbaum, as fotografias eram
abandonadas por sua casa, guardadas de forma descuidada dentro dos armários, empilhadas no chão a mercê da sujeira que se acumulava no ambiente, da destruição
por pestes domésticas e outras intempéries que resultavam na sua deterioração física
(BUXBAUM, 2008a, pp. 16-18). A falta de armazenamento adequado resultava em
rasgos, riscos, abrasões, perda de partes do suporte, manchas e fungos, danos que
contribuíam para a atmosfera nebulosa comum em suas fotografias. Aqui fica clara a
dimensão material da fotografia, que ao mesmo tempo a sustenta e é responsável por
seu eventual desaparecimento.
* * * *
Detalhar o processo de criação fotográfica de Tichý torna possível visualizar
os inúmeros agentes que contribuíram para o resultado final evidenciado em cada
imagem. A precariedade dos equipamentos, o descaso com as regras do processamento técnico tradicional, as intervenções manuais e os processos de deterioração que sofrem as imagens depois de impressas, todos são fatores determinantes na constituição
da imagem final. Tichý leva a cabo um ritual, desde a construção das câmeras, passando pelos retoques manuais nas imagens impressas e o eventual emolduramento. É
a primazia do processo sobre o resultado.
A recusa das regras rígidas da fotografia tradicional força a imagem até seu
limite, longe das condições tidas como ideais, do ambiente controlado e previsível.
Apesar de dos percalços pelos quais passavam as suas imagens, é importante lembrar
que elas, de alguma forma, sobreviviam. A enorme inflexibilidade dos processos técnicos tradicionais sugere que se as regras não forem seguidas de forma criteriosa nenhuma imagem irá surgir dali. O que Tichý nos mostra é o contrário, que a imagem é
resiliente, que sua materialidade é teimosa e insistente. Sua prática materializa a ideia
139
de imagem latente, a imagem que está pulsando para romper a superfície e emergir,
independente das condições, muitas vezes adversas.
Ao recusar as regras convencionais da fotografia, até mesmo da prática amadora, Miroslav Tichý cria e segue outras, que não são necessariamente mais simples:
basta considerarmos que construir o próprio equipamento é tarefa indubitavelmente
complexa. No entanto, a sua atitude representa, por certo, uma indiferença ao modo
de vida produtivista, asséptico e controlado que as regras da fotografia tradicional
encarnam. É importante notar que, à primeira vista, o entendimento do processo criativo de Tichý como sendo impreciso, limitado e menos rigoroso parece fazer sentido,
mas não se sustenta após uma análise mais detida e apenas explicita o quanto o rigor
técnico característico da fotografia tradicional está naturalizado para nós como sendo
o correto. Tichý pode ser absolutamente impreciso se tomarmos como referência o
rigor técnico da fotografia tradicional, mas no âmbito de seu processo criativo, suas
técnicas eram consistentes e sistemáticas. De qualquer forma, as imperfeições presentes nas imagens de Tichý operam como uma quebra no fluxo do discurso convencional da fotografia e me parece que por aí jaz a graça em ver suas imagens: na quebra
do previsível, em sermos deslocados da nossa zona de conforto.
referênciaS
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Paris: Centre Pompidou, 2008. Disponível em: <http://issuu.com/bintphotobooks/docs/tichypompidou>. Acesso em: 21 mai 2015.
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Tichý. Paris: Centre Pompidou, 2008a. Disponível em: <http://issuu.com/bintphotobooks/docs/tichypompidou>. Acesso em: 06 ago 2016.
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LIMA, Solange Ferraz (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991.
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2012.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. Barcelona: Gustavo Gili, 2015.
a eScrita de Si em “paSSagenS SecretaS” de
brígida baltar
felliPe eloy teixeira albuquerque1
aS paSSagenS SecretaS de brígida baltar
Desde as contribuições filosóficas de Walter Benjamin com “O autor como
produtor” (1934) e de Michel Foucault com “A escrita de si” (1994), uma nova prática de construção de conhecimento vem se intensificando entre os artistas contemporâneos: a pesquisa biográfica. Os artistas se autopromovem cumprindo o papel que
antes pertencia unicamente aos críticos e historiadores de arte. A narração e descrição
das atividades de determinada produção faz parte das atribuições do artista consagrado e a pesquisa se tornou sua principal ferramenta de trabalho.
E o grande diferencial da Arte Contemporânea em comparação aos outros períodos da História da Arte, em termos filosóficos e conceituais, realmente são os
casos de artistas, que, em nossos tempos, narram a história deles próprios.
Por diversas questões, uma destas artistas será o fio condutor desse trabalho:
a carioca Brígida Baltar. Brígida que além de comumente conceder entrevistas sobre
si e sobre sua obra é também coautora do livro “Passagem Secreta” (2010). Ao lado
de Márcio Doctors, a artista carioca distribui em uma única publicação a maior parte
de texto já escrito sobre si mesma. Já na Apresentação desse livro, Doctors revela a
participação fundamental que legitima Brígida como autora de sua própria história:
Não nos limitamos a um mero registro cronológico de seus
trabalhos ou a uma sucessão de obras já existentes e em circulação. Buscamos preservar no processo de sua concepção a
ideia processual inerente à sua obra. Portanto, o livro foi todo
1.
Fellipe Eloy Teixeira Albuquerque. Mestrando em História da Arte pela Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP).
142
pensado em processo e Brígida se permitiu liberdades criativas, transformando-o em mais um de seus trabalhos. (DOCTORS, 2010, p. VII)
Sendo assim, tal citação pode nos leva a acreditar na ação da artista como um
processo “curatorial” na editoração de um livro mais do que uma posição estática de
objeto de pesquisa. Doctors fala que mesmo reunindo os textos críticos sobre a artista, já publicados em outras mídias “Passagem Secreta” (2010) ainda conta com dois
ensaios visuais inéditos e uma entrevista que ajudará o leitor a entender não só o universo no qual a “artista se percebe e se faz perceber pelo mundo ao estabelecer o afeto
como conceito que costura secretamente o sentido de sua ação artística” (DOCTORS,
2010, p.VII), mas também ao nos introduzir a esse lugar de “uma silenciosa e sutil
intimidade com a materialidade da natureza do mundo revela as fissuras por onde a
arte se materializa como conceito e afeto” (DOCTORS, 2010, p.VII), ajudando–nos
não só identificar, mas entender os vários conceitos abordados pela artista.
Ao mesmo que age intuitivamente, também no modo como Brígida Baltar fala
de si, revela-se claramente a tese de Michel Foucault (2006), onde ele afirma o fato desta tendência já existir há muito tempo, mas sua aplicação se modifica historicamente.
Para entender as modificações pertinentes atualmente, precisamos recorrer a
outros autores. A princípio podemos acessar ao livro Paisagens e tramas, organizado
por Margareth Rago e Ana Carolina A. de Toledo Murgel (2013), para analisarmos
como a influência de Foucault desencadeou novas perspectivas do cuidado de si e da
escrita de si nas artistas feministas. Outra importante contribuição vem das linhas de
O retorno do real (2014) de Hal Foster, mais precisamente do penúltimo capitulo do
livro: O artista como etnógrafo (FOSTER, 2014, pp. 159-186).
Recorreremos, portanto, principalmente a essas duas referências, juntamente
com algumas publicações onde Brígida Baltar se projeta como o tema de sua própria
pesquisa. Buscando assim introduzir um diálogo entre as narrativas-mestras da História da Arte e esta nova tendência contemporânea, ampliando consequentemente as
discussões sobre a importância da pesquisa na formação do artista contemporâneo.
Tal processo de experimentação precisa ser considerado. Portanto, vamos analisar preferencialmente a Entrevista citada por Doctors como parte do livro Passagem
Secreta, juntamente com outras que acharmos relevantes. Uma destas “entrevistas
relevantes” foi realizada pela Escola de Arte Visuais do Parque Lage, por decorrência
do seu Programa Fundamentação, implementado desde março de 2009. O Fundamentação traz artistas convidados para um Encontro com os estudantes em processo
de formação e reuni suas conversas em publicação própria chamada Cadernos EAV:
Encontros com Artistas. Na edição de 2012 (publicada em 2014), Brígida Baltar vem
ao lado de outros artistas complementarem a publicação.
As questões que levantamos no começo deste texto, relacionadas à História da
Arte e à biografia como peça fundamental de uma Disciplina, podem ser claramen-
143
te percebidas como interesse da artista justamente pelo simples fato de se dispor a
ceder uma entrevista sobre si mesma. No começo da Entrevista1 – feita por Márcio
Doctors em Passagem Secreta – o entrevistador já começa por indagar a artista sobre
seu processo de transição de técnicas: “[...] surpreendo claramente um antes e um
depois, entre uma obra que apontava na direção de uma plasticidade gráfica para uma
obra que, a partir dos trabalhos relacionados à sua casa, passou a ter uma dimensão
de prática plástico/existencial.” Para responder tal pergunta a artista opta em contar a
história de sua formação: “o início das minhas experiências com arte aconteceu cedo,
e entre um turbilhão de desejos, inclusive o de transitar por outras áreas. Quando cheguei à Escola de Artes Visuais do Parque Lage” (BALTAR; DOCTORS, 2010, p. 33).
As funções didáticas ou pedagógicas, como preferem alguns, no caso da Brígida Baltar não muda o sentido das coisas. Pois, ao falar de si mesma diante dos estudantes, Brígida Baltar faz questão de ressaltar o fato de também ter sido estudante da
Escola de Artes Visuais do Parque Lage, se impondo como um exemplo a ser seguido,
condizente à realidade deles e não apenas como um modelo intransponível. A resposta
dada a primeira pergunta trás vestígios desta postura de “exemplo a ser seguido”.
Tive um processo de crescimento bem gradativo. Lembro
de tentar mostrar meu trabalho nos Salões de arte. No s anos
1980, havia, entre outros, o Salão Nacional, que era bem importante- todo ano eu mandava imagens para o Salão Nacional,
mas nunca consegui ser selecionada. (BALTAR, 2014, p. 27)
A artista finaliza essa colocação exaltando o fato de ter firmado parcerias
com outros artistas, curadores e galeristas de sua própria geração. Brígida faz várias
menções a essa posição didática de suas declarações, ou citando as curiosidades da
maria-farinha, animal tema de uma de suas obras, ou ainda quando usa referências
de um livro de Lévi-Strauss: Do mel às cinzas (2004) para falar sobre sua obra Casa
de Abelhas.
Essa posição pedagógica em suas entrevistas revela não só seu interesse pela
pesquisa, mas também uma de suas atividades. Em uma terceira ocasião, Brígida
Baltar, juntamente com João Modé outro ex-estudante da Escola de Artes Visuais
do Parque Lage, em conversa com Joanna Fatorelli para a Revista Digital Portfólio
(2013), os dois artistas falaram sobre questões relacionadas às exposições: “O amor
do pássaro rebelde” e “Para o silêncio das plantas” correspondendo respectivamente a Brígida e Modé, ambas organizadas nas Cavalariças do Parque Lage: “O Parque
Lage é um lugar afetivo para mim e para o João também, tenho certeza; a gente estudou aqui, agora damos aulas aqui; é uma história do Rio de Janeiro, uma localização
para os artistas, se relaciona com a formação da nossa geração.” (BALTAR, 2013).
144
A manifestação de suas ocupações como docente só corroboram a ideia de
que sua obra seja totalmente biográfica. Pois até sua segunda opção “profissional” é
subjetivamente enfatizada em suas declarações sobre si.
Um fator que precisamos considerar, com certeza o mais importante e imprescindível para entender a “escrita de si” é a questão da alteridade. Hal Foster (2014, p.
161) discorre sobre isso, recorrendo à pertinência das instituições de arte capitalista-burguesa (o museu, a academia, o mercado e a mídia). Segundo ele esses ainda são
os principais objetos de contestações, pois mantiveram até a contemporaneidade suas
definições excludentes de artistas, identidade e comunidade.
Para esclarecer a política cultural da alteridade, Hal Foster se debruça em uma
extensa – para não dizer cansativa – discussão sobre o sujeito e o outro cultural ou
étnico. Por conta desta complexa relação, tão difícil de explicar entre o sujeito e o
outro cultural na pós-modernidade é que traços da antiga figura do artista, o artista
como produtor, se confundem com a do novo artista, o artista como etnógrafo. Tal
relação seria responsável pelo surgimento de paradigmas:
Primeiramente, o pressuposto de que o lugar da transformação
política, e que as vanguardas políticas localizam as vanguardas artísticas e, sob certas circunstâncias, as substituem. [...]
Em seguida, o pressuposto de que esse lugar está sempre em
outra parte, no lugar do outro [...] Em terceiro lugar, o pressuposto de que, se o artista que foi invocado não é visto como
social e/ ou culturalmente outro, seu acesso a essa alteridade
transformadora é limitado, e que, se ele é visto como outro,
tem acesso automático a ela. (FOSTER, 2014, p. 161).
De acordo com esses paradigmas, há um risco quase iminente do artista como
etnógrafo acabar por falar pelos “outros”, fugindo assim do proposto inicial do relato
benjamniano. A decorrência de uma cisão entre o artista e o outro acabaria por exigir
um comprometimento maior em superar essa cisão, que consequentemente poderia
novamente se tornar o motivo inicial dessa cisão. A luta para não falar pelo outro
acabaria por ser o motivo inicial de falar pelo outro. A cisão seria um círculo vicioso
e intransponível, inevitável que o artista como etnógrafo estaria fadado a integrar.
Para a superação de tal paradigma é preciso que o artista tenha bem claro que
“identidade não é o mesmo que identificação, e as simplicidades aparentes da primeira não deveriam substituir as complexidades reais da segunda” (FOSTER, 2014,
p. 162). O artista como etnógrafo é, portanto, apenas o informante de sua própria
arte. Embora tal paradigma possa ser questionado de diferentes formas, é pelo viés
do pressuposto realista, que um lugar da verdade política e do outro projetado como
sendo de fora tem seus efeitos mais problemáticos.
145
E é nesse ponto que pretendíamos chegar quando optamos por usar a publicação de Brígida Baltar. A questão da alteridade, segundo percebido com o restante da
leitura de Hal Foster: quando o artista etnógrafo ou informante de sua própria arte fala
dele não fala de si, mas sim de um “outro eu”. Isto só é possível por que o artista não é
apenas o sujeito de sua própria história, mas uma empresa que ele mesmo administra.
referênciaS
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Encontro com os artistas. Rio de Janeiro: EAV, 2014.
______. Entrevista. In: Revista Portfólio EAV. O lugar da inspiração. Por Joanna Fatorelli. Publicado em: volume 1, número 1, janeiro, 2013. Disponível em: <http://revistaportfolioeav.rj.gov.br/
edicoes/01/?p=59>. Acessado em 06 dez. 2015.
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2010.
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gênero entre a história e a arte. São Paulo: Intermeios, 2013.
REVISTA PORTFÓLIO EAV. O lugar da inspiração. Por Joanna Fatorelli. Publicado em: volume
1, número 1, janeiro, 2013. Disponível em: <http://revistaportfolioeav.rj.gov.br/edicoes/01/?p=59>.
Acessado em 06 dez. 2015.
da antropologia À arte contemporÂnea:
trÂnSitoS da imagem fotográfica de indígenaS em
duaS obraS de arte latino-americana
Daniella CarValho1
introdução
Ao fazer uma pesquisa antropológica tendo como ponto de partida as imagens
fotográficas de indígenas, questiono-me sobre qual o significado dessas imagens, sua
circulação e forma como são visualizadas (BERGER, 1974) a partir de sua relação
com o lugar do arquivo.
O uso das imagens fotográficas de indígenas não se dá unicamente pela intencionalidade do olhar do fotógrafo. Elas são lidas e ressignificadas fora de seu contexto de origem, já que o significado da imagem depende da função social de onde está
registrada (BURKE, 2005).
O que acontece, então, quando tais imagens são colocadas como parte do processo e do resultado de obras de arte contemporânea? A presente análise é um convite
para identificar o uso de imagens fotográficas de indígenas em duas obras como lugar
de reflexão sobre como tais imagens fotográficas dialogam com a produção artística
e com seus locais de trânsito.
caSoS
Nicolás Consuegra é artista visual (COLOMBIA, 1976). Sua obra “Ausencias
Paralelas. Zonas de Contacto” (2014)2 surge de um projeto do LARA (Latin America
Roaming Art), em 2013, na Colômbia, de onde foi deslocada para uma residência nas
Filipinas para, posteriormente, ser exibida no MAC de Lima, no Peru.
1.
2.
Daniella Carvalho. Antropóloga e candidata a Mestre em Estudos da Imagem na Universidade
Alberto Hurtado, em Santiago de Chile.
CONSUEGRA, Nicolás. “Ausencias Paralelas, Zonas de Contacto” (2014). Impressão offset. 148
páginas. 25,3 x 17,5 cm.
148
Nessa obra, justapõem-se imagens de arquivo da revista National Geographic
de 1913, a qual, num artigo sobre as Filipinas, retrata visual e textualmente “The
Non-Christian People of the Philippine Island” (As Pessoas Não Cristãs das Ilhas
Filipinas), e em contrapartida, a publicação do “descobrimento” de Machu Picchu, no
Peru, realizado pelo norte-americano Hiram Bingham. Ambos os locais são classificados pelo autor como zonas de contato (PRATT, 2010), consagrações da representação colonial, lugares onde a hegemonia Norte-Atlântica colonial encontrou a forma
de construir e forjar uma representação da alteridade através da fotografia que, nesse
caso, encontram-se justapostas como forma de montagem.
O segundo artista visual é Eugenio Dittborn (Chile, 1943) com “Airmail Paintings/Pinturas Aeropostales” (Pinturas Aeropostais) (1984), uma série de obras entre
pintura e serigrafia, com selos e dobras de grande formato, peças do correio aéreo em
exposição constante.
Tomo como referência a obra “Airmail painting nº 91. The 11th History of the
Human Face (500 years)” (Pintura Aeropostal nº 91. A 11ª História da Face Humana
[500 anos]), de 19903, na qual interagem três tipos de representação de alteridade:
fotografias de indígenas e criminosos reproduzidas em serigrafia e desenhos4. Essa
interação brinca com a tradição retratista policial “de frente e de perfil”, método de
identificação que também partilha com as formas iniciais de representação da fotografia etnográfica da antropologia.
As reproduções das imagens fotográficas de indígenas realizadas por Dittborn
foram utilizadas por Martin Gusinde na década de 1920 e publicadas em seu trabalho etnográfico na década de 1930. Elas são oriundas de revistas, livros acadêmicos
e postais que fazem parte de um “image-world” (POOLE, 2010) fueguino. Como
recursos visuais, referem-se a imaginários sociais e convidam a considerar os discursos identitários e seus lugares de origem; e, além disso, como obras aeropostais,
transitam por vários contextos, permitindo inúmeras leituras sobre elas. Também,
receberam inúmeras críticas. No entanto, me interessa ressaltar o lugar das imagens
de indígenas que as compõem.
Começando com isso, essas duas obras possuem uma forma de montagem na
qual as imagens utilizadas e suas diferentes materialidades justapõem-se como uma
forma de mensagem. Reside nesta temática um tópico de tensão entre a estranheza e
a familiaridade. São obras que se conformam a partir de fragmentos, de discussões
sobre a identidade e sobre o encontro com a alteridade.
3.
4.
DITTBORN, Eugenio. “Airmail painting nº 91. The 11th History of the Human Face (500 years)”
(1990). Pintura, costura, carvão e serigrafia em duas seções de entretela sintética. 210 cm x 280 cm.
Existem vários retratos desenhados tanto por sua filha quanto por pacientes de uma clínica psiquiátrica. Disponível em: <http://centrodedocumentaciondelasartes.cl/g2/collect/cedoc/images/
pdfs/429.pdf>. Acesso em: 13 set. 2016.
149
iMagens fotográfiCas De arquiVo no enContro entre a arte e a antroPologia
Pressuponho que o lugar de partida de ambos os trabalhos com fotografias seja
o arquivo. Esse existe como ambiente institucional para proteger os materiais, guardá-los e valorizá-los como modo de olhar sobre o passado. No entanto, atualmente o
conceito de arquivo vem se expandindo para outras formas de construção do conhecimento, como menciona Guasch (2005): o arquivo representa uma natureza aberta para
explorar novas narrativas ao selecionar e recombinar os elementos que o compõem.
Hoje, os arquivos nos falam de presenças, ausências e reatualizações. A discussão abre-se, então, para o que Giunta menciona,
[...] os arquivos deixaram de ser um assunto do passado,
desvencilharam-se do pó e das traças para prometer que em
breve brilharão nas telas de qualquer computador. Possui-los,
usá-los, citá-los é uma das portas de acesso ao mundo da arte
contemporânea (2010, p. 36, tradução livre).
Nesse caso, o arquivo envolve as imagens fotográficas desde sua forma material, considerando simultaneamente seu lugar como imagem. O caráter dinâmico das
imagens pressupõe certas liberdades quanto a seus significados, isto é, como imagens
[...] flutuam de maneira isolada, movendo-se dentro e fora de
contextos, livres de sua origem e da história de sua procedência [...] Tropeça-se numa imagem, encontra-se com ela, sem
que ela tenha se perdido. Poder-se-ia afirmar que ela está mais
confortável “rodando por toda parte do mundo”, que uma
imagem é promíscua por natureza (2009:34, tradução livre).
Possivelmente, assim mesmo se convertem em acervo de arquivo. No entanto,
embora tenham a possibilidade de se movimentar por contextos diferentes – como
ocorre com as fotografias de indígenas ao serem encontradas tanto no campo da antropologia como no da arte –, não se distanciam totalmente de seus contextos de origem.
Desde sua criação, e já massificadas como tecnologia fotográfica, as fotos de
indígenas sempre estiveram extremamente relacionadas com as tarefas antropológicas e etnográficas, por serem objetos de estudo. Desse modo, ao se realizar um
rastreamento sobre o lugar de origem da foto, não apenas como acervo de arquivo,
é possível pensar que, como obras, criticam e dialogam sobre a construção visual
de mundos e temas coloniais, uma produção ideológica sobre alteridade, raça, colonialismo e imaginários.
150
trÂnSitoS e materialidadeS: da antropologia À arte
As discussões contemporâneas sobre arte e antropologia apontam que há um
processo de enriquecimento do artista quando se cria um vínculo com outras disciplinas ao se incorporar no trabalho algumas práticas metodológicas (FREITAG, 2012).
Nessas obras vemos vários pontos em comum compartilhados por ambas as
disciplinas: por um lado, compartilham o uso das imagens fotográficas; compartilham o interesse pela representação do outro (FOSTER, 2001); compartilham as intenções e práticas de trabalho (SCHNEIDER & WRIGHT, 2006); e, além disso, compartilham espaços e circuitos de exibição e estratégias para apresentar seus produtos
longe do contexto de origem. Isto é, ambas são disciplinas que se preocupam com a
representação do outro e com os lugares onde podem chegar.
É tarefa da antropologia identificar a seleção temática que ecoa nos imaginários sociais, como imagens que se movem no entorno e interpelam as construções
sobre raça, cultura e colonialismo (DE LOS RÍOS, 2006); e, desde então, questionar
sobre como essas imagens chegaram onde se encontram atualmente.
Como aspecto temático e de conteúdo, surgem reflexões comuns sobre esses casos que transitaram por espectadores relacionados com as migrações, com
as viagens, com o exotismo dos temas retratados. Fala-se sobre povos oriundos do
sul do Chile e da Argentina; assim como sobre a representação de espaços e temas
referentes ao Peru e às Filipinas, ambos do início do século XX, como imaginários
e suas representações.
Como tarefa da arte, é preciso identificar que a seleção e a utilização de material estão relacionadas com o processo investigatório e criativo para, então, converter-se em obra; e que, simultaneamente, joga com a noção de arte de Benjamin (1989)
na era da reprodutividade técnica, já que a fotografia como tal passa para outros
formatos: fotocópia, serigrafia, pintura, gravura, isto é, transformações que permitem
que a imagem seja re-produzida e transportada para outros contextos.
Em ambos os casos, os artistas selecionados recorrem ao acervo do arquivo
para usar as imagens, não só como conteúdo, mas também como novas materialidades. No caso de Consuegra, as imagens selecionadas dialogam, página por página,
com o retrato das Filipinas e do Peru: trajes tradicionais de habitantes autóctones,
áreas colonizadas pela religião católica, cruzamento e intercâmbio identitário, através
do olho imperial, publicado na Revista National Geographic. Quanto à obra de Dittborn, ocorre um processo semelhante. Em 1990, essas não eram imagens tão conhecidas sobre a alteridade, no entanto, está presente o contraste entre rostos, a ausência
e a presença, as duas realidades justapostas em forma de montagem.
No que tange ao aspecto de trânsito como material, tanto no caso de Dittborn
com as obras aeropostais quanto no caso de Consuegra com as residências internacionais, ambos transitaram entre múltiplas origens e destinos, nacionais, transnacionais e transoceânicos: Filipinas, Peru, Colômbia, Argentina, Chile, Espanha, para
151
enumerar alguns dos países vinculados. Elas transitaram mais amplamente do que
aquelas vinculadas ao contexto de produção, à imagem de origem, que, tendo conteúdos etnográficos, foram modificadas com os usos e a circulação que lhes foram
dados. Esses movimentos transnacionais são, por sua vez, trânsitos da imagem que
permitem olhares reatualizados.
concluSõeS
As imagens fotográficas que compõem as obras mencionadas partem de repositórios ou arquivos e estão integradas a um discurso e a uma forma de montagem
inseridas em obras de arte contemporânea, permitindo uma transição de suporte material das mesmas (passando de fotografias para outros suportes como fotocópias,
entre outros), devido à imigração, ou mesmo a um trânsito de conceitos de uma área
para outra (da antropologia para a arte).
Nesses casos, as imagens fotográficas passam a constituir um tipo de materialidade transitória que, por sua vez, contém mensagens particulares entorno da temática de raça, nação, exotismo, imaginários e alteridade. Em ambas as obras, a forma de
montagem dialoga com formas de relação e contraste entre umas imagens e outras,
com base no estranhamento e na familiaridade, como parte das experiências da imagem e da obra.
O trânsito da antropologia para a arte permite o trânsito da forma e do conteúdo das imagens. Esse cruzamento de olhares, lugares, conceitos e materialidades
evidencia os diferentes modos de ver (BERGER, 2006) com e entre as sociedades
(FREITAG, 2012).
Fica, portanto, um convite aberto para rastrear esse tipo de imagens, em que o
olhar acadêmico, com inquietude sobre a imagem, permite ver como essas se movimentam, inclusive nos espaços artísticos, onde lhes é dado um lugar de visibilidade,
formas de circulação e recepção. O uso destas imagens em contextos artísticos permite construir sentidos ou, pelo menos, colocá-las em diálogo com outras imagens e
com outros espaços, tais como produções do social.
obraS citadaS
CONSUEGRA, Nicolás. “Ausencias Paralelas, Zonas de Contacto” (2014). Impressão offset. 148
páginas. 25,3 x 17,5 cm.
DITTBORN, Eugenio. “Airmail painting nº 91. The 11th History of the Human Face (500 years)”
(1990). Pintura, costura, carvão e serigrafia em duas seções de tela sem tecer. 210 cm x 280 cm.
152
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a mulher e o trabalho doméStico: a maquiagem, a
coStura e a recluSão como gestualiDaDe em valéria
Sarmiento e letícia parente
ClauDia ValDés roJas1
No contexto do estudo e da discussão gerada pela relação entre arte e arquivo
na contemporaneidade e a patir da recuperação da obra das artistas latino-americanas,
Valéria Sarmiente, cineasta chilena, e Letícia Parente, videoartista brasileira, o objetivo do presente trabalho consiste em fazer um contraponto de suas obras, a fim
de definir as semelhanças e diferenças que apresentam ao abordar como temática
central – do ponto de vista feminista e político – a mulher, sua relação com o trabalho
doméstico e seu lugar na sociedade. Com esse propósito, este trabalho se concentra
na leitura e na análise crítica do filme La Dueña de Casa (A Dona de Casa), de Sarmiento (1975), e nos vídeos In (Em) (1975), Marca Registrada (1975) e Preparación
I (Preparação I) (1976), gravados por Parente.
Neste caso, ao estabelecer um cruzamento entre cinema e videoarte, certamente nos depararemos com dois tipos de imagens, que mesmo quando integram o
movimento em sua natureza, projetam e representam de maneiras diferentes – isto é,
desde suas especificidades técnicas e formais – comportamentos, situações e ações
arquetípicas vinculadas à mulher, dotadas de singularidade e expressividade estética. Poderosas, tais imagens, tanto no caso do curtametragem de Sarmiento como
da video-performance de Parente, hoje cobram validade e se tornam relevantes por
conterem e transmitirem diferentes ideias dando lugar a uma nova leitura e reflexão
sobre a situação e condição da mulher latino-americana na atualidade.
O interesse por essas artistas deve-se ao fato que, ao fazer uma leitura crítica
sobre as obras selecionadas, é possível reconhecer sintonias e interesses comuns,
que dão relevância e singularidade a seu trabalho artístico. Um dos aspectos comuns
– além da contemporaneidade de seu trabalho – está relacionado com o caráter feminino e político de suas obras e, nessa linha, a evidente inclinação de ambas por dar
1.
Claudia Valdés Rojas. Mestre pela Universidad Alberto Hurtado, Santiago de Chile.
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protagonismo às mulheres, situá-las no espaço/lugar doméstico e a partir daí incentivar uma reflexão ou questionamento sobre sua situação social. Nesse sentido, não
deixa de ser interessante que Valeria Sarmiento tenha feito um filme protagonizado
apenas por mulheres e que Letícia Parente, dada à sua condiçao de artista conceitual,
seja quem protagoniza e representa sua obra.
Quanto a isso, é importante ressaltar que esse interesse comum pela mulher,
que Sarmiento e Parente manifestam em suas obras, está de acordo, por um lado, com
os princípios da arte conceitual que, desde a década de sessenta, declarava-se político, antissistêmico, feminista e pacifista (LIPPARD) e, por outro, com a conjunção
que se produziu entre feminismo e cinema, no início dos anos setenta nos EUA e na
Europa (MULVEY).
Quanto à quem são e onde estavam as realizadoras dessas obras no momento
de sua criação, podemos esclarecer que Valeria Sarmiento, quando estava no exílio
na França, em 1975, fez La Dueña de Casa, um filme sobre o Chile, ambientado
nos tumultuosos dias do governo da Unidad Popular. Nele, Sarmiento discute um
tema que, de acordo com suas palavras, a obcecava: o fenômeno da mulher burguesa
posicionada no interior de sua casa, mantendo um diálogo político consigo mesma,
sem entender o que estava ocorrendo no mundo exterior (MOUESCA). Quanto à
Letícia Parente, é reconhecida nos anos setenta como pioneira da videoarte brasileira,
declarando o caráter alternativo, exploratório e inovador de sua obra, através da qual
manifesta abertamente sua crítica ao sistema político e sociocultural brasileiro.
Para dar início à análise das obras de Sarmiento e Parente, é importante destacar que, tendo isso em mente, recorremos a três ações domésticas que coincidentemente ambas as artistas representam, as quais se desenvolvem no interior do espaço
doméstico, a saber: a costura, a reclusão e a maquiagem. Pois bem, quando nos referimos a elas, as entendemos como ações que em sua representação – tanto no filme
de Sarmiento, como nas videoartes de Parente – vão além de sua utilidade como tarefas ou ações domésticas. Nesse sentido, e seguindo o conceito de gesto de Giorgio
Agamben, podemos afirmar que essas ações surgem da poiesis e das práxis que lhes
são inerentes, para se constituírem em gesto. Dessa forma, compreendemos o gesto
como medialidade pura, como um meio que se assume, se expõe e se singulariza
(AGANBEM), sendo, então, absolutamente expressivo. Porém, mais especificamente, tanto no filme de Sarmiento como nos vídeos de Parente, trata-se de imagens em
movimento, que, sendo técnicas, tornam-se livres para adquirir singularidade através
da expressividade dos recursos cinematográficos e audiovisuais.
repreSentação da maquiagem
A aplicação de cosméticos no rosto, é uma das ações arquetípicas que mais
está associada à mulher e que Valeria Sarmiento e Letícia Parente decidiram representar em suas obras. Não é por menos que Sarmiento inicia seu filme com um plano
155
sequencial (de aproximadamente quatro minutos) mostrando, em tempo real, uma
mulher realizando – com a habilidade que lhe dá a prática – uma ação cotidiana,
na qual poderíamos reconhecer certos traços rituais com os quais muitas mulheres
provavelmente se identificam. O que vemos, através de um plano fixo, nessa cena
íntima, é uma mulher madura que se prepara para sair. Ela veste roupas íntimas e um
colar de pérolas. Está sozinha num banheiro, diante do espelho que nos revela sua
aparência e as etapas que segue para destacar seus traços e realçar sua beleza. Dessa
forma, Sarmiento nos apresenta com singularidade Inês, uma típica mulher dos anos
setenta, mãe, dona de casa, pertencente ao setor economicamente favorecido da sociedade chilena, que consequente e abertamente se declara contrária ao governo da
Unidad Popular. Será, então, a partir de uma pequena anedota e do uso particular
da linguagem, que reconheceremos Inês como uma mulher classista e autoritária,
uma personagem que representa as mulheres direitistas, que incitaram e apoiaram
os militares para realizarem o golpe de estado de 1973. Desse modo, podemos dizer
que, através da revelação dessa personagem feminina, Sarmiento insinua uma crítica
à natureza classista do sistema sociocultural chileno.
No que diz respeito à ação de maquiar que Letícia Parente representa em Preparación I, podemos destacar que, em comparação com a obra de Sarmiento, há
vários pontos em comum. De fato, o que vemos nesse vídeo é o desenvolvimento da
mesma ação, mas com variantes importantes. A cena é breve e ocorre em tempo real.
Através de um plano fixo, presenciamos a imagem, em branco e preto, de uma mulher adulta – a própria Parente – num banheiro, posicionada em frente a um espelho.
Como no filme de Sarmiento, o espelho, nesse caso, constitui um objeto fundamental,
pois nos revela, através do desdobramento de sua imagem, as etapas que a artista
segue em sua ação preparatória; é o próprio corpo e rosto da artista que se convertem
em suporte de sua ação artística, através da qual faz uma paródia ao ritual de beleza
tal como presenciamos no filme de Sarmiento. A intenção da paródia fica evidente no
aspecto caricaturesco que adquire o rosto de Parente, depois da singular sessão que
inclui maquiagem e fita adesiva. Assim, a ação da artista constitui uma gestualidade,
que gera e direciona uma crítica ao narcisismo e aos cânones de beleza impostos à
mulher, exigindo-lhe uma aparência de acordo com o que estabelecem.
repreSentação da coStura
Para a compreensão da sequência da costura em La Dueña de Casa, é preciso
ter em mente que a ação se desenvolve no contexto de escassez de alimentos e da
articulação do mercado negro. Sob essas circunstâncias, Isabel, a vizinha da dona de
casa – que é partidária do governo esquerdista de Allende – bate à porta para lhe pedir uma xícara de açúcar. A interação entre as mulheres desenvolve-se enquanto Inês
realiza um trabalho de costura, ação que não é interrompida e na qual ela permanece
o tempo todo. Dessa forma, começa um diálogo bastante singular, porque percebe-
156
-se a distância física e política que separa as mulheres. Nesse caso, a solidariedade
esperada que supostamente deveria surgir em tempos de crise econômica, entre as
mulheres que são mães, vizinhas e donas de casa, não ocorre. Isto porque as relações
de vizinhança encontram-se contaminadas pelo partidarismo e polarização política
que prevalecia no ambiente político e social do Chile na década de 1970.
Por outro lado, para realizar uma leitura compreensiva do vídeo Marca Registrada, de Letícia Parente, é preciso esclarecer que ele foi realizado no contexto da
política intervencionista que os EUA implantavam na América Latina; não apenas
no âmbito político, mas também no econômico através de empresas multinacionais.
Dessa forma, podemos dizer que a ação performática de Parente termina com a costura realizada na planta do seu pé – onde escreve a legenda “Made in Brazil” – dando
a ideia de que nós, seres humanos, somos mais um produto, indiferenciado, dentro de
um sistema econômico globalizado, neoliberal, sustentado pelo aumento da produção
e do consumo. Essa ideia adquire mais sentido, ao considerar que o Brasil, em plena
década de setenta, atravessava um período de forte industrialização visando a fortalecer seu lugar como primeira potência econômica na América Latina. Nesse sentido,
podemos dizer que a ação performática de Letícia Parente, através da mortificação de
seu corpo que é literalmente costurado por ela mesma, aumenta seu caráter transgressor que, por sua vez, potencializa a força da mensagem transmitida.
repreSentação da recluSão
A reclusão, no caso do filme de Sarmiento, não é representada como uma ação
propriamente dita. Em vez disso, trata-se de uma sensação que é transmitida através
do uso particular que Sarmiento confere aos recursos cinematográficos. Nesse caso,
a gestualidade da reclusão é revelada pelo uso particular que é dado à câmara. Se
prestarmos atenção, perceberemos que a câmara permanece, ao longo do filme, no interior do espaço doméstico, sem mostrar o exterior, mesmo quando esses são citados
em momentos diferentes fora do campo. Nesse sentido, podemos dizer que a história do filme transcorre entre quatro paredes, provocando certo efeito claustrofóbico.
Assim, Sarmiento nos nega a possibilidade de sair do interior doméstico, obrigando-nos a nele permanecer, o que pode ser interpretado como uma forma de perceber o
viés político de alguém que não quer ver além de sua realidade; ou então, como uma
forma de mostrarmos e tomarmos consciência de que uma mulher trancada entre as
quatro paredes de sua casa não conta com a perspectiva necessária para participar
ativamente de temas políticos, sociais e econômicos, pois se encontra privada não
só do conhecimento sobre o mundo exterior, mas também do conhecimento sobre si
mesma e sua própria condição.
Quanto à obra de Letícia Parente intitulada In, a mensagem é severa e direta.
Nesse caso, a reclusão doméstica, representada numa ação performática que dura
pouco mais de um minuto, desenvolve-se no interior de um plano que se limita a
157
acompanhar a ação. Novamente, encontramos o gesto audiovisual no desenvolvimento de uma ação pura, que a princípio gera surpresa e perplexidade pela sua aparente inutilidade e falta de sentido, mas que a seguir choca e impacta pela mensagem
nela contida. Além de representar literalmente a ideia de reclusão, entendida como
privaçao da liberdade dentro do espaço doméstico, entendemos que a artista faz alusão – através da ação de se pendurar –, por um lado, à ideia de coisificação da mulher,
a qual aparece como um peça de roupa pendurada no armário; e, por outro, a outro
tipo de privação, a da vida através do suicídio. Disso podemos abstrair, num sentido
metafórico, que a reclusão doméstica priva qualquer mulher de sua liberdade a ponto
de lhe tirar a vida.
Assim, ao contrastar as representações das ações domésticas realizadas por
Sarmiento e por Parente, podemos afirmar que, em termos formais e de conteúdo,
encontram-se em perfeita sintonia. Mas, para além dessa sintonia, o interessante no
presente trabalho foi poder visualizar e distinguir como ambas as artistas articularam
e conjugaram suas ideias com as possibilidades oferecidas pelos recursos cinematográficos e audiovisuais que dispunham, dando lugar a formas artísticas únicas, inovadoras e exploratórias que problematizam em seu momento temáticas femininas,
políticas e sociais. Consideramos que tais temáticas ainda se mantêm válidas, pois as
obras de Sarmiento e de Parente nos levam a parar para refletir sobre o quanto melhorou a situação das mulheres, desde os anos setenta até hoje, e sobre o lugar que a
mulher ocupa atualmente nas sociedades latino-americanas.
referênciaS
AGAMBEN, G. Medios sin fin: Notas sobre la política. Valencia: Pre-Textos, 2001.
LIÑERO, G. Apuntes para una historia del video en Chile. Santiago: Ocho libros, 2010.
LIPPARD, L. Seis Años: La Desmaterialización del Objeto Artístico de 1966 a 1972. Madrid:
Ediciones Akal, 2004.
MOUESCA, J. Una cineasta que no quiere ser transparente: conversación con Valeria Sarmiento,
Revista Araucaria de Chile, Santiago, nº 31, p. 113-122, 1985.
MULVEY, L. Cine feminismo y vanguardia, Youkali, Madrid, nº 11, p. 11-25, jul. 2011. Disponível
em: <http://www.youkali.net/index11.htm>.
OLHAGARAY, N. Del video arte al net art. Santiago: Lom Ediciones, 2002.
TAYLOR, D. El archivo y repertorio: La memoria cultural performática en las Américas, Santiago: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2015.
a crítica como eStímulo para a profiSSionalização
da videoarte no braSil
thaMara VenânCio De alMeiDa1
PatriCia ferreira Moreno Christofoletti2
Algumas das primeiras produções de vídeo no Brasil com fins artísticos têm
seu início quando um grupo de artistas, interessados na investigação de novas mídias
e de novos conceitos para a arte, começam a utilizar o suporte em 1974. São artistas
experimentais do Rio de Janeiro, sob a liderança da artista já consagrada no período,
Anna Bella Geiger3, que com pesquisas em concomitância com a arte internacional,
produzem algumas das primeiras obras utilizando o vídeo com intenção artística,
ficando assim conhecidos como os pioneiros da videoarte no Brasil. Dessa formação
inicial, temos a já citada Anna Bella Geiger, mais três de seus muitos alunos do seu
ateliê no MAM-RJ, Ivens Machado, Sônia Andrade e Fernando Cocchiarale. No ano
seguinte, em 1975, Leticia Parente, Miriam Danowski e Paulo Herkenhoff, que também pertenciam ao grupo, começariam também a produzir obras utilizando o vídeo.
A prática da videoarte no Brasil, em seu início, passou por muitos obstáculos.
Os primeiros artistas que aqui resolveram utilizar o suporte para seus trabalhos artísticos, tiveram que lidar com inúmeras dificuldades, desde a falta de equipamento
para realizar suas produções, muito caros à época, até a falta de espaços para veiculação constante.
1.
2.
3.
Thamara Venâncio de Almeida é mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e
Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Patricia Ferreira Moreno Christofoletti. Professora do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É líder do Grupo de Pesquisa Arte em Movimento: Filme
de Artista e Videoarte no Brasil.
É importante salientar que Anna Bella Geiger já havia trabalhado anteriormente com o Super-8, e
alguns desses trabalhos foi apresentado na Expo-Projeção Grife 1973, que aconteceu em São Paulo.
O Grife, Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais, foi fundado em 1972, e
tinha como figura principal Abrão Berman, e fomentava a produção em Super-8 e a formação de
superoitistas. Os festivais organizados pelo grupo ocorreram de 1973 a 1983.
160
Alheio aos discursos que fomentavam e apoiavam a prática, muitos críticos
levantaram importantes questões da utilização desse suporte por artistas no Brasil na
primeira metade da década de 1970. A maioria das produções feitas até 1975, foram
possíveis graças a Jom Azulay, que emprestou sua câmera trazida dos EUA e filmou
para muitos artistas pioneiros seus trabalhos. O crítico de arte Francisco Bittencourt,
em texto publicado no jornal Tribuna de Imprensa em 24 de fevereiro de 1975, fala
da problemática de artistas brasileiros trabalhando com os novos “media” – no caso, a
fotografia, o audiovisual, o Super-8 e o videoteipe –, questionando a falta de recursos
e dificuldades aqui existentes para trabalhar com esse tipo de arte, em contraponto
com os grandes espetáculos tecnológicos que estavam sendo montados nos EUA e
na Europa Ocidental. A falta de estrutura das instituições artísticas da época, para se
exibir esse tipo de arte, era um fato: basta se lembrar do ocorrido na Bienal de 1973,
que por problemas técnicos, os videoteipes trazidos de artistas norte-americanos, não
puderam ser exibidos. Ainda em 1977, alguns artistas se queixavam:
A carência de infraestrutura para a apresentação do vídeo ao
público é uma séria dificuldade: - Com exceção do Museu de
Artes Contemporâneas da USP, não existe nenhuma outra instituição ou galeria que seja proprietária de uma aparelhagem
de vídeo. (COCCHIARALE apud MARA, 1977)
A respeito do videoteipe, o crítico cita os pioneiros Anna Bella Geiger, Ivens
Machado, Sônia Andrade, Ângelo de Aquino e Fernando Cocchiarale, dizendo ter
visto alguns dos videoteipes produzidos por esse grupo na casa da própria Anna Bella. A impressão que o crítico relata em relação a essas produções, era a de mero
ensaio, porém diz ser importante a atitude desses artistas, que segundo ele, não pretendiam ofuscar, e sim criar um nível lúcido de debate e novas perspectivas para as
suas criatividades. Embora sua crítica seja realmente rígida, deixa bem claro que:
Com isto não se pretende que o artista deva se condicionar a
um estado de não pesquisa e desinteresse pelo que se passa
no mundo, mas sim que se mantenha sempre alerta e consciente de que nós ainda não temos os instrumentos necessários para as grandes demonstrações pirotécnicas tentadas
por uma pequena classe de mandarins, que depois de alguns
anos lá fora voltam deslumbrados e dispostos a nos fazer
engolir, geralmente via coluna social, o seu produto infantil
e canhestro como a palavra de ordem para a arte nacional.
(BITTENCOURT, 1975)
161
Na visão do crítico, os artistas brasileiros daquele período, ao optarem por
esses novos “media”, teriam que se aterem a consciência de que no Brasil não havia
recursos suficientes para utilizá-los de forma plena, e que os artistas sérios e pesquisadores, mais interessados em profundidade do que brilho, não se deixariam enganar,
se ofuscando com o que era produzido e desenvolvido lá fora. De exemplo, além dos
já citados que utilizaram o videoteipe, ele aponta Frederico Moraes, que já utilizava
de forma madura o audiovisual:
Aliás, artistas mais lúcidos e reflexivos, usando tais meios
expressivos, como Frederico Moraes, se atêm ao mínimo indispensável para conseguir seus efeitos, preferindo trabalhar
numa espécie de corpo a corpo com a tecnologia para arrancar
dela o máximo sem ter de recorrer ao último tipo de aparelhagem. (BITTENCOURT, 1975)
No entanto, além dos poucos citados, que de acordo com o crítico procuravam
utilizar o videoteipe de forma responsável, o problema estaria aumentando, pois estava despertando o interesse de uma gama sempre maior de artistas, citando a seguinte
frase de Luiz Alphonsus:
O videoteipe é inviável para o brasileiro por ser um artigo
de luxo. O aparelho mais rudimentar custa 20 mil cruzeiros.
Além do mais, o VT é muito feio. Muito mais interessante é
o super-8, mas para ser utilizado como cinema mesmo e não
para veículo das artes plásticas. O negócio é tratamento de cinema. Mudar o suporte para continuar dizendo a mesma coisa
não adianta nada; antes continuar fazendo desenho ou pintura.
(ALPHONSUS apud BITTENCOURT, 1975)
Frederico Morais em artigo publicado no jornal O Globo, em 29 de janeiro de
1976, intitulado “Vídeo-arte: Revolução Cultural ou um título a mais no currículo dos
artistas?”, questiona o distanciamento crítico dos artistas em relação às características
tecnológicas e fenomenológicas do meio. Para o crítico, na época, as produções estariam se reduzindo a meras performances, sobrando apenas a ação, o evento e o ritual,
sendo a reação do público, em seu ponto de vista, algo importante a ser discutido:
A reação diante da videoarte é geralmente negativa. Consideram-na monótona devido à repetição exaustiva da mesma
imagem, ao seu caráter estático (contra o dinamismo da TV comercial) devido, enfim, ao desconforto que regra geral acom-
162
panha suas projeções, desconforto que é, na verdade, mais psicológico que real, tendo em vista a maneira descontraída ou à
vontade com que vemos TV em casa. (MORAIS, 1976)
Como vimos, a crítica mais frequente a videoarte, acusa os realizadores de
estarem trabalhando com um modelo de expressão importado e não relacionado com
a nossa realidade, e condenam a sofisticação e o alto custo de produção do trabalho.
Assim como os críticos, os artistas também se queixam da carência de infraestrutura
necessária para a apresentação dos vídeos ao público, o que poderia ser associado
com algumas das causas da videoarte não ter encontrado seu público na época.
Alberto Mara, no artigo “Três artistas se defendem criticando quem os ataca” publicado no jornal O Globo em 11 de junho de 1977, reúne depoimentos de três artistas
do vídeo: Paulo Herkenhoff, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale. Herkenhoff,
quando questionado sobre a videoarte ser um modelo de expressão importado, ataca:
Na realidade, nosso trabalho nunca foi analisado e criticado,
a não ser de uma maneira impressionista. Acho mesmo que
essas críticas que nos são feitas revelam a pobreza da crítica
de arte no Brasil, ou de como essa crítica está instrumentalizada para a consagração de nomes e é usada para bloquear a
introdução de novas linguagens no circuito. Porque isso poderia desmerecer a arte-mercadoria. A crítica tacha a vídeo-arte
como sendo uma importação de modelo, ou arte do hemisfério
norte. (HERKENHOFF apud MARA, 1977)
Talvez, muito por incômodo da crítica, e preocupados com tais comentários,
ou também pelas dificuldades técnicas e da escassez de equipamentos, iniciam-se
vários esforços para oferecer cursos técnicos, criar setores ou montar produtoras,
tudo para enfrentar a falta de familiaridade e levantar reflexões sobre o suporte. Em
1977, outros esforços começam para a profissionalização desse meio, que irá se efetivar na década de 1980. De acordo com Cacilda Teixeira da Costa em depoimento a
Fernando C. Lemos em 26 de junho de 1977 ao jornal Folha de S. Paulo, percebemos
que o oferecimento, pelo MAC-USP, de cursos técnicos para dar suporte aos artistas
na utilização da aparelhagem, e dispor aos interessados um equipamento, que fora
adquirido por eles em 1976, foi muito importante para o amadurecimento da prática
pelos artistas brasileiros. O cenário posterior a isso, que envolve as práticas com o
vídeo, muda radicalmente, abrindo o campo para novas experimentações com a linguagem. Em relato sobre esse período, e em relação às contribuições proporcionadas
pelo MAC-USP, Cacilda Teixeira da Costa constata:
163
No MAC/USP, a compreensão de sua operacionalidade foi
aprofundada e contribuiu para que uma nova geração surgisse
nos anos 80, incorporando com muito pique as conquistas dos
pioneiros. Afinal, como lembra Regina Silveira, “no fundo
as dificuldades são as da linguagem, não as do meio. Fala-se muito das dificuldades e dos custos de fazer videoarte e
isso mascara o verdadeiro problema, que é o da comunicação
artística”. Um problema que os verdadeiros artistas sempre se
encarregam de resolver. (COSTA, 2007, p. 73)
Dentre as críticas apresentadas no seguinte estudo, muitas contribuem para o
resgate dos discursos da época, que em diversos casos são perdidos ou esquecidos,
cumprindo o trabalho de complementar os estudos sobre videoarte, apresentando as
diferentes facetas que se deu em seu processo de consolidação aqui no Brasil. Podemos
encontrar, nessas críticas, um dos vários motivos pela busca de profissionalização e por
uma autonomia do campo que será efetivada na década de 1980, com a criação de espaços próprios para exibição, com a profissionalização de artistas nesse meio, criação de
produtoras, tentativa de criação de um mercado próprio, entre outros fatores.
referênciaS
AGUIAR; Carolina Amaral de. Videoarte no MAC-USP: o suporte de idéias nos anos 1970. Dissertação de mestrado. Programa Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo; 2007.
BITTENCOURT, Francisco. “Expressão, Arte e Tecnologia”. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 24 mar. 1975
COCCHIARALE, Fernando. Primórdios da videoarte no Brasil. In: Made in Brasil: Três décadas
do vídeo brasileiro. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007. pp. 61-68
COSTA, Cacilda Teixeira da. Videoarte no MAC. In: Made in Brasil: Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007. pp. 69-73
FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XII Bienal de São Paulo: Catálogo. São Paulo: FBSP,
outubro/novembro, 1973. 305 p.
FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no museu. São Paulo: Editoras
Iluminuras, 1999.
FREIRE, Cristina (Org.). Walter Zanini: Escrituras críticas. São Paulo: Ed. Annablume / MACUSP, 2013.
GEIGER, Anna Bella. Anna Bella Geiger: Um depoimento. In: Made in Brasil: Três décadas do
vídeo brasileiro. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007. pp. 75-80
LEMOS, Fernando C. “Vídeo-arte: uma história que está começando”. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 26 jun. 1977.
164
MARA, Alberto. “Video-arte em debate: Três artistas se defendem criticando quem os ataca”. O
Globo, Rio de Janeiro, 11 jun. 1977.
MORAIS, Frederico. “Vídeo-arte: Revolução cultural ou um título a mais no currículo dos artistas”. O Globo, Rio de Janeiro, 29 jan. 1976.
a “reviSta da pleura molhada”1
Paola Mayer fabres2
Paulo silVeira3
Punho nasceu em 1973 e marcou o início de uma safra de periódicos da cidade
de Recife. Até hoje pouco estudada – salvo por comentários pontuais presentes em
pesquisas voltadas às documentações dos anos 1970 – a revista, organizada por Paulo
Bruscky, Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo e Arnaldo Tobias, produzida clandestinamente pelos bares da resistência, foi símbolo da luta contra a repressão, unindo
intelectuais da contracultura. A revista teve seis edições, de zero à cinco, realizada
inicialmente por meio do mimeógrafo à álcool. Sua periodicidade foi incerta – contou
com quatro edições na década de 1970 e teve sua última edição lançada em 1996.
A partir do quarto número, reproduziu-se em ofsete. Mesmo tendo em suas edições
finais um perfil mais internacional, Punho começou sendo feita pelas próprias mãos
dos intelectuais de Recife dos anos 1970 e foi produzida nos locais onde o debate
político, social e cultural tomava conta.
Paulo Bruscky, que já vinha consagrando parceria entre o campo artístico e
literário, uniu personagens e linguagens de ambas vertentes com Punho. Jaci Bezerra,
poeta de Alagoas, e Alberto Cunha Melo, escritor e jornalista pernambucano, ambos
das páginas do Diário de Pernambuco, da Fundação Joaquim Nabuco e precursores
do movimento das Edições Pirata (1979) abriram portas às publicações de caráter
marginal. Arnaldo Tobias, também poeta pernambucano da Geração de 65, foi ficcionista, escritor, editor e artista gráfico – outra figura emblemática da cena literária
1.
2.
3.
O presente artigo configura parte da pesquisa de mestrado intitulada Diálogos Impressos: Periódicos
de Artistas no Brasil anos 1970, entre Casos, Agentes e Cenários.
Paola Mayer Fabres. Mestre em Artes pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Editora da revista digital Arte ConTexto.
Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira. Professor adjunto do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – (UFRGS). Membro do Comitê Brasileiro de História da Arte
e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Pesquisador CNPq.
166
de Recife. Bruscky, Bezerra, Melo e Tobias, unidos não apenas por uma sincronia
cultural e intelectual, mas também por seus posicionamentos políticos, aproveitavam
encontros informais nos botecos pernambucanos para dar forma à revista, marcada
pela gestualidade, pela construção espontânea e pelas reuniões descontraídas entre
artistas de diversos campos.
Nós íamos de bar em bar, levando stencil e papel. Íamos criando tudo. Rodávamos e grampeávamos a revista no mesmo dia.
[...] Quem participava era o pessoal que andava pelo bar. Nós
não convidávamos previamente. Tinha gente da poesia, da
música, da literatura. Tinha gente que nem queria participar.
Nós chegávamos e dizíamos que estávamos fazendo uma edição de uma revista de artes visuais e quem topava entrava na
história. (BRUSCKY, 2015, p. 259)
Punho tinha que ter uma produção econômica, cabendo no bolso de quem a
organizava, e o mimeógrafo era uma das alternativas. O mimeógrafo não era visto
com bons olhos nesses anos. O objetivo do governo, desde o acirramento da censura a
partir do AI-5 decretado em 1968 era controlar os meios de reprodução. Fiscalizando
os aparelhos reprodutivos, era possível inspecionar tudo o que circulava a título de
informações. Assim, militares começaram a confiscar o mimeógrafo, pedindo o registro e a entrega dos aparelhos para o Estado. “Era mais perigoso, na época, ter um
mimeógrafo do que uma arma de fogo em casa” (BRUSCKY, 2015, p. 259). Mesmo
assim, por sua viabilidade econômica e facilidade de produção, o mimeógrafo abraçou as primeiras reproduções da revista tornando-se uma forma de driblar a censura.
Tendo em vista a necessidade de se produzir de forma escondida e silenciosa, em
locais onde a censura não chegava com facilidade, os artistas idealizadores do projeto
se deslocavam para os bares de oposição ao governo, para os botecos de resistência,
para a criação. Bares como Calabouço, Mustangue ou Mangueirão, situados próximos à Fundação Joaquim Nabuco, tinham esse perfil. Lá, eles encontravam seus
colegas para discutir e produzir ao mesmo tempo. A conversa embalava a produção.
Nas primeiras edições, como o próprio nome da publicação indica, o processo
de criação era todo manual. Era tudo feito a punho e na hora. A mão comandava os
sentidos, traduzindo visualmente os pensamentos que iam surgindo. Não havia a preconcepção. Não havia o projeto ou o planejamento prévio. O trabalho era anunciado
no mesmo instante em que era realizado e a experiência coletiva era o combustível
do resultado gráfico. Desde o primeiro número, Punho trazia o subtítulo: a “Revista
da pleura molhada”. O apelido, criado durante os encontros, fazia analogia ao álcool
(consumido pelos artistas durante a produção e utilizado para a reprodução no mimeógrafo). O álcool, visto como uma bebida subversiva, servia como alimento para a
167
criação, para a proliferação das cópias e, ao mesmo tempo, corria pelo sangue desses
artistas, por canais escondidos – como proliferação de ideias.
Chamávamos “Revista da pleura molhada”, a gente inventou
isso na época. Como um slogan. É tipo uma tuberculose. A
pleura é a membrana que envolve o pulmão. Já que era uma
revista feita a álcool – e o álcool corre internamente pelos vasos sanguíneos quando a gente bebe –, a gente fez a mesma
conotação que o mimeógrafo a álcool, essa revista interna,
subterrânea, como o álcool que corria pelo sangue. (BRUSCKY, 2015, p. 260)
As primeiras edições possuíram uma tiragem menor. Tinham um perfil mais
gráfico, mais gestual, uma vez que eram feitas à mão, em mesa coletiva. A ideia iconográfica da palavra “punho”, em termos gerais, pode referir-se a uma mão cerrada,
levantada, aludindo à força, à rebelião e ao combate; possível metáfora ao posicionamento social de reivindicação à repressão estatal em voga. Essa imagem de “punho ao
alto” foi bastante presente nas edições do periódico. No caso da capa da edição zero
(1973), um punho emerge do solo e esparrama raízes. Um punho gigante, orgânico,
onírico e aglutinador, habitado socialmente, fazendo referência à colaboração coletiva.
Em Punho n.2, entraram em cena outros colaboradores4 que acentuaram o
tom de ironia presente nas páginas. Marcos Cordeiro, artista e poeta filho do escritor
Waldemar Cordeiro, “presenteou” as páginas do miolo da revista com a ilustração
de um “troféu n.7”, referindo-se à parceira Livro 7, e assinou em tom jocoso: “sob
um punho e bêbado na tarde, noite, dezembro 73” (PUNHO, 1973, p. 5). Adiante,
o grupo criou o conjunto de regras e diretrizes Anotações: Arte é facil, elencando
critérios “didáticos” sobre o que pode ou não ser considerado arte. Ao elencar normas propositadamente contraditórias, os artistas jogaram com a noção de definição
e consagração artística: “(1) Todo retângulo é arte; (2) nenhum retângulo é arte; (3)
só um retângulo é arte”, articulando texto e “representações gráficas explicativas
sobre o assunto”. Na página seguinte, Bruscky apresentou um desenho figurativo
de traços rápidos e personagens “palitos”, com onomatopeias que detalhavam a
cena. O artista assina: “antigamente eu desenhava assim. Hoje eu persisto, Paulo
Bruscky, 1973, véspera de 1974”.
As edições posteriores vão trazendo novas características. Nelas, ingressam
artistas de outras localidades. Passam do perfil local, oriundo do encontro e do bate-papo, para um estilo internacional, a partir do sistema de trocas postais. Como a
4.
João Câmara, Delano, Angelo Monteiro, Aloísio Braga, Paulo Bruscky, Alberto Cunha Melo, Audálio, Amada, Ângelo de Goiás, Domingos, Jaci Bezerra, Marcos Cordeiro, Tarcisio Pereira, Sérgio
Lemos, Zé Mario e a livraria Livro 7.
