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Marxismo e modernidade em Fredric Jameson

2017

Esta dissertação visa apresentar um estudo sobre a obra do crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, a fim de identificar como ela pode ser lida na chave da teoria social. Para tanto, elegeu-se dois parâmetros principais: o tema da modernidade e a tentativa marxista de conceituar o capitalismo contemporâneo. O objetivo central foi promover uma análise da periodização histórica que é proposta pelo autor sob os termos “pós-modernismo”, “capitalismo tardio” e “globalização”, e como ela apresenta uma visão sistêmica e totalizante das transformações sociais das últimas décadas, baseando-se, sobretudo, na interpretação de textos que compõem sua produção intelectual a partir dos anos 1980. Trata-se, portanto, de um estudo que teve o sentido de relacionar problemas conceituais da sociologia à compreensão da sociedade capitalista em seu estágio mais recente. Nosso objetivo último foi fornecer uma contribuição à interpretação da obra de Jameson, bem como ao campo da teoria marxista e à sua compreensão crítica da atualidade.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA GIOVANNA HENRIQUE MARCELINO Marxismo e modernidade em Fredric Jameson Versão Corrigida São Paulo 2017 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Marxismo e modernidade em Fredric Jameson Giovanna Henrique Marcelino Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Sociologia Orientador: Prof. Dr. Ricardo Musse Versão Corrigida São Paulo 2017 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo M 314m Marcelino, Giovanna Marxismo e modernidade em Fredric Jameson / Giovanna Marcelino ; orientador Ricardo Musse. - São Paulo, 2017. 194 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Sociologia. Área de concentração: Sociologia. 1. Fredric Jameson. 2. Marxismo. 3. Modernidade. 4. Pós-modernismo. 5. Globalização. I. Musse, Ricardo, orient. II. Título. MARCELINO, Giovanna Henrique. Marxismo e modernidade em Fredric Jameson. Dissertação (Mestrado) apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Aprovada em: Banca Examinadora: Prof. Dr. _________________________ Instituição: _________________________ Julgamento _______________________ Assinatura: _________________________ Prof. Dr. _________________________ Instituição: _________________________ Julgamento _______________________ Assinatura: _________________________ Prof. Dr. _________________________ Instituição: _________________________ Julgamento _______________________ Assinatura: _________________________ Prof. Dr. _________________________ Instituição: _________________________ Julgamento _______________________ Assinatura: _________________________ AGRADECIMENTOS A presente dissertação foi resultado de cerca de três anos de estudos, reflexões e maturação de ideias. Foi um período de muito aprendizado, em que tive a sorte de encarar o trabalho de pesquisa com o apoio de diversas pessoas. Por isso, nada mais justo do que agradecer a todas e todos que me acompanharam e tornaram possível a elaboração deste trabalho. Agradeço ao meu orientador, Ricardo Musse, pela acolhida e pelo apoio dado durante todo o processo, e por ter sido fundamental na minha formação acadêmica desde as disciplinas ministradas na graduação, que me levaram à incursão nos estudos marxistas. Ao professor Fredric Jameson, a quem sou imensamente grata por ter me recebido de forma tão generosa na Universidade de Duke. Ter acompanhado de perto a notoriedade de seu trabalho intelectual foi algo simplesmente fascinante e gratificante, e que proporcionou reflexões essenciais. A presente dissertação não teria sido a mesma sem as aulas assistidas, as conversas, a leitura atenciosa dada ao trabalho e os materiais e livros concedidos durante a visita. Nesse sentido, devo agradecer igualmente a Wendy Weiher, secretária de Jameson, por toda a ajuda prestada antes e durante a viagem – elas foram fundamentais para que a estadia em Duke se tornasse possível. Agradeço também aos colegas do Marxist Reading Group, Brendan, Claire, Eylül, Jaime, Jake, Jess, Yair, e os queridos roomates Giulia, Justin e Lucas por terem tornado a viagem aos Estados Unidos acolhedora. Aos colegas do grupo de orientação, com os quais aprendi muito nesses anos de trabalho: Anouch, Bruna, Danilo, Eduardo, Fábio, Fernando, Gustavo, Ilan, Jacques, Jesus, Ricardo, Thomas, Ugo. Também gostaria de registrar agradecimentos especiais à minha família. Agradeço, com profundíssimo afeto, à minha mãe Rosana e minha avó Manoelina, e suas batalhas, as quais admiro e devo muito. Obrigada por todo amor, preocupação e pela entrega incondicionais de vocês, por terem me criado com tanto carinho e me apoiado durante as minhas escolhas. À minha querida irmã Ana, eterna companheira e amiga, por sempre me ajudar, incentivar, e por cuidar de mim. Sou o que sou pelo o que vocês são e me ensinaram a ser. Ao Eduardo, pelo amor, carinho e companheirismo sem tamanhos, que me alegram todos os dias e que simplesmente me acompanharam nos momentos – dos mais felizes aos mais intensos – da escrita da dissertação. Aos meus amigos e amigas que tive a grande sorte de conhecer durante o curso de Ciências Sociais, com os quais compartilho muitas memórias alegres, e aqueles que tive o imenso prazer de conhecer durante o mestrado: Ariane, Beatriz, Carol, Karina, Maria Carolina, Maria Augusta, Mariana, Matheus, Samir, Ivo, Natalia, Eduardo. Finalmente, aos companheiros de militância, com os quais compartilho dia-a-dia os diferentes significados e sentidos de se lutar por uma vida mais liberta: às incríveis Paula, Sâmia, Giulia, Tati, Evelin; aos companheiros da Revista Movimento, Adria, Charles, Flavia, Gustavo, Tiago, Thiago, Pedro; aos que tive a felicidade de fazer em Campinas, Barbara, Bia, Bianca, Bruno, Didi, Eli, Gui, Indy, Isa, Jesus, Larissa, Lê, Mila, Otavio, Rafa, Rogério, Tuany, Victor. Vocês são imprescindíveis. Obrigada por me ajudarem a perceber a realidade enviesada do mundo. Esta pesquisa contou com o importante apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no período de 01/02/2015 a 31/03/2015 e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), n processo 2014/25533-4, no período de 01/05/2015 a 01/06/2017. Vale ressaltar que as opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. (...) pelo mesmo processo dialético todo problema de categoria se transforma em um problema histórico. Mas (deve notar-se): em um problema da história universal que agora aparece... simultaneamente como um problema de método e um problema do nosso conhecimento sobre o presente. (Georg Lukács, História e Consciência de Classe) RESUMO MARCELINO, G. H. Marxismo e modernidade em Fredric Jameson. 2017. 194f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Esta dissertação visa apresentar um estudo sobre a obra do crítico marxista norteamericano Fredric Jameson, a fim de identificar como ela pode ser lida na chave da teoria social. Para tanto, elegeu-se dois parâmetros principais: o tema da modernidade e a tentativa marxista de conceituar o capitalismo contemporâneo. O objetivo central foi promover uma análise da periodização histórica que é proposta pelo autor sob os termos “pós-modernismo”, “capitalismo tardio” e “globalização”, e como ela apresenta uma visão sistêmica e totalizante das transformações sociais das últimas décadas, baseandose, sobretudo, na interpretação de textos que compõem sua produção intelectual a partir dos anos 1980. Trata-se, portanto, de um estudo que teve o sentido de relacionar problemas conceituais da sociologia à compreensão da sociedade capitalista em seu estágio mais recente. Nosso objetivo último foi fornecer uma contribuição à interpretação da obra de Jameson, bem como ao campo da teoria marxista e à sua compreensão crítica da atualidade. Palavras-chave: 1) Fredric Jameson; 2) Marxismo; 3) Modernidade; 4) Capitalismo tardio; 5) Pós-modernismo; 6) Globalização; 7) Dialética. ABSTRACT MARCELINO, G. H. Marxism and modernity in Fredric Jameson. 2017. 194f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. This dissertation aims to present a study on the work of the American Marxist critic Fredric Jameson in order to identify how it can be read in the key of social theory. For this, two main parameters were chosen: the theme of modernity and the Marxist attempt to conceptualize contemporary capitalism. Thus, our central goal was to promote an analysis of the historical periodization proposed by the author under the terms "postmodernism", "late capitalism" and "globalization", and how it presents a systemic and totalizing vision of the social transformations of the last decades, based mainly on the interpretation of texts that compose his intellectual production from the 1980s. It is therefore a study that aimed to relate conceptual problems of sociology to the understanding of capitalist society at its most recent stage. Our ultimate goal was to provide a contribution to the interpretation of Jameson's work, as well as to the field of Marxist theory and its critical understanding of actuality. Key words: 1) Fredric Jameson; 2) Marxism; 3) Modernity; 4) Late capitalism; 5) Postmodernism; 6) Globalization; 7) Dialetic. SUMÁRIO Introdução.................................................................................................................... 1 Capítulo 1 – O marxismo de Jameson............................................................... 13 1.1 A defesa da dialética................................................................................................. 15 1.2. Marxismo versus Estruturalismo?........................................................................... 32 1.3. Do texto ao contexto................................................................................................ 39 1.4. Dialética ou ecletismo?............................................................................................ 51 Capítulo 2 – Pós-modernismo e a busca pela totalidade............................. 59 2.1. Fim da modernidade?............................................................................................... 61 2.2. A hipótese pós-moderna .......................................................................................... 67 2.3. O pós-modernismo de Jameson................................................................................ 72 2.4. Periodizando os anos 60........................................................................................... 87 2.4.1. Da política de classes às políticas de identidade........................................94 2.4.2. O fim do modernismo e a mudança de função social da cultura...............105 2.4.3. A “morte da filosofia” e o advento da Teoria contemporânea..................112 2.4.4. Um novo estágio do capitalismo...............................................................114 2.5. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio...................................... 122 2.5.1. O problema da base econômica................................................................123 2.5.2. Os sintomas sociais pós-moderno............................................................130 Capítulo 3 – Globalização e estratégia política............................................. 144 3.1 O novo estágio do capital financeiro........................................................................ 146 3.2. O inconsciente político da globalização.................................................................. 156 3.3. Mapeamento cognitivo e utopia..............................................................................167 Referências Bibliográficas................................................................................... 187 Introdução Fredric Jameson é amplamente considerado um dos mais importantes críticos marxistas da atualidade, devido, principalmente, ao alcance e abrangência de suas análises – que envolvem os mais diversos produtos culturais contemporâneos da literatura, cinema, arquitetura, etc. –, aliada à preocupação de defender o marxismo e sua capacidade de interpretar e decifrar as mudanças históricas processadas na esfera da cultura e da sociedade nas últimas décadas. Tal reconhecimento revela já de início o que consiste no principal desafio e na principal recompensa de uma aproximação da obra de Jameson, de forma semelhante ao que acontece em tantos outros estudos que optam pela análise e imersão no pensamento de um determinado autor: a possibilidade de entrar na mente de um intelectual e em um universo teórico denso que dá acesso à diversos temas e debates de época, algo imprescindível para qualquer um que se encontre em situação de formação acadêmica. Tendo em vista que a presente abordagem é apresentada num momento em que o trabalho deste autor já atingiu há certo tempo sua maturidade, influência e notoriedade, pareceume, portanto, inevitável partir de questões que influenciam a minha própria posição de estudante em pleno treinamento intelectual: entender a relevância que a teoria de Jameson tem para o campo da Sociologia e para a compreensão crítica da sociedade capitalista contemporânea. Pode-se dizer que alguns passos foram tomados para se chegar a este objetivo geral que norteia os interesses da presente dissertação. Primeiramente, o principal ponto de partida foi reconhecer que a obra de Jameson constitui uma totalidade, que, para efeitos de pesquisa, requer inevitavelmente uma abordagem particular. 1 Nesse sentido, o recorte temático e temporal escolhido pressupõe que ela pode ser dividida, grosso modo, em três momentos principais e interligados: 1) o período de 1960 e 1970, marcado pelos estudos no âmbito da literatura, no qual Jameson inicia seu interesse e comprometimento pela 1 Cabe assinalar que, em seis décadas de produção, o autor produziu uma obra extensa e coesa, cujo estatuto está relacionado à amplitude dos assuntos e campos disciplinares com que trabalha (teoria literária, crítica cultural, tendências contemporâneas da filosofia, política) e a quantidade de referências mobilizadas em suas análises (desde o diálogo crítico com diferentes tradições contemporâneas, como existencialismo, formalismo, estruturalismo, semiótica, pós-estruturalismo, psicanálise, pós-modernismo, até as variadas formas de manifestação cultural, como o romance realista, a ficção científica, a arte pós-moderna, as tendências contemporâneas do cinema, vídeo, arquitetura, etc.). 1 teoria marxista, consolidando-se como referência na construção de um modelo hermenêutico alternativo à concepção hegemônica na crítica literária norte-americana da época de se pensar os textos dissociados de seu contexto; 2) a década de 1980, na qual se evidencia uma expansão nas preocupações intelectuais do autor – da consolidação de um modelo de interpretação de textos literários para a construção de um método de crítica dialética da cultura e da sociedade em geral –, expansão que dá início à formulação de seu diagnóstico do terceiro estágio do capitalismo por meio das noções de “pósmodernismo” e “capitalismo tardio”; e 3) 1990 até o momento, em que seu projeto teórico se torna multifacetado, apresentando tanto a continuidade de suas análises culturais como o esforço de aperfeiçoamento das elaborações históricas iniciadas nos anos 1980, com a adesão ao conceito de “globalização”. 2 O presente estudo visa, portanto, uma abordagem da teoria de Jameson que respeite esses diferentes momentos, vistos não de forma estanque, mas como artifícios construídos para se obter um senso de norteamento diante de uma obra tão vasta e multitemática. Tendo em vista o objetivo principal estabelecido – um estudo sobre o pensamento de Jameson, mais especificamente, sobre como ele pode ser lido como um teórico do capitalismo –, me apoiarei, sobretudo, na variação gradual de ênfase ao longo de seu trabalho (reconhecida pelo próprio autor) do “vertical” ao “horizontal”: do interesse na intepretação e nas múltiplas dimensões e níveis de um texto aos problemas da historiografia e do modo de produção em geral.3 Assim, o tratamento da obra de Jameson apresentado aqui partirá desse itinerário em que suas preocupações estéticas se revelam em preocupações sociais, ou ainda, em que uma imagem da vida social é projetada no bojo de suas análises culturais, algo que não é nada surpreendente tendo em vista que o autor, seguindo uma linhagem de estudos materialistas anteriores,4 encara a 2 Cf. Anderson, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999; Homer, S. Marxism, Hermeneutics, Postmodernism. Cambridge: Polity Press, 1998; Kellner, D. & Homer, S. (org.). Fredric Jameson: a critical reader. New York: Palgrave Macmillan, 2004. 3 Cf. Jameson, F. “Introduction”. Em: Jameson, F. The Ideologies of Theory: essays 1971-1986. Volume I: Situations of Theory. Minneapolis: University of Minnesota, 1989, p. xxix. 4 A obra de Jameson possui um forte vínculo com a tradição materialista de interpretação da cultura. Vale lembrar que se trata de um tipo de estudo posterior a Marx, já que este não chegou a se dedicar a uma sistematização dos fenômenos culturais. Segundo Raymond Williams, Marx teria esboçado uma teoria da cultura, embora nunca a tenha desenvolvido plenamente. Cf. Williams, R. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 290. Da mesma forma, Lukács aponta que ele nunca escreveu um livro organizado ou mesmo um ensaio sobre problemas culturais, no sentido estrito da palavra; seus escritos estéticos aparecem senão em cartas, anotações de conversas ou trechos extraídos de trabalhos dedicados a temas diversos. A organização destes textos, bem como o estudo deles, derivaram, portanto, de iniciativas posteriores, como as realizadas pela a Escola de Frankfurt, Gramsci, Raymond Williams, e pelo próprio Lukács, que é um dos que inicia esse trabalho, dedicando-se à sistematização de uma teoria literária 2 cultura e os artefatos culturais como veículos de compreensão do presente histórico, ou melhor, como um dos meios pelos quais a História pode ser propriamente subjetivada, tornando-a acessível para análise e interpretação na forma textual.5 O que pretende-se explorar nesta dissertação, portanto, é como Jameson nos apresenta ao longo de sua obra um estudo do capitalismo, cujo ponto de partida são as superestruturas. Assim, para a execução deste recorte de pesquisa, partiu-se do pressuposto de que a década de 1980 representa um ponto de inflexão importante na trajetória intelectual de Jameson, do ponto de vista a ser aqui trabalhado: o momento em que seu trabalho de crítica literária se vincula mais fortemente com a formulação de uma crítica da sociedade contemporânea, de forma que o presente estudo se centrará não na temática que propriamente consolidou a posição de Jameson na teoria marxista – a sua crítica cultural –, mas na própria relação íntima que ela possui com esse outro aspecto, que ocupa uma posição igualmente importante em sua obra, a crítica social (sem, no entanto, entendê-las como dimensões separadas, ignorando sua teoria da cultura ou tratando-o como um sociólogo em sentido estrito, já que isso seria ir contra a própria essência do trabalho crítico de Jameson). Desse modo, antes de introduzir um panorama de como a dissertação se encontra estruturada a partir desse fio condutor geral, vale destacar brevemente alguns procedimentos iniciais que fundamentaram a pesquisa, no processo de tornar a obra de Jameson um objeto de estudo. Primeiramente, elegeu-se como metodologia principal a exegese de um conjunto de textos do autor que melhor expressam o foco de investigação da dissertação, algo que, como o leitor poderá notar, acabou conferindo a certos marxista e de uma interpretação dos estudos econômicos do Marx, sobretudo em O Capital, que privilegiasse a questão do fetichismo da mercadoria e como as forças do modo de produção operam sobre a subjetividade, estruturando as consciências e sentidos dos sujeitos. Segundo Lukács, ao contrário da conexão causal que o “marxismo vulgar” estabelece entre estrutura e superestrutura, entendendo esta última como produto mecânico e passivo do processo econômico que lhe serve de base, deve-se enxergar as complexas interações que estas duas dimensões concretizam no processo histórico-social. Nesse sentido, as esferas política, jurídica, religiosa, artística, etc., baseiam-se no econômico, ao mesmo tempo em que reagem mutuamente umas sobre as outras e, também, sobre a base econômica. Cf. Lukács, G. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 14-16. Jameson claramente é um adepto dessa visão. 5 Como veremos a seguir, para Jameson, todo produto cultural contém um inconsciente político (termo cunhado por ele); ou seja, inconscientemente, todo artefato cultural contém em si uma historiografia de sua própria época, na maioria das vezes de uma forma reprimida, sendo assim a tarefa do crítico conseguir interpretá-la e decifrá-la. Desse modo, o autor se preocupa em analisar as produções culturais como meio de mapear os traços sociais e históricos que organizam a sociedade e, assim, “periodizar” o capitalismo. Devido ao recorte e ao tempo da pesquisa, no entanto, não iremos expor de forma detalhada as análises culturais das quais Jameson extrai a sua teoria social, apenas citando-as no decorrer da presente exposição. 3 momentos do trabalho de exposição um caráter resenhístico ou de paráfrase. Em segundo lugar, tendo em vista que os textos trabalhados estão localizados em um contexto mais amplo de debate teórico, optou-se também por situá-los historicamente, de forma a evidenciar como as principais contribuições e intervenções teóricas de Jameson, assim como o tipo de marxismo que empenha, guardam vários sinais de um período particular: o quadro histórico e intelectual da segunda metade do século XX, marcado por profundas transformações econômicas, sociais e políticas, concomitantes ao surgimento do que se convencionou chamar de “crise do marxismo” e do surgimento de novas abordagens teóricas que anunciavam o “fim da modernidade”. Nesse sentido, utilizar-se-á do princípio pregado por Jameson (“Historicizar sempre!”) para pensar a sua própria obra, de forma a tentar agenciar ao máximo uma compreensão crítica de suas contribuições teóricas sob o pano de fundo subjacente em que elas se deram. Situar historicamente é algo importante para qualquer autor, mas, no caso particular de Jameson, é crucial, devido ao fato de que cada texto seu, sobretudo os que serão analisados na presente dissertação, representa uma intervenção em um conjunto de questões e debates que surgiram em diferentes circunstâncias (empirismo, desconstrutivismo, estruturalismo, pós-modernismo). Ou seja, o cenário não é só determinante para entender sua obra, como ele atravessa as reflexões deste autor, que, por sinal, vivenciou diferentes momentos importantes da história intelectual e política recente no decorrer de sua trajetória – a Era Eisenhower nos Estados Unidos dos anos 1950, a radicalização dos movimentos sociais nos anos 1960, a crise do capitalismo nos anos 1970, a derrocada do socialismo real e virada neoliberal em 1980 e 1990 –, o que explica, inclusive, uma certa oscilação de ênfases em suas análises do atual momento do capitalismo e sua compreensão do marxismo como unidade entre teoria e prática. 6 6 Como o próprio Jameson aponta, o marxismo, devido à peculiaridade de seu objeto de estudo, tem à sua disposição duas linguagens pelas quais descreve os fenômenos sociais: “a linguagem subjetiva, pela qual a história pode ser descrita como a “história da luta de classes”, ou a objetiva, pela qual se privilegia o “desenvolvimento dos modos de produção econômica e sua evolução a partir de suas próprias contradições internas”. Para Jameson, o uso de cada linguagem deve ser analisada “em relação ao momento histórico em que cada uma se desenvolveu”: “Karl Korsch mostrou o significado da alternância dessas duas linguagens no próprio desenvolvimento pessoal de Marx: a ênfase no fator subjetivo – na história como luta de classes, que é mais evidente, é claro, no Manifesto (1848) –, reflete um período de atividade revolucionária genuína, no qual as forças revolucionárias eram capazes de perceber a história como o resultado de sua própria práxis. A elaboração de Das Kapital (1967), contudo, que enfatiza fortemente a importância dos fatores econômicos e da evolução interna da economia, corresponde a um período de reação (o segundo império) em que é necessário mostrar precisamente que as revoluções não ocorrem até que o tempo tenha amadurecido, mas que elas são também o resultado inevitável da elaboração das contradições econômicas internas” (Jameson, F. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1985, pp. 229-30). 4 Assim, combinou-se interpretação e historicização para compreender tanto o desenvolvimento interno da obra de Jameson, quanto o ambiente de época no qual ela está inserida, na sua própria tentativa de entender essa época. Com isso, o objetivo foi promover uma análise de sua teoria levando em conta suas próprias declarações filosóficas, ao mesmo tempo em que encarando-as como objeto histórico-sociológico, de forma a explicitar a originalidade e as especificidades de sua obra e desvendar o significado de suas intervenções sob os contextos originais em que elas se deram. Além disso, considerou-se, também, a importância de investigar as bases teóricas que serviram de suporte para a interpretação de Jameson sobre a atual fase do capitalismo. Porém, não foi possível esgotá-la por completo, tendo em vista a quantidade de fontes (que vão especialmente da tradição dialética alemã ao pensamento francês, passando por Lukács, Adorno, Bloch, Benjamin, Marcuse, Sartre, Althusser, Baudrillard, Barthes, Deleuze, Lyotard, Habermas, Mandel, Arrighi, etc.), sendo algo ambicioso para o período disponível para a pesquisa, de forma que tentou-se operar a relação da teoria de Jameson com outros autores e interlocutores, fundamental para uma compreensão crítica de seu pensamento, na medida do possível, ao decorrer da análise. Tendo isso em vista, pode-se dizer que as reflexões que permeiam a presente dissertação giram em torno de dois parâmetros principais. O primeiro refere-se à modernidade, questão proeminente na história da tradição sociológica e tema basilar para entender as tentativas atuais de se conceituar o período histórico e de nomear o tipo de sociedade em que nós vivemos hoje. Assim, um dos problemas específicos foi analisar como esse debate está traduzido na obra do Jameson, no seu esforço de mapear e periodizar a história recente do capitalismo sob os termos “pós-modernidade”, “capitalismo tardio” e “globalização” e como estes levantam elementos originais para uma interpretação da sociedade capitalista contemporânea. A intenção aqui foi evidenciar como, por meio de uma abordagem dialética do desenvolvimento histórico do capitalismo nas últimas décadas, Jameson fornece uma compreensão abrangente da vida social, apresentando um quadro de redefinições culturais, políticas e econômicas fundamentais a partir do pós-guerra, no qual localiza traços característicos de nossa época, entre eles, uma mudança significativa na estrutura da subjetividade – sobretudo no que se refere à experiência existencial dos indivíduos, caracterizada por uma “presentificação”, pela perda de historicidade e pela substituição do sujeito centrado moderno por um eu fragmentado; o deslocamento do tempo para o espaço, como categoria que organiza as 5 experiências sociais contemporâneas; o fim da autonomia da cultura, que acaba por promover a dissolução da diferenciação entre cultura e economia; uma transmutação do fenômeno da reificação – de forma que o fetiche hoje derivaria não apenas da autonomia ilusória das coisas, mas também das imagens, generalizando-se seus efeitos na vida cotidiana, cada vez mais estética e fragmentada; e pela problematização da possibilidade de autonomia e emancipação do sujeito, expressa pela degradação do eu e pelo conceito de utopia. Assim, faz parte desse primeiro eixo de investigação a tentativa de conectar a proposta de periodização de Jameson ao debate processado no interior da teoria social em torno da questão sobre o “fim da modernidade” e do surgimento de uma série de novas terminologias para se designar o momento social contemporâneo. Com isso, pretende-se tanto posicionar a teoria do autor no contexto mais amplo de debate teórico no qual ele está inserido, quanto trabalhar a ideia de que o que estamos chamando de teoria social na obra de Jameson está fundamentada na existência de múltiplos “fins do moderno”: o fim da arte moderna, tendo como marco sua institucionalização, bem como a abolição das fronteiras entre alta cultura e cultura de massas e o surgimento de novas formas artísticas nos anos 1960; na economia, a emergência de um terceiro estágio do capitalismo a partir dos anos 1970, que substitui a fase imperialista anterior, e pela qual o sistema atinge um patamar mais global, com novas formas de dominação econômicas e culturais; na política, a crise das vanguardas e dos projetos revolucionários modernos, no contexto de emergência dos “novos movimentos sociais” e do choque entre políticas de classe e políticas de grupos e identidades; no nível social, o fim da autonomia das diferentes esferas sociais e sua completa “desdiferenciação”. Nesse sentido, é importante também notar como Jameson faz parte de uma geração de marxistas que, na tentativa de disputar a vitalidade e vigência da obra de Marx nesse momento histórico e político controverso para o marxismo, produziu uma série de importantes inovações teóricas.7 Por meio do resgate da perspectiva da totalidade sistêmica, diversas “noções-chave” foram utilizadas nesse sentido: além de “pós7 Num espectro amplo, compostos por marxistas e neo-marxistas, Perry Anderson, Terry Eagleton, François Chesnais, Alain Badiou, Étienne Balibar, Daniel Bensaid, Slavoj Zizek, Giovanni Arrighi, Samir Amin, Immanuel Wallerstein, Robert Brenner, Fredric Jameson, David Harvey, Moishe Postone, Ellen Wood, Mike Davis, Michael Burawoy, Erik Olin Wright, Nancy Fraser, Alex Callinicos, Michael Hardt, Antonio Negri, Ernesto Laclau, Chantal Mouffe são alguns dos autores que mobilizam um conjunto de temas que tradicionalmente constituíram objetos de análise do marxismo e os reatualizam para entender o momento histórico específico. 6 modernidade” e “globalização”, “neoliberalismo”, “financeirização”, “hegemonia” e “imperialismo” serviram de apoio para que fosse recolada na ordem do dia a pertinência e relevância da crítica marxista e de seus conceitos para a compreensão da sociedade, cada uma delas responsável por denotar algum aspecto – econômico, político, militar ou cultural – do capitalismo contemporâneo. 8 Com efeito, o objetivo principal da dissertação é explorar os conceitos de periodização que foram em particular escolhidos por Jameson para caracterizar o capitalismo contemporâneo, quais sejam, o pós-modernismo, que substitui o modernismo no nível cultural; a ideia de “modernização completa”, que define, em termos econômicos e sociais, a colonização final de todas as esferas da vida pelo capitalismo e dos últimos enclaves modernos de resistência à mercantilização (como a Natureza e o Inconsciente, segundo Jameson); em termos históricos, a ideia de passagem da modernidade para a pós-modernidade (apresentada também como capitalismo tardio, e em textos mais recentes, como globalização).9 Quanto a isso, pode-se dizer de forma sucinta que a principal intervenção de Jameson no debate, junto a outros marxistas, foi o de resgatar uma identificação entre os conceitos de modernidade e capitalismo. 10 A sua proposta de periodização implica a ideia Em termos gerais, pode-se dizer que a terminologia pós-modernismo “diz respeito, sobretudo, às ‘dominantes culturais’ do capitalismo contemporâneo”; a de globalização, “às características gerais do mercado mundial hodierno”; a de financeirização exprime “a dimensão financeira da acumulação, tornada tão saliente nas últimas décadas”; a de neoliberalismo designa também “aspectos ideológicos, bem como um arcabouço institucional e de políticas públicas que se firmou e disseminou após a década de 1970”; as de hegemonia e imperialismo “concernem aos arranjos interestatais e também a importantes características do mercado mundial”. Cf. Mello, G. M. C. Teorias marxistas sobre o capitalismo contemporâneo. 2012. 324 f. Tese de Doutorado em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 131. Assim, são expressões de certa forma complementares, além de extremamente polissêmicas, cada uma assumindo um significado dependendo da abordagem do autor determinado que a utiliza. 9 Iremos trabalhar, portanto, como Jameson enxerga as transformações de conceitos clássicos, como modernismo, modernidade e modernização. Como apresentado por Marshall Berman, modernidade é um conceito histórico, relacionado ao desenvolvimento econômico do capitalismo. O termo modernização, por sua vez, refere-se ao desenvolvimento de processos sociais como descobertas científicas, revoluções na indústria, transformações demográficas, expansão urbana, etc.. Já o modernismo, designa o conjunto de visões, ideias e valores nascidas relacionadas a essa experiência da modernização, expressando uma percepção e visão de mundo dessas mudanças particulares da conjuntura histórica. Cf. Berman, M. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 10 De acordo com Musse, o pós-modernismo acabou “se convertendo em um tópico essencial do debate marxista (..) no bojo da discussão sobre o sentido e o significado da modernidade” (Musse, R. O debate marxista sobre a pós-modernidade. Revista Z Cultural (UFRJ), ano VII, n. 3, p. 1-5, 2012, p. 1). Esta discussão encontra-se presente em obras como: Habermas, J. Modernidade versus pós-modernidade. Arte em revista, n. 7, p. 86-91, ago. 1983; Jameson, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1996; Harvey, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992; Callinicos, A. Against Postmodernism: a Marxist critique. 8 7 de que modernidade e pós-modernidade correspondem a fases do capitalismo, de forma que a passagem de uma a outra deve ser vista do ponto de vista do desenvolvimento histórico mais geral do sistema. 11 Além disso, Jameson tenta seguir um dos legados de Marx: a reflexão dialética dos processos históricos. Da mesma forma como este analisou o surgimento da época moderna como portadora tanto do progresso quanto da catástrofe – ou seja, como estágio simultaneamente progressivo e contraditório do momento histórico, alimentado pelas duas faces, negativa (exploração, reificação, dominação, desigualdade, etc.) e positiva (urbanização, industrialização, etc.), do desenvolvimento capitalista –, a emergência do período pós-moderno é analisado por Jameson nesse mesmo protótipo dual e ambivalente, levando em consideração suas promessas (pluralismo, liberação, etc.) e perdas (homogeneização, falta de historicidade, fragmentação, etc.).12 Como tentarei trabalhar ao longo da dissertação, esta interpretação de Jameson trouxe diversos ganhos, ao evitar, por exemplo, supersimplificações ideológicas sobre o real significado e sentido das mudanças de época processadas no final do século XX (que muitos consideraram como sendo a emergência de uma ordem social completamente nova, que colocava em xeque diversos conceitos clássicos de explicação), num momento de ausência de consenso sobre qual seria a melhor forma para nomeá-las (sociedade pós-industrial? sociedade pós-moderna? do consumo, informação, mídia, tecnologia?). Jameson consegue de certa forma evitar a dupla armadilha de, diante deste contexto, defender uma posição nostálgica de uma volta ao passado moderno, ou de simplesmente se acomodar no discurso de que tudo mudou e vivemos mediante circunstâncias completamente novas. Entretanto, sua interpretação também apresenta Cambridge: Polity Press, 1991; Eagleton, T. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 11 Há autores que discordam com essa associação. Na visão de Daniel Bensaid, por exemplo, a divisão ou polarização entre modernidade e pós-modernidade para se compreender a história recente do capitalismo é questionável, na medida em que elas "não constituem duas sequências cronológicas, mas duas tendências contraditórias inerentes à lógica do valor que se valoriza: centralização e fragmentação, cristalização e dissolução, deslocamento e territorialização, economia durável e dilapidação efêmera, unidade e dispersão, universalidade e singularidade, razão e desrazão” (Bensaid, D. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 81-82). Assim, modernidade e pós-modernidade na verdade seriam duas faces de Jano, “dois pólos magnéticos da acumulação do capital”, de forma que o melhor seria apagar sua oposição e "dar lugar à análise das relações internas produzidas pelo Capital em sua totalidade" (Ibidem, p. 84). Cf. também Wood, E. M. Modernity, postmodernity, or capitalism? Review of International Political Economy, v. 4, n. 3, 1997a. 12 “Marx nos incita a fazer o impossível, a saber, pensar esse desenvolvimento de forma positiva e negativa ao mesmo tempo; em outras palavras, chegar a um tipo de pensamento capaz de compreender ao mesmo tempo as características demonstravelmente funestas do capitalismo e seu extraordinário dinamismo liberador em um só raciocínio e sem atenuar a força de nenhum desses dois julgamentos. Devemos, de algum modo, elevar nossas mentes até um ponto em que seja possível entender o capitalismo como, ao mesmo tempo, a melhor e a pior coisa que jamais aconteceu à humanidade” (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 73). 8 algumas inconsistências, identificadas, sobretudo, no momento em que apresenta ao longo de sua tentativa de periodização histórica uma série de terminologias e referências teóricas (como pós-modernismo, capitalismo tardio, globalização, capitalismo multinacional, sociedade da imagem, etc.) de forma embaralhada, ou às vezes usando-as como sinônimos, o que acaba revelando algumas incongruências, fazendo-o de certa forma reproduzir a falta de profundidade analítica que ele mesmo sempre criticou em relação as teorias pós-modernas convencionais. O segundo eixo que organizou o processo de pesquisa – referente a primeira parte do título da dissertação – diz respeito a como a interpretação proposta por Jameson é também um termômetro da configuração da teoria marxista nas últimas décadas, em especial da tradição pela qual sua obra emerge e continua por operar e desenvolver – o marxismo ocidental –, bem como do surgimento de um novo espaço enunciativo, denominado “Teoria”.13 Assim, pretende-se averiguar como traços distintivos de sua obra – tais como a tensão criativa com correntes não-marxistas, a expansão da crítica dialética para além do campo da economia política, o entendimento crítico da sociedade que envolve a reflexão sobre o método e epistemologia, etc. – estão conectados a um processo mais geral de modificação teórica, sobretudo no contexto particular da academia norteamericana no qual está inserido. Nesse sentido, trabalhou-se como o contato de Jameson com tendências não-marxistas (como o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, etc.), não é apenas fundamental para entender sua obra, como a faz um ponto de vista privilegiado para compreender as movimentações e deslocamentos que a teoria marxista como um todo operou especialmente no contexto da década de 1970 e 1980, tendo em vista o impacto e a influência dessas vertentes nas ciências humanas, que fizeram com que fosse questionada a validade de diversos conceitos marxistas para a análise e compreensão da sociedade. Com isso, pretende-se, portanto, entender o marxismo de Jameson como específico de um ambiente particular e sua contribuição como representativa de um dos esforços contemporâneos surgidos no marxismo no cenário de “desmarxificação”, sendo uma espécie de testemunho dos dilemas que fizeram parte da agenda dos debates marxistas no final do século XX. Dito isso, segue, então, como tais questões encontram-se devidamente organizadas. O primeiro capítulo visa apresentar um panorama mais geral sobre o 13 Cf. Anderson, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004; Durão, F. A. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. São Paulo: Autores Associados, 2011. 9 marxismo de Jameson, centrado na exposição de um dos traços principais e uma das marcas teóricas distintivas de sua obra: a sua compreensão do método dialético. Para isso, será feita uma breve recuperação da forma como ela ganha sentido em seu trabalho, tal como se encontra apresentado em seus primeiros livros Marxismo e forma (1971), The Prison-house of Language (1972) e O inconsciente político (1981). Com isso, pretendese ressaltar aquilo que propriamente especifica e singulariza a teoria de Jameson: a forma como, desde o começo de sua trajetória, o autor procede uma atualização do marxismo a partir da conciliação da tradição francesa estruturalista e a tradição dialética alemã. Apesar da presente pesquisa ter como foco a produção de Jameson a partir dos anos 1980, essa questão é recuperada aqui por ser de particular importância para a caracterização de seu marxismo e porque ela na verdade constitui o coração da sua análise da atual fase do capitalismo. Assim, tornar-se-á mais claro como a interpretação de Jameson está fundamentada num movimento duplo: a análise ideológica e descrição histórica, pautada na prática crítica e na defesa da narrativa marxista como a única filosofia capaz de lidar com a fragmentação do conhecimento a partir de uma visão totalizante. No segundo e terceiro capítulos, será apresentado o núcleo principal da presente dissertação: a proposta de periodização de Jameson e a crítica social que ela engendra. Para a questão do pós-modernismo, dois textos principais serão examinados, nos quais sua interpretação se apresenta de forma “condensada”: seu ensaio Periodizando os anos 60 (1984) e o livro Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio (1991). Tais textos foram escolhidos também pelo objetivo de entender duas décadas que marcam a nossa compreensão do momento contemporâneo: os anos 1960 e 1980. A partir deles, fica evidente como a teoria sobre o pós-modernismo de Jameson surge tanto do ambiente de discussões travado especialmente nos departamentos de literatura das universidades norte-americanas, quanto na esteira da chamada “virada cultural” e dos desdobramentos dos debates sobre gênero, raça, classe, etc., que emergiram nos anos 1960. Além disso, eles mostram muito bem as mudanças de temperatura que ocorreram entre a década de 1960 e de 1980, em termos culturais, políticos e econômicos. Percebe-se que Jameson usa criticamente a própria linguagem em voga nessa época como base para uma crítica cultural do capitalismo, retrabalhando os alcances e contradições do conceito de pós-modernismo para reinscrevê-lo na história do capital e de sua lógica de expansão. Sua tese fundamental é de que as mudanças assistidas no último quarto do século XX não significaram o surgimento de um tipo de sociedade 10 totalmente novo, mas sim, o ingresso da sociedade moderna em uma nova etapa do capitalismo, designada “capitalismo tardio” (Mandel). Segundo ele houve, portanto, uma reconfiguração do sistema capitalista, sentida a partir da expansão globalizada do capital e das formas de consumo, pela intensa transformação cultural, pelas novas formas de tecnologia e informação, e pela crescente influência da lógica capitalista nos diversos aspectos da vida social. Assim, Jameson partiu tanto de uma defesa do marxismo, como de uma tentativa de reconstrução desta tradição, mostrando que ela na verdade ofereceria a forma mais abrangente do pós-moderno enquanto um fenômeno social; para isso, dialogou com os acontecimentos culturais e teóricos de sua época, ao mesmo tempo que propôs a superação dialética destes, a fim de atingir uma síntese teórica superior. Nessa direção, uma de suas maiores investidas foi também resgatar a perspectiva da totalidade e sua viabilidade, algo que perpassou toda a tradição do marxismo ocidental. 14 No último capítulo, será abordada a readequação que Jameson promoveu em sua obra em meados da década de 1990, especialmente após as críticas que foram recebidas à sua utilização do conceito de “capitalismo tardio”, que o levaram a incorporação de um novo termo: “globalização”. Para isso, será realizada a análise de alguns textos fundamentais, como O marxismo realmente existente (1993), Cultura e capital financeiro (1997), Notas sobre a globalização como questão filosófica (1998) e Globalização e estratégia política (2000). Percebe-se, a partir deles, uma ampliação dos problemas teóricos trabalhados pelo autor, que passa a abordar também fenômenos que se tornam mais presentes a partir dos anos 1990, após a virada neoliberal e o anuncio do chamado “fim da História”, como o processo de financeirização do capital, a questão das fronteiras nacionais em termos econômicos e culturais e o problema das narrativas emancipatórias após o colapso do comunismo, que impôs novos desafios para se pensar a sociedade e a política. Nesse sentido, Jameson trata com olhar renovado o que ele já havia identificado como um dos traços característicos da pós-modernidade: a espacialização. Com isso, também retoma os principais problemas sociais que esta implica, como a intensificação do grau de fragmentação subjetiva, realçando ainda mais a negatividade de sua análise sobre a sociedade capitalista contemporânea, que já incluía o fim da distinção entre alta cultura e cultura de massas, o descentramento do sujeito, o esmaecimento da historicidade e das vanguardas políticas como sintomas profundos. 14 Cf. Jay, M. Marxism and Totality: The Adventures of a Concept from Lukács to Habermas. Berkeley: University of California Press, 1984 11 Por fim, a dissertação é encerrada com uma análise daquele elemento pelo qual o próprio Jameson termina muitos de seus textos: o pensamento utópico e a proposta de mapeamento cognitivo, usado para contrabalancear os traços negativos expostos em sua teoria sobre o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, já que compreende que é constitutivo da perspectiva dialética buscar uma imagem e narrativa, mesmo que provisória, de uma possível mudança histórica. Espera-se, a partir disso, extrair da sua intervenção algumas implicações teóricas e políticas que nos podem ser úteis para pensar o nosso presente histórico, tendo em vista, inclusive, a espécie de retorno, em outros termos, dos debates sobre o pós-modernismo e das formas de resistências políticas fragmentadas hoje. Com efeito, a partir desses passos, espera-se eventualmente prover tanto uma interpretação da obra do Jameson (entendendo-a como um dos importantes esforços atuais da teoria marxista), quanto contribuir para a compreensão da sociedade contemporânea, compreendida a partir de seus três momentos principais: os anos 1960 (início das rupturas com o moderno); 1980-1990 (os anos do pós-modernismo); 19902000 (globalização). 12 Capítulo 1 O marxismo de Jameson Antes de entrarmos nas formulações de Jameson sobre o capitalismo contemporâneo, torna-se inevitável, de início, expor alguns elementos que as precederam e lhes serviram de base interpretativa, algo que nos remonta à sua produção intelectual nos anos 1970. Nesse sentido, o foco deste capítulo é traçar a forma como a crítica social tomou corpo na obra de Jameson, ou ainda, como os debates e as análises literárias que ele promoveu na primeira fase de seu pensamento cimentaram – metodologicamente e conceitualmente – seu caminho para a definição do pós-modernismo como conceito de periodização histórica nos anos 1980. Assim, serão expostos algumas das noções que fizeram parte desse itinerário, tais como “metacomentário”, “inconsciente político”, “dominante cultural”, além de considerações sobre a forma particular com que o autor lida com o problema da conjugação da perspectiva marxista com outras correntes interpretativas, algo que alguns críticos caracterizam como uma das marcas dos esforços contemporâneos de atualização do marxismo. 15 Nascido em 1934, em Cleveland, nos Estados Unidos, Jameson pertence à geração de intelectuais que começou sua contribuição para o desenvolvimento da teoria marxista no quadro histórico e intelectual iniciado na segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Segundo a periodização elaborada por Eric Hobsbawm, tratase de um período que compreende dois grandes momentos, subsequentes à “Era da Catástrofe” marcada pelos desastres da guerra: o notório ciclo de estabilidade e prosperidade econômica do capitalismo (a “Era de Ouro”, entre 1947-1973) e o momento de seu “desmoronamento”, crise e decomposição (de 1973-1991).16 Ou seja, a trajetória de Jameson coincide com um momento histórico que foi palco de importantes rearranjos econômicos, sociais e políticos, determinantes para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas ocidentais, tal como as conhecemos hoje. 15 Cf. Anderson, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004; Keucheyan, R. The Left Hemisphere: Mapping Critical Theory Today. London: Verso, 2014. 16 Cf. Hobsbawm, E. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Cia das Letras, 2000. 13 Além disso, foi um momento controverso, em particular, para o desenvolvimento do marxismo, sobretudo devido ao rumo que tomaram as experiências comunistas iniciadas no começo do século XX. De um modo geral, uma série de ponderações sobre o processo de exaustão da experiência socialista foram gestadas nesse momento, o que se traduziu num certo descrédito das ideias associadas à Marx nos meios social e acadêmico, devido, principalmente, à relação direta feita entre a legitimidade teórica de sua obra e o desenrolar dos regimes comunistas e das tendências socialdemocratas nos países de capitalismo avançado. Na visão convencional dos fatos, a derrota dessas experiências significou a “morte do marxismo”, isto é, a compreensão de que as ideias predicadas pela teoria marxista só poderiam terminar em fracasso e totalitarismo. Ou seja, foi vista como a prova cabal de que a tradição marxista teria se provado falaciosa tanto na prática quanto na teoria, o que abriu espaço para um momento de alta de teorias e políticas alternativas nos círculos acadêmicos em diversas partes do mundo.17 Na narrativa comum sobre os episódios que gradualmente influenciaram o desenrolar dessas avaliações, pode-se dizer que o processo de desestalinização da União Soviética e dos países da Europa Oriental a partir de 1956, o ascenso das lutas por libertação dos povos na Ásia, África e América Latina no final dos anos 1950 e os anos subsequentes à maio de 1968 cumpriram um papel importante.18 Mas o marco definitivo sem dúvida foi 1989, momento em que a tradição marxista vivenciou uma profunda crise Outro nome dado pelos ideólogos conservadores para esse processo foi “fim das ideologias”, anunciado primeiramente pelos teóricos conservadores nos anos 1950 em meio a Guerra Fria, suspenso pela efervescência política dos anos 1960, para vir a realizar-se nos anos 1980 com a repercussão do chamado “fim da História”. Ideologia, nesse sentido, era um codinome para marxismo, socialismo ou qualquer tentativa revolucionária de criar uma sociedade radicalmente diferente. Cf. Jameson, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997, p. 176. Essa ideia serviu por muito tempo de argumento para o anticomunismo norte-americano. Como ressalta Alain Badiou, esse consistia em afirmar que “os regimes socialistas são despotismos infames, ditaduras sanguinárias; (...) a ideia comunista é uma utopia criminosa, que, tendo fracassado em todo o mundo, deve ceder o lugar para uma cultura dos “direitos humanos” que combine o culto da liberdade (inclusive, e em primeiro lugar, a liberdade de empreender, possuir e enriquecer, fiadora material de todas as outras) e uma representação vitimária do Bem” (Badiou, A. A Hipótese Comunista. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 7). 18 Segundo Hobsbawm, “A partir de 1956, começa um período em que a maior parte dos marxistas foi obrigada a concluir que os regimes socialistas existentes – desde a URSS ou Cuba até o Vietnã – estavam distantes daquilo que se desejava fosse uma sociedade socialista ou uma sociedade no caminho da construção do socialismo” (Hobsbawm, E. “O marxismo hoje: um balanço aberto”. Em: Hobsbawm, E. (org.). História do marxismo – Vol. 11: O marxismo hoje (primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 21). As lutas anticoloniais (muitas delas com inspiração socialista), por sua vez, influíram no processo de desenvolvimento do marxismo ao fazerem com que os marxistas concentrassem atenção na relação entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, surgindo uma série de esforços teóricos focalizados na questão do imperialismo, neocolonialismo, relação centro-periferia, norte-sul, primeiroterceiro mundo. No que se refere as mobilizações de 1960, estas produziram “uma “nova esquerda” que, prescindindo de seu desejo de reconhecer-se no nome de Marx ou de qualquer outra figura do panteão marxista, voltou-se para muito além dos confins do marxismo tradicional” (Ibidem, p. 32). 17 14 de referência, quando seu principal modelo – a experiência nascida da Revolução Russa de 1917 –, declinou em 1989-1991 com a queda do Muro de Berlim e degradação do socialismo soviético, encerrando o ciclo histórico aberto pelo que Hobsbawm chamou de o “curto século XX”. Em suas palavras, “o mundo que se esfacelou no fim da década de 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revolução Russa de 1917 (...) em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e outra nova começou”. 19 Apesar de por muito tempo isso ter alimentado a propagação da ideia de que o marxismo teria morrido, é fácil hoje revelarmos o quão enganosa é a natureza desta afirmação, ou melhor, como ela na verdade designava a crise de um tipo de marxismo pela “febre anticomunista” que tomou certos países no final dos anos 1970. 20 Ou se preferirmos ainda, que a chamada “crise” do marxismo, antes de um evento circunscrito a esse período, é, em realidade, uma espécie de modus operandi constitutivo da história e do modo de existência desta tradição. Nesse sentido, o marxismo pode ser visto, antes de mais nada, como uma tendência intelectual e política sempre em mudança, produzindo uma herança que está longe de ser estática ou inerte. Isso está relacionado tanto às próprias transformações do capitalismo (que sempre exigem sua atualização), quanto às inovações geradas pelas interpretações que cada geração fez da obra do Marx – algo corroborado, desde o início, pelo próprio conhecimento tardio de algumas de suas obras (como os manuscritos de juventude e os Grundrisse, que provocaram importantes releituras).21 Ou seja, ao fato de que cada época descobre o seu próprio Marx. Assim, o clima de reveses que perpassou a história do século XX não significou a renúncia dos preceitos teóricos do marxismo; pelo contrário, contraditoriamente contribuiu para a sua renovação, estimulando uma nova modificação na própria autocompreensão dessa tradição. 22 De um modo geral, algumas posições básicas foram 19 Hobsbawm, A Era dos Extremos, p. 14-15. Cf. Anderson, A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 33. 21 Após Marx, a história do marxismo pode ser definida por duas grandes crises, cada uma expressa em sua forma teórica (reinterpretação da obra de Marx) e política (modificação das políticas proletárias): uma no final do século XIX (debate no âmbito do partido socialdemocrata alemão, reformismo, revisionismo), outra no final do século XX (crise do movimento de trabalhadores, incorporação das revoluções socialistas no âmbito do Estado). Além disso, ambas estariam relacionadas com crises do capitalismo: a primeira deu-se no contexto com a grande transformação pela qual passou o modo de produção na transição para a fase monopolista e de expansão imperialista; a segunda, com a nova mutação do sistema após a crise de 1970. O pós-marxismo, nesse sentido, construído na última crise do marxismo, seria na verdade uma forma pobre de revisionismo (Kouvelakis, S. “The Crises of Marxism and the Transformation of Capitalism”. Em: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (org.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 34). 22 Cf. Callinicos, A. “Whither Anglo-Saxon Marxism?”. Em: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (org.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 90. 20 15 adotadas nesse cenário: além dos que preferiram o abandono completo do marxismo (pósmarxistas), proclamando a exaustão do paradigma marxista, tiveram aqueles que optaram 1) por um retorno diferente a Marx (neomarxistas), mantendo uma relação de diálogo com certas ideias de Marx, reinterpretam-nas e combinam-nas com outras correntes de interpretação; e outros que preferiram 2) a preservação da tradição, fundamentadas nos escritos de Marx e Engels, pautando-se pelo esforço de atualização e readequação desta à realidade da sociedade capitalista contemporânea. 23 A partir destas diferentes posições, ao invés do “fim do marxismo”, o que ocorreu foi o florescimento difuso de uma “centena de marxismos”, como bem colocou Immanuel Wallerstein. Nessa miríade, obra de Jameson constitui-se com um dos exemplos de esforços de revitalização do marxismo sob o contexto de mudanças no capitalismo e da própria tradição marxista na segunda metade do século XX. Sua trajetória intelectual se inicia propriamente nos anos 1950, na Era Eisenhower, época em que os Estados Unidos passavam por um período de transformações fundamentais. Após a vitória na Segunda Guerra Mundial, o país havia se tornado uma potência em termos científico, tecnológico, militar, econômico e cultural. Era o início dos anos de estabilidade do capitalismo, conhecidos como os “anos de Ouro”, e da explosão do sonho americano e seu estilo de vida, o American way of life. Em 1954, o autor graduou-se em Literatura na Haverford College. Nesse momento, a academia norte-americana respirava uma atmosfera intelectual marcada pela tônica anticomunista da Guerra Fria, com um forte clima de hostilidade e perseguição às críticas de cunho marxista, bem como pela predominância da razão instrumental, com o “Pós-marxismo” é empregado, em sentido amplo, em referência a escritores com formação marxista, cujas trajetórias intelectuais se desenvolveram além da problemática marxista, não reivindicando publicamente um engajamento marxista contínuo. “Neomarxismo” é um termo empregado usualmente para designar projetos teóricos que têm como ponto de partida significativo o marxismo clássico, mantendo com ele um engajamento explícito, embora modificando-o consideravelmente a partir do diálogo com outras correntes de pensamento. Cf. Therborn, G. Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo, 2012, p. 139. Na analogia construída por Burawoy, a tradição marxista pode ser vista como uma árvore, “com raízes, tronco, ramos, galhos e folhagem”. Seu crescimento e desenvolvimento responde a uma “lógica interna” própria – fundada nas raízes (os escritos de Marx e Engels) e nos ramos que nascem do tronco (o marxismo alemão, o marxismo russo, o marxismo ocidental e o marxismo do “terceiro mundo”) – e uma “lógica externa”, o clima e os ventos da história, ela mesma passível de ser influenciada pelo marxismo. A experiência comunista, nesse sentido, representou uma espécie de furacão que atingiu essa árvore, arruinando alguns galhos e folhagens, de modo a colocar na ordem do dia a necessidade de uma reconstrução e recomeço. Para Burawoy, os neomarxistas escolhem uma ou outra contribuição do legado de Marx, como alguém escolhe um ou outro produto nas prateleiras de um supermercado. Ou seja, eles seriam como cortadores de madeira: cortam ramos que parecem saudáveis, na esperança de enxertá-los em outra árvore, um outro corpo da teoria. Cf. Burawoy, M. Marxism after communism. Theory and Society, n. 29, pp. 154-156. 23 16 crescimento de pesquisas de tipo empirista e positivista, avessas ao pensamento dialético.24 Como o próprio Jameson reclama, diferentemente do contexto europeu, no qual o marxismo era “um modo de pensamento vivo e onipresente com o qual todo intelectual é obrigado a entrar em contato de uma forma ou de outra, e ao qual é obrigado a reagir”25, na academia norte-americana, a reflexão marxista se encontrava numa posição isolada. Tratava-se, portanto, de um momento aparentemente impróprio para a formação de um intelectual marxista: o anticomunismo prevalecia na política, o consumismo na vida social e o empirismo na academia. Como notam Iná Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco, em meio a esse contexto, a radicalização intelectual de Jameson se deu, sobretudo, por meio dos estudos estéticos, com a leitura dos clássicos do modernismo, além de também derivar da admiração pela situação política aberta pela Revolução Cubana, “que lhe demonstrou a possibilidade de uma organização social radicalmente diferente”.26 Além disso, seu contato com a cena das teorias filosóficas europeias foi decisivo. Após graduar-se, Jameson iniciou seu PhD em francês na Universidade de Yale (onde foi aluno de Erich Auerbach), e durante o qual passou alguns meses na Alemanha e na França, país onde entrou em contato com novas perspectivas teóricas, bem como com uma sociedade ainda não totalmente imersa no capitalismo de consumo, na qual persistia uma cultura em que o intelectual politicamente comprometido era viável. Um dos autores que despertou particular interesse em Jameson foi o escritor e filósofo Jean-Paul Sartre, que sustentava à época tal modelo do intelectual engajado. Jameson elegeu a filosofia e estilo de Sartre como objeto de sua tese de doutorado, posteriormente publicado como seu primeiro livro, Sartre: the origins of a style (1961). Além de um tipo de engajamento que marcou a geração dos anos 1950, o pensamento existencialista de Sartre serviu como uma ponte para que Jameson entrasse em contato com a tradição crítica e filosófica do marxismo europeu. 27 Tal contato também 24 Cf. Jameson, F. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 2. Ibidem, p. 162. 26 Cevasco, M. & Costa, I. C. “Para a crítica do jogo aleatório dos significantes”. Em: Jameson, F. Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 8. Como relata o próprio Jameson, “na nossa situação provinciana dos Estados Unidos da Guerra Fria, a revolução política e a revolução da forma caminharam juntas, e como sendo partes de uma mesma coisa. Assim, meu marxismo e meu interesse pela dialética partiram dessa situação (Jameson, F. “A permanência do marxismo – Debate com Paulo Arante e Roberto Schwarz”. Folha de São Paulo, 23 de Agosto de 1993, p. 6). 27 Cf. Homer, S. Marxism, Hermeneutics, Postmodernism. Cambridge: Polity Press, 1998, p. 8. Nas palavras do próprio Jameson, “alguns de nós (...) chegamos ao marxismo através dos elementos dialéticos do primeiro Sartre” (Jameson, F. O inconsciente político. São Paulo: Ática, 1992a, p. 94). 25 17 se intensificou pelo próprio contexto aberto pela década seguinte: se nos anos 1950, uma nuvem anticomunista pairava sobre os Estados Unidos, nos anos 1960, houve uma mudança significativa de atmosfera. O surgimento da New Left, os movimentos de libertação nacional na África e na Ásia e os experimentos socialistas na América Latina geraram um caldo para que houvesse um relativo crescimento da influência marxista nas universidades.28 Nesse momento, Jameson vivia e trabalhava como professor na Califórnia, ou seja, estava próximo do epicentro das revoluções políticas e culturais da época – dos novos estilos de vida, ativismo político e práticas artísticas. Assim, uma dupla agenda teórica passou a ganhar contornos nessa primeira fase de seu pensamento: o empenho de contribuir com a consolidação da crítica marxista nos Estados Unidos e de analisar criticamente as formações intelectuais que se encontravam em alta na crítica literária, algo que se projetou primeiramente em seus livros Marxismo e forma (1971) e The prison-house of language (1972).29 No primeiro, o autor promoveu um estudo sobre as principais “teorias dialéticas da literatura do século XX”: as obras de Theodor Adorno, Georg Lukács, Ernest Bloch, Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Sartre, apresentando e argumentando sua atualidade; no segundo, expôs um balanço crítico das teorias do formalismo russo e do estruturalismo francês, incluindo o modelo de Claude Lévi-Strauss, a semiótica de Roland Barthes e A. J. Greimas, o desconstrutivismo de Derrida, e o que considerou a fonte comum de todas essas abordagens, o paradigma da linguagem proposta por Saussure. A partir desses dois livros, as coordenadas do projeto de Jameson são delineadas. 1.1. A defesa da dialética De acordo com Perry Anderson, com a publicação de Marxismo e forma, o autor se torna um dos principais precursores do legado do marxismo ocidental, passando a ser notável em sua obra a forma como opera a herança dos autores estudados, ao tratar de Cf. Coutrot, T. “The American Radicals: A Subversive Current at the Heart of the Empire”. Em: Bidet & Kouvelakis (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 255. 29 Marxismo e Forma e The prison-house of language a princípio estavam programados para ser um só livro, algo que não se concretizou devido ao tamanho dos estudos, de forma que a junção não foi aceita pela editora responsável pela publicação. Apesar disso, eles podem ser lidos como uma obra só, tendo em vista o objetivo principal que os justifica. 28 18 temas como da totalidade, dialética, forma narrativa, periodização histórica, alegoria, utopia, etc.30 Segundo Jameson, o objetivo principal do livro era justamente introduzir ao público norte-americano a tradição marxista-hegeliana da crítica dialética e alguns de seus teóricos mais importantes, os quais seriam pouco discutidos nos círculos acadêmicos norte-americanos devido a predominância de uma tradição liberal anti-especulativa: [...] Já é tempo, portanto, daqueles que vivem na esfera de influência da tradição anglo-americana aprenderem a pensar dialeticamente, a adquirir os rudimentos de uma cultura dialética e os instrumentos críticos essenciais que ela fornece. Eu me sentiria gratificado se este livro contribuísse, por pouco que fosse, para tal desenvolvimento. 31 Jameson, dessa forma, oferece um panorama dos diferentes pontos de vista sobre a dialética – a concepção de Adorno, Benjamin, Marcuse, Bloch, Lukács e Sartre, como formas particulares que se complementam mutuamente –, ao mesmo tempo em que evoca uma síntese mais ampla do pensamento dialético geral, de onde extrai lições para pensar a crítica literária no momento em que escreve. Além disso, a partir de temas como o da relação entre sujeito e objeto, parte e todo, concreto e abstrato, intrínseco e extrínseco, aponta os mecanismos teóricos que utilizará em toda a sua produção teórica subsequente, enfatizando especialmente o caráter ao mesmo tempo desmistificador e utópico da perspectiva dialética, bem como seu espírito crítico, que emprega a síntese e superação de posições teóricas concorrentes. Em suma, pode-se dizer, então, que a teoria de Jameson está ancorada em alguns traços particulares do método dialético, que são desenvolvidos ao longo de sua obra: 1) a postura crítica diante de outras posições filosóficas dominantes de seu tempo (empirismo, desconstrutivismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo); 2) o diagnóstico das “condições de possibilidade” e dos obstáculos concretos que a perspectiva dialética se 30 Cf. Anderson, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 84; Cf. Cevasco, M. E. O sentido da crítica cultural. Revista Cult, ano 14, n. 3, p. 19-22, 2008. 31 Jameson, Marxismo e forma, p. 2. Além disso, Jameson tem o cuidado de explicar brevemente a diferenciação das duas tradições dialéticas (a alemã e a francesa) revisitadas no livro por ele. Segundo o autor, enquanto na Alemanha o pensamento dialético sempre foi a tradição filosófica oficial, na França, ele “teve de se expressar através de uma influência subterrânea sobre outras filosofias e outras disciplinas”, como através da fenomenologia e da psicanálise (Lacan e vertentes do freudismo). Cf. Ibidem, p. 4. 19 depara para se firmar, diante do intenso grau de fragmentação fomentado pelo sistema capitalista e suas implicações na consciência, que colocam em risco a possibilidade de apreensão da totalidade; 3) o reconhecimento do caráter duplo da dialética, composto pela negatividade e pela utopia. Ou seja, como veremos, sua defesa da persistência do pensamento dialético inclui, sobretudo, três dimensões: a relevância da crítica, da reflexividade, da historicização e da interpretação para se pensar a cultura e a sociedade contemporânea. Algumas constatações teóricas serviram como base para Jameson nesse sentido. Primeiramente, o autor se fundamentou na caracterização do marxismo como uma tradição sujeita a uma “revolução permanente” interior, devido à sua própria estrutura crítica.32 Ou seja, seguindo o legado de Marx e da teoria crítica da sociedade, Jameson entende que o estatuto particular do marxismo diante de outras correntes teóricas está relacionado à singularidade da crítica dialética. Esta é compreendida como aquele procedimento filosófico que subsume outras posições e sistemas aparentemente antagônicos, de forma a cancelá-los e preservá-los simultaneamente em sua visão compreensiva, atribuindo-lhes uma validade parcial para si mesma; ou seja, em termos metodológicos, trata-se de uma operação que compreende que os limites de outros sistemas filosóficos podem ser superados, e suas descobertas positivas conservadas, de forma que categorias falsas não sejam imediatamente destruídas ou descartadas, mas antes mobilizadas para, a partir delas, se alcançar o seu oposto. Essa dupla determinação – reconhecimento e superação simultânea de posições – seria, portanto, uma das características essenciais do marxismo, de forma que ele dependeria necessariamente, para sua própria vitalidade, da normatividade de um modo de pensamento pré-existente ao qual ele é chamada a reagir, corrigir e subverter.33 Por isso, Jameson também ressalta como defender o ponto de vista marxista não implica em simplesmente rejeitar outras posições conservadoras ou antimarxistas; pelo contrário, o pensamento genuinamente dialético deve sempre submeter ao exame racional tais instrumentos intelectuais existentes como parte de sua própria estrutura operacional. Nesse sentido, relembra, por exemplo, como o materialismo histórico de Marx não é exatamente uma posição em si mesma, mas antes, uma correção, retificação ou inversão, 32 Cf. Ibidem., pp. 275-6. Cf. Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em Jameson, F. Valences of the Dialectic. London: Verso, 2009, p. 61. 33 20 à maneira dialética, de outras posições pré-existentes, de forma que não se pode compreender o materialismo desenvolvido por Marx sem antes entender contra o que ele se dirige e se dispõe a corrigir.34 O pensamento dialético, portanto, seria esse movimento incessante de dissolução e geração de categorias intelectuais, tal como em Marx, que acertou contas com as tradições intelectuais modernas de sua época, como o idealismo alemão, o socialismo utópico francês e a economia política inglesa 35; a autenticidade de sua obra foi, assim, não simplesmente dar as costas a essas perspectivas, mas antes, ir a fundo em cada uma delas de maneira a conseguir retirar de seu avesso o “momento de verdade” que elas guardam em seu interior, quebrando o mundo invertido por elas apresentado, ao mesmo tempo em que conservando os termos utilizados. 36 Como ressalta Jameson, esse ir “ao avesso” se realiza por meio de uma inversão, que consiste basicamente num processo diacrônico.37 Assim, a correção de posições se dá, em última instância, por meio da historização, pela qual os conteúdos dessas posições – que normalmente se apresentam de forma aparentemente autônoma – são “desreificados” e reconectados novamente à totalidade que os forma.38 Trata-se, como descreve Marx, de uma “viagem de retorno”, procedimento em que as abstrações da realidade produzidas pela explicação científica (como representações voláteis, simples, generalizadas do todo) voltam ao concreto.39 Isto porque, para a visão materialista, as 34 Cf. Jameson, Marxismo e forma, p. 257. Cf. Lenin, V. I. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. São Paulo: Global, 1985. 36 Cf. Jameson, op. cit., pp. 278-279; 283-284. 37 Cf. Ibidem, pp. 237-8. 38 O exemplo mais notável desse modelo de geração e dissolução incessantes de categorias intelectuais está na investigação econômica de Marx: “Desde o começo, Marx foi obrigado a ajustar contas com as categorias econômicas tradicionais desenvolvidas pelos economistas burgueses, que viam a operação da economia como uma interação mecânica e a-histórica de componentes tais como produção, distribuição, troca, consumo, salários, arrendamento de terra, propriedade, indústria, agricultura, etc.” (Ibidem, p. 257). Em O Capital, Marx mostra como cada categoria econômica revela uma determinada relação entre os homens num determinado momento histórico. 39 Em Marx, esse seria precisamente o método adequado para a elaboração teórica – a ascensão “do abstrato ao concreto” –, pois o concreto, enquanto “síntese das múltiplas determinações” ou “unidade da diversidade”, apenas “aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo”; pois o conhecimento da realidade não se dá de imediato – só chega ao pensamento justamente por essa viagem em que são dados aos conceitos abstratos sua significação concreta (Marx, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 54). Movimento que se difere, portanto, do método hegeliano: “Para Hegel, o processo do pensamento (...) é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça de ser humano e por ele interpretado” (Marx, K. O Capital. Crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, I, 1, 1968, p. 16). Como nota João Paulo Netto, a abstração é, assim, a “capacidade intelectiva que permite extrair de sua contextualidade determinada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável (...) A abstração, possibilitando a análise, retira do elemento abstraído as suas determinações mais concretas, até atingir “as determinações mais simples”” (Netto, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 44). 35 21 categorias de pensamento não pertencem apenas ao plano do ideal, mas antes ao da própria existência concreta – são históricas, transitórias, “expressam formas de ser, determinações da existência”, ou seja, pressupõe um todo concreto. Tal posição é o que diferencia a crítica marxista de outras perspectivas que atribuem uma certa autonomia aos conceitos filosóficos.40 Assim, ao passo que o pensamento não-dialético estabelece uma dualidade entre sujeito e objeto – uma subjetividade operando sobre uma objetividade –, o pensamento dialético acredita que existência e pensamento fazem parte do mesmo processo histórico.41 Desse modo, a crítica dialética envolve a relação entre o processo de pensar e a própria realidade – "um salto do nível puramente conceitual para o nível histórico, da ideia para a correspondente experiência vivida" –, enfatizando a relação entre um objeto ou fenômeno aparentemente autônomo e isolado e sua realidade subjacente.42 O pensamento que se movimenta apenas do concreto ao abstrato – como a economia política clássica e o empirismo – volatiza o todo em leis gerais abstratas, atemporais, naturais, eternas, em “fatos” dados e imediatos, e, portanto, não consegue entender a realidade e o conhecimento como processos históricos. Assim, Jameson retoma o princípio de que o tratamento dialético visa quebrar o feitiço do “mundo invertido” do pensamento conceitual e dissolver o caráter fixo e natural das categorias sociais ao revelar sua natureza histórica. A reinserção de posições na totalidade concreta desempenha o papel estratégico de “libertar-nos do “encanto” do conceito”, alargando nossas percepções, na medida em que a relação entre um dado fenômeno particular e a realidade histórica subjacente são evidenciadas.43 Nesse sentido, o procedimento dialético caracteriza-se também por mudar o valor e função de um dado fenômeno (ou ainda, suas valências), conferindo-lhe um poder superior.44Além disso, revela como pensar sobre um dado objeto é simultaneamente avaliar os próprios processos de pensamento. Por isso, diferentemente de diversas disciplinas científicas especializadas, que não são autoconscientes de seus procedimentos, o pensamento dialético seria um modo de pensamento metacrítico, “um pensamento ao quadrado, um pensamento sobre o próprio pensar”, como nos demonstram os livros de Marx que, ao serem calcados nesse procedimento, acabam obrigatoriamente tornando-se eles mesmo Cf. Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, pp. 10-11. Cf. Jameson, Marxismo e forma, p. 261. 42 Ibidem p. 265. 43 Cf. Jameson, F. O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da dialética. São Paulo: Ed. Unesp, 1996, p. 45. 44 Cf. Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 49. 40 41 22 ensaios sobre o próprio materialismo histórico. 45 Por meio desse processo, a crítica dialética promove uma “mudança de marcha”, o “içar” de um complexo de pensamento num andar acima, de forma a ampliar e refundamentar suas próprias noções num novo patamar, numa síntese teórica superior. 46 Além disso, como aponta Jameson, pensar dialeticamente traz implicações não só ao conteúdo, como também à forma de escrita. O resultado é a necessidade constante de elaborar “sentenças dialéticas”, que expressam o processo de pensamento pelo qual não se pode dizer uma coisa sem antes falar sobre tudo que a antecede, “como se, a cada nova ideia, fossemos forçados a recapitular o sistema na sua totalidade”. 47 Apesar das dificuldades inerentes a esse modo de pensar “totalizante”, Jameson demonstra sua pertinência, em resposta à hostilidade do público e dos críticos norte-americanos, que o taxam de “obscuro”, “abstrato, “indigesto”. Como alerta em Marxismo e Forma, a tradição dialética de fato não corresponde à escrita jornalística, “clara e fluída” a que estão acostumados, com a proliferação de métodos de “leitura dinâmica”. Pelo contrário, o pensamento dialético não tem a intenção de “fazer o leitor passar rapidamente por uma frase”, “de saudar uma ideia pronta sem esforço”, mas sim, revelar como o percurso ardil da abstração e da complexidade é justamente o preço necessário a se pagar para ter acesso ao pensamento genuíno, que vai além do individual e do empírico.48 Esse seria o estilo dialético (cujo exemplo paradigmático Jameson atribui à obra de Adorno): aquele que força o leitor a sair de posições usuais e confortáveis para ouvir o deslocamento das engrenagens do mundo enquanto se lê. Assim, tal tipo denso e reflexivo de escrita também faz parte do projeto de crítica dialética (que Jameson segue à risca), de forma que quanto mais complexo o problema que se pretende representar – como o problema da representação da totalidade –, maior a resistência à descrições e interpretações simplificadas.49 Com efeito, no sentido amplo em que Jameson usa o termo, a dialética nomeia o procedimento pelo qual podemos pensar as categorias de pensamento e o que está por detrás delas; o processo em que o objeto de crítica – as incoerências estruturais de uma ideia, posição conceitual ou interpretação – são transcendidos, repetindo, portanto, o 45 Jameson, Marxismo e forma, pp. 41-42; 47. Ibidem., p. 236. 47 Ibidem, p. 235. 48 Ibidem, p. 4. 49 Sobre o estilo de Jameson, cf. Eagleton, T. Fredric Jameson: the politics of a style. Diacritics, v. 12, n. 3, 1982, pp. 14-22; Eagleton, T. Jameson and Form. New Left Review, n. 59, set-out 2009, pp. 123-137. 46 23 movimento que vai da aparência fenomênica, imediata e empírica, à essência. Retoma tanto Hegel, que problematizou as categorias tradicionais do entendimento (Aristóteles, Kant) pensando suas condições de possibilidade, quanto Marx, que transformou os problemas de categoria em problemas históricos.50 Além disso, recupera o problema da não-identidade entre sujeito e objeto, pensamento e ser, e a possibilidade de uma reconciliação entre eles, tal como levantado pelos autores do marxismo ocidental. Nesse sentido, Jameson também é bastante devedor ao caminho aberto por Lukács, e especialmente a dois de seus conceitos centrais – totalidade e reificação. A partir deles, o autor trabalha pressupostos essenciais de sua teoria social e de sua leitura sobre os fenômenos sociais da sociedade contemporânea. Seguindo História e Consciência de Classe (1923), Jameson privilegia a análise crítica dos efeitos reificantes do capitalismo sobre a consciência, destacando a incapacidade de se apreender a realidade como uma totalidade concreta como um dos principais obstáculos a serem encarados na tentativa de se apreender a essência do sistema capitalista contemporâneo: [...] Ao contrário do conceito mais familiar de alienação, um processo que diz respeito à atividade e, em particular, ao trabalho (dissociando os trabalhadores de seu trabalho, de seu produto, de seus colegas de trabalho (...), reificação é um processo que afeta nossa relação cognitiva com a totalidade social. É uma doença daquela função de mapeamento pelo qual o sujeito individual projeta e modela sua inserção na coletividade. A reificação do capitalismo tardio – a transformação das relações humanas em uma aparência de relações entre coisas – torna a sociedade opaca: é a fonte viva das mistificações em que a ideologia se baseia e pelo qual a dominação e a exploração são legitimadas. Uma vez que a estrutura fundamental da "totalidade" social é um conjunto de relacionamentos de classe – uma estrutura antagônica de modo que as várias classes sociais se definem em termos desse antagonismo e pela oposição umas com as outras – a reificação necessariamente obscurece o caráter de classe dessa estrutura, e é acompanhada, não só pela anomia, mas também por essa crescente confusão quanto à natureza e até à existência de classes sociais que podem ser observadas em abundância em todos os países capitalistas "avançados" hoje. Se o diagnóstico estiver correto, a intensificação da consciência de classe será menos uma questão de exaltação populista ou ouvrierista de uma única classe por si só, do que a reabertura forçada de acesso a um senso de sociedade como totalidade, e de reinvenção de possibilidades de cognição e percepção que permitem que os fenômenos sociais mais uma vez se tornem transparentes, como momentos de luta entre as classes.51 50 Cf. Jameson, Marxismo e forma, p. 260. Jameson, F. “The Bretch-Lukács Debate”. Em: Jameson, F. The Ideologies of Theory. London: Verso, 2008, pp. 447. 51 24 A “aspiração à totalidade”52, nesse sentido, se apresenta como um conceito-chave para a teoria de Jameson, ao ser uma forma de buscar a superação de dois tipos nocivos de fragmentação derivadas do fenômeno de reificação no mundo contemporâneo – a das formas de conhecimento especializadas e a da própria experiência social. No sentido que o autor utiliza, a totalidade, portanto, é um requisito dialético, que corresponde à capacidade de se “restaurar, pelo menos metodologicamente, a unidade perdida da vida social e demonstrar que elementos amplamente distantes da totalidade social são, em última instância, parte do mesmo processo histórico global”. 53 Ou seja, como uma forma por meio da qual é possível, pelo menos [...] por um breve instante, percebermos de relance um mundo unificado, um universo no qual realidades descontínuas se acham não obstante implicadas umas nas outras, e entrelaçadas, não importa quão remotas tenham parecido à primeira vista; universo no qual o reino do acaso momentaneamente se reenfoca numa rede de relações cruzadas até onde o olho alcance, contingência temporariamente transmutada em necessidade.54 Assim, para Jameson, o conhecimento da realidade só é possível quando os diferentes fatos da vida social são integrados num todo. O método dialético seria, então, “precisamente esta preferência pela totalidade concreta em lugar das partes separadas, abstratas”, em que a multiplicidade de fatos e forças independentes umas das outras passam a ser vistas como momentos de uma única totalidade que possui uma transitoriedade histórica.55 Para isso, acompanhando Lukács, que situa a essência do método marxista frente à outras tendências interpretativas prevalecentes à época (como a perspectiva burguesa e reformista), Jameson critica as formas de conhecimento compartimentadas da academia De acordo com Jameson, a totalidade para Lukács não é meramente “uma forma de conhecimento, mas antes um enquadramento em que vários tipos de conhecimento são posicionados, perseguidos e avaliados. Esta é claramente a implicação da frase “aspiração à totalidade” (...) tal conceito e enquadramento não é uma questão individual, mas antes uma possibilidade coletiva que pressupõe sobretudo um projeto coletivo” (Jameosn, F. “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project. Em: Jameson, Valences of the Dialectic, p. 211). 53 Jameson, O inconsciente político, p. 231. 54 Jameson, Marxismo e forma, 14-15. 55 Ibidem, pp. 41. 52 25 norte-americana, por reproduzirem uma percepção reificada dos fenômenos sociais, na medida em que seu método [...] em suas várias formas e disfarces, consiste em separar a realidade em compartimentos fechados, cuidadosamente distinguindo o político do econômico, o legal do político, o sociológico do histórico, de modo tal que as implicações plenas de qualquer problema dado nunca possam emergir. Consiste, em suma, em limitar todas as afirmações ao discreto e ao imediatamente verificável, a fim de excluir qualquer pensamento especulativo e totalizante que pudesse levar a uma visão da vida social como um todo. 56 Entretanto, em sua obra Lukács, vai além de uma crítica das formas especializadas de conhecimento e também aborda a dimensão revolucionária da dialética e a prioridade epistemológica do ponto de vista do proletariado para se quebrar as teias da reificação e acessar o conhecimento da totalidade. Por isso, parece correto afirmar que Jameson segue parcialmente a teoria de seu antecessor: defende que “a transformação da realidade constitui o problema central” do marxismo, em contraposição às perspectivas meramente contemplativas, em que “o objeto de estudo deve permanecer intocado e imodificado”; 57 56 Ibidem, p. 280. Lukács, G. História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 95. Como explica Jameson, “(...) esta relação estática com os objetos do conhecimento é, ela própria, um reflexo da experiência de vida da burguesia no terreno econômico e social. Sua relação com os objetos que produz, com as mercadorias, com as fábricas e com a própria estrutura do capitalismo é contemplativa, na medida em que não tem consciência do capitalismo como fenômeno histórico, como resultado de forças históricas que possuem também, no seu interior, a possibilidade de mudança ou de transformação radical. (...) O que Lukács deve mostrar é que o pensamento proletário é exatamente capaz de resolver as antinomias que o pensamento burguês, pela sua própria natureza, é incapaz de enfrentar. (...) alguma coisa na estrutura mesma do pensamento proletário dá acesso à totalidade ou realidade, ao conhecimento totalizante que era a pedra no meio do caminho da filosofia burguesa clássica, com a resultante substituição do modelo estático de conhecimento, modelo do qual brotam os dilemas da burguesia. (...) Este caráter privilegiado da situação operária está depositado, paradoxalmente, em seus limites estreitos e inumanos: (...) antes mesmo de colocar os elementos do mundo exterior como objetos do seu pensamento, ele se percebe como objeto, e esta alienação original dentro de si mesmo prevalece sobre tudo o mais. No entanto, é precisamente nesta terrível alienação que se encontra a força da posição do operário: seu primeiro movimento não é em direção ao conhecimento do trabalho mas rumo ao conhecimento de si como um objeto, em direção à consciência de si. Esta consciência de si, porque inicialmente conhecimento de um objeto (ele próprio, seu trabalho como mercadoria, sua força vital que é obrigado a vender), lhe permite um conhecimento do caráter de mercadoria do mundo exterior muito mais autêntico do que o alcançado pela “objetividade” burguesa. (...) para o burguês, a mercadoria é uma coisa natural, sólida, cuja causa é relativamente sem importância, secundária: sua relação com tal objeto é de puro consumo. O trabalhador, por outro lado, conhece o produto final como algo que não vai muito além de um momento do próprio processo de produção: sua atitude frente ao mundo exterior será, em consequência, alterada de modo significativo” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 146-147). Assim, para Lukács, a posição do proletariado na totalidade, e a forma como desenvolve formas de cooperação, o credencia enquanto negação da reificação. 57 26 porém, as precondições fundamentais apontadas por Lukács para tanto – a unidade entre teoria e prática, que pressupõe, por sua vez, a relação entre sujeito e objeto, ou melhor, o proletariado como sujeito e objeto do conhecimento – não aparecem dessa forma em Jameson. Assim, enquanto para Lukács, “o proletariado é o sujeito cognoscente desse conhecimento da realidade social total”, na medida em que seu autoconhecimento coincide com o conhecimento da totalidade, em Jameson – apesar de não aderir por completo o diagnóstico uma “morte do sujeito”, tal como presente na filosofia pósestruturalista – não há uma perspectiva clara quanto a esta dimensão – ou seja, a inseparabilidade lukacsiana entre conhecimento da realidade e o ponto de vista do proletariado acaba sendo ofuscada.58 O autor, portanto, resgata a negatividade e reflexividade crítica da dialética para revelar como as correntes teóricas predominantes de seu contexto intelectual reduzem a realidade ao presente empírico, mas se depara com uma série de dilemas ao tentar aprofundar o problema da dialética enquanto instrumento de transformação social. Com isso, reforça-se que a negação do presente e a crítica à reificação não possuem uma contrapartida prática imediata em Jameson – tal como em Lukács, em que concepções marxista-leninistas clássicas são apresentadas como formas de ultrapassar aquilo que se nega. Nesse sentido, sua obra manifesta uma mudança de postura em relação a práxis, característica de outros intelectuais de sua época (qual seja, uma gradual distância da prática revolucionária no sentido clássico e uma aproximação a uma “prática teórica”). 58 Lukács, op. cit., p. 97-99. Como veremos melhor adiante, Jameson incorpora criticamente conceitos do pós-estruturalismo, como o de esquizofrenia, para caracterizar o sujeito na pós-modernidade. Para o autor, a crítica filosófica do sujeito presente nos “ataques ao humanismo (Althusser), sua celebração do ‘fim do Homem’ (Foucault), seus ideais de dissémination ou derive (Derrida, Lyotard), sua valorização da escrita esquizofrênica e da experiência esquizofrênica (Deleuze), podem, no presente contexto, ser tomados como sintomas ou testemunhos de uma modificação da experiência do sujeito no capitalismo de consumo ou do monopólio tardio: uma experiência que é evidentemente capaz de acomodar um sentido muito mais amplo de dispersão psíquica, fragmentação, quedas de “niveau”, fantasia e dimensões projetivas, sensações alucinógenas e descontinuidades temporais, que, digamos, os vitorianos podiam reconhecer. De um ponto de vista marxista, essa experiência de descentramento do sujeito e as teorias, predominantemente psicanalíticas, que foram elaboradas para mapeá-lo devem ser vistas como sinais da dissolução de uma ideologia essencialmente burguesa do sujeito e da unidade ou identidade psíquica (o que era chamado de ‘individualismo burguês’); mas podemos admitir o valor descritivo da crítica pós-estruturalista do ‘sujeito’ sem necessariamente endossar o ideal esquizofrênico que ela tende a projetar. Para o marxismo, na verdade, apenas o surgimento de um mundo social pós-individualista, só a reinvenção do coletivo e do associativo podem conseguir de maneira concreta a ‘descentralização’ do sujeito individual exigida por esses diagnósticos; somente uma forma nova e original da vida social coletiva pode suplantar o isolamento e a autonomia monádica dos antigos sujeitos burgueses de tal forma que a consciência individual possa ser vivida – e não apenas teorizada – como um ‘efeito de estrutura’ (Lacan)” (Jameson, O inconsciente político, p. 125). 27 Jameson é consciente desse descompasso, algo que para ele se explica pelo fato de que cada forma de dialética está relacionada à situação específica na qual foi desenhada. Hegel, Marx e o próprio Lukács, por exemplo, a pensaram em períodos históricos de revolução social (Revolução Francesa; revolução 1848, Comuna de Paris, Primeira Internacional; Revolução Russa), em que “a janela em direção a um futuro radicalmente diferente foi, por mais que levemente, aberta”. 59 Na ocasião em que Jameson escreve (que oscila entre os ambiente da Guerra Fria, da efervescência dos anos 1960, da revolução tecnológica, à virada neoliberal ao “fim da história” dos 1990) tais “condições de possibilidade” teriam mudado consideravelmente, de forma que estaria posto o desafio de se pensar uma concepção dialética adequada às características desse momento particular, o que demonstra, por sua vez, como o autor aplica os princípios de reflexividade e historização das operações dialéticas ao seu próprio pensamento.60 É nessa perspectiva, inclusive, que Jameson – seguindo a compreensão crítica de que “o pensamento reflete sua situação social concreta” – entende que “devam existir diferentes marxismos no mundo de hoje, cada um deles respondendo às necessidades e problemas específicos de seu próprio sistema sócio-econômico”.61 Ou seja, o marxismo (seja como ciência ou como teoria que produz uma prática específica) deve ser encarado com sua própria lupa, na medida em que ele (como qualquer outro fenômeno cultural) varia historicamente: [...] Korsch há muito nos mostrou, dentro do próprio corpus marxiano, como o próprio tom e metodologia das análises variou em meio à polaridade entre voluntarismo e fatalismo (ou determinismo), segundo as mudanças na situação social objetiva, e seus grandes ritmos cíclicos que se alternaram de situações de promessa e mudança (denominadas "pré-revolucionárias") às de uma cerrada geologia, tão impenetrável que nenhuma visão de modificação parecia possível (pelo menos para esses efêmeros sujeitos biológicos que somos nós). A nossa situação Jameson, F. “Persistencies of the Dialectic: Three Sites”. Em: Jameson, Valences of the Dialectic, p. 280. Para Jameson, a ideia de “condições de possibilidade” tem “a vantagem de enfatizar, não o conteúdo do pensamento científico, mas seus pré-requisitos, seus requisitos preparatórios, sem os quais ele não consegue se desenvolver adequadamente. É uma concepção que inclui o diagnóstico de blocos e limites ao conhecimento (reificação como aquilo que suprime a habilidade de captar totalidades), bem como a enumeração de novas características positivas (a capacidade de pensar em termos de processo)” (Jameson, “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project. Em: Valences of the Dialectic, p. 217). Assim, “não é a descrição de Marx da “essência” do capitalismo que mudou (nem as “determinações da reflexão” de Hegel em geral), mas sim muito precisamente a “aparência objetiva” do mundo do capitalismo global que parece suficientemente longe da superfície da vida vitoriana ou do período do modernismo nascente de Marx” (Jameson, “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 65). 61 Jameson, Marxismo e forma, p. 8. 59 60 28 parece mais próxima desta última do que da primeira, e os pensamentos que julgamos úteis devem variar de acordo com isso.62 Assim, os diferentes marxismos contemporâneos existiriam, pois cada um é especifico de uma situação: “são as ideologias locais de uma ciência marxiana na história e em situações concretas, que estabelecem não só suas prioridades, mas também seus limites”, de forma que cada um abrange "as determinações de classe e os horizontes cultural e nacional de seus proponentes (horizontes que incluem, entre outras coisas, o desenvolvimento de uma classe trabalhadora política no período em questão)". 63 O marxismo de Jameson, portanto, apesar das fortes influências europeias, estaria enraizado e firmemente circunscrito em seu próprio contexto: [...] na maior parte, e principalmente nos Estados Unidos, o desenvolvimento do capitalismo monopolista pós-industrial trouxe consigo um ocultamento crescente da estrutura de classe, por meio de técnicas de mistificação praticadas pelos media e particularmente pela propaganda em sua enorme expansão, desde o começo da Guerra Fria. 62 Jameson, O marxismo tardio, p. 324. Nesse livro, em que documenta as contribuições de Adorno ao marxismo contemporâneo, Jameson ilustra essa relação entre marxismo e época histórica a partir da própria forma como a sua relação com o pensamento de Adorno variou de acordo com cada década: nos anos de declínio da era Eisenhower, Adorno foi para Jameson uma “descoberta metodológica crucial”, ao auxiliar na urgência de se difundir uma concepção dialética nos Estados Unidos; nos anos 1960, houve um distanciamento, pois “época das guerras de libertação nacional, a noção de Apocalipse de Adorno parecia de fato muito retrógrada, centrado como ele estava no momento de Auschwitz, e obcecado com o fatal e maléfico encantamento de um "sistema total" que bem poucos – em um momento "pré-revolucionário" definido notoriamente pela noção do tout est possible! – sentiam iminente em nosso futuro a médio prazo"; nos anos 1970, o pensamento de Adorno parecia incompatível com o processo de desmarxificação e com o pensamento francês que tomou conta da época; os anos 1980 e 1990, por sua vez, seriam os anos em que “as profecias de Adorno do "sistema total" se tornaram verdade”; assim, “Adorno não foi, com certeza, o filósofo dos anos 30 (o qual, temo, tem de ser identificado retrospectivamente como Heidegger); tampouco o filósofo dos anos 40 e 50; nem mesmo o pensador dos anos 60 – estes são Sartre e Marcuse, respectivamente; e eu afirmei que, filosófica e teoricamente, seu discurso dialético antiquado era incompatível com os anos 70. Porém, há alguma chance de que ele possa se revelar ter sido o analista de nosso próprio período, o qual ele não viveu para ver, e no qual o capitalismo tardio esteve a ponto de eliminar os últimos resquícios da natureza e do Inconsciente, da subversão e da estética, da práxis individual e coletiva e, com um impulso final, a ponto de eliminar qualquer vestígio de memória do que não mais existia na paisagem daí em diante pós-moderna. Parece-me possível, hoje, que o marxismo de Adorno, que não foi de grande ajuda nos períodos anteriores, pode revelar-se exatamente como o que necessitamos em nossos dias"; "Sua dialética introspectiva ou reflexiva convém a uma situação na qual – uma explicação da dimensão e da desigualdade da nova ordem mundial global – a relação entre o indivíduo e o sistema parece maldefinida, se não fluida, ou mesmo dissolvida. (...) A "situação atual", de fato, tem inúmeras necessidades urgentes além da teoria dialética; ainda assim, "não só a teoria, mas também sua ausência, torna-se uma força material quando ela aprisiona as massas"" (Ibidem, pp. 17-18; p. 324). 63 Ibidem, p. 19. Assim, "Não deveria haver nada de escandaloso em relação à proposição de que o marxismo requerido pelos países do Terceiro Mundo enfatizará pontos diversos daquele que se dirige a um socialismo já em declínio, sem mencionar os países "avançados" do capitalismo multinacional. Mesmo estes últimos são, é claro, profundamente "desiguais" e "não-sincrônicos", e outros tipos de marxismo são ainda de relevância vital para eles" (Ibidem, pp. 26-27). 29 Em termos existenciais, o que isso significa é que nossa experiência não é mais inteira: não somos mais capazes de intuir qualquer conexão entre as preocupações da vida privada, enquanto esta segue seu curso dentro das paredes e confinamentos da sociedade afluente, e as projeções estruturais do sistema no mundo exterior, sob a forma de neocolonialismo, opressão e guerra contrarrevolucionária. Em termos psicológicos, podemos dizer que, como uma economia de serviço, estamos doravante tão distanciados das realidades da produção e do trabalho no mundo, que habitamos um mundo onírico de estímulos artificiais e de experiência televisiva. 64 Com isso, Jameson define as próprias condições de suas investidas teóricas: as contradições da sociedade capitalista norte-americana do pós-guerra. Nesse quadro, o autor privilegia, sobretudo, a crise da perspectiva da totalidade no mundo contemporâneo, que seria resultado novamente dos efeitos da fragmentação continua, que se tornou para ele uma espécie de “norma social”. Assim, apesar das dificuldades de se viver num mundo cada vez mais disperso e compartimentalizado (em que “as pessoas estão ao mesmo tempo irrevogavelmente inter-relacionadas e condenadas a ver o todo através das vidraças deformantes de suas próprias posições no mesmo”65, ou ainda, em que as próprias circunstâncias já condenam de inicio ao fracasso qualquer tentativa de pensar o todo)66, não existe outra escolha senão afirmar o valor de uma visão de totalidade, pois qualquer outro ponto de vista que reflita e reafirme essa cisão entre sujeito e objeto é necessariamente insatisfatório. 67 Assim, apesar de ser, em última instância, irrepresentável, a totalidade se apresenta para Jameson como um recurso metodológico fundamental, a partir do qual é possível demonstrar as “afinidades secretas entre aqueles âmbitos aparentemente autônomos e não relacionados, ou ainda das sequências e ritmos ocultos em coisas que normalmente pensamos apenas isoladas, uma a uma”. 68 64 Jameson, Marxismo e forma, p. 7. Essa passagem já antecipa problemas que serão trabalhados por Jameson em sua análise do pós-modernismo. 65 Ibidem, pp. 42-43. 66 Cf. Ibidem, p. 36. 67 Segundo Jameson: “O objeto considerado em si mesmo, o mundo tomado como conteúdo diretamente acessível, resulta nas ilusões do empirismo positivista simplista, ou um pensamento acadêmico que, erroneamente, toma suas próprias categorias conceituais por partes sólidas e pedaços do mundo real. Do mesmo modo, o refúgio exclusivo no sujeito resulta no que é para Adorno o idealismo subjetivo do existencialismo heideggeriano, uma espécie de historicidade a-histórica, uma mística da ansiedade, da morte e do destino individual sem nenhum conteúdo genuíno" (Ibidem, p. 49). Para Jameson, a Dialética Negativa e Teoria Estética de Adorno são a mostra de que “o pensamento dialético é, a um só tempo, indispensável e impossível” (Ibidem, p. 48). 68 Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: Jameson, F. A virada cultural: reflexões sobre o pósmoderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 68. 30 Além disso, diante das circunstâncias históricas adversas em que se encontra, o outro refúgio de Jameson passa a ser o resgate da Utopia. Como expõe numa passagem de Marxismo e Forma, o autor se reconhece como aquele teórico [...] no exílio desse imenso projeto habitacional que é o Estado da Califórnia, lembrando, despertando de novo, re-inventando – em meio às fileiras de produtos nos supermercados, em meio ao barulho das auto-estradas e ao sinistro formato dos capacetes dos policiais de trânsito, em meio ao incessante tráfego das esquadrilhas de aviões militares de transporte por sobre sua cabeça, e, por assim dizer, além deles, no futuro – a quase extinta forma da ideia utópica”. 69 Assim, ao longo de sua obra, a noção de utopia torna-se a principal referência à dimensão positiva e política da dialética, à possibilidade de se pensar formas de vida social que ainda não existem ou não se realizaram.70 Pois, por definição, a dialética contém em si a dupla obrigação de “inventar formas de unir o aqui e agora da situação imediata com a lógica totalizadora do global ou Utópico”.71 Nessa via, os impasses históricos identificados pelo autor passam a ser contrabalanceados pela ideia de utopia, tornando-se uma fonte de energia revolucionária e de resistência ao negativo, e aquilo que propriamente diferencia o pensamento dialético de outros padrões lógicos que geralmente geram aporias, antinomias e paradoxos sem solução. 72 Desse modo, o que em Benjamin teria assumido o caráter de uma obsessão pelo passado e pela memória, como possibilidade de integridade subjetiva frente à “existência mutilada” da sociedade Jameson, Marxismo e forma, p. 94. Em seu Pós-modernismo, Jameson também diz: “em nossos dias, quando as reinvindicações do oficialmente político parecem extraordinariamente enfraquecidas, e quando adotar antigas posições políticas parece causar grandes embaraços, devemos ressaltar também que se encontra em toda parte hoje – e não somente entre os artistas e os escritores – algo como um não reconhecido “partido da utopia”: um partido underground, cujo programa não está publicado e talvez nem mesmo esteja formulado, cuja existência é desconhecida pelos cidadãos em geral e pelas autoridades, mas cujos membros são capazes de reconhecer uns aos outros por uma espécie de sinais secretos como os maçônicos” (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 195). Voltaremos a essa questão no último capítulo. 70 Cf. Jameson, “Persistencies of the Dialectic: Three Sites”. Em: Valences of the Dialectic, p. 279. Como aponta em The Ideologies of Theory, a única solução para a dimensão dialética do sujeito de um ponto de vista marxista – tendo em vista que tanto a defesa burguesa do individualismo autônomo quanto a saída “pós-individualista” do pós-estruturalismo são insuficientes – é a “renovação do pensamento utópico”, isto é, “a especulação criativa quanto ao lugar do sujeito no outro fim do tempo histórico, em uma ordem social que colocou para trás a organização da classe, a produção de mercadorias e o mercado, o trabalho alienado e o determinismo implacável de uma lógica histórica além do controle da humanidade” (Jameson, F. “Imaginary and Symbolic in Lacan”. Em: The Ideologies of Theory, p. 113). 71 Jameson, F. “The Ideologies of Theory”. Em: The Ideologies of Theory, p. 384. 72 Cf. Balakrishnan, G. The coming contradiction. New Left Review, n. 66, nov-dez 2010, p. 33. 69 31 moderna, em Jameson, ela é traduzida pela busca da utopia, inspirado na noção de “desentranhamento da esperança” de Bloch.73 Assim, as utopias (e distopias) são resgatadas por Jameson em diversas de suas análises como instrumentos de descrição histórica e como meios que canalizam (consciente ou inconscientemente) a insatisfação com o presente, recurso que ganha sentido na obra de Jameson em meio ao ambiente de refluxo dos modelos alternativos ao capitalismo e de reorganização das forças de esquerda, sobretudo após a queda do muro de Berlim. 1.2. Marxismo versus Estruturalismo? Um dos traços distintivos e uma das marcas teóricas da teoria de Jameson é a sua compreensão do método dialético. Ele é tratado por Jameson como um princípio, senão como um motor, de seu projeto teórico e atividade crítica, em seu incessante diálogo com outros modelos e correntes interpretativas vigentes na cena literária e cultural norteamericana, com o intuito de defender o marxismo como horizonte interpretativo mais compreensivo, no qual posições concorrentes podem ser conciliadas de maneira produtiva. Nos anos 1970, tal projeto é inicialmente realizado no momento em que Jameson encara a conjugação entre tradição marxista alemã e a tradição estruturalista francesa como uma forma de atualização do próprio marxismo em sua época – isto é, uma Cf. Jameson, Marxismo e forma, pp. 54-5. O termo utopia é tomado no sentido de “ressoar uma perspectiva marxista no futuro” e não no sentido pré-marxista denunciado por Engels e Marx sobre o socialismo utópico. Cf. Jameson, O inconsciente político, p. 241. Na hermenêutica proposta por Bloch, impulsos utópicos e as manifestações da esperança são detectados numa gama variada de objetos, não importa quão “degradados” eles sejam. Como veremos, esse deciframento do futuro oculto ou latente, distorcido e reprimido, nos objetos culturais tem grande influência em Jameson. Para ele, a fonte principal para apreender as formas utópicas e distópicas da nossa sociedade é a cultura de massas, que guardam em si traços importantes do capitalismo tardio e de sua possível negação. Segundo Jameson, o produto da cultura de massas, que a principio cumpre uma função claramente ideológica – enquanto “obra hegemônica cujas categorias formais e seu conteúdo garantem a legitimação desta ou daquela forma de dominação de classe” – carrega um impulso utópico devido a sua própria natureza. Para o autor, “a função ideológica da cultura de massa” não se dá através de uma simples produção de falsa consciência, mas como um processo em que impulsos protopolíticos reais são “administrados”, silenciados e recanalizados em “objetos espúrios”, de forma que a análise crítica marxista dos textos culturais deve explorar a capacidade de despertar os conteúdos reprimidos novamente. É nesse aspecto que Jameson retoma tanto a análise da indústria cultural de Adorno e Horkheimer, quanto o tratamento de Bloch dos impulsos utópicos “em ação naqueles textos mais degradados da cultura de massa, slogans de anúncios comerciais”, como “modelo para uma análise do quanto as formas mais cruas da manipulação dependem das mais antigas expectativas utópicas da humanidade” (Ibidem, p. 297). 73 32 combinação que pretendia levar o marxismo a um novo patamar, a uma síntese teórica superior. Isso era necessário por dois motivos principais: 1) por ela ter adquirido, a partir da França do pós-guerra, uma posição singular no cenário intelectual e ter deslocado a posição central que o marxismo tinha entre a intelligentsia radical; 2) porque, para Jameson, ela oferecia percepções sobre a realidade social que o marxismo não podia ignorar, na medida em que seu método baseado na linguagem confluía com a natureza do próprio capitalismo contemporâneo; estudar esse método daria, portanto, acesso à própria compreensão do sistema social. Ou seja, Jameson parte do diagnóstico de que houve uma mudança gradual no imaginário do pensamento crítico, bem como da posição ocupada pelos ideais marxistas no interior deste. Enquanto no final dos anos 1960, em que o movimento social e sindical vivenciou um momento bastante ativo e ofensivo em diversas partes do mundo, o marxismo – apesar das críticas já evidentes ao modelo soviético – era uma referência, em meados dos anos 1970, passou-se a assistir uma reversão. Na França, isso esteve relacionado ao sentimento de resignação que tomou muitos teóricos após o encerramento das lutas iniciadas em maio de 1968, o que fez do país berço do fenômeno que ficou conhecido como “desmarxificação” nas universidades. 74 Nesse processo, após anos de influência, o marxismo passou a lidar com um novo competidor teórico nos círculos de esquerda; como aponta Perry Anderson, seu descenso no final dos anos 1970 foi acompanhado pela ascendência das ideias levantados pela “frente teórica do estruturalismo, e a seguir seus sucessores pós-estruturalistas”, composta por intelectuais como Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Derrida, Barthes, Deleuze, que passaram a pautar como temas essenciais a linguagem, a crítica à representação, à verdade e às formas de explicação causal e histórica, etc.. 75 74 O recuo do marxismo na França ocorreu junto a eclosão de movimentos anti-totalítários. A criação do grupo Socialisme ou barbarie (um dos primeiros a desenvolver uma crítica sistemática ao stalinismo) e o surgimento dos “novos filósofos” são exemplos disso. Em termos teóricos, as tentativas de “ir além de Marx” que surgiram nesse período pautaram-se na renovação de posições pré-marxistas mais antigas, como as reformulações neo-kantianas e niezschianas, tal como expresso na obra de pensadores Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze. Cf. Jameson, F. “The Bretch-Lukács Debate”. Em: The Ideologies of Theory, p. 434. 75 Anderson, P. A crise da crise do marxismo, p. 38. Martin Jay, igualmente, caracteriza um afastamento da ênfase marxista e uma adesão e acomodação nos argumentos do pós-estruturalismo a partir dos anos 1970. Cf. Jay, M. “Epilogue: The Challenge of Post-Structuralism”. Em: Jay, M. Marxism and Totality: The Adventures of a Concept from Lukács to Habermas. Berkeley: University of California Press, 1984. Para ele, apesar de abarcar um conjunto diverso de autores, pode-se dizer que o denominador comum que mantém unido o pós-estruturalismo é a hostilidade ao conceito de totalidade e a insistência no papel do desejo, da não-identidade e das diferenças (Ibidem, p. 515). 33 Estes temas não tardaram de chegar nos Estados Unidos por meio da recepção anglófona da teoria francesa. Já no final dos anos 1960, o estruturalismo e seus conceitos (como o de texto e textualidade) chegaram nos departamentos de Literatura norteamericanos, que nas décadas seguintes também passou pela onda desconstrutivista (1980) até chegar na ascensão dos Estudos Culturais e pós-coloniais (1990).76 Assim, como relata Jameson, nos Estados Unidos, os anos 1970 – a época “da teoria e do discurso teórico, de jouissances que iam do estruturalismo ao pósestruturalismo, do maoísmo à análise narrativa, e dos investimentos libidinais aos Aparelhos Ideológicos de Estado” – foram “essencialmente franceses”, de forma que [...] Adorno (junto com Lukács e tantos outros pensadores da Europa central, com as notáveis exceções de Benjamin e Brecht) parecia um empecilho, para não dizer um estorvo, durante as lutas dessa época, e forçando aqueles ainda comprometidos com ele a elaborar esquemas de tradução a fim de "reconciliar" Adorno com a ortodoxia baseada em Derrida. Enquanto tudo isso estava ocorrendo por aqui, a intelligentsia francesa estava no processo de plena desmarxização; desse modo, a década seguinte viu a cortina se abrir sobre uma Europa rica e 76 Segundo Paulo Arantes, a teoria francesa do pós-guerra pode ser dividida em três fases: estruturalismo; maio 1968; pós-estruturalismo. Vale ressaltar aqui que Jameson emprega os termos estruturalismo e pósestruturalismo tal como se consolidou na bibliografia norte-americana. Sua recepção nos Estados Unidos se deu inicialmente via os departamentos de Letras das universidades norte-americanas, na passagem do modelo interpretativo do New Criticism para a temporada desconstrutivista na crítica literária (Arantes, P. Tentativa de identificação da Ideologia Francesa. Novos Estudos, n. 28, v. 3, out. 1990, p. 78). Para Andreas Huyssen, durante a importação e aplicação do pensamento francês pelos teóricos da literatura norteamericanos, um corpo de teorias desenvolvido na França desde os anos 60” foi “interpretado nos Estados Unidos como a corporificação teórica do pós-moderno” (Huyssen, A. “Mapeando o pós-moderno”. Em: Hollanda, H. B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 69). Assim, no fim da década de 1970, houve um entrecruzamento entre os debates sobre o pós-modernismo estético e o pósestruturalismo nos Estados Unidos – um “consenso segundo o qual, se o pós-modernismo representa a vanguarda nas artes, o pós-estruturalismo deve ser seu equivalente na “teoria crítica” – de forma que ambos foram vistos como capítulos de uma mesma “desconstrução da modernidade” (Ibidem, p. 57-58). Tanto para Arantes quanto para Huyssen, a fusão do pós-estruturalismo francês e pós-modernismo americano é incongruente, pois o primeiro, em realidade, não é uma “radiografia da cultura (pós-moderna) contemporânea”, mas uma “recapitulação do modernismo na época de sua exaustão” (Arantes, op. cit., p. 80). Assim, mais do que oferecer uma teoria da contrailustração e da pós-modernidade a teoria francesa forneceria “uma arqueologia da modernidade” (Huyssen, op. cit., p. 62). Nesse sentido, o pósestruturalismo seria um tipo de pós-modernismo que opera não uma rejeição do modernismo, mas uma “leitura retrospectiva que, em alguns casos, está plenamente consciente das limitações e fracassadas ambições políticas do modernismo” (Ibidem, p. 63). Ou seja, poderia ser melhor entendido como um modernismo que abandonou sua pretensão crítica, e que assimilou a rejeição da representação, a recusa da história e do sujeito da história, jogos de linguagem, a diferenciação. Essa condição é, assim, justamente a contradição do pós-estruturalismo: um repertório de ideias modernistas tardiamente organizadas que “tornou-se nos Estados Unidos a matéria-prima de que careciam os ideólogos de uma nova etapa cultural do capitalismo multinacional” (Arantes, op. cit., p. 80). Como veremos no capítulo 3, Jameson lê o pósestruturalismo como a forma teórica típica do pós-modernismo. O nome norte-americano dado por ele a essa vertente foi o de “teoria”. 34 complacente, despolitizada, cujos grandes teóricos estavam mortos e cujas tradições filosóficas próprias estavam enterradas. 77 Assim, enquanto nos debates acalorados da época as posições estruturalistas e dialéticas costumavam ser vistas como diametralmente opostas, impermeáveis uma a outra, especialmente no interior do domínio marxista, a tentativa de Jameson foi a de mediar tais posições.78 Para isso, se colocou, então, diante da tarefa de avaliar a virada linguística na literatura e na filosofia que ocorria naquele momento, algo que se encontra expresso em seu terceiro livro, The Prison-House of Language. Nessa obra, Jameson atesta que a história do pensamento é a história dos modelos que organizam nossa compreensão de mundo, assinalando, assim, que suas considerações sobre o modelo linguístico estariam alocadas no campo dessa história intelectual mais ampla.79 Desse modo, ao submeter à crítica a metodologia básica de primazia da linguagem empregada pelo estruturalismo, não pretendia produzir juízos “positivos” ou “negativos”, próprios de um “partidário” ou “adversário” de tal concepção, mas antes, tentar compreendê-la como uma “totalidade intelectual” que não poderia ser simplesmente aceita ou rejeitada.80 Com efeito, Jameson não dispensa de cara sua abordagem e conceitos: “minha impressão é que uma crítica genuína do Estruturalismo nos compromete a trabalhar completamente por meio dela para emergir, do outro lado, numa perspectiva filosófica totalmente diferente e teoricamente mais satisfatória”.81 Dessa maneira, Jameson tenta se diferenciar de uma postura vulgar, abordando com rigor crítico e apropriando-se de certas noções, passíveis de serem enriquecidas por sua própria visão dialética. Nessa via, se preocupa em destrinchar as possíveis relações entre o modelo linguístico e o modelo marxista, ou ainda, os alcances e limites de apropriação do primeiro pelo segundo. Primeiramente, Jameson identifica que, para o estruturalismo, em oposição ao marxismo, pensar é um processo essencialmente sincrônico, que dá atenção à estrutura e não ao processo. Nesse sentido, ele abstrai o conhecimento da mudança temporal, 77 Jameson, O marxismo tardio, p. 18. Cf. Raulet, G. “The Frankfurt School’s Critical Theory: From Neo-Marxism to ‘Post-Marxism’”. Em: Bidet & Kouvelakis (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 144. 79 Cf. Jameson, F. The prison-house of language: a critical account of structuralism and russian formalism. Princeton: Princeton University Press, 1974., p. v. 80 Ibidem, p. x. 81 Ibidem, p. vii. 78 35 conformando uma espécie de “prisão conceitual”, que distorce a relação do pensamento com a experiência social, ou seja, que rompe a conexão desta com a base material que a forma. Pois a ênfase na linguagem como um sistema total influencia a construção de estruturas a-históricas de análise, fazendo com que esta fique presa a um presente perpétuo. No âmbito da crítica literária, por exemplo, o efeito principal disso seria a predominância de um tipo de interpretação formalista que entende o texto como uma estrutura lógica separada do fluxo da história e de intensões autorais, assumindo a linguagem como modelo de explicação privilegiado dessa estrutura. 82 Ou seja, que transforma o texto numa entidade imanente, sem vínculo com qualquer elemento exterior a si, de forma a fechá-lo na sua riqueza de significados interna. Além disso, ao possibilitar a re-expressão dos problemas sociais e filosóficos a partir da terminologia linguística – como a compreensão de que qualquer objeto de análise (da literatura à moda, do inconsciente ao sistema social) é organizado como a linguagem, como um sistema autorreferente de signos, sendo cada objeto uma espécie de sistema total –,83 o método estruturalista estaria, na verdade, em consonância com a própria 82 Cf. Eagleton, T. The Idealism of American Criticism. New Left Review, 127, May-June, 1981, p. 53. Esse debate teve início com a chamada “crise da interpretação”. Cf. Jameson, F. “Metacommentary”. Em: Jameson, F. The Ideologies of Theory, p. 5. Como enfatiza Susan Sontag em Contra a interpretação (1987), trata-se de uma ruptura desenvolvida na literatura e filosofia modernas em que a atividade hermenêutica cai em descrédito, de forma a ocorrer a renúncia do conteúdo em favor do formalismo. Essa concepção se desenvolveu primeiramente com a corrente do New Criticism, hegemônica na crítica cultural norteamericana a partir dos anos 1950. Ela se caracteriza por questionar a relação entre produção artística e realidade histórica, defendendo a especificidade do produto literário e sua autonomia em relação ao contexto em que foi produzido, ou seja, a interpretação do texto literário em si mesmo. Cf. Maia, J. M. E. Ideias, intelectuais, textos e contextos: novamente a sociologia da cultura....BIB, n.62, p. 53-71, 2006, p. 53-4. Segundo Jameson, o descrédito na atividade interpretativa tomou posteriormente formas mais sofisticadas a partir do pós-estruturalismo e do desconstrutivismo, para os quais a História, ou seja, “a referência a um “contexto” ou a um “campo”, um certo mundo real externo”, é tomada num mal sentido (Jameson, F. O inconsciente político, p. 31). 83 Jameson, The prison-house of language, p. 185. A partir desse procedimento, todas as camadas da vida social – das lendas cosmológicas das tribos primitivas e dos sistemas de parentesco aos estilos de se vestir, os modos à mesa e as relações econômicas – tornam-se “sistemas de signos”. Cf. Jameson, F. “The Ideology of Theory”. Em: The Ideologies of Theory, p. 12. A “textualização” torna-se uma hipótese metodológica por meio da qual os objetos de estudo das ciências humanas são considerados textos que devem ser “decifrados” (por influência, inclusive, da descoberta dos “códigos” do DNA na época), distinguindo-se das visões anteriores que entendiam esses objetos como realidades ou substâncias a serem interpretadas e conhecidas: “o poder político torna-se um “texto” que se pode ler, a vida cotidiana torna-se um texto para ser ativado e decifrado ao andarmos ou fazermos compras; os bens de consumo são revelados como um sistema textual, juntamente com uma série de outros sistemas possíveis (o sistema do estrelato, os sistema genérico de filmes de Hollywood etc.); a guerra torna-se um texto legível, assim como a cidade e o urbano; e, finalmente, o corpo humano se torna um palimpsesto cujas pontadas de dor e sintomas, juntamente com seus impulsos mais profundos e com seus aparelhos sensórios, podem ser lidos do mesmo modo que qualquer outro texto. Que essa reconstrução de objetos básicos foi bem-vinda e que nos liberou de muitas falsas questões ninguém pode duvidar, mas que também traz novas falsas questões ninguém pode deixar de prever” (Ibidem, p. 21); cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 200201). 36 natureza do capitalismo do pós-guerra, na medida em que a justificativa mais profunda para o uso de modelos e metáforas linguísticas residiria nas condições concretas da vida social dos países desenvolvidos nesse momento: um mundo saturado por mensagens, informações, pela propaganda e pela mídia. 84 Assim, na perspectiva de Jameson, o marxismo poderia, por meio de uma leitura dialética do método estruturalista, ter acesso às próprias características do sistema capitalista contemporâneo, pois a crescente sensibilidade de se repensar a realidade em termos dos problemas da linguagem e da comunicação difundida nos anos 1970 estaria relacionado à revolução tecnológica e ao forte impacto que esta trouxe para a experiência de sociedade e de mundo. 85 Nesse sentido, o procedimento da “textualização” da realidade e de pensar a linguagem como arquiteta de toda a sociabilidade, na verdade, teria um fundo de verdade social. Mas este só poderia se tornar acessível por meio do movimento crítico, já que a primazia da linguagem mimetizaria os próprios hábitos reificantes do capitalismo, ocultando o pano de fundo das estruturas que analisa, tornando-as fenômenos aparentemente autônomos; reconectá-las novamente à totalidade histórica poderia levar, então, ao conhecimento dos traços constitutivos da sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, existiria uma analogia entre o tratamento estruturalista e marxista sobre fenômenos sociais: se o primeiro transforma seus objetos de análise em sistemas de signos, o último também, em última instância, utilizaria do mesmo recurso, ao compreender o capitalismo como um sistema total que possui uma lógica interna própria a ser examinada – com a diferença que somente o marxismo seria capaz de combinar análise sistemática e o senso de história, entendendo a história como o locus primordial dos problemas dialéticos.86 Jameson, F. “The Ideology of Theory”. Em: The Ideologies of Theory, p. 22. Cf. Jameson, The prison-house of language, pp. vii-ix. 86 A obra de Lévi-Strauss é usada como um exemplo, nesse sentido. Ela é vista como uma contribuição aos estudos da superestrutura, ao elencar como objeto privilegiado o sistema de representações que ordenam a vida social em seus diferentes níveis. Cf. Jameson, The prison-house of language, p. 101. Entretanto, LéviStrauss não estuda as sociedades concretas em sua totalidade orgânica, mas “retira dos materiais etnográficos relativos a tais sociedades os dados referentes aos princípios formais de funcionamento das relações de parentesco que nelas existem, e, em seguida, compara essas realidades (...)”; ou seja, compõe uma arquitetura formal, em que “a história real das sociedades concretas termina por não se fazer presente”, afastando-se da análise das infraestruturas e limitando-se ao estudo das relações de parentesco e dos sistemas de representação míticas e simbólicas (Godelier, M. “O marxismo e as ciências do homem”. Em: Hobsbawm (org.). História do marxismo, p. 371). Para Jameson, é exatamente isso que distingue o estruturalismo do marxismo, pois, para o último, “a característica constitutiva de uma apreensão das superestruturas reside (...) na operação mental pela qual o fenômeno ideológico aparentemente 84 85 37 Nessa investigação sobre os possíveis intercâmbios entre marxismo e estruturalismo, Jameson também nota que a base diacrônica da teoria marxista da história poderia ser enriquecida pelo pensar sincrônico do estruturalismo, algo que se torna mais nítido posteriormente em suas discussões sobre como uma obra literária pode ser um meio de se apreender propriamente a história e a totalidade. Em termos metodológicos, o momento sincrônico corresponderia, assim, àquele momento inicial da dialética marxista em que um determinado objeto de estudo é isolado e abstraído por fins de análise, para depois ser rearticulado na sequencia diacrônica do continuum histórico (que, na verdade, sempre se encontra de forma implícita no próprio objeto). 87 Além disso, em livro mais recente, Jameson aprofunda tais reflexões ao ampliar a caracterização da dialética inicialmente exposta em Marxismo e Forma. Em Valences of the Dialectic (2009), passa a assumir três versões da dialética: além da dialética com o artigo definido (a Dialética) referente ao sentido universal e unitário do termo tal como em Hegel e Marx, e a sua compreensão enquanto adjetivo, que nomeia o processo pelo qual algo se revela como dialético (é dialético!), o autor destaca a possibilidade da dialética sem artigo definido (ou seja, as dialéticas). Nessa forma, momentos dialéticos são descobertos e identificados em pensadores supostamente não ou antidialéticos (como Kant, Nietzsche, Deleuze, Wittgenstein ou Bergson).88 Ou seja, segundo Jameson, padrões locais de dialética podem ser encontrados em zonas específicas ou isoladas no interior de qualquer universo de pensamento, o que permite considerar que existem no final das contas momentos dialéticos em filosofias que não se consideram enquanto tais. Tal leitura corrobora, portanto, com o que o autor havia considerado anteriormente a respeito do estruturalismo. Nesse sentido, Jameson passa também a defender a noção estruturalista de oposição – a ideia de que você nunca pensa uma coisa, mas sim, sempre nessa coisa e no seu oposto – como um lugar útil para repensar a dialética marxista.89 O independente é vinculado forçosamente de volta à infra-estrutura: pelo qual a falsa autonomia da superestrutura é dissipada, e com ela aquele idealismo instintivo (...). Assim, o próprio conceito de superestrutura é projetado para nos avisar o caráter secundário do objeto que nomeia. O termo é projetado para além de sua referência em direção aquilo que ele não é, em direção a situação material e econômica que é sua realidade última” (Jameson, op. cit., pp. 102-103). 87 Cf. Jameson, Marxismo e forma, pp. 238-9. 88 Cf. Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, pp. 4-5. 89 Para Jameson, o pensamento dialético é “profundamente comparativo em sua própria estrutura” (Jameson, Marxismo e Forma, pp. 41-42); na maioria das vezes, “esse caráter marcadamente comparativo da atividade dialética opera por assim dizer, subterraneamente, apenas de maneira implícita, na forma de percepção diferencial que (...) permite ver o que alguma coisa é mediante a percepção simultânea daquilo que ela não é” (Ibidem, p. 239). Um exemplo nítido é a oposição entre base e superestrutura, que na tradição marxista, com suas dinâmicas distintas, formam dois lados separados mais relacionados de uma única 38 exemplo paradigmático utilizado pelo autor é o das oposições binárias, que são para o pensamento estruturalista a estrutura elementar de todo o significado. 90 Nessa chave, os conceitos são necessariamente definidos uns contra os outros, formando constelações, em que o par binário seria a forma mais simples. 91 Partido desse procedimento, qualquer oposição binária pode ser ponto de partida para a dialética marxista: sujeito e objeto, rico e pobre, masculino e feminino, esquerda e direita, poesia e prosa, alta cultura e cultura de massas, ciência e ideologia, materialismo e idealismo, etc. 92 Pela abordagem dialética, isso levaria à habilidade de pensar através de ambos os lados de qualquer argumento, de forma que "o particular [seja] lido não à luz do universal, mas, antes, à luz da própria contradição entre o universal e o particular". 93 Com efeito, para Jameson, apesar de terem sido hostis ao ideal de dialética, as descobertas estruturalistas e pós-estruturalistas "devem, com certeza, ser pensadas como contribuições a uma futura ampliação do poder do pensamento dialético". 94 1.3. Do texto ao contexto Além do exame do estruturalismo, a aplicação primordial da dialética por Jameson nessa primeira fase de seu pensamento se dá no âmbito da literatura. Ainda na chave dos debates que configuravam o ambiente teórico da época, Jameson escreve o O inconsciente político, colocando em prática sua visão das principais tarefas críticas do marxismo, tendo em vista, sobretudo, a chamada “crise da interpretação” que tomou os departamentos de literatura norte-americanos. Ao mesmo tempo que consolida o percurso teórico e crítico anterior, esse livro marca o ponto alto de questão teórica (Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 45). Assim, para Jameson, apesar de suas limitações, o “progresso discursivo marcado pelo “momento estruturalista”, ou pela “teoria” da estrutura que autorizava a prática de homologia, resultou na ampliação do objeto e da possibilidade de estabelecer uma série de novas relações entre materiais de tipos diversos” (Jameson, Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 202). 90 Essa constatação de Jameson tem, novamente, uma implicação histórica mais profunda. Em tempos do que ele chama de “teoria” (no qual as diferenças disciplinares são abolidas), estaria em questão a própria viabilidade da dialética enquanto um sistema filosófico unificado. Por isso, seria o momento “de explorar algumas outras possibilidades”, como a noção de uma multiplicidade de dialéticas locais (Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 10). As oposições binárias, nesse sentido, teriam permitido que o pensamento dialético fosse reinventado no momento contemporâneo. 91 Cf. Ibidem, p. 17. 92 Cf. Ibidem, p. 18. 93 Jameson, O marxismo tardio, p. 52. 94 Ibidem, p. 306. 39 sua síntese e contribuição para a construção de uma hermenêutica propriamente marxista. Nele, Jameson amplia seu modelo de crítica ao estruturalismo, trabalhando os limites e alcances de outras perspectivas especializadas presentes na crítica literária, as quais, na sua opinião, apenas a visão historicizante do marxismo poderia transcender. Tal constatação o leva a elencar o lema “Historicizar sempre!” como aquele que melhor sintetiza o espírito do pensamento dialético. Para isso, Jameson segue um dos caminhos constitutivos do processo dialético: não o caminho do objeto (as origens históricas e a estrutura objetiva de um texto cultural), mas o do sujeito (a historicidade dos conceitos, categorias e códigos interpretativos por meio dos quais se entendem o texto em questão) – ou seja, o caminho do próprio ato de interpretação.95 Jameson, então, aplica o que ele chama de metacomentário, que é nada mais do que um codinome para crítica dialética e seus procedimentos, tal como já havia caracterizado em Marxismo e Forma. Este conceito define, portanto, método que passa ser usado pelo autor, que consiste basicamente em promover, antes de qualquer interpretação, um comentário sobre o próprio ato interpretativo. Com isso, Jameson define que o ponto de partida de qualquer crítico literário seria o de, em primeiro lugar, saber porque exatamente a interpretação em questão é necessária e quais são suas próprias condições de realização. Em outras palavras, Jameson parte do pressuposto de que toda análise interpretativa deve incluir uma interpretação sobre sua própria existência, o que leva o comentador a necessariamente ter consciência de sua própria posição histórica e direcionar sua atenção à situação em que o texto cultural está imerso.96 Com efeito, o metacomentário reproduz o movimento de autorreflexão do pensamento dialético clássico, confrontando o interprete e o objeto e a partir do passo prévio de tentar captar a lógica histórica mais profunda em que estão inseridos.97 No caso específico de Jameson, isso implicava a historização dos modos correntes de interpretação de texto em voga na crítica literária dos anos 1970. Seu procedimento metodológico básico foi o de avaliar historicamente o “rendimento e a densidade de um ato interpretativo realmente marxista com relação àqueles outros métodos interpretativos – o ético, o psicanalítico, o mítico-crítico, o semiótico, o estrutural e o teológico – com 95 Cf. Jameson, O inconsciente político, p. 9. Cf. Jameson, F. “Metacommentary”. Em: The Ideologies of Theory, pp. 6-8. 97 Cf. Jameson, F. “The Ideologies of Theory”. Em: The Ideologies of Theory, p. 48. 96 40 os quais ele deve competir no "pluralismo" do mercado intelectual de hoje".98 Essa justaposição é empregada não apenas para defender a crítica marxista como mais uma opção disponível diante da “legião de opções interpretativas” em conflito no “campo de batalha homérico” da crítica literária, mas como “horizonte absoluto de toda leitura e de toda intepretação”. 99 A moldura marxista, portanto, não seria simplesmente uma substituta ou uma posição alternativa a outros códigos interpretativos, mas aquela que consegue romper a ilusão de que as leituras especificas desses códigos “são, de alguma forma, completas e auto-suficientes".100 Ou seja, apesar de aparentemente autônomos, os diferentes métodos e modos de interpretação disponíveis na crítica literária (análise estilística, ética, mítica, freudiana e estruturalista), não seriam completos em si mesmos, em seus próprios termos, pois cada um na verdade trabalharia apenas um aspecto determinado da vida social fragmentada, refletindo uma posição teórica parcial e reproduzindo o comportamento de a lente de uma lupa que enfoca um dado aspecto da realidade.101 Assim, a perspectiva marxista teria a vantagem de dispor uma visão de totalidade, oferecendo o quadro teórico mais inclusivo, capaz de abranger os demais. Nessa direção, a saída mais produtiva não se deveria ser simplesmente cancelar os códigos de interpretação anteriores, na medida em que estes poderiam permitir uma visão completa se alocados e enriquecidos numa moldura interpretativa com horizonte mais amplo: […] nenhum marxismo contemporâneo inteligente desejará excluir ou repudiar qualquer um dos temas listados acima, que, em suas diversas formas, designam zonas objetivas na fragmentação da vida contemporânea. A "transcendência" do marxismo desses outros métodos, portanto, não implica a abolição ou dissolução de seus objetos de estudo privilegiados, mas sim a desmistificação dos vários quadros ou estratégias de contenção por meio dos quais cada um poderia reivindicar ser um sistema interpretativo total e autossuficiente. Afirmar a prioridade da análise marxista como a de um horizonte 98 Jameson, O inconsciente político, p. 10. Ibidem., p. 15. 100 Ibidem. p. 10. 101 Cada posição metodológica postula, explicita ou implicitamente, algum código interpretativo em termos do qual o objeto cultural é alegoricamente reescrito, como por exemplo: as formas de linguagem e comunicação (estruturalismo), desejo (como para alguns freudianos e pós-marxistas), ansiedade e liberdade (existencialismo), temporalidade (fenomenologia), etc. (Jameson, F. “Marxism and Historicism”. Em: The Ideologies of Theory, p. 451). Cada código tem uma contribuição importante, relacionada ao fato de que cada um tem correspondência com experiências históricas reais. O código-mestre da psicologia, por exemplo, situa o processo de fragmentação psíquica desde o começo do capitalismo, com sua racionalização e organização instrumental do sujeito. 