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EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Cristiene Adriana da Silva Carvalho Alexandre Fraga de Araújo [Organizadores] NOTA: Dado o caráter interdisciplinar desta coletânea, os textos publicados respeitam as normas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor. A responsabilidade pelo conteúdo dos textos desta obra é dos respectivos autores e autoras, não significando a concordância dos organizadores e da instituição com as ideias publicadas. © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos é punível como crime (art.184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (art. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). Cristiene Adriana da Silva Carvalho Alexandre Fraga de Araújo [Organizadores] EDUCAR É UM ATO POLÍTICO: EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Diálogo Freiriano Veranópolis - RS 2020 CONSELHO EDITORIAL Ivanio Dickmann - Brasil Aline Mendonça dos Santos - Brasil Fausto Franco Martinez - Espanha Jorge Alejandro Santos - Argentina Martinho Condini - Brasil Miguel Escobar Guerrero - México Carla Luciane Blum Vestena - Brasil Ivo Dickmann - Brasil José Eustáquio Romão - Brasil Enise Barth - Brasil EXPEDIENTE Editor Chefe: Ivanio Dickmann Financeiro: Maria Aparecida Nilen Diagramação: Renan Fischer FICHA CATALOGRÁFICA E244 Educar é um ato político: educação do campo e seus princípios. / Cristiene Adriana da Silva Carvalho, Alexandre Fraga de Araújo (organizadores) 1.ed. – Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020. ISBN 978-65-87199-25-2 1. Educação rural. I. Carvalho, Cristiene Adriana da Silva. II. Araújo, Alexandre Fraga de. 2020-0032 Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056 EDITORA DIÁLOGO FREIRIANO [CNPJ 20.173.422/0001-76] Av. Osvaldo Aranha, 610 - Sala 10 - Centro CEP 95.330-000 - Veranópolis - RS dialogar.contato@gmail.com www.dialogofreiriano.com.br Whatsapp: [54] 98447.1280 370.91734 (Edição 23) SUMÁRIO PREFÁCIO Maria Isabel Antunes-Rocha ...............................................................................................................7 APRESENTAÇÃO TECENDO REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POLÍTICA Cristiene Adriana da Silva Carvalho, Alexandre Fraga de Araújo .................................................13 LUTA ..................................................................................................................... 27 A MÍSTICA COMO ELEMENTO PEDAGÓGICO E POLÍTICO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO Cristiene Adriana da Silva Carvalho, Maria Isabel Antunes-Rocha .............................................29 POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DO PPP NO CONTEXTO DAS ESCOLAS E COMUNIDADES CAMPONESAS Elson Augusto do Nascimento, Valter Martins Giovedi ..................................................................51 O DIÁLOGO EDUCATIVO ENTRE MORTE E VIDA SEVERINA E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST) Maria Jéssica Marques de Lima ........................................................................................................69 O MOVIMENTO SEM TERRA COMO PROTAGONISTA DA CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO, E O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA DOS CAMPONESES Francisco do Livramento Andrade ................................................................................................... 79 A LUTA PELA LEITURA DA PALAVRA: TRABALHO E EDUCAÇÃO EM TRAJETÓRIAS DE MULHERES DO CAMPO Evely Cristine Pereira de Aquino, José Eustáquio de Brito, Vânia Aparecida Costa .................... 95 POLÍTICAS PÚBLICAS ........................................................................ 113 TRAJETÓRIAS DE VIDA, CAMINHOS PARA A ESCOLA: REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS CAMPESINOS Elizabeth Moreira Gomes, Maria Isabel Antunes-Rocha .............................................................. 115 5 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS UM OLHAR SOBRE A POLÍTICA PÚBLICA PARA A ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL EM MINAS GERAIS E O ENSINO APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA PARA ALUNOS DO CAMPO Iracema Neves Lima, Kyrleys Pereira Vasconcelos ........................................................................137 UMA ANÁLISE DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E AS PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS COM A BNCC Adriana Rodrigues dos Santos Brito .............................................................................................. 153 O CONCEITO DE IDENTIDADE NAS DIRETRIZES CURRICULARES DA EDUCAÇÃO DO CAMPO DO PARANÁ Vanessa Bomfim, Rodrigo dos Santos ............................................................................................. 165 EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL: CONTEXTO HISTÓRICOPOLÍTICO Maria Aparecida Afonso Oliveira, Eliano de Souza Martins Freitas .......................................... 175 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS .......................................................... 195 DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS SUJEITOS DE UMA ESCOLA DO CAMPO ATINGIDA PELO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO EM MARIANA/MG Adriane Cristina de Melo Hunzicker, Maria Isabel Antunes-Rocha............................................ 197 UMA LEITURA DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE CAMPESINA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO Cristhianne Antunes David Oliveira, Maria de Fátima Almeida Martins, Nayara Cristine Carneiro do Carmo ........................................................................................................................... 211 A COMUNICAÇÃO POPULAR COMO UM ATO DE EDUCAÇÃO E CORAGEM Decanor Nunes dos Santos, Maria Aparecida Afonso Oliveira ................................................... 229 SOBRE OS AUTORES ........................................................................................................... 249 ÍNDICE REMISSIVO ............................................................................................................. 255 6 PREFÁCIO Com muita honra recebi o convite para prefaciar os livros “Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios” e “Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade” organizados por Cristiene Adriana da Silva Carvalho e Alexandre Fraga de Araújo. Esses dois volumes surgiram a partir da Coleção Educar é um Ato Político, criada pela Editora Diálogo Freiriano. A perspectiva editorial da Coleção é publicar trabalhos de sujeitos interessados em vincular a educação com a transformação social a partir da compreensão de que, para esta caminhada, se faz necessário identificar, analisar e propor caminhos para a superação das condições geradoras de injustiças. Ao receber o convite me deparei com o desafio de encontrar um fio condutor para escrever um texto que se constituísse como de análise crítica e propositiva com relação aos trabalhos apresentados. Resolvi então fazer o percurso de uma pesquisadora quando se encontra diante das informações obtidas no trabalho de campo. Fazer uma imersão, por meio da leitura densa e atenta de cada capítulo, e extraí daí os caminhos possíveis de serem trilhados. Á medida que lia os títulos, os textos e os currículos dos autores fui me aproximando dos seus contextos, de suas preocupações e de suas intencionalidades. A primeira decisão diz respeito a produção de prefácios diferentes para os dois livros. Isto porque a demanda inicial dos Organizadores era a produção de um único prefácio, mas em algum ponto do meu contato com os textos considerei que seria mais pertinente elaborar prefácios distintos, pois a relevância dos textos apresentados demandava olhares mais focalizados. Assim, fiz a discussão do livro Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios” buscando referência no processo de construção da Educação do Campo a partir dos seus princípios. E no prefácio do livro Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade” focalizei no diálogo que o Movimento da Educação do Campo vem construindo com o Movimento da Pedagogia da Alternância, com as universidades e com o conceito representações sociais em movimento. Os títulos dos livros me guiaram para o diálogo com o processo histórico de construção da Educação do Campo como um movimento de luta, como um território de práticas e de conquistas na dimensão da esfera pública. Fiz a pergunta: como os trabalhos apresentados se inscrevem nesse território? A partir de qual olhar, em que momento de sua história, com quais reflexões, a partir 7 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS de quais princípios? Para empreender essa tarefa achei necessário apresentar uma breve síntese de como entendo o processo de construção da Educação do Campo bem como a sistematização dos seus princípios. O Movimento da Educação do Campo, criado por volta de 1996, com a participação de movimentos sociais e sindicais, de universidades e do Movimento da Pedagogia da Alternância proporcionou a emergência de uma mobilização nacional em torno da luta pela criação de políticas públicas para superar a situação precária das escolas e implantar um projeto educacional que atendesse aos interesses da população do campo trazendo para debate um tema que para muitos já estava finalizada: a reivindicação por escolas localizadas no contexto campesino. Em pouco mais de duas décadas o Movimento conseguiu se articular no território nacional por meio de fóruns, redes, comissões, núcleos, grupos, dentre outros, organizados em universidades, movimentos sociais e sindicais, secretarias municipais e estaduais de educação, escolas, organizações governamentais e não governamentais. Ao longo de 24 (vinte e quatro) anos conquistou políticas públicas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), o Programa Nacional das Licenciaturas (PROCAMPO), o Programa Nacional do Livro Didático para o campo (PNLD Campo) e o Programa Escola da Terra. E podemos acrescentar um conjunto expressivo de decretos, resoluções, diretrizes e regulamentos de âmbito federal que se capilarizou em marcos legais criados nos estados federativos e nos municípios. Esta capilaridade vem garantindo a realização de seminários, congressos, marchas, pesquisas, cursos de graduação e pós-graduação, projetos de alfabetização de jovens e adultos, formação técnica em diferentes áreas, notadamente na agroecologia, publicação de livros, artigos e revistas que vem possibilitando a constatação de que já se pode falar na Educação do Campo como referência teórica e conceitual. Isto porque ao longo de sua construção observa-se que se consolidam princípios, conceitos e práticas que estruturam um campo organizado de conhecimentos e procedimentos que mostram serem eficazes para solucionar os desafios relacionados a educação escolar no contexto campesino. O grupo que se articula em torno do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo (NEPCampo/UFMG) sistematizou três princípios que vem orientando a produção e análise de dados de pesquisa, de projetos de extensão, de livros didáticos, dentre outros. São eles: protagonismo dos sujeitos e dos seus contextos; a escola como um direito; projeto de escola articulado a um projeto de campo e de sociedade. O protagonismo dos sujeitos e dos seus contextos nos remete a efetiva participação dos sujeitos do campo bem como dos seus modos de produção e reprodução da vida nas práticas curriculares da escola, aí incluindo as atividades de sala de aula, a gestão, o livro didático e os projetos. A escola como um direito 8 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS diz respeito à compreensão de que o acesso, permanência e saída do percurso escolar deve ser realizado em um ambiente com infraestrutura física, tecnológica e pedagógica que ofereça condições para desenvolver uma ação educativa que possa de fato contribuir para que as crianças, jovens e adultos possam ampliar suas possibilidades de construir uma existência digna. A vinculação do projeto de escola a um projeto de campo e de sociedade remete a necessidade de garantir práticas pedagógicas que ampliem e fortaleçam as condições econômicas, políticas, sociais e culturais para a produção e reprodução do modo de vida dos povos campesinos. Nos dois livros considerei como eixo integrador a reflexão sobre a produção do conhecimento como um dos instrumentos da luta pela superação do modelo societário injusto no qual vivemos. Isto porque os textos são relatos de resultados de pesquisas desenvolvidas como monografias, dissertações e teses no contexto da universidade assumindo como referência os marcos teóricos, conceituais e metodológicos que vem sendo construídos no contexto do Movimento Pela Educação do Campo. A produção do conhecimento na Educação do Campo vincula-se à compreensão de que o conhecimento científico também é um produto histórico e social e, como tal, inserida em uma sociedade historicamente marcada por conflitos, desigualdades, injustiças e contradições. Nesse sentido a pesquisa não é uma atividade neutra, elas expressam as posições assumidas pelo pesquisador sobre como entendem e suas propostas em torno desta forma de organização da sociedade. Na área da Educação vamos encontrar o cerne desta questão, tendo em vista um dos objetos do seu estudo diz respeito a produção do conhecimento. Fazer pesquisa como uma atividade que se pretende emancipadora passa possivelmente pela apropriação de um conhecimento que permita compreender a origem, a natureza e a função social dos conhecimentos e das formas de conhecer que são hegemônicas na atualidade, produzindo, ao mesmo tempo, novos conteúdos, novas metodologias e novas intencionalidades para os resultados a serem obtidos. Nesse sentido, a Educação do Campo encontra-se desafiada como um território produtor de conhecimentos, entendendo essa prática como transformadora e comprometida com a superação das formas de organizar a prática escolar na perspectiva de incluí-la como parte de uma totalidade social. Nesse diálogo, é imprescindível a problematização da realidade, a revalorização dos conhecimentos sociais, a identificação e análise dos mecanismos que mantém a negação do direito à educação e das práticas que buscam garantir esse direito, a geração e socialização de tecnologias que sejam adequadas à diversidade dos territórios nos quais se encontram os sujeitos em formação, avançando em direção à transformação da realidade social das famílias camponesas. 9 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Sendo assim, peço licença aos autores para percorrer os caminhos dos seus textos e entender como lidaram com os desafios da produção do conhecimento tendo como referências os princípios gerados no Movimento de luta pela Educação do Campo. Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios Para organizar a discussão fiz a discussão a partir dos três princípios: protagonismo dos sujeitos e dos seus contextos, escola de direito e projeto de escola comprometido com o projeto de campo e de sociedade buscando, como síntese, trazer a reflexão sobre a produção do conhecimento. Quem são os sujeitos que produzem esse conhecimento? São 23 pesquisadores produzindo 13 capítulos. Mulheres e homens. Estudaram e atuam em regiões como os Estados de Mato Grosso, Minas Gerais, Espírito Santos, Maranhão e Paraná. Uma boa parte deles atua como docentes nas escolas públicas de Educação Básica e Educação Superior, outros em assessoria à movimentos sociais e sindicais, e um grupo exerce funções de coordenação pedagógica em secretarias municipais e estaduais de educação. Mas é possível encontrar uma mesma pessoa envolvida nas três funções, ou em pelo menos duas delas. A maioria dos autores são camponeses ou sujeitos com vinculação de longa duração com a educação em contextos campesinos. Todos fazem referência aos vínculos com grupos de pesquisas em instituições de educação superior, seja de âmbito estadual ou federal. Alguns textos foram produzidos com parceria entre professores da Educação Superior e da Educação Básica, demostrando uma relação de autoria entre professores orientadores e orientandos. Bem, nessa descrição consigo ver a presença de sujeitos que identifico como vinculados a uma identidade socioterritorial campesina. Ainda que muitos não se façam auto declaração é possível ver que assumem compromissos vinculados aos sujeitos e ao território camponês. Os títulos dos artigos evidenciam também a presença de temáticas vinculadas a esse universo. Numa tentativa de síntese pode citar: desafios para fazer frente a políticas públicas e conteúdos curriculares que excluem os camponeses do direito à educação; a dimensão educativa presente nos movimentos sociais e suas contribuições para a construção de uma pedagogia em movimento; a situação dos camponeses no contexto de rompimento de barragens em regiões de mineração; a preocupação com os saberes socialmente produzidos; a construção de tecnologias necessárias para garantir redes de comunicação comprometidas com a transformação social; e a tematização da juventude. Por aqui podemos sinalizar que o livro evidencia, seja por meio dos seus autores, seja por meio dos sujeitos e temas abordados, um exercício prático do princípio do protagonismo dos sujeitos e dos seus contextos. Ao longo dos 10 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS textos vi sujeitos que estão em luta, pela escola, pelos estudantes, por sua profissão, pelo campo e por uma sociedade justa, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais e também sustentável nas relações com a natureza. E na caminhada do diálogo com os princípios retomo a luta pela escola como um direito. Esta é a centralidade de todos os textos. Desde a discussão sobre os conteúdos escolares como práticas artística e de leituras, passado pela discussão sobre políticas públicas e projetos pedagógicos, dialogando com os movimentos sociais como referências para a construção de uma pedagogia transformadora e com as lutas dos sujeitos atingidos pelo rompimento de barragens vamos caminhando em um conjunto sistematizado de reflexões e proposições que nos aproximam dos desafios e também das possibilidades de construirmos uma escola digna que seja no/do campo. Em situação de profunda admiração pela consistência e contribuições que o livro traz para fortalecer a luta pela Educação do Campo vejo que em vários artigos os autores incluíram a universidade na tríade escola-campo-sociedade. Esta é, certamente, uma das grandes contribuições do conjunto desta obra. O curso de Licenciatura em Educação do Campo, os projetos de alfabetização de jovens e adultos e as práticas de pesquisas vão inserindo a Educação Superior como escola e, portanto, como território por onde é necessário construir um projeto pedagógico ancorado em um projeto de campo e de sociedade numa perspectiva emancipatória. Está presente nas narrativas as contradições entre as expectativas das pessoas envolvidas com a Educação do Campo e os limites institucionais da universidade. A gestão em parceria, o planejamento construído em um formato participativo, a colaboração de diferentes sujeitos, vai mostrando um cenário de que a Educação do Campo, com sua história, seus conceitos e suas práticas tem muito a contribuir para que a universidade possa de fato assumir seu papel como uma instituição vinculada a luta por uma sociedade mais justa e sustentável. As vozes dos educadores/pesquisadores estão plenas de sentidos e significados. Há muito o que escutar. São trajetórias marcadas pela dificuldade para estudar, pela inserção profissional com vínculos precários, pela falta de condições materiais para desenvolver as atividades. Mas o que se escuta são docentes engajadas, plenos de entusiasmo, de ideias, de vontade de superar os desafios. Em alguns momentos a leitura se torna tão viva, que como leitora a gente se sente transportada para a escola, para o campo, para a lida diária no campo. Temos muito a aprender no livro Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios. É um livro que nos convida para uma leitura atenta, comprometida e que nos desperta para escutar o campo em suas especificidades, mas sem perder de vista suas relações com a totalidade sóciohistórica. Com certeza será leitura obrigatória para todos os lutadores da Educação do Campo que 11 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS se comprometem com um projeto de campo e de sociedade na perspectiva da emancipação e da sustentabilidade. Julho/2020 Maria Isabel Antunes-Rocha Professora Titular da Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo (NEPCAMPO/UFMG). Membro da Comissão Estadual de Educação do Campo de Minas Gerais. Desenvolve projetos de pesquisa e extensão com formação e prática de professores na perspectiva da Educação do Campo e da abordagem das representações sociais em movimento 12 APRESENTAÇÃO TECENDO REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO DO CAMPO COMO UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO POLÍTICA Cristiene Adriana da Silva Carvalho Alexandre Fraga de Araújo Esta obra tem como objetivo apresentar reflexões sobre a relação que se estabelece entre a Educação do Campo e as formas de se pensar e construir a política na sociedade. Tal proposta nos convida a refletir sobre as formas com que professores, alunos, movimentos sociais e Universidade vêm construindo um panorama de luta pela Educação que engloba desde a sua gênese. No processo histórico de busca pelo acesso à escola enquanto direito básico, nota-se a importância da participação dos sujeitos coletivos. Tais sujeitos vêm organizando-se coletivamente a fim de demandar a criação e efetivação de políticas públicas que permitam que todo sujeito do Campo tenha acesso a quaisquer níveis de ensino e que esse ensino seja construído com a intencionalidade de fortalecer um projeto de sociedade voltado para a participação do homem do campo na escola, cultura, trabalho e toda as instâncias sociais que permitam condições de vida dignas. A questão que buscamos responder com esta obra foi: Como podemos pensar na materialidade da Educação do Campo como um ato político? Nosso caminho ao responder esta questão foi o de tentar enxergar quais as proposições, limites e desafios presentes nesta materialidade, e possíveis de serem observadas. Para trilhar este caminho, consideramos as questões históricas dos movimentos de luta, as metodologias e práticas de ensino, bem como os processos formativos que podem ser apreendidos a partir dessas leituras. No exercício que nos compete de apresentarmos esta produção, é de suma importância trazermos ao leitor o contexto que sucedeu o seu processo de criação. No início do ano de 2020, os reflexos do desmonte no cenário educacional brasileiro desenhavam um quadro de crescente desvalorização docente associada a propostas de condenação da manutenção de uma educação crítica. A busca por uma Educação neutra, defendida pelos Ministros da Educação após as eleições de 2018 e por membros de bancadas políticas associadas à projetos de empresariamento educacional buscava culpabilizar a abertura de um pensamento crítico, associando-o à formação de militantes. Entendendo neste contexto, a militância com algo negativo, pensar a Educação como um ato político 13 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS passou a ser visto como uma pauta política a ser exterminada, dando-se espaço para se construir propostas de Educação conteudista, bancária e voltada aos interesses do capital. Um dos momentos simbólicos de tal crise na Educação brasileira, que revelava como um reflexo da crise política na qual o país estava inserido foi a tentativa de se retirar o nome de Paulo Freire como o simbólico patrono da Educação. Se por um lado educadores, pais e a sociedade em geral reconheciam a importância do legado freiriano para se pensar a Educação na intencionalidade de se promover a autonomia e ampliar horizontes tendo como base a formação crítica, por outro lado uma parcela da população influenciada por segmentos políticos conservadores, via nesta proposta educativa um perigo à formação de crianças, jovens e adultos. Por mais que se argumentasse sobre o impacto do pensamento crítico de Freire nas práticas pedagógicas transformadoras dos professores, bem como seu reconhecimento junto à comunidade acadêmica internacional, era visível o incômodo que o pensamento de uma Educação articulada à um pensamento político causava em alguns setores da sociedade. Vivenciava-se constantemente a ameaça do sonho simples e libertador de Educar para compreender e colocar-se de forma crítica no mundo, independente da área ou nível de formação. Nos últimos anos assistiu-se à construção de um cenário inimaginável em que a Educação brasileira foi paulatinamente ganhando o descrédito, sendo sempre candidata a perder investimentos nos cortes políticos. Pensava-se no ato educativo como um gasto e a cada passo assistimos à ameaça de privatização da escola pública diante de propostas de sucateamento. Os cortes orçamentários decorrentes da emenda constitucional 951 construíram um cenário de caos no contexto da educação pública que seria “salva” por corporações que hipoteticamente trariam para a Educação básica, secundária e superior a solução para tais problemas. Professores e membros da sociedade questionavam o interesse político destes grupos, mas o desmonte seguia e segue inevitável fazendo o cenário educacional caminhar em direção a retrocessos que causaram e causam constantes cortes aos recursos de Universidades públicas, desqualificação do trabalho docente e exclusão de alunos que se viam parte dos cortes com fechamentos de escolas, junção de turmas ou esvaziamento /exclusão de políticas públicas voltadas para a área. Ao pensarmos na Educação do Campo tal cenário agravou-se ainda mais. Recorremos ao texto “A Educação do Campo e o fim das políticas públicas como as conhecemos: questões para reflexões de futuro” de autoria de Clarice Aparecida Santos, obra que nos ajuda a analisar os fatos e a intencionalidade 1 BRASIL, Câmara dos Deputados. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, p. 2-2, 2016. 14 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS política presente neste processo de regressividade das políticas públicas. A extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) como parte dos primeiros atos presidenciais no ano 2019, sob o renomeação para Secretaria de Modalidades Especiais – SEMESP foi crucial para diminuir a autonomia no processo de elaboração de projetos voltadas para a Educação do Campo. Tal exclusão pode ser percebida justamente a partir da análise do nome de tal secretaria onde a diversidade foi excluída perdendo não só o espaço simbólico como também o campo de atuação nas políticas públicas. Ao excluir o termo “Diversidade” demonstra-se, por um lado, o desprezo dos novos donos do poder pelo respeito e pelo reconhecimento de uma diversidade conquistada pelos povos originários, tradicionais e do campo e, por outro lado, o atendimento dos interesses do capital na educação, a quem a eliminação de todo e qualquer direito reduz os custos operacionais da “empresa” educacional, reduzindo demandas orçamentárias e liberando orçamento para o cumprimento dos compromissos da dívida pública com o capital. (SILVA, 2019, p. 506) Além disso a extinção do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) através do Decreto nº 10.252, de 20 de fevereiro de 2020, em uma quinta-feira às vésperas do feriado de carnaval, colocava fim nos mais de vinte anos de história de uma proposta que foi crucial para a formação do povo camponês em Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional, Superior, Pós Graduação e Residência Agrária. Neste contexto a Editora Dialogar lançou no mês de fevereiro a chamada para a construção coletiva de uma coletânea chamada “Educar é um ato político”. Tal proposta viria acolher pesquisadores, professores, estudantes e todos aqueles interessados a tecer contribuições sobre os processos educativos comprometidos com a transformação social a partir de um pressuposto crítico, político e inclusivo. Ao visualizar tal chamada percebemos que a coletânea se configurava como um local perfeito para trazer discussões políticas sobre a materialidade da Educação do Campo, considerando o seu percurso histórico e a articulação desta com os debates construídos pelos movimentos sociais de luta pela terra. Nada mais justo do que falar sobre a Educação do Campo como um ato político, principalmente por considerarmos a gênese da luta dos Movimentos Sociais como demandantes de políticas públicas de propostas coerentes de Educação para o território campesino. Após visualizar tal chamada entramos em contato com pesquisadores que nos eram conhecidos, dadas às suas produções dentro do contexto da Educação do Campo. Tal contato fez-se no sentido de divulgação para aqueles que tivessem trabalhos que abordassem a questão política e quisessem submeter suas propostas de produção pudessem publicar pesquisas relevantes neste cenário. Neste momento também havíamos submetido nossos textos pessoais para 15 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS a análise da coleção e pensávamos em envolver outros trabalhos relacionados ao mesmo objeto de pesquisa. Diante da ciência sobre o considerável número de trabalhos submetidos por estes pesquisadores entramos em contato com a editora a fim de verificar a possibilidade de alocação de todos os artigos que tratavam da temática Educação do Campo em um único volume da coleção. Tal