UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
HENRIQUE CANTALOGO COUTO
A HORA DA VOZ, A VEZ DA PALAVRA: A
POÉTICA-MUSICAL DA BOSSA NOVA E DA
SECONDA PRATICA
Campinas
2017
HENRIQUE CANTALOGO COUTO
A hora da voz, a vez da palavra: a poética-musical da Bossa Nova
e da Seconda Pratica
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre
em Música, na Área de Concentração: Teoria, criação e
prática.
Orientadora: Profa. Dra. REGINA MACHADO
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO
ALUNO HENRIQUE CANTALOGO COUTO, E
ORIENTADO PELA PROFA. DRA. REGINA
MACHADO.
Campinas
2017
Agradecimentos
Aos meus amados pais, Roseli e Lucélio, por todo o
apoio, pela fonte inesgotável de afeto, carinho e
motivação. A meus irmãos, Hugo e Laura, pelo
carinho e parceria. À Beatriz Coimbra, pela luz que
ilumina tanto do que eu vejo... e torna tudo tão mais
bonito. Agradeço imensamente à Regina Machado,
por acolher meu trabalho e minhas ideias e pelos
preciosos
comentários,
correções
e
orientações
realizadas neste texto. Ao Marcelo Onofri, pela
amizade, pela generosidade e por todos os horizontes
revelados.
Ao
José
Augusto
Mannis,
pela
generosidade, pelo exemplo ímpar de competência e
seriedade e por catalisar um salto sem precedentes em
minha formação. Ao Edmundo Hora, pela germinação
deste trabalho, pelos ensinamentos e pelo período de
orientação. Aos funcionários e professores do
Instituto de Artes da UNICAMP, em especial à
Helena Jank e Suzel Reily, com as quais aprendi
muito nas disciplinas do curso de Pós-Graduação da
UNICAMP. À CAPES, pelo apoio financeiro que
permitiu que eu realizasse este trabalho com o tempo
e a dedicação necessária. Aos amigos Theo de Blasis,
Lucas Uriarte, Marcelo Chacur, Fernando Sagawa,
Fábio Evangelista, Gabriel Rimoldi, Eduardo Pereira,
Camilla dos Santos, Fernando Goldenberg, Nelson
Dias, Gabriel Valladão, Thiago Xavier, e tantos
outros, com os quais a minha vida em Barão Geraldo
nestes últimos anos se tornou uma experiência acima
de tudo divertida e enriquecedora.
Resumo:
Este trabalho propõe um estudo comparativo entre dois estilos musicais separados pelo
tempo e pelo espaço: a Seconda Pratica, estilo musical italiano do início do período
barroco em música, mais especificamente do início do século XVII; e a Bossa Nova,
estilo musical brasileiro nascido no final da década de 1950. Ao confrontarmos
características estéticas e os contextos culturais envolvidos no surgimento de cada um
dos estilos musicais em questão, verificamos a presença de diversas semelhanças,
sobretudo na maneira como cada estilo propôs a utilização da voz no cantar, na
instrumentação adotada, na concepção estética associada à ideia de economia e síntese
e na relação entre música e texto. Ao abordarmos essas correntes artísticas e seus usos
característicos da voz, fizemos uso de partituras, fonogramas, tratados históricos,
entrevistas, textos de pesquisadores da área (livros, artigos, teses, dissertações e páginas
da internet) e obras literárias como fontes de investigação.
Palavras-chave: Seconda pratica, Bossa Nova, Canto-falado, Recitativo, Canção.
Abstract:
This work aims at a comparative study between two musical styles far apart in time and
space: the early baroque Italian style of Seconda Pratica and the Brazilian Bossa Nova
which emerged in the late fifties of the twentieth century. In comparing aesthetic traits
and the cultural environments of each of these musical styles we find a series of
similarities, chiefly concerning the means by which each of them established a proper
practice of singing, the instrumentation displayed and the aesthetic conception
associated with the notions of economy and synthesis, and the relationship between
music and text. In order to approach these artistic currents which had their innovative
proposals unfolded in their use of voice, we'll resort to musical scores, audio recordings,
historical treatises, interviews, reports of research in the field (books, papers, doctoral
theses and dissertations, webpages) and literature as sources for our investigation.
Keywords: Seconda pratica, Bossa Nova, Spoken singing, Recitative, Tune.
Lista de figuras
Figura 1: Diagrama de George List______________________________________________25
Figura 2: Primeira página do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi__________41
Figura 3: Compassos 13 e 14 do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi_______42
Figura 4: Excerto homofônico em “Cruda Amarilli”_________________________________44
Figura 5: Primeira página do madrigal “Sfogava con le stelle” de Claudio Monteverdi______46
Figura 6: “Tu se Morta!” de Monteverdi, do segundo ato da ópera Orfeu (1607)___________47
Figura 7: Excerto de “Amor, fortuna” de Palestrina_________________________________50
Figura 8: Compassos 7 e 8: dissonância preparada no madrigal de Palestrina_____________51
Figura 9: Excerto do Credo da Missa Papa Marcelli, de Palestrina______________________58
Figura 10: Excerto do Recitativo “Movetevi Pietà”, do livro “Le Nuove Musiche” (1601) de
Giulio Caccini_______________________________________________________________69
Figura 11: Prologo da ópera “Euridice” de Jacopo Peri_______________________________71
Figura 12: Excerto de monodia de Caccini com baixo contínuo não realizado_____________75
Figura 13: Exemplo de Recitativo acompagnato. Excerto da fala de Jesus em Paixão segundo
S. Mateus, de J. S. Bach_______________________________________________________77
Figura 14: “e Pedro chorou amargamente”, excerto de um Recitativo da Paixão Segundo São
João de J. S. Bach____________________________________________________________81
Figura 15: Excerto da Modinha “Anália Ingrata” (1859) de Carlos Gomes_______________92
Figura 16: Croqui de Niemeyer: objetividade e despojamento________________________104
Figura 17: Exemplo de poesia concreta. “Tensão” (1956) de Augusto de Campos________104
Figura 18: Excerto da canção "Chega de Saudade"_________________________________106
Figura 19: Excerto de “Chega de Saudade”_______________________________________110
Figura 20: Seção em Ré maior de “Chega de Saudade”_____________________________111
Figura 21: Exemplo de alteração métrica na interpretação de João Gilberto_____________117
Figura 22: Marcação básica da Bossa Nova______________________________________125
Figura 23: Fases rítmicas mais características do samba, segundo Gilberto Mendes_______125
Figura 24: “Ritmo de Habanera”, segundo Carlos Sandroni__________________________126
Figura 25: Variações da batida da Bossa Nova segundo Gilberto Mendes_______________128
Figura 26: Transcrição rítmica da melodia cantada e do acompanhamento no violão da canção
“Bim Bom”, de João Gilberto__________________________________________________129
Figura 27: João Gilberto e seu violão, em 1991____________________________________147
Figura 28: “Tocador de Alaúde” (1594) do pintor italiano Caravaggio (1571 – 1610)______149
Figura 29: Primeira página da canção “Modinha”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes____153
Figura 30: Segunda página da canção “Modinha” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes____154
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
12
Estrutura do trabalho e descrição de seus objetivos______________________12
CAPÍTULO 1: Canto, fala e canto-falado
16
1.1 Breve incursão sobre os conceitos de canto, fala e canto-falado_________16
1.2 O canto-falado à luz da Etnomusicologia __________________________20
1.3 O canto-falado para alguns pensadores brasileiros ___________________28
1.4 Nó nos conceitos: uma questão de escuta __________________________34
CAPÍTULO 2: A Seconda Pratica
37
2.1 A controvérsia Artusi versus Monteverdi___________________________38
2.2 A Prima Pratica ______________________________________________49
2.3 A questão da inteligibilidade do texto cantado_______________________54
2.4 Camerata Fiorentina __________________________________________58
2.5 O Recitativo – falar em harmonia ________________________________ 65
2.6 Baixo contínuo_______________________________________________ 73
2.7 Ária versus Recitativo _________________________________________ 78
CAPÍTULO 3: A Bossa Nova
82
3.1 A musicalidade da fala na canção brasileira ________________________ 83
3.2 Samba-canção e Bossa Nova____________________________________ 95
3.3 Chega de Saudade____________________________________________105
3.4 O canto-falado de João Gilberto_________________________________113
3.5 A batida bossa nova__________________________________________ 122
3.6 A instrumentação e o arranjo na Bossa Nova ______________________ 131
CAPÍTULO 4: Tecendo paralelos
134
4.1 A busca pelo canto-falado _____________________________________ 134
4.2 A sprezzatura como ideia de naturalidade_________________________ 141
4.3 O banquinho e o alaúde_______________________________________ 144
4.4 A expressão dos afetos________________________________________156
Considerações Finais
161
Referências _________________________________________________________162
Livros ________________________________________________________162
Artigos_______________________________________________________ 165
Teses, Dissertações e Monografias_________________________________ 167
Sites e Internet_________________________________________________ 168
Referências fonográficas _________________________________________169
Referências musicais em partitura__________________________________173
12
INTRODUÇÃO
Estrutura do trabalho e descrição de seus objetivos
o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol
apenas o mesmo
ovo de sempre
choca o mesmo novo
Paulo Leminski
Este trabalho partiu de um vislumbre fugaz, ocorrido há alguns anos, ao
reconhecer um certo grau de parentesco entre dois estilos de música vocal a princípio
distantes, pelo menos em seus contextos geográficos e cronológicos. De um lado, o
repertório de monodias italianas do início do período barroco em música – mais
especificamente no início do século XVII – tipicamente interpretadas por um cantor
solista com o acompanhamento de um instrumento harmônico e associadas ao estilo que
passou a ser chamado de Seconda pratica. De outro, as canções da Bossa Nova, de um
Brasil das décadas de 1950 e 1960, muitas vezes também interpretadas por uma voz
solo e acompanhadas por um instrumento harmônico; um banquinho e um violão.
Na busca pelo desenvolvimento desta ideia inicial, por meio de uma
investigação essencialmente comparativa entre cada um desses contextos poéticomusicais, aspectos bastante similares acabaram se evidenciando, sobretudo nos traços
estéticos do canto, na instrumentação utilizada, no modo de articulação entre texto
poético e música e no ideal presente em ambos os estilos que se manifesta na busca pelo
sintético e essencial.
Por meio deste processo de comparação, emergiu a constatação de que
características associadas a um estilo ou gênero musical particular podem encontrar
13
correspondências, diretas ou indiretas, com traços estéticos de estilos cronologicamente
e/ou geograficamente distantes. Em outras palavras, por trás da sedimentação de cada
estilo ou prática artística existe um percurso genealógico que culmina com a emergência
deste novo estilo, de um novo jeito de se fazer e conceber, entretanto com a frequente
apropriação de características de estilos antecessores. Neste contexto, com um certo
olhar panorâmico percebe-se que várias das inovações proclamadas por determinado
estilo musical podem encontrar aspectos em comum com práticas anteriores1.
Em termos metodológicos, houve a tentativa de se preservar um caráter
dialético, almejando contrapor as ideias e soluções encontradas em cada um dos estilos
e repertórios de modo a sintetizar aquilo que, do ponto de vista estético-composicionalinterpretativo, une-os ante o mesmo objetivo: valorizar a palavra em suas interações
com a música. Por este motivo, vale ressaltar que ao abordarmos aqui estilos e gêneros
como Recitativo, Canção, Ópera, Madrigais e Cantatas, entre outros, estamos nos
referindo a criações artísticas poético-musicais por excelência, onde música e texto
poético imbricam-se e tornam-se de certa forma indissociáveis.
Além disso, partimos da ideia de que a análise destes repertórios, bem como
sua posterior comparação, devesse partir de um olhar com múltiplos focos, contando
com o suporte teórico de plataformas variadas, como partituras, fonogramas, tratados
históricos, entrevistas, textos de pesquisadores da área (livros, artigos, teses,
dissertações e páginas da internet) e, inclusive, obras literárias.
A respeito deste último item mencionado, inserimos com certa frequência
excertos de obras literárias em nosso trabalho, tanto de poemas quanto trechos de alguns
Romances. Nosso intuito com isso está em oferecer momentos de síntese sensível
acerca de temas explorados ao longo do texto ou mesmo nos utilizarmos de uma valiosa
descrição historicamente informada por alguns Romances de costumes, sobretudo da
relação entre a música e a sociedade brasileira dos séculos XIX e XX.
Além disso, o próprio título da Dissertação faz menção a um texto literário
específico: o conto “A Hora e vez de Augusto Matraga”, do livro Sagarana de João
Guimarães Rosa. Neste conto, frequentemente é invocada a frase “Cada um tem a sua
1
A esse respeito, Flô Menezes sintetiza: “a não-linearidade histórica reemprega constantemente
elementos ou aspectos do passado, refuncionalizando-os a novos fins” (MENEZES, 2002, p. 153).
14
hora e a sua vez...”2, podendo o termo “a hora e vez” ser entendido como momento
oportuno, a aurora de, o destino final. Nesse sentido, por tratarmos nesta Dissertação de
dois estilos vocais cujas propostas se centralizam na valorização da palavra em música,
sugere-se pelo título que voz e palavra têm sua hora e vez concedidas e reveladas pela
música da Seconda Pratica e da Bossa Nova.
Em relação às menções feitas a fonogramas específicos ou exemplos
musicais com ou sem a presença de partitura no decorrer do texto, oferecemos no final
da Dissertação uma lista com o link de cada exemplo musical mencionado, a ser
encontrado no item Referências Fonográficas, para que o leitor possa acessar de
maneira fácil o exemplo musical durante a leitura, em plataformas virtuais como o
youtube.
Já em termos estruturais, esta Dissertação é construída com o intuito de
apresentar cada estilo musical separadamente ao leitor, na tentativa de se construir um
percurso claro e didático culminando com uma discussão final, que discorre justamente
sobre a comparação entre os dois estilos, organizada em distintos pilares: na maneira de
se utilizar a voz no canto, na instrumentação e no tratamento ao acompanhamento
musical e na articulação entre música e texto poético. Assim, a Dissertação apresenta
quatro capítulos, a saber:
No Capítulo 1, realizaremos uma breve discussão acerca de alguns conceitos
e ideias envolvendo as definições, diferenças e semelhanças das emissões canto, fala e
seus estados intermediários, os cantos-falados.
No Capítulo 2, denominado como “A Seconda Pratica”, mencionaremos o
episódio histórico envolvendo a controvérsia entre o teórico italiano Giovanni Maria
Artusi e o compositor Claudio Monteverdi, episódio que sintetiza as principais vertentes
filosóficas e estilísticas da música italiana do início do período barroco e que inaugura o
termo Seconda Pratica. Em seguida, apresentamos um breve panorama acerca da
música e das ideias da Prima Pratica, no intuito de se contextualizar o estilo musical
antecessor à Seconda Pratica em termos históricos e estéticos, discutindo, também, a
questão da inteligibilidade do texto cantado durante o Renascimento. Em sequência,
como tema central do capítulo, tratamos a respeito do grupo de compositores e teóricos
italianos conhecido como Camerata Fiorentina, bem como suas principais ideias e
2
ROSA, 2001, p. 380.
15
publicações, em especial, o surgimento do Estilo Recitativo e sua influência em alguns
estilos musicais sucessores. Por fim, discutimos quais as possíveis heranças deixadas
pelo Estilo Recitativo para as gerações musicais posteriores, tangenciando o
aparecimento da Ópera e a sedimentação de uma estrutura narrativa baseada na
utilização do par ária versus recitativo.
No Capítulo 3, apresentaremos ao leitor o estilo Bossa Nova, expondo,
assim como no Capítulo 2 em relação à Seconda Pratica, o contexto no qual ela surge e
suas principais características poéticas e musicais. Para tal, partimos da discussão sobre
a presença da oralidade na música popular brasileira, buscando incidências deste
aspecto desde o gênero da Modinha até o surgimento da canção popular no século XX.
Em sequência, discorreremos sobre as principais diferenças entre o samba-canção e a
Bossa Nova, na tentativa de compreender em que sentido a Bossa Nova traz consigo
novidades estéticas em relação aos estilos antecessores. Em seguida, nos
aprofundaremos na figura do cantor João Gilberto, mais especificamente em sua
maneira de tocar o violão e cantar, principalmente no que tange aspectos da intensidade
e da dicção cancional. Posteriormente, nos aprofundaremos em alguns aspectos mais
pontuais da estética musical do estilo, como a tentativa de aproximar o canto à fala, as
características rítmicas e harmônicas da batida da Bossa Nova e o tratamento dado aos
arranjos das canções do estilo.
No quarto e último capítulo, cujo o nome é “Traçando paralelos”, trataremos
da construção de uma análise buscando investigar e elencar semelhanças poéticas e
musicais entre os dois estilos musicais expostos nos dois capítulos anteriores. A
discussão das semelhanças será realizada em três âmbitos: 1) no uso da voz,
evidenciando a busca pelo canto-falado; 2) na instrumentação utilizada e no papel do
instrumento acompanhador na estrutura das composições e da interpretação e 3) nas
semelhanças no nível poético, evidenciando a busca pela expressão dos afetos e ideias
do texto poético em música, seja pela sequência harmônica ou pela relação entre a linha
melódica e a harmonia.
16
CAPÍTULO 1
A fala, o canto e o canto-falado
Neste capítulo, trataremos das principais distinções e semelhanças entre a
fala, o canto e a vocalização que se encontra entre ambas, chamada por nós de cantofalado. Para isso, nos utilizaremos das ideias e dos conceitos de diversos artistas e
teóricos, no intuito de oferecer ao leitor um panorama deste universo conceitual. Por
fim, trataremos da hipótese de que o elemento chave para a definição de uma
vocalização pode estar no processo de escuta.
1.1 Breve incursão sobre conceitos de canto, fala e canto-falado
Ao dar vida a um texto, a voz veicula as palavras transformando-as em sons;
mesmo em uma leitura silenciosa, o som das palavras lidas soa internamente no leitor.
Por sua vez, as palavras, possuidoras de sentidos, quando sonorizadas, musical ou
vocalmente, são carregadas ainda de outros sentidos e comunicam ao ouvinte suas
ideias, intenções, imagens e afetos.
Assim, o texto vivo pela voz e movido pela
entoação revela o conteúdo semântico de cada termo vocalizado e o conteúdo
expressivo das elocuções musicalizadas.
A dualidade inerente a este processo nos faz pensar que na fusão da palavra
com a voz, sempre há mais de uma faceta a ser considerada. Quando essa fusão se dá no
domínio da música vocal, então, o intérprete age mesmo como um malabarista3,
equilibrando a perene tensão entre a música dita e as palavras cantadas.
No decorrer do percurso histórico da música vocal, a busca pela conciliação
entre texto e música resultou em uma infinidade de maneiras diferentes de se utilizar a
voz, ora privilegiando o aspecto musical, ora o aspecto textual, e em outras tantas vezes
buscando um equilíbrio entre estas forças.
Nesse sentido, em um dos extremos destas distintas abordagens encontra-se
o cantar sem a presença da palavra, onde a voz atua como um instrumento musical
3
TATIT, 2002.
17
particular. Como um dos inúmeros exemplos deste tipo de proposta podemos mencionar
o trabalho do cantor Demetrio Stratos (1945 – 1979). Stratos buscava no canto a “voz
música”, livre da presença da palavra e da “dominação da voz pelo utilitarismo da
função comunicativo-verbal”4. Seu canto experimentava diferentes tipos de ruídos
vocais e corporais, na busca de uma vocalidade que comunicasse além da palavra; na
busca por uma voz que fosse veículo de si mesma5.
Mesmo no canto com a presença da palavra, por vezes deparamo-nos com
propostas que privilegiam o aspecto musical em detrimento do aspecto textual, como no
caso do repertório vocal polifônico do Renascimento, na obra de compositores como
Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526-1594) e Luca Marenzio (1553-1599), por
exemplo. Este tratamento polifônico do texto cantado frequentemente gerava o
problema de inteligibilidade do texto, já que as palavras não soavam simultaneamente
nas diferentes vozes, ou mesmo, por vezes, os textos de cada voz eram diferentes entre
si. De fato, o propósito essencial deste repertório “consistia no sofisticado
relacionamento das diferentes vozes independentes num complexo emaranhado
polifônico”6 e não na valorização do texto poético. Algo similar acontece em parte das
canções populares das últimas décadas, nas quais cantores muitas vezes passaram a
adquirir um léxico próprio de termos que, antes de qualquer significado semântico mais
claro, trazem uma ênfase no aspecto sonoro, como no scat singing, característico do
jazz, ou ainda nos tra-la-lás, shimbalaiês, yeah’s, iê-iê-iês, tchubi-rubas, asserehês,
lalaiás, bim boms, lererês, presentes em tantos refrães da música midiatizada.
Por outro lado, vemos a tentativa de valorizar a palavra através do canto
desde a Grécia antiga. O filósofo grego Platão (428/427 –348/347 a.C.) acreditava que o
ideal de música é servir sempre às palavras, a ponto de considerar, inclusive, que “não
seria recomendável apresentar melodias e ritmos destituídos de palavras (…) porque,
desse modo, seria impossível saber quais as intenções dos poetas com esses ritmos e
essas harmonias7”8. Conforme veremos no capítulo seguinte, a diretriz de Platão ecoou
4
EL HAOULI, 2002, p. 48.
Para mais informações sobre o legado artístico deixado por Demetrio Stratos, ver “Demetrio Stratos: em
busca da voz-música” de Janete El Haouli.
6
HARNONCOURT, 1993, p. 26.
7
Vale ressaltar que a terminologia utilizada por Platão, mais especificamente no uso dos termos
“harmonia” e “ritmo”, não possui as mesmas acepções na atualidade. Para os gregos antigos, de modo
geral, o termo “harmonia” se refere a ideia de “proporção”, “união de partes”, e não ao estudo da sucessão
e relação dos acordes de uma composição. Essa questão é investigada pelo pesquisador Gonçalo Armijos
Palácios em seu texto “Compreensão filosófica dos aspectos musicais”: “Não exagero ao dizer que a
compreensão de um dos aspectos centrais da música é simultânea com a compreensão da própria essência
5
18
em muitos outros períodos históricos e estilos musicais – um deles, a própria Seconda
Pratica – influenciando abordagens correlatas na busca pela valorização da palavra no
canto. Este tipo de canto, cuja proposta central é enaltecer e conduzir a palavra,
aproxima-se, sintomaticamente, da fala, um de seus vetores primordiais.
Nesse sentido, a voz falada se anuncia como momento ápice de um
compromisso entre a vocalização e o aspecto textual. Não à toa, é quando a voz oferece
à palavra o maior potencial de inteligibilidade e a música inerente a este tipo de
vocalização – a entoação – “confirma” o ideal platônico de servir às palavras. O cantar,
por sua vez, sobretudo o cantar tal qual a abordagem de Demetrio Stratos com sua “voz
música”, um dos inúmeros tipos de canto sem a presença da palavra, trata-se de uma
vocalização que privilegia o aspecto sonoro-musical. Assim, parece lógico dispor os
termos canto e fala em dois distintos polos, ainda que ambas as vocalizações partilhem
tantas similaridades. No infinito meio termo entre ambas, eis que surge o canto-falado,
um canto que se faz ouvir como fala, ou vice-versa.
Interessa-nos, portanto, investigar estilos musicais aqui relacionados que,
entre outras características, se utilizam do canto-falado como proposta estética. Em
outros termos, estilos que buscaram um equilíbrio no tratamento dos âmbitos musicais e
textuais na utilização da voz, muitas vezes aproveitando no ato composicional a
musicalidade que brota do próprio texto poético falado ou recitado. Esse modo de cantar
próximo da fala é característico da estética dos estilos musicais que serão abordados nos
capítulos seguintes, configurando, assim, um dos principais parâmetros a ser
considerado neste olhar transversal e comparativo que será construído entre Seconda
Pratica e Bossa Nova.
As propostas estéticas de canto-falado presentes nos estilos musicais
supracitados, de maneira muito interessante, encontram incidências semelhantes ainda
em outros estilos musicais de variadas épocas distintas, o que nos faz cogitar que o
canto-falado, ou mesmo o canto que melodicamente se compatibiliza com a
musicalidade inerente à fala cotidiana, funcione como um arquétipo na esfera das
do universo e da natureza humana. Quando Pitágoras descobriu a relação entre o comprimento das cordas
e os sons produzidos por elas pôs os alicerces para uma transformação sem precedentes na visão que uma
cultura teria sobre a realidade. Descobrindo a relação íntima entre os intervalos das notas e os números
(quarta, quinta, oitava) chegou a uma teoria da harmonia que a fez extensiva não só à música como a todo
o universo, incluído o ser humano. Assim, a harmonia musical não faz mais do que refletir a harmonia do
universo.” (PALACIOS, 2001, p.1).
8
(Leis, 669d-e) apud ROCHA JÚNIOR, 2007, p. 41.
19
vocalizações humanas, um meio de expressão verbivocomusical9 recorrente em um
recorte histórico, com incidências, como já vimos, desde a Grécia Antiga10 até às
últimas vanguardas artísticas11.
O canto-falado, por estar situado em uma contínua faixa de transição
conceitual, um continuum entre as fronteiras de duas vocalizações (canto e fala),
permite a existência de infinitas manifestações, assim como afirma o axioma da
geometria euclidiana: existem infinitos pontos entre dois pontos quaisquer de uma reta.
Na busca por uma sistemática de classificação de vocalizações, inclusive de
cada um dos possíveis cantos qualificados como canto-falado, até os dias de hoje,
pesquisadores de diversas áreas esforçam-se para encontrar definições conceituais
aplicáveis a contextos culturais múltiplos. Um exemplo deste desafio é trazido pela
pesquisadora Suzel Reily em seu texto “As vozes das folias: um tributo a Elizabeth
Travassos Lins”:
(...) nem sempre aquilo que o analista ouve como canto é considerado
canto nas sociedades em que se pratica a vocalização. Um exemplo
frequentemente invocado por etnomusicólogos para demonstrar isto é
a classificação da vocalização do alcorão; para ouvidos não-islâmicos
essas performances podem soar como “canto”, mas, por a música
ocupar uma posição ambígua no islamismo, os muçulmanos dizem
que “recitam” o alcorão (JACOBSON, 2003-2005; NETTL, 1983:20),
termo que, na língua portuguesa, aproxima-se mais da fala que do
canto (REILY, 2014, p. 37).
9
Termo cunhado por Augusto de Campos (CAMPOS, 1986). Em analogia ao termo “verbivocovisual”
cunhado pelo poeta James Joyce (1882 – 1941), que tão bem define a Poesia Concreta, gênero poético
brasileiro que será mencionado com maiores detalhes no Capítulo 3.
10
Acredita-se que no Teatro Grego “havia duas formas de cantos: os cantos corais e a monodia. Os
primeiros eram cantados por todo o coro, em dialeto dórico estilizado. As monodias eram cantos-solo de
atores. ” (BOURSCHEID, 2008, p. 27). Este tipo de canto denominado monodia foi a base do que veio a
ser os Recitativos no início do período barroco, conforme veremos no próximo capítulo.
11
Um dos inúmeros exemplos a ser mencionado no âmbito das propostas musicais de vanguarda que
exploraram o canto-falado é o Sprechgesang, do compositor Arnold Schoenberg. Este tipo de proposta
vocal foi explorado em obras como “Pierrot Lunaire”, conforme mencionaremos com maiores detalhes
ainda neste Capítulo.
20
Nesse sentido, nota-se que cada cultura se utiliza de parâmetros distintos na
classificação de suas vocalizações, o que resulta, sintomaticamente, em definições de
vocalizações divergentes para cada contexto.
Outra característica curiosa desta empreitada conceitual reside também no
fato de que a busca por definições sobre o que é canto e o que é fala pode levar em
consideração a intencionalidade do vocalizador: quem vocaliza pretende cantar ou falar?
Em muitos contextos culturais, essa distinção entre o que é canto e o que é fala é feita
pelo próprio grupo social em questão. Por sua vez, essas classificações nos oferecem
informações valiosas sobre como grupos de diferentes contextos culturais compreendem
suas vocalizações.
Pela dificuldade inerente a estas definições conceituais e pela multiplicidade
de pontos de vista, nosso intuito aqui está mais relacionado em expor uma amostra de
ideias diversas acerca dos termos e conceitos das vocalizações em questão do que eleger
algum pensamento como base conceitual de nossa discussão. Assim, dividiremos a
seção em duas frentes: na primeira delas, nos utilizaremos das ideias e reflexões de
alguns trabalhos da área da Etnomusicologia12 e da História Oral, contando com o
valioso suporte dos autores George List, John Blacking, Anthony Seeger, Paul Zumthor
e Suzel Reily; na segunda frente, com foco na discussão destas ideias no contexto
brasileiro, nos utilizaremos das reflexões de Mário de Andrade, Luiz Tatit e Hermeto
Pascoal.
1.2 O canto-falado à luz da Etnomusicologia
O texto The boundaries of speech and song (As fronteiras da fala e do
canto), escrito pelo etnomusicólogo George List (1911-2008) e publicado em 1963, é
considerado como um dos “primeiros estudos etnomusicológicos voltados para a
demarcação de um campo estético que poderia ser chamado de canto” 13 e tem como
objetivo primário construir um método de classificação onde possam ser feitas
12
Etnomusicologia, também conhecida como etnografia da música, tem por objetivo o estudo da música
em seu contexto cultural ou estudo da música como cultura.
13
REILY, 2014, p. 37.
21
distinções conceituais interculturais entre o canto e a fala. Esta busca conceitual, que
parte da polarização entre as duas vocalizações, é fundamentada pelo autor por meio de
parâmetros como estabilidade tonal e tessitura utilizada na vocalização, e preocupa-se,
inclusive, com uma classificação adequada de outros tipos de vocalizações
intermediárias entre os polos fala e canto. Para a elaboração de seu método de
classificação e sua posterior discussão, List baseou-se na investigação de diversos tipos
de canto de culturas diferentes, oriundos de seus estudos etnográficos, citando no
decorrer do texto cantos dos índios Hopi do noroeste do Arizona, dos Maori da Nova
Zelândia e das mulheres de Palau da Micronésia. Com isso, o autor objetivava pôr a
prova seu sistema de classificação se utilizando de práticas musicais diferentes da
música tonal europeia.
Logo no início de seu texto, List trata das similaridades das vocalizações
canto e fala, apresentando a ideia de que são “duas formas de comunicação humana
sonora”
14
e que dividem entre si pelo menos três características: são “1) vocalmente
produzidas, 2) linguisticamente significativas, e 3) melódicas”
15
. O critério de
comparação utilizado entre as vocalizações, tanto canto e fala quanto seus estágios
intermediários, é baseado principalmente na característica melódica de cada uma delas.
Desse modo, List apresenta as seguintes definições: a fala é definida como uma
elocução (utterance) casual, como em uma conversação. Conforme a fala deixa de ser
elemento de uma conversação ordinária e passa a compor situações sociais mais
estruturadas (como representações dramáticas, o contar de piadas e histórias) torna-se,
então, uma fala salientada16 (heightened speech), um grau intermediário entre o cantar
e o falar e que apresenta uma certa expansão da tessitura vocal e maior precisão das
alturas. Canto, por sua vez, segundo List, é a uma vocalização que exibe alturas
relativamente estáveis, possui uma estrutura escalar minimamente elaborada e apresenta
pouca, ou nenhuma, influência melódica da entoação da fala17.
É importante ressaltar que as ideias expostas por George List em busca da
precisa definição dos termos canto e fala entram em conflito com a ideia de outros
pesquisadores. Especificamente em relação a definição de List para a vocalização
14
LIST, 1963, p.1.
Idem.
16
Termo traduzido por Suzel Ana Reily no texto “As Vozes das Folias: um tribute a Elizabeth Travassos
Lins”.
17
LIST, 1963, p.1.
15
22
“canto”, o filósofo Jean-Jacques Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas
propõe uma ideia bem distinta:
A melodia [do canto], imitando as inflexões da voz, exprime as
lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos.
Devem-se-lhe todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões
das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos
da alma (ROUSSEAU, 1978, p. 190).
Desse modo, Rousseau, diferentemente da ideia apresentada por List,
enxerga no canto uma influência direta das inflexões da fala.
De volta ao texto de List, o autor associa os parâmetros estabilidade das
alturas e tessitura utilizada na vocalização como mecanismos definidores de diferentes
vocalizações, de modo que quanto mais estáveis as alturas emitidas pela voz e maior a
tessitura utilizada, mais esta vocalização aproxima-se do canto. A fala ordinária, devido
a sua particular musicalidade, que nos remete a um percurso melódico caótico e que não
utiliza uma tessitura ampla na vocalização, define-se por ser uma vocalização cujo as
alturas são pouco estáveis18. A fala salientada, por sua vez, seria o que nomeamos nesse
trabalho como canto-falado, uma espécie de meio termo que se encontra entre o canto e
a fala propriamente ditas e que abarca uma série de manifestações vocais.
Ao expor suas definições primárias, List ressalva o fato de que estas
distinções não se organizam desta mesma maneira em outras culturas e cita a
dificuldade em adaptar sua sistemática de classificação às línguas tonais19, haja vista
que, nestes casos, a entonação faz parte da estrutura semântica do idioma. Exemplos da
riqueza de interpretações que envolvem as definições de canto e fala em culturas
diferentes, podem ser encontradas ainda em outros trabalhos científicos de outros
18
Talvez por este motivo o compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874 – 1951), ao elaborar seu
Sprechgesang, ou Sprechstimme, sugeriu que a cantora abandonasse as alturas entoadas por meio de
glissandos. Essa diretriz na proposta de canto de Schoenberg é reforçada pela observação do próprio
compositor no Prefácio de sua peça “Pierrot Lunaire”: “[o cantor deve] tornar-se extremamente consciente
da diferença entre a entoação do canto e a entoação da fala: a entoação do canto permanece inalterável na
altura emitida, enquanto a entoação da fala emite uma altura mas imediatamente a deixa de novo caindo
ou subindo.”. (Becoming acutely aware of the difference between singing tone and speaking tone: singing
tone unalterably stays on the pitch, whereas speaking tone gives the pitch but immediately leaves it again
by falling or rising.) (SCHOENBERG apud SONGER, 2016, p. 56).
19
LIST, 1963.
23
autores. No texto Música, cultura e experiência do etnomusicólogo britânico John
Blacking, o autor afirma que “os muçulmanos não classificam o canto Qur’anic como
música, mas ele [o Qur’anic] possui características em comum com o canto gregoriano
e com outros tipos de cantos que muitos musicólogos consideram como tal.” 20. Já no
livro Why Suyá Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian People, o
etnomusicólogo Anthony Seeger afirma que “entre os Suyá [grupo indígena brasileiro],
a palavra ngere pode ser traduzida como canto, mas é contrastada com sarén, que se
refere aos gêneros vocais de instrução, e não a kapérni, a palavra suyá para fala”21.
Chama-nos a atenção também alguns casos onde sequer existe a
diferenciação entre os conceitos de poesia – que, de um modo geral, para nossa
concepção atual remete a um gênero literário em versos – e música. Nestes casos, notase a relação quase simbiótica que a música possui com a palavra. É o caso, por exemplo,
da música do povo sul-africano Venda. No texto The Structure of musical discourse: the
problem of the song text, John Blacking afirma que “algumas sociedades sequer
distinguem poesia e música. Nos Venda, versos recitados ritmicamente são tidos como
música, e classificados como canto”22. Esta mesma ausência de distinções ocorreu no
início do processo de desenvolvimento da tradicional música europeia, conforme
explica-nos a pesquisadora Mônica Lucas:
No âmbito da composição, música e palavra já guardavam uma relação
estreita praticamente desde o início da notação musical. Ela se dá pela
afinidade sonora existente entre as duas artes, pois ambas lidam com
ritmo e melodia. Esta identidade fica evidenciada no termo comum
23
carmen , utilizado para descrever tanto música como poesia (LUCAS,
2010, p. 30).
O termo latino carmen, oferecido por Mônica Lucas, curiosamente parece
encontrar uma certa correspondência a uma das acepções do termo mousikê na língua
grega antiga. Conforme explica-nos o pesquisador Roosevelt Rocha Júnior:
20
BLACKING, 2007, p. 203.
REILY, 2014, p.37.
22
“Some societies do not even distinguish between poetry and music. In Venda, rhythmically recited
verse is music, and classed as ‘song’” (BLACKING, 1982, p. 18).
23
O plural de Carmen, Carmina, remete-nos a conhecida peça “Carmina Burana” de Carl Orff (1895 –
1982), título que pode ser traduzido para o português como "Canções/Poemas da Beuern".
21
24
A palavra mousikê para os antigos gregos tinha significados diferentes
do valor que a palavra “música” tem para nós hoje. Para os homens da
Grécia antiga, dentre outras possibilidades semânticas, mousikê
designava a união da melodia com a palavra; em certos contextos, como
no da lírica coral e no dos coros das tragédias, acrescentava-se a dança.
Por isso, a palavra poietês pode ser traduzida também por compositor.
(ROCHA JÚNIOR, 2007, p. 32).
Nota-se que a terminologia utilizada em outros contextos culturais, cujo
significado congloba os significados dos termos poesia e música, explicita a relação
íntima que música e palavra possuem nestas culturas. Esta observação corrobora a ideia
de que ao tomarmos conhecimento de como cada cultura classifica suas vocalizações,
obtemos pistas importantes do papel da música e do fazer musical nestas sociedades.