99 41 semântico final e intranscendível – a saber, o horizonte do social – implica, portanto, que todos os outros sistemas interpretativos escondem uma costura que os separa estrategicamente da totalidade social de que são parte e que constitui seu objeto de estudo como um fenômeno aparentemente fechado.102 O ponto de vista marxista, nesse sentido, não se encontra num lugar de competição com outros métodos interpretativos, mas de complementação; pois, ao entender cada perspectiva teórica historicamente, é capaz de revelar a contribuição que cada uma tem a oferecer. Para Jameson, somente a crítica marxista possui essa capacidade de revelar e incorporar o conjunto díspar de códigos interpretativos que as diferentes abordagens teóricas oferecem em seu próprio modelo, de forma que os pontos de vista especializados são transcendidos e a crítica literária abole a si mesma em direção ao conhecimento totalizante do concreto.103 O nome que Jameson dá a essa operação localizada no âmbito do método dialético é o de “transcodificar”, processo de tradução que permite captar o melhor da contribuição de cada paradigma teórico, colocando-os em um patamar superior, segundo um códigomestre. Ou seja, a partir dele, opera-se o princípio dialético, que é justamente o de superar a fragmentação, autonomização, compartimentalização e especialização da análise dos diferentes domínios da vida social – procedimento que não é uma mera “ficção metodológica”, já que “a vida social é, em sua realidade fundamental, uma e indivisível, uma rede inconsútil, um processo único, inconcebível e transindividual” (ou seja, no qual os diferentes fenômenos nunca estiveram “desligados uns dos outros”). 104 O método do metacomentário, portanto, implica um modelo de análise que se apropria bastante de elementos da hermenêutica freudiana. 105 À luz dessa inspiração, Jameson tem como objetivo principal mostrar como todo texto cultural contém um inconsciente político, que requer uma interpretação sofisticada para ser decifrado. Assim, defende como a tarefa da crítica literária marxista deve ser não só a de revelar os limites 102 Ibidem, p. 452. Cf. Jameson, F. “Criticism in History”. Em: The Ideologies of Theory, pp. 125-126. 104 “O reinado da separação, da fragmentação, da explosão dos códigos e da multiplicidade de disciplinas não passa da realidade da aparência: ela existe, como diria Hegel, não tanto em si mesma, mas para nós, como base lógica e lei fundamental de nossa vida diária e da experiência existencial no capitalismo tardio. O apelo a uma unidade subjacente aos vários “níveis” é, portanto, meramente formal e vazio, exceto quando fornece a base racional e a justificação filosófica para aquela prática mais concreta e local das mediações, da qual estamos nos ocupando aqui” (Jameson, O inconsciente político, pp. 36-37). 105 Cf. Jameson, F. “Metacommentary”. Em: The Ideologies of Theory, p. 15. 103 42 de outras correntes interpretativas, mas a de “trazer à superfície do texto sua realidade reprimida e oculta”, isto é, revelar os artefatos culturais como “atos socialmente simbólicos”, como representações oblíquas de suas circunstâncias históricas, sociais e políticas, já que estas são, de forma variada, distorcidas, reprimidas e transformadas por meio das abstrações das formas estéticas da arte. 106 A proposta de deciframento do inconsciente político é, portanto, o nome que Jameson dá à prática marxista de análise ideológica, pressupondo que toda produção de ideologia implica um princípio de realidade, ou melhor, de censura da realidade.107 Dessa forma, a interpretação do texto não deve buscar apenas aquilo que ele “diz”, mas antes, as próprias formas de ideologia que ele oculta, entendendo-se que esse processo de ocultação é tão mais forte quanto mais poderoso é o poder de mistificação da sociedade na qual a obra cultural em questão está inserida; segundo Jameson, isso é bastante intenso no caso da sociedade contemporânea, “saturada de mensagens e informações, que são os próprios veículos da mistificação”.108 O objetivo de revelar aquilo que está por trás do texto, a realidade última a que ele corresponde, não significaria, então, apenas estabelecer algo como o “equivalente social” de uma determinada obra (como faria a abordagem da sociologia da cultura a partir da justaposição de uma obra ao seu contexto).109 Afirmar que a tarefa do crítico é “revelar essa dimensão censurada da obra implica, precisamente, que – pelo menos na arte como é praticada hoje na sociedade e na sociedade em que é praticada – a superfície da obra é uma espécie de mistificação de sua estrutura”.110 A interpretação propriamente dita pressupõe, assim, a existência desse “mecanismo de mistificação ou repressão” pelo qual 106 Cf. Jameson, The prison-house of language, p. 18. Cf. Jameson, O inconsciente político, p. 184. 108 Ibidem, p. 55. O “conteúdo não precisa ser interpretado (...). O conteúdo já é concreto, na medida em que é, essencialmente, experiência social e histórica, e podemos dizer de nossa operação interpretativa ou hermenêutica o que o escultor disse de sua pedra, que bastava remover todas as porções excrescentes para que a estátua surgisse, já latente no bloco de mármore. Assim, o processo da crítica não é tanto a interpretação do conteúdo como é uma revelação dele, um desnudamento, uma restauração da mensagem original, da experiência original, que jaz sob as distorções dos vários tipos de censura que sobre ela operam; e essa revelação toma a forma de uma explicação de como o conteúdo foi assim distorcido e é, desse modo, inseparável da descrição dos mecanismos dessa mesma censura” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 306-7). 109 Em relação a sociologia da cultura, Jameson destaca: “no domínio da crítica literária, o enfoque sociológico obrigatoriamente justapõe a obra de arte individual a alguma forma mais vasta de realidade social, a qual é vista, de um modo ou de outro, como sua fonte ou fundamento ontológico, seu campo gestáltico, e da qual a própria obra é concebida como um reflexo ou sintoma, uma manifestação característica ou um simples subproduto, uma conscientização ou uma resolução imaginária ou simbólica, para mencionar apenas algumas das maneiras pelas quais esta relação central e problemática tem sido concebida” (Jameson, O inconsciente político, p. 12). 110 Ibidem, p. 313. 107 43 se daria a busca do “significado latente por trás de um significado manifesto” e sua “reescritura” através de um código interpretativo fundamental. Logo, a crítica marxista teria o papel de entender como o conteúdo é reprimido, reconstituindo “a forma interna de uma obra literária, como disfarce e ao mesmo tempo revelação do concreto”,111 de maneira que a relação entre forma e conteúdo, texto e contexto, não seria a de reflexão simples, mas sim, mediada, envolvendo um processo marcado por deslocamentos e recalques.112 Assim, a hermenêutica marxista seria diferente de todos os outros tipos de interpretação ao ter como “código mestre” uma “causa ausente” (Althusser), isto é, a História, que encontra na arte uma forma distorcida e simbólica de se expressar. Nesse sentido, na medida em que cada texto carrega traços da situação em que se encontram, a história torna-se o terreno em que toda a análise deve passar, como um movimento de ida e vinda: o estudo de cada artefato cultural como forma de acesso à história; o estudo da história como perspectiva para entender cada objeto cultural. Desse modo, a interpretação não seria nada mais do que uma operação alegórica, “em que um texto é sistematicamente reescrito em termos de um código mestre fundamental”. 113 Esse método de desnudar o que está distorcido na obra novamente segue o movimento dialético do intrínseco para o extrínseco, da aparência para a essência. Ou seja, aciona o momento em que a crítica passa do texto para o contexto, pelo qual o sentido social e político de uma obra é evocado em termos das classes, contradições históricas, pano de fundo econômico, etc., o que é visto por Jameson como o ponto crucial em que uma análise literária se transforma numa interpretação marxista propriamente dita.114 Retomando as formulações estéticas de Adorno, Jameson tem, portanto, o objetivo de mostrar como o produto cultural é, inconscientemente, uma historiografia de sua própria 111 Ibidem, p. 313. Ou seja, o texto cultural não é para Jameson nem um objeto puramente autônomo, nem um simples “reflexo” da realidade. No caso do estudo das obras modernistas, por exemplo, Jameson identifica que a reificação, fragmentação e monadização que caracterizam as relações sociais no mundo moderno e a forma dos produtos culturais e literários, apesar de serem parte de um mesmo processo “que expressa a lógica interna contraditória e a dinâmica do capitalismo”, não possuem uma identidade direta. Ao não ser mero reflexo da reificação, a obra de arte moderna pode ser vista também como uma revolta contra ela, “um ato simbólico que envolve toda uma compensação utópica pela crescente desumanização ao nível da vida diária”. Por isso, existe não uma mera reflexão, mas uma certa continuidade mediada entre o mundo social e literário, de tal forma que o primeiro pode ser apreendido “como a situação, dilema ou contradição determinantes – ou subtexto –, com relação à qual a primeira surge como resolução ou solução simbólica” (Ibidem, pp. 38-39). 113 Ibidem, pp. 52-53. 114 Cf. Jameson, F. Marxist Criticism and Hegel. PMLA, v. 131, n. 2, mar 2016a, p. 432. 112 44 época.115 Com isso, compreende que a apreensão do concreto é um problema central para a crítica literária marxista, sendo assim inerente a ela uma mudança de marcha do literário para o plano socioeconômico. 116 A questão imediatamente posta, entretanto, é justamente como se passa de um nível social a outro; ou seja, como se dá propriamente a relação entre um fenômeno cultural com a realidade histórica e social mais ampla, e como tal relação deve ser entendida. Jameson propõe que, para chegar ao inconsciente político de uma obra, o crítico marxista deveria atuar sobre três molduras consecutivas de interpretação, cada uma correspondente a um nível de abstração teórica, pelas quais a aparência de autonomia do texto cultural é gradualmente dissolvida: a moldura política, a social e a históricoeconômica. Como confessa em Marxismo tardio, Adorno não estava muito distante de suas reflexões quando propôs esse modelo interpretativo que entende o “fundo social e histórico” não como extrínseco, mas intrínseco à prática da análise formal. 117 Na primeira moldura, referente a primeira fase de análise, o texto é lido sob o horizonte da história política, identificando-se os eventos históricos imediatos aos quais ele faz alusão. A obra é, assim, reconstruída como um “ato social simbólico” que inventa uma solução formal para as tensões e conflitos sociais que não são passíveis de resolução no plano do real da sociedade. Para esse nível da operação interpretativa, Jameson se apropria das leituras do mito e da estrutura estética apresentadas por Lévi-Strauss, cujo princípio analítico básico é o de apreender a narrativa e sua estrutura como “a resolução imaginária de uma contradição real”. 118 No segundo horizonte, o social, a categoria organizacional da análise é a classe e a consciência de classe. Nesse nível, a linguagem e os temas da obra são conectados à luta de classe de sua época, isto é, o objeto é reconstruído na forma dos discursos antagonistas das classes sociais (o que Jameson chama de “ideologemas”). Na última fase da interpretação, o mais amplo de todos, a interpretação é organizada em torno do conceito de modo de produção, de forma a situar 115 Cf. Jameson, O marxismo tardio, p. 244. Cf. Jameson, Marxismo e forma, pp. 287-8. 117 Jameson, O marxismo tardio, p. 22. Segundo Jameson, a originalidade da obra filosófica e estética de Adorno "reside em sua ênfase exclusiva na presença do capitalismo tardio como uma totalidade dentro das próprias formas de nossos conceitos ou das próprias obras de arte. Nenhum outro teórico marxista apresentou essa relação entre o universal e o particular, o sistema e o pormenor, com esse tipo de atenção exclusiva" (Ibidem, p. 23). 118 Jameson, O inconsciente político, p. 70. 116 45 a obra no plano da história, concebida no sentido mais amplo de uma sequência de modos de produção.119 Na descrição das tarefas críticas desse último horizonte interpretativo, Jameson apresenta pela primeira vez a formulação de que cada modo de produção corresponde a uma dominante cultural, isto é, uma “forma de codificação ideológica” específica.120 Segundo essa ideia, todos os modos de produção, como momentos sincrônicos de um processo histórico mais amplo, são acompanhados não apenas de tipos específicos de produção econômica ou processo de trabalho e tecnologia, mas também por produções linguísticas e “revoluções culturais” particulares: no comunismo primitivo ou sociedade tribal (horda), a narrativa mágica e mítica; nas sociedades hierárquicas de parentesco (genói), o parentesco; no despotismo oriental (modo asiático de produção), a religião e o sagrado; na sociedade oligárquica escravagista (pólis), a “política”; no feudalismo, as relações de dominação pessoal; no capitalismo, o fetichismo da mercadoria; no comunismo, as formas originais de associação coletiva ou comunal. A tarefa desse horizonte final da interpretação seria, portanto, reescrever o texto de forma que “essa perpétua revolução cultural possa ser apreendida e lida como a estrutura constitutiva mais profunda e permanente em que os objetos textuais empíricos alcançam a inteligibilidade”.121 119 O caso principal com o qual Jameson lida em O inconsciente político é o do romance realista, por meio do exame das obras de Balzac, George Gissing e Joseph Conrad. Sua leitura desses autores, que deve muito às análises estéticas de Lukács, aponta o papel significativo do romance na revolução cultural burguesa, tendo como objetivo projetar uma moldura da história da formação dessa subjetividade: como a narrativa contada por eles revela a odisseia da “construção do sujeito burguês no capitalismo emergente e sua desintegração esquizofrênica em nossa própria época” (Ibidem, p. 12). Para Jameson, Balzac, como um dos exemplos paradigmáticos do realismo, articularia, por exemplo, em seus textos o que seria a consciência de classe dominante na França no começo do século XIX, isto é, representaria a perspectiva de classe sobre as mudanças históricas em curso naquele período, entre eles os conflitos entre aristocracia e burguesia. 120 Ibidem, p. 82. 121 Ibidem, p. 89. Em texto mais recente, Jameson faz um breve balanço deste modelo interpretativo proposto em O Inconsciente Político, considerando que ele ainda não resolve por completo o problema sobre o momento crucial de transição, “o embaraçoso elo fraco do deslocamento do texto para o contexto” (Jameson, Marxist Criticism and Hegel, p. 432). Por isso, o autor tem sugerido em seus trabalhos um retorno a Hegel, retraçando cada nível do processo de interpretação que tinha proposto anteriormente (político, social e histórico), a partir dos estágios de produção de categorias em Hegel (Doutrina do Ser, da Essência e da Noção), que atuam como uma imensa espiral, “na qual todos os momentos se repetem sucessivamente em níveis mais altos de complexidade” (Ibidem, p. 430). O momento em que a crítica passa do texto para o contexto seria o momento da Essência em Hegel, no qual se trabalha o problema específico da relação entre interno e externo. Esse processo de transição pode ser clarificado, segundo Jameson, pela proposta interpretativa de Sartre, chamada de “método regressivo-progressivo”, que segue o caminho da abstração hegeliana: um processo de expansão ao invés de subtração, que num primeiro momento regride às precondições locais de uma obra – em termos sociais, históricos, formais, existenciais ou psicológicos – para reconstruí-las progressivamente junto ao fenômeno histórico mais vasto do qual tanto texto quanto 46 Vale, portanto, destacar que, ao dar prioridade ao modo de produção no terceiro nível de interpretação, Jameson não torna sua análise economicista em sentido estrito, pois não concebe o modo de produção apenas em termos econômicos. O autor reforça o equívoco, já evidenciado por outros autores do marxismo ocidental, de identificar a perspectiva marxista como “simplesmente um tipo de interpretação que toma a ‘sequência’ econômica como o código privilegiado final para o qual as outras sequências devem ser traduzidas”.122 Ou seja, defende não uma abordagem que primeiro analisa as mudanças no domínio da economia e depois traça seus efeitos no domínio cultural; ao contrário, busca trabalhar o princípio de relação dialética entre os diferentes níveis da totalidade social. Nesse sentido, segue sobretudo Althusser, defendendo não uma relação reducionista de “causa e efeito” entre base e superestrutura, em que o que determina em última instância é o econômico, mas a existência de apenas uma estrutura determinante – o modo de produção – que comporta os níveis cultural, ideológico, jurídico, político, econômico.123 O modelo interpretativo defendido por Jameson se descola, portanto, tanto do formalismo, quanto do puro reflexionismo. Além disso, na medida em que insiste na interrelação dos domínios que compõe uma formação social, elucida como os problemas inerentes ao campo literário se revelam bastante úteis para se pensar problemas sociais em geral: [...] os problemas específicos levantados pela interpretação literária e cultural de hoje apresentem analogias sugestivas com os problemas sociedade são componentes. Ou seja, um processo em que as mesmas categorias se repetem em níveis mais elevados de complexidade (Ibidem, p. 437). 122 Jameson, Marxismo e Forma, pp. 246-47. 123 Cf. Jameson, O inconsciente político, pp. 32-33. Jameson diferencia, assim, o que é dominante e o que é determinante; o último está sempre relacionado a produção, enquanto o primeiro pode variar em cada sociedade – podendo ser a economia, religião, cultura, política, etc. Para Althusser, as diferentes instâncias no interior do todo social não operam em homologia, mas sim de acordo com uma certa semi-autonomia, isto é, em interdependência estrutural, em que a relação entre os diferentes níveis sociais é mediada pela estrutura modo de produção. Para Jameson, o “inconsciente político” da noção althusseriana de semiautonomia está relacionado às discussões no interior do Partido Comunista francês contra a “causalidade expressiva” de Stalin, detectada na “ideologia producionista do marxismo soviético, como insistência na primazia das forças de produção”, a partir da qual se defendeu que uma “mudança infraestrutural nas forças de produção – a nacionalização e a eliminação das relações de propriedade privada, bem como a industrialização e a modernização – será suficiente para “transformar de maneira mais ou menos rápida toda a superestrutura”, e a revolução cultural torna-se desnecessária, da mesma forma que a tentativa coletiva de se inventarem novas formas do processo de trabalho” (Ibidem, pp. 33-34). 47 metodológicos de outras ciências sociais (entendendo-se que, para o marxismo, a análise literária e cultural é uma ciência social) .124 Ou seja, retomando sua defesa da totalidade, Jameson aponta que o crítico marxista deve romper com “os compartimentos especializados das disciplinas (burguesas) e estabelecer conexões entre os fenômenos aparentemente díspares da vida social em geral”, o que torna possível, por sua vez, a “adaptação das análises e descobertas de um nível para outro”.125 Nesse sentido, como afirma em Marxismo e Forma, a literatura acaba exercendo um papel central no processo dialético; seu domínio fechado, “a situação experimental ou de laboratório que ele constitui, com seus problemas característicos de forma e conteúdo, e da relação da superestrutura com a infraestrutura, oferece um microcosmo privilegiado para se observar o pensamento dialético em operação”.126 O complexo de problemas apresentados em O Inconsciente Político complementa essa constatação, oferecendo uma maneira de pensar a narrativa como um dos meios pelos quais a História pode ser subjetivada. Como já dito, esta é vista por Jameson como uma “causa ausente”, inacessível exceto por meio da forma textual. 127 A narrativa, nesse sentido, é vista como uma forma primordial de mediação entre consciência e história, constituindo-se não como um mero sintoma ou reflexo das forças históricas, mas uma solução imaginária/formal para contradições sociais sem solução aparente. Por isso, Jameson defende que a literatura é central para o marxismo, pois ela é a forma suprema 124 Ibidem, p. 305. Ibidem, p. 35-36. 126 Jameson, Marxismo e forma, pp. 2-3. Em outro momento, Jameson também afirma: “uma vez que o cultural é bem menos complexo que o econômico, pode servir como uma introdução conveniente ao real, numa escala reduzida e simplificada. Assim Engels disse de Balzac: “aprendi mais com sua história completa da sociedade francesa, até mesmo em detalhes econômicos (por exemplo, a reorganização da propriedade mobiliária e pessoal depois da Revolução), do que com todos os historiadores, economistas e estatísticos professos do período”. Tradicionalmente, na verdade, a crítica literária marxista tem fornecido uma introdução conveniente tanto às sutilezas do método dialético como às complexidades da doutrina social e econômica marxista. Mas o que Engels aprendeu do conteúdo, o crítico literário marxista moderno deveria ser capaz de demonstrar em funcionamento dentro da própria forma: assim, é o modelo que agora nos ajuda a ler a substância desconcertante e maciça do real, do qual começou por ser a projeção” (Ibidem, pp. 12-13). 127 “A história não é em nenhum sentido em si mesma um texto ou texto mestre ou narrativa mestre, mas que é inacessível para nós exceto na forma textual ou narrativa, ou, em outras palavras, que nós abordamos apenas por meio de uma textualização ou (re)construção narrativa prévia” (Jameson, F. “The Ideologies of Theory”. Em: The Ideologies of Theory, p. 452-453). 125 48 de narrativa, cujo estudo fornece uma compreensão da história, do mundo social e subjetivo.128 A conexão entre crítica cultural e crítica social na obra de Jameson se dá, portanto, pela avaliação de que as formas e estruturas que compõem a sociedade não estão imediatamente acessíveis para análise: [...] Adorno mostra não somente como toda ideia possível que formamos a respeito da sociedade é necessariamente parcial e imperfeita, inadequada e contraditória, mas também que as próprias contradições formais são as indicações mais preciosas de como nos situamos em relação à realidade concreta da própria vida social no momento presente do tempo. Pois a sociedade, claramente, não é um objeto empírico que podemos encontrar e estudar diretamente em nossa própria experiência (...). Ao mesmo tempo, a sociedade – precisamente na forma de tal abstração suprapessoal impossível – está presente na forma de uma restrição sobre cada momento de nossa vida consciente: ausente, invisível, insustentável mesmo, ela é, ao mesmo tempo, a mais concreta de todas as realidades que temos de enfrentar, e "embora a noção de sociedade não possa ser deduzida de nenhum fato individual, nem por outro lado ser apreendida ela mesma como um fato individual, não há, contudo, nenhum fato social que não seja determinado pela sociedade como um todo".129 Ou seja, o que se pode aferir de imediato à “olho nu” são apenas as aparências do modo de produção capitalista e seus sintomas. Ir à essência é necessariamente uma questão da interpretação. Nesse sentido, apesar de não podemos ter acesso imediato à realidade social como um objeto de análise, podemos ter às representações dela, que necessitam do ato de interpretação para serem compreendidas. Isso não significa que a sociedade é como um texto (como sugerem os estruturalistas), mas que ela está apenas A experiência estética pode nos conduzir “de volta à história - à história do capitalismo, do qual a obra emergiu, e à constelação de classes e racionalidade instrumental que é seu conteúdo semântico, e torna possível sua dimensão utópica" (Jameson, O marxismo tardio, p. 291). 129 Jameson, Marxismo e forma, p. 50. Jameson também argumenta: "se a obra de Adorno em nenhuma parte oferece a declaração manifesta sobre o mundo dirigido que pareceria ser a sua pressuposição, se em nenhum momento se dá ao trabalho se expressar em termos sociológicos diretos a teoria da estrutura da "sociedade institucionalizada" que serve de explicação oculta e referência cruzada essencial para todos os fenômenos sob análise, isso se explica não apenas pelo fato de que tal material pertence ao estudo da infraestrutura mais do que aos dos materiais ideológicos, e de que já está explícito na economia marxista clássica, mas acima de tudo pela impressão de que tais declarações manifestas, tais apresentações diretas de puro conteúdo, são estilisticamente erradas, a falha estilística sendo ela mesma uma marca e um reflexo de alguma falha essencial no próprio processo de pensamento. (...) a apresentação explícita do conteúdo por si mesmo, quer na literatura sociológica, quer na filosófica, é condenada como um retrocesso à ilusão positivista e empírica que o pensamento dialético se incumbiu de superar" (Ibidem, pp. 47-8). 128 49 acessível para nós através da representação, como forma narrativa. De acordo com Jameson, a análise de uma obra literária, por exemplo, “permite-nos isolar um certo número de circunstâncias e mecanismos específicos, que fornecem mediações concretas entre as ‘superestruturas’ da experiência psicológica ou vivida, e as ‘infra-estruturas’ das relações jurídicas e dos processos de produção”.130 Por esse motivo, Jameson considera a ideologia como o conceito de mediação por excelência, o lugar em que a representação e a história, a objetividade e a subjetividade, a economia e a estética se encontram, no qual questões formais, culturais e literárias se tornam políticas.131 A partir disso, torna-se claro como foi de certa maneira inevitável ou natural que a crítica literária de Jameson desembocasse num diagnóstico da própria sociedade, ou melhor, como seu interesse último pela narrativa e pela história acabasse transcendendo um ou outro ramo especializado do conhecimento. Nesse sentido, Jameson também destaca a importância de outra face do modelo interpretativo marxista para essa variação entre o textual e o social: a decifração dos impulsos utópicos. Com isso propõe que a análise cultural não é apenas útil como uma ferramenta de interpretação da sociedade, como também o é para sua transformação. Por isso, deveria ser constitutivo da análise marxista praticar, simultaneamente, uma interpretação essencialmente negativa, relevando as maneiras pelas quais um produto cultural cumpre uma missão ideológica (algo que somente o marxismo, entre todos os métodos contemporâneos, cumpre), além de projetar o poder positivo, utópico, desses mesmo textos ideológicos, que são capazes de revelar a “afirmação simbólica de uma forma de classe específica e histórica”.132 A partir do reconhecimento simultâneo das “funções ideológicas e utópicas do texto artístico”, a crítica marxista cumpriria, então, seu papel também na práxis política, que “ainda é, evidentemente, a razão de ser do marxismo”.133 Assim, retoma novamente o quadro teórico construído desde Marxismo e Forma para reforçar a dupla obrigação da dialética de inventar formas que unem a situação imediata com a possibilidade da ideia radical de um outro futuro possível, aspecto importante para compreender as intervenções teóricas subsequentes em sua obra. 130 Jameson, O inconsciente politico, pp. 156-157. Cf. Jameson, The Ideologies of Theory, p. ix. 132 Jameson, O inconsciente politico, pp. 300-301. 133 Ibidem, p. 308. 131 50 1.4. Dialética ou ecletismo? Dito isso, uma última consideração sobre o marxismo de Jameson pode ser levantada. Como pudemos ver, nessa primeira fase de sua obra, que cimenta todo o percurso teórico a ser trilhado pelo autor posteriormente, duas questões principais se sobressaem: seu empenho de colaborar com a consolidação do marxismo como tradição crítica viva nos Estados Unidos num período intelectual e político controverso, e o de adaptar essa tradição, colocando-a em diálogo com novas problemáticas postas, sobretudo, pela teoria estruturalista europeia, por um lado, e pelo capitalismo do momento “pós-industrial”, por outro. Diante disso, um dos traços peculiares que a obra de Jameson assume é a defesa do marxismo com uma identificação parcial com outras correntes teóricas. Seus livros registram a tentativa constante de combinar a tradição marxista de base hegeliana com formas contemporâneas de pensamento, tornando assim bastante característico de seus textos a combinação, numa mesma análise, de diferentes referências, pensadores, conceitos, tempos históricos e lugares, o que fez Kouvelakis caracterizá-lo, por exemplo, como uma “maquina interpretativa” alimentada pelo desejo insaciável por teoria e diferentes formas de produção cultural. 134 Pode-se dizer que isto está relacionado à forma particular com que Jameson assimila a dialética clássica, utilizando-a como meio de ajustar o marxismo ao momento contemporâneo, algo que tornou-se, por sua vez, um dos motivos principais pelos quais sua obra foi criticada.135 Como bem pontua Terry Eagleton, o hábito intelectual típico de Jameson consiste em “ponderar duas ou mais teses aparentemente incompatíveis, mostrar como cada uma é sintomática de uma condição histórica real e assim acomodar ou mesmo dissolver as contradições entre elas”, o que faz com que em muitos momentos a originalidade de sua teoria não esteja tão vinculada à produção de novas ideias, mas à sua capacidade de enxergar as possibilidades de síntese de ideias já existentes.136 134 Cf. Kouvelakis, S. “Fredric Jameson: An Unslaked Thirst for Totalisation”. Em: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 698-699. 135 Nessa tentativa, que buscou fazer com que o marxismo competisse em termos de igualdade com outras correntes em alta naquele momento, a obra de Althusser foi uma espécie de mediador, já que este também tentou atualizar o marxismo e resolver o “problema Stalin” promovendo uma reinterpretação “estruturalista” de Marx. Cf. Dowling, W. Jameson, Althusser, Marx: an introduction to The Political Unconscious. Ithaca: Cornell University Press, 1984, p. 13. 136 Eagleton, T. The Idealism of American Criticism, p. 62. 51 Pois, como o próprio Jameson reconhece, seguindo o que ele chamou de “transcodificação”, o autor constantemente opera “trocas de lentes”. Isto é, da mesma forma que num exame no oculista, em que lentes são alternadas diante do olho humano no intuito de se ajustar as imperfeições óticas e se chegar a uma visão mais nítida e precisa do mundo real, para Jameson, o teórico deveria partir do mesmo procedimento, utilizando-se das constelações de lentes e nomenclaturas que se encontram à sua disposição para trazer foco ao problema que deseja trabalhar, apropriando-se daquelas que melhor iluminam a questão e descartando as que tornam sua visão mais borrada.137 A questão para Jameson, portanto, é saber usar a melhor lente teórica de acordo com a demanda, pressupondo os pontos fortes e fracos de cada perspectiva, o que enriquece em muitos sentidos suas análises, mas que, por outro lado, acaba as tornando indiferentes às diferenças e incongruências que cada sistema filosófico possui em relação ao outro, o que faz de Jameson, nas palavras de Martin Jay, um “artista de corda bamba” que, para possuir uma visão privilegiada do alto, deve se equilibrar no meio fio diante das pressões exercidas por todos os lados.138 Assim, esse tratamento da dialética acaba imprimindo à obra de Jameson características particulares. Por um lado, o mecanismo crítico a faz um sistema coerente e sempre em mudança, na medida em que o seu pensamento atua e se desenvolve como uma “espiral” em expansão: um projeto inicial que se amplia, a partir do aprofundamento progressivo de conceitos e problemáticas iniciais, sempre postos em novos contextos e fenômenos por meio da tensão criativa com outros autores. Por outro lado, essa tentativa de atualizar o marxismo a partir da subsunção de outras posições teóricas tem como efeito prático a construção de um tipo de teoria expandida com ideias de outros pensadores, procedimento que novamente muitas vezes cria sínteses importantes, mas em outros faz com que sua obra esbarre num certo tipo de pluralismo e ecletismo. Ao mesmo tempo, essa constante mistura de referências que a teoria de Jameson acaba apresentando também reflete o ambiente cultural em que está inserido: como o próprio autor reconhece, além do “congestionamento bibliográfico” no “vasto mercado 137 Cf. Buchanan, I. Jameson on Jameson: conversations on cultural Marxism. Durham: Duke University Press, 2007, p. 2. Jameson opera, nesse sentido, uma série de conversões de lentes ao longo de sua obra, do existencialismo de Sartre, à semiótica, Escola de Frankfurt, teoria francesa estruturalista, etc., apropriando, à sua maneira, de conceitos como simulacro, esquizofrenia, intensidades, capitalismo tardio, etc.. 138 Jay, M.; Flax, J. Postmodernism, or, the cultural logic of late capitalism (resenha). History and Theory, v. 32, n. 3, out 1993, pp. 296-310. 52 editorial” ser uma constante na academia, 139 a presença de mesclas era um imperativo na cultura de massas emergente na época, basta olhar a diversidade de estilos e modas, que na verdade só tem aumentado desde os anos 1980. Ou, como descreve Eagleton, o ecletismo "é o grau zero da cultura geral contemporânea: as pessoas escutam reggae, assistem a um western, almoçam McDonald's e jantam cozinha local, usam perfume de Paris em Tóquio e roupas retrô em Hong Kong; o conhecimento é um assunto de jogos de TV”.140 Tais características gerais presentes no marxismo de Jameosn, portanto, estão vinculadas a uma série de problemas que rondaram o desenvolvimento do marxismo no contexto de “desmarxificação”. Por um lado, a estratégia de colocar esta tradição em diálogo com outras tendências teóricas por meio da crítica dialética e sua aproximação aos objetos da cultura de massas pode ser vista como uma espécie de “lugar possível” para tirá-la da posição de isolamento em que se encontrava. Por outro lado, traduz uma certa cisão contraditoriamente criada entre marxismo autêntico e marxismo “degenerado”, isto é, a forma pela qual, em contraposição à rigidez identificada em formas de marxismo ortodoxo, muitos optaram pela heterodoxia e por uma certa “elasticidade” teórica. Por isso, pode-se dizer que a obra de Jameson é, ao mesmo tempo, um sintoma e um vetor das configurações atuais do marxismo, expressando características que foram sendo assumidas pelo pensamento marxista num ambiente histórico controverso, tendência que alguns críticos enquadram como um aprofundamento ou continuação da dos elementos apontados por Perry Anderson em sua caracterização sobre o desenvolvimento do marxismo ocidental. 141 139 Como o mesmo Jameson confessa, o “congestionamento bibliográfico” favorece a “fragmentação e a compartimentalização”, não sendo fácil “evitar uma espécie de saturação referencial, para não dizer ecletismo, no emaranhado da qual o pesquisador deve se situar para poder dialogar com seus pares, sobretudo se forem opositores” (Jameson, Marxismo e forma, p. vii). 140 Eagleton, T. Capitalismo, modernismo e pós-modernismo. Crítica marxista, v. 1, São Paulo, 1995, p. 67. 141 Na visão de Anderson, o marxismo ocidental é fruto de um processo de “derrota política”, que acabou deslocando a tradição marxista da prática revolucionária e dos estudos econômicos, para os estudos de filosofia, das questões de método (como a epistemologia de uma compreensão crítica da sociedade) e de investigações sobre a cultura. Seguindo essa lógica argumentativa, as teorias marxistas contemporâneas seriam uma continuação das tendências do marxismo ocidental, na medida em que também teriam se desenvolvido numa conjuntura histórica marcada pelo signo da derrota. Ou seja, teriam nascido de uma experiência política semelhante à de duas gerações anteriores; nesse sentido, a forma como o revés da onda revolucionária nos anos 1920 afetou os rumos da teoria marxista na primeira metade do século XX seria comparável ao declínio das experiências dos anos 1960 e a forma como este influenciou a produção intelectual marxista a partir dos anos 1970. Da mesma maneira, nesse contexto, também houve uma 53 Um deles, refere-se notadamente ao fato do marxismo ter deixado de ser identificado “com um determinado modelo de revolução e de construção do socialismo e com um determinado movimento internacional, sob a direção centralizada ou, pelo menos, a orientação preestabelecida do Partido Comunista da URSS”. 142 Assim, um dos traços distintivos da tradição marxista – a relação ente teoria e prática – adquiriu novos contornos. Com isso, houve também uma mudança de terreno institucional: o “lugar” do marxismo passou a ser menos identificado com o partido, e mais com o ambiente acadêmico das universidades; a prática foi em certo sentido substituída pela “prática teórica”; e os intelectuais – um estrato social que se tornou mais amplo e importante no pós-guerra com a expansão do número de instituições de ensino superior –, passaram a ter mais influência no desenvolvimento do marxismo.143 Ou seja, houve uma restrição do campo de ação desta tradição, bem como a perda de seu discurso estratégico, devido ao ofuscamento da relação tradicional entre intelectuais e organizações políticas e a integração do marxismo à vida acadêmica, que geraram o declínio da figura do intelectual de partido e a proliferação da figura do “teórico”. migração para os problemas da consciência e da ideologia, já que, mais do que pensar a organização e a estratégia política, era necessário entender as raízes da própria derrota, bem como os mecanismos de triunfo do capitalismo “pós-industrial”. Cf. Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental, p. 60. Para Ellen Wood, uma vinculação meramente mecânica de que a formação de gerações de intelectuais adaptados ao signo da “derrota” estaria na essência das mudanças teóricas nesse período, dificulta o estabelecimento de conexões mais refinadas para entender o recuo das posturas e preocupações clássicas que caracterizam a tradição marxista e o surgimento do "pós-marxismo” nos anos 1970-1980. Segundo a autora, se houve uma ruptura no desenvolvimento do pensamento crítico na segunda metade do século XX, esta ocorreu no momento em que a intelligentsia de esquerda deixou de se pensar enquanto uma aliada das lutas populares, ou mesmo como uma vanguarda. Ou seja, quando os intelectuais deixaram de pensar em si mesmos como intelectuais de um movimento emancipatório e começaram a pensar-se como intelectuais para esse movimento, ou ainda, quando começaram a pensar em si mesmos como o próprio movimento. Assim, as explicações para esse fenômeno não deveriam ser encontradas na história do movimento operário, mas na própria sociologia da academia (ambas, é claro, relacionadas em última instância ao contexto do capitalismo pós-guerra). A conexão entre o declínio da política de classes e a autonomização da atividade intelectual estaria, dessa forma, mais fortemente mediada pela forma como passou-se a defender a autonomia da luta ideológica. Junto a isso, houve o virtual desaparecimento do intelectual do partido e a emergência da figura do intelectual como um expert. Assim, o paradoxo aqui não se evidencia simplesmente como a separação entre teoria e prática, mas como os acadêmicos de esquerda adotaram a atividade intelectual de forma deliberadamente exclusiva. Cf. Wood, E. M. A chronology of the New Left and its successors, or: who’s old fashioned now? Socialist Register, v. 31, pp. 22-49, 1995a, pp. 31-35. 142 Hobsbawm, “O marxismo hoje: um balanço aberto”, p. 15. 143 Cf. Anderson, A crise da crise do marxismo, p. 19. Ou seja, o problema da prática passou a se adequar a um período histórico muito diferente daquele que deu forma à práxis comunista e socialdemocrata do começo do século XX. Diferentemente do momento da crise econômica nos anos 1930, não haviam aparentemente soluções a serem oferecidas: “Dado que uma parte considerável da economia capitalista ocidental era já controlada, planificada ou mesmo possuída pelo Estado, a simples exigência de substituir a anarquia da concorrência capitalista pela socialização e pelo planejamento não tinha mais o tom convincente de há quarenta anos. (...) Num certo sentido, isto reforça a atitude geral com que os marxistas consideram o mundo no momento (...): sabem a que são contrários e por que, mas com muito menos clareza sabem o que querem, senão num sentido muito geral” (Hobsbawm, op. cit., pp. 36-38). 54 O esmaecimento de um modelo dominante – somado à fragmentação do movimento comunista internacionalmente, às mudanças no mundo do trabalho e seus impactos na classe e às incertezas sobre as perspectivas políticas – contribuíram para o aumento da quantidade de marxistas heterodoxos e de tendências pluralistas no interior da tradição, alimentadas por um desnorteamento e pela falta de consenso sobre o que constitui uma interpretação marxista “legítima” e o que não é. 144 Com isso, tornou-se mais frequente que os intelectuais marxistas que assimilaram ou se formaram nesse ambiente político e cultural recursassem a um mecanismo de hibridização, ou mesmo simbiose, combinando referências de diferentes sistemas teóricos, como maneira de contornar de maneira produtiva a perda de hegemonia dessa tradição entre as teorias que compõe o quadro teórico do pensamento crítico contemporâneo – o que na visão de muitos críticos resultou justamente num certo “ecletismo”. 145 Assim, o binômio rigidez-flexibilidade característico das próprias críticas marxistas ao capitalismo na passagem do fordismo para as novas configurações mais flexíveis do modo de produção a partir dos anos 1970, também se reproduziram no interior do marxismo, como uma régua de medida e identificação do marxismo “autêntico” em contraposição à suas formas heterodoxas e “vulgarizadas”. Ao mesmo tempo, tais mudanças fizeram com que novas questões passassem a ser engendradas pela interpretação marxista, muitas delas realizadas a partir de uma revisão do “marxismo efetivo” 146, isto é, daquele posto em prática durante o século XX, processo relacionado ao fato de muitos intelectuais marxistas que vivenciaram a radicalização dos anos 1960 no curso de sua experiência acadêmica, posteriormente terem seguido carreira de professores ou de escritores. 147 Tal revisão crítica gerou importantes inovações, como a introdução de novos temas e objetos de análise – tais como os estudos sobre etnias, mídia, ecologia, etc. – e novos debates em torno do sujeito da emancipação e a questão do poder. Além disso, a teoria de Jameson é expressão de um outro processo: a mudança de eixo geográfico na produção de pensamento crítico marxista. Como aponta Perry Anderson, se até meados do século XX, seu centro de gravidade se encontrava, sobretudo, 144 Cf. Ibidem., p. 49. Cf. Keucheyan, op. cit., pp. 72-73. 146 Cf. Strada, V. “Marxismo e pós-marxismo”. Em: Hobsbawm, E. (org.) História do marxismo – Vol. 11: O marxismo hoje (primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, pp. 102-103. 147 Cf. Hobsbawm, op. cit., p. 42. 145 55 na Europa (na parte central e leste durante o marxismo clássico e na parte ocidental com o processo de stalinização), nos anos 1980 houve um novo deslocamento, dessa vez para o mundo anglófono148, sobretudo para as universidades norte-americanas, algo que coincide com a nova hegemonia econômica e militar que os Estados Unidos passam a ter no mundo. Essa migração pode ser vista tanto como um sintoma da globalização e internacionalização do regime de circulação de ideias que cada vez mais extrapola fronteiras nacionais, quanto pelo próprio caráter “aberto” das universidades norteamericanas e seus recursos financeiros e infraestruturas, que atraem cada vez mais pesquisadores de todo o mundo. Como bem nota Fabio Durão, na medida em que tais universidades estão pautadas antes de mais nada pela produtividade e superprodução de textos, “é indiferente ao conteúdo daquilo que se pesquise. É isso que explica a facilidade com a qual tantas teorias ‘radicais’ puderam ser incorporadas ao sistema acadêmico estadunidense, pois revigoram o material de produção intelectual”.149 Por fim, no que tange ao caráter do cenário teórico estadunidense, outro elemento fundamental, determinante para a compreensão da obra de Jameson, não pode ser deixado de lado. Trata-se de um fenômeno particular circunscrito ao contexto da academia norteamericana: o surgimento de um novo campo de estudos que transcende barreiras disciplinares, denominado pelo próprio Jameson e outros críticos de “Teoria”. Ou seja, um tipo de desenvolvimento teórico que não mais se alinha a uma determinada área do conhecimento (crítica literária, sociologia, filosofia, psicanálise, política, história), mas atua justamente pela liberdade de combinação de abordagens e referências, criando um espaço enunciativo fluido em termos de métodos e objetos. 150 Uma expressão desse rearranjo nas configurações teóricas norte-americanas é visível por um exame das modificações do próprio campo da literatura no qual Jameson está inserido: como o autor mostra em O inconsciente político, diferentes vertentes fundamentavam a existência da crítica literária nos anos 1970 como uma área específica de conhecimento (o formalismo russo, o New Criticism, a hermenêutica, o estruturalismo, 148 Segundo Anderson, a revitalização do marxismo em terras de língua inglesa e o crescimento contínuo da cultura marxista nos Estados Unidos se deu a partir de uma “minúscula base inicial”, imersa num ambiente “que dava pouca margem a conversões ou colapsos coletivos do tipo francês ou italiano”, dando origem um tipo de marxismo “capaz de resistir ao isolamento e à adversidade políticos, e de gerar neles e através deles uma obra cada vez mais sólida e madura” (Anderson, op. cit., p. 89). 149 Durão, F. Teoria (literária) americana: uma introdução crítica. São Paulo: Autores Associados, 2011, p. 70. 150 Ibidem, p. 27. 56 a semiótica, a psicanálise, o marxismo, etc.); hoje, esse cenário mudou completamente, com a proliferação dos chamados “estudos” (estudos culturais, estudos pós-coloniais, estudos queer, afro-americanos, latino-americanos, etc.), que não mais objetivam necessariamente o desenvolvimento desta área em específico.151 Como pretende-se trabalhar aqui, Jameson, apesar de notadamente crítico da Teoria, também pode ser visto como um de seus expoentes. Como observa Durão, [..] O profissional que se move dentre deste novo espaço enunciativo deixa de ser o crítico literário para se tornar o teórico. Seu exemplo maior talvez seja Fredric Jameson, que fez seu doutorado sobre Sartre, escreveu extensamente sobre literatura, mas desde os anos 1980 vem inserindo-se em debates sobre cinema, linguística, arquitetura, economia, vídeo, psicanálise, filosofia e, é claro, a própria Teoria. Onde encaixar, por exemplo, seu Pós-modernismo; ou a lógica cultural do capitalismo tardio (1996)? Em que configuração disciplinar tradicional poderia ser inserido? (...) a variedade de campos mobilizados pela teoria americana obriga que surja um espaço que os englobe, e esse espaço é o da própria Teoria.152 O próprio fato de Jameson precisar elencar o marxismo como o “código-mestre” de suas interpretações também é um sintoma disso. Ao mesmo tempo, este é o recurso que ampara o autor para que ele não caia na heterogeneidade absoluta, já que a combinação de diferentes perspectivas e métodos se encontram hierarquizada pela perspectiva marxista, colocando o “momento Marx” de sua teoria num plano diferente, acima, do momento de outras filosofias que compõe em seu pensamento. Nesse sentido, recorrentemente retoma em Sartre algo que uma teoria meramente pluralista oculta: o marxismo como filosofia insuperável, evitando que as outras vertentes que incorpora apareçam como tendências dominantes de pensamento, mas sim, como visões que apresentam aspectos fragmentados da vida social, incompletos sem uma teoria da história que apenas o marxismo oferece. 153 151 Ibidem, p. 14. Ibidem, p. 27. 153 Tal tese da insuperabilidade histórica e teórica do marxismo está presente em Crítica da Razão Dialética. Sartre enuncia o marxismo como “a filosofia de nosso tempo”, que permanece insuperável “pois as circunstâncias que o engendram ainda não foram superadas” (Sartre, J-P. Crítica da Razão Dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 29). 152 57 A seguir, mostraremos como a relação entre marxismo e pós-modernismo operada por Jameson a partir dos anos 1980 é um dos exemplos paradigmáticos destas tendências presentes em sua obra. 58 Capítulo 2 Pós-modernismo e a busca pela totalidade Após seus estudos sobre a tradição dialética, estruturalista e das diferentes correntes interpretativas da crítica literária, a linha fundamental que passou a caracterizar o trabalho teórico de Jameson foi a relação entre marxismo e pós-modernismo. Seu empenho crítico se voltou, portanto, para uma das vertentes filosóficas que marcou a década de 1980, perseguindo agora o imperativo de resolver o problema fundamental de como conceituar a totalidade, de tal forma que seu famoso mote “Sempre historicize” também pode ser reformulado para “Sempre totalize!”.154 Como ressalta Douglas Kellner, longe de ser uma ruptura com os interesses iniciais de sua obra, essa virada para o pós-modernismo foi uma consequência lógica, ou ainda, o ponto auge de seus esforços anteriores de introduzir, defender e desenvolver a teoria marxista e suas categorias na academia norte-americana.155 Ou seja, pode-se dizer que ela complementa o esquema exposto em O inconsciente político de compreender as lógicas culturais específicas de cada modo de produção. Ao mesmo tempo, como nota Perry Anderson, o projeto inicial de Jameson passa por uma mudança significativa em termos de sua abrangência: até 1980, as reflexões de Jameson estavam prioritariamente pautadas por um exercício de crítica literária; com o estudo sobre o pós-modernismo, seu horizonte crítico se expande consideravelmente, dilatando-se, sobretudo, em termos de objeto de estudo, que passa a agregar além da análise de obras eminentemente ocidentais da literatura, objetos contemporâneos da cultura, por meio da qual começa a agregar novas preocupações.156 Essa mudança também está relacionada aos novos fenômenos que passaram a tomar conta da década de 1980. O pano de fundo mais imediato das novas intervenções de Jameson, nesse sentido, é a era Reagan nos Estados Unidos. Em termos culturais, se Cf. Callinicos, A. “Whither Anglo-Saxon Marxism?”. In: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (org.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, pp. 92-93. 155 Cf. Kellner, D. “Introduction: Jameson, Marxism, and Postmodernism”. Em: Kellner, D. (org.). Postmodernism/Jameson/Critique. Washington: Maisonneuve Press, 1989, p. 5. 156 Cf. Anderson, P. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 87-88; Homer, S. Marxism, Hermeneutics, Postmodernism. Cambridge: Polity Press, 1998, p. 99. 154 59 refere à uma explosão de novas práticas artísticas (rock, pop art, televisão, vídeo) e da cultura de massas, que fizeram com que seu interesse se ampliasse das obras literárias modernas para as novas artes, cuja “textualidade” passa a ser predominantemente visual.157 Nesse sentido, apesar de se reconhecer como um homem dos anos 1950 (devido à sua formação intelectual ter acontecido neste período), Jameson, por outro lado, também fez parte da geração de marxistas que se firmou em meio a consolidação da era da televisão e da cultura de massas norte-americana;158 essa posição ambígua – formação moderna na década de 1950 e vivência do despertar da realidade pós-moderna dos anos 1980 – talvez foi, inclusive, o que lhe garantiu a capacidade de olhar com viés crítico a sua própria época, mesclando um olhar aberto aos novos fenômenos culturais e sociais à defesa de reflexões teóricas provenientes de gerações anteriores. Além disso, em 1985, Jameson tornou-se professor na Universidade de Beijing, na China, o que contribuiu qualitativamente para a expansão de seu espectro crítico, abrindo seu olhar para as realidades sociais e culturais fora do centro do capitalismo. O novo período aberto pela década de 1980 colocou, portanto, mais fortemente a pergunta histórica sobre o porquê do surgimento destes novos eventos, e foi nessa tônica que Jameson formulou pela primeira vez, ou de forma mais completa, uma periodização da sociedade contemporânea. Com isso, a produção teórica de Jameson atingiu um novo patamar: a expansão da análise das formas de produção simbólica da vida social presentes na literatura para a compreensão do próprio funcionamento da sociedade, de forma a aliar a crítica cultural ao diagnóstico do presente histórico. 159 O autor, portanto, amplia seu tratamento da crítica dialética para a análise do próprio sistema. Nesse capítulo, será dada atenção principalmente a dois ensaios escritos nessa época que condensam sua proposta de periodização histórica: Periodizando os anos 60 e o livro Pós-modernismo. Com isso, pretende-se abordar como os anos 1980 e sua leitura dos anos 1960 foram essenciais para a consolidação do que estamos chamando aqui de “teoria social de Jameson”. Além disso, pretende-se investigar como estas duas décadas 157 Cf. Jameson, F. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997, p. 19. Como aponta Jameson, o contraditório, entretanto, é que justamente no momento em que “o texto escrito perde seu status privilegiado e exemplar (...) as conceituações disponíveis para analisar a enorme variedade de objetos de estudo que a “realidade” nos apresenta (todos, em toda sua variedade, agora considerados como “textos”) se tornaram quase que exclusivamente linguísticos em sua orientação” (Ibidem, p. 92). 158 Cf. Buhle, Paul. Marxism in the Unites States. London: Verso, 1991, p. 221. 159 Cf. Cevasco, M. E. O sentido da crítica cultural. Revista Cult, ano 14, n. 3, p. 19-22, 2008. 60 marcaram não só o pensamento de Jameson, como a própria compreensão e autoentendimento da sociedade contemporânea em geral. 2.1. Fim da modernidade? O momento primordial da formulação de uma teoria social em Jameson são os anos 1980, década em que houve uma explosão de novos conceitos e abordagens teóricas – geralmente identificadas pelo prefixo “pós” – que de um modo geral definiam a emergência de uma nova ordem social, política e cultural por volta dos anos 1970, tornando-se inevitavelmente tópico de discussão entre os marxistas em geral por se basearem na hipótese de um suposto fim do capitalismo, da sociedade do trabalho industrial, da ideologia, da luta de classes, etc.. Do ponto de vista do presente, pode-se dizer que isso esteve relacionado a uma mutação fundamental na auto-compreensão das sociedades modernas durante a segunda metade do século XX. Sob um olhar panorâmico, podemos citar alguns dos episódios fundamentais que ocorreram no mundo nessa época e que influenciaram a reflexão dos teóricos preocupados em entendê-las: a competição entre os projetos capitalista e socialista na Guerra Fria; a efervescência política e sociocultural dos anos 1960; o êxito das políticas dos Estados de Bem-Estar Social entre 1960-1970 (pleno emprego, benefícios, direitos sociais, gradativa redução da jornada de trabalho), junto a sua posterior crise em 1973; o processo de desindustrialização nos países de capitalismo avançado e o crescimento progressivo do setor de serviços na década de 1980; e a virada neoliberal nos anos 1990 após a derrocada do socialismo real. Foram acontecimentos que produziram desdobramentos sociais e econômicos imediatos, como processos acelerados de urbanização, o revolucionamento no âmbito da tecnologia, informação e comunicação, o surgimento de um novo proletariado informal e precarizado, o fortalecimento do mercado mundial e das empresas multinacionais em escala global, o aumento significativo do peso do capital financeiro na economia, além de grandes fissuras sociais e políticas.160 160 Cf. Anderson. As origens da pós-modernidade, p. 109; Kumar, K. Da sociedade pós-industrial à pósmoderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 91; Therborn, G. Do marxismo ao pós-marxismo? São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 24-30. 61 Assim, como ressalta Krishian Kumar, devido à intensidade das mudanças processadas na vida social das sociedades capitalistas avançadas no pós-guerra, a atmosfera intelectual do Ocidente foi tomada por uma sensação generalizada de mudança de época, baseada numa certa impressão de que o mundo tal como se conhecia até então estava caindo aos pedaços: [...] Ao longo do último quarto de século, temos ouvido persistentes afirmações de que as sociedades do mundo ocidental ingressaram em uma nova era de sua história. Essas ideias sugerem que, conquanto ainda sejam, sem a menor dúvida, sociedades industriais, elas passaram por mudanças de tal alcance que não podem mais ser aceitas pelos velhos nomes nem estudadas no contexto de antigas teorias. Essas sociedades seriam agora, de várias maneiras, “pós-industriais”: “pósfordistas”, “pós-modernas”, e mesmo “pós-históricas”.161 Essa sensação geral de “fim de algo” no mundo ocidental – seja o fim da indústria, do fordismo, da própria História – indicava, cada uma à sua maneira, que algo estava separando decisivamente as sociedades modernas das experiências sociais que caracterizaram o início do século XX. Diversos aspectos pareciam endossar essa impressão: o gradual ofuscamento da oposição entre campo e cidade, os avanços da tecnologia e da ciência, o crescimento do papel da mídia e da propaganda, a ascensão de novos padrões de produção e consumo, o “fim” do movimento operário, o triunfo do capitalismo, etc. De uma maneira ou de outra, esses fenômenos sugeriam que uma realidade social completamente nova estava emergindo, o que para muitos teóricos demandava, por sua vez, a formulação de novos modelos de explicação e conceituação, provocando-se profundas rupturas epistemológicas pautadas sobretudo na reformulação dos parâmetros que até então balizavam a reflexão das sociedades modernas. Com efeito, intelectuais de diferentes linhagens e tradições passaram, grosso modo, por um debate bastante extenso sobre o sentido das noções de modernidade, 161 Kumar, op.cit., p. 9. Anthony Giddens, igualmente, destaca a proliferação de abordagens e perspectivas metodológicas nesse momento do pensamento teórico, baseado num “deslocamento terminológico”: “Ocorreu um certo deslocamento terminológico que simboliza uma mudança de orientações intelectuais. Enquanto, há algumas décadas, a maior parte das discussões se concentrava em noções como a de “sociedade industrial” ou “capitalismo industrial”, hoje, o termo mais comum é “modernidade” (ou “pósmodernidade”)” (Giddens, A. & Turner, J. (org.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed. Unesp, 2000, pp. 910). Entre as tradições filosóficas que teriam assumido certa preponderância, estariam a fenomenologia, a hermenêutica, a teoria crítica, o interacionismo simbólico, o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Cf. Giddens, A. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: Ed. Unesp, 1998, p. 21. 62 capitalismo e industrialismo (tal como teorizado por Marx, Weber e Durkheim), de forma que a teoria social se tornou um campo de investigação e formulação para uma série de novas interpretações, que visavam compreender até que ponto as transformações do período efetivamente indicavam o surgimento de um novo tipo de sociedade, ou, antes, a continuidade, aprofundamento e reestruturação dos principais traços da sociedade moderna.162 Junto ao amplo leque de análises e conceitos que surgiram inicialmente para nomear o processo de mudanças nesse momento – a emergência da sociedade de consumo, da imagem, da tecnologia, da informação, a sociedade pós-industrial, pósmoderna, o capitalismo tardio – novas hipóteses de periodização histórica foram estabelecidas, cada qual atestando a validez ou insuficiência dos conceitos clássicos para caracterizar a nova realidade emergente. No geral, as leituras pautadas na noção de ruptura de época, se propuseram a analisar esse período conturbado de mudanças em termos do encerramento de ciclos (econômicos, políticos e de desenvolvimento teórico), divergindo entre si propriamente na forma como situaram as origens da transição histórica em questão. Descrevem a emergência de uma nova formação social no começo dos anos 1970, algumas delas enfatizando as mudanças culturais, outras focalizando as transformações econômicas, mas todas de certa forma fundamentadas no problema latente de responder o que havia terminado e quando.163 A tese do “fim da modernidade”, por exemplo, surgiu no bojo dessas discussões. Em geral, ela mobiliza a ideia de esgotamento completo do projeto moderno. Como bem sintetiza Rouanet, [...] A modernidade econômica está morta, porque sua base era a industrialização, que hoje foi substituída por uma sociedade 162 Entre a variedade de termos e abordagens que se consolidaram no âmbito da sociologia, pode-se destacar os conceitos de “sociedade pós-industrial” (Alain Tourraine, Daniel Bell), “condição pós-moderna” (JeanFrançois Lyotard), “sociedade de consumo” (Jean Baudrillard), “sociedade em rede” (Manuel Castells), “sociedade reflexiva e do risco” (Ulrich Beck), “capitalismo cognitivo” (André Gorz), “novo capitalismo” (Richard Sennet), entre outras designações. 163 Como aponta Daniel Bensaid, “Alguma coisa foi bem encerrada com o século. Mas o quê? O “curto século” de que falam os historiadores, iniciado na Primeira Guerra Mundial e finalizado com a queda do Muro de Berlim? O período aberto pela Segunda Guerra Mundial, pela bipolaridade da Guerra Fria e pela acumulação fordista nas metrópoles industriais? Ou ainda um grande ciclo da história do capitalismo, inaugurado pela expansão impetuosa da segunda metade do século XIX, pelas conquistas coloniais e pela emergência do imperialismo moderno, pela formação de um movimento operário de massa com a criação da I e da II Internacional?” (Bensaid, D. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 21). 63 informatizada que se funda na hegemonia do setor terciário, o que significa que transitamos para um sistema pós-industrial; a modernidade política está morta, porque se baseava num sistema representativo e no jogo dos partidos, que deixaram de fazer sentido num espaço público dominado pela ação dos movimentos micrológicos, como o feminista e dos homossexuais, e pela ação de um poder que não está mais localizado no Estado, e sim numa rede capilar de disciplinas, que saturam os interstícios mais minúsculos da vida cotidiana; e a modernidade cultural está morta, em todas as duas manifestações – na ciência, na filosofia e na arte. 164 Assim, o diagnóstico de falência das diferentes articulações da época moderna baseou-se na constatação de que os processos históricos que até então caracterizaram o desenvolvimento das sociedades ocidentais – como a industrialização, democratização, urbanização – teriam terminado, ou mesmo se completado. Ou seja, argumentava que o ciclo histórico que havia se iniciado nos países avançados a partir da Revolução Francesa e a Revolução Industrial teria chegado ao fim, e que o tipo de sociedade nascida do processo de modernização característico dessa época – marcado pelo contraste entre o tradicional e o moderno, o pré-capitalista e o capitalista, a sociedade e a comunidade, etc. – teria sido superado. Além disso, a sinalização de tal rompimento histórico com o moderno traduziu-se em grande medida nas noções de “viradas”, apresentadas em termos industriais, culturais, políticos e filosóficos. Os anos 1970 foram, nesse sentido, o principal momento de seu florescimento. Durante essa década, duas referências importantes organizaram os pontos de vista desse debate: as noções de “sociedade pós-industrial” e a noção de “condição pós-moderna”. Daniel Bell foi um dos sociólogos influentes nesse sentido ao deduzir que uma nova fase econômica estava colocando a noção de capitalismo industrial no passado, ou seja, defendendo que não se devia mais conservar os tipos clássicos de análise para pensar a nova ordem social que se inaugurava no mundo ocidental. Em uma de suas principais obras, O advento da sociedade pós-industrial (1973), Bell argumenta por meio de uma série de estatísticas a existência de uma profunda transformação na estrutura social das sociedades avançadas, prevendo sua entrada no momento “pós-industrial”. Isso seria confirmado, segundo o autor, pela substituição da “economia de produção de bens para uma de serviços”; pela transformação na distribuição ocupacional, a partir do declínio do 164 64 Rouanet, S. P. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp. 20-21. trabalhador industrial e da “preeminência de uma classe profissional e técnica”; e, sobretudo, pela centralidade da tecnologia, das universidades e do “conhecimento teórico como fonte de inovação e de formulação política para a sociedade”. 165 Nas palavras de Bell, o “uso do prefixo pós seguido de um hífen é assim um indício desta sensação de existência numa época intersticial”, ou seja, seria o indicativo “de que, em nossa sociedade ocidental, estamos no meio de uma vasta transformação histórica, na qual as antigas relações sociais (...), as estruturas de poder existentes (...), e a cultura burguesa (...) estão rapidamente desgastando”. 166 Ou seja, para Bell, a base da teoria social e da crítica marxista à modernidade capitalista – pautada na análise concreta da sociedade burguesa, isto é, da gênese, consolidação e desenvolvimento da sociedade que nasceu das entranhas da ordem feudal e se estabeleceu na transição do século XVIII ao XIX na Europa Ocidental, bem como as categorias fundamentais que constituem a dinâmica das condições materiais de vida sob o modo de produção capitalista (tais como trabalho, maisvalia, capital, etc.) – não seria mais adequada para se pensar a nova realidade “pósindustrial”. A sociedade capitalista tal como anatomizada por Marx teria chegado ao fim, surgindo uma nova ordem social cuja dinâmica não estava mais baseada na produção industrial e nas classes sociais e seus conflitos, mas em novos princípios, como o da primazia do conhecimento, da ciência e da tecnologia. Lyotard, seguindo a mesma direção de Bell, também enxergou uma modificação do estatuto da ciência, da tecnologia e do conhecimento no cenário de informatização das sociedades desenvolvidas. Para o autor, a condição pós-moderna seria a face cultural do surgimento da sociedade pós-industrial, caracterizando-a como o momento em que o conhecimento passa a ser a principal força de produção na sociedade. Além disso, em oposição a Habermas (autor que resistiu a ideia de pós-modernismo em nome da modernidade como um projeto inacabado), Lyotard designa como um dos principais traços definidores da condição pós-moderna a chamada “crise dos relatos”, isto é, a perda da credibilidade e do poder de legitimação científica dos “mitos” justificadores da modernidade – mais precisamente, a visão iluminista de progresso e a narrativa marxista da emancipação.167 Na visão de Lyotard, estes, como modelos explicativos totalizantes 165 Bell, D. O advento da sociedade pós-industrial. São Paulo: Cultrix, 1977, pp. 27-28. Ibidem, p. 53-4. 167 Lyotard, J-F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990, p. xv-xvi. Cf. Habermas, J. Modernidade versus pós-modernidade. Arte em revista, n. 7, p. 86-91, ago. 1983; Habermas, J. Arquitetura moderna e pós-moderna. Novos Estudos Cebrap, n. 18, p. 115-124, set. 1987; Habermas, J. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 166 65 da realidade, não seriam mais válidos ou legítimos, na medida em que o advento do momento pós-industrial e das tecnologias de informação formaram uma imagem mais complexa e diversificada de sociedade, o que obrigou a revisão dos enfoques universais e homogeneizantes de análise. Assim, o princípio de uma “metalinguagem universal” deveria ser substituído pelo da “pluralidade” (pelo método dos “jogos de linguagem” e das “performances”), defesa que ficou conhecido por sua declaração: “guerra à totalidade; sejamos testemunhas do irrepresentável; ativemos as diferenças e salvemos a honra do nome”.168 Como nos revelam os argumentos destes autores, o surgimento de uma cisão no pensamento moderno sobre a experiência da própria modernidade, portanto, não esteve vinculado somente à sensação vertiginosa de uma mudança de época causada pelas profundas transformações do período pós-guerra, como também ao enunciado de que o marxismo seria um discurso moderno em descrédito, ou seja, que suas capacidades explicativas haviam colapsado, algo que esteve em parte influenciado por julgamentos políticos sobre os rumos que tomaram as experiências socialistas no final do século XX.169 Ou seja, pode-se dizer que diversos autores adeptos das visões de prefixo “pós” elegeram a teoria marxista como interlocutor direto, em parte devido ao próprio posto particular que ela ocupava no universo dos debates que influenciaram a história do século XX, mas principalmente por conta da constatação de que o marxismo passava por um processo de deslegitimação e falência, algo que foi difundido na década de 1980 através das noções de “crise do marxismo” no campo teórico, e “crise do socialismo” no campo político, ambas referentes a uma perda de hegemonia desta tradição como forma de pensamento e prática, tendo em vista a crítica de que os teóricos marxistas não foram capazes de compreender o curso do século XX e explicar os rumos que tomaram as sociedades comunistas. Por esse ângulo, a chamada “crise do comunismo” não foi, portanto, apenas um episódio que abriu uma fratura na história do marxismo no século XX; ela também pode 168 Lyotard, op. cit., p. 79. Isto é, na medida em que a teoria marxista desde seu surgimento esteve diretamente vinculada a um projeto político revolucionário, pode-se dizer que grande parte das negações e objeções feitas ao marxismo nesse momento no fundo se condicionaram não tão somente à validade propriamente dita de suas concepções teóricas, mas às próprias reações a esse projeto – isto é, partiram não só de motivações científicas, como tiveram uma dose de recusa ideológica. 