proposta ousada, e ao mesmo tempo inspirada pela Educação do Campo que nos ensinou a trazer o protagonismo para os terrenos de pesquisa/trabalho, revelava-se também como uma tentativa de trazer aos leitores um panorama das pesquisas da área e de facilitar a alocação temática de artigos pela editora, uma vez que dentro da coleção seriam acolhidos artigos que abordassem a Educação como um ato político em diferentes contextos educativos. Com um acolhimento excepcional, recebemos a resposta positiva da editora Dialogar sobre a nossa proposta de organização de todos os artigos que discutem a Educação do Campo dentro de um único volume da coleção. Juntamente com isso, recebemos por parte da editora, uma proposta de que organizássemos uma nova obra especialmente voltada para a Educação do Campo, não sendo mais parte da coletânea anterior. A proposta desta nova obra seria gestada por nós e desta forma teríamos mais autonomia para a organização do formato da produção. Neste momento definimos junto à editora que tal produção seria intitulada: “Educar é um ato político: Educação do Campo” a fim de manter o foco inicial de pensarmos um um contexto de Educação crítica que abordasse as materialidades da Educação do Campo. Em seguida tivemos a ideia de lançarmos junto à editora uma nova chamada para submissão de artigos para que pesquisadores de todo o Brasil pudessem se inscrever para participar da produção. Com isso acreditávamos na importância de ampliar os olhares sobre a temática para que outros pesquisadores, além daqueles que haviam se inscrito inicialmente, pudessem construir um patamar de produção que retratasse a multiplicidade de debates existentes sobre a Educação do Campo. Na primeira chamada recebemos trabalhos pertencentes a dois estados brasileiros e na segunda chamada tivemos grande adesão de pesquisadores provenientes de outros 6 estados, o que foi um elemento importante para pensarmos a obra a partir de categorias que englobassem a diversidade presente no contexto da Educação do Campo. Agora o nosso livro teria a representação de 4 regiões do Brasil: Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Sul. Tal fato, além de trazer outros tantos sujeitos que debatiam elementos relacionados à Educação do Campo, nos presenteou com um grande número de trabalhos o que nos colocou diante da impossibilidade de reunirmos toda a produção em um único livro. Desta forma, após o processo de leitura e análise das obras, percebemos que além de dividir os artigos em duas obras, necessitaríamos fazer com que 16 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS estas fossem complementares e tivessem eixos temáticos que incluíssem as principais discussões sobre o contexto da Educação do Campo no país. Deste processo de reflexões nasceram as duas obras: "Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios" e "Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade”. A construção dos novos nomes das obras veio como resposta a nosso inquietação ao perceber que a simples divisão das obras em volumes 1 e 2 não contemplava as particularidades de contexto, temas e articulações teóricas presentes em cada uma. Sendo assim na obra: "Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios" trouxemos como eixos temáticos, as categorias de luta, políticas públicas e práticas pedagógicas. Tais categorias perpassam os princípios da Educação do Campo desde o processo de articulação das lutas dos movimentos sociais, a construção de políticas públicas bem como os impactos destas nas práticas pedagógicas das escolas do Campo. Já na obra: "Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade' trouxemos como eixos temáticos a alternância, Universidade e as representações sociais dos sujeitos sobre tais processos formativos. Aqui pensamos a alternância a partir do seu contexto e das questões teóricas, metodológicas e dos seus processos formativos presentes em diversos ambientes, inclusive na Universidade. A partir disso as Representações Sociais são pensadas como um referencial teórico metodológico que permite analisar as formas de pensar, sentir e agir dos sujeitos nestes contextos. Sobre a Organização da obra Este livro tem como objetivo discutir as possibilidades e limites da dimensão política no ato educativo, buscando compreender tais práticas a partir da heterogeneidade, tendo como perspectiva o contexto da Educação do Campo. A presença de 39 pesquisadores, sendo destes 27 autoras e 12 autores, nos dá a ideia da dimensão da experiência e dos debates aqui presentes. Esses autores são vinculados à diversas instituições de ensino ou coletivos sociais, tais como Universidades e Institutos Federais, Redes Municipais e Estaduais de Ensino, Associação Mineira das Escolas Famílias Agrícolas - AMEFA, Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais - FETAEMG, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo - RACEFFAES. A presença de pesquisadores, professores de diversos níveis de ensino e coletivos nos mostra a importância de contemplar vozes que garantam uma representatividade dos sujeitos que constroem a Educação do Campo. Vozes que ecoaram a partir de 8 Estados brasileiros (ES, MA, MG, MS, PE, PR, RN, RS), elemento 17 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS que trouxe um olhar para a articulação da Educação do Campo no Brasil e de quais tensionamentos e proposições que vêm se configurando nesta prática. Para escrever o prefácio desta obra, convidamos a professora Maria Isabel Antunes-Rocha, doutora em Educação com pós-doutorado na Universidade de São Paulo (UNESP) de Presidente Prudente, professora do Departamento de Ciências aplicadas à Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Sua atuação comprometida com as lutas dos sujeitos do Campo materializada em projetos de ensino, pesquisa e extensão e registrada através da publicação de artigos, livros e orientações acadêmicas no âmbito do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo (NEPCampo/FAE/ UFMG), vem influenciando e fortalecendo pesquisadores, professores e coletivos de luta pela Educação. Sua contribuição junto aos movimentos sociais, questões agrárias formação e prática docente foi um elemento decisivo para a criação do primeiro curso superior do Brasil em Educação do Campo, formação que veio posteriormente a ser referência para a criação das mais de 43 licenciaturas em Educação do Campo do Brasil. Optamos por criar um texto único de apresentação para os dois livros, compreendendo que tais obras nasceram de uma mesma proposta e podem/devem ser lidas como complementares. Dessa forma traremos aqui para o leitor um percurso introdutório das temáticas e trabalhos aqui construídos, a fim de que tenha o panorama geral dos elementos elencados na produção bem como do coletivo dos autores aqui presentes. Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade A obra “Educar é um ato político: Educação do Campo, Pedagogia da Alternância e a Universidade” é composta por 13 trabalhos que englobam a intencionalidade da discussão dos aspectos metodológicos e teóricos que permeiam práticas da Educação do Campo em contextos de Alternância e da Universidade buscando também levantar reflexões sobre as Representações Sociais que se configuram como as formas de pensar, sentir e agir dos sujeitos nestes contextos. No Eixo teórico Alternância foram alocados quatro artigos onde se percebem a discussão sobre a alternância em contextos de formação universitária, bem como de formação básica nas Escolas Família Agrícola - EFAS. Para tal, iniciamos esta seção temática com o texto “Formação por Alternância na Licenciatura em Educação do Campo da UFMG” do autor João Batista Begnami que aborda elementos metodológicos e conceituais da alternância no contexto da formação de professores do Campo dialogando com o Materialismo Histórico e Dialético através do conceito da práxis como princípio educativo. E seguida o texto “Mística: Um projeto para os estudantes da Escola Família Agrícola 18 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Bontempo” das autoras Paula Mendes Costa, Cristiene Adriana da Silva Carvalho e Nayara Silva de Carie traz a alternância como contexto de uma pesquisa que analisou as repercussões de um projeto que promoveu discussões sobre a presença da mística no processo de formação de estudantes da EFA. Temos na sequência, o artigo “Jovens residentes no meio urbano e estudantes de uma Escola Família Agrícola: analisando a escolha pelo estudo na EFA Bontempo – Itaobim/MG” das autoras Jeane Soares da Paixão e Álida Angélica Alves Leal, que dialoga com o artigo anterior ao tecer reflexões a partir do mesmo contexto na EFA Bontempo. Nesse texto, temos as categorias de urbano e rural presentes nos locais de moradia e de estudo dos estudantes, que nos ajudam a compreender as relações dos sujeitos com o território campesino e o impacto dessas em suas trajetórias de escolarização. Por fim, o artigo “As TICs no contexto das Escolas do Campo: desafios e possibilidades em dois CEFFAs do Norte capixaba” do autor Alexandre Fraga de Araújo discute o acesso e o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação, trazendo questões sobre a presença das tecnologias no processo formativo e o diálogo dessas com a formação por Alternância desenvolvida pelos CEFFAs, a partir de um estudo de caso. Em seguida trazemos o eixo Universidade que contempla quatro artigos que nos permitem perceber o contexto acadêmico como um campo de formação de sujeitos em constante diálogo com o terreno campesino e suas questões. Para tal, iniciamos o eixo temático com o texto “Questão agrária e Educação na história do Vale do Jequitinhonha: Um diálogo com a Licenciatura em Educação do Campo da UFMG”, tecido pelas autoras Nayara Cristine Carneiro do Carmo, Maria de Fátima Almeida Martins e Cristhianne Antunes David Oliveira. O texto buscou analisar as repercussões da formação universitária em egressos da Licenciatura em Educação do Campo, percebendo-se a dialética entre tal formação e o contexto social campesino do Vale do Jequitinhonha. Em seguida é apresentado o texto “Política pública em Educação do Campo: o PRONERA e a Pedagogia da Alternância na visão dos graduandos em Agronomia” das autoras Luci Aparecida Souza Borges de Faria e Maria Célia Borges. A proposta busca uma análise das políticas de formação, fazendo um recorte dentro do contexto do PRONERA, e em diálogo com o contexto da formação em Alternância. Por similaridade temática inserimos na sequência o artigo “ A Educação do Campo e o protagonismo dos Movimentos Socioterritoriais camponeses no PRONERA: estudo de caso do CEGeo ” do autor Rodrigo Simão Camacho por compreender esse que propunha a análise de um curso superior tendo como diálogo a política pública do PRONERA. Neste caso em especial, o papel dos movimentos socioterritoriais é enfatizado buscando-se perceber a consolidação de tal atuação a partir do contexto do Curso Especial de Graduação em Geografia (CEGeo). Por fim, o último artigo deste eixo, “A Licenciatura em Educação 19 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS do Campo como experiência coletiva de transformação social” da autora Fátima de Lurdes Barcellos da Rosa dialoga com todos os trabalhos desta seção ao apresentar o diálogo entre formação universitária e transformação social como sendo uma dimensão política que nos permite apreender a importância de se considerar a formação dos sujeitos do Campo, inseridos em um projeto emancipatório de transformação das contradições presentes no território campesino. Por fim, trazemos o Eixo temático das Representações Sociais, por compreender que este permite a compreensão de terrenos que integram as formas de pensar, sentir e agir dos sujeitos, promovendo assim uma análise profícua do contexto da universidade e formação ali construída, das práticas de formação em alternância e das transformações sociais que estes promovem nos contextos dos sujeitos. Ressaltamos que a Teoria das Representações Sociais, referencial teórico adotado pelas cinco pesquisas deste eixo tem tido expressiva produção dentro do contexto da formação e território campesino brasileiro, e por isso acreditamos ser de fundamental importância reservar espaço para registrar tal aproximação teórica que vem sendo realizada. Dentro deste contexto o primeiro artigo alocado para esta seção foi: “As formas de sentir, pensar e agir no trânsito das Representações Sociais da escrita: a alfabetização, as escrituras de mulheres campesinas e a universidade pública” da autora Welessandra Aparecida Benfica. Tal trabalho propõe uma análise das escritas a partir das vivências dos sujeitos no contexto de formação na Universidade enfatizando a partir dos dados apresentados o trânsito de tal escrita nas espacialidades e temporalidades dos sujeitos e seu componente de transformação social. Em seguida alocamos o artigo “Espaço ou território? O que dizem os egressos do curso de Licenciatura em Educação do Campo da FAE/UFMG sobre o campo” das autoras Ellen Vieira Santos e Maria Isabel Antunes-Rocha. Tal trabalho apresenta a formação da Universidade como um contexto gerador de mudanças na vida dos egressos da Licenciatura em Educação do Campo especialmente ao possibilitar uma nova da Educação como direito para os sujeitos. Na sequência trazemos o artigo “ Professores e Educação do Campo do Município de Francisco Sá-MG : um estudo na perspectiva da Teoria das Representações Sociais” das autoras Alessandra de Jesus Meira Leão e Maria Isabel Antunes-Rocha que discute o trânsito das Representações Sociais de professores do Município de Francisco Sá sobre a Educação do Campo, percebendo-se transformações significativas nas formas de pensar, sentir e agir destes sujeitos a partir de elementos impulsionadores de mudanças nos sujeitos e em suas práticas. O próximo artigo deste eixo intitulado “Atuação dos professores egressos do curso de Licenciatura em Educação do Campo e suas Representações Sociais sobre o Campo” dos autores Naiane Dias Nunes, Maria Isabel Antunes-Rocha e Luiz Paulo Ribeiro discute as trajetórias de vida dos sujeitos egressos da Licenciatura em Educação do Campo e a 20 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS sua formação na Universidade como elemento gerador de transformações. Dentre tais transformações nota-se a questão da identidade forjada na luta pela escola do Campo como um fator de transformação de suas práticas como professores. Por fim o trabalho “Representações Sociais no contexto das EFAs: uma análise de duas pesquisas no âmbito da Educação do Campo” dos autores: Érica Justino, Leonardo de Miranda Siqueira e Maria Isabel Antunes-Rocha. Tal discussão centra-se nas Representações sociais de campo/rural de professores que atuam em escolas dentro do contexto da Pedagogia da Alternância no Brasil e no Peru. Tal trabalho congrega as discussões presentes em todo o eixo das Representações Sociais bem como também ilustra as discussões presentes em toda a obra ao levantar discussões valiosas sobre a elaboração de estratégias pelos professores para a orientação das políticas públicas dentro de um contexto que dialogue com as necessidades do território campesino. Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios Para a obra “Educar é um ato político: Educação do Campo e seus princípios” reunimos 13 trabalhos que discutem em linhas gerais as 3 categorias: Luta, Políticas públicas e Práticas pedagógicas compreendendo que estas nos permitem um olhar de totalidade sobre os princípios da Educação do Campo. Essa escolha dialoga com o contexto histórico da Educação do Campo bem como com nosso desejo de compreendermos que as práticas pedagógicas presentes nas Escolas do Campo hoje carregam a historicidade das conquistas dos marcos legais que nos permitiram olhar para a Educação do Campo como direito fruto das lutas dos movimentos coletivos de luta pela terra. Dessa forma, a organização desta obra é um esforço de percorrer caminhos de protagonismo e resistência que nos ajudam a compreender e analisar o cenário da Educação do Campo. Para tal caminhada nada mais justo do que propor que o leitor inicie sua leitura pela categoria Luta que contempla 5 trabalhos. O primeiro trabalho desta seção intitulado “A mística como elemento pedagógico e político no contexto da Educação do Campo” das autoras Cristiene Adriana da Silva Carvalho e Maria Isabel Antunes-Rocha foi inserido propositalmente nesta abertura a fim de introduzir a intencionalidade de uma mística inaugural, uma vez que tal proposta elenca elementos simbólicos, políticos, estéticos e identitários se materializam pedagogicamente na Educação do Campo. Tais elementos nos convidam a pensar na luta como categoria pedagógica que congrega os princípios da Educação do Campo e dá sentido às práticas pedagógicas. Em seguida, o trabalho “Por uma Educação do Campo crítico-emancipatória: contribuições para a resistência e construção do PPP no contexto das escolas e comunidades camponesas” dos autores Elson Augusto Nascimento e Valter Martins Giovedi nos oferece elementos epistemológicos para a compreensão 21 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS da Escola do Campo em sua multidimensionalidade. Os autores trazem elementos de suma importância para os pesquisadores da Educação do Campo ao discutirem as proposições da Educação do Campo e as localizarem dentro de um contexto em constante reinvenção, construção e resistência elementos fundantes para a compreensão da Educação do Campo como um projeto de sociedade. Na sequência o artigo “O diálogo educativo entre Morte e Vida Severina e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)” da autora Maria Jéssica Marques de Lima nos apresenta um horizonte que olha para a luta dos Movimentos Sociais a partir da literatura discutindo as raízes identitárias presentes deste encontro. O diálogo da autora para a Educação do Campo a partir desta obra encontra materialidade na busca pela quebra da marginalização do movimento camponês a partir da aproximação desta obra realista ao histórico do movimento camponês no Brasil. Neste processo de diálogo sobre os Movimentos Sociais inserimos logo em seguida o artigo “ O Movimento Sem Terra como protagonista da construção da Educação do Campo, e o despertar da consciência dos camponeses” do autor Francisco do Livramento Andrade. Tal artigo aborda o protagonismo no MST nas discussões e práticas de Educação do Campo articulando as questões relacionadas ao pensamento crítico nos espaços de luta, onde escola e comunidade são incluídas. Tal texto enfatiza ainda a importância da dimensão do trabalho nas práticas pedagógicas conduzidas na perspectiva de luta. Por fim, o trabalho “A luta pela leitura da palavra: trabalho e educação em trajetórias de mulheres do campo” dos autores Evely Cristine Pereira de Aquino, José Eustáquio de Brito e Vânia Aparecida Costa aborda a trajetória de mulheres tendo como eixo a inserção destas em projetos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) desenvolvidos no interior do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Tal trabalho nos convida a perceber a luta na materialidade da transformação da vida de tais mulheres a partir de tais programas que se reverberam em acesso e direito a espaços de poder. Já no eixo temático Políticas públicas reunimos quatro trabalhos que nos permitem perceber o impacto de tais políticas no contexto das escolas do Campo e das construções sociais que se reelaboram a partir da luta. Para tal o primeiro trabalho de tal eixo alocamos o artigo “Trajetórias de vida, caminhos para a escola: reflexões sobre as políticas públicas para os campesinos” das autoras Elizabeth Moreira Gomes e Maria Isabel Antunes-Rocha, visto que este simboliza conceitualmente a proposta ao abordar as políticas públicas de formação de professores do Campo ao trazer como análise as trajetórias de dois licenciandos em Educação do Campo evidenciando as dificuldades e necessidades de construção/consolidação de políticas públicas para esses povos. Tal discussão nos permite perceber a importância da construção de tais políticas e o impacto destas na transformação das vidas dos sujeitos. Em seguida inserimos o 22 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS trabalho “Um olhar sobre a política pública para a escola em Tempo Integral em Minas Gerais e o ensino aprendizagem de matemática para alunos do Campo” das autoras Iracema Neves Lima e Kyrleys Pereira Vasconcelos. Tal texto nos permite apreender o impacto das políticas públicas em processos de aprendizagem nos provocando a perceber o diálogo entre proposições políticas a nível macro e a execução destas nos contextos das Escolas do Campo. Em seguida alocamos o trabalho “Educação no Campo e as atuais mudanças na Educação” da autora Adriana Rodrigues dos Santos Brito justamente por este ter como objetivo a análise de um texto de política pública presente nas BNCC (Bases Nacionais Comuns Curriculares) e os elementos de Educação e Cultura advindos da obra de Paulo Freire. Tal movimento realizado pela autora busca perceber ainda se tal relação se aproxima das discussões presentes nas propostas dos Princípios de Educação do Campo. Com um movimento nesta mesma direção o próximo artigo desta seção intitulado “O conceito de identidade nas diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Paraná” dos autores Vanessa Bomfim e Rodrigo dos Santos propõe uma análise de um documento de política pública de onde é possível se construir reflexões sobre o conceito de identidade como uma categoria analítica para se perceber as aproximações e distanciamentos entre os documentos e as discussões atuais pertencentes ao panorama da Educação do Campo. Por fim o último trabalho de tal grupo temático intitulado “ Educação do Campo no Brasil: Contexto histórico-políticos” escrito pelos autores Maria Aparecida Afonso Oliveira Eliano de Souza Martins Freitas reúne simbolicamente questões apresentadas em todos os artigos desta seção ao realizar um exercício de retomada analítica das políticas públicas em Educação do Campo no Brasil situando-as em uma dimensão histórica que levanta as categorias de luta bem como os avanços e desafios presentes neste processo. Por fim, apresentamos o eixo temático práticas pedagógicas compreendendo que sua leitura ao final da obra nos permite aprender nos três trabalhos que se seguem o processo de luta e a efetivação das conquistas das políticas públicas na dinâmica das práticas pedagógicas em uma dimensão social. Para tal, o primeiro texto apresentado intitulado “Desafios enfrentados pelos sujeitos de uma escola do Campo atingida pelo rompimento da barragem do Fundão ” da autoras Adriane Cristina de Melo Hunzicker e Maria Isabel Antunes-Rocha nos provoca a conhecer o processo de pensar, sentir e agir dos docentes sobre a Escola Municipal Bento Rodrigues diante da ruptura da barragem de minério. Tal análise nos provoca a pensar na prática pedagógica como uma estrutura de múltiplas dimensões que se reconstrói cotidianamente se tornando também uma forma de resistência e identidade. Em seguida o trabalho “Uma leitura da participação da juventude campesina na Educação do Campo ” das autoras Cristhianne Antunes David Oliveira, Maria de Fátima Almeida Martins e Nayara 23 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Cristine Carneiro do Carmo, retrata uma pesquisa feita no chão da escola onde se buscou perceber como os jovens camponeses lidam e se inserem no fenômeno educativo considerando-se as reafirmações das juventudes campesinas frente à representação do Campo como um lugar de atraso. Tal trabalho nos provoca a pensar também nos sujeitos para os quais a Educação do Campo é pensada e nas articulações disso com a inserção destes no processo de escolarização. Por fim, o último trabalho deste eixo, intitulado “A comunicação popular como um ato de educação e coragem” dos autores Decanor Nunes dos Santos e Maria Aparecida Afonso Oliveira realiza o fechamento da obra ao refletir sobre um processo educativo desenvolvido no contexto da resistência e da comunicação popular. Tal proposta nos amplia a perspectiva de prática educativa para além dos muros da escola trazendo ações como a de um programa radiofônico para pensarmos sobre uma perspectiva de educação desenvolvida em bases crítico-políticas que tenha uma potência de formação de consciência de tantos sujeitos que estejam excluídos do acesso à escola para que estes se organizem coletivamente e consigam realizar uma nova leitura crítica da realidade. Luta, Políticas Públicas, Práticas Pedagógicas, Alternância, Universidade e Representações Sociais: Caminhos analíticos para pensarmos a Educação do Campo como um ato político Ao pensarmos sobre o processo de construção destas duas obras nos colocamos diante dos caminhos profícuos para pensarmos a Educação do Campo como uma perspectiva que nasce de proposições gestadas nos movimentos coletivos carregando uma dimensão política que se renova no debate, proposição, enfrentamento e resistência. A análise de tais escritas nos permite perceber que estas carregam olhares de um coletivo de autores / professores / estudantes / militantes / pesquisadores / trabalhadores que colocam nos textos a intencionalidade de um projeto de Educação articulado à um projeto de Sociedade. A organização desta obra buscou construir uma dinâmica de integração dos textos que guiasse o leitor a tomar às suas conclusões sobre a problemática aqui levantada: Como podemos pensar na materialidade da Educação do Campo como um ato político? Tal materialidade é expressada em trabalhos que permitem a articulação das estratégias de luta em práticas pedagógicas e alternância em instituições de de educação básica, profissional e superior. Os limites registrados pelos autores em suas escritas nos mostram que a luta e conquista pela escola de direito desafia todos os sujeitos envolvidos nesta práxis a quebrar paradigmas a fim de entender esta escola como uma instituição que construa proposições sobre novas formas de se atuar na resistência. A leitura de tais trabalhos nos ensina que a luta dos movimentos socioterritoriais nos coloca diante do protagonismo dos sujeitos do Campo para 24 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS demandar e participar ativamente do processo de construção das políticas públicas. O ato educativo torna-se uma forma de participação na exigência de direitos e tal participação adquire as mais variadas instâncias para que a representatividade transforme este projeto em um projeto social que contemple o campo como um lugar de oportunidades. Dessa forma, as práticas pedagógicas em sala de aula vêm na alternância a possibilidade de articularem o princípio educativo do trabalho com os modos de produção e organização da terra. A dicotomia estudar ou trabalhar dá lugar à dialética estudar o trabalho e entender as contradições presentes no sistema capitalista para poder modificá-las e extinguir as desigualdades sociais. A Universidade torna-se um lugar de terra com sujeitos da terra, pedagogias da terra e professores que articulem-se às demandas de luta pela terra. Professores e profissionais ali formados pertencem ao campo e permitem que a instituição da academia modifique o seu olhar olhar sobre o Campo, visto que este olhar não é mais um olhar estrangeiro, dos outros sobre os sujeitos e fazeres campesinos mas dos camponeses sobre seus modos de fazer, pensar e sentir o campo e o mundo. Embora separadas em dois volumes tais temáticas dialogam e reforçam em nós o pensamento de que só é possível refletirmos sobre a Educação do Campo se este olhar é carregado de uma concepção política. Essa é a matriz que une os trabalhos e nos auxilia nesta interpretação da realidade onde terra, gente e sonhos de um mundo mais justo se reúnem. Esperamos que você leitor ao acompanhar estas páginas se sinta indignado a lutar e demandar pela construção de políticas públicas em Educação do Campo e se reconheça nas vozes desses sujeitos que trazem nas letras os sonhos de outros tantos sujeitos coletivos. Esperamos que tais páginas o inspirem a acreditar em práticas transformadoras em Educação e que estas sejam o caminho para que sua leitura se ressignifique na sua prática cotidiana de vida. Para finalizar tal apresentação deixo um trecho de Santos (2019) que nos inspira a tecer reflexões sobre o futuro das políticas públicas e a Educação do Campo no contexto de resistência ao qual estamos inseridos. Nesse sentido, as gerações que elaboraram e concretizaram os projetos educativos dos/as trabalhadores/as têm o dever de registrá-las como patrimônio de um tempo em que os circuitos da história estiveram abertos e as classes populares puderam experimentar, ainda que limitadamente, das promessas da democracia. Por fim, em que pese a realidade e o contexto, impõe-se àqueles que lutam o dever de associar a disposição de resistência ativa à atitude de resiliência, acreditar no tempo e no patrimônio, no legado histórico vivo e em movimento. Fazê-lo florescer no chão da escola, de baixo para cima. Conjugar o verbo “esperançar”, construindo o tempo futuro e atuando sem tréguas no tempo presente. (SILVA, 2019, p. 512) 25 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Um abraço forte e sigamos juntos, indignados e esperançosos nessa jornada de trabalho, leitura e luta. Os organizadores. REFERÊNCIA SANTOS, Clarice Aparecida Martins. A EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FIM DAS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO AS CONHECEMOS: questões para reflexões de futuro. In: Revista de políticas públicas. vol. 23 n. 2, 2019. 