Voltando a empreitada classificatória do etnomusicólogo George List, o
autor desenvolve suas propostas ao tentar identificar matizes intermediárias entre os
polos fala e canto e associar a estas “falas salientadas” duas distintas tendências: uma
que vai em direção a uma maior expansão tonal da tessitura e menor precisão tonal,
aproximando-se da ideia de sprechstimme (algo como o Sprechgesang de “Pierrot
Lunaire” de Arnold Schoenberg); outra que vai em direção a uma menor expansão
tonal da tessitura e maior precisão tonal, aproximando-se da ideia de Monoton (vide
figura 1).
25
Figura 1: Diagrama de George List
Fonte: LIST, 1963, p. 9.
Em síntese, com o diagrama cartesiano de List é possível associar a fala a
uma vocalização de “expansão e precisão tonal limitada, enquanto o canto teria uma
marcada expansão e precisão tonal” 24. Além disso, em seu texto List sugere que a voz,
ao aproximar-se do canto, sofre uma progressiva aquisição de musicalidade, sugerindo,
então, que o estado da voz cantada seja uma manifestação musical, enquanto a fala
cotidiana não 25. Acerca disso, a pesquisadora Suzel Reily complementa:
24
REILY, 2014, p. 37.
A esse respeito, parece discordar o pesquisador Richard Paget, ao afirmar que “Toda fala, seja ela
sussurrada ou vocalizada, é um fenômeno puramente musical”. (All speech, whether whispered or voiced,
is a purely musical phenomenon.) (PAGET, 1924, p.78)
25
26
Seja pelo contínuo fala–sprechstimme–canto ou fala–monotom–canto,
List identifica uma progressiva “musicalização” da vocalização,
processo que também poderia ser chamado de “estetização”, isto é, da
inclusão de inflexões vocais com finalidades expressivas (REILY, 2014,
p.37).
O mesmo ocorre com a ideia de progressiva aquisição de performatividade26
da voz ao aproximar-se do canto. A ideia de performativização da voz é abarcada por
List ao associar a emergência da fala salientada ao abandono da conversação ordinária e
ao aparecimento do uso da voz em situações sociais mais estruturadas. Neste fluxo, ao
ouvinte passa a ser importante não apenas o que é dito, mas como é dito. E é justamente
essa “maneira de se dizer” que pode deslocar uma vocalização neste continuum
conceitual. Estendendo a discussão sobre a enunciação enquanto performance, e ainda
retomando a problemática da conceituação entre fala e canto, apresentamos a
transcrição escrita da fala do medievalista Paul Zumthor em sua entrevista a André
Beaudet, excerto do livro “Escritura e Nomadismo”:
Quando falo, minha presença física tende a se atenuar mais ou menos,
eu me dissolvo nas circunstâncias. Se eu canto, eu me afirmo,
reivindico a totalidade do meu lugar, do meu estar no mundo. É a
razão pela qual, creio eu, a maioria das performances poéticas são
mais cantadas do que ditas. No entanto, por onde passa a fronteira?
Tomemos o exemplo do blues. Por longa data, houve blues falados, os
talking; depois, os blues cantados, e, mesmo assim, não penso que seja
possível fazer uma distinção nítida entre ambos: havia uma espécie de
gradação, ao longo da qual, de repente, percebeu-se que, sem sentir se
havia mudado de registro. Insisto no sem sentir. (ZUMTHOR, 2005,
p. 71-72)
26
Para o pesquisador Paul Zumthor “a performance é virtualmente um ato teatral, em que se integram
todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as circunstâncias
nas quais ele existe. Retomemos um poema de Milton: num certo momento este poema foi escrito;
poderia portanto dizer: é escritura. Mas então intervém a voz, na transmissão do poema, na audição que
dele fazemos. Contrariamente ao que se passa na leitura, ato diferido, quando um poeta declama seu
próprio texto, estamos diante dele numa situação de diálogo, uma imediatez se estabelece entre sua
palavra, a percepção que temos dele e os efeitos psíquicos que ele gera em nós. ” (ZUMTHOR, p.69,
2005)
27
Em suas ideias Paul Zumthor explicita a crescente aquisição de
performatividade na voz ao aproximar-se do canto. Além disso, ao se utilizar do termo
“gradação” ao citar a diferença entre os blues cantados e os falados, insere-se no rol dos
teóricos que concebem o par canto e fala como continuum, no caso de Zumthor, um
continuum absolutamente sutil, sem estrias ou fronteiras perceptíveis ao ouvinte.
Ainda a respeito das diferenças entre canto e fala, Henri Pousseur oferece
uma interessante observação, agora com foco sobre o processo de sistematização e
notação destas duas vocalizações:
Embora o material da língua seja, de certo modo, o mesmo que o
material da música – o som com todas as suas variantes, a variante de
tempo (articulação no tempo, no ritmo), a variante de altura, a variante
de timbre, de dinâmica, de intensidade –, essas variantes foram
sistematizadas e anotadas diferentemente. A notação da linguagem, o
alfabeto, é uma notação principalmente centrada sobre o timbre. As
vogais e as consoantes são a oposição dos sons e dos ruídos; a
diferenciação de vogais realizando os diferentes timbres harmônicos,
as diferentes composições espectrais etc., e as consoantes os diferentes
tipos de ataques, de ruídos. Por outro lado, o fenômeno da entonação,
da inflexão melódica, não está claramente representado na notação da
linguagem, e quando surge o problema da sua notação para fins
pedagógicos, têm-se sérias dificuldades. Em contrapartida, a música
especializou-se na notação de relações de duração muito precisas, que
não se notam também claramente na linguagem, e sobretudo relações
de
alturas,
porque
desenvolveu
essas
relações
muito
mais
sistematicamente que a língua falada (POUSSEUR, 1974, p. 153-154
apud MENEZES, 2002, p. 147).
Assim, por meio do excerto de Pousseur refletimos que a escrita em nosso
alfabeto não prevê o percurso melódico nem as relações de duração precisas da inflexão
melódica como em uma partitura musical. Nesse sentido, é interessante pensarmos no
texto escrito como uma partitura aberta, sujeita à interpretação criativa por parte do
28
intérprete-leitor. É importante considerar também que, embora alguns parâmetros dessa
inflexão não sejam evidenciados no texto escrito, muitos deles são definidos pelo
âmbito da cultura.
1.3 O canto-falado para alguns pensadores brasileiros
Em seu livro O Turista Aprendiz, o escritor e musicólogo Mário de Andrade
(1893 – 1945) narra em forma de diário as ricas observações que fez no decorrer de
duas viagens para a Amazônia e para o Nordeste brasileiro. Mesclando importantes
relatos etnográficos com passagens descritivas e por vezes anedóticas, em seu livro o
autor concebe os Índios Dó-mi-sol, com intuito de realizar uma “monografia
humorística, sátira às explorações científicas, à etnografia e também social”27. O tom
satírico da descrição desta tribo indígena fictícia dá-se já que a tribo possui moral e
costumes absolutamente distintos da cultura ocidental contemporânea. Uma das mais
notáveis peculiaridades dos Índios Dó-mi-sol reside na estrutura de sua linguagem, uma
vez que
no período pré-histórico da separação do som, em som verbal com
palavras compreensíveis e som musical inarticulado e sem sentido
intelectual, [os Índios Dó-mi-sol] fizeram o contrário: deram sentido
intelectual aos sons musicais e valor meramente estético aos sons
articulados e palavras (ANDRADE, 2015, p. 135).
Em um dos excertos escritos por Mário de Andrade, o autor narra passagens
com especial atenção à descrição de como os índios utilizam a linguagem, vejamos:
Estou passeando no grande mocambo do rei e num dos
compartimentos encontro uma rainha comendo, coisa safadíssima. Ela
27
ANDRADE, 2015, p. 134.
29
fica indignada e me passa uma descompostura. Foi uma chuva de
sons, trinados, destacados, saltos de oitava duma velocidade e dum
belcanto admiravelmente virtuosístico, meu Deus! que tarantela!
Aliás, força é notar que o número de sons que eles possuíam era muito
maior que a nossa pobre escala cromática. Era frequente o quarto de
tom, não raros os quintos de tons. Um dos paredros [chefes] mais
apontados da tribo dó-mi-sol falava constantemente palavras em que
entravam sextos de tom e outras miudezas sonoras que inda me
pareceram
mais
sutis.
Inventara
um
vocabulário
próprio,
exclusivamente dele e que ninguém não compreendia. Era um grande
filósofo, todos afirmavam. Os que, depois de vários anos de estudo,
conseguiam o interpretar o achavam genial, e davam pra se degradar,
degradar e ficavam completamente degradados. Escutei muitas vezes
esse filósofo falando ao povo, sentado nas raízes das sumaúmas ou
encarapitado no oco dum pau. Era como um chilro leviano de
passarinho; e, com exceção dos discípulos degradados, todos iam aos
poucos adormecendo. Então o filósofo sacudia levemente a cabeça, e
num sorriso meigo compreendia e aceitava a incapacidade geral de o
seguir. Calava-se. E como o exercício do chilro o enchera muito de ar,
peidava com melancolia (ANDRADE, 2015, p. 137).
A anedótica menção desta ficção etnográfica a respeito dos Índios Dó-misol em nosso texto objetiva apresentar ao leitor a tentativa de definição conceitual de
canto e fala segundo Mário de Andrade. Partindo deste relato, em busca do oposto ao
que faziam os Dó-mi-sol, podemos aferir que, para Mário de Andrade, o som verbal
com as palavras compreensíveis (a fala) está associado a um sentido intelectual, já ao
som musical inarticulado (o que para nós poderia ser um canto sem a presença das
palavras) atribui-se um valor meramente estético. Estas ideias podem ser sintetizadas na
seguinte citação de Mário de Andrade: “a voz cantada quer a pureza e a imediata
intensidade fisiológica do som musical. A voz falada quer a inteligibilidade e a imediata
intensidade psicológica da palavra oral (…) ”28.
Ao mencionar nas citações anteriores os pares ‘intelectual versus estético’ e
‘fisiológico versus psicológico’, Mário de Andrade se utiliza de um viés dicotômico na
28
ANDRADE, 1965, p. 43-44.
30
comparação das vocalizações. Abordando ainda outros parâmetros, o autor dá
prosseguimento a discussão entre as diferenças entre canto e fala no livro “Aspectos da
Música Brasileira”, vejamos:
Como o arco que vibra tanto para lançar longe a flecha como pra
lançar perto o som: a voz humana tanto vibra pra lançar perto a
palavra como pra lançar longe o som musical. E quando a palavra
falada quer atingir longe, no grito, no apelo e na declamação, ela se
aproxima caracteristicamente do canto e vai deixando aos poucos de
ser instrumento oral para se tornar instrumento musical (ANDRADE,
1965, p.43).
Para Mário de Andrade, a ideia de que a voz cantada emite um “som
musical” é semelhante ao argumento de List, conforme expusemos. Cantar seria, para
ambos, a atitude musical do instrumento Voz. A voz falada, por sua vez, emite um som
oral, ou seja, sua pertinência é altamente “linguística”, sua característica fortemente
textual e sua natureza no campo sonoro, efêmera; por isso mesmo, não seria, de acordo
com os autores, música. Além disso, ao usar a expressão “vai deixando aos poucos”,
Mário de Andrade atesta também a favor da ideia do continuum que liga estas duas
pontas: fala e canto. Para o autor, a voz – ao ir em direção ao canto – ganha
notadamente um maior alcance e não só se faz ouvir de mais longe, como também se
faz notar enquanto ato performático.
Especificamente em relação a efemeridade sonora da fala na memória do
ouvinte, no sentido da musicalidade da entoação da voz falada, escreve o pesquisador
Luiz Tatit:
O caráter impreciso e efêmero das entonações linguísticas,
extremamente adequado à rapidez da circulação das mensagens na
vida cotidiana, torna-se incompatível com as leis de fixação sonora
exigidas pela canção. Nesse sentido, a velocidade da fala é ruídodisforia a ser negado pela canção, ao mesmo tempo que constitui
importante recurso ao alcance dos compositores e cantores
31
interessados na dinamização sonora de suas obras (TATIT, 2007, p.
250-251).
Para Tatit, comparado com o canto-falado tão presente no universo da
canção popular brasileira (conforme veremos no Capítulo 3), a fala, do modo como é
utilizada e ouvida no dia a dia, seria rápida e com alturas imprecisas demais para um
processo comum de fixação, ou seja, a apreensão imediata pelo ouvinte dos detalhes
melódicos da entoação. A música da fala neste contexto seria, portanto, somente veículo
de uma ideia extramusical. Por outro lado, Tatit também aponta para o fato de que, de
modo geral, a canção popular brasileira tem por base as curvas entoativas da fala como
elemento primordial na construção da melodia que é cantada.
29
Nesse sentido, é
interessante pensar que a canção popular brasileira possibilita ao ouvinte a escuta desta
musicalidade presente na fala cotidiana, porém oculta pela função comunicativa que
monopoliza cotidianamente todo o processo.
De qualquer maneira, para que a comunicação no dia a dia se concretize,
não há a necessidade de preservação total da sonoridade sugerida pelas entoações da
fala na memória do ouvinte, mas sim do conteúdo semântico veiculado por ela. A ideia
se fixa, o som se esvai. 30
É possível relacionar estas ideias de Luiz Tatit com o conceito de síntese
simultânea, cunhado pelo linguista Roman Jakobson:
(...) síntese simultânea (mormente a partir de Roman Jakobson),
qualidade humana esta presente tanto na fala quanto na música e que
29
Tatit menciona esta ideia em alguns excertos do livro “O Cancionista”, como por exemplo: “Tive , em
1974, uma espécie de insight ou de susto quando, ouvindo Gilberto Gil reinterpretando antigas gravações
de Germano Matias, me ocorreu a possibilidade de toda e qualquer canção popular ter sua origem na
fala.” (TATIT, 2002, p.12), ou mesmo em: “A grandeza do gesto oral do cancionista está em criar uma
obra perene com os mesmos recursos utilizados para a produção efêmera da fala cotidiana. As tendências
opostas de articulação linguística e continuidade melódica são neutralizadas pelo gesto oral do cancionista
que traduz as diferenças em compatibilidade” (TATIT, 2002, p. 11).
30
Ainda em “O Cancionista”, Luiz Tatit trata dessa mesma questão: “A fala pura é em geral instável,
irregular e descartável no que tange a sonoridade. Não mantém ritmo periódico, não se estabiliza nas
frequências entoativas e, assim que transmite mensagem, sua cadeia fônica pode ser esquecida. Fazer uma
canção é também criar uma responsabilidade sonora. Alguma ordem deve ser estabelecida para assegurar
a perpetuação sonora da obra, pois seu valor, ao contrário do colóquio, depende disso.” (TATIT, 2002,
p.12).
32
consiste na capacidade que temos em reter as informações do fluxo
temporal e compará-las umas com as outras, constituindo o elo
semântico que as une, ainda que cada informação sonora linguística
ou musical se esvaneça com o próprio tempo (MENEZES, 2002, p.
28).
Nesse sentido, ao realizarmos a síntese simultânea em um processo de
escuta de uma fala, retemos imediatamente suas informações linguísticas e
abandonamos as informações sonoras. Talvez pela tamanha força que a questão
comunicativa-verbal exerça na escuta do fenômeno sonoro que é a fala é que não
conseguimos ouvir musicalmente nossa língua materna como podemos fazer com
idiomas outros, que desconhecemos. Sabemos e sentimos que o Mandarim ou o Tupi
soam de determinada maneira, por exemplo; mas é difícil avaliar essa sonoridade na
língua que falamos todos os dias, as ideias carregadas pelas falas em nosso idioma
materno ocupam a mente com mais força do que a avaliação musical deste mesmo
evento. Apesar desta dificuldade, propostas artísticas criativas vêm sendo desenvolvidas
no campo musical e que permitem ao ouvinte acessar com mais clareza a fruição
estética da musicalidade da voz falada. Uma delas, a Música da Aura.
Na busca pelos conceitos de canto e fala, sobretudo no contexto brasileiro, é
importante mencionar o trabalho do músico Hermeto Pascoal. Hermeto, que além de
discutir a problemática da classificação de vocalizações canto e fala no âmbito das
ideias, propôs também a sua Música da Aura, um tipo de Música que explicita ao
ouvinte a tácita musicalidade da voz falada. Em entrevista a respeito do que seria a sua
Música da Aura, a explicação de Hermeto Pascoal parte de um singelo relato:
Aos 7 anos de idade descobri que a nossa fala é o nosso canto. O mais
natural de todos, pois cada fala é uma melodia. Eu costumava dizer
para minha mãe que ela e suas amigas estavam cantando quando
conversavam, mas ela dizia:" - Deixe disso, menino! Você está
ficando louco?" (PASCOAL, 2009, s.n).
De início, nos deparamos com a precoce e sensível escuta de Hermeto
Pascoal que percebe a coexistência harmoniosa da fala e do canto na mesma
33
vocalização pois a entoação da fala cotidiana também pode ser ouvida como uma
melodia. De fato, essa percepção se “anuncia” uma vez que a fala e a melodia partilham
dos mesmos parâmetros musicais: altura, ritmo, dinâmica, timbre, etc. Por este viés, as
ideias de Hermeto Pascoal direcionam a classificação das vocalizações para um
processo de escuta do ouvinte. Este processo é a base de sua Música da Aura.
Em termos práticos, a Música da Aura funciona da seguinte maneira: um
trecho gravado de fala é reproduzido e Hermeto transcreve a melodia sugerida pela
entoação – por meio das alturas e durações inerentes ao falar – e explicita, ora tocando-a
no piano, ora elaborando harmonizações ou arranjos sobre esta melodia, sempre com a
gravação da fala original sendo executada concomitante à sua execução musical. Como
matéria prima, Hermeto se utiliza de narrações de futebol, poemas declamados, excertos
de aulas de natação, discursos presidenciais e pregões em uma feira livre. Esta música
de Hermeto nos faz lembrar da citação de Suzel Ana Reily: “Outras formas de
vocalização, como o “canto” dos números num bingo ou os comentários de um
radialista num jogo de futebol envolvem características musicais que desafiam as
fronteiras entre o canto e a fala. ”31.
Hermeto descreve a realização da Música da Aura como sendo simples, já
que possui o reconhecimento imediato das alturas que escuta – o ouvido absoluto: “É
muito fácil tocar o Som da Aura, que nada mais é do que a energia do som de cada
pessoa através da música. E quando eu escuto a voz da pessoa, eu toco aquilo que estou
escutando”32. Em outra entrevista, Hermeto Pascoal completa: “Percebo a melodia da
fala, escrevo o tema que é essa melodia e depois faço o arranjo, que é a harmonização e
o ritmo. Então, sou apenas o criador da ideia e o arranjador. A melodia pertence a quem
falou.” 33. Ultrapassando as descrições práticas de sua Música da Aura, o autor a define
em termos quase espirituais: “o Som Da Aura é a vibração sonora da alma de cada um,
refletida pela sua fala, que faz a ligação entre mente e corpo. É possível fazer o som da
aura também dos animais e dos objetos. No caso dos objetos, eles refletem a nossa
energia. ”34. Há atualmente várias gravações de Músicas da Aura de Hermeto Pascoal
que podem ser encontradas em seus discos Lagoa da Canoa, município de Arapiraca
(1984), Festa dos Deuses (1992) e Chimarrão com Rapadura (2006), e que utilizam
31
REILY, 2014, p. 37.
Apud ESSINGER,2000, s.n.
33
Apud CHENTA, s.d.
34
PASCOAL, 2009, s.n.
32
34
como material sonoro: narrações esportivas, discursos presidenciais, sons de objetos e
animais e falas cotidianas em diversas línguas.
Para o ouvinte que escuta pela primeira vez a Música da Aura, a experiência
é marcante e potencialmente relativizadora nas definições do que é fala e o que é canto
já que esta joga com a escuta do ouvinte ao transpor uma fala cotidiana para um
contexto onde cada variação de altura das entoações torna-se fundamental. O Som da
Aura explicita a música contida na fala de modo tão criativo que esta possibilidade se
abre eternamente para o ouvinte: talvez, após essa experiência o ouvinte possa ser
surpreendido ao se deparar com uma fala cotidiana que acometa seus ouvidos tal qual
um canto o faria35. Para Hermeto, ao realizar sua Música da Aura, a escuta do que antes
era a fala (e que nos remete à definição de uma vocalização que privilegia a semântica e
as ideias veiculadas pelas palavras) passa a abarcar as minúcias sonoras da vocalização
do falante, transformando-a, imediatamente, em canto, relativizando, por fim, todas as
tentativas de classificação expostas neste texto até agora.
1.4 Nó nos conceitos: uma questão de escuta
Retomando as ideias anteriormente expostas e apresentadas, notamos que as
ideias de George List, Paul Zumthor, Luiz Tatit e Mário de Andrade acerca da
classificação entre voz falada e cantada parecem entrar em consenso em alguns tópicos,
como se trilhassem caminhos parecidos. List, Tatit e Zumthor atestam a favor do
crescente performatividade na voz ao se aproximar do canto. George List e Mário de
Andrade associam o cantar a vocalização musicada, ao contrário da fala. A respeito
desta última ideia e considerando a herança deixada pela inventividade da Música da
Aura de Hermeto Pascoal, talvez valha ainda um outro mergulho: mas a fala, então, não
poderia ser música?
Acerca desta questão elementar, em seu importante livro How musical is
man?, o etnomusicólogo John Blacking consolida um trabalho de referência no campo
dos estudos da antropologia da música e se ocupa em estudar a música e o fazer musical
do povo sul-africano Venda. Neste livro, Blacking afirma que os seres humanos
35
Um
interessante
relato
desta
experiência
pode
<https://porepore.wordpress.com/2009/09/16/som-da-aura/>.
ser
lido
no
endereço:
35
naturalmente são dotados de musicalidade, ou seja, possuem a aptidão inata para
perceber e fazer música. Por assim serem os seres humanos, Blacking definiu o termo
música como “sons humanamente organizados”, uma definição coesa e abrangente.
Por se tratar de uma definição abrangente, logo é possível indagar: se eu, um
ser humano, organizo em minha cabeça os sons que escuto de modo que posso fruí-los
como música, todos os sons, portanto, podem, nesta circunstância, ser música? Esta
ousada indagação pode encontrar algum recosto ao tomarmos ciência dos trabalhos de
Steven Feld. No texto O Musicar Local – novas trilhas para a etnomusicologia, as
pesquisadoras Suzel Reily, Flavia Toni e Rose Hikiji afirmam:
Steven Feld (1994) documentou a forma peculiar de escuta dos kaluli,
de Pápua Nova Guiné, que denominou de escuta “salientar-entresonorizações” (lift-up-over-sounding), uma escuta marcada pelo
sobre-posicionamento de sonoridades do ambiente florestal em que os
Kaluli vivem, levando-os a fazer emergir, em sua escuta, uma
sonoridade específica em meio à totalidade de sons presentes.
Lembramos também que Blacking (1973:8) argumentou que a
habilidade de identificar, apreciar e compreender estruturas musicais
ouvidas deve-se à musicalidade inata dos seres humanos (REILY;
TONI; HIJIKI., 2016, p.8).
Se os Kaluli escutam o ambiente sonoro da floresta ou o canto dos pássaros
como música36, não seria, portanto, possível encarar a fala como um ato musical? Sendo
a fala, assim como o canto, uma vocalização constituída de ritmos, alturas, acentos e
modulação de timbres, esta não poderia ser ouvida como uma melodia musical cantada?
Esta ideia, apesar de contrariar as ideias de List e de Mário de Andrade expostas
anteriormente onde a voz tende a se musicalizar ao se aproximar do canto, encontra
respaldo em discussões de diversos autores. Vejamos, por exemplo, o excerto de uma
entrevista realizada com o etnomusicologo Anthony Seeger publicada na Revista de
Antropologia da Universidade de São Paulo:
36
FELD, 1994.
36
Pergunta: O senhor diz em um de seus artigos que a oratória é falada,
o mito é contado, a canção é cantada, mas que todos são música para
seus ouvidos.... Gostaríamos que falasse um pouco mais sobre isso.
Seeger: Eu achava que a distinção entre fala e música (especialmente
quando a música é toda cantos e, por consequência, palavras) era uma
coisa problemática. Na fala se usam tons e também se manipula o
tempo; na música se usam tons e se manipula o tempo. Então, eu
achava que, em vez de dizer que esta é música e aquela é fala, existe a
maneira de se manipular os tons e os tempos na fala cotidiana – assim
como aqui conversando em volta de uma mesa, que é diferente da
maneira de usar a fala ritual (mais recitativa como uma ópera) –, que
era diferente da oratória para um público, que era também diferente
dos cantos. Mas todos têm esses aspectos de tons, palavras e tempos.
Acho que é uma questão de quais são os parâmetros em que se muda
de um para o outro (SEEGER, 2007, p. 404).
Ao reconhecer a problemática na classificação entre música e fala, Seeger
prefere, por fim, distingui-las em termos de parâmetros vocais, e não como música e
não música, uma vez que, assim como no depoimento dado por Hermeto Pascoal, para
Seeger ambas as vocalizações soam como música em seus ouvidos.
Nos acostumamos a ouvir a fala cotidiana sem nos ater conscientemente ao
seu som, mas sim ao seu significado, mesmo que este seja veiculado através do som.
Para aqueles que se abrem à experiência de escutar qualquer evento sonoro como
música, canto e fala deixam de ser opostos: a fala passa a ser mais um dos infinitos tipos
de canto que a voz humana pode executar. A mudança no conceito parte,
necessariamente, de uma mudança na escuta.
37
CAPÍTULO 2
A Seconda pratica
Este capítulo busca apresentar ao leitor o estilo musical italiano do início do
período barroco conhecido como Seconda Pratica. Surgido na cidade de Florença, em
torno de um grupo de artistas e estudiosos conhecido como Camerata Fiorentina, em
um momento histórico marcado pela busca da retomada dos conceitos e ideias da
Antiguidade Clássica em um ambiente de prosperidade econômica e de fecundidade na
produção artística em geral, este estilo de música vocal para muitos pesquisadores é
considerado como o marco inicial do período barroco em música. Em termos estéticos,
a Seconda Pratica é orientada pela ideia de que na relação entre texto e música, a
música deve sempre servir às palavras, ideia oriunda do filósofo grego Platão (428/427
– 348/347 a.C.). Além disso, este estilo musical vê no Recitativo – tipo de composição
poético-musical cantada por um solista e que almeja simular a ideia de que o cantor
esteja falando através do canto, com o suporte de uma harmonia – a realização das
ideias de Platão e do intuito em se recriar o teatro grego.
No decorrer deste capítulo, nosso intuito principal será investigar como
foram tratadas as relações entre texto e música neste estilo com foco, principalmente,
nas ideias e realizações musicais dos compositores e teóricos da época. Para isso,
mencionaremos também as ideias e características do estilo antecessor à Seconda
Pratica, a Prima Pratica. Assim, ao longo do texto citaremos algumas vezes excertos
de Tratados e cartas do estilo musical em questão, na tentativa de “dar voz” aos seus
protagonistas bem como nos utilizaremos de diversos exemplos musicais em forma de
áudio e partituras, para que o leitor possa visualizar na própria produção musical do
estilo as questões que serão discutidas ao longo do texto.
38
2.1 A controvérsia Artusi versus Monteverdi
O desenrolar do percurso histórico nas artes é marcado pela presença
constante do embate ideológico. Este processo vivo de inter-relação de tendências e
ideias nas práticas e correntes artísticas oferece ao observador atento o vislumbre de
uma das facetas da dinâmica cultural de uma sociedade, fazendo-nos lembrar da
conhecida e velha questão: a arte imita a vida?
Com frequência algum destes incontáveis confrontos passa por um processo
de personificação, emergindo assim uma querela entre dois personagens. Nesse sentido,
a querela entre Giovanni Artusi (c1540 – 1613) e Claudio Monteverdi (1567 – 1643), na
virada do século XVI para o século XVII na Itália, é considerada por muitos
pesquisadores como de importância vital para o entendimento da emergência de uma
nova prática de composição na música vocal e, para alguns, a inauguração do período
barroco em música.
Como ponto de partida da incursão a este antigo certame, apresentamos um
de seus protagonistas, o compositor Claudio Monteverdi. Nascido em Cremona, na
Itália, é considerado como um importante compositor de sua época, com feitos criativos
revolucionários no âmbito musical como o desenvolvimento de uma rica linguagem
harmônica, na idealização de um conjunto instrumental ousado para a época, base do
que se tornaria séculos depois a orquestra sinfônica, e na conciliação de estilos e
práticas musicais distintas em seu próprio trabalho composicional. Fora do âmbito
estritamente musical também realizou importantes criações, especialmente na fusão de
sua música com outras plataformas artísticas, manifesto em sua frutífera contribuição ao
desenvolvimento de um incipiente gênero musico-teatral, sendo reconhecido por
pesquisadores como o primeiro grande mestre do gênero operístico37.
Ao longo de sua carreira como compositor, Monteverdi publicou oito livros
de Madrigais (um nono livro foi publicado postumamente, em 1651). Reconhecidas
como uma das principais criações artísticas de Monteverdi, os Madrigais apresentaram,
ao longo do desenvolvimento de suas nove coletâneas, uma série de inovações
estilísticas para a época, conciliando características de práticas musicais tradicionais e
de vanguarda. Naturalmente, decorrências deste aspecto vanguardista de Monteverdi
37
OSSI, 2003, p. 1.
39
geraram uma série de críticas na época, principalmente entre os representantes da
tradição contrapontística do Renascimento. A mais célebre destas críticas, feitas pelo
teórico Giovanni Maria Artusi, deu início a um embate posteriormente reconhecido
como a querela Artusi versus Monteverdi.
Giovanni Maria Artusi foi um musicólogo nascido na cidade de Bolonha,
conhecido, principalmente, por ser discípulo e herdeiro do pensamento musical do
teórico Gioseffo Zarlino (1517 – 1590). Zarlino, por sua vez, foi um renomado teórico e
compositor do século XVI, também italiano, que desenvolveu um importante legado a
respeito de aspectos teóricos da música como as afinações e, sobretudo, a codificação de
regras para a realização do contraponto no contexto modal. Parte essencial deste legado
encontra-se no tratado Le Institutione Harmoniche (Veneza, 1558). Sua abordagem
privilegiava o aspecto científico e racional da música, em prol da busca pela perfeição
na composição musical. Especificamente em relação às suas regras harmônicas, vê-se
uma atenção especial ao uso de intervalos dissonantes (como segundas e sétimas), no
qual a dissonância devia sempre ser preparada e resolvida de uma maneira
cuidadosamente prescrita.38
Na transição entre o século XVI e XVII, vê-se emergir na música vocal
contrapontística uma certa flexibilização das regras codificadas por Zarlino, “a ponto de
suscitarem acusações de [estas regras] estarem sendo infringidas. ”39. Como discípulo e
herdeiro do legado de Zarlino, foi Artusi quem responsabilizou-se por apontar as
imperfeições que vinham sendo cometidas na música vocal de seu tempo (moderna), o
que ocasionou não apenas a sua querela com Monteverdi, mas também controvérsias
com outros compositores como Ercole Bottrigari e Vincenzo Galilei40. Em seu tratado
L'Artusi, overo Delle Imperttioni della moderna musica41 (1600), escrito em forma de
diálogo entre dois hipotéticos personagens (Vario e Luca), Artusi argumenta contra a
maneira de usar as dissonâncias por parte dos compositores modernos bem como o uso
38
Segunda Zarlino, em seu tratado Le Institutione Harmoniche o uso de uma dissonância na composição
musical deve ser condicionado às seguintes regras: “pode-se eventualmente alternar consonâncias e
dissonâncias, mas as dissonâncias têm que estar sempre nos tempos fracos; (...) a dissonância deve ser
seguida pela consonância mais próxima; (...) salto para dissonância não é permitido, pois ela é tão notada
no salto que dificilmente pode ser tolerada; (...) Resumindo o uso das dissonâncias, elas podem aparecer:
por grau conjunto, no tempo fraco e como nota mais curta do que a consonância. Devem também ser
sempre resolvidas na consonância mais próxima. ” (DIAS,2015, p. 54).
39
STASI, 2009, p. 11.
40
STASI, 2009.
41
“Das imperfeições da música moderna”.
40
de vários modos na mesma música, citando, especialmente, o madrigal “Cruda
Amarilli” de Monteverdi como exemplo.
Para que possamos compreender o teor das críticas de Artusi, vejamos o
seguinte excerto da primeira página do madrigal “Cruda Amarilli”, escrita pelo
compositor italiano Claudio Monteverdi e publicada em seu Quinto Livro de Madrigais
(1605).
41
Figura 2: Primeira página do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi.
Fonte: <imslp.org>
42
Talvez a mais emblemática ilustração de uma destas “imperfeições”,
segundo Artusi, encontra-se no compasso 13 do madrigal, onde a nota Lá do soprano é
uma dissonância (intervalo de nona) não preparada em relação a nota Sol do baixo.
Como se não bastasse, a nota Lá do soprano salta para a nota Fá, que é também uma
dissonância (uma sétima) em relação à nota Sol do baixo.
Figura 3: Compassos 13 e 14 do madrigal “Cruda Amarilli” de Claudio Monteverdi
Para Artusi, esse procedimento contrapontístico fere um conjunto de regras
a respeito da manipulação das dissonâncias postuladas por Zarlino. Para que esta
passagem musical pudesse estar de acordo com os preceitos contrapontísticos
defendidos por Artusi, seria necessário, por exemplo, que a nota Lá do soprano, por ser
uma dissonância em relação ao Sol do baixo, fosse precedida por uma consonância e,
depois, fosse resolvida para uma consonância por grau conjunto descendente. Não é o
caso no madrigal, já que a nota Lá salta para a nota Fá.
Monteverdi, apesar de seu exímio conhecimento contrapontístico, preferiu
argumentar a razão de suas escolhas composicionais por outro viés. No seu Quinto
Livro de Madrigais (1605), escolhe o madrigal “Cruda Amarilli” como o primeiro do
conjunto e no prefácio, publica um texto explicativo em tom de réplica às críticas de
43
Artusi, assumindo que, de fato, sua prática musical não respeita as codificadas regras
harmônicas e contrapontísticas propostas por Zarlino. Neste texto, Monteverdi inaugura
o termo Seconda Pratica.
Alguns acharão isto estranho, não acreditando que exista outra prática
para além da ensinada por Zarlino. Mas a esses posso garantir, a
respeito de consonâncias e dissonâncias, que há uma forma de as
considerar diferente dessa já determinada, (...). Quis dizer isto tanto
para que os outros não se apropriassem da minha expressão seconda
pratica como para que os homens de inteligência pudessem considerar
outras reflexões sobre harmonia (MONTEVERDI apud STASI, 2009,
p. 12).
Alguns anos mais tarde, o irmão mais novo de Claudio Monteverdi, Giulio
Cesare Monteverdi (1573 – 1630/31), publica no prefácio do livro de Claudio Scherzi
Musicali a ter voci (1607) uma ‘Dichiaratione’ (declaração) afirmando que as escolhas
musicais de Claudio Monteverdi em seus madrigais se pautavam pela ideia de que a
palavra é senhora da harmonia, e não serva. Para tal, Giulio Cesare embasa seus
argumentos retomando os princípios musicais do filósofo grego Platão (428/427 –
348/347 a.C.). Platão, em sua República (398d e 400d), afirma que: “A canção
[melodia] é composta de três elementos: oração, harmonia e ritmo (…) Ritmo e
harmonia seguem a oração, e não a oração segue o ritmo e a harmonia. ”42. Com isso,
Monteverdi associa a sua prática musical à ideia de que, na música vocal, conforme
preconizado há muito por Platão, a harmonia e o ritmo devem ser completamente
subordinados à palavra (texto cantado). Ao priorizar a palavra em relação à música,
Monteverdi abre precedentes para que as regras de condução harmônica de Zarlino
fossem quebradas em prol da expressão do conteúdo poético da palavra em música – e
com isso nomeia esta prática como Seconda Pratica.
Mas como se manifesta, em termos práticos, esta ideia de Platão de que a
palavra deve ser seguida pelos elementos musicais? No madrigal “Cruda Amarilli” de
Monteverdi, por exemplo, podemos identificar esta ideia manifesta de duas maneiras: a
preocupação com a inteligibilidade da palavra que é cantada (o que gera,
42
apud STASI, 2009, p. 9.
44
sintomaticamente, uma preocupação com o tratamento da textura musical e da maneira
de se cantar) e a expressão do conteúdo do texto poético através da música. Acerca da
inteligibilidade da palavra quando cantada, tópico que será explorado mais
detalhadamente ainda neste capítulo, um procedimento composicional bastante utilizado
por Monteverdi foi a variação de texturas: a textura homofônica e a textura
contrapontística. A textura homofônica, ao fazer com que as vozes cantem a mesma
figuração rítmica consecutivamente, permite que o texto seja cantado ao mesmo tempo
em todas as vozes, aumentando assim a sua inteligibilidade para o ouvinte.
Figura 4: Excerto homofônico em “Cruda Amarilli”.
Procedimentos similares a estes encontrados no madrigal “Cruda Amarilli”
podem ser encontrados em outras peças vocais de Monteverdi, demonstrando que estes
eram artífices comuns empregados pelo compositor na busca pela valorização do texto
poético em suas músicas. Em seu madrigal “Sfogava con le stelle” (Figura 6), do
Quarto livro de Madrigais (1603), Monteverdi se utiliza, no primeiro, no sexto e no
décimo primeiro compasso, de um longo trecho de texto sem uma rítmica estabelecida,
fornecendo aos intérpretes somente a seguinte indicação: “Libera delamazione, quasi
45
parlato”43. Neste exemplo, mais do que buscar a textura homofônica em prol da
inteligibilidade do texto, Monteverdi dá claras indicações de que o canto seja como uma
declamação livre, e a rítmica deste canto a mais próxima possível do ritmo da fala. Com
isso, Monteverdi mais uma vez retoma o pensamento de Platão ao fazer com que não só
a harmonia sirva às palavras, mas também o ritmo.