169 66 ser vista como um termômetro dos rearranjos teóricos ocorridos nesse período, relacionada à profunda crise de ideologias que se seguiu. 170 As críticas que começaram a se intensificar ao marxismo a partir do final dos anos 1970, sobretudo em países como a França, causaram não só impacto político nas gerações dessa época, como uma mudança significativa de “disposições nos círculos filosóficos e literários antes associados à esquerda”, ou seja, um rearranjo no horizonte teórico, alimentado pela adesão e desenvolvimento de abordagens alternativas. 171 E os anos 1980 foram, assim, o período que esse balanço se deu de forma mais acalorada, sobretudo após a constatação de que os “anos vermelhos” haviam terminado. 2.2. A hipótese pós-moderna A teoria pós-moderna foi, nesse sentido, uma das tendências que nasceu no bojo das perspectivas “pós-marxistas” da teoria contemporânea. Ela se alimentou da desmoralização e incertezas da esquerda processadas nos anos 1970, tornando-se uma espécie de “avalanche” e “moda intelectual” nos anos 1980. Foi uma das vertentes que melhor condensou, portanto, a ideia de “crise do marxismo” com a de fim do moderno. 172 O termo pós-modernismo foi frequentemente usado nos anos 1980 como um rótulo para nomear uma série de novos discursos e práticas artísticas que surgiam no âmbito da arquitetura, artes visuais, música, teatro. 173 Mas a variedade e amplitude de fenômenos que o conceito abarca revela como, na verdade, não há apenas uma via de abordagem ou mesmo somente um eixo central de questões numa definição sobre o pós- 170 Como aponta Michael Burawoy, o marxismo foi um “espectro que assombrou o século XX”, inspirando algumas das maiores e mais criativas formas de pensamento – em prol e contra o marxismo – no âmbito da filosofia, história, economia, sociologia, política, etc. (Burawoy, M. Marxism after communism. Theory and Society, n. 29, 2000, p. 151). Ou, como também aponta Alain Badiou, o comunismo “foi durante cerca de dois séculos (desde a “comunidade dos iguais” de Babeuf até os anos 1980) o nome mais importante de uma Ideia situada no campo das políticas de emancipação ou políticas revolucionárias”, alavancando e servindo de fonte para grandes processos que formaram a história recente (Badiou, A. A Hipótese Comunista. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 134). 171 Anderson, P. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 34. 172 Como sintetiza Bensaid, “De maneira geral, o termo pós-modernidade representa simplesmente a condição humana após a perda de confiança nas grandes promessas do futuro” (Bensaid, D. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 84-5). 173 Perry Anderson faz, em As origens da pós-modernidade, uma genealogia do termo; aqui iremos tomar a acepção comumente empregada a partir dos anos 1970 e 1980, quando seu uso passou a ser generalizado. 67 moderno.174 Como ressalta Perry Anderson, o conceito de pós-modernismo é extremamente polimórfico, pois o próprio “universo pós-moderno não é de delimitação, mas de mistura, de celebração do cruzamento, do híbrido, do pot-pourri”.175 Essa falta de delimitação tornou por muito tempo difícil uma conceituação clara do termo: “Se o pósmodernismo cobre tudo desde o punk à morte da metanarrativa, dos fanzines a Foucault como conceber que um único esquema explanatório possa fazer justiça a uma entidade de uma heterogeneidade tão fantástica assim?”. 176 Entretanto, em linha gerais, pode-se dizer que o argumento a favor de sua existência está baseado fundamentalmente num rompimento com a tradição moderna em termos estéticos, históricos e epistemológicos, traduzido na defesa do surgimento de um novo estilo no campo artístico (o pós-modernismo), assim como na hipótese filosófica de chegada de um novo momento histórico (o da pós-modernidade), ambas baseadas na ideia de atenuação das categorias modernas de explicação e num conjunto de prognósticos e retóricas negativas, como o fim da arte, das ideologias, da histórica, do sujeito, da luta de classes, etc..177 Na definição do crítico literário marxista Terry Eagleton, [...] A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico. Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da 174 Como ressalta Perry Anderson, o conceito de pós-modernismo é extremamente polimórfico, pois o próprio “universo pós-moderno não é de delimitação, mas de mistura, de celebração do cruzamento, do híbrido, do pot-pourr” (Anderson, As origens da pós-modernidade, p.110). Essa falta de delimitação tornou por muito tempo difícil uma conceituação clara do termo: “Se o pós-modernismo cobre tudo desde o punk à morte da metanarrativa, dos fanzines a Foucault como conceber que um único esquema explanatório possa fazer justiça a uma entidade de uma heterogeneidade tão fantástica assim?” (Eagleton, T. As ilusões do pósmodernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.30). 175 Anderson, As origens da pós-modernidade, p.110. 176 Eagleton, As ilusões do pós-modernismo, p. 30. 177 Segundo Perry Anderson, há pelo menos dois momentos principais para compreensão da noção de pósmodernismo tal como empregada nos anos 1980: o primeiro, estético, datado no final de 1960 e início de 1970, com o surgimento de novas experiências artísticas na arquitetura, artes visuais, literatura, música, etc., como reação ao modernismo (considerado institucionalizado e, assim, sem o poder subversivo que lhe era antes característico); o segundo, emergente na filosofia social no final da década de 1970, no qual o debate sobre a “nova arte” e cultura processada no campo estético (“pós-modernismo”) se estende para a compreensão de uma “nova época” (a “pós-modernidade”) nas ciências humanas, tendo a obra do francês Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, como uma das peças-chave centrais. 68 história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades. Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, na qual a indústria de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política de classes cede terreno a uma série difusa de “políticas de identidade”. 178 Tal definição explicita como o fio condutor dessa nova abordagem interpretativa é uma crítica à modernidade. Em termos filosóficos, a teoria pós-moderna está geralmente associada a uma desconstrução sistemática das noções que formam o projeto de modernidade, como os ideais herdados do Iluminismo (racionalismo, crença em leis universais e verdades absolutas, etc.). 179 O sentido que perpassa os princípios pósmodernos é a ênfase na natureza essencialmente fragmentada e indeterminada do mundo e do conhecimento humano e a impossibilidade de qualquer visão totalizante ou qualquer teoria abrangente e universalista da história (tal como exprime Lyotard em sua noção de crise das metanarrativas). Assim, para os pós-modernos, a perspectiva da “história universal” e a visão modernizante do “progresso linear” não seria um tipo de explicação adequado para pensar a realidade social aberta pelo momento histórico da pósmodernidade180; alegam que a “fixidez” dos conceitos modernos reduz a variedade complexa de experiências humanas, ou seja, promove um “discurso” monolítico e ultrapassado que não é capaz de entender a gama heterogênea de estilos de vida, cultura, linguagens, personalidades que se desenvolvem nas sociedades pós-modernas. Em contraste, prometem, então, um discurso mais libertador, abundante em multiplicidade e pluralidade, como mostram os conceitos e retóricas da “performance”, “jogo”, “desconstrução”, “desejo”, “esquizofrenia”, “diferença”, “indeterminação”, etc.. Um dos exemplos que ilustram esse debate é noção de sujeito. Em contraposição a ideia de “homem universal”, definida pelos valores antropocêntricos da racionalidade 178 Eagleton, op. cit., p. 7. Segundo Jameson, a filosofia pós-moderna está associada a dois princípios fundamentais: antifundacionsimo e anti-essencialismo, que podem ser caracterizados, respectivamente, como um repúdio a metafísica e a qualquer ideia normativa sobre a natureza humana. Cf. Jameson, F. The aesthetics of singularity. New Left Review, 92, March-April 2015, p. 125. 180 Tais valores são vistos como a raiz dos desastres da humanidade no século XX, das guerras mundiais imperialistas à destruição ambiental. Nesse sentido, os principais objetivos do Iluminismo (a racionalização, o progresso científico e tecnológico, a educação universal nas sociedades avançadas, etc.) não apenas se concretizaram, como não fizeram nada para a liberdade humana, ao contrário, foram fonte para uma série de males “inesperados”. Cf. Wood, E. M. Modernity, postmodernity, or capitalism? Review of International Political Economy, v. 4, n. 3, 1997a, p. 544. 179 69 clássica, os pós-modernos propõem uma nova linguagem da subjetividade. Partindo da crítica à universalidade da definição moderna, substituem-na pela representação de identidades variáveis e inacabadas, que abarcariam a natureza fluida, plural e frágil dos sujeitos pós-modernos.181 Assim, na cultura pós-moderna, o sujeito contemporâneo não é mais visto como um agente monádico, mas como uma “dispersa e descentrada rede de conexões libidinais”; o “sujeito unificado” seria um “remanescente de uma antiga época liberal do capitalismo, antes de a tecnologia espalhar nossos corpos aos quatro ventos, em tantas bugigangas reificadas de técnica e apetite, operação mecânica ou reflexo de desejo”.182 Além disso, o questionamento ao moderno também se traduz na resistência ideológica ao conceito de totalidade, expresso de forma mais emblemática no slogan “guerra à totalidade”. 183 Na verdade, ela desafia a própria possibilidade de um ponto de vista totalizante: uma crítica ao capitalismo (enquanto uma totalidade) não seria executável, assim como a aplicação de noções gerais de igualdade (seja liberal ou socialista) e projetos políticos universais, entre eles, a narrativa marxista de emancipação da humanidade pelo proletariado, entendido como um dos discursos totalizantes que reduz a diferença e o particular à identidade e à homogeneidade. Ao invés disso, passa-se a privilegiar, a alteridade, a heterogeneidade, a contingência e a diferença como espécies de “forças libertadoras” de todos os discursos modernos, o que promoveu, por sua vez, 181 Isso é visível, por exemplo, nos esforços de teorização dos novos atores sociais, como os que surge à tona no movimento feminista, a partir da crítica à marginalização da mulher presente na ideia de Homem universal. Além de promover a desconstrução dessa concepção, o feminismo também estende a crítica à própria ideia de “mulher universal”, tendo em vista que as mulheres também não são idênticas umas às outras, tendo diferenças entre si de classe, etnia e sexualidade. Outro exemplo, pela vertente pósestruturalista, encontra-se na difusão de descrições que visam a desconstrução do “sujeito unificado” do humanismo, valorizando o caráter fragmentado da subjetividade. São termos que vão da “esquizofrenia” (Derrida) à “morte do sujeito” (Foucault), que identificam na ideia de sujeito autônomo uma construção ideológica burguesa. 182 Eagleton, T. Capitalismo, modernismo e pós-modernismo. Crítica marxista, v. 1, São Paulo, 1995, p. 66. 183 Segundo Jameson, a crítica pós-moderna ao conceito de totalidade geralmente confunde a aspiração marxista pela totalidade com totalitarismo. Por isso, os intelectuais comprometidos com essa visão tomam o sentido da noção de totalidade com o de autoridade intelectual (“o sujeito que conhece a totalidade”); com uma “imagem totalizadora da sociedade que reprime a diferença ou a diferenciação”; com uma “política de partido único, em oposição ao pluralismo dos chamados novos movimentos sociais”; com uma filosofia de base hegeliana que “reprime a matéria, o Outro ou a Natureza”; com uma a estética que se referencia na “antiga obra de arte orgânica ou universal, em oposição ao fragmento contemporâneo ou "obra" aleatória; e com uma ética e psicanálise pautada no “antigo "sujeito centrado", o ideal de uma personalidade ou ego unificado e um projeto de vida unificado” (Jameson, F. “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project. Em: Jameson, F. Valences of the Dialectic. London: Verso, 2009, p. 210). Ou seja, formam uma caricatura da totalidade, vinculada a própria conjuntura histórica de rejeição às formas políticas totalitárias, que acabam então fomentando uma compreensão distópica do conceito, como se ele representasse o pesadelo da repressão da Diferença (Ibidem, p. 213). 70 um profundo deslocamento de interesses, dos temas universais (como a análise na perspectiva do modo de produção e da revolução social) para os particulares. Nesse sentido, toda forma de universalismo passa a carregar a carga negativa de uma manifestação ideológica do europeu, branco, masculino, heterossexual. A ideia de proletariado seria justamente uma dessas manifestações, na medida em que tende a excluir outros grupos sociais, com as mulheres, negros, LGBTs, etc.; a partir dessa visão, o discurso pós-moderno passa, então, a valorizar aqueles sujeitos que estão excluídos de tal representação, de forma que não há mais o sujeito, mas múltiplas posições subjetivas. Com isso, o projeto pós-moderno se estabelece como uma perspectiva essencialmente anti-histórica. A rejeição às grandes narrativas e conceitos universais levam à negação da própria ideia de processo histórico e mesmo do fazer histórico, o que acaba sendo uma contradição em termos – uma teoria de mudança de época baseada na negação da história. 184 Além disso, se associa a um tipo de pessimismo político, o que mostra que um dos elementos importantes que está por trás da concepção de pósmodernismo é, também, a possibilidade da relação dialética entre teoria e prática. Uma vez que o diagnóstico pós-moderno parte da ideia de que não é possível a realização de uma análise sistêmica da realidade, nem aspirar a uma emancipação geral da humanidade como forma de contestação a esse sistema, a única coisa que se pode esperar são várias análises particulares e formas de resistência dispersas. Desse modo, da forma como se apresentam, muitas das manifestações filosóficas e políticas do pós-modernismo, apesar de levantar temas relevantes – como o das diferenças, da fragmentação do mundo contemporâneo, da tecnologia e do conhecimento, etc. –, acabam se tornando uma versão das teses conservadoras sobre o “fim das ideologias”.185 Ao anunciar o fim das grandes narrativas e a perda de legitimidade dos conceitos que até então balizavam a compreensão da sociedade moderna, fomentaram Cf. Wood, E. M. What is the “postmodern” agenda? An introduction. Monthly Review, vol. 47, n. 3, julago, 1995b, p. 5. 185 Como veremos adiante, este é um dos principais argumentos de Jameson sobre o pós-modernismo. Assim como o pensamento crítico francês dos anos 1970 foi identificado como uma espécie de antessala da racionalidade neoliberal em O novo espírito do capitalismo, o pós-modernismo é outro exemplo curioso de como concepções críticas podem se deslocar para seu campo ideológico oposto. A obra de Lyotard é um dos exemplos dessa guinada. Após sua ruptura com o marxismo (que data da sua saída do grupo Socialisme ou barbarie nos anos 1960), Lyotard acabou se convertendo num “apologista do próprio sistema”, na medida em que substituiu sua postura radical por um entusiasmo e elogio à inovação, à mudança, ao “desconhecido” e à heterogeneidade (Jameson, F. “Foreword”. In: Lyotard, J-F. The postmodern condition: a report on knowledge. Oxford: Manchester University Press, 1984a, p. x). Para Jameson, essa trajetória de Lyotard estaria presente como “inconsciente político” em sua obra. 184 71 uma “crise de veracidade” sem solução.186 Na avaliação de Ellen Wood, isso revela a forma como o pós-modernismo pode ser visto como uma “condição psicológica” correspondente a um período na biografia da intelligentsia da esquerda ocidental, especialmente nos Estados Unidos. A ideia de condição pós-moderna seria a [...] autoconsciência teórica de uma geração de intelectuais que chegaram à maturidade no momento atípico do longo boom do pósguerra. Para alguns dessa geração, o fim do boom parecia o fim da normalidade, e assim o declínio cíclico desde a década de 1970 teve um significado especial, cataclísmico, para eles. 187 Nesse sentido, ambos os lados da história ambígua do século XX – tanto seus “horrores” (como as guerras, que colocaram em xeque a noção de “progresso” moderno), como suas “maravilhas” (como a tecnologia, a possibilidade do consumo capitalista) – desempenharam um papel na formação de um tipo de consciência pós-moderna, que se revela como as próprias ambiguidades do capitalismo vistas a partir da perspectiva daqueles que “desfrutam de seus benefícios mais do que sofrem com seus custos”. 188 Desse modo, para Wood, se realmente existiu uma “virada histórica” no século XX ela teria acontecido entre as gerações que cresceram nesse contexto e as gerações anteriores, que se formaram intelectualmente num contexto completamente diferente de guerra e crise econômica. 189 2.3. O pós-modernismo de Jameson: um novo estágio do capitalismo, uma nova forma de marxismo Como aponta Eagleton (op.cit., p. 65), a perspectiva pós-moderna “comete o erro apocalíptico de acreditar que o descrédito dessa epistemologia representacional específica seja a morte da própria verdade, assim como às vezes toma a desintegração de certas ideologias tradicionais do sujeito pelo desaparecimento definitivo do sujeito. Em ambos os casos, os obituários são muito exagerados. O pós-modernismo persuadenos a renunciar a nossa paranoia epistemológica para abraçar a rude objetividade da subjetividade aleatória”. 187 Wood, E. M. Modernity, postmodernity, or capitalism? Review of International Political Economy, v. 4, n. 3, 1997a, p. 551. 188 Wood, E. M. What is the “postmodern” agenda? An introduction. Monthly Review, vol. 47, n. 3, jul-ago 1995b, p. 7. 189 Wood, E. M. Capitalist change and generational shifts. Monthly Review, v. 50, issue 5, 1998 p. 3. 186 72 Jameson publicou extensamente sobre o fenômeno do pós-moderno durante os anos 1980. Seu primeiro escrito sobre o assunto data de 1982, o ensaio Pós-modernismo e sociedade de consumo, e sua posição adquiriu ressonância com a publicação, na revista New Left Review, do artigo A lógica cultural do capitalismo tardio (1984), embrião do seu livro Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio (1991).190 Pode-se dizer que alguns passos principais foram tomados por Jameson até a consolidação de sua formulação original sobre o tema: 1) o diálogo crítico com o conceito vigente de pós-modernismo; 2) sua hipótese de compreensão deste como um conceito de periodização histórica; 3) sua identificação dos principais sintomas e traços constitutivos da vida social pós-moderna; e 4) a constante defesa da perspectiva da dialética e da totalidade. A primeira investida de Jameson ocorreu na ocasião em que entrou em contato com os debates processados no âmbito da arquitetura, no qual teria acontecido, segundo ele, as discussões inaugurais sobre o “fim do modernismo” e o surgimento do pósmodernismo como um novo estilo cultural. Nas palavras do autor, [...] é no âmbito da arquitetura que as modificações da produção estética são mais dramaticamente evidentes e seus problemas teóricos têm sido mais consistentemente abordados e articulados; de fato, foi dos debates sobre arquitetura que minha concepção do pós-modernismo (...) começou a emergir. De modo mais decisivo do que nas outras artes ou na mídia, na arquitetura as posições pós-modernistas são inseparáveis de uma crítica implacável ao alto modernismo arquitetônico, a Frank Lloyd Wright e ao assim chamado estilo internacional (Le Corbusier, Mies etc.).191 190 Na verdade, como ressaltam Homer e Bertens, Pós-modernismo e sociedade de consumo (1982) não foi, estritamente falando, o primeiro engajamento de Jameson no pós-modernismo, uma vez que o tema já estaria contido em gérmen em suas obras anteriores. Pode ser considerado, entretanto, o primeiro esforço concentrado de teorização do pós-moderno, que iria tornar-se seminal com a versão expandida publicada na New Left Review. Cf. Homer (op. cit., pp. 98-9), Bertens, H. The idea of the postmodern: a history. London and New York: Routledge, 1995, p. 160. Além disso, nota-se que os primeiros esforços de Jameson carregam uma confusão entre os termos pós-modernismo e pós-modernidade, que serão percebidos e revisados pelo próprio autor na década de 1990. 191 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 28. Um dos marcos importantes para o surgimento do pós-modernismo na arquitetura nesse sentido foi o documento Learning from Las Vegas, cuja retórica atribuía à concepção utópica da arquitetura moderna as características de elitista e autoritária, celebrando, em contraposição, as novas formas arquitetônicas “populares” dos painéis luminosos e da cultura dos cassinos. 73 A partir da arquitetura, começou a perceber as demais rupturas com o modernismo que aconteciam em todas as artes – na literatura, com a quebra das noções tradicionais de enredo, tempo narrativo e personagem; na música, com a construção de novas experiências de temporalidade; nas artes visuais, com o surgimento de novas formas, como a do vídeo, etc. – e que estas mudanças nos diversos ramos da produção cultural se referiam não apenas ao âmbito da arte, mas também à outros níveis da vida social. 192 Além disso, nessa época, Jameson escreveu a introdução à tradução em língua inglesa do livro Condição Pós-moderna, de Lyotard, tarefa que o colocou diante de uma das principais fontes da concepção filosófica sobre o pós-moderno em voga na época. Desse modo, pode-se dizer que, inicialmente, Jameson partiu de três sentidos gerais do termo pós-modernismo que circulavam no período: a acepção dos críticos literários norteamericanos nos anos 1960, usada para designar o processo de institucionalização do modernismo e o surgimento de uma nova vanguarda artística; a definição dos teóricos franceses nos anos 1970 e 1980, que utilizaram o termo para nomear a cultura contemporânea e a nova economia pós-industrial; além do sentido empregado nos debates em arquitetura, com os manifestos de repúdio ao modernismo e defesa de um novo estilo artístico menos “elitista” e mais “popular”. Como descreve no ensaio Teorias do pós-moderno (1984), existiam, mais especificamente, quatro diferentes posições disponíveis, cada uma carregando um julgamento ideológico, estético e político sobre o termo pós-modernismo, bem como uma “visão de história” (isto é, um posicionamento sobre o momento social), baseados ora numa postura de repúdio, ora de celebração sobre estarmos vivendo em uma sociedade totalmente nova, além de expressarem avaliações sobre a existência ou não de uma ruptura com o alto modernismo. No quadro fornecido por Jameson das diferentes possibilidades lógicas de avaliação, feito a partir “da variedade de pronunciamentos recentes sobre o assunto”, os seguintes pólos avaliativos organizavam o debate sobre o pós-moderno: as posições 1) anti-moderna e pró-pós-moderna (tal como em Charles Jencks, Tom Wolfe); 2) pró-moderna e anti-pós-moderna (Hilton Kramer; Jurgen Habermas); 3) pró-moderna e pró-pós-moderna (Lyotard); 4) anti-moderna e anti-pósmoderna (Manfredo Tafuri). 193 192 Cf. Anderson, op. cit., p. 58. Cf. Jameson, F. “Teorias do pós-moderno”. Em: A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 47-48. 193 74 A postura inicial de Jameson foi, então, a de mediar tais posições, propondo um modelo alternativo de compreensão. Ao invés de simplesmente rejeitar ou aderir uma ou outra versão, o autor optou por uma certa combinação crítica de perspectivas, procedimento que reforçou o tipo de marxismo “heterodoxo” que empenha. Assim, Jameson tornou-se especialmente conhecido por apresentar em seus ensaios um contraponto às tendências dominantes nas discussões sobre o pós-modernismo, que, para ele, haviam se desdobrado ao longo dos anos 1980 num conjunto de “prognósticos, catastróficos ou redencionistas, a respeito do futuro foram substituídos por decretos sobre o fim disto ou daquilo (o fim da ideologia, da arte, ou das classes sociais; a “crise” do leninismo, da socialdemocracia, ou do Estado do bem-estar, etc.)”.194 Além disso, sua teoria ajudou a esmiuçar o caráter especificamente norte-americano do pós-modernismo, sobretudo num momento de confusão sobre seu significado, devido aos entrecruzamentos internacionais de diferentes definições que encontravam-se em desenvolvimento nos Estados Unidos, França e Alemanha naquele momento. 195 Vista desse ângulo, a teoria de Jameson representou, então, uma tentativa norte-americana de superar dialeticamente duas visões fundamentalmente diferentes de modernidade que as teorias alemã e francesa apresentavam na época. Jameson se localiza tanto em oposição à crítica moralizante de Habermas – avaliando que o pós-modernismo é o momento em que o projeto de modernidade se completou definitivamente –, quanto em contraposição a Lyotard, ao identificar que o surgimento do pós-moderno não significou a morte da “metanarrativa 194 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 27. Como ressalta Andreas Huyssen, pode-se dizer que o termo pós-modernismo acumulou suas conotações mais enfáticas nos Estados Unidos, e não na Europa. Cf. Huyssen, A. “Mapeando o pós-moderno”. Em: Hollanda, H. B. (org.). Pós-modernismo e política, p. 34. No momento em que os norte-americanos começaram a discutir o termo como referência a um novo aparato cultural e veículo de novas formas de hegemonia cultural e política nos anos 1960, a Alemanha Ocidental, por exemplo, “tentava reivindicar uma modernidade civilizada e encontrar uma identidade cultural sintonizada com o modernismo internacional que levasse os demais a esquecer o passado da Alemanha como predadora e pária do mundo moderno” (Ibidem, p. 35). No contexto da vida intelectual francesa, igualmente, o termo pós-modernismo não estava em voga, mas sim, o momento do estruturalismo e do pensamento de 1968. Entretanto, no fim da década de 1970, “a expressão pós-modernismo, não sem o encorajamento norte-americano, migrou para a Europa via Paris e Frankfurt. Kristeva e Lyotard a adotaram na França; Habermas, na Alemanha. Nesse ínterim, já os críticos norte-americanos haviam começado a discutir o terreno comum ao pós-modernismo e ao pósestruturalismo francês em sua peculiar adaptação norte-americana, frequentemente pressupondo que a vanguarda na teoria deve, de alguma maneira, ser homóloga à vanguarda na literatura e nas artes” (Ibidem, p. 25). Junto à concepção norte-americana, agregou-se, então, o debate polarizado das correntes alemã e francesa, que tiveram como principais representantes Habermas e Lyotard, respectivamente. Enquanto o primeiro defendia o poder emancipatório da razão iluminista, identificando os pressupostos pós-modernos com “neoconservadores”, o segundo avaliava com otimismo a emergência da “condição pós-moderna”, diagnosticando o declínio das narrativas mestras e dos traços iluministas do projeto moderno. (Cf. Hollanda, H. B. “Políticas da teoria”. Em: Hollanda, H. B. (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 7). 195 75 marxista”, mas antes, um momento em que ela não só se mantem válida e fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea, como atinge um patamar crítico superior. Ao mesmo tempo, Jameson de certa forma se apropria criticamente da avaliação política de Habermas aos traços neoconservadores do pós-modernismo e o abandono dos teóricos franceses de uma perspectiva emancipatória, e da ideia de Lyotard do pósmoderno como a face cultural, não de uma sociedade pós-industrial, mas de uma nova fase do próprio capitalismo. Além disso, a teoria de Jameson também se posiciona em relação a outros tipos de modelos e diagnóstico de época, especialmente aqueles que anunciavam o colapso das capacidades explicativas do marxismo. Entre eles, estão o que o autor chama de “generalizações sociológicas” sobre o fim dos “tempos modernos”, que, como vimos antes, fornecem diferentes versões sobre a inauguração de uma nova sociedade – a emergência do pós-industrialismo, da sociedade de consumo, da tecnologia, da informação, etc.. Jameson se mantém cético em relação a estas formulações, entendendoas como visões históricas incompletas, na medida em que cada uma delas corresponde a um ou outro aspecto localizado da realidade, seja no âmbito da estrutura ou da superestrutura.196 Além, disso, de acordo com o autor, nenhuma delas realmente vê a mudança histórica em processo como objeto de uma anatomia sistêmica; apesar de terem surgido inicialmente como percepções da história, se tornaram slogans ideologizantes (“fim da ideologia”, “fim da história”, etc.) com a missão de argumentar que “a nova formação social em questão não mais obedece às leis do capitalismo clássico, a saber, o primado da produção industrial e a onipresença da luta de classes”.197 Tendo isso em vista, Jameson, então, propõe justamente a necessidade de se retomar uma visão sistêmica sobre a sociedade contemporânea a partir do arsenal teórico do marxismo – cuja perspectiva totalizante seria a única capaz de superar todos os tipos de abordagens parciais anteriores e fornecer uma explicação histórica e econômica coerente e satisfatória do presente.198 Assim, apesar de não concordar com os diagnósticos propostos por tais abordagens “pós-marxistas” da teoria contemporânea, Jameson avalia que elas não podem ser simplesmente descartadas ou ignoradas, pois não se tratam de um mero “epifenômeno”, mas antes uma “realidade cultural e ideológica que requer uma Cf. Jameson, F. “The Ideology of the Text”. Em: Jameson, F. The Ideologies of Theory. London: Verso, 2008, pp. 20-21. 197 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 29. 198 Cf. Jameson, F. “Criticism in History”. Em: The Ideologies of Theory, p. 139-140. 196 76 explicação histórica”. 199 O autor, então, reconhece que tais concepções estabelecem novas tarefas intelectuais e políticas, retomando a noção de que a emergência desse tipo de formulação, bem como as objeções que elas levantam em relação a tradição marxista, são na verdade um sintoma distorcido de transmutações sistêmicas reais e importantes de serem analisadas: [...] As crises do paradigma marxista (...) sempre ocorrem exatamente nos momentos em que seu objeto fundamental – o capitalismo como sistema – parecia estar mudando de aparência, ou passando por mutações imprevistas e imprevisíveis. Uma vez que a antiga articulação da problemática já não corresponde a essa nova configuração de realidades, há uma grande tentação de se concluir que o próprio paradigma – seguindo a moda kuhniana nas ciências – foi derrubado. A implicação disso é que se torna necessário formular um novo paradigma, se ele não estiver já se delineando. 200 Ou seja, cada mutação sistêmica do capitalismo sempre é acompanhada tanto pelo surgimento de concepções pós-marxistas, quanto pela necessidade de atualização do próprio marxismo. Para Jameson, a diferença fundamental entre o pós-marxistas e os marxistas seria, portanto, que os primeiros “se aferram a essas transformações como sendo uma nova realidade fundamental que eles devem teorizar”, enquanto os segundos reafirmam a “continuidade dialética do capitalismo e as identidades estruturais mais profundas entre a atualidade de nosso próprio presente e as experiências anteriores desse sistema social singular”. 201 A primeira vez que a tradição marxista teve que lidar com isso, segundo Jameson, se deu em torno da proposta de revisionismo apresentada por Bernstein, correspondente ao momento do imperialismo e ao surgimento de inovações tecnológicas, científicas e culturais a partir do final do século XIX – como a eletricidade, o motor a combustão, novos modos de organização (como os trustes e carteis), o modernismo, a psicanálise, etc. – que pareciam “propor e demandar modificações em um marxismo essencialmente oitocentista”.202 Desde então, diferentes pós-marxismos teriam surgido, na tentativa de Jameson, F. “O marxismo realmente existente”. Em: Jameson, F. Espaço e imagem: teorias do pósmoderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004, p. 79. 200 Ibidem, p. 76. 201 Ibidem, p. 81. 202 Ibidem, p. 80. 199 77 revisar a teoria marxista clássica, no sentido ou de superá-la ou de repudiá-la completamente, cada uma delas oferecendo agora “versões mais sofisticadas tanto do diagnóstico quanto da receita” de Bernstein. 203 Um desses momentos foi justamente os anos 1970, com a ideia de “fim do moderno”, que, de forma análoga ao período imperialista, aconteceu após o estabelecimento de transformações profundas, como a criação de uma rede informacional global, a emergência das corporações transnacionais, etc..204 Assim, da mesma maneira que a tentativa de Bernstein de “rever” o marxismo se deu em meio às mudanças na transição entre o primeiro e o segundo estágio do capitalismo, os novos “pós-marxismos” teriam encontrado “sua justificação nas dramáticas mudanças associadas ao advento de seu terceiro estágio, ou do que chamamos pós-modernidade”.205 Ou seja, ambos teriam sido sintomas de mudanças socioeconômicas mais profundas. A exemplo desses momentos de mutação, Jameson, portanto, identifica que o debate sobre o pós-moderno nos anos 1980 corresponderia a um novo momento do capitalismo que deveria inaugurar mais um processo de atualização da tradição marxista. Em suas palavras, tendo em vista que cada estágio do capitalismo está vinculado a uma nova forma de marxismo, “um capitalismo pós-moderno sempre chamará a existir, contra si mesmo, um marxismo pós-moderno”.206 O maior desafio colocado, nesse sentido, seria o de fornecer uma interpretação propriamente materialista dos novos fenômenos aos quais ele corresponde. Esse posicionamento de Jameson a princípio não foi visto com bons olhos por alguns marxistas. Ao aderir ao debate sobre o pós-moderno no começo dos anos 1980, Jameson recebeu ampla crítica daqueles que consideravam a conjugação entre marxismo e pós-modernismo inapropriada. Como relata no ensaio Marxismo e Pós-modernismo (1989), o autor foi corriqueiramente taxado de “pós-modernista”, “pós-marxista” e “vira203 Ibidem, p. 76. Cf. Ibidem, pp. 80-81. Os pós-marxismo que surgiram nos anos 1970 variam de acordo com a forma que avaliam objeto de análise marxista, o capitalismo. Nesse sentido, Jameson elenca três formas principais de pós-marxismo: 1) aquele que argumenta que o capitalismo clássico não existe mais, dando lugar para um “pós-capitalismo”, “no qual os aspectos enumerados por Marx – mais particularmente a dinâmica das classes sociais antagônicas e a primazia do econômico (ou da “base” e “infra-estrutura”) – já não existem” (Daniel Bell); 2) aquele que defende a ideia de que o capitalismo ainda existe, mas se tornou mais benigno, a exemplo na massificação do consumo, da alfabetização, etc. (posição dos movimentos socialdemocratas remanescentes nos anos 1990); 3) o capitalismo não só ainda existe realmente como é o único caminho viável para a modernização, para gerar riquezas e melhorar a condição de vida da população (retórica do mercado). Cf. Ibidem, pp. 76-77. 205 Ibidem, p. 81. 206 Ibidem, p. 105. 204 78 casaca”, na medida em que a combinação dessas duas dimensões era vista como no mínimo paradoxal.207 Para Jameson, isso estaria relacionado tanto ao fato dos dois termos inevitavelmente carregarem “uma carga de imagens popularmente nostálgicas” inconjugáveis (seria como misturar as “fotografias amareladas de época de Lenin e da revolução soviética” com “um panorama de novos hotéis kitsch”), mas também devido à própria postura dogmática de muitos marxistas. 208 Jameson rebateu tais acusações com uma provocação: defende que o termo poderia ser usado para resolver o fato dos marxistas terem demorado a se apropriar da tarefa de descrição dos novos acontecimentos – algo que deveria ser feito urgentemente já que, por conta dessa ausência, eles estavam sendo colonizados justamente “pela direita, em uma série de estudos influentes, nos quais a primeira tentativa, durante a Guerra Fria, de uma noção de “fim da ideologia” por fim deu à luz todo um conceito de “sociedade pós-industrial””.209 Além disso, na ótica de Jameson, o debate sobre o pós-modernismo teria aberto [...] a oportunidade de solucionar um duradouro mal-estar diante dos esquemas tradicionalmente econômicos da tradição marxista, um incômodo sentido por alguns de nós, não na área das classes sociais – cujo “desaparecimento” apenas “intelectuais à deriva” seriam capazes de manter –, mas na área da mídia, cujo tremendo impacto na Europa Ocidental permitiu ao observador tomar uma certa distância crítica e perceptiva da midiatização gradual e aparentemente natural da sociedade norte-americana na década de 1960. 210 Assim, Jameson teve uma postura distinta de outros teóricos marxistas que preferiram repudiar por completo ou insistir na irrelevância da ideia de pós-modernismo, já que tal perspectiva se baseava justamente na desconstrução de muitas das temáticas do marxismo. Para ele, apesar de todas as contradições que carregava, o termo teria o mérito de ser o mais abrangente entre todos os outros termos disponíveis, ao abarcar uma variada gama de eventos da vida social (em termos culturais, sociais, econômicos, etc.). Ou melhor, o conceito de pós-modernismo dava a possibilidade de “dar nome” a uma mudança e a série de fenômenos a ela relacionados, até então desconectados e sem 207 Ibidem, p. 66. Ibidem, p. 65. 209 Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 67-68. 210 Ibidem, p. 66-67. 208 79 definição, sendo, portanto, inevitável reconhecer o “papel que ele repentinamente passou a representar hoje em nossas resoluções imaginárias sobre as nossas reais contradições”.211 Dessa forma, na carência de outro termo que pudesse designar tais transformações, Jameson optou pelo uso do termo, algo que, no entanto, não o isentou de expressar o desconforto que isso muitas vezes o causava.212 Dessa forma, Jameson adentrou no debate sobre o pós-modernismo, algo que de imediato envolvia, para ele, a necessidade de reativar a herança do marxismo que havia sido deslegitimada pela maioria das perspectivas anteriores sobre o tema. O autor defendeu, portanto, a apropriação da noção a partir do procedimento de crítica dialética marxista, desmistificando suas funções sociais e filosóficas vigentes para chegar à sua “verdade” e seu uso adequado, já que haveria justamente um descompasso entre o que esse conceito afirma ser e o que ele realmente é. Torna claro, então, o ponto de vista específico a partir do qual partiu: o de redirecionamento do significado vigente do termo, pautando-se, novamente, não por “opiniões ou juízos moralizadores” (insatisfatórios para se chegar a uma avaliação final do pós-modernismo), mas por uma análise genuinamente histórica e dialética “para além do bem e do mal”: [...] estamos dentro da cultura do pós-modernismo, a ponto de o seu repúdio fácil ser tão impossível quanto é complacente e corrupta sua celebração igualmente fácil. (...) No lugar da tentação de denunciar as complacências do pós-modernismo como algum sintoma final de decadência ou de saudar as novas formas como os arautos de uma nova utopia tecnológica e tecnocrata, parece mais apropriado avaliar a nova produção cultural dentro da hipótese de trabalho de uma modificação geral da própria cultura causada pela reestruturação social do capitalismo tardio como um sistema. 213 Na avaliação de Jameson, o problema sobre o pós-modernismo – suas características fundamentais, “se ele sequer existe, se o próprio conceito tem alguma utilidade ou se, ao contrário, é apenas uma mistificação” – não deveriam ser uma questão 211 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 70. Cf. Ibidem, p. 17. “Eu também, como todo mundo, fico às vezes muito entediado com o slogan “pósmoderno”, mas quando começo a me arrepender de minha cumplicidade com ele, a deplorar seu uso errôneo e sua notoriedade, e a concluir, com alguma relutância, que ele levanta mais problemas do que resolve, eu me vejo parando para pensar se qualquer outro conceito poderia dramatizar essas questões de forma tão eficiente e econômica. (...) “Temos que dar nome ao sistema”: esse ponto alto dos anos 60 tem um inesperado revival no debate do pós-modernismo” (Ibidem, p. 405). 213 Ibidem, p. 58-59. 212 80 de “celebração” ou “rejeição”, de apologia ou condenação. Assim, o autor não rejeitou ou simplesmente julgou moralmente o pós-moderno como uma posição antimarxistas; pelo contrário, retomando os princípios elencados em Marxismo e Forma, procurou fazer um “acerto de contas”, retrabalhando os alcances e limites do conceito, reconectando-o e reinscrevendo-o na realidade concreta a qual faz referência: a história do capitalismo. Com isso, Jameson compra o desafio ideológico de entender o termo como um fenômeno histórico. O autor elenca a hipótese de que o pós-modernismo corresponderia a “uma modificação geral na própria cultura causada pela reestruturação social do capitalismo tardio como um sistema”, e sugere que os novos tipos de produção cultural que emergiam nos anos 1960 estavam intimamente relacionados com o surgimento de um novo momento do capitalismo e com as características da vida social nos Estados Unidos.214 Ou seja, Jameson apresenta que, na sua concepção, o conceito teria o intuito de correlacionar “o surgimento de novos aspectos formais na cultura” (ou ainda, de “novas formas de prática e de hábitos sociais e mentais”, o que Raymond Williams teria chamado de “estrutura de sentimento”), com as “novas formas de organização e de produção econômica” processadas no capitalismo tardio.215 Em Pós-modernismo e Sociedade de Consumo (1982) – ensaio no qual estabelece pela primeira vez as teses centrais de sua teoria –, Jameson recorre à diferentes exemplares da arte pós-moderna na literatura, arquitetura, música, cinema – a poesia de John Ashbery e a poesia coloquial; as formas arquitetônicas surgidas em reação ao modelo do International Style, tal como exposto por Robert Venturi no manifesto Aprendendo com Las Vegas; Andy Warhol, a pop art e o fotorrealismo; a música de John Cage, Philip Glass e Terry Riley, além do punk rock e rock new wave, com The Clash, Talking Heads e The Gang of Four; o cinema de Godard; os romances contemporâneos de William Burroughs, Thomas Pynchon, Ishmael Reed; o nouveau roman francês – para defender que os aspectos formais neles presentes manifestam traços mais profundos da lógica do sistema capitalista contemporâneo.216 Além da maior parte ter surgido como reações as formas estabelecidas do alto modernismo – isto é, serem “contra este ou aquele alto modernismo dominante que conquistou a universidade, o museu, a rede de galerias de arte e as fundações” –, também são sintomas de fenômenos como a erosão das Jameson, F. “Teorias do pós-moderno”. Em: A virada cultural, p. 59; Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 43-44. 215 Ibidem, p. 18-20; Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 279. 216 Cf. Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 17. 214 81 fronteiras entre os campos da vida social (notadamente, o apagamento da antiga distinção, caraterística do alto modernismo, entre alta cultura e cultura de massas). Ou seja, a emergência e recorrência sistemática de certas características presentes no espectro da cultura contemporânea revelou a Jameson que o problema do pós-modernismo não se referia apenas a descrição de um novo estilo estético; pelo contrário, era um sinal de que um novo sistema representacional havia se consolidado para acompanhar a virada de um novo estágio do capitalismo. O autor, assim, apresentou a hipótese de compreensão do pós-modernismo como um conceito de periodização, que pretendia oferecer uma contribuição para a noção de modo de produção, entendida por ele não de forma “produtivista”, mas sim como um conceito que envolve diversos níveis e ordens de abstração. Seguindo o esquema apresentado em O inconsciente político, o pós-modernismo corresponderia, desse modo, à forma cultural específica da última mutação sistêmica do modo de produção capitalista.217 Tal formulação consagrou Jameson ao compreender o pós-modernismo não apenas como uma teoria epistemológica ou uma nova estética, mas como um fenômeno social do mundo contemporâneo, ou melhor, como uma revolução cultural produzida pelo modo de produção capitalista. 218 Como veremos a seguir ao tratarmos sobre seu ensaio a respeito dos anos 1960, o que permite essa virada de sentido e acepção do termo pós-modernismo por Jameson é o conceito de capitalismo tardio, de Ernest Mandel, uma das fontes teóricas que propriamente embasaram sua proposta de periodização histórica. Para o autor, o modelo histórico-econômico apresentado por Mandel em O Capitalismo Tardio foi uma das mais importantes interpretações marxistas surgidas no período pós-guerra, em contraposição aos diagnósticos e “generalizações sociológicas ambiciosas” (sociedade pós-industrial, pós-moderna, de informação, consumo, etc.), ao demonstrar que o presente histórico representaria mais um estágio do capitalismo e não a superação dele, com a celebração da chegada de um tipo de sociedade totalmente novo. 219 Ou seja, a obra de Mandel serviria como um bom álibi e comprovação teórica de que a nova realidade em debate nos anos 1970 era produto de uma modificação sistêmica do próprio capitalismo e não a entrada numa nova ordem social, estando, portanto, longe de ser inconsistente com as análises de Cf. Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 66 e 80; Cf. Jameson, Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 335 e 402. 218 Cf. Ibidem, p. 21; Musse (op. cit.). 219 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 29. 217 82 Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo. Com efeito, com base em Mandel, Jameson reforça sua tese de que o que estava em jogo era um redimensionamento nas estruturas da sociedade contemporânea – um novo estágio do capitalismo (“o capitalismo tardio”) –, isto é, uma “continuidade em relação ao que precedeu e não a quebra, ruptura ou mutação que conceitos como ‘sociedade pós-industrial’ pretendem ressaltar”. 220 Além disso, ao tomar como base a obra de Mandel, o objetivo de Jameson foi o de contribuir com a periodização sobre as etapas históricas do capitalismo, adicionando a ela a demonstração de que cada estágio do capitalismo corresponde a uma lógica cultural.221 Nesse sentido, o desenvolvimento histórico do capitalismo teria até o momento passado por duas mutações específicas: a do capitalismo de mercado, tal como descrito por Marx, e sua fase monopolista ou imperialista, descrita por Lenin, cada uma correspondendo a dominantes culturais: o momento do realismo e do modernismo, respectivamente. O intuito de Jameson foi, então, adicionar os conceitos de capitalismo tardio e pós-modernismo a esse quadro, mostrando como os diferentes modos de produção guardam formas culturais específicas que são funcionais às suas próprias estruturas particulares.222 Para isso, pressupõe que a transição do segundo para o terceiro 220 Ibidem, p. 22. Segundo Jameson, “minha própria periodização cultural dos estágios do realismo, modernismo e pósmodernismo é inspirada e confirmada pelo esquema tripartite de Mandel” (Ibidem, pp. 61-62). Assim, foi ela “o que tornou possíveis os meus próprios pensamentos sobre o ‘pós-modernismo’, que devem, a partir de então, ser entendidos como uma tentativa de teorizar sobre a lógica específica da produção cultural nesse terceiro estágio, e não como uma outra crítica cultural incorpórea ou como um diagnóstico do espírito do tempo” (Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 67-68). 222 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 62. Em diversos textos, Jameson revisita e rediscute o debate marxista sobre o conflito estético entre realismo e modernismo, afirmando que ambos não são progressivos ou regressivos em si mesmos; cada um corresponde a um momento histórico particular e suas características devem ser lidas a partir desse contexto. Em sua explicação da passagem realismo-modernismo-pós-modernismo Jameson retoma então as formulações estéticas de Lukács e Adorno para avaliar cada uma das fases em termos da conjuntura história e social em que emergiram. Cf. Jameson, F. “The Bretch-Lukács Debate”. Em: The Ideologie of Theory, p. 448. O surgimento de formas capitalistas de organização social e econômica teriam destruído, primeiramente, a unidade presente nas formas culturais das sociedades pré-capitalistas (mito, ritual). A cultura foi a partir desse momento submetida ao mesmo processo de reificação presente na realidade social – a fragmentação da atividade humana, separando-a e tornando-a cada vez mais especializada. O sistema representacional apropriado nesse primeiro momento foi o realismo, especialmente na forma romance, incorporando na esfera cultural a lógica burguesa individualizante. O surgimento das formas modernistas, por sua vez, revelaria a intensificação da reificação na virada ao capitalismo monopolista, a fragmentação da experiência, a separação entre individuo e sociedade, relacionado ao próprio processo de autonomização da sociedade moderna (taylorismo, especialização e divisão do trabalho). Entretanto, tanto realismo quanto modernismo não foram simplesmente um reflexo da lógica capitalista, mas também formas de compensação utópica a ela. Para Jameson, qualquer potencial crítico ao capitalismo que tais formas poderiam ter tido foram neutralizadas no cenário pós-moderno, ao ter sido “domesticado” e assimilado pelas instituições, perdendo seu caráter subversivo. Tanto o realismo como o modernismo, assim, não corresponderiam mais a situação cultural presente, e o tipo de vida e problemas sociais por eles representados não seriam mais adequados a sociedade de consumo contemporânea. A forma cultural definitiva do capitalismo tardio tornou-se, então, o pós-modernismo. Num exemplo mais contemporâneo, Jameson analisa a ficção 221 83 estágio do modo de produção teria acontecido em dois níveis e momentos principais: 1) o momento da cultura (por volta do começo dos anos 1960, nos Estados Unidos), em que “a posição do alto modernismo e sua estética dominante se tornaram estabelecidas na academia e, a partir de então, percebidas como acadêmicas por toda uma nova geração de poetas, pintores e músicos”223; 2) o momento socioeconômico, no qual a ruptura é descrita em termos das mudanças fundamentais que ocorreram na vida social das sociedades de capitalismo avançado logo após a Segunda Guerra Mundial (novos padrões de consumo, o crescimento do papel da mídia e da propaganda, o gradual esmaecimento da velha tensão entre campo e cidade, etc.).224 Por fim, a proposta de Jameson de compreensão sobre o pós-modernismo também pressupõe alguns princípios metodológicos, que remontam o problema da representação da totalidade. Afinal de contas, Jameson se coloca a tarefa de apreender o real significado do pós-modernismo nos termos do modo de produção, e a forma filosófica da noção de modo de produção, para ele, é a noção de totalidade.225 Para isso, retoma a conclusão apontada em O inconsciente político de que a narrativa é essencial nesse processo de representação. Tendo em vista que o conhecimento histórico não “é algo que se dá na experiência imediata”, e de que deve-se evitar a produção de conceitos como entidades abstratas e autônomas, Jameson opta, então, pela combinação de dois níveis de análise em sua análise do pós-modernismo como conceito de periodização: o momento diacrônico (a perspectiva da totalidade histórica) e o momento sincrônico (os elementos alocados no interior dessa totalidade). 226 Com efeito, parte do procedimento de abstração próprio do pensamento dialético, que constitui no isolamento inicial de um certo conjunto de fatores ou níveis que compõem a realidade histórica concreta, analisando-a a partir da científica Neuromancer, de William Gibson, como uma obra que expressa bem a situação pós-moderna. Para Jameson, o texto reflete um dos dilemas fundamentais da narrativa hoje: a própria possibilidade de representação do sistema, que está para além da capacidade dos indivíduos de apreenderem. Ou seja, oferece um reflexo de uma das contradições fundamentais do capitalismo tardio – o descompasso entre de um sistema-mundo cada vez mais intocável e uma experiência individual cada vez mais reduzida. Cf. Jameson, Marxist Criticism and Hegel, p. 433. 223 Jameson, “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 42-43. 224 Cf. Ibidem, p. 43. 225 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 335. “No que concerne ao conceito de totalidade, tendo a dizer aquilo que certa vez afirmei sobre a noção de estrutura de Althusser, ou seja, que o ponto crucial a ser analisado é o seguinte: podemos reconhecer a presença de tal conceito desde que compreendamos ser apenas um; algo que é em geral conhecido como “modo de produção”. A “estrutura” althusseriana é isso, assim também é a totalidade, ao menos no modo como a utilizo” (Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 75). 226 Cf. Jameson, O inconsciente político, pp. 24-25. 84 relação dialética entre as partes e o todo. 227 Cada texto ou artefato cultural particular que Jameson usa como artifício em suas análises não é, então, transformado em mero exemplo ilustrativo, mas tratado como objeto particular que traduz, em seus próprios termos, momentos da totalidade social; por meio deles, cria-se, assim, uma imagem e narrativa do momento histórico em questão. Além disso, seguindo seu lema historicizante, Jameson defende uma abordagem totalizante como parte essencial de seu projeto de se contrapor ao atual momento de reificação e fragmentação do capitalismo. Consciente da aparente contradição que isso carrega, isto é, de que tal perspectiva seria incompatível com o próprio espírito do pósmodernismo – já que este se impõe não como totalidade, mas como pura heteronomia –, o autor nota que, apesar de sua lógica dispersiva e disjuntiva, o pós-modernismo poderia ser entendido como sistema unificado, na medida em que “um sistema que produz diferenciações permanece um sistema”. 228 Assim, diferentemente dos pós-modernos, para os quais a realidade é formada por fragmentos incomensuráveis, Jameson acredita que ela pode ser compreendida como um todo. Ao defender esta perspectiva totalizante, não pretendia, no entanto, entender o pós-modernismo como um bloco homogêneo, mas sim, um todo contraditório. Retomando sua definição de modo de produção em O inconsciente político, Jameson reconhece que este “engloba em si mesmo uma variedade de impulsos contrários e novas tendências” (no sentido gramsciano de forças “residuais” e “emergenciais” que ele administra ou tenta controlar), ou seja, que isso continuaria sendo próprio da tendência contraditória do capitalismo.229 Assim, Como aponta em Marxismo e Forma, “o modelo dialético permite que um dado fenômeno seja percebido como um momento ou uma secção entrelaçada, única, em um único processo articulado”; Nesse sentido, retoma a “viagem de retorno” de Marx, na medida em que, após efetuado “um corte ideal da densidade existencial da história concreta – o isolamento de um único plano ou nível da realidade”, este retorna “ao elemento concreto do qual se originou para se abolir como uma ilusão de autonomia e para se dissolver de novo na história, oferecendo, enquanto assim o faz, um lampejo momentâneo da realidade como um todo concreto” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 239-40). 228 Ibidem, p. 71. 229 Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 80. O pós-modernismo “é “meramente” uma dominante cultural. Descrevê-lo em termos de hegemonia cultural não significa sugerir uma homogeneidade cultural massificada e uniforme do campo social, mas exatamente levar em conta sua coexistência com outras forças resistentes e heterogêneas que ele tem tendência a dominar e incorporar” (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 175-176). Essa coexistência mostram, então, que nenhum modo de produção existe em seu estado puro. Assim, para Jameson, seguindo a definição de Marx, cada modo de produção inclui traços sedimentados de modos de produção anteriores, ao mesmo tempo em que traços de modos de produção futuros também podem ser detectados, mais visivelmente na forma de luta de classes. Cf. Jameson, The Ideologies of Theory, p. 477. 227 85 [...] Não me parece, de modo algum, que toda produção cultural de nossos dias seja pós-moderna no sentido amplo em que vou usar esse termo. O pós-moderno é, no entanto, o campo de forças em que vários tipos bem diferentes de impulso cultural (...) têm que encontrar seu caminho. Se não chegarmos a uma ideia geral de uma dominante cultural, teremos que voltar à visão da história do presente como pura heterogeneidade, como diferença aleatória, como a coexistência de inúmeras forças distintas cuja efetividade é impossível aferir. 230 Com isso, Jameson também tenta dar cabo às objeções de teóricos da cultura, sobretudo relacionados aos estudos pós-coloniais, que de cara consideraram suas análises muito “americanocentristas”, por obliterar as diferenças e projetar um período histórico como uma “massa homogênea”, ou ainda, ao fato de que Jameson no fundo tentava universalizar o sentido de um fenômeno que estaria relacionado ao contexto norteamericano.231 Em relação ao isso, o autor ressalta como as possíveis incongruências enxergadas por seus críticos devem-se ao fato de sua concepção de pós-modernismo fazer parte justamente do problema representacional da totalidade (que, no limite, é sempre uma tentativa “fracassada”). Nesse sentido, destaca que ao não existir a possibilidade de se representar o ““capitalismo tardio em geral”, mas apenas esta ou aquela forma nacional específica”, a razão do “americanocentrismo” de sua exposição torna-se evidente. Jameson, então, ressalta que claramente há “uma diferença entre o conceito e a coisa, entre esse modelo global e abstrato e a nossa própria experiência social individual”, já que sua conceituação do pós-modernismo intenta a caracterização dos principais traços desse fenômeno, e não a substituição da representação pela própria realidade, de forma semelhante como “o conceito de cachorro solte latidos ou que o conceito de açúcar seja doce”.232 Ao mesmo tempo, pode-se dizer que é justamente o “americanismo” de Jameson que no fundo serve como um termômetro sobre o americanismo do próprio pósmodernismo, como um fenômeno que foi gestado primeiramente nos Estados Unidos pósguerra e posteriormente importado e difundido também para outros países, devido a posição e influência cultural que esta ocupa no sistema mundial. Nesse sentido, como o próprio autor aporta, “a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é 230 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 32. Ibidem, p. 29. 232 Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 80. 231 86 expressão interna e superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do mundo”. 233 Por fim, Jameson defende o resgate da perspectiva da totalidade pela sua validade, mas também para melhor entender as próprias condições de possibilidade desse conceito, tentando recuperar o real significado do termo e livrá-lo de seu status totalitário.234 Para tanto, nota que a ideia de totalidade, antes de mais nada, deriva da própria noção de sistema. Ou seja, o imperativo pela totalidade advém precisamente da natureza totalizante do próprio sistema capitalista: a tendência expansiva do capital tende a transformar a sociedade num sistema total. Desse modo, a atribuição dessa característica não é um capricho dos críticos marxistas; o próprio capitalismo é totalizante, de forma que sua análise também deve ser. Nesse sentido, a resistência a conceitos totalizantes se daria em “função precisamente dessa universalização do capitalismo”, pois quando tudo torna-se sistêmico, “a própria noção de um sistema parece então perder sua razão de ser”.235 2.4. Periodizando os anos 1960 Um passo imprescindível para Jameson chegar em sua concepção do pósmodernismo foi a leitura que realizou sobre o que foram os anos 1960. De forma geral, esta década representou um importante momento de inflexão histórica, no qual uma série de rupturas e reformulações teóricas, políticas e culturais foram gestadas, servindo como um divisor de águas para entender os debates sobre o pós-moderno nos anos 1980.236 Além disso, foi o momento de maturação de um dos fenômenos que notadamente influenciaram a teoria de Jameson e os temas trabalhados em sua obra: a emergência de um novo imaginário centrado na ideia de dominação cultural. Os anos 1960 são amplamente reconhecidos por sua efervescência cultural e política. Foram palco de inúmeras lutas contestatórias a nível mundial, em meio a um cenário de modernização social produzido pelo capitalismo pós-guerra nos países 233 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 31. Cf. Jameson, F. “Marxismo e pós-modernismo”. Em: A virada cultural, p. 73-74. Nas palavras de Jameson: “Não escapou à atenção de ninguém que a minha abordagem do pós-modernismo é totalizante. A pergunta a ser feita hoje, portanto, não é por que eu adoto essa perspectiva, mas, sim, por que tantas pessoas se escandalizam (ou aprenderam a se escandalizar) com ela” (Ibidem, p. 68). 235 Ibidem, p. 80. 236 Segundo a tese do “curto século XX”, os anos 1960 representam um subciclo importante do processo que desembocou em seu encerramento, em 1989. Cf. Keucheyan, R. The Left Hemisphere: Mapping Critical Theory Today. London: Verso, 2014, p. 7. 234 87 avançados. Abriram espaço para que uma série de demandas sociais fossem vocalizadas, tornando-se, assim, uma década de explosão de radicalismo, que iniciou um novo momento na esquerda mundial, marcado pela proliferação de novas frentes e debates, e que contribuíram para a configuração do que muitos chamaram de “virada cultural”. Politicamente, uma rubrica que passou a ser utilizada como referência a esse momento da história da esquerda ocidental foi a chamada New Left.237 Apesar de designar uma gama bastante ampla de fenômenos e formações políticas, pode-se dizer que o termo foi utilizado para nomear o conjunto de “novos movimentos sociais” e formas de ativismo que irromperam durante a década – a defesa dos direitos civis, a luta feminista, estudantil, ecológica, pela libertação nacional, contra a segregação racial, pela liberdade sexual. De modo geral, o "novo" presente no termo representava uma forma de diferenciação com os movimentos orientados pelas políticas tradicionais da esquerda, designando, sobretudo, aquelas forças sociais que se pretendiam uma terceira via em relação ao déficit democrático do “marxismo oficial” ligado aos Partidos Comunistas e às limitações da socialdemocracia. Como explica Ellen Wood, [...] as várias “novas esquerdas” compartilhavam um compromisso com as lutas emancipatórias para além – ou pelo menos em adição à – luta de classes tradicional, especialmente os movimentos estudantil, contra a guerra do Vietnã e de libertação negra.238 Esse processo aconteceu em distintos contextos nacionais, provocado por questões díspares. Diferentemente da França, em que caminhou junto com o peso histórico do Partido Comunista francês e o caráter político e anti-sistêmico das lutas sociais daquele país, com uma geração que foi às ruas pela queda do regime e do governo, no cenário norte-americano em que Jameson está inserido, o desenvolvimento da New Left esteve mais vinculado ao desenvolvimento dos movimentos de contracultura e à proliferação de uma série de subgrupos alternativos, cujo grau de intensidade e fragmentação historicamente criou, inclusive, uma série de barreiras para a construção de 237 Usaremos esse termo amplamente para cobrir uma variedade de tendências políticas e intelectuais que surgiram nesse período, incluindo o "pós-marxismo" e abordagens que passaram a identificar a tradição marxista como um tipo de discurso moderno decadente (como no pós-modernismo, pós-colonialismo, certas tendências do feminismo, etc.). 238 Wood, E. M. A chronology of the New Left and its successors, or: who’s old fashioned now? Socialist Register, v. 31, 1995a, p. 24. 88 uma visão e projeto político comum entre os setores da esquerda.239 Além disso, esteve relacionado às próprias mudanças do pós-guerra: os Estados Unidos encontrava-se num período de prosperidade econômica, marcado pela melhoria dos padrões de vida, ascensão social de camadas da classe trabalhadora e subsequente crescimento da classe média, além de ambientar a perseguição política anticomunista gerada pela tônica da Guerra Fria, que tentava criar uma atmosfera avessa ao engajamento em ideais socialistas. No início, a essência da mentalidade da New Left estava relacionada a luta por direitos civis, que deu seus primeiros sinais de aparição já na metade dos anos 1950 com o movimento negro e feminista, que pretendiam aprofundar a tradição dos movimentos abolicionista e pelo sufrágio universal. O comprometimento de estender a noção de democracia àqueles setores sociais excluídos da cidadania em seu sentido pleno deu, então, origem no começo dos anos 1960 à múltiplos movimentos que tinham como estratégia comum a exposição de injustiças, o confronto às formas de autoridade e o desejo por mudanças sociais, estimuladas também pelo entusiasmo criado em 1959 com o processo revolucionário em Cuba. O inicio da década foi marcado pela intensificação e expansão de lutas sociais em torno de direitos democráticos, através de manifestações, campanhas que estimulavam a desobediência civil e criação de grupos militantes nacionais estudantis, contra os testes nucleares, contra segregação racial, pelo direito das mulheres e dos homossexuais. Junto a isso, houve o desenvolvimento dos movimentos de contracultura, que se opunham à homogeneização cultural inerente aos padrões de consumismo do pós-guerra. Em 1965, com o envio das tropas norte-americanas à Guerra do Vietnã, as mobilizações se intensificaram consideravelmente e passaram por uma radicalização política, adquirindo um caráter mais anti-sistêmico em torno dos protestos anti-guerra. O ano de 1968 foi o ápice desse processo, que culminou em rebeliões urbanas e atos massivos em todo país. A expansão dos movimentos também se traduziu nas próprias disputas internas em torno de estratégias e concepções sobre os rumos que deviam tomar as lutas – se o caminho seria a luta armada ou a construção do partido, por exemplo, se a concepção era liberal ou radical, etc.. O ponto de virada, entretanto, começou a dar seus primeiros sinais naquele mesmo ano, tendo em vista momentos emblemáticos como o assassinato de Martin Luther King e John Kennedy e a vitória de Richard Nixon nas 239 Cf. Jameson, O inconsciente politico, p. 98. 89 eleições presidenciáveis. Este intensificou a repressão contra os opositores à guerra e ao governo, o que resultou no aumento das revoltas e da polarização política no país. Com a deflagração do escândalo de Watergate, a retirada das tropas americanas do Vietnã em 1973 e a institucionalização de parcelas dos movimentos nas instâncias de governo e nos discursos da mídia, houve a gradual dispersão das energias radicais e esmaecimento dos principais grupos que compuseram a New Left.240 A partir de meados dos anos 1970, portanto, houve um “curto-circuito” dos movimentos sociais, que gradualmente provocou um deslocamento no horizonte das perspectivas críticas. O caráter anti-sistêmico característico do fim dos anos 1960 deu lugar a críticas com temáticas específicas e formas de resistências isoladas. Nesse sentido, a efervescência dos anos 1960 deu lugar aos anos 1970 e 1980: a mesma geração que se contagiou com a esperança advinda da radicalização das lutas, se confrontou com o declínio das mesmas. Nas palavras de Perry Anderson, “a imagem ou a esperança da revolução foram murchando no Ocidente”, cancelando “por todo um período histórico qualquer perspectiva realista de uma destruição do capitalismo avançado pelo socialismo”.241 Como descreve David Harvey, que há anos leciona sobre o pensamento de Marx nos Estados Unidos, isso pode ser medido pelas próprias oscilações no interesse pela leitura de O Capital: até o começo dos anos 1970 havia um grande entusiasmo político e interesse por essa obra, pelo menos nos círculos radicalizados das universidades, que tentavam buscar embasamento teórico e intelectual para compreender a ruptura política evidente que se vivia naquele momento. No começo dos anos 1980, em “Naqueles anos, a maioria dos movimentos da Nova Esquerda criaram raízes permanentes, mas seus sonhos revolucionários desvaneceram. À medida em que cada movimento passou a seguir seu próprio caminho, a ideia de uma Nova Esquerda Unida por um comprometimento radical comum enfraqueceu também. (...) O movimento anti-guerra era o chão comum compartilhado por todos os ativistas (…) Com a saída dos Estados Unidos do Vietnã em 1973 e a renúncia de Nixon em 1974, esta causa comum desapareceu” (Gosse, V. The Movements of the New Left (1950-1975): A Brief History with Documents. Boston: Bedford/St. Martin, 2005, p. 35). A partir de 1975, cada movimento passou a seguir seu próprio caminho. Ativistas reagiram a esse processo de formas diferentes. Além da integração de militantes de esquerda ao quadro do Partido Democrata, houve aqueles que tomaram posições mais céticas, denotando não as vitórias do período (como a legalização do aborto, os avanços contra a discriminação racial e sexual, o fim da guerra, etc.), mas o fracasso dos movimentos, que não conseguiram construir um projeto revolucionário unificado à altura das necessidades de mudança radical da sociedade. Ressaltaram assim que, apesar de terem se oposto aos velhos projetos da esquerda, não obtiveram êxito em construir uma resposta melhor de alternativa ao sistema. Junto a esse processo, uma nova direita também se fortaleceu, aliando conservadorismo econômico e a oposição às lutas no âmbito dos costumes, o que culminou nos anos 1980 na chamada era Reagan. 