168
revista n.4 foi impressa em ofsete, possibilitou-se uma circulação mais ampla e com
trabalhos de artistas de longe. Nessas últimas edições, imprimiu-se em média de cem
a duzentos exemplares, circulação maior que os números iniciais. Mas não foi apenas
a circulação de Punho que sofreu alteração com a produção em ofsete. A estética da
publicação transformou-se consideravelmente. Anteriormente, prevaleciam soluções
gráficas manuais e, aos poucos, novas linguagens como a datilografia, a fotografia,
a colagem e o xerox foram entrando em cena. Não havia restrição de linguagens. A
revista número quatro teve uma disseminação mais ampla e um maior número de
participantes5. A reunião de artistas brasileiros confinados no contexto de enclausuramento sociocultural fomentou discursos de bandeira. É possível perceber essa veia
política nas páginas criadas por Unhandeijara Lisboa e Sandra Craveiro de Albuquerque, cujas composições visuais remetem à repressão dura do Estado sobre a livre
expressão. O trabalho de Unhandeijara inclusive aponta a atividade postal como uma
estratégia de fuga contra o silêncio exigido pelo poder, também por parte dos presos e
exilados políticos, louvando a arte como possibilidade de liberdade, independente do
confinamento da prisão. Na frase escrita: “Now, 100.000 friends all over the world;
art is freedom, freedom is life” (“Agora, 100.000 amigos ao redor do mundo; arte é
liberdade, liberdade é vida”), o artista coloca a ideia de arte como comunicação a favor da liberdade. Através dela, cria-se uma rede de amigos. Ironia e irreverência estão
presentes principalmente no trabalho de Montez Magno – reapropriação da Monalisa de Leonardo da Vinci (já apropriada por Duchamp), assinada como L.O.U.C.A.
– assim como nas páginas pensadas por Aristides Klafke – que situa intelectuais e
escritores (Mallarmé, Joyce, Maiakóvski e Breton) como “procurados pelo polícia”,
insinuando a realidade de um contexto onde o “pensar” tornou-se uma atitude criminosa e que deveria ser contida. Poem limited to sixty lines, trabalho de Paulo Bruscky
pensado para as páginas da revista, lembra da obra de John Cage em uma interpretação gráfico-visual. Bruscky brinca com o “silêncio” da poesia: o espaço visual da
página que, com linhas vazias, insinua um poema ausente. Como escrever sem usar
letras ou, ainda, como marcar a presença de um poema sem palavras? Em linhas cujas
frases são ocultas, encontra-se a insinuação de um poeta – forçosamente – calado.
É válido marcar a importância da palavra (ou de sua ausência), não apenas
nessa como nas demais edições da revista Punho. A linguagem como elemento criativo colabora com a criação de uma rede de significantes. Essa é uma característica
marcante dos impressos do período. Para Glória Ferreira, essas publicações alternativas em geral apontam, de forma radical, “o deslocamento da palavra, presente já em
outras estratégias poéticas, para o interior da obra como parte constitutiva de sua materialidade e de seu mecanismo operatório” (FERREIRA, 2009, p. 313). Nesse tipo
5.
Aristides Klafke, Pedro Osmar, Wilson Araújo, Silvio Spada, J. Medeiros, Luiz Guardia Neto, Sandra
Albuquerque, Unhandeijara Lisboa, José Alselmo Alves, Marcos Pinto, Ypiranga Filho, Carlos Humberto Dantas, Ivan Mauricio, Leonardo Frank Duck, Falves Silva, Daniel Santiago, Abraão Chargorodsky, Montez Magno, Marcos Cordeiro, Rita Redaelli, Pawel Petasz, Bill Gaglione e veteranos.
169
de produção de impressos, a partir de recursos que partem apenas do entrosamento
verbo-visual, a articulação imagética e textual se torna o combustível para a geração
de sentidos. O artista que investe no pensamento sobre a folha, nos periódicos alternativos, documentos ou postais, carrega consigo o interesse pela manipulação de
códigos visuais, responsáveis por acionar mensagens para a comunicação. Além do
mais, esses discursos poéticos eram reverberados à distância, por diversas localidades, já que a circulação por canais subterrâneos era parte constitutiva do trabalho em
si. De acordo com Walter Zanini, o “mailartista” (como estratégia cultural) estava
mais interessado no mundo dos signos e das linguagens como forma de interagir no
mundo do que na manipulação de objetos, pois “a passagem do mundo das coisas
para o mundo dos signos oferece uma maior operacionalidade com um custo mínimo
[...], onde desenvolve uma forte tendência à linguagem retórica para veicular sua
ideologia artística” (ZANINI, 2010, p. 81).
Duas décadas depois do nascimento do impresso, editou-se a última edição,
no ano de 1996. Em tom de homenagem e saudosismo, a última edição lembra, já na
capa, a marca da publicação: uma produção por várias mãos, onde punhos se elevam
em nome da criação coletiva e da reivindicação política e cultural. A última edição
também apresenta um perfil de assemblagem6. Alex Bracho expôs uma colagem que
abraçava signos da cultura de massa, a partir de uma composição que remetia à estética dadaísta em entrosamento com a visualidade pop. Em seu trabalho, percebe-se o
avanço histórico-temporal da sexta edição de Punho, já que se encontram presentes
referências próprias da era da globalização, tais como a linguagem multimídia e a citação do sistema operacional Windows. Também a partir do universo da colagem e da
fotomontagem, Arthur Gomes e Cídia Peixoto construíram imagens onde recortes de
jornal, fotografias antigas, manchetes e escritos somam-se, formando um aglomerado
de mensagens e livres associações, como uma pluralidade de significados que coexistem em um único significante. O retrato de Oswald de Andrade convive em sintonia e
estranhamento com imagens publicitárias comerciais e pinturas antigas. A aproximação de objetos simbólicos tão distantes agrega ao trabalho o espírito iconoclasta e até
irônico, a partir da criação de um alto coeficiente de impureza assumida. Nesses trabalhos, a articulação de elementos distintos, quase contraditórios, encontram-se em
harmonia, em acordo com o princípio pós-moderno de formulação de imagem; uma
maneira de refletir sobre a complexidade de signos e sentidos no contexto da vida no
fim do século, já que a cultura contemporânea vinha se empenhando cada vez mais
6.
O conceito de assemblagem consiste em um grupo de contribuintes que apresentam um número
específico de cópias do seu trabalho para um editor central que, por sua vez, reúne uma cópia de
cada trabalho dos artistas participantes para desenvolver um “produto-assemblagem”. O número de
artistas que submetem seus trabalhos definirá o número de páginas de cada edição. A apresentação
final varia de acordo com cada revista. Algumas apresentam folhas soltas em seu interior, outras
são grampeadas, outras são encadernadas ou, ainda, tornam-se uma série de trabalhos alocados por
distintos recipientes. (PERKINS, 1997).
170
em ser formulada a partir de acúmulos e sobreposições de referências, mais do que a
partir de processos de seleções e exclusões. Assim, nesses trabalhos, a fotografia aparece como operação técnica, semântica e simbólica. Evidencia-se relações existentes
entre o universo cult e o popular, sem escrúpulos de contágio.
Punho surgiu a partir de um projeto aberto e criativo. “Não havia uma definição. [...] A fotografia, do lado do trabalho com uma pegada abstrata, ao lado de um
poema visual. Não existia uma linha de trabalho pré-estabelecida. Aceitava-se tudo
e todo tipo. Nada ficava de fora. O que você recebia, você publicava” (BRUSCKY,
2015, p. 264). Universos gráficos distintos conviveram juntos, dividindo páginas.
Uma mesma encadernação cedeu espaço a poemas visuais, construções textuais literárias, trocadilhos políticos, imagens de contestação e ironia. Entre esboços, rabiscos despretensiosos e elaborações visuais mais complexas, Punho nasceu de vários
punhos. Mesmo com tiragens tímidas e uma produção precária, rodou endereços e
aproximou artistas, escritores e poetas. Como afirma Paulo Bruscky (2015, p. 264)
em entrevista para a presente pesquisa, eles não estavam atrás de uma única estética.
O que eles queriam era “mixturar” tudo. “Mixturação” com “x”, mesmo, “coletividade e liberdade ao mesmo tempo”.
referênciaS
BRUSCKY, Paulo. Recife, 1 abr. 2015. Entrevista concedida à pesquisadora.
FERREIRA, Glória. Arte como questão: Anos 70. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2009.
PERKINS, Stephen. Assembling Magazines. Londres: Plagiarist Press, 1997.
BEZERRA, Jaci; BRUSCKY, Paulo; CUNHA MELO, Alberto; TOBIAS, Arnaldo. Punho: A revista da pleura molhada. Volume zero, um, dois, três, quatro e cinco. Recife, 1973-1996.
ZANINI, Walter. A arte postal da busca de uma nova comunicação internacional. In: ALVARADO,
Daísy Valle Machado Peccinini de. Arte novos meios/multimeios: Brasil 70/80. São Paulo: Fundação Armando Alvares Penteado, 2. ed., 2010, p. 81-82.
emmanuel naSSar e a viSualidade amazônica
(1979-1984)
gil Vieira Costa1
A “visualidade amazônica” é um conceito surgido em Belém, entre as décadas
de 1970 e 1980, referido a culturas visuais próprias de populações suburbanas amazônicas. Tal conceito alimentou uma produção cultural variada. Emmanuel Nassar
(Capanema/PA, 1949), um dos artistas paraenses mais renomados, é uma das pessoas
associadas a esse conceito. Este artigo estuda a produção inicial de Nassar, para investigar o conceito de “visualidade amazônica” e suas potencialidades para a história
da arte contemporânea brasileira.
No contexto nacional, a “visualidade amazônica” respondeu a um conjunto amplo de ideias, posturas e ações que buscou modificar a política cultural das
instituições, sob bandeiras como descentralização e/ou regionalização. Não se pode
deixar de perceber o êxito da obra de Nassar dentro de um quadro favorável às práticas
artísticas de investigação da “brasilidade”. A produção mais conhecida e legitimada
de Nassar tem como principais características a vocação construtiva e a apropriação
de elementos das matrizes visuais suburbanas, combinadas de modo a alcançar uma
“geometria sensível” então pensada para a arte latino-americana, mas sem deixar de
lado um caráter crítico, por vezes irônico. Estas características configuram o trabalho
de Nassar especialmente a partir de 1985, período a partir do qual o artista passa a expor regularmente no “eixo Rio-São Paulo” e no circuito internacional de arte, tendo
obras incorporadas a importantes acervos públicos e privados.
Interessa conhecer, também, a produção inicial deste artista, assim como sua
recepção crítica, para entender o percurso criativo e a legitimação de Nassar. Sua formação se deu na Escola de Arquitetura da UFPA, de 1970 a 1975. Priorizo, aqui, o pe1.
Gil Vieira Costa. Professor do Instituto de Linguística, Letras e Artes (ILLA) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), doutorando no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Pará (PPHIST/UFPA).
172
ríodo a partir de 1979, quando Nassar passa a produzir de maneira mais consistente.
Levanto a hipótese de que o campo artístico em Belém, nesse período, condicionou
uma produção voltada à “visualidade amazônica”, por sua vez em diálogo estreito
com instituições do sudeste do país.
Emmanuel Nassar apresentou três exposições individuais em Belém, no período que interessa a este artigo. A primeira delas ocorreu em junho de 1979. O material
de divulgação dessa mostra traz um desenho que apresenta a imagem de indígenas
navegando em canoas individuais, numa figuração distorcida. Temos, à esquerda,
objetos (semelhantes a brinquedos) que chamam a atenção: seriam indícios das investigações posteriores de Nassar sobre a cultura visual das populações na Amazônia?
Em todo caso, não há aqui quase nenhuma semelhança com a produção consagrada
do artista, a não ser esse pano de fundo conceitual de uma “valorização da Amazônia”. Em setembro de 1980, foi realizada a segunda exposição individual do artista.
O material de divulgação apresenta obras de figuração do corpo humano, também
destoando bastante do estilo que consagrou Nassar nos anos seguintes.
Sua terceira exposição individual ocorreu em novembro de 1982 e a preocupação com os torsos humanos dá lugar às séries de torneiras e de maquinações. O
material de divulgação dessa mostra traz um texto do escritor paraense Vicente Cecim.
Nele, há um tema caro para aquela geração que se consolidava em Belém: a relação
dicotômica entre a vida na civilização contemporânea e um estilo de vida anterior,
vinculado aos elementos naturais. Pensando na série “Maquinações”, o texto ganha
um aspecto inusitado, quando Cecim (1982) afirma que Nassar começara “recolhendo
as cores fortes dos subúrbios, as placas vermelhas de açaí, os azuis intensos, os amarelões das fachadas de madeira”, para chegar a máquinas de “utilidade ignorada” à
racionalidade do mundo contemporâneo, como “um sistema de torturas secretas, cujo
sentido oculto torna tudo mais ameaçador.” Menciona, também, as assemblages de
Nassar, “colagens com fichas de refrigerantes, pedaços de flandres da decoração dos
parques de diversões mambembes”: uma produção que se apropriava não apenas da
visualidade, mas dos fragmentos físicos desse mundo suburbano, global e amazônico.
Essa mudança de estilo o levou à quarta exposição individual, no início de
1984, agora no circuito nacional, realizada pela Funarte no Rio de Janeiro. Desdobrando a visualidade da série “Maquinações”, Nassar incorporou um conjunto de
símbolos referentes a brinquedos populares paraenses. É inegável a agência desses brinquedos sobre a fatura pictórica do artista, que transformou esses signos em
um “trabalho original e distante dos provincianismos [...] Sua pintura usa apenas
a inesperada geometria de objetos insólitos [...] É desnecessário saber algo sobre
os brinquedos do Pará para perceber a força de suas telas” (MENDONÇA, 1984).
Isso não quer dizer que o autor dessas palavras não percebesse a força dos símbolos
apropriados, pois conclui que o trabalho de Nassar “reativa no público um pouco da
memória afetiva suscitada pelas geringonças de lata e madeira, típicas de um mundo
em extinção.”
173
O texto do material de divulgação dessa quarta exposição é do escritor paraense Benedicto Monteiro. São retomadas algumas interpretações presentes no texto de
Cecim e apresentadas algumas que seriam publicadas por Nassar naquele ano, em
texto comentado adiante. Monteiro dirá que o artista propõe “trazer à tona esse país”,
porém distante de um realismo social e mais próximo de um país “inverossímil, mitológico e surrealista, [...] a pátria – mas a pátria de uma objetiva realidade fantástica”
(MONTEIRO, 1984). Comentará sobre a série “Torneiras”, fazendo alusão à água
como metáfora e falando de uma fidelidade do artista à “paisagem amazônica e à civilização fluvial a qual ele pertence”. Diferente de Casimiro Xavier de Mendonça, que
a princípio entendeu as obras a partir de uma autonomia formal, Benedicto Monteiro
interpreta o trabalho de Nassar como claramente textual – um texto que pode ser lido
e que aponta para fora da própria obra. A grande contribuição crítica de seu texto parece ser a atenção dada aos sujeitos dos objetos representados naquelas obras, quando
se impressiona com a forma como Nassar “esconde o homem, o ser humano, atrás
das coisas e dos objetos”, como se nos objetos se pudesse sentir essa “presença oculta
[...] e as marcas indeléveis do trabalho artesanal e cotidiano” (MONTEIRO, 1984).
É de 1984, também, a exposição Brinquedos Populares, promovida em outubro em Belém, organizada por Nassar, trazendo objetos artesanais feitos principalmente com madeira (especialmente miriti), lata, cartolina e papel de seda, fabricados
na periferia de Belém ou em municípios do interior do Pará, coletados pela equipe
responsável pela exposição. O catálogo traz um texto de Nassar, em que o mesmo
indica as similaridades entre aquela cultura visual e sua produção artística, naquele
momento já “marcada por esse colorido lúdico” encontrado nos brinquedos (NASSAR, 1984, p. 6). Apesar de objetos mestiços, eles eram signo de “amazonidade”
para Nassar, que em 1984 já possuía inclusive uma “vasta coleção de brinquedos e
objetos” que inspiravam sua prática artística (MENDONÇA, 1984). É pensando nos
brinquedos que ele escreverá frases mais tarde retomadas na reflexão de outros sobre
ele próprio: “aqueles brinquedos fazem parte daquilo que chamo de ‘país submerso’ que é o verdadeiro país por baixo da aparência imposta pelos padrões culturais
internacionais. Imaginei até uma arqueologia que descobrisse o Brasil encoberto”
(NASSAR, 1984, p. 5).
Em 1979, ano da primeira exposição individual de Nassar, estão bastante consolidadas em Belém as discussões sobre neocolonialismo cultural. A experiência de
integração econômica da Amazônia, promovida pelos governos brasileiros desde a
década de 1930 e intensificada nos governos militares, parece ter dado a tônica para
uma produção cultural de afirmação identitária, nas décadas de 1970 e 1980, que
experimentou uma atitude de cuidado com a Amazônia, traduzido em processos de
criação vivenciados na intersubjetividade dos grupos sociais que participavam do
campo cultural na cidade (CASTRO, 2011).
A discussão sobre uma “visualidade amazônica” foi empreendida por uma gama
de profissionais diferentes. Bastante representativa é a pesquisa sobre visualidade po-
174
pular na região, coordenada pelo artista paraense Osmar Pinheiro nos anos de 1982 e
1983, e ligada à Funarte. Acrescente-se a realização do 1º Seminário sobre as Artes
Visuais na Amazônia, 1984, em Manaus, congregando uma série de conferências, especialmente de artistas e pesquisadores de Belém e Manaus, depois publicadas em livro
(FUNARTE, 1985). Naquele mesmo período, Nassar recebeu o Prêmio de Viagem no
País no VII Salão Nacional de Artes Plásticas (SNAP), realizado pelo INAP/Funarte
no fim de 1984. Outros artistas hoje renomados participaram do certame, o que indica
a relevância que o prêmio pode ter para a trajetória de Nassar. Talvez a presença de
Osmar Pinheiro na Subcomissão de Seleção e Premiação do VII SNAP tenha sido uma
influência para a premiação de Nassar, já que ambos partilhavam valores artísticos,
culturais e intelectuais: além de terem cursado Arquitetura na UFPA na mesma época,
atuavam em 1984 como docentes no curso de Educação Artística da UFPA.
Marisa Mokarzel percebe a semelhança entre os projetos artísticos dos dois,
citando exemplos justamente de 1984: Currupiu gigante, de Nassar, e Jogos II, de
Pinheiro. Mokarzel entende que ambos partem das mesmas referências visuais e “trabalham com elementos formais que guardam muita proximidade”, além de sugerir
que as soluções estéticas de Pinheiro e Nassar, “antes de qualquer referência erudita,
[...] tenham surgido da estética simples encontrada nos mercados populares do Pará”
(MOKARZEL, 2011, p. 17).
O próprio Osmar Pinheiro cita Nassar como um artista que opera um “mergulho de qualidade na realidade cultural amazônica”, que “traz no seu bojo o esboço de
um projeto capaz de se articular como conhecimento e contribuição à arte brasileira”
(FUNARTE, 1985, p. 95). Essa contribuição do local ao nacional estaria em uma
“mudança de ótica” em relação ao modo como as visualidades na Amazônia eram
vistas pelas gerações anteriores de artistas locais. O “voltar-se para si mesmo” promovido pelos artistas amazônicos estaria aliado a uma “perspectiva não excludente
das questões que informam a arte contemporânea” (FUNARTE, 1985, p. 95). O regional no universal e vice-versa. Tal prática põe em diálogo projetos distintos e pode
ter embasado produções de Pinheiro e Nassar naquele período, combinando “erudito
e popular”, o formalismo da abstração geométrica na história da arte com a vocação
construtiva das visualidades regionais. Certamente é um dos elementos para êxito do
artista no circuito nacional. Parece evidente, também, que Nassar estava inserido em
um “grupo” mais amplo (heterogêneo e disperso), que pensava a produção cultural
na Amazônia. Falando sobre a “arqueologia” do “país submerso”, na exposição Brinquedos populares, Nassar dirá estar
[...] cada vez mais convencido de que este país existe e mais:
o trabalho não é bem de arqueologia, pois que na Arqueologia
buscamos fragmentos de culturas extintas, desaparecidas. E o
que temos aí, na verdade, é algo vivo, a cultura popular, ainda
que ignorada pelo país aparente, oficial. Esse que quer parecer
175
com a Europa e os Estados Unidos. Trata-se portanto de promover o reencontro nosso com aquilo que somos. Reconhecer, valorizar e dar voz a nós mesmos (NASSAR, 1984, p. 5).
Pressupomos que, em vez de arqueologia, Nassar procurasse uma etnografia
(FOSTER, 2014) dessas matrizes culturais que lhe inspiravam uma estética. Certamente, o artista partiu de pressupostos que podem ser considerados etnográficos: quis
conferir visibilidade ao Outro amazônico. Essa alteridade estaria baseada nas relações econômicas (classes subalternizadas) e nas relações culturais ou étnicas (formas
culturais na Amazônia).
Se a obra de Nassar tratasse dessas populações a partir de identidades essencialistas e pré-ocidentais, teríamos o reforço de uma “fantasia primitivista”, associando o outro ao primitivo ou ao inconsciente, permanecendo o “outro” como
contraponto do “eu”, mais do que sendo reconhecida e permitida a condição do
“outro” também como um “eu”, em toda sua alteridade e diferença (FOSTER,
1984: 165-166). Mas, ao contrário, o artista aponta quase sempre para mestiçagens
nas populações amazônicas em seus processos de ocidentalização. Entretanto, em
Brinquedos populares não deixa de estar presente uma visão essencialista, quando
se fala no reencontro “com aquilo que somos.” Por outro lado, intui os malefícios
de uma globalização assimétrica e ataca o internacionalismo e o desejo de “parecer
com a Europa e os Estados Unidos”, apesar de fazer uso, ele próprio, dos códigos
culturais herdados do mundo da arte ocidental. Haveria nesses paradoxos a permanência da fantasia primitivista?
Há, ao menos, outra possibilidade da obra de Nassar reafirmar a “fantasia
primitivista”, em vez de desconstruí-la: em sua recepção e promoção pelo mundo
institucional da arte, dada sua condição de artista “amazônico”. Os significados das
obras fazem parte de um jogo complexo, no qual as próprias obras são apenas participantes – nem sempre capazes de arbitrar sentidos. Se a instituição artística absorve
a obra de modo a conferir ao artista e à comunidade por ele investigada rótulos identitários “puros”, diríamos que há aí um reforço da fantasia primitivista. É necessário
aprofundar investigações a esse respeito.
Quando o artista está na identidade de uma comunidade localizada, pode ser
solicitado a assumir o lugar dessa identidade, a representá-la institucionalmente.
Nesse caso, o artista, por sua vez, é primitivizado, e mesmo antropologizado: eis
aqui sua comunidade, é o que a instituição diz na realidade, encarnada em seu artista,
agora em exposição (FOSTER, 1984, p. 182).
176
referênciaS
CASTRO, Fábio Fonseca de. Entre o mito e a fronteira: estudo sobre a figuração da Amazônia na
produção artística contemporânea de Belém. Belém: Labor Editorial, 2011.
CECIM, Vicente. Emmanuel Nassar expõe na Angelus. Material de divulgação da exposição
realizada de 05 a 13/11/1982 na Galeria Angelus. Belém: UFPA, 1982.
FOSTER, Hal. “O artista como etnógrafo”. In: ______. O retorno do real: a vanguarda no final do
século XX. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 159-186.
FUNARTE. As artes visuais na Amazônia: reflexões sobre uma visualidade regional. Rio de Janeiro: Funarte; Belém: Secretaria de Educação e Cultura, 1985.
MENDONÇA, Casimiro Xavier de. “Rumo do norte: no Rio, as imagens de um artista do Pará”.
Revista Veja, São Paulo, n.º 805, 08/02/1984, p. 111.
MOKARZEL, Marisa. “Emmanuel Nassar: nas margens do urbano”. Movendo ideias, Revista do
PPGCLC da UNAMA, vol. 18, n.º 1, janeiro a junho de 2011.
MONTEIRO, Benedicto. Emmanuel Nassar. Material de divulgação da exposição realizada de
31/01 a 15/02/1984, Galeria Macunaíma. Rio de Janeiro: Funarte, 1984.
NASSAR, Emmanuel. Brinquedos populares: exposição (Cadernos de Cultura: Estudos 2). Belém: SEMEC, 1984.
caravaggio: releituraS e reeScrituraS da arte em
derek jarman
Donny Correia1
eDson leite2
SincroniSmo e diacroniSmo entre o pintor e o cineaSta
“A obra de arte, por princípio, foi sempre suscetível de reprodução”, escrevia
Benjamin (1969, p. 60) em seu tratado sobre as reflexões acerca da obra de arte na
modernidade. Assumimos a máxima como verdadeira e, a partir dela, gostaríamos
de propor neste breve trabalho alguns outros pontos de vista a partir de um pré-estudo tendo como objetos a poética de Michelangelo Merisi da Caravaggio (15731610) e do pintor e cineasta contemporâneo inglês Derek Jarman (1942-1994), que
filmou a vida do artista italiano em 1986, mas o fez de maneira transversal à historicidade linear observada nas cinebiografias de outros artistas como Pollock, Rambrandt e Modigliani.
Citando, novamente, o mesmo trabalho de Benjamin, Julio Plaza observa que
[...] Benjamin propõe um princípio construtivo da história. Na
oposição entre historiografia e historicidade, inclina-se para a segunda, pois é esta que pode representar uma historiografia inconsciente, o lado oculto da historiografia oficial e o registro da experiência humana. Benjamin vê, em cada momento da história, um
presente que não é trânsito, mas que se encontra suspenso, imóvel,
em equilíbrio no tempo, formando “constelações” com outros presentes e o presente atual do historiador (PLAZA, 2003, p. 4).
1.
2.
Donny Correia. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e História da
Arte da USP (PGEHA USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
178
Interessa-nos partir deste ponto de vista para estabelecer paralelos entre os
dois artistas aqui abordados, fazendo com que a interpretação jarmaniana da vida e
da história de Caravaggio, seja vista exatamente num corte sincrônico entre o legado
do pintor e o que buscava legar em sua história o cineasta.
Ainda, sobre o conceito que buscamos para introduzir o assunto, diz Roman
Jakobson (1969, p. 121) que a descrição sincrônica não considera apenas a produção
de um dado período, mas também aquela parte da tradição que, para o período em
questão, permaneceu viva ou foi revivida. Portanto, é a partir desta oposição entre o
sincrônico e o diacrônico que poderemos examinar de que forma o cineasta britânico Derek Jarman apropriou-se de um resquício vivo da tradição para reescrever um
Caravaggio pessoal.
caravaggio, um protocineaSta
Olhando de maneira transdisciplinar para a obra de Caravaggio, não é difícil
compreender as razões pelas quais Derek Jarman tenha se interessado por filmar sua
vida de forma experimental, atípica e, sobretudo, imbricada com a própria vida do
cineasta. Jarman já havia mostrado interesse por personagens históricos deslocados
de sua historiografia original e postos em alinhamento com a contemporaneidade das
décadas de 1970 a 1990.
Portanto, assim o fez com Michelangelo Merisi da Caravaggio. Jarman valeu-se da vida mundana, criminosa e devassa do pintor, cuja obra extremamente realista
e ofensiva para o gosto da época, sempre lhe pareceu cinematográfica por excelência.
Não à toa, declarou a esse respeito: “Se Caravaggio reencarnasse em nossos dias,
certamente seria um cineasta [...]”3 (PEAKE, 2011, p. 300).
Uma questão óbvia a esse respeito se apresenta: como confrontar cinema e
pintura no âmbito da interação verdadeira entre ambos, sem incorrer na dinâmica
simplória de uma cinebiografia? Seria possível analisar quadro e enquadramento,
pintura e campo, nos mesmos patamares e com as mesmas ferramentas? Para usar
uma noção presente nos estudos de Jacques Aumont, pretendemos observar a maneira como Jarman transforma elementos naturais da pintura em diegese fílmica a partir
do estilo de pintura adotado por Caravaggio no século XVII.
[...] a borda inferior da tela pintada é aquela na qual, literalmente, tudo se
apoia. É surpreendente, assim, que a borda tenha, quase sempre, um tratamento particular, que leva em conta essa função de solo e de sustentáculo perceptivos e imaginários. Citarei [...] manifestações frequentes em toda a pintura clássica: a tática
que consiste em abrir, na borda inferior, um precipício mais ou menos ameaçador,
um abismo [...] À tendência ao “abismo” pertencem obras como [...] Deposição de
Cristo, de Caravaggio [...] (AUMONT, 2007, p. 121).
3.
Tradução nossa.
179
Notamos que Aumont aponta um elemento bastante significativo na estética
cinematográfica: o extravasamento da imagem para fora do campo visual do espectador. O cinema, em sua forma de compor a imagem, conta com o recurso narrativo
que leva o que se vê no campo para além das bordas do quadro. Toda imagem é uma
imagem aberta, tal qual o quadro de Caravaggio citado pelo autor.
Caravaggio. Deposição de Cristo. OST. (1602-1604)
Fonte: www.studyblue.com, acessado em 31/7/2016
Observamos na pintura de Caravaggio uma espécie de abismo, um ir além
das bordas. Uma expansão do campo visual que implica a narrativa em evolução que
mergulha no negro. O que parece um recurso menos importante, na realidade derrama para além dos limites da tela um movimento contínuo, já que nossos olhos são
impelidos a se deslocarem da porção superior direita para a porção inferior esquerda,
numa espécie de panorâmica. Sobre este fenômeno, Aumont evoca os escritos de
André Bazin a respeito da relação entre pintura e cinema:
[...] o cinema, por suas diversas intervenções, “abriu” o espaço das telas pintadas, dotou-o de um fora imaginável, de
um fora-de-campo [...]. O quadro fílmico, por si só, é centrífugo[...]. Ao contrário, o quadro pictórico é “centrípeto”: [...]
obriga o olhar de espectador a voltar sem parar para o interior
[...]. (AUMONT, 2007, p. 111)
180
caravaggio por caravaggio
Jarman desejou filmar não só a vida proscrita de Caravaggio, mas também discutir a arte como uma forma de expropriação (PEAKE, 2011, p. 301). O bandido Caravaggio também assaltava sua sociedade com suas pinturas ultrarrealistas, assim como
Jarman pretendia escandalizar as instituições com sua leitura pessoal, homoerótica e
criminosa do pintor. Eis um dado que nos leva a enxergar o filme como reescritura da
história, pois, em perfeita sincronia com a personalidade transgressora do diretor, “[...]
destaca-se em primeiro plano, a preferência de Caravaggio pelo conflito humano em
vez do retrato de alguma purificação ou redenção em nome do sagrado. O undergroud
lhe interessa” (SOLEDAR, in: CASTAÑEDA; DIAS; FONSECA, 2014, p. 158).
Ao imprimir no filme sua própria consternação em relação ao estado de coisas
que vivia, Jarman transfigura-se em Caravaggio, e seu pintor, no seu filme, torna-se
personagem de suas pinturas. Com uma cumplicidade secular, Jarman ilustra a morte
de Caravaggio, no final da fita com a mesma descida do Cristo de sua cruz.
Cena do filme Caravaggio do diretor Derek Jarman, (1986)
Fonte: Zeitgeist Films
Na pintura de Caravaggio, o vidente precisa do estímulo palpável para ser induzido a olhar o que está fora de campo. Na cena de Jarman, o fora de campo já está
dado, e o espectador espera ser induzido a expandir sua visão para além da tela. Não é
mais necessário expandir o campo visual da cena, mostrando o abismo depois do piso
firme. Neste filme, o tempo não existe como noção linear. Não é possível compreender a vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio estancada num dado momento da
linha cronológica.
conSideraçõeS finaiS
Disse Merleau-Ponty (2013, p. 24) que a visão é espelho, ou concentração, do
universo e que o cosmo particular dá acesso ao cosmo geral. No filme em questão,
estão presentes os vícios do pintor, suas relações conturbadas com seus parceiros de
181
vida e obra. Cada momento do filme é pontuado por uma reprodução fidedigna de
uma tela, de maneira que o cineasta mostra sua personalidade, desvela-se ao espectador, e coloca o pintor Caravaggio no protagonismo do assunto tratado em suas telas.
Lembremos que, já em suas primeiras pinturas, Caravaggio valia-se dos personagens
tratados para representar-se. É marcante, por exemplo, sua obra que retrata Baco
doente. Já aí temos um dos deuses romanos, adotados a partir da mitologia grega,
humaniza e retratado numa época em que o próprio pintor se encontrava recluso num
sanatório italiano, debilitado.
Posteriormente, debilitado pela AIDS, Jarman também se valeu das contradições físicas e psíquicas de seus personagens, alguns históricos, como o rei Ricardo
II ou o filósofo Ludwig Wittgenstein. Do ponto de vista de uma estética híbrida com
vistas a um diálogo entre a pintura e o cinema, a complexidade repousa no fato de
que sua vida é expandida para além dos limites centrípetos da moldura e encontra
a vida de outra figura igualmente inquieta, no caso de nosso estudo, Michelangelo
Merisi da Caravaggio, que reescreve a história da tradição enquanto escreve sua
própria história.
Concluímos que o ato criador na arte de Caravaggio e na de Jarman caminham em paralelo, numa historicidade sincrônica em que pouco importa ou é útil a
abordagem em forma de linha do tempo, pois os fenômenos comuns e intrínsecos
colocam-se, forçosamente, num tempo e num espaço transversal e atemporal dentro
da poética seja pictórica, seja fílmica.
referênciaS
AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In GRÜNEWALD,
José Lino (org. e trad.). A ideia do cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
CASTAÑEDA, Alessandra; DIAS, Victor; FONSECA, Rafael. Derek Jarman: cinema é liberdade. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções; Caixa Cultural, 2014.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
PEAKE, Tony. Derek Jarman: a biography. Mineapolis: University of Minnesota Press, 2011.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
a videoarte na xii bienal de São paulo:
inStitucionalização de um novo meio
luise boeno MalMaCeDa1
antecedenteS
No ano de 1962, a Bienal de São Paulo teve sua direção artística desvinculada
do Museu de Arte Moderna quanto à organização do evento, que passou a ser realizada por seu fundador e presidente Ciccillo Matarazzo com assessorias específicas
para cada edição. Problemas de gerenciamento, como a falta de juris gerais e de uma
estrutura regular, fizeram com que a Bienal passasse, durante a década de 1960, por
um processo de desprestígio, que teve seu auge em 1969.
Em dezembro do ano anterior, foi instaurado o Ato Institucional nº 5 (AI-5)
que, além de suspender diversas garantias constitucionais e de fechar o Congresso
Nacional, intensificou a censura à impressa e às manifestações culturais. Em especial, podemos citar a apreensão de obras da II Bienal da Bahia, ainda em 1968, e do
veto da participação de diversos artistas brasileiros na VI Bienal de Paris. Esses fatos
desencadearam uma campanha de alcance internacional que resultou no boicote à X
Bienal de São Paulo por diversos países, como Suíça, França, México, Argentina e
Estados Unidos. A ausência de delegações se estenderia aos anos seguintes, como no
caso da XI Bienal, que em seu vigésimo aniversário de existência contentou-se em
utilizar como tema um retrospecto de sua própria história, no lugar de apresentar a
produção artística corrente e as tendências da arte contemporânea.
É nessa situação-limite em que se encontrava a instituição no início da década
de 1970, quando da necessária iniciativa de remodelação de sua estrutura e formato,
já nos planos de Matarazzo desde meados dos anos 1960, mas que teve sua urgência
instaurada a partir do boicote de 1969.
1.
Luise Boeno Malmaceda. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética
e História da Arte da USP (PGEHA USP).
184
xii bienal de São paulo: o Setor de arte e comunicação
Na iniciativa de reformulação da mostra, se destaca o envolvimento do filósofo tcheco Vilém Flusser, radicado no Brasil durante a II Guerra Mundial. Sua relação
com a Bienal teve início em 1969, após participação em simpósio promovido pela
Fundação Bienal de São Paulo que resultou em um artigo intitulado As Bienais de
São Paulo e a vida contemplativa. Nele, Flusser esboça algumas ideias em torno do
que constituiria uma exposição, uma mostra em formato bienal e mais especificamente, uma Bienal de São Paulo.
Em seguida, Flusser buscou obter auxílio no projeto de reestruturação da Bienal
de São Paulo, em especial durante a 24ª Assembleia Geral da Associação Internacional
de Críticos de Arte, em 1971, na França. Sua proposta, que sofreu resistência da crítica
quanto ao regime ditatorial no Brasil, tinha como pautas a crise da instituição, não
somente da Bienal de São Paulo, mas dos grandes eventos de arte em geral, e os temas
relacionados aos binômios Arte-Comunicação e Arte-Tecnologia. Segundo Vinícius
Spricigo, o “ponto nevrálgico” da proposta apresentada por Flusser, estava centrado
na “crise da mediação da arte com o público”, que poderia ser solucionada com o estabelecimento de uma “reestruturação comunicalógica da Bienal” (SPRICIGO, 2013).
Apesar das ideias de Flusser visarem a “transformação da Bienal em laboratório para proposições e pesquisas de arte e comunicação” (SPRICIGO, 2013), elas
foram viabilizadas apenas em forma de uma espécie de curadoria à parte da mostra
em formatação tradicional: o setor Arte e Comunicação da XII Bienal de São Paulo,
um espaço que visava fomentar a participação do público e o uso de novas mídias na
produção artística. Segundo os pesquisadores Varena Pereira e José Eduardo Paiva,
os critérios para seleção dos projetos do setor foram: reduzir o isolamento que ameaça os detentores da cultura artística no domínio das artes visuais; abertura das influências da cultura artística ao grande público; e rompimento da barreira que separa a arte
das outras atividades humanas (PEREIRA; PAIVA, 2015).
Um dos destaques do setor, o artista francês Fred Forest realizou, junto ao Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP), uma experiência intitulada Passeio
Estético-Sociológico, em que, acompanhado de artistas e estudantes transportando
assentos individuais, promoveu ação pelo bairro Brooklin, em São Paulo. Forest registrou, com equipamento emprestado pela TV Cultura, os encontros do grupo com
os transeuntes nas ruas e nos estabelecimentos locais, criando diálogos espontâneos
para além do espaço e do circuito institucional. A exibição posterior desse registro
em vídeo no MAC USP se configuraria como a primeira apresentação de uma obra
de videoarte em um museu brasileiro (ZANINI, 2013).
Vale destacar, igualmente, a sala em homenagem ao artista Waldemar Cordeiro, falecido naquele mesmo ano, que exaltava a sua trajetória como artista concreto e
seu trabalho pioneiro com computer art. Figuravam na exposição obras como Beabá
e Gente, além do projeto de sua filha, Analívia Cordeiro, o vídeo M3x3, admitido por
185
autores como Arlindo Machado como o mais antigo tape pertencente à história do
nosso vídeo, concebido no mesmo ano de 1973 (MACHADO, 2007).
Percebe-se, assim, a importância do setor de Arte e Comunicação para este
estudo, sendo uma das primeiras grandes exibições de obras em novas tecnologias
no país e tendo papel central na exibição e produção de obras em vídeo, forma de
arte bastante recente no contexto brasileiro. A história dessa produção, pode-se dizer, só teve início efetivo no ano seguinte a partir do convite de Walter Zanini para
que brasileiros integrassem uma mostra na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos,
quando diversos artistas passaram a produzir seus primeiros tapes. No entanto, apenas alguns, como Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Inves Olinto Machado,
Ângelo de Aquino e Sônia Andrade, que tiveram acesso a uma câmera Sony Portapak
(primeiro equipamento de vídeo portátil acessível comercialmente) emprestada de
um colega que havia retornado dos Estados Unidos, puderam viabilizar produções,
enquanto outros só tiveram equipamento disponível posteriormente.
O que se verifica é que a tecnologia de vídeo não estava inserida no mercado
e no conhecimento técnico nacionais. Como coloca a pesquisadora Christine Mello,
apesar de o vídeo ser, durante a década de 1970, um novo campo de experimentalismo para os artistas, ele seria pouco difundido no país até a década seguinte, em que
o Brasil produziria seus primeiros videocassetes domésticos, permitindo aos artistas
maior acesso ao meio (MELLO, 2007).
Esse período da produção nacional pode ser contrastado com a mostra de videoarte norte-americana 17 Tapes By American Artists, curada por Regina Cornwell
e também participante do setor de Arte e Comunicação, que sofreu com inúmeras adversidades, tendo sido um desafio, inclusive, determinar se a mostra de fato ocorreu,
devido a divergências bibliográficas e documentais. De acordo com a pesquisadora
Carolina Amaral de Aguiar, a mostra não teria acontecido em razão da precariedade de recursos da instituição e carência de equipamentos2. Da mesma forma, Waldo
Rassmussen, diretor do programa internacional do Museu de Arte Moderna de Nova
York (MoMA), colocava que “a falta de tempo e as dificuldades técnicas tornaram
impossível a realização do projeto de Cornwell”3, em telegrama direcionado à organização da Bienal de São Paulo duas semanas antes do início do evento. Rasmussen
entra em contato, na mesma data, com Walter Zanini, em busca de apoio, descrevendo a situação como “embaraçosa” e comentando que a exposição estaria em “perigo” por “falha da Bienal em providenciar informações”4. Outro claro exemplo de
deficiências organizacionais da Bienal pode ser verificado na participação da equipe
2.
3.
4.
Apesar de citada no estudo da autora, não foi encontrado o artigo escrito por Cornwell até o período
de publicação deste material.
De Waldo Rasmussen para a Fundação Bienal de São Paulo, em 25/09/73. Documento disponível
no arquivo da Bienal de São Paulo.
Correspondência de Waldo Rasmussen para Walter Zanini em 25 set., 1973. Telegrama disponível
para consulta no arquivo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
186
canadense coordenada por Eric McLuhan, cuja proposta, com descrição e listagem de
equipamentos, havia sido enviada à organização com três meses de antecedência, não
obtendo nenhum apoio para montagem.
Apesar das dificuldades, artigos jornalísticos da época revelam que as mostras
teriam sido realizadas, porém com cerca de dez dias de atraso da abertura oficial. O
Jornal Folha da Tarde, de São Paulo, noticiaria no dia 16 de outubro que as salas dos
canadenses estariam funcionando a partir daquela data, para exibição de suas “experiências de comunicação”. Com pouco mais de atraso, o mesmo jornal lançaria no
dia 20 de outubro o artigo intitulado “O que há de novo na Bienal”, anunciando que
começariam as projeções de videotapes trazidos por Regina Cornwell, professora da
School of Visual Arts de Nova York.
É importante notar que a mostra de Cornwell, bem como o Setor de Arte
e Comunicação, teve pouca repercussão midiática, tendo sido localizada somente
uma matéria dedicada exclusivamente a ela. Apesar disso, a exposição de Cornwell trouxe questões bastante relevantes sobre o novo meio naquele período, o que
se nota pela acertada seleção de nomes, incluindo Keith Sonnier, Paul Kos, entre
outros, bem como por texto deixado pela curadora em que justifica sua seleção e
analisa as produções da época.
Ainda, mesmo que seja somente em 1975 que a videoarte ganhará o seu merecido destaque e repercussão na crítica de arte brasileira, com a vinda da delegação
norte-americana para XIII Bienal de São Paulo, é inegável a importância das reflexões em torno dessa produção trazidas pela curadora sobre um ainda insípido meio
de criação no sistema da arte brasileiro. Um dos grandes incentivadores da videoarte
no país, Walter Zanini, em seu texto seminal “A videoarte no seu limiar” (1975),
reconhece a importância da “arrojada seleção” de Cornell para o cenário brasileiro.
Segundo ele, a mostra trouxe pioneiramente “ao nosso público a familiaridade com
certo número de artistas norte-americanos do vídeo” (ZANINI, 2013).
concluSão
A investigação realizada no arquivo da Fundação Bienal de São Paulo para
formulação deste artigo teve por objetivo a compreensão dos desafios institucionais
para produção e veiculação de uma produção emergente e ainda em fase de gestação
no contexto brasileiro, em que o equipamento de vídeo era de difícil acesso.
Podemos concluir que a tentativa de reformulação da Bienal, apesar do entusiasmo de Flusser, seja por suas falhas, falta de estrutura ou mesmo desinteresse
da presidência, acabou por não modificar efetivamente o futuro das bienais de São
Paulo. Porém, deixou registros paralelos importantes para o cenário da videoarte brasileira, entre os quais enfatizamos a apresentação do vídeo M3x3, de Analívia Cordeiro, a seleção de tapes norte-americanos de Regina Cornwell e a participação de
Fred Forest – que realizaria diversas ações no país, em especial em sua parceria com
187
Walter Zanini no MAC USP, gerando a primeira exibição de videoarte em um museu nacional. Podemos nos referir a esses eventos como produtores de experiências
pioneiras e de um impulso inicial de institucionalização do novo meio de expressão
artística, que seria desenvolvido, nos anos a seguir, em diversas iniciativas empreendidas por artistas e agentes locais.
referênciaS
AGUIAR, Carolina Amaral de. Videoarte no MAC-USP: o suporte de ideias nos anos 1970. São
Paulo: USP, 2007 (Dissertação de mestrado).
ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. Bienais de São Paulo: da era do Museu à era dos
curadores. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo – 1951 a 1957. São Paulo: Editora Projeto, 1989.
FREIRE, Cristina (Org.). Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume: MAC USP,
2013, p. 146.
MACHADO, Arlindo. As linhas de força do vídeo brasileiro. In: MACHADO, Arlindo. Made in
Brasil: três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, 2007.
ZANINI, Walter. A videoarte no seu limiar. In FREIRE, Cristina (Org.). Walter Zanini: escrituras
críticas. São Paulo: Annablume: MAC USP, 2013.
Artigos
MELLO, Christine. Vídeo no Brasil: experiências dos anos 1970 e 1980. Intercom – Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, V Congresso Nacional de História da
Mídia. São Paulo, 2007.
PEREIRA, Varena Carla; PAIVA, José Eduardo Ribeiro de. As tentativas de reformulação das Bienais de São Paulo e a participação de Vilém Flusser. XX Congresso de Ciências da Comunicação
na Região Sudeste, 2015.
SPRICIGO, Vinícius. A exposição como medium: as bienais a partir das perspectivas teóricas abertas por Vílém Flusser. Periódico Permanente, v.2, n.1, 2013.
Periódicos
“Filho de McLuhan na Bienal”. A Crítica, Manaus, 25 out. 1973.
FLUSSER, Vilém. “As bienais de São Paulo e a vida contemplativa”. O Estado de S. Paulo, 27
set. 1969.
“Na Bienal, o video-tape como meio de expressão artística”. Folha de São Paulo, São Paulo, 29
out. 1973.
“O Canadá mostra hoje suas ‘experiências de comunicação’”. Folha da Tarde, São Paulo, 16 out.
1973.
“O que há de novo na Bienal”. Folha da Tarde, São Paulo, 20 out. 1973.
hanS eijkelboom e a autoria no veStir
contemporÂneo
heloisa nobriga1
eDson leite2
introdução
A produção de imagens poéticas na contemporaneidade se configura de maneira heterodoxa. Observando o histórico de representações do século XX, percebe-se
a variedade de possibilidades em que se apresentam; dessa forma também, o vestir
pode, atualmente, ser questionado como potência estética e expressiva.
A partir de Marcel Duchamp, o observador também tem o poder de interferir
na obra de arte com sua interpretação individualizada. Vê-se, então, que a forma de
produzir e apreciar arte se modifica sobremaneira com a introdução dos ready-mades
no universo das artes plásticas: a utilização de objetos massificados como produtos
artísticos suscita uma nova postura de artistas e apreciadores, assim como da crítica,
que passam a incorporar os objetos do cotidiano no mainstream da arte.
Com o objetivo de apresentar uma arte que se aproximasse da vida, cuja apreciação fosse acessível a todos, a arte do começo do século XX transforma a herança
da arte: o que levava a crer que o público poderia agir como apreciador livre, sem
necessidade de detenção de quaisquer pré-conhecimentos acerca do universo estético
das artes visuais. Neste processo, não é apenas o cotidiano que é trazido para a obra
de arte, mas a própria vida, o que vem corroborar a ideia de Gombrich (2008, p. 18)
“Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte. Existem apenas artistas”.
O olhar para o cotidiano, a ação do público e artistas e sua interação costumeira
1.
2.
Heloisa de Sá Nobriga. Mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
190
com o mundo dos objetos, direcionam ao questionamento da utilização da vestimenta
como suporte expressivo na contemporaneidade.
a eStetização do veStir
Deve-se reforçar que, nessa trajetória, há uma estetização da vida cotidiana
e uma hipervalorização estética das banalidades diárias, o que permite a análise estetizada do vestir. Notamos que, desde as propostas modernas, há a preocupação
de alguns artistas sobre a vestimenta cotidiana. Giácomo Balla e Gustav Klimt, por
exemplo, questionam as formas do vestir, mostrando uma preocupação em quebrar
cânones pré-existentes. Como objeto de potência massiva, o vestuário passa por etapas distintas e importantes para sua atual configuração como potência expressiva. A
primeira fase se dá na passagem da Idade Média para a Moderna, onde a ascensão
burguesa permite a cópia de elementos do vestuário da nobreza. A segunda fase acontece como decorrência da Revolução Francesa, quando o próprio nome dos rebeldes,
SansCullotes3, remonta à importância da aparência como forma de reivindicação política e social, já que questionava os privilégios da nobreza e do clero e o absolutismo
intransigente do Rei Louis XVI. Assim, foi pela roupa que este grupo se apresentou,
e foi nomeado, com sua individualidade sendo suprimida em favor do bem coletivo.
Será por ocasião da Revolução Industrial – que barateia a manufatura têxtil, tornando
o vestuário um bem de larga escala, mais acessível – o terceiro momento importante
para haver o vestir expressivo que hoje conhecemos, incluindo-se por volta da década
de 1920 a construção e confecção a partir da padronização dos corpos por meio de
grades de modelagem, a favor da agilidade e volume produtivos. A roupa pronta nos
permite um consumo maior, ainda que desprovido da individualidade. Tal acessibilidade do vestuário promove, pouco a pouco, pelo excesso de oferta, a pluralidade das
aparências onde cada um de nós pode se reconstruir a cada dia, inventar personas,
atualizar identidades, construir estilos de vida. Temos, então, um vestir multifacetado, em que cada um é estilista de si mesmo e a cada dia todas as pessoas têm que
eleger uma construção plástica expressiva do vestir que as represente.
Nesse ponto, deparamo-nos com um paradoxo importante: assim como nas artes visuais, o processo produtivo do vestuário e a construção individual da aparência
se equilibram entre a importância da subjetividade e a força do coletivo. Se por um
lado a acessibilidade do vestir tende a pasteurizar as possibilidades, que, apesar de
múltiplas, são previsíveis, por outro vivemos também no guarda-roupas o conceito
das práticas artísticas e culturais de nossa época, que implicam em registros subjetivos gerados por interações com o meio, com os produtos e com as outras subjeti3.
Sans Cullotes: Em tradução livre da língua francesa: sem culotes. O culote era uma espécie de calção
justo na altura do joelho, costumeiramente adotado pela nobreza à época da revolução Francesa.
Os burgueses e trabalhadores utilizam, ao invés, dos culotes, uma calça comprida de algodão, de
aspecto mais grosseiro.
191
vidades que participam dos processos artísticos e culturais. Nesse sentido, cada ser
humano é, segundo Borriaud (2011), um “semionauta”, atribuindo e recombinando
signos, já que, atualmente, tanto os criadores como os espectadores (coautores) não
têm mais a mesma importância que detinham nos primeiros movimentos modernistas, já que nesse momento o foco se detém na relação com o objeto em si. A partir
dessa premissa, Bourriaud (2009) sustenta a afirmação de que o contemporâneo é
um período de pós-produção: edita-se, retoca-se, rearticula-se, superposiciona-se elementos, materiais, signos, significados etc.
No campo da moda, é perceptível que o que o vestir é, pós-revolução industrial, mecanismo coletivo e sistêmico, que foi pouco a pouco buscando a ratificação
do consumidor. Esse conjunto vai se distanciando do ciclo curto de consumo (fast-fashion4) na direção de uma coautoria estilística entre autores e consumidores na
construção de seus personagens cotidianos. Quando elege seus produtos de consumação expressiva, “o consumidor assume o papel que era do crítico de arte. Então,
começa o jogo do juízo estético, do sucesso e da falência da mercadoria” (MORACE,
p. 14). As possíveis implicações visuais delineadas entre as influências do mundo
externo e da individualidade podem, então, evidenciar o vestir como uma importante
manifestação da estetização da vida na contemporaneidade, da atual articulação entre
a produção, a circulação e o consumo, e do próprio Zeitgeist5, destacadas no resultado
do desenho de si.
hanS eijkelboom
Destaca-se aqui a importância do trabalho do fotógrafo Hans Eijkelboom, que
explora valores do coletivo e do individual identificados na massificação estética
proporcionada pela indústria cultural. O resultado de seu trabalho são foto-expedições-antropológicas, que transformam o seu olhar flâneur6 em um olhar etnógrafico
cosmopolita contemporâneo. Eijkelboom vem, ao longo de sua trajetória, explorando a temática da aparência nas suas mais diversas abordagens, sempre utilizando o
vestuário, a moda e o espaço urbano como mote. Entre suas obras, pode-se citar os
álbuns: Identity (1977), Biografy (1996), Fotowerken (1999), Kleding (2001), 10Euro Outfits (2010), People of the twenty-first century, 1September 2012, São Paulo,
4.
5.
6.
Em tradução livre: “moda-rápida”. Diz respeito a um modelo de consumo incorporado pelo varejo
de moda onde a renovação rápida e constante das peças e modelos instiga o consumo e fomenta o
ciclo rápido da moda.
Em tradução livre do alemão: o espírito do tempo.
Termo francês que se refere ao ato de caminhar, perambular pelas cidades. O flâneur era, antes
de tudo, um tipo literário do século XIX na França, essencial para qualquer imagem das ruas de
Paris. A palavra traz um conjunto de associações: o homem voltado ao lazer, o explorador urbano,
o conhecedor da rua. Era Walter Benjamin, com base na poesia de Charles Baudelaire, que fez esta
figura o objeto de interesse acadêmico no século 20, como um arquétipo emblemático da experiência
urbana, moderna.
192
Brazil (2012). Nesses trabalhos, ele elenca algum padrão cotidiano (vestuário, gestos,
posturas, locais etc.) e os registra massivamente, abordando o consumo, a massificação e a indústria cultural, registrando a estetização do cotidiano na vida dos grandes
centros urbanos desde a década de 1970.
No início de seu trabalho, formado por autorretratos, o artista questionava se
ele era fruto da sociedade de consumo ao invés de ser ele próprio. Isso o levou a analisar a identidade como forma de expressão e a vestimenta como membrana que separa
o ser indivíduo do meio social, destacando-se dentre seus trabalhos aqueles nos quais
o vestuário tem papel principal na composição plástico-expressiva da aparência.
Em Eijkelboom, podemos notar o ciclo da moda e suas reverberações no “pertencimento e na distinção” que regulam não apenas os aparecimentos e declínios
formais, como os grupos e os mecanismos de individualização. A “moda consumada”
de Lipovetsky (1989) é fotografada por Eijkelboom deflagrando no apelo consumista o desejo de autossatisfação, de realização de autoimagem, de pertencimento etc.
Desse modo, o indivíduo vive na constante luta para encontrar-se com aquilo que lhe
faz único, conquanto a pessoa cerca-se da identidade que permite que sua marca seja
reconhecida pelos seus pares. Isso também é explicado pelo paradoxo que, segundo
autores como Lipovetsky (1989), Simmel (2008) e Wilson (1985), é marca indissociável da moda e seu grande motor: o registro de pertencimento a uma coletividade
pautado pela afirmação do ser individual. Revezando pertencer e distinguir na constituição do ciclo da moda, garantindo seu modus operandi. “Vestir-se à moda implica
uma pessoa destacar-se e, simultaneamente, fundir-se na multidão, reivindicar o exclusivo e seguir o rebanho” (WILSON, 1985, p. 17).
conSideraçõeS finaiS
Hans Eijkelboom passeia entre várias questões: o da reprodutibilidade técnica,
da individuação versus individualidade, da multiplicidade, do pertencimento, da vida
cotidiana como objeto estético, da arte da existência, entre outros; apropriando-se
de dois sistemas de reprodutibilidade e massificação, moda e fotografia, para atestar
sua singularidade tanto como artista como quanto indivíduo, assim como das pessoas
que fotografa e daquelas que apreciam suas exposições. E, neste caso, a assinatura do
artista dá a legitimidade a todo o processo de autoria do vestir.
A estetização da vida cotidiana é um elo comum entre modernidade e seus
desdobramentos, sendo nossa postura frente ao próprio tempo o maior diferenciador:
enquanto na modernidade há um olhar voyeur, depois há uma imersão ativa que funde os agentes envolvidos entre a produção, circulação e consumo, desarticulando e
quebrando os paradigmas, não apenas do local ou do objeto de arte, mas também de
sua autoria. Os caminhos do traçar a si mesmo por meio da vestimenta, com a posse
autoral da estetização da vida cotidiana, é processo criativo designado por um fazer
193
cotidiano que é permeado pelos processos criativos individuais a partir das possibilidades estéticas fornecidas por um mercado de consumo de moda em funcionamento.
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o uSo de mapaS como propoSiçõeS conceituaiS: aS
cartografiaS do artiSta argentino
horacio zabala
luiza MaDer PalaDino1
Em 1972, o artista e arquiteto argentino Horacio Zabala escreveu: “a arte se
define pela função que cumpre na sociedade, pois nem o fazer artístico nem seus
resultados são autônomos: a arte depende do que não é arte”.2 Esse trecho contribui
para refletir sobre as ações artísticas ao longo dessa década e a emergência de uma
produção que evidenciasse que o significado de uma obra não residia em si mesma,
mas através de si, ou seja, que ela era formada pela sua relação direta com o exterior.
Esse ponto de partida colaborou para ampliar o papel da obra de arte como agenciadora ou catalisadora de questões sociais e políticas; uma ferramenta subjetiva capaz
de relevar distintas relações de poder, que a princípio pareciam não ser uma pauta
importante das preocupações de ordem estética. Contudo, sabemos com Rancière que
estética “é uma matriz de percepções e discursos que envolve um regime de pensamento, bem como uma visão da sociedade e da história”3. Se o discurso modernista
neutralizou o objeto artístico, sobretudo o pictórico, inserindo-o em uma ficção linear
cujo ápice foi a descoberta de seu médium próprio – a superfície bidimensional –,
uma revisão crítica dessa conjuntura autônoma da arte buscou contaminar seu regime
com outras ficções. Diga-se, outras realidades, novas formas de vida que propuseram
articular o fazer artístico e político em um momento de aceleradas adversidades sociais. A tomada de consciência do artista latino-americano diante de um panorama
devastador de governos de exceção nasceu como um limite à lógica do repressor, uma
vontade de contrariá-la. Dessa fricção, surgem insurgências artísticas que engendram
novos modos de ação no campo da arte, uma espécie de efeito boomerang na qual a
ordem vigente e cega acaba por produzir os seus próprios limites.
1.
2.
3.
Luiza Mader Paladino. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e
História da Arte da USP (PGEHA USP).
In: ZABALA, Horacio em: CAYC al aire libre (cat. exp.), Buenos Aires, 1972.
Em: http://cargocollective.com/ymago/Ranciere-Txt-2. Acesso no dia 25-05-2016
196
Chamaremos esse espaço de fricção e potencialidades entre estética e política
de “arte fronteiriça”, mesma categoria que Luis Pazos e Juan Carlos Romero usaram
na conferência “El arte como conciencia en la Argentina”4, quando se referiram à
circulação dos termos importados “arte conceitual” e conceitualismos na Argentina.
“Uma arte fronteiriça, nada definitiva ainda [...] para inverter o processo político e
cultural que diz respeito à realidade nacional”5. Os artistas, dentre várias possibilidades de pensar sobre as proposições conceituais, escolheram uma categoria geográfica
– fronteiriço – para situar esse conjunto amplo e complexo de práticas ainda em desenvolvimento na América Latina. Uma arte de fronteira, nesse momento, apontava
para dois problemas fundamentais: 1- a redefinição do conceito de arte e do objeto
artístico; 2- uma forma estratégica para discutir a realidade social e econômica da
região. A precariedade dos materiais, por exemplo, em sintonia com essa realidade,
foi assumida como um conjunto de proposições críticas. O conceitualismo tornou-se,
então, uma categoria tática, um meio de expressão política, eficaz, acessível e de baixo custo. A emergência de uma “REAL ARTE POBRE”6, segundo Edgardo-Antonio
Vigo, com a circulação descentralizada e pela via de canais colaborativos: o uso do
papel heliográfico como um “sistema econômico e facilmente reprodutível [...] próprio de nossa impossibilidade de competir com meios tecnológicos e possibilidades
econômicas que ainda não dispomos”7 ou “o máximo de possibilidades com um mínimo de recursos”8, constituíra-se como ponto de partida desses programas conceituais
fronteiriços. A redução dos recursos formais, materiais e técnicos como um código
estético e crítica institucional cada vez mais distantes da lógica do espetáculo dialogavam com a máxima “menos é mais”.
As diversas séries de cartografias realizadas nesse período por Horacio Zabala seguiram a operação de trabalho com um mínimo de recursos possíveis, em
reciprocidade com as ações de caráter fronteiriço. O artista se apropriava de imagens
impressas de mapas-múndi, mapas escolares de fácil acesso, baratos e legíveis, transformando essa linguagem conhecida em uma geografia desfigurada. O método típico
do ofício de arquiteto, de saber rigoroso e matemático, era coerente com as escolhas
imagéticas de Zabala: mapas, plantas-baixa, projetos de arquitetura de prisão; quer
dizer, modelos de diferentes escalas e reduções espaciais de um território. Em alguns
mapas da série enviada ao MAC USP para a exposição Prospectiva 74, intitulada
Integração de linguagens poéticas experimentais com investigações sociais e eco4.