43
MONTEVERDI, 1603, p.15.
46
Figura 5: primeira página do madrigal “Sfogava con le stelle” de Claudio Monteverdi.
Fonte: <imslp.org>
47
Já a respeito da expressão do conteúdo do texto poético em música,
vejamos, novamente, o compasso 13 do Madrigal “Cruda Amarilli” (figura 2) onde o
texto cantado é /ahi lasso/ (ai de mim). O conteúdo semântico desta expressão verbal
expressa ao leitor o sentimento de dor do eu-lírico em relação à amargura de sua amada
Amarílis. A música que é colocada sobre este excerto de texto – e, principalmente, a
maneira como é colocada – almeja simular no ouvinte a sensação desta dor. Aos
ouvidos da época, acostumados a um tratamento polifônico há muito sedimentado, uma
dissonância não preparada causaria um súbito estranhamento que, quando associado a
ideia de dor, como expresso no texto deste excerto, se justifica não somente em termos
poéticos, mas também em termos sensoriais.
Podemos ver esta mesma associação poético-musical na peça “Tu se
morta!”, ária da ópera “Orfeu” (1607) de Claudio Monteverdi e libreto de Alessandro
Striggio. Neste excerto musical, presente no segundo Ato da ópera, o protagonista Orfeu
recebe a notícia de que sua amada Eurídice foi morta por uma picada de cobra. Em um
dos momentos mais dramáticos da narrativa, Orfeu canta então a ária Tu se morta!, seu
lamento em música. O texto cantado no início da ária pode ser traduzido como: “Você
está morta, está morta minha vida, e eu respiro?”. Vejamos:
Figura 6: Recitativo “Tu se Morta!” de Monteverdi, do segundo ato da ópera Orfeu (1607).
O trecho anterior mostra mais um exemplo em que dissonâncias não
preparadas (circuladas em vermelho) são usadas na tentativa de simular a ideia de dor
expressa pelo texto poético e contexto da narrativa. Neste caso específico, as duas
48
primeiras aparições de dissonâncias com este tratamento surgem na melodia cantada
(um fá sustenido no segundo compasso e um sol sustenido no terceiro), ambas
intervalos de sétima maior em relação aos baixos; o texto cantado nesse momento:
/Você está morta/. Este primeiro momento contrapõe o seguinte, onde a palavra “vida” é
cantada uma terça maior acima da nota do baixo. O percurso harmônico44, por sua vez,
traz uma sequência de acordes menores que se move por intervalos de quinta: Sol
menor, Ré menor e Lá menor. O acorde seguinte, também distante uma quinta do
anterior, com baixo em mi, portanto, surpreende o ouvinte pois é maior e não menor
como todos os outros anteriores, sendo que justamente a terça maior (sol sustenido),
nota que evidencia a quebra de expectativa, está na melodia envolta da palavra “vida”.
Nota-se, portanto, que no excerto a dicotomia morte e vida expressa pelo texto cantado
é representada também pela harmonia através de acordes menores e maiores.
Desse modo, Monteverdi, ciente do valor simbólico que os intervalos
musicais, a sequência harmônica e mesmo a quebra de uma condução contrapontística
padrão podem oferecer, constrói nos exemplos citados uma música que visa reforçar as
ideias contidas no texto poético.
Apesar das importantíssimas inovações trazidas por Monteverdi em seus
madrigais, é preciso ressaltar que as críticas de Artusi não devem ser encaradas por nós
na atualidade como meros sintomas de reacionarismo, mas sim como um compromisso
moral que este estudioso tinha com a ideia de que a música é uma ciência45, herança do
pensamento medieval o qual a música ocupava, nas Artes Liberais, lugar entre as
ciências exatas (Quadrivium) 46. Neste contexto, por se tratar da ciência que exprime
sonoramente as proporções matemáticas perfeitas da Natureza e que, portanto, como
ciência, está erigida sobre leis e pressupostos teóricos fundamentais, quaisquer infrações
às regras harmônicas já codificadas, além de imperfeições, representariam também um
44
Foi inserido sob cada acorde um outro tipo de cifragem para que leitores que desconhecem os
pressupostos da realização do baixo cifrado pudessem acompanhar com clareza a evolução harmônica do
excerto.
45
JENKINS, 2009. Para o aprofundamento neste argumento, ver “Giovanni Maria Artusi and the Ethics
of Musical Science” de Chadwick Jenkins (2009).
46
A esse respeito, a pesquisadora Monica Lucas escreve: “O estudo da música nas universidades
medievais concentrava-se na investigação das proporções matemáticas e não em seu efeito sonoro.
Entretanto, a prática da composição musical, mesmo ausente dos estudos especulativos do quadrivium,
também era regida por este mesmo pensamento proporcional. Os gêneros polifônicos mais relevantes da
Idade Média, como o organum, o moteto e a missa eram elaborados a partir de um cantus firmus, uma
estrutura pré-existente extraída do cantochão. Sobre ela se edificava a construção matemática da música,
com base em relações numéricas (rítmicas e harmônicas).” (LUCAS, 2010, p. 30).
49
retrocesso no desenvolvimento científico da música. O compromisso de Monteverdi,
por sua vez, assim como o compromisso da Seconda Pratica em termos gerais, parece
estar mais relacionado com o uso da música como meio de expressão poética, como um
possível veículo expressivo do significado das palavras que são cantadas, e não a busca
pela perfeição da harmonia47. A esse respeito sintetiza Monica Lucas: “No século XVI,
o aspecto declamatório da linguagem e seu valor imagético e afetivo passam a constituir
as diretrizes da inventio musical, substituindo a ideia medieval de numerus.” 48.
A menção deste conflituoso episódio histórico como abertura deste capítulo
teve como intuito oferecer ao leitor a origem do termo Seconda Pratica bem como
contextualizar e sintetizar, em um único episódio, os conflitos ideológicos existentes
entre as duas práticas. Mais do que isso, o estudo desta controvérsia entre Artusi e
Monteverdi oferece, a quem a ela se debruça, uma melhor compreensão acerca das
premissas estéticas e estilísticas da Seconda Pratica e dos frutíferos debates entre os
músicos conservadores e progressistas por volta de 160049. Expostos aqui de maneira
sintética os argumentos de cada um dos lados desta querela, partiremos agora para um
aprofundamento acerca da produção musical e suas principais características em cada
um dos estilos.
2.2 A Prima Pratica
O termo Seconda Pratica nos oferece um panorama ainda mais claro de
seus ideais e de suas experimentações harmônicas quando visto como antagonista de
seu momento antecessor: a Prima Pratica. Como eixo central deste antagonismo, vemos
duas possíveis relações hierárquicas entre texto e música: ora a música domina o texto,
ora o texto domina a música.
47
José Miguel Wisnik, em seu livro “O som e o sentido” tenta realizar uma síntese desse processo: “Da
renascença para o Barroco, a música não se contenta em ser um código de caráter polifônico, mas quer ser
uma verdadeira linguagem dos afetos, um discurso das emoções. Os madrigais e o melodrama barrocos
assumirão um estilo expressivo, declamatório, climatizando os recursos melódicos e harmônicos, as
consonâncias e dissonâncias com uma gesticulação entoativa a serviço da ênfase nas palavras. Essa ênfase
vai investir o sistema tonal nascente de uma carga semântica para a qual ele contribuirá com suas
cadências e sua capacidade de articular com riqueza de nuances as tensões e os repousos” (WISNIK,
1989, p. 127).
48
LUCAS, 2010, p. 31.
49
CARTER, 2012, p.462.
50
Na Prima Pratica, caracterizada pela música vocal polifônica do
Renascimento, impera o preceito de que a música domina o texto cantado e tem nos
compositores Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526 – 1594), Adrian Willaert (c.1490 –
1562), Giovanni Gabrieli (c. 1554/1557 – 1612) e Luca Marenzio (1553 – 1599) e nos
teóricos Zarlino e Artusi, conforme já vimos, representantes de sua produção teórica e
artística. Também conhecido como “stile antico” (estilo antigo), este estilo é
caracterizado por sua escritura contrapontística a muitas vozes. Vejamos a figura 8 que
apresenta um excerto do madrigal “Amor, Fortuna” a quatro vozes do compositor
italiano Giovanni Pierluigi da Palestrina.
Figura 7: Excerto de “Amor, fortuna” de Palestrina
Fonte: <imslp.org>
51
Neste madrigal, Palestrina se utilizou do poema homônimo do escritor
italiano Petrarca para compor sua música. Vejamos que, ao contrário do início do
madrigal “Cruda Amarilli”, esta peça apresenta cada voz em forma de cânone, ou seja,
desde o início da composição existe uma defasagem rítmica entre as vozes.
Sintomaticamente, notamos que neste excerto praticamente não há trechos do texto
cantados concomitantemente em mais de uma voz. Além disso, vemos também um
precioso rigor na escrita contrapontística, em especial ao tratamento das dissonâncias
em fase com as postulações teóricas de Zarlino. Vejamos o seguinte excerto:
Figura 8: compassos 7 e 8. Dissonância preparada no madrigal de Palestrina. Imagem recortada da figura
anterior, por isso a ausência das claves.
Coincidentemente, neste caso, assim como no caso de Monteverdi, vemos
um momento onde há uma nota Lá sendo cantada pelo soprano (circulada em vermelho)
enquanto o baixo canta a nota Sol, novamente uma dissonância de nona. Entretanto,
neste caso a nota Lá não só é resolvida por grau conjunto descendente em direção a uma
consonância (oitava Sol – Sol), mas também é emitida no compasso anterior enquanto o
baixo emitia a nota Fá. Portanto, a nota Lá deixou de ser uma consonância (Fá – Lá:
uma terça) para se tornar uma dissonância, procedimento chamado de preparação da
dissonância e que não estava presente na passagem do madrigal de Monteverdi criticado
52
por Artusi. Este é apenas um dos inúmeros possíveis exemplos do rigor às regras
contrapontísticas na escrita de Palestrina.
Há de se reconhecer a importância de Palestrina para a Prima Pratica e
também ainda para estilos posteriores. Sua prática contrapontística, explicada e
sistematizada por Zarlino em seu Le Institutione Harmoniche, influenciou inúmeras
gerações de compositores e tornou-se um modelo de perfeição da escrita polifônica.
Conforme explica GROUT e PALISCA:
Não muito depois da sua morte [de Palestrina] era corrente considerarse o “estilo de Palestrina”, o estilo palestriniano, como o modelo da
música sacra polifônica. Com efeito, muitos manuais de ensino de
contraponto, desde o Gradus ad Parnassum (1725), de Johann Joseph
Fux, até textos mais recentes, procuram instruir os jovens
compositores no sentido de os levarem a recriar este estilo (...)
(GROUT; PALISCA, 2007, p. 287).
A maior parte da produção musical de Palestrina foi de obras sacras,
compreendendo cerca de 250 motetos, 104 missas e várias outras composições
litúrgicas50. Além disso, Palestrina raramente justifica a escolha dos elementos musicais
em suas composições por motivos dramáticos: “Os seus efeitos situam-se unicamente
no reino da sonoridade, como se pretendesse demonstrar de quantas formas diferentes
podem combinar-se intervalos simples consonantes (...).”51. Nesse ponto, é interessante
notar alguma semelhança com a poesia de Petrarca, poeta criador do poema “Amor,
Fortuna” utilizado por Palestrina em seu madrigal homônimo. Segundo Grout e Palisca:
Pietro Bembo (1470 – 1547), poeta, (...) editou, em 1501, o
Canzoniere do poeta [Petrarca]. Ao preparar a edição, notou que as
emendas de Petrarca se deviam muitas vezes apenas à sonoridade das
palavras, e não a um desejo de modificar as imagens ou o sentido do
50
GROUT; PALISCA, 2007.
51
GROUT; PALISCA, 2007, p. 291.
53
poema. Identificou duas qualidades opostas que Petrarca, mais do que
outros poetas interessado em obter uma certa variedade de
sentimentos, procurava nos seus versos: piacevolezza (caráter
aprazível) e gravità (gravidade). (...) O ritmo, a estrutura da rima, o
número de sílabas por verso, a acentuação, a duração das sílabas e as
propriedades sonoras de determinadas vogais ou consoantes eram os
elementos que contribuíam para tornar um verso aprazível ou grave.
Os compositores tomaram consciência destes valores sonoros a partir
da poesia de Petrarca, talvez alertados pelo livro de Bembo “Prose
dela volgar língua” (1525) (...) (GROUT; PALISCA, 2007, p. 237).
Com isso, podemos relacionar a postura de Palestrina em se priorizar o
âmbito sonoro-musical em relação ao âmbito textual em sua composição a postura
semelhante de Petrarca em outra plataforma artística, o poema.
Ainda em outras correntes musicais anteriores à Seconda Pratica, nota-se o
desenvolvimento da escrita contrapontística de tal maneira que, em inúmeros exemplos
musicais, há uma escrita polifônica para mais de vinte vozes. A densa polifonia, comum
às peças vocais deste período – e o que o compositor da Seconda Pratica Giulio Caccini
(1551 – 1618) anos mais tarde chamaria em seu tratado Le Nuove Musiche (1601) de
“laceramento da poesia” – naturalmente dificulta a compreensão imediata do ouvinte
das palavras cantadas. Soma-se a isto o fato de que estas peças muitas vezes eram
escritas para serem cantadas em igrejas e basílicas, locais que possuem uma acústica
cujo tempo de reverberação é muito longo, privilegiando a sensação de imersão sonora
ao ouvinte e desfavorecendo a inteligibilidade das palavras cantadas.
Neste sentido, nos utilizamos das ideias de José Augusto Mannis, em seu
texto Silêncio e Vazio, a fim de relacionar o comportamento acústico de um local e a
inteligibilidade dos sons que nele soam. Para Mannis:
Em
ambientes
fechados,
os
sons
produzidos
são
sempre
acompanhados da resposta do ambiente ao estímulo sonoro, sob a
forma de reflexões e reverberação, dotando os sons de um halo ao seu
redor. Portanto, em ambientes abertos os sons estão bem isolados uns
dos outros e em ambientes fechados o silêncio entre eles passa a ser
54
preenchido pela resposta sonora do local (reverberação e reflexões).
Essa prolongação acrescentada entre os sons até certo ponto ajuda a
uni-los. (...) A reverberação ajuda ainda a unificar a massa
instrumental na percepção do ouvinte, o que é muito importante para o
repertório romântico. Porém, em excesso, ou seja, demasiadamente
longa em relação à velocidade de execução sucessiva dos sons, a
reverberação compromete a inteligibilidade da música executada,
passando a embrulhar sons que deveriam soar separadamente. Quando
isso acontece, a reverberação está comprometendo o importante papel
dos silêncios entre os sons, necessário para uma percepção com
clareza (...) (MANNIS, 2009, p. 126 – 127).
Certamente, muitos de nós já passamos pela situação de, durante uma missa
em uma catedral ou em um evento em um grande ginásio esportivo, espaços cujo tempo
de reverberação sonora é muito grande, sentirmos dificuldade em compreender as
palavras ditas pelo porta-voz. Imaginemos, pois, uma música polifônica a muitas vozes,
cantada em grande catedral, sendo que, muitas vezes, ou o texto não soava
simultaneamente entre as vozes ou havia diferentes textos sendo cantados
simultaneamente em cada voz. Como ficaria a inteligibilidade do texto neste contexto?
2.3 A questão da inteligibilidade
Apesar da aparente desconsideração em relação à inteligibilidade das
palavras cantadas neste período, é importante ressaltar que esta questão vinha sendo
discutida e trabalhada durante o século XVI, como na Reforma Protestante, na ContraReforma, durante o Concílio de Trento (1545 – 1563) e mesmo no decorrer da Prima
Pratica. Parte dos frutos do esforço do monge e teólogo Martinho Lutero (1483 – 1546)
em aproximar a liturgia cristã do povo na Europa encontra-se em tentativas de se
privilegiar a palavra na música e no rito. Em termos práticos, Lutero propunha que a
missa fosse celebrada na língua do povo, e que este fizesse parte ativamente do rito
através do canto dos hinos litúrgicos e que o Sermão, momento de primazia da palavra
55
dentro da estrutura do culto, fosse sempre musicado e a parte de maior importância.
Neste contexto, a música passa a ser um elemento vital na articulação entre os fiéis e o
rito, envolvendo o ouvinte e movendo seus afetos, sem deixar de servir a palavra, ou
pelo menos de admitir a sua vital importância.
Durante o Concílio de Trento, marco inicial da Contra-Reforma, a Igreja
Católica também reconsiderou a questão da inteligibilidade das palavras na música
sacra através de sugestões como as apresentadas a seguir publicadas em ata:
Concílio de Trento – Cânone sobre a música a utilizar na missa
Todas as coisas deverão, na verdade, ser ordenadas por forma que as
missas, quer celebradas com canto, quer sem canto, cheguem
tranquilamente aos ouvidos e aos corações dos que as escutam (...).
Qualquer concepção do canto em modos musicais deverá destinar-se,
não a dar ao ouvido um vão prazer, mas a permitir que as palavras
sejam claramente entendidas por todos e, assim, os corações dos
ouvintes sejam tomados pelo desejo das harmonias celestiais (...)
(apud GROUT; PALISCA, 2007, p. 285).
A citação anterior demonstra que o próprio núcleo gestor da Igreja Católica
da época já havia percebido o problema da ininteligibilidade das palavras cantadas no
repertório vocal sacro polifônico do período: um problema relativamente grave em um
contexto no qual a palavra é tida como elemento sagrado. Neste caso, especificamente, a
ideia proposta pelo Concílio de Trento é que a palavra é que deve guiar os corações dos
ouvintes ao desejo das harmonias celestiais, e não os sons puramente musicais. Caso
contrário, para os propositores deste Concílio, a música destinar-se-ia, somente, a dar ao
ouvido um vão prazer.
O próprio teórico Zarlino em seu tratado Le Institutione harmoniche, o
mesmo tratado que embasa as críticas de Artusi em relação aos madrigais de
Monteverdi, também tangencia a questão da inteligibilidade das palavras cantadas ao
sugerir aos compositores de sua época o uso da cadência que, para ele, interrompe o
fluxo contrapontístico e é definida no seguinte excerto:
56
A cadência é muito necessária na harmonia (música), pois, quando
não ocorre, a música padece da falta de um grande ornamento
necessário para a distinção de suas partes, como aquelas do discurso.
A cadência deve ser usada quando se chega à clausula, ou ao período
contido na prosa ou no verso. (...) A cadência tem tanto valor na
música quanto o ponto tem para o discurso, e por isso ela pode ser
chamada de ponto da música. Deve-se colocá-la onde se repousa, ou
seja, onde se encontra uma terminação da harmonia (música), de
modo que se encerre uma ideia do discurso, tanto intermediária quanto
final. (ZARLINO apud BARROS, 2011, p. 15).
Retomando as ideias de Mannis, trata-se, portanto, da inclusão consciente de
um silêncio em meio ao fluxo da polifonia, já que “o silêncio e o vazio são elementos
não somente atuantes e determinantes da inteligibilidade, mas abrangem ainda em
diversos níveis os domínios semântico e estrutural, desde a contribuição de uma
linguagem até a elaboração de um discurso.”52. O uso da cadência conforme proposta
por Zarlino prenuncia também a preocupação muito presente entre os músicos da
Seconda Pratica de se representar, através da música, ideias extramusicais expostas
pelo texto poético. Essa preocupação se evidencia ao considerar que em seu tratado,
Zarlino também discorre “sobre o valor simbólico dos intervalos diatônicos ou
cromáticos, dos ritmos rápidos ou lentos, dos sons graves ou agudos para a expressão
dos sentimentos humanos”53. Em seu tratado, Zarlino ainda discorre:
ele [Platão] disse que a harmonia e o ritmo devem seguir as palavras e
não as palavras seguirem o ritmo e a harmonia. E assim deve ser.
Porque, se um texto, seja por meio de narrativa ou imitação, lida com
assuntos que são alegres ou tristes, sérios ou não, e modestos ou
lascivos, a escolha da harmonia e ritmo deve ser feita de acordo com a
natureza do assunto contido no texto, de maneira que essas coisas,
combinadas com a proporção, possa resultar em música adequada para
esse propósito (ZARLINO apud MARTINS, 2015, p.2).
52
53
MANNIS, 2009, p. 123.
COELHO, 2000. p. 41.
57
É importante notar, na citação anterior, a ressalva de Zarlino: “combinadas
com a proporção”. O pensamento musical de Zarlino, mesmo levando em consideração
o conteúdo do texto cantado no ato de compor, não permite o abandono das regras para
a suposta boa realização do contraponto. Neste sentido, assistimos à tensão perene entre
“o desejo de liberdade expressiva e o de ordem na composição, sempre latente em toda
a obra de arte”54.
A preocupação com a inteligibilidade do texto cantado esteve presente até
mesmo no trabalho do próprio Palestrina, por exemplo, em sua peça mais famosa, a
“Missa do Papa Marcelo”. Segundo Grout e Palisca:
Na Missa do Papa Marcelo o compositor [Palestrina] esforçou-se
conscientemente por conseguir (...) uma maior inteligibilidade do
texto. A missa foi escrita em 1562-1563, no preciso momento em que
se debatia a questão da compreensão do texto e em que o Concílio de
Trento promulgou o Cânone sobre a Música a Utilizar na Missa, no
qual se exige “que as palavras sejam entendidas por todos” (GROUT;
PALISCA, 2007, p. 292).
A fim de exemplificar essa busca por parte de Palestrina, vejamos o excerto
musical a seguir (figura 10). Trata-se do Credo da “Missa do Papa Marcelo”. Para poder
tornar as palavras inteligíveis aos ouvintes, o compositor evitou fazer com que o texto
não soasse simultaneamente entre as seis vozes, procedimento composicional similar ao
utilizado por Monteverdi em alguns de seus madrigais.
Como desenvolvimento desta escritura, e também a fim de atribuir
diferentes roupagens para determinados trechos do texto, Palestrina dividiu o conjunto
vocal de seis vozes em outros pequenos grupos, de modo que pudesse ter, respeitando
sempre a textura homofônica, diversas possíveis combinações de naipes e reservando o
tutti a seis vozes para momentos importantes do texto.
54
GROUT; PALISCA, 2007, p. 312.
58
Figura 9: Excerto do Credo da Missa Papa Marcelli, de Palestrina. Página 23.
Fonte: <imslp.org>
A utilização deste exemplo de Palestrina tem como intuito discutir a ideia de
que o processo de aquisição de uma preocupação com a inteligibilidade das palavras
cantadas não se deu de repente na transição entre a Prima Pratica e a Seconda Pratica,
mas sim paulatinamente até o emergir de um posicionamento mais radical a respeito
desta questão por parte dos compositores e teóricos da Camerata Fiorentina, conforme
veremos a seguir.
2.4 A Camerata Fiorentina
Grande parte dos compositores e teóricos italianos que estavam envolvidos
na emergência da Seconda Pratica compunham um grupo em torno do conde Giovanni
59
Bardi de Vernio (1534 – 1612) na cidade de Florença: a Camerata Fiorentina, também
conhecida como Camerata Bardi. Bardi era músico amador e durante um período que
se estendeu por quinze a vinte anos promoveu saraus de caráter informal em seu
palácio55, sendo o encontro mais antigo que se tem registro datado de 14 de janeiro de
157356. Dentre os principais frequentadores deste grupo, estavam: Giulio Caccini (1551
– 1618), Vincenzo Galilei (c. 1520 – 1591), Girolamo Mei (1519 – 1594), Giovanni
Battista Guarini (1538 – 1612), Emilio de Cavalieri (1550 – 1602), entre outros.
Os encontros do grupo liderado por Bardi tinham como proposta o estudo da
música e do drama da Grécia Antiga bem como a reconstrução histórica do teatro grego.
Além disso, era central o interesse da Camerata em resgatar o poder que as palavras em
música têm de suscitar o conteúdo emocional contido no texto poético. O termo resgatar
é aqui utilizado pois para os membros da Camerata a música que era escrita até então,
ao fim do Renascimento, não movia adequadamente os afetos do texto poético
justamente pela maneira que a palavra era trabalhada, subordinada a técnicas
contrapontísticas que as tornavam ininteligíveis.
Em fase com os ideais Humanistas57 do período, os músicos e teóricos da
Camerata Fiorentina inspiraram-se na música da Grécia antiga para compor um ideal de
relação entre música e texto: a música servindo às palavras, tal qual preconizara o
filósofo Platão em sua República. Em seu livro O Diálogo Musical: Monteverdi, Bach e
Mozart, Nikolaus Harnoncourt comenta a influência grega nos estudos da Camerata:
A Tragédia grega, objeto central do “trabalho de pesquisa” [grifo do
autor] deste grupo [a Camerata Fiorentina] era, na Antiguidade grega,
apresentada em forma de melodrama, consequentemente, cantada.
Como o modelo grego, do ponto de vista cultural, era considerado
insuperável, seria logicamente necessário que o “melodrama”
55
COELHO, 2000.
PALISCA, 1989.
57
De acordo com Conrado Federici: “O movimento intelectual denominado humanismo foi um dos
principais eixos do período [barroco]. Consistia no reavivar da sabedoria da antiguidade e no estudo
aprofundado do que era conhecido sobre gramática, retórica e a habilidade de comunicar clara e
convincentemente, literatura, poesia, história e filosofia moral. Tendo como referencial a literatura
clássica, sua revisitação e pesquisa proporcionavam um abrangente guia de comportamento e erudição
(CORNELL e MATHEWS, 1997 e GROUT e PALISCA, 2007) simpático aos interesses políticos da
época.” (FEDERICI, 2009, p. 95).
56
60
monódico fosse a única forma musical correta (HARNONCOURT,
1993, p. 26).
O termo monodia pode ser entendido como uma construção musical cantada
em uníssono, sem acompanhamento58. Monodia nos remete também à música medieval,
como no canto gregoriano, por exemplo, mas após o surgimento da Seconda Pratica
passou a ser associado à produção vocal do estilo, os recitativos, muitas vezes com a
utilização do termo monodia acompanhada. No contexto do teatro e literatura da Grécia
Antiga, o termo monodia estava associado à poesia cantada solo por um cantor,
contrastando com o canto coletivo, o coro. Vejamos, portanto, que a monodia está
estreitamente ligada a ideia de um texto que é recitado em música, sendo considerado,
portanto, como um gênero vocal situado, em termos práticos, entre o canto e a fala.
O grande propagador das ideias gregas no grupo de Bardi foi o historiador
Girolamo Mei, reconhecido na época por seus conhecimentos na língua grega e pelo seu
dedicado estudo na teoria musical da Grécia Antiga. Mei foi procurado por Vincenzo
Galilei, pai do conhecido astrônomo Galileu Galilei (1564 – 1642), para que pudesse
ajudá-lo esclarecendo algumas dúvidas, dentre as quais uma que tratava acerca da
existência da polifonia na música grega. Em correspondência enviada a Galilei59, Mei
afirma que a música vocal grega se baseava na monodia. Em um dos excertos de sua
carta, Mei tenta reconhecer o caráter monódico da música grega e seu intuito em
expressar os afetos das palavras em música:
(...) era necessário que a música dos antigos [gregos] – pois esta fazia
sentir, como se lê, afetos tão vigorosos que comoviam – se valesse
apenas daquelas propriedades aptas a despertar tais afetos, sem
efetivamente misturar a eles qualquer coisa contrária que impedisse ou
58
A ideia de um tipo de canto monódico, sem acompanhamento instrumental, foi explorada por João
Cabral de Melo Neto em seu poema “A palo seco” (Quaderna, 1960): “Se diz a palo seco / o cante sem
guitarra; / o cante sem; o cante; / o cante sem mais nada; / se diz a palo seco / a esse cante despido: / ao
cante que se canta / sob o silêncio a pino. // (...) // O cante a palo seco / é um cante desarmado: / só a
lâmina da voz / sem a arma do braço; / que o cante a palo seco / sem tempero ou ajuda / tem de abrir o
silêncio / com sua chama nua. // (...) // A palo seco existem / situações e objetos: / Graciliano Ramos, /
desenho de arquiteto, / as paredes caiadas, / a elegância dos pregos, / a cidade de Córdoba, / o arame dos
insetos. // Eis uns poucos exemplos / de ser a palo seco, / dos quais se retirar / higiene ou conselho: / não
o de aceitar o seco / por resignadamente, / mas de empregar o seco / porque é mais contundente.”.
59
Esta correspondência encontra-se traduzida para o português no livro O canto dos afetos: um dizer
humanista de Ibaney Chasin.
61
enfraquecesse a força de seu agir. Por isso era necessário que todos
cantassem simultaneamente não apenas as mesmas palavras, mas o
mesmo tom e a mesma ária, com a mesma quantidade de tempo e com
a mesma qualidade de número e ritmo. (...). Este canto, então, não
poderia ser senão um canto unido e firme, orientado a um determinado
fim a partir apenas de seus meios justos e naturais (MEI apud
CHASIN, 2004, p.15).
Ao mencionar a ideia de um canto onde todos cantassem as mesmas
palavras, no mesmo ritmo, com as mesmas notas, ou seja, cantando todos a mesma
melodia, Mei deduz que a música grega era baseada no estilo monódico: um estilo de
“canto unido e firme”. Além disso, em sua carta Mei discorre também acerca do
desconhecimento das técnicas contrapontísticas por parte dos Gregos Antigos.
Dentre os antigos que escreveram sobre música (...) não se encontra
termo algum que pareça minimamente corresponder àqueles que os
músicos passaram a usar de uns 150 anos para cá: [a saber], baixo,
tenor, contralto, soprano. (...). Como destes tempos para trás jamais se
tenha cantado várias árias [melodias] conjuntamente – algo que depois
se fez corrente, não se pode nem se deve crer, e com razão, que tais
termos pudessem ter ocorrido (MEI apud CHASIN, 2004, p.16).
O estudo aprofundado da música grega veio reforçar a aversão dos músicos
da Camerata à forma polifônica de tratar os textos poéticos. Desenvolvia-se entre os
estudiosos a certeza de que o confronto entre as vozes da escrita polifônica prejudicava
o entendimento do poema, contradizendo o princípio expresso por Platão de que na
música vocal a melodia deveria servir às palavras. Na carta enviada a Vincenzo Galilei,
Mei acaba explicitando, independentemente do estilo musical grego, as suas opiniões
acerca do contraponto:
E o que mais diríamos de outra impertinência repulsiva: que um
soprano cante muitas vezes o início das palavras de um conceito, ou as
62
replique, enquanto o tenor já está no meio delas, o baixo em seu final,
e as outras vozes alhures – isto é, que as palavras sejam proferidas
nesta deformidade! Ora, disto se pode apenas dizer, verdadeiramente,
que assim se arrasta o ouvinte para o mesmo lugar antes assinalado:
dissente-se seu espírito em diversas partes opostas. Dissensão que
fazendo-as repercutir desunidamente como pontas soltas (...) travalhes a força e valor. Em verdade, sendo cada parte abertamente a
desajuda da outra, não se produz um furo na alma, e assim não se a
penetra – logo, não se lhe desperta um afeto (MEI apud CHASIN,
2004, p.20).
Baseando-se nestes argumentos, Girolamo Mei em sua carta a Vicenzo
Galilei promove um certo tipo de aversão a escrita contrapontística, ora se utilizando de
suas ideias pessoais, ora fazendo uso do que ele acreditava ser o fazer musical dos
antigos gregos. Estes argumentos tornam-se decisivos para o desenvolvimento de um
estilo monódico neste período, na tentativa de se recriar este gênero musical grego.
Com base no contato que teve com Girolamo Mei, Vicenzo Galilei publica
em 1581 em Florença o seu tratado Dialogo della Musica Antica e della Moderna.
Sendo este um dos tratados mais fecundos da Camerata Fiorentina, nele Galilei buscou
abordar a crescente desvalorização do texto poético em música na sua época e buscou
promover, assim como Mei em sua carta, uma certa aversão ao contraponto
fundamentada pelo estudo da música grega. Em tom áspero, Galilei sugere que o intuito
do contraponto é somente deleitar os ouvidos modulando intervalos musicais.
Dos modernos contrapontistas, considerada cada uma das regras por
si, ou mesmo em seu conjunto, não tendem senão ao prazer do ouvido,
se a isto se pode chamar realmente de prazer. (...). Acerca disto jamais
se pensa ou se pensou após o surgimento do contraponto, mas apenas
em se lacerar a música no mesmo instante em que a possibilidade se
apresente. E que seja verdadeiro que hoje nada se pense sobre como
exprimir os conceitos das palavras com o afeto que estes reclamem,
senão de uma forma ridícula (...): estas não concernem a nada além do
que ao modo de modular os intervalos musicais. (GALILEI apud
CHASIN, 2004, p. 64)
63
Neste excerto, Galilei ainda acusa os contrapontistas de não considerarem a
expressão dos afetos das palavras em música, argumento recorrente nos textos
produzidos pela Camerata neste período. Além disso, é interessante notar que o tratado
de Vincenzo Galilei é trazido em forma de diálogo fictício entre dois interlocutores, um
deles o Conde Bardi em homenagem ao patrono da Camerata. Esta forma de apresentar
seu texto trata-se também de uma herança platônica, uma vez que grande parte da
produção escrita do filósofo também se encontra neste formato. Deste modo, Galilei
adere à ideia de que somente a monodia estaria apta a mover afetos do texto de modo
verossímil, e esta deveria ser a base de um novo fazer musical, um fazer musical com
ênfase total na essência poética entre letra e música, buscando priorizar a
inteligibilidade da palavra cantada, e com o suporte teórico do estudo da música grega.
Outros importantes documentos históricos deste período são os tratados Le
Nuove Musiche (1601) e Nuove Musiche e Nuova Maniera di scriverle (1614), escritos
pelo compositor, professor de canto (e também membro da Camerata) Giulio Caccini.
Diferentemente de Mei e Galilei, Caccini estava mais próximo da música em seu âmbito
prático, e seus dois tratados discutem a realização desta nova prática monódica nestes
termos, apresentando, além de discussões escritas, uma série de composições em estilo
monódico: as suas novas músicas. No prefácio de seu tratado Le Nuove Musiche (As
Novas Músicas), Caccini explica o intuito de se compor neste novo estilo baseando seus
argumentos na ininteligibilidade do texto promovida pela escrita contrapontística:
Com claríssimas razões convenceram-me a não valorizar aquele tipo
de música [contrapontística] que, não permitindo entender bem as
palavras, corrompe o conceito e o verso, ora alongando e ora
abreviando as sílabas para acomodar-se ao contraponto, laceramento
da Poesia. (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p. 26).
Dessa maneira, vemos propostos pelos membros da Camerata um
verdadeiro movimento de aversão à escrita contrapontística na música vocal,
fundamentado principalmente pela ideia de que este tipo de escritura, além de não
colaborar com a inteligibilidade do texto poético cantado, não é capaz de representar em
música, de maneira convincente, os conceitos e os afetos do texto poético. Os excertos
dos documentos históricos aqui apresentados testemunham uma mudança no
64
pensamento musical em curso na transição do século XVI para o século XVII na
Europa: neste período, a música se distancia paulatinamente da ideia medieval de
expressão sonora das proporções divinas e se aproxima da ideia de expressão poética e
afetiva, neste caso específico, guiada pelas ideias contidas no texto poético cantado.
Todas estas ideias, vertidas em âmbito prático para a composição e
realização desta nova prática musical, apresentam-se em forma de preceitos básicos
promovidos pela Camerata Fiorentina, a saber:
- Deveria haver a união perfeita entre o texto e a música. Para que esta
permitisse àquele ser perfeitamente compreensível, propunham-se a
declamação solista e monódica; a adoção de melodias simples
executadas por poucos instrumentos; e a exclusão do contraponto.
- O texto deveria ser declamado aderindo às inflexões naturais da fala.
A melodia deveria, portanto, acomodar-se à frase, e não o contrário.
Isso excluía os ritmos de dança frequentemente impostos às canções e
também as repetições, que eram comuns nos madrigais e nos motetos.
- A música não deveria limitar-se a acompanhar graficamente o
andamento do texto e, sim, tentar exprimir o estado de espírito de cada
trecho, imitando e acentuando as entonações típicas de uma pessoa
que esteja sob o efeito de determinada emoção (COELHO, 2000, p.
43).
Tais proposições oriundas dos estudos e discussões da Camerata serviram
como base para a criação de um estilo de composição vocal que influenciou fortemente
os estilos musicais sucessores e que culminou no nascimento da ópera: o Estilo
Recitativo.
65
2.5 O Recitativo – falar em harmonia
Até então, discutimos os precedentes históricos envolvidos no aparecimento
deste estilo na Seconda Pratica e a consequente adoção de certas posturas por parte dos
compositores e teóricos da época no âmbito da escritura musical, mais especificamente,
a exclusão da escrita contrapontística nas linhas vocais. Entretanto, as mudanças
estilísticas apresentadas até agora não abordam a realização destas ideias. Faz-se,
portanto, necessário questionar: em termos práticos, ou em termos relacionados ao
momento exato da performance musical, como deveria ser cantada esta nova música
desta nova prática?
Para discutir esta questão é necessário retomar as discussões acerca da voz
falada e da voz cantada, expostas no capítulo 1. A partir do exemplo de Hermeto
Pascoal, com sua Música da Aura, constatou-se que uma das chaves para a identificação
de uma vocalização ser considerada canto ou fala parte da escuta, processo pelo qual o
ouvinte tem um papel ativo, podendo escolher como chamar aquilo que ouviu tendo
como referência, obviamente, a maneira como ouviu. Esse processo só é possível uma
vez que ambas as vocalizações possuem aspectos em comum como ritmo, melodia,
timbre e, muitas vezes, a palavra. Essa percepção que aproxima canto e fala quase a
ponto de uni-las parece ter ocorrido também com os teóricos e músicos da Seconda
Pratica, aspecto que influenciou o desenvolvimento do Estilo Recitativo.