241 Anderson, P. Modernidade e revolução. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 4, p. 2-15, 1986, p. 11. 240 90 contrapartida, Marx e o marxismo “tradicional” definitivamente saíram da moda acadêmica e política. 242 Assim, de modo geral, com o desfecho do ciclo contestatório aberto nos anos 1960 houve uma combinação profunda entre ceticismo epistemológico e derrotismo político, que fez com que muitos ativistas e teóricos, desiludidos, abandonassem gradualmente o marxismo e migrassem para o anarquismo, para a defesa da perspectiva das identidades (gênero, sexualidade, raça), para a crítica ao progresso modernista (derivada das preocupações ecológicas emergentes), etc.243 Nesse processo, uma multiplicidade de vertentes críticas passou a ser mobilizada – como o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo, o pós-modernismo, pós-colonialismo – todas diretamente relacionadas ao novo imaginário gestado durante esse período. Nesses novos modelos que passaram a emergir, o centro do pensamento crítico tornou-se, então, a ênfase na heterogeneidade e pluralidade, em detrimento dos debates estratégicos e anticapitalistas, agora fora do horizonte. Na França, esse redirecionamento esteve relacionado ao desenvolvimento gradual, a partir de 1968, de abordagens que associavam “uma crítica social de feição marxista clássica e reivindicações de um tipo diferente, com apelo à criatividade, ao prazer, ao poder da imaginação, à liberação referente a todas as dimensões da existência, à destruição da “sociedade de consumo” etc.”. 244 Assim, subjacente ao significativo prestígio que as instituições e ideários comunistas detinham naquele momento (vide a própria importância que o Partido Comunista tinha na vida social francesa), “ganhava corpo uma nova modalidade discursiva pronta a dar forma a um universo de práticas sociais, estas sim em acelerado processo de acumulação”. 245 O resultado uma transição e reestruturação institucional da esquerda francesa, a partir do qual estimulou-se políticas não enquadradas em ortodoxias e formas de pensamento crítico desorbitadas do Partido Comunista.246 Como observa Paulo Arantes, boa parte da teoria francesa pós-1968 passou, então, a girar Cf. Harvey, D. “Marx Redux”. Em: Antonio, R. (ed.). Marx and modernity: key readings and commentary. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, pp. 259-263. 243 Cf. Therborn, op.cit., p. 35. 244 Boltanski, L. & Chiapello, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 19. 245 Ota, N. A quarta parede do marxismo francês: maio de 68 e a invenção dos dispositivos intelectuais de engajamento. Dois pontos, v. 13, n.1, p. 53-72, 2016, p. 54-55. 246 Além disso, segundo Boltanski e Chiapello, esse processo teve um resultado mais dramático e perverso: a forma como o capitalismo nos anos subsequentes desarmou a crítica social e estética produzida em 1968, 242 91 [...] em torno dos mencionados e assim chamados Novos Movimentos Sociais e em função deles remodelou a imagem da Revolução, dos Intelectuais, das relações entre Teoria e Prática etc., e mais, conforme definhava o impulso globalizante do gauchismo original, delineava-se o horizonte mais modesto (...) de um "reformismo radical" em permanente litígio com a afluência desregulada do capitalismo avançado porém deslegitimado.247 Diante desse cenário, a definição de Jameson é a de que a década de 1960 foi um período de transição, mais precisamente, o momento em que se processaram as condições para que o pós-modernismo viesse a se tornar uma dominante cultural nos anos 1980. 248 Seu argumento é de que ela foi uma espécie de “pré-história” do conceito, na medida em que o pós-moderno se consolida enquanto lógica cultural do capitalismo tardio no instante em que a retórica vanguardista da década anterior (presente nas artes, na política, na teoria, etc.) é extinta, sobrando apenas o esvaziamento dos pressupostos em que ela estava baseada. Nesse processo, o pós-modernismo torna-se ele mesmo a celebração eclética e dispersa do pluralismo, da heterogeneidade e da coexistência de múltiplos grupos sociais fragmentados. A concepção de pós-moderno de Jameson, portanto, pressupõe um exame crítico dos principais processos da década de 1960 – entre eles, a emergência dos “novos movimentos sociais”, o surgimento de novas tendências na arte e o momento pósestruturalista na teoria –, preocupado em entender como a retórica aparentemente progressiva da celebração da “diferença” que marcou esse período contraditoriamente tornou-se funcional a própria dinâmica capitalista. Além disso, a tese de Jameson é a de que, nesse contexto, foram gestadas uma série de rupturas com o projeto moderno em termos políticos, culturais e econômicos, além da fermentação de um dos fenômenos que propriamente marcaram o surgimento da pós-modernidade como um momento social e ao propor uma restruturação do mundo do trabalho nos anos 1970 compatível “com o estado do mundo social no qual está incorporado e com as aspirações dos seus membros” (Boltanski e Chiapello, op. cit., p. 199). Tal renovação teria representado uma superação tanto do capitalismo quanto do anticapitalismo, na medida em que o primeiro incorporou traços das revoltas operárias e estudantis (as críticas a alienação, a mecanização, ao poder hierarquizado, ao paternalismo e autoritarismo, as defesas por autenticidade e liberação) e sua linguagem da autonomia e autogestão, para realizar uma reorganização do trabalho, que passou a ser pautado por um modelo mais flexível (Ibidem, p. 201). 247 Arantes, P. Tentativas de identificação da Ideologia Francesa. Novos Estudos, n. 28, v. 3, out 1990, p. 90. 248 Cf. Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 20. 92 histórico: o processo de aculturação da vida cotidiana e de expansão da mercantilização em todos os níveis sociais, dissolvendo a autonomia característica que as esferas da vida tinham na modernidade. Como trabalharemos a seguir, esse fenômeno é nomeado por Jameson como sendo um grande movimento de “desdiferenciação”, que abole as fronteiras existentes entre o cultural, econômico, político, etc. Tais avaliações são apresentadas de maneira concisa em Periodizando os anos 60 (1984). No ensaio, Jameson elenca uma série de eventos que compuseram essa década, articulando-os em uma narrativa histórica do período. Em sua descrição, o autor seleciona essencialmente quatro níveis distintos de abstração: a análise dos processos ocorridos no âmbito da filosofia, da política, da cultura e da economia.249 Assim, retomando o esquema teórico exposto em O inconsciente político, Jameson entrecruza esses níveis sociais (ou “fios da narrativa”) e apresenta um modelo de periodização histórica da década, com o intuito de entender justamente o problema da semi-autonomia das esferas sociais no momento pós-moderno. Ou seja, não pretende apresentar uma história dos anos 1960 no sentido tradicional, de como ele “realmente aconteceu”, mas sim contribuir para a reorganização dos procedimentos da análise histórica. Nesse sentido, para o autor, [...] há uma diferença fundamental entre a presente narrativa e as produzidas por uma história orgânica mais antiga, que buscavam uma unificação “expressiva” através de analogias e homologias entre níveis de vida social completamente distintos. Enquanto estas propunham identidades entre as formas nos diversos níveis, o que se discutirá aqui é toda uma série de homologias significativas entre as rupturas daquelas formas e seu desenvolvimento. O que está em jogo, então, não é qualquer tipo de proposição sobre a unidade orgânica dos anos 60 em todos os seus níveis, mas uma hipótese sobre o ritmo e a dinâmica da situação fundamental, em que aqueles níveis diferentes se desenvolvem de acordo com suas próprias leis internas.250 Ao longo dessa narrativa, Jameson se propõe a responder a duas questões teóricas: 1) a validade da análise marxista, num “período cujas categorias políticas ativas já não pareciam ser as de classe social e em que, de maneira geral, as formas tradicionais da teoria e da prática marxista pareciam ter entrado em ‘crise’”; 2) a possibilidade de uma Jameson, F. “Periodizando os anos 60”. In: Hollanda, Heloísa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992b, p. 82. 250 Ibidem, p. 83-84. 249 93 teoria capaz de relacionar, de maneira coerente, realidades aparentemente distantes, como o Primeiro e Terceiro Mundo e os distintos fenômenos que ocorriam nos campos da filosofia, da cultura e da política, etc. 251 Além disso, Jameson visa construir um ponto de vista alternativo às visões simplesmente celebratórias ou derrotistas sobre sentido e significado da experiência dos anos 1960. Por isso, sua análise fundamentou-se em dois momentos principais: 1) entender os efeitos da expansão e prosperidade no capitalismo pós-guerra e como esta produziu uma imensa liberação cultural, com o desprendimento de novas energias sociais e o sentimento generalizado de que “tudo era possível” na década de 1960; 2) compreender como a irrupção da crise econômica mundial nos anos 1970, junto a outros eventos históricos, levaram ao “fim dos anos 1960”, de forma que o sentimento de liberdade que marcou este período fosse dissipado e os problemas da infraestrutura “voltassem a pesar" novamente.252 2.4.1. Da política de classes às políticas de identidade: a desconexão entre as partes e o todo Para isso, o ponto de partida de Jameson é o terreno político, pelo qual tenta mapear as condições que possibilitaram os anos 1960 e os eventos que permitiram a liberação de “novas forças sociais”, privilegiando as experiências ocorridas nos Estados Unidos, na França e no Terceiro Mundo.253 Para ele, entre os acontecimentos que sinalizariam o “nascimento convulsivo daquilo que viria a ser conhecido mais tarde como os anos 60”, e que serviram de inspiração para o surgimento dos modelos de resistência cultural, estariam os movimentos anti-colonização surgidos na África inglesa e francesa – independência da Gana (1957), independência das colônias francesas ao sul do Saara (1959), Revolução Argelina (Batalha de Argel, 1957) –254, além da Revolução Cubana (1959) e suas inovações políticas 255. Assim, Jameson parte de um ponto de vista 251 Ibidem, pp. 121-122. Cf. Ibidem, p. 125-126. 253 Cf. Ibidem, p. 84. 254 Segundo Jameson, uma exceção importante teria sido a onda de luta por direitos civis protagonizada pelos negros norte-americanos, que iniciou antes ou concomitantemente aos movimentos anti-coloniais africanos. 255 Para Jameson, a experiência cubana teria apresentado a construção de um novo modelo revolucionário, a “teoria do foco”, diferente tanto do leninismo quanto do maoísmo, caracterizada por um estilo de prática política – a guerrilha – que não corresponderia nem ao modelo tradicional da luta de classes urbana, nem à 252 94 retrospectivo (afinal de contas, está falando do momento em que escreve, os anos 1980), para defender que as lutas que aconteceram no Terceiro Mundo no final dos anos 1950 foram uma das fontes que alimentaram a ideia de libertação daqueles que seriam igualmente “colonizados” internamente nos países de Primeiro Mundo – as “minorias, os marginais e as mulheres” – criando-se a retórica de autodeterminação de grupos e identidades coletivas que marcou a década de 1960, e que rompeu em muitos sentidos com modelos modernos de se fazer política.256 Ou seja, Jameson nota que, junto a essa explosão de impulsos utópicos trazidos pelos novos movimentos sociais, houve um crescimento proporcional dos índices de repúdio às políticas tradicionais de esquerda, produzindo “uma série relevante de movimentos micropolíticos (de vizinhança, de raça, étnicos, de gênero e ecológicos)”.257 Assim, o problema investigado por Jameson nesse âmbito da análise é o da “emergência de uma grande variedade de práticas políticas de pequenos grupos, sem base em classe social”, entendida como um dos fenômenos pós-modernos que começaram a se consolidar nesse momento. 258 Para o autor, isso esteve vinculado a uma perda de prerrogativa da perspectiva emancipatória clássica entre os círculos da nova esquerda. Devido a um certo impressionismo com o surgimento prodigioso de novos sujeitos e modelos de lutas políticas, tornou-se recorrente a avaliação de que estes não se encaixavam no modelo dicotômico de classes do marxismo tradicional, abrindo espaço para um domínio de teorização que transcendia as perspectivas que até então subsumiam a maior parte das resistências sociais emergentes. 259 Ou seja, com a crescente força social dos estudantes (que aumentou de forma significativa devido à expansão do ensino superior em muitos países) e a ascensão dos movimentos culturais centradas nas questões de raça, etnia, gênero, sexualidade, postulou-se a ideia de uma “crise do sujeito”, ou melhor, de multiplicação dos sujeitos (mulheres, negros, colonizados, estudantes, etc.), e que as formas de resistência política não adviriam mais de onde tradicionalmente emanavam – do proletariado –, mas antes daqueles grupos excluídos das reflexões dominantes do marxismo sobre o sujeito histórico. A análise centrada na classe passou a ser então criticada como insuficientemente preocupada com as formas culturais de experiência de movimento de massas camponesas, além de criar um novo “sujeito revolucionário”, o guerrilheiro, identificado nem com proletário, nem como camponês (Ibidem, pp. 115-119). 256 Ibidem, p. 85. 257 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 177. 258 Ibidem, p. 322. 259 Cf. Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 125. 95 dominação e, assim, como incapaz de absorver os novos movimentos e sujeitos que emergiam na cena política, já que estes não constituíam uma classe, nem seriam oriundos diretamente do conflito entre capital e trabalho, o que introduziu a necessidade de dilatação das categorias sociais para além da centralidade das formas de dominação baseadas na exploração econômica. A emergência de “novos sujeitos” da história, assim, estimulou um diagnóstico de inadequação de categorias prévias da ordem do agente, como as concepções de classe social e de luta de classes. Ou seja, tais noções tornaram-se formas de objeção à teoria marxista, devido a uma suposta incompatibilidade entre a política de classes por ela oferecida e as prioridades dos novos movimentos sociais, ou melhor, por tais políticas – como a concepção leninista da forma-partido como local central da atividade revolucionária e a concepção de poder centrada no Estado – não estarem adequadas às experimentações multiformes dos novos antagonismos políticos. Na compreensão de Jameson, no entanto, tal repúdio teria mais lastro no sentido institucional do que intelectual, já que ele era no fundo um reflexo não propriamente de uma deficiência teórica da ideia de classe, mas antes de uma crise ou saturação das instituições clássicas através das quais a política marxista de classe se expressava, como os sindicatos e os Partidos Comunistas. Nos Estados Unidos, esse processo estava relacionado, sobretudo, à perseguição política durante o período do macarthismo, que contribuiu fortemente para o desmantelamento e para a constituição de uma imagem negativa de tais instituições.260 Outra explanação mistificadora para a atribuição de perda do poder explicativo do conceito de classe nesse momento seria a de que os “novos movimentos sociais” e os novos grupos estariam ocupando o vazio deixado não só pelo declínio dos movimentos tradicionais de esquerda, mas pelo próprio desaparecimento das classes sociais enquanto tais, algo que foi constatado devido ao impacto da “reestruturação global da produção e a introdução de tecnologias radicalmente novas” nos anos 1970 – “que arrancaram trabalhadores das velhas fábricas e de seus empregos, deslocaram novos tipos de indústria para lugares inesperados no mundo e recrutaram uma força de trabalho diferente das tradicionais em muitos aspectos, do gênero à habilidade e nacionalidade” – , dando a impressão de uma extinção da figura do trabalhador industrial clássico.261 Para Jameson, isso teria sido também um motivo para o ofuscamento da perspectiva de classe, bem como 260 261 96 Cf. Ibidem, p. 86. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 322-323. para fato das lutas sociais terem tomado um caráter disperso e anárquico, já que “a natureza transicional da nova economia global” ainda não havia permitido que o novo proletariado internacional “se formassem de modo estável, e muito menos que adquirissem uma consciência de classe”. 262 Nesse processo, as categorias que passaram gradualmente a ocupar a posição política e social antes atribuída a classe e a consciência de classe, foram, então, a noção de “grupo” e de “identidade”. A ideia de adesão a um determinado grupo tornou-se a versão pós-moderna da consciência de classe, ou ainda, a identificação ideológica com uma classe foi substituída pela filiação a um determinado grupo.263 Nessa lógica, portanto, passou-se a privilegiar o desejo de pertencimento a um grupo social (que proporcionam uma espécie de “gratificação de identidade”) em detrimento da aderência a organizações políticas como partidos, que corresponderiam propriamente ao processo de formação da consciência de classe, ou mesmo, de identidade com uma classe em termos sociais, políticos e econômicos, e não apenas uma identidade cultural. 264 262 Ibidem, p. 349. Ou seja, além de expressar uma discordância no nível político e filosófico, o descrédito na ideia do proletariado como sujeito revolucionário teve relação também com as próprias mudanças infraestruturais que afetaram as sociedades industriais após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos países industrializados, os operários de “chão de fábrica”, “que constituíam o núcleo central dos movimentos dos trabalhadores, perdia terreno em termos relativos, e às vezes absolutos, em face de outros setores da população ocupada”; somado a isso, a “coesão das comunidades operárias”, elemento tão importante para determinar “a força dos partidos e dos movimentos de massa do proletariado”, estava sendo enfraquecidas pela melhoria de vida, pela pressão da publicidade comercial sobre os seus desejos enquanto consumidores, etc. (Hobsbawm, “O marxismo hoje: um balanço aberto”, p. 39). Assim, o aumento da dessindicalização e o descrédito aos organismos tradicionais “que contribuíram para dar corpo às classes sociais e para conferirlhes existência objetivada” (como os partidos) conduziu alguns analistas a considerar a análise marxista baseada na classe como obsoleta (Boltanski & Chiapello, op. cit., p. 286). Além disso, alguns ideólogos acreditavam que a emergência dos “novos sujeitos” políticos teria sido também um efeito direto do vazio deixado pela própria decomposição das classes sociais tais como teorizadas pelo pensamento social moderno, além da derrocada dos movimentos políticos organizados ao redor delas. Os anos 1970 seriam, nesse sentido, o momento de conclusão do declínio da classe tal como desenhada nos autores clássicos, devido as novas características trazidas com a reestruturação capitalista. Cf. Wood, E. M. Capitalist change and generational shifts. Monthly Review, v. 50, issue 5, 1998, p. 4. 263 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 325-26. 264 Em diagnóstico bastante semelhante, Nancy Fraser sintetiza: “a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal de mobilização política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental. E o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição socioeconômica como remédio para a injustiça e objetivo da luta política” (Fraser, N. Da distribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, 2006, p. 231). Hobsbawm também ressalta a dinâmica de grupos e “grupúsculos” que passou a vigorar, a partir de cisões de organizações: “entre 1956 e o fim dos anos 1960, o descontentamento com a política dos partidos comunistas, às vezes – como na França – concentrado em suas organizações estudantis, tinha levado a expulsões ou cisões periódicas, que forneceram um novo contingente aos potenciais militantes e dirigentes do que viria a ser a “nova esquerda”” (Hobsbawm, E. “O marxismo hoje: um balanço aberto”. Em: Hobsbawm, E. (org.). História do marxismo – Vol. 11: O marxismo hoje (primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 33). O maoísmo, nesse sentido, teria se tornado um pólo aglutinador, como uma espécie de ponte entre a velha e a nova esquerda. 97 Segundo Jameson, esse processo, levado às últimas consequências, provocou o surgimento de uma retórica irrestrita de se defender em primeiro lugar o reconhecimento das diferenças entre os indivíduos, e não àquilo que eles têm em comum a partir de uma situação concreta compartilhada, inviabilizando muitas vezes qualquer tipo de consenso político. Ou seja, fomentou o reconhecimento das minorias enquanto tais (isto é, como grupos que não tem pretensão de se tornar uma maioria, como o povo e a classe trabalhadora).265 Além disso, exemplos históricos mostram como o repúdio ao consenso em nome da diferença na verdade se tornou um espaço de atuação, em que a conquista e o orgulho de uma identidade acabou suprimindo as reais estratégias de liquidação das raízes da opressão, paradoxalmente, a razão primeira de surgimento desses grupos. 266 Outra consequência foi que os grupos, ao se tornarem então os “novos personagens coletivos” da cena social e política, tornaram problemática a noção clássica de um “sujeito da história” (que, na perspectiva marxista, seria justamente o proletariado). Nesse sentido, a ideia de identificação com um grupo também se traduziu nessa época numa espécie de transferência da possibilidade revolucionária e da vanguarda para outros agentes de emancipação, fora dos movimentos operários dos países de capitalismo avançado, como, por exemplo, aos movimentos do Terceiro Mundo.267 Assim, diante da “crise” das políticas tradicionais e do poder explicativo do conceito de classe, os grupos e “minorias” passaram a buscar novos meios de expressão, por meio da ênfase em outras categorias sociais e políticas (colonizado, raça, 265 Cf. Burawoy, op. cit., p. 172. O problema, para Jameson, é que a luta por reconhecimento individual pautada na alteridade inevitavelmente atinge um limite devido às contradições de sua própria lógica interna: “a retórica da conquista de identidade coletiva não tem mais para onde ir, só lhe restando evoluir para uma espécie de lógica secessionista cujos exemplos mais dramáticos encontram-se no nacionalismo cultural negro e (mais tarde) no lesbianismo separatista (a dialética da independência cultural e linguística na província do Quebec seria um outro exemplo instrutivo). Mas esse resultado é também contraditório, na medida em que o grupo recém-constituído (e aqui nos baseamos na explicação de Sartre na Critique) precisa de inimigos de fora para sobreviver como grupo, para criar e perpetuar um sentido de coesão e identidades coletivas. Em última instância, na falta da situação maniqueísta bem delineada da antiga fase imperialista, essa autodefinição coletiva conquistada com tanta dificuldade em um primeiro momento de resistência desdobrar-se-á em unidades menores e mais confortáveis de microgrupos em confronto direto” (Jameson, Periodizando os anos 60, p. 98). 267 Vale ressaltar que os estudos pós-coloniais ganharam audiência nesse contexto. Trata-se de um campo de conhecimento e perspectiva pós-marxista desenvolvida nos departamentos de literatura e de estudos culturais, cujo surgimento data da mesma época das concepções pós-modernas, guardando muitas semelhanças com os debates por elas travados. Ambas tiveram bastante repercussão nas políticas multiculturais dos “novos movimentos sociais” ao apresentar uma articulação e referência as questões de raça, etnia, sexualidade e gênero, “privilegiando uma retórica de reconhecimento sobre uma de redistribuição”. Cf. Lazarus, N.; Varma, R. “Marxism and Postcolonial Studies”. Em: Bidet, J & Kouvelakis, S. (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 324-325, p. 311-313. 266 98 marginalizado, gênero), fazendo emergir, tanto nos Estados Unidos quanto na França, um novo espaço político, articulado por slogans como “o pessoal é político”, pela retórica do poder e dominação e do direito ao discurso. Para Jameson, apesar de ser um sintoma histórico relevante o fato das pessoas terem “sentido a necessidade de expressar sua percepção da situação e sua práxis (...) numa linguagem reificada de poder, dominação, autoridade, autoritarismo”, esta seria sem dúvida insatisfatória, na medida em que representa um deslocamento problemático do econômico para o político: [...] É claro que é politicamente importante “contestar” as várias formas de poder e dominação: estas últimas, contudo, não podem ser compreendidas a menos que suas relações funcionais com a exploração econômica sejam articuladas – isto é, até que o político esteja de novo subordinado ao econômico.268 Em outro texto, Jameson reforça: [...] Para o marxismo, de fato, as categorias de poder não são as definitivas, e a trajetória da teoria social contemporânea (de Weber a Foucault) sugere que o apelo a ela é muitas vezes estratégico e envolve um deslocamento sistemático da problemática marxista. Não, a forma final do “pesadelo da história” é antes o fato do trabalho em si. 269 Ou seja, na compreensão de Jameson, os grupos, ao privilegiarem as questões de micropoder, dominação e autoritarismo em detrimento da questão de classe, substituíram estrategicamente o econômico pelo político, recolocando as raízes dos problemas não no nível do capitalismo, mas no âmbito do poder estatal. 270 Nesse sentido, o que está por trás da defesa de princípios democráticos pelos novos movimentos sociais é a substituição da via revolucionária pelo conflito entre Estado e sociedade civil, que passa então a ser formado por um universo extenso e heterogêneo de identidades, práticas e discursos, e Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 90. A defesa do direito de “falar com a própria voz”, por exemplo, embora ter cumprido o papel de articular as novas demandas particulares dos grupos sociais, seria insatisfatória, ao não ter o poder imediato de fazer com que estas fossem alcançadas. Cf. Ibidem, pp. 9091. 269 Jameson, F. “Marxism and Historiciam”. Em: Ideologies of Theory, p. 465. 270 Jameson, O marxismo realmente existente, p. 72-73. 268 99 não pela luta primordial entre trabalhadores e burguesia. Para o autor, no entanto, por mais que as configurações do mundo do trabalho e da classe tenham de fato mudado consideravelmente no contexto contemporâneo, tornando necessária uma readequação das concepções clássicas da política emancipatória marxista, elas continuariam sendo a principal forma de se identificar as contradições do capitalismo e lutar contra seu sistema opressor; por isso, a ênfase na exploração permaneceria “um programa socialista, enquanto que a ênfase na dominação é democrática, um programa e linguagem apenas muito facilmente e frequentemente cooptado pelo estado capitalista”. 271 Em seu tratamento sobre estas questões, Jameson também efetua um retorno à Lukács para avaliar como, no fundo, essa polêmica sobre a prioridade política (ou seja, sobre o que em última instância é o mais determinante, a “dominação” política ou a “exploração” econômica?) se deu, primeiramente, por uma leitura equivocada das implicações filosóficas do conceito de classe. O autor enfatiza a necessidade de se retomar a defesa lukácsiana sobre a prioridade do ponto de vista do proletariado, para demonstrar como a concepção marxista não implica a “preferência” abstrata do conceito de classe sobre outros conceitos “concorrentes” ou outras “instâncias determinantes” (como raça, gênero, etc.), mas sim a consideração sobre a importância da experiência do sujeito a partir do lugar específico que ocupa na produção.272 Em diálogo com os debates abertos nos anos 1960, Jameson propõe não uma defesa ao pé da letra da concepção de Lukács sobre o proletariado industrial como agente histórico, nem seu abandono, mas a necessidade premente de fazê-la reemergir conceitualmente numa nova forma. 273 Assim, propõe “ser consequente com o modelo de 271 Jameson, F. Representing Capital. London: Verso, 2011, p. 150. Cf. Jameson, F. “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project. Em: Valences of the Dialectic, pp. 214-215. 273 Para sustentar seu argumento, Jameson inclusive reproduz trecho de entrevista que Lukács concedeu nos anos 1960, em que diz: “Hoje, no que tange o despertar do fator subjetivo, nós não podemos recriar e continuar os anos 1920, temos que ao invés disso prosseguir com base em um novo começo, com toda a experiência que temos do movimento operário anterior e do marxismo. Nós devemos ter clareza, entretanto, que o problema é começar o novo; para usar uma analogia, nós não estamos agora nos anos vinte do século vinte, mas num certo sentido no começo do século dezenove, quando o movimento operário começou lentamente a tomar forma no despertar da Revolução Francesa. Eu acredito que esta ideia é muito importante para os teóricos, pois o desespero pode muito rapidamente se estabelecer se a afirmação de certas verdades encontra apenas uma ressonância muito fraca. Não se esqueça que certas coisas que SaintSimon e Fourier disseram tiveram há época uma ressonância extraordinariamente fraca, e foi apenas nos anos trinta e quarenta do século dezenove que um renascimento do movimento operário começou” (Hans Heinz Holz, Leo Kofler, and Wolfgang Abendroth. Conversations with Lukács, Cambridge, MA: MIT Press, 1975, 62, citado em Jameson, “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project. Em: Valences of the Dialectic, p. 222). 272 100 Lukács”, e ler ou reescrever História e a Consciência de Classe incluindo uma descrição dos fenômenos da consciência e da práxis em suas formas atuais; nesse sentido, o ponto de vista do proletariado não deveria ser visto como um ponto final, uma solução acabada, mas o começo para se pensar essas novas formas.274 A proposta de Jameson, então, configura uma mediação entre a concepção de Lukács e o próprio cenário aberto pelos anos 1960, com o aparecimento de “novos sujeitos”. O autor considera que, se a ênfase dada em História e Consciência de Classe ao proletariado industrial como sujeito talvez tenha se tornado em certos aspectos “desatualizada”, sua noção de “ponto de vista” teria um papel epistemológico fundamental. Dessa forma, no momento contemporâneo, dever-se-ia agregar à defesa do ponto de vista do proletariado as experiências de diferentes grupos sociais (isto é, das mulheres, dos negros, colonizados, LGBTs, etc.), sem, no entanto, deixar de entende-los como parte de uma classe. Tendo em vista que cada posição na totalidade social corresponde a formas específicas de opressão e exploração, seu argumento, portanto, é o de que cada grupo acaba enxergando “características do mundo que permanecem obscuras, invisíveis ou meramente ocasionais e secundárias para outros grupos”, o que produz novas possibilidades de conhecimento.275 O autor usa, assim, o exemplo da “teoria do ponto de vista” desenvolvida pelo feminismo, que teria contribuído para uma atualização de Lukács e gerado novas possibilidades epistemológicas ao evidenciar a “experiência fenomenológica específica das mulheres na ordem social patriarcal como uma submissão estrutural igualmente ‘excepcional’, mas bem diferente da restrição negativa da classe trabalhadora”. 276 O ponto de vista dos negros, igualmente, devido sua posição específica no todo social, daria acesso não apenas às experiências da reificação, como do racismo, do imperialismo e da escravidão, fazendo uma ponte histórica para a compreensão de estágios mais antigos da acumulação capitalista. 277 274 Ibidem, p. 218-219; p. 222. A tese do proletariado como sujeito e objeto da história seria, assim, uma “linguagem ou código específico, que não é mais o nosso”, sendo preferível reescrevê-lo de acordo com o “nosso próprio clima linguístico e intelectual” (Ibidem, p. 217). Além disso, como expõe em Marxismo e Forma, “o modelo de classe nunca foi satisfatoriamente elaborado para a realidade social americana, com seus agrupamentos étnicos e raciais, como seria de desejar. A tarefa ainda mais urgente hoje, no contexto daquela nova situação global de classe, sem paralelos, a que aludimos acima” (Jameson, Marxismo e forma, p. 304). 275 Jameson, F. “History and Class Consciousness” as an Unfinished Project, pp. 215-216; 221. 276 Ibidem, p. 219. 277 Cf. Ibidem, p. 219-220. 101 É nesse sentido que Jameson, inclusive, qualifica História e Consciência de Classe como um “projeto inacabado”, qual seja, o de dissolver e desreificar as interpretações monolíticas e estanques de conceitos como “dominação”, “exploração”, “opressão”, reinserindo-as novamente nas situações concretas em que emergiram, de forma a montar um novo inventário das diferentes estruturas de experiência [...] vividas pelos vários grupos marginais, oprimidos ou dominados – os chamados "novos movimentos sociais", tanto quanto as classes trabalhadoras – com essa diferença, de que cada forma de privação é reconhecida como produzindo sua própria "epistemologia", sua própria visão específica a partir de baixo, e sua própria reivindicação de verdade específica e distintiva”; um projeto que soará como "relativismo" ou "pluralismo" somente se o objeto comum ausente de tal "teorização" de múltiplos "pontos de vista" – o “capitalismo tardio” – for negligenciada. 278 Com efeito, com essa espécie de “multiplicação dos pontos de vista”, Jameson amplia a noção de prioridade do proletariado para outros grupos sociais, num diálogo com os debates trazidos pela New Left, pressupondo que houve uma mudança na composição dos sujeitos na cena política contemporânea, sem, no entanto, abandonar a perspectiva lukácsiana da totalidade. Isto, por sua vez, é exatamente o que diferencia sua abordagem de outras teorizações sobre o tema, como a das “políticas de identidade”, que se restringem a leituras localizadas das formas de opressão, não priorizando a consideração da experiência dos grupos oprimidos sob a totalidade (capitalismo), que é exatamente aquilo que permite pensar o problema não como algo individual, mas social. Pois, como demonstra, não se trata apenas de ler o problema do oprimido sob o pano de fundo de sua própria opressão, mas antes, de reconstruir a totalidade dentro da qual ele é oprimido. Ao mesmo tempo, em meio ao cenário de descrédito dos ideais e debates estratégicos socialistas, Jameson apresenta uma versão sobre o sujeito da práxis que não aborda seus desdobramentos institucionais, como a relação entre o processo de tomada de consciência e os partidos, sindicatos, etc.. No mais, com isso, Jameson também argumenta em favor da existência de uma diferença em status conceitual entre o conceito de classe e noções como de raça e gênero, já que a categoria de classe, diferentemente das últimas, é universalizante, constituindo 278 Ibidem, p. 221. 102 “uma forma de abstração capaz de transcender a individualidade e a particularidade de maneira mais bem-sucedida e mais produtiva, na medida em que o resultado daquela transcendência é pressentido como a abolição da própria categoria”. 279 Nesse sentido, a disputa em torno da prioridade política entre tais conceitos se dá justamente quando as categorias de classe, raça e gênero são pensadas apenas em termos empíricos. Por isso, a “compreensão crescente da necessidade de abarcar tais categorias como uma triangulação”, pela qual se estabelece o requisito de que o conceito de classe deve sempre se realizar e se especificar por meio das categorias de gênero e raça. Na visão de Jameson, no momento em que tais conceitos são pensados como categorias e não como dados empíricos, tal operação de entrecruzamento já está implícita e corporificada. 280 Mas a questão crucial que sintetiza todos estes debates processados elencados por Jameson na esfera política em sua periodização dos anos 1960, e que define o que consiste exatamente a passagem do moderno ao pós-moderno nesse nível social, é de que as diferentes mudanças nas práticas revolucionárias desse período marcam um profundo deslocamento dos problemas universais para os particulares: [...] Antes a política tentava coordenar as lutas globais e as localizadas e, por assim dizer, dotar a ocasião imediata de luta localizada de um valor alegórico, a saber, o de representar a própria luta geral, encarnando-a no aqui e no agora que ficavam aqui transfigurados. A política funciona apenas quando esses dois níveis podem ser coordenados; caso contrário, eles se separam e se transformam em uma luta abstrata e desencarnada pelo Estado e em torno dele, uma luta facilmente burocratizada, por um lado, e, por outro, em uma série verdadeiramente interminável de questiúnculas regionais, cuja “má infinitude” acaba por ser investida, no pós-modernismo, quando se transforma na única forma da política que restou, em algo como o darwinismo social de Nietzsche, e com a euforia forçada de uma revolução metafísica permanente. Penso que a euforia é uma formação compensatória em uma situação na qual, por algum tempo, a política autêntica (ou “totalizante”) não é mais possível; é necessário acrescentar que o que fica perdido em sua ausência é precisamente a dimensão do econômico, ou do sistema, da iniciativa privada e da razão do lucro que não podem ser desafiadas num plano local. 281 279 Jameson, O marxismo realmente existente, p. 94. Ibidem, p. 94. Para Jameson, essa temática de discussão “reflete uma perspectiva bem norte-americana, na medida em que raça e, atualmente, gênero sempre pareceram mais visíveis que classe na experiência dos Estados Unidos” (Ibidem, p. 95). 281 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 332. 280 103 Assim, as micropolíticas, a retórica da diferença, a substituição da perspectiva de classe pela de adesão a grupos, etc., seriam antes de mais nada índices de um sintoma essencialmente pós-moderno: o esmaecimento de perspectivas concretas e totais e sua substituição pelo “meramente particular”.282 Para Jameson, isso se deu justamente no momento em que a ênfase em formas locais, individualizadas e fragmentadas de resistência passou a substituir a concepção marxista de que uma causa específica ou formas de injustiça só poderiam ser realmente atendidas e corrigidas levantando-se “a rede de níveis sociais inter-relacionados numa totalidade, o que pede então a invenção de uma política de transformação social”. 283 Segundo Jameson, o desenvolvimento desse novo terreno político no interior das lutas sociais e democráticas teve sua correspondência teórica. No contexto francês, o lugar de vazão foi encontrado primeiramente na “politização do estruturalismo”, isto é, no processo em que os problemas da linguagem se deslocaram ao mundo político. 284 Além disso, as formulações de Foucault sobre o poder, o discurso teórico e a noção de 282 Ibidem, pp. 332-333. Jameson, O marxismo tardio, p. 186; pp. 323-324. Como aponta em outro texto, a posição crítica de Jameson quanto às políticas de alteridade não implica, no entanto, um retorno nostálgico a uma política de classes mais antiga, nem deve se confundir com um repúdio às demandas específicas que elas articulam, mas antes tenta apresentar os limites de tomá-las isoladamente. Nesse sentido, Jameson sugere que elas são realmente efetivas quando as questões particulares a qual elas se referem são tomadas, ao mesmo tempo, como momentos de uma utopia mais geral de transformação da sociedade como um todo. Sem a simultaneidade dessas dimensões, “a demanda política torna-se reduzida a mais um “problema” local das micropolíticas desse ou daquele grupo limitado (...), e um slogan que, uma vez atingido, não se conduz adiante politicamente” (Jameson, F. “Pleasure: a Political Issue”. Em: The Ideologies of Theory, p. 384). Nesse sentido, as categorias de classe, raça, gênero, etc., não são substâncias autônomas ou indiferentes umas às outras, mas momentos de uma mesma totalidade. Com isso, Jameson novamente retoma a ideia do marxismo como horizonte capaz de situar e relacionar essas formas parcializadas de política, propondo, assim, uma “política de alianças”: “Os grupos étnicos, os movimentos de bairro, o feminismo e vários grupos de “contracultura” ou de estilos de vida alternativos, a dissidência da classe trabalhadora, os movimentos estudantis, os movimentos de causa única – todos, nos Estados Unidos, têm parecido projetar exigências e estratégias teoricamente incompatíveis entre si e impossíveis de se coordenar sobre qualquer base política. A forma privilegiada pela qual a Esquerda americana hoje pode se desenvolver deve, portanto, ser necessariamente a de uma política de alianças; e essa política é o equivalente prático estrito do conceito de totalização ao nível teórico. Assim, na prática, atacar o conceito de “totalidade” no quadro americano significa solapar e repudiar a única perspectiva realista em que uma Esquerda genuína poderia existir neste país. Portanto, existe um problema real quanto à importação e à tradução de polêmicas teóricas que apresentam um conteúdo semântico bastante diferente na situação nacional em que se originaram, como no caso da França, onde os vários movimentos nascentes pela autonomia regional, a libertação feminista e as organizações de bairro são percebidos como reprimidos ou, pelo menos, podados em seu desenvolvimento pelas perspectivas globais ou “molares” dos tradicionais partidos esquerdistas de massa” (Jameson, O inconsciente político, p. 98). 284 Ota, op. cit. p. 59. O modelo estruturalista está baseado na aplicação e generalização do sistema linguístico para a compreensão do mundo social e seus fenômenos. A ênfase na linguagem é notável no pensamento de teóricos como Saussure, Lévi-Strauss, Lacan, Barthes. Para Lacan, “o inconsciente é estruturado como a linguagem”; “o mundo social como um todo como sistema de signos”, segundo Barthes. Cf. Keucheyan, op.cit., pp. 43-44. 283 104 que o “intelectual universal” foi substituído pelo “intelectual específico” também foram particularmente importantes no sentido de articular filosoficamente esse processo. Assim, a descrença nos conceitos clássicos do materialismo histórico foi proporcional a proliferação da visão foucaultiana de sociedade como uma multiplicidade irredutível de relações de poder. 285 O “derretimento do aparelho althusseriano” e de sua formulação sobre a semi-autonomia dos níveis sociais também foi outra perspectiva teórica que teve impacto nesse momento, tornando-se, contraditoriamente, um meio para se justificar a autonomia relativa das lutas culturais da época: [...] a tentativa de revelar uma semi-autonomia dos níveis por um lado, enfeixando-os todos, por outro, na unidade máxima de alguma “totalidade estrutural” (com sua ainda clássica instância marxista basicamente determinante do econômico), tende a se destruir, sob seu próprio impulso, na força centrífuga da crítica da totalidade que ela mesma elaborara (...) O que emergirá não é meramente uma heterogeneidade de níveis – doravante a semi-autonomia se distenderá em autonomia tout court, e será concebível que, no mundo descentrado e “esquizofrênico” do capitalismo avançado, as várias instâncias possam realmente não ter qualquer relação orgânica umas com as outras –, mas, o que é mais importante, surgirá a ideia de que as lutas pertinentes a cada um desses níveis (lutas puramente políticas, puramente econômicas, puramente culturais, puramente “teóricas”) podem igualmente não ter relação necessária entre si. 286 Para Jameson, tais mudanças significativas no estatuto das práticas e teorias políticas a partir dos anos 1960 guardariam, por sua vez, analogias com uma série de transformações fundamentais que na mesma época aconteceram na esfera da cultura e no caráter das manifestações artísticas. Ou seja, longe de ser um fenômeno isolado do domínio político, a emergência sistemática de rupturas com o moderno aconteceu em outros planos sociais, algo a principio evidente pelo fato de que o fim da concepção moderna de vanguarda na política também ocorreu no âmbito das artes. 2.4.2. O fim do modernismo e a mudança de função social da cultura Cf. Callinicos, A. “Whither Anglo-Saxon Marxism?”. In: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (org.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 85. 286 Jameson, Periodizando os anos 60, p. 102. 285 105 Revisando as teses de Adorno e Horkheimer, 287 Jameson primeiramente identifica a quebra da conceituada distinção entre alta cultura e cultura de massas (junto ao desaparecimento virtual da primeira enquanto um lugar que ainda assegurava uma experiência estética genuína, um espaço privilegiado de oposição ao processo de mercantilização da sociedade e a estrutura da arte comercial) como um dos fenômenos principais que passaram a caracterizar o âmbito cultural a partir dos anos 1960, algo que também pode ser lido, a partir das caracterizações do autor, como o fim da hegemonia europeia na produção cultural e a nova influência exercida pelos Estados Unidos nos moldes do alcance de sua indústria cultural, sobretudo no cenário de intensificação da cultura de massas que acontecia no país naquele momento. Como já havia exposto em seu ensaio Pós-modernismo e Sociedade de Consumo, esse processo teve início historicamente a partir da conversão do modernismo num cânon na academia, escolas, museus, etc. De acordo com essa perspectiva, até os anos 1960, o alto modernismo era o principal representante de uma cultura de oposição. Com o processo de canonização, ele perde gradualmente seu caráter subversivo, já que este se apoiava justamente na recusa e negação de tal institucionalização: [...] o modernismo antigo ou clássico era uma arte de oposição, surgiu no interior da era de ouro da sociedade do negócio como algo de escandaloso e ofensivo ao público da classe média – feio, dissonante, boêmio, sexualmente chocante. (...) uma ofensa ao bom gosto e ao senso comum, ou, como disseram Freud e Marcuse, um desafio provocativo à realidade reinante e aos princípios de conduta da sociedade de classe média do início do século XX. (...) Se subitamente Jameson, em As Marcas do Visível, ressalta a importância da contribuição de Adorno: “considero de maior interesse a análise da Escola de Frankfurt sobre a estrutura mercantil da cultura de massas; se proponho adiante um modo um pouco diferente de observar o mesmo fenômeno, não é porque sinta que sua abordagem tenha sido esgotada. Ao contrário, mal começamos a desvendar todas as consequências de tais descrições, sem mencionar a elaboração de um inventário exaustivo de modelos variantes e de outros traços além da reificação mercantil, em termos dos quais esses artefatos poderiam ser analisados” (Jameson, F. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995a, p. 14). Jameson, portanto, elenca a necessidade de promover uma extensão da interpretação de Adorno, por entender que vivemos um momento histórico distinto da época em que foi formulado pela primeira vez o conceito de indústria cultural. Segundo o autor, este foi usado inicialmente como um modelo de crítica à sociedade capitalista, a partir da observação dos fenômenos do rádio, do cinema e dos meios de comunicação de massa, e de como eles funcionavam, nos moldes da indústria capitalista, como reprodutores de valores e normas do sistema, transformando a arte em mais uma mercadoria. Em decorrência do avanço tecnológico, o objeto desses autores, como os filmes de Hollywood e o jazz, foi substituído por outros fenômenos, como o vídeo, as novas tendências do cinema, da música etc. Assim, ampliando o leque de objetos para novos fenômenos, Jameson pretende se referir a “mudanças na cultura e no capitalismo que Adorno não pôde constatar quanto à intensidade em que elas vieram a se manifestar”, visto que as suas características só se encontram amadurecidas a partir dos anos 1980. Cf. Jameson, O marxismo tardio, p. 185-189; Camargo, S. Adorno e Pós-Modernidade em Fredric Jameson. Revista Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 30, p. 114-138, jan – jul 2009, p. 121. 287 106 nos voltamos para o dia de hoje, podemos medir a imensidão das mudanças culturais que ocorreram. Não apenas Joyce e Picasso não são mais estranhos e repulsivos, como se tornaram clássicos e agora nos parecem muito mais realistas. 288 Assim, na narrativa de Jameson, os clássicos do modernismo foram “tomados, pela geração que desponta na década de 1960, como o sistema estabelecido e o inimigo – mortos, asfixiados, canônicos, esses são os monumentos reificados que devem ser destruídos para que se faça qualquer coisa nova”.289 Com isso, novas formas culturais começam a surgir, abrindo um “espaço criativo para artistas que passaram a se sentir oprimidos pelas categorias modernistas até então hegemônicas de ironia, complexidade, ambiguidade, temporalidade densa e, particularmente, monumentalidade estética e utópica”.290 Nesse sentido, testemunhou-se ao longo da década um momento extraordinariamente rico em termos de invenção de novas formas artísticas no teatro, literatura, cinema, música, etc., pautada pela ideia de que a inovação formal também era um tipo de protesto social e político, a exemplo dos happenings, que procuravam “abolir a fronteira e a distinção entre a ficção e o fato, entre a arte e a vida”.291 A produção cultural tornou-se, então, mais “aberta”, tal como desejavam seus artistas, por meio da destruição dos valores estéticos anteriores. No entanto, esse processo extremo de “liberação” das amarras do moderno e constante tentativa de derrubada de fronteiras foi se esmaecendo (muito devido ao grau Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 41-42. Segundo Jameson, nesse processo de atenuamento, extinção ou mesmo repúdio ideológico e estético ao movimento moderno, “o expressionismo abstrato em pintura, o existencialismo em filosofia, as formas derradeiras da representação no romance, os filmes dos grandes auteurs ou a escola modernista na poesia (como institucionalidade e canonizada na obra de Wallace Stevens) são agora vistos como a extraordinária floração final do impulso do alto modernismo que se desgasta e se exaure com essas obras” (Jameson, Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 27). Retomando Adorno, o autor também ressalta: “o sistema tem o poder de cooptar e desarmar até mesmo as formas mais potencialmente perigosas de arte política transformando-as em mercadorias culturais (...). Pois o que antes era um fenômeno de oposição e anti-social nos primeiros anos do século, tornou-se hoje o estilo dominante da produção de mercadorias (...) sintomas de uma situação em que uma “arte perceptiva” outrora escandalosa encontrou uma função social e econômica em suprir as mudanças de estilo necessárias à société de consommation do presente” (Jameson, The Ideologies of Theory, p. 444-446). 289 Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 18. 290 Jameson, Periodizando os anos 1960, pp. 106-107. Ou seja, Jameson vê como lado positivo do surgimento do pós-modernismo o fato dele representar um “alívio” ao desbloquear e liberar “uma nova produtividade que estava de algum modo tensionada e congelada, endurecida como um músculo com cãibra, no final do período moderno”, já que a ideia de artista como “gênio” e “autêntico”, tendiam paralisar e intimidar novas produções (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 317321). 291 Jameson, F. “‘Fim da arte’ ou ‘Fim da história’?”. Em: A virada cultural, p. 128. 288 107 de experimentalismo que atingiu, não atraindo mais um público que o acompanhasse), além de absorvido pelo crescimento da reprodutibilidade e comercialização da arte pela indústria cultural, que fez com que cultura de massas e alta cultura começassem gradualmente a se desdobrar uma na outra, de forma a fomentar “uma cultura agora universalizada cuja lógica descreve um continuum da “arte” para o “entretenimento””. 292 Nesse processo, tornou-se cada vez mais difícil traçar uma “linha que separa a alta arte das formas comerciais”, na medida em que [...] boa parte dos recentes pós-modernistas ficou fascinada exatamente por aquela paisagem de anúncios e motéis das avenidas de Las Vegas, pelo Late Show e pelo cinema B de Hollywood, pela chamada páraliteratura, com os seus best-sellers de aeroporto, que se alternam entre as categorias do gótico e do romance, da biografia popular e do mistério de assassinato, da ficção científica e do romance fantástico”.293 Assim, o momento pós-moderno da cultura é marcado pelo “aparecimento de novos tipos de textos, impregnado das formas categorias e conteúdos da mesma indústria cultural que tinha sido denunciada com tanta veemência por todos os por todos os ideólogos do moderno, de Leavis ao New Criticism americano até Adorno e a Escola de Frankfurt”.294 Ou seja, a tentativa de destruição dos traços modernistas teve um preço: a substituição de seu “elitismo” desembocou na valorização generalizada do caráter popular da cultura de massas, o repúdio ao estilo pessoal de uma obra, pela tendência a reciclagem eclética de estilos do passado, a destruição da sua profundidade e aspecto crítico, pela superficialidade, etc. Desse modo, apesar de seus diversos exemplares também conterem um certo traço subversivo (como apresentam as manifestações do punk, cultura das drogas e da pornografia), a arte pós-moderna já não era de maneira alguma “de oposição” no mesmo sentido que as manifestações modernas, mas sim, “a própria estética dominante ou hegemônica da sociedade de consumo”, servindo “como um laboratório de novas formas e modas, à produção de mercadorias empreendida por esta”.295 292 Jameson, O marxismo tardio, p. 187; Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 169. 293 Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 18-19. 294 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 28. 295 Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 107. Em diálogo com as definições de Jameson, Eagleton argumenta como tais produções culturais pós-modernas guardavam uma relação parasitária com o modernismo: “Do modernismo propriamente dito, o pós-modernismo herda o eu fragmentário e esquizóide, mas extirpa toda a distância crítica dele, contrapondo a isso uma impassível apresentação de experiências 108 Para Jameson, portanto, o sentimento a princípio progressista de desprendimento cultural operado nos anos 1960 produziu múltiplos efeitos reversos. Um deles foi o desenvolvimento de uma cultura do Significante e do simulacro.296 Seguindo Baudrillard e Barthes, o autor identifica, assim, que as formas artísticas pós-modernas representaram de maneira sintomática uma “aventura do signo”, ao reproduzirem em suas estruturas internas um processo de profunda dissociação entre significante (veículo material ou imagem, com ou sem palavra escrita), significado (imagem mental, sentido ou conteúdo) e referente.297 Como descreve em seu Pós-modernismo, historicamente, este processo teria ocorrido nos seguintes termos: [...] Era uma vez uma coisa chamada signo que, quando apareceu, na madrugada do capitalismo e da sociedade afluente, parecia relacionarse, sem nenhum problema, com o seu referente. Esse apogeu inicial do signo (...) deu-se por causa da dissolução corrosiva das formas mais antigas da linguagem mágica por uma força que chamarei de reificação, uma força cuja lógica é a da separação violenta e da disjunção, da especialização e da racionalização, de uma divisão do trabalho taylorista em todos os domínios. Infelizmente, essa força – que fez surgir a referencialidade tradicional – seguiu adiante, sem se deter por nada, já que é a própria lógica do capital. Então, esse primeiro momento de decodificação ou de realismo não pôde durar muito tempo; por uma inversão dialética, ele mesmo se tornou, por sua vez, objeto da força corrosiva da reificação, que entra no domínio da linguagem para separar o signo do referente. Essa disjunção não abole completamente o referente, ou o mundo objetivo ou realidade, que ainda tem uma existência esmaecida no horizonte, como uma estrela diminuída ou um anãozinho vermelho. Mas sua grande distância do signo permite que esta viva um momento de autonomia, de uma existência relativamente livre e utópica, se comparado com seus antigos objetos. Essa autonomia da cultura, essa semi-autonomia da linguagem, é o momento do modernismo e do domínio do estético que reduplica o mundo sem ser totalmente parte dele, desse modo adquirindo certo poder negativo ou crítico, mas também uma certa futilidade do outro mundo. Mas a força da reificação que fora responsável por esse novo momento tampouco para aí: em outro estágio, potencializada, em uma espécie de reversão da quantidade pela qualidade, a reificação penetra o próprio signo e separa o significante do significado. Agora a referência e a realidade desaparecem de vez, e o próprio conteúdo – o significado – é problematizado. Resta-nos o puro jogo aleatório dos significantes que nós chamamos de pós-modernismo, que não mais produz obras monumentais como as do modernismo, mas embaralha sem cessar os "bizarras" que se assemelha a certos gestos de vanguarda. Da vanguarda, o pós-modernismo toma a dissolução da arte na vida social, a repulsa à tradição, uma oposição à "alta" cultura enquanto tal, mas mistura isso com os impulsos apolíticos do modernismo” (Eagleton, T. Capitalismo, modernismo e pósmodernismo. Crítica marxista, v. 1, São Paulo, pp. 53-68, 1995, p. 68). 296 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 144. 297 Cf. Jameson, Periodizando os anos 1960, pp. 108-109. 109 fragmentos de textos preexistentes, os blocos de armar da cultura e da produção social, em uma nova bricolagem potencializada: metalivros que canibalizam outros livros, metatextos que fazem colagem de pedaços de outros textos – tal é a lógica do pós-modernismo em geral, que encontra uma de suas formas mais fortes, mais originais e autênticas na nova arte do vídeo experimental.298. Ou seja, as manifestações culturais pós-modernas assinalariam um novo patamar da reificação, aprofundando o processo inicialmente expresso nas concepções estruturalistas da linguagem: após a separação do signo de seu contexto, a lógica da fragmentação passou a penetrar o interior do próprio signo, liberando dessa vez o significante de seu próprio significado. Este segundo momento de dissolução teria sido responsável, então, por gerar um novo tipo de textualidade em todas as artes pósmodernas: a linguagem aleatória de puros significantes, “flutuantes e auto-referentes”, resistentes ao significado.299 Para Jameson, essa “aventura do signo”, longe de ser um problema aparentemente interno aos mecanismos da linguagem, refletiria um sintoma mais amplo, projetando “uma imagem útil do processo de transformação da cultura em geral”.300 A percepção mais clara disso seria a construção de uma realidade social fragmentada e anárquica, a paisagem-mercadoria característica do capitalismo contemporâneo composta por uma série de imagens e significantes. Com isso, nota-se o desenvolvimento do mundo do simulacro como mais um dos sintomas pós-modernos. Além disso, a conclusão que Jameson chega a respeito das diferentes transformações ocorridas no âmbito da cultura a partir dos anos 1960 – da dissolução das fronteiras entre alta cultura e cultura de massas ao processo de “aventura o signo” – é a ideia de que a cultura perdeu a autonomia relativa que antes detinha no período moderno. Ou seja, ela teria deixado de ser uma esfera autônoma e teria recaído no mundo a ponto de “tornar-se coextensiva à vida social em geral”, de modo que todos 298 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 117-118. Seguindo Marcuse, Jameson defende, entretanto, que o pós-modernismo só consegue passar por esse processo de “dereferenciação” ao preço de “conservar um tênue sentido último desse mundo exterior e externo do qual é réplica e duplicação imaginária”. Nesse sentido, se propõe a tarefa (a ser realizada no Pós-modernismo), de investigar e analisar concretamente a experiência pós-moderna em todas as artes, a fim de captar essa dimensão propriamente utópica. 299 Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 113-114. 300 Ibidem, pp. 109-110. Em Marxismo e forma, Jameson já apontava igualmente de forma incipiente: “ tal arte expressa a realidade americana” e, assim, envolve “um julgamento sobre nós mesmos tanto quanto sobre as obras de arte às quais reagimos” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 313-14). 110 os níveis da sociedade do espetáculo, da imagem, do simulacro – “desde as superestruturas aos mecanismos da própria infraestrutura” – teriam se tornado culturais.301 Assim, a esfera cultural passou por um processo de prodigiosa expansão, “por todo o domínio do social, até o ponto em que tudo em nossa vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas e à própria estrutura da psique – pode ser considerado como cultural, em um sentido original que não foi, até agora, teorizado”.302 [...] De fato, o que aconteceu com a cultura pode muito bem ser uma das pistas mais importantes para se detectar o pós-moderno: uma dilatação imensa de sua esfera (a esfera da mercadoria), uma aculturação do Real imensa e historicamente original, um salto quântico no que Benjamin ainda denominava a “estetização” da realidade (ele achava que isso dava em fascismo, mas nós sabemos que é apenas divertido: uma prodigiosa alegria diante da nova ordem, uma corrida às compras, nossas “representações” tendendo a gerar um entusiasmo e uma mudança de humor não necessariamente inspirados pelos próprios objetos representados). 303 Assim, à exemplo da modificação de caráter e natureza das produções culturais, a periodização dos anos 1960 é discutida por Jameson em termos de uma mudança de função social da cultura: ela tornou-se, além de socialmente conveniente, completamente integrada à estrutura socioeconômica. Partindo dessa caracterização, Jameson então reforça a defesa do pós-modernismo como um “enquadramento sugestivo para explicar o que aconteceu com a cultura nos anos 60”, iniciando uma agenda de pesquisa que irá desenvolver com mais fôlego no livro Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. Entre as características principais elencados por ele para um devido tratamento posterior (e que demonstram, por sua vez, a incorporação de uma série de questões da teoria francesa em sua obra) estão: o tema pós-estruturalista da “morte do sujeito”; a natureza e função da “cultura do simulacro” (Baudrillard e Deleuze) e sua relação com a cultura dos meios de comunicação de massas ou a “sociedade do espetáculo” (Guy Debord); o novo status da imagem e da estética da textualidade; a emergência da 301 Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 115. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 74. 303 Ibidem, p. 14. 302 111 temporalidade esquizofrênica e o eclipse da profundidade e da historicidade, com o aparecimento do pastiche e da nostalgia. 304 Além disso, nessa nova configuração cultural, Jameson defende que a análise dos exemplares da cultura de massas passa a ocupar um espaço privilegiado, como índice por excelência dos sintomas sociais do mundo pós-moderno.305 Com isso, o autor evidencia como o colapso da fronteira entre alta cultura e cultura de massas impôs mudanças significativas nos procedimentos da crítica cultural. Ao mesmo tempo, reforça o novo estatuto que esta passa a ter, já que a dissolução dessa fronteira não significou o desaparecimento da cultura, mas pelo contrário, sua total expansão – mais especificamente, a difusão da cultura visual e imagética por toda a vida social. Nesse sentido, a cultura passa a ter “os mesmos limites que a sociedade de mercado”, de forma que [...] o cultural não é mais limitado pelas suas formas antigas, tradicionais ou experimentais, mas é consumido ao longo da própria vida cotidiana, nas compras, nas atividades profissionais, nas várias formas de lazer frequentemente televisivas, na produção para o mercado e no consumo daqueles produtos mercadológicos, enfim, no ângulos e dobras mais secretos do cotidiano. 306 2.4.3. A “morte da filosofia” e o advento da Teoria contemporânea Somado ao quadro cultural, Jameson também se atém às mudanças equivalentes ocorridas no âmbito da história da filosofia a partir dos anos 1960. Para o autor, o evento notadamente pós-moderno nesse domínio teria sido o declínio da filosofia e sua substituição pela noção de teoria. Nesse caso, a nova fronteira abolida foi aquela que antes separava as diferentes disciplinas acadêmicas, produzindo um novo gênero discursivo – a “teoria contemporânea” – que passa a aglutinar uma série de tendências 304 Jameson, Periodizando os anos 1960, pp. 105-106. Em As marcas do visível, Jameson promove um tratamento particular sobre esse tema, analisando exemplares da cultura de massas (como os filmes Poderoso Chefão e Tubarão). Para o autor, apesar de toda produção cultural ser determinada por um viés ideológico, de alguma forma, mesmo a cultura mais massificada, traz consigo um viés utópico, sendo papel do crítico marxista investigá-lo. 306 Jameson, F. “Transformações da imagem na pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 182. 305 112 teóricas bastante diversas, suprimindo a ideia de modelos filosóficos sistêmicos.307 Nas palavras do autor, [...] Na geração anterior ainda havia um discurso técnico da filosofia profissional – os grandes sistemas de Sartre ou dos fenomenólogos, a obra de Wittgenstein, a filosofia da linguagem comum ou analítica –, à margem do qual ainda se podia distinguir aquele discurso bem diferente das outas disciplinas acadêmicas (...) Hoje em dia, cada vez mais, temos um tipo de escrita simplesmente chamada de “teoria”, que é, ao mesmo tempo, todas e nenhuma dessas coisas. Esse novo tipo de discurso, geralmente associado à França e à chamada teoria francesa, torna-se então amplamente difundido e marca o fim da filosofia enquanto tal.308 Assim, o surgimento dessa nova configuração teórica é visto por Jameson como mais um sintoma significativo da cultura pós-moderna. Ele coincide com o processo de “suplantação gradual do hegemônico existencialismo sartriano” pelo “estruturalismo”, ou ainda, “por uma variedade de novas tentativas teóricas que compartilham pelo menos uma única experiência fundamental – a descoberta do primado da Linguagem ou do Simbólico”.309 Duas “viradas filosóficas” contribuíram para isso: 1) a crise do cânon dos grandes escritos filosóficos (semelhante a das obras de arte modernistas) e a “morte do sujeito filosófico” (tal como encarnada na figura de Sartre e sua defesa da vocação política do filósofo nos anos 1960); e 2) o momento pós-estruturalista (associado a nomes como Foucault, Deleuze e Derrida), com o surgimento gradual de uma novo arsenal teórico baseado no código linguístico, que buscava dar forma e expressão aos novos objetos e sujeitos sociais até então não-conceituados pelos modelos anteriores. 310 Com essa transformação, o próprio caráter dos textos teóricos mudou radicalmente: a relevância destes passam a não decorrer mais de uma “inserção nas questões e debates da tradição filosófica”; ao contrário, passam a exprimir a atividade de Cf. Jameson, F. “‘Fim da arte’ ou ‘Fim da história’?”. Em: A virada cultural, p. 143. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 19. Jameson também toma como exemplo a obra Michel Foucault: “deve ser chamada de filosofia, história, teoria social ou ciência política?” (Ibidem, pp. 19-20). 309 Jameson, Periodizando os anos 60, p. 90-94. 310 Retomando suas avaliações sobre o estruturalismo em The Prison-House of Language, Jameson novamente avalia como esse giro para a linguagem na teoria contemporânea está relacionado com as próprias condições concretas do momento, já que o “bombardeio de informações e mensagens de todos os tipos na revolução dos meios de comunicação de massa” produzido pela revolução tecnológica nos anos 1970 foi filosoficamente acolhido e conceitualmente expresso por meio dos códigos da linguagem. (Jameson, Periodizando os anos 1960, pp. 99-100). 