26 LUTA A MÍSTICA COMO ELEMENTO PEDAGÓGICO E POLÍTICO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO Cristiene Adriana da Silva Carvalho1 Maria Isabel Antunes-Rocha2 “O que somos? Camponeses! O que queremos? Terra, trabalho e justiça!”3 Para falar da mística, faz-se necessário compreender que sua essência nasce na materialidade dos Movimentos Sociais. Trazemos estas palavras de ordem4 – “O que somos? Camponeses. O que queremos? Terra, trabalho e justiça!” – como elemento simbólico para escutar os sujeitos que integram os Movimentos Sociais de luta pela terra. Tais sujeitos entoam essas frases nos momentos de mística e fazem delas o combustível para as lutas cotidianas. A criação e a emissão de tais palavras de ordem nos momentos de manifestação buscam a visibilidade das causas coletivas e marca a intencionalidade de se fazer a mística com os companheiros e de manter vivas as razões que conduzem os sujeitos coletivos à luta. Antes dessas palavras serem um mecanismo de comunicação externa, elas reelaboram, em cada sujeito, a essência do que os une na dimensão coletiva. Ao analisarmos o contexto da luta pela terra no Brasil, é importante olhar para o campo como um lugar marcado por conflitos surgidos a partir da existência de um contingente descomunal de terras improdutivas que, há mais de cinco décadas, passaram a ser ocupadas pelos sujeitos organizados coletivamente com a intencionalidade de construir a Reforma Agrária. Dentro desse cenário, é possível ver um coletivo de trabalhadores que buscavam construir ações 1 2 3 4 Doutora e mestra em Educação UFMG, Pedagoga, Licenciada em Artes Cênicas e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo FAE/UFMG. Contato: cristienecarvalho@gmail.com Doutora em Educação. Professora no Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (DECAE) na FaE/UFMG. Contato: isabelantunes@fae.ufmg.br Estas palavras de ordem “O que somos? Camponeses! O que queremos? Terra, trabalho e justiça” são entoadas pelos Movimentos Sociais do Campo em reuniões, atos públicos e práticas cotidianas para lembrar a essência da luta pela terra na dinâmica de ocupar a terra, trabalhar para que ela se torne produtiva e realizar justiça social. Entendemos, como palavras de ordem, as frases construídas com a intencionalidade de envolver os militantes dos Movimentos Sociais na intencionalidade da luta. A exemplo disso, trazemos as palavras de ordem “Educação do Campo-Direito nosso dever do Estado!” faladas nos momentos de marcha do Movimento por uma Educação Básica do Campo. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS que viabilizassem a distribuição de terra para o seu uso social ao se contraporem ao modelo de grandes latifúndios improdutivos. Nesse contexto, surgem os coletivos com propósitos comuns, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Comissão Pastoral da Terra, entre outros. Em contraposição a esses sujeitos, estão os proprietários de grandes extensões de terras improdutivas que buscam criminalizar tais movimentos a fim de manter a grande concentração histórica de terras. É importante compreender que as ações de luta pela terra organizadas por tais movimentos vão desde a organização de protestos para ampliar a visibilidade de causas comuns até o acesso à terra com a ocupação de terras improdutivas, a construção de centros culturais e educativos, a organização de cooperativas de trabalho e a criação de espaços de bem-estar que possibilitem que os sujeitos do campo possam usufruir de uma vida com qualidade e respeito, sem a necessidade de migração para os grandes centros urbanos. Dentro da prática de tais movimentos, a mística é vista como uma forma de construir e de manter a essência da luta, uma vez que congrega o enraizamento das lutas nas práticas artísticas dos sujeitos do campo. A mística, seja traduzida em canções, em danças, em elementos visuais, em poesias ou em encenações, vai além do momento da sua “espetacularização” e tem como propósito renovar e manter acesa a chama dos ideais dos sujeitos coletivos. É comum que, durante as primeiras aproximações com os Movimentos Sociais, as pessoas construam uma compreensão da mística como manifestação artística de ordem performática. Tal associação ocorre devido ao fato de que as linguagens artísticas, como a música, o teatro, a dança e as artes visuais, estejam presentes em um ritual construído com o objetivo de despertar reflexões aos expectadores. No entanto, podemos perceber que tal definição se amplia para além das práticas artísticas, quando se compreende a retratação e a renovação do movimento de luta para a construção de uma escola a partir da transformação da sociedade. É possível notar que a mística enraíza os sujeitos nas lutas por meio de manifestações estéticas renovadas pelos Movimentos Sociais, que estão presentes nas aberturas, nos encerramentos, nas ocupações, nas reuniões, nas aulas, nos cursos, nas animações e em todas as atividades que necessitavam suscitar, no coletivo, o espírito das transformações. Dessa forma, partimos da compreensão da mística como práxis presente nos movimentos, dotada de caráter prático, político, cultural, artístico e histórico, que reúne poesia, música, teatro, dança e elementos artísticos visuais que se destacam pelo diálogo direto com elementos identitários da cultura camponesa. Ademar Bogo, em sua obra o Vigor da mística, nos ajuda a entender a prática como um sustentáculo da luta dos sujeitos do campo. Para ele, a mística deve ser vista como uma “força inexplicável que há dentro do coração de cada 30 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS lutador ou lutadora, não é para ser explicada com palavras, mas vivida, sentida e transformada em rebeldia para derrotar os poderosos e libertar a vida de todas as amarras e torturas” (BOGO, 2002, p. 20). Dessa forma, a partir do entendimento de quem são os sujeitos coletivos do campo que se organizam para realizar a mística, é possível perceber que tais organizações vêm construindo, ao longo das décadas, ações de resistência em busca da implementação de um projeto popular de campo. Por sua vez, a Educação do Campo é parte desse projeto de construção de um campo com condições para se trabalhar, estudar e viver com dignidade. “EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIREITO NOSSO, DEVER DO ESTADO!”5 Para refletirmos sobre o surgimento da Educação do Campo, é importante compreendermos a presença da mística como elemento intrínseco da luta. Tal prática é vista como um elemento de fortalecimento do contexto simbólico das ações dos Movimentos Sociais, uma vez que fornece sentidos para a construção da consciência coletiva dos sujeitos. Ao analisarmos as discussões que marcaram historicamente a demanda pela Educação do Campo no Brasil, presentes nos cadernos da coleção “Por uma Educação do Campo 6“, é possível perceber a presença de místicas como elementos fundamentais para fornecer subsídios para as demandas por educação no contexto da Reforma Agrária. Considerando o histórico de luta dos Movimentos Sociais e Sindicais por uma Educação do Campo como direito, consideramos resgatar, neste texto, um pouco dessa caminhada. De acordo com Martins (1989), foi após a segunda metade do século XX que as propostas de educação voltadas e gestadas pelos sujeitos do Campo, a partir da emancipação política dos Movimentos Sociais do Campo, começaram a ganhar maior articulação no Brasil. A perspectiva educacional proposta pelo Movimento de Educação do Campo contrapunha-se ao modelo de educação “rural” implementado do final do século XIX até a metade do século XX, e que, para Antunes-Rocha (2012), tinha como objetivo a formação hegemônica dos trabalhadores do campo para controlar ideologicamente a migração advinda do campo. Tal proposta gerou embates políticos e educacionais que se refletiram em ofertas de escolarização descontínuas, na ausência de formação específica, em evasão e em ameaças constantes de fechamento de escolas. 5 6 Palavras de ordem utilizadas pelos Movimentos Sociais durante manifestações por luta pela abertura, permanência e contra o fechamento das escolas do campo. Tais palavras relembram que é dever do Estado oferecer educação a todos os sujeitos e que os sujeitos do campo devem se conscientizar desse direito. Os cadernos da Educação do Campo são publicações temáticas criadas pela Articulação Nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, que tinham como objetivo registrar as discussões presentes nas mobilizações dos Movimentos Sociais que demandaram a Educação do Campo. 31 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Esse cenário, de exclusão da oferta escolar e/ou da qualidade, foi o contexto gerador das articulações dos Movimentos de Luta pela Educação do Campo, que surgiram com a intencionalidade de reivindicar condições concretas de sobrevivência dos sujeitos do campo, entre elas, a escola. Durante a realização do I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (ENERA), em 1997, foram levantadas pautas que discutiam as políticas educacionais destinadas ao campo e que subsidiaram os debates da I Conferência Nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, ocorrida em 1988. É possível perceber, no texto base desta I Conferência, a preocupação em evidenciar o protagonismo dos sujeitos, como característica fundamental para construir um projeto educativo de campo que atendesse às especificidades e estivesse comprometido com um projeto de desenvolvimento de sociedade. Tal protagonismo é reafirmado por Caldart (2003), a partir de três ideias-força que nos ajudam a compreender o coletivo dos sujeitos de campo como um movimento de luta por escola. 1. O campo no Brasil está em movimento. Há tensões, lutas sociais, organizações e movimentos de trabalhadores e trabalhadoras da terra que estão mudando o jeito da sociedade olhar para o campo e seus sujeitos. 2. A Educação Básica do Campo está sendo produzida neste movimento, nesta dinâmica social, que é também um movimento sociocultural de humanização das pessoas que dele participam. 3. Existe uma nova prática de Escola que está sendo gestada neste movimento. Nossa sensibilidade de educadores já nos permitiu perceber que existe algo diferente e que pode ser uma alternativa em nosso horizonte de trabalhador da educação, de ser humano (CALDART, 2003, p. 61). É importante ressaltar que as discussões gestadas na I Conferência Nacional “Por uma Educação Básica no Campo” foram os pilares das propostas de debate das políticas públicas que fortaleceram as ações da Educação do Campo, nos anos que se seguiram. A presença de diversos Movimentos Sociais, que denunciaram o modelo capitalista de exploração dos sujeitos do campo, possibilitou que se pensasse uma proposta educativa vinculada à cultura, aos valores e ao projeto político de campo. Entre os debates e as proposições do movimento de luta pela Educação como direito no território campesino foi organizada a II Conferência Nacional “Por uma Educação do Campo“, em 2004. Tal Conferência trazia, em suas linhas principais, a necessidade de articulação nacional e estadual, para que se caminhasse rumo à construção de políticas públicas para a educação. Entre as suas proposições, destacamos a criação do Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), entidade representativa entre movimentos e instituições de todo o Brasil, que possibilitou analisar e propor políticas públicas em Educação do Campo. A criação desse fórum representou um processo dinâmico de discussão pela efetivação das proposições de políticas pela Educação do Campo. 32 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS É importante ressaltar que o protagonismo dos Movimentos Sociais foi fundamental no processo de elaboração de políticas públicas específicas para a Educação do Campo. Entre elas, citamos algumas que foram decisivas conquistas para os sujeitos do campo: o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que garantiu a alfabetização e a continuidade de estudos a milhares de jovens e adultos pertencentes a áreas da Reforma Agrária. Tal programa teve suas discussões seminais elaboradas a partir do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, em 1997. A construção das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, aprovadas no Parecer n o. 36/2002, em 4 de dezembro de 2001, elaboradas no Conselho Nacional de Educação e instituídas pela Resolução CEB n o. 01, em 3 de abril de 2002. O texto das diretrizes cumpre um papel de suma importância, no que se refere a apontar para as presenças e as ausências de políticas públicas, a partir de um registro detalhado do processo histórico que mostra a necessidade da elaboração de uma política específica em Educação do Campo. A publicação do Parecer CNE n o. 1, de 2 de fevereiro de 2006, possibilitou o reconhecimento de um calendário de dias letivos, organizado a partir da Pedagogia da Alternância. A publicação das Diretrizes Complementares para a Educação do Campo foi crucial para a efetivação de mudanças positivas no que se refere ao acesso educacional, uma vez que elas traziam normas sobre nucleação e transporte escolar, e referendavam a oferta em escolas que possibilitassem a proximidade de moradia dos alunos, lançando luz sobre o acesso à Escola do Campo. Tais conquistas, entre outras, são a materialização de um processo de participação, de resistência e de luta dos Movimentos Sociais do campo. Apresentar dados que nos dão um breve panorama histórico sobre a luta pela Educação do Campo foi um movimento utilizado neste texto para pensarmos na Educação como um caminho para a superação da exploração dos trabalhadores do campo. Para isso, é possível perceber o protagonismo dos Movimentos Sociais no processo de construção de políticas públicas que se alinhassem com o paradigma de articulação de um projeto de campo e de sociedade. “ESSE É O NOSSO PAÍS, ESSA É A NOSSA BANDEIRA. É POR AMOR A ESSA TERRA BRASIL QUE A GENTE SEGUE EM FILEIRA”7 Após apresentarmos a trajetória dos Movimentos Sociais no processo de luta pela Educação do Campo, buscamos compreender os elementos inerentes à mística e à sua relação pedagógica. O primeiro passo dessa análise se dá no sentido de convidar o leitor a entender a mística como uma prática dotada de 7 Trecho da música “Ordem e Progresso”, do compositor Zé Pinto. Tal canção aborda a intencionalidade da luta dos Movimentos Sociais, como a bandeira que simboliza a transformação social por meio da Reforma Agrária. 