Muitas são as menções pelos membros da Camerata Fiorentina de que o
canto desta nova prática deveria se aproximar da maneira de se falar, a fim de que seus
intuitos, aqui já muito apresentados, fossem bem-sucedidos. Retomamos os principais
Tratados da Camerata anteriormente mencionados, desta vez, porém, em busca desta
relação entre o canto e a fala.
Vejamos, por exemplo, o caso de Vincenzo Galilei. Na busca pela
elaboração e desenvolvimento do Estilo Recitativo, Galilei sugere aos compositores de
seu tempo um ponto de partida: que escutem “como falam entre si as pessoas de
diferentes condições sociais – em qualquer situação da vida – como se desenvolvem e se
articulam as conversas ou discussões entre pessoas de alto e baixo nível! – e depois, que
ponham isso em música”60. Em seu Dialogo della Musica Antica e della Moderna,
60
HARNONCOURT, 1998, p. 167.
66
Galilei também “pedia aos compositores que aprendessem com os atores de teatro falado
as técnicas de acutezza e gravittà (sons agudos e graves), quantità (duração dos sons) e
prestezza o lentezza di numero ò ritmo (velocidade na emissão da frase)”61. É natural
que Galilei visse na parceria entre músicos e atores (uma parceria, até os dias de hoje,
tão frutífera para ambos os lados) uma rica iniciativa, já que ambas as partes exploram o
aperfeiçoamento no uso da voz e seus fins poéticos e dramáticos. Parceria esta,
inclusive, que ao estimular uma atitude teatral no ato de cantar, não à toa vê na ópera –
grande gênero musical-teatral emergido em decorrência da criação do Estilo Recitativo
– um dos principais frutos do estilo.
Vemos também, no prefácio da ópera “Dafne” (1594), o compositor Jacopo
Peri discorrer acerca de suas intenções dizendo que queria imitar a fala em sua música,
pois a ele “parecia que os antigos gregos e romanos tinham usado, em seu teatro, um
tipo de música que, embora ultrapassando os sons da conversação ordinária, não
chegava a atingir a melodia do canto, ou seja, assumia uma forma intermediária entre
um e outro.”62. Com isso, Peri acreditava que o fazer musical dos antigos Gregos em
seu Teatro já se utiliza de uma espécie de canto-falado. Já no prefácio de sua ópera
“Euridice” (1600), Jacopo Peri afirma:
Pondo de parte todas as outras maneiras de cantar até hoje conhecidas,
dediquei-me por completo a procurar a imitação conveniente a estes
poemas. E pensei que o tipo de voz atribuído aos antigos ao canto (...)
podia, por vezes, ser apressado e tomar um andamento moderado,
entre os lentos movimentos sustentados do canto e os movimentos
fluentes e rápidos da fala, assim servindo meu propósito (...).
Reconheci também na nossa fala alguns sons não entoados de tal
forma que podemos construir sobre eles uma harmonia (…) (PERI
apud GROUT; PALISCA, 2007, p. 322).
No excerto de Peri vemos que o compositor se autoproclama pioneiro no
uso deste tipo de canto, postura comum entre os membros da Camerata haja vista que a
responsabilidade pelo desenvolvimento do novo estilo foi um grande objeto de disputa
entre os compositores63. Além disso, vemos a preocupação de Peri em sistematizar um
61
COELHO, 2000, p. 42.
Idem, p. 44.
63
FEDERICI, 2009, p. 64.
62
67
uso do canto que seja intermediário entre o falar e o cantar, bem como a percepção de
que sob a fala é possível construir um acompanhamento harmônico. Não seria essa
mesma percepção que guiou Hermeto Pascoal na elaboração da Música da Aura?
O mesmo ocorre com o compositor Giulio Caccini. Em suas “Novas
Músicas”, Caccini explicita a proximidade que o canto em suas composições deveria ter
com a fala, e sugere aos intérpretes cantores dos Recitativos, por consequência, a
utilização das ideias de sprezzatura e rubato.
(...) ocorre-me introduzir um tipo de música pela qual os outros
pudessem quase que falar em harmonia, usando nesta (como disse em
outra oportunidade) uma certa nobre sprezzatura do canto, passando
por vezes por algumas dissonâncias, mantendo por isso a corda do
baixo parada, exceto quando quiser servir-me dela segundo um uso
comum, com a região média do instrumento para exprimir algum
afeto, não sendo boas a outro (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p.
27).
Por sprezzatura, que em italiano significa indiferença, displicência, entendese que o cantor possa agir de modo que seu canto pareça demasiadamente natural, como
uma fala cotidiana. Este agir de modo indiferente, na realidade era um modo de ação
corrente no ambiente cortesão da época, tendo sido descrito pelo diplomata italiano
Baldassare Castiglione (1478-1529) em seu livro O Cortesão (1528)64:
É necessário fugir tanto quanto possível, como se fosse um recife
cortante e perigoso, a afetação; e para empregar talvez uma nova
palavra, deve-se demonstrar em todas as coisas uma certa displicência
(sprezzatura) que esconda a arte e mostre que aquilo que se faz, ou se
diz, venha sem fadiga e quase sem pensar. É disto sobretudo, creio eu,
que deriva a graça; porque das coisas raras e bem feitas todos sabem a
dificuldade, de modo que nelas a facilidade provoca grande maravilha.
E, ao contrário, o esforço ou, como se diz, “arrancar os próprios
64
A sprezzatura é, até os dias atuais, um princípio nos jogos de cartas, podendo ser interpretado como
blefe, no objetivo de confundir e desarmar os oponentes (APOSTOLICO, 2015).
68
cabelos”, provoca suma desgraça e faz estimar pouco cada coisa, não
importa quão grande ela seja (CASTIGLIONI apud RICCI, 2014, p.
21).
O termo sprezzatura, portanto, está relacionado a ideia de naturalidade ao
cantar, imagem bastante difundida até os dias de hoje por professores de canto. Já em
relação a ideia de rubato, Caccini escreve:
Segue-se pois, que de nobre maneira seja esta assim chamada por
mim, que seja usada [a voz ao cantar] sem se submeter à métrica
regular, muitas vezes sendo a metade o valor da nota, menos segundo
os conceitos das palavras, que é, pois, donde nasce aquele canto em
sprezzatura, de que se fala; lá onde, portanto, são tantos os efeitos a
serem usados para a excelência desta arte, para a qual é tão necessária
a boa voz, quanto a respiração, para do fôlego se valer onde mais
aprouver, será portanto útil advertência que o professor desta arte, que
65
deve pois cantar em solo sobre o Chitarrone , ou outro instrumento
de corda, sem ser forçado a acomodar-se a outro que a si mesmo,
eleja-se um tom, no qual possa cantar em plena e natural voz, para
fugir das vozes falsas (CACCINI apud FEDERICI, 2009, p. 38).
Ao mencionar que o canto não se submeta à métrica regular, Caccini
aproxima-se da ideia de rubato, termo pelo qual entende-se que o canto possa sofrer
uma variação na métrica, propondo um cantar ritmicamente mais livre, assim como fez
Claudio Monteverdi em seu madrigal “Sfogava con le stelle”. Nota-se, também, que
Caccini novamente faz menção a ideia de naturalidade ao dizer que o cantor deve buscar
“cantar em plena e natural voz”. Desse modo, estes dois recursos, rubato e sprezzatura,
surgem na obra de Caccini a fim de se reforçar a aproximação do ato de cantar ao ato de
falar no Estilo Recitativo.
65
Instrumento de cordas dedilhadas semelhante a Teorba, como uma espécie de “alaúde de grande
formato com cordas graves simpáticas (que ressoavam juntamente com as principais, reforçando-lhes a
sonoridade)” (COELHO, 2000, p. 390).
69
Por outro lado, ao analisar as partituras de Giulio Caccini em seu tratado Le
Nuove Musiche, constata-se em algumas músicas a grande quantidade de ornamentos na
melodia vocal. É o caso, por exemplo, do recitativo “Movetevi Pietà”:
Figura 10: Excerto do Recitativo “Movetevi Pietà”, do livro “Le Nuove Musiche” (1601) de Giulio
Caccini
Fonte: FEDERICI, 2009, p. 40.
O excerto anterior evidencia a utilização de ornamentos melódicos por
Caccini em suas monodias acompanhadas. Se por um lado o compositor toma cuidado
ao inserir a ornamentação considerando em qual palavra, e em que momento dela, o
ornamento deve ser inserido de modo a não prejudicar o entendimento do poema
cantado, por outro o comportamento da voz que canta tal excerto de nada se aproxima à
voz falada, conforme a ideia mencionada em Le Nuove Musiche, não se tratando, por
isso, de uma abordagem natural da voz. O fato de associar o canto neste repertório a
ideia de naturalidade trata-se, sobretudo, de um certo panfletarismo por parte dos
compositores da Camerata Fiorentina, haja vista a já mencionada disputa pelo
pioneirismo na elaboração do estilo recitativo.
70
Se houve de fato um pioneiro em relação a criação do recitativo na
Camerata Fiorentina é difícil saber. De qualquer maneira, o que nos parece mais
importante é que as ideias e realizações deste coletivo, além de extremamente fecundas
para os estilos sucessores, foram novas e ousadas para a época.
De acordo com
Nikolaus Harnoncourt, em seu livro O discurso dos sons: caminhos para uma nova
compreensão musical:
Ideias deste tipo eram naquele tempo absolutamente novas e sem
dúvida alguma chocantes. Para compreender a que ponto tudo isso era
novo, precisamos tentar nos transportar àquele tempo: suponhamos
que estivéssemos com 30 anos de idade e nunca tivéssemos ouvido
outra música a não ser os maravilhosos madrigais de Marenzio, do
jovem Monteverdi e dos compositores franco-flamengos, uma
complicada música polifônica e altamente esotérica. E eis que de
repente surge alguém dizendo que a maneira como as pessoas falam já
é a própria música, a verdadeira música (HARNONCOURT, 1998, p.
167).
Assim, pode-se dizer que essa importante mudança estética está associada
também a uma mudança de escuta.
Por fim, podemos notar que a exclusão do contraponto na linha melódica
cantada, juntamente com o intuito de se aproximar a maneira de cantar ao registro da
fala, ocasionou uma mudança notável no âmbito da textura musical em relação às
músicas da Prima Pratica. Vejamos como exemplo o prólogo da ópera “Euridice”,
escrita por Jacopo Peri. Na partitura original (figura 12), vemos a melodia do canto
trazendo consigo a letra poética a ser cantada. Junto a esta melodia, vemos a linha do
baixo que traz, ocasionalmente, cifras que indicam alterações no que seria a realização
harmônica convencional do baixo contínuo, aspecto que será discutido mais
detalhadamente na próxima seção do capítulo.
71
Figura 11: Prologo da ópera “Euridice” de Jacopo Peri.
Fonte: <imslp.org>
Ao observarmos a partitura de Jacopo Peri, notamos a posição privilegiada
que a linha vocal possui na estrutura da composição. Esta maneira de estruturar a
monodia age diretamente sob o ponto de vista da textura musical: melodia e
acompanhamento instrumental (o baixo contínuo), nesta perspectiva, funcionam como
figura e fundo em um quadro barroco, a figura em absoluta evidência, o fundo como
elemento contextualizador, como paisagem. Esta disposição textural talvez seja uma das
principais mudanças entre a Prima Pratica e a Seconda Pratica, já que, na música
72
contrapontística de compositores como Giovanni da Palestrina, principal expoente da
Prima Pratica, o entrelaçar das vozes em escrita polifônica direciona a escuta do
ouvinte para uma apreensão global, como quem observa um cardume de peixes se
mover no oceano. Se o ouvinte quiser depreender com detalhes o contorno melódico e o
texto cantado de apenas uma das vozes de uma peça polifônica, sua escuta deverá
embrenhar-se em meio aos muitos fios de som entrelaçados e, em um aprazível desafio,
conseguirá notar e compreender o que almeja, como quem segue com os olhos uma
pessoa em meio à multidão.
Naturalmente, esta escolha em termos texturais por parte das monodias da
Seconda Pratica, além de se tratar de uma tentativa de imitação do estilo musical grego,
visa a maior inteligibilidade possível do texto poético cantado, oferecendo à voz que o
canta a posição de maior destaque dentro da estrutura da composição. Além disso, de
acordo com Mark Ringer:
O movimento que parte da homogeneidade e equilíbrio do
Renascimento e vai em direção à apreciação do individualismo no
Barroco é uma das forças culturais que levaram ao desenvolvimento
da convenção do baixo contínuo. Com maior liberdade sendo dada ao
solista, a música passou a ser capaz de explorar um sentido maior de
contraste rítmico e expressivo. (...) No âmbito da monodia vocal, em
particular, o baixo contínuo permitiu ao compositor refletir acerca de
todos os detalhes das variações de significado e emoção do texto.
(RINGER, 2006, p. 10).
66
Assim, ao colocar a voz em primeiro plano, assiste-se a emergência de uma
disposição textural no repertório da Seconda Pratica que busca privilegiar o texto
cantado, seja aumentando sua inteligibilidade no canto, seja relacionando seus aspectos
poéticos à construção propriamente musical. Para isso, foi necessária a sistematização
de uma técnica de acompanhamento, o baixo contínuo.
66
The move from Renaissance homogeneity and balance toward a baroque appreciation of individualism
is one of the cultural forces that led to the development of the basso continuo convention. With more
freedom being given to the soloist, music was now capable of exploring a greater sense of rhythmic and
expressive contrast. (…) In the realm of vocal monody in particular, the basso continuo liberated the
composer to reflect every detail of a text’s changing meaning and emotion.
73
2.6 O Baixo contínuo
Na Seconda Pratica, a prática de acompanhar o canto, a realização do que é
chamado de baixo contínuo, ou baixo cifrado, se firmou como uma técnica de
acompanhamento que perpassou inúmeros outros estilos musicais ao longo do período
barroco. Acredita-se que esta técnica tenha sido criada pelos compositores da Camerata
Fiorentina, conforme nos explica Stella Almeida Rosa:
As origens da técnica de acompanhamento conhecida por baixo
contínuo remontam à Itália do final do século XVI. Convencionou-se
considerar o método de notação “baixo cifrado” (basso numerato,
figured bass, basse chiffrée, General bass) como uma invenção de
Lodovico da Viadana (1564-1645), com sua obra Cento Concerti
Eclesiastici, de 1602. Essa convenção é, contudo, contestada pelos
trabalhos publicados por Jacopo Peri (1561-1633), Giulio Caccini
(1545-1618) e Emilio de Cavalieri (1550-1602) contendo baixos
numerados dois anos antes da publicação dos concertos de Viadana.
Esses três compositores pertenceram à Camerata Fiorentina, o que
pode significar que a técnica de baixo cifrado tenha se originado
naquele grupo de nobres e músicos que, no anseio de recriar o drama
grego com música, produziram as primeiras experiências em ópera
(ROSA, 2007, p. 5).
Estéticamente, a realização e prática do baixo contínuo foi desenvolvida ao
longo de muitos anos, tendo sido descrita e aperfeiçoada por muitos Tratados, tais
como: Del sonare sopra il basso [Do tocar sobre um baixo] (1607) de Agostino
Agazzari (1578 – 1640), Breve Regola Per Imparar A Sonare Il Basso Com Ogni Sorte
D’Istrumento [Breve Regra Para Aprender a Tocar O Baixo Com Cada Tipo de
Instrumento] (1607) de Francesco Bianciardi (1570 – 1607), entre inúmeros outros. Os
instrumentos mais comumente utilizados neste tipo de acompanhamento eram o órgão,
74
a harpa, a viola da gamba, a teorba, o chitarrone, a espineta, e, principalmente, o cravo e
o alaúde67.
Em síntese, a técnica consiste na escrita de uma linha melódica de baixo, em
oposição a linha melódica principal. Sob as notas desta melodia grave muitas vezes são
colocadas cifras numéricas que fazem menção à construção do acorde que deve ser
tocado nos momentos estabelecidos. Por um lado, a técnica de escrita do baixo cifrado
nos remete às cifras de música popular, hoje normalmente encontradas em songbooks,
uma vez que indicam quais acordes serão tocados e onde cada acorde deve aparecer em
relação a melodia. Uma das principais diferenças reside na autonomia da realização
melódica do baixo, haja vista que no repertório barroco o baixo dos acordes é escrito na
partitura como uma linha melódica e no contexto das cifras de música popular o
caminho do baixo está incorporado pela cifragem.
No repertório barroco a realização do baixo contínuo não implica a
utilização de um instrumento em específico, de modo que, em contextos musicais
longos, como em uma ópera, esta escolha de instrumentação pode ser utilizada com fins
poéticos, como por exemplo, associar o instrumento que realiza o contínuo a um
personagem, um afeto ou um lugar hipotético da história narrada. Vê-se, também,
muitas vezes a presença de uma viola da gamba ou violoncelo dobrando somente a linha
melódica do baixo com o instrumento que realiza o contínuo. No caso da realização do
contínuo em um instrumento de teclado, costuma-se executar a linha do baixo com a
mão esquerda e completar a harmonia com a mão direita, um ótimo exercício para o
instrumentista em formação, diga-se de passagem, já que grande parte da abordagem
inicial do aluno com esse tipo de instrumento parte do contrário: melodias na mão
direita e acordes na mão esquerda.
Em relação às cifras no baixo contínuo, na maioria das vezes elas vêm em
forma de números que indicam o intervalo da nota a ser acrescentada na harmonia em
relação ao baixo. Então, como exemplo, se o baixo for a nota dó e este vier com os
números 4 e 6, sabemos que o acorde a ser montado compreende as notas dó (o baixo),
fá (uma quarta) e lá (uma sexta). Os números 3 e 5 normalmente não aparecem na
cifragem pois via de regra as terças e quintas (e mesmo as oitavas) estão subentendidas
na montagem do acorde. Bemóis e sustenidos são acrescentados na cifragem para alterar
67
ROSA, 2007, p. 14.
75
uma nota de acordo com o diatonismo vigente. Vejamos a seguir o excerto do
Recitativo “Al fonte, al prato” de Caccini, com a linha do contínuo não realizada.
Figura 12: Excerto de monodia de Caccini com baixo contínuo não realizado
Fonte: FEDERICI, 2009, p. 59.
Com o excerto anterior é possível notar que o continuísta frequentemente
deve lidar com a falta de informações expressas na partitura, avaliando sempre o
contexto global da música para a boa realização de sua parte. O instrumentista que
acompanha a monodia deve, muitas vezes, atentar-se para as notas que os outros
instrumentos estão tocando para deduzir qual harmonia deve ser tocada ou para não
tocar notas que entrem em conflito com as linhas melódicas. Um exemplo disso ocorre
no compasso 5, onde no terceiro tempo o baixo vai para a nota lá e sem nenhuma cifra,
levando o intérprete a supor que o acorde a ser tocado seja um lá menor (com baixo,
terça e quinta, intervalos subentendidos na realização do baixo sem cifra). Entretanto, a
linha melódica do canto nesse exato momento vem de uma suspensão na nota fá (uma
sexta em relação ao baixo) e, ainda no terceiro tempo, passa pela nota mi bemol,
dissonância de trítono em relação ao baixo. Este caminho melódico do canto esclarece
ao continuísta que a harmonia desse compasso não possui um lá menor, mas sim um fá
maior com a sétima menor (com baixo em lá), uma dominante em relação ao próximo
acorde, um si bemol maior.
76
De qualquer maneira, é importante atentar que a cifragem do baixo contínuo
estabelece as diretrizes harmônicas da composição, mencionando qual acorde e em qual
lugar ele deve ser tocado, mas nem sempre oferece na notação em partitura todas as
informações necessárias aos intérpretes. A sua realização, portanto, está vinculada a
uma certa expertise previamente adquirida, sem contar nas flutuações estéticas
existentes na realização do contínuo de acordo com o estilo e o país de determinado
repertório. Interessante também é notar que o contraponto, tão combatido pelos
membros da Camerata quando presente nas linhas vocais, passa a ter um papel
essencial na realização do acompanhamento instrumental. Nesse sentido, o continuísta,
assim como os compositores da Prima Pratica, deveria estudar para se tornar um hábil
contrapontista.
Ainda a respeito do acompanhamento musical realizado pelo baixo
contínuo, Caccini discorre: “O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser
escutado; as dissonâncias só devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para
enfatizar uma expressão verbal.”68. Nota-se na afirmação de Caccini que o seu critério
de uso das dissonâncias converge com o critério de Monteverdi ao defender-se das
acusações de Artusi: o texto é quem indica o que acontecerá na música.
Com o desenvolvimento do estilo recitativo para além da Seconda Pratica,
nota-se a emergência de dois tipos distintos em relação ao acompanhamento
instrumental: o recitativo secco e recitativo acomppagnato. No caso do recitativo secco,
o canto é acompanhado pelo menor número possível de instrumentos, muitas vezes com
acompanhamento solo de Cravo, Órgão, Alaúde, entre outros. Trata-se de recitativos
como os de Caccini ou Peri anteriormente apresentados.
No caso do Recitativo acomppagnato, a instrumentação que acompanha a
linha do canto ganha mais possibilidades ao permitir que a orquestra possa assumir o
papel de acompanhamento instrumental e, com isso, novas cores: uma potente
ferramenta composicional usada principalmente com fins poéticos. Nestes casos, a
melodia do canto passa a ser, sintomaticamente, menos livre no âmbito rítmico,
distanciando-se do propósito inicial da Camerata Fiorentina de aproximar o canto da
fala. No caso da “Paixão segundo S. Matheus” (BWV 244), do compositor J. S. Bach,
por exemplo, os Recitativos cantados pelo personagem Jesus trazem consigo, além do
68
apud HARNONCOURT, 1998, p. 167.
77
suporte harmônico realizado pelo contínuo, o acompanhamento de violinos e viola,
conferindo ao acompanhamento da “fala” desta personagem um tratamento diferenciado
na sonoridade em relação aos outros personagens.
Figura 13: Exemplo de Recitativo acompagnato. Excerto da fala de Jesus em Paixão segundo S. Mateus,
de J. S. Bach.
Fonte: <imslp.org>
78
2.7 Ária versus Recitativo
As recém reinventadas monodias pela Seconda Pratica foram rapidamente
incorporadas pelo emergente gênero teatral-musical operístico, desenvolvido em grande
parte, pelo menos nesta primeira fase, pelos próprios músicos e teóricos da Camerata
Fiorentina. Os termos dramma per musica (drama musical) ou mesmo favola in musica
(fábula musical) também fazem menção a este gênero de teatro musicado. É neste
contexto que vemos o surgimento de óperas como “Dafne” (1594) de Jacopo Peri e
libreto de Ottavio Rinuccini, “Euridice” (1600) também de Peri e Rinuccini, e “Orfeu”
(1607) de Claudio Monteverdi e libreto de Alessandro Striggio. Um dos principais
intuitos no desenvolvimento deste gênero de teatro musical está relacionado à busca
pela recriação do teatro musical da Antiguidade. Segundo Grout e Palisca:
Embora as primeiras peças do gênero a que hoje damos o nome de
ópera apenas datem dos últimos anos do século XVI, a ligação entre
música e teatro remonta à antiguidade. Nas peças de Eurípedes e
Sófocles eram cantados, pelo menos, os coros e algumas partes líricas.
Eram também cantados os dramas litúrgicos medievais (...). No teatro
do Renascimento, em que tantas tragédias e comédias imitavam os
modelos gregos ou a eles iam buscar inspiração, os coros eram por
vezes cantados, em especial no início e no final dos atos. (GROUT;
PALISCA, 2007, p. 316).
Neste sentido, pode-se constatar que a busca por uma maneira de unir o
espetáculo teatral com a linguagem musical já vinha sendo explorada desde a
Antiguidade Grega e com incidências importantes na Idade Média e no Renascimento.
No período Barroco, o gênero operístico ganha força com muita rapidez consolidandose como um dos mais importantes gêneros musicais teatrais dos próximos quatro
séculos.
Assim, passou-se a retratar com música, cena e palavra uma história
elaborada, de modo que o libreto, texto poético da história a ser contada e cantada, viria
a ser fruto de um trabalho literário, realizado na maioria das vezes por um escritor e não
79
pelo compositor da música. Por se tratarem, já desde o início, de gênero de histórias
longas e elaboradas, naturalmente surgiriam necessidades narrativas específicas e é
nesse contexto que vemos emergir a separação entre o momento da ária e o momento do
recitativo na narrativa operística.
No âmbito da articulação da narrativa na Ópera, em um processo paulatino
que durou mais de um século, o Recitativo configurou-se como o momento em que o
canto mais se aproxima da fala, sendo vital na “vazão” de grandes excertos de texto e no
desenvolvimento das ações das personagens, em oposição a ária, onde o canto distanciase da fala, debruça-se sobre os indizíveis encantamentos da música e desenvolve, na
maioria das vezes, os aspectos emocionais do texto sendo guiado por uma força muito
mais musical do que textual.
Nesse sentido, retomando as ideias e discussões expostas no Capítulo 1, é
possível constatar um certo simulacro da dicotomia fala/canto na própria estrutura
dramática da ópera. Não à toa, ao compararmos o comportamento vocal na ária e no
recitativo, vemos que no recitativo o canto é ritmicamente mais livre, com ênfase na
pronúncia de um grande número de palavras sendo, portanto, um canto mais articulado
e próximo da fala. No caso da ária, a expressividade da voz como instrumento musical é
privilegiada, o aspecto rítmico passa a ser mais estável e o tratamento melódico passa a
abarcar ornamentos e coloraturas, tudo em função da expressão afetiva e emocional em
música de uma reflexão individual da personagem em determinada circunstância da
história.
Fora do contexto da ópera também se nota a presença de alguns gêneros
musicais nos quais existe uma separação, na estrutura narrativa poético-musical, entre
árias e recitativos, como no caso das cantatas, por exemplo. Gênero poético-musical
similar ao gênero operístico, diferencia-se da ópera sobretudo em seu caráter mais
intimista e a ausência de aspectos teatrais como figurino e encenação, sendo muitas
vezes de inspiração religiosa. Uma importante figura no desenvolvimento do gênero foi
o compositor Johann Sebastian Bach, tendo escrito mais de duzentas cantatas ao longo
de sua vida. Uma delas, em especial, chama-nos a atenção devido à maestria de Bach da
condução narrativa em música.
Na Paixão Segundo São João (BWV 245) (1723), J. S. Bach narra o texto
bíblico da Paixão de Cristo segundo o Evangelho de João, se utilizando para isso, na
forma de sua composição, de uma série de abordagens poético-musicais distintas:
80
recitativos, árias, coros e turbas69. Nesse sentido, uma das características mais notáveis
da produção musical de Bach está em sua apropriação de gêneros e estilos muito
anteriores à sua época, como a Fuga, por exemplo, e principalmente o Recitativo,
reinventado pelos compositores da Camerata Fiorentina cerca de 120 anos antes da
estreia da “Paixão segundo S. João”.
Na condução narrativa da Paixão, a figura central é o Evangelista, o
narrador, aquele que o tempo todo canta contando por meio dos Recitativos o que se
passa na história. As árias são reservadas para os momentos de reflexão individual de
certo personagem, com foco sobretudo em seu aspecto emocional, sem de fato
apresentar novas ações na história. Portanto, o Evangelista não canta nenhuma ária, seu
papel na Paixão é marcado sobretudo pela ideia de imparcialidade, com exceção de um
momento.
O momento em questão trata-se do episódio em que o personagem Pedro
nega por três vezes ter conhecido Jesus, conforme nos mostra a partitura deste excerto
na figura 15. Nele, o texto cantado pelo Evangelista é o seguinte: “... de novo Pedro
negou, e imediatamente cantou o galo. E então Pedro, lembrando as palavras de Jesus,
saiu e chorou amargamente” 70.
Bach propõe que o Evangelista no fim deste excerto abandone
momentaneamente o seu tratamento objetivo e imparcial de narrador ao mencionar que
Pedro chorou amargamente ao negar Cristo. Esta mudança de abordagem por parte do
Evangelista dá-se diretamente na maneira de cantar. O que ocorre é que, no meio da
passagem musical, no momento exato após ter dito que Pedro saiu, o andamento do
excerto e o tratamento melódico do recitar do Evangelista se modificam abruptamente.
O recitar do Evangelista abandona o canto silábico (uma nota por sílaba) e passa a
executar uma melodia de notas longas, com várias notas por sílaba, tratamento melódico
comum às arias e não aos recitativos, sob o texto “e chorou amargamente”.
69
A turba trata-se de um coro que representa um grupo de pessoas envolvidas diretamente na trama. No
caso da Paixão segundo S. João de Bach, representam muitas vezes o povo, os fariseus ou os sumossacerdotes. Essa informação foi adquirida no decorrer da disciplina “Tópicos Especiais em História e
Literatura Musical”, ministrada pela Professora Helena Jank no Curso de Pós-Graduação em Música da
UNICAMP.
70
Tradução de Helena Jank.
81
Figura 14: “e Pedro chorou amargamente”, excerto de um Recitativo da Paixão
Segundo São João de J. S. Bach.
Fonte: <imslp.org>
Com isso, vemos proposto por Bach um momento de fusão das polaridades
narrativas já na época sedimentadas: do Recitativo para a Ária, sem maiores
preparações. No excerto, vemos no canto do Evangelista a transição do recitar para o
lamentar na mesma passagem, do recitativo para uma espécie de arioso; um momento
genial de rompimento das convenções dramático-narrativas em música que, em poucos
segundos e absolutamente justificada pelo texto poético, transita entre os extremos de
uma das faces que o mundo dialético na música nos apresenta: da fala ao choro (pois
não é o choro, também um canto?).
82
CAPÍTULO 3
A Bossa Nova
Mudando bruscamente de cenário, época, idioma, sonoridade e contexto,
este capítulo apresenta ao leitor a Bossa Nova. Transitando ora por seu contexto
histórico-social, ora por seu contexto estético-estilístico, o intuito é, assim como no
capítulo anterior, oferecer um panorama deste estilo musical para a construção da
comparação entre os estilos no capítulo 4.
Para tal, o capítulo se inicia com a exploração do tema da presença da
oralidade no canto brasileiro, se utilizando principalmente das ideias de Mário de
Andrade e Luiz Tatit. Neste primeiro momento, tentaremos expor, como aponta Tatit71,
a ideia de que grande parte da produção cancional brasileira está calcada na
musicalidade da própria fala. Este aspecto será observado desde o repertório da
Modinha, considerada como um ancestral da canção popular brasileira, até o sambacanção.
Na sequência, mencionaremos as principais diferenças estéticas entre o
Samba-canção e a Bossa Nova, para que seja possível entendermos quais as principais
propostas de ruptura estéticas trazidas pela Bossa Nova. Após, nos aprofundaremos na
figura do cantor e violonista João Gilberto, principal protagonista do estilo musical
investigado, na tentativa de esmiuçar sua proposta de canto e de acompanhamento ao
violão. Por fim, discorreremos a respeito do papel da harmonia e da relação entre
melodia e harmonia na expressão da mensagem emocional contida na letra da canção
conforme proposto pelos compositores da Bossa Nova.
Para tal, nos utilizaremos ao longo do capítulo das ideias e registros de
pesquisadores como Ruy Castro, Augusto de Campos, Lorenzo Mammi, Luiz Tatit,
Walter Garcia, entre outros. Além disso, nos utilizaremos também de uma série de
fonogramas como exemplos musicais, alguns dos quais com a apresentação também do
registro em partitura.
71
TATIT, 2004.
83
3.1 A musicalidade da fala na canção brasileira
Ao analisarmos certos aspectos da música popular brasileira, observamos
em diversos estilos de música vocal uma estreita relação entre o modo de cantar e a fala
utilizada no cotidiano desde suas mais antigas manifestações72. Este forte laço que une
em diversos momentos a música popular com a oralidade foi discutido pelo escritor
Mário de Andrade em seu Ensaio sobre a música brasileira no qual afirma que uma das
marcas basais da rítmica musical no Brasil é oriunda de uma rítmica essencialmente
prosódica herdada dos ameríndios e africanos73. Segundo o autor, o ritmo da fala destes
povos – o modular de sons e silêncios que é resultado das combinações características
de vogais e consoantes da voz falada naqueles idiomas – pode ter exercido uma
influência importante no desenvolvimento rítmico da música e da musicalidade
brasileira. Essa ideia de Mário de Andrade pode ser aprofundada na citação do texto de
Martha Tupinambá de Ulhôa:
O português brasileiro, como muitas outras línguas, usa o acento
silábico como um meio de identificação fonológica. Uma das
características principais de seu padrão de acentuação é a presença de
um número grande de palavras paroxítonas. Isto dá à língua, e
consequentemente
ao
paradigma
musical
para
estruturação
métrica/prosódica, uma tendência ou sensação anacrústica. Na música
ocidental se diz que uma frase é anacrústica quando começa antes e
termina depois do primeiro tempo do compasso (ULHÔA, 1999, p.
51).
Em seu Ensaio, Mário de Andrade reforça ainda o elo que muitos estilos
vocais brasileiros têm com a oralidade ao afirmar que “muitos dos cocos, desafios,
martelos, toadas, embora se sujeitando a quadratura melódica, funcionam como
verdadeiros recitativos” 74. Com isso, o autor elenca alguns estilos musicais regionais
72
De acordo com Bruno Kiefer, em seu livro Elementos da linguagem musical: “Cada língua tem a sua
própria estrutura melódico-embrionária. Já existe nela, portanto, o germe de uma música que expressa a
alma [ou aura, segundo Hermeto pascoal] do povo. É sintomático que na Antiguidade poesia e música
fossem inseparáveis. ” (KIEFER, 1973, p. 44).
73
ANDRADE, 1972.
74
ANDRADE, 1972, p. 31.
84
brasileiros e os relaciona com o estilo Recitativo, estilo sabidamente caracterizado pela
proximidade na utilização da voz com a recitação, ou seja, com a voz no registro falado.
Esta relação praticamente simbiótica entre canto e fala presente em muitos
estilos na música brasileira encontra no gênero da canção popular sua maior fruição, a
ponto de o estudioso da canção Luiz Tatit afirmar que “é inevitável, quem ouve uma
canção, ouve alguém dizendo alguma coisa de uma certa maneira.”75. A frase anterior,
ao refletir sobre o atávico atrelamento que o gênero da canção no Brasil possui com o
modo como alguém diz alguma coisa, e levando em consideração a influência mútua
entre a música e o idioma de um povo, pode nos revelar algo ainda maior: quem ouve
alguém dizendo alguma coisa de uma certa maneira, é evitável, mas pode ouvir uma
canção.
A canção popular brasileira, cuja emergência deu-se no século XX e foi
permeada por ricas e distintas culturas em inter-relação, majoritariamente pela dos
brancos, bronzes e pretos, em termos macunaímicos, tem seu vínculo com a oralidade
discutida por Tatit ainda por outro viés:
A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o
século XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da
população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas
ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar
dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas
ditas poderiam então ser reditas quase do mesmo jeito e até
conservadas para a posteridade (TATIT, 2004, p. 70).
Desse modo, notamos que a influência da oralidade na canção popular se
deu não apenas pela sugestiva musicalidade da fala brasileira – que através de seu ritmo
e do modular de alturas de sua prosódia, naturalmente, sugere ao compositor de canções
uma possível melodia – mas também pelo fato de a canção ter se tornado, ao longo de
seu desenvolvimento, expressão musical de uma parcela da sociedade que se utilizava
do registro oral muito mais do que o escrito como forma de comunicação cotidiana. A
esse respeito já cantofalava Caetano Veloso (1942 –) em sua canção “Língua”: “Se você
75
TATIT, 1986, p. 6.
85
tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção / Está provado que só é possível
filosofar em alemão”. Contata-se, então, que a canção brasileira pôde – no decorrer de
seu desenvolvimento – se sedimentar como um modo de dizer perpetuável e
característico, como um registro oral musicalizado de acontecimentos e de ideias.
Ao longo do processo de desenvolvimento do gênero, portanto, vemos
emergir na canção popular brasileira uma série de estilos que explicitam, cada qual a
sua maneira, uma íntima relação entre o modo de cantar e o modo de falar. A presença
deste traço estético é tida como marca de inúmeros estilos do gênero e, curiosamente,
encontra paralelos em um de seus gêneros antecessores, um possível ancestral comum, a
Modinha Brasileira.
Gênero
de
composição
vocal
derivado
diretamente
das
Modas
76
portuguesas , a Modinha pode ser definida como uma espécie de canção com
acompanhamento de um instrumento harmônico, com influências das árias e duetos das
óperas italianas e da rítmica já presente no contexto musical brasileiro trazida pelos
africanos. Parte da produção musical do gênero pode ser vista como um tipo de canção
de câmera, associada ao ambiente cortesão ou de salões aristocráticos, e outra parte está
mais próxima da canção de seresta, acompanhada pelo violão e fora do ambiente
aristocrático, muitas vezes na rua. Atuando muitas vezes como um “meio de expressão
poético musical da temática amorosa”77, não à toa recebe de Mário de Andrade a
delicada definição: “A modinha é um suspiro de amor...”.