307 308 113 se gerar novos “códigos” a partir de códigos preexistentes, a prática de misturar arbitrariamente múltiplas alusões disciplinares, de forma que sua coesão se desfaz e “suas referências ‘intertextuais’ básicas” tornam-se aleatórias: “Mumford ao lado de Antonin Artaud, Kant com Sade, filosofia pré-socrática, o presidente Schreber, um romance de Maurice Blanchot, escritos de Owen Lattimere sobre a Mongólia e um sem-número de obscuros tratados médicos do século XVIII, escritos em latim”.311 Com isso, opera-se “uma dinâmica em que já não há ideias, e sim textos”; a filosofia – como sistema coerente de problemas que visava “a descoberta de uma verdade” – é substituída pela teoria, que “concebe sua vocação (...) como luta acerca de formulações puramente linguísticas”, numa “perpétua guerra de guerrilha entre os significantes materiais de formulações textuais”. 312 Assim, a preocupação de se contribuir para o conjunto de questões de um dado sistema filosófico ou visão de mundo é trocada por uma batalha entre “discursos teóricos” e códigos ideológicos, que seriam “a marca de adesão a um grupo, vista de uma perspectiva diferente, mais sociológica”.313 Para Jameson, essa multiplicação de códigos sociais e jargões disciplinares seria, portanto, no fundo, um fenômeno político, similar a adesão às múltiplas perspectivas da etnia, gênero, sexualidade, etc., pelas micropolíticas. 314 2.4.4. Um novo estágio do capitalismo A partir dessas considerações, pelas quais buscou relacionar as mudanças que ocorreram nos diferentes níveis sociais a partir dos anos 1960, Jameson então finaliza a sua periodização histórica, agregando às observações políticas, culturais e teóricas o exame das transformações que ocorreram na esfera econômica nesse período, que, em última instância, seriam os elementos decisivos para sua argumentação em defesa de uma ruptura histórica. Para isso, o autor apresenta a hipótese de que um conjunto de eventos aparentemente não vinculados entre 1972-1974 sinalizavam não só o encerramento definitivo dos anos 1960, como uma reestruturação geral no âmbito do modo de produção 311 Ibidem, p. 103. Ibidem, p. 105. 313 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 391. 314 Cf. Ibidem, p. 44. 312 114 capitalista.315 Entre os acontecimentos destacados por Jameson estão: o declínio do movimento de massa pacifista e antibelicista após a retirada das tropas norte-americanas do Vietnã em 1973; o gradual afastamento das formas políticas associadas a maio de 1968, cujo ápice foi a assinatura do “programa comum” entre o Partido Comunista e Partido Socialista na França em 1972; a crise no movimento negro, devido ao esgotamento da ideologia do nacionalismo cultural baseada nos modelos do Terceiro Mundo; a ofensiva dos intelectuais associados ao establishment, com ataques ideológicos à cultura e política dos anos 1960; a esquematização de uma nova estratégia global para a afirmação dos interesses dos Estados Unidos e do Primeiro Mundo, após o fracasso no Vietnã; a emergência do conceito de “corporação multinacional”; a militarização dos regimes da América Latina, após o golpe no Chile em 1973, etc.316 Mas o episódio mais decisivo teria sido a própria crise econômica mundial iniciada em 1973, responsável por colocar um “ponto final à expansão econômica e à prosperidade características do pós-guerra e dos anos 1960 em particular”. 317 Nesse ponto de sua periodização, Jameson se apoia na síntese feita por Ernest Mandel em O capitalismo tardio. No livro, Mandel identifica a existência de três momentos fundamentais da história do capitalismo, “cada um marcando uma expansão dialética com relação ao estágio anterior”: capitalismo de mercado (1846-1890), capitalismo monopolista ou imperialista (1890-1945) e capitalismo tardio (a partir de 1945), sendo as duas primeiras correspondentes à teorização de Marx e Lenin, respectivamente.318 Tal modelo histórico-econômico baseia-se na teoria dos “ciclos de Kondratiev”, ou das “ondas longas” de desenvolvimento capitalista, cada uma correspondendo a uma duração de aproximadamente 50 anos, e envolvendo a alternância de momentos de expansão, superprodução, recessão e recuperação econômica, ou seja, de aceleração/expansão e desaceleração/contração periódica de produção de mercadorias e acumulação de capital. Na interpretação de Mandel, portanto, a história do capitalismo em escala global é formada por uma sucessão de movimentos cíclicos (ao todo, quatro ondas longas desde 315 Cf. Jameson, Periodizando os anos 1960, pp. 119-120. Ibidem, p. 116. 317 Segundo Jameson, outro marcador econômico-chave seria a recessão na Alemanha Ocidental em 1966 e, um ano depois, em outros países avançados, em particular os Estados Unidos, que marcaria uma ruptura secundária também por volta dos anos 1967-1968. Cf. Ibidem, p. 211. 318 Cf. Ibidem, pp. 122. 316 115 o século XVIII), cada uma correspondendo uma mutação específica pela qual o sistema teria se renovado: 1) o período compreendido entre o final do século XVIII a 1847; 2) da crise de 1847 ao começo de 1890; 3) de 1890 até a Segunda Guerra Mundial; e 4) após a Segunda Guerra Mundial. Além disso, tais momentos corresponderiam a quatro saltos qualitativos em termos tecnológicos da produção, que permitiram aumentos decisivos na taxa de lucro e outras vantagens fundamentais, exploradas e esgotadas até o ciclo se encerrar e outro começar em seu lugar: o primeiro referente à expansão gradual da máquina a vapor (artesanal) nos ramos mais importantes da indústria dos países industrializados; o segundo, à generalização da máquina de motor a vapor (a qual Mandel identifica como a primeira revolução tecnológica); o terceiro (referente a segunda revolução tecnológica), caracterizado pela aplicação generalizada do motor elétrico e de combustão; e por fim, o último ciclo, marcado pela terceira revolução tecnológica da computação, pela energia nuclear e mecanização da agricultura. Com isso, Mandel sugere que, desde seu surgimento, o sistema capitalista teve que se rejuvenescer diversas vezes, nos momentos em que suas engrenagens entraram em crise – ou seja, devido à suas próprias contradições internas, já que, como Marx já havia denotado, o impulso de maximização de lucros vem sempre acompanhado pela superprodução, queda tendencial da taxa de lucro, etc. –, e que um dos principais meios desses rejuvenescimentos foi justamente a inovação tecnológica e a abertura de novos mercados, de forma que cada um dos momentos de transmutação do sistema foi necessariamente acompanhado por revoluções tecnológicas e pelo alargamento de seu alcance e de seu domínio, que por sua vez possibilitou a exportação de seus mecanismos para áreas mais extensas do mundo. Em sua periodização, Jameson se apropria exatamente da análise que Mandel faz sobre a última onda de expansão capitalista, pois, segundo ele, expõe uma versão marxista sobre o conjunto de fenômenos que eram geralmente considerados pelas teorias pósmarxistas “como demonstração do fim do capitalismo “clássico” teorizado por Marx”.319Assim, Jameson incorpora a definição de capitalismo tardio para defender o começo de uma nova ordem social no período pós-guerra, não no sentido pós-industrial ou pós-capitalista, mas como uma forma mais pura e homogênea de capitalismo, mais perto da descrição de Marx, reforçando como “uma coisa pode ao mesmo tempo mudar 319 Ibidem, pp. 122-123. 116 e permanecer a mesma, pode submeter-se às mais impressionantes mutações e expansões e ainda se constituir como a operação de uma certa estrutura básica e persistente”. 320 Por intermédio de Mandel, Jameson retoma, portanto, um dos aspectos fundamentais da análise de Marx sobre o capitalismo: sua tendência e sede incessante por expansão. Nesse sentido, assume a descrição de que, no terceiro estágio de desenvolvimento do capitalismo inaugurado no pós-guerra, esta expansão prodigiosa do capital atinge um grau nunca antes visto, penetrando áreas que até então não haviam sido atingidas pelo sistema. Além disso, também retoma a função exercida pela guerra, como uma solução capitalista que salvou momentaneamente o sistema da depressão econômica na metade do século XX ao precipitar a destruição em massa de capital sobreacumulado, e o papel central do investimento em inovações tecnológicas, que representaram um salto em relação ao período industrial anterior, e a partir do qual os Estados Unidos passam a assumir um papel proeminente de liderança global. 321 A partir disso, Jameson, então, generaliza as definições de Mandel nos seguintes termos: [...] o capitalismo tardio em geral (e os anos 60 em particular) constitui um processo em que as últimas zonas remanescentes (internas e externas) de pré-capitalismo – os últimos vestígios de espaço tradicional ou não transformado em mercadoria dentro e fora do mundo avançado – são agora finalmente penetradas e colonizadas por sua vez. O capitalismo tardio pode portanto ser definido como o momento em que os últimos vestígios de natureza que sobreviveram ao capitalismo são finalmente eliminados: a saber, o Terceiro Mundo e o inconsciente. Os anos 60 terão sido então o momentoso período de transformação em que essa restruturação sistêmica se fez em escala global. 322 Jameson, portanto, privilegia dois aspectos principais em sua apropriação particular do conceito de capitalismo tardio. Na forma como utiliza, o termo corresponde, em primeiro lugar, ao fato do capitalismo ter se tornado um sistema total após operar a Jameson, F. “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. Em: A virada cultural, p. 270. 321 Nesse sentido, Jameson atribui a Mandel “o mérito de dar conta da rápida recuperação do capitalismo, algo que o próprio Marx já havia sugerido nos Grundrisse (mas que é menos evidente no próprio Capital) e que repetidas vezes desconcertou os prognósticos da esquerda (imediatamente após as duas Guerras Mundiais e, novamente, nas décadas de 1980 e 1990)” (Jameson, F. “Cultura e capital financeiro”. Em: A virada cultural, p. 223). 322 Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 124. 320 117 colonização final dos últimos enclaves pré-capitalistas remanescentes – o Inconsciente e a Natureza – de forma a fazer com que nada mais passasse a existir “fora do sistema”.323 Os dois eventos que teriam tornado isso possível seriam a “Revolução Verde”, que foi responsável por reduzir definitivamente a Natureza ao status de mercadoria ao destruir a agricultura pré-capitalista (substituindo as práticas tradicionais de cultivo pela aplicação de novos métodos, com o uso de fertilizantes químicos e experimentações genéticas com plantas); e a indústria cultural que, em decorrência da “ascensão das mídias e da indústria da propaganda”, teria finalmente penetrado todas as instâncias da consciência humana. 324 Com isso, a expansão global da forma mercadoria e a ambição crescente do capital de abarcar cada vez mais esferas da vida social em seu processo de desenvolvimento teriam atingido seu ápice. A colonização destas áreas até então resistentes a lógica mercantil representaria o episódio final, de forma a tornar o sistema capitalista mais total do que nunca.325 É nesse sentido, portanto, que Jameson apresenta a ideia de que se trata de um estágio mais “puro” do capitalismo, pois este está mais próximo da anatomia desenhada por Marx do que as próprias sociedades ainda semi-industriais e semi-agrícolas de sua época.326 323 Nesse sentido, o processo de colonização dos últimos enclaves pré-capitalista torna, segundo Jameson, mais que atuais as próprias premissas de Adorno sobre o “sistema total”, com o sentimento de enclausuramento diante da crescente teia contínua de tecnologias da mídia, das corporações multinacionais, etc.. A diferença é que, comparado ao tempo de Adorno (que presenciou o período de transição do moderno para o pós-moderno), esse sentimento teria se tornado mais completo no momento em que escreve Jameson nos anos 1980, já que neste parece ter desaparecido a possibilidade moderna do Outro, como fora antes a Natureza e o Inconsciente. Cf. Jameson Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 100. 324 Ibidem, pp. 61-62. Como já apresentava em Marxismo e Forma, “quando todo o sistema financeiro, com suas projeções no governo e nos setores militar e judiciário, depende, para sua própria existência, da venda automática dos produtos que não mais correspondem a qualquer espécie de necessidade biológica ou social, e que são, além disso, idênticos uns aos outros na maioria dos casos, a psicologia de mercado obriga-o a completar sua conquista do mundo, atingindo até as últimas áreas privadas da vida individual, a fim de despertar as necessidades artificiais em torno das quais gira o sistema. (...) a propaganda, a pesquisa de mercado, a testagem psicológica e uma multidão de outras técnicas sofisticadas de mistificação completam agora uma planificação total do público, e encorajam a ilusão de um estilo de vida enquanto disfarçam o desaparecimento da subjetividade e da vida privada no sentido antigo. Enquanto isso, o que sobre do sujeito, com suas ilusões de autonomia e suas satisfações empobrecidas, suas imagens de felicidade cada vez mais reduzidas, não é mais capaz de distinguir entre a sugestão externa e o desejo interno, é incapaz de traçar uma linha entre o privado e o institucionalizado, e acha-se portanto inteiramente entregue à manipulação objetiva” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 34-5). 325 Jameson também recorrentemente usa o termo subsunção, usada por Marx no Capital e por demais autores do marxismo ocidental, para designar esse processo pelo qual, aos poucos, a lógica do capital coloniza todas as esferas da vida. 326 Cf. Jameson, “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. Em: A virada cultural, p. 270. “O capital, como Marx mostrou nos Grundrisse, tende necessariamente em direção ao limite máximo de um mercado global, que é, também, a sua situação de crise final (uma vez que nenhuma outra expansão é então possível); essa doutrina nos é hoje muito menos abstrata do que foi no período moderno, ela designa uma realidade conceitual que nem a teoria, nem a cultura podem mais adiantar para uma agenda futura” (Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 116-117). Assim, a descrição de Marx da lógica interna do sistema capitalista e de sua capacidade específica de se 118 Além disso, na acepção de Jameson, o termo capitalismo tardio representa, em segundo lugar, o fim do imperialismo e sua substituição por um novo modelo de dominação, o neocolonialismo. De acordo com o autor, com a “Revolução Verde” e a exportação agressiva do modelo de modernização norte-americano aos países de Terceiro Mundo, o capitalismo mudou “a relação com suas colônias, transformando um controle imperialista ultrapassado em penetração de mercado, destruindo as antigas comunidades de aldeia e criando um contingente de mão-de-obra assalariada e um lúmpen-proletariado inteiramente novos”.327 Assim, as lutas anticoloniais e o processo de descolonização que aconteceram nessa época na verdade não acarretaram somente o fim de um dado tipo de dominação, mas a criação de um novo modelo, o que revela como a visão de que os anos 1960 teriam significado o rompimento dos tipos de amarras do imperialismo clássico é na verdade uma “simplificação mítica”, pois com o encerramento das lutas por emancipação nacional, o capitalismo produziu uma combinação paradoxal entre descolonização e neocolonialismo, renovando sua prática imperialista.328 Com efeito, de um modo geral, a noção de capitalismo tardio é usada por Jameson para nomear uma nova fase de expansão e reestruturação global da ordem social capitalista a partir do pós-guerra. Para o autor, isso significou a perversa dissipação das celebrações emancipatórias e do sentimento de liberdade e possibilidade amplamente partilhado nos anos 1960. Na verdade, essa nova fase do capitalismo se caracterizaria justamente pelo esforço de neutralização e proletarização de todas as forças sociais e formas de resistência cultural liberadas no período anterior, incorporando-as na própria lógica do sistema. O marco, nesse sentido, foi a recessão mundial de 1973, momento em que o capitalismo não lidava mais com nenhuma forma de resistência significativa, de maneira a datar o fim definitivo do moderno.329 Além do surgimento do neocolonialismo, as universidades (um dos focos da nova esquerda estudantil) passaram por um processo de privatização a partir dessa data; o Estado teve seu poder repressivo renovado; e o reconhecimento das diferentes identidades, a celebração do prazer e dos novos costumes, totalizar, que foi inicialmente escrita a partir de um âmbito local, o da Inglaterra, se tornou de fato universal em nossos dias, já que o próprio Marx não estava analisando somente o capitalismo específico de sua época, mas a lógica e as tendências gerais deste sistema. 327 Jameson, Periodizando os anos 60, p. 123. 328 Ibidem, p. 92. O fracasso das lutas por libertação nacional “mostra como o sentido de liberdade e possibilidade dos anos 1960 foi, ao mesmo tempo, uma realidade objetiva e uma ilusão histórica, ou melhor, “um processo propriamente dialético em que “liberação” e dominação combinam-se inextricavelmente” (Ibidem, p. 124). 329 Cf. Ibidem, pp. 122-123. 119 bem como as reivindicações por liberação do corpo, tornaram-se precisamente meios de manutenção do sistema de consumo, de propaganda e da cultura de massas, despertando desejos capitalistas com novos produtos e novas imagens de anúncios.330 Assim, a lógica mercantil, que por princípio atua pela produção de novas necessidades e demandas, encontrou na retórica do pluralismo e das diferenças um novo meio de se expandir. 331 A estrutura de consumo em massa passou a responder à diversidade das estruturas de opressão (classe, gênero, etnia, nacionalidade), criando novos nichos de mercado. Apesar da certa sensação de enclausuramento causada por essa descrição, Jameson também acredita que o novo momento aberto pela crise econômica no começo dos anos 1970 foi uma espécie de solução para a “crise do marxismo”: se este foi considerado “falso” durante o “período de uma proliferação de novos sujeitos da história”, ele necessariamente volta a ser verdadeiro “quando as sombrias realidades da exploração, da extração da mais-valia, da proletarização, e a resistência que a isso se opõe sob a forma da luta de classes, lentamente se reafirmam numa nova e ampliada escola mundial como a que parece hoje estar em processo”.332 Assim, não se poderia falar em “crise do marxismo”, sem considerar antes a própria crise do capitalismo daquele momento, que fez com que muitos autores se voltassem com olhar renovado aos temas clássicos desta perspectiva em meio às tentativas de se compreender as novas tendências do desenvolvimento capitalista que estavam por emergir. Por fim, a partir desse conjunto de caracterizações, Jameson de certa forma argumenta que a centralidade adquirida pela cultura a partir dos anos 1960 é a característica definidora do capitalismo contemporâneo. Para o autor, ela é tão crucial em termos econômicos e ideológicos para o sistema, quanto foi a manufatura industrial ao capitalismo em estágios anteriores. E foi com a perda de autonomia da cultura que o capitalismo passou a operar e se estruturar por meio de uma nova dominante cultural, o pós-modernismo. Desse modo, o famoso deslocamento atribuído ao marxismo ocidental das preocupações tradicionais com a economia política para a cultura se justifica na obra de Jameson pelo fato de que as modificações na esfera cultural são para ele um ponto de 330 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 328. Cf. Jameson, F. “Pleasure: a Political Issue”. Em: The Ideologies of Theory, p. 373; Jameson, Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 215-216. 332 Jameson, Periodizando os anos 1960, p. 126. 331 120 vista privilegiado para compreender o funcionamento do sistema capitalista como um todo. Ou melhor, porque, com a penetração e generalização da forma-mercadoria para todas as instâncias da vida, um dos traços característicos do período moderno – a diferenciação dos níveis sociais – é dissolvida na pós-modernidade, de forma que economia e cultura tornam-se coexistentes. 333 Nesse sentido, o autor passou a defender uma análise que não procede a separação das esferas cultural e econômica; em sua concepção, uma descrição infraestrutural deve ser necessariamente uma descrição cultural, e vice-versa, num “circuito de realimentação”, de forma que a noção de pósmodernismo traz sempre embutida a de capitalismo tardio.334 [...] Dizer que meus dois termos, o cultural e o econômico, se fundem desse modo um no outro e significam a mesma coisa, eclipsando a distinção entre base e superestrutura, (...) é o mesmo que sugerir que a base, no terceiro estágio do capitalismo, gera sua superestrutura através de um novo tipo de dinâmica. E isso (...) parece nos obrigar, de antemão, a tratar os fenômenos culturais no mínimo em termos de business, se não nos termos da economia política. 335 Por isso, para Jameson, o pós-modernismo não é uma categoria estritamente cultural: o termo é usado para nomear um estágio no desenvolvimento capitalista em que a produção cultural passa a ter um lugar específico no modo de produção. 336 Ao utilizálo, portanto, leva necessariamente em conta as transformações estruturais, como o surgimento de um novo sistema de mercado mundial, a nova divisão internacional do trabalho, o desenvolvimento tecnológico, as novas formas de inter-relacionamento das mídias, computadores e transportes, etc. 337 Com isso, reforça a ideia de que tudo se tornou sistêmico e que, portanto, todos os elementos da vida social estão de alguma forma interconectados. 333 Jameson baseia-se, nesse sentido, em Luhmann: "A modernidade, como nos foi ensinado por Luhmann, consiste em uma crescente diferenciação, na relativa autonomização de toda uma gama de níveis e atividades sociais de uma para outra: a "liberação" da cultura do sagrado, por exemplo, ou a "liberação" da política da ética. " (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 117). 334 Cf. Ibidem, p. 18-19. 335 Ibidem, p. 25. 336 Cf. Jameson, A virada cultural, p. 81. 337 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 22-23. 121 2.5. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio338 Em Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, Jameson dá continuidade a sua proposta de periodização, aplicando um método de análise que alia mais fortemente análise histórica e crítica cultural, priorizando agora a atmosfera dos anos 1980. Ou seja, o autor passa a abordar o pós-modernismo em sua forma final e não mais o rastreamento das condições e eventos históricos que precisamente o tornaram possível.339 Os anos 1980, além de representar o surgimento de um novo universo cultural – o “mundo dos fones de ouvido e de Andy Wahrol, dos fundamentalistas e da Aids, dos aparelhos de ginástica e da MTV, dos yuppies e de livros sobre o pós-modernismo, cabelos punk e cortes escovinha estilos anos 50, a ‘perda da historicidade’ e o éloge da esquizofrenia, as mídias e a obsessão com o cálcio e o colesterol, a lógica do ‘choque do futuro’ e os esquadrões contra-insureição como novos tipos de grupos sociais” –,340 são vistos, mais especificamente, como o momento de falência da celebração “da liberação do corpo, do desejo e dos sentidos que tinha sido um dos ‘ganhos’ principais das batalhas dos anos 60”, de forma que o pós-modernismo deveria ser entendido, segundo Jameson, justamente como um "substitutivo para os anos 60, e a compensação por seu fracasso 338 Pós-modernismo constitui a última parte da penúltima subdivisão de um projeto maior de Jameson, intitulado A poética das formas sociais. Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 25. Nesse livro, Jameson adiciona à suas exposições anteriores sobre o tema do pós-moderno considerações mais detidas sobre o problema da interpretação, da utopia, do modernismo e da historicidade. Na presente análise, iremos privilegiar sobretudo as discussões presentes no primeiro capítulo “A lógica cultural do capitalismo tardio”, onde estão localizadas sua análise programática do pós-modernismo, e a conclusão. 339 Nessa caracterização sobre a forma final que o pós-modernismo assumiu nos anos 1980, Jameson expõe como os “discursos teóricos” pós-modernos corresponderiam à caracterização dada por Adorno ao positivismo: “o que Adorno chamava positivismo é precisamente o que hoje chamamos pós-modernismo, apenas num estágio mais primitivo (...) O positivismo se torna pós-modernismo quando, como a filosofia no antigo paradigma, se realiza e portanto abole a sim mesmo (...) se trata de um nominalismo e, como tal, quer reduzir-nos ao presente empírico (ou usar o presente empírico como único padrão para imaginar outras situações e outros momentos temporais (...) O pós-moderno, nesse sentido, é a realização e a abolição do liberalismo, o qual, não mais sustentável como ideologia e como valor, mais do que o conservadorismo tradicional, pode funcionar de modo mais eficaz após sua própria morte como ideologia, realizando-se em sua forma mais tradicional como um compromisso com o sistema de mercado que se tornou mero senso comum, e não mais um programa político” (Jameson, O marxismo tardio, p. 319-322). Nesse sentido, o pós-modernismo também corresponderiam precisamente as características do que Adorno chamou de nominalismo, já que também está relacionado a nomeação de uma ordem social absoluta que reprime o pensamento crítico (Jameson, The aesthetics of singularity. New Left Review, 92, March-April, 2015, p. 127). 340 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 375. 122 político", tornando-se “a sequência, ou continuação ou realização, do episódio do “fim da ideologia” dos anos 50”.341 Segundo sua narrativa dos fatos: [...] Talvez, de fato, o que se segue após uma autoconsciência de geração tão forte, como a experimentada pelo “pessoal dos anos 60”, é, no mais das vezes, um grande desnorteamento. (...) Mesmo a ilusão da festa à fantasia de que falava Marx – vestir as fantasias dos grandes momentos do passado – não é mais possível nesse período a-histórico da história. A combinatoire das gerações parece ter se quebrado no momento em que se confrontou com a seriedade da historicidade e o autoconceito bem diferente de “pós-modernismo” tomou seu lugar”.342 A hegemonia discursiva conquistada pela thatcherismo e pela reaganismo, representaria, nesse sentido, o auge desse processo de dissipação de energias, combinando [...] a naturalização de um conjunto de dogmas econômicos (os orçamentos devem ser equilibrados, a produção deve ser “eficiente”) com a convicção, agora aparentemente universal, de que “o socialismo não funciona”, uma convicção a que se chegou (como Stuart Hall nos mostrou à saciedade) através de lutas discursivas, reforçadas pela desintegração, especialmente nos próprios países socialistas, de qualquer concepção clara do que deveria ser o socialismo e de como ele deveria funcionar. Entretanto, penso que, em vez de relegar a questão a um silêncio envergonhado, este seria o momento exato para discuti-la publicamente”.343 Assim, no Pós-modernismo, Jameson aperfeiçoa sua caracterização da mudança considerável de temperatura que houve entre os anos 1960 e 1980 para chegar numa síntese mais bem-acabada do pós-modernismo como “dominante cultural” do capitalismo. Para isso, no entanto, teve que ajustar alguns aspectos frouxos de sua formulação anterior, sobretudo após ter recebido diversas críticas à sua utilização do termo capitalismo tardio. 2.5.1. O problema da base econômica 341 Ibidem, p. 19; 264; 271. Ibidem, p. 301. 343 Ibidem, p. 220. 342 123 Alguns teóricos familiarizados com a obra de Mandel – como Mike Davis – notaram uma discrepância na junção promovida por Jameson entre a sua proposta de periodização cultural e o modelo histórico-econômico de Mandel, já que, para este, o termo capitalismo tardio designa um novo estágio do desenvolvimento capitalista iniciado após a Segunda Guerra Mundial, enquanto Jameson situa a emergência do pós-moderno entre o final dos anos 1960 e começo dos 1970, momento que se dava justamente o esgotamento da onda econômica que o conceito de Mandel designava.344 Ou seja, para Davis, existiria um equívoco na teoria de Jameson, na medida em que ele contraditoriamente define o surgimento do pós-modernismo por meio de duas referência incongruentes: o período pós-guerra (capitalismo tardio) e a efervescência cultural da década de 1960-1970. A questão colocada, então, seria a de como Jameson conseguiria estender o uso do conceito de capitalismo tardio para entender as manifestações do pósmodernismo que vieram posteriormente? Ou melhor, como e por que, mesmo identificando o fim da última onda longa iniciada em 1945 na crise de 1973, Jameson continuaria a usar o termo capitalismo tardio para suas análises posteriores? Com isso, qual seria, no final das contas, o momento primordial para a periodização do pósmodernismo? Na sua introdução ao Pós-modernismo escrita nos anos 1990, Jameson tenta responder a essa objeção, focalizando no problema da relação entre estrutura e superestrutura e na necessidade de precisar melhor as datas históricas que para ele levaram o pós-modernismo a se tornar uma dominante cultural do capitalismo. Para isso, Jameson busca, em primeiro lugar, distinguir-se de uma explicação causal e mecânica da relação entre economia e cultura. Baseado no conceito de semi-autonomia de Althusser, o autor explica que de fato existiriam dois níveis não sincrônicos em sua periodização: o da estrutura (o sistema econômico) e o da superestrutura (privilegiando o problema da “estrutura de sentimento”, tal como posto por Raymond Williams). Ou seja, para Jameson, apesar de sempre convergirem numa totalidade, tais instâncias estariam sujeitas a se mover em diferentes velocidades, de forma que a tarefa de periodizar um momento histórico sempre exige a apreensão desse movimento desigual. 344 Em seu artigo Urban renaissance and the spirit of the postmodern, Mike Davis retoma o fato de que o livro de Mandel foi originalmente publicado em 1972 (e, portanto, poderia cobrir somente a onda de crescimento rápido do pós-guerra), e argumenta que em seus escritos subsequentes Mandel considera a ruptura real, o final definitivo da onda longa, em 1974-1975. Cf. Davis, M. Urban renaissance and the spirit of postmodernism. New Left Review, n. 151, May-June,1985, p. 107. 124 No caso da periodização histórica do pós-modernismo, existiria uma distinção entre o aparecimento gradual das precondições de uma nova estrutura e o momento em que elas se consolidam de fato em termos culturais. Além disso, a aparente discrepância de sua periodização aconteceria pelo fato de a própria consciência a respeito de um novo sistema acontecer sempre de forma intermitente e fragmentária, de maneira que os sintomas de crise e ruptura econômica se apresentam num primeiro momento desconectados e num ritmo diferente do aparecimento de novas formas de expressão cultural.345 Ou seja, Jameson esclarece que sua periodização está de fato baseada numa diferença de temporalidade entre o surgimento e a consolidação das mudanças processadas na economia e na cultura no período pós-guerra. Este último teria representado uma preparação econômica para o surgimento gradual do pós-modernismo cultural em 1960.346 Desse modo, o autor parte da sugestão de Mandel de que os prérequisitos tecnológicos básicos para o advento do capitalismo tardio estavam dados no final da Segunda Guerra Mundial, mas que, culturalmente, as precondições se dão posteriormente, na grande ruptura geracional e nas transformações sociais e psicológicas dos anos 1960. 347 Os anos 1960 teriam sido, assim, um passo do amadurecimento da cultura pós-moderna, com o senso de ruptura produzido a partir da explosão de novas práticas artísticas, que se cristalizaria efetivamente nos anos 1980. Assim, Jameson esclarece os pressupostos de sua periodização, designando que o “novo momento do capitalismo pode ser datado, nos Estados Unidos, a partir do súbito desenvolvimento pós-guerra, ou seja, ao final da década de 1940 e início da década de 1950 (...) A década de 1960 é em muitos aspectos o período-chave de transição”. 348 O ano de 1973 seria, nesse sentido, o momento final em que as mudanças dos dois níveis em 345 Cf. Jameson, op. cit., p. 23. “Desse modo, a preparação econômica do pós-modernismo, ou do capitalismo tardio, começou nos anos 50, depois que a falta de bens de consumo e de peças de reposição da época da guerra tinha sido solucionada e novos produtos e novas tecnologias (inclusive, é claro, a da mídia) puderam ser introduzidos. Por outro lado, o habitus psíquico de uma nova era exige uma quebra radical, fortalecida por uma ruptura de gerações, que se dá mais propriamente nos anos 60” (Ibidem, p. 23). 347 Essa ideia corresponderia a noção apresentada em O inconsciente político de “revolução cultural” na escala do próprio modo de produção. 348 Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 20. Em outro momento, Jameson já havia definido o período de transição como aquele em que se dá um amplo sentimento de “liberdade histórica”, tal como é visível nos anos 1960: “A liberdade histórica, com efeito, expandindose e contraindo-se junto com as próprias condições objetivas, parece nunca ser maior do que em tais períodos de transição, quando o estilo de vida ainda não assumiu a rigidez de um estilo de época, e quando há uma súbita libertação do velho sem qualquer obrigação correspondente para com o que virá em seu lugar” (Jameson, Marxismo e forma, pp. 39-40). 346 125 questão – cultural e econômico – se cristalizam (crise do petróleo, o fim do padrão-ouro internacional, o fim das "guerras de libertação nacional" e o começo do fim do comunismo tradicional).349 Com efeito, a partir dessa definição, a periodização de Jameson sobre o pósmodernismo passa a se pautar mais precisamente em quatro momentos fundamentais: 1) o momento de preparação econômica para o surgimento do pós-modernismo no pósguerra (surgimento do capitalismo tardio); 2) o período de transição dos anos 1960, com o aparecimento gradual das primeiras manifestações pós-modernas na cultura; 3) o momento de mudança de natureza do capitalismo enquanto sistema e modo de produção a partir da crise de 1973, a partir do qual há a cristalização das mudanças tanto na esfera econômica quanto cultural; 4) o momento propriamente de consolidação e auge do pósmodernismo nos anos 1980. 350 Com isso, pode-se dizer que Jameson faz ajustes e esclarecimentos importantes, mas que ainda não dão conta de esgotar por completo os problemas implicados no seu uso de categorias para nomear o momento econômico. Nota-se que, sobretudo em suas primeiras investidas no tema do pós-modernismo, o autor usa de forma ambígua e imprecisa diversos termos, algo evidente especialmente em seu hábito de equiparar conceitos distintos como se fossem sinônimos. Jameson, por exemplo, frequentemente se refere ao próprio termo de capitalismo tardio como equivalente ao de capitalismo multinacional, sociedade de consumo, sociedade da imagem e da informação, etc., desconsiderando, portanto, a especificidade que cada um destes conceitos carrega. 351 Ao 349 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 24. Além disso, nessa toada, Jameson aproveita para esclarecer que a forma como utiliza a expressão capitalismo tardio também é diferente daquela empregada pela Escola de Frankfurt, apresentada algumas vezes de forma variada como sinônimo de “sociedade administrada” ou “capitalismo estatal”. Para o autor, hoje, tais termos possuem implicações diferentes, já que os fenômenos aos quais se referiam – como a expansão do setor estatal e a burocratização – já teriam se tornado algo “natural” na vida contemporânea. Mas o que realmente diferenciaria o uso de Jameson do termo em relação ao empregado pelos teóricos alemães (consistente, segundo ele, com a noção de Lenin do "estágio monopolista" do capitalismo) não seria meramente a “emergência de novas formas de organização das empresas (multinacionais, transnacionais)”, mas, acima de tudo, a existência de um sistema capitalista mundial “fundamentalmente distinto do antigo imperialismo”. Segundo Jameson, seria, portanto, correto afirmar que capitalismo tardio designa características de um novo sistema cujas características incluem “a nova divisão internacional do trabalho, a nova dinâmica vertiginosa de transações bancárias internacionais e das bolsas de valores (incluindo as imensas dívidas do Segundo e do Terceiro Mundo), novas formas de inter-relacionamento das mídias (incluindo os sistemas de transportes como a conteinerização), computadores e automação, a fuga da produção para áreas desenvolvidas do Terceiro Mundo, ao lado das consequências sociais conhecidas, incluindo a crise do trabalho tradicional, a emergência dos yuppies e a aristocratização em escala agora global” (Ibidem, pp. 22-23). 351 Um exemplo dessa ambiguidade se faz presente, por exemplo, quando confessa que “capitalismo tardio” não é seu “slogan favorito” e somente o mantém por uma questão ideológica (já que seria o melhor termo 350 126 mesmo tempo, talvez isso expresse o que realmente consiste a proposta de Jameson: uma análise do capitalismo a partir das superestruturas, ou uma crítica cultural do capitalismo, num momento em que, segundo ele, o cultural se transformou em econômico, e viceversa. Ou seja, a atenção primordial de suas análises está de fato na descrição dos fenômenos culturais, embora muitas vezes não deixe claro quais são e como ocorrem exatamente as mediações entre as duas instâncias. Assim, parece que uma saída melhor para a discrepância evidenciada por Davis entre a periodização de Mandel e a de Jameson está na explicação de David Harvey, em A condição pós-moderna. Este compartilha da análise de Jameson de que transformações estruturais significativas ocorreram na esfera econômica a partir da segunda metade do século XX. Além disso, defende, igualmente, que estas não constituiriam uma ruptura definitiva com o modo de produção capitalista, como sugeriam as teorias da sociedade pós-industrial; entretanto vai além ao complementar e ajustar o quadro de Jameson, associando o surgimento das práticas culturais e subjetivas adjacentes ao termo pósmodernismo a uma descrição mais precisa do processo de transformação no modelo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra. Para Harvey, o advento do pós-modernismo estaria situado na década de 1970, mais especificamente, na crise do petróleo de 1973, momento em que o longo boom econômico do pós-guerra teria chegado ao fim. Com esta crise, desencadeou-se um processo de reestruturação produtiva do capitalismo, de modo que o fordismo foi substituído por um novo regime de acumulação mais “flexível”, bem como por um novo ciclo de compreensão do espaço-tempo na organização do capitalismo.352 Essa nova forma de acumulação forneceria, assim, na visão de Harvey, a base da cultura pós-moderna, com o surgimento de uma subjetividade ligada à desmaterialização do dinheiro, ao caráter efêmero das moedas, à instabilidade econômica, além das próprias experiências urbanas que estão no cerne da vida nas grandes cidades disponível para que suas análises continuassem alinhadas e identificadas ao campo da esquerda, em contraposição ao espectro de direita que passaram a dominar o debate), e que, por isso, passou a usar também outros sinônimos como “capitalismo multinacional”, “sociedade do espetáculo”, “sistema mundial”, etc. (Idem, ibidem, p. 21). Sobre essa confusão de termos, Jameson diz em uma entrevista mais recente: “Devo dizer que não me importo com o que as pessoas chamam essas coisas. Me parece que todo mundo reconhece algum tipo de ruptura pós-moderna, seja qual for o nome que elas dão, que aconteceu por volta dos anos 1980, na era Reagan/Thatcher, com o advento da desregulamentação econômica, a nova reputação da globalização, e assim por diante. Eu ainda a chamo de pós-modernidade porque ela parece marcar o fim do moderno em todas as maneiras, desde tecnologias de comunicação e indústria até as formas de arte” (Jameson, F; Baumbach, N.; Young, D.; Yue, G. Revisiting Postmodernism: an interview with Fredric Jameson. Social Text, 127, v. 34, n. 2, pp. 143-160, Junho 2016b, pp. 143-144). 352 Cf. Harvey, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992, p. 8. 127 com o acelerado processo de urbanização. 353 Assim, Harvey atribui o advento do pósmoderno em termos econômicos não à extensão de ondas longas de reprodução do capital, mas à transição na natureza da acumulação de capital, isto é, a transição de um modelo de produção fordista, com seu sistema rígido de acumulação, para um sistema flexível na década de 1970 e 1980. Dessa forma, a divisão de Harvey do capitalismo pós-guerra em dois períodos (fordista e pós-fordista), no qual 1973 é um momento divisório, parece mais produtiva para uma periodização do pós-moderno do que a de um capitalismo tardio pós1945. O que diferencia a análise de Jameson da análise de Harvey seria justamente o lado da crise econômica dos anos 1970 em que cada um situa as bases econômicas para o advento do pós-modernismo – enquanto Jameson identifica-o antes do estouro da crise de 1970, Harvey localiza-o a partir da crise. Ainda no debate sobre as formulações que dão base às suas análises, Jameson apresenta em Pós-modernismo uma nova maneira para narrar o momento pós-moderno do capitalismo – a ideia de “modernização completa”. Ainda partindo de Mandel, defende que o atual estágio do capitalismo deve ser caracterizado por uma modernização totalmente implantada, tendo em vista que este não encontra mais obstáculos précapitalistas para superar: [...] a longo prazo, o moderno triunfa sobre e aniquila completamente o velho: a natureza é eliminada juntamente com o velho campo da agricultura tradicional; até os monumentos históricos sobreviventes, agora limpos, tornam-se simulacros brilhantes do passado, e não sua sobrevivência. Agora tudo é novo, mas, pela mesma via, a própria categoria do novo perde seu sentido e torna-se agora algo como um remanescente modernista.354 A situação descrita por Jameson, nesse sentido, é de que o conflito típico da época moderna, do “novo” versus o “arcaico”, não seria mais um paradigma específico de nosso tempo. A modernidade como “desenvolvimento desigual”, marcada pela coexistência dialética de diferentes temporalidades (o pré-capitalista e o capitalista, o artesanal e o industrial, a comunidade e a sociedade, o rural e o urbano), ou melhor, como 353 354 Cf. Anderson, As origens da pós-modernidade, pp. 93-4. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 315. 128 “modernização incompleta”, teria sido superada, contrariando, assim, a tese sugerida por Habermas da modernidade como um projeto inacabado. Na visão de Jameson, passamos a viver numa sociedade mais homogeneamente modernizada, em que todos os traços residuais arcaicos que restavam de uma economia mais antiga – a agricultura, os camponeses, as pequenas unidades de negócio, o comércio pequeno-burguês, o artesanato –, bem como as próprias noções modernas de temporalidade, historicidade, profundidade e memória, desapareceram, e em que as formas de produção foram definitivamente subordinadas ao sistema efêmero do mercado, das multinacionais, as novas tecnologias comunicacionais e de transporte, etc.. Assim, ao descrever o projeto de moderno como completo, o autor também enfatiza que a modernização em seu sentido clássico não é mais possível (ou ainda, que a industrialização e o modelo de produtividade moderno tornaram-se anacrônicos), tendo em vista a mobilidade extraordinária de capital pelo mundo, a nova indústria de alta tecnologia, a descolonização, a maior atração do capital por novas oportunidades pósmodernas de investimento e pela tecnologia cibernética, etc. 355 Ou seja, trata-se de uma sociedade onde o processo de modernização foi completamente implementado, sem se deparar mais obstáculos para superar, produzindo um tipo de formação social mais moderna do que a própria modernidade foi capaz de produzir.356 Nesse sentido, pode-se dizer que a época moderna foi superada para que o capitalismo atingisse um patamar superior de desenvolvimento. Nota-se, portanto, que os argumentos de Jameson evidenciam uma visão do centro do capitalismo, já que os sinais de uma “modernização completa” não são tão evidentes nos países periféricos. Desse ponto de vista, o conceito de “desenvolvimento desigual e 355 Isso fica mais claro ainda quando Jameson cita a obra de Robert Kurz, avaliando que no atual momento da “pós-modernidade pós-industrial”, o modelo clássico de modernização se tornou obsoleto, não somente porque “suas taxas de lucro são muito mais baixas que o que se pode obter na alta tecnologia, como também a velocidade das novas transferências internacionais torna bastante mais fácil para o capital móvel escapar às águas morosas das fábricas mais antigas e se teletransportar para a frente em arranjos mais atraentes” (Jameson, O marxismo realmente existente, p. 100). 356 Ou seja, “Tudo chegou à mesma hora no grande relógio do desenvolvimento ou da racionalização (ou pelo menos foi o que se deu segundo a perspectiva do ‘Ocidente’)” (Ibidem, p. 313-314). Perry Anderson descreve, igualmente, esse processo de “modernização completa”: “Depois de 1945, tinha definitivamente acabado em todos os países a velha ordem semiaristocrática ou agrária, com tudo o mais que compunha seu séquito. A democracia burguesa finalmente se universalizara. Com isso, alguns laços críticos com um passado pré-capitalista soltaram-se bruscamente. Ao mesmo tempo, o Fordismo chegou com força total. A produção e o consumo de massa transformaram as economias da Europa Ocidental segundo o figurino norte-americano. Já não poderia haver a menor dúvida quanto ao tipo de sociedade que esta tecnologia consolidaria: instalara-se agora uma civilização capitalista opressivamente estável, monoliticamente industrial” (Anderson, Modernidade e revolução, p. 10). 129 combinado” inegavelmente é ainda o mais apropriado, pois a economia mundial capitalista, como um sistema articulado, certamente continua pautada na existência de áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas. O mais prudente, portanto, é avaliar a formulação de Jameson como uma tendência geral da expansão do capitalismo, vista de seu centro, e não como uma realidade imediata global. Além disso, na imagem homogênea projetada pela ideia de “modernização completa”, em que a natureza foi definitivamente dominada e a sociedade se tornou, portanto, completamente “humanizada”, a cultura passa a ocupar um papel central. Em suas palavras, na pós-modernidade, a natureza foi definitivamente eclipsada e a cultura se tornou uma “segunda natureza”. 357 Com isso, Jameson reforça, então, sua noção de “explosão da cultura” e a avaliação de que, no atual estágio do modo de produção, ela adquire proeminência como elemento de legitimação da acumulação capitalista. Mais do que nunca, o sistema dependeria de uma lógica cultural para o seu funcionamento e reprodução, seja na condição de um ramo da economia (a indústria cultural, a grande mídia, etc.), ou ainda como marco de todo um conjunto de comportamentos e valores sociais, novos tipos de consumo, moda e obsolescência planejada.358 2.5.2. Os sintomas sociais pós-moderno Além de ajustar aspectos frouxos de sua formulação, Jameson intensifica seu trabalho de crítica cultural. Pois as evidências de todas essas mudanças narradas pelo autor em sua periodização histórica do terceiro estágio de desenvolvimento do capitalismo estão, para ele, representadas nos produtos culturais pós-modernos. Assim, os diagnósticos de Jameson sobre a passagem da modernidade à pós-modernidade e os sintomas sociais produzidos pelo desenvolvimento cada vez mais avassalador do capitalismo em termos objetivos e subjetivos são extraídas do trabalho crítico de exame dos exemplares das teorias e produções culturais da época (cinema, arquitetura, artes visuais, literatura, música etc.), enquadrando-se novamente no esquema construído em O Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 13 e 61. “O outro de nossa sociedade é, nesse sentido, não mais a Natureza, como o era nas sociedades pré-capitalistas, mas uma coisa diferente” (Ibidem, p. 60). 358 Cf. Ibidem, p. 30. Segundo Jameson, os mecanismos da inovação e a criatividade estéticas passaram a ter uma função estrutural essencial no capitalismo diante da necessidade incessante de produzir novas mercadorias para consumo com uma aparência cada vez mais nova. Assim, as imagens, as representações e os mecanismos próprios à esfera cultural se tornaram uma área de atuação fundamental da produção, visível a partir da importância que assumiram a propaganda, a mídia, a indústria cultural no mundo atual. 357 130 inconsciente político em que os produtos culturais têm a capacidade de servir como um índice e como uma imagem alegórica de uma época, algo ainda mais intensificado na pósmodernidade já que esta de certa forma aumentou a identidade entre arte e estrutura do capitalismo.359 Em seu Pós-modernismo, Jameson analisa, por exemplo, as obras de Andy Warhol, o Hotel Bonaventure, o gênero de “filmes nostalgia” (como Guerra nas Estrelas, de Georg Lucas), a produção literária do escritor E. L. Doctorow, o pensamento de JeanFrançois Lyotard, etc., o que constata uma dilatação profunda do espectro das análises de em relação a suas obras anteriores, sobretudo devido à avaliação de que a literatura não constituía mais a forma central da cultura capitalista. 360 Ao selecionar esses exemplares para análise, Jameson, contudo, nota que eles não são “ilustrações” por excelência do pósmodernismo, pois, diferentemente do período moderno, que existiam “obras-primas” e cânones exemplares, no momento pós-moderno estes são substituídas por “textos” que não possuem mais exatamente uma lógica comum. 361 Assim, a partir da operação interpretativa do inconsciente político dos textos e objetos da cultura, oferece uma exposição dos principais traços constitutivos da cultura e da teoria pós-modernas, que podem ser entendidos como os da própria sociedade capitalista em seu terceiro estágio de desenvolvimento: 1. a falta de profundidade, presente tanto na superficialidade da argumentação dos teóricos pós-modernos como na cultura da imagem. Na teoria, ela está representada nas práticas discursivas sincrônicas que repudiam modelos de compreensão histórica e, portanto, flutuam na superficialidade do presente; na arte, ela não é apenas metafórica, mas também física e visual, como demonstram suas análises da arquitetura pós-moderna, que suprimem noção de dimensionalidade. 359 Ibidem, p. 35 e 93. O vídeo, nesse sentido, teria se tornado a forma de arte por excelência do capitalismo tardio: “É voz corrente que toda era é dominada por um gênero, ou forma privilegiada, cuja estrutura parece ser a forma mais adequada para exprimir suas verdades secretas” (Ibidem, p. 91). Ele substitui o papel antes cumprido pela literatura e cinema, tornando-se a forma de arte ou médium que melhor expressa as características do pós-modernismo (relação espaço-tempo, simulacro, poder da imagem, etc.) e o atual estágio de desenvolvimento tecnológico da sociedade contemporânea (computador, informação, etc.), que foi, inclusive, o que o tornou possível (Ibidem, p. 99). 361 Cf. Ibidem, p. 101. 360 131 2. o enfraquecimento da historicidade e a presentificação, definido como a falta de percepção do presente enquanto história, cuja maior manifestação é traduzida pelo conceito de “consciência esquizofrênica” (a falta de clareza do sujeito em relação ao passado-presente-futuro)362 e na dificuldade de imaginação de um futuro radicalmente diferente; 3. o surgimento de um novo tipo de matriz emocional, a partir do esmaecimento dos afetos, profundamente relacionado aos novos fenômenos tecnológicos e à ideia de “morte do sujeito”, com a transmutação dos sentimentos modernos de alienação, anomia, solidão, ansiedade, neuroses e histerias do sujeito centrado nas “intensidades”, esquizofrenia, euforia e badtrips. Jameson identifica esse deslocamento na comparação entre a obra de Andy Warhol e o quadro O grito, de Munch: “As grandes figuras de Wahrol – a própria Marilyn ou Edie Sedgewick – , os casos notórios de autodestruição e burnouts do final dos anos 60 e a proliferação das experiências com drogas e a esquizofrenia pareceriam não ter mais quase nada em comum com as histéricas e neuróticas do tempo de Freud, ou com aquelas experiências canônicas de isolamento radical e solidão, de revolta individual, de loucura como a de Van Gogh, que denominariam o período do alto modernismo. Essa mudança na dinâmica da patologia cultural pode ser caracterizada como aquela em que a alienação do sujeito é deslocada pela sua fragmentação”363; 4. o aparecimento de mutações na experiência espaço-tempo, em que, com a configuração de um “presente perpétuo”, as experiências se tornam fundamentalmente espaciais, localizadas num “hiperespaço” (resultante da expansão contínua do capitalismo, que suprimiu as distâncias, constituindo uma 362 Na acepção empregada por Jameson, tomada de Lacan, a onipresença do tempo presente e a consciência esquizofrênica são sintomas que impedem o estabelecimento de cadeias de significação do sujeito, imprescindíveis para a produção de um senso unitário de realidade. Em consonância com Jameson, Anderson, As origens da pós-modernidade, pp. 67-8) dirá que “apagando-se num perpétuo presente, os estilos e imagens retro proliferam como substitutos do temporal”, conduzindo à “perda de qualquer senso ativo de história, seja como esperança, seja como memória”. Hobsbawm dirá “quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem” (Hobsbawm, Era dos extremos, p. 13). Em sentido semelhante, Zizek recai sobre a falta de significado histórico do presente, se perguntando: “não seria essa a condição de todos nós hoje em dia? Não estamos divididos entre a lembrança do passado histórico e o presente pós-histórico que não somos capazes de inserir na mesma narrativa com o passado, de modo que o presente é vivenciado como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente de nossa memória?” (Zizek, Multiculturalismo ou a lógica cultural do capitalismo multinacional. Em: Dunker, C.; Prado, J.L. (Orgs.). Zizek Crítico. São Paulo: Hacker, 2005 p. 301). 363 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 42. 132 rede mundial de comunicação e informação que transcende a capacidade do indivíduo de se localizar); 5. a primazia da representação e da imagem, responsável por colocar em outro patamar o fenômeno de reificação e fragmentação da consciência na contemporaneidade. Por meio de seu exame crítico, Jameson depreende, então, que tais características presentes na cultura, na arte e no pensamento pós-moderno na verdade se estendem à esfera da vida cotidiana, às experiências e vivências psíquicas dos indivíduos, senão a um certo “espírito de época” e a uma nova “estrutura do sentimento”. Ou seja, partindo do pressuposto de que há uma correspondência entre produção cultural e as mudanças no modo de produção capitalista, a esquizofrenia, a falta de profundidade, a redução da experiência ao presente imediato, o poder da imagem, da propaganda e do espetáculo, o deslocamento do tempo para o espaço, são vistas como fenômenos sociais, que contém em si traços estruturais da atual fase do capitalismo. 364 Ou seja, no fundo, para o autor, o avanço tecnológico, o crescente papel do vídeo, a presença de novas tendências do cinema, de radicais mudanças na arquitetura, na literatura, etc., revelam novos paradigmas para a compreensão da própria sociedade capitalista, entre elas a de interpretar uma sociedade em que a imagem se sobrepõe às coisas, em que os indivíduos se veem imersos na ideia de “presente perpétuo”. 365 Assim, em seu método de exposição do Pós-modernismo, Jameson a todo o momento intercala a apresentação de um inventário das principais características constitutivas do pós-modernismo com uma consideração sobre a realidade mais ampla a que elas correspondem, num modelo interpretativo que visa articular os diferentes fenômenos culturais com a realidade do capitalismo tardio. No quadro apresentado por Jameson, a predominância crescente do espaço sobre o tempo, como nova dominante sistêmica, ou ainda, como a categoria que passou a organizar com maior força a nossa experiência social, constitui o coração de suas análises da transição do moderno para o pós-moderno.366 364 Cf. Ibidem, p. 21; Musse, op. cit., p. 1. Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 44. 366 Nesse sentido, Jameson levanta uma análise diferente da abordagem de Harvey sobre o pós-moderno, na medida em que este diagnostica a compressão do tempo-espaço, a partir das novas tecnologias de 365 133 Para o autor, a temporalidade, ou ainda, a relação da sociedade com o tempo e com a historicidade, era definidora da época moderna, enraizada na experiência incompleta de modernização do capitalismo na virada do século, na qual persistia a coexistência entre o novo e o antigo. 367 Ou seja, o período moderno era pautado pela experiência de tempo heterogêneo, que combinava a busca pelo progresso, o arcaico versus o novo, a mudança permanente, as descobertas científicas, etc., de forma que a modernidade marca, do ponto de vista da experiência temporal, o momento em que as noções de passado e futuro orientam a perspectiva da história. Um índice disso são os próprios clássicos do modernismo, obcecados pelo sentido do tempo profundo, pela memória e pela duração. 368 Em contraposição, a época pós-moderna seria o último suspiro dessas temporalidades. Ou seja, ela marca o momento em que essa relação com o tempo se esgota e se volatiza: [...] o “moderno” deve agora ser rebatizado de “pós-moderno” (já que o que chamamos de moderno é a consequência da modernização incompleta e deve, necessariamente, definir-se em contraposição a um residual não-moderno, que não mais vigora na pós-modernidade enquanto tal – ou melhor, cuja ausência define esta última). (...) a temporalidade que a modernização inspirou (em suas várias formas produtivas, comunistas e capitalistas) foi eclipsada por uma nova condição, na qual a antiga temporalidade não existe mais, restando apenas uma aparência de mudanças caóticas que não passam de meras imobilidades, uma desordem depois do fim da história. 369 Assim, seguindo sua avaliação de que o momento pós-moderno se caracteriza por uma “modernização completamente implementada”, Jameson descreve que as experiências temporais se tornaram mais homogêneas, ou ainda, mais uniformemente modernizadas. Nesse sentido, com a colonização dos últimos traços pré-capitalistas, a percepção moderna sobre a história entra em crise, nosso senso de passado e futuro se esfacela, e o tempo é reduzido ao presente, ou melhor, à experiência imediata do “aqui e agora” que está ao nosso redor, o espaço. Nossa época se caracteriza, portanto, não mais telecomunicação, novos métodos de produção, novas formas de organização financeira, etc., que aceleram o tempo e contraem o espaço. 367 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 365-366. 368 Jameson, The aesthetics of singularity, p. 105. 369 Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 108. 134 por um mundo “lento e vasto, que requeria eras para ser atravessado de caravana ou caravela, um mundo de um tempo mais espesso, como um elemento viscoso”, mas pela agitação do multicultural, das grandes multidões e dos níveis de velocidades vertiginosos.370 Com efeito, de um modo geral (“nossa vida cotidiana, nossas experiências psíquicas, nossas linguagens culturais”) passam a ser dominadas pela categoria de espaço, e não mais pela de tempo, de forma que a melhor definição sobre a época pós-moderna, segundo Jameson, é denominá-la como aquela que se esqueceu como pensar historicamente. 371 Nesse sentido, o tempo não foi abolido, mas encolhido, fenômeno visível nas experiências temporais dos produtos da cultura de massa (vídeo, cinema, etc.), mas também no domínio da economia (transações financeiras) e da política (perda coletiva da historicidade, inabilidade de imaginar futuros alternativos).372 A crise da temporalidade e da historicidade no pós-moderno é também visível em termos do surgimento de uma nova subjetividade, decorrente da perda de integridade psíquica e do aprisionamento existencial ao presente. Para Jameson, a melhor forma de se designar esse processo é a maneira como o sujeito centrado foi substituído por um “sujeito esquizofrênico”, de forma que a vida psíquica se tornou uma “montanha russa” que oscila da euforia consumista à depressão. 373 Pode-se presumir, então, que esta é sua versão própria da ideia de “morte do sujeito”, entendida em termos de uma de “morte da historicidade”. Ou seja, a ênfase da descrição de Jameson do desenvolvimento de uma nova subjetividade no pós-moderno não está no fim do sujeito em termos da degradação do individualismo burguês mais antigo sob as novas condições institucionais capitalistas, como apontam outras descrições,374 mas em outros processos, como o enfraquecimento 370 Ibidem, p. 96. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 43. Segundo Jameson, é “mais seguro entender o conceito do pós-moderno como uma tentativa de pensar historicamente o presente em uma época que já esqueceu como pensar dessa maneira” (Ibidem, p. 13). Desse modo, o futuro desvanece como impensável ou inimaginável, enquanto o próprio passado se transforma em imagens empoeiradas, em pastiches. Cf. Jameson, The aesthetics of singularity, p. 120. 372 Ibidem, p. 105. 373 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 29. 374 Ibidem, p. 43. Segundo Jameson, o declínio da ideia moderna de sujeito individual é reverberada por duas descrições principais, segundo as quais a ideia de “sujeito centrado” foi descontruída em vários estágios até chegar na ideia de “morte do sujeito”: 1) a formulação historicista, segundo a qual o antigo sujeito individual burguês, tal como existia na era clássica do capitalismo competitivo e da família nuclear foi dissolvido na era do capitalismo corporativo, do homem organizacional, das burocracias, tanto nos negócios quanto no Estado, etc.; 2) a posição pós-estruturalista, segundo a qual não apenas o sujeito individual burguês não existe mais como ele na verdade jamais existiu, sendo sempre um mito ou miragem ideológica. Cf. Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 24. 371 135 da experiência fenomenológica de passado e futuro, a redução da temporalidade ao presente, do corpo como um tipo de realidade para se sobreviver à exaustão da cultura burguesa, o desfalecimento das psicopatologias típicas do sujeito individual (esmaecimento dos afetos) e a substituição destes pelo que Lyotard chama de “intensidades”. 375 Para Jameson, esse desaparecimento do sujeito centrado está representado no âmbito das artes no fim do estilo único e pessoal (isto é, daquela pincelada singular do artista, tão inconfundível como uma impressão digital, tal como presente nas obrasprimas do alto modernismo), no desaparecimento da profundidade, bem como no ofuscamento do papel antes cumprido pelos ideais coletivos e pelas vanguardas artísticas e políticas, substituídas no pós-moderno por novas práticas aleatórias.376 Esta perda do aspecto autoral e a impossibilidade de inventar novos estilos inconfundíveis, por sua vez, foi justamente o que engendrou o fenômeno de “canibalização de estilos do passado” e o jogo aleatório de alusões estilísticas que caracterizam a arte pós-moderna: “em um mundo no qual a inovação estilística não é mais possível, tudo o que resta é imitar estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos no museu imaginário”. 377 Essa é, então, a definição de Jameson de pastiche, a forma principal de pós-modernismo que se tornou dominante em todas as artes: [...] O pastiche, assim como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar e único, o uso de uma máscara estilística, o discurso de uma língua morta; no entanto, ele é uma prática neutra de tal mímica, desprovida do motivo oculto da paródia, sem o impulso satírico, sem o riso, sem aquele sentimento ainda latente de que existe algo normal, em comparação com o qual aquilo que é imitado é cômico. O pastiche é a paródia pálida, a paródia que perdeu seu senso de humor”.378 375 Jameson, The aesthetics of singularity, p. 127-128. Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 42-43. 377 Ibidem, p. 25. 378 Ibidem, p. 23. Terry Eagleton, em diálogo com a definição de pastiche de Jameson, argumenta que ainda existe um certo tipo de paródia que não é completamente estranho à cultura pós-moderna, a saber, a dissolução da arte na vida social tal como empregada pela arte de vanguarda do século XX: é “como se o pós-modernismo fosse, entre outras coisas, uma piada de mau gosto à custa desse vanguardismo revolucionário, que tinha como um de seus principais impulsos, como Peter Bürger defendeu convincentemente em seu Teoria da vanguarda, desmantelar a autonomia institucional da arte, eliminar as fronteiras entre cultura e sociedade política e repor a produção estética no seu lugar humilde e desprivilegiado, no conjunto das práticas sociais” (Eagleton, T. Capitalismo, modernismo e pósmodernismo. Crítica marxista, v. 1, São Paulo, 1995, p. 54). 376 136 Uma das modalidades de pastiche que estaria colonizando o presente cultural, nesse sentido, é o que Jameson chama de “cinema nostálgico”, abundante nas manifestações da cultura de massas. Esta categoria abarca filmes que retratam tentativas de se recuperar um “passado perdido”, bem como a atmosfera e as modas típicas de gerações anteriores.379 Entre seus exemplos, Jameson destaca o American graffiti (1973), de George Lucas (uma nostalgia dos anos 1950), bem como seu Guerra nas Estrelas (1977), que não é um filme histórico sobre o nosso passado intergaláctico, mas a experiência cultural das gerações da década de 1930 e 1950 com os seriados das tardes de sábado; além de Chinatown, de Polansky, e O conformista, de Bertolucci (ambos formas nostálgicas da década de 1930). Ao caracterizar o sujeito pós-moderno como esquizofrênico, Jameson também define o pós-modernismo como mais um estágio do processo de reificação capitalista, fruto da generalização do fetichismo da mercadoria e da expansão prodigiosa do capital e da lógica mercantil que se intensificou e atingiu novos níveis sociais.380 Para entender o novo grau de fragmentação da consciência e a perda de totalidade que isso implica, Jameson baseia-se na ideia de que o desenvolvimento do capitalismo traz formas cada vez mais sofisticadas de dominação cultural. Nesse sentido, intensifica o diagnóstico de Lukács sobre os efeitos da reificação: se no mundo moderno estes estavam atrelados, sobretudo, ao processo de mercantilização e racionalização, com a presença de um trabalho cada vez mais especializado, com operações repetitivas e de cálculo, que rompiam a relação do trabalhador com seu produto, fragmentando-o e reificando sua consciência e seu sentido de totalidade, no mundo pós-moderno, isto é, no contexto da perda de historicidade, fragmentação da subjetividade e colonização dos últimos enclaves de resistência, foi operada uma nova escala desse fenômeno, que se utilizaria também de imagens e, não exclusivamente de objetos, como suporte material. 379 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 46. Lukács, a partir de uma interpretação da obra de Marx, entende a reificação como processo específico do capitalismo moderno, decorrente do fetichismo da mercadoria ampliado para a vida social. Este se baseia no processo de generalização da forma-mercadoria e no ocultamento do trabalho alienado e das relações sociais estabelecidas na produção de mercadorias. Trata-se de um fenômeno no qual os produtos do trabalho humano se “coisificam” (tornando-se independentes e estranhos aos homens, passando a dominá-los por suas próprias leis) e a relação social dos homens assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas, tornando a consciência dos indivíduos fragmentada, com a perda do sentido de totalidade. Cf. Lukács, G. História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003 380 137 Nesse caso, o fetiche, enquanto ilusão, teria assumido como forma de existência outra ilusão, as imagens. 381 Para isso, Jameson também se baseia na definição de Guy Debord, em A sociedade do espetáculo, quando descreve a imagem como “a forma final da reificação da mercadoria”. 382 Assim, com a sociedade completamente colonizada pela reificação, a mercadoria passou a se identificar cada vez mais com sua própria imagem (marca ou logotipo), transformando-se numa imagem libidinal de si mesma, – ou, como descreve Jameson recuperando Adorno, tornando-se cada vez mais sua própria ideologia, de forma a reforçar as práticas de consumo e consumismo da vida cotidiana como extremamente funcionais na reprodução e legitimação do sistema.383 Um exemplo disso seria a propaganda: em vez de apresentar as qualidades dos produtos que querem vender, os anúncios produzidos por ela buscam apenas valorizá-los a partir da sua imagem, de forma que “os produtos à venda no mercado transformam-se no próprio conteúdo das imagens da mídia”.384 O resultado desse processo é a consolidação de um “mundo transformado em mera imagem de si próprio” (espetáculo) e uma cultura do simulacro (isto é, “a cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu”), alimentando-se, assim, um tipo de subjetividade altamente danificada, ao torná-la um “repositório de imagens e de simulacros, de tal forma que a imagem das coisas efetivamente insere agora a reificação e o estereótipo entre o sujeito e a realidade, ou o próprio passado”.385 Nessa direção, tudo na sociedade passa a ser submetido à perpétua mudança da imagem, da propaganda, da mídia, de forma que a percepção temporal também é profundamente impactada, pois o ritmo de consumo – da moda, da televisão, dos mais novos modelos de carro, etc. – , passa a ditar o tempo segundo as conveniências comerciais. 