Monzón, Hugo. Dos muestras de arte conceptual exhiben divergentes propuestas, La Opinión, Buenos Aires, 19 de julio de 1972. Em: DAVIS, Fernando. El conceptualismo como categoría táctica.
Ramona 82.
5. Monzón, Hugo. Dos muestras de arte conceptual exhiben divergentes propuestas, La Opinión, Buenos Aires, 19 de julio de 1972. Em: DAVIS, Fernando. El conceptualismo como categoría táctica.
Ramona 82.
6. Revista Hexágono 71.
7. GLUSBERG, Jorge. Em: Hacia un perfil del arte latinoamericano. (cat. exp.), Buenos Aires, 1972.
8. ZABALA, Horacio. Diecisiete interrogantes acerca del arte. CAYC, Buenos Aires. GT-135, 1972.
197
nômica (1974), Zabala propôs o embaralhamento das fronteiras territoriais ao colar
um pedaço do mapa dos Estados Unidos e do Canadá em cima da América do Sul.
Em outro, o continente é novamente tampado por uma colagem de diversos fragmentos do oceano atlântico e do pacífico, alterando a lógica espacial e recriando um
jogo de novas fronteiras que é apenas evidenciado pelo mosaico de recortes colados.
Três recibos de compra em branco são fixados sobre a América Latina, sugerindo
que a venda do continente pode vir a ser negociada mediante qualquer proposta. As
investigações sociais e econômicas conduzidas pelo artista nos faz recordar como as
cartografias foram dispositivos basais para a legitimação do êxito colonial; e como
a partilha dos países ocupados continuou a ser um exercício constante de poder na
história das conquistas.
Do ponto de vista do método artístico, Zabala se apropriava de um padrão
técnico e racional de representação espacial supostamente neutro para desconfigurar
a totalidade desse lugar escolhido e distorcer essa realidade reduzida em um papel.
Falando nesse material, vale fazer uma breve digressão para compreender melhor o
pensamento estético ou, de acordo com o próprio Zabala, uma ideia dentro de uma
operação sócio-estética ou sócio-artística. Nota-se um fio condutor em seu modus
operandi artístico, lembrando que o papel já aparecia como instrumento crítico na
obra Este papel es una cárcel (1972), um material cuja área podia acarretar constantes limitações no exercício criativo do artista, um trabalho autorreferencial que
questionava a bidimensionalidade do papel como um tipo de território reduzido. A
prisão papel se desdobraria logo depois como metáfora do circuito artístico. Contudo, a metáfora da prisão seria extrapolada na experiência concreta da violência na
esfera cotidiana e sobre o corpo, destino real de milhares de prisioneiros políticos.
Sueli Rolnik nos esclarece que o artista agrega a camada política da realidade a sua
investigação poética pelo fato da ditadura incidir em seu corpo, sob uma atmosfera
opressiva onipresente em sua experiência cotidiana. (ROLNIK, 2009, p.156)
Voltando à análise dos mapas, pegaremos emprestado alguns conceitos do
geógrafo brasileiro Milton Santos para repensar o estatuto da cartografia enquanto espaço revelador das multiplicidades do real que não são contempladas pelos discursos
hegemônicos e pela lógica racionalizante. Leremos as obras cartográficas de Zabala
na chave de uma reivindicação por uma experiência espacial política, uma forma de
propor outras construções simbólicas no espaço vivido, que é o que passa pela dimensão do humano, por sua produção e que é transformado pela sua presença. O exercício artístico e a mobilização da imaginação na criação de outros territórios possíveis
entram em sintonia com a proposta de geografização da cidadania (SANTOS, 1998).
O código gráfico dos mapas remete a uma ordem que disciplina, sistematiza
e regula as coordenadas geográficas bem como delimita a identidade dos sujeitos
associados a um território exclusivo. O artista deforma essa lógica em um conjunto
de intervenções buscando refletir sobre a violência ocultada nas convenções cartográficas e suas relações territoriais. A geografia tradicional demonstrou inúmeras vezes a
198
dificuldade de levar em conta como os mapas seriam lidos, revelando a sua própria limitação no modo de apresentar informações que fossem além dos dispositivos gráficos. Mapas são abstrações, o que nos induz a perguntar: como representar uma simultaneidade de acontecimentos e constantes disputas espaciais, justapondo camadas de
fatos históricos tão complexos em uma única imagem gráfica? Um caminho possível
é nos aproximarmos do que Fredreric Jameson chamou de mapeamento cognitivo,
no qual o ato de cartografar permite “a representação situacional por parte do sujeito
individual em relação àquela totalidade mais vasta e verdadeiramente irrepresentável, que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo” (JAMESON, 2004).
Nesses territórios imaginados, Zabala utilizou o fogo diversas vezes como elemento expressivo e como metáfora de algo que estava na iminência de se devastar e
queimar. As cartografias da América Latina ardiam com a combustão em Mapa quemado (1974) e Seis imágenes del fragmento 30 (1973), em que um mapa queimado e
um trecho do filósofo Heráclito sugerem o fogo como elemento “eternamente vivo”,
ou seja, permanente arma de combate e combustível criativo. O fogo reaparece implicitamente em obras posteriores, incitando um ambiente de tensão no qual o artista
pode vir a ser um ativista cujas armas tornam-se ao mesmo tempo instrumentos poéticos e combativos. Além do fogo, Zabala utilizou o carimbo em diversas cartografias,
como é o caso das áreas “revisadas”. A recriação de mapas com o par de carimbos
revisar – censurar por toda a extensão latino-americana, advertia sobre a situação de
intensa repressão e violação dos direitos humanos. O jogo entre imagem e palavra
foi um recurso amplamente utilizado nesse período. Zabala e outros tantos artistas
criaram um léxico próprio, no qual um conjunto de ideias convergia para uma única
palavra. Por sua vez, a palavra também ganhou um novo sentido, transformando-se
em uma ferramenta necessária de convocações coletivas para a realização de uma
ação. Revisar – Censurar virou uma espécie de assinatura do artista, lembrando que
o anonimato poderia servir como tática para a circulação de obras por diferentes territórios sob controle.
Sabemos que o espaço foi utilizado, em quase toda parte, como veículo do
capital e instrumento da desigualdade social. “Impossível chegar a uma sociedade
mais igualitária sem reformular a organização do seu espaço”, dizia Milton Santos
(2004). Como parte de um consistente programa teórico e geopolítico, que visasse
planejar uma reconfiguração espacial menos díspar, o geógrafo criou dois conceitos
– tecnosfera e psicosfera (2008), que neste artigo darão novos matizes à discussão
sobre os mapas artísticos de Zabala. O primeiro seria referente ao espaço da ciência
e da tecnologia, que reproduz relações verticais e hierárquicas, vetores de uma racionalidade superior que criam um cotidiano obediente e disciplinado. A segunda seria
o “reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido, também faz
parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à racionalidade
ou estimulando o imaginário” (SANTOS, 2008, p.255). Podemos reformular alguns
problemas suscitados por essas cartografias latino-americanas à luz desses termos,
199
sobretudo, a psicosfera enquanto ambiente potencializador da criação e de novos
sentidos, um contraponto aos processos disciplinadores da experiência, o território
por excelência da subjetividade e do fazer artístico fronteiriço, lugar onde cabem
outras formas de expressão que seguem sua própria lógica. Seguindo esse viés, é
válido localizar nesse “reino das ideias, crenças e paixões” o esforço do artista de
tornar ilegítimo a organização dos espaços de poder indispensáveis para a reprodução
das interações políticas e econômicas desiguais. Na psicosfera de Zabala, o desejo de
tornar a ordem racional ilegível é intensificado por meio de intervenções poéticas que
deformam as áreas territoriais que ora são tomadas por carimbos, fogo, tinta, ora são
embrulhadas, recortadas e até golpeadas por um machado.
O crítico Fernando Davis pensa os mapas de Horacio Zabala a partir dos polos
opaco e transparente. A imagem opaca produz fugas e turbulências do sentido que
perturbam a racionalidade que organiza a sintaxe cartográfica. A “transparência” desse sistema que baseia sua lógica e funcionamento na economia de recursos e na neutralização da ambiguidade dos signos é subvertida em novas geografias. “As obras de
Zabala traçam uma cartografia da opacidade” (DAVIS, 2007, p.76). Acrescentaremos
uma outra leitura para o significado de opaco, novamente com a contribuição de
Milton Santos. Partindo da ideia de que Zabala propõe uma contra-cartografia, suas
obras podem se situar no terreno das contra-racionalidades (2008) produzidas em
[...] áreas menos modernas e mais “opacas”, tornadas irracionais para usos hegemônicos. Todas essas situações se definem
pela sua incapacidade de subordinação completa às racionalidades dominantes, já que não dispõem dos meios para ter
acesso à modernidade material contemporânea. Essa experiência da escassez é a base de uma adaptação criadora à realidade existente. (SANTOS, 2008, p.309)
A experiência da escassez como lugar de outros saberes da contra-racionalidade que a análise geográfica nos revela é esclarecedora para articular os programas
estéticos que esses artistas, entre os quais o próprio Zabala, pautaram suas produções
críticas. O geógrafo propõe esse termo para estudar as relações desiguais entre cidade
e campo e a constituição, por parte das minorias, de estratégias contra-racionais como
resistência à lógica hegemônica. Nesse sentido, as contra-racionalidades podem se
aproximar dos saberes da arte fronteiriça, procurando ativar cada vez mais a sua
relação com o entorno e com as demandas sociais, friccionando o diálogo entre a
estética e a política.
Para concluir, as cartografias de Zabala podem ser lidas a partir dessa zona de
fronteiras produtoras de novos saberes, na chave do que o sociólogo Boaventura de
Sousa Santos denomina por “ecologia dos saberes”. Parte do reconhecimento da multiplicidade de outras epistemologias promove o diálogo entre diferentes formas de
saber que “valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm
produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos.
A esse diálogo chamamos ecologias de saberes” (SANTOS; MENESES, 2010, p.7).
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http://cargocollective.com/ymago/Ranciere-Txt-2
http://www.ramona.org.ar/node/21556
reconfiguraçõeS da rede de arte poStal na
américa latina na década de 1980
bruno sayão1
a rede de arte poStal
A rede de arte postal resulta da troca de trabalhos artísticos via correios. Além
de correspondências pontuais, essa rede também permite a organização de exposições e publicações coletivas realizadas por meio de convocatórias abertas a qualquer
interessado. Na arte postal, todas as obras enviadas para exposições são apresentadas
com igual destaque, sem passar por jurados ou outro critério de seleção. Os trabalhos
que circulam nessa rede não são devolvidos aos seus remetentes, mas também não podem ser comercializados. Norteada por esses princípios, essa prática essencialmente
marginal conectou centenas de artistas motivados principalmente pela solidariedade.
A rede surgiu na década de 1960 e se estabeleceu na década seguinte, contando
com artistas de diversas nacionalidades, majoritariamente da América – Anglo-saxônica e Latina – e da Europa – Ocidental e Oriental. Ela nasceu com autonomia em
relação ao circuito artístico convencional e alheia às burocracias institucionais, permitindo a rápida disseminação da arte postal. Circularam na rede trabalhos nos mais
variados suportes e técnicas, como xerografias, gravuras, objetos, áudios e vídeos.
Frequentemente, os artistas optaram por pequenos formatos – permitindo a postagem
a um preço reduzido – e pelo uso de técnicas de fácil reprodutibilidade – viabilizando
o envio de um mesmo trabalho a múltiplos destinatários.
1.
Bruno Sayão. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da USP (PGEHA USP).
202
a rede na américa latina
Embora constituam um grupo heterogêneo, os territórios da América Latina
identificam-se entre si por oposição aos centros hegemônicos, conforme afirma Darcy Ribeiro: “de certa forma, é principalmente como o outro lado da América rica
que os latino-americanos melhor se reúnem debaixo de uma mesma denominação”
(RIBEIRO, 2010, p. 41). Foi justamente como resultado da intervenção imperialista
da “América rica” que as ditaduras militares foram instauradas na América Latina na
segunda metade do século XX, gerando uma conjuntura política comum que concedeu certa unidade à arte postal na América Latina, cujas primeiras conexões datam
do final da década de 1960.
Evidentemente, esses regimes ditatoriais influenciaram a produção dos artistas
postais latino-americanos, constantemente assombrados pela censura estatal. A denúncia da repressão política e o combate ao imperialismo estadunidense, bem como
reflexões sobre a identidade latino-americana, estão explicitadas no discurso e nas
obras desses artistas.2 Além disso, o envio de trabalhos artísticos pelos correios constituiu estratégia efetiva para, na maioria dos casos, burlar a censura (MARX, 2010;
PADÍN, 1988).3
a rede na década de 1980
O ciclo de estabelecimento e legitimação da arte postal entre os latino-americanos parece ter o seu ápice com a sua presença na Bienal de São Paulo. Em 1981, a
arte postal assumiu um novo patamar de visibilidade ao ter um espaço reservado na
XVI Bienal de São Paulo. Essa exposição, com curadoria geral de Walter Zanini, teve
um núcleo exclusivamente dedicado à arte postal, com curadoria de Julio Plaza.4 Esse
núcleo contou com mais de quinhentos participantes, tanto veteranos como novatos.
Em 1984, a exposição de arte postal Desaparecidos Políticos de Nuestra América, organizada pelo grupo Solidarte/México (Solidaridad Internacional por Arte
Correo), recebeu menção honrosa na I Bienal de Havana em Cuba. Essa exposição
teve o intuito de manifestar “apoio ante a situação dos 90 mil desaparecidos políticos conhecidos na Guatemala, Argentina, Bolívia, Paraguai, El Salvador, Brasil,
Colômbia, Chile, Honduras e inclusive México” (SOLIDARTE/MÉXICO, 1984, p.
4, tradução nossa).
2.
3.
4.
Exemplos da centralidade da identidade latino-americana na formulação teórica dos artistas postais
estão presentes, por exemplo, em Deisler (1987), Marx (2010) e Padín (1988).
De modo geral, a rede de arte postal constitui um raro espaço de livre expressão para os artistas que
viviam sob ditaduras militares. Entretanto, existiram episódios de violações de correspondências, de
fechamento de exposições, bem como de prisão e tortura de artistas postais. Sobre esses casos, ver
Sayão (2015).
Sobre a participação de Walter Zanini e Julio Plaza na rede de arte postal, ver Sayão (2015).
203
Já no final dessa década, em 1989, a arte postal esteve novamente na Bienal de
Havana. A terceira edição dessa Bienal apresentou a exposição de arte postal Te Queremos Paraguay, organizada pelo artista uruguaio Clemente Padín com objetivo de
“fazer valer os direitos humanos no Paraguai” (GUTIÉRREZ, 1989, não paginado,
tradução nossa). Vale lembrar que, nesse período, o Paraguai ainda estava sob uma
ditadura militar que havia assumido o poder na década de 1950.
Durante a década de 1980, tornou-se comum na arte postal latino-americana
a organização de exposições com pautas políticas específicas. Além das supracitadas
edições da Bienal de Havana, foram organizadas outras exposições com temas explicitamente políticos, como a luta pela retomada da democracia no Chile, o processo
de independência da Nicarágua, o combate ao Fundo Monetário Internacional e a
solidariedade ao sul-africano Nelson Mandela.
Outra inovação da rede latino-americana nos anos 1980 foi a organização de
grandes grupos de artistas postais. Desde o início da rede, coletivos de artistas participaram da arte postal, mas somente na década de 1980 surgiram grupos reunidos com a
finalidade de representar territórios. Em 1982, foi criada a já citada Solidarte/México.
Em 1983, foi criada a Asociación Uruguaya de Artistas Postales. Em 1984, foi fundada a Asociación Latinoamericana y del Caribe de Artistas Postales, em Rosário,
Argentina. Esses grupos não tinham o objetivo de regulamentar a rede, fato que seria
contrário à própria essência horizontal dessa estrutura, mas de potencializar a atuação
coletiva. Entretanto, não se pode negar que eles constituem uma espécie de corpo burocrático da rede que, embora sem funções regulamentadoras, reduziram a sua fluidez.
Esse processo de organização de grupos de artistas postais não esteve restrito
à América Latina. Em todo o mundo, foram organizados congressos descentralizados
de arte postal, conforme descreve o artista John Held Jr.:
O conceito de um Worldwide Descentralized Mail Art Congress foi desenvolvido em 1985 pelos artistas postais suíços
Gunther Rüch e Hans Rudi Fricker e realizado no ano seguinte. […] Foram realizados mais de 70 congressos com 500 participantes de 25 países. Em cada congresso foram tratados temas relacionados à rede (a natureza dos contatos interpessoais,
o mercado de arte, arquivos, comparação entre contatos de
envios massivos e a relação um a um, colaborações, etc.) e as
conclusões foram informadas aos organizadores suíços. […]
Um dos efeitos mais importantes do Mail Art Congress foi o fato de que muitos artistas postais, que haviam estado em contato epistolar, tiveram a oportunidade
de se conhecerem pessoalmente. (HELD JR., 2011, p. 34-35, tradução nossa).
O contato pessoal entre artistas postais também marcou a reconfiguração da
rede na década de 1980. Vale lembrar que, em muitos casos, esses artistas trocaram
204
correspondências por anos sem conhecer o rosto do seu interlocutor. A maior facilidade de fluxo internacional de pessoas e a retomada da democracia em alguns países
latino-americanos facilitaram esse encontro, que trouxe novos desafios à rede, conforme indica Graciela Gutiérrez Marx: “Na Argentina, a partir da abertura à democracia, a arte correio se pôs a prova como estratégia de criação coletiva. Alguns praticantes da tendência a trocaram por uma arte de comunicação cara a cara” (MARX.,
2010, p. 160, tradução nossa).
Nesse contexto, intensificaram-se os eventos de arte postal que contam com
a presença física de artistas estrangeiros. Tornaram-se comuns exposições de arte
postal acompanhadas de debates com seus pioneiros da década de 1960. Naturalmente, isso propiciou novas formas de produções artísticas resultantes desse contato
presencial, como é o caso da série Videoscópio: video-encontros na rede de arte postal, organizado pelo Núcleo de Arte Postal da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). O artista Gilbertto Prado, um dos realizadores desse projeto, relembra:
Essa série foi realizada entre 1987 e 1989 e visava dar uma nova aproximação
a contatos e intercâmbios cultivados anteriormente na vivência da mail-art. […] A
ideia era a de, com uma câmera de vídeo portátil, percorrer essa rede (alguns de nós
dessa rede), e de surpresa e sem contato prévio tocar à porta desses artistas que não
conhecia pessoalmente e estabelecer um diálogo-performance, um encontro registrado em vídeo. (PRADO, s/d, p. 5).
Esse projeto é sintomático das profundas transformações na arte postal durante
a década de 1980. Alguns dos membros da rede nas décadas anteriores encontraram
novos focos de trabalho durante a década de 1980. Entretanto, a maioria dos pioneiros da rede continuou a praticar, alguns em menor intensidade, a arte postal. Também
nessa década, dezenas de novos artistas se conectaram à rede, criando um cenário
em que coexistiram diferentes gerações de artistas postais. Esses fatores somados à
vertiginosa ampliação da rede, tornaram-na cada vez mais diversa e mutável.
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filmeS de artiSta em Super 8 e imagenS de cidade
noS anoS 1970: À luz doS filmeS “eSplendor do
martírio” (Sérgio péo) e “rio de janeiro”
(luiz alphonSuS)
Marina freire Da Cunha Vianna1
Este trabalho pretende abordar as imagens e imaginários de cidade nos anos
1970, suscitados pelos filmes de artista em Super 8, a partir de dois filmes realizados
no mesmo ano, 1974, e na mesma cidade: “Esplendor do Martírio” de Sérgio Péo e
“Rio de Janeiro” de Luiz Alphonsus2.
eSplendor do martírio (1974) – 9 min, rj – Sérgio péo3
Cena do filme Esplendor do Martírio
1.
2.
3.
Marina Freire da Cunha Vianna. Doutoranda no Programa de Pós Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Os filmes em Super 8 que, de modo geral, desestabilizaram as categorias entre filmes experimentais, filmes marginais e filmes de artistas, foram já à sua época pouco vistos e ainda pouco revistos
na atualidade. Ambos os filmes, de Sérgio Péo e de Luiz Alphonsus, encontram-se disponíveis na
internet pelo Youtube, submetidos pelos próprios artistas. O filme de Alphonsus foi submetido em
2013 e o de Péo, em 2016.
Sergio Péo (1947 - ) é arquiteto, cineasta e poeta. Entre seus filmes, estão: Contradições Urbanas,
Rocinha 77, ABC Brasil, O muro, o filme, Nanderu, panorâmica tupinambá. O filme Esplendor do
Martírio foi realizado por uma equipe reduzida, entre amigos. Nos créditos finais do filme constam
os nomes Sergio, Sandra, Aloysio e Bebel.
208
O filme Esplendor do Martírio se constrói a partir de cenas urbanas de uma
Rio de Janeiro esvaziada. A foto sobre a inauguração de um monumento a um herói
militar está estampada num jornal. Surge um jovem, corpo magro, cabelos longos,
trajando camisa e calças vermelhas que deambula pela cidade vazia ao longo da Av.
Chile e seus edifícios estatais. Uma mulher de olhos vendados e mãos atadas surge de
frente para a câmera. Ela se liberta e tira, de dentro da saia, cartas de baralho, senta-se
em meio a avenida e joga tarô sobre o asfalto. De frente para a câmera, mostra duas
das cartas, um rei e um coringa, enquanto outras estão dispostas geometricamente no
chão. O jovem de vermelho, tira a camisa e revela ataduras e curativos no seu peito e
barriga. Cena de outro jovem (o próprio diretor) vendado e atado a um poste. Aparecem um punhal sobre a linha branca de sinalização no asfalto da avenida e um par de
luvas de borracha, cada uma de uma lado do punhal. O jovem de vermelho segue a
direção da linha e está agora aos pés da estátua (monumento a Siqueira Campos e aos
Dezoito do Forte de Copacabana) que o jornal anunciava anteriormente. Parte o jovem
para um ataque, combate à estátua, atira pedras e paus. É uma violência plástica, dança-ritual em torno do imóvel, em câmera lenta. A violência se torna real ao adentrar
a polícia na cena que já não é ficção. Um policial surge e tenta impedir as agressões,
se atraca contra o ator, que se debate e corre. Nesse momento, chegam duas viaturas e
os policiais prendem o ator. Vemos um policial se aproximando em relação à câmera,
perde-se o foco e a imagem. As últimas cenas são do jovem de vermelho, sangrando,
deitado no asfalto. Restam os curativos, o sangue e as cartas de tarô.
...
No filme de Péo, as cenas são atos performáticos que se dão em espaços
públicos, totalmente a mercê da ação ou reação dos passantes. No entanto, a cidade
está esvaziada. Motivo: as filmagens foram feitas durante o jogo Brasil x Alemanha da Copa de 74. Quem disputa ou ocupa a cidade vazia além do ator-mártir, do
diretor-câmera e da atriz-cartomante? A polícia nunca esteve ausente, o controle é
presente, a violência é premente e tácita. A cena da agressão contra o monumento
é o atrito da ficção e do documentário, é a dobra poética do real. Vão presos ator e
diretor, numa realidade trágica porém irônica: dois jovens com uma câmera fazendo um filme de teor contestatório levados a uma delegacia estariam de fato numa
situação de risco, não fosse aquele um dia de jogo de copa do mundo. Ambos foram
soltos e a câmera devolvida.
209
rio de janeiro (1975) – 26 min, rj – luiz alphonSuS4
Cena do filme Rio de Janeiro
O filme de Luiz Alphonsus retrata a cidade do Rio de Janeiro pela perspectiva de um casal que, por sua experiência marginal, perpassa a cidade por entre
aglomerações e sociabilidades, espaços ermos e periféricos. A montagem, que é
concatenada pela trilha sonora, alinhava as vielas da favela, o estádio de futebol
lotado, o almoço no batuque de carnaval, o centro da cidade e seus fluxos, a praia,
espaços de devoção, uma oficina de artefatos religiosos, os bares, as casas, a periferia. A maioria das cenas é longa e dura o tempo natural da ação. Numa delas, a
câmera acompanha o transporte da escultura de uma santa, do tamanho natural de
uma pessoa, dentro de uma kombi. A santa atravessa a cidade para chegar ao subúrbio. Dentro da igreja, as mulheres rezam e choram. Mulheres maquiadas posam em
close para a câmera. Bares e casas noturnas. Os ambientes não se completam, mas
se sobrepõem. Na cena final, o casal se deita à sombra de árvores, ao lado da ladeira
do morro. Abraçam-se e brincam com um revólver. Não há tensão, a arma parece
um objeto da cotidianidade, do viver urbano. A trilha sonora, que amarra essas fragmentadas paisagens, humanas e urbanas, é feita de costuras entre samba, rock, rádio
religiosa, sons urbanos e dois poemas de Bernardo Vilhena (1949-), em voz over,
um chamado “Vida bandida”, o outro, “Mulher de Bandido”. Neste último poema,
encontramos a passagem:
Sinto malícia na lesa do pivete, na passada de mão, na contravenção. Sinto uma vontade louca de gritar no elevador, de
correr pelos corredores, de abrir todas as portas [...] Mas o que
eu quero de um bandido, não é só dinheiro, é vontade de lutar.
(trecho do áudio do filme Rio de Janeiro)
4.
O filme do artista Luiz Alphonsus (1948 - ) teve em sua equipe os artistas Cildo Meireles, Dinely Campos e Maria do Carmo Secco, os poetas Bernardo Vilhena e Eudoro Augusto e o músico Sidney Miller.
Entre demais filmes de Alphonsus, estão Bares cariocas, Besame Mucho, 3 poetas, Noite acesa.
210
...
O casal “bandido” e “mulher de bandido” se infiltra na cidade como quem
está à espreita, nas brechas, nas margens, buscando entradas, as portas para abrir.
A cidade aqui é amontoado, saturação, colagens. Eles habitam a cidade naquilo que
reconhecem: são as sobras, são as lacunas, o limiar. São personagens urbanos que
não se sustentam por sua forma ou estrutura, mas sim, ao contrário, pela sua condição
sem eira nem beira. E é daí, dessa condição deslizante, que fazem emergir a crítica à
cidade cartão-postal, esta que veem de cima.
Cidade (re)velada. Cidade em cena ou A outra cena?
Por certo, as experiências dos artistas em imagem em movimento deixam entrever uma ideia e imagem de cidade comprometidas, talvez mais do que com as cidades existentes, com as cidades conformadas pelo desejo mesmo do artista. É claro
que esse desejo não emana puramente do artista, mas confunde-se com um substrato
cultural e social. Devemos considerar tal imaginário de cidade constituído por índices
de cotidianidade, perscrutados no real, por ordenações fantásticas e ficcionais e ainda
pela evocação de certa invisibilidade, ou seja, a percepção do que, mesmo quando
índices de cidade não estão postos em cena, irrompem e transparecem e assim, dão a
ver a partir de sua latência.
Tanto o filme de Péo quanto o filme de Alphonsus lançam olhares para a
cidade do Rio de Janeiro que tensionam as imagens já fortemente consolidadas,
tanto das paisagens cariocas, quanto de um modo de vida social e cultural. Atualizam essas imagens já cristalizadas em clichés, como o futebol, o carnaval, a orla,
os edifícios estatais do centro da cidade para apresentar outras versões. A versão
do confronto real com a polícia, a versão do confronto simbólico à cidade oficial, a
versão do jogo mágico ritualizado no meio do asfalto, a versão da santa deslocada
até os lugares que não são midiatizados, a versão da cidade em fragmentos, são
apenas alguns exemplos.
Os imaginários de cidade que os filmes de artista com temática urbana ajudam a tecer perpassam por enunciar a cidade como lugar de certa possibilidade
para aquilo que é incontrolável e indomável da condição humana e social. A cidade,
como abrigo e estímulo para aquilo que escapa às estruturas de controle e da ordem,
se estabelecerá como contraste à força repressiva do regime militar. Mas, também, a
cidade como contraste ao pensamento de cidade-máquina, que via, a partir de uma
perspectiva moderna, no urbanismo disciplinador e funcionalista, o promotor de
espaços democráticos e igualitários para todos5. Nesse sentido, a cidade entrevista
pelos filmes dos artistas é o tecido que resiste ao controle forçado da ditadura e, ao
mesmo tempo, rejeita sua instância institucional e oficial, nas dimensões de Plano,
Discurso e Ordem.
5.
Utopia esta que promoveu, desenhou e construiu a cidade nova, Brasília em 1960.
211
Convocar o olhar à margem – das oficialidades e institucionalidades – é, alegoricamente e simbolicamente, de um lado, demarcar a recusa às ordenações impostas e, de outro, dar a ver espaços heterotópicos, de alguma disputa e confronto. A
cidade como espaço esgarçado é a fresta aberta pelos filmes em Super 8, ao ativar o
ato de filmar na prática, na rua, diante do real e do possível. E, assim, poder “filmar
os monstros que pintam6”, nas palavras de Torquato. A Rio de Janeiro de Péo, com
escassos espaços de ativação, é nas palavras de Rubens Machado Jr, uma “urbe retalhada”. Pergunta Machado Jr: “sem suturas possíveis fora do sacrifício em curso?
E sem esplendores fora do corrente martírio?7” De certa maneira, é também entre o
esplendor (e a falta dele) e o martírio que, na inoperância de espaços públicos, se
pende a Rio de Janeiro de Luiz Alphonsus, onde sujeitos sem eira nem beira parecem
constantemente se mover.
referênciaS
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NETO, Torquato. Torquatália: obra reunida de Torquato Neto. Paulo Roberto Pires (org). Rio de
Janeiro: Rocco, 2004.
6.
7.
Diz Torquato Neto, na coluna Geleia Geral: “[...] Pegue uma câmera e saia por aí, como é preciso agora: fotografe, faça seu arquivo de filminhos, documente tudo o que pintar, invente, guarde.
Mostre. Isso é possível. Olhe e guarde o que viu, curta essa de olhar com o dedo no disparo: saia
por aí com uma câmera na mão, fotografe, guarde tudo, curta, documente. Vamos enriquecer mais
a indústria fotográfica. Mas pelo menos assim, amizade: documentando, fotografando, filmando os
monstros que pintam, pintando sempre por aí com o olho em punho, a câmera pintando na paisagem
geral brasileira. [terça-feira, 19 de outubro de 1971]. (Neto, p. 277).
Machado Jr, Rubens. “A iconoclastia fissurada de Esplendor do Martírio (1974) de Sergio Péo”.
Disponível em < http://socine.org.br/adm/ver_sem2.asp?cod=520> (Acesso em 01/08/2016).
212
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nos anos 60 e 70. Rio de Janeiro: Heco Produções. 2004.
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XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento – cinema novo, tropicalismo e cinema marginal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
a fotografia humaniSta e a américa latina:
aproximaçõeS e mediaçõeS artíStico-culturaiS
erika zerwes1
O trabalho historiográfico sobre a fotografia na América Latina, apesar de
atualmente ser bastante prolífico, é ainda recente. Ao que se tem notícia, a própria
noção de “fotografia latino-americana”, articulada de um modo mais consistente,
apenas começou a se consolidar em 1978, com a realização do Primer Coloquio Latinoamericano de Fotografia, na Cidade do México (CMF, 1978a). Um ponto específico pode ser ressaltado na formação historiográfica desta noção: as suas significativas
ligações com a chamada fotografia humanista, ‘uma corrente que privilegia a pessoa
humana, sua dignidade, sua relação com o seu meio” (BEAUMONT-MAILLET in
BEAUMONT-MAILLET; DENOYELLE, 2006, p. 11)2.
O fotógrafo mexicano Pedro Meyer (1935), membro do Consejo Mexicano
de Fotografia, e um dos principais organizadores do primeiro Coloquio, afirmou em
uma entrevista em 2004 que “a fotografia latino-americana nasceu na cidade de Nova
Iorque”, em 1976 (Apud VILLARES FERRER, 2016, s/p). Neste ano, Meyer estava na cidade estadunidense para divulgar e, segundo ele, procurar uma interlocução
sobre seu trabalho. Seu primeiro destino havia sido o MoMA, uma instituição historicamente bastante ligada à fotografia e, mais ainda, à produção historiográfica sobre
a fotografia (NEWHALL, 2003). Sem conseguir a recepção que desejava, Meyer se
encaminhou então ao International Center of Photography (ICP). Essa instituição,
fundada dois anos antes pelo fotógrafo húngaro naturalizado norte-americano Corne1.
2.
Erika Cazzonatto Zerwes. Doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) e pós-doutoranda pelo Museu de Arte
Contemporânea da USP. É bolsista FAPESP.
Este movimento fotográfico teve início na França no período entre as guerras mundiais, mas se
internacionalizou após a Segunda Guerra Mundial, por meio da ampla circulação de imagens veiculadas por agências fotográficas, como por exemplo a Magnum, e nas revistas ilustradas, como a
norte-americana Life. Sobre seu período inicial (ZERWES, 2014, pp. 159-177).
214
ll Capa (1918-2008), congregava um fundo reunindo arquivos de vários fotógrafos
associados à fotografia humanista, além de uma escola e um espaço expositivo.
Segundo Meyer, o verdadeiro interesse de Capa ao recebê-lo seria conhecer
mais sobre a produção fotográfica na América Latina (apud VILLARES FERRER,
2016, s/p). Esse encontro teria chamado então a atenção de Meyer para o desconhecimento, entre os próprios fotógrafos da região, do que era produzido na América
Latina, o que teria levado Meyer a participar da organização de um colóquio sobre
o assunto e, assim, teria possibilitado a consolidação de uma noção de “fotografia
latino-americana”. Quando o Coloquio finalmente aconteceu, dois anos depois dessa visita, Cornell Capa participou da exposição com duas fotografias, que estão no
catálogo, ministrou uma das oficinas e proferiu uma palestra. O papel do ICP e de
Capa para a realização do primeiro Coloquio nos parece significativo, pois tanto a
instituição quanto o fotógrafo têm uma forte ligação com a fotografia humanista e
com a manutenção de sua tradição.
Em 1981, apenas três anos após a realização deste primeiro Coloquio, aconteceu no museu Kunsthaus de Zurique a primeira exposição de fotografia latino-americana – entendida a partir de um discurso unificador – na Europa. Concebida
e realizada pela curadora alemã Erika Billeter (1927-2011), essa exposição e seu
catálogo, ambos intitulados Fotografie Lateinamerika, von 1860 bis heute, tiveram profunda ligação com o primeiro Coloquio. Billeter esteve no México pesquisando na coleção reunida naquela ocasião, que até hoje se constitui como um dos
principais arquivos sobre o assunto. Não só muitos dos fotógrafos participantes do
Coloquio estão presentes na exposição e no catálogo montado por Billeter, como
também autores de ponencias contribuíram com textos para o livro-catálogo. Em
especial, podemos citar o brasileiro Boris Kossoy, cujo texto falava sobre a pesquisa que revelou a descoberta isolada da fotografia no Brasil por Hercules Florence
e, assim, reivindicava um lugar de relevância para o subcontinente na história da
fotografia (BILLETER, 1981, pp. 19-30).
Essa primeira experiência levou Erika Billeter a desenvolver sua pesquisa sobre a fotografia na região e, em 1993, ela publicou pela editora espanhola Lunwerg o
livro Canto a la Realidad, Fotografia Latinoamericana 1860-1993. Esse segundo livro, no entanto, se difere do livro-catálogo da exposição suíça pela sua temporalidade
ampliada em uma década, mas também – e principalmente – por que todo o texto é de
autoria da própria Billeter. Ao invés de convidar representantes de alguns dos países
com maior visibilidade para falarem de suas produções e histórias das fotografias de
forma separada, como na primeira publicação, nessa segunda o texto de Billeter é dividido por categorias temáticas elaboradas por ela e tratadas cronologicamente. Essa
narrativa cronológica deixa entrever seus critérios historicistas e a própria vontade de
constituir uma historiografia. A importância de Canto a la Realidad como um marco
fundamental dentro da historiografia da fotografia latino-americana é reconhecida
pela bibliografia (BARBOSA, 2013, p. 563; BETTINO, 2015, pp. 79-80).
215
É visível por todo o texto de Billeter que sua tentativa de unificar um discurso
histórico sobre a fotografia latino-americana é realizada por meio da tentativa de
incorporar essa na narrativa histórica tradicional do meio, construída dentro do eixo
França-Inglaterra-EUA. O livro é dividido em duas partes: uma que vai até a década
de 1950 e outra que trata dos “contemporâneos”. No caso da primeira parte, o discurso tenta a todo momento inserir os pioneiros da fotografia na América Latina dentro
de movimentos e práticas fotográficas europeias ou norte-americanas. Já na segunda
parte, quando Billeter vai tratar da fotografia contemporânea, é a tradição humanista
da fotografia documental que ela vai evocar para conferir unidade à produção latino-americana, desde os anos de 1950 até a última década do século XX, na cronologia
histórica lá apresentada. De forma sintomática, ela afirma que “Os autores latino-americanos (talvez os mencionados aqui sejam muito poucos) se sentem motivados
por valores éticos e humanos” (BILLETER, 1993, p. 62). Falando especificamente
sobre a reportagem fotográfica – onde o humanismo havia se desenvolvido a partir do
pós-Segunda Guerra e, portanto, seu lugar privilegiado –, ela associa diretamente a
fotografia documental de fotojornalistas latino-americanos com a vertente humanista
(BILLETER, 1993, p. 50).
Em comum, os fotógrafos escolhidos e a narrativa do texto apresentam a fotografia latino-americana a partir de um olhar que corresponde aos elementos que tradicionalmente caracterizaram a região. Um exemplo é a associação entre a concepção
humanista do fotojornalismo subcontinental e a temática da violência e da guerra.
Assim, é visível que Canto a la Realidad privilegia, a partir de um predomínio do
documental e do preto e branco, não apenas os temas relacionados à violência, mas
também relacionados ao exótico e propostas próximas do realismo fantástico.
A fotografia humanista, tanto por suas características próprias quanto pela imprecisão e amplitude de suas definições, pôde, na interpretação de Billeter, dar conta
de todos estes aspectos da fotografia documental por ela favorecidos. O humanismo
se tornou assim, na pena da autora, uma espécie de bala de prata, capaz de unir as
diferentes manifestações da fotografia na América Latina em uma narrativa histórica
única e cronológica, compatível com os critérios historicistas e eurocêntricos.
Por um lado, a exposição e o livro foram pensados, produzidos e apresentados
fora da América Latina, por uma autora europeia; nesse sentido, a forte presença do
humanismo subjacente à interpretação que a autora fez da fotografia na região seria
um indício deste deslocamento. Por outro lado, por ser uma iniciativa de certo modo
pioneira, a autora não possuía uma fortuna crítica ampliada sobre a qual trabalhar
e imaginamos que ela tenha precisado lançar mão do que tinha ao seu alcance para
forjar uma narrativa histórica a partir de indivíduos, práticas e produções fotográficas
tão díspares como as produzidas dentro da região. Nesse sentido, é bastante significativo que ela tenha encontrado nesta fotografia tanta abertura para tal interpretação
impregnada da tradição humanista.
216
A noção de “fotografia latino-americana” certamente não é algo natural, existente apenas devido à fronteiras e geografias, mas sim uma construção histórica. É
possível acompanhar seu surgimento, enquanto movimento internacional e conceitualmente mais articulado, entre finais da década de 1970 e inícios da década de
1980. Como movimento internacional, um de seus marcos iniciais é o Primer Coloquio Latinoamericano de Fotografia, e como noção mais articulada conceitualmente,
pode-se dizer que um de seus marcos fundamentais seja o trabalho de Erika Billeter.
Em ambos os casos, existem referências concretas à estética e aos ideais da chamada
fotografia humanista. Tal movimento fotográfico também passou a ser objeto do trabalho histórico no mesmo período – período em que, não coincidentemente, é visível
uma valorização da fotografia como meio artístico pela crítica e pelo mercado.
As associações entre a fotografia latino-americana e o humanismo certamente
necessitam ainda de mais demoradas investigações. Acreditamos, no entanto, que ao
refazermos um percurso bibliográfico através das produções críticas que buscaram
produzir uma narrativa histórica unificadora de ambas as fotografias, seja possível
levantar algumas relevantes questões para um estudo da historiografia desta fotografia subcontinental. Pode-se ressaltar que, em comum com o movimento que começou
na França, e depois se internalizou, as diretrizes do Coloquio e a interpretação de
Billeter sobre a fotografia latino-americana ressaltam o papel dos fotógrafos como
autores (BILLETER, 1993, p. 13; CASANOVA in RIBALTA, 2015, p. 94). No que
diz respeito àquilo que esses fotógrafos registraram, é possível encontrar na fotografia latino-americana representada no Coloquio de 1978 e no trabalho de Billeter uma
posição semelhante ao que é enfatizado por Peter Hamilton na fotografia humanista,
quando esta se desloca da classe ouvrière, ou operária, para se focar na classe populaire, ou popular (HAMILTON, 2007, p. 93). É justamente nesta classe popular
que tanto a fotografia humanista francesa quanto a fotografia latino-americana como
elaborada naquele momento vão encontrar certos desvios, um humor, ou então um
leve estranhamento, que lhe são particulares. Acreditamos, portanto, que as escolhas
curatoriais e os discursos construídos com elas por Billeter, assim como os discursos produzidos na ocasião do Primer Coloquio, são de grande consequência para
historiografia da fotografia latino-americana – do mesmo modo que são também as
associações destes discursos com o discurso humanista.
referênciaS
BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio. Fotolivros e História Comparada da Fotografia na América
Latina: Reflexões teóricas e possibilidades de investigação. In IV Encontro Nacional de Estudos da
Imagem I Encontro Internacional de Estudos da Imagem. Londrina, 2013. Parte deste artigo foi publicada também em Balance historiográfico de la fotografía latinoamericana a partir de una perspectiva brasileña. Metodologías y ejes de análisis. 2011 [on line]. Último acesso em 25/06/2016. Disponível em: <http://www.ungs.edu.ar/cm/uploaded_files/file/publicaciones/trama/sampaio.html>.
217
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1945-1968 Autour d’Izis, Boubat, Brassaï, Doisneau, Ronis... Éditions de la BNF, 2006.
BETTINO, Carla. Mapas abiertos: fotografía latinoamericana 1991-2002. Lo latinoamericano en
el relato sobre la fotografía. Boletín de Arte (N.° 15), pp. 77-84, septiembre 2015. Disponível em
http://papelcosido.fba.unlp.edu.ar/ojs/index.php/boa
BILLETER, Erika (org). Fotografie Lateinamerika, von 1860 bis heute. Zürich, Bern: Kunsthaus, Benteli Verlag, 1981.
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ZERWES, Erika. Iconografias de esquerda: encontro entre cultura visual e cultura política em fotografias da Guerra Civil Espanhola. In: Visualidades v.12 n.2, jul-dez 2014, pp. 159-177.
o carnaval naS obraS de portinari: regiStro e
preServação da memória
Maria Cristina CaPonero1
eDson leite2
introdução
Desde o séc. XVI, as festas vêm pontuando a vida cotidiana brasileira, mas
seus primeiros registros iconográficos surgiram somente no séc. XIX, com a produção dos artistas viajantes que integraram expedições artísticas e científicas com o propósito de documentar pela arte. Esses registros são importantes fontes iconográficas
para o estudo da vida social brasileira por representarem acontecimentos históricos,
cotidianos, usos e costumes.
As transformações sociais, a evolução da indústria, a vida simples no campo, as
crenças populares, as festas etc. foram retratadas pelos modernistas da primeira geração que estavam preocupados com os diversos aspectos de nossa identidade cultural.
Suas obras são plenas de crítica social revelada implícita ou explicitamente em meio a
seus potenciais criativos e estético-expressivos, transportando-nos para cenários ricos
em cores e traços, mas plenos de múltiplos sentidos e significados. No entanto, eles
acabaram incorrendo, muitas vezes, no mesmo erro dos acadêmicos que eles próprios
condenavam, procurando o Brasil na Europa.
candido portinari e Sua obra
Portinari estudou na Europa, mas, durante o período em que lá permaneceu,
nunca pintou, decidiu que, ao retornar ao Brasil em 1931, pintaria “aquela gente com
1.
2.
Maria Cristina Caponero. Pós-doutoranda do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
220
aquela roupa e com aquela cor…” (PROJETO PORTINARI, s/d). Em suas obras é frequente o elemento popular, retratando em várias delas os mais pobres ou infelizes, os
seus sentimentos, as suas memórias, as recordações e reminiscências de sua infância
que envolviam temas folclóricos e regionais, inclusive as festas, sobretudo o Carnaval, abrindo, assim, uma pequena fresta da nossa realidade histórica e sociocultural.
Portinari não “concebia sociedade sem arte, nem arte sem significado social”
(AJZENBERG, 2012, p. 16). Segundo ele, “[...] todo artista que medite sobre os
acontecimentos que perturbam o mundo chegará à conclusão de que fazendo um
quadro mais ‘legível’ sua arte, ao invés de perder, ganhará. E ganhará muito, porque
receberá o estímulo do povo” (PORTINARI, 1947. In: MOREIRA, 2001, p. 129).
o carnaval na obra de candido portinari
Portinari pintou vinte e cinco obras que tiveram as festas como temática, sendo dez delas especificamente sobre o Carnaval, a saber: Bloco Carnavalesco (1933),
Desfile de Carnaval (1941), Maria Rosa no Carro (1941), Máscara (1941), Carnaval
(1942), Frevo (1956), Frevo (1957), Carnaval (1957), Carnaval (1960) e Frevo (1961).
No desenho Bloco Carnavalesco, Portinari destaca que a festa ocorria no espaço público urbano, perceptível pelo poste de luz e por algumas edificações dispostas
no fundo da cena. Trata-se de um bloco de rua com sua bandeira, um aglomerado
desordenado que ocupa um espaço público delimitado, provavelmente afastado da
cidade. Portinari mostra que a festa mobilizava homens e mulheres, predominantemente negros, perceptível pelos traços físicos dos personagens retratados (lábios volumosos e grossos, narinas grandes, cabelos crespos, corpos robustos e deformados,
ressaltados numa expressão típica de Portinari, visando a retratar a força de trabalho)
e pelas vestimentas (turbantes, saias rodadas e chapéus).
Figura 1 - PORTINARI, C. Bloco Carnavalesco, 1933.
Desenho a crayon/papel. Composição em preto e branco, 35 x 73 cm
Fonte: Coleção Particular. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/3436/detalhes>.
Acesso em: jun. 2016.
221
Portinari também traz à luz o caráter popular dos festejos pela presença de
brincadeiras, da espontaneidade e da permissividade característica do Carnaval, reveladas pelos trajes e pelo uso da máscara. O desenho nos deixa entrever que a música e
a dança ritmavam a festa; a música marcada pelo pandeiro e pela cuíca e a dança pela
posição dos braços abertos e elevados e das pernas afastadas ou levantadas, representando corpos em movimento que realçam a euforia e a alegria da festa.
Em Desfile de Carnaval, a cena que predomina é o panorama de uma ampla
avenida cercada por edificações luxuosas, com sacadas, por onde passa um desfile
de luxuosos carros conversíveis, marcando a distinção social e mostrando que as
pessoas de alto poder aquisitivo também se apoderavam da festa. Portinari foca nos
que brincam na avenida; é a eles que são lançados os fachos de iluminação vindos
dos holofotes do alto dos prédios (LARA; SOUZA; PORELLI; CORDEIRO, 2011),
mesmo estando representados sem traços fisiológicos numa demonstração de que a
festa era de todos e para todos. As brincadeiras que ocorriam durante a festa estão
simbolizadas por linhas coloridas que atravessam toda a pintura, sugerindo serpentinas sendo lançadas dos camarotes ou das sacadas. A alegria da festa é salientada pelas
cores vermelho, azul e amarelo.
A obra Maria Rosa no Carro possui características semelhantes às da obra supracitada, demonstrando que os desfiles carnavalescos contavam com a presença dos
brancos da elite, simbolizados por um homem e duas meninas de corpos refinados,
confortavelmente acomodados num luxuoso carro conversível e elegantemente trajados: ele trajando terno, gravata borboleta, chapéu e sapatos, elas, vestidos rodados,
vestimentas que poderíamos considerar inadequadas à festividade. A alegria da festa
é salientada pelo uso das cores amarelo, azul e vermelho das vestimentas, das serpentinas e dos confetes lançados sobre o carro. Próximo à roda do carro visualizamos
uma máscara, peça típica e essencial dos festejos carnavalescos, usada, inclusive,
para ocultar e mesclar as diferentes classes sociais.
A máscara, o confete, a serpentina, o pandeiro e outros apetrechos fundamentais às comemorações carnavalescas ganham destaque na obra Máscara.
Figura 2 - PORTINARI, C. Carnaval (1957)
Pintura à aquarela e a grafite/papel nos tons amarelos, ocres, cinzas, branco e preto, 27,9 x 48,3 cm.
Fonte: Coleção Particular. Disponível em: <http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/5308/detalhes>. Acesso em: jun. 2016.
222
Em Carnaval (1957), Portinari demonstra a pluralidade permissiva de uma
festa em que tudo é válido. Na obra estão representados três homens dançando frevo:
um deles porta a sombrinha típica da festividade pernambucana; um segundo traja
roupas e chapéu de cangaceiro e porta uma espingarda e o terceiro traja uma fantasia
de Bumba meu boi e chapéu de palha. As brincadeiras carnavalescas são ressaltadas
pelos meninos que dançam e plantam bananeira. A presença da música é constatada
pelo esboço de um homem tocando clarineta e por outro tocando chocalho. A geometrização dá ritmo à tela, delineando as pessoas e permitindo que os corpos se toquem
e se misturem. O fundo é preenchido com áreas geométricas irregulares.
Ajzenberg (2012) explica que a geometrização nas obras de Portinari surge
como possibilidade de solução estética inspirada, em grande parte, em Picasso. Os
tons pálidos que transitam entre o sépia rosado e o degradé ocre repre-sentam uma
homogênea sobriedade e tristeza características do pintor, mesmo ao retratar o Carnaval, festa dominada pela alegria e pelas cores.
Figura 3 - PORTINARI, C. Carnaval (1960).
Pintura a óleo/cartão, nos tons azuis, amarelos, rosas, violetas, vermelhos, laranja, terras, branco,
verde e preto, 20 x 23,5 cm.
Fonte: Coleção Particular. Maquete para o painel Frevo pertencente ao Pampulha Iate Clube.
Disponível em: <http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/5308/detalhes>. Acesso em: jun. 2016.
Em Carnaval (1960), Portinari representa a avenida, os prédios, o mar e o
céu. A multidão agrupada representa os integrantes de uma Escola de Samba, com
a presença da porta-bandeira, dos músicos e das baianas. O Carnaval espetáculo é
simbolizado pelos expectadores sentados nas arquibancadas sugeridas no fundo da
tela. Assim como em algumas das obras anteriormente citadas, causa estranheza o
fato de novamente Portinari colocar na cena um homem trajando fantasia de Bumba
meu Boi, com roupa e chapéu de cangaceiro e cartucheiras cruzadas no peito. Na cena
há também um tocador de cuíca que porta um chapéu pontudo em alusão ao palhaço.
223
O sambista está estereotipado por um homem (sem face) trajando camiseta listada,
terno claro, chapéu de palha e sapatos de verniz e que permanece sentado sobre um
caixote, tocando uma viola. A presença dos negros é predominante na festividade,
mas alguns brancos também estão presentes, mas apenas como músicos, tocando
flauta, violão, cuíca e clarinete, alguns destes, inclusive, instrumentos normalmente
não associados à festividade. Os diferentes níveis sociais também são demarcados
pelos pés descalços dos negros em oposição aos brancos calçados. A composição
é toda geometrizada, exceto no canto superior esquerdo onde estão representados
os elementos que nos permitem espacializar a festa – o calçadão com desenho característico da Praia de Copacabana. Contrariamente à obra Carnaval (1957), nesta
obra homônima, datada de 1960, a festividade e os foliões ganham brilho, alegria e
emoção pela exaltação cromática com o emprego de cores claras, quentes e vibrantes,
característica não usual na obra de Portinari.
Portinari pintou ainda diversas obras correlacionadas com o Carnaval, intituladas Frevo (1956, 1957, 1960 e outras), mas não as contemplamos na presente análise
por serem um recorte de uma prática regionalizada. Também não foi contemplada a
obra Carnaval (1942) pois, apesar de seu título, não apresenta nenhum indício de que
se refira à festa em questão, uma vez que o espaço retratado é o morro e o destaque
dado por Portinari é para a música. Esta obra, inclusive, foi um estudo para a realização posterior de uma outra, executada sob encomenda de Assis Chateaubriand para
decorar a sede da Rede Tupi do Rio de Janeiro, passando então a se chamar Morro e
deixando à parte o Carnaval.
conSideraçõeS finaiS
Ao analisarmos as representações iconográficas do Carnaval nas obras de Candido Portinari, entendendo-as como fontes que nos permitiram compreender os elementos visuais nelas contidos e os sentidos aludidos por estas imagens, contatamos
que elas transmitem inúmeras informações históricas e sociais, permitindo claramente a constatação da realidade e a preservação da memória. No entanto, ao utilizarmos
uma pintura como uma fonte documental, devemos ter em mente que se trata de uma
representação da vida material e não um retrato fiel da realidade, mas, mesmo assim,
ela pode nos fornecer pistas para conhecermos os valores cultivados por uma determinada sociedade.
Como vimos, provavelmente buscando realçar a cultura popular, Portinari insere no registro do Carnaval diversas figuras alheias à festividade como o cangaceiro,
o Bumba meu Boi, o palhaço, os capoeiristas e outras. Certo é que Portinari sempre
deu muita importância ao conteúdo de suas obras, porém não devemos nos esquecer
de que ele é pintor e que usa a liberdade que lhe permite a arte (AJZENBERG, 2012).
224
referênciaS
AJZENBERG, Elza. Portinari: Três Momentos. São Paulo: Edusp, 2012.
LARA, Larissa M.; SOUZA, Thais G. de; PORELLI, Ana Beatriz G.; CORDEIRO, Natália C. R.
Iconografia das festas populares em Cândido Portinari: sentidos/significados das expressões
carnavalescas. Rio Claro: Motriz, v. 17, n. 3, p. 498-510, jul/set, 2011.
PORTINARI, Candido. Sentido Social del Arte. Buenos Aires: Centro de Estudiantes de Bellas
Artes, 1947. In: MOREIRA, Marcos. Candido Portinari. São Paulo: Três, 2001.
PROJETO PORTINARI. Disponível em: <www.portinari.org.br>. Acesso em: jun. 2016.
recorrência na pintura: traçoS compartilhadoS
noS proceSSoS individuaiS de criação de
catunda e milhazeS
anDréa Virginio Diogo garCia1
ana helena Da silVa Duarte Delfino2
Ao falar sobre pintura contemporânea, de modo geral, parece ecoar a ideia de
uma produção dotada de pleno “ineditismo”, sem vínculos com a historicidade plástica e de difícil compreensão para o grande público. O ensejo para desmistificar tal
ideia tem norteado a pesquisa de extensão, bem como o estudo continuado junto ao
Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino (NUPPE/UFU) da Universidade Federal de
Uberlândia – MG, sobre a recorrência como um traço inerente ao processo criativo
pictórico, objetivando assim ampliar as reflexões sobre o tema.
Inicialmente, é preciso conceituar e diferenciar Recorrência Histórica Plástica
e Recorrência Plástica. Ambos apontam momentos distintos e históricos ao longo
da processualidade artística. De maneira abrangente, a recorrência é entendida “[...]
pela ação processual do artista de voltar o olhar ao que já foi realizado no passado
– distante ou imediato – para dar a sua criação alguma autonomia relativa à tradição
na qual está inserido”, de acordo com Garcia (2014, p. 13). Ainda segundo a autora é
[...] a essência do fazer artístico: a força que atua como uma
constante independentemente do período histórico e da variação do grau de ruptura com a matéria, o suporte ou a linguagem artística. Sua existência se faz notar desde o uso da
matéria, permeando a concepção do trabalho, até a obra que se
apresenta ao espectador. (GARCIA, 2014, p. 13)
1.
2.
Andréa Virginio Diogo Garcia. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino da
Universidade Federal de Uberlândia (NUPPE/UFU).
Ana Helena da Silva Duarte Delfino. Professora de Artes no Instituto de Artes da Universidade
Federal de Uberlândia (IARTE/UFU) e em programas de pós-graduação no IARTE/UFU e na Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
226
Para uma rápida contextualização histórica a recorrência pode ser dividida em
dois grandes períodos. No primeiro período até início da arte moderna, os aspectos
pertinentes a ela são mais implícitos e ligados ao caráter qualitativo da representação
figurativa, na busca de superá-la para obter maior fidelidade realística. Tal busca de
superação começa a dar contornos ao que vem a ser a Recorrência Histórica Plástica. No segundo período, a partir da arte moderna, os aspectos são mais explícitos e
por vezes indissociáveis da poética do artista, com maiores graus de rupturas com a
tradição a qual recorre ou se está inserido. A Recorrência Histórica Plástica é caracterizada pela ação de procura de elementos – consolidados na trajetória da arte – externos ao fazer individual, com intuito de superação ou ressignificação – esse último
notadamente nas obras contemporâneas. Quando a recorrência é interna a elementos
da própria trajetória do artista, é consolidada a recorrência plástica.
As vanguardas modernas foram – de certo modo – responsáveis por uma educação estética para a aceitabilidade de uma pintura marcada por caráter coletivo, criando
assim uma área de conforto apreciativo. A pintura contemporânea por sua vez, rompe
com essa premissa, acentua a individualidade, questiona os limites do plano pictórico
e da materialidade expressiva. Essa individualidade possivelmente atua como o maior
fator de ruptura com o espectador no que concerne a sua zona de conforto. Ela também
dá contornos acentuados a uma produção mais sólida sob os aspectos das definições
poéticas. Essa solidez por seu tempo se faz notar pela Recorrência Plástica. Em face
do exposto até aqui, este estudo infere que não há fazer pictórico que seja totalmente
desvinculado de Recorrência Plástica na processualidade criativa que dote a obra de
“ineditismo absoluto” e incompreensível. As recorrências plásticas internas a feitura
configuram a poética singular do artista e por sua vez atuam como lei individual sob a
qual se fundamentam as múltiplas possibilidades de concreção criativa. Elas operam
perceptivamente como traços compartilhados e intrínsecos a processos individuais de
criação. Sendo as obras entendidas como o testemunho tangível de seu processo criativo, o foco direcionador da investigação sobre a recorrência está no trânsito dos dados
imagéticos observáveis. Assim, na fase atual, esta pesquisa privilegia a leitura dos indícios explícitos nas pinturas das artistas Leda Catunda e Beatriz Milhazes.
As obras de Leda Catunda revelam uma trajetória operacional marcada pela
recorrência. Essa se inicia pela concepção, perpassa pela materialidade e se fixa no objeto finalizado. A finitude de cada pintura é um momentâneo “intervalo” no processo
criativo, uma vez que traz em seu bojo outras questões e incitamentos. Neste ínterim,
instaura-se a recorrência propriamente dita enquanto processo operativo. O estudo
prévio realizado por Leda usando colagens de sobras de materiais compõe um acervo
de iconografias evocativas. Uma vez executada a obra, e observada em trajetória pictórica, tem-se ativada uma reminiscência perceptiva de imagens parentais, porque a
recorrência plástica se torna fixada nas pinturas-objetos e é vista quer seja por temas,
figuras, formas ou imagens recorrentes. É o que pode ser notado, por exemplo, nas
obras Todo pessoal – 2005, Os amantes III – 2008, Eu te amo meu bem – 2009. Os re-
227
feridos indícios contidos nas obras demonstram que para uma poética se tornar definida pelos contornos ideados pelo artista é necessária a instauração da recorrência como
fundamento em alguma das etapas de sua processualidade, uma vez que ela possibilita
corporificar todos os elementos capazes de materializar o intangível.
Na obra de Beatriz Milhazes, há a presença explícita e constante de recorrência
plástica observável pela concepção do uso cromático, dos planos, das figuras e dos
motivos. A singular articulação desses elementos aliados a grande escala das telas
conferiu a seus trabalhos uma identidade visual inconfundível. O início de sua jornada
artística é caracterizado pela recorrência histórica plástica a elementos ornamentais
do Barroco tais como anjos, colunas, volutas e arabescos dentre outros; ainda ao modernismo europeu na figura de Matisse com sua tradicional pintura planar de forte
aspecto decorativo com formas de caráter gráfico e de Mondrian com sua organização
de planos de cores verticais e horizontais, bem como, a modernista Tarsila do Amaral
na organização de sua paleta cromática singular. Ao se apropriar de elementos da visualidade histórica e transpô-los em novas significações para seus trabalhos, Beatriz
Milhazes formou ao longo dos anos um vasto repertório iconográfico e, a partir desse,
formalizou sua processualidade pela recorrência plástica agora interna a própria obra.
A recorrência plástica explícita e indissociável da poética da artista corporificada na
visualidade pictórica é atestada por colocações pontuais como a de Oswaldo Corrêa
Costa (2008, p. 103) “[...] um círculo dentro de um quadrado representa uma combinação formalmente ideal e recorrente na obra de Milhazes” e, ainda, “Em Milhazes, a
recorrência é fundamentalmente um recurso de composição [...]” (idem, p.111). Nas
obras A primavera – 1995, O Buda – 2000 e Avenida Brasil – 2003/2004, é possível
observar a existência de elementos composicionais recorrentes como a pintura de rosas estilizadas por traços gráficos, o círculo seriado de contas redondas, a circularidade orientadora da composição de alguns motivos e, no caso das duas últimas, o ritmo
do movimento ditado pelo arabesco de pseudas volutas e listras. Estas últimas, de um
uso inicial quase tímido, ganham nos anos seguintes maior espacialidade e consecutiva dramaticidade ótica. A obra de Milhazes propicia a visualização nítida sobre a instauração da recorrência pela explicites de seu uso como prática intrínseca a seu fazer.