Enquanto gênero poético-musical caracteriza-se, sobretudo, por sua
longevidade, com incidências desde o séc. XVIII até o começo do séc. XX, no Brasil e
em Portugal. Credita-se ao poeta e músico (ou mesmo pré-cancionista) brasileiro
Domingos Caldas Barbosa (c.1739 – 1800) a introdução do gênero na Corte da Rainha
Maria I em Lisboa. Provido de sua viola de arame, Barbosa impressionava “pela
facilidade de seus improvisos cantados ao som da viola, à similhança de um lyrico
grego ou de um trovador da idade média.” 78. Segundo o pesquisador Edilson de Lima:
76
“A moda, em Portugal no séc. XVIII, foi um tipo genérico de canção séria de salão, que incluía cantigas,
romances e outras formas poéticas, compostas por músicos de alta posição profissional. As modas foram
tão comuns em Portugal no reinado de D.Maria I que popularizou-se o dito de que na corte dessa rainha
“era moda cantar a moda”” (CASTAGNA, s.d., p. 1).
77
SEVERIANO, 2008, p.17.
78
VARNHAGEM apud TABORDA, 2006, p. 6.
86
Pelo que tudo indica, teria sido realmente durante o século XVIII que
a música produzida na colônia brasileira foi adquirindo feições
próprias a ponto de, no final do mesmo, chegar a possuir uma
personalidade inconfundível, ou seja, de moda que era, configurou-se
como a modinha brasileira. E é nesse momento que surge o nome de
Domingos Caldas Barbosa (LIMA, 2001, p. 14).
Domingos Caldas Barbosa atuava sob pseudônimo de Lereno Selinuntino,
motivo pelo qual seu livro de composições leva o nome de Viola de Lereno, publicado
em 1798. Segundo Márcia Taborda, “os poemas de Caldas, concebidos para serem
cantados, trouxeram uma novidade que causava tanto a admiração quanto a contestação:
a maneira coloquial e direta com que abordava temas amorosos e sentimentais,
temperando-os com muita malícia. ”
79 80
. Um exemplo deste tratamento do texto
poético pode ser lido a seguir, no excerto de um poema de Lereno, publicado no
segundo volume de sua “Viola de Lereno” em 1826:
Por mais que me diga
Que pouco me crê
Eu digo o que sinto
Morro por você.
79
TABORDA, 2006, p. 3.
80
Outros aspectos também diferenciavam a moda portuguesa da modinha brasileira, expressos
principalmente no caráter e afeto vinculados à prática musical na sociedade. Um exemplo desta diferença
pode ser encontrado no livro “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, onde o autor descreve dois momentos
distintos envolvendo o fazer musical brasileiro e português:
“Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada; divina!
Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade. Também cantou. E cada verso que vinha da sua
boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se
todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as
vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até o tutano com línguas finíssimas de
cobra.” (AZEVEDO, 1995, p. 110).
Passagem que se opõe a cena do Português Jerônimo: “Depois, até as horas de dormir, que nunca
passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os
fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às saudades da pátria, com aquelas
cantigas melancólicas em que a alma do desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias
tristes da sua infância” (AZEVEDO, 1995, p. 55).
87
Ponha a mão sobre o meu peito
Porque a dúvidas dissipe,
Sentirá meu coração,
Como bate, tipe, tipe.
Estou com ela
Entre agradinhos
Como os pombinhos
A dois e dois.
Menina, vamos amando,
Que não é culpa o amar.
O mundo ralha de tudo,
É mundo, deixa falar.
(Domingos Caldas Barbosa apud TINHORÃO, 1998, p. 117)
Com isso, constata-se com o surgimento da Modinha brasileira no ambiente
aristocrático de Lisboa, uma maneira diferente de abordar o texto poético cantado, que
passou a incorporar elementos da linguagem cotidiana brasileira, portanto com
influência da oralidade. Este tipo de Modinha desenvolvido no Brasil e veiculado por
Caldas Barbosa em Portugal, apresenta-se para alguns pesquisadores como o gênero
precursor da canção popular brasileira. Assim concorda Luiz Tatit:
(...) há que se considerar que a música de Domingos Caldas Barbosa
representou a configuração do tripé sobre o qual veríamos erigir no
século XX, a canção popular que invadiu todas as faixas sociais pelos
meios de comunicação de massa e que se projetou a uma escala
internacional a partir de 1960 [com a internacionalização da Bossa
Nova]. Suas peças baseavam-se num aparato rítmico oriundo dos
batuques, suas melodias deixavam entrever gestos e meneios da fala
88
cotidiana, o que lhe permitia “dizer” o texto com graça e com força
persuasiva, e, finalmente, suas inflexões românticas, expandindo o
campo de tessitura das canções, introduziam um certo grau de
abstração sublime (...) (TATIT, 2004, p. 27).
Tatit parece encontrar na obra de Domingos Caldas Barbosa uma espécie de
prenúncio do que viria a ser a canção popular brasileira no século XX, reconhecendo em
ambos os gêneros a presença de três distintos pilares: influência da música africana no
contexto rítmico, modo de cantar próximo do registro da fala e a presença de um
elemento passional contido tanto na temática dos poemas cantados quanto na influência
lírico-operística das melodias, herança das Modas Portuguesas e da forte presença do
repertório operístico nas classes mais altas da sociedade brasileira da época. Soma-se a
isso o fato da paulatina substituição da viola pelo violão no decorrer do percurso das
Modinhas fora do ambiente de salão no Brasil.
A respeito da presença de Modinhas dentro e fora do contexto social
burguês no Brasil, é possível notar que no decorrer de seu percurso histórico houve uma
certa polarização na produção musical que se configurou, basicamente, em duas
distintas vertentes associadas diretamente ao meio social em que estavam envolvidas. A
modinha seresteira, popular, “oralizada” e acompanhada pela viola ou violão; e a
“Modinha de Salão”, que mantinha a influência das árias e duetos italianos e que
passou, aos poucos, a ser acompanhado pelo piano, instrumento cuja posse foi símbolo
de status social no Brasil do século XIX e começo do século XX. A esse respeito, Paulo
da Costa Oliveira escreve:
Os dois tipos de cantigas populares vigentes, derivados tanto dos
estribilhos cantados da dança saída dos batuques – no caso do lundu –
quanto do amolecimento dengoso da velha moda portuguesa – no caso
da modinha –, coexistiram por todo o Brasil, sendo cultivados em
distintas camadas sociais. Aquelas de ritmo mais vivo e melodias mais
simples eram executadas nas ruas, pelo canto solo dos seresteiros. As
outras, mais elaboradas e harmonizadas, sofrendo o influxo mais
marcado da música erudita, sobretudo da ópera, eram executadas nos
salões ao sabor do estilo bel canto (OLIVEIRA, 2008, p. 71).
89
No caso da “Modinha de salão”, também conhecida como modinhas
sentimentais, a influência das árias de óperas italianas deu-se, sobretudo, no tratamento
melódico. Segundo a musicóloga Oneida Alvarenga, vê-se frequentemente na Modinha
a presença de uma “linha [melódica] cheia de arabescos ondulosos, o uso intenso de
harpejos, os saltos largos” 81. Este comportamento melódico é bastante comum às árias
de ópera e a voz que canta, neste contexto, distancia-se da fala e aproxima-se do que
seria um tratamento mais próximo à música instrumental.
Nesse sentido, a presença de dois tipos distintos de cantigas populares,
conforme mencionado anteriormente por Paulo Oliveira, – cada qual diretamente
relacionada ao fazer musical de uma camada social no Brasil do século XIX – reflete no
status que cada instrumento musical tinha no contexto social da época. Se por um lado a
presença do piano nas casas das famílias mais abastadas do Brasil do século XIX era
vista como um símbolo de status social, por outro, o violão era mal visto pela burguesia
da época, sob os argumentos de que seria um instrumento associado a um ambiente de
farra e folia. Dessa forma, é interessante mencionar a passagem do Romance O triste
fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto, no qual o protagonista, Major
Policarpo Quaresma, choca sua vizinhança ao aparecer pelas ruas carregando um violão:
Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas
cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São
Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado.
Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão?
Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com
pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço
um violão impudico. É verdade que a guitarra vinha decentemente
embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente
as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito
que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa
diminuíam um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. (...). Quando
entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta,
perguntando:
– Janta já?
– Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje
conosco.
81
ALVARENGA, 1950, p.286.
90
– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com
posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro,
um quase capadócio – não é bonito!
O major descansou o chapéu-de-sol – um antigo chapéu-de-sol com a
haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de
pequenos losangos de madrepérola – e respondeu:
– Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que
todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a
mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento
que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve
em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve
um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia.
– Mas isso foi em outro tempo; agora...
– Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as
nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...
– Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as
suas manias (BARRETO, 1915, p. 11-12).
De acordo com o excerto apresentado do Romance de Lima Barreto,
constatamos a imagem negativa associada ao violão na sociedade burguesa da época.
Além disso, Policarpo Quaresma, personagem reconhecidamente nacionalista, no
decorrer do livro entra em conflito com seu meio social justamente por enaltecer as
práticas culturais genuinamente nacionais. Percebe-se nesta passagem, então, de modo
quase velado, uma crítica por parte do autor a um fenômeno corrente no contexto
brasileiro: as classes mais abastadas frequentemente atribuírem maior valor à cultura
estrangeira, principalmente àquela vinda dos países europeus. Prova disso está no fato
de Quaresma mencionar à irmã, como recurso legitimador de seu argumento, que
Beckford, um inglês, aprecia o gênero da Modinha.
Nesse sentido, podemos melhor compreender a forte influência das árias de
ópera italianas no fazer musical da sociedade burguesa brasileira desta época, bem
como constatar a presença deste repertório no cotidiano desta sociedade por meio da
leitura de alguns romances de costume do período82. No romance Diva (1864) de José
de Alencar, uma cena cotidiana da classe média alta carioca é retratada no seguinte
excerto: “Começara o verão de 1855. Uma manhã apareceu Geraldo em minha casa.
82
Sobre este tema, ver A música popular no romance brasileiro (2000) de José Ramos Tinhorão. Trata-se
de um importante trabalho de pesquisa de menções à música popular brasileira na literatura.
91
Entrou, conforme o seu costume, estrepitosamente, e cantarolando não sei que ária do
seu repertório italiano.”
83
. Uma menção similar ocorre no romance Senhora (1875)
também de José de Alencar. Em um diálogo entre as personagens Dona Firmina e
Aurélia, Aurélia pergunta sobre quem D. Firmina acha mais bonita: ela, Aurélia, ou
Amaralzinha. O trecho que se segue é:
- Em todo o caso [Amaralzinha] é mais bem-educada do que eu?
- Do que você, Aurélia? Há de ser difícil que se encontre em todo o
Rio de Janeiro outra moça que tenha sua educação. Lá mesmo, por
Paris, de que tanto se fala, duvido que haja.
- Obrigada! É esta a sua franqueza, D. Firmina?
- Sim, senhora; a minha franqueza está em dizer a verdade, e não em
escondê-la. Demais, isso é o que todos vêem e repetem. Você toca
piano como o Arnaud, canta como uma prima-dona, e conversa na
sala com os deputados e os diplomatas, que eles ficam todos
enfeitiçados. E como não há de ser assim? Quando você quer, Aurélia,
fala que parece uma novela (ALENCAR, 1875, p. 4-5).
Com isso, pode-se constatar a presença comum deste tipo de repertório na
sociedade burguesa das grandes cidades brasileiras deste período, característica que
revela a influência da música italiana na produção musical brasileira.
Compositores brasileiros como Carlos Gomes (1836 – 1896), bem como os
luso-brasileiros Marcos Portugal (1762 – 1830) e Padre José Maurício Nunes Garcia
(1767 – 1830), compuseram Modinhas neste estilo, conforme podemos observar a
seguir, no excerto da Modinha “Anália Ingrata” (1859) de Carlos Gomes, para voz e
piano.
83
ALENCAR, 1864, p.5.
92
Figura 15: Excerto da Modinha “Anália Ingrata” (1859) de Carlos Gomes.
Fonte: Música brasilis <musicabrasilis.org.br>
Ao observarmos a partitura da peça de Carlos Gomes podemos notar em
alguns aspectos um forte diálogo desta Modinha com o estilo operístico. Na escrita para
o Piano, como instrumento acompanhador, a figuração rítmica denuncia o compasso
ternário e marca os tempos todos “na cabeça” de cada pulso, tal qual uma valsa
vienense. A linha melódica cantada possui alguns saltos, alguns dos quais aparecem por
entre as palavras, dando a elas uma certa modificação de sua prosódia natural (é o caso
da palavra perfeição, por exemplo: peêrfeição). A temática lírico-amorosa da letra
cantada, em adição a indicação expressivo no começo da melodia e a palavra cantada
“gemo”, sugere uma interpretação dramática. Além disso, nota-se no desenvolvimento
do fraseado melódico uma força eminentemente musical, uma vez que a melodia
cantada não se adequa com perfeição ao texto poético, gerando pequenos desvios
prosódicos conforme já mencionado.
93
Ao ouvirmos a interpretação de “Anália Ingrata” pela soprano Niza de
Castro Tank, fonograma que faz parte do CD Minhas pobres canções (2006), a
proximidade desta modinha com o gênero operístico se esclarece. A abordagem vocal
dada por Tank parte dos preceitos técnicos do bel canto italiano, manifesta em aspectos
como a adaptação de algumas vogais em busca de uma sonoridade vocal específica e a
grande presença de vibrato. Em sua dicção, a opção pela pronúncia do /R/ rolado, ou
“vibrante”, em palavras como “reparo”, “ferros” e “arrasto” parte da ideia de que este
tipo de pronúncia do /R/ está associada a uma boa dicção, conforme diretriz de diversos
tratados de canto lírico84. Este tipo de dicção do /R/ está frequentemente associado a
alguns sotaques do português brasileiro bem como à dicção de locutores da época do
rádio, dicção que se mantém até os dias de hoje em alguns locutores esportivos.
Ao aproximar-se do final da canção, o momento ápice e apoteótico sob o
qual a cantora exclama repetidamente a palavra “gemo” lembra-nos uma espécie de
cadenza dos concertos instrumentais, momento característico no qual o instrumentista
podia mostrar seu virtuosismo, ainda que nesse caso exista de fato uma associação
poético-musical interessante. Em síntese, nesta interpretação a voz de Tank soa mais
como um belo instrumento musical do que um instrumento oral, aspecto que parece se
repetir ao ouvirmos outras gravações deste mesmo tipo de repertório.
Curiosamente, especulamos que ecos deste lirismo mezzo operístico das
modinhas sentimentais puderam ser ouvidos muitos anos depois em estilos musicais
brasileiros como o samba-canção (e podem ser ouvidos até hoje em gêneros como
sertanejo). A respeito disso, comenta o pesquisador Paulo da Costa Oliveira:
O próximo momento-chave da música romântica no Brasil seria a
criação, no fim dos anos 1920, do samba-canção. Seu núcleo poético
não se distancia muito do alto lirismo das clássicas modinhas
sentimentais. Um dos grandes expoentes das canções românticas no
Brasil, Vicente Celestino, passaria sem qualquer problema das
84
“Pessotti (2005, p.354) lembra que o canto italiano é frequentemente citado como referência para uma
boa emissão, sendo também valorizada a abordagem italiana em relação às vogais, o que leva cantores
não italianos a soarem como italianos. Além disso, para “Tosi (1723) e Agricola (1757) a pronúncia clara
e exata das palavras é requisito indispensável para a compreensão do que se escuta”, e “Printz (1678),
citado por Agricola (1757), afirma a necessidade de se exagerar a pronúncia das consoantes no canto”. Já
“Moreira (1937) faz menção ao uso do /R/ “rolado” como mais correto para o canto, assim como Mansion
(1947) e Kienle (1895)” (Pessotti, 2005, p.354-355).”(PESSOTTI, 2005 apud ELME, 2015, p. 45).
94
modinhas para o samba-canção. Se no começo de sua carreira Vicente
Celestino se tornou conhecido por gravar as modinhas do famoso
compositor Catulo da Paixão Cearense, logo depois levaria seu estilo
virtuoso de cantar para o universo do samba-canção. Sua emissão
operística, com ênfase na técnica vocal, parecia casar perfeitamente
com a atmosfera dramática dos boleros e tangos que, devido ao
crescimento do mercado fonográfico internacional nos anos 1940,
influenciavam cada vez mais o samba lento com ênfase na melodia
(OLIVEIRA, 2008, p. 78-79).
Com a citação anterior, Paulo Oliveira une diretamente a abordagem vocal
das Modinhas sentimentais à abordagem dada aos cantores do Samba-canção,
relacionando este cantar com um tratamento romântico e focado no aspecto técnico e
dramático.
Neste sentido, parece interessante notar, desde a mais tenra configuração de
gêneros e estilos vocais no Brasil, a constante presença da polarização entre estilos mais
“líricos”, com a voz que canta em um tratamento mais distante da fala, às vezes se
utilizando como base técnica a escola do bel-canto italiano, e outro, como o samba, nos
quais a voz que canta se aproxima da fala.
No nível fonológico, estas duas distintas abordagens se manifestam
diretamente sobre o tratamento dado às vogais e às consoantes. Se considerarmos a
vogal como um fluxo sonoro contínuo, a consoante se anuncia ou como modo de
ataque, de partida, ou como som que articula a vazão vocal da vogal. O idioma falado,
dada à grande quantidade de consoantes diferentes presentes na língua, possui um
repertório sonoro de tipos de articulação muito mais vasto que qualquer instrumento
musical. Nesse sentido, o canto que se aproxima da fala mostra-se, sintomaticamente,
muito mais articulado que o canto lírico e passionalizado.
A tensão perene entre estes dois tratamentos vocais distintos permeia a
música vocal brasileira não somente entre um estilo e outro, como veremos no
confronto entre o Samba-canção e a Bossa Nova, ou mesmo, como já vimos, fora do
contexto brasileiro, na própria estrutura narrativa da Ópera, manifestada pelo par Ária
versus Recitativo. Como recurso poético, esta dualidade pode ocorrer muitas vezes
dentro de uma própria canção. Vê-se muito este tipo de abordagem em alguns raps nos
95
quais as estrofes são canto-faladas e os refrões cantados. Um bom exemplo é a música
“Cachimbo da paz” de Gabriel o Pensador.
3.2 Samba Canção x Bossa Nova
Costuma-se definir a Bossa Nova como um estilo de canção popular que
surgiu no Rio de Janeiro no fim da década de 1950. Seu nome remete a ideia de frescor
e novidade uma vez que, de modo geral, o termo “Bossa Nova” era usado desde a
década de 1930 no Rio de Janeiro para designar um jeito novo e diferente de fazer
qualquer coisa85. Nesse sentido, a Bossa Nova em relação a seu estilo antecessor
(Samba-canção) emerge caracterizando-se sobretudo por um jeito diferente de cantar,
mais próximo da fala, por uma instrumentação mais concisa, expressa pelo par
banquinho e violão, e pela concepção geral vinculada a ideia de síntese e objetividade.
Entretanto, Luiz Tatit nos oferece um aprofundamento no entendimento
destas vertentes estilísticas ao mencionar duas Bossas diferentes:
Uma coisa é a bossa nova como movimento musical – caracterizado
como intervenção “intensa” – que durou por volta de cinco anos (1958
– 1963), criou um estilo de canção, um estilo de artista e até um modo
de ser que virou marca nacional de civilidade, de avanço ideológico e
de originalidade. Outra coisa é a bossa nova “extensa” que se
propagou pelas décadas seguintes, atravessou o milênio, e que tem por
objetivo nada menos que a construção da “canção absoluta”. (...) à
bossa nova extensa pertencem apenas Tom Jobim e João Gilberto.
“Extensa”, neste caso, não diz respeito à longevidade das canções
produzidas no período. (...) Estamos nos referindo ao projeto de
depuração de nossa música, de triagem estética, que se tornou modelo
de concisão, eliminação dos excessos, economia de recursos e
rendimento artístico (TATIT, 2004, p. 179).
85
SEVERIANO, 2008.
96
Nesse sentido, Tatit nos mostra a força das propostas estéticas da Bossa
Nova, manifestas sobretudo nas criações de Tom Jobim e João Gilberto, e que acabaram
tornando-se um marco na produção cancional brasileira, influenciando diretamente o
panorama posterior. O propósito depurador da criação cancional de Jobim e João
Gilberto, segundo Tatit, tornou-se uma referência de ordem estética tão marcante a
ponto de frequentemente ser invocado no universo da canção brasileira em diversos
contextos: “Há momentos da história da canção, da carreira de um artista ou mesmo da
história de uma única composição em que o tratamento depurador da bossa nova se faz
necessário. Nesse sentido, o gesto bossa-nova é extenso.” 86. Pelo termo “extenso”, Tatit
refere-se a ideia de que a proposta depuradora da Bossa Nova extrapola o âmbito do
próprio estilo; ela se estende para além dos limites estéticos do estilo musical em
questão, podendo frequentemente ser encontrada em momentos posteriores.
Interessante notar que o nascimento da Bossa Nova logo de início nos
remete ao surgimento da Seconda Pratica no que diz respeito aos certames por ela
motivados. De acordo com Brasil Rocha Brito, em seu texto “Bossa Nova” de 1960:
“nunca antes um acontecimento ocorrido no âmbito de nossa música popular trouxera
tal acirramento de controvérsias e polêmicas”87. Natural que a emergência deste estilo
no momento histórico em que surgiu motivasse tais efervescências, uma vez que a base
de suas características estéticas caminhava para uma direção praticamente oposta às
bases estéticas do estilo musical em voga até então.
A respeito das inovações estéticas trazidas pelo nascimento da Bossa Nova,
veremos que estas encontram-se, sobretudo, no âmbito rítmico e harmônico, na rarefeita
densidade dos arranjos, na maneira de se executar e conceber o canto, próximo ao
registro da fala, e, sobretudo, em sua concepção geral associada a ideia de economia e
síntese. Soma-se a isso o fato de que tais posturas estéticas adotadas pelos artistas
envolvidos com o estilo foram conquistadas através de uma busca autoconsciente, fruto
de um intenso trabalho de pesquisa e discussão coletiva. Para que possamos
compreender e visualizar as transformações estéticas promovidas pela emergência deste
estilo, faz-se necessário apresentar o estilo musical antecessor, o Samba-canção.
86
TATIT, 2004, p. 180.
87
apud CAMPOS, 1986, p.17.
97
A produção musical brasileira das décadas de 1940 e 1950 no âmbito da
canção popular caracteriza-se pela presença massiva de músicas com um forte apelo
melodramático e caráter passional, aspectos manifestados no conteúdo poético da letra
cantada, no tratamento grandioso dado aos arranjos muitas vezes orquestrais, e na
maneira de cantar, que privilegiava atributos vocais como potência e dramaticidade e
distanciava-se da voz falada. Este estilo de composição surgido na década de 1930, cuja
abordagem lírica, sobretudo no modo de cantar, resgata uma postura já presente na
Modinha semi-erudita de quase um século antes, passou a ser conhecido como Sambacanção. É também conhecido como “samba de meio de ano” para diferenciar-se dos
sambas vinculados ao Carnaval, uma que vez que seu andamento era notadamente mais
lento e a temática das letras cantadas não tão festivas.
Atribui-se a este gênero, também, a influência de estilos musicais hispanoamericanos de sucesso na época como o bolero e o tango88. Vinculados a este estilo de
canções românticas encontram-se artistas como Lupicínio Rodrigues, Dalva de Oliveira,
Cauby Peixoto, Ângela Maria, Herivelto Martins, entre outros.
Vejamos como exemplo característico deste repertório a gravação de 1947
da canção “Segredo” de Herivelto Martins e Marino Pinto com interpretação da cantora
Dalva de Oliveira. Em relação a instrumentação utilizada na canção e seu arranjo, notase neste samba de andamento lento o acompanhamento constante de uma orquestra de
cordas e uma flauta (orquestra da gravadora Odeon), preenchendo, muitas vezes com
contracantos em soli89, praticamente todos os espaços deixados pelas entre-frases da
linha melódica do canto. Além da orquestra, compõe a instrumentação base um baixo e
um violão, seção da instrumentação que denuncia o ritmo de samba.
O canto de Dalva de Oliveira no fonograma apresentado é marcado pela
potência de uma voz que parece estar sempre em expansão. Sua dicção, especialmente
em relação a pronúncia do R é similar à de Tank na modinha apresentada anteriormente.
Nota-se em Dalva de Oliveira, em seu gesto vocal, a presença constante de
características passionais. Seu cantar privilegiava as durações e a utilização de ampla
tessitura, com chegada aos agudos sem mudança de registro vocal, fato que
possibilitava ao ouvinte, pela escuta, perceber a tensão do gesto. O vibrato também é
88
TATIT, 2004.
89
Tipo de escrita onde um naipe instrumental realiza um contracanto harmonizado em bloco.
98
um elemento bastante presente como recurso expressivo que aponta a presença do
componente dramático. No que tange à qualidade vocal, tratava-se um timbre com forte
presença de ressonância frontal, destacando o brilho intenso e metálico da voz.
Valorizando a presença de uma voz cantada, ela utilizava determinados ornamentos
como melismas, portamentos e glissandos, muito característicos desse tipo de canto no
qual o componente dramático é expresso por valores musicais realizados pela voz.
A letra da canção faz menção a uma história de amor malsucedida sem
traços de qualquer tipo de esperança e positividade, conforme expresso no excerto:
“Quando o infortúnio nos bate à porta / e o amor nos foge pela janela / a felicidade para
nós está morta / e não se pode viver sem ela / Para o nosso mal / Não há remédio,
coração / Ninguém tem culpa da nossa desunião.”. Este tipo de afeto passional e
melancólico da letra da canção é tido como uma das marcas do samba-canção.
Esta gravação de Dalva de Oliveira oferece um bom exemplo da estética
vocal buscada por grande parte dos cantores deste estilo. A esse respeito, vejamos a
citação de Regina Machado:
(...) naquele momento [auge do samba-canção] a necessidade de
exposição da voz através das melodias, cujos conteúdos passionais
tornaram-se dominantes, levou os cantores a uma busca de
aprimoramento técnico, ainda que intuitivo, no sentido de encontrar
referenciais de beleza que obtivessem resposta junto ao público.
Intuitivamente delineava-se um maior rigor quanto à afinação, à
realização do fraseado, à consciência timbrística e à capacidade
expressiva, ainda que em um caminho mais próximo da música que da
fala, tecendo-se um elo com o ouvinte a partir de elementos de
sedução amorosa (MACHADO, 2011, p. 35).
Os traços estéticos elencados por Regina Machado concernentes ao trabalho
vocal dos cantores do Samba-canção, quando associados ainda a outras características
como a instrumentação grandiosa, o tratamento denso no arranjo em relação a
quantidade de eventos e a temática desenvolvida pela letra cantada, desenham um
panorama claro da estética poético-musical deste estilo de canção brasileira das décadas
de 1940 e 1950. Entretanto, ainda segundo Machado – e conforme veremos mais
99
detalhadamente a seguir – em contraposição a esse comportamento vocal comumente
atribuído ao Samba-canção, vemos também surgir no mesmo período e no mesmo
contexto cancional, vozes que se aproximam da fala, atenuando o componente
dramático musical e atuando em tessituras mais graves, vide a produção musical de
cantores como Nora Ney, Dick Farney, Lucio Alves, entre outros.
Na busca pela delimitação e identificação precisa de cada estilo ou prática
musical, conforme tem-se notado no decorrer de nosso texto, dificilmente conseguimos
encontrar fronteiras estéticas perfeitamente delimitadas na suposta transição entre os
estilos. De fato, não existe um momento claro de transição, até porque o Samba-canção
continua a existir após o aparecimento da Bossa Nova. O que se nota na maioria das
vezes é uma espécie de dégradé, uma transição paulatina de tendências entre um estilo e
outro. Especificamente em relação ao tratamento harmônico na Bossa Nova, a atenção
para este tipo de escrita harmônica – que, entre outras coisas, incorpora tensões nos
blocos sonoros dos acordes e flana elegantemente por distintos diatonismos – já era, de
certo modo, precursoramente investigada por outros tantos compositores dentro e fora
do Brasil. Um deles, o cantor e pianista Johnny Alf (1929 - 2010). Antes do
aparecimento da Bossa Nova no fim da década de 1950, Johnny Alf já utilizava em suas
canções não apenas uma linguagem harmônica considerada moderna, mas também de
uma certa atmosfera cool, bastante próxima do jazz, que se sedimentou como influência
para os músicos que viriam a compor a Bossa Nova, oficialmente.
Interessante notar que a produção musical de Johnny Alf esteve amparada
por um período de estudos de música clássica ao piano durante sua juventude. Soma-se
a isso seu interesse manifesto também pela música popular, repertório que ouvia nas
rádios da época. Conforme depoimento do próprio Johnny Alf contido em sua biografia
organizada por João Carlos Rodrigues:
O que eu estudei de música clássica? Nos primeiros anos de piano a
gente segue aquele ritmo de peças tradicionais. Mais Chopin que
Debussy. (...). Eu gostava muito de música erudita, e tem o fato de ter
acompanhado muito o rádio nessa época, que eu considero o tempo
mais precioso da música brasileira, e tive a vontade de botar no piano
muita coisa que eu ouvia. A dona Geni não se importava que eu
100
tocasse música popular porque eu não relaxava nos clássicos (apud
RODRIGUES, 2012, p. 13-14).
Muito provavelmente, a escrita harmônica de Johnny Alf, que tanto
influenciou os músicos posteriores, teve inspiração do repertório erudito com o qual
teve contato em seus estudos no piano. Ao escutarmos suas canções, acaba-se
reconhecendo uma sonoridade jazzística em relação a harmonia, porém conduzida por
ritmos predominantemente brasileiros. Nesse sentido, o background musical de Johnny
e de outros músicos inundou, veiculados por suas criativas produções artísticas, o
cenário musical brasileiro antecipando uma abordagem na harmonia e no ritmo que
seria largamente utilizada no decorrer da Bossa Nova. A esse respeito, o próprio Johnny
Alf reconhece a existência de precursores do estilo Bossa Nova antes mesmo de seu
nascimento “oficial”, em 1958:
Eu acho que antes da Bossa Nova já tinha muita gente fazendo bossa
nova. Quando eu estudei piano eu me liguei muito nos compositores
pouco comerciais da música brasileira. O Valzinho, autor de Doce
Veneno; o José Maria de Abreu; o Bonfá; o Lírio Panicalli; o Radamés
Gnatalli, que fez Amargura. Eu sou da opinião que ninguém inventa,
todo mundo tem uma fonte (apud RODRIGUES, 2012, p.17).
O compositor e violonista Carlos Lyra, músico atuante no desenvolvimento
da Bossa Nova, em depoimento comenta também o ineditismo de Johnny Alf e sua
importante influência para os principais protagonistas da Bossa Nova.
A importância dele [Johnny Alf] para nós é muito grande, porque ele
foi um dos precursores da bossa nova. Eu conheci o Johnny em 1954.
Ele tocava no Bar do Plaza, no Leme, e sempre que eu podia ia para
lá, entrava escondido, porque era menor. Nós íamos todos pra lá, o
Tom [Jobim], João Gilberto, Silvinha Teles, Dolores Duran, Billy
Blanco, toda essa turma ia para lá ver o Johnny tocar. (...). A música
dele era delicada, romântica, uma música cool, de influência do jazz
101
americano, que ele conhecia muito bem, e ele deixou isso para a bossa
90
nova (LYRA, 2010) .
De acordo com os depoimentos aqui trazidos, constata-se que, no âmbito
harmônico, uma série de experimentações vinham sendo desenvolvidas no contexto
musical brasileiro, impulsionadas pelo contato dos músicos com o repertório de música
erudita e com o jazz e sobretudo com a música de compositores brasileiros como Garoto
(Aníbal Augusto Sardinha), Custódia Mesquita e Radamés Gnatalli. Como veremos a
seguir, este tratamento harmônico sofisticado em fusão com o ritmo do samba,
característica marcante do acompanhamento violonístico da Bossa Nova, a batida da
Bossa Nova, veio ao encontro dos anseios dos criadores do novo estilo.
Outras posturas estéticas dentro do contexto da canção popular brasileira
pré-Bossa Nova podem também estar relacionadas à ideia de ineditismo, sobretudo
aquelas relacionadas ao modo de cantar. Conforme veremos, uma das principais
características da Bossa Nova é o canto-falado, manifesto principalmente na produção
artística do cantor João Gilberto. Vimos anteriormente que este tipo de canto próximo à
fala não é uma invenção de João Gilberto, e sim uma característica basal da canção
popular brasileira, um eixo estético presente em inúmeros estilos pré-Bossa Nova e pós
também. Nesse sentido, uma série de cantores como Dolores Duran, Nora Ney, Tito
Madi, Lúcio Alves, Sílvio Telles, entre outros, que com uma abordagem no cantar mais
próxima da ideia de suavidade do que de potência, de certa forma antecipam uma
postura estética mote da Bossa Nova91.
O mesmo pode ser vinculado, em um contexto ainda anterior, a figura da
cantora luso-brasileira Carmem Miranda (1909 – 1955). Segundo Regina Machado:
A cantora Carmen Miranda (...) fundou bases para o canto que se
configuraria depois dela. Certamente foi a primeira cantora a fazer uso
do elemento entoativo, fazendo ouvir a fala no canto e associando,
pela primeira vez, a construção de uma imagem que se relacionasse
com a expressão do sentido musical e poético. Seu gesto vocal estava
90
Depoimento dado por Carlos Lyra ao jornal O Globo por ocasião da morte de Johnny Alf.
91
MACHADO, 2011.
102
diretamente ligado à expressão dos padrões entoativos da fala, numa
emissão desprovida de vibrato, com valorização da articulação rítmica
não só através dos elementos musicais, mas também das articulações
dos fonemas (MACHADO, 2011, p. 33-34).
Há de se considerar que o grande sucesso deste tipo de canção romântica
que era o Samba-canção nas décadas de 1940 e 1950, com forte veiculação por meio do
rádio, “acabou por desmotivar o consumo da classe média mais instruída e, em especial,
dos estudantes que vinham se tornando uma das principais forças culturais das grandes
metrópoles” 92. Parte do público jovem brasileiro da época era guiada com entusiasmo
pela busca de um ideal de modernidade, ideal que pairava pelo contexto políticocultural do Brasil da década de 1950 relacionado a aspectos como a criação da nova
capital, Brasília; a política desenvolvimentista de Juscelino Kubistchek e a sintomática
emergência de correntes artísticas propositoras do novo, como o Cinema Novo, a Poesia
Concreta e a própria Bossa Nova. Reinava também, por entre parte do público jovem
daquele contexto, um apreço pela música internacional, em especial a música
estadunidense de músicos como Frank Sinatra (1915 – 1998) e Chet Baker (1929 –
1988), músico do chamado cool jazz – que se trata também, assim como a Bossa Nova,
de uma espécie de canção de câmara, canto-falada, contida, e rica no âmbito harmônico.
Nesse sentido, grande parte das cantoras e cantores “pré-bossanovistas”
como Lúcio Alves e Dick Farney tiveram no trabalho de Frank Sinatra uma influência.
Os cantores supracitados faziam considerável sucesso entre os ouvintes da década de 50
a ponto de existirem fã clubes em sua homenagem, como o Sinatra-Farney Fan Club e o
Dick Haymes-Lúcio Alves Fan Club93. Nestes clubes, jovens cariocas criaram um
espaço de apreciação à música de seus ídolos cantores, tendo como referência máxima
deste estilo Sinatra, que curiosamente viria a gravar anos depois um disco com Tom
Jobim nos Estados Unidos cantando os maiores sucessos da Bossa Nova.
Com frequência os jovens cariocas da década de 1950 e apreciadores de
música reuniam-se para discutir sobre as músicas em voga no momento. Essas reuniões
eram feitas nos próprios fã-clubes, em bares e boates, em lojas de discos e até nos
92
TATIT, 2004, p. 100.
93
CASTRO, 1990.
103
apartamentos de suas famílias94. Nesse sentido, podemos encontrar uma certa
semelhança em relação a Camerata Fiorentina: um espaço de encontro, de troca de
ideias e apreciação artística; um esforço coletivo na busca por uma identidade ou ideal
estético.
Sobre a relação do aparecimento da Bossa Nova com o contexto cultural
vivido pelo Brasil na década de 1950, Santuza Naves escreve:
(...) a aversão desenvolvida pelos bossa-novistas a qualquer tipo de
exagero estético ou sentimental também se deve às afinidades eletivas
desses músicos para com a tradição construtivista. Citemos pelo
menos duas tendências ligadas a essa tradição que se desenvolveram
no Brasil: a arquitetura de Oscar Niemeyer e o projeto urbanístico de
Lucio Costa, ambos acionados para a construção de Brasília, a nova
capital; e a movimentação iniciada em 1956 em torno da poesia
concreta, sediada em São Paulo e encabeçada por Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Em comum com a
bossa nova, arquitetos e poetas concretos compartilhavam o gosto pela
estética do menos, numa profissão de fé contra qualquer inclinação
para o excesso. Aderir às formas simples, naquele momento,
significava abraçar um entendimento de “moderno” que indicava
sobretudo objetividade e despojamento, assim como assumir uma
atitude cosmopolita em franca conciliação com o sentimento de
brasilidade então reinante. (NAVES, 2015, p. 12)
94
Idem.
104
Figura 16: Croqui de Niemeyer: objetividade e despojamento
Fonte: < http://blog.construtorapolski.com.br>
Figura 17: Exemplo de poesia concreta. “Tensão” (1956) de Augusto de Campos.