386 381 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 35. Ibidem, p. 246. 383 Jameson, F. “Architecture and the Critique of Ideology”. Em: The Ideologies of Theory, pp. 363-364. 384 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 282. 385 Ibidem, p. 45 e 143. 386 Cf. Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 104. Segundo Jameson, essa mutação do poder da imagem também analisada do ponto de vista da história da visão, que corresponde a três estágios: 1) o primeiro, ao olhar como um tema filosófico, tal como em Sartre, que o define como a confirmação do outro e da existência, ou em Frantz Fanon, que denomina o processo de dominação e sujeição pelo qual as pessoas são convertidas em coisas através do olhar; 2) o segundo, o da inovação conceitual de Foucault, que traduz o tema em termos do problema da burocratização, da classificação, da onipresença do poder, do panóptico e da transformação do olhar em instrumento de medida, tornando a ideia de “ser olhado” como um estado de sujeição universal; 3) o terceiro, o da tecnologia mediática, que transforma a questão da visibilidade num problema de imagem. Este seria, portanto, o estágio da pósmodernidade, em que a tecnologia e a mídia passam a ser “sustentáculos da função epistemológica”, e em que a produção cultural torna-se completamente visual. Nesse momento, a sociedade passa a ser 382 138 A síntese de Jameson, portanto, é que o surgimento da “consciência esquizofrênica” representa uma nova escala do fenômeno de reificação, que coloca num novo patamar o conceito marxista de alienação. Na sociedade do “fluxo total” da imagem e no mundo de aparências que ela constrói, o sujeito perdeu, então, a capacidade ativa de apreender a essência, bem como o complexo temporal e organizar as noções de passado e futuro numa experiência coerente, fenômeno que está exemplificado nas próprias produções culturais pós-modernas, que se tornaram “um amontado de fragmentos” numa prática do aleatório, bem como numa série de teorias que anunciam a ideia de estarmos vivendo um tempo singular, radicalmente distinto dos anteriores. A realidade torna-se, então, pura aparência, estética, fetichizada e libidinizada. Além disso, a transformação da mercadoria em sua própria imagem teria intensificado ainda mais o ocultamento dos traços da produção capitalista hoje, de forma que o consumidor dos produtos vendidos pelos anúncios da propaganda está cada vez mais longe de “se lembrar do trabalho que foi necessário para produzir seus brinquedos e mobílias”, e “pensar nas mulheres do Terceiro Mundo cada vez que usar seu processador de textos”.387 Assim, numa “sociedade que quer se esquecer das classes sociais, a reificação nesse sentido de embalar-o-consumidor é realmente muito funcional”.388 Ainda do ponto de vista da experiência existencial e dos efeitos da reificação contemporânea, Jameson também descreve a passagem do moderno para o pós-moderno em termos de um salto quântico de alienação da vida cotidiana nas cidades: [...] A exposição de Benjamin sobre Baudelaire, e sobre a emergência do modernismo a partir de uma nova experiência da tecnologia da cidade que transcende todos os velhos hábitos de percepção corporal, é a um só tempo singularmente relevante e singularmente antiquada, à luz desse novo e inimaginável salto quântico da alienação tecnológica”. 389 Assim, Jameson também descreve o surgimento do pós-modernismo em termos de uma nova experiência urbana, que transcende todos os hábitos, costumes e percepções completamente saturada pela cultural da imagem, de forma que o espaço utópico do olhar sartriano é extinto e a paranoia foucaultiana dá lugar à euforia e ao indivíduo bombardeado por imagens diárias. Cf. Jameson, F. “Transformações da imagem na pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 181-182. 387 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 318. 388 Ibidem, p. 318. 389 Ibidem, p. 71. 139 de mudanças constantes já registrados na Paris de Baudelaire. Nesse sentido, os principais traços que compunham a descrição da vida moderna – o “transitório”, “fugidio”, “contingente”, ou ainda, o sentimento de que “tudo o que é sólido desmancha no ar” – teriam se intensificado profundamente com o progresso tecnológico das últimas décadas (notadamente, com as novas tecnologias de informação, comunicação e produção, que passam a possuir uma escala global). Dessa forma, se os elementos que compõem historicamente a vida nas grandes cidades – o sistema de transportes, os arranha-céus, a temporalidade da mercadoria, do consumo, da troca, a demolição da memória, etc. – já eram sentidos de forma intensa pelos indivíduos modernos que presenciaram o seu surgimento, eles passaram a impactar ainda mais profundamente a sensibilidade e subjetividade contemporâneas, permeadas por um ritmo capitalista de revolucionamento das forças produtivas e do meio ambiente ainda mais incessante e exacerbado, e por uma sensação avassaladora de efemeridade e velocidade.390 A consequência fundamental disso, segundo Jameson, é justamente que tal transitoriedade passa a afetar a relação cognitiva do morador da cidade com o espaço urbano, do sujeito com a totalidade social e com a ideia de continuidade histórica e preservação do passado. A dialética criada, portanto, é a de que vivemos numa sociedade que se submete a um ritmo intenso de mudanças sem paralelos em todos os níveis da vida social, sendo que estas significam, ao mesmo tempo, uma padronização igualmente sem paralelos – dos modos de vida, da vida psíquica, das mercadorias, do espaço construído. 391 Desse modo, diferentemente do que mostra a celebração da diferença e heterogeneidade pósmoderna, a vida social e a temporalidade tornaram-se mais padronizadas e homogeneizadas, segundo Jameson. O efeito perverso disso é que a mudança se torna o seu oposto, o estático: a “persistência do Mesmo através da absoluta Diferença – a mesma rua com edifícios diferentes, a mesma cultura através de novas trocas de pele momentâneas – leva à mudanças e ao descrédito, já que, a partir de então, a única mudança radical concebível consistiria em colocar um fim à própria mudança”. 392 390 “A experiência e o valor da mudança perpétua, portanto, passam a comandar a linguagem e os sentimentos, assim como os edifícios e o vestuário dessa sociedade particular (...); nisso, o supremo valor do Novo e da inovação, tal como se entenderam o modernismo e a modernização, desaparece diante de uma corrente constante de impulsos e variações que, em seu limite último, parece estável e sem movimento” (Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 103-104). 391 Ibidem, p. 102. 392 Ibidem, p. 105. 140 Assim, o que resta à experiência dos indivíduos na pós-modernidade é a sua relação com o hiperespaço. Para Jameson, cada estágio do capitalismo produziu um tipo de espaço particular, todos resultados da “expansão descontínua, de saltos quânticos na ampliação do capital, em sua penetração e colonização de áreas até então não mercantilizadas”.393 O hiperespaço, subsequente à expansão do mercado nacional e do sistema imperialista, corresponderia, nesse sentido, às dinâmicas e às especificidades da terceira grande expansão do sistema capitalista pelo mundo. Ou seja, ele é fruto do próprio processo de modernização que aboliu as diferentes fronteiras e temporalidades existentes entre o mundo desigual do campo e da cidade (os quais permanecem senão como resquícios), produzindo um espaço mais homogeneizado, regido por uma temporalidade absoluta do tempo presente. Assim, o ponto principal para Jameson é que essa última mutação do espaço criou uma disjunção entre o sujeito o meio ambiente construído, e “finalmente conseguiu ultrapassar a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em um mundo exterior mapeável”.394 Isto é, criou-se um sistema mundial que colocou novos dilemas para se pensar a totalidade social, já que o sujeito teve uma perda considerável de sua capacidade cognitiva. Tal desnorteamento espacial é tipificado em sua descrição do Hotel Westin Bonaventure, construído em Los Angeles por John Portman. Diferentemente dos monumentos arquitetônicos do alto modernismo, que pretendiam ser um espaço utópico radicalmente separado do tecido urbano degradado, o Hotel Bonaventure é a representação de como os edifícios da arquitetura pós-moderna, a partir do princípio de 393 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 405. O capitalismo de mercado, por exemplo, correspondia a “reorganização de um espaço heterogêneo mais antigo em uma homogeneidade geométrica cartesiana”, associado ao processo de “dessacralização do mundo, (...) a lenta colonização do valor de uso pelo valor de troca, a desmistificação “realista” de tipos anteriores de narrativas transcendentes em romances como Dom Quixote, a estandardização tanto do sujeito quanto do objeto, a desnaturalização do desejo e seu deslocamento final pela mercantilização (ou, em outras palavras, pelo “sucesso”), e assim por diante” (Ibidem, p. 406). Já o espaço do capitalismo monopolista estava mais marcadamente vinculado ao imperialismo, ao sistema do colonialismo, ao modernismo, etc. Para Jameson, a reorganização do espaço que acompanhou cada estágio do capitalismo foi um processo violento, baseado na apropriação e nivelação de paisagens, na sua organização em termos do mercado, devastando-se cidades e áreas rurais e destruindo formas de posse coletiva antigas. No último estágio do capitalismo tardio, isso se traduziu na reorganização da agricultura (por meio da Revolução Verde), “que transformou, de maneira eficiente, os camponeses em trabalhadores agrícolas e as grandes propriedades rurais ou latifúndios (assim como os pequenos povoados) em agronegócios” (Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 116). Para Jameson, isso não quer dizer “que todas as áreas tenham sido igualmente modernizadas ou pós-modernizadas; ao contrário, isso significa que a tendência à mercantilização global é muito mais visível e imaginável do que era no período moderno, no qual as realidades persistentes da vida pré-moderna ainda existiam para impedir o processo” (Ibidem, p. 116-117). 394 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 70-71. 141 desconstrução desta retórica moderna (considerada “elitista”), visam a construção de obras “populares” que se confundem com a própria malha urbana e abolem a diferenciação entre ambiente interior e exterior: “eles não mais tentam inserir (...) uma nova linguagem utópica, diferente, elevada, em meio ao mau gosto e ao comercialismo do sistema de signos da cidade que os circunda, mas sim buscam falar exatamente essa linguagem, usando seu léxico e sua sintaxe, que foi, emblematicamente, ‘aprendida em Las Vegas’”.395 O hotel Bonaventure, nesse sentido, aspiraria ele mesmo “a ser um espaço total, um mundo completo, um tipo de cidade miniatura” que “não quer ser uma parte da cidade, mas, sim, o seu equivalente e o seu substituto”; o principal indício disso seria o seu revestimento de vidro espelhado que, através de seu reflexo, “repele a cidade”.396 Segundo Jameson, a consolidação desse espaço pós-moderno trouxe consequências problemáticas para o sentido de existência dos sujeitos, que passa não mais corresponder ao do corpo humano na natureza, a do individuo na comunidade orgânica dos vilarejos, ou do cidadão no Estado-Nação.397 Pois a mutação do espaço (ou seja, a mutação do objeto), não se seguiu de uma mutação subjetiva equivalente: [...] não possuímos o instrumental perceptivo para nos emparelharmos a esse novo hiperespaço (...) em parte porque nossos hábitos perceptivos foram formados naquele antigo tipo de espaço, que eu chamei de espaço do alto modernismo. A recente arquitetura – assim como muitos outros produtos culturais (...) – representa, portanto, algo como um imperativo ao crescimento de novos órgãos, que expandam os nossos sentidos e os nossos corpos até novas dimensões, ainda inimagináveis, talvez até, em última instância, impossíveis. 398 A identificação e intepretação desses dois problemas – a constituição de um hiperespaço e a questão subjetiva que este engendra – serão as bases fundamentais para a formulação de Jameson do conceito de globalização nos anos 1990. A partir deste, o autor dá continuidade às suas elaborações dos principais traços e sintomas do momento pósmoderno do capitalismo, fazendo novos ajustes em sua teoria, além de incorporar algumas novidades que o capitalismo apresenta a partir desse período. Nota-se, assim, em sua obra subsequente, o intuito de transformar os paradoxos e antinomias identificados no Pós395 Ibidem, p. 65. Ibidem, p. 33. 397 Ibidem, p. 146-147. 398 Jameson, F. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. Em: A virada cultural, p. 31. 396 142 modernismo (isto é, as oposições aparentemente irreconciliáveis entre tempo e espaço, sujeito e objeto, etc.) em contradições suscetíveis de resolução. Com isso, Jameson pressupõe que, se o atual momento é marcado por uma absoluta espacialização, então a solução para os dilemas do presente histórico também deve ser dar necessariamente através de uma matriz de explicação espacial – que, no caso, será apresentada pelos termos de globalização e mapeamento cognitivo. 143 Capítulo 3 Globalização e estratégia política Nos anos que se seguiram à publicação de Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, a obra de Jameson passou a ocupar uma posição singular no quadro das teorias sobre o pós-modernismo. Sua compreensão foi amplamente considerada como uma das mais importantes contribuições nos anos 1980, senão a primeira tentativa bemsucedida de contextualizar e abordar os diferentes aspectos implicados pelo conceito a partir de uma análise marxista. Como aponta E. Ann Kaplan, ao apresentar um ponto de vista que redirecionou a compreensão vigente do termo, seus escritos moldaram em grande medida os termos dos debates subsequentes sobre o tema, de forma que tentativas posteriores de teorização do pós-modernismo em termos políticos, sociais e econômicos, invariavelmente partiram do esquema teórico de Jameson.399 Entretanto, com a nova realidade aberta nos anos 1990, sua teoria do pós-moderno e seu esforço de colocar em prática o projeto marxista de compreensão do capitalismo ganharam novos desafios, inaugurando uma “nova fase crítica” em sua escrita.400 O colapso do comunismo e a queda do muro de Berlim, sem dúvida, foram marcos categóricos nesse sentido, enquanto episódios que impactaram não só a história do marxismo como também do próprio capitalismo, dando início a um período de expansão global da sua hegemonia, com a constituição de uma “nova ordem mundial” que superou quaisquer limites ou fronteiras. 401 Pois o fim definitivo dos estados socialistas produziu uma completa reorganização no tabuleiro geopolítico e uma reestruturação profunda da ordem capitalista, com o aumento das zonas de penetração do capital, com a consolidação de novas formas de dominação, a promoção do programa neoliberal de mercados desregulados, a implementação de novas formas de precarização do trabalho, etc.. Com isso, o capitalismo atingiu uma nova escala global, pautada por uma profunda internacionalização e mobilidade do capital, pela retirada das funções regulatórias e de 399 Cf. Kaplan, E. A. (org.). O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 17. 400 Cf. Anderson, P. “Prefácio”. Em: Jameson, A virada cultural, p. 11. 401 Cf. Wood, E. M. A chronology of the New Left and its successors, or: who’s old fashioned now? Socialist Register, v. 31, pp. 22-49, 1995a, p. 23. 144 bem-estar do Estado, pelo poder das operações financeiras e das corporações multinacionais, e em que os Estados Unidos passaram a ocupar definitivamente um papel e posição de liderança. Diante desse novo cenário, o chamado “fim da História” foi, assim, anunciado, sugerindo que o sistema capitalista não possuía mais competidores ideológicos à sua altura, e que não era mais possível imaginar um mundo substancialmente diferente do atual, pois já não existiriam alternativas plausíveis para o capitalismo, especialmente nesse seu último estágio. Mas a verdade é que essa virada “econômica” neoliberal dos anos 1990 e a nova ordem mundial decretada após a queda do Muro de Berlim também trouxe à tona várias questões do marxismo clássico, como a tendência de expansão do mercado mundial e da configuração de um mundo globalizado. Ou seja, contraditoriamente acabou renovando o valor crítico e atualizando a extensão de problemas sociais já discutidos por Marx (concentração de renda e riqueza, desenvolvimento tecnológico, a divisão do trabalho, etc.), de forma a tornar seu pensamento mais relevante nessas condições do que talvez tenha sido no caminho tortuoso do marxismo no pós-guerra.402 O período iniciado na 402 Cf. Antonio, R. (ed.). Marx and modernity: key readings and commentary. Oxford: Blackwell Publishing, 2003, p. 252; Duménil, G; Lévy, D. “Old Theories and New Capitalism: The Actuality of a Marxist Economics”. Em: Bidet, J. & Kouvelakis, S. (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 95. Como também aponta Ellen Wood, nossa época é a mais apropriada para um retorno a Marx, na medida em que “estamos vivendo um momento em que, pela primeira vez, o capitalismo tornou-se um sistema verdadeiramente universal”, sendo Marx o teórico que melhor explicou até hoje a lógica sistêmica do capitalismo (Wood, E. M. Back to Marx. Monthly Review, v. 49, issue 2, 1997b, p. 1). Entretanto, para ela, o conceito de globalização é problemático, uma noção que “mais obscurece do que revela”, pois, ao definir o presente histórico em termos da transcendência das fronteiras nacionais pelos agentes econômicos e do enfraquecimento das autoridades políticas locais, tendo em vista a expansão dos mercados, das corporações e organizações transnacionais, o movimento mais livre do capital pelas fronteiras, etc., promove uma leitura tradicional que não leva em conta a história do capitalismo (Wood, E. M. Modernity, postmodernity, or capitalism? Review of International Political Economy, v. 4, n. 3, 1997a, p. 539; 552). Para Wood, é preciso descrever a nova ordem mundial não apenas em termos geográficos, ou simplesmente em termos de expansão espacial da lógica econômica, mas como um processo contínuo de transformação social relacionada à lógica de acumulação do capital (Ibidem, p. 554). Assim, ela propõe, em contrapartida, a ideia de universalização do capitalismo: “a crescente imposição de imperativos capitalistas (...) em todos os aspectos da vida social” (Ibidem, p. 554). Nesse sentido, a nossa época seria marcada pela universalização da lógica econômica capitalista de acumulação, mercantilização, competição e maximização dos lucros, pela qual todos os aspectos da vida social são penetrados e subsumidos (a política, a tecnologia, a cultura, etc.), de forma que se houve uma grande mudança de época a partir da década de 1970, esta não representou uma descontinuidade no capitalismo, mas, ao contrário, o momento em que ele atingiu sua maturidade, de forma que esta não é uma fase do capitalismo, mas é o capitalismo. Desse ponto de vista, não há necessidade de conceitos como globalização ou pós-modernidade, pois a ideia de capitalismo basta para explicar essa nova realidade (Ibidem, pp. 557-559). Wood fala então em universalização completa, e não em modernização completa (termo que, segundo ela, também operaria uma confusão entre os aspectos que estariam relacionados ao projeto iluminista e os que tem nexo propriamente com o capitalismo), privilegiando a determinância do aspecto econômico (o fator central é a generalização da lógica econômica), e não o cultural (a lógica cultural do capitalismo), como Jameson. Além disso, Wood encara a globalização como um processo enraizado na lógica sistêmica do capitalismo e não como uma época, de forma a enfatizar as continuidades e não as descontinuidades com o mesmo. Para ela, a globalização como uma “mudança de época” tende a enxergar apenas o triunfo do capitalismo, enquanto a 145 década de 1990, portanto, significou não o “fim do marxismo”, como muitos tentaram propagar, mas antes o surgimento de múltiplas tentativas de dar continuidade a tradição de uma forma renovada. Mais recentemente, a crise aberta em 2008 também influenciou a retomada de abordagens marxistas como fonte de crítica ao capitalismo, dando continuidade ao apelo intelectual e político desta tradição em sua capacidade de interpretar a situação histórica, destacando suas contradições e propondo possíveis alternativas.403 Mas o maior desafio continuou sendo justamente a reconstrução da ligação entre análise do capitalismo e elaboração de uma política de transformação, concebendo um modelo coerente que combinasse uma autocrítica das experiências históricas do marxismo e uma crítica radical às formas de capitalismo globalizado, já que os anos 1990 significaram, como atenta Hobsbawm, também o encerramento de um ciclo político e histórico iniciado no início do século. Nesse contexto, as preocupações intelectuais presentes desde o início da trajetória de Jameson passaram por um novo processo de expansão e dilatação, que culminou dessa vez numa aliança mais forte entre crítica cultural e análise política para localizar os traços característicos de nossa época. No presente capítulo, iremos abordar dois aspectos principais que se encontram ampliados e reforçados na obra de Jameson nesse momento: o detalhamento de novas mudanças econômicas, como intensificação da financeirização da economia, a definição do capitalismo pós-1990 por meio do termo globalização e o tratamento da problemática da emancipação, que após a queda do Muro de Berlim e do anúncio do chamado “Fim da História”, passaram a exercer uma importância redobrada na tradição marxista. 3.1. O novo estágio do capital financeiro Em O marxismo realmente existente (1993), Jameson de certa forma inicia esse novo momento de sua obra ao propor que o marxismo deveria se preocupar com as novas tarefas teóricas e políticas postas pela etapa globalizada do capitalismo. Seu objetivo, nesse sentido, é o de iniciar uma agenda de defesa da relevância da perspectiva marxista visão da globalização como um “processo histórico” revela o que Marx já previa: a lógica contraditória de expansão do capitalismo (Wood, E. M. Capitalist change and generational shifts. Monthly Review, v. 50, issue 5, 1998, p. 5). 403 “Enquanto o capitalismo requer crítica, o marxismo pode ser transformado, mas é improvável que desapareça” (Hobsbawm, E. “O marxismo hoje: um balanço aberto”. Em: HOBSBAWM, E. (org.). História do marxismo – Vol. 11: O marxismo hoje (primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 63). 146 em meio aos anúncios de “morte do marxismo”, que tomaram os discursos da mídia e da esfera pública após o declínio dos regimes comunistas e da socialdemocracia, mostrando a necessidade de se travar uma “luta discursiva” que desmonte a sistemática deslegitimação dos ideais socialistas, bem como a retórica de mercado e das corporações, que se pretendiam seus substitutos.404 Para o autor, trata-se no mínimo algo bastante paradoxal [...] celebrar a morte do marxismo com o mesmo fôlego com que se celebra o triunfo final do capitalismo. Pois o marxismo é a própria ciência do capitalismo. Sua vocação epistemológica reside em sua inigualável capacidade de descrever a originalidade histórica do capitalismo cujas contradições estruturais fundamentais lhe conferem sua vocação profética e política, que não pode ser distinguida das analíticas.405 Ou seja, “a problemática essencial do marxismo continua válida na nossa época, mesmo que sua constelação pareça ter sido reorganizada”.406 O imperativo seria readequá-la aos novos desafios impostos pelo momento. No diagnóstico de Jameson, a nova expansão do capitalismo e integração de todo o planeta ao mercado mundial com o desaparecimento do sistema soviético, além de ter deixado a porta aberta para um capitalismo desregulado que já não possuía mais formas de oposição política, teria marcado a emergência de novos fenômenos nos diferentes níveis sociais (como o processo de financeirização do capital, o crescimento das corporações multinacionais, o papel da informação, etc.), aos quais o marxismo deveria estar atento.407 Nessa tônica, Cf. Jameson, F. “O marxismo realmente existente”. Em: Jameson, F. Espaço e imagem: teorias do pósmoderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004, p. 85. 405 Ibidem, p. 105. 406 Ibidem, p. 81. 407 Como também já apontava no Pós-modernismo, “Saul Landau observou, a respeito de nossa situação atual, que nunca houve um momento da história do capitalismo em que este tenha tido maior liberdade de ação ou espaço de manobra: todas as forças ameaçadoras que ele havia gerado contra si mesmo no passado – os movimentos trabalhistas e as insurreições, os partidos socialistas de massa, e até os Estados socialistas – parecem hoje em completo desarranjo, quando não efetivamente neutralizadas; por ora, o capital global parece capaz de seguir sua própria natureza, sem as precauções tradicionais” (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 412). Nesse sentido, Jameson também resgata a categoria de subsunção para descrever esse novo momento: o “capitalismo é uma forma onipresente de nossa existência, e eu diria que é a continuação do processo que foi chamado, no famoso capítulo ausente do Capital, de “subsunção”. Ou seja, tudo foi subsumido sob o capital a um grau maior do que nunca. Lembre-se que nos anos 1980 ainda havia algo como um bloco socialista, não que fosse muito bem-sucedido como uma forma de resistência ou como uma alternativa ao capitalismo; e haviam outras formas de arte ou de experiência que pareciam existir fora do sistema, que resistiam à mercantilização, porém provisória ou temporariamente. De fato, toda a estética, da noção de negativo de Adorno às ideias de subversão da 404 147 Jameson busca investigar de forma mais sólida as bases econômicas de uma “estética geopolítica”,408 e seu empenho crítico se volta para a tentativa de mapear as implicações culturais e políticas da lógica universalizante do capitalismo. Além disso, esse novo momento da obra de Jameson se deve também, em parte, ao próprio esgotamento das discussões sobre o pós-modernismo na academia. Como bem lembrado por Hobsbawm, “as modas intelectuais mudam e muda o ponto de equilíbrio no debate entre os estudiosos”, algo bastante verdadeiro em Jameson, já que a própria estrutura de seu pensamento, orientada pela crítica dialética, baseia-se invariavelmente nas referências que norteiam os debates em voga para se desenvolver. 409 E um dos novos conceitos que passou a ser utilizado de forma mais corriqueira nos anos 1990, no caso, foi o de globalização. Como expõe em The aesthetics of singularity (2015) – ensaio em que retorna à sua concepção de pós-modernismo, considerando o atual momento econômico do capitalismo, da teoria, da estética e da política em relação ao contexto inicial dos anos 1980 –, além do fato do termo pós-modernismo ter entrado em certa “obsolescência” no meio intelectual, tornando-se “antiquado” e “fora de moda” se comparado ao momento em que começou a utilizá-lo, ele promove esse deslocamento ao perceber que definitivamente não estava falando mais apenas de um estilo cultural (pós-modernismo), mas de uma estrutura social e de um novo momento histórico que teria começado por volta dos anos 1980 (a pós-modernidade).410 Como relata, esquerda, baseava-se na premissa de que poderia haver algum tipo de arte não-mercantilizada. Agora, tudo parece subsumido, nesse sentido; as pessoas parecem resignadas a ideia de que tudo é mercantilizado” (Jameson, F; Baumbach, N.; Young, D.; Yue, G. Revisiting Postmodernism: an interview with Fredric Jameson. Social Text, 127, v. 34, n. 2, pp. 143-160, Junho 2016, pp. 144). 408 Cf. Jameson, F. The Geopolitical Aesthetic: cinema and space in the world system. Bloomington: Indiana University Press, 1995b. 409 Hobsbawm, “O marxismo hoje: um balanço aberto”, p. 63. 410 Cf. Jameson, F. The aesthetics of singularity. New Left Review, 92, March-April, 2015, pp. 103-5. Segundo Jameson, “as pessoas frequentemente pensaram que minha primeira descrição era uma espécie de inventário estético de características estilísticas. Era, em parte, mas entendi isso nos termos de periodização e estrutura social. E agora percebo que teria sido muito mais claro se eu tivesse distinguido pósmodernidade como um período histórico do pós-modernismo como um estilo” (Jameson, Revisiting Postmodernism, pp. 143-144). Além disso, em termos estéticos, o que se convencionou chamar de arte pósmoderna nos anos 1980 teria se transformado, o que também justifica a mudança de uso do termo: “Minhas teorias do pós-modernismo foram desenvolvidas pela primeira vez na China, quando lecionei por um semestre na Universidade de Pekin em 1985; naquela época, era claro que havia em todas as artes um afastamento da tradição modernista, que se tornou ortodoxa no mundo da arte e da universidade, perdendo assim seu poder inovador e de fato subversivo. (...) Aquele momento – da arte que seguiu a morte do modernismo – é agora um passado antigo; mas, é ainda este estilo geral, nas artes, que as pessoas se referem quando dizem que o pós-modernismo acabou. Existe agora, com certeza, algo chamado filosofia pósmoderna (...) e até mesmo, como um gênero separado, o “romance pós-moderno”; mas as artes tornaram- 148 [...] as pessoas frequentemente pensaram que minha primeira descrição era uma espécie de inventário estético de características estilísticas. Era, em parte, mas entendi isso nos termos de periodização e estrutura social. E agora percebo que teria sido muito mais claro se eu tivesse distinguido pós-modernidade como um período histórico do pósmodernismo como um estilo.411 Além disso, em termos estéticos, o que se convencionou chamar de arte pósmoderna nos anos 1980 teria se transformado, o que também justifica a mudança de uso do termo: [...] Minhas teorias do pós-modernismo foram desenvolvidas pela primeira vez na China, quando lecionei por um semestre na Universidade de Pekin em 1985; naquela época, era claro que havia em todas as artes um afastamento da tradição modernista, que se tornou ortodoxa no mundo da arte e da universidade, perdendo assim seu poder inovador e de fato subversivo. (...) Aquele momento – da arte que seguiu a morte do modernismo – é agora um passado antigo; mas, é ainda este estilo geral, nas artes, que as pessoas se referem quando dizem que o pós-modernismo acabou. Existe agora, com certeza, algo chamado filosofia pós-moderna (...) e até mesmo, como um gênero separado, o “romance pós-moderno”; mas as artes tornaram-se desde então muito mais políticas; e na medida em que a palavra pós-modernismo designava um estilo artístico enquanto tal, certamente se tornou fora de moda nos últimos trinta anos desde que usei o termo pela primeira vez. 412 Assim, em sua reavaliação, a arte pós-moderna teria terminado; já a pósmodernidade, enquanto um período histórico correspondente ao terceiro estágio do capitalismo, e o pós-modernismo, enquanto fenômeno social, não. Entretanto, justamente no momento em que se tornou ciente dos descompassos dos termos que havia usado em suas descrições anteriores, e das possíveis formas de atualizá-las e readequá-las, […] uma nova palavra começou a aparecer, e eu percebi que esse novo termo era o que estava faltando na minha descrição original. A palavra, se desde então muito mais políticas; e na medida em que a palavra pós-modernismo designava um estilo artístico enquanto tal, certamente se tornou fora de moda nos últimos trinta anos desde que usei o termo pela primeira vez” (Jameson, The aesthetics of singularity, p. 104). Assim, para Jameson, se se entende o pós-modernismo num sentido mais restrito, enquanto estilo artístico, pode-se dizer que ele terminou; mas a pós-modernidade, enquanto um período histórico correspondente ao terceiro estágio do capitalismo, não. 411 Jameson, Revisiting Postmodernism, pp. 143-144. 412 Jameson, The aesthetics of singularity, p. 104. 149 junto com sua nova realidade, era a globalização (...). A hipótese, nesse ponto, era que a globalização era um novo estágio do capitalismo, uma terceira etapa, que seguiu aquele segundo estágio do capitalismo identificado por Lenin como o estágio do monopólio ou do imperialismo (...) a pós-modernidade torna-se então uma espécie de nova cultura global correspondente à globalização.413 Assim, Jameson não abandonou o termo pós-moderno, mas passou a entendê-lo como a face cultural de um novo termo econômico, o da globalização.414 Com isso, o autor remodela suas posições anteriores sobre o pós-modernismo, ao mesmo tempo que, à luz da nova conjuntura aberta pelos anos 1990, parte em direção à uma amplificação de sua teoria, a partir centralmente de uma meditação mais profunda das bases materiais e políticas da globalização, já que esta marcaria uma reestruturação em escala global das “formas de trabalho, suas instituições organizativas e seus conceitos”.415 O termo globalização passou, então, a ser utilizado como um “complemento” ou “substituto” ao que ele abordava em obras anteriores por meio do termo de capitalismo tardio. Apesar das ambiguidades de seu uso desse termo, pode-se dizer que Jameson se apoiava na noção de capitalismo tardio nos anos 1980 para destacar a tendência capitalista de expansão e homogeneização (que, segundo ele, teria atingido a colonização final dos enclaves pré-capitalistas); o fim do modelo de modernização clássica; uma reestruturação em torno do consumo e o desenvolvimento de uma sociedade da imagem e da propaganda, completamente culturalizada. Com o conceito de globalização, aprofunda tal análise, ao mesmo tempo em que lança um novo olhar a respeito de como o capitalismo, em decorrência de seu processo de desenvolvimento anterior, atualmente deve ser definido em termos de uma profunda espacialização, a exemplo do notório espalhamento da produção, das transações financeiras, de migração, comunicação, consumo, etc. Assim, Jameson ressalta como se trata de uma fase de acumulação que o capital não encontra mais barreiras tanto temporais (arcaico versus novo), como espaciais, num mundo agora “sem fronteiras” para o capitalismo. Nesse sentido, Jameson descreve o sistema como um vírus, “cujo desenvolvimento é como uma epidemia” que se espalha pelo globo. 416 413 Ibidem, p. 104. Jameson não usa, por exemplo, o termo neoliberalismo para nomear essa nova fase sistêmica, como o fazem outros autores, por entender que este conceito se refere mais a “uma estratégia e uma ideologia” (Jameson, Revisiting Postmodernism, p. 154). 415 Jameson, The aesthetics of singularity, p. 412. 416 Jameson, F. “Cultura e capital financeiro”. Em: A virada cultural, p. 224. 414 150 Além disso, Jameson nota em seus últimos trabalhos que, ao mesmo tempo em que há o esfriamento do uso das teorias da pós-modernidade, também houve um certo “retorno às teorias modernas” na forma de pastiche, às quais ele repudia: [...] é um fato estatístico que mais do que nunca comentadores políticos e culturais retornaram ao ideal da modernidade como algo que o Ocidente pode oferecer com sucesso às partes subdesenvolvidas do mundo (eufemisticamente chamadas de “mercados emergentes”) num momento em que a modernização é claramente tão obsoleta quanto um dinossauro. Pois a modernização, oferecida tanto pelos americanos quanto pelos soviéticos em seus programas de ajuda externa, foi postulada sobre a indústria pesada, e tem pouca relevância em uma época em que a produção, modificada profundamente pela tecnologia da informação e pela deslocalização, sofreu sua própria virada pósmoderna.417 Nessa ótica, em contraposição a um retorno a ideia de modernidade para caracterizar a atual fase de desenvolvimento do capitalismo, Jameson se utiliza do termo globalização para reforçar que ele designa um longo processo de decadências das Jameson, The aesthetics of singularity, p. 106. E m outro texto, também aponta: “Qual o significado exato que devemos atribuir a esta palavra, “modernidade”? E o que explica seu enorme prestígio hoje, em plena era que podemos, em última análise, chamar de pós-moderna, depois do fim da Guerra Fria, e do descrédito da versão ocidental e também da comunista de modernização, a saber, o desenvolvimento local e a exportação da indústria pesada? Certamente houve um recrudescimento no uso de “modernidade” – ou melhor dizendo, da modernização – no mundo todo. Será que a palavra se refere à tecnologia moderna? Se for o caso, então quase todos os países do mundo já formam, há muito, modernizados, e têm carros, telefones, aviões, fábricas e até computadores e bolsas de valores locais. Será que ser insuficientemente moderno – no sentido de atrasado mais do que propriamente pré-moderno – significa simplesmente ter pouco dessas coisas ou não fazê-las funcionar de forma eficiente? Ou será que ser moderno significa ter leis e uma constituição, ou viver como vivem as pessoas nos filmes de Hollywood? Sem me deter demasiado aqui, gostaria de aventar a hipótese de que “modernidade” é uma palavra suspeita nesse contexto, e está sendo usada precisamente para acobertar a ausência de qualquer esperança, ou telos, social coletiva depois do processo de descrédito do socialismo. Isso porque o capitalismo em si mesmo não tem nenhum objetivo social. Sair usando a palavra “modernidade” a torto e a direito, em vez de capitalismo, permite que políticos, governos e cientistas políticos finjam que o capitalismo tem um objetivo social e que disfarcem o fato terrível de que não tem nenhum” (Jameson, F. “Globalização e estratégia política”. Em: Jameson, F. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis, 2001, p. 33). Assim, Jameson critica as perspectivas que retornam à ideia de modernidade, entendendo que elas não se norteiam pela noção geral de capitalismo. Uma referência clara, nesse sentido, são os debates que tomaram os estudos pós-coloniais, a partir de tentativas de “pluralizar” a modernidade, isto é, de reconhecer a existência de múltiplas modernidades, algo dado muitas vezes sob a rubrica de “modernidades alternativas” na tentativa de derrubar o discurso filosófico etnocêntrico e ocidental dominante sobre o tema da modernidade, geralmente sob uma orientação anti-materialista que desassocia o termo modernidade da história do capitalismo. Cf. Lazarus, N.; Varma, R. “Marxism and Postcolonial Studies”. Em: Bidet, J & Kouvelakis, S. (eds.). Critical Companion to Contemporary Marxism. Boston: Brill, 2008, p. 324-325. Ao propor o termo “modernidade singular”, a tentativa de Jameson é, então, a de reassociar a categoria de modernidade à de desenvolvimento capitalista, como expresso em seu uso do termo modernização, como um processo global único. Cf. também Jameson, F. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b. 417 151 oposições modernas, dos modelos modernos capitalistas e anti-capitalistas e a inauguração de um novo momento do capital. Com efeito, um novo foco emerge na obra de Jameson: pensar como as contradições do desenvolvimento capitalista (isto é, seus aspectos negativos e positivos) estão inscritos em termos espaciais. Para essa readequação, Jameson agregou uma nova base teórica, especialmente para alimentar sua compreensão das relações entre transformações econômicas e culturais no modo de produção capitalista e aperfeiçoar sua teoria da sequência histórica dos estágios culturais realismo, modernismo e pósmodernismo: às análises de Mandel, que foram base de sua primeira formulação sobre o pós-modernismo, acrescentou a teoria de Giovanni Arrighi, exposta em O longo século XX (1994).418 Ou seja, novamente segue o procedimento de se apropriar de conceitos já existentes para ampliar a sua própria teoria. Jameson escolhe Arrighi, nesse caso, por entender que este autor lança luz sobre a questão da natureza e das formas de operação do capital financeiro, um problema cada vez mais relevante tendo em vista o crescimento da importância do mercado de ações, da especulação, etc., no mundo contemporâneo. 419 De acordo com Jameson, uma das principais contribuições de Arrighi foi entender que o desenvolvimento histórico do capitalismo não se configura numa linha reta, mas em uma espiral, na medida em que é ao mesmo tempo descontínuo e expansivo: com “cada crise, ele se altera em uma esfera maior de atividade e em um campo mais amplo de penetração, controle, investimento e transformação”.420 Nesse sentido, Arrighi mostra como o capitalismo conheceu uma série de falsos e novos começos, “incontáveis novos inícios numa escala cada vez maior”, em diferentes fases e locais, desde o surgimento da contabilidade na Itália renascentista e do nascente comércio nas grandes cidades-Estado até o momento em que os Estados Unidos tornam-se, no século XX, o centro do desenvolvimento capitalista.421 Para Jameson, uma das principais virtudes deste esquema é que ele mostra como cada um desses ciclos históricos de desenvolvimento capitalista compreendem ao todo três estágios internos, passíveis de serem sumarizados de maneira simplificada da Cf. Jameson, F. “Cultura e capital financeiro”. Em: A virada cultural, p. 230. Para Jameson, no caso dos Estados Unidos, por exemplo, “depois do desaparecimento (ou da brutal redução) da indústria pesada, a única coisa que parecia manter o desenvolvimento do país (além das duas prodigiosas indústrias americanas da alimentação e do entretenimento) era o mercado de ações” (Ibidem, p. 221-222). 420 Ibidem, p. 223. 421 Ibidem, p. 225-226. 418 419 152 seguinte forma: 1) a implementação do capitalismo numa nova região; 2) seu desenvolvimento produtivo em termos de indústria e manufatura e a saturação gradual do mercado regional; 3) “desterritorialização” do capital de seu investimento produtivo a fim de buscar a sua reprodução e multiplicação na especulação financeira – ou seja, o momento em que o mesmo capital foge para uma nova região, recomeçando o ciclo. 422 Estes estágios confirmariam, por sua vez, a fórmula D-C-D’ apresentada por Marx no Capital: o primeiro estágio interno “diz respeito ao comércio, que, de um modo ou de outro, frequentemente através da violência e da brutalidade da acumulação primitiva, gera uma certa quantidade de dinheiro para uma eventual capitalização”; o segundo, ao momento em que “o dinheiro torna-se capital e é investido na agricultura e na manufatura”, sendo, com isso, territorializado, transformando a área a ele associada em um centro de produção, e esbarrando inevitavelmente em limites, como a “queda de desempenho ou de lucro”; por fim, o terceiro estágio, referente à especulação e “à busca cada vez mais desenfreada, não tanto por novos mercados (esses também estão saturados), mas sobretudo por novos tipos de lucro, disponíveis nas próprias transações financeiras” – modos pelos quais “o capitalismo agora reage e compensa o encerramento de seu momento produtivo”.423 Segundo essa perspectiva, o capital financeiro, portanto, seria [...] o mais alto e o último estágio de cada um dos momentos do capital, aquele em que, em cada um de seus ciclos, ele esgota o seu retorno à nova zona capitalista nacional e internacional, buscando morrer e renascer em alguma encarnação “mais alta”, mais ampla e imensuravelmente mais produtiva, na qual ele está destinado a viver de novo os três estágios fundamentais da sua implantação, do seu desenvolvimento produtivo e do seu estágio final, financeiro e especulativo”.424 Jameson se apropria das análises de Arrighi para entender o capital financeiro como um momento no desenvolvimento histórico do capitalismo, cuja emergência se dá num processo cíclico, acentuado no presente histórico a partir dos resultados da revolução cibernética e da intensificação das tecnologias de comunicação, “a ponto de as Cf. Jameson, F. O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. Em: A virada cultural, p. 267-268; Jameson, The aesthetics of singularity, p. 116. 423 Jameson, F. “Cultura e capital financeiro”. Em: A virada cultural, p. 226-227. 424 Ibidem, p. 228. 422 153 transferências do capital hoje abolirem espaço e tempo, podendo ser quase instantaneamente efetivadas de uma zona nacional para outra”.425 Ou seja, entende que a predominância do capital financeiro é mais um fenômeno espacial da globalização. A partir dessas definições, tenta também desmistificar a crença de que os anos 1990 inauguraram a vitória final do capitalismo, na medida em que se trata de mais um estágio da história de seu desenvolvimento, que está sujeito, como qualquer outro, a entrar em crise pela via de suas próprias contradições. Além disso, as formulações de Arrighi servem de base para sua exposição dos sintomas culturais da emergência do atual estágio do capital financeiro, entendendo que há uma relação entre as formas de abstração características das operações financeiras e aquelas encontradas nos próprios textos culturais. Ou seja, defende que o tipo peculiar de abstração que a questão financeira envolve é também encontrado na própria abstração presente na cultura pós-moderna. Com isso, o autor aperfeiçoa sua periodização da passagem do realismo-modernismo-pós-modernismo mostrando como cada uma corresponde não só a um estágio do capitalismo, como a um tipo de abstração característico. Seguindo os apontamentos de Simmel em As grandes cidades e a vida do espírito, Jameson assinala que as forma de arte moderna, por exemplo, foram uma espécie de expressão cultural dos efeitos trazidos pelos fluxos de dinheiro e das grandes cidades do capitalismo industrial. Elas representaram “a crescente abstração e desterritorialização do ‘estágio imperialista’ de Lenin”, determinando um modo de pensamento radicalmente diferente do mundo das antigas cidades comerciais e regiões rurais.426 No período da pósmodernidade e da globalização, no entanto, essas características da abstração modernista, marcada pelos efeitos do valor de troca (que torna todos os objetos em mercadoria), do dinheiro (que nivela suas diferenças intrínsecas) e da vida moderna urbana no geral, ganham um novo patamar. O pós-modernismo, nesse sentido, representaria o novo tipo de abstração característico do terceiro estágio de desenvolvimento do capitalismo, atuando através do mesmo princípio de abstração pelo qual o capital financeiro se separa do “contexto concreto” da fábrica e dos espaços de extração e produção e flutua livremente num novo contexto – o do mercado de ações e da especulação –, gerando entidades abstratas que não dependem mais de uma referência anterior (nem a produção, 425 426 Ibidem, p. 229. Ibidem, p. 229; 240. 154 como precisa o capital, ou o consumo, como no caso do dinheiro).427 Jameson descreve, portanto, um processo similar ao fenômeno de “desreferenciação” usado anteriormente para descrever a dissociação entre significante e significado na cultura pós-moderna, só que agora descrevendo-o em termos da abstração característica do capital financeiro: para o autor, ela se encontra reproduzida nos textos culturais, cuja linguagem fragmentada e imagética, também persegue e tenta sugerir um mundo independente do real. 428 Desse modo, o objetivo de Jameson novamente é demonstrar como a análise dos itens culturais na globalização é um meio útil para mapear os traços do capitalismo contemporâneo. A arquitetura, nesse sentido, é novamente uma das fontes principais de análise para o autor, já que a partir dela é possível analisar o fenômeno equivalente ao capital financeiro no âmbito espacial: a especulação imobiliária. 429 Outro objeto peculiar da análise do autor são também os chamados “derivativos”, uma das inovações peculiares do capitalismo financeiro que têm chamado atenção dos analistas especialmente desde a crise de 2008, constituindo uma nova forma daquilo que Marx chamou de capital fictício. Para Jameson, a temporalidade dos derivativos expressa de modo único a temporalidade do capital financeiro em geral: um “evento” efêmero e singular que se orienta segundo uma expectativa de valor futuro.430 Para o autor, os derivativos também reforçam como a colonização do futuro tornou-se uma tendência fundamental do capitalismo, isto é, como o futuro tornou-se um espaço necessário em que se deposita a expectativa de realização da acumulação e especulação de capital. 431 Para ele, essa colonização contribui definitivamente para a supressão da temporalidade, tornando a globalização justamente um hiperespaço no qual o capital alcança “sua última desmaterialização, tal como mensagens que passam instantaneamente de um ponto nodal a outro, atravessando o antigo globo, o antigo mundo material”.432 A partir dessas caracterizações, Jameson, portanto, expande sua teoria social apresentada no Pós-modernismo, levando agora em consideração a nova realidade espacial da globalização e do capital financeiro e suas formas de representação na cultura. 427 Cf. Ibidem, p. 228. Cf. Ibidem, p. 254. 429 Cf. Jameson, F. “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. Em: A virada cultural, pp. 255-295. 430 Cf. Jameson, The aesthetics of singulatiry, pp. 117-9. 431 Cf. Jameson, F. “O tijolo e o balão: arquitetura, idealismo e especulação imobiliária”. Em: A virada cultural, p. 290; 298-299. 432 Jameson, F. “Cultura e capital financeiro”. Em: A virada cultural, p. 244. 428 155 3.2. O inconsciente político da globalização Além de atualizar a base econômica de sua periodização a partir da obra de Arrighi, nos anos 1990, Jameson também se apropria do conceito de globalização repetindo a fórmula crítica empregada em seu tratamento da noção de pós-modernismo: transcendendo a noção vigente do termo a partir de uma sumarização e superação dialética das demais posições que até então organizavam o debate sobre o tema. Para isso, Jameson elenca como primeiro passo a desconstrução da estrutura ideológica desse conceito “escorregadio” que é a ideia de globalização. De forma análoga ao seu ensaio Teorias do pós-moderno, apresenta em Notas sobre a globalização como questão filosófica (1998) um quadro de quatro posições lógicas possíveis para uma definição do conceito, cada uma correspondendo a um tipo de julgamento político de celebração ou rejeição da globalização (a apreciação de suas novas liberdades ou a uma postura de lamentação, a partir do desejo de retorno às glórias e possibilidades do moderno): 1) a globalização não existe, pois a atual realidade social ainda está fundamentalmente baseada nos termos dos estados-nações e das situações nacionais; 2) a globalização sempre existiu, tendo em vista que as rotas comerciais já possuem um âmbito global desde os tempos neolíticos; 3) o mercado mundial é um dos horizontes finais do capitalismo e as redes mundiais hoje são diferentes apenas em grau, e não em espécie, a momentos anteriores; 4) a globalização, associada a chamada pósmodernidade, é uma característica intrínseca ao terceiro estágio multinacional do capitalismo.433 Já de início, Jameson se identifica com a quarta acepção do termo, sem, no entanto, descartar completamente as outras posições elencadas, ao entender que é possível extrair de cada uma delas implicações teóricas e políticas, passíveis de enriquecer sua própria perspectiva, tornando-a mais completa e abrangente. Além disso, o conceito de globalização seria extremamente ambíguo, segundo Jameson, especialmente porque “ora mascara ora transmite significados culturais ou econômicos”.434 Ou seja, cada uma das versões do conceito, além de julgamentos políticos, também revelaria diferentes avaliações sobre o momento cultural e econômico Cf. Jameson, F. “Notas sobre a globalização como questão filosófica”. Em: Jameson, F. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis, 2001, p. 43-44. 434 Ibidem, p. 44. 433 156 contemporâneo. As definições que se utilizam do termo enfatizando apenas o aspecto cultural, por exemplo, caem na exaltação dos benefícios da globalização em termos de uma celebração pós-moderna da diferença e da diferenciação (relacionada aos novos tipos de liberdade conquistados pela proliferação de grupos, etnias, gêneros, etc.), por meio da qual, “de repente, todas as culturas do mundo estão em contato simpático umas com as outras em uma espécie de imenso pluralismo de que é muito difícil não gostar”. 435 Aquelas que enfatizam apenas o econômico, por outro lado, tornam a realidade bem mais obscura e opaca, de forma que o que “vem agora à tona é, mais do que uma diferença, uma crescente identidade: a rápida assimilação de mercados nacionais até então autônomos e de zonas produtivas a uma só esfera, o desaparecimento da autossuficiência nacional (por exemplo, em alimentos), a integração forçada de nações do mundo inteiro à nova divisão global do trabalho”, ou seja, um “quadro de estandardização em uma nova escala inédita de integração forçada em um sistema mundial”. 436 Para o autor, ambas as visões são problemáticas na medida em que separam os fenômenos econômicos da globalização (no caso, a intensificação das transferências financeiras e dos investimentos pelo mundo, a consolidação do mercado mundial, a emergência de padrões flexíveis e de uma nova divisão global do trabalho) dos fenômenos culturais (uma nova cultura mundial, a força da publicidade e do marketing, a exportação 435 Ibidem, p. 46. Segundo Jameson, tal posição está representada na obra do teórico mexicano Néstor García Canclini com sua concepção da globalização como uma cultura de hibridização (Ibidem, p. 59). Além disso, ela também aparece, de acordo com o autor, nos estudos latino-americanos (tomando como exemplo George Yúdice), especialmente na área da música popular (Ibidem, p. 63). Jameson exemplifica essa posição expondo uma leitura positiva feita sobre a música brasileira: “argumenta-se não só que a música local ganha das importadas ou norte-americanas, mas que, ainda mais importante, as empresas transnacionais efetivamente investem na indústria fonográfica e na música local (e, no caso do Brasil, nas redes de televisão locais). Nesses casos, então, a cultura de massa pareceria oferecer uma modalidade de resistência à absorção geral da produção local nacional na órbita das empresas transnacionais, ou, pelo menos, no caso Brasil no exemplo acima, seria uma forma de cooptação e de reversão desse movimento em favor da produção local nacional” (Ibidem, pp. 63-64). Essa argumentação se estende, inclusive, em termos econômicos: “o Brasil goza de um estatuto único por ter um enorme mercado de dimensões quase continentais, uma explicação que prefiro em detrimento das ideias tradicionais de diferença cultural, tradição nacional e linguística, e coisas do gênero, que precisam ser retraduzidas em termos materiais” (Ibidem, p. 65). Apesar do Brasil possuir de fato uma ampla diversidade cultural, é muito claro que nós não estamos isentos da colonização e importação cultural pelos Estados Unidos; pelo contrário, basta ouvir as rádios, os programas de televisão, etc., para perceber isso, pois essa influência cultural não ocorre apenas em termos de conteúdo, mas sobretudo da forma, que é importada dos modelos da indústria cultural. Apesar disso, como aponta Jameson, o aspecto positivo da produção cultural brasileira está no fato dela ainda guardar resquícios de autonomia: “no caso da América Latina, creio, a força positiva da cultura não se aplica exclusivamente à cultura popular ou de massa, mas inclui a alta cultura e especificamente a literatura e a linguagem nacionais: o samba, por assim dizer, é oposto a Guimarães Rosa, mas identificado com sua realização literária, e ambos são parte de uma cultura autônoma nacional de que é possível orgulhar-se” (Ibidem, p. 68). 436 Ibidem, p. 46-47. 157 de padrões de consumo), enquanto em realidade eles fazem parte de um mesmo processo. O resultado dessa separação é, portanto, a produção de visões incompletas e ideológicas do conceito em questão. Jameson propõe, nesse sentido, que a melhor forma de desmanchar tais posições simplesmente positivas ou negativas a respeito da globalização é justamente demonstrar a confluência que existe entre o cultural e o econômico no atual momento histórico. Assim, na perspectiva dialética de Jameson, os diferentes ângulos expostos acima não são exatamente incompatíveis do ponto de vista lógico, e por isso, sua proposta é de uma projeção de um sobre o outro: [...] a visão desastrosa da identidade pode ser transferida para o domínio do cultural: e o que se verá, à maneira desalentada da escola de Frankfurt, é a estandardização ou americanização da cultural mundial, a destruição das diferenças locais, a massificação de todos os povos do planeta. Mas você tem toda liberdade de fazer o oposto e transferir a diferença alegre e festiva e as heterogeneidades múltiplas da primeira dimensão, a do cultural, para a esfera econômica: aí, é claro, pululam os retóricos do mercado livre que tentam nos convencer, com acentos febris, das benesses e das possibilidades excitantes do novo mercado livre por todo o mundo. 437 No fundo, diferença e identidade seriam, portanto, as duas características antitéticas da globalização. Ao identificar isso, Jameson defende a necessidade de se retomar uma visão dialética que mostre como esses dois lados opostos são inseparáveis, que precisam sempre ser pensados juntos, ou seja, que o capitalismo globalizado deve ser lido relacionalmente, no esforço de entendê-lo como uno e múltiplo ao mesmo tempo.438 Assim, o autor apresenta que a descrição do atual estágio do capitalismo deve-se fundamentar no fato de que identidade e diferença não são mais uma oposição binária enquanto tal, “revelando-se sem cessar como uma unidade formada pelo encontro com seu outro pólo”.439 Mais do que isso, que elas concorrem necessariamente para uma contradição: a construção de um mundo de heterogeneidades (diferentes culturas, 437 Ibidem, p. 47. Jameson efetua, nesse sentido, um “retorno a Hegel” e à sua visão dialética dessas categorias: “começase com a identidade, diz ele, apenas para descobrir que ela é sempre definida em termos de sua diferença em relação a alguma outra coisa; volta-se à diferença e descobre-se que quaisquer ideias sobre ela envolvem ideias sobre a “identidade” dessa categoria” (Ibidem, p. 71). 439 Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 108-109. 438 158 nacionalidades, territórios, níveis tecnológicos) no coração de um dos momentos mais homogêneos do capitalismo em termos econômicos, resgatando, assim, a própria noção de subsunção de Marx, que define esse processo contraditório em que o capital constantemente absorve as heterogeneidades e as transforma em homogeneidades, ao torná-las parte do próprio sistema. 440 A partir disso, Jameson revela, então, um dos paradoxos do atual estágio do capitalismo, tendo em vista que seu processo de desenvolvimento está pautado pela padronização do espaço num mercado mundial e, concomitantemente, na celebração das diversidade nacionais. Desse modo, Jameson encontra novamente na abordagem dialética uma maneira de transcender a “aparência objetiva” da globalização, para captar os processos de identidade e diferença inerentes a ela. Tendo em vista que esta nova realidade reforça um deslocamento do temporal para o espacial (ou melhor, que ela é a situação em que a espacialização atingiu seu ápice), o autor sugere, então, uma mudança de ênfase do tempo para o espaço também nas próprias estruturas da operação dialética. 441 Recuperando Lefebvre, Jameson propõe em Valências da dialética (2009) uma nova forma relacionada às condições contemporâneas do mundo globalizado: a dialética espacial. Por meio dela, seria possível, por exemplo, realizar um mapa ideológico das diferentes regiões do mundo, permitindo que as contradições e as desigualdades estruturais do sistema capitalista fossem reveladas em termos espaciais, ou seja, na relação com o Outro, levando em consideração que os pontos de vistas nacionais são hoje propriamente responsáveis por organizar a globalização tal como a conhecemos.442 440 Cf. Jameson, The aesthetics of singularity, p. 119. Cf. Jameson, F. “The Three Names of the Dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, pp. 67-70. 442 Para Jameson, uma das questões da globalização é a possibilidade de se enxergar o Outro. Para ele, os dois primeiros estágios do capitalismo, por exemplo construíram noções de alteridade em escala mundial: o primeiro, através da competição entre economias nacionais, que fomentou a percepção de identidade nacional em oposição a outras identidades nacionais (o que se traduziu, muitas vezes, em termos de ódio e xenofobia); o segundo, a partir do sistema imperialista, que passou a colonizar o mundo em termos das diferenças entre colonizadores e colonizados, criando um novo sistema de alteridade no mundo, que passou a distinguir os modernos em relação aos ainda pré-modernos. Com o processo de lutas por emancipação nacional, esse sistema é gradualmente modificado, pois os subalternos passam a reclamar o direito de independência e de falar com a própria voz, de forma que o reconhecimento do outro passa a vivenciar uma nova transmutação. O momento da globalização, ou o terceiro estágio do capitalismo, pode ser analisado, nesse sentido, como aquele momento em que diferentes nacionalidades e línguas coexistem de uma nova forma. A subjetividade passa a ser pautada por uma paisagem mais larga de populações e culturas estabelecidas na globalização, em que os sujeitos se tornam agora praticamente anônimos, algo remediado muitas vezes pela identidade com grupos (étnicos, culturais, religiosos). A dialética entre o sujeito e a coletividade torna-se, assim, um novo dilema político na globalização. Cf. Jameson, The aesthetics of singularity, p. 128-130. 441 159 Isto, por sua vez, revelaria o próprio problema representacional da globalização: a cultura de cada país forma e apresenta sua própria imagem ideológica do presente histórico. Basta comparar diferentes realidades nacionais, como América Latina e América do Norte, para ver com a primeira, por exemplo, é vista em termos da celebração da “multiplicidade em oposição a uma unidade opressiva”; enquanto a segunda, como “uma unidade positiva contra uma multiplicidade opressiva”. 443 Mas o mais importante, é que o mapeamento desses pares relacionais possibilitaria, segundo Jameson, não só enxergar a forma como eles se determinam mutuamente, como também permite romper a “cegueira do centro”, na medida em que a globalização, quando vista do ponto de vista dos espaços excluídos, possibilitaria justamente revelar os traços mais regressivos e retrógrados do desenvolvimento capitalista, geralmente maquiados na realidade de consumo dos países avançados.444 A partir da dialética espacial, Jameson então projeta o que consiste, em sua concepção, a globalização. Nela, reforça não só a dinâmica entre identidade e diferença, entre local e global, como também seu argumento de desdiferenciação dos níveis sociais, ou melhor, que o fenômeno de transformação do cultural em econômico e do econômico em cultural atingiu um novo patamar no espaço global.445 Para o autor, isso pode ser medido de diferentes maneiras. Em termos econômicos, basta ver como a mercantilização hoje também é uma estetização, ou melhor, como as mercadorias são cada vez mais produzidas e consumidas também esteticamente: “se compram os produtos tanto por sua imagem quanto por seu uso imediato”, surgindo toda uma “indústria para planejar a imagem das mercadorias e as estratégias de venda” – a propaganda.446 Por outro lado, o estatuto adquirido pela cultura de massas no mundo contemporâneo e sua relação com o imperialismo norte-americano (que teria se fortalecido, segundo Jameson, justamente quando os Estados Unidos passaram a trabalhar o alcance econômico e político de se pensar a globalização como exportação de seus 443 Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 67. Para Jameson, isso também implica que a dialética espacial necessariamente leva em conta a relação local-global: “Nós testemunhamos hoje um jogo de influências recíprocas que ultrapassa o velho paradoxo pelo qual o centro espirra que a periferia pega uma gripe: pois muitas vezes agora essa relação se encontra invertida, e as tempestades do centro são geradas por brisas nos arredores do consumo e da riqueza. A dialética bastante repetida do global e local é certamente isto, uma dialética, embora raramente tenha sido analisada seriamente nesses termos, que envolvem o inter-relacionamento entre a totalidade e um conjunto de particularidades empíricas” (Jameson, F. “The Three Names of the Dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 67). 445 Cf. Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 50. 446 Jameson, Globalização e estratégia política, p. 22-23. 444 160 produtos culturais) seriam evidencias cabais de que a cultura também é um fenômeno profundamente econômico. Nesse sentido, basta olhar a quantidade de pessoas que assistem programas e séries de televisão norte-americanos pelo mundo; a predominância do inglês como a língua universal do “dinheiro e do poder”; a valorização dos hits internacionais produzidos nos Estados Unidos, em detrimento das produções locais, por exemplo, para compreender o poder e influência da indústria cultural norte-americana como ramo econômico; e mais do que isso, que o processo de globalização hoje se pauta por essa assimetria fundamental nas relações dos Estados Unidos com outros países do mundo, a partir de uma nova forma imperialista de atuação baseada não apenas na disputa de matérias-primas e recursos, mas em influência cultural e midiática.447 Nesse sentido, uma das teses de Jameson sobre a globalização versa justamente sobre o papel que as produções culturais passaram a cumprir no sistema capitalista mundial. O autor resgata, por exemplo, a hegemonia que adquiriu o modelo hollywoodiano de cinema e como ele também revela o fenômeno de confluência entre os níveis sociais. Segundo Jameson, até os anos 1960 e 1970, ainda existiam formas alternativas, como o cinema experimental. A hegemonia definitiva dos Estados Unidos e o crescimento do consumo das formas cinematográficas hollywoodianas consolidou o desaparecimento dessas possibilidades. Desse modo, Hollywood tornou-se não apenas uma forma hegemônica em termos formais, ou mais um negócio rentável, mas mais precisamente um instrumento de legitimação ideológica, pelo qual os interesses econômicos e a influência cultural norte-americana e seu próprio modo de vida (o American way of life) são reproduzidos em outros países, o que, novamente, só reforçou o alcance do imperialismo norte-americano.448 Ou seja, junto com a intermediação das grandes corporações multinacionais e transnacionais e dos meios de comunicação de massa (que seriam a base material dos produtos culturais em termos de reprodução e 447 Nesse sentido, Jameson resgata o esforço feito pelos Estados Unidos desde o fim da Segunda Guerra Mundial de assegurar a dominação de suas produções culturais no mercado estrangeiro por meio da inclusão de clausulas culturais em tratados e pacotes de ajuda econômica, como nas negociações e acordos da Organização Mundial do Comércio e do Acordo Norte-americano de Livre Comércio, que previam a abertura de fronteiras dos outros países para a televisão e música norte-americanas. Elas demonstram, portanto, que “os filmes e a televisão americanos são tanto base como superestrutura, são tanto economia quanto cultura, e, juntamente com o agribusiness e os armamentos, são os principais produtos de exportação dos Estados Unidos – ou seja, uma enorme fonte de renda e de lucros”. Essa necessidade da econômica norte-americana por meio da exportação de produtos culturais refletiria, por sua vez, a lógica de expansão inerente ao capitalismo, que exige constantemente um aumento de acumulação por diferentes vias. Por esse mecanismo, patentes, copyright e as propriedades intelectuais tornam-se propriedade privada projetada para ser vendida em quantidades lucrativas pela indústria cultural (Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 48-50; Jameson, Globalização e estratégia política, p. 23). 448 Cf. Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 56. 161 transmissão), o cinema hollywoodiano se transformou numa ferramenta de implementação e expansão da influencia dos Estados Unidos, consolidando seu papel ocupado hoje no sistema mundial. 449 Segundo Jameson, outra base fundamental da globalização seria a ideologia do mercado livre,450 evidente na própria política de universalização da cultura norteamericana, já que ela também esteve calcada numa retórica neoliberal da liberdade e do consumo. Para o autor, a ideologia do mercado seria uma das principais vias pelas quais o econômico passa para o nível social, ao servir de base para a criação de um modo de vida cada vez mais permeado pelo fetichismo da mercadoria. Uma de suas formas de atuação seria justamente o circuito de informação e entretenimento, que, “com uma intensidade de imagens e de mídias sem precedentes na história”, não só reforçam os estilos internacionais de consumismo e a transmissão de padrões de vida como mantém o desejo de um país de estar integrado ao mercado mundial.451 Para Jameson, a exibição de uma imagem distópica da sociedade norte-americana – em que se evidencia a polarização social, o desemprego estrutural em larga escala que não conta com uma rede de proteção de bem-social, a destruição da classe média, a alta taxa de encarceramento – seria suficiente para desmascarar essa ilusão vendida das benesses de uma sociedade em que reina o mercado livre absoluto. 