O excesso de imagens que ajudam a definir a identidade visual das pinturas da artista
evocam reminiscências de algo já visto, de uma lembrança imagética, mas ressignificada. Este universo exacerbado de informações e referências pictóricas ao aludirem
similaridades ressaltam sutis diferenças perceptíveis somente pelo olhar detido.
A escolha das obras das duas artistas para iniciar a pesquisa sobre a recorrência
deve-se a ruptura com a tradição pictórica e por terem ambas participado de um momento emblemático que deu novos rumos à pintura contemporânea brasileira.
O termo recorrência não deve ser tomado como sinônimo para repetição mecânica de dados imagéticos no corpo da obra dos artistas contemporâneos. Na trivialidade cotidiana ação de repetir subentende uma gratuidade de fazer desprovida
de reflexão e questionamento, ou de um proposito meramente laboral, enquanto a
228
intenção, o gesto e a consciência artística descontextualizam o significado lato de
repetição na construção de ressignificações e sentidos plásticos.
A pintura atual abrange um fazer que ultrapassa a prática tradicional ─ suporte
e tinta ─ tornando materiais inusitados ao campo da arte fonte de matéria expressiva.
Essa ruptura confronta o espectador despertando-lhe o estranhamento. Por sua vez,
o processo de criação leva ao inesgotável as ressignificações estabelecendo no fazer
artístico um trânsito imagético entre passado e presente quer seja pela recorrência
histórica plástica, quer seja pela recorrência plástica.
Os argumentos aqui expostos sintetizam em linhas gerais o início de um estudo que busca estreitar a relação artista, processo, obra e público ampliando as dimensões de compreensão da recorrência como um traço universalizado por processos individuais. Mais especificamente na pintura e demais criações na contemporaneidade.
referênciaS
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— Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
CHIARELLI, Tadeu (Org.). Leda Catunda. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
COSTA, Carlos Zibel. Além das formas: introdução ao pensamento contemporâneo no design, nas
artes e na arquitetura. São Paulo: Annablume, 2010.
GARCIA, Andréa V. Diogo. Elemento recorrente como princípio conceitual/formal na obra
Siameses de Leda Catunda. 2014. 129f. Dissertação (Mestrado em Artes) — Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. São Paulo.
MESQUITA, Ivo (Org.). Leda Catunda (1983–2008). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2009.
MESQUITA, Ivo; COSTA, Oswaldo C.; HIRSCH, Faye. Beatriz Milhazes: pintura, colagem. São
Paulo: Pinacoteca do Estado, 2008.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena N. Garcez. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP:
Annablume, 1998.
Catálogo
Beatriz Milhazes: um itinerário gráfico / [curadoria e texto Luiza Interlenghi]. — Rio de Janeiro:
SESC, 2012.
fonteS on-line de textoS e imagenS
http://www.ledacatunda.com.br/
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9441/beatriz-milhazes
http://dasartesplasticas.blogspot.com.br/2007/11/beatriz-milhazes-rio-de-janeiro-brasil.html
preServação da artemídia braSileira: queStõeS
hiStoriográficaS e metodológicaS
ana Pato1
giselle beiguelMan2
introdução
A história da artemídia brasileira vem sendo escrita de forma rigorosa por historiadores da arte e curadores, como Ana Maria Belluzzo, Arlindo Machado, Cristina
Freire, Cristine Mello, Fabio Fon e Priscila Arantes, e pesquisadores, como Adriana
de Souza e Silva, Lucia Santaella e Simone Osthoff, entre outros não menos importantes. Esses pesquisadores dedicaram-se e dedicam-se a projetos que destacam artistas específicos, histórias institucionais e linguagens particulares: Waldemar Cordeiro
e Marcelo Nitsche, temas de investigações de Belluzzo; Paulo Bruscky, analisado em
profundidade por Freire; os estudos de Machado e Mello sobre a videoarte brasileira;
assim como a revisão crítica, também obra de Freire, da atuação do Professor W.
Zanini à frente do MAC USP (instituição que se confunde com a própria história da
artemídia no mundo); são alguns dos recortes temáticos que indicam a consistência
das pesquisas já realizadas e em processo na área aqui no Brasil.
Em linhas gerais, esse artigo pretende contribuir para o debate, destacando o
reconhecimento das particularidades dessa produção artística brasileira e problematizando algumas questões metodológicas em torno da escrita da história da artemídia
no país. Especial atenção será dada à arte digital dos anos 2000 e os diálogos que
identificamos com vertentes do modernismo e tropicalismo brasileiros.
Arquivos de artemídia: da deterioração aos procedimentos
Esse tipo de reflexão é hoje estratégico, haja vista que é a base para o desenvolvimento de procedimentos específicos de conservação para dar conta da transito1.
2.
Ana Mattos Porto Pato. Doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
(FAUUSP). É bolsista FAPESP.
Giselle Beiguelman. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAUUSP).
230
riedade das mídias eletrônicas e digitais. Como se sabe, as obras, especialmente as
mais recentes, rapidamente tornam-se inacessíveis, em função da acelerada transformação dos equipamentos e por serem produzidas em mídias e suportes não duráveis.
Isso impacta não só a preservação do patrimônio da arte eletrônica dos anos
1960 e 1970, mas particularmente a produção brasileira desenvolvida a partir dos
anos 2000, por artistas e coletivos brasileiros fora do circuito artístico institucionalizado pelo mercado de arte e pelos museus, e que vem se destacando no âmbito da
produção digital brasileira como Jarbas Jácome (Recife), Dirceu Maués (Belém do
Pará) e Gabriel Menotti (Vitória).
Trata--se de uma geração de criadores que apresenta características bastante
distintas da produção em artemídia dos anos 1980 e 1990. Menos comprometida com
projetos instalativos e objetuais, são marcantes em suas obras os tensionamentos entre o hi e low-tech, a reinvenção dos usos das tecnologias disponíveis, experiências
coletivas e circuitos de autoria difusa. Tais características impõem que sejam investigadas as particularidades da produção brasileira contemporânea, interrogando suas
aproximações e distâncias com movimentos artísticos anteriores, como a releitura da
antropofagia modernista dos anos 1920 pelo Tropicalismo dos anos 1960, e procedimentos que marcaram os anos 1970, propondo práticas que hoje seriam chamadas de
DIY (Do It Yourself, Faça Você Mesmo), como as que aparecem nas formas de circulação em xerox da poesia marginal, em formas de impressão de baixo custo como
a serigrafia, explorada pela arte postal, ou nos formatos de difusão eletrônicas típicas
do experimentalismo em vídeo.
A incipiente reflexão sobre essas obras, enquanto estão sendo produzidas e em
funcionamento, pode implicar o risco de seu apagamento da história. Nas palavras de
Walter Zanini (Freire, 2014):
O museu nessa concepção deixa de entrar em cena depois da
obra, tornando-se concomitante a ela. Assume, assim, uma posição ativa, pois deixa de ser um órgão expectante e exclusivo,
armazenador de memórias, para agir no núcleo das proposições criadoras, e a participação direta dos artistas é decisiva.
Além do risco da perda das obras propriamente ditas o que está em jogo é
também a compreensão de uma produção marcante nos 2000, como das Coisas Quebradas (2013), de Lucas Bambozzi, Crepúsculo dos Ídolos (2007), de Jarbas Jácome,
e a diversificada ação de coletivos, como Gambiologia.net e Metareciclagem, que
indicam uma estética emergente no campo da artemídia.
Nesse sentido, é preciso considerar que a urgência diante da deterioração imposta por essas práticas artísticas resultou na criação de outros espaços de disseminação e preservação dessa produção que não foram totalmente absorvidos pelo sistema
da arte. Segundo Caitlin Jones (2010, p. 52, tradução nossa):
231
A história completa da Artemídia existe dentro de arquivos
pequenos, de festivais e de arquivos on-line ao redor do mundo. Documentos de performances, instalações, apresentações
de palestras, documentação de exposição, vídeo single-channel, projetos de internet e baseados em software experimental
contam a história.
Esse é o caso da Associação Cultural Videobrasil, que, juntamente com outros
centros de mídia e festivais internacionais, fundados entre os anos 1970 e 80 – tais
como, Electronic Arts Intermix (Estados Unidos), Lux (Inglaterra), Video Hiroba (Japão), Netherlands Media Art Institute (Holanda), Western Front Society (Canadá),
Ars Electronica (Áustria) –, assumiu o papel de abrigar, num primeiro momento,
para, posteriormente, preservar, difundir e distribuir suas coleções.
Ao longo de sua trajetória, o Videobrasil formou um dos mais completos acervos de vídeo e performance com obras de artistas do Sul geopolítico do mundo. É
importante notar que a proposição inicial para formação do Festival em 1983 está
profundamente contaminada pela inexistência de uma política cultural no país e organiza-se a partir dessa ausência. Nessa perspectiva, o arquivo histórico do Festival
nasce com a missão premente de qualificar-se como memória. (Farkas, 2003, p. 231)
agenciamentoS metodológicoS
Profundamente marcada por procedimentos de ressignificação do cotidiano
e estratégias micropolíticas de apropriação crítica das mídias e recursos técnicos,
essas práticas artísticas têm estabelecido um recorte particular do Brasil, no campo
das estéticas tecnológicas atuais. Seu contexto é o da globalização e do processo de
digitalização da cultura em todos os níveis. O reconhecimento das particularidades
dessa produção artística brasileira mais recente e, mais importante, de sua capacidade de agenciamento, não implica atribuir-lhe adjetivos relacionados a um suposto (e
equivocado) ineditismo das estéticas tecnológicas e da artemídia. A problematização
da tecnologia e da ciência no campo da arte não é nova. Pode--se dizer que foi uma
questão cara à Renascença, como a sistematização da perspectiva por Bruneleschi e
o desenvolvimento da câmera escura evidenciam.
Porém, no contexto específico das artes digitais, esse processo de problematização da tecnologia ganha contornos políticos e institucionais particulares. Todas as
escolhas, dos programas aos equipamentos, é ideológica, ocorrendo dentro de circuitos industriais, acentuando um fenômeno que já se evidenciava com o surgimento da
fotografia. É a partir daí, como já aprendemos com Flusser (1985), que o processo de
criação passa a se dar dentro de cadeias industriais, e que nos tornamos amalgamados
aos aparelhos e a suas regras internas, fazendo com que seja decisivo o enfrentamento
das normas pré-definidas no seu programa.
232
Tampouco a relação entre arte e mídia é inédita. Desde que as comunicações
de massa existem, a arte incorpora recursos midiáticos. O impressionismo já se valia
procedimentos psicológicos e fisiológicos caros ao processo fotográfico e o modernismo do início do século 20, da pintura à literatura, foram profundamente marcados pelo
uso de recursos midiáticos em suas estratégias e obras, como destacou Daniels (2003).
conSideraçõeS finaiS
Não é o propósito de fazer neste artigo uma revisão dessa bibliografia e da
importante linhagem de estudos críticos que a acompanha, mas isso constituirá, certamente, uma das etapas fundamentais, do ponto de vista metodológico, das pesquisas que estão por ser realizadas. Importa, por ora, recusar as noções de ineditismo e
originalidade como características da artemídia, para reconhecer as particularidades
do que conceituamos como vertentes tecnofágicas da arte digital brasileira, buscando
sua inserção no campo de estudos da História da Arte.
Nessa perspectiva, frisamos que, ao chamar atenção para o quanto as mídias e
as artes dialogam desde o modernismo, não queremos de modo algum formular uma
hipótese de continuidade que redundaria em uma visão conservadora da história, a
partir da qual concluiríamos que as artes são midiáticas desde que as comunicações
de massa emergiram. Esse viés de análise é conservador porque aposta numa história
progressiva em que o presente e o futuro estariam desde sempre antecipados pelo
passado. Além disso, teríamos que aderir a uma concepção determinista em que as
práticas seriam produto dos meios.
Isso nos permite refletir sobre a artemídia no âmbito da História da Arte de
maneira mais instigante, sem procurar seu ato inaugural ou obra fundadora e sem
transformá-la em pura repetição, entretanto, sem abrir mão de uma tentativa de análise “panorâmica”, que recubra o período dos anos 1950 aos 2000. É nesse contexto
teórico metodológico que podemos pensar as formas da artemídia à luz dos devires
da arte contemporânea para interrogar o tecido dos agenciamentos que a artemídia
produz, ou seja: seus espaços de reprogramação dos códigos de comunicação.
Em suma, esse aspecto deve ser considerado não só do ponto de vista metodológico, mas também do historiográfico. Abordado mais raramente em estudos sobre
o assunto, diz respeito às histórias dos equipamentos e às formas como o desenvolvimento de hardwares e softwares modificam a cultura e dialogam com a História da
Arte. Acreditamos que essa abordagem permitirá delinear olhares mais amplos para
as práticas da arte digital, investigando procedimentos que extrapolam o âmbito individual de produção, na medida em que revelam o entorno tecnológico que constitui
determinados fazeres.
233
referênciaS
ARANTES, Priscila. Arte e Mídia: Perspectivas Da Estética Digital. São Paulo: SENAC, 2005.
BEIGUELMAN, Giselle e MAGALHÃES, Ana Gonçalves. (Orgs.). Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos digitais. São Paulo: Peirópolis: Edusp, 2014.
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FREIRE, Cristina. Museus em Rede: A dialética impecável de Walter Zanini/A Network of Museums: The Impeccable Dialectic of Walter Zanini. Art Journal. 73, 2, 20-45, 2014.
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SANTAELLA, Lucia. Por que as Comunicações e as Artes estão Convergindo? São Paulo:
Paulus, 2005.
montagem mnemoSyne, painéiS didáticoS e
cavaleteS de vidro: aproximaçõeS poSSíveiS
Cristina Pontes bonfiglioli1
Nesse adjetivo ‘velho’, usado ao invés de ‘antigo’, está toda a
crise de nossa época: o cheiro de mofo da cultura abandonada
a si mesma, do antigo não querido e não revivido, mas sim
mumificado e esquecido. (BO BARDI, 2009)
Em decorrência do centenário do nascimento de Lina Bo Bardi (1914-1992),
ocorrido em 05 de dezembro de 2014, o Museu da Casa Brasileira, instituição da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, organizou a exibição Maneiras de Expor:
a arquitetura expositiva de Lina bo Bardi, aberta à visitação entre 19 de agosto e 09
de novembro de 2014.
As salas e as videoentrevistas da exibição apresentavam ao público paulistano, deste início de século XXI, o que foi a produção de Lina Bo Bardi no campo da
museografia e da expografia, desde a constituição do MASP na Rua 7 de abril, em
1947, passando pela inauguração do MASP na Av. Paulista, em 1968, a execução e
inauguração do SESC Fábrica Pompeia, entre 1977 e 1982, incluindo as exposições
produzidas ali e no Solar do Unhão – o Museu de Arte Moderna da Bahia, entre 1963
e 1964, quando foi demitida do posto de diretora do Museu pelo governo militar.
As informações na exposição do Museu da Casa Brasileira destacavam com
vigor o fato da atuação museográfica, expográfica e como arquiteta de Lina fugir totalmente da ideia, então bastante cristalizada na Europa, de entender um museu como
monumento estético. Essa sua posição adivinha de uma crítica ácida ao predomínio
1.
Cristina Pontes Bonfiglioli. Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e
Artes da USP (ECA-USP) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e
História da Arte da USP (PGEHA USP). É pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Semiótica da
Cultura e da Mídia (CISC) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
236
do discurso estetizante na arte e na história da arte2. Defendia, ao contrário, o acesso
sem limites às imagens e à cultura.
De modo geral, a expografia de Lina produzia imagens gigantescas e mobilizava imaginários – os cristalizados e os que se abriam para o novo. A cena que
construía em cada exposição convidava o visitante a costurar significações próprias,
livres das amarras de uma interpretação previamente dada. Lina assumia a liberdade
de sentido que suas exibições poderiam constituir. As expografias que invadiram o
MASP – Repassos: Exposição-documento (1975), A mão do povo brasileiro (1969),
História em quadrinhos (1970) – produziram um grande painel-panorama contendo
diversas imagens (5 mil peças no caso de A mão do povo brasileiro) que preenchiam
uma ambiência, provocando reações as mais diversas, como a do Adido militar brasileiro da Embaixada Italiana, que proibiu a abertura da mostra em Roma, apenas um
dia antes da inauguração, alegando que estavam sendo expostas a pobreza e a miséria
(ALMEIDA, 2014, p.206-207).
Vem daí a forte sensação de que um tangenciamento entre o pensamento iconológico de Lina Bo Bardi e o de Aby Warburg (1966-1929) pudesse nos conduzir
a uma nova maneira de pensar a obra de Lina Bo Bardi, em especial, suas criações
expográficas e museográficas, uma vez que a arquiteta parece ter construído com suas
exposições uma crítica visual às tradições artísticas de interpretação da arte e da obra
de arte que, em alguns aspectos, a aproxima da crítica visual proposta por Warburg.
Para fins desta abordagem, escolhemos duas produções específicas de Lina: as
exposições didáticas, desenvolvidas para o MASP 7 Abril, e os cavaletes de vidro,
pensados para o MASP Av. Paulista. Entendemos que ambos os procedimentos de
exibição confluem no sentido de buscar apresentar imagens ao público como relações
entre formas culturais e não como progressões racionais do gênio humano que se
volta à elaboração de expressões artísticas, sejam elas pinturas, esculturas, cerâmicas,
desenhos, gravuras, tapeçarias. Nosso intento é esboçar uma aproximação entre os
modos de pensar de ambos – Bo Bardi e Warburg –, procurando centrar a comparação na proposta compositiva/expositiva deles, uma vez que se configurava como um
estudo iconológico da cultura, ainda que no caso de Lina haja um interesse particular
pela cultura popular brasileira.
Desenvolvido entre 1924 e 1929 por Aby Warburg, logo após seu retorno de
Kreuzlingen3, o Atlas Mnemosyne é, como toda a obra de Warburg, fonte de intensos
debates na História e da Filosofia da Arte, mas também na Antropologia e Arqueolo2.
3.
Essa posição pode ser derivada de sua leitura de Croce e Gramsci, como sustenta RUBINO, 2009.
Contudo, tentaremos uma outra via de interpretação, como será visto adiante.
Entre 1921 e 1924, Warburg viveu na Clínica Neurológica de Ludwig Binswanger, em Kreuzlingen.
ALVES (2005, p. 8) lembra que “O ambiente na clínica, no entanto, não representava para ele um
grande deslocamento de sua posição intelectual ou de classe. Entre os internos daquela época encontravam-se o dançarino Nijinsky, o artista expressionista Ernst Ludwig Kirchner, o químico e industrial Adolf Werner, o poeta Leonard Frank e a feminista Bertha Pappenheim (Koerner, 2003, p. 15).”
237
gia da Imagem, que seriam, de fato, os campos de investigação nos quais sua impressionante pesquisa encontra melhor acolhida.
Alves (2005, p. 10) destaca que
Warburg rompeu com a noção de que telas constituíam totalidades fechadas sobre si mesmas em estado de perfeição. Ele
evidencia nelas a presença não apenas dos rostos mundanos,
mas também de elementos de religiões pagãs contrapondo-se
à idéia de uma manifestação religiosa pura, chegando, através
das rupturas, às contradições da cultura e do pensamento sobre a arte e a civilização ocidental.
A montagem Mnemosyne era uma experiência por meio da qual Warburg procurava “formar quadros com fotografias” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.383). Tais
fotografias eram extraídas da própria coleção de imagens reunida na Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg. Em sua disposição final, a montagem consistia de
“grandes telas de tecido preto esticadas sobre chassis – com a dimensão de um metro
e meio por dois – nas quais se podia reunir as fotografias, fixando-as por meio de
pequenos prendedores, fáceis de manipular.” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p. 383)
A ideia de um atlas, no pensamento de Warburg, remontava a
1905. Em 1924, porém, houve algo a mais, algo como um raptus: de repente, revelou-se uma forma que a seu ver, não era
apenas um ”resumo em imagens”, mas um pensamento por
imagens. Não apenas um “lembrete”, mas uma memória no
trabalho. Em outras palavras, a memória como tal, a memória
“viva”. Daí surgiu o nome próprio que a iniciativa inteira viria
a assumir: Mnemosyne, personificação clássica da memória,
mãe das nove Musas e, suspeitamos, vagamente aparentada
com a Ninfa. (DIDI-HUBERMANN, 2013, p. 383)
O Atlas (WARBURG, 2010) tem importância vital para se entender o pensamento de Warburg, pois configura-se como o ponto emblemático de sua produção,
uma vez que foi a forma como encontrou para expor todo o seu pensamento pregresso. A montagem Mnemosyne era um modo de desdobrar seu pensamento em todos
os sentidos, a fim de descobrir possibilidades ainda não concebidas, mais do que
dedicar-se a recapitular e concluir sua obra (DIDI-HUBERMANN, 2013).
Diz-se que Warburg fez escola, no sentido de ter criado um núcleo de pesquisas
a partir do qual vários alunos foram formados com base em suas ideias. Há registros
de que a chamada “Escola de Warburg” ganhou força na crítica de arte italiana no
pós-guerra devido ao trabalho de Eugenio Battisti (1924-1989), que fez uso de contri-
238
buições de campos do conhecimento estrangeiros à tradição da crítica de arte, como a
fábula, o folclore e a história das religiões (DAL CANTON, 2007, p. 100). Isso poderia
indicar, talvez, um dos caminhos possíveis para pensar a coincidência de pensamento
entre Lina e Aby, ainda que, de fato, Pietro Maria Bardi (1900-1999) tenha tido papel
crucial como interlocutor de Lina no que tange a crítica que ele mesmo fazia aos métodos museográficos e expográficos tradicionais (eurocêntricos), defendendo a ousadia
modernista da Itália do pós-guerra, como a de Franco Albini (1905-1977) para o projeto de restauro e organização do Palazzo Bianco4 (CANAS, 2014, p. 7).
Contudo, quando se usa o termo “Escola de Warburg” é mais aos seus seguidores que o termo costuma se referir e não ao pensamento próprio de Warburg:
A relevância desta “Escola” no contexto da disciplina História
da Arte foi, no entanto, em parte a responsável pelo desconhecimento que se instalou, durante muitas décadas, em torno das
pesquisas e verdadeiros objetivos de Aby Warburg, após a sua
morte em 1929. Com o passar do tempo, o nome de Warburg
foi sendo identificado com aquele de seus sucessores, e em
especial com os métodos da iconologia de Panofsky, que, no
entanto, eram bastante diferentes dos métodos por ele defendidos. [...] enquanto Panofsky e seus sucessores preocupavam-se
cada vez mais, numa performance erudita, com a decifração
do significado do conteúdo representado em uma determinada imagem, eles paulatinamente também se afastavam das
preocupações centrais de Aby Warburg, que, antes de tudo,
voltava-se para questões de psicologia da imagem, isto é, para
investigações a respeito das formas assumidas pelas imagens
e das razões que determinam suas transformações no tempo.
Neste processo, a iconologia, enquanto ciência da imagem,
pode ser absorvida com facilidade no espectro maior das metodologias tradicionais da história da arte, perdendo o caráter
eminentemente crítico e, por assim dizer, subversivo inerente
às concepções de Warburg. (DE MATTOS, 2006, p. 221).
4.
De acordo com DE OLIVEIRA (2006, sem página), “a concepção arquitetônica e museográfica de
Lina Bo Bardi para o Masp não é absolutamente isolada. Experiências similares foram realizadas
desde os anos trinta na Itália por Franco Albini ou por Edoardo Persico. Antes disso, em 1924, Frederick Kiesler já havia inaugurado em Viena, com seu spatial exhibition method, uma nova forma de
agenciar o espaço que promovia a relação entre os diferentes objetos nele expostos indo em contra ao
isolamento da obra de arte até então instituído pelas formas de exposições. Todos estes arquitetos buscavam, exatamente como o faz Lina Bo Bardi, criar com seus sistemas expositivos, um ambiente ou
uma ‘atmosfera’ de aproximação tanto entre as obras expostas como entre o visitante e a obra de arte.”
239
Um interesse similar ao de Warburg pelo folclore (um tipo de paganismo ou
misticismo), as religiões e, ainda, a constituição de uma cultura popular legitimamente brasileira, isto é, que não fosse dependente de uma ordem estética pré-estabelecida,
são percebidos em Lina também por meio de seus escritos:
A arquitetura contemporânea brasileira não provém da arquitetura dos Jesuítas, mas do “pau a pique” do homem solitário,
que trabalhosamente cortara os galhos da floresta; provém da
casa do “seringueiro”, com seu soalho de troncos e o telhado
de capim; é aludida, também ressonante, mas possui, em sua
resolução furiosa de fazer, uma soberbia e uma poesia, que
são a soberbia e a poesia do homem do sertão, que não conhece as grandes cidades da civilização e os museus, que não
possui a herança de milênios, mas suas realizações - cuja concretização foi somente possível por esta sua soberbia esquiva
– fazem deter o homem que vem de países de cultura antiga.
(BO BARDI, 2009, p. 72).
Tal afirmação aponta para uma poesia cuja herança não é racional, não é iluminista, mas uma poesia que nos habita e que remonta uma ancestralidade bem mais remota, quiçá vinculada ao primitivismo anterior ao dos índios que aqui habitavam em
1500 e ao que Warburg nomeava de Formações do páthos [Pathosformeln]5, capazes
de unir a história humana como uma história global da cultura, e não mais como uma
história das civilizações ou uma história da arte – seja ela a arte da pintura, do desenho, da escultura ou da arquitetura.
Como lembra Alves (2005, p. 6),
[...] está bastante claro, a partir de Warburg, que a idéia de
uma explicação puramente interna para o sentido das obras
de arte é insuficiente. Ele recusa a existência no homem de
uma faculdade que o torne capaz de julgar o belo, seja esse
julgamento anterior ou posterior à obra, mais ainda de que
esse julgamento seja universal, por qualquer processo que isso
se realize. Esse julgamento é condicionado por um contexto
histórico determinado.
Poderíamos pensar Lina como colaboradora inconsciente do projeto warburguiano de fundar uma história da arte compreendida como antropologia ou como
5.
Segundo DE MATTOS (2006), Warburg passaria a usar o conceito de Pathosformel a partir de 1905
para explicar sua concepção de transmissão de uma memória coletiva através de imagens.
240
Kulturwissenschaft? Poderíamos alinhá-la aos que, como Warburg, lutaram para se
opor a todas as ortodoxias vigentes? É possível afirmar que Lina, tal como Warburg,
considerava as obras de arte como o produto estilístico de um emaranhamento com a
dinâmica da própria vida? Teria Lina colocado em prática um protocolo experimental
concebido para expor em conjunto visualmente as intrincações e as polaridades da
Nachleben? (DIDI-HUBERMANN, 2013).
Parece-nos que Lina expõe – na criação tanto das exposições didáticas, desenvolvidas para o MASP 7 Abril, como dos cavaletes de vidro, pensados para o
MASP Av. Paulista – a questão da sobrevivência das imagens na cultura mundial (e,
às vezes, também na cultura brasileira), tão cara à Warburg, na superfície do dia a dia
das imagens corriqueiras, publicitárias, midiáticas, trazendo à tona a materialidade
do universo artístico, – seja pela fotografia, seja pelas pinturas, pequenas esculturas e
cerâmicas (como as que organiza na Vitrine das Formas) –, a memória de uma cultura
que se faz desde as cavernas e que continua fazendo-se: o humano manifestando-se
figurativamente e marcando a existência de vários tempos. A repetição de certas formas independe do tempo histórico em que foram geradas – parece ser novamente a
vinculação antropológica e arquetípica que se destacava nessas montagens especiais
desenvolvidas por Lina, tornando possível a esses trabalhos de expografia e museografia uma aproximação com a proposta warburguiana não estetizante de pensar e
apresentar a cultura como conjunto de imagens da produção humana e não como
ordem lógica de movimentos artísticos, que se volta exclusivamente para a discussão
erudita do belo e do gosto, restrita aos letrados iniciados.
referênciaS
ALMEIDA, Edmar de. Repassos e A mão do povo brasileiro. Transcrição de vídeoentrevista. In:
LATARROCA, Giancarlo (org.). Maneiras de expor: arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi. São
Paulo: [s.n.] 2014. 236p. Catálogo de Exposição. 19 Ago.a 09 Nov. 2014. Museu da Casa Brasileira.
p. 206-207.
ALVES, Caleb Faria. A imagem depois do ritual da serpente. XXIX Encontro Anual da Anpocs.
GT 10 Imagens e Sentidos: a produção de conhecimento nas ciências sociais. 25 a 29 de outubro
de 2005, Caxambu, MG. Outubro de 2005. Disponível em: http://portal.anpocs.org/portal/index.
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BO BARDI, Lina. Bela criança. [1951] In: RUBINO, Silvana e GRINOVER, Marina. Lina por
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CANAS, Adriano Tomitão. Lina Bo Bardi e a Museografia para o Masp - Sete de Abril. In: 4º Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus – Museologia e Patrimônio. Rio de
Janeiro: 29, 30 e 31 de outubro de 2014. Disponível em: http://arquimuseus.arq.br/seminario2014/
transferencias/_lina_bo_bardi/_lina_bo_bardi-adriano_canas.pdf Acesso em: 18 Jan. 2015.
DAL CANTON, Giuseppina. Art Criticism. In: MARRONE, Gaetana e PUPPA, Paolo (eds.). Encyclopedia of Italian Literary Studies. Routledge, 2007. p. 98-103.Disponíevel em: http://www.
241
amazon.com/Encyclopedia-Italian-Literary-Studies-Gaetana/dp/1579583903#reader_1579583903
Acesso em: 18 Jan. 2015.
DE MATTOS, Claudia Valadão. Arquivos da memória - Aby Warburg, a história da arte e a arte
contemporânea In: Atas do II Encontro de História da Arte. Teoria e História da Arte: Abordagens Metodológicas. IFCH, UNICAMP, Campinas, Mar. 2006. Disponível em: http://www.
unicamp.br/chaa/eha/atas/2006/DE%20MATTOS,%20Claudia%20Valladao%20-%20IIEHA.pdf
Acesso em: 10 Jan. 2015. p. 221-228.
DE OLIVEIRA, Olivia. A depredação material e espiritual da obra de Lina Bo Bardi. Arquitextos.
n. 068.01, ano 06, jan. 2006. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.068/387 Acesso em: 18 Nov. 2014.
DIDI-HUBERMANN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas
segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid, Akal, 2010.
hiStoriografia, muSeu e mercado: um olhar a
partir da perSpectiva de gênero
naDiesDa DiMaMbro1
Este trabalho pretende discutir, sob a perspectiva de gênero, a situação das
mulheres artistas contemporâneas no Brasil. A partir de reflexões acerca de uma historiografia da arte de caráter feminista e sobre noções colocadas pela museologia de
gênero, bem como de apontamentos acerca do mercado de arte atual, visa-se constituir um cenário de questionamento da participação, ou não, das mulheres na arte.
Tomando de partida a historiografia, é importante salientar que a historiografia da arte de cunho feminista ou de gênero, importantíssima para tantas abordagens
revolucionárias do silenciamento ou apagamento das mulheres da história da arte,
não tem dado conta de explicar a retenção ou o sucesso de mulheres artistas. O texto
tido como fundador da crítica de arte feminista, o artigo “Why have there been no
great women artists”, publicado em 19712 na revista ArtNews pela historiadora da
arte Linda Nochlin, começa enumerando caminhos possíveis para responder à pergunta que dá título ao famoso texto. Entretanto, aponta também às armadilhas que
esses caminhos de resposta podem criar para uma história da arte feminista.
A análise das condições de produção artística é, para a autora, a chave interpretativa mais frutífera para pensar as mulheres na arte, a fim de responder à pergunta
que intitula o texto de Nochlin. O acesso à educação, prezado pelo sistema da arte
1.
2.
Nadiesda Carolina Dimambro Capuchinho. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Whitney Chadwick aponta em “Women, art and society” (1999) que uma série de acontecimentos
no final de 1969 e começo da década de 1970 levou aos primeiros protestos contra o racismo e o
machismo no mundo da arte nos EUA. Além das intervenções mais famosas referentes à liberdade
sexual feminina e a luta por igualdade racial (Panteras Negras), também aconteceram atividades
artísticas feministas. Em dezembro de 1969, na exposição anual do New York’s Whitney Museum,
participaram 143 artistas, dos quais somente 8 eram mulheres. As manifestações contra o museu levaram à criação de grupos ativistas, como o Women Artists in Revolution (WAR). Este é o contexto
em que Nochlin e seu texto estão inseridos.
244
e pelo mercado, também deve ser observado. A autora investiga a falta de acesso ao
estudo do nu ou modelo vivo, que marcou a vida das mulheres artistas durante toda
a história até finais do século XIX ou começo do XX, dependendo do país. Temas
considerados menores, como paisagem e natureza morta, eram o que restava para as
mulheres ousadas que optavam pelo caminho não convencional de ter uma carreira
artística, a despeito de todos os entraves colocados. É preciso reelaborar a lógica
individual/privado em direção ao coletivo/público, para assim repensar as estruturas
institucionais excludentes que marcaram a trajetória das mulheres artistas.
Griselda Pollock, historiadora feminista da arte embasada na chamada terceira
onda feminista3, detém-se ao questionamento da maneira com que o cânone artístico
opera, propondo uma desconstrução da estrutura hierárquica de retenção dos artistas.
Em seu texto “A modernidade e os espaços da feminilidade” (POLLOCK, 2011), a
autora dialoga com a tradição historiográfica sobre o modernismo e a modernidade
(Baudelaire, 1863 e T. J. Clark, 1985), estabelecendo novos parâmetros de análise do
impressionismo. A partir do discurso enraizado de artista moderno enquanto flâneur,
ou seja, agente que circula livremente por essa cidade efervescente das multidões, e
voyeur, ou seja, agente que tudo observa sem ser observado, Pollock aponta para o
recorte de gênero dessa experiência de modernidade tida como universal. A possibilidade de compreender o mapa da cidade enquanto seu lar e ao mesmo tempo espaço
de lazer e plenitude, para as artistas e mulheres em geral, não se concretizava. Ou, se
circulavam livremente, estariam submetidas a uma marca de classe e de feminilidade
inferiores, como é o caso das prostitutas. Agrega um olhar atento e crítico às condições das mulheres em cada espaço que lhes são permitidos ou vetados, e como cada
espaço de circulação pressupõe uma expectativa diferente de feminilidade – espaços
públicos “mulheres desonradas” e espaços privados “senhoras”.
Essas duas autoras, Nochlin e Pollock, fundamentais para o olhar de gênero sobre
a arte, são exemplares de como se tem tratado bem a questão do silenciamento das mulheres ao longo da história. Contudo, hoje no Brasil enxergamos uma situação diferente,
a qual não se consegue encontrar respaldo ou teoria de suporte na citada historiografia.
Partindo para um olhar de gênero agora sobre o mercado, é visível que o mercado brasileiro de arte vem ganhando mais importância nos últimos trinta anos, período atravessado pelas políticas neoliberais e pela globalização. Existe uma conexão
profunda entre capital e cultura, marcada pela relação dialética entre a necessidade
de uma obra ser especial o suficiente para ser muito cara, sem ao mesmo tempo ser
especial demais a ponto de não poder ser comercializada (FERRAZ, 2015).
O sociólogo francês Alain Quemin desconstrói a apologia da globalização,
desmistificando a ideia de que este processo teria democratizado o acesso e a cir3.
Adotamos aqui a linha do tempo tradicional da história do feminismo, que tem como primeira onda
as sufragistas no final do século XIX na Europa e EUA, a segunda onda na revolução comportamental das décadas de 1960 e 1970, e a terceira onda nos estudos mais recentes, da década de 1980 aos
dias atuais, que partem da premissa de que há vários feminismos possíveis.
245
culação da arte. Ressalta que os mecanismos de consagração dos artistas ainda são
perpassados por diversos marcadores da exclusão, como nacionalidade e gênero do
artista . O autor aponta que há uma desigualdade marcante em relação à espacialidade ou nacionalidade do artista/ateliê (QUEMIN, 2016). Ao analisar dois famosos
rankings de artistas, o KunstKompass e o Artfacts, levando em conta as especificidades de mecanismos de pontuação de cada um, Quemin contabiliza respectivamente as porcentagens a seguir de artistas por país: Estados Unidos 30,4%, Alemanha
30,0%, Reino Unido 10,4% para o KunstKompass, e para o Artfacts: Estados Unidos 37,1%, Alemanha 18,2%, Reino Unido 7,63%, para mencionar apenas os três
primeiros colocados4. O mesmo se dá com relação ao gênero do artista: os rankings mostram alguma evolução na participação de artistas mulheres, contudo ainda
observamos uma predominância masculina. Esse panorama torna o caso brasileiro
supracitado ainda mais intrigante, uma vez que somos a periferia em termos de localização e pontuação ou quantidade de artistas, mas ao mesmo tempo temos uma
participação comparativamente maior de mulheres. Aparentemente, a exclusão das
mulheres não seria uma marca do mercado de arte relacionado à venda de obras de
artistas mulheres do Brasil.
Sobre o sucesso das artistas contemporâneas brasileiras, e a título de exemplo,
temos os artigos de jornal a seguir: “Tela de Beatriz Milhazes é vendida por dezesseis
milhões de reais na abertura da SP-Arte” (Jornal Folha de São Paulo, 06/04/2016) e
“Com ‘O Moderno’, Beatriz Milhazes é um dos destaques de leilões de arte latina em
NY” (Jornal O Estado de São Paulo, 22/11/2015). E ainda “Obra de Varejão é a obra
de um artista brasileiro mais cara da história” (G1 online, 18/02/2011).5
Há, contudo, uma presença ainda minoritária de mulheres em coleções de relevância no Brasil, o que convive com a situação já mencionada de destacado sucesso feminino na arte contemporânea brasileira e, ao mesmo tempo, temos um aporte
teórico que trata as mulheres a partir da chave do silenciamento. A conta parece não
fechar, cada aspecto parece ir em uma direção diferente. Tendo em vista o breve cenário exposto acerca da historiografia sobre mulheres na arte, museologia de gênero
e mercado brasileiro contemporâneo, uma série de questões se impõem: O fato de
haver duas artistas mulheres liderando o ranking de venda e espaços de visibilidade
resolve o problema? Como pensar as mulheres que foram retidas pelo mainstream,
pelo mercado, pelos museus ou por mais de um veículo simultaneamente?
4.
5.
É interessante notar que os dois primeiros colocados nos ranking analisados por Quemin são, justamente, os dois países já mencionados como tendo a maior quantidade de museus de mulheres: EUA
e Alemanha.
No último Art Price Annual Report (2013-2014), podemos identificar na lista dos 500 artistas mais
caros da atualidade as seguintes colocações dos brasileiros: 65º Vik Muniz, 94º Beatriz Milhazes,
166º Adriana Varejão, 280º Os Gemeos, 305º Cildo Meireles. Web: http://imgpublic.artprice.com/
pdf/artprice-contemporary-2013-2014-en.pdf
246
Com relação aos museus, temos que o conceito de museologia de gênero é
recente, data de 1990, e é resultado de contribuições diversas, como a advinda dos
estudos de gênero, da história e da própria museologia. Nessa época há reverberações
do debate e das experimentações de décadas anteriores em museus que pensam na
contemporaneidade, que partem de uma lógica de laboratório aberto de experiências
culturais, não mais o lugar estático de relação entre expectador passivo e obra objeto,
mas sim o lugar da experimentação, do fazer artístico vivo, da interação entre seus
agentes. Essa perspectiva museológica está nesse caldo de questionamento do lugar
social do museu, que se contrapõe ao paradigma moderno, que se propõe a pensar-se
enquanto produtor de discurso, articulando biblioteca, arquivo e acervo (FREIRE,
2015)6. A contemporaneidade e sua arte com seus suportes híbridos marca a fluidez
das esferas, uma mudança de paradigma do objeto para o processo. Há uma guinada
geral na direção contrária à ideia de museu como depósito de uma memória de vencedores e cânones, vai-se ao encontro, também, de uma perspectiva embasada na Carta
de Santiago do Chile (1972) e na Declaração de Quebeque (1984), ou seja, de uma
noção de museu a serviço da sociedade. Apresenta-se, então, como discurso crítico
sobre o papel social e político dos museus contemporâneos, buscando dar visibilidade às contribuições femininas para a arte, cultura, vida quotidiana e sociedade. A
museologia de gênero compreende, também, a feminização das funções de curadoria
(FREIRE, 2015)7 e diretoria de museus, bem como do corpo geral de técnicos e funcionários. É importante destacar que a única esfera que conta com larga participação
feminina é a do voluntariado educativo, o que também nos leva a questionamentos
sobre como se dá a participação e legitimação das mulheres nesses espaços (VAQUINHAS, 2014, p. 3).
Atualmente, temos setenta e um museus da mulher8 ou museus das relações de
gênero no mundo, sendo que os países que mais concentram unidades são Estados Unidos, com quatorze museus, e Alemanha, com seis museus (VAQUINHAS, 2014, p. 4).
A maioria desses museus concentra-se na perspectiva histórica da contribuição
e protagonismo femininos: cerca de vinte e três (VAQUINHAS, 2014, p. 6) desses
museus são dedicados a essa abordagem; Isso posto, cabe-nos maior atenção ao como
6.
7.
8.
“Como sabemos, os paradigmas modernos de classificação e a separação por meios e técnicas são
ineficientes e o fluxo entre biblioteca, acervo e arquivo é um dos resultantes dessa ineficácia.” p. 62
“Do mesmo modo, a distinção entre obra de arte e documento desde Duchamp, como sabemos, não
é mais retiniana. Assim, tomar o valor de exibição e as variáveis institucionais agregadas (FREIRE,
1999) como plataformas privilegiadas de pesquisa e prática curatorial supõe, necessariamente, investigar a condição de visibilidade (ou invisibilidade) de artistas e obras” p. 59
Para pensar um “Museu da Mulher”: A própria enunciação de uma “questão da mulher”, aponta Nochlin, traz a constatação de que a hegemonia é masculina, da mesma maneira que há, por exemplo,
a “questão do negro” ou a “questão da pobreza”, denunciando a norma social branca e elitista do
cânone artístico. A arte oficial e supostamente neutra é centrada no artista homem, branco e de classe
média, geralmente cercado por fortes relações familiares e/ou profissionais com outros artistas ou
professores que lhes abrem as portas, como é o caso de Picasso e tantos outros “gênios” citados pela
autora.
247
isso se faz. A boa intenção por trás da abordagem de gênero que tem como premissa
tratar de narrativas marginalizadas, acaba por ser escamoteada pela mera substituição
do masculino pelo feminino dentro de uma lógica histórica datada do século XIX, de
inspiração positivista e enciclopedista, que não transforma a maneira como o cânone
opera. É isso o que queremos com um museu sobre as mulheres, sejam elas artistas
ou personagens históricos? Constituir a velha história dos heróis, meramente substituindo homens por mulheres?
É preciso pensar uma nova historiografia da arte com enfoque de gênero, que
leve as peculiaridades do Brasil e do capitalismo atual em consideração, sem perder
de vista as valorosas e estabelecidas contribuições de Nochlin e Pollock. Em consonância com essa perspectiva crítica acerca da elaboração de novas teorias da arte a
partir da perspectiva de gênero, faz-se urgente também pensar o museu, seus espaços
e a curadoria de exposições, bem como as aquisições, a partir de uma política de embate ao status quo e à reprodução da norma ou do cânone.
referênciaS
FERRAZ, Tatiana Sampaio. Quanto vale a arte contemporânea? Novos Estudos Cebrap, SP,
Edição 101, março de 2015.
FETTER, Bruna e SIMIONI, Ana Paula. Brazilian female artists and the market. Novos Estudos
Cebrap, SP, Edição 105, março de 2016.
FREIRE, Cristina. Museus e arte contemporânea: entre bancos de dados e narrativas. Arterias,
UFPA, n.01, Fev 2015.
NOCHLIN, Linda. Why have there been no greatest women artists? 1971. Web: http://davidrifkind.org/fiu/library_files/
POLLOCK, Griselda. A modernidade e os espaços da feminilidade. In: MACEDO, Ana Gabriela e
RAYNER, Francesca. Gênero, cultura visual e performance. Antologia crítica. Portugal, Edições
Humus, 2011.
QUEMIN, Alain. A distribuição desigual do sucesso em arte contemporânea entre as nações: uma
análise sociológica da lista dos ‘maiores’ artistas do mundo. In: QUEMIN, Alain e Villas Bôas,
Glaucia (orgs). Arte e vida social, pesquisas recentes no Brasil e na França. Open Edition Press,
2016. Web: https://books.openedition.org/oep/482
VAQUINHAS, Irene. Museus do feminino, museologia de gênero e o contributo da história.
MIDAS [Online], 3|2014, posto online no dia 08 de julho de 2014, consultado no dia 02 de julho de
2016. URL: HTTP://midas.revues.org/603 ; DOI: 10.4000/midas.603
o papel Social da fotografia no regiStro do
trabalho humano: oS precurSoreS riiS e hine
roDrigo koraiCho gonzaga1
eDson leite2
Desde seu surgimento, a fotografia revolucionou o mundo com sua capacidade de registrar os fatos e se reproduzir rapidamente. Isso sucedeu-se em várias esferas facilitando a transmissão de informações e permitindo cada vez mais o acesso
as mais diversificadas perspectivas culturais, sociais e políticas existentes em partes
distintas do mundo.
O advento da fotografia avançou a partir de necessidades impostas por condições políticas, econômicas e sociais, demandas insurgentes do período histórico
– exatidão, reprodutibilidade, baixo custo, velocidade de execução. Em meados do
século XIX, e consequentemente com a progressão do segmento no âmbito específico de registro cultural principalmente no início do século XX, alguns fotógrafos
marcaram a história capturando imagens capazes de narrar situações de época, bem
como questões socioeconômicas, consolidando a memória de locais, povos e culturas. Segundo Kossoy:
A descoberta da fotografia propiciaria, de outra parte, a inusitada possibilidade de autoconhecimento e recordação, de
criação artística (e portanto de ampliação dos horizontes da
arte) de documentação e de denuncia graças a sua natureza
testemunhal (melhor dizendo, sua condição técnica de registro
preciso do aparente e das aparências). (KOSSOY, 2014, p. 31)
1.
2.
Rodrigo Koraicho Gonzaga. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
250
A fotografia permite uma melhor compreensão, reflexão e a retomada de questões históricas, perpetuando episódios importantes de todos os gêneros das sociedades em sua enorme diversidade. E, nesse sentido, nos centros urbanos do apogeu
da industrialização, o alvoroço resultante das condições precárias ocasionado pela
crescente reestruturação abarcaram novos rumos para a sociedade e a necessidade de
registro destas mudanças se tornou fundamental.
A partir de 1880, a fotografia se solidifica na imprensa, não apenas como base
para a reprodução de gravuras. A transformação da indústria, as novas invenções, o
mercado receptivo e a abundância de recursos naturais após a Guerra Civil americana
resultaram em um crescimento considerável na demanda por trabalho. Nas primeiras
décadas do século XX, os salários dos trabalhadores nas fábricas eram tão baixos
que, muitas vezes, as crianças precisavam trabalhar também para ajudar na renda
familiar. As crianças já eram vistas como parte da economia dentro da família. Para
as empresas, convinha contratar crianças para trabalhar, pois podiam encaminhá-las
para empregos não qualificados por salários mais baixos. Muitos imigrantes e famílias que migraram do campo colocavam seus filhos para trabalhar.
jacob riiS e lewiS hine
O jornalista, fotógrafo documentarista e reformista social Jacob August Riis
(1849 – 1914) foi uma personalidade de ligação direta nesse período de reforma socioeconômica. Nascido na Dinamarca, Riis mudou-se para Nova York e dedicou-se a
escrever e fotografar a conjuntura das classes baixas da cidade, vivenciando de perto a
pobreza com o intuito de evidenciá-la. Em 1870, aos vinte e um anos de idade, Riis chegou aos Estados Unidos como imigrante e trabalhou em diversos ramos na tentativa de
se consolidar naquele ambiente urbano industrializado. Foi após ter entrado para o meio
jornalístico que passou a ter contato e, consequentemente, interessar-se pela fotografia.
Figura 1 - Jacob Riis, In sleeping quarters, Rivington Street Dump
Fonte: <http://www.nysun.com/arts/how-jacob-riis-lived-tom-buk-swientys-the-other/84669>
Acessado em: 12 março de 2016.
251
Em 1890, Riis publicou seu livro de crítica social – Como a Outra Metade Vive
(How the Other Half Lives) com fotografias, desenhos e estatísticas sobre a pobreza
em Nova York, que teve sucesso e impacto imediatos.
O engajamento de Riis em sua crítica social reformista o fez promover um
estudo sistemático do panorama que tomava não só Nova York, mas diversas outras
megalópoles que cresciam incontrolavelmente, provocando essa dicotomia na sociedade. Na fotografia, como um desbravador, estabeleceu este fundamento crítico dos
anseios da desigualdade como tema investigativo – documental.
Em 1904, foi fundado nos Estados Unidos o Comitê Nacional do Trabalho Infantil (The National Child Labor Committee - NCLC), uma organização privada, sem fins
lucrativos, com a missão de promover os direitos, a dignidade, o bem-estar e a educação
de crianças e jovens em sua relação com o trabalho. Na ocasião, o NCLC contratou
times de investigadores no intuito de relatar este trabalho manual infantil e captar imagens, organizando exposições com fotografias, textos e estatísticas, trazendo atenção
para a causa. Dentre eles, o fotógrafo, sociólogo e professor Lewis Wickes Hine (1874
– 1940). Nascido na cidade de Oshkosh, estado de Wisconsin, nos Estados Unidos,
destacou-se por seu entusiasmo e indignação em relatar a crueldade do trabalho infantil.
Hine estudou sociologia em Chicago e Nova York entre 1900 e 1907. Em 1905,
largou a profissão de professor e passou a se dedicar inteiramente à fotografia investigativa, empenhando-se em divulgar a miséria que presenciava no cotidiano em diferentes
regiões dos Estados Unidos. Ele assumiu o papel de fotógrafo investigativo comissionado pelo NCLC e foi, sem dúvida, um dos pioneiros da fotografia documental, viajando
pelos Estados Unidos, fotografando a vida e a relação de trabalho de jovens e crianças
em todos os tipos de indústrias, de minas de carvão a moinhos de algodão, de casas
frigoríficas a fábricas de tecelagem. Sua empreitada fotográfica intitulada “Trabalho Infantil” (Child Labor), entre 1908 e 1924 pelo NCLC, rendeu dois livros: Child Labor in
the Carolinas e Day Laborers Before Their Time, e aproximadamente trinta reportagens
das sessenta e cinco que estão em posse da Biblioteca do Congresso em Washington.
Lewis Hine, Child labor, Gastonia, North Carolina
Fonte: Lybrary of Congress / Call Number: LOT 7479, v.1, nº 0255 [P&P] <http://hdl.loc.gov/loc.
pnp/pp.print> Acessado em: 12 de março de 2016.
252
Lewis Hine foi meticuloso na maneira de executar seu trabalho. Ele fez anotações para todas as suas fotografias, entrevistava crianças e, muitas vezes, se infiltrou
em locais onde obviamente não era permitido que se fotografasse. Ele procurou ser
o mais incisivo possível, anotando detalhes de idades, nomes, jornadas de trabalhos,
local e até o horário em que a foto havia sido feita.
As imagens e anotações que Lewis Hine realizou sobre o tema do trabalho e
do trabalhador potencializam a mensagem que a foto possa transmitir e indicam uma
postura que “não é uma mera reprodução de um objeto ou de um grupo de objetos,
– é uma interpretação da natureza, uma reprodução das impressões feitas mediante o
fotógrafo a qual ele deseja repetir para outros” (KOETZLE, 2005, p.127).
conSideraçõeS finaiS
Dado o crescimento inexorável da industrialização, o surgimento de novas tecnologias e o aumento respectivo de oferta e demanda em escala global, a concepção
dos meios de produção perniciosos tomou dimensões desproporcionais. A partir do
precedente aberto por Jacob Riis e Lewis Hine – que transpassaram todas as vertentes
da fotografia de seu tempo, originando um modelo antecipado de “fotojornalismo humanista”, e posteriormente junto a esforços como os da organização da Farm Security
Administration (FSA), fotógrafos notáveis desempenharam um papel relevante na
história, oferecendo oportunidade de um diagnóstico da sociedade, delimitando uma
situação problemática aparentemente universal da sintetização do trabalho manual
e do processo industrial, que constituem um cenário econômico problemático em
diferentes instâncias e que, até nossos dias, continuam sendo temas recorrentes dos
registros de muitos fotógrafos.
Os registros fotográficos de Riis e Hine foram precursores na memória do trabalho humano no período do desenvolvimento da máquina industrial e estes registros
possuem valor documental e estético equivalentes a sua eloquência como representação. Estes registros colaboraram para desencadear uma série de mudanças sociais e
de comportamento discutidos até os dias atuais.
O papel da fotografia em todos os meios de comunicação e como formadora
de consciência desde seu surgimento até os dias de hoje oferece uma narrativa do homem no mundo: seja pela compreensão de suas categorias básicas ou da totalidade de
seus fenômenos; sua sintaxe ou sua linguagem. A reflexão de seus elementos não se
reduz pela transição entre realidade e ficção. Sua enorme abundância de percepções
a tornam uma dádiva da memória e nos questiona intensamente em tantas instâncias.
253
referênciaS
FRIZOT, Michel (Org.). The New History of Photography. Köln: Köneman, 1998.
HINE, Lewis Wickes. Child Labor in the Carolinas. New York: National Child Labor Committee, 1909.
HINE, Lewis Wickes. Day Laborers Before Their Time. New York: National Child Labor Committee, 1909.
KOETZLE, Hans-Michel. Photo Icons: The story behind the pictures. Los Angeles: Taschen, 2005.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
PERSICHETTI, Simonetta. A poética no olho crítico: a estética como formadora de discurso na
fotografia documental latino-americana. Tese de doutorado em Psicologia Social - PUC/SP. São
Paulo, 2001.
RIIS, Jacob. How the Other Half Lives. New York: Reada Classic, 2010.
mario Schenberg na vi bienal: organização da
Sala eSpecial dedicada a alfredo volpi
ana Paula Cattai PisMel1
introdução
A VI Bienal (1961) foi marcada por um tom de retrospectiva, tendo Mário
Pedrosa como Diretor Geral. Ao organizar uma edição do certame dedicada a homenagear a trajetória das Bienais, o crítico deu à mostra um tom diferente do esperado,
uma vez que o propósito das Bienais era dar voz às novas tendências das artes visuais
em nível internacional (AMARANTE, 1989). Além desse debate, outras críticas permeavam cada nova edição das Bienais.
É nesse contexto que Mario Pedrosa propõe, na representação brasileira, salas
especiais para os artistas premiados em Bienais anteriores. Para organizar a sala dedicada ao pintor Alfredo Volpi, entra em cena um crítico de arte com um perfil diferenciado em relação aos demais críticos de então. Trata-se do Professor Mario Schenberg,
físico teórico de renome internacional, conhecido por sua atuação junto aos artistas.
Mario Schenberg era um colecionador de obras de Alfredo Volpi e conhecia
profundamente a trajetória da pesquisa do pintor, o que não facilitou o trabalho de
organização da sala especial. Mas quais foram os desafios enfrentados por Schenberg
em sua primeira atuação nas Bienais? O crítico foi bem sucedido na elaboração da
mostra de Alfredo Volpi?
a vi bienal de São paulo (1961)
Chegando a sua sexta edição, o evento já tinha suscitado diversas polêmicas:
desde a repercussão do apoio de Nelson Rockefeller quando de sua criação, passando
1.
Ana Paula Cattai Pismel. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP). É bolsista CAPES.
256
pelo gigantismo das sucessivas edições, até os debates acerca da abstração versus
figuração e da emergência das vanguardas dos anos de 1960 (ALAMBERT & CANHÊTE, 2004). Pode-se dizer que a cada dois anos, em maior ou menor medida,
escolhas e renúncias dos organizadores da Bienal de São Paulo catalisavam e inventariavam os debates em voga na esfera cultural e artística do país2.
Esta edição foi a última ligada ao Museu de Arte Moderna de São Paulo
(MAM-SP), fundado por Francisco Matarazzo Sobrinho (conhecido como Ciccillo
Matarazzo) em 19483. Foi também a última edição que contou com uma organização
centralizada na figura de um Diretor Geral, função ocupada então por Mário Pedrosa4.
Com Mário Pedrosa na direção geral da mostra, a expectativa era que a edição
de 1961 tivesse um caráter fortemente pautado pelas pesquisas de vanguarda. Contudo, sua proposta foi mais tímida, apoiando-se em retrospectivas históricas. Várias
representações internacionais tiveram caráter museológico (AMARANTE, 1989).
Dentro desse projeto, estavam previstas, na representação brasileira, salas especiais para os laureados das primeiras edições da Bienal. Coube a Mario Schenberg
a organização de uma retrospectiva da obra de Alfredo Volpi, que ocupou uma das
salas especiais da representação brasileira da VI Bienal de Arte de São Paulo (FUNDAÇÃO BIENAL, 1961)5.
Schenberg era, já na época, um dos maiores conhecedores da personalidade e
da obra do artista, tendo sido o primeiro a perceber, por volta dos anos de 1940, a importância da obra do pintor operário de origem humilde (AJZENBERG, 1996). Em
1944, o crítico havia organizado a primeira exposição individual de Alfredo Volpi,
para a qual fotografara as obras e escrevera o texto de apresentação para o catálogo
da mostra (OLIVEIRA, 2011, p. 108).
a Sala eSpecial de alfredo volpi
Em carta datada de 2 de fevereiro de 1961, Mário Pedrosa escreve a Mario
Schenberg confirmando o acerto prévio feito em conversa telefônica e manifestando
2.
3.
4.
5.
A VI Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo teve lugar no Pavilhão Armando Arruda Pereira (Pavilhão da Bienal), entre 1 de outubro e 21 de dezembro de 1961. Tendo como diretor geral
o crítico de arte Mario Pedrosa, a mostra reuniu 651 artistas provenientes de 50 países, expondo ao
público quase 5.000 obras (FUNDAÇÃO BIENAL, 2016).
Entre os anos de 1961 e 1966 deu-se o processo de desvinculação da Bienal em relação ao MAM-SP, passando o evento a ser organizado pela Fundação Bienal, que obteria recursos municipais
e estaduais para financiar suas atividades, mas continuaria sob o comando de Ciccillo Matarazzo
(ALAMBERT & CANHÊTE, 2004).
Da VII Bienal em diante, a organização do evento contaria apenas com Comissões de Assessoria,
mas mem sempre havia nessas comissões conhecedores de arte, o que comprometia a qualidade da
mostra. Cf. ALAMBERT & CANHÊTE (2004); AMARANTE (1989).
O pintor das bandeirinhas dividiu com Di Cavalcanti o Prêmio Nacional de Pintura na II Bienal, em
1953, escolha que se deu no contexto do debate entre o realismo social e o abstracionismo emergente
(AMARANTE, 1989).
257
satisfação em confiar ao crítico a organização da retrospectiva de Volpi. Essa tarefa
tinha sido proposta inicialmente a Theon Spanoudis, que foi escolhido pelo pintor,
mas não pôde aceitar a incumbência, pois estaria em viagem no período em questão6.
Para organizar a mostra, Mario Schenberg teve que contornar uma dificuldade:
reunir trabalhos de todas as fases de um pintor cuja carreira fora iniciada na década
de 1920, junto ao Grupo Santa Helena. Contando então com uma trajetória de quatro
décadas, que compreenderam inúmeras fases, sua obra oferecia um desafio e tanto
à realização de uma exposição retrospectiva. Essa dificuldade foi ainda maior com
relação aos trabalhos anteriores à década de 1940, que já estavam bastante dispersos.
No texto de apresentação da mostra, o crítico observou que a “[...] maior parte dos
trabalhos de decoração de residências foram destruídos. Com grande esforço foi possível reunir uma coleção reduzida de seus quadros do período de 1915-1940 para a
presente retrospectiva” (SCHENBERG, 1961, pp.38-39).
Figuraram na mostra noventa e cinco obras, em ordem cronológica, num percurso que cobriu desde 1915, como a tela Casebre, à pesquisa de 1961, com Bandeirolas no Espaço (FUNDAÇÃO BIENAL, 1961). Para Leonor Amarante, a sala
especial teve o mérito de ter sido “a primeira oportunidade de se ver quase todas as
[...] fases” do pintor (AMARANTE, 1989, p. 117). Apesar da trabalhosa, a montagem
da exposição foi bem sucedida7.
No que diz respeito ao texto de apresentação da retrospectiva, o crítico busca dar ao público a dimensão das fases da pesquisa de Alfredo Volpi, apresentando
alguns aspectos de sua extensa produção. Ao destacar a capacidade de síntese do
pintor, seja na captação da essência da atmosfera de cidadezinhas, subúrbios e praias,
seja nas composições da fase do abstracionismo geométrico, Mario Schenberg utiliza
elementos da pintura oriental: “Volpi evoca a arte inefável dos paisagistas místicos
da China e do Japão [...], mas sempre como um homem do povo de São Paulo”
(SCHENBERG, Mario, 1961, p. 37).