33 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS simbologia que engloba estéticas de resistência, momentos de reflexão e práticas de formação de consciência dos sujeitos coletivos dos Movimentos Sociais. No trecho da canção “Ordem e progresso”, do compositor Zé Pinto, podemos perceber que a simbologia da palavra “bandeira” nos dá pistas do papel dessa bandeira para simbolizar as intencionalidades de lutas dos Movimentos Sociais do campo que seguem em marcha para demandar um novo projeto de sociedade. Para trilharmos nesta escrita pelo terreno da mística, reunimos reflexões que emergiram a partir de vivências com os Movimentos Sociais do campo em atividades relacionadas à formação de professores. O fato de termos tido a oportunidade de participar de místicas no contexto da Educação do Campo nos permitiu a construção de uma práxis, uma vez que, em sua dialética, experienciamos a integração entre a prática de uma realidade e sua idealização reflexiva a partir de princípios coletivos. Percebemos que essa práxis, tão presente nos Movimentos Sociais e, consequentemente, na Educação do Campo, é dotada de caráter prático político, cultural, artístico e histórico. Dada a globalidade presente na mística, notamos que ela permite reunir em um só gesto poesia, música, teatro, dança e elementos artísticos visuais que se destacam pelo diálogo direto com elementos identitários da cultura camponesa. Nesse sentido, tais práticas podem ser entendidas como uma forma de materialização educativa dos conteúdos ideológicos, políticos e de luta dos povos do campo. A contextualização da mística como uma possibilidade educativa dos Movimentos Sociais do campo é um convite a pensarmos no quanto essa prática simboliza também o processo de luta pela Educação do Campo. A mística esteve presente nos eventos que marcaram o histórico de luta pela Educação do Campo como: I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (ENERA), realizado em 1997, e na I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, realizada em 1998. As palavras de ordem contidas nessas místicas traziam elementos como “Educação do Campo é direito e não Esmola”, “Educação do Campo: Direito Nosso, Dever do Estado”, e fomentaram o processo de constituição de políticas públicas de formação de professores do campo e de criação de cursos de formação em níveis de Educação de Jovens e Adultos, técnico e superior (CARVALHO; ANTUNES-ROCHA; MARTINS, 2016, p. 26). Pensarmos a mística como possibilidade de formação política traz para o nosso olhar a dimensão da luta presente na Educação do Campo. A mística renova corpos, ouvidos, cheiros e sensações ao apresentar a materialidade da peleja presente. Podemos exemplificar essa renovação a partir da intensificação da sensação de pertencimento ocorrida após ouvirmos e entoarmos as palavras de ordem. Entoar palavras de ordem é sentir, em nosso corpo, a intencionalidade de nossa luta. Na vivência da mística, superamos os papéis definidos no teatro entre ator e expectador. A mística envolve todos na intencionalidade ao superar a representação estética. Vivenciar uma mística é permitir a renovação da identidade a partir da busca por preservar as tradições e manter as bandeiras de luta pela transformação da sociedade nos momentos de práticas coletivas. 34 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Para discutirmos o potencial pedagógico da mística, buscamos nos ancorar nas reflexões de Bogo (2002), em sua obra O vigor da mística, que busca contextualizar a sua intencionalidade no contexto da luta dos Movimentos Sociais. Por se tratar de uma publicação vinculada ao MST, é possível apreender os elementos principais dessa prática articulados a uma perspectiva de militância, o que nos dá pistas para sua articulação a uma perspectiva crítica. Embora a prática da mística estivesse presente no cotidiano dos militantes desse e de outros Movimentos Sociais, tal publicação inaugura a intencionalidade de oferecer material para as formações de militantes que aconteciam nos coletivos de todo o Brasil. Ela é considerada por nós, pesquisadores da Educação do Campo, como um marco para entendermos o pensamento sobre essa prática. No texto de apresentação da referida obra, Adelar João Pizzeta (2002) destaca apreender que a mística é uma prática carregada de intencionalidades coletivas. Pizzeta (2002) diz que é impossível olhar para prática dos movimentos sem a mística. Parafraseando tal autor, nos arriscamos a afirmar que é impossível conceber a Educação do Campo sem a mística uma vez que ela carrega a totalidade da intencionalidade de luta, integração teoria e prática e busca de organização coletiva. Para dar conta de tal exercício, Bogo (2002) apresenta os 10 elementos que fazem parte da mística: valores; cultura; sentimento; mudança; causa e sonhos; consciência, ética e moral; simbologia; vida camponesa; sons; e arte. Abordaremos cada um desses elementos em busca de refletir sobre tal diálogo com o contexto pedagógico da Educação do Campo. Segundo Bogo (2002), a mística carrega consigo valores de um coletivo, uma vez que, a partir de sua prática, é realizada a chamada dos sujeitos para despertarem a consciência a respeito da importância dos diferentes papéis presentes nesse coletivo. Dessa forma, sua presença vem nos momentos de vitória e de festejo das conquistas e também deve vir nos momentos de luta, de cansaço e de fraqueza a fim de fortalecer o grupo. Bogo (2002) retorna à etimologia da palavra ao dizer da proximidade da mística com o termo “carisma” e destacá-lo como uma forma de cativar, de emocionar e de mobilizar os outros em favor de algum objetivo. “Essa força inexplicável que há dentro do coração de cada lutador ou lutadora não é para ser explicada com palavras, mas vivida, sentida e transformada em rebeldia, para derrotar os poderosos e libertar a vida de todas as amarras e torturas” (BOGO, 2002, p. 20). Entendendo cada educador do campo como um lutador, nos desafiamos a pensar na mística como o convite a sentir/refletir/avançar nas possibilidades de nosso processo formativo. A Educação do Campo surge da necessidade de se pensar em um processo de formação que se vincule a um projeto coletivo de sociedade mais justa e tal dimensão busca desfazer as amarras de um projeto de campo excludente. Tal processo busca transformar o contexto de formação de um sujeito que terá acesso à escola e que, 35 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS por consequência, poderá realizar transformações em sua comunidade. Molina (2011) coloca como as possibilidades das práticas em Educação do Campo são a materialização de um novo projeto de sociedade campesino. As práticas pedagógicas em Educação do Campo são dotadas de valores que surgem na intencionalidade de transformar o individual e o coletivo a partir de um conhecimento pautado na dimensão prática da vida campesina. Para Bogo (2002), a mística carrega, em sua prática, os valores próprios da cultura de cada grupo social e marca especificamente os indivíduos. “Ela é o oxigênio da cultura, que mantém viva a esperança de fazer acontecer o esperado de forma inesperada” (BOGO, 2002, p. 43). Se entendemos o Brasil e cada Estado como partes diversas da cultura, percebemos que a mística pode se tornar uma forma de comunicação, de identidade, de memória e de demarcação dessas tantas culturas. É possível perceber que, se a cultura se movimenta em um processo dinâmico, a mística acompanha esse movimento de conservação e de alteração, e provoca todos a renovarem seu olhar. Ao pensarmos no contexto específico do campo brasileiro, podemos perceber que a diversidade cultural presente possibilita que as práticas educativas construídas sejam heterogêneas e se articulem às identidades dos sujeitos campesinos, comumente negadas quando se tratam de parâmetros nacionais de ensino que homogeneízam a escola e seus sujeitos. Quando pensamos na mística nas escolas do campo, referimo-nos à inserção, na escola, do seu reconhecimento da identidade cultural. Ao acompanharmos práticas de formação de professores do campo, especificamente discutidas por Carvalho (2018), nos vimos diante do desafio de pensar a formação de professores que construam místicas que sensibilizem o grupo para a pluralidade existente nesse grupo e, ao mesmo tempo, que envolvam o coletivo no processo de construção da identidade dos que aqui estão presentes. A relação existente entre a mística, a Educação do Campo e a cultura nos permite perceber a experiência da participação da mística como uma manifestação de esperança para que um grupo ou um povo não se permitam esquecer a sua cultura e façam dos processos educativos um local para compreender a dinamicidade da cultura e da memória dos sujeitos. O terceiro elemento apontado por Bogo (2002) como crucial para compreendermos a mística é o sentimento, que traz vitalidade para a mística uma vez que fortalece as práticas dos homens para além da dimensão das formas de pensar categorizadas como racionais. Essa vitalidade, embora carregue valores do coletivo, é sentida de forma individual. Compreender e escutar esse sentimento faz com que o processo de construção estética da mística não se resuma a uma organização técnica. “O sentimento é algo particular que se manifesta com maior ou menor intensidade na consciência de cada pessoa” (BOGO, 2002, p. 28). Ao pensarmos no diálogo de tal elemento com a Educação do Campo, 36 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS percebemos que esse sentimento se liga à necessidade de olhar para a Educação a partir de um processo de humanização das relações pedagógicas e sociais de forma geral. Embora esse sentimento seja algo particular, Caldart (2003) chama a atenção para a importância de pensarmos em uma escola do campo em movimento, a partir da partilha de sentimentos que objetivem a luta coletiva nas relações sociais e que enxergue as necessidades e os desejos dos sujeitos. O quarto elemento presente na mística constitui-se como a consciência de mudança. Tal mudança ocorre no sentido de se fazer da mística um momento revolucionário, fato que a caracteriza como uma ferramenta de luta dos sujeitos em prol da transformação da sociedade. Diante disso, as canções, as encenações, as poesias e as demais práticas artísticas presentes mobilizam o coletivo para as lutas por um projeto de campo mais justo e em diálogo com a Educação do Campo que busca, em seus princípios, construir um processo educativo que rompa a alienação e a política de interesses. Para Caldart (2003), tal diálogo ocorre no sentido de fazer da escola do campo um local de coerência com a luta de seus sujeitos. “Se não conseguirmos envolver a escola no movimento de transformação do campo, ele certamente será incompleto, porque indicará que muitas pessoas ficaram fora dele” (CALDART, 2003, p. 64). Dessa forma, a mística na Educação do Campo é vista como um movimento renovador das mudanças a serem realizadas, deve inspirar a coletivo na luta e fazer os sujeitos pensarem os passos a serem dados coletivamente para se construir tal mudança. Tão importante quanto se pensar na mudança, o elemento causa e sonhos nos faz pensar na utopia que move as ações dos coletivos. “A causa é, por um lado, a razão pela qual vivemos e lutamos, mas é também a estruturação dos meios para realiza-la” (BOGO, 2002, p. 47). Essa característica é uma das que nos fazem pensar que a mística é uma prática artística, mas não apenas isso. Embora ao cantar, declamar, atuar e dançar seja necessário que o artista interiorize a sua fé cênica, trata-se de um ato marcado pela ficção. A causa que constitui o enredo da mística relaciona-se à prática artística ali materializada na vida real dos sujeitos. Mesmo que os sujeitos encenem uma situação que não é parte da vivência, por exemplo, uma situação de violência no campo que não foi sofrida por eles diretamente, existe a consciência da existência dessa violência e da necessidade de lutar por um projeto de campo no qual os sujeitos não sejam massacrados pela violência do latifúndio. A causa dá sentido para a organização da mística e mantém o encanto para as novas conquistas. Em diálogo com a Educação do Campo, as causas e os sonhos são o chão que alimenta as lutas por formação e uma prática pedagógica que avance rumo à maturidade política de transformação do campo; do contrário, seria uma prática pedagógica descolada dos sonhos dos sujeitos do campo. 37 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Já o sexto elemento presente na mística é a consciência. Para Bogo (2002), a mística é uma forma de construção do conhecimento a partir do fortalecimento da consciência, ação que pode ser realizada em conjunto com atividades do cotidiano, como preparar alimentos ou uma terra para o plantio. Ao pensarmos no contexto dos Movimentos Sociais do campo e da Educação do Campo, é possível perceber que a mística integra as consciências histórica e ecológica. “A mística fica deficiente se a pessoa se anima quando fala de história e fica insensível quando fala de ecologia” (BOGO, 2002, p. 63). Para Bogo (2002), essas consciências são complementares e vêm para fortalecer os pilares de um eixo integrador com outros campos do conhecimento. Um dos desafios da Educação do Campo se faz no exercício de manter a memória de nossa história e da ecologia a partir das ações educativas. Para Caldart (2003), essa memória é uma forma de se trabalhar com a história nos processos educativos. A escola é um lugar muito próprio para recuperar e trabalhar com os tesouros do passado. Celebrar, construir e transmitir, especialmente às novas gerações, a memória coletiva, ao mesmo tempo em que buscar conhecer mais profundamente a história da humanidade. É o que chamamos no MST de pedagogia da história (CALDART, 2003, p. 71). Compreendendo a consciência histórica como um lugar de memória, percebemos o lugar desse elemento na mística como uma forma de dialogar com os processos educativos a fim de que eles incorporem um conhecimento do percurso histórico dos sujeitos ali presentes. “A mística então se faz necessária, pois somente ela poderá aproximar as partes para estabelecer este diálogo com gerações passadas, que compõem a memória da humanidade, descrevê-las para as gerações presentes e preparar a conversa com as gerações que ainda não nasceram” (BOGO, 2002, p. 167). Tal consciência entre a história e a ecologia proporcionaria um diálogo entre o passado e o futuro nas práticas pedagógicas na Educação do Campo. Já o sétimo elemento estruturante da mística é colocado por Bogo (2002) como sendo a ética e a moral. Segundo o autor, esses são alimentos do engajamento coletivo que brotam e se fortalecem durante as práticas da mística. O estabelecimento de princípios éticos para a construção da noção de moral integra o sujeito em níveis individuais e coletivos. Podemos pensar em como a mística tem se constituído como uma forma de fortalecer os princípios éticos da Educação do Campo, considerada como luta e epistemologia. A ética e a moral são a base para pensarmos nos princípios de poder popular, poder revolucionário e coerência. Caldart (2003) sugere que incorporar os valores presentes nos processos educativos do campo são possibilidades de a escola ser um lócus de transformação da sociedade. 