Fonte: <http://www2.uol.com.br/augustodecampos/tensao.html>
105
De fato, o contexto sociocultural brasileiro do fim da década de 1950
propiciava o aparecimento de novas vertentes estéticas impulsionadas pela busca de um
novo ideal, principalmente no âmbito da música popular, que via no samba-canção uma
hegemonia de, pelo menos, duas décadas. Interessante notar como os estilos emergidos
neste período, em âmbitos criativos distintos, dialogam em suas buscas por uma estética
do menos, sintética e objetiva. No caso específico da Bossa Nova, veremos que, de fato,
ela “cumpre no samba urbano o ideal modernista-nacionalista preconizado por Mário
[de Andrade]: o de tornar "estético" o "funcional".”95.
3.3 Chega de Saudade
É neste contexto que surge, em agosto de 1958, o compacto simples96 do
violonista e cantor João Gilberto, com as músicas “Chega de Saudade” de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes, no lado A, e “Bim Bom” do próprio João Gilberto, no lado B. Para
muitos pesquisadores, o lançamento deste compacto simples é considerado como o
marco inicial da Bossa Nova97.
A canção “Chega de Saudade” já havia sido gravada meses antes na voz de
Elizeth Cardoso em seu disco Canção do Amor Demais, um disco todo de composições
da dupla Tom Jobim e Vinícius de Morais, com arranjos de Tom Jobim e o próprio João
Gilberto no violão nas faixas “Chega de Saudade” e “Outra Vez”. Para outros
pesquisadores esse sim seria o marco inicial da Bossa Nova uma vez que, nesta canção
em especial, já se ouvia alguns dos aspectos estéticos que passariam a definir o estilo
posteriormente, sobretudo a batida da Bossa Nova, aspecto que veremos mais
detalhadamente ainda neste capítulo.
De qualquer maneira, independentemente de qual seria o marco inicial do
estilo, João Gilberto e Tom Jobim já apareciam em ambos os casos como envolvidos
95
ULHÔA, 1999, p. 51.
96
Tipo de disco de vinil que tinha, a cada lado, a possibilidade de armazenar 4 minutos de gravação. Por
este motivo, a imensa maioria deste tipo de disco trazia apenas duas músicas.
97
GAVA, 2002; GARCIA, 1999.
106
diretos, demonstrando por meio de “Chega de Saudade” as novas abordagens musicais
que viriam a ser marcas da Bossa Nova. Apresentamos a seguir alguns excertos da
canção “Chega de Saudade” em partitura bem como sua gravação no compacto simples
de João Gilberto, de 1958. Em relação a notação da canção em partitura, é necessário
ressalvar que nosso intuito é somente oferecer uma referência, uma vez que a notação
pode estar sujeita a variações, sobretudo no âmbito rítmico, em relação a interpretação
de João Gilberto contida no fonograma.
Figura 18: Excerto da canção "Chega de Saudade".
107
A respeito da canção apresentada anteriormente, discorreremos brevemente
sobre algumas de suas principais características estéticas para que, na próxima seção do
texto, possamos nos aprofundar em cada característica, separadamente.
Ao ouvir a gravação do fonograma de “Chega de Saudade”, um dos
primeiros aspectos a ser discutido é a maneira de cantar de João Gilberto. João nega a
figura do cantor de voz potente e interpretação passional, tão associado ao Sambacanção da época, ao propor um canto muito mais próximo da maneira de falar,
articulando minuciosamente o texto cantado, sem a presença de vibrato, sem grandes
variações de dinâmica, sem portamentos e ornamentos. Esta proposta vocal de João,
sobretudo para esta canção, foi motivo de um desentendimento entre Elizeth Cardoso e
João Gilberto no decorrer da gravação do disco Canção do amor demais. Segundo Ruy
Castro, em seu livro Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova:
(...) quando Tom e Vinícius se reuniam com Elizete na rua
Nascimento Silva, para ensinar-lhe as canções [do disco Canção do
Amor Demais], ele [João Gilberto] fazia questão de estar presente.
Não estava gostando da gravidade com que a Divina [Elizete] tratava
as músicas, como se fossem peças de algum repertório sacro — talvez
porque as letras fossem de um poeta importante, Vinicius de Moraes.
João queria que Elizete as cantasse mais para cima, principalmente os
sambas, e às vezes se metia a dar palpites. Mostrou-lhe como fazia
com ‘Chega de Saudade’, atrasando e adiantando o ritmo de acordo
com o que achava que a letra pedia, e tentou induzi-la a tentar algo parecido. Mas Elizete não se interessou muito por suas sugestões e, pela
insistência, deu a entender que não precisava dos seus palpites
(CASTRO, 1990, p. 176).
Nesse sentido, parece que mesmo antes da gravação de sua interpretação
para esta canção, João Gilberto já tinha em mente o tratamento vocal que julgava ser o
adequado para este contexto. A respeito da sugestão de se “atrasar e adiantar o ritmo”,
João faz menção, na realidade, a um certo deslocamento métrico da melodia do canto
em relação ao acompanhamento, na tentativa de apresentar o texto de modo mais
natural, como se o estivesse dizendo. Este aspecto interpretativo do canto de João
108
Gilberto se evidencia mais claramente no início da segunda parte da canção, ao cantar o
texto /Mas se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda/. Além disso, essa é uma das
características mais marcantes de seu estilo vocal e se manifesta em inúmeras outras
interpretações do cantor.
Outro aspecto importante a ser mencionado trata da batida da Bossa Nova,
presente no violão de João Gilberto tanto na versão de seu compacto simples quanto na
interpretação de Elizeth Cardoso. O termo batida faz menção a um certo padrão rítmico
constante, uma espécie de clave, ou levada, do acompanhamento, que realiza a
sequência harmônica sempre no mesmo balanço. No caso da batida da Bossa nova, ela é
originaria diretamente do ritmo do samba, porém com a omissão de alguns elementos
deixando-os subentendidos, valorizando o caráter sincopado do acompanhamento.
Em relação ao arranjo de “Chega de Saudade”, escrito por Tom Jobim para
o compacto de João Gilberto, nota-se uma diferença em relação aos arranjos do sambacanção, como, por exemplo, o arranjo de “Segredo” na interpretação de Dalva de
Oliveira, canção apresentada e discutida anteriormente neste capítulo. Ao invés da
presença constante de contracantos em bloco feitos pela orquestra, Tom Jobim preza
pelo espaço vazio ao inserir somente algumas linhas melódicas como contracanto,
priorizando sempre o aparecimento paulatino dos instrumentos que, com linhas simples
e precisas, muitas vezes reforçam alguma das vozes da sequência harmônica. Cabe
mencionar que esta concepção de arranjo desenvolvida por Jobim já pode ser constatada
no disco Canção do amor demais. Na primeira estrofe de “Chega de Saudade” na
versão de João Gilberto, por exemplo, nota-se o aparecimento de uma linha de
trombone solo que se inicia cuidadosamente no intervalo de uma respiração do cantor.
Sua entrada, apesar de nos remeter à ideia de uma certa solenidade, pode sugerir
também a ideia de melancolia expressa pela letra da canção, uma vez que a figuração
rítmica de seu contracanto possui notas de longa duração em relação à melodia principal
e seu desenho melódico move-se por graus conjuntos, sempre em movimento
descendente. Essa característica é reforçada no fim da linha de trombone que, sob o
excerto de texto “é só tristeza e a melancolia que não sai de mim...”, fecha seu percurso
melódico realizando uma sequência cromática descendente, uma espécie de catabasis98
lamentosa que dialoga diretamente com o conteúdo poético da letra cantada.
98
Catabasis é o nome de uma figura retórico-musical que se caracteriza por ser uma sucessão de notas
descendentes, muitas vezes associada, no repertório barroco, a ideia de melancolia.
109
O mesmo acontece com a segunda parte da canção, marcada pela mudança
de caráter do texto poético que deixa de ser envolto pela atmosfera de melancolia e
passa a exprimir esperança e alegria nos versos “Mas se ela voltar, que coisa linda, que
coisa louca...”. É neste momento que Tom Jobim apresenta na orquestração do arranjo o
naipe de cordas que, apesar do número grande de instrumentos que o compõe, realiza
uma linha em uníssono. Vemos, portanto, que a relação dialética de melancolia/alegria
expressa pela letra da canção é considerada por Jobim no âmbito da escolha da
instrumentação do arranjo ao associar cada afeto do texto a um tipo de instrumentação:
melancolia/metal/solo; esperança/cordas/naipe. Interessante notar que este tipo de
associação entre o afeto do texto e a instrumentação utilizada já havia sido explorada
por Claudio Monteverdi em sua ópera “Orfeu”, que, na ocasião, relacionou a
instrumentação utilizada aos locais por onde as cenas de sua narrativa transcorriam. Em
“Orfeu”, por exemplo, os instrumentos de metal como trombones e cornetos só
aparecem quando o protagonista Orfeu chega ao inferno.
Ainda acerca do arranjo de Jobim para “Chega de Saudade”, em relação à
instrumentação de base, nota-se a ausência do contrabaixo, cuja função passou a ser
feita pelo próprio violão. A bateria também é tocada sem o bumbo e com a condução na
caixa feita por baquetas estilo vassourinha99. Com isso, Jobim ressalta na canção o papel
do violão e da voz, principais protagonistas do fazer bossanovista, e dá à música um
tratamento mais soft e econômico.
No âmbito melódico, a primeira parte da canção apresenta uma figuração
rítmica com a presença maior de notas de longa duração. Já na segunda parte, a ênfase
nos recortes rítmicos, acaba por atenuar o caráter passional da primeira, valorizando
mais o componente temático100 característico das celebrações e das conjunções.
Já no âmbito da harmonia, constata-se que vários dos acordes utilizados na
canção possuem tensões – dissonâncias como sétimas, nonas e décimas terceiras –
99
Observação realizada por Cacá Machado e presente em seu livro “Tom Jobim” de 2008.
100
A esse respeito, Tatit afirma em seu livro O cancionista: “(...) ao investir na continuidade melódica, no
prolongamento das vogais, o autor está modalizando todo o percurso da canção com o /ser/ e com os
estados passivos da paixão (é necessário o pleonasmo). Suas tensões internas são transferidas para a
emissão alongada das frequências e, por vezes, para as amplas oscilações da tessitura. Chamo a esse
processo passionalização. Ao investir na segmentação, nos ataques consonantais, o autor age sob a
influência do /fazer/, convertendo suas tensões internas em impulsos somáticos fundados na subdivisão
dos valores rítmicos, na marcação dos acentos e na recorrência. Trata-se, aqui, da tematização.” (TATIT,
2002, p. 22).
110
incorporadas à sua estrutura, dando à sequência harmônica uma sonoridade específica já
há muito utilizada por compositores como Claude Debussy e Maurice Ravel, e mesmo
Johnny Alf e Radamés Gnatalli, de quem Tom Jobim foi discípulo. Além disso, chamanos a atenção um detalhe interessante: mais uma vez a expressão da dor ou sofrimento
pela ausência da amada pelo eu-lírico se manifesta no âmbito da harmonia por uma
dissonância. Na canção, a palavra “sofrer”, do excerto “porque eu não posso mais
sofrer...” decai sob uma nona diminuta (b9), ou uma segunda menor, em relação ao
baixo Lá.
Figura 19: excerto de “Chega de Saudade”.
A segunda parte da canção – a qual já mencionamos ser o momento em que
o texto abandona o caráter melancólico e passa a ser esperançoso em relação à volta da
mulher amada – possui reflexos diretos no âmbito da harmonia, uma vez que esta passa
por uma modulação, indo de Ré menor para Ré maior. Na figura seguinte, apresentamos
um excerto da canção em partitura desta seção em Ré maior.
111
Figura 20: seção em Ré maior de “Chega de Saudade”.
Assim, a clássica associação afetiva atribuida às terças maiores ou menores
também se confirma nesta canção, dada a mudança de harmonia da composição e do
tratamento melódico serem concomitantes à mudança de afeto do texto poético. Essa
característica pode ainda ser vista mais pontualmente no fato de a conjunção adversativa
“mas”, primeira palavra da nova seção da canção e termo que naturalmente expressa um
contraste em relação ao que estava sendo dito anteriormente, decair justamente sob uma
terça maior em relação ao baixo, nota mais importante na concretização e percepção da
modalização harmônica101 de Ré menor para Ré maior.
Um ano após o lançamento do compacto simples com as canções “Chega de
Saudade” e “Bim Bom”, João Gilberto lança o LP “Chega de Saudade”, com as mesmas
101
O termo modalização é utilizado uma vez que na canção, entre a primeira e a segunda parte, ocorre
uma mudança no modo escalar (de menor para maior), mas o espectro das notas percorridas é o mesmo.
Não ocorre uma mudança/expansão de tessitura; mas, sim é possível perceber uma abertura do caráter
melódico, dada a passagem do menor para o maior
112
canções de seu compacto simples de 1958 e mais outras 10 canções, entre elas
“Desafinado” de Tom Jobim e Newton Mendonça, e “Rosa Morena” de Dorival
Caymmi. Uma característica interessante deste disco de João Gilberto, e também de
outros discos posteriores como O amor, o sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961)
é a presença de sambas anteriores à Bossa Nova com interpretação de João Gilberto,
que aplicou seu traço estético a um repertório que até então era abordado de uma
maneira bem distinta.
Na contracapa do LP “Chega de Saudade”, Tom Jobim escreve o seguinte
texto de apresentação:
João Gilberto é um baiano, "bossa-nova" de vinte e seis anos. Em
pouquíssimo tempo, influenciou toda uma geração de arranjadores,
guitarristas, músicos e cantores. Nossa maior preocupação, neste
"long-playing" foi que Joãozinho não fosse atrapalhado por arranjos
que tirassem sua liberdade, sua natural agilidade, sua maneira pessoal
e intransferível de ser, em suma, sua espontaneidade. (...) Eu acredito
em João Gilberto, porque ele é simples, sincero e extraordinariamente
musical.
P. S. - Caymmi também acha (JOBIM in “Chega de Saudade”, 1959).
Por meio de seu texto, Jobim atesta sua consciente preocupação em escrever
os arranjos do disco de João Gilberto de modo a não atrapalhar uma importante
característica da interpretação do cantor: a agilidade e o aspecto econômico de seu
canto, sobretudo em relação à batida de seu violão.
Após o lançamento deste LP de João Gilberto, vê-se emergir uma série de
outros LPs de autores como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Nara Leão, Sylvia Telles,
entre outros, produção que seria caracterizada por Luiz Tatit como “Bossa Nova
intensa”. Apesar de se tratar de uma importante produção para a sedimentação do estilo,
neste trabalho focaremos no recorte dado à obra de João Gilberto em parceria com Tom
Jobim no período inicial da Bossa Nova, recorte que já contém os aspectos
fundamentais do estilo e que permite a construção da comparação com a Seconda
Pratica no Capítulo seguinte. Desse modo, trataremos mais especificamente, até o fim
deste Capítulo, de aspectos como o canto-falado de João Gilberto, sua batida de violão,
113
os aspectos da instrumentação utilizada e da elaboração dos arranjos e da relação entre
harmonia e letra cantada.
3.4 O canto-falado de João Gilberto
“Quando eu canto, penso num espaço claro e aberto
onde vou colocar meus sons. É como eu estivesse
escrevendo num pedaço de papel em branco: se
existem outros sons à minha volta, essas vibrações
interferem e prejudicam o desenho limpo da música”.
João Gilberto
Vimos até então que a proposta de canto-falado de João Gilberto é tida
como um dos aspectos estéticos mais marcantes da Bossa Nova. Seu modo de cantar,
assim como ouvido em seus LPs mencionados – Chega de Saudade (1959), O amor, o
sorriso e a flor (1960) e João Gilberto (1961) –, destoa do tratamento dado ao canto
pelos cantores da época do rádio e do samba-canção, sobretudo em relação ao volume
de voz utilizado e sua dicção mais próxima da fala cotidiana. Mesmo com a distância
deste tratamento em relação à utilização da voz em outros contextos caracterizados pela
busca do virtuosismo, como na ópera, por exemplo, não podemos deixar de constatar
um virtuosismo acentuado em sua abordagem, posto que sua voz aparece despida de
certos artifícios, como o vibrato, por exemplo, que pode, por vezes, camuflar a
imprecisão na afinação. Seu virtuosismo manifesta-se também no esforço escondido e
bem-sucedido de fazer seu canto parecer natural, mesmo executando melodias de
percurso bastante difícil. Cabe considerar também o aspecto sofisticado de sua
respiração, que se realiza de forma a atender o projeto estético de continuidade
expresso, por vezes, em frases longas.
Naturalmente, sua proposta de canto foi recebida com divergências pelo
público acostumado à voz grandiosa dos cantores do rádio, chegando a ser considerado
como desafinado por muitos, crítica rebatida pela canção “Desafinado” presente no
114
primeiro LP do cantor. Há quem considerasse, também, que a proposta de João Gilberto
se deu mesmo por uma incapacidade vocal do cantor. A respeito disso vale ressaltar que
os anos que precederam o surgimento da Bossa Nova foram marcados pela atuação de
João Gilberto como crooner102 em um conjunto denominado Garotos da Lua, que, no
ano de 1951 e 1952, realizaram a gravação de dois discos de 78rpm. Ao escutarmos
João Gilberto nestes discos, impressiona a diferença de sua abordagem vocal em relação
aos discos da Bossa Nova, cantando com bastante volume e com a presença de vibrato.
Assim, podemos constatar que a proposta de João Gilberto a partir de 1958
não se dá por uma inaptidão vocal, mas sim por uma escolha estética autoconsciente.
Dessa maneira, sua bem-sucedida proposta vocal de certa forma estimula o
aparecimento de uma série de outros cantores com a mesma abordagem. Sobre isso,
discorre Augusto de Campos:
João Gilberto abriria o caminho para a liberação de grandes
intérpretes, cantores de voz pequena (...), segundo os padrões
tradicionais, como Nara Leão, Astrud Gilberto, Edu Lobo, Chico
Buarque de Holanda e muitos outros, que descobriram uma
personalidade vocal acima e à margem dos receituários do bel canto,
como antes o haviam feito Noel Rosa e Mário Reis (CAMPOS, 1986,
p. 223-224).
Com a abertura de novas possibilidades na canção popular no âmbito da
interpretação vocal, aspecto que contou com o estímulo da proposta de João Gilberto,
vê-se uma certa inversão em relação ao que acontecia até então no samba-canção: o
canto-falado não só passa a ser bem aceito como um modo de cantar pelos ouvintes e
pelo mercado fonográfico mas passa também a ser predominante nas propostas de canto
vindouras. Conforme afirma Marcelo Elme:
102
Crooner é o nome dado ao cantor normalmente acompanhado por big bands ou orquestras completas.
Via de regra, está associado às músicas estadunidenses. Curiosamente, o tipo de canto executado pelo
crooner tem suas raízes no bel canto italiano, aspecto manifesto, por exemplo, na presença do vibrato no
canto e no volume de voz requerido para o estilo.
115
Após a intervenção de João Gilberto, a tendência estética que
enfatizava o canto falado tornou-se predominante, não eliminando, no
entanto, aquela mais ligada ao canto lírico, que continuou a existir,
denominada, a partir de então, estilo antigo (Machado, 2012, p.20).
Este estilo antigo pode ser percebido nas vozes dos cantores veteranos
que continuaram gravando, como Elizeth Cardoso e Cauby Peixoto,
mas também, em algum grau, em cantores de gerações posteriores,
como, por exemplo: Pery Ribeiro, filho de Dalva de Oliveira e
Herivelto Martins que se dedicou à bossa nova mas manteve a
emissão típica do samba-canção; Clara Nunes, que também preservou,
de forma sutil, a impostação e o vibrato (ELME, 2015, p. 90).
Interessante notar que a terminologia estilo antigo associada à proposta de
canto mais comumente utilizada antes do surgimento do canto-falado de João Gilberto
dialoga diretamente com a terminologia usada para diferenciar a Seconda da Prima
Pratica, uma vez que a Prima Pratica também é chamada de “stile antico” no contexto
da música italiana da virada do século XVI para o século XVII.
Em entrevista a Tarik de Souza e Elifas Andreatto, cujos excertos
encontram-se presentes no livro Bim Bom: a contradição sem conflitos de João
Gilberto, de Walter Garcia, o próprio João Gilberto comenta acerca de sua proposta de
canto. Além disso, o cantor associa sua maneira de cantar à ideia de naturalidade,
expressa na voz quando falada.
Eu estava então [na década de 1950] muito descontente com aqueles
vibratos dos cantores – Mariiiiina moreeeeena você se pintooooou – e
achava que não era nada disso. Uma das músicas que despertaram,
que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi Rosa
Morena, do [Dorival] Caymmi. Sentia que aquele prolongamento de
som que os cantores davam prejudicava o balanço natural da música.
Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compassos
e ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a estrutura da música,
sem precisar alterar nada. Outra coisa com que eu não concordava era
as mudanças que os cantores faziam em algumas palavras, fazendo o
acento do ritmo cair em cima delas para criar um balanço maior. Eu
116
acho que as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural
possível, como se estivesse conversando. Qualquer mudança acaba
alterando o que o letrista quis dizer com seus versos (João Gilberto
apud GARCIA, 1999, p. 127).
Em seu depoimento, João Gilberto menciona sua busca por um canto mais
natural por meio não apenas do abandono do vibrato na voz mas também por uma
atenção especial à métrica da melodia cantada e à duração dos sons das vogais. Para
João Gilberto, o tratamento dado pelos cantores do samba-canção à melodia, ao utilizar
o vibrato e expandir a duração das vogais de certas palavras para dar vazão ao som da
voz (como em Mariiiiina moreeeeena), distanciava a voz de uma abordagem natural, o
que causava, sintomaticamente, uma possível alteração no sentido que o letrista da
canção quis dar ao texto. Para João Gilberto, o parâmetro mais importante na busca pela
naturalidade do canto estava justamente na voz falada, como em uma conversa.
É nesse sentido que vemos em inúmeras interpretações de João Gilberto a
sua proposta de modificação da métrica da melodia das canções, no intuito de deixar,
conforme suas próprias palavras, a letra flutuando por entre os compassos da canção.
Nas interpretações de João Gilberto, a frase poético-musical quase nunca está fixa na
métrica subentendida pela batida do violão ou pela fórmula de compasso da canção, o
que muitas vezes produz uma surpresa na escuta e uma sintomática sensação no ouvinte
de que João Gilberto está literalmente dizendo algo na canção.
Um exemplo desta abordagem do canto de João Gilberto pode ser
encontrado na interpretação do mesmo para a canção “Águas de Março”, de Tom
Jobim, presente em seu disco homônimo de 1973. Em relação à interpretação de Tom
Jobim, presente no compacto simples Disco de bolso, o Tom de Jobim e o Tal de João
Bosco (1972)
103
, o início da melodia da canção na versão de João Gilberto possui
algumas modificações, conforme nos mostra na figura a seguir Enrique Menezes:
103
Editado por Zem Produtora / Pasquim em 1972 para ser encartado em edição do jornal O Pasquim.
117
Figura 21: Exemplo de alteração métrica na interpretação de João Gilberto
Fonte: MENEZES, 2010, p. 530.
Com este tipo de abordagem, João Gilberto almeja evocar a continuidade e
ao mesmo tempo aproximar-se da imprevisibilidade rítmica presente na fala em sua
interpretação para a canção. Com isso, João Gilberto antecipa uma das frases musicais
modificando a métrica esperada da melodia cantada. Entretanto, mesmo com a proposta
de modificação métrica, a realização de seu canto ainda se encontra em fase com o
acompanhamento do violão.
Frequentemente notamos, em outras interpretações de João Gilberto, este
recurso interpretativo no canto, porém modificando ainda mais drasticamente a métrica
da melodia a ponto de esta, de fato, se dissociar ritmicamente do acompanhamento do
violão. Esta abordagem pode ser notada na interpretação de João Gilberto para a canção
“Sampa” de Caetano Veloso, presente no disco João (1991).
Para casos como este, a pesquisadora Marta Ulhôa oferece-nos o conceito
que chamou de métrica derramada:
A noção de métrica derramada tem a ver com a relação entre canto e
acompanhamento, onde o canto – regido pela divisão silábica
prosódica da língua portuguesa – e o acompanhamento – regido pela
lógica métrica musical – parecem às vezes “descolados” um do outro,
numa sincronização relaxada. (...). Na métrica derramada acontece
uma superposição da divisão das sílabas e encaixe frouxo dos padrões
de acentuação da língua portuguesa à brasileira aos compassos
musicais regulares da tradição ocidental consagrada (ULHÔA, 2006,
p. 2).
118
Em outro texto, a pesquisadora ainda complementa: “A métrica derramada
aparece muito na performance da música brasileira popular, não só na canção como no
samba, na bossa-nova e na chamada MPB, como também em música essencialmente
instrumental.”104. Podemos frequentemente ouvir esta abordagem em relação à métrica
nas melodias do estilo musical Chorinho. No Chorinho, grande parte do repertório pode
apresentar melodias com longas sequências de notas de duração igual e frases com
métrica esperáveis, e que os intérpretes chorões flexibilizam no momento da execução.
Em outros contextos musicais, como na música barroca, por exemplo, a flexibilização
da duração das notas e da métrica esperada em melodias com esse tipo de figuração
rítmica (longa sequência de notas de duração igual) está associada a ideia de eloquência
na realização do discurso melódico. A ideia de eloquência, por sua vez, em uma de suas
acepções associa-se diretamente à capacidade de falar e expressar-se com desenvoltura.
Devido a esta característica do canto de João Gilberto – e que pode ser tão
bem definida pelo conceito de métrica derramada de Ulhôa – diz-se que é muito difícil
cantar junto com algumas de suas gravações, já que sua flexibilização métrica da
melodia cantada acaba por surpreender quaisquer expectativas que o ouvinte possa ter
em relação ao início ou término das frases. Nesse sentido, é interessante mencionar
também a gravação de João Gilberto para a já apresentada (página 97 canção “Segredo”
de Herivelto Martins e Marino Pinto, presente em seu disco João Gilberto – Voz e
violão (2000). Nela, João Gilberto se utiliza das variações métricas a qual
mencionamos. A audição desse fonograma também se faz interessante como parâmetro
de comparação para a gravação de Dalva de Oliveira, explicitando as principais
diferenças na abordagem dada ao canto e ao arranjo entre o samba-canção e a Bossa
Nova.
Esta proposta de João Gilberto talvez seja utilizada como recurso
interpretativo na busca pela aproximação do canto à fala, tentando, inclusive, fazer com
que pareça simples cantar desta maneira. Conseguir transmitir ao ouvinte a sensação de
naturalidade no cantar mesmo que este canto não tenha nada de natural – trata-se, na
realidade, de um canto melodicamente complexo e com um encaixe rítmico sofisticado
em relação à métrica da batida – é um artifício interpretativo105. Em relação a isso,
104
105
ULHÔA, 1999, p. 53.
Ulhôa ainda afirma: “A solução expressiva encontrada por (...) muitos cantores de música popular
brasileira é “derramar” a métrica musical, ou seja, flexibilizar os limites do compasso e deslocar os
acentos dos tempos iniciais dos mesmos. “Derramar” a métrica não é uma idiossincrasia numa
119
lembramos da célebre frase de Clarisse Lispector: “Que ninguém se engane, só se
consegue a simplicidade através de muito trabalho.”.
Questionado por um entrevistador se já havia nascido com seu fraseado,
João Gilberto responde: “Não. Trata-se de algo que se trabalha a cada música. Se
colocarmos sempre o acento tônico sobre um mesmo tempo, fica chato. É preciso
sempre imaginar novas entonações para dar mais vida às palavras”
106
. Não à toa,
podemos constatar, ao longo da carreira artística de João Gilberto, a presença de várias
versões para uma mesma canção, sempre com alguma diferença em relação à versão
anterior, sobretudo na métrica do canto.
Em relação a este recurso empregado por João Gilberto, e frequentemente
empregado por inúmeros cancionistas influenciados por ele, Tatit comenta:
Há, sem dúvida, uma técnica assimilada durante as produções [de um
cancionista]. Na verdade, um equilíbrio de técnicas (...) que se
configura numa estratégia geral de persuasão dos ouvintes. Dentro
dessa estratégia, ocupa posição de destaque a naturalidade: a
impressão de que o tempo da obra é o tempo da vida. Daí então a
camuflagem do esforço e do empenho como parte da canção (TATIT,
2002, p. 18).
Na citação anterior, Tatit relaciona a busca por naturalidade pelo cantor a
uma estratégia de persuasão do ouvinte. Ao citar o termo persuasão, Tatit reforça a
ligação deste tipo de abordagem com a ideia de eloquência, uma vez que a eloquência
era uma virtude estimada na prática da retórica – antiga arte de se usar a linguagem de
modo eficaz no processo comunicativo ou, em outras palavras, a arte de bem falar. A
retórica, por sua vez, tem como ideia central a busca pela persuasão do ouvinte. Com
isso, podemos dizer que a métrica derramada pode ser utilizada como recurso retórico
na prática interpretativa, aproximando o canto à fala e simulando nesta vocalização a
ideia de naturalidade.
interpretação singular; é um traço estilístico marcante, principalmente entre intérpretes de samba.”
(ULHÔA, 2006, p. 8).
106
JOÃO GILBERTO apud GARCIA, 1999, p. 128.
120
A este recurso interpretativo utilizado pelo cancionista, Luiz Tatit deu o
nome de Figurativização. O conceito de figurativização talvez seja um dos processos
mais importantes nos estudos sobre a canção brasileira realizado por Luiz Tatit. Trata-se
da descrição e sistematização da aproximação do canto do cancionista à musicalidade da
língua oral cotidiana, que, segundo o autor, promove uma espécie de “presentificação de
situação locutiva”107, ou mesmo, é quando se ouve “a voz que fala no interior da voz
que canta”108. Com isso, Tatit associa a utilização deste recurso com a sintomática
aproximação do ouvinte com o intérprete, que direciona o ouvinte para a esfera do aqui
e agora, como se contasse diretamente a ele o que se passa na situação poética por meio
da canção. A esse respeito Tatit escreve:
[para o cancionista] a influência das leis entoativas que regem o
discurso coloquial é um processo desejável, pois garante ao ouvinte
uma rápida, ou até automática, conversão intersemiótica, do sistema
da canção para o sistema da língua natural. Mais do que isso, o
cancionista geralmente adota – voluntária ou involuntariamente – a
estratégia persuasiva de estabelecer equivalências entre os dois
sistemas, para tornar mais fluente sua comunicação com o ouvinte. É
o que chamamos de figurativização enunciativa (TATIT, 2007, p.
158).
Na citação anterior, Tatit menciona novamente o fato de que a utilização da
figurativização por parte do cancionista trata-se de uma estratégia persuasiva. Para o
autor, o fato de o ouvinte poder estabelecer equivalências diretas entre o canto e a
109
linguagem cotidiana aproxima-o do intérprete.
Em outro excerto, presente no texto
Elementos para a análise da canção popular, Tatit menciona também que o processo de
107
TATIT, 1986, p. 15.
108
TATIT, 2002, p. 21.
109
A respeito dessa ideia, Tatit complementa: “Creio que a naturalidade aloja-se na porção entoativa da
melodia, naquela que se adere com perfeição aos pontos de acentuação do texto. A impressão de que a
linha melódica poderia ser uma inflexão entoativa da linguagem verbal cria um sentimento de verdade
enunciativa, facilmente revertido em aumento de confiança do ouvinte no cancionista” (TATIT, 2002, p.
20).
121
figurativização não atua somente no âmbito do tratamento dado ao canto, que se
aproxima da fala, mas também na escolha da letra da canção.
... a presença da fala também percute na letra da canção. Todos os
recursos
utilizados
para
(enunciador/enunciatário)
presentificar
num aqui/agora
a
relação
eu/tu
contribuem para
a
construção do gesto oral do cancionista. Ao ouvirmos vocativos,
imperativos, demonstrativos, etc., temos a impressão mais acentuada
de que a melodia é também uma entoação linguística e que a canção
relata algo cujas circunstâncias são revividas a cada execução. O
cancioneiro popular traz diversos exemplos, como Conversa de
botequim, Acorda amor, Da maior importância, Você não soube me
amar, Sinal fechado, etc., todos inscritos no processo de
figurativização enunciativa. (TATIT, 2003, p. 9-10).
Nesse sentido, percebemos que a proposta do canto-falado, sobretudo na
canção popular brasileira, incide não somente pela maneira de cantar – que propõe uma
diminuição na intensidade vocal e o abandono de efeitos ornamentais como o vibrato e
o portamento – e nem somente no tratamento da linha cantada – cujo percurso melódico
brota da entoação do texto falado – mas também da escolha da letra da canção. Todos
estes elementos em sintonia compõem a estratégia de figurativização enunciativa e que
está associada a ideia de naturalidade do canto e a consequente aproximação entre o
ouvinte e o intérprete.
Martha Ulhôa, no excerto de seu texto Métrica Derramada: Prosódia
Musical na canção brasileira popular, tenta traçar um panorama do desenvolvimento
desta estratégia persuasiva no decorrer da história da canção popular brasileira.
No Brasil, o domínio técnico-estético do cancionista foi aos poucos
sendo refinado à medida que melodia e letra se libertavam dos padrões
110
formuláicos
110
emprestados da canção estrófica tradicional ou da ária
A respeito deste termo, o dicionário online Priberam o define como “1. Relativo a fórmula; 2. Que
obedece a determinado padrão ou fórmula”. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/formulaico
122
de opereta ou Ópera. Para isto basta escutar as primeiras gravações da
Casa Edson e depois a produção dos anos 30 e mais tarde as da bossanova e MPB, para ter um exemplo de momentos diferentes desse
processo. Da prosódia dura das primeiras gravações, onde na maioria
das vezes se escutam cantores como Candido das Neves e Bahiano
tentando adaptar letras criadas a fórmulas melódicas já existentes,
passamos por um "canto falado" fluido e malandro de cancionistas
como Noel Rosa e outros sambistas, na voz de cantores como Aracy
de Almeida, Carmem Miranda, Nelson Gonsalves, Linda Batista e
outros, para chegar, principalmente pela condução maestral de João
Gilberto, a uma espécie de "fala cantada", uma retórica essencial da
sensibilidade brasileira — a destilação de várias trajetórias marcadas
por visões de mundo e de maneiras de ser-no-mundo diferentes
(ULHÔA, 1999, p. 53).
Com isso, podemos associar a proposta de João Gilberto ao primeiro (e
talvez maior) ápice de um projeto de aprimoramento da presença da oralidade no canto
brasileiro e que, segundo Ulhôa, vem sendo desenvolvido paulatinamente desde os
primórdios do gênero, quando ainda se via frequentemente a influência da ópera italiana
neste fazer musical.
3.5 A batida bossa nova
Antes de iniciarmos uma discussão mais aprofundada sobre a batida
específica da Bossa Nova e suas inovações trazidas por João Gilberto, é interessante
refletir mais profundamente sobre a própria ideia de batida. Conforme já mencionamos
anteriormente, a batida trata-se de um padrão rítmico constante, com termos
equivalentes como levada, clave, ritmo, groove, toada, entre outros. Sua execução é
marcada pela periodicidade de um ou mais padrões, pela constante repetição de um
certo ostinato rítmico e suas variações, e cujo processo de escuta joga continuamente
com a expectativa do ouvinte, muitas vezes gerando um pulso/impulso corporal. Não à
toa nota-se que muitos dos diferentes ritmos, cada qual com a sua peculiar batida,
123
possuem correspondências diretas com ritmos de dança, como o samba, forró, frevo,
funk (carioca ou estadunidense), tango, salsa, valsa, etc.
No contexto da canção popular brasileira, frequentemente notamos no
acompanhamento instrumental da melodia cantada a presença de um ritmo nestes
termos. Nestes casos, o acompanhamento instaura um modelo característico na base da
reiteração, consolidando uma camada com balanço próprio e cujas outras camadas (da
melodia ou de contracantos, por exemplo) podem estar ora em fase ora em defasagem
com a camada do acompanhamento. Assim, nota-se que a presença da batida na canção
popular embala a escuta de uma reiterada expectativa e de uma corporeidade e acaba
sugerindo ao ouvinte uma espécie de escuta polifônica, uma vez que em inúmeros casos
o ouvinte concatena a escuta de distintas camadas sonoras concomitantemente.
Especificamente em relação à batida da Bossa Nova, o pesquisador Walter
Garcia111 chama atenção para o fato de que um dos elementos decisivos para a
caracterização da Bossa Nova como um novo estilo musical foi o ritmo da batida do
violão de João Gilberto. De fato, a proposta de João Gilberto causou uma reação
imediata entre os músicos da época, que rapidamente reconheceram o aspecto inovador
do acompanhamento de seu violão. Em depoimento (contido no songbook Bossa Nova
volume 2, organizado por Almir Chediak) o violonista Roberto Menescal conta como
aprendeu a batida de João Gilberto: “Grudei no João uns dez dias, jantei, almocei e
tomei café com ele até pegar a batida. Carlinhos [Lyra] fez a mesma coisa. Para nós, foi
um pouco difícil, porque era uma coisa inteiramente nova, mas sabíamos que iríamos
assimilar logo” 112.
Aos analisarmos os principais aspectos desta batida, é interessante notar que
sua proposta está em fase com o delineamento estético do estilo Bossa Nova como um
todo, uma vez que sua proposição se relaciona com a busca por concisão e
despojamento. Nesse sentido, a gênese da batida da Bossa Nova tem como ponto de
partida a batida do samba, porém tratado como um samba menos denso, com a inserção
de mais espaços vazios e feição mais moderna devido aos acordes utilizados. Uma boa
definição do acompanhamento do violão de João Gilberto é dada por Luiz Tatit:
111
GARCIA, 1999, p. 78.
112
MENESCAL apud CHEDIAK, 1990, p. 12.