O crítico identifica a síntese operada pelo pintor, aliada à musicalidade de suas
composições, à dimensão do trabalho dos artistas orientais que, no processo de seu
aprendizado, buscavam na simplificação do desenho e no ritmo do traço uma expressividade mais profunda.
Para Mario Schenberg, Volpi é o pintor do espaço metafísico, repleto de musicalidade, no qual a cor não está a serviço da sensualidade (aqui entendida como
aspecto do sensível, da sensação visual, e não no sentido do senso comum), mas da
6.
7.
Carta de Mário Pedrosa a Mario Schenberg, de 02 de fevereiro de 1961; carta de Mário Pedrosa
a Theon Spanudis, de 22 de dezembro de 1960 (Arquivo Histórico Wanda Svevo). A resposta de
Theon Spanoudis não foi encontrada no Arquivo Histórico da Bienal, mas Pedrosa faz referência a
ela na primeira carta mencionada, bem como ao motivo que o levou a não aceitar o convite.
Foram inúmeras as negociações com proprietários de obras do pintor. No Arquivo Histórico Wanda
Svevo, da Fundação Bienal, estão depositados recibos de empréstimo e devolução de obras pertencentes a diversos proprietários, entre eles, Francisco Matarazzo Sobrinho, Mário Pedrosa, o pintor
Bruno Giorgi e o próprio Mario Schenberg (Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Bienal).
258
expressão de uma “espiritualidade fria e vibrante, um sentimento cósmico transcendendo a sensualidade das aparências” (SCHENBERG, 1961, p. 37).
Também são examinadas no texto as influências do abstracionismo geométrico e do concretismo, enquanto movimentações mais recentes de sua obra naquele
momento. Mario Schenberg indica que, de início, elas pareceram nocivas ao desenvolvimento da pesquisa de Volpi, preocupação que, mais tarde, foi afastada pelo
[...] poderoso temperamento artístico de Volpi [que] pôde receber a influência do abstracionismo geométrico e do concretismo sem perder as suas características próprias. O resultado
foi uma maior liberdade, aliada a uma depuração da composição e do colorido, que lhe deram uma admirável capacidade
de síntese (SCHENBERG, 1961, p. 38).
Essa libertação da representação, prossegue o crítico, permitiu ao pintor
desenvolver ainda mais seu senso de espacialidade pura, notável desde suas marinhas
de Itanhaém (1940-1942). O pintor conseguiu plasmar, usando grandes massas de
tons puros, uma espacialidade de vibração belíssima que, segundo o crítico, foi criação original sua. Os espaços, coloridos uniformemente, buscavam afastar a impressão de matéria.
Nos desdobramentos dos dois anos anteriores, porém, Volpi vinha se afastando
do concretismo: estava voltando “à procura de matéria, e mesmo da pincelada, retomando de modo novo métodos tradicionais da pintura ocidental. [...] [N]as composições semiabstratas ou abstratas surgem cada vez mais linhas e curvas irregulares”
(SCHENBERG, 1961, p. 38).
Apesar de apresentarem muitas qualidades, como a beleza da composição, a
pureza do colorido e os temas populares, o conjunto da obra de Volpi produzida sob
encomenda se apresenta menos interessante, para o crítico, que as telas pintadas na
trilha de sua pesquisa pessoal – abstrata ou semiabstrata – do mesmo período.
Mario Schenberg conclui a apresentação da sala especial mencionando a formação do pintor, autodidata por excelência, isolada das tendências artísticas de então
(primeiro tempo Modernista: décadas de 20 e 30). Apesar de ter podido, nos anos de
1950, viajar à Europa e aprimorar seu aprendizado, tendo conhecido os primitivos
italianos que tanto o impressionaram, e de ter sido depois influenciado pelo concretismo, o sentimento popular não deixou Volpi: seus ecos estavam presentes nas hoje
famosas bandeirinhas dos anos de 1950 e 1960.
A sala especial organizada por Mario Schenberg teve repercussão favorável
na imprensa, na medida em que apresentou com eficiência e caráter didático todas as
fases de Alfredo Volpi até aquele momento. Mesmo entre os visitantes estrangeiros,
259
a mostra foi bem recebida8. Outro aspecto positivo apontado é a abundância de documentação da pesquisa empreendida por Volpi, que permite ao visitante compreender
o peso de seu trabalho na vida artística do país (MARTINS, 1961).
Interessa destacar, cinco anos após a VI Bienal, o que noticia o jornal Correio
Paulistano, que indica que Alfredo Volpi vinha sendo procurado por colecionadores
brasileiros e estrangeiros, “em consequência de seu nome ter se firmado em todo o
território brasileiro, [...] graças ao efeito positivo de sua sala especial na Bienal, carinhosamente montada, dizem, pelo matemático Mario Schenberg, que é um dos grandes colecionadores paulistas”9. Para o pintor, certamente essa projeção foi um grande
incentivo, tanto artístico, quanto financeiro, para a continuidade de sua pesquisa por
meio de seus trabalhos.
conSideraçõeS finaiS
Assinala-se que a sala especial organizada por Mario Schenberg obteve êxito,
apesar dos entraves que dificultaram sua organização. Note-se, ainda, que o convite
para a Sala Especial partiu do próprio artista, que tinha convicção de que Mario
Schenberg era conhecedor de sua obra e acompanhava sua trajetória desde antes de
seu trabalho ser reconhecido.
Estando em meio a artistas e intelectuais que possuíam obras de Volpi, o crítico pôde reunir trabalhos significativos de todas as fases do pintor até aquele momento. Destaca-se, além disso, a atenção dedicada ao texto de apresentação da exposição,
que objetivou mostrar ao grande público elementos significativos da trajetória de
Alfredo Volpi de maneira a aproximar seu trabalho dos visitantes do evento.
referênciaS
AGUILAR, José Roberto. O mundo de Mario Schenberg. São Paulo: Casa das Rosas, 1996.
AJZENBERG, Elza. Mario Schenberg – O Crítico. In AGUILAR, José Roberto. O mundo de
Mario Schenberg. São Paulo: Casa das Rosas, 1996.
ALAMBERT, Alambert & Polyana CANHÊTE. Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos
curadores. São Paulo: Boitempo, 2004.
AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo: 1951 a 1987. São Paulo: Projeto, 1989.
FUNDAÇÃO BIENAL. 1961 - 6ª Bienal de São Paulo. Disponível em: http://www.bienal.org.br/
exposicao.php?i=2323 Acesso em 10/06/2016.
FUNDAÇÃO BIENAL. Bienal a Bienal. Disponível em:
8.
9.
Pintura, Desenho e Opiniões. Correio Paulistano, São Paulo (capital), 22/12/1961.
Correio Paulistano, São Paulo (capital), 10/12/1966.
260
http://www.bienal.org.br/FBSP/pt/AHWS/BienalaBienal/Paginas/6BienalSaoPaulo.aspx?selected=6 Acessado em
15/01/2013.
FUNDAÇÃO BIENAL. VI Bienal. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação Bienal, 1961.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Schenberg: crítica e criação. São Paulo: EDUSP, 2011.
SCHENBERG, Mario. Alfredo Volpi. In FUNDAÇÃO BIENAL. VI Bienal. (catálogo de exposição) São Paulo: Fundação Bienal, 1961, pp.38-39.
memória e identidade da cidade de São paulo na
arte pública de maria bonomi
leonarDo PuJatti1
eDson leite2
Se em outras épocas a arte já foi entendida como uma imagem da realidade, para
a qual a história da arte oferecia uma moldura, na contemporaneidade ela já escapou
desta moldura. Kosuth (1975) defende que a questão da função da arte foi levantada
em primeiro lugar por Marcel Duchamp. Pode-se, certamente, observar uma tendência
a esta autoidentificação da arte a partir de Manet e Cézanne e através do Cubismo, mas
suas obras são tímidas e ambíguas em comparação com o trabalho de Duchamp. A arte
“moderna” e o trabalho anterior parecem estar ligados por sua morfologia. Em outras
palavras, a “linguagem” da arte permanecia a mesma, mas estava dizendo coisas novas.
A memória inscreve as lembranças contra o esquecimento e cria sentimentos
de pertencimento e identidade para que as futuras gerações tomem conhecimento.
Memória e identidade cultural reforçam-se mutuamente para que se possa distinguir
o que une e o que divide um grupo social contribuindo, desta maneira, para a formação da cidadania. A arte pública produzida pela artista plástica Maria Bonomi realiza,
como veremos a seguir, a mediação da arte com a memória da cidade e propicia a
identidade cultural e o sentimento de pertencimento dos cidadãos.
a artiSta maria bonomi
Maria Bonomi é gravadora, escultora, pintora, muralista, curadora, figurinista, cenógrafa, professora e um dos nomes de maior expressão das artes plásticas no
1.
2.
Leonardo Pujatti. Mestre em Engenharia da Computação pela Escola Politécnica da USP (Poli-USP) e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte
da USP (PGEHA USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
262
Brasil. Tem grande projeção internacional, comprovada pelos vários prêmios conquistados. Bonomi realizou exposições individuais no Brasil e no exterior e tem
coleções em vários museus pelo mundo, como o Museum Art, de Nova Iorque; o
Museu do Vaticano, em Roma; o Museu Bezelel, de Jerusalém; e o Museu de Arte
Moderna, de São Paulo.
A artista Maria Bonomi nasceu em Meina, na Itália, em 1935; de pai italiano
e mãe brasileira, radicou-se em São Paulo ainda criança. Por sugestão de Lasar Segall, estudou desenho e pintura com Yolanda Mohalyi e Karl Plattner e gravura com
Lívio Abramo e começou a expor em 1952. Posteriormente, no Pratt Institute Graphics Center, estudou com Seong Moy e Fritz Eichenberg e, retornando ao Brasil,
frequentou a oficina de gravura em metal de Johnny Friedlaender no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro.
Nos anos 60, Maria Bonomi foi convidada por Lívio Abramo para fundar com
ele, na Alameda Glette, em São Paulo, o Estúdio Gravura, um ateliê experimental
para o ensino de gravura em madeira e metal e para as pesquisas artísticas. Esse centro serviu para a formação de numerosos artistas contemporâneos. Em 1965, Bonomi
recebeu o Prêmio de Melhor Gravador na VIII Bienal de São Paulo e, com a repercussão dessa premiação, foi convidada para mostras no Brasil e no exterior. Em Paris,
na Bienal dos Jovens, foi informada de que não poderia mostrar seus trabalhos, uma
vez que eles não caberiam nas mesas e vitrines destinadas para a gravura. Depois de
muita discussão baseada principalmente no argumento de que se a pintura saíra do
cavalete e a escultura do pedestal, “por que a gravura tinha que ficar nas mesinhas?”
(BONOMI, in LAUDANNA, 2007, p. 73), Bonomi conseguiu “ir para as paredes” e
ganhou o Prêmio de Gravura nesta V Bienal de Paris, em 1968.
A xilogravura para Bonomi “é uma linguagem mais fiel para externar o
pensamento” (BONOMI, in LAUDANNA, 2007, p. 104). A artista completa esta
ideia explicando: “quero romper com o preconceito de que a gravura é uma arte intimista, voltada para dentro de si mesma. Ela é um meio de comunicação que pode ser
usado com grande penetração, se encontrar uma linguagem de força.” (BONOMI, in
LAUDANNA, 2007, p. 158)
Bonomi defendeu tese de doutorado na Escola de Comunicações e Artes da
USP em 1999 com o tema Arte Pública. Sistema Expressivo/Anterioridade e obteve
destaque com os grandes trabalhos realizados para murais em espaços públicos, especialmente na cidade de São Paulo. Na década de 70, a artista inicia sua intervenção
em espaços públicos possibilitando a valorização do espaço urbano e o resgate do
olhar da população (OLIVEIRA, 2008) em espaços fora de museus e galerias.
arte pública de maria bonomi
A arte pública marcou um ponto de inflexão na trajetória de Maria Bonomi,
mais conhecida então como gravadora e cenógrafa. Ela já realizou mais de quarenta
263
obras nessa vertente, grandes instalações tridimensionais que se incorporam à arquitetura de forma surpreendente, instaladas no Brasil e no exterior, com a maior parte
delas na cidade de São Paulo. As obras e os espaços envolvem apropriações, objetos
e ações que remetem a reflexões e transformações dinâmicas que podem ser entendidas como extensão de criações, vivências, aproximações e interatividade com o dia
a dia das pessoas. Estas obras são projetadas para um local específico (site specific),
formando uma união indissolúvel entre espaço e obra, reafirmando o caráter lúdico
e experimental que prevê a interatividade e mediações do público. Comentaremos,
a seguir, algumas das obras públicas mais significativas de Maria Bonomi instaladas
na Cidade de São Paulo.
Figura 1 – Epopeia Paulista
Maria Bonomi. 2005 - concreto pigmentado, 7300 x 300cm - estação de metrô Luz, São Paulo.
Fonte: <http://www.mariabonomi.com.br/obras-arte-publica.asp?pa=2&mt=3> Acessado em 30/11/15
A obra Epopeia Paulista foi concebida para o grande espaço público que faz
a ligação entre o metrô e a rede ferroviária na Luz, em São Paulo. Para a confecção
de Epopeia Paulista, Bonomi utilizou materiais recolhidos na seção de achados e
perdidos da Estação da Luz. Aí se incluem roupas, ferramentas, óculos, instrumentos
musicais, brinquedos etc. numa opção inspirada na literatura de cordel. “Esse conjunto que mescla pessoas, narrativas e objetos compõe a memória ‘coisificada’ e ‘ressignificada’ impregnada no painel” (OLIVEIRA, 2008, p. 107). Nascida da mescla
de diferentes matrizes da população, Epopeia Paulista mistura o popular e o erudito
e “luta contra a amnésia coletiva através das imagens porque relembra as origens de
cada um” (OLIVEIRA, 2008, p. 109).
264
Figura 2 - A Construção de São Paulo
Maria Bonomi. 1998 - concreto, duas faces de 300 x 600 cm por duas faces de 270 x 300 cm cada
- estação de metrô Jardim São Paulo, São Paulo.
Fonte: <http://www.mariabonomi.com.br/obras-arte-publica.asp?pa=3&mt=3> Acessado em 30/11/15
Em A Construção de São Paulo, de 1998, Maria Bonomi cria dois cubos de concreto na Estação Metrô Jardim São Paulo para evocar a imagem do Pico do Jaraguá e
cenas da grande metrópole paulistana. As faces dos cubos possuem relevos modulados
de concreto gravado, como se fossem rabiscos feitos a lápis grosso e placas de concreto
justapostas, com recortes geométricos que indicam “perspectivas sufocadas por ruas
febris, esquinas duvidosas, feéricas alturas que mal se avistam” (BONOMI, 1998).
Figura 3 - Etnias – Do primeiro e sempre Brasil
Maria Bonomi. 2008. Cerâmica, bronze e alumínio. Dimensões: 25 m X 10 m. Instalação permanente no Memorial da América Latina, estação de metrô Barra Funda, São Paulo.
Fonte: <http://www.terra.com.br/istoe-temp/edicoes/1996/imprime71548.htm> Acessado em 30/11/15
Etnias do Primeiro e Sempre Brasil – painel em placas dispostas paralelamente, formando um corredor de trinta metros de comprimento e onde foram utilizadas
mais de dez toneladas de matéria-prima, que apresenta a história dos índios brasilei-
265
ros e todo o processo de aculturação e destruição de que foram acometidos ao longo
de quinhentos anos de história – foi instalado, em 2008, na passagem subterrânea
entre o memorial da América Latina e a estação Barra Funda do Metrô. A obra é formada por painéis de cerâmica, bronze e alumínio. As cerâmicas são de Antônio Nóbrega e Adolfo Morales. Colaboraram para a realização dessa obra os artistas Carlos
Pereañez e Leonardo Ceolin. Maria Bonomi assina a criação e a coordenação geral
do projeto e contou com apoio na arquitetura e logística de Rodrigo Velazco, além
da participação em sua equipe de índios das aldeias localizadas na Área de Proteção
Ambiental Capivari-Monos, em São Paulo.
Além do contato com os índios que fizeram parte de sua equipe e do que ela
já conhecia sobre o assunto, Bonomi recorreu aos escritos de Darcy Ribeiro e dos
irmãos Villas Boas e à iconografia de Debret e Rugendas para formar seu entendimento conceitual e apresentar o percurso da obra em três fases: a primeira pode
ser denominada de “arqueológico”, quando usa apenas o barro para mostrar a terra
brasilis antes da chegada dos europeus, evocando a mata, as cavernas, pinturas rupestres, os padrões indígenas, animais etc.; a segunda, em que aborda os índios e os
conquistadores, usa o bronze para evocar as caravelas, as armas de fogo, os sinos,
as missões etc.; e a terceira, em alumínio, quando remete à presença indígena na
contemporaneidade, como na construção de Brasília, por exemplo. Mais que uma
experiência contemplativa, o público diário de aproximadamente trinta mil pessoas,
pode passar pelos espaços vazios entre as placas maciças que por meio de espelhos se
transformam em espaços de interação física com a história.
conSideraçõeS finaiS
Maria Bonomi trabalha com uma estética expandida do visual, utilizando a
gravura, a padronagem de tecidos, a fachada de prédios ou a capa de livros para se
expressar artisticamente. Certamente, Bonomi enfrentou dificuldades por ser mulher
nascida no exterior e por trabalhar com a técnica mais antiga e menos divulgada da
gravura, mas essas dificuldades estimularam sua ideia de que a cidade pode conviver
com indagações, desafios e processos criativos. Sua biografia demonstra que trabalha
com energia, produzindo uma arte colossal que com um inesperado sopro de vida se
projeta em imagens, esculturas e na arquitetura. Podemos nos sentir assombrados
pelo passado, pelas citações bizarras que utilizam elementos do cotidiano buscados
num “achados e perdidos”, mas seremos revigorados pela beleza da composição artística e pela ocupação estética do espaço público.
As obras de Maria Bonomi nos remetem a camadas de tempo e memória. São
convite à reflexão e potencializam a imaginação e as mediações simbólicas. Bonomi
usa sua arte para nos persuadir, registrando a sua história, a da cidade e a das pessoas
que vivem e viveram nela constituindo, portanto, uma biografia de si e do outro através das imagens que produz.
266
referênciaS
BONOMI, Maria. Bloco de Processo. N. 1. Painel: “Construção de São Paulo”. Estação do metrô
Jardim São Paulo. Anotado por Jacob Klintowitz, São Paulo, abril de 1998.
KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. In: Malasartes, Rio de Janeiro, n. 1, set-nov, 1975.
LAUDANNA, Mayra (Org.). Maria Bonomi: da gravura à arte pública. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Poética da Memória: Maria Bonomi e epopéia paulista 2008.
Tese (Doutorado em Teoria, Ensino e Aprendizagem) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
canudoS: novoS territórioS para a
reconStrução de memóriaS
MôniCa zarattini1
katia Canton2
introdução
O objeto escolhido para ser estudado no presente artigo são dois conjuntos de
fotografias da autoria de Mônica Zarattini do sertão de Canudos, interior da Bahia: o
primeiro contendo fotografias em preto e branco realizadas durante uma reportagem
para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1989, e o segundo, com fotografias coloridas
tomadas em março deste ano, quando a artista retornou à região realizando o mesmo
trajeto da reportagem. A ideia de voltar à região esteve sempre presente nesses vinte e
sete anos que separam as duas datas. “A arte é um estado de encontro”, disse Nicolas
Bourriaud. E foi a partir dessa premissa que a pesquisa ainda está sendo realizada e
concluída. Esse conceito movimentou a ideia da volta ao sertão baiano, o que resultou num intercâmbio com interações humanas significativas, pois pessoas fotografadas em 1989 foram reencontradas. Elas se surpreenderam e se emocionaram ao entrar
em contato com suas fotografias, tiradas há vinte anos e, então, concordaram em ser
retratadas novamente com a imagem antiga projetada sobre elas (fig.1). Para isso, as
fotografias antigas foram levadas pela fotógrafa de volta à região para serem ressignificadas junto às pessoas e locais registrados para que daí pudesse surgir algum tipo
de linguagem artística. Essa inquietação sobre como estaria a região depois de mais
de um quarto de século, gerou a intenção para a revisita ao sertão baiano, solo onde
se deram tantas batalhas sangrentas. “El arte contemporáneo desarrolla efetivamente
1.
2.
Mônica Zarattini. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da USP (PGEHA USP).
Katia Canton Monteiro. Professora-associada do Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo (MAC USP) e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da
Arte da USP (PGEHA USP).
268
um proyeto político cuando se esfuerza en abarcar la esfera relacional, problematizandola.” (BOURRIAUD, 2008, p.16).
o reencontro
O encontro com as pessoas retratadas no passado trouxe à tona emoções e
memórias. Bourriaud (2008) disse que a arte contemporânea mostra que há forma
para a arte quando há um encontro, uma relação dinâmica que mantém uma proposta
artística com outras formações, sejam artísticas ou não.
Temas como a Guerra de Canudos, o mito Conselheiro, a disputa pela terra
e a situação do homem no sertão foram abordados novamente, uma vez que esses
assuntos estiveram presentes no primeiro encontro em 1989. Nessa época, foram
produzidas as fotografias em preto e branco que fizeram parte do suplemento especial
encartado no jornal O Estado de S. Paulo para comemorar os oitenta anos da morte
do escritor Euclides da Cunha. O escritor acompanhou, como repórter do jornal, a
quarta e última expedição do exército brasileiro que derrotou o vilarejo, há cento e
vinte anos. Euclides morreu em 15 de agosto de 1909 e o suplemento foi publicado
no dia 15 de agosto de 1989. Portanto, o fazer fotográfico e as imagens resultantes
foram concebidas a partir desse acontecimento histórico onde a guerra, a terra, o mito
e o homem foram enunciados fundamentais.
Nuestra convicción, por el contrario, es que la forma toma
consistência, y adquire una existência real, sólo quando pone
en juego las interaciones humanas; la forma de una obra de
arte nace de una negociación con lo intelegible. A través de
ella, el artista entabla un diálogo. La esencia de la práctica artística residiria así en la invención de relaciones entre sujetos;
cada obra de arte en particular sería la propuesta para habitar
un mundo en común y el trabajo de cada artista, un haz de
relaciones con el mundo, que generaría a su vez otras relaciones, y así sucessivamente hasta el infinito. (BOURRIAUD,
2008, p.23)
269
Figura 1: Conjunto de fotografias tomadas no Sertão de Canudos em 1989(P&B) e 2016 (coloridas), por Mônica Zarattini. Fonte: Mônica Zarattini.
Com base no pensamento de Bourriaud, a volta ao sertão baiano objetivou
novo ensaio fotográfico e criação de uma “forma”: com diálogo para a construção de
uma viga de “relações entre sujeitos”, novas imagens do ensaio de março deste ano
foram produzidas.
reconStrução de memóriaS
O objetivo foi buscar trabalhar o arquivo fotográfico da artista, marcando duas
épocas distintas, 1989 e 2016. Outras correlações visuais também puderam ser realizadas, como por exemplo: em 1989 a artista obteve um farto material iconográfico
em torno da escassez de água da região; muitas mulheres e crianças lavavam roupas
em lagos e açudes e também buscavam a água em caçambas e a transportavam em
jegues. Hoje, vemos que a instalação de cisternas é uma constante e modificou muito
a paisagem rural. São objetos cuja materialidade (feitas de cimento ou plásticos) se
impõe de forma abrupta na visualidade do cenário local. Outras conexões puramente
estéticas e visuais também foram criadas.
Havia uma tensão que lhe inquietava e que a fez retornar à região. Segundo
Aranha, é “nesse movimento tensionado e inquietante que a ordem vicária vai se dissolvendo, que um princípio de desordem se instala para logo adiante se recompor em
nova ordem, mais pessoal, reflexo de uma experiência visual genuína.” (2011, p.16)
Baseada na percepção, a artista procurou estabelecer correlações visuais entre aquele
mundo de 1989 e o de 2016, tendo em mente que essas fotografias, as antigas e as
atuais, poderiam e poderão criar condições de intercâmbio. Mario Pedrosa lembra
a importância da percepção: “A primeira aquisição científica, a primeira aquisição
filosófica e a primeira aquisição estética estão reunidas de início no nosso poder de
perceber as coisas pelos sentidos.” (1996, p.108)
270
oS novoS territórioS: ocupaçõeS da frente de luta por moradia
Há mais de um século a Guerra de Canudos acontecia no sertão da Bahia. O
exército brasileiro, da recém República implantada, precisou de quatro batalhas para
derrotar o arraial de Canudos, onde os sertanejos, sob a liderança de Antonio Conselheiro, armados de paus, espingardas e facões, venceram as três primeiras expedições militares. Em 1897, a quarta expedição militar fez o cerco decisivo e derrotou
os jagunços. Nesse povoado, juntavam-se muitos sertanejos pobres castigados pela
seca e pela fome. A escravidão havia acabado poucos anos antes e pelas estradas e
sertões grupos de ex-escravos vagavam, excluídos do acesso à terra e com reduzidas
oportunidades de trabalho. O arraial de Canudos cresceu e tornou-se uma ameaça ao
governo republicano, pois os sertanejos lutavam para não pagar impostos. Antonio
Conselheiro era contra o casamento civil e, como um bom beato, se dizia um enviado
de Deus. Aos olhos do governo da Bahia, dos latifundiários e da Igreja, o arraial de
Canudos era visto como um ninho de rebeldes que precisava ser eliminado. O sertão
virou um mar de sangue. Vinte mil jagunços e cinco mil soldados foram massacrados.
O povo de Canudos lutava, entre outras coisas, por terra para morar. Nesse sentido, e mais uma vez acreditando no conceito de Bourriaud que afirma que a “arte é
um estado de encontro”, a segunda etapa da criação artística será expor as fotografias,
antigas e atuais, nas fachadas dos prédios ocupados no centro de São Paulo. A líder da
Frente de Luta por Moradia (FLM), Dona Carmen Ferreira da Silva, foi contatada e,
de pronto, autorizou a afixação das fotografias nas fachadas dos edifícios. O objetivo
é, mais uma vez, fazer com que as fotografias, enquanto forma de arte, possibilitem a
troca de vínculos entre pessoas. Ao prender banners ou colar lambe-lambes com fotografias de Canudos nos prédios ocupados, a pergunta sobre o porquê desta ação será
imediatamente colocada para os moradores. A riqueza que a fotografia proporcionou
na retomada da memória daquela gente em torno dos temas já citados, poderá provocar inquietações nas pessoas que habitam os prédios ocupados pela FLM. Nesses,
há uma esmagadora maioria de nordestinos que poderão se identificar e retomar suas
relações com seu passado cultural, histórico, e por que não dizer, seu passado pessoal
e de vivências. A luta dos que ocupam hoje prédios daqui tem objetivos similares aos
sertanejos que incomodaram o jovem governo republicano.
As fotografias ocuparão um espaço público, diferente dos locais previamente
estabelecidos para elas, como instituições, museus e galerias. Os transeuntes do centro da cidade conseguirão fruir essas imagens e estabelecer relações com elas.
A escolha do retrato fotográfico
Michel Foucault ao escrever sobre o quadro Las Meninas, de Velásquez, discute as relações entre visibilidade e invisibilidade ao descrever o pintor retratado ao
lado do grande quadro: “Fixa um ponto invisível, mas que nós, espectadores, podemos facilmente determinar, pois que esse ponto somos nós mesmos: nosso corpo,
nosso rostos, nossos olhos.” (FOUCAULT, 1981, p.20) Fazendo uma analogia, o
271
pintor representado por Velásquez no quadro Las Meninas está na mesma posição
dos personagens retratados em Canudos. Dos olhos de Dona Eleni (fig.1) e de Padre Enoque até o que eles olham, há uma linha traçada que sai da fotografia numa
reta imaginária e nos atinge inevitavelmente; e que nos liga ao conceito e à ideia da
imagem. Eles dirigem seus olhares para nós por que estamos no seu alvo. Tanto para
a fotógrafa no ato da captura da imagem, assim como para os mais variados espectadores das fotografias.
No momento em que Dona Eleni ou Padre Enoque posam para a fotógrafa,
eles são colocados no campo do olhar do observador, captam o espectador e o coagem a entrar na fotografia e habitar aquele mundo do sertão, nem que seja por instantes. É nesse jogo de representações que se situa o fenômeno do retrato, com o paradoxo da sua visibilidade e invisibilidade, seja ele o retrato na pintura ou o retrato na
fotografia. Foucault lembra que a imagem não deve se limitar as bordas da moldura;
e é nesse jogo de inter-relações que ela deve se expandir. Bourriaud (2008) afirma que
a “forma” de uma obra de arte nasce a partir de uma negociação com o cognoscível
e uma das formas resultantes no caso aqui estudado foi o retrato e suas visibilidades.
Lembramos Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, sobre: o que se vê tem
um algo do que não se vê e “[...] que o próprio do visível é ter um forro de invisível
em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.” (2004, p.43) A
fotografia não é uma cópia simplesmente, como um desenho e um quadro também
não são, o que nela se vê é o interior do exterior e o exterior do interior e através dela
é possível também a descoberta do invisível no visível. “[...] o olho é aquilo que foi
sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelo traço da
mão.” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.20) Esse solo que guarda parte da história do
Brasil, que não é tão contada e propagada, impactou o olhar da fotógrafa para um fazer
artístico partindo da compreensão visual do sertão baiano em dois tempos específicos.
conSideraçõeS finaiS
Nos últimos cinquenta anos, percebemos que parte dos fotógrafos abandonaram os elementos geométricos do preto e branco, as sombras e os contrastes, os
ângulos inusitados, os enquadramentos atípicos e o excesso de nitidez tão usados pela
fotografia moderna. Há uma mudança de estratégia da fotografia para a concepção
de mundo: no lugar do “momento decisivo” da era moderna, a fotografia contemporânea se embebe de estratégias como séries de fotografias repetidas e realidades que
se pulverizam com espaços e tempos fragmentados. O caráter cinematográfico entra
em voga quando numa mesma fotografia muitas ações acontecem. As questões do
cotidiano, as chamadas micropolíticas, podem fazer parte do informe dos artistas e de
seus modelos estratégicos. Inspirados nas vanguardas históricas, alguns artistas passaram a “trabalhar fotograficamente” e apoiar a ideia defendida por Dubois “segundo
a qual a arte virá a partir de então extrair, das condições epistêmicas da fotografia,
272
possibilidades singulares de renovação de seus processos criativos e de suas apostas
estéticas principais.” (DUBOIS, 2010, p.258)
A linguagem artística escolhida para essa segunda etapa do trabalho (2016),
relacionada com a primeira (1989), foi fruto e reflexo de uma experiência própria e
original e talvez possa expressar a linguagem contemporânea. A nosso ver, na primeira série, as fotografias estão bem alinhadas com os cânones da fotografia moderna
e documental. Podemos dizer que na segunda série também existem fortes traços
desses elementos formais. Porém, procurou-se ordenar novos enunciados quando fotos antigas foram projetadas nas pessoas encontradas (e elas realmente “cresceram
dentro do retrato”) e também quando se olhou para aquele sertão buscando imagens
que construíssem narrativas não tão claras como, por exemplo, nas fotografias da trave de futebol relacionada com o cemitério, ou das cisternas com aparência de discos
voadores e muitas outras. “As narrativas enviesadas contemporâneas também contam
histórias, mas de modo não linear. No lugar do começo-meio-fim tradicional, elas se
compõem a partir de tempos fragmentados, repetições, deslocamentos.” (CANTON,
2009, p.15).
referênciaS
ARANHA, C.S.G. et al. “Cultura de visualidades: aproximações da linguagem artístico-visual.”
in: Espaços da mediação. ARANHA, C.S.G. & CANTON, K. (Orgs.). São Paulo: PGEHA/MAC
USP, 2011.
BOURRIAUD, N. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
CANTON, K. Coleção temas da arte contemporânea. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009.
DUBOIS, P. O ato fotográfico. 13ed. Campinas: Papirus, 2010.
FOULCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. 2.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1981.
MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
PEDROSA, M. Forma e Percepção Estética: Textos Escolhidos II. ARANTES, O.(org.) São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
memória, acervo e coleçõeS de Performances
Joseane alVes ferreira1
Jane aPareCiDa Marques2
A performance como expressão do universo das artes contemporâneas enfrenta questões quanto ao pertencimento de acervos em instituições públicas ou particulares, bem como sua articulação no mercado de arte, principalmente pelo seu caráter
imaterial. Provavelmente o maior dilema em incluí-la nos acervos esteja no registro,
que garante sua inserção nas páginas da história.
O vídeo e o cinema são ferramentas que podem ajudar a registrar e a perpetuar
essas experiências ou encenações pela característica da verossimilhança, porém outra
questão se coloca, pois o cinema é arte e tem sua própria estética. Sob este prisma,
questiona-se se o registro é um ato imparcial ou se o olhar do documentarista pode
interferir, levantar outras questões ou outras abordagens.
Como construir acervos e coleções particulares? Como montar um acervo de
performances, levando-se em conta essas questões e o mercado de arte? Mesmo se
tratando de um estudo exploratório (SELLTIZ et al., 1974), para abordar o tema e
tentar responder a essas questões, buscaram-se referenciais teóricos e realizou-se
uma pesquisa qualitativa, por meio de entrevistas em profundidade com especialistas, atores dessa linguagem, que foram entrevistados e autorizaram a divulgação dos
conhecimentos que estão expressos neste trabalho.
1.
2.
Joseane Alves Ferreira. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e
História da Arte da USP (PGEHA USP).
Jane Aparecida Marques. Professora livre-docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da USP (EACH-USP), docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da USP (PGEHA USP) e do Mestrado Profissional em Empreendedorismo da Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP).
274
Performance: conceituação e aplicaçõeS
Há conceitos de artes performáticas, que compreendem dança, teatro e as artes
vivas. A partir dos anos 70 tem-se “o entendimento que performance é um desdobramento da escultura, intrínseco com as artes visuais” (MORAES, 2016). É importante
ressaltar que a performance já dava sinais com as vanguardas do século XX, com o
Dadaísmo, o Futurismo, o Surrealismo e a Escola de Bauhaus. Pode ainda ser considerada como um desdobramento da body art e da action painting. Alguns estudiosos
como Richard Schechner (2006, p. 28), destacam a intimidade com os rituais, as memórias em ação e as qualidades da linguagem: “A primeira qualidade da performance
é a ação corporal. O arquivo está lá, mas para mim o repertório é muito mais preponderante e importante porque é através do repertório, do comportamento em ação, que
o processo continua gerando mudanças constantes. De acordo com Juliana Moraes
(2016), a nomenclatura performance nasceu nos anos 70; anteriormente preferiam o
termo happenings e, no Brasil, o grande performer Flávio de Carvalho, considerado
o vanguardista brasileiro preferia tratar por “experiências”, termo que dialoga muito
mais com o universo das artes visuais. Já o performer e pesquisador Renato Cohen
(2002), em suas reflexões, ajuda a entender esse universo:
Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria
razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro
sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la (COHEN, 2002, p. 28).
Conceituar, definir ou classificar performance, portanto, não é simples, devido sua característica híbrida, de fronteira e por estar inserida em vários campos do
conhecimento. Essa linguagem, assim como as artes contemporâneas, não se pauta
em traduzir significações, que para o apreciador podem não ser claras, mas são habitadas por significados, experiências e muitas metáforas e é sine qua non manter
viva sua memória.
acervoS e coleçõeS de Performance no Século xx
As organizações, de modo geral, quando se apropriam de uma obra de arte dão
um novo significado a ela, mediante regras e propostas artísticas. “Institucionalizar
é ‘dar direito de cidade’. Quer dizer, oficializando, criar condições para que algo
exista e se possa desenvolver no seio de uma comunidade social” (COUTINHO,
2015, p. 47). Quando a linguagem é performance que absorve várias expressões e
275
conhecimentos enfrentam um debate maior: como tratar essa linguagem em locais
tradicionais de conservação e exposição?
As instituições estão buscando meios de expor, ou reencenar performances, pensando na programação, construindo acervos e garantindo debates sobre o universo plural
acerca dessa produção artística. A ideia de perpetuar as obras de arte é apresentada desde
os primórdios, e segundo Benhamou (2007, p. 87): “O museu tem por função a transmissão
de um legado, de geração em geração, por meio da conservação das próprias obras [...]”.
Instituições particulares, por sua vez, têm outra lógica, a do mercado. É imperativo, portanto, ressaltar a ótica do sistema capitalista e as famosas casas de leilões
como Sotheby’s e Christie’s, que apresentam arrecadações de grande volume. Segundo Pinho (2008, p. 9-10), durante uma grave crise no setor econômico nos Estados
Unidos, devido ao estouro da bolha imobiliária, percebeu-se que “a mão invisível do
mercado, a eficiência alocativa e a liberdade individual não são tão confiáveis como
supunham alguns reputados mestres de Economia”. Essa autora comenta ainda que
poucos dias depois, um leilão da Sotheby’s arrecadou em poucas horas cerca de US$
200 milhões com obras contemporâneas.
Esse panorama motivou a criação da Mostra Verbo de performance, pela Galeria Vermelho em São Paulo, desde 2005, que percebeu a necessidade de debates
conceituais, sobretudo quanto a guarda e administração do acervo, mesmo porque
havia uma postura defensiva por parte das instituições, pela dificuldade de se manter
um acervo imaterial. “O discurso atual da performance é: como é que você guarda a
performance, como você a documenta, como você a reencena, tudo está nesses três
eixos” (GALLON, 2016). Talvez a maior dificuldade esteja na reencenação de uma
performance. Essa é uma questão essencial para criação de um acervo, pois cada
artista tem uma abordagem sobre seu próprio trabalho.
De acordo com Cauê Alves (2016), um dos curadores de performance da
SP-Arte 2016, é consenso que as feiras de arte sejam espaço para comercialização
e trocas de arte (inclusive as performances), além da visibilidade que proporciona
aos artistas e às instituições. O mercado indica crescimentos, na SP-Arte (2016),
por exemplo, foi vendida a obra Parangolé de Lourival Cuquinha, pela Galeria Bar, para a colecionadora Cleusa Garfinkel, que, por sua vez, doou-a para o
MAM-SP – instituição que também tem aumentado seu acervo de performance
(RASE, 2016).
A performance não é um objeto, mas possui memória pertencente ao universo
imaterial, e merece ter lugar em acervos. A importância da memória para a humanidade e seus devidos registros são elementos que podem tornar “eternos” ações e objetos.
As instituições brasileiras parecem ratificar essas práticas: por exemplo, em
2015, a Pinacoteca de São Paulo adquiriu a obra Inefável, do performer Maurício
Ianês, para ser executada por funcionários. Essa obra possuía instruções em papel e
vídeo que orientavam como devia ser a sua realização.
276
O Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), em 2000, em um ato
pioneiro, adquiriu a obra Bala de Homem = Carne/Mulher=Carne, da artista Laura Lima, executada por duas pessoas. Há um detalhe interessante nesse caso: a
autora não participa da realização, ficando a execução para outros artistas que devem ser contratados. Essa proposta de atuação abre um debate sobre se o artista é
quem cria, quem executa ou ambos? Essas reflexões são elementos que ajudam a
dar sentido para acervos dessa natureza. Ao mesmo tempo, vídeos, fotos e registros
são peças de acervos, porém, alguns artistas proíbem o registro em fotos e vídeo
de suas encenações.
Colecionadores aparecem na História da Arte desde muito cedo, como mecenas, apreciadores e investidores. O fato é que a Igreja, a nobreza, a burguesia e parcela da sociedade abastarda têm praticado o colecionismo seja pela apreciação, pelo
status ou pelo investimento. No Brasil, essa tendência vem crescendo e apontando
um futuro promissor.
O colecionador Sergio Carvalho tem no seu acervo mais de mil e trezentos
objetos, dentre pinturas, esculturas e fotografias. Entre 2013 e 2015, comprou as performances Tríptico Matera e Maleducação do Grupo EmpreZa (RASE, 2016). Essas
aquisições apontam para algo no mínimo inusitado, o colecionador não leva para seu
acervo um objeto, que poderá exibir, mas um documento, papéis com a descrição e
o direito de realizá-la.
O cinema comercial tem uma relação próxima com essa lógica, “o criador e/
ou produtor/diretor precisa das distribuidoras para intermediar a exibição, ficando
com os direitos comerciais do filme” (SANTOS, 2016). A tela é onde o filme existe e
dialoga com o público, afinal o filme são rolos de película, ou mídias digitais, objetos
sem magia, que só conseguem expor ao mundo suas metáforas, conceitos e ideias,
quando projetados.
Colecionar performance traz, portanto, várias implicações, o registro, ou espécie de “partitura particular” para sua reencenação, o vídeo, que para alguns é acervo e
para outros têm aspecto museológico e finalmente a não definição de padrões.
conSideraçõeS finaiS
A performance em sua trajetória histórica teve outras denominações até
assumir essa expressão, associada basicamente à ação do corpo do artista que
encena, por interagir diretamente com seu público e pelas suas características singulares. Anne Cauquelin (2005, p. 161) compartilha dessas questões e amplia o
campo de atuação das artes chamadas contemporâneas, seus significados e sua
fruição na sociedade.
A arte contemporânea por muitas vezes é mal apreendida pelo público, que se
perde em meio aos diferentes tipos de atividade artística. Contudo, esse é incitado a
considerá-la um elemento indispensável a sua integração na sociedade atual. Aonde
277
quer que se vá, não importa o que se faça para escapar, a arte está presente em toda
parte, em todos os lugares e em todos os ramos de atividade. Percebe-se que o mercado compreende a abordagem de Cauquelin (2005) e entende a lógica da “troca” de
bens e serviços por dinheiro. O mesmo acontece com a inserção de performances em
coleções privadas e públicas.
Há variações quanto à forma, ao modelo de acervo, aos registros e aos certificados de performances pela diversidade das obras, pois cada artista tem liberdade de
elaborar o seu e expor sua atuação em várias plataformas, meios utilizados para sua
devida comercialização, dentro do sistema de venda e compra. Um questionamento
ainda fica em aberto: os registros em papel ou vídeos são imparciais? Possivelmente
só o tempo permitirá responder.
Qualquer manifestação artística precisa entender seu mercado e suas necessidades para viabilizar suas práticas. Isso não implica em viver em função do
mercado, pois poderia asfixiar o fazer artístico e destruí-lo no que ele tem de mais
profundo. Considera-se que a arte é um campo de livre expressão e o mercado tem
proporcionado condições aos artistas para desenvolverem e comercializarem seus
trabalhos.
referênciaS
ALVES, C. Cauê Alves: entrevista [6 mai. 2016]. Entrevistadora: Joseane A. Ferreira. São Paulo:
Faculdade Belas Artes, 2016. vídeo. Entrevista concedida para a pesquisa de dissertação de Mestrado do PGEHA-USP.
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278
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A. Ferreira. São Paulo: Centro Cineclubista de São Paulo, 2016. Vídeo. Entrevista concedida para
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1974.
oS novoS muSeuS: preServação de riquezaS e
cultura ou eSpetacularização?
rosane Maria DeMeterCo bussMann1
Jane aPareCiDa Marques2
Nas últimas décadas, o ambiente dos museus, conhecido como austero e introvertido de riquezas culturais, encontra-se em uma posição de transição para a espetacularização. Estabelece-se aí uma relação entre cultura e entretenimento, que associa os novos
museus a shopping centers culturais. Esses novos museus dispõem de espaços amplos,
belíssimos, compostos por múltiplos ambientes, locais de desejo do público que passa a ser
visto como “consumidor”. A grande procura para visita a esses “espaços culturais”, nem
sempre acontecem pelo amor à arte, mas pelas muitas opções de entretenimento oferecidas. Na atualidade, o maior destaque desses museus é a própria arquitetura, e as “estrelas”
do momento são os arquitetos responsáveis e não só os artistas. Frank O. Gehry, autor do
projeto do museu Guggenheim Bilbao, em Bilbao, Espanha, e Santiago Calatrava, autor do
projeto do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, são exemplos abordados neste trabalho.
Segundo Amaral (2014), a comercialização da cultura e a renovação das demandas museológicas exigem das instituições o enfrentamento de uma dupla questão: ser uma possibilidade de diversão e entretenimento e, paralelamente, oferecer
espaços apropriados para exposições, ações educativas, pesquisas e preservação.
contextualização doS novoS muSeuS
No início do século XX, a ruptura promovida pelas vanguardas no campo
das artes contribuiu para as transformações ocorridas no contexto dos museus. Para
1.
2.
Rosane Maria Demeterco Bussmann. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades
em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Jane Aparecida Marques. Professora livre-docente da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da USP (EACH-USP), docente do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História
da Arte da USP (PGEHA USP) e do Mestrado Profissional em Empreendedorismo da Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA-USP).
280
Huyssen (1996, p. 222), as vanguardas atacavam os museus, considerando-os um
“peso morto do passado”, e defendiam a necessidade de renovação do cenário artístico e cultural.
Adorno (1998, p. 185) compara os museus a “gabinetes de história natural
do espírito”: “Não podemos mais manter uma relação viva com seres mumificados,
empalhados por razões históricas mais do que por uma necessidade atual. A neutralização da cultura transparecia assim com maior intensidade nos museus. Mas, não
seria razão para fechá-los.”
Segundo Arantes (2015), os dilemas de Adorno giram em torno da ideia moderna de museu: um molde religioso ou de identificação para o visitante versus um
cenário neutro. O molde religioso remonta a um conteúdo que parece imitar o real
com ênfase excessiva; enquanto o cenário neutro (o cubo branco) tem a intenção de
favorecer a contemplação da obra enquanto experiência individual.
O ensaio de Museu Proust-Valéry, de Theodor Adorno (1998), aponta dois
modelos de fruidores distintos: o “modelo fruidor” de Valéry e o “modelo fruidor” de
Proust. O modelo fruidor de Valéry é o do perito, do especialista, do expert, entretanto, para o autor, esse modelo está em declínio. Já o modelo de fruidor em Proust é o
do diletante, o amador, não especialista, que busca nas obras a alegria de viver, e quer
refinar sua sensibilidade.
Enquanto Adorno é pessimista em relação às ideias libertadoras do cinema,
como parte da indústria cultural, Benjamin o associa a partir do seu potencial libertador. O modelo fruidor para Adorno (1998) é o do tipo seletivo, que elege algumas
obras para contemplar. Pode-se afirmar, ainda, que Baudrillard (1991) apresenta o
modelo de fruição do consumidor cultural, um consumidor voraz, no sentido negativo: aquele que visita o Beaubourg.
[...] a “cultura dos museus” teve início em 1977, com a inauguração do Beaubourg, o Museu Nacional de Arte Moderna
do Centro Georges Pompidou, em Paris [...]; consolidou-se
com a filial do Museu Guggenheim, na cidade de Bilbao,
Espanha, em 1997, [...]; e atingiu uma nova fase, de expansão ao Oriente, nos anos 2000, com os projetos de franquias
do Beaubourg em Xangai, na China, e do Museu do Louvre,
em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos [...] (FABBRINI, 2008, p. 145).
Nota-se que os novos museus vêm se aproximando do mundo dos espetáculos.
Os Estados no capitalismo mobilizam o atual star system da arquitetura internacional,
no intuito de criar grandes monumentos que, ao mesmo tempo, sirvam de espaços da
cultura e reanimação da vida pública, como afirma Arantes (2015), o que afeta direta
ou indiretamente a economia. Os eventos são de grandes proporções e os casos mais
281
bem sucedidos atraem o turismo e geram consumo, elevando a receita das cidades.
Apesar da crise internacional, o sucesso econômico das localidades depende dos atrativos dos museus (FABBRINI, 2008).
Há, em geral, superlotação, filas intermináveis, muito tempo de espera e quando finalmente se consegue entrar para visitação nos novos museus, não há nem tempo
nem espaço suficientes para apreciar as obras. Ou seja, a percepção da arte no interior
desses espaços e o tempo de fruição das obras nas grandes exposições têm sido acelerados, como destaca Fabbrini (2008). Esses eventos são, muitas vezes, de consumo
rápido e fácil. Sem falar das novas curadorias, dos vários aparatos tecnológicos, das
redes sociais e sua enorme influência sobre os indivíduos, que se colocam em primeiro plano às obras de arte. Assim são as selfies3 que, trazem ao visitante, um status de
importância por estar naquele evento de arte, sem apreciar, conhecer ou compreender
o que se vê. Não se vive o momento presente, mas a ansiedade do futuro. Por último,
vale destacar o modelo fruidor decodificador de Lebrun:
[...] na origem da incompreensão que a arte moderna suscitou,
houve [...] um erro de regulagem cometida pelo público. Este
queria continuar contemplando um quadro, e tal expectativa
só poderia ser frustrada. A obra de arte, então, não convidava
mais o seu receptor a sonhar com base nela, mas a analisar
a sua percepção a partir das indicações que ela lhe fornecia
(LEBRUN, 2006, p. 338).
Para Fabbrini (2008, p. 258), esse “erro de regulagem” pode ter sido corrigido
no curso do tempo com a substituição da contemplação pela comunicação. A obra de
arte é percebida a partir da decodificação imediata de signos.
É possível afirmar que nenhum outro museu contemporâneo
após o Centro Georges Pompidou (1977), em Paris, tenha recebido tanta atenção por parte da mídia como o Guggenheim
de Bilbao. Construído pelo arquiteto Frank Gehry em 1997,
o museu foi alvo de pontos de vista contraditórios [...]: elogiado como uma das grandes obras arquitetônicas do fim do
século XX, capaz de inaugurar um novo paradigma de projeto
e construção de museus, foi ao mesmo tempo criticado por seu
formalismo exacerbado, tornando-se um ícone da globalização
da cultura e do mercado de arte (SPERLING, 2011, p. 178).
3.
As selfies inauguraram, no início do século XXI, nova forma de autorretrato feito com aparelhos
de comunicação móvel. Fotografar-se individualmente ou em grupo, em locais públicos, de acesso
mais restrito ou até íntimo, e disponibilizar a imagem nas redes sociais tornou-se comportamento
normal (FERNANDES, 2015).
282
A crítica chegou a argumentar que, após o Guggenheim de Bilbao, a arquitetura transformou-se completamente, sendo possível encontrar em cada novo projeto do gênero uma espécie de “efeito Bilbao”, com o qual as cidades procuravam
produzir um espetáculo de magnitude similar, a fim de atrair novos fluxos de capital
(MEIRA, 2014, p. 61).
Pode-se afirmar que em Bilbao, embora o museu aposte na espetacularização
e no poder de atração da arquitetura, há uma gentrificação do espaço, o objeto ainda
possui uma ambiguidade. Ainda que a flor de titânio tenha um forte caráter icônico e
cenográfico, o museu em si possui galerias de exposição tradicionais, que preservam
a autonomia da obra, além de estabelecer um diálogo com a cidade, como reconhece
Moneo (2008).
Para Foster (2003), Gehry estaria enquadrado no que chamou de uma arquitetura da imagem, apontando para uma nova centralidade da arquitetura no discurso
cultural:
Pode-se dizer que tal centralidade derivou inicialmente dos
debates sobre o pós-modernismo, na década de 1970, que
gravitaram em torno da arquitetura, mas que só se consolidou com a eclosão do design e da arquitetura contemporânea,
bem como com a estetização em várias esferas: arte, moda,
negócios etc. O Guggenheim de Gehry tornou-se então “um
patrimônio de marca”, um edifício que “circula no mundo
mass-midiático do mesmo modo que o logotipo de um produto ou empresa”, o que inseriu a cidade de Bilbao [...] (FOSTER, 2003, p. 27-29).
Depois de inaugurado, o Guggenheim de Bilbao passou a atrair cerca de um
milhão de visitantes por ano, dez vezes mais do que o Guggenheim de Nova York. Segundo dados oficialmente apresentados, seu gasto foi ressarcido aos cofres públicos,
na forma de aumento de arrecadação, após quatro anos, destaca Meira (2014).
Atualmente, com a retração econômica causada pela crise global desencadeada
em 2008, pode-se concluir que um ciclo se encerrou: “os tempos do excesso acabaram. Acabou-se o desperdício e é preciso enfrentar esse desafio. É preciso poupar
energia e dinheiro” (ARANTES, 2010, p. 285). Daí, observa Arantes (2010, p. 285286), termos como “excesso” ou “desperdício” não são mais apropriados para “uma
nova produção abalada pela onda de escassez”. No entanto, mesmo nos casos de museus que reagiram ao modelo de Bilbao, é possível identificar ainda a dimensão de espetacularidade. É possível também apesar da atual crise econômica – tanto na Europa
quanto nos Estados Unidos –, que a arquitetura de franquia “tipo Gehry” continue,
mas certamente em versão menos dispendiosa. O futuro, contudo, inclusive o dos mu-
283
seus, é incerto. Desde a criação do Guggenheim de Bilbao, projetado por Frank Gehry,
muito se discute sobre o papel da arquitetura dos museus e o caráter espetacular das
construções, que poderiam se sobrepor a seus programas (CYPRIANO, 2015).
No Rio de Janeiro, por exemplo, o espetacular não se sobrepõe ao programa
do museu, já que seu curador Luiz Alberto Oliveira, estava trabalhando em sua
concepção há cinco anos, como apontado por Cypriano (2015). Para esse autor,
o Museu do Amanhã não se trata de um grande edifício, mas de uma integração
quase inédita no país, porque na mesma praça onde foi construído está o Museu de
Arte do Rio (MAR), inaugurado de forma semelhante: arquitetura e programa juntos. Ambos os museus são ferramentas de integração com as comunidades locais,
ao mesmo passo que representam um programa cultural complexo. A experiência
acumulada pelo arquiteto Calatrava nos últimos anos, com um portfólio de grandes
projetos em países como Espanha, Bélgica, Estados Unidos e China, confirmou sua
convicção nos poderes transformadores da arquitetura. “As grandes obras públicas
são capazes de mudar as cidades, criando novos pontos espaciais de referência. Mas
não se trata apenas de criar prédios icônicos. É preciso entender que esses projetos
não devem ser vistos isoladamente, mas em função da cidade”, ressalta Calatrava
(OLIVEIRA, 2015, p. 115).
Para Oliveira (2015), a concepção e a abertura do Museu do Amanhã põe
o Brasil em sintonia com uma tendência do cenário cultural mundial. Os museus
tradicionais acabaram consolidando uma fórmula com a qual várias gerações se familiarizaram. Escadarias imponentes, colunas clássicas e um saguão central sob uma
grande cúpula recebiam visitantes em galerias nas quais eram exibidas coleções de
objetos, geralmente protegidos em caixas de vidro. Animado por essa visão, ele se
tornou conhecido pelo esforço de fazer vir à tona em cada museu a ideia básica, a narrativa, enfim, a capacidade de dar unidade ao conjunto de experiências e conteúdos
proporcionados ao público.
Os museus transformaram-se e ressignificaram-se no constante
devir cultural das sociedades, contribuindo para a preservação
das memórias, dos saberes e fazeres e influenciando na construção de identidades. Constituem-se em locais onde a cultura
é comunicada e institucionalizada sob uma teia de forças e interesses, inclusive daqueles que a priorizam sob uma perspectiva
de mensuração e de consumo (AMARAL, 2014, p.13).
Percebe-se ao longo da história, mudanças nos museus, nos públicos visitantes
e seus modelos de fruição. Precisamos estar atentos a essas transformações, visando
manter conexão entre as instituições, as obras de arte e a sociedade para que estes
sejam sempre lugares abertos para a construção do saber e da cultura.
284
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Augustin Wernet e Jorge Almeida. São Paulo: Ática, 1998.
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FABBRINI, R. N. A fruição nos novos museus. Especiaria: Caderno de Ciências Humanas, Ilhéus:
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LEBRUN, G. A mutação da obra de arte. In: LEBRUN, G. A filosofia e sua história. Tradução de
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MONEO, R. Inquietação teórica e estratégia projetual na obra de oito arquitetos
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MARIOTTI, G.; GROSSMANN, M. (Orgs.). Museu Arte Hoje. São Paulo: Hedra, 2011.
conSideraçõeS Sobre o uSo de imagenS como
fonteS para a inveStigação hiStórica
robson xaVier Da Costa1
introdução
No prefácio para a edição brasileira do livro Testemunha Ocular, Peter Burke
inicia o texto com a seguinte expressão:
Historiadores tradicionais, ou mais exatamente historiadores
céticos quanto ao uso de imagens como evidência histórica,
frequentemente afirmam que imagens são ambíguas e que podem ser “lidas” de muitas maneiras. Uma boa resposta a este
argumento seria apontar para as ambiguidades dos textos, especialmente quando são traduzidos de uma língua para outra
(BURKE, 2004, p. i).
O autor se refere à questão do próprio livro citado, que teve problemas na primeira edição pela Edusp e foi recolhido e republicado após uma rigorosa tradução e
revisão e chama a atenção para o fato de que:
As imagens também podem ser traduzidas, no sentido de que
podem ser adaptadas para uso em um ambiente diferente do
que foi inicialmente idealizado (em outros termos, elas podem
ser adaptadas para uso em uma cultura diferente). Elas podem
1.
Robson Xavier da Costa. Pós-doutorando pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC
USP), coordenador do Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal da Paraíba e da Universidade Federal de Pernambuco (PPGAV UFPB/UFPE) e coordenador
da Pinacoteca da UFPB.
286
até ser traduzidas erradamente (pelo menos do ponto de vista
do artista original) (BURKE, 2004, p. i).
Seguindo as considerações de Burke sobre o uso das imagens como testemunhas
oculares da História, me proponho neste trabalho a realizar uma análise teórica sobre
o uso das imagens como fontes historiográficas, a partir da experiência com o uso de
imagens da arte durante a pesquisa para minha dissertação de mestrado “Trajetórias do
olhar: pintura naïf e História na arte paraibana” desenvolvida na Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), no ano de 2007, junto ao Programa de Pós-Graduação em História.
A opção de trabalhar com imagens na minha dissertação foi fruto da minha trajetória como pesquisador/professor e artista visual ao longo de mais de vinte anos de
carreira, o que me levou ao longo do tempo a estudar as diversas abordagens para leitura de imagens e as maneiras de aproximação com as imagens em diversos contextos.
No universo da pesquisa em História, o patamar de utilização da imagem
ilustrativa há muito foi superado. Imagens aparecem como fontes historiográficas
nos principais e novos manuais de pesquisa e são utilizadas como referências em
inúmeras teses e dissertações pelos programas de pós-graduação em História do
Brasil e do mundo.
A consolidação do uso das imagens como fontes para a pesquisa histórica
é uma herança do movimento da terceira geração da escola dos Analles, a partir
da configuração da Nova História Cultural e do diálogo multidisciplinar, enfatizado
atualmente no universo da pesquisa. No entanto, o uso de imagens como fontes para
a História é antigo, embora, só mais recentemente as imagens tenham sido compreendidas como indícios de informações históricas.
Aos poucos, as imagens passaram de meras ilustrações dos documentos escritos para a categoria de indícios (GUINZBURG, 1990) para a pesquisa histórica, compreendendo um vasto leque de possibilidades investigativas, como afirma Napolitano:
[...] Do ponto de vista metodológico, [as imagens] são vistas pelos historiadores como fontes primárias novas, desafiadoras, mas
seu estatuto é paradoxal. Por um lado, as fontes audiovisuais (cinema, televisão e registros sonoros em geral) são consideradas
por alguns, tradicional e erroneamente, testemunhos quase diretos e objetivos da História, de alto poder ilustrativo, sobretudo
quando possuem um caráter estritamente documental, qual seja
o registro direto de eventos e personagens históricos. Por outro
lado, as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artística
(filmes de ficção, teledramaturgia, canções e peças musicais) são
percebidas muitas vezes sob o estigma da subjetividade absoluta, impressões estéticas de fatos sociais objetivos que lhe são
exteriores (NAPOLITANO apud PINSKY, 2006, p. 235-236).
287
Nesse artigo, procuro discutir esse estatuto paradoxal das imagens para e na
História, ou seja, tratar o dilema e os cuidados que o pesquisador deve ter ao cercar-se
de fontes visuais ou outras fontes (já que deve aplicar o mesmo cuidado para todos
os tipos de fontes históricas) para que as mesmas possam demonstrar contribuições
efetivas para a construção do conhecimento histórico.
Trabalhar com imagens na pesquisa em História, permanece um desafio a ser
vencido e lapidado pelo historiador ao longo do árduo processo de pesquisa, exigindo
cuidado redobrado com as questões que formula para as fontes imagéticas, diante
do corpus teórico que as mesmas impõem e do lugar de onde fala. A imagem, como
qualquer outra evidência histórica, está eivada de variadas e possíveis interpretações,
de acordo com o conteúdo simbólico intrínseco que possuem e com o risco eminente
do anacronismo. Nestas breves páginas tentaremos mapear as relações entre a História e as imagens em um contexto de pesquisa para as ciências humanas, a partir da
nossa experiência como investigador do binômio, Artes visuais e História.
imagenS como indícioS para a peSquiSa iconográfica
A iconografia é, certamente, uma fonte histórica das mais ricas, que traz embutida as escolhas do produtor e todo o contexto no qual foi concebida, idealizada,
forjada ou inventada (PAIVA, 2006, p. 17).