38 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Raiz e projeto se constituem de valores; e são os valores que movem uma coletividade; a escola pode criar um ambiente educativo que recupere, forme, fortaleça os valores humanos, aqueles que permitem cada pessoa crescer em dignidade, humanidade. E que problematize, combata e destrua os valores anti-humanos, que degradam o ser humano e impedem a constituição de coletividades verdadeiras e fortes. Mas a escola não fará isto apenas com palavras, e sim com ações, com vivências, com relações humanas, temperadas por um processo permanente de reflexão sobre a prática do coletivo, de cada pessoa (CALDART, 2003, p. 71-72). Dessa forma, é possível pensar que as práticas da Educação do Campo promovam ações revolucionárias. Os Movimentos Sociais, a partir da sua trajetória de gestão coletiva, se tornaram uma instância de poder popular que inspira diretamente professores, alunos e gestores da Educação do Campo a construírem um processo educativo democrático. Dessa forma, é fundamental que a escola do campo busque desenvolver ações que sejam coerentes com os princípios de gestão coletiva popular. “A mística que resgata a memória apruma a prática do militante para que ele não entorte a parede da construção do edifício da dignidade, erguida pelos antepassados e que nunca para de subir” (BOGO, 2002, p. 89). A coerência é um exercício a ser vigiado na mística diária a partir da sua manutenção nas ações de memória, política, desapego, generosidade, segurança e disciplina. De posse do entendimento das reflexões realizadas anteriormente, apresentamos o elemento da simbologia, que agrega sentido a todos os que foram citados. Em nosso exercício analítico, buscamos apresentar o conteúdo da mística a fim de pensarmos na relação dos símbolos com seus elementos epistemológicos. Dessa forma, compreendemos os elementos ética, moral, sonhos, utopia, cultura, consciência, causa e mudanças como pilares que sustentam as simbologias de tal prática. “Os símbolos fazem parte da mística porque eles materializam as utopias, os sentimentos, as vontades, os sonhos e criam sua própria linguagem, ultrapassando a realidade do visível” (BOGO, 2002, p. 109). A utilização da simbologia pode, segundo Bogo (2002), se valer de emblemas, atributos, alegorías, metáfora, parábolas, mitos, fábulas, lendas, entre outras inúmeras propostas de conteúdo simbólico. Notamos que a presença de elementos da cultura popular nessa simbologia é uma pista para pensarmos na mística como elemento que nasce e se modifica nas práticas do povo. A dialética “conteúdo e forma”, presente na simbologia das místicas, também é inerente no cerne das práticas pedagógicas da Educação do Campo, ao buscar a materialização das simbologias na mística e trazer a construção do conhecimento em elementos estéticos que estejam à altura das reflexões a serem construídas. Tal simbologia se materializa como forma de promover o diálogo com o oitavo elemento presente na mística, denominado vida camponesa. Trazer o território campesino na mística e também na Educação do Campo é uma forma de agregar conteúdos que permitam a construção de sentimentos de pertença e de 39 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS identidade dos sujeitos com o campo, de contemplação dos ciclos da vida, da natureza e da luta. Ao falar sobre tal identidade da vida camponesa na escola do campo, Caldart (2003) nos ajuda a pensar nos seus aspectos coletivos. “Estamos nos referindo aqui a uma identidade que se produz em perspectiva, ou seja, na relação com outros sujeitos sociais e com o movimento da história. O isolamento político, cultural, pedagógico não constrói o projeto maior de que aqui se trata” (CALDART, 2003, p. 66). Partimos do entendimento de que identidade e contemplação são formas de a mística atuar como fortalecimento da identidade dos sujeitos. Presente na maioria das místicas, o nono elemento se refere aos sons, uma linguagem utilizada para a ambientação e a criação de mensagens que toquem os sujeitos participantes. Os sons, na mística, podem ser representados pelas canções construídas pela cultura popular, bem como pela música da natureza e pela transformação dessa natureza pelo homem, a partir da ordenação de técnicas e instrumentos. Bogo (2002) relembra que, no entanto, tais sons devem se adequar às canções para além de padrões de mercado. “A música é um profundo elemento conscientizador. É preciso, porém, adequar as músicas aos momentos e estabelecer os temas que fazem parte da existência camponesa” (BOGO, 2002, p. 122). A presença dos sons na Educação do Campo se apresenta como um recurso pedagógico de diálogo com a cultura popular dos sujeitos do campo e a possibilidade de veicular formas de conhecimento a partir de diversas metodologias. Por fim, o último elemento integrador para compreendermos a mística é a arte. Ela pode ser vista como uma possibilidade de construirmos a consciência por meio de uma estética que atue na construção crítica dos sujeitos. A construção de formas artísticas é um exercício a ser feito durante a mística e a vivência dos sujeitos, uma vez que ela permite a ampliação das possibilidades de consciência. “A consciência estética, portanto, determina as características da reflexão do ser humano que vive em sociedade e lhes dá a noção de sua beleza e importância cultural e artística” (BOGO, 2002, p. 135). A arte é vista como forma integradora desses elementos. Para Bogo (2002, p. 138), “arte significa partes que se juntam para formar uma nova realidade”. No contexto das práticas de professores que atuam na Educação do Campo, Carvalho (2018) nos auxilia a compreender a arte como possibilidade de construir relações entre os sujeitos a partir de práticas pedagógicas, culturais e artísticas em seu sentido amplo, que permitam compreender as contradições presentes no campo brasileiro. Ainda de acordo com Bogo (2002), tais elementos presentes na mística se organizam para que ela seja uma prática de caráter pedagógico na intencionalidade de caminhar rumo à construção de três grandes tarefas no processo de construção do conhecimento: 1) combater a ideologia do mercado que mercadoriza tudo. Nesse sentido, podemos perceber como a educação, em especial a 40 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Educação do Campo, pode ser vista como uma forma de combate às formas de dominação do capital; 2) contribuir para a criação da consciência moral, ao iniciar pela interrogação das normas que o sistema nos impõe. A mística, aqui, é uma forma de reafirmação da consciência; 3) produzir fenômenos que diferenciem encanto de desencanto. Tais elementos trazem o entendimento da mística como um fenômeno de pensamento construído em busca da reconstrução organizativa. “CULTURA E PRODUÇÃO, SUJEITOS DA CULTURA. A NOSSA AGRICULTURA PRO BEM DA POPULAÇÃO. CONSTRUIR UMA NAÇÃO, CONSTRUIR SOBERANIA PRA VIVER O NOVO DIA COM MAIS HUMANIZAÇÃO”8 Ao abordarmos a mística como elemento pedagógico, percebemos a importância de apresentar, ao leitor, pistas sobre as possibilidades práticas e temáticas que sustentam a materialização de tal proposta. Para isso, buscamos escutar os sujeitos produtores de cultura que constroem a mística com os Movimentos Sociais e tomamos, como referência, a obra Educação do Campo: a mística como pedagogia dos gestos no MST, de Comilo e Brandão (2010). Para os autores, a mística, sobretudo as desenvolvidas no MST, se traduz como uma prática pedagógica dos Movimentos Sociais. A mística no MST é um dos princípios básicos da organização e um dos pilares pedagógicos. A realização da mística alimenta, fortalece, dá esperanças de viver e de luta por justiça, assim como dignidade e resgate de valores aos participantes do Movimento. É por meio da mística que as reflexões individuais, espirituais e comunitárias são realizadas e socializadas (COMILO; BRANDÃO 2010, p. 2). Dessa forma, reconhece-se que sua prática supera os elementos representativos de ordem puramente artística contemplativa. Sua proposta estética tem como intencionalidade a construção de uma consciência coletiva sobre o processo de luta pela terra e pelas condições de vida no campo dos Movimentos Sociais. A mística não é um teatro, é a representação de um fato ou acontecimento. A riqueza intercambiada de significados durante a consumação da mística é fundamental para a vivência e o resgate histórico da luta pela reforma agrária no Brasil. A realização envolve toda a comunidade: crianças, jovens, adultos e idosos e é realizada a partir de temas que dizem respeito à realidade social do Movimento (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 2). 8 Trecho da música “Não vou sair do campo”, do compositor Gilvan Santos. Tal canção retrata a proposta da Educação do Campo como uma possibilidade educativa que possibilita aos seus sujeitos a construção de conhecimentos articulados a uma sociedade mais justa e, ao mesmo tempo, em diálogo com sua história e cultura. 41 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Comilo e Brandão (2010) nos colocam que a união de elementos verbais e não verbais cria uma simbologia de caráter único capaz de construir elementos que relacionam a cultura dos sujeitos à materialidade da luta. “Em termos antropológicos, dá-se um avivamento da cultura de cada lugar, enquanto cultura do chão e da terra, lugar de onde brotam os trabalhadores e suas lavouras” (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 6). É possível perceber, dessa forma, que a mística promove a interseção entre o conhecimento teórico e o prático sobre a luta e os sonhos de futuro. Tais reflexões, ancoradas no epistemológico da mística, são a base para apresentar exemplificações dessa prática a partir da descrição da realização de duas místicas construídas no contexto da Escola Camponesa Municipal Chico Mendes, localizada no Assentamento Pontal do Tigre, em Querência do NortePR. Ressalta-se que, embora os autores descrevam detalhadamente o contexto de realização de tais práticas, trata-se de uma interpretação e um registro dessa vivência que pode incorporar diferentes graus de apreensão das simbologias propostas. Na primeira mística […] foi utilizada uma variedade de sementes coletadas no assentamento, nas propriedades dos educandos. Os educandos socializaram a troca das mesmas e como símbolo de compromisso fizeram o plantio em um vaso pequeno, trabalhando com suas pequenas mãos e com elas arando a terra. Logo após socializaram a música “Terra”, de Pedro Tierra. Encerrou-se a mística e se passaram dias do plantio sem que as crianças se esquecessem do compromisso. Os dias que se seguiram foram de espera pelo nascimento das plantas. As crianças cuidavam do vaso, observando o desenvolvimento das sementes que haviam germinado, tornando-se plantas. A cada momento e a cada dia um novo assunto, um novo debate, uma nova construção de conhecimentos e significados foi se construindo. Na sequência do acompanhamento, desenvolveu-se um trabalho de produção de textos, desenhos, teatros, seminários e outros desdobramentos marcantes na formação da identidade e do imaginário das crianças sem-terra da escola (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 11). Podemos perceber que o elemento simbólico de plantio das sementes associado a uma canção pode despertar e ancorar a temática para diversas atividades pedagógicas que buscavam articular a produção e o plantio como elementos identitários dos sujeitos do campo. Fazendo o paralelo com a palavra de ordem “Ocupar, resistir e transformar”, compreende-se que o plantio é trabalhado, desde a escola, como condição fundamental para entender a importância da terra produtiva e do sentido da ocupação da terra e do trabalho no campo. Para além de ser uma atividade pontual, nota-se que a busca de construção de um compromisso dos participantes com as sementes plantadas adquire um caráter de um projeto coletivo que possibilita desdobramentos com o ato de plantar junto um mundo de justiça social. Na segunda mística, a educadora da mesma Escola trabalhou o tema “Páscoa” e relatou a saga da luta pela terra na trajetória do Assentamento Pontal do Tigre. 42 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Era um momento delicado, pois uma grande liderança do MST havia sido assassinada. Ao vivenciar a tragédia pela mística, ficou claro o valor da mesma na cultura e nas formas de expressões, mais ainda realizada por quem acompanhou – direta ou indiretamente – o acontecimento. Os participantes relembravam os companheiros que já haviam sido assassinados. Na mística, uma educanda com sua bandeira de luta chamava os companheiros que já haviam tombado e os alunos que os representavam – deitados ao chão –, levantavam-se, à exceção de um que representava a liderança assassinada recentemente, momento em que foi entoado o hino do MST. Tais acontecimentos e situações – boas ou ruins – não são esquecidos no Movimento, são celebrados e relembrados como parte da formação social, política e educacional. As mesmas místicas poderiam ter sido realizadas de outras formas, utilizando-se de outros métodos ou mesmo de outras histórias e acontecimentos (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 12). Já essa segunda mística traz a exemplificação da formação de consciência dos sujeitos desde a escola sobre a violência e as situações de opressão vividas pelos sujeitos do campo. Tal proposta servia como uma forma de trazer temáticas que não são esquecidas pelos sujeitos como formas de fazer com que as novas gerações compreendam o compromisso com a mudança do futuro. Nota-se que a temática de um assassinato de uma liderança é trabalhada como possibilidade pedagógica para se compreender a historicidade da luta pela terra e os sujeitos que fizeram e fazem parte de tal projeto coletivo. Nesses dois exemplos, é possível perceber que o fato de tal escola se situar dentro de um assentamento do MST foi fundamental para possibilitar que o contexto de luta desse movimento social, especificamente, estivesse presente na prática pedagógica. Compreendemos, no entanto, a diversidade das escolas do campo e a caracterização de várias escolas que se encontram em áreas externas aos assentamentos vinculados aos Movimentos Sociais. Tal fato não inviabiliza a realização de místicas, uma vez que é possível que sejam construídas místicas que se ancorem a reflexões críticas sobre os contextos de memória, luta e mudança do contexto campesino a partir de outras simbologias e conteúdos característicos de cada comunidade. Para tal, é fundamental que essa prática parta de uma intencionalidade coletiva que reúna professores, alunos, gestores e comunidade em prol de construírem juntos a mística e a utilizarem como forma de se pensar e motivar para a transformação da sociedade. “PÁTRIA LIVRE, VENCEREMOS!”9: MÍSTICA E PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO EM DIÁLOGO Até aqui, foi possível compreender a mística como uma práxis herdada dos Movimentos Sociais e materializada na Educação do Campo. Tal práxis 9 Tal palavra de ordem busca renovar, nos militantes dos Movimentos Sociais, a possibilidade de lutarem e construírem uma sociedade livre da exploração e da desigualdade, em que os sujeitos consigam condições dignas de moradia, educação e direitos básicos, em geral com a participação popular das políticas públicas. 