452 449 Segundo Jameson, nessa tônica, pode-se lembrar, inclusive, que, historicamente, a invenção da cultura de massas foi um componente central do fordismo norte-americano que “possibilitou o federalismo, a mistura de raças e a administração da luta de classes nos Estados Unidos, em oposição ao que se deu na maioria dos outros países, foi exatamente nosso sistema único de cultura de massas e de consumo que deslocou as energias sociais em direções governadas por um consenso” (Ibidem, p. 63). 450 O pano de fundo ideológico da defesa da sociedade de mercado é o de entender esta como “algo de certo modo ‘natural’ e profundamente enraizado na natureza humana”; segundo Jameson, os teóricos do mercado “o fazem contra os esforços prometeicos dos seres humanos de tomar a produção coletiva em suas próprias mãos e, pelo planejamento, controlar ou, ao menos, influenciar e moldar o seu próprio futuro (algo que não mais parece particularmente significativo em uma pós-modernidade na qual a própria experiência do futuro enquanto tal se tornou debilitada, ou mesmo deficiente)” (Jameson, F. “As antinomias da pósmodernidade”. Em: A virada cultural, p. 122). Ou seja, essa seria a principal imagem e argumentação “contra o socialismo e o planejamento, contra a propriedade coletiva e o que é imaginado como sendo a centralização, ao mesmo tempo que servem como estímulos poderosos para que os habitantes da Europa Ocidental mergulhem nas liberdades do consumo ocidental” (Ibidem, p. 122). Para Jameson, a ideologia neoliberal pode ser vista como “um fenômeno especificamente americano”, pois ela adquire uma forma universalizante que não é identificável em nenhum outro lugar do mundo. As tradições da Europa Continental, por exemplo, “nem sempre acolheram os tais valores absolutos do mercado livre e sempre se inclinaram por algo que ele chama de “mercado social” – em outras palavras, o Estado do bem-estar e a socialdemocracia” (Jameson, Globalização e estratégia política, p. 29-30). 451 Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 56; Cf. Jameson, O marxismo realmente existente, p. 71. 452 Cf Jameson, Globalização e estratégia política, pp. 32-33. 162 Junto a essa tentativa de explorar os diferentes níveis da globalização – separandoos apenas em termos analíticos, uma vez que, como já apresentado, para o autor, o atual momento do capitalismo é um todo marcado pela desdiferenciação das esferas sociais –, para criar uma imagem totalizante do mundo social contemporâneo, Jameson também demonstra uma segunda intenção: o de extrair elementos para uma política de transformação. Nesse sentido, em Globalização e estratégia política (2000), ele reproduz o modelo de periodização já utilizado para analisar os anos 1960, explorando cinco níveis distintos de análise – tecnológico, político, cultural, econômico e social –, com o intuito de “demonstrar sua coesão, e articular uma política de resistência”. 453 Como já dito, de acordo com Jameson, todas as descrições sobre a globalização guardam inconscientemente uma narrativa ideológica mais profunda. A forma mais evidente se encontra na própria dimensão econômica, que descreve o processo de expansão dos mercados financeiros, a dependência cada vez maior ao capital estrangeiro e o poder tentacular do poder das empresas multinacionais e sua “capacidade de devastar os mercados de trabalho nacionais ao transferir suas operações para locais mais baratos em outros países e continentes”.454 No nível da tecnologia, ela se refere aos impactos das novas técnicas e da revolução da informática, e na impossibilidade “de voltar a uma vida mais simples, ou para a produção anterior ao microchip”. Na esfera política, está codificada em termos da dominação imperialista e da “subordinação de outros estadosnação ao poderio americano, seja através de consentimento e colaboração, seja através do uso de força bruta e de ameaças econômicas”.455 No nível cultural, na criação de uma cultura mundial e na “ameaça a extinção final das culturas nacionais, que só podem ser ressuscitadas em uma forma disneyficada, através da construção de simulacros artificiais e da transformação em meras imagens do que antes eram tradições ou crenças imaginadas”, ou ainda, na narrativa de que as formas locais populares ou tradicionais estão “sendo deslocadas ou emudecidas para abrir espaço para a televisão americana, para a música americana, para comida, roupas e filmes”.456 No domínio do financeiro, na incapacidade de “perceber como uma ‘desconexão’ da economia mundial poderia vir a 453 Ibidem, p. 17. Ibidem, p. 25. Nesse âmbito, Jameson menciona o discurso do eclipse das autonomias nacionais e o fato de que nenhuma nação consegue mais se “auto-sustentar”, dependendo necessariamente de uma rede de interdependência econômica: “no novo sistema internacional, poucos países podem se fechar para proceder a uma modernização em seu próprio ritmo e gosto: a maioria já entrou no circuito internacional de dívida e consumo do qual já não pode se desligar” (Jameson, O marxismo realmente existente, p. 101). 455 Jameson, Globalização e estratégia política, p. 18. 456 Ibidem, p. 18. 454 163 ser um projeto político e econômico possível – e isso, a despeito do fato de que formas de existência nacional seriamente ‘desconectadas’ floresciam há apenas algumas décadas atrás, notadamente na forma de um bloco socialista”. 457 Assim, de modo geral, o inconsciente político fundamental por detrás de cada narrativa ideológica sobre a globalização seria, segundo Jameson, justamente o receio da expansão do poder e da influência da globalização, que em muitos sentidos pode ser lido também como o receio da expansão econômica e do poderio militar dos Estados Unidos. Assim, no fundo, esses temores revelam justamente a existência de uma nova forma de dominação e de numa nova versão do imperialismo, que substituiu tanto a antiga variante correspondente à ordem colonialista no pré-Primeira Guerra Mundial (exercida por nações europeias, Estados Unidos e Japão), quanto a que emergiu após a Segunda Guerra Mundial, após a onda de descolonização e a lógica da Guerra Fria (liderada predominantemente pelos Estados Unidos, junto com alguns países da Europa Ocidental): [...] Talvez tenhamos agora um terceiro estágio, no qual os Estados Unidos adotam o que Samuel Huntington definiu como uma estratégia tripartite: armas nucleares apenas para os Estados Unidos, direitos humanos e democracia eleitoral à americana, e (menos obviamente) limites à imigração e ao fluxo livre da força de trabalho. Pode-se acrescentar aqui uma quarta e crucial política: a propagação do mercado livre por todo o globo. Esta forma tardia do imperialismo envolve apenas os Estados Unidos (e satélites totalmente subordinados ao Reino Unido) que agora desempenham o papel de polícia do mundo, e impõem sua força através de intervenções selecionadas (no mais das vezes, bombardeios de grandes altitudes) em várias zonas que eles consideram de perigo”.458 Segundo Jameson, tal descrição no fundo evoca, portanto, uma imagem que oblitera as diferenças e reforça o “triunfo irrevogável da homogeneidade espacial sobre qualquer heterogeneidade que ainda possa ser imaginada em termos de espaço global”,459 processo que pode ser enfatizando de diversas maneiras, a depender do aspecto da realidade escolhido para análise, mas todas expressando um receio fundamental sobre a globalização como um processo irreversível, como uma espécie de transmutação do medo 457 Ibidem, pp. 26-27. Ibidem, pp. 18-19. 459 Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 117. 458 164 da totalização que marcou os anos 1980: “Será que ela é realmente inevitável? Será que seus processos podem ser estancados, desviados ou revertidos? Será possível que regiões, ou até mesmo continentes inteiros, excluam as forças da globalização, separem-se ou se ‘desconectem’ delas?”.460 Mais do que o triunfo da identidade sobre a diferença, tal noção de irreversibilidade presente nas imagens ideológicas da globalização, na verdade, seria um sintoma da nossa incapacidade de imaginar um futuro alternativo. Ou seja, o ar distópico que reveste as descrições acima seria, nessa situação, um indício preciso das dificuldades de se imaginar um mundo para além da padronização global, sendo, ao mesmo tempo, resultado dessa própria realidade padronizada. Mas afinal de contas, a inquietação que fica é como se contrapor ou contrabalancear essa realidade tão avassaladora? Quais são os possíveis mecanismos de defesa contra a intensificação dos efeitos negativos da globalização? Será que a saída à “norte-americanização” e às pretensões universalistas do imperialismo cultural dos Estados Unidos deve ser, em contrapartida, nacionalista? À essa altura, portanto, é que se entra propriamente na dimensão política da dialética espacial promovida por Jameson. Segundo ele, tais visões podem ser compensadas por outras possibilidades ideológicas, e que o sistema de análises dos distintos níveis sociais, bem como a demonstração de suas interconexões, é produtivo para essa tarefa de elaboração de uma estratégia política de resistência à globalização. 461 Assim, a hipótese de Jameson parte da compreensão de que tudo depende do nível em que se localiza o problema da identidade, isto é, da “estandardização despótica” da globalização: [...] Se ela encontra na própria existência do Estado, como uma entidade nacional; então, com certeza, uma forma micropolítica de diferença, no mercado e na cultura, será ratificada em oposição ao estado e como uma força de resistência à uniformidade e ao poder (...). No entanto, quando se coloca a ameaça da identidade em um nível mais amplo, globalmente, tudo muda; nesse grau mais elevado, não é o poder nacional do estado que é o inimigo da diferença, mas o próprio sistema transnacional, a americanização e os produtos estandardizados de uma ideologia e de uma prática de consumo agora uniforme e 460 461 Jameson, Globalização e estratégia política, p. 18. Cf. Ibidem, p. 35. 165 estandardizada. Nessa altura, os estados-nações e suas culturas nacionais são de repente chamados a desempenhar o papel positivo que antes era atribuído – em oposição a eles – às regiões e às práticas locais no paradigma descrito acima.462 Nesse sentido, Jameson evidencia como cada um dos diferentes níveis sociais normalmente evoca um tipo de resposta política e formas parciais de resistência à globalização: uma política ludista ou baseada na crítica ecológica (nível da tecnologia); uma política nacionalista (nível político); a defesa do “modo de vida” (nível cultural); a crítica ao capitalismo (nível econômico); a política de coesão e solidariedade social (nível social). Para Jameson, todas elas têm seus alcances e seus limites. O Estado-nação, por exemplo, é sem dúvida um terreno concreto de luta política de resistência à globalização, à exemplo das lutas por “leis de proteção trabalhista contra a pressão do mercado livre global”, por “políticas de resistência de ‘proteção’ da cultura nacional”, por leis de patentes que protejem esta contra o “universalismo” americano, etc. 463 Entretanto, uma posição nacionalista, de forma similar àquela que se baseia numa oposição ao imperialismo norte-americano apenas em termos das culturas e identidades locais, por exemplo, pode entrar em contradição ao tomar a particularidade pela universalidade. 464 Assim, “a luta contra a globalização, ainda que possa se dar parcialmente no terreno nacional, não pode ser levada a bom termo em termos totalmente nacionais ou nacionalistas – mesmo se a paixão nacionalista (...) seja seu impulso indispensável”.465 462 Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 69. Jameson, Globalização e estratégia política, p. 38. 464 Para Jameson, o nacionalismo tornou-se uma das respostas políticas ao processo de globalização e universalização da hegemonia norte-americana. Outro exemplo dado por Jameson, nesse sentido, refere-se às formas de resistência à ocidentalização, como o fundamentalismo religioso que, após o desaparecimento do movimento internacional comunista, tornaram-se um dos tipos de oposição programática ao imperialismo cultural ocidental: “Desde o descrédito do socialismo pelo colapso do comunismo na União Soviética, apenas o fundamentalismo religioso parece ser capaz de nos oferecer um modo de vida – nos recusamos a usar a palavra estilos de vida – diferente do consumismo americano” (Jameson, Notas sobre a globalização como questão filosófica, p. 56). Cf. Jameson, Globalização e estratégia política, pp. 39-40. Assim, para Jameson, as obsessões fundamentalistas no geral são um exemplo de uma série de substitutos da utopia socialista que apareceram nesse período, os quais essencialmente “derivam da fúria e do desapontamento amargo devido ao fracasso das aspirações utópicas, e de uma profunda convicção de que uma ordem social mais genuinamente cooperativa é fundamentalmente impossível” (Jameson, O marxismo realmente existente, p. 86-87). 465 Jameson, Globalização e estratégia política, pp. 38-39. Ou seja, para Jameson, a política nacionalista sempre atinge um limite: historicamente, “o próprio objetivo da liberação nacional fracassa ao se realizar: vários países se tornaram independentes de seus antigos senhores coloniais apenas para entrar de imediato no campo de forças da globalização capitalista, sujeitos ao domínio dos mercados financeiros e aos investimentos estrangeiros” (Ibidem, p. 37). Diferentemente de uma perspectiva nacionalista, o antiimperialismo norte-americano comum em países da periferia do capitalismo, por exemplo, constituem uma oposição mais ampla ao sistema e à globalização. 463 166 Dessa forma, para Jameson, tanto a saída nacionalista, quanto aquela que opta por uma valorização da cultura local como tentativa de resistência à estandardização do sistema financeiro mundial, parecem oferecer uma espécie de solução momentânea, ao passo que uma resposta ao sistema mundial deve necessariamente levar em conta o global e o local como dois extremos de uma mesma questão. Com essa caracterização, Jameson parece reforçar então o fato de que, hoje, a nossa própria existência, apesar de globalizada, possui uma natureza essencialmente fragmentada, fundamentada numa série de realidades compartimentadas, separadas e, ao mesmo tempo, simultâneas. Para o autor, a possibilidade de reconexão delas, bem como de superação das contradições que cada uma levanta, se encontra em um certo de tipo de política, ou melhor, na possibilidade de construção de um projeto político unificado.466 E, para isso, deve-se inevitavelmente levar em conta a estrutura do atual momento do capitalismo, porque é nela que todas as realidades se reconectam, e é através dela que se chegará à tomada de consciência necessária para qualquer prática de mudança social. Assim, Jameson identifica que a força motora, tanto das formas destrutivas, quanto das formas transformadoras da globalização, reside na ideia de capitalismo, e de forma que as diferentes possibilidades de resistência política no atual momento deveriam se combinar na própria capacidade transformação desse modo de produção e exploração. A ênfase na crítica ao capitalismo, no entanto, não deve ser simplesmente econômica; “qualquer proposta puramente econômica de resistência tem que ser acompanhada por uma mudança de ênfase (que preserve ainda todos os níveis precedentes), do econômico ao social”.467 Pois, se já era uma precondição essencial para o sucesso de qualquer luta política especialmente na tradição dos movimentos trabalhistas, no momento da globalização, o ponto crucial da elaboração de uma resposta política “verdadeiramente inovadora e progressista à globalização” reside na criação de novas formas de solidariedade e coletividade.468 3.3. Mapeamento cognitivo e utopia 466 Cf. Buchanan, I. Jameson on Jameson: conversations on cultural Marxism. Durham: Duke University Press, 2007, p. 16. 467 Jameson, Globalização e estratégia política, p. 40. 468 Ibidem, p. 41. 167 Como revela a maioria de seus escritos nos anos 1990, a tentativa de se extrair uma estratégia política no momento da globalização é um dos eixos do projeto teórico de Jameson nesse período. Para o autor, a reinvenção da política (como uma reinvenção do próprio marxismo) pede, por sua vez, a reinvenção da dialética, de sua capacidade de operar conexões entre níveis aparentemente distintos da vida social e desmascarar o conjunto de “falsas aparências” que compõe o capitalismo, algo que deve ser realizado não somente pelo exercício de análise, ou pelo denuncismo moralizante, mas também por meio de um projeto político.469 Ou seja, para Jameson, é essencial que se opere aquilo que ele chama de caráter utópico da dialética, capaz de processar nossa consciência em meio ao mundo reificado e substituí-la por uma nova subjetividade, a partir da qual torna-se possível enxergar como este mundo é passível de mudanças históricas profundas e necessárias. 470 Além disso, nesse esforço, dois outros conceitos se destacam: mapeamento cognitivo e utopia. Tais noções complementam a dimensão positiva da dialética proposta por Jameson, novamente refletindo como, num momento em que o espaço substitui o tempo como dominante sistêmica, as próprias categorias também tendem a ser tornar espaciais. Nesse sentido, Jameson tem como pressuposto o problema de que a globalização trouxe novos dilemas políticos, em função do surgimento de um espaço internacional complexo, cuja compreensão demanda um novo imaginário político. Assim, apresenta as noções de mapeamento cognitivo e utopia como uma tentativa de contrastar os obstáculos trazidos por esse novo período e pensar a política em termos de espaço e de luta por espaço. Pode-se dizer que, a partir deles, o principal objetivo de Jameson é o de mapear as possibilidades de uma nova prática estética e política capaz de questionar a lógica do capitalismo globalizado, tendo em vista dois problemas políticos principais: a crise do socialismo e a possibilidade de uma subjetividade autônoma.471 Nesse sentido, os dois conceitos são usados em contraposição à crise representacional e política da pósmodernidade, cujos principais traços (falta de profundidade, esmaecimento da historicidade, etc.) dificultam o sujeito de obter recursos para a tomada de consciência, Cf. Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the dialectic, p. 65. Cf. Ibidem, p. 60. 471 Como ressalta em entrevista recente: “ainda sabemos o que significa oposição neste sistema total, ou o que poderia ‘subvertê-lo’, ou mesmo funcionar como sua crítica?” (Jameson, Revisiting Postmodernism, p. 144). 469 470 168 sobretudo no momento de espacialização da globalização, na medida em que ela criou entraves para a capacidade do sujeito de se localizar e enxergar a realidade como uma totalidade social. 472 Além disso, este objetivo faz parte daquilo que Jameson elencou como as “lutas discursivas” da nossa época, algo que para ele adquiriu centralidade após a batalha política e teórica aberta nos anos 1990 em torno da legitimidade dos ideais marxistas e socialistas, tendo em vista a propagação de slogans como o “there is no alternative”, que postulavam que as alternativas ao capitalismo definitivamente se provaram inviáveis e impossíveis. Nessa disputa, a ideologia de mercado (como sinônimo de liberdade, de consumo e de escolha) teria se apresentado como substituta da utopia socialista, e assim, do verdadeiro sentido da liberdade como o poder de se controlar o próprio destino e de ter papel ativo na vida social e coletiva. Jameson se propõe, então, a adentrar nessa luta discursiva e criar um modelo de análise para rastrear e detectar formas de resistência, com o intuito de definir uma política marxista que seja capaz de enfrentar essa situação. Com isso, também resgata o caráter propriamente utópico do pensamento dialético, para avaliar a capacidade de se imaginar futuros alternativos, sobretudo no momento do “fim da história”, que é de certa maneira a forma final do fenômeno de volatização da temporalidade e redução do tempo ao presente descrito por Jameson no Pós-modernismo. Em seus ensaios dos anos 1980, esta problemática já estava contida, só que na forma de paradoxos sem solução, em meio a sua descrição dos traços mais perversos da pós-modernidade e de sua tentativa de sistematizar algo insistematizável e historicizar algo caracterizado como a-histórico. O autor narra de forma detalhada as condições pelas quais o sujeito pós-moderno tornou-se órfão de qualquer senso ativo da história, desaparecendo a importância do passado, bem como de expectativa de futuro, em meio ao triunfo do presente perpétuo, não conseguindo, assim, perceber a totalidade do sistema 472 Para Jameson, a última mutação do espaço – o hiperespaço da globalização – ultrapassa a “capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em um mundo exterior mapeável”; essa disjunção entre corpo e ambiente construído (“que está para o choque inicial do modernismo assim como a velocidade da nave espacial está para a do automóvel”), resultaria na incapacidade de se “mapear a enorme rede global e multinacional de comunicações descentrada em que nos encontramos presos como sujeitos individuais” (Jameson, Pósmodernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, pp. 70-71). 169 ou se ver enquanto sujeito histórico. Descrevia, portanto, uma situação em que a possibilidade de distanciamento crítico a essa realidade foi virtualmente abolida: [...] Estamos submersos no que são, a partir de agora, volumes dilatados e saturados a um ponto que nossos próprios corpos pós-modernos estão desprovidos de coordenadas espaciais, incapazes na prática (e, é claro, na teoria) de se distanciarem; ao mesmo tempo, já nos referimos a como a nova expansão do capital multinacional acaba penetrando e colonizando exatamente aqueles enclaves pré-capitalistas (a Natureza e o Inconsciente) que antes ofereciam uma base extraterritorial ou arquimediana para a efetividade crítica.473 O impasse de Jameson tornou-se, então, o de como dar conta dessa prisão pósmoderna, que teria sido intensificada pelo descrédito aos discursos políticos com aspirações universais a partir dos anos 1990. Onde se encontraria a possibilidade do indivíduo de apreender a totalidade das relações sociais em que está inserido? Ou melhor, como seria possível no mundo contemporâneo a constituição de um projeto emancipatório e a possibilidade de uma subjetividade autônoma? Afinal de contas, existe algum modo de resistir a essa lógica? Jameson começa destacando, no livro Pós-modernismo, como a ausência de uma contrapartida prática que respondesse às suas conclusões sobre os aspectos mais negativos da pós-modernidade (perda de historicidade, falta de profundidade, consciência esquizofrênica, etc.) estava entre as objeções mais recorrentes à sua obra – algo bastante pertinente já que, como ele mesmo aponta, a análise dialética exige igualmente a avaliação dos aspectos progressivos do sistema mundial do capitalismo globalizado, da mesma forma como Marx e Lenin fizeram diante dos estágios do desenvolvimento capitalista em que viveram:474 [...] Pois nem para Marx, nem para Lênin, o socialismo era uma questão de volta a um sistema menor (e portanto menos repressivo e abrangente) de organização social; ao contrário, as dimensões a que chegou o capital em sua época eram entendidas como a promessa, a moldura e a 473 Ibidem, p. 74. Nas palavras de Jameson, ele começa a “corrigir o que alguns leitores consideraram (corretamente) como a falha crucial de meu ensaio programático, a saber, a ausência de qualquer discussão sobre ‘agência’ ou a falta do que prefiro chamar, na esteira do velho Plekhanov, de ‘equivalente social’ dessa lógica cultural aparentemente descarnada” (Ibidem, p. 21). 474 170 precondição para chegar a um socialismo novo e mais abrangente. Não será isso o que se dá com esse espaço ainda mais global e totalizante do novo sistema mundial, que demanda a intervenção e elaboração de um internacionalismo de um tipo radicalmente novo?475 Nesse sentido, Jameson elenca o mapeamento cognitivo como “parte integral de qualquer projeto político socialista”, sem, assim, voltar às práticas elaboradas “em situações históricas e dilemas que não são mais os nossos”; pois, para ele, a criação de um novo modelo político apropriado à situação atual deveria necessariamente levantar os problemas do espaço enquanto uma questão fundamental. 476 Desse modo, Jameson enfatiza não a noção clássica de luta de classes em seu projeto político, mas o processo de formação da consciência dos grupos que compõem essa luta inevitável. 477 Assim, propõe a noção de mapeamento cognitivo como um código para o conceito de consciência de classe.478 Pois, em sua visão, superar os problemas da globalização de maneira dialética pressupõe, principalmente, um novo tipo de consciência e a reafirmação da perspectiva marxista diante de um momento de descrença. Para isso, Jameson se inspira na obra de Kevin Lynch, The image of the city. Segundo o autor, Lynch descreve nessa obra a forma como a alienação urbana é diretamente proporcional à impossibilidade do mapeamento mental das paisagens urbanas: [...] Lynch nos ensinou que a cidade alienada é, acima de tudo, um espaço onde as pessoas são incapazes de mapear (em suas mentes) sua própria posição ou a totalidade urbana na qual se encontram (...). A desalienação na cidade tradicional envolve, então, a reconquista prática de um sentido de localização e de reconstrução de um conjunto articulado que pode ser retido na memória e que o sujeito individual pode mapear e remapear, a cada momento das trajetórias variáveis e opcionais.479 475 Ibidem, p. 76. Ibidem, p. 76. 477 Para Jameson, o momento presente exige que os marxistas deem uma atenção renovada sobre “o que a própria consciência de classe é e como ela funciona” (Jameson, F. Sartre’s Actuality. New Left Review, 88, jul-aug, 2014, p. 119). 478 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 405. 479 Ibidem, p. 77; 411. 476 171 O problema apresentado por Lynch em termos de espaço urbano teria muita convergência , segundo Jameson, com a definição althusseriana de ideologia como “representação imaginária da relação do sujeito com sua condição real de existência” (ou seja, como uma função necessária na vida social), já que, a partir dela, Althusser também enfatizou a “lacuna que separa o posicionamento local do sujeito individual e a totalidade das estruturas de classe nas quais ele está situado, uma lacuna entre a percepção fenomenológica e a realidade que transcende todo pensamento ou experiências individuais”.480 A partir dessas definições, Jameson então identifica que é exatamente essa a função que o mapeamento cognitivo deve cumprir: “permitir a representação situacional por parte do sujeito individual em relação àquela totalidade mais vasta e verdadeiramente irrepresentável que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo”.481 Assim, o mapeamento cognitivo é pensado como uma ferramenta que permite o mesmo senso de orientação e sentido de espaço que um mapa normalmente fornece. Ou seja, da mesma forma que a prática da cartografia, dos mapas e coordenadas permitem os indivíduos se localizarem nos itinerários do espaço urbano, o mapeamento cognitivo deveria conferir a eles a possibilidade de mapearem sua localização no sistema mundial, servindo de base para estabelecer conexões entre o local e o global e, assim, melhor compreender o sistema e a ação coletiva possível de transformá-lo.482 E a analogia com as questões urbanas não seria mera coincidência, já que, para Jameson, o sistema mundial também tende a um enorme sistema urbano diante do movimento homogeneizante de uma modernização completa.483 Com essas definições, Jameson, portanto, apresenta o mapa como uma solução para o problema representacional da globalização, reconhecendo que esta, enquanto uma totalidade, é irrepresentável, mas não “incogniscível”. Nesse sentido, define o mapeamento cognitivo como “uma cultura política e pedagógica que busque dotar o sujeito individual de um sentido mais aguçado de seu lugar no sistema global”. 484 No caso, os principais materiais trabalhados por Jameson para criar esse senso de orientação 480 Ibidem, p. 411. Ibidem, p. 77. 482 Entretanto, deve-se lembrar que o mapeamento no caso é utilizado como uma metáfora. Como Jameson alerta, a partir da própria definição de Althusser, não se deve tomar a representação (no caso, o mapa) pela realidade; ele é apenas um facilitador, “uma representação imaginária”. 483 Cf. Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 118. 484 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 79. 481 172 são as práticas estéticas feitas nessa nova realidade do hiperespaço, pois, segundo ele, pode-se a partir delas extrair elementos para que os sujeitos enriqueçam seu equipamento perceptivo; ao serem formas de representação desse espaço mundial multinacional, as produções culturais da globalização tornam-se uma ferramenta fundamental para que “nós possamos começar novamente a entender nosso posicionamento como sujeitos individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está, hoje, neutralizada pela nossa confusão espacial e social”. 485 A produção cultural e estética é entendida, portanto, como algo que potencializa o processo de identificação da experiência individual com a realidade. Além disso, Jameson acredita que, apesar de aparentar ser uma questão meramente teórica, sem desdobramentos no concreto, a tentativa de mapear a totalidade produziria efeitos imediatos na práxis. A avaliação compartilhada entre muitos ativistas e teóricos dos países capitalistas avançados nos anos 1970, por exemplo, de que se vivia numa “sociedade pós-industrial” em que havia desaparecido a produção convencional e as classes sociais de tipo clássico, seriam um exemplo de disfunção cognitiva, ou seja, de uma incapacidade de mapeamente que, por sua vez, teve implicações práticas e políticas reais, como evidenciado em seu ensaio sobre os desdobramentos políticos ocorridos nos anos 1960.486 Com isso, Jameson também argumenta que o problema de fundo do mapeamento cognitivo é enfrentar a reificação da sociedade contemporânea, lembrando que esta corresponde justamente ao fenômeno de fragmentação social e psíquica que causa a incapacidade do sujeito de enxergar sua inserção na totalidade. E para este problema, não existem soluções fáceis, pois a contraposição a seus efeitos perversos não é apenas uma questão epistemológica, mas também política, já que a emergência da consciência de 485 Ibidem, p. 79. Para uma exemplificação do papel cumprido pelas produções culturais na tomada de consciência pós-moderna, conferir o livro The Geopolitical Aesthetic, no qual Jameson problematiza a possibilidade de representação da totalidade no capitalismo globalizado, analisando o cinema e o que chama de filmes de “conspiração” como bons índice do inconsciente político da globalização. Para Jameson, as narrativas conspiratórias são, no caso, exemplos de alegorias de como se pensar o capitalismo multinacional e das redes corporativas como uma totalidade hoje – “um sistema tão vasto que não pode ser abrangido pelas categorias de percepção natural e historicamente desenvolvidas com as quais os seres humanos normalmente se orientam” –, entendendo que o que vale na análise delas é justamente a sua intenção e não necessariamente a “verossimilhança definitiva desta ou daquela hipótese conspiratória” (Jameson, Geopolitical Aesthetic, p. 2-3). Outros exemplos que cumpririam o mesmo papel seriam a ficção científica (que apresenta o ciberespaço como alegoria do hiperespaço) e as narrativas do Terceiro Mundo (que dramatizam as relações assimétricas de desenvolvimento no sistema mundial). Todas elas seriam, assim, formas inconscientes de mapeamento cognitivo, que não fornecem uma orientação na prática, mas indicam pontos sintomáticos importantes. 486 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 78. 173 classe enquanto tal (ou, a passagem da classe em si para a classe para si) se dá em última instância pela luta política. Consciente disso, Jameson defende o mapeamento cognitivo como um facilitador, um artifício ou uma via possível de tomada de consciência de classe, que é uma das precondições para a ação, mas tendo em vista que esta deve levar em conta a própria realidade das classes sociais internacionalmente. E quanto a isso, o autor evidentemente considera que houve uma mudança considerável desde os tempos do marxismo clássico. Falando do ponto de vista dos anos 1990, avalia que a dinâmica global, neoliberal e pós-moderna do capitalismo trouxe mais dificuldades para a organização da classe, pois implicou uma transformação das condições de trabalho, sobretudo com o declínio do emprego industrial e o crescimento do setor de serviços, bem como a fragmentação das práticas coletivas e das instituições de representação. Nesse sentido, a ideia de mapeamento cognitivo não responde o problema da possibilidade de um projeto emancipatório em termos do modelo marxista de classe. Ou seja, ao apresentar a ideia de mapa como a mediação entre o indivíduo e a totalidade social, Jameson não se baseia em outras formas de mediação institucional, como os sindicatos, partidos, etc.. Um dos únicos indícios que o autor dá em sua obra nessa direção é a consideração de que o capitalismo, a partir de suas contradições, abriu espaço para novos modelos de resistência. Além das lutas políticas elencadas em seu ensaio sobre os anos 1960, para Jameson há, pelo menos desde os anos 1970, um deslocamento da centralidade do proletário industrial clássico na política radical de esquerda para novos sujeitos precarizados, devido a própria tendência do capitalismo em direção a fragmentação dos processos de trabalho, a deterioração da indústria nacional, ao surgimento de desemprego em massa e ao aumento do número de trabalhadores em condições de vida precárias e com pouca perspectiva melhoria. Entre esses “novos sujeitos” está a própria figura do desempregado. A dificuldade é que “todo o conhecimento recebido a respeito da organização política foi adquirido com base no trabalho assalariado e na vantagem especial que ele apresenta, o que não está disponível no caso dos desempregados”.487 Ou seja, em sua descrição, Jameson denota como o momento atual do capitalismo está marcado por uma série de fatores que dificultam a possibilidade das novas formações de classe transformarem as contradições autodestrutivas do sistema em uma resposta 487 Jameson, O marxismo realmente existente, p. 93. 174 coletiva contra ele. Ao mesmo tempo, tendo em vista que esta mudança das configurações de classe é um processo global, ela também tende a fomentar a criação de relações internacionais frutíferas: [...] No momento em que o comércio internacional está em processo de se reorganizar, bem como de estabelecer novas relações além das fronteiras nacionais, e enquanto as tecnologias de contato, intercâmbio e criação de redes de comunicação já começaram a impor sua inevitabilidade, com todas as consequências previsíveis, assalariados de diferentes regiões nacionais da economia mundial são também tecnologicamente capazes de desenvolver formas novas e originais de se comunicarem seus mútuos interesses. 488 Ou seja, a globalização do movimento de trabalhadores seria uma tendência positiva, que poderia permitir a transformação de um sujeito negativamente determinado pela globalização capitalista para um sujeito positivamente determinado enquanto agente social capaz de transformar o sistema. Apesar de depositar esperanças nas possibilidades da nova proletarização a nível mundial, as considerações de Jameson são limitadas nesse aspecto, deixando em aberto como, ou se seria possível, o proletariado se tornar um sujeito unificado novamente, ou mesmo se ele se mantém como o epicentro da luta política, já que suas considerações mais detalhadas estão no caráter fragmentado e dissolvido do sujeito, na absorção sistemática de todas as experiências e enclaves que até então escaparam da mercantilização e reificação, etc.. Nesse sentido, pode-se dizer que a contribuição de Jameson para a reflexão sobre as possibilidades de emancipação dos sujeitos não reside numa teoria da organização política revolucionária, mas em outros aspectos. Pois, no momento agudo em que escreve, o autor na verdade acredita que uma precondição para se pensar a questão da estratégia passa na verdade por encarar o problema político também como um problema essencialmente narrativo, sobretudo se se adiciona ao quadro desenhado acima sobre a consciência, o cenário de difusão do ponto de vista do “fim da história” e o diagnóstico de que o senso de historicidade (necessário para qualquer política revolucionária) se encontra reprimido. Assim, uma das tarefas primordiais do marxismo seria antes de mais nada reconquistar sua legitimidade frente às lutas discursivas do período para, assim, 488 Ibidem, p. 92. 175 poder revelar a historicidade do capitalismo, mostrando que este não é algo natural, eterno ou imutável – algo que dialoga com o sentimento impotência do momento em que escreve, mas pode ser considerado fraco se levar em conta o que ele mesmo apresenta de estrutural nas suas descrições anteriores sobre o poder do capital financeiro, por exemplo. Em suas próprias palavras, nenhuma mudança sistêmica real, ou mesmo qualquer reivindicação democrática ou revolucionária, será possível sem que esse primeiro passo seja atingido, o qual pressupõe, por sua vez, duas precondições principais: a criação de uma intelligentsia marxista e de uma cultura marxista (em outros termos, uma nova presença intelectual marxista na sociedade), que quer dizer propriamente a legitimação de um discurso marxista como uma alternativa social e política “realista”.489 Nesse sentido, Jameson entende a chamada “crise do marxismo” não no sentido de uma perda de poder explanatório de seus instrumentos de análise, mas como uma crise da ideologia marxista, ou ainda, como uma crise na concepção utópica do que deve ser uma sociedade radicalmente diferente e da natureza das novas relações sociais que podem ser imaginadas nessa nova sociedade. 490 É nessa direção, então, que o autor relega os atuais problemas políticos do marxismo ao conceito de utopia, já que, para ele, o conceito de socialismo precisa ser revisto devido ao momento de descrédito no qual ele se encontra após o colapso do comunismo.491 Nas palavras de Jameson, o termo socialismo […] carrega o peso de tudo que é opressivo e improdutivo associado à União Soviética (senão, para os comunistas, à todas as traições da socialdemocracia). Nomear esta palavra, então, é ao mesmo tempo suscitar suspeitas e despertar todas as objeções históricas que talvez não seja justo associar ao ideal, mas que não podem ser praticamente eliminadas por tudo isso. Isto nos coloca diretamente em uma contradição em que não usar a palavra é inevitavelmente falhar politicamente, enquanto usar a palavra é impedir o sucesso com antecedência. Isso não constitui um argumento para mudar a linguagem política e ideológica (...), transcodificando efetivamente um marxismo antigo em algo novo? Há, no entanto, eu argumentaria, ainda uma terceira possibilidade, (...) a linguagem da Utopia, que não exclui o eventual retorno ao vocabulário do socialismo, nem oferece 489 Cf. Buchanan, Jameson on Jameson: conversations on cultural Marxism, p. 13. Cf. Ibidem, p. 33. 491 Jameson atribui o reconhecimento da importância da reinvenção da visão utópica para a construção de uma política contemporânea a Marcuse: “essa lição, que Marcuse foi o primeiro a dar, faz parte do legado dos anos 60 que não pode jamais ser esquecido em qualquer reavaliação daquele período e de nossa relação com ele” (Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 176). Além disso, vale destacar que em muitos momentos, o conceito de utopia não é tratado de uma maneira isolada por Jameson, mas antes como algo que corre por dentro de outros tantos conceitos utilizados, como o de dialética, ideologia, totalidade, etc. 490 176 uma alternativa positiva (como a “democracia radical”) que pode ser apropriada de uma maneira completamente diferente e manipuladora.492 Com isso, Jameson coloca novamente em prática o uso de codinomes – que ao tudo indica, está relacionado ao modo como ele enxerga às possibilidades de desenvolvimento do marxismo, especialmente no contexto norte-americano, avesso aos ideais de esquerda no qual está inserido: usar novos nomes para “velhos” conceitos estigmatizados. Assim, da mesma forma que utiliza o conceito de metacomentário como código para crítica dialética, e mapeamento cognitivo para consciência de classe, Jameson usa o conceito de utopia no sentido equivalente ao de socialismo. A utopia torna-se, então, uma das peças normativas de seu projeto crítico ao acreditar que esta recupera, no auge da descrença aos projetos alternativos ao capitalismo (ou no momento em que estes passam a ser identificadas como sinônimo de stalinismo), a tradição marxista da narrativa emancipatória. Assim, passa usar a palavra como um código para designar o que o socialismo significa em sua essência: o programa para uma “transformação sistêmica da sociedade”,493 ou ainda, aquela que melhor designa as “exigências de uma vida coletiva que virá”. 494 Em sua visão, “a questão da Utopia deveria ser o teste crucial do que restou de nossa capacidade de imaginar qualquer tipo de mudança”.495 Com isso, Jameson também levanta novamente o problema criado pela narrativa do “fim da história” 496, já que, no momento em que escreve, predomina-se a crença universal de que o neoliberalismo é Jameson, F. “Three names of the dialectic”. Em: Valences of the Dialectic, p. 12. Jameson também justifica seu uso do termo utopia argumentando que houve uma mudança na natureza do conceito em relação a época da crítica de Marx aos socialistas utópicos: “enquanto na sociedade anterior (como na clássica análise de Marx) o pensamento utópico representava um desvio da energia revolucionária para ociosos anelos e satisfações imaginárias, em nossa época a própria natureza do conceito de utopia sofreu uma inversão dialética. Agora é o pensamento prático que em toda parte representa uma capitulação ao sistema e se ergue como prova do poder desse sistema em transformar até seus adversários em reflexo de si mesmo. A ideia utópica, ao contrário, mantém viva a possibilidade de um mundo qualitativamente distinto deste nosso mundo, tomando a forma de uma inflexível negação de tudo o que existe” (Jameson, Marxismo e forma, p. 90). 493 Cf. Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 336; Jameson, O marxismo realmente existente, p. 82. 494 Jameson, Globalização e estratégia política, p. 41. 495 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 19. 496 Segundo Jameson, a expressão “fim da história” é uma representação ideológica de nossos dilemas atuais dos anos 1990, não tanto no sentido temporal, mas espacial, já que, ao apresentar o novo espaço global do capitalismo e o triunfo do mercado como fenômenos dados, impõe, por exemplo, a “impossibilidade de se imaginar uma dissidência e um desligamento político, social e também econômico do novo sistema social” (Jameson, F. “‘Fim da arte’ ou ‘Fim da história’?”. Em: A virada cultural, p. 153). 492 177 irreversível e que as alternativas históricas para o capitalismo são inviáveis e impossíveis.497 Segundo ele, a ordem social se encontra tão naturalizada que se impõe como um senso de realidade absoluto, uma ideia hegemônica de que as coisas são como são. Com efeito, o conceito de utopia seria estratégico por revelar um dos sintomas mais nocivos de seu diagnóstico sobre a pós-modernidade e a globalização: o fato dessa, ao se apresentar como capitalismo triunfante, bloqueia a imaginação histórica dos indivíduos e sufoca seus sensos de possibilidade, fazendo-os prisioneiros do momento presente como “imutável”, condição pela qual parece “mais fácil hoje imaginar a completa deterioração da terra e da natureza do que a quebra do capitalismo”.498 Ou seja, ao se apresentar de forma inexorável, a globalização furtaria a imagem de um outro futuro possível, bem como a capacidade de senso histórico do indivíduo, revelando mais uma das consequências do fetichismo da mercadoria, que estaria colonizando também o futuro das pessoas.499 Assim, Jameson resgata o conceito de utopia para mais uma vez nomear os efeitos profundos do desenvolvimento capitalista ao âmbito da subjetividade, e especialmente diagnosticar dois tipos de falha da imaginação: a incapacidade de desenvolver uma representação do presente que nos permita enxergar sua natureza 497 Cf. Jameson, F. Archaeologies of the future. London: Verso, 2005b, p. xii. O declínio da utopia socialista é seguido pelo crescimento do discurso anti-utópico e da utopia do capitalismo como única alternativa possível. Assim, embora se coloque como a era do “fim das utopias”, Jameson também revela como a pósmodernidade se impõe ela mesma como projeto utópico, forma pela qual legitima as práticas de poder na sociedade capitalista de consumo, tendo em vista que o capitalismo também trabalha na esfera dos sonhos, da imaginação e dos impulsos utópicos no cotidiano para garantir seu estilo de vida. Trata-se então de pensar o estudo da utopia como uma estratégia política de ruptura com essa ideologia, do consumo e do mercado, que tende a se apropriar e colonizar também o futuro como forma de prolongamento da área de investimento capitalista do presente (Ibidem, p. 228). 498 Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 91. Cf. Jameson A Política da Utopia. New Left Review, n. 25, jan 2004, p. 35. 499 Essa questão está presente de forma exemplar em Archaeologies of the future (2005). A partir de um estudo extenso sobre a história e o papel filosófico, político e literário do conceito de Utopia – apoiado na análise de obras da tradição utópica, entre elas o livro Utopia de Thomas Morus e obras de ficção científica – a obra coloca em questão a função social e o espaço da utopia no presente. Ao longo do livro, Jameson difere duas dimensões da utopia: de acordo com seu método dialético, existe a dimensão de “projeto utópico”, que designa a apresentação de um programa político de construção de uma nova sociedade, e a de “impulso utópico”, presente de forma oculta numa série de expressões e práticas de nosso cotidiano. Assim, Jameson, influenciado pela tradição psicanalítica de Freud e Lacan, bem como por Bloch, chama atenção ao fato de coexistirem formas de texto utópico “conscientes”, muitas vezes reconhecidas por meio da discussão de um projeto político e de um “enclave utópico”, e manifestações “inconscientemente” utópicas, presentes no nosso dia-a-dia, as quais vale a pena atenção para entendermos o momento histórico presente. Assim, retomando a trajetória de suas análises de crítico literário em O Inconsciente Político, Jameson defende a ideia de que interpretar um texto pode equivaler a libertação de seu “inconsciente político”, ou ainda, analisar um texto utópico pode significar a libertação de nosso “inconsciente utópico”. 178 sistêmica; a incapacidade de imaginar uma forma de futuro que não seja nem uma prolongação do presente, nem uma visão apocalíptica. 500 Dessa maneira, Jameson se propõe justamente a mapear aqueles impulsos utópicos remanescente na cultura pós-moderna, que, de uma forma ou de outra, revelam “uma ansiedade mais geral em relação à fatalidade ou ao destino (...) de nosso sistema ou modo de produção”.501 Tais visões utópicas seriam, portanto, um dos principais meios de se despertar um senso de historicidade para além do horizonte do sistema, ao representarem um senso de futuridade reprimido que exigiria uma interpretação nos moldes apresentados em O inconsciente político.502 Nessas condições, a tese central trabalhada por Jameson é a de que as utopias tem uma função social clara: o “propósito negativo de nos fazer atentos do nosso aprisionamento mental e ideológico”.503 Assim, apesar de terem como principal objetivo projetar uma “ficção” ou “idealização” que transcenda o presente, as imagens trazidas pelo pensamento utópico, na verdade, são sinais dos problemas do próprio momento histórico e social e da situação da subjetividade em que estão inscritos; elas não dizem respeito propriamente sobre o que será nosso futuro, mas revelam a nossa relação com o presente.504 Ou seja, não representariam mundos radicalmente diferentes do nosso, mas antes, seriam justamente sintomas ou reflexos distorcidos do desconforto com a nossa “O declínio da ideia utópica é um sintoma histórico e político fundamental que, por si só, merece um diagnóstico – para não dizer alguma nova terapia mais eficaz. De um lado, esse enfraquecimento do senso histórico e da imaginação da diferença histórica que caracteriza a pós-modernidade está paradoxalmente entrelaçado com a perda daquele lugar além de toda história (ou depois de seu final) que chamamos utopia. De outro, hoje é bastante difícil imaginar algum programa político radical sem o conceito de alteridade sistêmica, de uma sociedade alternativa, que apenas a ideia de utopia parece manter vivo, ainda que de modo débil” (Jameson, A política da utopia, p. 160). 501 Jameson, F. “As antinomias da pós-modernidade”. Em: A virada cultural, p. 91. 502 Jameson chega a definir o conceito de utopia como a “versão política do Inconsciente” (Jameson, O marxismo tardio, pp. 187). Para Jameson, o tipo de produção cultural que melhor exprime isso são as ficções científicas. 503 Jameson, Archaeologies of the future, p. xiii. A “utopia é um tanto negativa; e é mais autêntica quando não conseguimos imaginá-la. Sua função não é nos ajudar a imaginar um futuro melhor, mas demonstrar nossa total incapacidade de imaginar tal futuro – nossa prisão num presente não-utópico sem historicidade nem futuridade – para revelar o fechamento ideológico do sistema em que estamos, de algum modo, cercados e confinados” (Jameson, A política da utopia, p. 169). 504 Para Jameson, as visões sobre a globalização, por exemplo, podem passar de uma visão distópica do controle mundial para uma celebração do multiculturalismo mundial numa mera mudança de valência. (Jameson, Archaeologies of the future, p. 215). Além disso, as posições ideológicas sobre os rumos da globalização poderiam ser exprimidas em duas imagens distópicas: 1) a visão da desintegração social (tomada por imagens de miséria, pobreza, desemprego, fome, corrupção, violência), baseada no fato de que o planeta é cada vez menos capaz de sustentar a vida humana; 2) a visão da riqueza sem paralelos (as maravilhas do mundo dos computadores, descobertas científicas, da variedade interminável de prazeres comerciais e culturais). Segundo Jameson, isso reforça justamente a necessidade de uma visão dialética da identidade e diferença na globalização. 500 179 própria sociedade, e assim, ajudariam a revelar a própria natureza do sistema em que vivemos e que a ideologia se esforça para apagar.505 Jameson acredita que isso é um senso de história reprimido: no momento em que os indivíduos projetam suas angústias e incertezas sobre a experiência presente no futuro, revelam como a utopia é uma forma de compensação subjetiva, ou melhor, uma resolução, no domínio do imaginário, das contradições que a sociedade não consegue superar no real. Nesse ponto, o autor então defende que a utopia não é apenas um gênero literário ou político, mas um sintoma social, na medida em que ela formaliza as contradições do presente que muitas vezes são ocultadas pela ideologia. Nesse sentido, ela é estratégica para quebrar a imagem de que o sistema é eterno, nos forçando a continuar meditando “no impossível, no irrealizável em seu próprio direito”.506 A partir disso, Jameson apresenta a ideia de “futuro como ruptura” do presente, isto é, como uma quebra com o presentismo e com a compreensão do sistema como imutável, pela qual é possível se desmascarar as próprias imagens colonizadas de futuro como um mero prolongamento do próprio sistema capitalista. A noção de ruptura seria, assim, o nome para uma nova estratégia discursiva, sendo a utopia a forma pela qual ela se manifesta; ela reforçaria justamente a ideia radical de que a diferença é possível no mundo da identidade e que uma ruptura radical é necessária. Com isso, Jameson reforça que a categoria utopia expressaria melhor “nosso relacionamento com um futuro genuinamente político” do que qualquer outra; ao mesmo tempo, ela não responderia exatamente ao problema de como articular e transformar a ruptura utópica em um sentido político-prático. 507 Assim, como o próprio Jameson nota, apesar das visões utópicas terem uma importância subjetiva fundamental, elas, “em si mesmas, ainda não constituem uma política”.508 Nesse sentido, o senso de historicidade genuíno é detectado, por Jameson, a partir da capacidade da visão utópica “de energizar a ação coletiva”, sendo que, na sua 505 As distopias, por exemplo, forma predominante da maioria das produções da ficção científica hoje, alertam sobre os rumos que o presente pode tomar através de desastres ambientais e tecnológicos, geralmente em versões de fim do mundo, e, assim, também terminam por assumir uma forma utópica que almeja a mudança social, contendo o essencial utópico de desconforto com o presente. 506 Ibidem, p. 232. 507 Cf. Ibidem, p. 232. 508 Jameson, Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, p. 176. “A forma Utópica é ela mesma uma resposta à convicção ideológica universal de que nenhuma alternativa é possível, que não existe alternativa ao sistema. Mas ela afirma isso forçando-nos a pensar a ruptura em si, e não ao oferecer uma imagem mais tradicional do que seriam as coisas após essa ruptura” (Jameson, Archaeologies of the future, p. 232). 180 ausência, domina-se a “apatia e cinismo, paralisia e depressão”.509 Com isso, surgem novas questões, com as quais gostaria de encerrar a presente dissertação. As problematizações de Jameson a respeito das possibilidades estratégicas e táticas de se coordenar ações políticas locais e internacionais levam em conta, sobretudo, os efeitos da retração das políticas anti-sistêmicas (das comunistas às socialdemocratas) no final do século XX, e o avanço de uma nova atmosfera ideológica alimentada pelo momento de globalização do capitalismo dos anos 1990. Para ele, os anúncios de “fim da história” criaram de imediato um clima de “derrota” e impotência muito semelhante àquele sentido pelos intelectuais e ativistas de esquerda no final dos anos 1960.510 Junto a ele, houve também uma espécie de continuação de dilemas políticos particulares desse período, como o sentimento de impossibilidade de uma mudança sistêmica real, algo traduzido de imediato pela crise da ideia de revolução, 511 não apenas no sentido prático (ausência de agência clara, as possibilidades de uma “tomada de poder”, que significado possui para grupos e movimentos que não são partidos, etc.), mas em sentido temporal, como expresso nas próprias temporalidades de revolta e na oposição entra as lutas que se preocupam com o “aqui e agora”, e aquelas que tentam projetar uma mudança a longo prazo.512 De acordo com Jameson, esse é na verdade o próprio núcleo dos pós-marxismos 509 Jameson, The aesthetics of singularity, p. 121. Cf. Jameson, O marxismo realmente existente, p. 69. Badiou também expressa essa questão, mas da seguinte maneira, “Somos contemporâneos de 1968 do ponto de vista da política (...). É claro, o mundo mudou, as categorias mudaram: juventude estudantil, operários, camponeses significam outra coisa hoje, e as organizações sindicais e partidárias dominantes na época estão em ruínas. Mas nós temos o mesmo problema, somos contemporâneos do problema que 1968 trouxe à tona, ou seja, a figura clássica da política de emancipação era inoperante” (Badiou, A hipótese comunista, p. 39). Para Wood, as modas intelectuais que surgem nos anos 1990 nada mais são do que a retomada da agenda dos anos 1960: “no momento em que o capitalismo exerce sua lógica totalizadora em toda a "nova ordem mundial", os intelectuais de esquerda da moda, cultivando suas variadas e fragmentadas improvisações de discurso e diferença, reivindicam a supremacia de suas práticas discursivas, descartando qualquer forma de conhecimento “totalizante” que possa ser adequado para compreender as operações do sistema capitalista. Eles até mesmo negam sua totalidade sistemática, sua própria existência como sistema, embora ainda, paradoxalmente, aceitando, pelo menos por omissão, a universalidade e eternidade do “mercado”. Conforme a lógica expansiva desse “mercado” cria tensões crescentes junto ao destino falho da classe, somos encaminhados a seguir as fragmentadas "políticas de identidade", com pouca esperança de algo mais do que as resistências particularistas e locais dentro do capitalismo” (Wood, E. M. A chronology of the New Left and its successors, or: who’s old fashioned now? Socialist Register, v. 31, pp. 22-49, 1995a p. 47). 511 Segundo Jameson, a ideia de revolução por definição está vinculada “ao próprio conceito de sistema”, designando “o processo, não teorizável a priori, pelo qual um sistema ou “modo de produção” toma finalmente o lugar de outro” (Jameson, O marxismo realmente existente, p. 90). Em termos de práxis, ela designa “o momento no qual a coletividade toma em suas próprias mão uma soberania popular, (...) no qual as pessoas recuperam a capacidade de controlar o próprio destino e assim ganhar um certo grau de controle sobre a história coletiva” (Ibidem, p. 91). 512 Cf. Jameson, Archaeologies of the future, p. xii e 213. Para Jameson estas duas temporalidades estão na verdade imbricadas e articuladas no conceito de revolução, já que este implica simultaneamente numa ruptura pontual (a “tomada de poder”) e um processo ao longo prazo de mudanças com duração indefinida. A confusão e essa tentativa de separação advém, portanto, de rotulações: “As estratégias políticas (rotuladas 510 181 contemporâneos: a criação de um universo político que guarda duas principais discordâncias com a concepção marxista em termos políticos – a primeira, no nível da natureza da mudança social (se ela é sistêmica ou não); a segunda, na maneira como se concebe a tomada coletiva de decisão e qual é exatamente o instrumento para que essa seja realizada.513 Assim, após o colapso dos modelos socialistas, a perspectiva antissitêmica inevitavelmente tornou-se mais marginalizada; embora as lutas anticapitalistas e socialistas não tenham saído de cena, a maioria das lutas sociais tomaram cursos diversos, pautadas por outros sujeitos, outras gramáticas políticas e dinâmicas organizativas. Para Jameson, o resultado disso foi, portanto, um retorno da prevalência da luta pós-moderna contra os universais, renovando-se [...] uma crença instintiva na futilidade de todas as formas de ação ou práxis, e um desencorajamento milenar que pode explicar a adesão apaixonada a uma variedade de substitutos e soluções alternativas: mais claramente ao fundamentalismo religioso e ao nacionalismo, mas também a todas as possibilidades de envolvimento apaixonado em iniciativas e ações locais (e políticas monocórdias), bem como a aceitação do inevitável que está implícito na euforia histérica de visões de um pluralismo delirante do capitalismo tardio com sua suposta autorização da diferença social.514 Apesar disso, Jameson chega a dizer que esse quadro de derrota (alimentado com fervor, sobretudo, pelos teóricos conservadores, mas também pelo sentimento de fatalidade insuperável compartilhado entre setores da esquerda), expressariam antes o problema do descompasso ou da não-sincronia entre o tempo individual humano e o tempo socioeconômico do modo de produção, já que esse invariavelmente tende a revelar suas contradições e, assim, abrir breves janelas de oportunidade para a práxis coletiva. Desse modo, suas avaliações pessimistas sobre o momento histórico no início dos anos 1990 na verdade revelariam como “nós estamos mal situados para presenciar a dinâmica mais fundamental da história, percebendo de relance apenas um ou outro momento frequentemente de “velhas estratégias de esquerda”), em sua maioria, insistiram na revolução no primeiro sentido, enquanto os chamados novos movimentos sociais buscam mudanças sociais, psíquicas e de comportamento mais consistentes com o segundo sentido, que já foi chamado de “longa marcha através das instituições” (Jameson, O marxismo realmente existente, p. 88). 513 Cf. Ibidem, p. 87. 514 Ibidem, p. 72. 182 incompleto, que nos apressamos a traduzir nos temos demasiado humanos de sucesso ou fracasso”.515 Pode-se dizer que essa esperança que Jameson depositava na tendência inevitável do capitalismo de produzir seus próprios coveiros não demorou muito, tendo em vista a nova cultura política de movimentos sociais antiglobalização (como expressa nos Fóruns Sociais Mundiais) e a emergência de uma série de mobilizações após a crise econômica de 2008 (Primavera árabe, Occupy Wall Street, etc.), que acabou dando uma resposta contundente às teses sobre o fim da ideologia – revelando novamente com força as sombrias realidades do capitalismo (depressão, cortes, ajustes, desemprego, retirada de direitos) e a necessidade de sua superação, que levaram, inclusive, a um interesse renovado pelo marxismo em muitas partes do mundo –, e que, em termos da luta discursiva, conseguiu imprimir o slogan dos 99% contra o 1%, reascendendo novamente as questões de classe no léxico político de novas gerações. Como apresenta em seu ensaio The aesthetics of singularity, em sua opinião, os novos fenômenos e desafios políticos que se abriram nesse último período atestam novamente o problema da preponderância do espaço sobre o tempo. As principais manifestações coletivas que aconteceram em diferentes países, por exemplo, além de terem mobilizado críticas contundentes à representatividade dos governos, foram essencialmente espaciais (como o fenômeno de ocupações da praça em 2011, por exemplo), além de organizadas pela primeira vez através de dispositivos eletrônicos (como celulares e computadores) e novas tecnologias de informação. 516 Com isso, todas elas aconteceram de forma praticamente equalizada, em temporalidades simultâneas, variando apenas em termos de lugar (Egito, Espanha, Estados Unidos, Brasil, etc.). Além disso, a política teria se tornado, em nível local e global, uma questão de espaço, na medida em que este passou a ser não só um dos principais objetos da luta de classes – na medida em que esta encarnou notadamente a batalha contemporânea entre ricos e pobres pelo espaço, basta notar os conflitos geopolíticos internacionais, a questão da imigração, a preponderância das lutas por terra e moradia, o desmatamento e agronegócio, o problema da especulação imobiliária e da gentrificação nas grandes cidades, o crescimento em geral das resistências em termos urbanos, etc. –, como é o que 515 516 Ibidem, p. 70. Cf. Jameson, The aesthetics of singularity, p. 130-131. 183 tem propriamente definido a existência e separação dessas classes, já que as desigualdades se expressam cada vez mais em termos de espaço. Apesar dos aspectos progressivos das atuais mobilizações e lutas sociais que possuem o espaço como um eixo central, Jameson também caracteriza como elas reproduzem traços formais e temporais inerentes a atual fase do capitalismo, ao possuírem muitas vezes uma existência efêmera, tomando a forma de múltiplas resistências que se formam e se esvaem na mesma temporalidade dos mercados financeiros. Ou seja, atualmente, mesmo os protestos contra o sistema reproduzem traços do sistema, ao apresentarem as características pós-modernas do presentismo, aleatoriedade, etc., que compõe, por sua vez, a mesma lógica do capital financeiro. E ao guardarem as características de tempo de vida curto, continuidade fraca, com a formação de agregados temporários de indivíduos pela contingência de uma causa, que são dispersados quando a luta termina – muitas dessas lutas abrem espaço para que os ideais pós-modernos ganhem peso novamente. Assim, assistimos à reprodução, especialmente entre uma nova geração de ativistas, de práticas fragmentadas e de linguagens políticas que envolvem críticas a conceitos universais, na convicção de que estes são inevitavelmente normativos e opressivos, algo compartilhado sobretudo em meio a nova onda de lutas identitárias e juvenis em diversos países do mundo. Dessa forma, pode-se dizer que se vivencia hoje a reprodução, consciente ou inconsciente, da lógica das micropolíticas, que, como vimos, para Jameson corresponde à emergência pós-moderna de uma grande variedade de práticas políticas de pequenos grupos. Assim, da mesma forma que apresentam elementos progressistas, os novos ativismos que surgiram no mundo também revelam dilemas políticos profundos. Um deles é justamente a falta de um norte político; eles carregam a clareza de negação do velho, mas não possuem ainda uma visão clara de como combater a fundo os problemas sociais e as formas de injustiça que levantam e construir o novo. Ou seja, ainda se pautam por demandas diversas, mas sem um programa político comum e coeso, repetindo o mesmo problema da esquerda no processo de declínio do socialismo real: um vazio de referência. Assim, pode-se dizer que representam a ausência de um projeto de transformação claro, não existindo hierarquia, prioridade, ou uma forma unívoca e monotemática que oriente as formas de se fazer política: ocupar a rua, organizar assembleias, resistir à hierarquia e à autoridade, desafiar a violência policial, votar, etc. – todas são possibilidades legitimas de manifestação. Não existe apenas uma única e grande 184 estratégia a ser seguida. Nesse sentido, representam, segundo Jameson, uma nova forma de coletividade, as “multidões” 517, que formam grandes manifestações, mas que são efêmeras: […] não são eventos políticos no sentido antigo: eles não produzem constituições, não são eventos políticos com consequências institucionais duradouras. Eles são "eventos" no sentido filosófico mais forte dessa palavra e, como eventos, eles então desaparecem (...). Este "presentismo" também tem que ver com as finanças, e com as comunicações. Essa seria provavelmente a principal característica que eu tentaria examinar em termos da evolução daquilo que uma vez foi o pós-moderno ou do que era a arte após o moderno.518 Somado a isso, também estaria o fato de que os inimigos aos quais tais manifestações pretendem se opor – sejam as corporações transnacionais, os grandes financiadores, os banqueiros, etc. – são eles próprios seres cada vez mais desindividualizados, escondidos atrás das instituições maciças que gerenciam, o que coloca outro desafio: o do nosso sistema ter se tornado cada vez mais abstrato e despersonificado, dificultando formas de oposição a ele. Por um lado, tudo isso pode ser visto como um sintoma da própria força da reificação na sociedade contemporânea. Pois, como Jameson sempre demonstra, a realidade concreta nada mais é do que a unidade da diversidade, que, atualmente, é sistematicamente desmanchada pela lógica capitalista da fragmentação, o que inevitavelmente atinge também as práticas políticas e a perda de um senso de norteamento. Tendo isso em vista, torna-se claro que a pulverização dos movimentos sociais tem relação com a própria condição ideológica do capitalismo contemporâneo que reforça uma compreensão fragmentada da realidade. Por outro, as principais características dessas formas de mobilização também parecem indicar que o principal desafio do marxismo hoje continua sendo a construção de um projeto político coerente, que consiga aglutinar e relacionar as diferentes lutas do presente, aparentemente desconectadas, num programa estratégico e anticapitalista mais global, ainda mais no contexto de retirada de direitos sociais próprio ao cenário em que 517 Cf. Hardt, M & Negri, A. Multitude: War and Democracy in the Age of the Empire. New York: Penguim Books, 2005. 518 Jameson, Revisiting Postmodernism, p. 146. 185 vivemos. Pois, por mais profundas e apaixonantes que sejam as reivindicações específicas que presenciamos nos últimos anos (a luta por transporte, pelo direito a moradia, saúde, educação, a luta das mulheres, para citar alguns exemplos brasileiros), elas não avançam se não se evidencia a reciprocidade que elas guardam entre si. Elas são a demonstração de que, sem a relação entre o particular e o todo, a política fica resumida ao local, ao presente imediato, algo que é geralmente alimentado por visões românticas ou idealistas dos ativismos; sem essa visão simultânea, ela se torna ou uma luta facilmente burocratizada em torno do Estado ou, uma série reduzida e interminável de pequenas lutas, facilmente absorvidas pelos ideias pós-modernas. Disso, extraímos novamente, portanto, o imperativo que constitui uma das principais contribuições de Jameson, senão um grande legado da tradição marxista: a busca incessante pela totalidade e a percepção das afinidades secretas entre os fenômenos sociais. 186 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Modernidade e revolução. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 4, p. 2-15, 1986. ______. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ______. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004. ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ANTONIO, R. (ed.). Marx and modernity: key readings and commentary. Oxford: Blackwell Publishing, 2003. ARANTES, P. Tentativas de identificação da Ideologia Francesa. Novos Estudos, n. 28, v. 3, out 1990. ARRIGHI, G. 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