Os conceitos de iconografia e a iconologia foram estabelecidos pelos estudos
de Panofsky (2002). De acordo com o autor, a ‘leitura’ iconográfica de uma obra
representa uma análise, enquanto que a ‘leitura’ iconológica pode ser realizada por
meio da interpretação. A ‘análise’ relaciona-se à decomposição de um todo em suas
partes pertinentes, dos seus respectivos elementos constituintes, em prol da classificação e compreensão das mesmas. Dessa maneira, compreende-se que:
O sufixo “grafia” vem do verbo grego ‘graphein’, escrever;
implica um método de proceder puramente descritivo, ou até
mesmo estatístico. A iconografia é, portanto, a descrição e
classificação das imagens, assim como a etnografia é a descrição e classificação das raças humanas; é um estudo limitado
e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas
específicos foram visualizados por quais motivos específicos.
[...] a iconografia é de auxílio incalculável para o estabelecimento de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece
as bases necessárias para quaisquer interpretações ulteriores.
Entretanto, ela não tenta elaborar a interpretação sozinha (PANOFSKY, 2002, p. 53).
288
Portanto, a iconologia representa um método histórico, em virtude de não favorecer a formação de “classes”, mas sim de “séries”, que segundo Panofsky (2002),
refere-se à iconografia. Desse modo, a “classe” destina-se aos estudos da iconografia,
enquanto que por outro lado, a “série” encontra-se justamente no sentido da iconologia. Mas, o autor observa que o conceito de “classe” vincula-se à tipologia, consequentemente ao princípio corretivo da análise iconográfica é a História dos tipos e,
contrariamente, “série” refere-se à História. Nesse contexto, evidencia-se que apenas
o discurso histórico absorve completamente o sentido histórico da série.
Segundo Panofsky (2002) a iconologia distingue-se da iconografia, pois enquanto a primeira apenas classifica a imagem visual, a segunda investiga, compreende, cria significação por meio dos nexos históricos. A iconografia é uma das abordagens mais utilizadas quando da utilização das imagens como fontes históricas.
Ao pensar em imagens como fontes iconográficas, como indícios possíveis
para a pesquisa histórica, levamos em conta as relações intencionais por trás da
construção das mesmas. Como pesquisador, devemos sempre lembrar que toda imagem é fruto de um recorte sobre uma determinada relação visual, fruto de intencionalidades específicas, moldada a partir de escolhas e construções cenográficas de
um fato ou ideia. É necessário o pesquisador desmistificar a imagem como fonte
historiográfica, entendendo-a como uma construção cultural que reflete a formação
do contexto que a produziu.
Leitores de imagens que vivem numa cultura ou num período
diferentes daqueles no qual as imagens foram produzidas se
deparam com problemas mais sérios do que leitores contemporâneos à época da produção. Entre os problemas está o da
identificação das convenções narrativas ou “discurso” – seja
o fato de figuras de destaque poderem ser representadas mais
de uma vez na mesma cena, por exemplo, [...], ou o fato de a
história ser contada da esquerda para a direita ou vice-versa
[...] (BURKE, 2004, p. 180).
As imagens possibilitam inúmeras leituras, o que pode tornar-se um problema
para o pesquisador, elas estão mapeadas pela relação entre aqueles que a produzem, os
que a consomem e os intermediários. Envoltas em uma intricada rede de relações de
poder, as imagens, modificam-se ao longo do tempo histórico, suas leituras também se
modificam, refletindo a visão de cada pesquisador e da sua época. A cada novo questionamento sobre uma mesma imagem, pode-se atribuir leituras diversas que refletem
a formação cultural do leitor e o contexto onde a imagem está inserida. Embora múltiplas leituras sejam possíveis, nem todas são válidas, já que refletem diferentes níveis
de complexidade e compreensão da simbologia da imagem. Segundo Paiva:
289
Cabe a nós [pesquisadores] decodificar os ícones, torná-los
inteligíveis o mais que pudermos, identificar seus filtros e,
enfim, tomá-los como testemunhos que subsidiam a nossa
versão do passado e do presente, ela também, plena de filtros contemporâneos, de vazios e de intencionalidades. Mas
a história é isto! É a construção que não cessa, é a perpétua
gestação, como já se disse, sempre ocorrendo do presente para
o passado (PAIVA, 2006, p.19).
As imagens fazem parte das formas de representação mais utilizadas pelos
seres humanos ao longo do tempo histórico, a partir delas se atribuem significados e
sentidos às diversas maneiras de compreensão das normas, valores, ritos, simbologias
e interferências humanas sobre o mundo. Para o pesquisador, fica o desafio de identificar o tempo e o lugar histórico presente na imagem analisada, compreender e decifrar sua linguagem, identificar os indícios representados e relacionar a fonte visual a
outras fontes históricas. A imagem para a pesquisa histórica deve ser encarada como
um texto a ser lido e compreendido, a relação inicial deve ser pautada pela desconfiança, pelo olhar apurado do investigador, o historiador deve agir como um detetive
em busca de provas para montar o quebra-cabeça e recompor o fato.
[...] é importante sublinhar que a imagem não se esgota em si
mesma. Isto é, há sempre muito mais a ser apreendido, além
daquilo que é, nela, dado a ler ou a ver. Para o pesquisador da
imagem é necessário ir além da dimensão mais visível ou mais
explícita dela. Há, como já disse antes, lacunas, silêncios e códigos que precisam ser decifrados, identificados e compreendidos. Nessa perspectiva a imagem é uma espécie de ponte entre
a realidade retratada e outras realidades, e outros assuntos, seja
no passado, seja no presente (PAIVA, 2006, p. 19).
Como afirma Paiva, as imagens tanto podem transmitir e registrar um determinado fato histórico, como é o caso do fotojornalismo ou da pintura histórica,
como podem ser frutos da imaginação e criação do artista. Ambas as formas de representação, estão eivadas de indícios históricos de uma época, de um lugar, de um
tempo, que passa a ser transmitido em forma de símbolos, necessitando do olhar do
especialista para serem decifrados. As imagens, como fontes visuais, fazem parte do
jogo historiográfico, presentes no percurso de construção da escrita da história sendo
utilizadas para a difusão dos saberes históricos.
Na construção do texto histórico, o historiador pode se valer das fontes visuais,
para ler e reler o legado não verbal de um determinado grupo social, para montar os
cacos do mosaico da história humana. Ao abordar uma imagem, estamos tratando
290
com representações, apropriações e a circulação das ideias, processos, que envolvem
uma diversidade de atores sociais, de instituições e estão permeadas pelo discurso
competente, que valida sua aprovação com produto do meio. Segundo Burke:
[...] imagens nos permitem “imaginar” o passado de forma
mais vívida. Como sugerido pelo crítico Stephen Bann, nossa
posição face a face com uma imagem, nos coloca “face a face
com a história”. O uso de imagens, em diferentes períodos,
como objetos de devoção ou meios de persuasão, de transmitir
informações ou de oferecer prazer, permite-lhes testemunhar
antigas formas de religião, de conhecimento, crença, deleite, etc. Embora os textos também ofereçam indícios valiosos,
imagens constituem-se no melhor guia para o poder de representações visuais na vida religiosa e política de culturas
passadas (BURKE, 2004, p. 17).
Seguindo a proposição de Burke compreendo as imagens como indícios e testemunhas oculares da história, relacionando-as com outras fontes históricas, considerando os problemas presentes em qualquer fonte documental. As imagens são
veículos de propagação da cultura material/imaterial e ferramentas que permitem a
ampliação da compreensão visual da história. O historiador atento aos silêncios, as
mensagens subliminares, aos textos não verbais, é capaz de analisar os indicadores
simbólicos das imagens.
Desta maneira, o historiador não está em busca apenas de fatos concretos, mas
dos silêncios por meio dos indícios, das entrelinhas, do não dito presente nas imagens, “decifrá-las” pode ser um desafio prazeroso, favorecendo a construção crítica
da história.
A análise crítica é central na aplicação de fontes visuais para a História, as
imagens devem ser indagadas, questionadas, arguidas, Segundo Burke (2004) o historiador deve desenvolver métodos de críticas para as fontes imagéticas e interrogá-las como testemunhas da história.
O testemunho das imagens necessita ser colocado no “contexto”, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural,
político, material, e assim por diante), incluindo as convenções artísticas para representar as crianças (por exemplo) em
um determinado lugar e tempo, bem como os interesses do
artista e do patrocinador original ou do cliente, e a pretendida
função da imagem (BURKE, 2004, p. 237).
291
Compreender o contexto amplo da imagem analisada deve ser preocupação
central do historiador ao lidar com fontes visuais, trabalhando também com séries
de imagens, já que “uma série de imagens oferece testemunho mais confiável do que
imagens individuais [...]. O que os franceses chamam “história serial” vem a ser extremamente útil em determinadas ocasiões” (BURKE, 2004, p. 237-238).
Lidar com imagens na pesquisa histórica exige habilidade e atenção redobradas, perspicácia e perícia no trato com a fonte documental, desconfiança e credibilidade, ou seja, é trabalhar constantemente com variáveis opostas, indagando permanentemente as fontes, otimizando o processo de construção de uma história visual indiciária
e contribuindo para a construção do novo estatuto da imagem para a pesquisa.
A partir da emergência da História Cultural, o conceito de “representação”
tem sido utilizado nas pesquisas históricas para a análise de fontes imagéticas, com
influência das ideias de Roger Chartier (2002), historiador francês da Nova História,
a partir das relações estabelecidas a partir da produção, circulação e consumo das
imagens, compreendendo as mesmas como fontes para a pesquisa histórica. Para
Chartier, o pesquisador deve buscar interrogar a imagem presente a partir das suas
ausências, ou seja, buscando entende-la como representação.
conSideraçõeS finaiS
As leituras [visuais], assim como as versões históricas, são
todas filhas do seu tempo (PAIVA, 2004, p. 33).
Neste artigo procurei, discutir pontos fundamentais para uma compreensão
inicial sobre a relação História e Imagens procurei verificar a compreensão de Burke
(2004) e Paiva (2004) quanto à relação metodológica do uso de fontes visuais na
pesquisa histórica, a partir da perspectiva da construção de uma História visual, esperando contribuir para a ampliação teórica da História Cultural, visando despertar
nos historiadores a necessidade de organizar e trabalhar com acervos visuais, para
ampliar seus referenciais de pesquisa. “É importante sublinhar que a imagem não se
esgota em si mesma. Isto é, há sempre muito mais a ser apreendido, além daquilo que
é, nela, dado a ler ou a ver” (PAIVA, 2004, p. 19).
Os historiadores não podem dar-se ao luxo de esquecer as tendências opostas dos produtores de imagens para idealizar e
satirizar o mundo que o representam. Eles são confrontados
com o problema de distinguir entre representações do típico e
imagens do excêntrico (BURKE, 2004, p. 236-237).
292
Considerei o estudo das relações entre a História e Imagens uma contribuição
significativa para a ampliação dos objetos da pesquisa histórica, possibilitando novas abordagens, relacionando a produção/fruição de imagens e seu contexto com a
História Cultural. Pesquisar o uso das imagens na e para a História, compreende um
desafio cotidiano, levando o pesquisador a experimentações que geram inúmeras discussões sobre o estatuto da imagem para o campo da História e permeiam suas práxis
durante a investigação histórica.
referênciaS
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CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1999.
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Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PAIVA, Eduardo França. História & imagens. 2ª ed. Belo horizonte: Autêntica, 2004.
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Bassanezi (org.) et. al. Fontes Históricas. 2ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 235-290.
projeto humaniSta doS jeSuítaS e o início da
cidade de São paulo
alfreDo César Da Veiga1
Daisy Valle MaChaDo PeCCinini2
introdução
A história de São Paulo bem que poderia ser resumida em dois capítulos: A
primeira, do século XVI ao XVIII, que se constrói com o barro, água e madeira; e
a segunda, a partir do século XIX que, em nome do progresso e dos novos tempos,
derruba as velhas construções, de taipa, substituindo-as por outras, de tijolos.
Esses dois momentos são capítulos que têm como material comum, o barro,
que está tanto na origem de ideias de civilização e progresso e seu aproveitamento,
quanto no seu descarte enquanto matéria imprópria para os planos de modernização
da cidade.
Desde o início da colonização, buscou-se tecer as relações entre o fazer característico dos atores implicados na construção de uma cidade e o mundo interno
desses artífices povoado por concepções que mesclam o imaginário da cidade ideal e
a concretude da cidade real, ambas conjugadas para transformar São Paulo em centro
nevrálgico da ação civilizadora em direção ao interior.
São essas ações conjugadas, que fizeram com que Piratininga nascesse mundializada e crescesse “mameluca, violenta, desigual, plural, rica de sentidos, plena de
possibilidades, suscitando o desenvolvimento das mais diversas estratégias de sobrevivência” (ZANETTINI, 2005, p. 31).
1.
2.
Alfredo César da Veiga. Pós-doutorando pelo Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP).
Daisy Valle Machado Peccinini. Professora livre-docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
294
a cidade de barro
Essa Igreja Militante é fácil de conhecer. Compara-se a uma
cidade situada na montanha, e que pode ser vista de todos os
lados. É preciso que seja reconhecível, porque todos lhe devem obedecer (Catecismo Romano, n. 141, 1566)
O trecho acima foi tirado do catecismo que constituiu objeto obrigatório para
todos os padres em suas andanças missionárias a partir da segunda metade do século
XVI. Apesar de ser um texto distante ainda da espiritualidade dos jesuítas à época
da fundação da cidade de Piratininga, não é, todavia, estranho a esses religiosos que
tinham por base de seus estudos a doutrina de Santo Agostinho sobre as duas cidades,
a terrena e a celeste. É de se esperar, portanto, que, ao avistarem o planalto, sonhassem em construir ali a Civitate Dei, um lugar que “afermosenta a cidade de Deus
celestial de almas que louvam a seu Senhor, e a terra dos desterrados filhos de Adão”,
conforme escrevia Nóbrega aos moradores de São Vicente, em 1557 (1988, p.167)
Os jesuítas tinham uma cidade a construir quando chegaram ao Planalto de
Piratininga e, para essa empreitada, haviam de subordinar a natureza e incorporá-la
à cidade de Deus, de maneira que todos os objetos e pessoas naturais fossem mensurados pelo sagrado.
Nesse sentido, a argila, encontrada em abundância, era uma solução provavelmente não a mais nobre, mas era aquela que estava à mão. E era dessa maneira que os
jesuítas resolviam os problemas, isto é, não dando a eles senão a atenção possível, no
momento em que se apresentavam. E foi assim que surgiu a solução em taipa de pilão.
Na pedagogia jesuíta o trabalho com o barro é, por si só, uma técnica persuasiva (ARGAN, 2005, p. 173) e remete à doutrina cristã da criação do homem a partir
do barro. Uma técnica persuasiva, no entanto, não fica restrita apenas à doutrinação,
mas se reveste de um valor social extremamente importante de forma que os objetos
saídos do barro doravante sejam carregados de sentimento humano, e é desse sentimento que nasce a arte.
Nesse sentido, a arte de São Paulo nasce com a feitura da cidade; segundo
Contardi no prefácio à obra de Argan, História da arte como história da cidade
(2005, p. 1), “da distinção de um espaço, de uma forma urbana descende, gera-se
a arte”. Disso se pode inferir que o barro está para São Paulo como o ouro para as
Minas Gerais, pois são os produtos artísticos que qualificam a cidade (CONTARDI
in ARGAN, 2005, p. 1).
Os padres e irmãos jesuítas, quando aqui chegaram, estavam imbuídos de um
ideal de igreja que lembra aquela que foi a primeira construção jesuíta, a Igreja de
Gesù, em Roma. Projetada com uma nave única, era o protótipo do espírito evangelizador jesuíta, que primava pelo contato direto com o povo.
295
No projeto civilizador jesuíta de construção de cidade, a razão não podia prescindir do modelo utópico e idealista que influenciou as ordens religiosas nascidas sob
o influxo das ideias de Thomas More e que saltavam a cada canto do pensamento
erudito europeu (SAIA, 2012, p. 28), de forma que,
[...] no mundo que idealizavam, os diversos povos seriam “reduzidos” em comunidades organizadas segundo princípios comuns; não desejavam aceitar nem fazer guerra contra os ameríndios mas remodelá-los conforme uma imagem nova. Deveria ser um ponto avançado de um império cristão (MORSE,
apud WERNET, 2004, p. 193)
É dentro desse contexto que se pode compreender a razão de certa harmonia
com o ambiente e o uso da taipa, produto do barro retirado de dentro do próprio solo
e maior representante dessa harmonia. A cidade que se levantou desse material foi
acanhada, simples, mas completamente acomodada à topografia, à paisagem e à curva de nível; seus elementos, feitos em função dos comprimentos das taipas (LEMOS,
2003, p. 117).
São paulo e Sua memória
Os jesuítas acalentaram um sonho para a cidade de São Paulo e, ao projetar
seu colégio em um sítio elevado e cercado pelos rios Tamanduateí e Anhangabaú,
não podiam imaginar o espaço que não tivesse o aspecto de uma “aldeia grande”,
onde todos estariam protegidos pelos muros da religião e tudo funcionaria como se
houvesse uma inteligência suprema no comando das ações.
Desse sonho, no entanto, nada restou senão a lembrança de técnicas tão precárias que o tempo demoliu e arrasou. Restou, segundo Luís Saia (2012, p. 29),
contudo, aquele entranhado espírito ambulatório paulista de ir se distribuindo ao
sabor dos acontecimentos e procurando soluções para problemas que eram impostos pela topografia.
São Paulo, no século XIX, concluída sua experiência colonial, colocava por
terra suas últimas lembranças de taipa e por cima delas, construía sua nova civilização em tijolos, nada ainda que se igualasse a cidades como o Rio de Janeiro, Recife,
Salvador e Maceió e até mesmo Santos com o granito que embelezava suas casas
(MORSE, 1970, p. 58-59) e, talvez, por esse fato, São Paulo colonial tinha sido, em
si mesma, uma obra de arte.
Essa parece ser a vocação de São Paulo, ou seja, a de uma estética que potencializa o esquecimento, um esquecimento com um “papel programático, estético
e ativo” (FELINTO, 2000, p. 22), impondo-se de forma violenta, demolindo o seu
passado e crescendo sobre seus refugos.
296
A memória de São Paulo não se faz recorrendo às suas construções em taipa que já não mais existem. Recorda-se um passado que não se viveu, recorre-se a
lembranças idealizadas e sem manchas, como o passado escravocrata e predador. O
que se exalta é o progresso simbolizado pelas avenidas que rasgavam a cidade ou os
viadutos que a conectavam ao seu futuro. Ao mesmo tempo, a cidade é exaltada em
sua beleza, beldade sem dote3, como se lê no poema à cidade, Pauliceia, de Francisco
de Assis Vieira Bueno, que viveu entre 1816 a 1908 e acompanhou a transformação
da cidade:
Teu imenso progresso, na verdade,
A mente, Pauliceia, me fascina;
Mas de ti quando pobre e pequenina,
Jamais há de ter fim minha saudade
Quando era inda a beldade,
Sem dote, que, isolada na colina,
Branquejava no meio da campina,
Passei em teu regaço a mocidade.
Hoje, de cada vez que te visito,
Ainda o meu passeio favorito
É o sítio onde fica o lugar
Em que estava a casa apetecida,
Que no tempo melhor de minha vida
Foi minha habitação, meu doce lar.
(BUENO, 1998, p. 151)
A destruição do patrimônio está diretamente ligada à destruição do significado
que a obra de arte tem para determinado povo. Por que, em nossa história, temos
dificuldade em tolerar a presença de construções históricas? Na Avenida Paulista, no
número 1919, sobrevive, caindo aos pedaços, o Palacete Franco de Mello, construído
no ano de 1905, na primeira fase residencial da Av. Paulista. Fechado para visitação,
está abandonado.
Em 1996, começou o processo de demolição do casarão Matarazzo também
na Av. Paulista. No lugar, uma grande construtora fez um shopping com estrutura de
aço e acabamento em mármore. Era taipa, depois tijolo, concreto armado, aço, vidro.
Uma cidade em “permanente mutação formal” (LEMOS, 2013, p. 97).
3.
“Formosa sem dote” foi o apelido dado pelo Governador Gomes Freire de Andrade quando viu a
cidade pela primeira vez em princípios do século XVIII (BUENO, 1998, p. 151).
297
referênciaS
ARGAN, Giulio C. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BUENO, Francisco de Assis Viera. A cidade de São Paulo: Recordações evocadas de memória. In:
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Editorial, 1998
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ZANETTINI, Paulo Eduardo. Maloqueiros e seus palácios de barro: O cotidiano doméstico na
casa bandeirista. 2005. 413 f. Tese (Doutorado em Arqueologia) – Programa de Pós-Graduação em
Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Universidade de
São Paulo, São Paulo. 2001
cruzamentoS entre aS bienaiS de havana e dacar
(1984-2006): afro-cubaniSmo e diáSpora como
eixoS diScurSivoS
sabrina Moura1
Nos anos 1960, dois países separados pelo Atlântico assumiam uma nova configuração política, tomando o campo da cultura e das artes como eixos-chave para
seus projetos de nação. De um lado, o Senegal recém-independente da tutela francesa ocupava o papel de expoente cultural no continente africano, buscando construir
sua modernidade sob o signo da négritude, idealizada pelo poeta-presidente Leopold
Sédar Senghor. Do outro, Cuba fundava um estado comunista no qual a liberdade de
criação era uma preocupação central para aqueles que temiam a emergência de uma
ortodoxia artística centrada no realismo socialista. “Dentro de la Revolución, todo;
contra la Revolución, nada”, bradava Fidel Castro em suas Palabras a los Intelectuales (1961).
À despeito das diferenças entre os projetos políticos de Cuba e Senegal, o
impulso fundador das suas agendas culturais permitiu que instaurassem uma série de
instituições dedicadas ao campo das artes como escolas, teatros e museus2. Voltadas
não só a formação de um público local, essas instituições também estavam interessadas em alcançar uma projeção internacional, bem como, promover uma emancipação
da tutela ocidental que havia marcado a entrada de ambos os países no século XX.
Tais políticas culturais seminais forjaram as condições para a criação das Bienais de Havana e Dacar, entre os anos 1980 e 1990. Separadas cronologicamente pela
queda do Muro de Berlim, em 1989, ambas as mostras buscavam renovar os eixos de
1.
2.
Sabrina Moura de Araújo. Doutoranda pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-UNICAMP) e pesquisadora visitante no Instituto de Estudos
Africanos da Universidade de Columbia (2016).
Impulsionadas nos anos 1960, as políticas culturais cubanas pós-revolução tiveram entre seus principais expoentes a Casa de las Américas – organização fundada por Castro em 1959 para promover
relações entre Cuba e a América Latina e Caribe –, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), a Orquestra Sinfônica Nacional, entre outros. No Senegal, podemos citar a
criação do Musée Dynamique, o Thêàtre Nationale e a École des Arts du Senegal.
300
articulação artística herdados da experiência colonial, e posteriormente, da Guerra
Fria. Suas agendas e políticas curatoriais apontam para o surgimento de novas redes
de trocas culturais nas quais se evidenciam as relações entre bienais e estado. À exemplo da Bienal de Havana, fundada em 1984 sob os auspícios do Conselho de Ministros
para “assegurar uma nova importância para Cuba na América Latina, bem como no
bloco do Leste” (BELTING, 2013). Ou da Bienal de Dacar, criada em 1990 pelo então
presidente Abdou Diouf em resposta às demandas de artistas e intelectuais senegaleses por uma atuação do estado na promoção de uma política cultural pan-africana.
Enquanto a Bienal de Havana promovia uma retórica terceiro-mundista no
campo das artes, alinhada, por sua vez, às ambições do soft power cubano na esfera
cultural, a Bienal de Dacar buscava se posicionar em relação à dialética senghoriana
do enracinement et ouverture3, colocando-se como plataforma articuladora de um
projeto que revisava a própria noção de arte global, a partir da África. Ambas afrontavam o lugar referencial da modernidade e da contemporaneidade euramericana, aspirando projetar-se, a partir de suas posições locais privilegiadas, sobre os territórios
periféricos negligenciados pelo projeto de arte ocidental.
Ao advogar outros contextos e enquadramentos expositivos para a produção
artística não ocidental, as bienais em questão nos ajudam a repensar algumas categorias consolidadas no campo da história da arte. Entre as pautas centrais trazidas por
Havana e Dacar estão o questionamento de certos marcadores temporais – como o
primitivo, o moderno ou o contemporâneo na arte – ou geográficos – como a ideia
de uma essência identitária que permearia as noções de arte africana ou latino-americana. A fim de compreender como esses agenciamentos ocorrem, analisaremos os
enquadramentos discursivos que atravessam a obra do artista cubano José Bedia, em
exibição em Havana e Dacar, entre os anos 1984 e 2004.
Do afro-cubanismo À diáSpora: o locus Do Discurso expositivo
Fundada sob o signo do pintor Wifredo Lam (1902-1982), a Bienal de Havana
trazia entre os seus principais eixos conceituais a questão da presença africana na cultura cubana. Para os idealizadores da bienal, a trajetória de Lam — filho de um imigrante chinês e uma mãe de ascendência afro-espanhola — condensava não somente
o apelo terceiro-mundista almejado pela mostra, mas também a representatividade do
que se convém chamar de afro-cubano no campo das artes visuais.
Já na primeira edição da Bienal (1984) foi organizada uma Conferencia Internacional sobre Wifredo Lam na qual a curadora Lowery Stokes Sims cita o encontro
entre Lam e Aimé Césaire, em 1941, e a influência da negritude de Senghor como
fatores decisivos para que o artista pudesse reconhecer a presença africana em sua
própria obra. Segundo Stokes Sims (1984), Lam “empleó rituales afrocubanos y mi3.
Texto de Abdoulayé Wade sobre a 5a edição da Bienal de Dacar. Catálogo (2002), p. 5
301
tos que le eran familiares desde niño para crear un planteamiento modernista único
y muy personal”. Uma condição precursora que, anos mais tarde, seria reiterada por
Gerardo Mosquera (1996) ao considerar Lam o primeiro artista americano a incorporar o “elemento africano” na arte moderna.
Associadas, sobretudo, às expressões da cultura popular, as tradições afro-cubanas que influenciaram o trabalho de Lam4 eram frequentemente relegadas a
uma posição marginal na narrativa nacional das artes. Todavia, elas desempenham
um papel central entre os artistas que começaram a atuar no período pós-1959, como
o jovem José Bedia. Um iniciado na tradição do Palo Mayombe – sistema ritual afro-cubano que, junto com a Santería, teve uma forte influência nas artes visuais (CAMNITZER, 2003) –, o artista faz referências à cosmologia e à iconografia palera a fim
de “construir uma semântica específica em seu trabalho” (BETTELHEIM, 2001).
Ao recusar a categorização de tais práticas como vestígios do passado, o trabalho de
Bedia aporta uma visão dinâmica e contemporânea da presença africana em Cuba.
A geração de Bedia é amplamente reconhecida por reavaliar as artes nacionais
e contribuir para o surgimento de uma atitude pós-colonial em relação à identidade
e à cultura local (MOSQUERA, 1988). Trabalhando ativamente na década de 1980,
esses artistas fizeram uso de conceitos como o de transculturação, elaborado pelo
antropólogo e escritor Fernando Ortiz, e buscaram delinear visualmente uma essência cubana que levasse em consideração tradições não canônicas. Durante a terceira
edição da Bienal de Havana, em 1989, Bedia apresentou uma mostra individual na
qual afirmou seu processo criativo como um método transcultural, “en la mitad de
camino entre la ‘modernidad’ y la ‘primitividad’, [...] De este reconocimiento, y en
este límite fronterizo que tiende a romperse, sale mi trabajo”5.
Talvez tenha sido essa condição transcultural que tenha levado o trabalho de
Bedia a ser incluído na sexta edição de Dak’art (2004), como parte da exposição Retour à Dakar: 3 artistes en provenance des Amériques. Com curadoria do brasileiro
Ivo Mesquita, a mostra se dedicou a explorar a noção de diáspora africana nas Américas, a partir do trabalho de Bedia e dois outros artistas: Mario Cravo Neto e Odili
Donald Odita (o único afro-descendente da mostra). Em seu texto de apresentação,
Mesquita afirma:
No que diz respeito ao assunto proposto, a Diáspora Africana,
devo admitir que os artistas e obras propostas trazem aqui um
entendimento diferente das práticas culturais e de uma abordagem teórica que apresenta uma África utópica, um território
a ser descoberto, um projeto a se realizar, uma cultura por
4.
5.
Ver também Luiz Camnitzer (2003), p. 37. “The real impact of black artists on the Cuban mainstream
had to wait until the appearance of Wifredo Lam”, afirma o autor.
Texto de José Bedia para o Catálogo da Terceira Bienal de la Habana (1989), p. 217.
302
fazer. Pelo contrário, ela é considerada uma matriz cultural,
como aquela cantada por Gilberto Gil ou pela música de Bob
Marley, a “Mama África”, a mãe que uma vez expatriada na
América deu à luz crianças mestiças.
A inserção de José Bedia em Retour à Dakar, pelo viés da diáspora, intriga. De
origem espanhola, o artista não possui a ascendência africana que embasa a retórica
do retorno ou da mestiçagem exortada pelo curador da mostra; levando-nos a perguntar: Esta seria uma contradição? Até que ponto a noção de diáspora se torna maleável
e vai sendo moldada de acordo com as suas condições de enunciação?
Como já havia feito em sua mostra individual para a Terceira Bienal de Hava6
na , Bedia apresenta em Dacar um conjunto de obras – entre as quais Kiyumba Ndoki e
Kiyumba Bafiota (1997) – que remetem à elementos surgidos a partir da sua experiência
pessoal com os rituais de Palo Mayombe. Aqui, a adesão do artista à condição diaspórica parece não se inscrever nas tramas de uma filiação literal, mas na vivência espiritual
afro-cubana que se materializa de forma quase autobiográfica em seus trabalhos. Assim,
embora afirme o contrário em seu texto curatorial, podemos concluir Mesquita não foi
guiado pela noção de origem na seleção das obras expostas em Retour à Dakar, mas
sim, recorreu às experiências culturais e subjetivas para validar sua proposta curatorial.
Em The Diaspora as Object (2003), John Peffer aponta questões importantes acerca dos usos discursivos e estéticos do conceito de diáspora africana na arte.
“Muito da nova arte procura deslocar a diáspora de uma condição de sujeito-que-fala
para passar a ser um objeto-em-questão”, afirma. Nesse sentido, ao assumir a condição de objeto, a noção de diáspora passa a recombinar múltiplas conexões geográficas e históricas. Mas, isso não se dá sem uma perda, já que a força de sua enunciação
política se dissolve, respondendo às condições que escapam às formas de validação
baseadas em uma origem comum.
Resta saber em que medida a maleabilidade desses conceitos, seus usos no
campo da curadoria e na esfera da arte dita “global” demandam uma contextualização
mais precisa. Sob esse ângulo, o estudo das Bienais tem muito a contribuir, já que
articula práticas artísticas às experiências históricas e políticas. Nesse sentido, é importante notar que, embora os agentes e protagonistas de exposições bienais sempre
clamem o pioneirismo de suas propostas artísticas e discursos curatoriais, mostras
dessa natureza jamais se constituem como fatos isolados, resultantes de um único
projeto autoral. Elas representam, ao contrário, uma conjunção de forças e interesses
que transcendem o chamado mundo da arte. É precisamente essa dimensão complexa, marcada pelo seu contexto histórico e social, que buscamos como horizonte na
elaboração desse estudo.
6.
Importante ressaltar que o Palo Mayombe não é a única referência ritual presente na exposição de
Bedia para a Terceira Bienal de Havana, já que apresenta também obras baseadas em práticas espirituais de indígenas norte-americanos, entre outros cultos caribenhos.
303
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Contemporary Art Exhibitions and Biennials in Post-Wall Europe. Cambridge: MIT Press, 2005.
entre a obra e a imagem: a Sobrevivência
da eScultura “mademoiSelle pogany ii”, de
conStantin brancuSi
ana Paula ChaVes Mello1
Na madrugada de oito de julho de 1978, um grande incêndio atingiu o Bloco
de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O acontecimento foi
alardeado pelos meios de comunicação que lamentaram a perda de noventa por cento
do acervo de artes visuais e grande parte da biblioteca. O jornal A Gazeta publicou
uma nota sobre a tragédia, colocando em questão a quantidade de diretores de museu
em todo mundo que não gostariam de ter a chance de fazer “tabula rasa”, recomeçar,
“eliminar imensos estoques de quadros indesejáveis e, iniciar uma nova coleção de
arte, orientada tecnicamente para o melhor, adquirindo só peças excepcionais, e exibir ocupando o mínimo de espaço, o acervo ideal.”2
Parte dessa nota, nos chama atenção para a defesa de um “acervo ideal” e as
características que o definiria: “tecnicamente para o melhor”, “peças excepcionais”,
“ocupando o mínimo de espaço”. Pensando o contexto em que foi publicada e o
momento artístico, ou seja, o final da década de 1970, nos indagamos sobre esta
concepção: como se mede um acervo ideal e o que faz uma obra ser excepcional? É
possível imaginar essa ‘excepcionalidade’ diante do conjunto de obras sobreviventes
ao incêndio? Estariam essas obras enquadradas nesse ‘ideal’?
Segundo a historiadora e antropóloga Chantal Georgel (2015), foi na metade
do século XIX que os museus herdariam os princípios de classificação dos primeiros
historiadores da arte. Substituiriam as organizações aleatórias por uma organização
que privilegiasse um tipo de composição que pudesse narrar a trajetória da arte e sua
dimensão evolutiva, segundo as concepções clássicas à época de Vasari e Winckelmann. Contudo, a autora questiona se teria o museu a função de tornar-se um lugar
1.
2.
Ana Paula Chaves Mello. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAV-EBA-UFRJ).
A GAZETA, Rio de Janeiro, 24 de jul. 1978. Acervo Pesquisa e Documentação MAM Rio.
306
da história, já que a maioria dos acervos foram constituídos por coleções privadas
geralmente orientadas pelo gosto do colecionador.
Irma Arestizabal3, responsável pelo acervo do MAM Rio no período da gestão (1985-1990) de Paulo Herkenhoff, declarou que o objetivo prioritário era oferecer ao público visitante uma dimensão historiográfica da arte através de um núcleo
dominante, “um grupo restrito de obras, mais representativas do acervo, que ficará
em exposição permanente, se convertendo em um símbolo do museu [...].”4 Para a
curadora, o Museu organizaria suas obras a partir de um ‘centro’ inspirado pelo utópico projeto Museu de Crescimento Ilimitado (1930) de Le Corbusier onde o acervo
se desenvolveria a partir de um núcleo, podendo crescer infinitamente. A escultura
Mademoiselle Pogany II de Constantin Brancusi foi uma das obras que sobreviveu
ao incêndio e compõe o núcleo de obras representativas mencionado pela curadora.
De acordo com as informações técnicas relativas à procedência da obra, foi o
casal Stella e Roberto Marinho que adquiriu a escultura do artista e a doou ao MAM
Rio em 1952, ano de reabertura do Museu no térreo do Ministério da Educação e
Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema. Um pequeno catálogo do acervo editado em
1953 apresenta a imagem da escultura em preto e branco ao lado de uma breve biografia do artista e alguns comentários sobre a forma síntese do “ovoide” como matriz
de seu pensamento plástico junto ao “polido da matéria” que revela uma “obsessão” e
um “apego” do artista às exigências de determinados materiais. O texto ainda cita uma
frase de Brancusi em que afirma ser sua obra uma aproximação “do sentido real das
coisas.”5 Somente em 1999, outra imagem da escultura foi impressa em um catálogo
do acervo, dessa vez sob um outro ângulo, em cores, junto a um parágrafo contendo
uma breve análise da obra do artista: “assimilando com rapidez, consistência e uma
alta dose de originalidade a lição cubista”, além de considerar sua influência para a escultura moderna como uma “espécie de equivalente escultural”6 de Picasso. Contudo,
a imagem que, talvez, tenha nos chamado mais a atenção é a que está reproduzida na
capa da revista Arte Hoje,7 edição de agosto de 1978, onde apareceu junto à seguinte
frase: “O MAM renascerá” com grande parte de sua superfície decomposta em virtude
do incêndio. Na imagem, a estrutura da escultura aparentava íntegra, rígida, tornando-se, portanto, segundo a própria revista, o símbolo da reconstrução do Museu.
3.
4.
5.
6.
7.
Irma Arestizábal (1940 – 2009) foi crítica de arte e professora da Universidade de Buenos Aires,
curadora das Coleções do Museu de Arte Moderna Rio de Janeiro no período de 1986-1990 e diretora do Centro Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1980-1992.
ARESTIZABAL, Irma. As Coleções do MAM/RJ, Segmentum Artis, ano I, nº 1, 1987. Acervo
Pesquisa e Documentação MAM-Rio.
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Exposição Permanente. Catálogo, 1953, p. 17. Acervo
Pesquisa e Documentação MAM-Rio.
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Banco Safra, 1999, p. 276.
Arte Hoje foi uma revista voltada para as artes plásticas, arquitetura e outros temas. Lançada em
julho de 1977 pela Editora Globo, permaneceu nas bancas até o ano de 1979 com aproximadamente
trinta títulos lançados. Editada pelo jornalista Milton Coelho da Graça e pelo crítico de arte Wilson
Coutinho que ocuparia na década de 1990 a função de curador do MAM Rio.
307
Ao retomar uma obra representativa da arte moderna europeia como símbolo
da reconstrução, o MAM Rio aproximava-se da comunidade internacional até aquele
momento consternada, porém crítica à forma como os museus brasileiros conservavam seus acervos. Ao restaurar o modelo pelo o qual foi fundado, ou seja, orientado
para o restabelecimento da “integridade e a especificidade da instituição,”8 estaria
assim, legitimando um retorno à uma concepção tradicional de museu como lugar de
conservação e exposição de obras de arte. Um modelo que para a maioria dos críticos
e artistas à época da reconstrução, não se relacionava com a história que o MAM Rio
construiu ao longo dos anos, especialmente nas décadas de 1960 e 1970 como um
projeto de cultura integrado e essencial para a experimentação artística.
O leque de possibilidades discursivas que o estado da escultura nos oferece,
mobiliza nosso olhar sobre a imagem, sobre o tempo e sobre as possibilidades teóricas que o seu conteúdo nos oferta. Podemos afirmar que esta imagem não pertence
a um só tempo, mas é fruto de uma confrontação de tempos distintos. Estar diante
desta imagem não é simplesmente estar diante de esquematismos estilísticos, arranjos
formais e estetizantes, mas perceber a rede complexa de relações que a constitui. Ao
contrário de outras imagens que retratam o incêndio, onde as obras são identificadas
em meio as fuligens e destroços, esta obra aparece na capa da revista tal qual a página
de um livro de história da arte: em destaque sobre um fundo branco. O que fazer
diante dessa imagem? Como interpretá-la?
Na concepção do historiador da arte Georges Didi-Huberman (2013, p. 50)
essa perspectiva alia a escrita da história à inevitável prática do anacronismo, configurando, portanto, um paradoxo na forma tradicional de se praticar a disciplina que
sempre rejeitou tal condição. Considera o historiador um “fictor”, um autor e inventor
do passado, que deve estar sempre consciente das armadilhas das certezas, sobretudo
sendo a arte seu objeto de estudo: “temos ainda algumas imagens, mas não sabemos
mais os olhares que lhe davam carne; [...] O que isso quer dizer? Que todo passado é
definitivamente anacrônico: só existe, ou só consiste, através das figuras que dele nos
fazemos; [...].” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 50)
Podemos afirmar que a constituição de um “acervo ideal”, provém da ideia de
um museu que reitera e apenas reproduz a legitimidade dos discursos sobre as obras,
sem, no entanto, suscitar novas questões sobre as mesmas já que pertencem a um
acervo, portanto a um contexto específico. Consideramos que a própria materialidade
da obra de arte contribuiria com evidências que nos conduziriam a novas possibilidades discursivas, para além daquelas comumente utilizadas para contextualizar uma
obra em uma coleção de arte.
Ao interrogar a imagem, interrogamos o nosso próprio conhecimento. E no
momento em que percebemos que o que sabemos não é suficiente para avançarmos
8.
Gouthier coordena a reconstrução do MAM, Folha da tarde, São Paulo, 26 jul 1978. Acervo Pesquisa
e Documentação MAM Rio.
308
em novas interpretações, percebemos a necessidade de deslocarmos nosso olhar a fim
de iniciar uma investigação que resultará em um novo modo de se relacionar com a
história da arte. Mlle. Pogany II é a obra que sobreviveu ao incêndio. Ela ‘fala’ desse
lugar. Como contar essa história?
A estreita ligação da história da arte com o museu nos oferece outras possibilidades de investigação que, por meio das obras sobreviventes, é possível repensar as
categorias que as emolduraram como uma determinada noção de obras de arte e as
localizaram no Museu segundo um modelo canônico de uma história da arte, linear,
formalista e positivista. Porém, com o incêndio, a linha se rompe, a obra se transforma e dispara um novo modo de análise em que a sua dimensão fenomenológica,
conceitual, material, temporal pode ser revisada. As obras sobreviventes, de algum
modo, mesmo restauradas, exibem essa experiência, pois há na sua própria materialidade a memória desse episódio.9
A descoberta da imagem da escultura Mlle. Pogany II desloca as narrativas
esgotadas sobre a obra, sobre a história da obra no Museu, portanto, sobre as experiências que compõe sua memória. Assim como alerta Walter Benjamin, “antes que
a imagem ameace desaparecer,”10 o estado de agitação do pesquisador refere-se ao
abandono da tranquila atitude contemplativa à constatação crítica de que a emergência do fragmento do passado coincide com o momento preciso encontrado no
presente. Neste sentido, é preciso se desvencilhar dos regimes temporais estabelecidos pela historiografia da arte reiterados diariamente pela maioria dos museus para
investigar a memória da obra, mas não como um arquivo de fatos, datas e nomes, mas
os acidentes, as fissuras, as excessões, os intervalos que possam habitar o conteúdo
da sua imagem se faz necessário. Esta imagem pode nos oferecer uma crônica do que
está perdido ou prestes a perder-se na história. Ao invés de tratá-la como um simples
documento histórico, por que não considerá-la um objeto de estudo potencial à disciplina? Pois, apropriar-se desta imagem é como revolver um arquivo até o momento
mantido em perfeita ordem.
A afirmação das transformações pelas quais passam algumas obras de arte
estão condicionadas a um regime de gosto e estilo segundo uma concepção de arte
definida por cada época. O enquadramento dado a obra de Brancusi nos aproxima da
imagem como vestígio, na medida em que amplia ou altera o próprio conteúdo da
obra de arte e consequentemente o saber histórico sobre a mesma. Descaracterizada
dos atributos dos quais a consagrou, a escultura carrega uma história própria, um
feixe de significados que embora subjetivos, a nosso ver, apresenta uma importância
tal qual os princípios estéticos que a certificaram: a sobrevivência da escultura e, so9.
“Mademoiselle Pogany de Brancusi já está exposta no segundo andar, exibindo na cabeça uma pequena ‘cicatriz’”. O MAM está de volta com a promessa de vida nova, O Globo, Rio de Janeiro, 15
mar 1981. Acervo Pesquisa e Documentação MAM Rio.
10. BENJAMIN, Walter. Eduard Fuchs: Collector and Historian. Disponível em http://documents.mx/
documents/benjamin-w-eduard-fuchs-collector-and-historian.html Acesso 25 jun 2016.
309
bretudo de sua aparência tal como foi encontrada reforça, a nosso ver; a sua própria
existência; a manutenção de sua vivacidade diante de contemplações estéreis recorrentes no interior do museu.
Após o incêndio, podemos considerar que algumas obras de arte ganharam
uma ‘sobrevida’, um acréscimo de tempo que altera a história cristalizada que a constituía. É como se o incêndio e toda a fabulação em torno do renascer das cinzas despertassem a condição da escultura para o que de fato interessava ao artista: revelar o
estado real das coisas. O aspecto do bronze expõe sua concretude, sua fisicalidade,
um retorno à corporalidade da matéria, às lembranças de seu estado original. E isto,
não pressupõe uma fetichização do objeto, pelo contrário, nos alerta para a mortalidade da obra e para um tipo de discurso postulado por um conjunto de verdades estabelecidas pela história da arte. Desse modo, não seria esta imagem um sintoma? Uma
imagem crítica, reveladora de uma intensidade plástica, onde o grau de deformação
inquieta promove uma abertura dos campos discursivos aplicados à obra. Não seria o
momento de considerarmos a possibilidade de escovarmos a história a “contrapelo”
como propõe Benjamin [1940], assumindo um modelo dialético de história da arte,
cuja excepcionalidade esteja presente justamente no rastro do que restou do incêndio?
referênciaS
CHANTAL, Georgel. O colecionador e o museu, ou como mudar a história da arte? Museologia
e Interdisciplinaridade. Volume III, n. 6, março/abril, 2015. Disponível em http://www.eba.ufrj.br/
ppgav/anacanti/pdf/georgel.pdf Acesso em 25 jul 2016.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre a literatura e a história. Obras
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Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
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34, 2013.
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MUSEU de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Banco Safra, 1999.
reconStruindo a memória de amedeo modigliani
olíVio gueDes1
eDson leite2
A família Modigliani tem sua origem em Modigliana, aldeia da Romagna próxima a Forlì, constituída por judeus sefarditas3, onde prestou importantes serviços
financeiros a um cardeal da Igreja Católica (MODIGLIANI, 1984). Em 1849, a parte
paterna da família de Amedeo Modigliani, chegou à cidade de Livorno, na Itália.
Flaminio Modigliani, o pai de Amedeo, foi comerciante de minério (zinco) na Sardenha com grandes lucros financeiros e, em 1872, criou o hotel Lion D’or. Nesse hotel,
muito bem frequentado, Flaminio veio a conhecer seu futuro sogro, Isacco Garsin.
A família de Amedeo Modigliani por parte materna, também é sefardita. Sua
mãe, Eugénie Garsin, de origem espanhola, chegou à Marselha em 1849. A família
Garsin por questões étnicas mudou para Túnis no séc. XVIII, onde criou uma escola
talmúdica4. Eugénie Garsin era filha de Isacco e Reginetta Garsin. A avó de Reginetta, bisavó de Eugénie Garsin, se chamava Regine, mas seu sobrenome era Spinoza,
descendente do filósofo Baruch Spinoza.
Amedeo Clemente Modigliani nasceu em Livorno, na Vie Roma nº 38, em 12
de julho de 1884 (5644, ano judaico), quarto filho do casal, uma criança doente fisicamente, que contraiu pleurisia e febre tifoide. Isacco, avô de Amedeo, lhe apresentou
os museus e, como religioso e também pesquisador de outros saberes, lhe ofereceu a
mística judaica: a cabala5.
1.
2.
3.
4.
5.
Olívio Guedes de Almeida Filho. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Edson Roberto Leite. Professor titular do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP)
e docente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP
(PGEHA USP).
Sefarditas: judeus de ascendência ibérica (Espanha e Portugal).
Talmúdica: livros básicos da religião judaica, complemento à Torá.
Cabala: sistema filosófico-religioso judaico de origem medieval (séculos XII-XIII).
312
Em 1898, um ano após seu bar mitzvá6, Amedeo adoece de febre tifoide. Sua
infância e adolescência foram vividas em grande parte em sua residência: o esforço
físico e as brincadeiras eram difíceis para ele, que inicia, então, estudos de pintura
com o professor Guglielmo Micheli. Em 1902, contando dezoito anos de idade, Modigliani tem uma ameaça de tuberculose e viaja por Florença, Roma, Nápoles e Capri.
Suas dores parecem fortalecer sua alma. Nesse mesmo ano, se inscreve na Scuola Libera di Nudo, em Florença, onde tem aulas com Giovanni Fattori, com quem estuda
profundamente o Renascimento (TEIXEIRA, 1985).
Modigliani matricula-se em 19 de março de 1903 no Istituto di Belle Arti, de
Veneza, onde se dedica aos grandes mestres antigos. Insere-se na corrente do Simbolismo, tem contato com as obras dos impressionistas franceses e com as esculturas
de Rodin nas Bienais de 1903 e de 1905. Conhece Ortiz de Zarate e Ardengo Soffici,
figuras fundamentais em sua vida de artista.
Modigliani passa a morar em Paris em 1906. A princípio mora em hotéis, posteriormente, instala-se num estúdio em Montmartre e frequenta a Académie Colarossi7.
Conhece um amigo que manterá por toda a vida: o pintor Maurice Utrillo. Auguste
Henri Doucet apresenta Modigliani ao jovem médico Dr. Paul Alexandre que, juntamente com o irmão Jean, alugou um estúdio para apoiar jovens artistas. Modigliani tem
seu primeiro patrono: Paul Alexandre, que consegue encomendas de retratos e lhe compra alguns desenhos. Modigliani tem algumas obras expostas no Salon d’Automne8. As
obras neste período apresentam influências Simbolistas, de Cézanne, de Edvard Munch
e de Toulouse-Lautrec. Ao entrar na vida dos bairros franceses, Montmartre e Montparnasse, Modigliani conhece artistas de vanguarda: Picasso, Juan Gris, Van Dongen,
Chaim Soutine; escritores: Guillaume Apollinaire, Max Jacob, entre muitos outros e
expõe cinco quadros no Salon des Indépendants, em 1908, incluindo ‘A Judia’.
Modigliani – “A Judia”,
1908, ost, 55 x 46 cm, Museum Kamagawa
Fonte: GALLAND, 2005, p. 37
6.
7.
8.
Bar mitzvá: debute do judeu aos 12 anos. (UNTERMAN, 1992).
Academia Colarossi: Fundada em 1815.
Salon d’automne: criado pelo arquiteto belga Frantz Jourdain. Primeira edição em 31 de Outubro
de1903 no Petit Palais. (LACLOTTE, 1997).
313
Sua primeira encomenda importante foi ‘A Amazona’, de 1909, mas ao olhar o
quadro, a Baronesa Marguerite de Hasse de Villers recusa a encomenda. Circunstância que pode ter induzido Modigliani a se direcionar para a escultura.
Modigliani conheceu Constantin Brancusi por intermédio de Paul Alexandre.
Brancusi lhe mostrou um novo caminho e Modigliani dedicou sua arte de 1909 a 1914
à escultura, período em que quase não pintou. Seu suporte foi à pedra do meio-fio9.
Em 1910, tornou-se amigo do escritor Max Jacob e se envolveu com a poetisa russa
Anna Achmatova. No estúdio do artista português Amadeu de Sousa Cardoso, em
1911, expôs as pedras arcaizantes: colunas de ternura, um trabalho sobre as cariátides.
Modigliani – “Cariátide“, 1914,
pedra calcária, 92 x 41 x 42,9 cm, MOMA
Fonte: GALLAND, 2005, p. 68.
Modigliani – “Cariátide“, 1913
tsc, 34 x 23 cm, coleção particular
Fonte: PARISOT, 2010, p. 156.
Em 1912, Modigliani conhece Beatrice Hastings, excêntrica jornalista inglesa,
com quem teve um relacionamento de dois anos; apesar de uma tempestuosa ligação,
ela é seu modelo preferido. Pintou oito vezes seu retrato.
Entre 1914 e 1928, ocorre a Primeira Guerra Mundial. Modigliani tentou engajar-se, mas é considerado inapto por seus problemas de saúde. Passa por um período
difícil, mas durante o qual forja sua técnica e reconhece sua essência. O galerista Paul
Guillaume e Modigliani se conhecem, graças a Max Jacob, em 1914. Guillaume inclui Modigliani em várias exposições coletivas de seu estabelecimento. Em Londres,
Guillaume inclui obras na Whitechapel Gallery e Modigliani retrata Paul Guillaume.
Em 1915, Jean Cocteau tirou uma série de fotografias de Modigliani com Picasso, Max Jacob, André Salmon, Ortiz de Zarate e Moïse Kisling.
Modigliani rompe seu relacionamento com Beatrice Hastings. Conhece Leopold Zborowski, polaco, poeta e negociante de arte que se tornou seu amigo e protetor. Em 1916, Modigliani conheceu o grande amor de sua vida, Jeanne Hébuterne,
que tinha então dezenove anos de idade e era católica. As diferenças religiosa e etária,
quatorze anos de diferença, não comprometeram a paixão.
9.
Meio-fio: bordo ao longo da rua; beira da calçada ou, como conhecido em São Paulo, sarjeta.
314
Em 1917, Modigliani expôs na Galeria Berthe Weill, foi sua primeira exposição individual, mas durou apenas duas horas; sua mostra foi fechada pela polícia
porque apresentava excessivamente nus femininos. Este período de sua produção
se constituiu num marco da representação do nu feminino; suas trinta e duas obras
formaram um grande fenômeno em sua pequena produção. Seu nu era referência
ao estado de alma, ou seja: não uma mulher sem roupa, mas uma mulher sem véus
(GALLAND, 2005).
Com a ameaça de invasão pelos alemães em 1918, Modigliani e Jeanne abandonaram Paris na primavera. Em Nice, na costa mediterrânea, Modigliani produziu várias obras,
retratos, que são vendidos por Zborowski, em Paris. Em 29 de novembro de 1918, nasceu
Jeanne Modigliani, a filha que no futuro irá cuidar das obras de Amedeo.
Em 1919, várias obras de Modigliani são expostas na Inglaterra, em Heale e
na Hill Gallery. Colecionistas ingleses adquirem suas obras. Em maio, Modigliani
retornou a Paris e assinou um documento se comprometendo a se casar com Jeanne.
Em julho, Jeanne descobriu estar grávida novamente e continuou a ser expurgada por
sua família, por viver com Modigliani.
Modigliani faleceu com trinta e seis anos incompletos, no Hospital Charité de
Paris, no dia 24 de janeiro de 1920. Jeanne, companheira apaixonada, grávida de oito
meses do segundo filho, sobreviveu apenas uma noite; atirou-se do quinto andar da
casa de seus pais em 25 de janeiro, contando apenas vinte e um anos de idade.
Uma multidão assistiu ao funeral de Modigliani no cemitério de Père Lachaise
(NICOSIA, 2011). O corpo de Jeanne foi velado e sepultado às escondidas, pelos
pais, no cemitério de Bagneux. Apenas dez anos depois, Jeanne e seu filho, que não
nasceu, foram transferidos para o cemitério do Père Lachaise, para descansarem ao
lado de Modigliani. Sua filha escreve mais tarde uma importante biografia de seu pai.
referênciaS
GALLAND, M.S.G. Modigliani. Barcelona: Instituto Monsa, 2005.
LACLOTTE, M. Petit Larousse de La Peinture (2 Tomos). Paris: Librairie Larousse. 1997.
MODIGLIANI, J. Jeanne Modigliani racconta Modigliani. Livorno: Graphis Arte, 1984.
NICOSIA, F. Modigliani. Paris: Gründ, 2011.
______. Modigliani. São Paulo: Abril Coleções, 2011.
PARISOT, C. Modigliani ritratti dell’anima. Roma: Modigliani Institut, 2010.
TEIXEIRA, L. M. Dicionário Ilustrado de Belas-Artes. Lisboa: Presença, 1985.
UNTERMAN, A. Dicionário Judaico. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
a comédia de Salvador dalí: conSideraçõeS
Sobre doiS acervoS
ViCtor tuon Murari1
Notadamente, Salvador Dalí (1904-1989) foi um artista versátil. Como praticamente nenhum outro artista moderno, soube explorar diversos suportes e, para
além da pintura em tela, produziu esculturas, gravuras, roupas, joias e performances.
Sobretudo no período de maior maturidade, a produção de gravuras supera as demais
atividades e, para todos os fins, propõe algo indispensável para a compreensão das
opções estéticas do artista.
A partir dos anos de 1950, ressurge na Europa o interesse de colecionadores
privados por livros ilustrados de artistas.2 Ciente desses interesses, Dalí faz uso da
gravura e, acima de tudo, da litografia3, para imprimir um sem-número de edições.4
Não é por acaso que, em 1952, o artista recebe do Istituto Poligrafico dello
Stato o convite para ilustrar a Divina Comédia de Dante Alighieri. Entre idas e vindas,
1.
2.
3.
4.
Victor Tuon Murari. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
De acordo com Stephen Bury: “Artists’ books are books or book-like objects, over the final appearance of which an artist has had a high degree of control; where the book is intended as a work of art
in itself. They are not books of reproductions of an artist’s work, about an artist, or with just a text or
illustrations by an artist.” BURY, Stephen. Artists’ Book: The Book as a Work of Art – 1963-1995.
Düsseldorf: Scholar’s Press, 1995.
“No verão, Joseph Fôret chegava a Port Ligat com um carregamento de pedras litográficas muito
pesadas. Queria absolutamente que eu ilustrasse Dom Quixote, trabalhando nestas pedras. Ora, nesta
época, era contra a litografia por razões estéticas, morais e filosóficas. Encontrava esse processo sem
rigor, sem monarquia, sem inquisição. Na minha opinião, não era mais do que um processo liberal,
burocrático e mole. Todavia, a perseverança de Fôret que me trazia incessantemente pedras, exasperou a minha vontade de poder antilitográfico até a hiperestesia agressiva.” DALÍ, Salvador. Diário
de um Gênio. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1989.
São exemplos: O Castelo de Otrante (1964), Alice no País das Maravilhas (1969), a Bíblia Sagrada
(1969), Fausto (1969), Tristão e Isolda (1970), Decamerão (1972), Romeu e Julieta (1975), entre
outros.
316
acertos e desacertos, o direito de reprodução da obra passou por inúmeras mãos. Entre
elas está Joseph Fôret, com quem Dalí estava em processos de publicar Dom Quixote,
as editoras Les Heures Claires e Arti Scienza Salani e a galeria alemã Naffouj.5
Em um primeiro momento, a Divina Comédia de Salvador Dalí era composta
de cento e duas aquarelas. Posteriormente, com a aquisição dos direitos de reprodução de imagem pela editora Les Heures Claires, as aquarelas foram transpostas em
cem gravuras, divididas respectivamente entre: uma de abertura, trinta e três para o
Purgatório, trinta e três para o Inferno e outras trinta e três para o Paraíso.
A edição Les Heures Claires é particularmente significativa, uma vez que foi
a única a ser acompanhada diretamente por Dalí. Além disso, outra particularidade
relevante está no formato em que a obra foi comercializada. Por opções editoriais, as
gravuras não foram postas de maneira a combinar poema com imagens. Tendo isso
em vista, as edições posteriores não puderam dar conta de nenhuma outra referência
que contribuísse com a proposta narrativa de Dalí para a Comédia.
No Brasil, duas instituições públicas6 dedicam-se a salvaguardar exemplares
da obra: a prefeitura de São Carlos (SP) e o Banco Central do Brasil (DF). Dessa
forma, temos por objetivo ponderar sobre alguns aspectos relevantes da constituição:
o uso e a circulação desses exemplares em território nacional, de modo a contribuir
com uma bibliografia que ainda está em formação e não foi suficientemente debatida.
Entendemos que esta proposta ganha força, uma vez que existe interesse por parte do
público em conhecer a coleção.7
Do ponto de vista acadêmico, o debate permanece restrito à esfera da produção de significados. Até o momento, dois autores destacaram-se no centro do debate:
Ilaria Schiafiini e Jean-Pierri Barricelli8. Já no âmbito da circulação das obras e formação de acervos, especialmente no caso brasileiro, o debate tem ocorrido exclusivamente por meio da publicação de catálogos de exposição. Exceção feita à dissertação
5.
6.
7.
8.
Albert Field, arquivista e autor do Catálogo Raisonné The Official Catalog of the Graphic Works of
Salvador Dalí, e Dietro Wanczura, galerista e autor do estudo The Great Dalí Art Fraud e Salvador
Dalí Prints, asseguram que é praticamente impossível aferir, partindo do rigor moderno de autenticidade, a originalidade das gravuras para a Divina Comédia. Tendo em vista a progressão desordenada
de impressões somados à consecutiva compra e venda dos direitos de reprodução, o caráter das
impressões torna-se duvidoso.
Tendo em vista que as matrizes de impressão das gravuras não foram anuladas após o final das edições supracitadas, é possível que existam outras coleções, principalmente de caráter privado, compostas pela Divina Comédia de Dalí. Até onde nossa pesquisa avançou, não foi possível encontrar
em acervos públicos ou abertos ao público outros exemplares da Comédia.
Entre os anos de 2012 e 2014 a Caixa Cultural promoveu, com um número expressivo de visitações,
a exposição das gravuras de Salvador Dalí para a Divina Comédia. A coleção itinerou por oito cidades brasileiras e pertence à família espanhola Coscolla/Arevallo. O exemplar é original da edição
Les Heures Claires, exemplar 283.
A pesquisa de Ilaria Schiafiini é significativa no que tange à importância da produção de gravuras no
trabalho de Salvador Dalí, principalmente o da Divina Comédia. Já Jean-Pierre Barricelli dedica-se
a compreender o lugar em que se insere a produção das gravuras de Dalí dentro do espectro moderno
de ilustrações da mesma obra.
317
de mestrado apresentada por Rachel Vallego9, que não trata exclusivamente da Divina Comédia de Salvador Dalí, mas da constituição do acervo do Museu de Valores.
A coleção de arte do Museu de Valores é formada basicamente pela incorporação do acervo de outros dois bancos: o Banco Halles e o Banco Áurea. A integração
das obras à instituição financeira concretizou-se em 1974, como consequência de um
acordo para compensação de dívidas. Tendo em vista a maneira como esse processo
ocorreu, a prudência dos procedimentos comuns a museus ou instituições culturais
acabou posta em segundo plano. Cabe a advertência de que tratar da procedência dos
documentos dessas obras, de forma geral, tornou-se um desafio para os pesquisadores
interessados no acervo do Museu de Valores.