124
Do ponto de vista rítmico, a batida regular que o cancionista [João
Gilberto] articula na mão direita está plenamente conectada à tradição
regular do samba. Ocorre que (...) João Gilberto omite (...) a
obviedade contida na marcação dos tempos fortes (aquilo que, numa
batucada de escola de samba, equivaleria à marcação periódica do
surdo) deixando-a, entretanto, fartamente sugerida nos impulsos dos
toques intermediários. O resultado é um samba, mas um samba
compatibilizado com o tratamento centrípeto e econômico que
caracterizou a bossa nova (TATIT, 2002, p. 163).
A batida bossa nova herda diretamente do ritmo do samba o sotaque
característico do compasso binário, com a presença da sincopa, a subdivisão em
semicolcheias, o peso no segundo tempo do compasso (que no samba normalmente é
executado pelo surdo). Em relação ao processo de omissão de elementos na gênese da
batida bossa nova, Tom Jobim comenta:
[a batida da Bossa Nova] já existia no carnaval, já existia no tamborim
(...) mas não era proeminente. O samba sempre teve muito
acompanhamento, muita batucada – às vezes sofria de excesso de
acompanhamento, inclusive. Você tocando tudo ao mesmo tempo (...)
não deixa espaços. Você acaba criando uma zoeira que mais parece
um mar de ressaca. O que nós fizemos ali com o João [Gilberto] foi
tirar as coisas, criar espaços, dissecar, despojar, economizar (JOBIM
apud GARCIA, 1999, p. 22).
A ideia de concisão associada ao acompanhamento da Bossa Nova no violão
é oriunda da omissão de elementos da levada do samba, uma postura tomada
conscientemente em função de se criar espaços no acompanhamento instrumental e na
obra cancional, como um todo. Conforme mencionado anteriormente, essa mesma
postura associa-se tanto à linguagem dos arranjos escritos por Jobim quanto à própria
maneira de cantar proposta por João Gilberto, que evita o prolongamento das vogais e o
volume acentuado da voz.
125
Gilberto Mendes, em seu texto De como a MPB perdeu a direção e
continuou na vanguarda, menciona a levada rítmica da Bossa Nova proposta por João
Gilberto e a transcreve, conforme presente na seguinte figura:
Figura 22: Marcação básica da Bossa Nova.
Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 140.
Segundo o autor, João Gilberto isolou e remontou certos elementos da
batida tradicional do samba para a criação da batida da Bossa Nova. Para a visualização
da gênese deste procedimento, Gilberto Mendes apresenta em seu texto “as três fases
rítmicas mais características por que passou o samba” 113. Vejamos:
Figura 23: Fases rítmicas mais características do samba, segundo Gilberto Mendes.
Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 139.
113
MENDES apud CAMPOS, 1986, p. 139.
126
Em relação à célula rítmica representada por I na figura anterior, Gilberto
Mendes menciona, inclusive “segundo o próprio Mário de Andrade”, que se trata de
uma célula oriunda da Habanera espanhola, conhecida como “ritmo de Habanera”, e que
na América do Sul frequentemente está presente no tango argentino e nos tangos
brasileiros de Alexandre Levy e Ernesto Nazareth. Entretanto, essa informação entra em
conflito com o que escreve o pesquisador Carlos Sandroni em seu livro Feitiço decente:
transformações do samba no Rio de Janeiro. Para Sandroni, o “ritmo de Habanera” é
representado pela seguinte figura:
Figura 24: “ritmo de Habanera”, segundo Carlos Sandroni.
Além disso, Sandroni ainda completa com a seguinte informação:
O nome [ritmo de Habanera] é enganoso por dar a entender que foi a
habanera que introduziu esse ritmo na música brasileira (aliás, de
modo geral na latino-americana). Na verdade (...) a habanera é apenas
uma
das
manifestações
daquele
nas
músicas
em
questão
(SANDRONI, 2001, p. 30).
Em relação à célula representada por II (na figura 24), Gilberto Mendes diz
se tratar de uma célula com “maior elasticidade na permanente pulsação em
semicolcheias (é o samba de morro carioca, variando-as entre cuíca, tamborim e
frigideira – exemplo A), sobre a percussão fundamental (exemplo B)” 114. Em relação a
célula II-A, nota-se que a pulsação permanente de semicolcheias está implícita na
batida da Bossa Nova, de modo que, mesmo não aparecendo no acompanhamento do
114
Ibidem.
127
violão, em muitos arranjos do estilo essa figuração rítmica está presente na percussão,
seja no ganzá, seja na condução da bateria com as vassourinhas.
Gilberto Mendes menciona ainda como uma das fases rítmicas
características do samba a célula a qual denominou como “estrutura rítmica folclórica”.
Esta célula rítmica, caracterizada pelo padrão 3+3+2, é também conhecida como
tresillo. Segundo Sandroni: “Como esse ritmo comporta três articulações, os cubanos
chamaram-no tresillo (...). Mas o tresillo aparece na música de muitos outros pontos das
Américas onde houve importação de escravos, inclusive, é claro, no Brasil.” 115.
Para Gilberto Mendes, a batida da Bossa Nova se encontra em potencial na
rítmica folclórica e na segunda célula apresentada. Além disso, em seu texto o autor
oferece ainda a transcrição de algumas variantes dessa marcação rítmica, podendo ser
encontradas nas levadas de João Gilberto e nas sessões de percussão dos arranjos das
canções do estilo. Vejamos:
115
SANDRONI, 2001, p. 28.
128
Figura 25: Variações da batida da Bossa Nova segundo Gilberto Mendes.
Fonte: MENDES in CAMPOS, 1986, p. 140.
Dessa maneira, podemos notar que João Gilberto aplicou ao universo
rítmico do samba um tratamento mais econômico, escolhendo quais células deveriam
ser omitidas e remontando as figuras já conhecidas em sua batida particular. O
resultado, por consequência, soa como um samba moderno e enxuto, dois atributos
caros à estética bossanovista.
Além disso, a melodia cantada por João Gilberto, muitas vezes busca um
diálogo rítmico com a batida, criando um jogo de íntima relação. Essa abordagem pode
ser vista na canção “Bim Bom”, por exemplo, presente no compacto simples de 1958 de
João Gilberto. A figura a seguir mostra a transcrição rítmica da melodia cantada por
João Gilberto e da batida executada pelo acompanhamento de seu violão e foi retirada
129
dos anexos do livro Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto, de Walter
Garcia.
Figura 26: Transcrição rítmica da melodia cantada e do acompanhamento no violão da canção “Bim
Bom”, de João Gilberto.
Fonte: (GARCIA, 1999 apud FAOUR, 2006, p. 31)
Como podemos notar na figura anterior, a rítmica da melodia possui quase
sempre os ataques nos espaços dos ataques da rítmica da batida. Trata-se, portanto, de
um sofisticado encaixe rítmico.
A ideia de despojamento, por sua vez, pode estar relacionada a outro
aspecto inovador trazido pela batida de João Gilberto: as harmonias. Em relação ao
acompanhamento do samba, não tanto o samba-canção que já vinha trazendo harmonias
mais sofisticadas em canções de Johnny Alf, por exemplo, mas sobretudo em relação ao
samba tradicional.
Por fim, Walter Garcia sintetiza o processo de gênese da batida da Bossa
Nova e relaciona o traço estético deste acompanhamento instrumental com outros
aspectos da composição Bossa Nova:
130
A batida se produz, formalmente, pela simplificação requintada do
padrão rítmico do samba, e a obra bossa-nova (desde a composição, a
interpretação, o arranjo, a produção fonográfica e gráfica do disco até
a apresentação em show), estruturada a partir desse violão que reduz e
concentra em movimento centrípeto a batucada, despe-se do supérfluo
mas volta-se para o detalhe, tornando-se derramada para dentro
116
(GARCIA, 1999, p. 81).
Com isso, podemos reconhecer na Bossa Nova um traço estético coerente,
sendo possível notar a busca pela síntese, objetividade e construção do detalhe em
vários aspectos de sua produção cancional, desde a batida, até o modo de cantar, o
tratamento dado aos arranjos e a própria concepção do show, sobretudo em se tratando
de João Gilberto e da linha genealógica de compositores e intérpretes que se construiu a
partir dele e com ele identificada.
Em seu livro Semiótica da canção, Luiz Tatit oferece um outro excerto a
respeito da batida de João Gilberto, desta vez mencionando também a relação com a
rítmica da melodia cantada:
A batida é o pulso concebido para o acompanhamento instrumental e
que assegura a continuidade da peça. Rigorosamente dentro da
gramática geral do samba, a batida de João Gilberto propunha uma
divisão regular, deslocando, porém, seus ataques instrumentais do
tempo forte do compasso. Com isso, o intérprete já garantia uma
configuração extensa livre de estereótipos que, na época, cristalizavam
o samba tradicional. Em seguida (ou simultaneamente), calibrava de
forma muito particular os acentos das células rítmicas da melodia,
indissociáveis dos acentos das palavras da letra, com a periodicidade
116
A expressão “derramada para dentro” é de autoria de Chico Buarque e faz parte do seguinte
depoimento, presente no songbook Tom Jobim volume 1, de Almir Chediak: “Eu era um garoto que,
como os outros, amava a Bossa Nova e o Tom Jobim. Queria ser um compositor igual ao Tom Jobim.
Não gostava mais das canções desesperadas. Só queria aquela música que era toda enxuta, porque
derramada para dentro.” (BUARQUE apud CHEDIAK, 1990, p. 8).
131
sincopada do acompanhamento, fortalecendo, na relação voz/violão, a
autonomia da gramática interna da canção (TATIT, 2007, p. 36).
Nesse sentido, um aspecto importante a ser mencionado é o fato de que,
apesar de se atribuir à Bossa Nova a ideia de ruptura estética em relação ao Sambacanção e seus exageros dramáticos, nota-se que seu elo com o samba está fortemente
presente ao longo de toda a existência do estilo musical. Este elo é possível de ser
constatado na sua batida peculiar, que deriva diretamente da batida do samba, e
também na presença de inúmeros sambas anteriores ao aparecimento da Bossa Nova
reinterpretados por João Gilberto no decorrer de sua carreira artística. Por esse motivo,
João Gilberto frequentemente se diz “cantor de samba”, porém, nesse sentido, de um
samba no qual a presença do silêncio se enfatiza.
3.6 A instrumentação e o arranjo na Bossa Nova
Ao tratarmos da instrumentação na Bossa Nova, talvez a primeira imagem
que se anuncie no imaginário coletivo seja o par “banquinho e violão”. Este par faz
alusão ao aspecto minimalista presente no estilo em inúmeras características, desde o
modo de cantar até o próprio arranjo e instrumentação mais comumente utilizada.
Neste sentido, Luiz Tatit chama a atenção para a compatibilidade existente
entre a maneira de se cantar na Bossa Nova e o instrumento acompanhador. Vejamos:
Ora, pela própria natureza desse instrumento [violão], o volume da
emissão da harmonia é significativamente baixo. Um violão acústico
não pode concorrer, em termos de volume de som, com qualquer
instrumento de orquestra e nem mesmo com o piano. Sua intensidade
natural só se compatibiliza, sintomaticamente, com a voz. E com a voz
sem tratamento especial, pois basta uma leve impostação para encobrir
a atuação e o brilho do instrumento. Ao mesmo tempo que reproduz
com fidelidade um percurso harmônico complexo, o violão, sem
132
amplificação elétrica, atinge o máximo de seu rendimento
acompanhando a voz num volume bem próximo da fala corrente. Na
dicção de João Gilberto, voz e violão constituem uma só fonte sonora
captada pelos microfones e amplificada de acordo com as
necessidades momentâneas sem que se altere a proporção de volume
entre ambos (TATIT, 2002, p. 162).
Deste modo, o par voz e violão de João Gilberto – principal referência do
estilo musical bossanovista – em suas interpretações acaba por tornar-se praticamente
indivisível, de modo que cada elemento complementa-se reciprocamente em termos
rítmicos, harmônicos, timbrísticos e de intensidade. Neste aspecto, o violão configura-se
como o instrumento acompanhador ideal para a proposta de João Gilberto, já que,
devido às suas características acústicas, se compatibiliza com o registro da voz utilizada
no cotidiano.
Vemos mais uma vez no estilo Bossa Nova, portanto, um aspecto da canção
sendo depurado até o limite, tangenciando a ideia de síntese. No âmbito da
instrumentação, a presença somente de voz e violão despe a canção de quaisquer efeitos
e roupagens ornamentais, oferecendo somente o essencial, uma vez que a batida do
violão de João Gilberto já supre demandas como o aspecto rítmico e a sequência
harmônica. A voz, por sua vez, se encarrega da melodia e da letra da canção. Está tudo
ali.
Ciente desta preocupação, Tom Jobim, ao elaborar os arranjos dos primeiros
discos de João Gilberto, agiu de modo a centralizar e valorizar o par voz e violão na
estrutura do arranjo. Conforme já mencionamos, para isso, Jobim abriu espaços na
condução do arranjo, assim como o urbanista Lúcio Costa fez com as ruas e avenidas da
nova capital, Brasília.
Outras características dos arranjos de Jobim para esse repertório podem ser
encontradas na frequente omissão do contrabaixo, função que passou a ser realizada
pelo próprio violão com a batida de João Gilberto, a adoção de uma condução rítmica
mais leve na seção de percussão, com o uso das baquetas estilo vassourinha, e a
minuciosa escolha de linhas melódicas como contracanto.
133
Em seu texto Balanço da Bossa Nova, de 1966, Júlio Medaglia afirma que
com o aparecimento da Bossa Nova, se criaria “uma forma de expressão musical mais
sutil e mais elaborada (...) sugerida pela intimidade dos pequenos ambientes” 117. Nesse
sentido, o autor relaciona as características estéticas do estilo com o local onde esta
prática musical estava envolvida. Assim, nota-se um diálogo existente entre os
pequenos ambientes associados à apresentação das músicas deste estilo, envoltos por
uma atmosfera de intimidade, e suas características estéticas particulares, as quais o
autor segue definindo:
[com a Bossa Nova] Surgiria uma música mais voltada para o detalhe,
baseada quase sempre no canto, violão e pequenos conjuntos;
desenvolver-se-ia a prática do canto-falado ou do cantar baixinho –
uma vez que a audiência está próxima –, do texto bem pronunciado,
do tom coloquial da narrativa musical, do acompanhamento e canto
integrando-se mutuamente, em lugar da valorização da grande voz ou
do solista [grifos do autor] (MEDAGLIA apud CAMPOS, 1986, p.
72).
As observações de Júlio Medaglia dialogam com o excerto do já
apresentado livro de Walter Garcia, no qual o autor menciona o fato de que os shows da
Bossa Nova “se pautam por uma relação de intimidade tanto entre os músicos quanto
entre o palco e a plateia” 118. Nesse sentido, trata-se de uma correlação coesa já que para
a apreensão dos mais sutis detalhes desta música por parte do ouvinte – que pode se
manifestar na percepção da relação entre a rítmica da melodia do canto com a rítmica do
acompanhamento do violão, ou mesmo na maneira exata de o cantor pronunciar
determinada palavra, ou ainda no acorde escolhido para ser tocado em determinado
momento da letra da canção – é de fato necessário um ambiente intimista propício à
percepção dos detalhes.
117
118
MEDAGLIA apud CAMPOS, 1986, p. 72.
GARCIA, 1999, p. 82.
134
CAPÍTULO 4
Tecendo paralelos
Após termos contextualizado o leitor, oferecendo detalhes acerca de cada
estilo musical (capítulos 2 e 3), neste capítulo trataremos da comparação entre ambos,
com o intuito de demonstrar como estes dois estilos, apesar de cronologicamente
distantes, são bastante próximos, em termos estéticos, no tratamento das interações
entre música e texto. Para tal, seccionaremos este quarto e último capítulo em quatro
partes, de modo que possamos discutir os paralelos traçados entre a Bossa Nova e a
Seconda Pratica italiana nos distintos termos:
1) na busca por uma maneira de cantar próxima à fala,
2) na busca pela ideia de naturalidade do cantar,
3) na instrumentação mais comumente utilizada (voz solista e instrumento
harmônico no acompanhamento),
4) na expressão dos afetos e ideias contidos no texto poético cantado através da
harmonia e da melodia, ou mesmo na relação entre ambos.
Para tal, retomaremos sistematicamente as informações oferecidas ao longo
dos três capítulos anteriores, mencionando sempre a página em que o assunto foi
exposto no decorrer da Dissertação.
4.1 A busca pelo canto-falado
Cícero, Oratio: Est autem in dicendo quidam cantus obscurior
(no modo de falar existe um canto oculto)
Uma das mais fortes semelhanças entre a Seconda Pratica italiana e a Bossa
Nova está relacionada ao modo como cada estilo propõe o seu canto. A ideia de que a
voz, ao cantar, deva aproximar-se da fala permeia o fazer musical de ambos os estilos e
configura, de certa forma, um ideal comum.
135
Na Bossa Nova, a busca autoconsciente por uma maneira de cantar próxima
da fala é tida como uma das principais marcas do estilo, e esta se dá pela influência de
alguns cantores como Nora Ney, Lúcio Alves e mesmo Carmen Miranda e Mário Reis
que, antes mesmo do surgimento da Bossa Nova em 1958, propuseram uma certa
atenuação da dramaticidade no cantar e a consequente aproximação da voz cantada à
voz falada.
Ainda na Bossa Nova, este tipo de canto foi minuciosamente trabalhado e
desenvolvido por João Gilberto. Identificamos em seu trabalho artístico como cantor um
dos ápices desta abordagem vocal na história da canção brasileira, bem como
reconhecemos sua importância para as gerações posteriores. A respeito da maneira de
cantar de João Gilberto, o musicólogo Lorenzo Mammi escreve:
João Gilberto tenta reproduzir na melodia todos os parâmetros do
som, sem que por isso a voz se torne instrumento — ao contrário,
aproximando sempre mais o canto à fala. É uma aspiração recorrente
na música ocidental, colher a articulação com que a melodia se
destaca da palavra, mas ainda manter uma ligação necessária com ela,
encontrar o momento exato em que o canto adquire forma própria,
sem que esta seja outra coisa além da forma do falar, sublimada. Em
João Gilberto tudo isso parece alcançar uma realização (MAMMI,
1992, p. 66).
No excerto de seu texto, Mammi descreve a aproximação do canto de João
Gilberto à fala, vetor original da palavra, sendo que esta aproximação reside, sobretudo,
na dinâmica e na cuidadosa articulação das palavras que são cantadas. Nesse sentido,
por se tratar de um canto absolutamente rigoroso em parâmetros como afinação, por
exemplo, é possível dizer que o canto de João Gilberto se compromete com a música
numa relação regida pela fala.
Além disso, Mammi também cita a “aspiração recorrente na música
ocidental” em se encontrar este elo essencial entre melodia e palavra. Este elo tem sido
estudado por pesquisadores de diversas áreas — conforme mencionamos no Capítulo 1
— e, em uma de suas facetas, pode ser representado pela compatibilidade existente entre
136
a melodia musical cantada e a melodia entoativa que brota das palavras faladas119, elo
este que, no canto de João Gilberto, conforme escrito por Mammi, “parece alcançar uma
realização” 120.
João Gilberto, em entrevista para a revista “O Cruzeiro” — mencionada em
nosso texto na página 115 — afirma que “[no canto] as palavras devem ser
pronunciadas da forma mais natural possível, como se estivesse conversando”. Com
isso, João Gilberto dizia querer respeitar o “sentido” do texto poético da canção escrito
pelo letrista e, acima de tudo, a prosódia da língua portuguesa. Além disso, ele também
visava flexibilizar a melodia cantada na estrutura métrica da canção, aproximando a
realização de seu canto à ideia de canto-falado e, consequentemente, à ideia musical de
rubato, ou mesmo métrica derramada.
Interessante atentar para o fato de que este mesmo procedimento foi
também utilizado pelo compositor italiano Claudio Monteverdi em seus Madrigais.
Conforme vimos no capítulo 2, em seu madrigal “Sfogava con le stelle” (página 44),
Monteverdi indica que os compassos 1, 6 e 11 devem ser cantados com “Libera
declamazione, quasi parlato” 121.
Monteverdi, ao musicar longos trechos de texto sem uma rítmica prescrita, e
ao oferecer ao cantor a indicação de que estes trechos deveriam ser declamados
livremente, buscava, assim como João Gilberto o fez, porém de um modo distinto, um
certo tipo de canto-falado. O próprio Claudio Monteverdi, em uma carta a Alessandro
Striggio (1573 – 1630), libretista de sua ópera Orfeu, publicada no livro Cartas de
Claudio Monteverdi de Ligiana Costa, faz uso dos termos “falar cantando” e “cantar
falando”
122
, como recursos de composição, distinguindo cada vocalização, inclusive,
com finalidades poéticas distintas.
No caso de João Gilberto, sua voz cantada, que age “como se estivesse
conversando”, é fruto de um posicionamento estético cônscio que influenciou toda uma
geração posterior de cantores123. Desse modo, a Bossa Nova, impelida pelo ideal
estético do cantor João Gilberto, se consolida como um dos estilos mais expressivos
dentro do gênero da canção brasileira em relação à busca por uma maneira de cantar
119
TATIT, 2002.
MAMMI, 1992, p. 66.
121
Declamação livre, quase falado.
122
COSTA, 2001, p. 44.
123
TATIT, 2004.
120
137
próxima de uma das múltiplas falas possíveis no vasto idioma português do modo como
como é falado no Brasil.
De maneira muito semelhante, vemos também na Seconda Pratica a busca
por uma maneira de cantar que fosse próxima da fala, além do caso de Monteverdi
conforme já expusemos. Muitas são as menções pelos compositores e teóricos italianos
da Camerata Fiorentina de que o canto desta nova prática musical deveria se aproximar
da maneira de se falar, a fim de que seus intuitos – relacionados, dentre outras coisas, à
plena inteligibilidade da palavra quando cantada – fossem bem-sucedidos.
Retomemos, primeiramente, o caso de Vincenzo Galilei. Na busca pela
elaboração e desenvolvimento do estilo recitativo, Galilei sugere aos compositores de
seu tempo que escutassem como as pessoas falam para depois poder simular esta
vocalização em música (página 65). Com isso, Galilei esperava que a maneira de
escrever e cantar as monodias deste novo estilo fosse influenciada pelos padrões
entoativos da fala cotidiana das pessoas, fundamentando essa busca, inclusive, sob o
ponto de vista técnico, ao citar técnicas da fala teatral utilizadas no período e que
poderiam ser úteis na construção do trabalho vocal do cantor.
Nesse sentido, é natural que Galilei visse na parceria entre músicos e atores
– parceria, aliás, tão profícua para ambos os lados até os dias de hoje – uma rica
iniciativa, já que ambas as partes, no tocante ao estudo da voz, visam o aperfeiçoamento
de uma vocalização expressiva em seu fazer artístico. A respeito deste aspecto do estudo
da voz pelo ator, escreve Sara Lopes:
Potencializar a expressividade da voz e da fala, um dos fundamentos do
trabalho vocal do ator na construção poética da representação (...). Com
sua voz, o ator cria ritmo e melodia, cadências, as mais sutis
modulações e inflexões, música, enfim, transformando seu texto em
verdadeira partitura de tempos precisos, pausas contadas, compondo,
entre sons e silêncios, a fala teatral. Esta aproximação dos termos
musicais aos procedimentos técnicos da fala denota muito claramente o
quanto esta se encaminha, em seu processo de elaboração, para a
complexa simplicidade da música (LOPES, 2007, p. 19).
Vemos no estudo da voz enquanto elemento sonoro expressivo, levando em
consideração os depoimentos aqui apresentados, um fenômeno interessante: assim como
138
uma parcela expressiva de cantores busca um canto próximo da fala, muitos atores, na
fala teatral, tendem a encarar a voz sob o ponto de vista musical, em outras palavras, a
buscar um certo tipo de fala cantada. Talvez seja por esse motivo que Galilei, ao versar
sobre um estilo de canto dramático em construção no século XVII, tenha visto no teatro
um possível amparo técnico para o cantor. E a recíproca é verdadeira: muitos atores, até
hoje, encontram um valioso suporte no estudo do canto para a construção de seu
trabalho vocal. Sobre isso, Sara Lopes comenta:
A técnica vocal que o ator desenvolve, a partir do canto, dota-o de um
controle sem ansiedade da respiração pelo conhecimento da
musculatura, de uma ampliação da intensidade sonora pela
maximização da função dos ressoadores, de definição e precisão na
emissão, de flexibilidade e nuances nas tonalidades, de ampliação dos
limites da extensão a partir dos tons médios. Em relação à fala, a
sustentação de sons presente no canto resulta num equilíbrio de
sonoridade, evitando a perda de rendimento tão comum aos finais de
palavras e/ou frases; a silabação determinada pela melodia leva, à fala,
a estabilidade do tempo e a existência de cada som; a acentuação das
melodias permite a compreensão e a manutenção da cadência e do
ritmo da palavra falada (LOPES, 2007, p. 19).
Deste modo, percebemos o quão rico pode ser o trabalho colaborativo entre
atores e cantores em relação ao estudo da voz. É bem possível que esta parceria entre a
música e o teatro, no decorrer da Seconda Pratica, esteja relacionada ao surgimento do
gênero operístico, considerando o fato de que uma das principais referências nas
pesquisas da Camerata Fiorentina era, justamente, o drama grego. A Ópera, um dos
mais importantes gêneros musicais no ocidente, gênero híbrido entre a música e o teatro,
surge pontualmente durante a Seconda Pratica e em decorrência do aparecimento do
Estilo Recitativo, com um propósito certeiro: cantar uma história, ou contar uma história
em música. Nesse sentido, a aproximação do canto à fala com o aparecimento do
recitativo ofereceu às narrativas poético-musicais muitas possibilidades, pois deu à
palavra um espaço muito maior, e de maior importância, na composição musical,
principalmente em relação ao repertório de músicas polifônicas do Renascimento. Além
disso, com a investigação explícita por parte dos compositores da Seconda Pratica em
relação à musicalidade da fala das pessoas, foi possível desenvolver uma escrita musical
139
que fosse capaz de retratar no aspecto melódico do canto a fala de um Tipo teatral (tal
como o vilão, o sábio, a rainha, o servo, etc.). Trata-se, portanto, de um aspecto
importante para o desenvolvimento de uma história encenada e cantada, como a Ópera,
por exemplo124.
Interessante notar que a preocupação com a construção de um Tipo teatral,
porta-voz do que canta e conta o texto musicado, também pode ser encontrada na canção
popular brasileira. Conforme oferece Tatit no seguinte excerto:
... a entoação atrela a letra ao próprio corpo físico do intérprete por
intermédio da voz. Ela acusa a presença de um “eu” pleno (sensível e
cognitivo) conduzindo o conteúdo dos versos e inflete seus
sentimentos como se pudesse traduzi-los em matéria sonora. De posse
dessa força entoativa, e valendo-se do poder de difusão das ondas
radiofônicas, os cancionistas se esmeraram em fazer dos intérpretes
personagens definidos pela própria entoação. Ouvia-se então a voz do
malandro, a voz do romântico, a voz do traído, a voz do embevecido,
a voz do folião, todas revelando a intimidade, as conquistas ou o modo
de ser do enunciador.” (TATIT, 2004, p. 75-76).
Nota-se também neste caso que a investigação da dicção peculiar à fala de
certo tipo de personagem, e a consequente aproximação do canto a esta fala, é essencial
para que o compositor e/ou o intérprete da canção consigam revelar no canto a voz de
um certo tipo, como a do folião ou do traído, como bem exemplificou Luiz Tatit no
excerto anterior. Por conseguinte, a inscrição desses elementos na canção é o que
configura a Figurativização como regime de integração entre melodia e letra.
Ao avaliarmos as ideias do compositor Jacopo Peri, presentes nos prefácios
de suas óperas “Euridice” (1600) e “Dafne” (1594), (mencionados na página 66), notase que Peri expõe sua percepção de que sob a fala é possível construir um
acompanhamento harmônico, ideia que, por si só, é o atestar da percepção de que a fala
124
Monica Lucas oferece um aprofundamento deste aspecto no seguinte excerto: “Para os teóricos da
Camerata, toda fala tem um soggetto, um afeto formalmente determinado, que é também imitado pela
música. A relação entre música e linguagem apoia-se na ideia de imitação: ambas copiam os afetos
humanos. Essa imitação, no entanto, não é livremente ditada pelos sentidos e pela individualidade do
compositor: ela é objetivamente determinada. Autores como Galilei entendem que o modelo da
composição é a observação do comportamento dramático do ator trágico ou cômico. Esse comportamento
não tem caráter subjetivo. Imitam-se tipos do teatro como o Irado, a Matrona, o Amante, o Lamentoso, o
Alegre, etc. A música deve imitar a fala codificada desses modelos dramáticos; a declamação carregada
de afeto constitui a matéria musical” (LUCAS, 2010, p. 33).
140
pode ser ouvida como uma melodia125. Esta percepção nos remete diretamente às
canções cantadas por João Gilberto, haja vista a definição do pesquisador Walter
Garcia, que afirma: “... a obra fonográfica de João Gilberto é uma canção cuja estrutura
se define, fundamentalmente, pela voz superposta à sua batida.” 126, e neste caso, a voz
que, através do canto, esforça-se (sem esforço) para ser ouvida e emitida como uma
fala, sem nenhum tipo de demonstração vocal virtuosística que pudesse comprometer a
fruição estética da composição.
Tanto no canto-falado da Seconda Pratica quanto no da Bossa Nova é
possível encontrar menções de que a aproximação do canto à fala está vinculada à busca
pela persuasão do ouvinte. Para Monica Lucas, por exemplo, “a palavra musicada [para
os integrantes da Camerata] é considerada como um modo de dizer aperfeiçoado, por
ser acompanhada de melodia e ritmo, elementos acidentais que, no entanto, tornam o
dizer mais persuasivo” 127. Já para Luiz Tatit, conforme mencionado na página 119, a
aproximação do canto à fala pelo cancionista trata-se de uma “estratégia persuasiva de
estabelecer equivalências entre os dois sistemas [do sistema da canção para o sistema da
língua natural]” 128. Com isso é possível encontrar mais uma semelhança na abordagem
do canto entre os dois estilos musicais ao associarmos a utilização do canto falado
nestes estilos a um recurso retórico129.
É importante ressaltar, entretanto, que os compositores da Seconda Pratica,
apesar da frequente preocupação com o aspecto persuasivo do canto, não eram guiados
pelo embasamento teórico da retórica. Orientados pela abordagem humanista, sobretudo
pelas ideias de Platão, que considerava a retórica “uma arte enganadora que não leva à
verdade”
130
, construíam suas estratégias de persuasão sem se vincular a essa
fundamentação.
125
Lembramos aqui da forte semelhança da percepção de Jacopo Peri com a de Hermeto Pascoal ao
propor a sua Música da Aura, descrita por nós na página 32, de que a fala pode ser ouvida sob uma
perspectiva melódica.
126
GARCIA, 1999, p. 122.
127
LUCAS, 2010, p. 32.
128
TATIT, 2007, p. 158
129
A retórica pode ser definida sucintamente como a arte de bem argumentar; a arte da eloquência. Sua
origem está ligada à Grécia Antiga e sua finalidade busca, acima de tudo, o convencimento ou a
persuasão do ouvinte (https://www.dicio.com.br/retorica/).
130
LUCAS, 2010, p. 41-42.
141
4.2 A Sprezzatura como ideia de naturalidade
Assim como no caso de Vincenzo Galilei e Jacopo Peri, a mesma busca por
um modo de cantar próximo às inflexões da fala na interpretação das monodias pode ser
vista nas ideias do compositor Giulio Caccini. Em seu tratado Le Nuove Musiche (1601)
(As Novas Músicas), Caccini explicita a proximidade que o canto, em suas
composições, deveria ter com a fala, e sugere aos intérpretes cantores dos Recitativos,
por consequência, a utilização das ideias de sprezzatura e de liberdade rítmica, podendo
ser entendido por nós através do termo rubato (Página 67).
Ao analisarmos a definição do termo sprezzatura oferecida por Castiglioni
(página 67), deparamo-nos com a preocupação por parte do Cortesão barroco com sua
imagem e com o juízo que os outros possam fazer de sua competência. Neste contexto,
aquele que realiza algo de modo bem feito, aparentando facilidade e naturalidade,
mostra-se capaz, persuade e promove deslumbre ao espectador. Este conceito, aplicado
ao campo da música como fez Caccini no prefácio de seu tratado, manifesta-se em dois
termos: no âmbito da atuação cênica e no âmbito da técnica vocal. No âmbito da
atuação, o músico deve persuadir o espectador, simulando conscientemente uma atitude
que faça parecer que o que se faz é realizado com extrema facilidade. Neste âmbito
vemos, novamente, uma convergência com a arte teatral já que a performance musical
do cantor não deixa de ser, também, um ato teatral codificado.
Já no âmbito técnico do canto, a utilização do termo sprezzatura propõe um
modo de cantar que simule a ideia de “naturalidade” contida na voz que entoa uma fala
cotidiana. Caccini sugere que a realização desta ideia possa ser conseguida através da
ideia de rubato, termo pelo qual entende-se que o canto possa sofrer uma flexibilização
métrica, propondo um canto mais livre em termos rítmicos.
Nota-se que uma abordagem muito parecida ocorre no canto de João
Gilberto em relação à flexibilização da métrica da melodia cantada. A esse processo,
lembramos que Martha Ulhôa denominou de métrica derramada e que este, assim como
a proposta de Caccini, está intimamente relacionado à busca pela ideia de naturalidade
no canto. Essa ligação pode ser confirmada ao notarmos no prefácio de Le Nuove
Musiche de Caccini a menção da ideia de que o canto possa, em suas músicas, não “se
submeter à métrica regular”, de modo que, semelhante ao já citado depoimento de João
142
Gilberto (mencionado na página 115), praticamente flutue, sobre o acompanhamento do
Chitarrone com maior liberdade em termos rítmicos.
Em entrevista à revista “O Cruzeiro” no dia 10 de outubro de 1960, João
Gilberto oferece um depoimento reforçando a ideia de que a voz cantada deva também
ser amalgamada pela sensação de naturalidade:
Acho que os cantores devem sentir a música como estética, senti-la
em termos de poesia e de naturalidade. Quem canta deveria ser como
quem reza: o essencial é a sensibilidade. Música é som. E som é voz,
instrumento. O cantor terá, por isso, necessidade de saber quando e
como deve alongar um agudo, um grave, de modo a transmitir com
perfeição a mensagem emocional (João Gilberto apud CAMPOS,
1986, p. 36).
Desse modo, conforme depoimentos na já mencionada entrevista a Tarik de
Souza e Elifas Andreatto, João Gilberto demonstra que sua ideia a respeito do ato de
cantar está relacionada ao par sensibilidade e consciência. Seu cantar de modo sensível
se manifesta, inclusive, na escolha da instrumentação intimista pelo duo voz e violão.
Ademais, sua proposta, com forte embasamento estético, parece evitar no canto
qualquer tipo de afetação, refutando, para isso, a ideia de dramaticidade no modo de
cantar, comum à canção brasileira da década de 1950, pré-Bossa Nova, composta em
grande parte de sambas-canções que possuíam caráter grandioso, principalmente,
devido aos arranjos com cordas e metais e um cantar operístico e passionalizado131. A
esse respeito, Augusto de Campos relata, em seu livro Balanço da Bossa e outras
bossas:
[Tom] Jobim definiu a concepção do canto na Bossa Nova como
consistindo em se cantar cool. Tentaremos explicar esta colocação.
Isto quer dizer: cantar sem procura de efeitos contrastantes, sem
arroubos melodramáticos, sem demonstrações de afetado virtuosismo,
sem malabarismos. O cool coíbe o personalismo em favor de uma real
131
NAVES, 2001.
143
integração do canto na obra musical. O que está de acordo com a
posição estética do movimento. A "voz cheia", o "dó de peito", a
"lágrima na voz", o "canto soluçado" etc., são rejeitados pela Bossa
Nova. Algo que causou e ainda causa espanto em grande parte do
público: o fato de não se incrementar a loudness da voz quando se
canta uma nota aguda. O canto flui como na fala normal (CAMPOS,
1986, p. 35).
Identificamos, portanto, um interesse em comum entre o canto de ambos os
estilos ao negar não somente qualquer sinal de afetação ou esforço na voz132, mas
também qualquer atitude ou maneira de cantar que distancie o fazer musical do
propósito essencial de “elevar” a importância das palavras em música. Este propósito
essencial é trazido à tona nos depoimentos aqui transcritos, e encontra-se relacionado
tanto na aproximação do canto à fala (vocalização que privilegia a textualidade), quanto
nos ideais subentendidos na utilização de termos como naturalidade, sprezzatura e até
mesmo cool 133.
Outra característica de interessante constatação, em ambos os estilos
musicais, é o fato de que a realização desta música tão fiel à inteligibilidade da palavra e
à expressão de seu conteúdo poético é marcada e caracterizada por uma certa ruptura em
relação às ideias e princípios estéticos dos respectivos estilos musicais antecessores, a
saber: a Prima Pratica e o Samba-canção. Não à toa, os nomes Bossa Nova e Seconda
Pratica deixam sugerir que se tratam de estilos novos, ou diferentes. Conforme já
vimos, o termo “Bossa Nova” nos remete a um jeito novo e diferente de fazer qualquer
coisa134. Por sua vez, o termo Seconda Pratica nasce justamente em contraposição
direta ao seu estilo antecessor, a Prima Pratica, refutando a maneira contrapontística de
cantar o texto poético.
132
Com exceção, conforme mencionado na página 69, do caso das Monodias de Caccini, que
frequentemente apresentam longos ornamentos.