O exemplar da Divina Comédia de Salvador Dalí é proveniente do acervo do
Banco Áurea. Esse, por sua vez, e até onde é possível precisar, adquiriu a obra por
meio de negociações com a Galeria Collectio10. A relação entre instituições bancárias
e João Paulo Domingues da Silva, marchand e agente da Collectio, sempre foi de
proximidade; uma vez que passou a ser prática da galeria fomentar o relacionamento
entre clientes e bancos a fim de facilitar a aquisição de obras por particulares.
Detalhe em alto contraste da marca de papel B.F.K. Rives. Gravura referente ao Canto XXVIII do
Purgatório. (Fotografia do acervo do pesquisador)
O volume do Museu de Valores é composto por apenas trinta e sete gravuras:
uma de abertura, oito para o Purgatório, vinte e uma para o Inferno e outras sete para
o Paraíso. Todas as folhas são assinadas a lápis, refletem a marca d’água da editora
Les Heures Claires e da fábrica de papel BFK Rives11. Essas marcas são coerentes
com os exemplares originais que circulam no mercado, no entanto, a instituição reite9. Ver Referências Bibliográficas.
10. A Galeria Collectio foi inaugurada no ano de 1969 e especializou-se em leiloar gravuras de artistas
modernistas brasileiros. Além do mais, existem registros que comprovam que, em algum momento,
a Galeria colocou à venda uma parte da coleção da Divina Comédia de Salvador Dalí pelo preço de
3 mil cruzeiros.
11. A marca de papel BFK Rives, hoje incorporada à Canson, era utilizada por Salvador Dalí e pelos técnicos gravadores Raymond Jacquet e Jean Taricco na impressão das gravuras para a Divina Comédia
da editora Les Heures Claires. Para mais, ver: WANCZURA, Dietro. The Great Dalí Art Fraud e
318
ra que se trata de uma “reimpressão da edição original em que se emprega o processo
de litografia ofsete”.12
Desde 2014, a cidade de São Carlos, no interior de São Paulo, mantém exposta
uma cópia das gravuras da Divina Comédia de Salvador Dalí. O exemplar é proveniente do acervo do colecionador Lover Ibaixe que, como forma de homenagear a
cidade em que nasceu, decidiu presenteá-la. De acordo com seu próprio relato, as
gravuras foram trocadas após um encontro casual com Gala Dalí, esposa do artista
catalão, por um punhado de moedas de ouro13.
Por cerca de vinte e seis anos, a coleção foi mantida fora de circulação, quando, no ano de 2002, o Museu da Câmara dos Deputados de Brasília organizou uma
mostra intitulada “A Divina Comédia de Salvador Dalí”. Durante o processo de pesquisa, o Museu da Câmara submeteu as gravuras ao exame da Fundação Gala-Salvador Dalí e, pelo parecer técnico da perita Julliete Murphy, o exemplar da coleção
Ibaixe é autêntico.
Além de contar com um certificado de autenticidade, todas as folhas são marcadas com a legenda E. A., do francês Epreuve d’Artiste, ou Prova de Artista. A
legenda indica que o exemplar proveio de uma tiragem significativa, posto que, é a
partir da prova de artista que se estabelecem os parâmetros para a impressão de todas
as outras gravuras. Da mesma maneira identificamos que algumas gravuras trazem a
marca d’água da editora Les Heures Claires, todavia a marca da fábrica de papel não
pode ser encontrada.
Detalhe das iniciais E.A. ou Epreuve d’Artiste, na gravura referente ao Canto XVII – A Visão em
Êxtase. (Fotografia do acervo do pesquisador)
Salvador Dalí Prints. Galeria Artelino. Disponível em: <http://www.artelino.com/articles/salvador-dali-prints.asp>. Acesso em: 12 jun. 2015.
12. Cf. TOMBINI, Alexandre (Pres.). Museu de Valores, Coleção de Arte, Art Collection. Brasília: Banco Central do Brasil, 2014.
13. De acordo com Hilário Domingues Neto, curador da mostra A Divina Comédia: Dalí Rumo ao Paraíso
de Dante, na cidade de São Carlos: “As obras foram trocadas por moedas de ouro do Império Austríaco, que haviam fascinado a russa de nome Gala, esposa do catalão genial.” NETO, Hilário Domingues.
A Divina Comédia: Dalí Rumo ao Paraíso de Dante. São Carlos: Gráfica Carnicelli, 2014. P. 03
319
A prefeitura de São Carlos, por meio da exposição A Divina Comédia: Dalí
Rumo ao Paraíso de Dante, optou por expor as gravuras a partir de uma narrativa
própria. Os critérios adotados para coordenar a sequência das ilustrações, juntamente
com o nome que elas recebem, são iniciativas do discurso curatorial de Hilário Domingues Neto.14 Essa iniciativa é compreensível, visto que, não existem diretrizes
confiáveis sobre a exata posição de cada uma.15
Por fim, recordamos que nos últimos anos o Brasil sediou diversas exposições que deram destaque à produção de Dalí enquanto gravurista, com ênfase para
as exposições Tauromaquia (Museu de Arte Brasileira/FAAP/2014) e Salvador Dalí
(Instituto Tomie Ohtake/2015).
referênciaS
BARRICELLI, Jean-Pierre. Dante: Inferno in the Visual Arts. Pensilvânia: Dante Society of America. Nº 114, 1996.
NETO, Hilário Domingues. A Divina Comédia: Dalí Rumo ao Paraíso de Dante. São Carlos:
Gráfica Carnicelli, 2014.
SCHIAFFINI, Ilaria. La Divina Commedia di Salvador Dalí: Una Storia Italiana. Roma. 2011.
Disponível em: <http://www.viella.it.schi-hub.org/toc/2696>. Acesso em: 23 jun. 2015.
TOMBINI, Alexandre (Pres.). Museu de Valores, Coleção de Arte, Art Collection. Brasília: Banco Central do Brasil, 2014.
14. A única referência confiável sobre a sequência das gravuras encontra-se no catálogo da exposição
Dalí – Cent Aquarelles Pour la Divine Comédie, de 1960, no Musée Galliera em Paris. Essa teve
a participação direta de Salvador Dalí. Não obstante, o catálogo reproduz somente uma parte das
gravuras, mantendo, ainda assim, toda narrativa comprometida.
15. Para mais, ver a dissertação de mestrado Salvador Dalí: Um ilustrador da Comédia. (No prelo)
a viSão de um americano a reSpeito do SiStema
daS arteS no braSil noS anoS 1940: relatoS de
lincoln kirStein a nelSon rockefeller
e alfred barr jr.
Danielle Misura nastari1
Daisy Valle MaChaDo PeCCinini2
A década de 1940 foi uma época de grandes transformações internacionais.
No ambiente artístico brasileiro não foi diferente; sob a ditadura do Estado Novo até
1945, período no qual o governo adotou o realismo social como linguagem artística
oficial, o país viu florescer a abstração e testemunhou a fundação de dois museus de
Arte Moderna no final do decênio. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, principalmente durante os anos de 1940 a 1943, os Estados Unidos se aproximaram do Brasil
por motivos estratégicos, visando a adesão do país ao bloco dos aliados. Era crucial
o uso do território brasileiro mais a leste, sobre o Atlântico, como base para os raids
aéreos no cenário da guerra ao norte da África. Nesse contexto, Lincoln Kirstein veio
ao Brasil duas vezes, em 1941 e 1942; as viagens tiveram propósitos distintos, mas
ambas seguiram as diretrizes da política da boa vizinhança.
Escritor, connoisseur de arte e produtor cultural, Kirstein era um homem extremamente culto e de olhar adestrado3. Em 1942, foi enviado à América do Sul por
Nelson Rockefeller, na posição de consultor de latino-americana do Museu de Arte
Moderna de Nova York (MoMA), para adquirir obras para a instituição. Entretanto,
em junho de 1941, esteve no país dirigindo a turnê sul-americana da American Ballet
Caravan. A itinerância da companhia de dança pelo Rio de Janeiro e São Paulo é mais
um capítulo das ações da política da boa vizinhança, iniciada por Franklin Delano
Roosevelt, em 1933. O mandatário americano atribuiu a Nelson Rockefeller o papel
1.
2.
3.
Danielle Misura Nastari. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Daisy Valle Machado Peccinini. Professora livre-docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Fundou a Harvard Society for Contemporary Art, primeira associação universitária dedicada à arte
moderna nos Estados Unidos, frequentando os círculos de figuras como Dhiagilev, Roger Fry e
T.S.Eliot.
322
central do desenvolvimento dessa política na América Latina. Nelson ocupava o cargo estratégico de Coordenador de Assuntos Inter-Americanos, estando também profundamente vinculado ao sistema das artes nos Estados Unidos, em razão de raízes
familiares – sua mãe foi uma das fundadoras do MoMA, instituição que ele presidiu
de maio de 1939 até assumir o cargo no governo federal, em agosto de 1940.
Em sua segunda vinda ao Brasil, em viagem de quatro semanas, Kirstein teve
por objetivo garimpar obras que representassem a arte moderna no país; fora isso,
deveria sondar o posicionamento político da elite brasileira em relação à Alemanha
e os Estados Unidos. Visitou as cidades que formavam o eixo cultural e artístico do
país: Rio de Janeiro e São Paulo. As cartas, quase diárias, são de extremo valor para
o resgate do cenário histórico e artístico de ambas as cidades no início dos anos 1940.
Depoimentos surpreendentes, elas compreendem descrições do ambiente artístico
desses locais, bem como de ateliês e perfis psicológicos de artistas. Os relatos, vindos
de um olhar forasteiro, são preciosos por explicitar linhas fortes, difíceis de serem
percebidas por aqueles que estão inseridos no ambiente local.
A seguir, serão comentados trechos de cartas de Kirstein a Alfred Barr Jr., então diretor do MoMA, e Nelson Rockefeller, cujos conteúdos são ricos e expressivos
em relação às artes visuais. Busca-se com isso oferecer elementos para a constituição
de uma reflexão mais aprofundada desse momento histórico, já bastante investigado
por diversos historiadores brasileiros de relevo e ao qual se agrega essa voz norte-americana. Destaca-se o interesse por essas fontes documentais porque os Estados
Unidos eram geralmente excluídos das nossas relações culturais nesse período, em
que o contato com a França era mais próximo. A hegemonia francesa é amenizada
pela Segunda Guerra, que permite maior circulação da cultura americana no Brasil.
As cartas selecionadas foram organizadas cronologicamente, decisão tomada
com o intuito de elaborar um roteiro, que evidenciasse as experiências e percepções
de Kirstein no Brasil. Desde a viagem de 1941, esse olhar observador estava presente.
Por conta disso, seus relatos em relação ao ambiente artístico do Brasil, em 1942,
devem ser considerados como um desdobramento de sua primeira vinda ao país.
Kirstein tinha as credenciais de um olhar criterioso e adestrado, capaz de refletir criticamente sobre nossa produção artística. Proveniente da elite abastada e ilustrada da costa leste americana, repleta de colecionadores, patronesses e patronos de
museus de arte, era muito culto e de repertório cultural extenso. Homem de ambições
e práticas literárias, Kirstein utilizava palavras com muita sofisticação e perspicácia.
Observa-se que o material analisado neste estudo é resultado de um olhar treinado,
enviado ao Brasil para colher impressões do ambiente local. Deve-se também levar
em consideração seu usual estilo sarcástico, de zombaria, empregado habitualmente
com amigos – caso de ambos os destinatários das cartas aqui expostas.
Em relato a Nelson Rockefeller em junho de 1941, Kirstein narra um breve
panorama do que havia visto até então durante sua estada no Rio de Janeiro:
323
Cá entre nós – esse não é um lugar muito esperançoso. Culpe o clima que é melhor (pior) do que o da Califórnia. Eles
não têm energia nem engenhosidade e estão em um estado de
esnobismo primitivo, colonial e provinciano que incapacita
qualquer desenvolvimento social ou econômico rápido. Vargas é inquestionavelmente capacitado. Mas ele está rodeado
de tal bando de burocratas medíocres, cônscios de prestígio,
que é extraordinário para mim que as coisas sigam bem. Aqui
vai um exemplo. Eu trouxe um caixote de discos de alumínio-acetato para gravar música popular, dados por Archie [Archibald MacLeish, diretor da Biblioteca do Congresso]. Bem – a
entrada não foi permitida já que [os discos] não eram nem
equipamento teatral nem bagagem pessoal. Nós não pudemos
tirá-los do píer. Eu fui à nossa embaixada, que me enviou ao
GIP4 [sic, DIP em português] (e fraude é a palavra) Departamento para Ingressos e Propaganda [sic]. Lá nós tínhamos
cartas para o Dirigente do Rádio, do Turismo, da Boa Vontade
e só o diabo sabe para quem mais. Finalmente, obtivemos uma
ordem-mandato assinada pelo próprio Getúlio Vargas – para
a liberação de 200 discos virgens. Acredite ou não. [...] Na
verdade, se você quer realmente fazer algo pelo Brasil – em
relação às artes – leve todo brasileiro talentoso para fora do
país por um período tão longo quanto possível. Depois de algum tempo, deixe-os voltarem. Então eles podem fertilizar o
país com o que tiverem visto. Mas agora o gosto e o talento
são fracos e puramente derivados. O clima inclina ao relaxamento permanente e à apatia. Na maioria das vezes, à apatia.
A censura é muito rígida. Há pouquíssima crítica, construtiva
ou de qualquer outro tipo. Portinari está sendo arruinado por
uma combinação de patronato excessivo e falta de conteúdo
crítico – ele é o único pintor aqui. As pessoas verdadeiramente
inteligentes, e eu conheci muitas – estão muito infelizes. Todas elas querem sair. Não se pode culpá-las.
A descrição da extrema burocracia encontrada por Kirstein já
na chegada ao país explicita as estruturas atrasadas que dominavam a capital federal brasileira no início dos anos 1940.
Essa análise é reforçada pelas observações sobre a influência do clima no comportamento da população e sobre a falta
de referências artísticas estrangeiras que pudessem servir de
4.
A palavra gyp significa, na língua inglesa, fraude, engano ou trapaça.
324
parâmetro comparativo para a produção nacional, definindo
mais firmemente critérios de qualidade. O ambiente muito opressivo da ditadura também é percebido, e seus efeitos
sociais negativos são claramente notados.5 (grifos do autor,
tradução nossa)
Lincoln registrou em detalhes suas incursões para a aquisição de obras. Esses
textos explicitam como Lincoln conduziu o contato com os artistas, algumas vezes
não se comportando apenas como um comprador, mas envolvendo-se com eles. Além
da aquisição de obras, Kirstein também recebeu a tarefa de escrever um texto sobre
a história da arte latino-americana para o catálogo da mostra realizada pelo MoMA,
em 1943, na qual seria exibido seu novo acervo. Em seus esforços para compreender
o ambiente artístico brasileiro, ele teceu algumas considerações a Alfred Barr Jr.:
Estou agora preparado para escrever uma história da pintura no
Rio, que eu conheço tão bem como costumava conhecer a escola sienesa entre 1150 e 1402 nos antigos cursos do [professor
de Harvard George] Edgell. Porém não é tão interessante. Eu já
sei como e porque. Aqui vão algumas opiniões […] 1. Não há
pintura de verdade, pois as autodenominadas classes instruídas
são ainda compostas pelos filhos dos donos de terras, que sentem que trabalhar não é algo digno. Então se eles pintam (por
acaso) eles também fazem outras quatro ou cinco coisas como
paisagismo, transportar camarões ou voar. Eles creem no sistema inspiracional. Não é agradável fazer trabalhos manuais, por
exemplo: carvão [para desenho] é horrível na pele bem cuidada. Portinari é um gênio, pois é filho de um camponês italiano e
trabalha todos os dias. 2. Eles nunca viram nenhuma boa obra,
não têm qualquer critério de gosto e qualquer indivíduo que
pinte aqui tem grande talento – ou se ele teve uma exposição no
lobby do Palace Hotel é um grande pintor ou um grande gênio
brasileiro. O que há de bom aqui está sempre tendendo ao pior.
A pintura tem o valor associado ao seu tema. Uma paisagem
na qual fizemos um piquenique ou o rosto do pai. Naturezas-mortas são para se jantar cordeiros, mas via de regra não são
assim tão comestíveis. 3. O bom trabalho enquadra-se somente
em duas categorias: pessoas que tiveram contato com a Europa
e os primitivos. Há quase nenhum trabalho nativo como o dos
primitivos, exceto por temas locais serem a costumeira escola
5.
KIRSTEIN, L. [Carta] 26 jun. 1941, Rio de Janeiro [para] ROCKEFELLER, N., Washington. 2f.
325
de Janis, do encanto da precisão e do frescor idiótico (no bom
sentido), ou melhor, infantil. Sou totalmente a favor deles, mas
gosto de brincar com adultos também. Os artistas conscientes
não são apadrinhados. Eles ensinam boas crianças ou são burocratas menores. Creio que tudo é muito melhor em São Paulo.6
(grifos do autor, tradução nossa)
A organização da sociedade e a cultura da classe dominante brasileira de 1942
seriam certamente compreendidas como atrasadas e não produtivas por um americano
membro da classe dominante estadunidense, erigida sobre a ética protestante do empreendedorismo e trabalho árduo. A percepção da falta de referências externas para
a formação do gosto local, afetando a qualidade e a maturidade da produção artística
nacional foi reforçada, e a preferência pela empreendedora São Paulo se faz clara.
A intensa temporada de Kirstein na capital paulista durou apenas uma semana.
Tendo como anfitrião o vice-cônsul americano John Hubner, homem misterioso e
informado, que mantinha polícia secreta própria, Lincoln foi posto a par das questões
políticas enquanto explorou a cena artística local, auxiliado por Paulo Rossi Osir. A
visita, entretanto, foi conflituosa. Kirstein envolveu-se em um confronto com Oswald
de Andrade, que repercutiu no consulado americano e muito provavelmente impediu
que tivesse acesso a todos os artistas paulistas:
Minha compra de obras me envolveu em uma disputa com Oswald de Andrade, um escritor bem conhecido, comunista e um
líder da revolução de 1932. Seu filho é um pintor inferior. Eu não
comprei nenhum dos trabalhos desse homem. Andrade procurou
apresentar uma queixa contra mim no Consulado, para instigar
uma petição assinada por outros artistas, e ameaçou atirar em mim
de imediato. Expliquei a situação ao vice-cônsul, me desculpando
pelo problema que causara. Ele não se importou muito, dizendo
que Oswald de Andrade era bem conhecido como mau poeta e
mau atirador. O incidente causou alguns comentários locais subsequentes, mas terminou sem mais problemas.7 (tradução nossa)
Kirstein percebeu claramente as diferenças dos ambientes artísticos do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Após deixar o Rio de Janeiro e já em Buenos Aires, Kirstein
envia a Alfred Barr Jr. um último relato a respeito da capital federal brasileira:
6.
7.
KIRSTEIN, L. [Carta] 1 jun. 1942, Rio de Janeiro [para] BARR, A., Nova York. 3f.
KIRSTEIN, L. Memorandum of Trips to Latin America Illustrating Previously Stated Political Conclusions, May-October. 1941-1942, RAC, Series III, 4L, Box 101, Folder 966, p. 8. Este documento
difere dos outros apresentados por ser um relatório entregue ao governo americano, escrito em tom
sóbrio e formal.
326
A academia no Rio é pior que a Escola de Bonn. Há pouco na
tradição da cultura portuguesa que inspire as artes plásticas ou
visuais. A exceção são, é claro, as magníficas igrejas barrocas
na Bahia e a escultura de Minas Gerais. Mas isso não é nada
local. O Palácio de Belas Artes [sic] é uma desgraça. Há algumas pequenas pinturas francesas documentais bem bonitas de
um homem chamado Taunay, que veio em uma missão francesa em cerca de 1820. Mas elas estão em condição terrível
e ninguém cuida delas. O resto do que está exposto, que todo
mundo olha, são prêmios de salão, axilas marrons e partes
íntimas femininas abandonadas. Me pergunto quem costumava comprar pinturas de salão. Brasileiros. Não sou uma boa
pessoa para julgar pois odiei tudo, então – mas me parece que
há de pouca a nenhuma esperança para o país. [...] Não há
colecionadores particulares.8 (grifos do autor, tradução nossa)
A narrativa acima expõe a força que o academicismo e os salões de arte acadêmica ainda tinham no Rio de Janeiro, observando a falta de cuidado na conservação
dos acervos museológicos. A inexistência de colecionadores denota a ausência de
um mercado de arte e de um sistema das artes. Nesse período, o ambiente artístico
brasileiro ainda estava em estruturação, sendo o primeiro grande museu de arte estrangeira, o Museu de Arte de São Paulo, fundado em 1947, e os primeiros museus de
arte moderna, em São Paulo e no Rio de Janeiro, em 1948.
Portanto, os relatos de Lincoln Kirstein expõem o marasmo na sociedade local,
evidenciando a origem oligárquica das classes instruídas e da elite socioeconômica,
não havendo colecionadores e nem estímulo aos artistas; não se viam obras estrangeiras e a academia de arte ainda tinha papel importante. Esses relatos pragmáticos,
pontuados de ironia, apresentam uma leitura crua, desconfortável, porém interessante
e necessária, do Brasil e seu cenário artístico no início dos anos 1940.
referênciaS
DUBERMANN, Martin. The worlds of Lincoln Kirstein. Nova York: Alfred A. Knopf, 2007.
KANTOR, Sybil Gordon. Alfred H. Barr, Jr. and the intellectual origins of the Museum of
Modern Art. Cambridge: The MIT Press, 2002.
KIRSTEIN, L. [Carta] 26 jun. 1941, Rio de Janeiro [para] ROCKEFELLER, N., Washington. 2f.
Folder 965, Box 100, Series III 4L, Kirstein, Lincoln 1932-1966, Nelson Rockefeller Personal
Projects, Nelson A. Rockefeller Personal Papers, Rockefeller Archive Center. Descreve brevemente
8.
KIRSTEIN, L. [Carta] 20 jul. 1942, Buenos Aires [para] BARR, A., Nova York. 3f.
327
o ambiente político no Rio de Janeiro e a ineficiência dos burocratas, tratando da situação das artes
no país.
______. [Carta] 01 jun. 1942, Rio de Janeiro [para] BARR, A., Nova York. 3f. Lincoln Kirstein
Collection, Series I, Folder A, Museum of Modern Art Archives, New York. Descreve o que apreendeu sobre as dinâmicas do ambiente artístico brasileiro.
______. [Carta] 20 jul. 1942, Buenos Aires [para] BARR, A., Nova York. 3f. AHB [AAA 2169:851].
MoMA Archives - NY. Descreve parte da estrutura do sistema das artes brasileiro.
______. Memorandum of Trips to Latin America Illustrating Previously Stated Political Conclusions. May-October 1941-1942, RAC, Series III, 4L, Box 101, Folder 966, p. 8-9. Longo relatório
descrevendo os ambientes político e cultural no Brasil.
REICH, Cary. The life of Nelson A. Rockefeller: worlds to conquer, 1908-1958. Nova York: Doubleday, 1996.
TOTA, Antonio Pedro. O amigo americano: Nelson Rockefeller e o Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014.
documentoS de cultura e barbárie: a prancha 79
do atlaS mnemoSyne de warburg aproximada À
teSe vii de benjamin Sobre o conceito de hiStória
José bento ferreira1
Indicada por Didi-Huberman (2012, p. 211), uma aproximação entre a prancha
79 do Atlas Mnemosyne de Aby Warburg e a tese VII sobre o conceito de história de
Walter Benjamin abre caminho para uma “abertura antropológica da história da arte”
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 57). Benjamin propõe: “um documento de cultura
nunca deixa de ser também um documento de barbárie” (BENJAMIN, 1977, p. 254);
Warburg, por sua vez, na última prancha do Atlas, relaciona imagens artísticas e não
artísticas para demonstrar a cumplicidade “entre as hóstias e as balas” (SAMAIN,
2012, p. 70). A prancha 79, confeccionada em outubro de 1929, reúne imagens de
pinturas, recortes de jornais e fotografias relativas ao rito da eucaristia. Uma primeira
seção da prancha seria composta pelas reproduções das pinturas Missa de Bolsena
(Rafael, 1512), Esperança (Giotto, 1305) e Última comunhão de São Gerônimo (Botticelli, 1490). A pintura de Rafael mostra o papa Júlio II, patrono da reconstrução da
Basílica de São Pedro e da decoração da Capela Sistina, presente ao milagre do sangramento da hóstia que teria ocorrido no século XIII. A pintura de Giotto personifica
a virtude teológica da esperança como uma jovem alada e remete a prescrições paulinas (TITO, 2, p. 13) acerca da aspiração à ressurreição, representada pela coroação. A
pintura de Botticelli mostra Gerônimo moribundo, porém lúcido ao receber a hóstia.
O santo foi responsável pela versão latina da Bíblia e a pintura foi encomendada por
um seguidor do padre dominicano Girolamo (ou Gerônimo) Savonarola, polêmico
pregador florentino que advertia contra a iniquidade do poder terreno.
Essa primeira constelação de Warburg propõe a transubstanciação como um
problema relativo à imagem. Ainda que, ao contrário da eucaristia, o ícone seja des1.
José Bento Machado Ferreira. Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH USP), mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
330
provido da “prensença real e carnal” (MONDZAIN, 2013, p. 131), a crença na presença é tão imaginal quanto o poder de quem celebra. A comunhão constitui um corpo político e aquele que empunha a hóstia possui autoridade sobre os que comungam.
Imagens legitimam relações de parentesco e propagam o poder político em diversas
sociedades humanas. No cristianismo, a hóstia tornou-se um símbolo poderoso e um
símbolo de poder. A prancha 79 de Warburg sugere que, se a hóstia é uma espécie de
imagem, outras imagens podem exercer a função da hóstia, isto é, constituir um corpo
político ao ser consumidas coletivamente. Apesar da “tradição anicônica do protocristianismo” (MONDZAIN, 2013, p. 107), a figura do líder da Igreja Católica talvez
seja indissociável do culto às imagens. Não seria mera coincidência o fato de que a
relíquia da Cathedra Petri, com imagens dos trabalhos de Hércules e constelações
do zodíaco, apresentada na segunda seção da prancha, seja contemporânea do cisma
entre as igrejas do oriente e do ocidente. Enquanto uma Igreja Católica Romana nega
às imagens qualquer valor teológico e, portanto, aceita-as como ornamentos e recursos didáticos, a Igreja Ortodoxa Grega legitima os ícones como imagens sagradas e
repele todas as outras.
A terceira seção confrontaria não apenas as imagens japonesas de punição
corporal e haraquiri ao recorte com a notícia da assinatura do Tratado de Locarno
(1925), mas também a série de imagens de procissões eucarísticas em celebração do
Tratado do Latrão (1929), um entendimento entre a Itália de Mussolini e o papa Pio
XI a respeito do Vaticano. Nelas, transparece certa semelhança entre os comportamentos da massa devota e de manifestações fascistas. A sequência seguinte seriam
duas gravuras de “profanação da hóstia” produzidas no século XV e legitimadoras de
campanhas antissemitas. Completam a prancha recortes de jornal com um panorama
mundano supostamente em contraste com a espiritualidade das procissões e pinturas.
Didi-Huberman trata a prancha como antevisão do nazismo “quinze anos antes da
descoberta dos campos” devido às referências à cumplicidade entre o “pastor dos
católicos” e um “ditador fascista” (2012, p. 212). Para o filósofo francês e contumaz
exegeta da obra de Warburg, seria esse o teor da prancha 79 como um todo, p.
O caso desta reunião de imagens é tão emblemático quanto
transtornante: uma simples montagem [...] produz a anamnese
figurativa do laço entre um acontecimento político-religioso
da modernidade (o acordo) e um dogma teológico-político
de longa duração (a eucaristia); mas também entre um documento de cultura (Rafael ilustrando no Vaticano o dogma em
questão) e um documento da barbárie (o Vaticano entrando
complacentemente em relação com uma ditadura fascista).2
2.
Didi-Huberman, 2012: 212.
331
Nesses termos, o exame da prancha 79 leva a uma conclusão semelhante à da
tese VII de Walter Benjamin no texto Sobre o conceito de história (1940), de que a
barbárie está documentada em cada documento da cultura. Talvez seja esta uma consideração necessária para o projeto de uma “história da arte aberta para os problemas
antropológicos” (id., 2013, p. 69). A ideia de uma sobrevivência das imagens, na
qual se assenta “um novo tipo de iconologia” (BELTING, 2006, p. 34), pressupõe a
reciprocidade entre documentos de cultura e barbárie demonstrada pela tese VII de
Walter Benjamin.
O autor aponta no “historiador do historicismo” um “procedimento de empatia” que seria o avesso do “materialismo histórico” (BENJAMIN, 1977, p. 254). A
“identificação com os vencedores” nasceria da acedia, “indolência do coração, melancolia” (LÖWY, 2005, p. 71). Essa, por sua vez, está no coração de um dos aspectos da
descrição de Bürger de um “outro conceito” (BÜRGER, 2008, p. 124) de obra de arte
depois das vanguardas. A própria contradição entre cultura e barbárie remonta à leitura de Bürger sobre o conceito marxista de ideologia, que exige da crítica o reconhecimento do “momento de verdade” (id., p. 31) da religião e, por extensão, das imagens
e obras de arte. Bürger encontra um procedimento vanguardista na figura da alegoria
descrita em Origem do drama trágico alemão (1925), p. “Benjamin interpreta a atividade do alegorista como expressão da melancolia” (id., p. 141). Seria a melancolia
do alegorista o momento de verdade da melancolia do historiador do historicismo?
Por causa da acedia ou melancolia, o historiador “desiste de se apoderar da
verdadeira imagem histórica” (BENJAMIN, 1977, p. 254). O trabalho de arte alegórica não equivale necessariamente ao materialismo histórico, mas se reconhece na
consciência de sua impossibilidade:
O que Benjamin designa aqui como melancolia é uma fixação
no singular, que tem de permanecer insatisfatória porque não
lhe corresponde nenhum dos conceitos gerais de conformação
da realidade. O devotamento ao sempre singular é destituído
de esperança porque está vinculado à consciência de que a realidade escapa ao indivíduo como realidade a ser conformada.3
A melancolia do historiador do historicismo deriva da identificação afetiva
com os vencedores, enquanto a melancolia do alegorista nasce do desespero: “parece
que o desespero não nasce da acídia... a acídia nasce do desespero” (AQUINO, 2004,
p. 271), isto é, da consciência de que o fragmento extraído da totalidade da vida é
apenas um material, de que a verdadeira imagem é apenas uma imagem. Para dialogar com a prancha 79 de Warburg, que expõe a grisaille de Giotto com a alegoria
da esperança em meio às pinturas da Missa de Bolsena e da Última comunhão de
3.
Apud Bürger, 2008, p. 144.
332
São Gerônimo, considerando aquele que comunga como pretenso candidato ao Céu
enquanto se legitima a violência contra todos os outros (conforme as gravuras com
cenas de profanação da hóstia atribuída a judeus), o vício a ser confrontado com a virtude da esperança – spes – não seria apenas o desespero – desperatio – mas também
a infidelidade – infidelitas, a falta de fé: “a esperança, a qual se opõe ao desespero,
parece proceder da consideração dos benefícios divinos e principalmente da Encarnação” (AQUINO, 2004, p. 271).
Giotto representa a infidelidade como a adoração da falsa imagem (idolatria).
A alegoria volta-se para o ídolo, uma imagem pagã, exposta às chamas do inferno em
contato com as quais “a imagem arde” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 208), apesar da
verdade ofertada, à qual ela volta as costas. Por sua vez, a alegoria da esperança alça
voo como uma Nice grega em direção à coroa, representação da recepção na Cidade
de Deus, mas também, e por isso mesmo, representação de soberania e autoridade
política. Na lógica de Warburg, a esperança representa a adesão a uma sociedade
política potencialmente fascista. O equivalente teológico-político da falta de fé nos
benefícios dessa comunhão seria a adoração de falsos deuses, o paganismo e o culto
às imagens. Infiel não é o ateu, mas o adepto de outra religião e outro povo, seja ele
judeu, estrangeiro, mouro, africano ou selvagem. Vício e virtude se alternam, tanto
quanto cultura e barbárie.
Como falar sobre o valor de uma obra de arte se a barbárie está documentada
nela? A resposta está no reconhecimento de que a imagem verdadeira é uma miragem,
uma vez que as relações humanas são imaginais: “a verdade é imagem: não existe
imagem da verdade” (MONDZAIN, 2013, p. 284). Nosso apreço pelos “bens culturais” (BENJAMIN, 1977, p. 254) é melancólico, uma vez que corresponde à nossa
identificação afetiva com os vencedores. Há forte convergência entre a iconologia
de Warburg como investigação acerca das “sobrevivências” (DIDI-HUBERMAN,
2013, p. 135) e a formulação de Benjamin sobre a tarefa do materialismo histórico
como “escovar a história a contrapelo” (1977, p. 254), p.
A reflexão de Benjamin trata também do outro lado (o bárbaro) da medalha brilhante e dourada da cultura, esse troféu que
passa de vencedor para vencedor, como o candelabro de sete
braços, o menorá do Templo de Jerusalém, no mesmo alto-relevo do Arco de Tito. Em vez de opor a cultura (ou a civilização) e a barbárie como dois polos que se excluem mutuamente, ou como etapas diferentes da evolução histórica – dois
leitmotive clássicos da filosofia do Iluminismo – Benjamin os
apresenta dialeticamente como uma unidade contraditória.4
4.
Apud Löwy, 2005, p. 75.
333
Warburg não foi um pensador marxista, mas a perspectiva antropológica politizou seu olhar para a história da arte, de modo que, ao considerar imagens como
sobrevivências, a iconologia reconstitui o “ponto de vista dos vencidos” (LÖWY,
2005, p. 79). Mais do que um produto individual do artista, a imagem é o resultado
da experiência histórica compartilhada (assim como o mito): “não deve sua existência apenas aos esforços dos grandes gênios que os criaram, mas também à corveia
anônima dos seus contemporâneos” (BENJAMIN, 1977, p. 254).
Embora Benjamin pareça ter pensado mais na atualização da barbárie por trás
da suposta cultura do que no contrário, a exegese da iconologia promovida por Didi-Huberman provoca uma releitura da tese VII, p.
Isto é tão certo que inclusive a recíproca é certa, p. não deveríamos reconhecer em cada documento da barbárie, algo
assim como um documento da cultura que mostra não a história propriamente dita, mas uma possibilidade de arqueologia
crítica e dialética?5
Não apenas a consideração acerca de imagens não artísticas, mas também
certas práticas artísticas de apropriação e ativismo podem ser associadas à inversão
dialética da tese VII.
referênciaS
AQUINO, Tomás de. Suma teológica, v.5, Loyola, 2004.
BENJAMIN, Walter. Iluminationen, Suhrkamp, 1977.
BELTING, Hans. Imagem, mídia e corpo. In GHREBH, v.1, n.8, CISC, 2006.
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda, Cosacnaify, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente, Contraponto, 2013.
______. Quando as imagens tocam o real. In, p. Pós v.2, n.4, UFMG, 2012.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin, p. aviso de incêndio, Boitempo, 2005.
MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia, Contraponto, 2013.
SAMAIN, Étienne. Como pensam as imagens, Editora da Unicamp, 2012.
5.
Apud Didi-Huberman, 2012, p. 211.
danilo di prete no braSil: Sobre relatoS de vida,
a criação da bienal de São paulo e o
arquivo da família
renata Dias ferraretto Moura roCCo1
O nome do artista italiano radicado em São Paulo Danilo Di Prete (Pisa, 1911São Paulo, 1985) é atualmente pouco conhecido no Brasil. Geralmente são estudiosos da Bienal de São Paulo que se deparam com as diversas polêmicas que o envolveram, quando das suas sucessivas legitimações dentro da mostra e, sobretudo, quando
conquistou o desejado prêmio de pintor nacional logo na primeira edição, em 1951.
As críticas são inúmeras: o fato de um italiano pouco conhecido no meio conquistar um prêmio que deveria ser endereçado a um brasileiro já consagrado; a pintura
vencedora, Limões (1951, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, MAC USP), não ter nada que representasse as linguagens mais atuais naquele
momento no Brasil; e a suspeita de que o fundador da mostra, Francisco Matarazzo
Sobrinho, o Ciccillo, tivesse conversado com os membros brasileiros do júri para que
esse prêmio fosse concedido a ele. Esse último ponto especificamente fica ainda mais
problemático se são levados em consideração os testemunhos que Di Prete forneceu
a partir dos anos 1970, afirmando que em dezembro de 1949, havia sugerido a Ciccillo a realização de uma mostra em São Paulo que poderia se chamar “Brasiliana” ou
“Bienal”, executada nos mesmos moldes daquelas que ele conhecia da sua vivência
em território italiano. Com esses depoimentos, se tornaria mais latente no meio artístico, a opinião de que o artista havia sido apadrinhado por Ciccillo em decorrência
de sua excepcional contribuição com a empreitada da Bienal de São Paulo, a qual
projetou Ciccillo em uma esfera cultural e política ainda mais largas do que as que
tinha conquistado até então com seus empreendimentos culturais.
À questão dos depoimentos de Di Prete, voltaremos adiante. O que interessa
por ora é ressaltar que em 1948 o antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM
1.
Renata Dias Ferraretto Moura Rocco. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
336
SP), criado por Ciccillo, já tinha o plano de realizar um festival como o da Bienal de
Veneza no ano de 1951 ou em 1954 – quando se comemoraria o IV Centenário da
Cidade de São Paulo –, conforme divulgado pelo Correio Paulistano (MARTINS,
1948). Tal projeto, no entanto, não é consumado até 1950, muito provavelmente em
decorrência das atividades empresariais de Ciccillo e de suas demais iniciativas culturais como a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em 1949, e do antigo MAM
SP, em 1948. Assim, é somente no ano de 1950 que os planos de Ciccillo tomam
corpo e ele consegue apoio institucional e prêmios em dinheiro para que a Bienal de
São Paulo ocorresse em outubro do ano seguinte2.
Com base no cotejamento entre os documentos encontrados no Arquivo Wanda Svevo/Fundação Bienal de São Paulo, no Arquivo da Bienal de Veneza e nas
informações detalhadas relatadas por Di Prete, conclui-se que a ação do artista com
relação à Bienal de São Paulo se deu efetivamente em duas frentes: a pressão que
fez sob Ciccillo para que realizasse a mostra, valendo-se do argumento de que Pietro
Maria Bardi do Museu de Arte de São Paulo (MASP), com quem Ciccillo tinha uma
rixa declarada, também estava disposto a fazê-la, acelerando, dessa forma, o início de
sua implantação; e na montagem e execução da mostra. Há ainda outros pontos certos
de colaboração3, que perpassam essa segunda frente: a recepção da delegação italiana
quando essa chegou ao Brasil; sua contribuição com a elaboração do regulamento da
primeira edição, bem como do seu primeiro orçamento.
Levando-se esses aspectos em consideração, não é objetivo deste artigo encerrar em Ciccillo ou Di Prete como detentor primeiro da ideia de uma Bienal de
São Paulo, haja vista a atuação conjunta não somente desses dois atores, mas de
todos que deixaram seu nome marcado na primeira edição da mostra, como Arturo
Profili, Yolanda Penteado, Lourival Gomes Machado, entre outros. A Bienal de São
Paulo nasceu da soma desses esforços, mas, para cada um desses personagens, havia
parte de planos e expectativas bem específicos e distintos: se no caso de Ciccillo,
por exemplo, ela entrava na esteira de conquistar maior projeção e espaço político
(basta que pensemos na sua presidência da Comissão do IV Centenário da Cidade de
São Paulo em 1954, além de maior prestígio em território norte-americano em função de sua relação com Nelson Rockefeller); no caso de Di Prete, ela fazia parte de
sua efetiva integração ao meio artístico brasileiro, a qual não havia se concretizado
desde sua imigração ao Brasil em 1946. Dessa forma, ao participar do processo de
2.
3.
É fundamental ressaltar que Ciccillo queria ter um apoio de caráter oficial da Bienal de Veneza para
lançar sua Bienal de São Paulo, algo que não logra em obter, apesar de seus esforços. Sobre essa
questão, veja-se artigo de minha autoria: “Considerações sobre a I Bienal de São Paulo: uma correspondência de Marco Valsecchi a Rodolfo Pallucchini”, Revista de História da Arte e Arqueologia,
RHAA, N.25 [no prelo].
Como atestam depoimentos de Di Prete e outros artistas como Maria Bonomi (feito à autora em
15-08-2015, São Paulo), Aldemir Martins (no Arquivo Wanda Svevo/Fundação Bienal de São Paulo
e no Arquivo do Museu da Imagem e do Som), Hermelindo Fiaminghi e Maurício Nogueira Lima
(ambos no Arquivo do Museu da Imagem e do Som).
337
criação de uma mostra que lhe era, de certa forma, familiar, mas totalmente inédita
nas Américas, ele obteria notoriedade, além de ser um passaporte para sua inserção
permanente no meio artístico. Com efeito, seu vínculo com a mostra seria sempre
muito próximo já que contabilizou: participação em treze edições; conquista de dois
prêmios de pintor nacional (1a edição, 1951, e 8a edição, 1965); duas salas individuais
especiais (6a edição, 1961, e 9a, em 1967); fez a capa do catálogo da 2a edição, 1953;
ganhou o concurso do cartaz da 7a edição, 1963; além de ter sido prêmio aquisição
em algumas edições.
A questão é que, independentemente de tais legitimações, o artista se ressentia
por não obter do meio artístico paulista um reconhecimento de caráter oficial a respeito de sua contribuição na criação da mostra, sobretudo por que Ciccillo e Yolanda
nunca lhe deram crédito. A busca de Di Prete por tal reconhecimento começaria a
ocorrer nos anos 1970, fundamentalmente a partir de quatro testemunhos: o primeiro
fornecido em 1o. setembro de 1976 – e que se encontrava inicialmente na Fundação
Matarazzo – hoje em posse da sua família e cuja transcrição encontra-se no Arquivo
Wanda Svevo/Fundação Bienal de São Paulo; o segundo, de 1978, para a Lisbeth Rebollo Gonçalves – no Arquivo Multimeios Centro Cultural São Paulo; o terceiro, para
Aracy Amaral, em 29 de janeiro de 1979 – cujos apontamentos estão na biblioteca
da Pinacoteca do Estado de São Paulo; e o quarto – no Arquivo Multimeios Centro
Cultural São Paulo –, prestado no âmbito do ciclo de conferências do 30o aniversário
do MAM SP, em 09 de outubro de 1979. Salvo algumas exceções e o fato dos depoimentos se darem a partir de demandas distintas, tratam-se de testemunhos bastante
homogêneos com relação às informações prestadas além de complementares no que
concerne aos eventos relatados, que vão desde sua formação como pintor em Viareggio, participação em mostras de peso realizadas sob o organizado sistema expositivo
do Regime Fascista, até sua imigração a São Paulo, suas atividades no campo da publicidade e, finalmente, a relação com Ciccillo e a ideia da criação da Bienal de São
Paulo, além da sua intensa presença em sua execução.
Mais do que esmiuçá-los4, propomos que se reflita sobre os motivos que o
impulsionaram buscar essa “certificação”, para além do já mencionado. Em primeiro
lugar, deve-se ter presente o peso do ambiente artístico em que ele se formou, pois
na Itália a prática de se deixar registrado o legado de um artista em formato de biografia, era importantíssimo e deitava raízes nas Vidas, de Giorgio Vasari. Impulsionados por essa tradição, alguns dos mais ilustres artistas modernos italianos fazem
esse esforço de forma autobiográfica5, buscando esclarecer e marcar seus percursos
artísticos. Nesse sentido, podemos citar algumas publicações: La mia Vita, 1943, de
4.
5.
Tarefa que foi detidamente realizada para a pesquisa de doutorado em andamento.
Assume-se o conceito de Philippe Lejeune, em que diz que a autobiografia é um gênero literário que,
por seu próprio conteúdo, melhor marca a confusão entre autor e pessoa, confusão em que se funda
toda a prática e a problemática da literatura ocidental desde o fim do século XVIII. Para o autor, o
tema profundo da autobiografia é o nome próprio, e nela se busca não o “efeito do real”, mas a sua
338
Carlo Carrà; Tutta la Vita di un Pittore, 1946, e Tempo de “L’Effort Moderne”: La
vita di un pittore, 1968, ambos de Gino Severini; Memorie della mia vita, de Giorgio
de Chirico, 1945; entre várias outras.
Di Prete muito provavelmente tinha algum conhecimento dessas publicações
e mais detidamente aquelas de Severini e de Carrà, uma vez que, do primeiro, contava com Ragionamenti sulle arti figurative, 1936, em sua biblioteca (conservada
pela família), o qual não é um livro autobiográfico, mas uma coletânea de artigos;
quanto ao segundo, certamente lhe era mais familiar, seja por que a partir de 1926
passou a viver entre Milão e Forti dei Marmi, cidade vizinha a Viareggio, seja porque
Di Prete chega a montar salas suas em algumas mostras na região6. É fundamental
lembrar ainda que Carrà gozava de enorme notoriedade na Itália, tendo sido nomeado
Professor na Accademia di Brera, em 1941, e recebido uma vasta atenção da crítica.
Chegando ao Brasil, portanto, Di Prete retinha na lembrança a ideia de artista moderno encarnada, sobretudo, por Carrà e de suas festejadas soluções plásticas, de modo
que acaba por incorporá-las em suas próprias criações. O que ele não concretiza, tal
como Carrà, é sua autobiografia, algo que faz apenas de forma oral, como um “relato
de vida”, para usar um termo empregado por Lejeune (2014, p. 95). É possível que
Di Prete não se sentisse à vontade em realizá-lo de modo formal, seguramente porque
lhe seria dispendioso adentrar nesse tipo de produção, a qual mesmo parecendo ser
um breve registro, era mais profunda do que isso. Basta que voltemos aos artistas
italianos citados, os quais atuavam com amplo reconhecimento também nas funções
de teóricos e críticos de arte. Contudo, ainda que Di Prete não tenha materializado sua
autobiografia, não significa que não tivesse clareza de seus meandros. Pelo contrário,
seus depoimentos sistemáticos nitidamente espelham o conhecimento que tinha dessa
consolidada prática na Itália, a qual ele procura replicar de maneira oral.
Voltando às autobiografias dos italianos mencionadas, elas se mostram muito
válidas em dois sentidos: como legado fundamental para entendimento de suas trajetórias e produções, além dos acontecimentos da época; e demonstram como eles buscaram “construir” uma imagem para a posterioridade. Não obstante, cada um tenha
tido suas razões para fazê-lo. Pierre Bourdieu (1996, pp. 74-76) aponta que há uma
preocupação subjacente a todos aqueles que fazem o esforço biográfico ou autobiográfico que é o de organizar a vida como uma história, em que os acontecimentos se
sucedem de forma cronológica e lógica com o intuito de dar sentido e coerência à
própria existência. Ainda que tal ideal seja inatingível, aqueles que fazem essa operação, acabam se tornando ideólogos da própria vida, selecionando os acontecimentos
que consideram mais significativos para compor uma certa narrativa. Para Jerome
Bruner (2001, p. 29), as autobiografias têm a função de nos apresentar aos outros (e
a nós), sendo que nesse processo, para assegurar individualidade, foca-se no que é
6.
imagem. LEJEUNE, Philippe: O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à internet. Jovita Maria G.
Noronha (org.). 2a. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, pp. 39-40; 43.
Depoimento para Lisbeth Rebollo, 1978.
339
excepcional em nossas vidas, marcando uma “virada” [turning point], que é composta por aqueles episódios que o narrador/protagonista atribui uma mudança crucial
em sua história. Micaela Maftei (2013, p. 03) afirma que cada vez que uma história
real é recontada, uma camada é adicionada formando uma nova narrativa, sendo que
geralmente a pessoa que escreve, procura ser verdadeira em relação a suas memórias,
mas, ainda assim, escrever com “verdade” pode tomar diferentes formas dependendo
das intenções e crenças. É justamente nesse ponto que devemos nos deter, dado que
Di Prete procurava, ao longo de seus discursos, dar respaldo às suas “verdades”: ele
mostrava catálogos de exposições em que participou na Itália; sugeria que se conversasse com os nomes que ele citava; e evocava os materiais “evidências” que guardava
em sua casa. De fato, a consulta realizada aos materiais mencionados – atualmente
conservados por sua filha, Giuliana Di Prete Campari em arquivo (ainda que não formalizado como tal) – é muito elucidativa, pois dá a medida do quanto suas afirmações
podem ser corroboradas. Há catálogos de exposições que participou, certificados de
prêmios, artigos de jornais comprobatórios, cartas e fotografias. Contudo, o que não
se consegue atestar é a paternidade da ideia da Bienal de São Paulo, que seria, digamos, o turning point de seus testemunhos. Evidentemente, sua conversa sobre o
assunto com Ciccillo não foi registrada e os personagens envolvidos não deixaram
nada em vida que a confirmasse.
Se conjeturarmos sobre os objetivos de Di Prete com seus depoimentos, fica
patente que apesar do foco ser a questão da criação da Bienal de São Paulo, havia
também o intuito de dar sentido e valor à sua história no Brasil – algo que até então
não havia ocorrido de maneira consistente –, demarcando tudo o que considerava
criação e contribuição suas. Em poucas palavras, procurava dar legitimidade a sua
presença, atrelando-a a eventos seminais para arte no Brasil, que marcariam a história para sempre. Pode-se tranquilamente sobrepor aos objetivos dos testemunhos
(ou relatos de vida) de Di Prete, as afirmações feitas pela estudiosa Teresa Mendes
Flores (p. 03), de que a escrita autobiográfica é um gesto emancipatório, uma tentativa de resgate da própria vida e de não deixar que outros lhe venham impor um
sentido definitivo ou que dela se apoderem. Ela completa explicando que se trata de
um gesto de poder, às vezes de revolta, pois é um texto que mede forças como um
ato performativo de afirmação de si, mas que, por outro lado, é algo marcado pela
incompletude, porque, acima de tudo, a vida o excede sempre. De fato, a vida excede
discursos que procurem delimitar certos eventos, uma vez que não há veredito que
não possa ser contestado, ou melhor, ser lido por meio de outros pontos de vista. Di
Prete provavelmente não previu isso e sua obra e atuação têm sido mal interpretadas e
postas à prova, muito em função de seus depoimentos, análogos aos escritos autobiográficos. Todavia, revisitá-los à luz de seu arquivo, recolhido sistematicamente por
ele ao longo de sua vida, somados aos produtos do contexto (catálogos, artigos, cartas
e fotografias) é um convite a se despojar de verdades cristalizadas, incluindo figuras
340
que, por uma série de conjunturas explicáveis ou não, estão à margem da tradicional
história da arte no Brasil.
referênciaS
BOURDIEU, Pierre. A Ilusão biográfica. In: Razões práticas: sobre a teoria da razão. Campinas:
Papyrus, 1996.
BRUNER, Jerome. Self-making and world-making. In: BROCKMEIER, Jens; CARBAUGH,
Donal (eds.). Narrative and Identity Studies in Autobiography, Self and Culture. Amsterdã &
Filadélfia: John Benjamins Publishing Company, 2001.
FLORES, Teresa Mendes. A fixação da ficção: fotografia, autorretrato e autobiografia. Acesso disponível em: https://www.academia.edu/1504725/A_fixação_da_ficção_fotografia_auto-retrato_e_
autobiografia.
LEJEUNE, Philippe: O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à internet. Jovita Maria G. Noronha
(org.). 2a. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
MAFTEI, Micaela. Introduction. In: ______. The fiction of autobiography: reading and writing
identity. Nova Iorque; Londres: Bloomsbury Publishing, 2013.
MARTINS, Ibiapaba. Duas entrevistas oportunas. In: Correio Paulistano. São Paulo, 14 de novembro de 1948.
reflexõeS Sobre deSlocamentoS e metamorfoSeS
do moleque cipó na obra de mário gruber
Paulo MarConDes torres filho1
Daisy Valle MaChaDo PeCCinini2
Pintor, desenhista, gravurista e muralista, Mário Gruber Correia (1927-2011) deixou um legado inestimável através da sua arte sensível e contundente, formada por trabalhos que foram, quase sempre, figurativos e focando a figura humana; e é nesse contexto
que emerge a do moleque, um crioulo, com traços sensuais, na pintura, em 1947.
De fato, Gruber foi um talento precoce. Iniciou-se como autodidata na pintura
em 1943, mudou para São Paulo em 1946, ganhando, no ano seguinte, o primeiro
prêmio de pintura na histórica exposição do Grupo 19 Pintores. Estudou gravura com
Poty Lazarotto (1924-1998) e trabalhou com os pintores Di Cavalcanti (1897-1976),
em São Paulo, em 1948, e com Cândido Portinari (1903-1962), em Paris, em 1951,
auxiliando na execução de murais.
Em 1949, recebeu bolsa de estudos do governo da França, estudando na École
Nationale Supérieure des Beaux-Arts como aluno do gravador Édouard Goerg (18931969) em técnica da gravura. Voltou para o Brasil em 1951, quando fundou em Santos, sua cidade natal, o Clube da Gravura, que mais tarde se chamaria Clube de Arte.
Nos anos 1950, Gruber foi militante do Partido Comunista nas atividades sindicais
ligadas ao porto santista. Isso fez com que ele percorresse a cidade e os arredores,
mostrando, posteriormente, através de sua arte: locais de encontro, de moradia, de
lazer dos trabalhadores; fazendo-o como que através dos olhos de um menino que
interage ou flana entre eles.
O Moleque Cipó é um dos primeiros personagens criados, tendo sua origem
nos garotos de praia que conviveram consigo na meninice. Eram de origem humilde,
embora Gruber fosse de classe média, conviviam na praia, o espaço comum demo1.
2.
Paulo Marcondes Torres Filho. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em
Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
Daisy Valle Machado Peccinini. Professora livre-docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
342
crático, abolindo as diferenças sociais. Gruber percebia que alguns desses meninos
tinham iniciativa e criatividade para buscar, na natureza, formas de atender a sobrevivência, usando de flexibilidade, resistência e resiliência típicas da fibra do cipó, daí
o personagem Moleque Cipó (Figura 1). O carnaval, como festa popular, foi bastante
estudado por Gruber e utilizado como razão para que a inventividade do Moleque
Cipó permitisse alternativas de fantasia. Essas fantasias estarão ligadas à relação do
moleque com o seu corpo, a iniciar pela cabeça onde usará chapéus: feitos com papel
de jornal, elementos de lata como panelas, frigideiras e bules e ainda fibras de distintos materiais. Ao mesmo tempo, observamos que o menino tem os pés descalços.
Cabe a observação feita por Burke, quando comenta:
[...] no século dezenove, no Brasil, a mistura entre razões climáticas e sociais faziam com que chapéus de palha fossem
baratos enquanto que sapatos de couro fossem relativamente caros. Desta forma, sabia-se de que afro-brasileiros compravam sapatos como símbolo de status, mas preferiam não
utilizá-los, andando nas ruas carregando os sapatos em suas
mãos... (BURKE, 2001, p. 188)
Figura 1: Menino cipó, c.1952
Técnica mista s/tela, 30 x 20cm (cid e v) (coleção privada)
Gruber, através do personagem Moleque Cipó, procura estudar a psique do brasileiro e suas mutações pela transformação da política econômico-social no Brasil e no
mundo. Desenvolve uma série de trabalhos mostrando o moleque se divertindo e brincando. A maioria das brincadeiras, ocorrendo a céu aberto, relacionam-se às manifestações populares típicas da vida brasileira. Através de seus retratos, o moleque mostra seus
343
estados de ânimo, na medida em que encontra dificuldades. Nestas situações, aparentará
postura temerosa, desafiadora, triste, melancólica e oprimida, além de alegre e curiosa.
O Menino com carrinho de rolimã (1951) representa o Moleque segurando um
carrinho de rolimã. Gruber trata o personagem com realismo, pela forma como o menino
estuda o objeto, relacionando suas características físicas com o desempenho futuro. Usar
o carrinho de rolimã era uma brincadeira, tanto quanto era o caminhar pela praia e outros
lugares da misteriosa cidade de Santos, como um flâneur, como coloca Gruber relatando
os próprios gostos pessoais, no filme documentário e que eu tive a oportunidade de testemunhar no processo de filmagem do curta, “Em volta do cavalete” (Sócrates, 2006/2014).
O carrinho de rolimã se protagoniza, relacionado ao Moleque Cipó, como meio
de locomoção e divertimento, como em Rampa (c.1963 Gravura PA). Na percepção do
artista, esta composição caracteriza o lado fácil da vida, através do mero uso da força
da gravidade que faz o carrinho de rolimã com moleques despencar ladeira abaixo.
Existe, entretanto, uma lógica implícita e sutil: a preocupação do esforço necessário
para o retorno, subir a rampa, após estar no ponto mais baixo. Cipó n°3, de 1968, dá
continuidade a esta questão, quando o moleque faz força para empurrar o carrinho de
rolimã que carrega uma figura estranha, rampa acima. Trata-se da cabeça gigantesca de
um boneco, com boca e olhos costurados e de aparência espinhuda, aparentando ser um
fardo pesado. Há uma clara manifestação do fantástico envolvido na situação imaginada, representando o momento político do país, quando ressoa a perda das liberdades
individuais e civis com o AI-5. Do inconsciente do moleque, Gruber está materializando a criação do personagem Astolfo, alter ego do Moleque Cipó.
Em Carnaval (1984), os típicos fantasiados gruberianos atuam para carregar
estandartes ou formar pirâmide humana. O cenário é o da Areia Branca, local entre
Santos e São Vicente, frequentado por Gruber quando militante político. O local era
moradia de muitos estivadores do Porto de Santos. No primeiro plano, um elemento
estranho se apresenta dotado de rodinhas, como um carrinho e empurrado por um Moleque. Trata-se de um pé de sapato gigante, de sola plataforma, moda nas décadas de
1970 e 1980. Calçado cobiçado pelos moleques desejosos de exibir sua ascensão de
classe social, comparando com aqueles representados na década de 1950 e que, com
frequência, tinham os pés descalços. É uma clássica manifestação do pós-modernismo,
com a superposição de símbolos variados, criados pelo artista formando uma bricollage ou um pastiche cultural, de acordo com o pensamento de Jameson:
[...] o mundo hoje se transformou em uma mera imagem de
si próprio, no qual “os produtores culturais não podem mais
voltar a lugar algum a não ser o passado: a imitação de estilos
mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu imaginário de uma cultura que agora se tornou global.”
O pós-moderno faz de seu presente um pastiche cultural [...]
(JAMESON, 1989, p. 45)
344
Figura 2: Multidão com Anjos, 1989
Óleo sobre tela colada/madeira, 21 x 28 cm (cie) (coleção privada)
Em Multidão com Anjos (Figura 2), de 1989, há o mesmo cenário do Bairro da
Areia Branca, com vários dos personagens criados por Gruber. No céu, voam, com
suas asas metálicas, Anjos da Renascença Brasileira, compartilhando-o com o astronauta, que é o Astolfo. Os Anjos da Renascença Brasileira, uma das metamorfoses
do moleque, tiveram seu início em 1969, após o Ato institucional N°5 (AI-5). Não se
trata de uma evocação mística ou religiosa do artista, mas uma ironia crítica aos que
impunham com força de regime militar à época. Gruber começa a, gradativamente,
substituir o carrinho que há anos serviu como elemento de movimentação do moleque. Quando o moleque vai se transformando em fantasiado ou Anjo da Renascença
Brasileira, o carrinho está sendo substituído por tartarugas.
Gruber costumava relembrar o período em que morou em Paris, no pós-guerra, com poucos recursos, vivendo no bairro proletário de Puteaux, próximo ao atual
centro financeiro de Paris, La Défense. Costumava de lá caminhar até o centro, onde
estavam as principais avenidas e galerias da cidade, como um verdadeiro flanêur.
Há grande apreciação de Gruber pelas ideias de Benjamin, principalmente com
relação ao flâneur, quando cita personagem criado por Baudelaire descrevendo o
pintor da vida moderna:
O pedestre sabia ostentar em certas condições sua ociosidade
provocativamente. Por algum tempo [...] foi de bom-tom levar
tartarugas e passear nas galerias. De bom grado, o flâneur deixava que elas lhes prescrevessem o ritmo de caminhar. (BENJAMIN, 1989, p.10/24)
Neste mesmo ano, desenha S/T (da série Os Noivas), 1990. Podemos verificar
cinco personagens masculinos, todos usando véus de noiva, que é típico da série, sendo que um deles utiliza, também, gravata que foi introduzido, desde o início de sua
atividade artística, em seus trabalhos, com significados variados. Há aqui um claro
345
momento de transição entre o realismo do carrinho de rolimã para o fantástico, caracterizado pela imagem da tartaruga. O flâneur está caracterizado em Os Noivas, que
por sua vez, se abandona na multidão, como citava Baudelaire (1996) descrevendo
sobre o pintor da vida moderna:
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como
a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado,
é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de
casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se reencontre;
ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto
ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos
independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não
pode definir senão toscamente... (BAUDELAIRE, 1996, p. 21)
Profeta dos anzóis III (1993) mostra um Moleque Fantasiado envelhecido e
que no lugar das lantejoulas se reveste inteiramente com anzóis. É um elemento brilhante e vistoso, ao mesmo tempo, que pode com facilidade enganchar em elementos
desconhecidos. O anzol na obra de Gruber foi utilizado em diversas ocasiões desde o
começo dos anos 70 e com duplo sentido: o de que permite pegar o peixe que alimenta o homem e o que serve para retenção e limitação de movimentos. Assunto que foi
grande preocupação de Gruber, principalmente, durante os anos de chumbo na história da ditadura no país. No momento pós-Collor ficamos sem direção. O Fantasiado
está montado sobre o casco de uma tartaruga, ambos confrontando o observador.
Em uma visão retrospectiva da singeleza da uni direção que o moleque imprimia ao
carrinho de rolimã, percebemos a complexidade que o homem contemporâneo pode
enveredar no que tange aos rumos da vida.
Na Série Burro #1, Série Burro #2, 2006 (Figura 3), pendant em que Gruber
procura representar brasileiros típicos do nordeste, sem grandes ilações políticas, a
não ser o Brasil sendo liderado por nordestino ex-metalúrgico, juntando com elementos clássicos de sua longa obra, como Anjos da Renascença Brasileira; utilizando
sobre a cabeça aves que fazem lembrar o Bloco das Galinhas; com tartarugas que
servem como apoio uma vez mais das pirâmides misturando humanos e não humanos, ou caminham pelo solo, como temos visto aqui, e que surgem ao final dos anos
1980. O elemento diferenciador aqui é o burro, que certamente aguçou o interesse do
artista, quando teve a inspiração de pintá-lo. Cabe o comentário que neste período da
metade da década de 2000, Gruber privilegia as cores branco e preto, e a tinta acrílica
pela rapidez da secagem.
As reflexões acima escritas resultam da pesquisa iconográfica sobre estes
documentos visuais, aplicada à metodologia de G. C. Argan. Foram destacadas
346
algumas obras de Gruber, em torno da figura do Moleque Cipó, como documentos da complexidade e pujança de metamorfoses múltiplas deste personagem.
Tornam-se evidentes as qualidades criativas, narrativas e sensíveis de um universo, um mundo criado que emerge desde a década de 1950, o menino de praia,
equilibrando-se sobre um carrinho de rolimã. Ao passar pela década de 1960, o
personagem junta-se aos blocos de carnaval, com bonecos inflados como astronautas, sobre carrinhos maiores.
Figura 3: Série Burro #2, 2006
Acrílica sobre tela, 55 x 55 cm (cie) (coleção privada)
Ao atingir a década de 1970, temos o moleque sentindo-se reprimido e procurando se fazer notado pelo modismo nos sapatos, gravatas e lantejoulas. Nos anos
1980, o moleque segue como um Anjo da Renascença Brasileira, já menos agressivo
e, por vezes, sua fantasia volta para participar da Commedia dell´Arte como um Arlequim. Nos anos 1990, o moleque pode estar convertido em “O Noiva”, flanando pela
multidão sobre uma tartaruga ou cavalgando aves pelo mundo afora. No novo milênio, todos os componentes estão juntos em festa geral. Ao findar a década de 2000, o
moleque cansado, vai se vestir de amarelo, na fantasia e no estandarte que carrega, e
pouco a pouco, se prepara para descansar, fechando os olhos.
referênciaS
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade: O pintor da Vida Moderna. Rio de Janeiro: Paz
e Terra. 1996.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Editora Brasiliense.
1989.
BURKE, Peter. Eyewitnessing the usages of images as Historical Evidence. London, GBR: Reaktion Books Ltd. 2001.
JAMESON, Frederic. Pós-Modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ed.
Ática. 1989.
347
GRUBER, Mário. Pelas Diretas Já - Série n°2- América Latina. FOLHA DE SÃO PAULO, São
Paulo. 08/02/1984
SÓCRATES, Lessandro. Filme documental curta-metragem “Em volta do cavalete”. Produzido
por Pacto Audiovisual. 2006/2014.
A inviSível luz que projeta a Sombra do agora: a
poética da memória em naomi gakunga1
Janaina barros silVa Viana2
i.
A produção da artista Naomi Gakunga relaciona-se na intersecção entre experiência social individual e coletiva onde são aproximadas da história de articulação
política feminina com o Movimento de Mulheres Mabati, no Quênia consolidado no
início dos anos 60 do século XX.3 Este movimento consistia na busca de estratégias
de subsistência que dinamizassem a vida comunitária numa reconfiguração após a
independência dos domínios britânicos (1885-1963).
Durante o movimento de independência na década de 50, rebelião dos Mau4
-Mau , ocorreu a prisão de muitos homens e, consequentemente, as mulheres tiveram
que se ocupar com todas as responsabilidades econômicas de suas famílias.
1.
2.
3.
4.
A artista queniana Naomi Wanjiku Gakunga (1960) de origem étnica kikuyu estudou Artes Visuais inicialmente na Universidade de Nairóbi e, posteriormente deu continuidade a seus estudos na
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). A artista vive e trabalha atualmente em San
Antonio, Texas. Representada pela galeria londrina October participou de exposições individuais e
coletivas em vários países: Brasil, Letônia, Reino Unido, Polônia, França, Suíça, Estados Unidos,
Japão e Quênia. A última exposição da artista ocorreu numa coletiva no Museu Afro Brasil intitulada
Africa Africans com curadoria do artista Emanoel Araújo no ano de 2015. A exposição tinha como
objetivo apresentar uma pluralidade de produções visuais de eminentes artistas contemporâneos
africanos (Gana, Benim, Nigéria, África do Sul, Angola, Madagascar, Quênia e Senegal) que transitam entre seus países de origem e circulam suas obras regularmente pela França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. A exposição apresentava 22 artistas, entretanto haviam apenas três mulheres:
Nnena Okore (Austrália/Nigéria), Naomi Wanjiku Gakunga (Quênia) e Edwige Aplogan (Benim).
Janaina Barros Silva Viana. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (PGEHA USP).
A chapa de metal, chamada em língua suaíli mabati, encontra-se presente na arquitetura local, nas
paredes e telhados das casas de onde Naomi viveu sua infância.
Movimento, iniciado em 1953, liderado por membros do grupo étnico kikuyu foi derrotado em 1956,
contudo, surgiram daí as primeiras propostas de reorganização política. No ano de 1960 o governo
350
Na busca incessante de sobrevivência, as mulheres cavavam valas, coletavam
água dos rios para suas casas, tornavam a água adequada para o consumo fervendo-a, cuidavam dos filhos e das tarefas domésticas. A captação da água acontecia num
lugar distante, o que fez com que estas mulheres formassem grupos para discutir possíveis soluções para seus problemas. A saída encontrada era reconstruir as casas feitas
anteriormente de sapé, então as mulheres começaram a utilizar o metal laminado que
resolvia o problema de se fazer reparos constantes, além de coletar e armazenar a
água da chuva, sendo desnecessário deslocar-se até os rios.
Naomi descreve logo a seguir a relação da arquitetura como sua referência
poética, atrelada a ideia de experiência individual a partir de uma vivência coletiva
que concebe um repertório visual e, portanto, um dado discurso visual formalizado
numa obra:
Então elas trocaram o sapé pelo metal laminado corrugado. O
que vi quando criança, crescendo no período pós-independência
no Quênia, foi o que ocorreu com os telhados com o passar do
tempo, e isso me fascinou. Eles começaram bem claros, telhados
prateados, e quando eu já estava no ensino médio, os telhados
eram marrom-escuros, o desgaste havia alterado o metal laminado, ele havia se degradado. Incidentalmente, a mesma coisa
havia acontecido com as mulheres, elas também haviam envelhecido, seus corpos tinham se desgastado, elas estavam mais
velhas, mais frágeis, mas ainda eram fundamentalmente seres
muito fortes. Então, esses são os primórdios da minha arte, e
minha educação formal sem contar a vocês essa experiência importante. (GAKUNGA, cit. por ARAÚJO, 2015, p.51)5
ii.
A autoria torna-se um termo importante para discutir produções não hegemônicas no cenário de arte contemporânea internacional. Termo cunhado no século
XIX relaciona-se a ideia de produção, elaboração, formação e instituição, reafirma
um sentido de pertença em que sinaliza a atuação de diferentes atores dentro de um
determinado projeto poético e político. 6Sobre o autor, do latim auctor –óris, define-
5.
6.
britânico propõe deslocar o poder político para os quenianos por meio de eleições. Jomo Kenyatta é
eleito presidente no processo de democratização do país.
Excerto transcrito da fala de Naomi W. Gakunga a partir da programação cultural Encontro dos Artistas referente a exposição Africa Africans no Museu Afro Brasil. Os artistas Ablade Glover, Bright
Ugochukwu Eke, Soly Cissé, Nnenna Okore, Bruce Clarke, Owusu-Ankomah, Dominique Zinkpè
e Naomi Gakunga abordavam acerca de questões pertinentes à suas poéticas, processos de criação e
trajetórias numa relação dialógica entre autoria(artista) e recepção (público).
http://www.aulete.com.br/analogico/autoria/1/Produção/Acesso em: 01/12/15.
351
-se etimologicamente como “[...] ‘causa principal, a origem de’ ‘inventor’ ‘escritor.’7”
E, ainda, a expressão chamar a autoria compreende o sentido de trazer alguém a
responsabilidade de algo.8 Na mesma medida, trazer à cena diferentes atores e suas
proposições em arte contemporânea enquanto formas de identidade cultural, de gênero e étnica nas construções de discursos que sistematizam e corporificam uma dada
poética africana contemporânea. Essas questões traduzem os caminhos conceituais
para a revisão e da pertinência de debate para a produção de discursos raciais por autores negros contemporâneos perpassados pelas relações entre diferentes identidades
em formas de interculturalidades. Segundo Catherine Walsh, no artigo Interculturalidade crítica e educação intercultural (2010), o conceito de diversidade étnico-cultural atua como maneira de reconhecimento jurídico e das diferenças entre os
atores sociais. Deve-se pensar uma interculturalidade crítica. Essa interculturalidade
parte de um projeto político que se origina da necessidade de revisão do problema
estrutural-colonial-racial, para que possa se desdobrar na construção de estratégias de
negociações de um projeto político, social, ético e de saberes que interfira nos dispositivos de poder pautados numa estrutura de matriz colonial permeadas por relações
raciais tensas e hierarquizantes.
No texto Situando a arte contemporânea africana9, segundo os autores Chika
Okeke-Agulu e Okwui Enwezor (2015), a concepção de uma identidade africana
encontra-se de modo fluído, pois se refere
[...] a situações culturais e geográficas, e aos modos de subjetivação, dimensões de identificação e estratégias éticas. [...]
Uma identidade africana pode sugerir tanto em relações étnicas, nacionais e condições linguísticas, quanto estratégias éticas, ideológicas e políticas. Uma identidade africana pode ser
entendida como parte de um repertório de práticas, estratégias
e subjetividades que ligam tradições culturais e arquivos culturais, que se subtendem em espaços geoculturais e geopolíticos, em experiências transnacionais e de diáspora. (OKEKE-AGULU; ENWEZOR, 2015, p.23)10
A pesquisa visual refere-se a uma unidade, tornada síntese significativa a partir de uma gama de relações que concebe, sistematiza e formaliza uma obra, como
7.
Ver em: CUNHA, Antônio Geral da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 85.
8. http://www.aulete.com.br/autoria/Acesso em: 01/12/15.
9. Este texto foi publicado inicialmente em ENWEZOR, O. & OKEKE, C. Contemporary African Art
Since 1980. Grafiche Damiani, Bologna, 2009, p.10 e ss.
10. Texto publicado no catálogo da exposição Africa Africans: arte contemporânea com organização do
curador e diretor do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo em 2015.
352
por exemplo, o tema, a manipulação de materialidades, a autoria, o conceito vivido
(experiências tornadas forma de conhecimento), as motivações que se arquitetam
em operações específicas: produção (os atos de formulação de problema, solucionar,
produzir e realizar) e a invenção (os atos de investigar, fazer associações, desvelar
e os modos de executar algo). São operações que fundam uma linguagem poética a
partir da transposição de um repertório constituído numa obra.
iii.
Naomi Wanjiku Gakunga Miruri ya Utheri (Rays of Light), 2014
Folha de metal e fio de aço inoxidável, 295 x 203 x 45 cm
Coleção October Galery
Na obra Miruri ya Utheri (Rays of Light), o título encontra-se em suaíli acompanhado de sua tradução em inglês para “Raios de luz”, em que se estabelece pelo
processo de oxidação aleatória da superfície uma natureza pictórica. Essa aproximação decorre no ato de saturar rolos de chapa de metal em água no qual, eventualmente, ela acrescenta diferentes corantes criando graduações de cores. São formas
pictóricas que remetem a noções de temporalidade e durabilidade: a inconstância da
matéria e o sentido de apropriação na arte contemporânea.
Naomi produz uma sintaxe visual que utiliza formas escultóricas feitas com
metal laminado que remetem a formas arquitetônicas encontradas nas paredes e nos
telhados, nas tiras de metal que ora ganham dimensão plana no espaço, ora por meio
de dobras que ganham volume na base, num jogo entre aquilo que é maleável com
aquilo que é rijo, tal com um tecido urdido pela costura com suas tramas surgidas
pela oxidação e pela união das partes. Constitui-se, nesse procedimento de oxidação,
o surgimento de padrões geométricos de estruturas irregulares denominados fractais.
Esses podem ser descritos como figuras n-dimensionais com simetria de escala, em
que qualquer parte ampliada compreende o todo. Definem-se como formas possíveis
353
de serem localizadas na natureza e na ciência. E aparecem também nos repertórios
culturais africanos dentro de um campo cultural amplo, como, por exemplo, nos trançados dos cabelos, nos sistemas de contagem, na padronagem de tecidos, nos rituais
religiosos e nas relações sociais. No caso de Gakunga, os padrões geométricos remontam a arquitetura do seu vilarejo de origem e a ação da natureza sobre a matéria.
O seu trabalho é urdido na relação entre tecnologia e artefato ao utilizar chapas de metal (mabati) e fio de aço construindo em formas escultóricas com técnicas
pertencentes à tapeçaria. A escolha técnica dá-se numa aproximação com as práticas
femininas ligadas ao movimento político local que compreendem a aspectos econômicos. A artista descreve no trecho a seguir o papel social destas mulheres: “[...] eram
tecelãs, costuravam, faziam crochê, teciam cestas e, com o dinheiro da venda dessas
cestas, elas compravam o mabati, o metal laminado. Uso estas técnicas pra trazer a
minha arte para a contemporaneidade, para a fase contemporânea”. (GAKUNGA,
cit. por ARAÚJO, 2015, p.127)
Retomando a frase presente no título deste artigo, A invisível luz que projeta
a sombra do agora, sobremaneira se refere a definição de contemporâneo feita por
Giorgio Agamben, no texto O que é contemporâneo? (2009), cujo entendimento sobre o lugar de um indivíduo pertencente ao seu tempo, não se distancia do passado e
para tal, é necessário perceber [...]
o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também
aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está á altura de
transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma
de seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode
responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do
presente, projetasse à sua sombra, adquirisse a capacidade de
responder às trevas do agora. (AGAMBEN, 2009, p.72)
Nesse sentido, a produção de Naomi Wanjiku Gakunga coloca em questão
a pertinência acerca do debate de uma autoria negra numa reflexão contemporânea acerca de formas de atuação poética e política em Artes Visuais. Em outras
palavras, os modos de representatividade acerca do outro cultural revisitado fora
de uma construção de uma narrativa hegemônica e eurocêntrica que localiza uma
autoria não branca dentro do campo da experiência, da subjetividade, da pessoalidade, da emoção e da imparcialidade Por conseguinte, a cultura se insere num
movimento de resistência, de apropriação e de expropriação num sistema que abarcam relações estruturais de poder e modos de negociações que se constituem em
protagonismos e engendram modos de uma artista se posicionar no mundo tanto
político quanto esteticamente.
354
referênciaS
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo?: e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
ARAUJO, Emanoel (organizador). Africa Africans: arte contemporânea. São Paulo: Museu Afro
Brasil, 2015.
CUNHA JUNIOR, Henrique; MENEZES, Marizilda S. Formas geométricas e estruturas fractais na
cultura africana e afrodescendente. São Carlos: Anais do 2° Congresso Brasileiro de Pesquisadores
Negros, 2002.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 85.
KILOMBA, Grada. Descolonizando o conhecimento. Uma Palestra-Performance de Grada Kilomba. Goethe-Institut São Paulo, na 3° Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, 2016. In:
http://www.goethe.de/mmo/priv/15259710-STANDARD.pdf. Acesso: 08/05/2016.
WALSH, Catherine. Interculturalidade crítica e educação intercultural. Ano 2010. Disponível em:
https://docs.google.com/document/d/1GLTsUp2CjT5zIj1v5PWtJtbU4PngWZ4H1UUkNc4LIdA/
edit, acesso em: 08/11/2015.
arte moderna braSileira no acervo do mac uSp:
a boba e a negra, criação, recepção e circulação
renata goMes CarDoso1
O Museu de Arte Contemporânea da USP abriga importantes obras do modernismo brasileiro. Dentre elas, as telas A Boba e A Negra, realizadas respectivamente por duas artistas que foram pilares desse movimento, Anita Malfatti e Tarsila
do Amaral. Por sua relevância no contexto desse movimento, ambas receberam um
grande número de pesquisas, com os mais distintos enfoques, desde o levantamento
de suas biografias e catalogação do conjunto da obra a estudos críticos que avaliam
suas relações com os modelos da arte moderna. Considerando que cada uma dessas
telas carrega uma própria história, em uma trajetória específica, de sua criação ao
momento de entrada no museu, o objetivo desse artigo é apresentar uma síntese da
trajetória de cada uma dessas obras, observando sua presença em exposições e a
recepção crítica do período, como forma de compreender sua projeção específica na
história da arte brasileira, antes e depois de sua entrada na coleção do museu.2
Essas telas ingressaram no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo
em 1951, poucos anos após sua fundação e no mesmo ano em que foi organizada
a I Bienal de São Paulo, exposição da qual participaram. A Boba, por exemplo, já
aparece no catálogo como obra do acervo do Museu, enquanto A Negra consta ainda
sem indicação de coleção. Como a Bienal foi realizada entre os meses de outubro
e dezembro, é possível pensar que sua aquisição tenha se dado no mesmo contexto
1.
2.
Renata Gomes Cardoso. Mestre e Doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de
Campinas. Pós-doutoranda do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC USP) e bolsista
PNPD-CAPES pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da
USP (PGEHA USP).
Essa síntese das trajetórias dessas obras só foi possível com a observação dos amplos trabalhos de
catalogação e estudo da obra realizados, respectivamente, por Marta Rossetti Batista e Aracy Amaral, nos casos de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, que oferecem um levantamento detalhado de
suas participações em exposições e a indicação dos sucessivos comentários da crítica de arte.
356
dessa importante exposição, momento em que outra obra de Tarsila, E.F.C.B., foi
prêmio-aquisição pela Universidade de São Paulo, ingressando por essa via no acervo do museu.
Pela catalogação do MAC USP, a entrada de A Boba foi em fevereiro daquele
ano, meses antes da Bienal. Essa tela faz parte do famoso conjunto de pinturas realizado por Anita Malfatti entre 1915 e 1916, quando viveu e trabalhou nos Estados
Unidos. Contudo, curiosamente, apenas foi exposta no ano de 1945 e, apesar de provavelmente ter sido vista pelos companheiros modernistas de Anita Malfatti – pois
era muito comum a visita entre eles, nos ateliês –, ela jamais foi contemplada em
qualquer dos textos críticos sobre a atuação e a importância da artista no cenário
brasileiro, publicados ao longo das décadas de 1920 e 1930 ou ainda no início dos
anos de 1940. Quando por fim Anita Malfatti decidiu incluí-la em uma exposição, o
grande interlocutor de sua obra já havia falecido: a mostra foi aberta em novembro
de 1945 e Mário de Andrade se fora em fevereiro. Há muito, antes dessa data, Anita
Malfatti não apresentava obras de sua fase mais destacada pela crítica3, insistindo em
mostrar ao público as produções sucessivas das décadas de 1930 e 1940, como forma
de evidenciar sua produção mais recente e os diálogos que então buscava com algumas tendências da arte brasileira desses anos, em sintonia com as atuações de grupos
como o Santa Helena e a Família Artística Paulista, por exemplo.
Nessa exposição de 1945, ela reservou um pequeno espaço para as obras do
início de sua trajetória, então classificadas como “antigas”, inserindo apenas seis telas
do longo arco que vai de 1915 a 1928, em uma exposição com vinte e nove pinturas
e cinco desenhos. Do famoso período americano constaram apenas quatro telas, duas
do conjunto das figuras e duas paisagens. Das figuras, a inédita A Boba e outra obra
já amplamente conhecida do público, A mulher de cabelos verdes, por ter sido registrada por Mário de Andrade em várias críticas, normalmente destacada pelo autor ao
lado do preferido O Homem Amarelo. De acordo com o catálogo da exposição, A
Boba foi inserida como tela de n. 1, o que lhe dava maior destaque. Do conjunto de
paisagens constavam O Farol e A Ventania. Ao contrário de A Boba, as outras obras
do período “americano” apresentadas eram amplamente conhecidas, já que participaram tanto da histórica exposição de arte moderna realizada em 1917, quanto da
posterior Semana de Arte Moderna.
Apesar de seu ineditismo e de sua forte presença plástica, os comentários
publicados na imprensa sobre essa exposição não deram um destaque específico a
A Boba. Por sua afinidade visual com as outras figuras desse importante conjunto,
ela não foi vista isoladamente em suas características marcantes, mas apenas citada
como parte do já famoso conjunto de figuras. O jornal O Estado de S. Paulo, por
exemplo, apenas a citou dentre os “quadros modernistas” de Anita Malfatti, demar3.
Cf. Levantamento de exposições e catálogo das obras apresentadas, disponibilizado por Marta Rossetti Batista em seu estudo sobre a trajetória da artista.
357
cando a importância da mostra pela presença dessas obras da fase então considerada
como “modernista”. Uma crônica no jornal Folha da Manhã, assinada por “Helen”,
reafirmava o pioneirismo da artista. Em outro texto, Osório Cesar retomou a relevância histórica de Anita Malfatti, destacando também seu pioneirismo. A referência
para essa questão do pioneirismo é certamente Mário de Andrade, autor que se encontrava na memória de todos, por seu recente falecimento. Mário foi o responsável
por situar Anita Malfatti nessa posição de pioneira e precursora, com dois textos
fundamentais publicados já ao final de sua vida, em que revia as manifestações da
década de 1920: o conhecido “O movimento modernista”, de 1942 e o artigo “Fazer
História” de 1944, nos quais procurou colocar um fim à disputa entre críticos sobre o
pioneirismo de Anita Malfatti ou de Lasar Segall, insistindo com seus companheiros
intelectuais sobre o impacto da exposição de Anita para a geração modernista. Osório
Cesar, por sua vez, seguiu a definição de Mário e enquadrou A Boba nessa pioneira
“fase expressionista” da artista.
A segunda vez que essa tela participou de uma exposição foi com um destaque muito diferente, inserida em uma grande retrospectiva, no ano de 1949, no novo
Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Houve grande repercussão dessa exposição na
imprensa, e há também uma ampla documentação da mostra em fotografias. Nessa
ocasião A Boba foi colocada justamente ao lado de três dos mais comentados retratos
do período de 1915-1916: além da já citada A mulher de cabelos verdes, constavam
na mesma parede as figuras d’O Homem Amarelo e d’O Japonês, todas amplamente
discutidas e destacadas nas críticas de Mário de Andrade, desde 1921. Essas duas
últimas obras foram adquiridas pelo autor ainda no âmbito da exposição de 1917.
Essa disposição ao lado das famosas figuras da exposição de 1917 e da Semana contribuiu para contextualizar A Boba definitivamente nesse famoso conjunto de telas, já
de reconhecida importância histórica. Ao lado das figuras, na mesma parede, a artista
incluiu ainda um retrato de Mário de Andrade, realizado, porém, anos depois, já em
1922. Essa atitude demonstra que essa parte da mostra foi pensada como uma homenagem ao amigo e crítico que sempre destacou a importância, para o modernismo,
desse conjunto de figuras. O catálogo da exposição, por sua vez, contribui também
para reafirmar esse “atestado” de pioneira, conferido por Mário, pois apresenta, como
texto introdutório, “três comentários” do autor, que são especificamente as primeiras
críticas de arte em que destacou a relevância de Anita Malfatti dentro do movimento,
publicadas em diferentes jornais, nos anos de 1921, de 1926 e em 1931. Por ser uma
exposição retrospectiva, os comentários na imprensa seguiram a linha da narrativa
da trajetória da artista, desde o contato com a arte internacional no primeiro estágio
realizado na Alemanha, à impressão causada por seus quadros no jovem Mário de
Andrade, seguida pela “revolução modernista” que se instalaria então em São Paulo.
Novamente, A Boba não obteve um lugar específico na crítica, principalmente se
compararmos com as citações e comentários sobre O Homem Amarelo ou A Mulher
358
de Cabelos Verdes, obras sempre repetidas e destacadas, certamente como referência
aos comentários de Mário de Andrade, publicados ali mesmo no catálogo.
Já em 1950, um artigo no jornal O Estado de São Paulo retomava a importância dessa retrospectiva, comentando uma pequena exposição recente que Anita
Malfatti realizava em seu próprio ateliê. O artigo chamava a atenção dos museus
para a relevância da obra de Anita Malfatti, ressaltando que “quadros de indiscutível
importância artística e histórica” como “No Balcão e A Boba”, se encontravam ainda
em poder da artista, esperando que algum colecionador ou museu finalmente os adquirissem, o que se daria em fevereiro de 1951 com a aquisição da tela pelo MAM de
São Paulo. Não houve, porém, comentário crítico sobre a obra quando exposta na I
Bienal. Com seu ingresso no museu nesse contexto pós-I Bienal, cujo caráter público
tornava-a necessariamente mais acessível que outras obras desse conjunto, sua reprodução passou então a figurar com muita frequência na imprensa e em publicações
especializadas, seja em preto e branco seja em cores, como uma obra que “ilustrava”
perfeitamente o momento “Anita Malfatti” na história do modernismo. Mais do que
isso, a presença da obra no acervo do museu contribuiu em grande medida para o
começo de uma justa retomada de sua importância na análise da produção da artista,
atentando finalmente para suas características essenciais. Essa maior divulgação via
reprodução, em pleno momento de construção da narrativa modernista nas décadas
de 1960 e 1970, fez com que a tela se tornasse um grande exemplar do início do modernismo, junto com o famoso O Homem Amarelo, apesar de não ter efetivamente
participado de momentos marcantes do movimento, como da exposição pioneira de
1917-1918 e da Semana de Arte Moderna e não ter sido indicada pela crítica, até
1945, como obra fundamental do conjunto americano.
Outra obra modernista que apresenta uma trajetória muito intrigante até sua
entrada no acervo do museu é A Negra, de Tarsila do Amaral. Figura icônica que
revela o talento da artista iniciante para a síntese entre o nacional, a voga da arte negra no cenário europeu e as premissas cubistas, foi realizada no início do contato de
Tarsila com os cubistas, em 1923, e participou de sua primeira exposição em Paris, no
ano de 1926. Curiosamente, Tarsila não inseriu essa obra na primeira grande exposição que finalmente realizou no Brasil, em 1929, quando já era uma artista de grande
destaque na questão modernista.
Comparada com a recepção de outras obras do período, A Negra timidamente
apareceu nos comentários críticos sobre o progresso de Tarsila, na importante etapa
entre 1923 e 1924, mesmo considerando a atividade crítica e literária de Oswald de
Andrade, figura intimamente ligada a Tarsila, que não menciona a obra em qualquer
de seus textos da época. No caso de Mário de Andrade, a produção de Tarsila do
Amaral dos anos de 1923 foi comentada, em um primeiro momento, em uma carta
por ele enviada a Anita Malfatti, no contexto do retorno de Tarsila ao Brasil, na qual
se referiu ao grande “desenvolvimento” de sua pintura, no curto estágio de Paris.
Na carta Mário afirma que ainda não havia visto os quadros que Tarsila trouxera da
359
França, mas apenas estudos e desenhos, suficientes para atestar sua ligação com o
cubismo. Pouco tempo depois, Renato Almeida, um amigo de Mário de Andrade,
musicólogo e folclorista, que colaboraria ao final de 1924 com a revista Estética,
publicou um artigo em O Jornal, do Rio de Janeiro, comentando a visita que os dois
fizeram ao ateliê de Tarsila, para enfim verem as obras realizadas em 1923. Na longa
crítica que escreveu sobre a relação da artista com o cubismo, Renato Almeida citou,
por exemplo, as obras Veneza e o Retrato Azul (Sérgio Milliet), dentre várias outras
observadas no ateliê da artista, mas não houve qualquer menção à tela A Negra. Sua
preocupação ao final do texto era indicar como em certas obras Tarsila já se afastava
de um cubismo “puro” para reequilibrá-lo, de acordo com sua sensibilidade, com a
questão brasileira.
No caso de Sérgio Milliet, há um número expressivo de textos sobre a atividade de Tarsila do Amaral daquele período. Um deles foi publicado na Revista do
Brasil, em abril de 1924, e apresenta uma análise da “evolução” da artista, partindo
dos trabalhos de tendência impressionista, como os primeiros retratos de Oswald
de Andrade e de Mário de Andrade, para falar da transformação em suas obras após
o contato com os cubistas Lhote, Léger e Gleizes. Sem mencionar precisamente
qualquer trabalho dessa nova fase, Milliet falou de “vinte quadros, que vão desde
as primeiras ousadias até as realizações mais perfeitas”, confirmando seu pertencimento à corrente do modernismo no Brasil porque Tarsila “sendo brasileira, fez
pintura brasileira”, com uma expressão “de seu temperamento paulista, através da
geometria e da síntese”.
A questão da referência à cultura negra do Brasil, ou à voga do primitivismo
no cenário francês, seria colocada em análise por Assis Chateaubriand, em um texto
publicado em O Jornal, já em 1925. Chateaubriand conheceu a artista na inauguração do salão de arte moderna de Olívia Guedes Penteado, sendo então convidado
para visitar seu ateliê. Antes de abordar especificamente o vocabulário da arte moderna assimilado por Tarsila, Chateaubriand inaugurou sua crítica falando de uma
“preocupação nacionalista” nas telas, identificada nas figuras da vida brasileira, características da nossa paisagem, que Tarsila soube expor: uma “humanidade raquítica, miserável, roída de vermes, a raça de Jeca Tatu, barriguda, papuda, macilenta,
quase cretinizada, porque esmagadas de taras irresistíveis”. Nada disso, porém,
se refere à Negra, uma figura monumental e icônica. Chateaubriand fala de obras
como Anjos, A família ou As meninas, algumas detalhadamente descritas no texto,
além da interpretação apresentada.
Apesar de não ter sido especialmente destacada pelos modernistas, a grande
figura da composição de A Negra ganharia grande difusão por ter sido publicada,
em desenho, na capa de Feuilles de Route I – Le formose, livro de poemas de Blaise
Cendrars lançado em Paris após a visita que o escritor fez ao Brasil, ao final de 1924.
A presença da figura na capa foi por fim observada pelos interlocutores modernistas
Mário de Andrade e Sérgio Milliet. Mário de Andrade, por exemplo, conferiu-lhe
360
um breve comentário no início da crítica literária que dedicou ao texto de Cendrars.
O trecho em que enfoca a figura passa, porém, uma verdadeira impressão de que ele
não a conhecia, em vista da exclamação, em um tom de surpresa, sobre sua forma e
composição, como se nunca a tivesse visto antes. Esses comentários acompanhados
até aqui contribuem para questionar se Tarsila teria de fato trazido consigo essa grande tela, pois ela não foi destacada por nenhum dos autores, apesar dos textos serem
publicados como resultado de visita ao ateliê de Tarsila.4
referênciaS
AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, Ed. 34, 2010 [1. Edição
1975].
_____. Correspondência Mário de Andrade & Tarsila do Amaral. São Paulo: Edusp, 2001.
BATISTA, Marta Rossetti et alii. Brasil: 1º tempo modernista 1917/25: documentação. São Paulo:
IEB, USP, 1972.
_____. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Ed. 34, 2006. [1. Edição 1985].
_____ (Org.). Mario de Andrade, cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1989.
_____. Coleção Mário de Andrade – Artes Plásticas. São Paulo: Instituto de Estudos BrasileirosUSP, 1998.
_____. Os artistas brasileiros na Escola de Paris. São Paulo: Ed. 34, 2012.
CARDOSO, Rafael. (2015). “The Problem of Race in Brazilian Painting, c. 1850–1920”. Art History, 38: 488–511. doi: 10.1111/1467-8365.12134.
CENDRARS, Blaise. Feuilles de route: I. Le Formose. Paris: Sans Pareil, 1924.
HERKENHOFF, Paulo. Tarsila do Amaral: Peintre bresiliènne à Paris, 1923-1929. Rio de Janeiro:
Imago Escritório de Arte, 2005.
MACHADO, Lourival Gomes. Retrato da arte moderna no Brasil. São Paulo: Departamento de
Cultura, 1948.
MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Pintura italiana do entreguerras nas Coleções Matarazzo e as origens do acervo do antigo MAM: arte e crítica de arte entre Itália e Brasil. Tese de Livre Docência,
MAC-USP, 2015.
MILLIET, Sérgio. Pintores e Pinturas. São Paulo: Liv. Martins, 1940.
NASCIMENTO. Ana Paula. MAM: museu para a metrópole. Dissertação (Mestrado). São Paulo:
FAUUSP, 2003.
Tarsila: Catálogo Raisonné. São Paulo: Base 7, 2008. Versão impressa e digital.
4.
A análise completa da trajetória dessa obra até sua entrada no MAC pode ser acompanhada no artigo
“A Negra de Tarsila do Amaral: criação, recepção e circulação”, da mesma autora deste texto, recentemente publicado na revista acadêmica VIS, de junho/dezembro de 2016, disponível em: http://
periodicos.unb.br/index.php/revistavis
a fundação1 andréa e virginia matarazzo2
renato De anDraDe Maia neto3
A Fundação Andréa e Virginia Matarazzo (FAVM) constituiu-se em 16 de fevereiro de 1949, com sede na cidade de São Paulo, por intermédio de seu diretor-presidente, Francisco Matarazzo Sobrinho.4 Ela é a continuidade da Instituição Virgínia
Matarazzo5 (IVM), uma sociedade civil sem fins lucrativos.6
Conforme é mencionado na escritura de instituição da FAVM, em reunião dos
sócios fundadores da IVM, em 10 de julho de 1943, constitui-se esse instituto, com o
intuito de “honrar e perpetuar o nome e a memória dos antepassados diretos dos sócios-fundadores, criando e mantendo, para esse objetivo, obras beneficentes, escolares e
científicas”. Seus sócios fundadores são Francisco Matarazzo Sobrinho, Paulo Matarazzo, Constabile Matarazzo, Gianicola Matarazzo e Dona Maria Virgínia Matarazzo
Ippolito e, por meio dessa instituição, irão procurar incentivar os estudos e pesquisas
relacionadas à fisiopatologia celular e especialmente aos estudos do câncer e doenças
afins. A fundação tem um capital declarado de Cr$ 943.087,01 e conta com a doação de
aparelhagem para laboratórios e ou centros de pesquisas científicas junto a Faculdade
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Pode-se definir uma fundação como: “pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que se
forma a partir da existência de um patrimônio extraído de seu instituidor e/ou instituidores, através
de escritura pública ou testamento, para servir a um objetivo especifico de interesse público”. Assim,
uma fundação nasce mediante a destinação de um patrimônio para determinada finalidade social. O
instituidor e/ou instituidores fará uma opção sobre a forma de caridade que melhor lhe agrade. Porém, a finalidade não pode ser genérica e sim a mais especifica possível. Site da Associação Paulista
de Fundações. Disponível em: http://goo.gl/xMPh7D Acesso em: 08 jun. 2015.
Capítulo do Relatório 2 de pós-doutorado Bolsa FAPESP, Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo, 10 de dezembro de 2015,
Renato de Andrade Maia Neto. Pós-doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
(FAU-USP).
Registrada no 3° de Registro de Títulos e Documentos da cidade de São Paulo.
Registrada no 2° de Registro de Títulos e Documentos da cidade de São Paulo, sob o número 1.201.
Editou a revista Folha Clínica e Biológica. http://goo.gl/2tZi9m Acesso 08 jun.2015.
362
de Medicina da USP. Propõe-se a organizar cursos especializados, palestras e conferências, sob a supervisão de profissional competente; estimular trabalhos de pesquisa
científica, instituir bolsas de estudos, auxílios financeiros, prêmios de viagens; manter
relações com instituições de ensino médico e instituições públicas e privadas do Brasil
e do exterior, que se interessem pelos estudos e pesquisas realizadas pela Fundação.
A sua administração será formada pelo Conselho Diretor, composto pelos sócios
fundadores ou não e por uma Diretoria Executiva eleita para um mandato de três anos.
Os sócios fundadores são membros vitalícios. Em reunião ordinária, do Conselho da
Fundação, seus descendentes poderão ser indicados para se tornar um membro vitalício. Os demais membros serão indicados em caráter temporário, por três anos, pelos
membros vitalícios. Compete ao Conselho Diretor, estabelecer um plano de atuação da
Fundação; indicar e nomear os membros vitalícios e os demais membros do seu corpo
administrativo; nomear, dar posse ou demitir pessoas da Diretoria Executiva; decidir
sobre a alienação de bens patrimoniais, observando as disposições legais e estatutárias
a respeito; deliberar sobre a reforma ou alteração dos estatutos, e sobre todos os outros
procedimentos aplicáveis ao bom funcionamento da Fundação.
Os membros vitalícios do Conselho Diretor indicaram para tomar parte deste
mesmo Conselho os senhores: Dr. Andéa Ippolito, prof. Dr. Antonio de Almeida Prado, Dr. Antonio Jorge Marrano, prof. Dr. Archimede Bussaca, prof. Dr. Benedito Montenegro, Dr. Eurico Sodré, Dr. Fábio da Silva Prado, prof. Dr. Luiz Manginelli, Mario Bandeira, Dr. Piero Manginelli e o prof. Dr. Renato Locchi. O Conselho Diretor,
por sua vez, elege para a Diretoria Executiva; como presidente honorário, o senador
Ângelo Andrea Matarazzo; como diretor presidente, Francisco Matarazzo Sobrinho;
diretor vice-presidente, Paulo Matarazzo; diretor secretário, Giannicola Matarazzo;
diretor científico, Dr. Piero Manginelli; diretor tesoureiro, Mario Bandeira.
A sua primeira iniciativa vai ser a compra um conjunto de equipamentos que
serão alocados na Faculdade de Medicina da USP.7
7.
Consta de: uma incubadora “Dove”, uma centrífuga refrigerada internacional Mod, PRI, site
W-4.116; um quarto refrigerado “Air-flow” com compressor; uma centrífuga refrigerada Meyer para
ultra-centrifugação; uma máquina para gelo seco C.L. Hill; um homogenizador “Waring Blendor”,
com acessórios; um estroboscópio “General Radio Company”, marca Strobatac; uma autoclave marca “Fabbe”, com depósito para água esterilizada; um esterilizador elétrico úmido marca “Fami”;
instrumental cirúrgico completo incluindo tambores para esterilização, mesas para ferros, armários,
etc,; um compressor de 100 libras marca “Denver-Pariser” série 112.234; uma lâmpada quartzo
“Spencer” mod.370 com filtros com lâmpadas acessórias “Spencer”; dos microscópicos com revólver para quatro objetivas e acessórios números 228.613 e 228.320; um condensador para campo
escuro; umcentrador para condensador; um microscópio eletrônico Mod. EMC-2 série: 1.032 marca
RCA com acessórios “Vaccum Coating Unit Mod. LCA Distilations Products Inc.”; um microtono
rotativo “Spencer” Mod. 820 nº 10.492, com acessórios; uma geladeira elétrica Isnard com quatro
compartimentos; uma estuda “Fabbe”; material completo para cultura de tecidos; uma centrífuga
“Adams” série: 25.770 com acessórios; dois marcadores de tempo “General Eletric”; uma estufa
de esterilização a seco “Folco” mod. 15 nº 55; duas escrivaninhas de metal e respectivas cadeiras;
uma (1) capela; uma bomba, de vácuo “Gast A-14.318”; um incinerador “Temco”, série 6.006; uma
centrífuga manual “Adams”; uma centrífuga “Fischer” com acessórios; um aparelho Warburg marca
363
A reforma dos seus estatutos vai ser proposta ao Curador de Resíduos da cidade de São Paulo, em 17 de dezembro de 1952, pelo advogado e procurador da
Fundação, o Dr. Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto8, visando alargar sua atuação
para além do campo da fisiopatologia celular, para abarcar outros objetivos culturais,
estendido agora a todos os campos da ciência e das artes em geral. Essa alteração
acarreta uma adequação nos seus estatutos. Propõe-se a:
1. criar e manter laboratórios ou centros de estudos e pesquisas ou de atividades
em geral;
2. divulgar conhecimentos, estudos e realizações pela forma julgada mais conveniente, inclusive com a organização de exposições ou a constituição e manutenção de Museus de interesse cultural ou artístico;
3. organizar cursos especializados, sob a direção de profissionais competentes e
patrocinar palestras e conferências sobre problemas científicos, técnicos, culturais, artísticos;
4. incentivar de qualquer forma, estudos pesquisas e realizações enquadradas na
sua finalidade, podendo para tal efeito instituir ou promover bolsas de estudos,
auxílios financeiros, viagens, prêmios de concessão única ou periódica, etc;
5. manter relações e promover intercâmbio com quaisquer instituições públicas
ou privadas do Brasil e do exterior, que tenham interesse pelos estudos, pesquisas e atividades realizadas pela Fundação.
O artigo sexto do novo Estatuto, entre outras coisas, estabelece que o compete
ao Conselho Diretor tem amplos poderes e é quem traça o plano geral de administração da Fundação; instituiu departamentos e comissões especializadas, definindo e
disciplinando as respectivas atribuições.
A orientação das atividades científicas, técnicas, culturais e artísticas da Fundação caberá a comissões técnicas ou especializadas.
Na reunião extraordinária do conselho Diretor da Fundação Andréa e Virgínia
Matarazzo, realizada no dia 10 de maio de 1955, presidida por Francisco Matarazzo
8.
“Aminco” série D – 6.242, com 14 manômetros e acessórios; um microscópio polarizador “E. Leitz”
nº 294.391, com acessórios; um espectrofotômetro “Beckman” mod. D O série 1.478, com acessórios e pertences para ultra violeta; um calorímero foto elétrico “Lumetron” mod.402 E.F. serie 1795
com acessórios para fluorescência, completo; um potenciômetro “Gamma” mod. N° 2.000, série n°
348 com acessórios; um agitador magnético “A. H. Thomaz”; um agitador de ar comprimido “Tisher”; uma balança analítica “Galileu Sartorius” n° 178.372; uma balança de torção “Roller” Smith
n° 280.842; um agitador elétrico “Fultork”; um liofolizador completo; produtos químicos diversos;
vidraria necessária às diversas seções do laboratório; um aparelho de eletro foresis “Frank Pearson”,
completo com sistema de refrigeração e unidade elétrica; um aparelho “Altman- Gresh” completo
com unidade refrigeradora Campos Sales e unidade de vácuo “Welsh Duoseal”, um micrótomo
de congelação “Spencer” série n° 9.426 com acessórios; gaiolas diversas de biotério; mobiliário
completo de laboratório e seções; uma máquina de escrever “Oliveti”.
Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto (1910-1987). Advogado formado na Faculdade de Direito
do Largo São Francisco, foi professor de Ciências das Finanças da Faculdade de direito da PUC de
São Paulo e governador do Estado de São Paulo entre 1959 a 1963. Disponível em: https://goo.gl/
WWkkHD Acesso em: 27 jul. 2015.
364
Sobrinho e secretariada por Carlos Alberto de Carvalho Pinto, deliberou-se sobre a
alteração parcial dos Estatutos Sociais, no sentido de enfatizar que os membros do
Conselho Diretor, quer sejam vitalícios ou temporários, exercerão suas funções gratuitamente, sem remuneração. Esclarece ainda que compete ao Diretor Presidente a
nomeação para os Departamentos Técnicos, de pessoas de reconhecida capacidade
científica e ilibada reputação.
O Dr. Carvalho Pinto, representante legal da Fundação Andréa e Virginia Matarazzo, procedem ao registro de nove Atas9 de reuniões do Conselho Diretor da Fundação, em 23 de Agosto de 1963.
Essas Atas são muito genéricas, deixando de fora as deliberações de seu Conselho Diretor, que concedeu o prêmio de Cr$ 300.000,00 ao arquiteto Walter Gropius
e uma bolsa de estudos na Europa para Walter Zanini, em meados dos anos 1950.
• Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor realizada no dia 10 de março
de 195610.
Decidiu-se pela reeleição, por mais três anos para o Conselho Diretor, o Dr.
Carlos Alberto de Carvalho Pinto e o Dr. Andréa Ippolito. Relata que o presidente
da Fundação recebeu do embaixador do Brasil em Roma, a solicitação de uma bolsa
de estudos para Dulce de Oliveira Werneck Aguiar, para que ela pudesse completar
seus estudos no Instituto Centrale del Restauro, em Roma. O pintor Fernando Lemos
solicita uma contribuição mensal para dedicar-se aos estudos da arte. O Presidente,
Ciccillo Matarazzo, considera os dois merecedores de tal incentivo, para “favorecer
a formação de elementos de grande interesse para o desenvolvimento das artes em
nosso País”. Foi concedida por unanimidade uma bolsa de estudos de 50.000 Liras
Italianas, a valer a partir de 1° de setembro de 1956 até 30 de junho de 1957, para
Dulce de Oliveira Werneck Aguiar e um mesada de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) até dezembro de 1958 para Fernando Lemos.
• Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Diretor, realizada em 27 de abril
de 1959.
Foram reeleitos pelos membros do Conselho Diretor da Fundação, os seus
membros temporários, Carlos Alverto de Carvalho Pinto e Andréa Ippolito, para continuarem a exercer seus cargos de membros do Conselho Diretor por mais três anos.
Foi concedida uma complementação de bolsa de estudos de Cr$ 5.000,00 (cinco mil
cruzeiros) a cada um, durante o período de outubro 1959 a junho de 1960 aos estudantes Luiz Carlos Costa e Antônio Amilcar de Oliveira Lima, dada “as suas qualidades
morais e intelectuais”. Tinha bolsa parcial do governo francês para o curso do Centre
International de Formation Et de Recherche em Vue du Dèvelopment Harmonisè,
9.
Requer ao Oficial Maior do Registro de Pessoas Jurídicas, o arquivamento das Atas junto à inscrição
n° 1.716, livro A, n° 2.
10. Assinam a Ata: Francisco Matarazzo Sobrinho, Costabile Matarazzo, Giannicola Matarazzo, p.p. Maria Virginia Matarazzo Ippolito; Andéa Ippolito, Paulo Matarazzo e Carlos Alberto de Carvalho Pinto.
365
•
Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor, realizada em 18 de janeiro de
1960.
A reunião fora convocada para se decidir sobre o pedido de ajuda financeira,
feita pela Fundação Anita Pastore D’Angelo, em favor do Instituto de Cardiologia
Sabbado D’Angelo. Avaliou-se que os relevantes serviços que vem prestando à coletividade no setor assistencial, ensino e pesquisa médica especializada, justificam a contribuição de Cr$ 30.000,00 (trinta mil cruzeiros) mensais durante todo o ano de 1960.
• Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor, realizada em 11 de abril de
1960.
A reunião fora convocada para se deliberar sobre as contas referentes aos
exercícios de 1° de janeiro de 1949 até 31 de dezembro de 1959, por não terem sido
objeto de deliberação das reuniões anteriores. As contas e os balanços apresentados,
foram aprovados por unanimidade, assim como foram ratificados, todos os atos administrativos praticados pela Fundação até 31 de dezembro de 1959. Foi solicitada
pelo Centro Técnico da Aeronáutica (CTA) de São José dos Campos e concedida
a bolsa de estudos de Cr$ 3.000,00 (três mil cruzeiros) mensais, durante um ano,
ao estudante Thomas Weigel. Observe-se que nessa reunião, apesar de não serem
descritos, foram aprovados todos os atos da Fundação, relegados nestes autos ao
esquecimento da História.
• Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Diretor, realizada no dia 25 de
agosto de 1960.
É aprovada a nomeação de mais dois membros temporários do Conselho
Diretor da Fundação, até o fim do mandato dos outros diretores temporários, que
expira em dezembro de 1961. Foram assim nomeados Pierpaulo Gembrini e Silviano
Mario Atilio Raia. A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, atarvés
do prof. O. Machado de Souza solicitou e obteve uma subvenção de R$ 25.000,00
(vinte e cinco mil reais) mensais a partir de agosto de 1960. O auxílio se destina a
publicação da Revista Científica Folia Clínica et Biológica, destinada a divulgaras as
pesquisas de setores básicos da medicina, realizadas em laboratórios universitários
brasileiros.
• Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor, realizada em 12 de abril de
1961.
Foram aprovadas por unanimidade as contas referentes ao exercício de 1° de
janeiro a 31 de dezembro de 1960.
• Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Diretor, realizada no dia 16 de
janeiro de 1962.
A reunião reelegeu por aclamação para um mandato de três anos, os conselheiros, Andrea Ippolito, Carlos Alberto Carvalho Pinto, Pierpaolo Gembrini e Silvano
Mario Atilio Raia, cujos mandatos haviam vencido em 31 de dezembro de 1961.
366
•
Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor, realizada em 31 de abril de
1962.
Foram aprovadas por unanimidade as contas e o Balanço, referentes ao exercício de 1° de janeiro a 31 de janeiro de 1961.
• Ata da Reunião Ordinária do Conselho Diretor, realizada em 10 de abril de
1963.
Foram aprovadas por unanimidade as contas e o Balanço, referentes ao exercício de 1° de janeiro a 31 de janeiro de 1962.
• Ata da Reunião Extraordinária do Conselho Diretor, realizada no dia 30 de
abril de 1965.
Aprova a alteração do nome da Fundação Andréa e Virgínia Matarazzo, para
Fundação Metalma11, já que todos os sócios fundadores e vitalícios são diretores e sócios do grupo Metalúrgica Metalma, empresa que abasteceu de recursos a Fundação
para realizar suas atividades. Decidiu-se ainda que, nos impressos, abaixo do nome
Fundação Metalma, conste “ex Fundação Andréa e Virgínia Matarazzo”.
*****
Há que se pesquisar mais – suponho que foi por intermédio dessa fundação, com
todos os benefícios e isenções de impostos que a esse tipo de entidade tem direito por
lei, que Ciccillo e seus irmãos ajudaram financeiramente o Museu de Arte Moderna.
11. Tentei em julho de 2015, contato com o vereador paulista Andrea Matarazzo. Seu assessor me informou que o vereador nunca tinha ouvido falar na Fundação Andrea e Virginia Matarazzo. Perguntado
sobre a Fundação Metalma, ficou de dar um retorno que até 12/09/2015 não acorreu.
Semelhança e Sobrevivência noS acervoS de
fotografia do mam-Sp e da coleção moderna
da fundação calouSte gulbenkian
guilherMe tosetto1
Este artigo se origina a partir da leitura do texto ‘Sobrevivência dos vaga-lumes’, de George Didi-Huberman. Em certa altura do livro, o autor relata uma experiência no campo com vaga-lumes, que aparecem e desaparecem em um intervalo
indefinido de tempo. Então, Didi-Huberman questiona: “como os vaga-lumes desapareceram ou redesapareceram? É somente aos nossos olhos que eles desaparecem
pura e simplesmente... Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu
lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los” (2011, p. 47).
Essa reflexão serve primeiramente para pensarmos a sobrevivência de obras
de arte localizadas em acervos, neste caso, recolhidas em ‘habitats’ museológicos.
Se por um lado as obras incorporadas pelos museus ficam escondidas, por não estarem visíveis ou expostas em grande parte do tempo, elas continuam a existir. Nesse
sentido, encontram outros modos de reaparecer, como através de suas cópias de livre
acesso para consulta nos sites institucionais, no caso da coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e do MAM-SP, que continuam bons lugares para acessá-las,
não em sua completude, mas com suficiente informação para conhecê-las.
Assim como os vaga-lumes estão escondidos em seu habitat natural, essas
obras estão abrigadas (mesmo que não se considere o museu como lugar natural
destas imagens), a espera de brilhar novamente e atestar suas existências físicas. A
escolha pelo excerto de obras em suporte fotográfico neste trabalho vai ao encontro
da urgência em pensar o lugar destas imagens no atual panorama de profundas mudanças nos valores que fundamentam a fotografia, e superar questões fotográficas já
debatidas no contexto da arte, como nos clássicos textos de Walter Benjamin (1936)
e André Malraux (1947).
1.
Guilherme Marcondes Tosetto. Doutorando em Multimédia/Fotografia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal.
368
Após colocar esses questionamentos como pontos fundamentais do texto, buscaremos estabelecer bases para a aproximação destas obras ‘fotográficas’ em questão.
A partir deste quadro, pretende-se um duplo movimento: perceber o lugar destes
arquivos fotográficos enquanto ‘sobreviventes digitais’ e revelar algumas aproximações iniciais entre estas coleções.
arquivoS fotográficoS
Na Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, o acervo está digitalizado e livre para a consulta em seu site desde 2010. Ao procurarmos pelas obras na
categoria Fotografia, encontramos seissentas e oitenta e uma obras de oitenta e seis
autores, todas elas tem sua imagem para a visualização online.
No Museu de Arte Moderna de São Paulo, o acervo digitalizado está disponível para consulta no site desde 1997, sendo que a última atualização aconteceu em
2013. A pesquisa pela categoria Fotografia indica mil cento e sessenta e sete obras de
cento e setenta e quatro artistas, sendo que, dessas, mil e quarenta e quatro possuem
imagem acessível para visualização.
Há, portanto, um grande afastamento entre as coleções em relação ao número
de obras em suporte fotográfico. Porém, ao nos atermos a outros aspectos, nos deparamos com aproximações pontuais entre as duas instituições.
A Coleção Moderna começou a ser ‘pensada’ e construída desde o início da
Fundação Calouste Gulbenkian em 1956, porém só tomou forma quando da inauguração do Centro de Arte Moderna, em 1983, bem próximo do período em que o
MAM-SP (criado em 1948) deu início a sua coleção de fotografias, em 1980.
A distância histórica de quase quatro décadas entre o surgimento do MAM e
a criação do CAM (atual Coleção Moderna) não se reflete na formação dos acervos
fotográficos. O museu brasileiro realizou a primeira aquisição de fotografias somente
na década de 80, por ocasião da I Trienal da Fotografia, no mesmo período em que
surgia o CAM. O museu português por sua vez, possui desde os primórdios obras em
suporte fotográfico.
Em um segundo momento, após navegar pelas cópias das obras nos sites dos
museus, encontramos outras conexões entre as duas instituições como a presença de
algumas fotografias iguais do artista português Fernando Lemos nos dois acervos.
A investigação a partir de arquivos é uma prática comum em outras áreas do
conhecimento, como a história e as ciências sociais. E, ao trazer este conceito para o
contexto das artes visuais, é necessário recuperar algumas reflexões já desenvolvidas,
como as colocadas por Jacques Derrida em Mal d’Archive, importantes para a compreensão destes arquivos fotográficos.
Ao resgatar a origem etimológica e histórica do termo, o autor toca em dois
pontos importantes, a noção de suporte e residência na origem dos arquivos, e o
“princípio de consignação, isto é, de reunião” (2001, p. 14).
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Dentro deste trabalho, as fotografias, impressas em diversos suportes, estão
agrupadas em um espaço físico (o museu como residência) e foram reunidas ao longo
do tempo sob algum tipo de lógica determinada pelas próprias instituições. Ainda
para Derrida, os arquivos são criados para um futuro, assim como as coleções também se projetam para um futuro, “ [...] se queremos saber o que isto (arquivo) teria
querido dizer, nos o saberemos num tempo por vir” (2001, p. 51).
Semelhança e conhecimento
Como anteriormente detalhado, a força que primeiramente atraiu estas duas
coleções foi a existência de algumas semelhanças. A partir disso, foi possível detectar
outras aproximações como a presença de algumas fotografias do mesmo autor nos
dois acervos. Estas zonas de contato, nada mais são do que resultados do movimento de colocar duas coisas concretas em relação. A noção de semelhança, segundo
Foucault, desempenhou, até fins do século XVI, “um papel construtivo no saber da
cultura ocidental. Foi ela que orientou em grande parte a exegese e a interpretação
dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das
coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de as representar”. (1966, p. 34)
Para o autor, a semelhança diz “como o mundo se deve dobrar sobre si mesmo, duplicar-se, refletir-se ou encadear-se para que as coisas possam assemelhar-se,
e dizem-nos o caminho da similitude e por onde eles passam; não onde ela está, nem
como se vê” (1966, p. 45). Portanto, como aconteceu no primeiro momento desta
investigação a semelhança apenas deu pistas de um caminho a ser seguido.
No trabalho dedicado ao historiador da arte Aby Warburg: ‘A imagem sobrevivente’ (2013), George Didi-Huberman também contribui com este raciocínio ao
deixar claro a importância das aproximações e das conexões no campo de estudo das
imagens. Para ele, além do viés histórico inerente de cada figura, é necessário examinar, com atenção, as conexões secretas que existem entre elas, elementos que, em um
primeiro olhar, podem ser deixados de lado.
De certo modo o autor se aproxima do pensamento de Foucault: conhecer
as diferenças e semelhanças para aproximar de suas identidades. “Trata-se de por o
múltiplo em movimento, de não isolar nada, de fazer surgir os hiatos e as analogias,
as indeterminações e as sobredeterminações em jogo nas imagens” (2013, p. 155).
Sobrevivência e Semelhança naS fotografiaS de fernando lemoS
Ao nos aproximarmos de uma das conexões mais evidentes entre as coleções,
as obras de Fernando Lemos presentes nos dois museus, identificamos sete fotografias em preto e branco que estão presentes tanto lá, quanto cá.
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A única fotografia do MAM-SP que não encontra seu ‘idêntico’ no acervo
português é a imagem intitulada Andamento sem registro, um retrato de Maria Helena Vieira da Silva. Se utilizarmos o raciocínio matemático para ilustrar este fato, é
somente pela presença desta fotografia que não podemos dizer que A está contido em
B, sendo A o trabalho fotográfico de Lemos no acervo paulista e B as fotografias do
artista na Coleção Moderna da Fundação Gulbenkian.
Partindo para o campo da fotografia tradicional, até os menos familiarizados
com a técnica sabem que ao revelar o negativo obtemos uma imagem ‘invertida’,
que pode dar origem a outras tantas cópias fotográficas em papel, ou mesmo digital.
Este dado se torna importante na aproximação de um dos ‘pares’ originados
de um mesmo original de Fernando Lemos e que se apresentam de maneiras distintas
nas coleções. São duas ampliações semelhantes, mas com nomes diferentes e invertidas em sua orientação.
Janela. Fernando Lemos. 1949/52
Coleção Moderna Calouste
Gulbenkian
Aquecimento Global.
Fernando Lemos.
1949/52. Coleção MAM-SP
Na coleção portuguesa, uma das obras tem o título de Janela e no MAM-SP
ela é nomeada como Aquecimento Global. Os títulos por si próprios indicam que a
cópia no museu brasileiro é a mais recente, por se referir a um conceito discutido
somente a partir do século XXI.
Ao verificarmos a procedência e data da incorporação da obra encontrada nos
dados fornecidos pelo MAM-SP (Doação do artista em 24/06/2008), temos a certeza
cronológica que esta é uma cópia mais recente do mesmo negativo que originou a
obra que se encontra na Coleção Moderna da Fundação Gulbenkian. A confirmação
desta situação se encontra em um texto descritivo da própria coleção portuguesa: ‘No
entanto, em impressões mais recentes (2004/2005), a imagem encontra-se invertida
horizontalmente, com a janela aberta para o lado direito, e com o título Aquecimento
Solar, em vez do título original Janela’.
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conSideraçõeS finaiS
Apesar deste simples exercício de aproximar e conhecer essas fotografias,
acreditamos que o conceito de semelhança e sobrevivência dos arquivos são importantes no caminho a ser percorrido nos estudos da imagem contemporânea. Ao entendermos essas imagens como sobreviventes de uma história recente dos museus e da
própria fotografia, os retiramos, mesmo que seja através de suas cópias, de uma possível inércia adquirida ao se transformarem em ‘obras’ e participarem desses acervos.
A noção de semelhança também nos indica um percurso metodológico a ser seguido
na aproximação dessas coleções e na continuação deste estudo. As zonas de contato
identificadas a partir desses conceitos, funcionam como catalisadoras de novas leituras destes arquivos enquanto mídia e obras de arte.
referênciaS
CHIARELLI, Tadeu (Ed.). O Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Banco Safra,
1998.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
DIDI-HUBERMAN, George. A Imagem Sobrevivente - História da Arte e Tempo dos Fantasmas
segundo Aby Warburg. São Paulo: Editora Contraponto, 2013.
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FOUCALT, Michel. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. Portugália
Editora, Lisboa, 1966.
GRANDE, Nuno (coord). 30 Anos/years: Centro de Arte Moderna Fundação Calouste Gulbenkian.
Lisboa: CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.