133
“Cool é um adjetivo na língua inglesa e que significa “legal”, na tradução literal para o português. Este
termo é utilizado em um contexto informal, como uma gíria para qualificar algo ou alguém como
“radical”,
“calmo”,
“descolado”
ou
“tranquilo”,
por
exemplo.
”.
Fonte:
<http://www.significados.com.br/cool/>.
134
SEVERIANO, 2008.
144
Ainda mais interessante é notar que a ópera – gênero que surge na Seconda
Pratica como decorrência justamente da busca por um canto que simulasse a ideia de
naturalidade, por uma maneira discreta de se cantar uma história por meio do Recitativo
– chega entre os músicos da Bossa Nova, em especial João Gilberto, após mais de
quatro séculos de desenvolvimento e apresentando uma diferença gritante em relação à
sua proposta estética original, associada a um modo de cantar exagerado e grandioso.
Naturalmente, por se tratar de um gênero musical com longa trajetória, a ópera possui
flutuações estéticas próprias e, a respeito da transição da ideia de economia para a de
exagero (cujo ápice está situado no século XIX), está associada aos locais onde este
gênero passou a ser apresentado no decorrer de sua evolução: espaços físicos cada vez
maiores, onde a voz sem um tratamento especial, certamente distante de seu
comportamento cotidiano na fala, não seria ouvida a contento.
De outra parte, é apenas devido à invenção do microfone que o cantor João
Gilberto pôde apresentar-se, à sua maneira, em grandes teatros e casas de show, mesmo
que se priorizasse, pelo menos a princípio, que o local de apresentação da Bossa Nova
fosse um ambiente pequeno e de atmosfera intimista. A invenção da amplificação
sonora artificial por meio do microfone permitiu que uma gama variada de recursos
vocais de baixa intensidade pudesse ser ouvida a longas distâncias ou para plateias
numerosas. Esse advento tecnológico gerou, sintomaticamente, novas demandas
técnicas para a voz cantada em muitos estilos musicais.
4.3 O banquinho e o Alaúde
“Quem poderia pensar que Orfeu,
Orfeu cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres que ele, Orfeu,
Ficasse assim rendido aos teus encantos?”
(Excerto do “Monólogo de Orfeu” de Vinícius de Moraes)
145
Outro aspecto essencial na construção de um paralelo entre Bossa Nova e
Seconda Pratica revela-se através da instrumentação padrão utilizada em ambos os
estilos musicais. Neste sentido, o termo “banquinho e violão”, que se refere diretamente
aos objetos indispensáveis do fazer musical bossanovista, alude a um instrumental
arquetípico dos estilos poético-musicais nos quais a voz é posta em absoluto primeiro
plano. O duo voz e instrumento harmônico se configura como a escolha instrumental
mais óbvia ao canto acompanhado devido a certas especificidades de escritura: a
necessidade de se haver uma linha melódica e um acompanhamento harmônico. O duo
voz e violão, por sua vez, se configura como uma escolha coerente devido à certas
especificidades acústicas da voz humana, sobretudo a sua limitação de volume no cantofalado, conforme menciona Luiz Tatit em citação da página 131.
Além disso, a escolha do violão como elemento icônico da Bossa Nova
pode também estar relacionada com a presença massiva do instrumento na estrutura
sociocultural brasileira. A esse respeito, o violonista Fábio Zanon (1966 - ) escreve:
Como o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a
uma visão sociocultural do Brasil, e nossa identidade musical é
impensável sem a sua presença. E não é para menos. Instrumentos da
família do violão foram já trazidos pelos jesuítas e usados na
catequese, e José Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de
cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do século XVI
revelam em comum o acompanhamento ao som de viola”. Dessa
forma, desde o primeiro encontro que define nossa identidade cultural,
o violão está presente. (ZANON, 2006, p. 1)
Nesse sentido, é possível considerar que a escolha do violão como
instrumento acompanhador da canção bossanovista pode também ter sido influenciada
pela presença abundante do instrumento desde os primórdios da música popular
brasileira, conforme mencionado por Zanon. Interessante notar também que, se até o
início do século XX o violão não gozava de prestígio por entre as camadas sociais mais
abastadas da sociedade – sendo considerado um instrumento associado ao estilo de vida
das classes baixas, marginalizadas –, a partir do surgimento da Bossa Nova “o violão
146
passou a ser o instrumento predileto da juventude”135 e aquele que vai legitimar a
produção musical dessa mesma elite que antes o negava.
De qualquer modo, apesar de suas compatibilidades inerentes em termos de
intensidade, o uso do violão na obra cancional de João Gilberto transcende a função
meramente acompanhadora. A maneira como o violão é tocado neste caso – lembrada,
muitas vezes, por conta de sua emblemática batida – oferece ao instrumento, junto com
a voz, o status de protagonista na canção, e é considerada, assim como seu canto-falado,
uma importante inovação estética na história da canção brasileira. Nesse sentido, o
canto-falado de João Gilberto trata-se de uma proposta coesa em relação a seu vínculo
rítmico com a batida da Bossa Nova, uma vez que, para que de fato haja uma integração
entre a voz e a batida do modo como se nota nas interpretações de João Gilberto, é
necessário que a voz seja emitida de modo ágil, o que, novamente, a aproxima de uma
vocalização próxima da fala.
A respeito desta íntima relação entre a voz cantada e o violão, João Gilberto,
na mesma entrevista publicada por Walter Garcia, discorre:
Geralmente, o cantor se preocupa com a voz emitida da garganta e
sobe muito, deixando o violão – ou qualquer outro instrumento de
acompanhamento – falando sozinho lá embaixo. É preciso que a voz
se encaixe no violão com a precisão de um golpe de caratê, e a letra
não perca sua coerência poética (apud GARCIA, 1999, p. 128).
135
MEDAGLIA apud CAMPOS, 1986, p. 74.
147
Figura 27: João Gilberto e seu violão, em 1991.
Fonte: Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/joao-gilberto-perde-nova-batalhacontra-biografia-nao-autorizada>. Acesso em 30 de junho de 2016.
No caso da Seconda Pratica italiana nota-se frequentemente a mesma
instrumentação característica: a voz acompanhada por um instrumento harmônico. Esta
escolha, presente em grande parte das monodias barrocas italianas, sedimentou-se
possivelmente por um motivo análogo ao da Bossa Nova: a voz cantada neste registro
próximo da fala não tem condições de competir, em termos de intensidade, com uma
instrumentação maior. Ademais, este tipo de fazer musical que compreende o repertório
da Seconda Pratica normalmente era concebido para ser apresentado em locais físicos
de pequeno porte. Neste contexto, Federici afirma que a música de um dos expoentes
deste período, o compositor Giulio Caccini, “não era para ser executada para grandes
plateias, mas na comodidade do salotto, da sala pequena, íntima, somente onde seria
possível a apreensão de todas as nuances, cumpridas a pouca distância do ouvinte” 136.
Com isso, o autor evidencia o caráter íntimo e delicado deste tipo de música, o que se
reflete, naturalmente, no modo como é estruturada e interpretada. Nesse sentido, o
aspecto relacionado ao local de apresentação da obra vocal na Seconda Pratica também
136
FEDERICI, 2009, p. 64.
148
encontra semelhanças com os locais de apresentação na Bossa Nova. Frequentemente se
tratavam de espaços pequenos e intimistas, conforme descrito por Júlio Medaglia e
Walter Garcia na página 133.
Nesse sentido, vale ressaltar que uma grande semelhança existente entre os
dois estilos de música vocal aqui tratados, reside também no modo como o cantor
aborda o ouvinte, envolvendo-o em uma atmosfera de intimidade e cumplicidade. O
canto-falado, somado ao tratamento intimista dado à instrumentação, aproxima ouvinte
e intérprete e constrói uma situação de verdade enunciativa; em outras palavras, este
tipo de abordagem potencializa a força enunciativa137 do canto e desperta a fé do
ouvinte naquilo que é cantado. Trata-se de uma abordagem bem diferente do canto
polifônico sacro do Renascimento, ou mesmo do canto passionalizado do Sambacanção, nos quais nota-se um distanciamento do cantor em relação ao ouvinte. Assim, é
possível pensar que tal abordagem do canto funciona como um forte recurso persuasivo,
uma ferramenta de convencimento, ou seja, trata-se de um recurso retórico.
Apesar das inúmeras similaridades encontradas por nós entre os estilos
musicais aqui abordados, um aspecto muito importante que é tratado de modo bem
distinto entre os estilos deve ser discutido: a realização do acompanhamento
instrumental.
Retomemos os principais aspectos da realização do acompanhamento
instrumental na Seconda Pratica, guiada pela prática do Baixo contínuo. Em síntese, a
realização do baixo contínuo consiste no ato de harmonizar a linha melódica do baixo,
que, normalmente, vem acompanhada de uma cifragem específica, daí o nome baixo
cifrado. Este processo de harmonização, apesar de ser improvisado pelo continuísta, é
construído sob inúmeras regras de condução de vozes e esteticamente orientado de
acordo com o país e a época do repertório a ser executado. Em seu tratado Le Nuove
Musiche, Caccini menciona esta técnica de acompanhamento:
Pois que eu tenha o costume de em todas as minhas músicas saídas de
minha pena, denotar pelas cifras sobre a parte do Baixo, as terças e as
sextas, nas maiores onde é assinalado o sustenido e nas menores o
bemol, similarmente às sétimas ou outras dissonâncias para
137
TATIT, 2002.
149
acompanhamento das partes do meio (CACCINI apud FEDERICI,
2009, p. 38-39).
Figura 28: “Tocador de Alaúde” (1594) do pintor italiano Caravaggio (1571 – 1610). Óleo sobre tela,
100 cm × 126.5 cm.
Fonte: <http://wikipedia.org>
Outra importante indicação que Caccini oferece aos leitores de seu Tratado,
que versa especificamente acerca do acompanhamento harmônico de suas monodias, é:
“O acompanhamento deve ser simples, a ponto de não ser escutado; as dissonâncias só
devem ser utilizadas sobre determinadas palavras, para enfatizar uma expressão verbal.”
138
. Desse modo, Caccini atesta que o papel do acompanhamento em suas músicas,
diferentemente do caso de João Gilberto e seu violão, é executar um discreto suporte
138
CACCINI apud HARNONCOURT, 1998, p. 167.
150
harmônico, que quase não é escutado, tamanha a importância que a voz cantada assume
neste contexto. Observamos também que o uso da dissonância neste caso está
diretamente associado a expressão das ideias ou afetos contidos no texto cantado,
enfatizando seu teor semântico.
Vemos, portanto, entre o acompanhamento instrumental da canção
bossanovista e da monodia da Seconda Pratica, a semelhança que reside no fato de
ambas se utilizarem, muitas vezes, de instrumentos bastante parecidos: o violão e o
alaúde (ou o Chitarrone). Conforme vimos, em ambos os casos a escolha desta esparsa
instrumentação parece estar relacionada à limitação de volume da voz cantada próxima
do registro da fala bem como o intuito de se valorizar a palavra cantada na estrutura da
composição, o que, por consequência, acaba por caracterizar práticas musicais
intimistas e econômicas.
Todavia, apesar desta semelhança, cada estilo desenvolveu uma maneira
característica de realizar este acompanhamento instrumental. Na Bossa Nova, o violão
se encontra em pé de igualdade com a melodia do canto, voz e violão se interrelacionam num sofisticado jogo rítmico-harmônico e o balanço gerado pela interação
entre a batida do violão e a melodia depende também do equilíbrio, sobretudo de
intensidade, entre ambos os elementos. Além disso, na Bossa Nova o acompanhamento
está quase sempre ligado à ideia de periodicidade, de reiteração de um padrão rítmico.
No caso da Seconda Pratica, o acompanhamento está notadamente
subordinado à linha do canto, haja vista as menções encontradas em tratados dos
compositores do período de que o acompanhamento realizado pelo contínuo deveria ser
discreto. Ademais, muito dificilmente se encontra no acompanhamento das monodias
barrocas uma abordagem que se aproxime da ideia de levada, ou batida. No baixo
contínuo, na maioria das vezes os acordes são tocados pontualmente em momentos
específicos do texto, muito mais sustentando a linha melódica do canto do que
interagindo e se imbricando com ela.
Além disso, nota-se uma diferença também em relação ao tratamento dado
às dissonâncias no acompanhamento instrumental. Nas monodias, o aparecimento das
dissonâncias é condicionado a um momento propício do texto poético e, via de regra,
aparecia no acompanhamento de acordo com as formulações de Zarlino, mesmo que o
marco inicial do estilo musical tenha sido a suposta libertação destas regras. Na Bossa
Nova, assim como na Seconda Pratica, frequentemente vemos a dissonância ser
151
utilizada como recurso poético, entretanto seu valor para o músico bossanovista é outro
haja vista que não há, de fato, uma preparação polifônica para o seu aparecimento. A
dissonância já está incorporada ao bloco sonoro do acorde, aspecto harmônico já notado
desde o aparecimento do jazz ou mesmo da música erudita do fim do século XVIII.
Além do mais, na Bossa Nova a condução de vozes da harmonia executada
pelo instrumento acompanhador permite mais paralelismos do que no baixo contínuo,
porém, a lógica de condução que preza pela menor movimentação possível entre as
vozes se mantém como diretriz presente em ambos os casos139.
As abordagens distintas entre o acompanhamento de ambos os estilos aqui
apresentados se evidencia quando nos deparamos com as partituras onde estas músicas
são comumente notadas. Ao relembrarmos deste aspecto no baixo contínuo,
mencionado na página 73, notamos que o baixo da harmonia é tratado como uma
melodia, de modo que sua notação explicita ritmos e alturas em pauta, do mesmo modo
como é notada a linha melódica cantada. As vozes intermediárias que recheiam a
harmonia são especificadas por cifras que, na realidade, são números que indicam a
distância intervalar em relação ao baixo.
No caso da canção brasileira, vemos a questão do seu registro em partitura,
com a utilização da pauta e de figuras rítmicas escritas, por exemplo, praticamente
limitada à existência dos chamados Songbooks, ou cancioneiros140. Fora destes
compêndios, existe a real dificuldade em se encontrar peças deste gênero registradas em
termos musicais, como vimos, por exemplo, o prólogo de Peri mostrado na página 71. O
que ocorre, normalmente, é uma facilidade grande em se encontrar a letra das canções,
algumas vezes trazendo as cifras, mas dificilmente a melodia transcrita. Esta
característica associada ao gênero da canção no Brasil pode estar relacionada ao fato de
o artesanato cancional não depender necessariamente do registro em partitura para a sua
sobrevivência, além do fato, já exposto anteriormente, de que a canção brasileira, em
seus primórdios, esteve fortemente vinculada ao registro oral muito mais do que ao
registro escrito. Diferentemente do caso das monodias barrocas, a canção brasileira vê
139
Um exemplo que demontra o paralelismo no encadeamento harmônico do acompanhamento na Bossa
Nova pode ser encontrado na canção “Samba de uma nota só”, de Tom Jobim. Neste caso específico, o
violão, logo nas primeiras estrofes da canção, realiza uma sequência descendente de acordes que é
marcada pela presença constante do paralelismo.
140
Vale ressaltar que esses livros só começam a aparecer no contexto brasileiro a partir do final dos anos
1980. Antes disso, para “tirar” uma música era necessário ouvir a gravação inúmeras vezes e, a partir daí,
realizar a notação.
152
nas gravações de áudio – os fonogramas – seu maior instrumento de registro e em seu
fazer musical a escrita se mostra como um acessório.
Outro fato eloquente em nossa discussão é a percepção de que, muitas
vezes, o cancionista aglutina o fazer artístico que, na Seconda Pratica, dividia-se entre o
compositor da música e o poeta letrista. Na canção popular, muitas vezes não é clara a
divisão de papeis entre músico compositor e letrista, de modo que a configuração das
divisões de tarefas varia de caso para caso, muitas vezes ocorrendo uma certa
aglutinação de funções. Independente do modo como são dividas as demandas no
decorrer do processo criativo da canção, a presença da parceria neste processo parece ter
se sedimentado como um modus operandi caracterísico ao estilo141, obviamente com a
presença de incontáveis exceções.
Vejamos como exemplo o caso da canção “Modinha”, de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes (Figuras 29 e 30). Esta canção, gravada inúmeras vezes desde a
data de sua composição, fez parte do já mencionado disco Canção do amor demais
(1958) da cantora Elizeth Cardoso. Na partitura desta canção, contida no Songbook Tom
Jobim Volume 2 produzido e editado por Almir Chediak, vemos primeiramente (Figura
29) a apresentação da letra poética escrita por Vinícius de Moraes em conjunto com as
cifras musicais (trazendo, inclusive, a representação gráfica para a execução dos acordes
no violão). Em muitos casos, conforme já discutido, o registro em partitura das canções
brasileiras se apresenta desta maneira142, de modo que só é possível a leitura efetiva
desta se o leitor já souber (por outros meios) a melodia da canção. Essa característica se
deve ao fato de a canção popular ser uma manifestação artística midiatizada. Portanto, a
escuta do fonograma acaba, sintomaticamente, na maioria das vezes, precedendo
qualquer outra forma de registro.
141
Conforme explica-nos o pesquisador José Ramos Tinhorão, em seu livro História Social da música
brasileira: “Esse encontro dos poetas eruditos letristas de canções de rua com os músicos populares (ou
com os de salão e do teatro musicado atraídos pelo estilo popular) estava destinado a marcar, na área
dessa primeira canção de massa, de caráter nitidamente citadino, o advento de um novo sistema de
criação: a parceria. ” (TINHORÃO, 1998, p.129).
142
É o que notamos em sites como <www.cifraclub.com.br>, <www.cifras.com.br> ou mesmo nas
antigas revistas de cifras vendidas nas bancas de jornal.
153
Figura 29: Primeira página da canção “Modinha”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Fonte: CHEDIAK, 1994, p. 73.
Já na segunda página da canção Modinha (figura 30), vemos somente a
transcrição da melodia e da harmonia, sem a letra escrita por Vinícius de Moraes.
154
Figura 30: Segunda página da canção “Modinha” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Fonte: CHEDIAK, 1994, p. 74.
Nota-se na figura anterior que, assim como no caso do baixo contínuo, os
baixos dos acordes são todos especificados pelo compositor, ou mesmo por quem fez a
transcrição da música para o Songbook, considerando o fato de que, algumas vezes, as
notações musicais atritam entre uma versão e outra da mesma canção. No entanto, na
notação utilizada na canção, os baixos dos acordes estão contidos na própria cifra e não
isolados em uma pauta à parte, de modo que talvez não tenhamos a percepção da linha
do baixo como uma linha melódica em contraponto com a linha melódica do canto.
155
Assim, vemos que o modo como a notação musical foi desenvolvida em cada contexto
expõe a maneira que cada estilo concebe e realiza sua música.
Acerca deste aspecto em relação à Bossa Nova, Luiz Tatit acrescenta:
Parece, realmente, que o ouvido dos cancionistas possui uma Gestalt
própria: concebe a harmonia tonal, não tanto como um conjunto de
notas que gravita em torno de um núcleo, mas como um som
compacto que aclimata as progressões melódicas e que reflete
acusticamente as tensões propostas no texto; adota algumas
sequências de acordes (quando toca algum instrumento) e algumas
regularidades rítmicas como pontos demarcatórios para a invenção
melódica, incorporando a periodicidade como parte integrante da
criação. (TATIT, 2002, p. 163).
Na citação anterior, Tatit investiga as características do acompanhamento
instrumental realizado na canção brasileira e indica que os acordes nesta estrutura
musical funcionam, muitas vezes, como sons compactos que aclimatam o percurso
melódico do canto, assim como já mencionado em relação ao acompanhamento da
melodia nas monodias barrocas. Porém não podemos deixar de lembrar de uma
diferença de abordagem em relação ao acompanhamento de ambos os períodos: na
Seconda Pratica a sequência harmônica se tece como malha, teia que sustenta o canto;
já na Bossa Nova o canto é, por vezes, parte integrante dessa malha harmônica,
estabelecendo um movimento de fusão e difusão entre esses elementos.
Assim, vimos nesta seção a semelhança entre os estilos musicais no âmbito
instrumental, em especial a semelhança na instrumentação voz e violão/alaúde mais
comumente utilizada. Vimos que a sedimentação do uso desta instrumentação se deu,
provavelmente, devido às características acústicas da voz no registro em que é utilizado
nestes estilos musicais, somado às circunstâncias locais de cada estilo. Ademais, vimos
que, apesar das similaridades, cada estilo desenvolveu uma maneira particular de
realizar o acompanhamento instrumental das composições, fato que se evidencia ao
analisarmos as partituras de cada momento.
156
4.4 A expressão dos afetos
“estou pensando/ no mistério das letras de música
tão frágeis quando escritas/ tão fortes quando cantadas
por exemplo nenhuma dor (é preciso ouvir)/ parece banal escrita
mas é visceral cantada/ a palavra cantada
não é a palavra falada/ nem a palavra escrita
a altura a intensidade a duração a posição/ da palavra no espaço musical
a voz e o modo mudam tudo/ a palavra-canto
é outra coisa”
(Augusto de Campos)
No decorrer do capítulo, exploramos as principais similaridades entre os
estilos musicais, focando nossa discussão no âmbito da maneira de tratar a voz no canto
e nas principais características do acompanhamento instrumental. Nesta seção,
trataremos das semelhanças que os estilos dividem entre si no âmbito poético. Neste
sentido, notamos que ambos os estilos musicais visavam transmitir, através da fusão de
letra, melodia cantada e acompanhamento instrumental, uma ideia ou uma mensagem
emocional. No caso da Seconda Pratica isso é latente, através da questão dos afetos em
música, em outras palavras, da ideia de que a música no período barroco deve sempre
suscitar no ouvinte uma emoção.
No caso das monodias cantadas, a emoção a ser expressa através da música
é oriunda, via de regra, do próprio texto poético, de modo que a música, em fase com o
ideal platônico143 tão caro aos integrantes da Camerata Fiorentina, esteja sempre à
serviço das palavras, mimetizando o seu conteúdo afetivo.
143
O filósofo grego Platão (428/427-348/347 a.C.), em sua República (398d e 400d), afirma que: “A
canção [melodia] é composta de três elementos: oração, harmonia e ritmo (…) Ritmo e harmonia seguem
a oração, e não a oração segue o ritmo e a harmonia. ” (apud STASI, 2009, p. 9). Esta ideia foi utilizada
como referencial teórico e histórico na elaboração do estilo recitativo pelos compositores da Camerata
Fiorentina.
157
Inúmeras são as menções da ideia de que a música barroca quer sempre
suscitar afetos no ouvinte. Esta característica da música deste estilo é encontrada em
Tratados da época e em livros especializados no assunto. Uma destas menções,
especificamente relacionada à obra de Giulio Caccini, é oferecida por Conrado Federici:
Giulio Caccini rivalizou com seus contemporâneos, trabalhou
arduamente e produziu peças, bastante interessantes em seu conjunto,
inaugurando com suas publicações uma maniera estruturada de
composição musical voltada para mover os afetos dos ouvintes.
(FEDERICI, 2009, p. 12).
Outros excertos de outros autores também mencionam este mesmo aspecto
relacionado à música do período barroco. Nikolaus Harnoncourt, por exemplo, afirma
que “A música barroca quer sempre dizer alguma coisa, ou pelo menos representar e
suscitar um sentimento geral, um “afeto”. ”144. De qualquer maneira, por meio de
algumas destas citações podemos notar como o propósito do período barroco em música
estava relacionado à expressão de afetos e emoções através desta, colaborando para a
criação de um repertório de associações entre afetos, ou estados emocionais, e
elementos musicais.
De maneira semelhante, João Gilberto, Tom Jobim e o estilo Bossa Nova,
em geral, pretendiam manifestar as emoções do texto poético cantado através da música.
Este intuito manifesta-se, por exemplo, na preocupação de João Gilberto em transmitir
uma mensagem emocional145 através de suas canções. Entretanto, esta expressão dos
afetos na Bossa Nova inclina-se para uma realização mais sutil que a de seus
antecessores do samba-canção ao abandonar, na maioria das vezes, o caráter passional
da interpretação do canto, sobretudo na primeira fase do estilo. Nesse sentido, vemos a
contenção desta expressão dramática estar abarcada não apenas no âmbito musical, mas
também nas letras das canções. Conforme o pesquisador José Estevan Gava, no livro A
linguagem harmônica da Bossa Nova:
144
HARNONCOURT, 1998, p.151.
145
CAMPOS, 1986.
158
O âmbito poético-literário, por seu turno, [na Bossa Nova] não deixou
de incorporar inovações. (...) O valor sonoro da palavra passou a ser
explorado em estreita associação com os demais componentes
estruturais da música. (...). As letras das canções despojaram-se de tudo
o que denotasse drama e arrebatamento (...) (GAVA, 2002, p. 32).
Nesse sentido, chega-se ao ponto de algumas canções da Bossa Nova, como
“Bim Bom” 146 ou “Hô-Bá-Lá-Lá”, ambas escritas por João Gilberto, serem tidas como
verdadeiros manifestos do “despojamento de conteúdo”147. De qualquer maneira,
independentemente do conteúdo do texto poético, na maioria das vezes a expressão de
suas ideias ou afetos em música se deu por meio da manipulação de elementos musicais
como o desenho melódico, o arranjo, e, principalmente, a harmonia. Nesse sentido, Luiz
Tatit afirma:
Ao compor “Tereza da Praia” (1954) com o sambista Billy Blanco,
Tom Jobim já anunciava a prática, que seria uma constante no período
seguinte [a bossa nova], de substituir a oratória passional pela
linguagem coloquial. (...). Além disso, o compositor carioca [Tom
Jobim] enveredava pelas dissonâncias provenientes do jazz com a
função precípua de condensar efeitos emocionais (...). O emprego dos
novos acordes sugeria novas direções – portanto, novos sentidos –
melódicas que jamais poderiam constar das sequências de tríades
perfeitas até então adotadas (TATIT, 2004, p. 79).
É sabido que um dos principais âmbitos de inovação trazido pela Bossa
Nova reside justamente no emprego da harmonia. Pesquisadores como José Estevan
146
A transcrição da letra da canção “Bim Bom”, de João Gilberto, de fato, nos mostra como esta tende a
privilegiar muito mais o valor sonoro das palavras do que seu conteúdo semântico ou imagético: “Bim
bom bim bim bom bom/ bim bom bim bim bom bim bom (...) É só isso o meu baião/ E não tem mais nada
não (...)”.
147
TATIT, 2002, p.163.
159
Gava e Lorenzo Mammi creditam tais inovações no âmbito harmônico ao contato que
os músicos da Bossa Nova tiveram com o Jazz e com a música erudita europeia, em
especial a música do século XX. Neste sentido, vemos o violonista Carlos Lyra (1936 –
), músico bossanovista e autor de “Influência do Jazz” e “Lobo Bobo”, afirmar em
entrevista concedida a Clara Linhart, Camila Maroja e Daniel Caetano, pela revista
Contracampo (volume 42):
eu tenho uma paixão por Villa-Lobos, por Stravinsky, por Prokofiev,
por Ravel e Debussy sobretudo, que são as grandes influências da
bossa nova. Então eu tenho paixão por uns, e outros eu não consigo
ouvir. Beethoven, Haendel, eu não tenho paciência para essa gente...
Adoro Bach (LYRA apud CAETANO; MAROJA; LINHART, s.d.).
Como pudemos ver, Carlos Lyra atesta em seu depoimento a influência
exercida por compositores oriundos da música erudita no estilo Bossa Nova. Desse
modo, assim conforme mencionado por Luiz Tatit, o contato com novas harmonias
possibilitou aos compositores da Bossa Nova uma maior paleta de recursos, sobretudo
na busca pela condensação de elementos do texto poético em música.
Um exemplo facilmente encontrado de ideias e afetos do texto poético
expressos em música está no intuito de se representar a ideia de dor ou sofrimento por
meio de uma dissonância na composição, com exemplos mencionados tanto nas obras
da Seconda Pratica (página 47) quanto nas da Bossa Nova (página 110). Outro clichê
comumente encontrado é associação dos estados afetivos de alegria/tristeza à acordes
maiores ou menores. Este último procedimento mencionado, de relação entre aspectos
extramusicais com aspectos musicais também possui exemplos em nosso texto,
conforme pode ser encontrado na página 47, em relação à ária “Tu se morta” de
Monteverdi, e na página 110, em relação a canção “Chega de Saudade” de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes.
A esse respeito, Nikolaus Harnoncourt afirma:
A forma mais primitiva [de representar ideias extramusicais em
música] (...) é a simples imitação sonora de ruídos de animais ou de
160
instrumentos musicais particulares, aquela que os compositores
utilizaram desde o século XIII, passando pelos compositores ingleses
da nightingale music (música de rouxinol) por volta de 1600, por
vários compositores franceses, italianos e alemães, até chegar a
Beethoven e Richard Strauss (...). Durante séculos foram-se criando
fórmulas
musicais
constituindo
assim,
que
uma
provocam
ponte
determinadas
entre
imagem
associações,
e
música.
(HARNONCOURT, 1998, p. 151).
Desse modo, assim como as muitas práticas e estilos elencados por
Harnoncourt na citação anterior, Bossa Nova e Seconda Pratica se utilizam da tentativa
de criar uma representação imagética das ideias do texto por meio da utilização da
harmonia e da melodia, cada estilo a sua maneira, de modo que a música da canção
funcionasse como um tipo de paisagem do que é narrado no texto cantado.
161
Considerações finais
Indo um pouco além em nossa empreitada em busca de similaridades entre
os estilos mencionados, deparamo-nos por fim com a ideia da vital importância de dois
personagens nos estilos investigados – Tom Jobim e Claudio Monteverdi – bem como
um papel semelhante exercido por estes no desenvolvimento da Bossa Nova e da
Seconda Pratica, respectivamente. Nesse sentido, destacamos a notável genialidade de
ambos no trato musical, bem como a conciliação de práticas musicais distintas na
elaboração de seus fazeres e a imensa influência exercida pela obra de ambos nas
gerações posteriores.
Conforme investigamos neste último capítulo, Bossa Nova e Seconda
Pratica, apesar de muito distantes em termos cronológicos, culturais e geográficos,
possuem diversas semelhanças, aqui organizadas em quatro níveis distintos: 1) na busca
por um modo de cantar que se aproximasse da fala; 2) na busca pelas ideias de
naturalidade, objetividade e simplicidade manifestas no canto e na construção poéticomusical; 3) na instrumentação mais comumente utilizada e 4) no âmbito poéticomusical que busca exprimir as ideias e emoções do texto cantado por meio das relações
entre melodia e harmonia.
Como estilo, portanto, estes dois momentos podem ser reconhecidos como
um extremo na busca pela essência poética da palavra cantada, como um estado
essencial do canto acompanhado. Trata-se, portanto, de dois estilos irmãos, separados
pelo tempo e pelas circunstâncias, mas com anseios e ideais muito parecidos. Por fim,
reforçamos o intuito deste nosso estudo, tecer esta teia de paralelos, justifica-la e
apreciá-la.
162
Referências Bibliográficas
Livros
ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins Editora,
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[Mencionado na p. 69]
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•
“Chega de Saudade” (1958) de Tom Jobim e Vinícius de Moraes interpretada por
Elizeth Cardoso. Faixa do LP Canção do amor demais. Arranjo de Tom Jobim e
João Gilberto no violão. Link: https://www.youtube.com/watch?v=rZ13bQvvHEY .
[Mencionado na p. 105-106]
GABRIEL, O PENSADOR. Cachimbo da paz.
•
“Cachimbo da Paz” (1998) de Gabriel o Pensador, Bollado MC e Memê. Faixa do
CD Quebra-cabeça. Link: https://www.youtube.com/watch?v=UV__vMRhf7o .
[Mencionado na p. 95]
GAROTOS DA LUA. Amar é bom.
•
“Amar é Bom” (1951) de Zé Keti e Jorge Abdalla. Interpretação do grupo Garotos
da Lua com participação de João Gilberto. Faixa do Compacto Simples pelo selo
Todamerica (78rpm-5075) com participação de Maestro Cipó e sua Orquestra. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=vW5oR08zavo . [Mencionado na p. 114]
GILBERTO, João. Águas de março.
•
“Águas de março” (1972) de Tom Jobim. Interpretação de João Gilberto, faixa do
disco João Gilberto (1973). Link: https://www.youtube.com/watch?v=keZulqPcPag
[Mencionado na p. 116-117]
GILBERTO, João. Bim Bom.
•
“Bim bom” (1958) de João Gilberto interpretada por João Gilberto. Faixa do
Compacto Simples “Chega de Saudade”. Arranjo de Tom Jobim. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=yfy2ggYnxsk . [Mencionado na p. 128-129]
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GILBERTO, João. Chega de Saudade.
•
“Chega de Saudade” (1958) de Tom Jobim e Vinícius de Moraes interpretada por
João Gilberto. Faixa do Compacto Simples “Chega de Saudade”. Arranjo de Tom
Jobim
e
João
Gilberto
no
violão
e
voz.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=H5-1GwBwZ6U . [Mencionado na p. 105-112]
GILBERTO, João. Outra vez.
•
“Outra vez” (1958) de Tom Jobim. Faixa do LP Canção do amor demais, com
interpretação de Elizeth Cardoso e violão de João Gilberto. Arranjos de Tom Jobim.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=KG9GFEPEo_w . [Mencionado na p.
105]
GILBERTO, João. Sampa.
•
“Sampa” (1978) de Caetano Veloso. Faixa do disco João (1991), com interpretação
vocal
e
violão
de
João
Gilberto.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=5N6TObzMvC8 . [Mencionado na p. 117]
GILBERTO, João. Segredo.
•
“Segredo” (1947) de Herivelto Martins e Marino Pinto. Interpretação de João
Gilberto, faixa do CD João Gilberto – voz e violão (2000). Link:
https://www.youtube.com/watch?v=2pdw3hmHTto . [Mencionado na p. 118]
GOMES, Carlos. Modinhas e Canções.
•
CD “Minhas pobres canções”, interpretação de Niza de Castro Tank (Soprano) e
Achile Picchi (Piano). Link: https://www.youtube.com/watch?v=7nz8GUOkWBE
[Mencionado na p. 91-93]
JOBIM, Tom. Águas de Março.
•
“Águas de março” (1972) de Tom Jobim. Interpretação de Tom Jobim, faixa do
compacto simples Disco de bolso, o Tom de Jobim e o Tal de João Bosco (1972).
Link: https://www.youtube.com/watch?v=eJZN-GtCPio . [Mencionado na p. 116]
•
“Samba de uma nota só” (1960) de Tom Jobim e Newton Mendonça. Interpretação
de Tom Jobim, faixa do disco The composer of Desafinado plays (1963). Link:
https://www.youtube.com/watch?v=xeEWCSPp_C0 . [Mencionado na p. 151]
172
MONTEVERDI, Claudio. Cruda Amarilli.
•
“Cruda Amarilli” (1605) de Claudio Monteverdi. Peça do “Quinto livro de
madrigais”. Interpretação do The Consort of Musicke e Anthony Rooley. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=Q_o1xDJyiOU . [Mencionado na p. 40-43]
MONTEVERDI, Claudio. Sfogava con le Stelle.
•
“Sfogava con le Stelle” (1603) de Claudio Monteverdi. Peça do “Quarto livro de
madrigais”. Interpretação do The Consort of Musicke e Anthony Rooley. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=96pp4F5ZMY4 . [Mencionado na p. 44-45]
MONTEVERDI, Claudio. Tu se morta!.
•
“Tu se morta!” (1607), ária da ópera Orfeu de Claudio Monteverdi. Interpretação de
La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations, com direção de Jordi
Savall.
Excerto
mencionado
na
Dissertação
aos
8m01s.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=_7Wo-3DtI34 . [Mencionado na p. 47-48]
OLIVEIRA, Dalva de. Segredo.
•
“Segredo” (1947) de Herivelto Martins e Marino Pinto. Interpretação de Dalva de
Oliveira. Link: https://www.youtube.com/watch?v=JTjK3Mu002g . [Mencionado
na p. 97]
PALESTRINA, Giovanni Pierluigi da. Amor, Fortuna.
•
“Amor, fortuna” (1555), madrigal de Palestrina com texto de Petrarca. Peça do
Primeiro livro de Madrigais (1555). Interpretação do grupo Concerto Italiano,
regência
de
Rinaldo
Alessandrini.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=K6C3irycAFs . [Mencionado na p. 50-51]
PALESTRINA, Giovanni Pierluigi da. Missa do Papa Marcelo.
•
“Missa do Papa Marcelo”, Credo. (1562). Interpretação do grupo The Sixteen,
regência
de
Harry
Christophers.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=7cuk9bRa8zo . [Mencionado na p. 57-58]
PASCOAL, Hermeto. Música da aura. [Mencionado na p. 32-33]
•
“Pensamento Positivo” (1992), faixa do CD Festa dos Deuses de Hermeto Pascoal e
Grupo. Link: https://www.youtube.com/watch?v=JVajWqWdEco
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•
“Tiruliruli” (1984), faixa do CD Lagoa da Canoa, município de Arapiraca. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=EBfM1emRjQY
•
“Som
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Montand”,
vídeo.
Link:
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•
“Euridice” (1600), ópera de Jacopo Peri. Interpretação de Ensemble Arpeggio,
direção
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Riccardo
Farolfi.
Link:
https://www.youtube.com/watch?v=wNIv0gQMLQA . [Mencionado na p. 70-71]
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•
“Pierrot Lunaire” op. 21 (1912) de Arnold Schoenberg. Interpretação do
Opus21musikplus
Ensemble,
regência
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Konstantia
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•
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Castro
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faixa
do
CD
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Link:
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•
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