43 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS permite a construção da pertença nos processos de formação de caráter crítico e o diálogo com a identidade campesina. Se pensamos na mística como prática de formação e militância, percebemos que ela deve estar presente desde os processos de formação de professores do campo e reverberar nas práticas pedagógicas nas escolas do campo. Caldart (2003) destaca a mística como um elemento decisivo para que as práticas pedagógicas construídas pela escola se ancorem na perspectiva dos Movimentos Sociais. A partir disso, é possível pensar na possibilidade delas promoverem um enraizamento do sujeito com o seu contexto do campo e também a construção de um processo educativo ancorado na dimensão da luta coletiva. Ela é a alma dos lutadores do povo; o sentimento materializado em símbolos que ajudam as pessoas a manter a utopia coletiva. No MST a mística é uma das dimensões básicas do processo educativo dos Sem-Terra. A escola pode ajudar a cultivar a mística, os símbolos e o sentimento de fazer parte desta luta. Não fará isso se não conseguir compreender o desafio pedagógico que tem, diante da afirmação de uma criança de acampamento ou assentamento que diz: sou Sem-Terrinha, sou filha da luta pela terra e do MST! (CALDART, 2003, p. 71-72). A discussão sobre os elementos presentes na mística nos permitiu perceber elementos de confluência dela com os princípios discutidos na I e II Conferências “Por uma Educação do Campo“. Os denominados Princípios da Educação do Campo ofereceram conteúdo epistemológico para a construção das políticas de formação de professores do campo. Tais princípios organizaram-se como elementos epistemológicos das discussões que deveriam também estar presentes nas formas de organização das práticas pedagógicas em Educação do Campo. O cerne desses princípios baseia-se na compreensão da luta que objetiva construir políticas públicas que permitam a construção de um projeto de desenvolvimento de campo, a partir da Reforma Agrária, a fim de que a educação seja um direito dos sujeitos do campo, além do acesso e da produção na terra, do trabalho e da justiça social. Para Diniz-Menezes (2013), tais princípios organizam-se em três eixos: protagonismo dos sujeitos, escola como direito e produção sustentável pela vida. O protagonismo dos sujeitos marcou o processo de discussão da Educação do Campo como superação da Educação rural. Nele, os movimentos propõem a participação efetiva da comunidade e dos processos decisórios de articulação pela Educação do Campo, para que, assim, os sujeitos sejam respeitados e representados em sua diversidade. A proposição é que não cabe, aos sujeitos do campo, receber uma proposta educativa, mas participar de sua construção e realizar a articulação da escola com a sociedade, nos processos formativos. Em diálogo com o princípio de protagonismo dos sujeitos, percebemos que os elementos da mística, valores, sentimento, consciência e vida camponesa, permitem que os sujeitos reconheçam os papéis que ocupam em uma dimensão 44 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS que supera a expectativa particular em virtude da causa coletiva. É a presença de tais elementos nas místicas um elemento fundamental para a construção de um conhecimento fundado em uma consciência coletiva e fortalecido nas atividades cotidianas a partir das potencialidades do território campesino, que é o chão que ancora o protagonismo. Ao pensarmos no protagonismo, é importante compreender que ele é o motor que movimenta a luta dos sujeitos do campo em busca da construção de políticas públicas. Comilo e Brandão (2010) nos auxiliam a refletir sobre a construção da mística no contexto do MST como uma prática que incorpora o conteúdo da luta à forma artística. Pode-se perceber que a constituição de seu conteúdo se dá a partir de acontecimentos, de fatos históricos e de ocasiões que movam os sujeitos a refletir sobre as condições do coletivo. Já a concretização de sua proposta pode ter, como suporte, as linguagens musical, poética, teatral ou corporal, isoladas ou combinadas, que levantem reflexões sobre os elementos concretos vivenciados pelos sujeitos no contexto de luta pela terra. Nas realizações das místicas são utilizados os acontecimentos e tragédias ocorridos durante a organização do Movimento no assentamento, envolvendo a vida e a história dos assentados do Pontal do Tigre. A mística é caracterizada pelos símbolos: bandeiras, placas nas entradas dos assentamentos, ferramentas de trabalho, pessoas vestidas de jagunços, fazendeiros, sindicalistas, advogados, professores, agente de saúde, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), padres, políticos, policiais, músicas, sem-terra, entre outras (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 4). Ao se pensar na mística como uma ferramenta que possibilita relembrar o processo de luta dos sujeitos, tal prática também permite olhar para as práticas pedagógicas como uma forma de estimular o protagonismo. Assim, o conhecimento ali construído permite que se formem sujeitos que compreendam criticamente o seu papel de transformadores da sociedade. Já o princípio escola como direito é, para Diniz-Menezes (2013, p. 34), “garantido a partir da luta, processo que evidencia um dos sinais mais agudos da profunda desigualdade social e educacional que atinge a população campesina. A Educação do campo luta pela existência concreta da escola”. A formação da consciência política permite aos sujeitos coletivos compreenderem o direito ao acesso e à permanência à escola, que deve ser oferecido como dever do Estado. Ao pensarmos no diálogo dos elementos da mística com o princípio escola de direito, percebemos a presença dos elementos cultura, simbologia, arte e ética e moral. A escola de luta dos sujeitos do campo é uma escola que carrega as marcas da diversidade cultural campesina e que reconhece os modos dessa cultura nos processos educativos. Sendo assim, abre possibilidades dos seus sujeitos se enxergarem incluídos nos processos educativos que carregam o campo como texto, contexto e subtexto. 45 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Os símbolos são representativos na luta pela terra e na construção da identidade pessoal e coletiva dos “sem-terra” e são trabalhados de forma interdisciplinar nas escolas do campo, tendo por objetivo a libertação dos trabalhadores rurais em busca da terra (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 2). Nota-se, pela exemplificação desse contexto temático, que a mística possibilita a discussão sobre elementos históricos ao servir como ferramenta de preservação da memória dos sujeitos e propor que os participantes reelaborem tal ocorrido para pensarem nas ações do presente que poderão construir uma realidade diferente no futuro. Tal unificação da unidade temporal revela-se como um conteúdo para discussões de ações práticas, sejam reuniões, marchas, escritas de documentos e movimentações coletivas, que visem à transformação do contexto campesino. Nesse contexto, a mística nos Movimentos Sociais do campo, em todo Brasil, é exemplo de preservação da cultura e dos costumes, preservando os valores que os constituíram para além das questões meramente práticas e visuais, como os costumes ou a organização do espaço. Esses elementos em discussão são parte do arcabouço simbólico do qual fazem parte as linguagens verbal e não verbal utilizadas nas místicas. A mística – prática essencial dentro do MST – exemplifica bem a reunião de elementos verbais e não verbais na constituição de um texto, de um acontecimento com fins de recuperar e manter a história e a memória de uma determinada comunidade e, por isto, a importância de apresentar e discutir sua realização (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 5). Percebe-se, dessa forma, que a simbologia presente nas práticas da mística envolve-se com os sons e a arte para que tal escola seja carregada de elementos visuais, sonoros, artísticos e estéticos que se ancorem em significados da luta. Para além da decoração e da paramentação descontextualizada, a escola de direito traz, a partir das práticas de mística, a oportunidade de se pensar pedagogicamente em ações simbólicas que permitam aos sujeitos envolvidos encontrar o sentido de luta no processo educativo. O eixo produção sustentável da vida congrega princípios que, para DinizMenezes (2013), organizam a concepção de educação, a partir do modo de vida e de produção do campo. Essa concepção traz, para a escola, a necessidade de reelaborar, desde seu espaço físico à relação entre os sujeitos. Em diálogo com o tal princípio, percebemos a presença dos elementos mudança e ética e moral. Para se pensar na produção sustentável da vida na Educação do Campo, os elementos de transformação da sociedade presentes na mudança se agregam à luta epistemológica presente na ética e na moral que embasam as práticas de mística que se tornam pedagógicas. A educação ali construída, na escola, serve como contexto de formação do sujeito para a transformação da realidade do território campesino. Ao pensarmos no princípio de produção sustentável da vida presente nas propostas de mudança e ética e moral das místicas pensadas no contexto da Educação do Campo, encontramos espaço para trazer, para as práticas 46 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS pedagógicas, possibilidades de construção de um conhecimento que não seja desvinculado à realidade dos sujeitos. Na educação, a mística se concretiza de diferentes formas, a exemplo da discussão e análise da situação do Brasil e da América Latina, dos índices de analfabetismo, da concentração da terra em mãos de poucos latifundiários, na necessidade dos acampamentos resistirem à demora da concretização assentamentos, na existência de favelas, prostituição e conflitos sociais (COMILO; BRANDÃO, 2010, p. 8). Os princípios da Educação do Campo nos provocam a pensar no desafio, colocado por Caldart (2003), de construirmos um paradigma contra-hegemônico, que permita a compreensão de uma nova relação que supere a dicotomia entre campo e cidade e que possibilite que a escola se insira no contexto de luta pela Reforma Agrária e contra as contradições do modelo de acumulação capitalista, também presente no campo, a partir do paradigma rural tradicional. É possível perceber um evidente diálogo entre os elementos constituintes da mística propostos por Bogo (2002) com os Princípios da Educação do Campo. Embora tenhamos analisado ambos como se partissem de conceitos separados é possível perceber que estes encontram-se entrelaçados pela sua essência forjada na luta dos Movimentos Sociais. Sejam os princípios como elementos epistemológicos para compreender a luta, seja a mística como materialidade simbólica de tal processo. CONSIDERAÇÕES FINAIS: “AS NOSSAS MARCAS SE ESPALHAM PELO CHÃO. A NOSSA ESCOLA ELA VEM DO CORAÇÃO”10 A partir das reflexões aqui levantadas, foi possível apreender a mística como princípio articulador das práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas do campo ao engajamento com a perspectiva de luta dos Movimentos Sociais campesinos. Tal constatação nos permite perceber que, dessa forma, a mística se apresenta como um elemento fundamental para a construção de uma proposta educativa crítica e transformadora, comprometida politicamente com a construção de um novo projeto de sociedade. Entender os elementos da mística nos auxilia a perceber a sua reverberação para além das ações desenvolvidas em sala de aula. Por trabalhar no processo de construção de consciência dos sujeitos, sua presença também se evidencia nas ações de organização do coletivo pedagógico, nas práticas de formação de professores, bem como no diálogo com a comunidade. 10 Trecho da música “A Educação do Campo”, do compositor Gilvan Santos. Tal música busca refletir sobre a proposta de Educação do Campo como uma articulação da escola de direitos conquistada a partir da luta dos sujeitos do campo e do seu potencial transformador das condições de vida no campo. 47 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Ao compreendermos a práxis da Educação do Campo como uma proposta que pretende quebrar com a dicotomização do conhecimento teórico ao incorporar dimensões atitudinais para o aprendizado, notamos a mística como uma proposta pedagógica que se vincula à dimensão concreta da vida. Assim, “entendemos que a mística é a manifestação das atitudes que qualificam a persistência na realização da causa, na qual as pessoas empenham a vida toda com o mesmo vigor” (BOGO, 2016, p. 42). É com esse vigor de materialização educativa dos conteúdos ideológicos, políticos e de luta dos povos do campo que ela permite aos que a praticam um envolvimento na construção do novo mundo. Discutir a mística articulada ao movimento de luta pela Educação do Campo é uma forma de compreender as práticas pedagógicas do campo a partir da materialidade da luta presente nas intencionalidades das palavras de ordem. Em tais manifestações, é possível perceber que as práticas artísticas assumem um papel para além da representação estética, sendo materializadas como forma de organização política e social dos sujeitos do campo, em que a identidade, a tradição e as bandeiras de luta pela transformação são evidenciadas. Caminhamos para a finalização da proposta deste texto, mesmo estando cientes de que tal discussão ainda encontra um terreno profícuo para debates, principalmente no que nos desafia a pensar na amplitude de compreensão do território campesino, que nos coloca diante de diversas possibilidades de incorporação da mística nas práticas pedagógicas das escolas do campo. Nesse percurso de análise, foi possível compreender a mística e seus elementos – valores, cultura, sentimento, mudança, causa e sonhos, consciência, ética e moral, simbologia, vida camponesa, sons e arte – a partir da incorporação do sentido simbólico da luta às práticas de estudo e trabalho no campo. Os significados presentes nos elementos da mística nos dão pistas para pensarmos no diálogo com os eixos dos princípios da Educação do Campo: protagonismo dos sujeitos, escola como direito e produção sustentável pela vida. Tal diálogo se revela ainda mais evidente quando as práticas pedagógicas encontram abertura para pensar e transformar o ato educativo a partir da dimensão de uma coletividade composta de Movimentos Sociais, Sindicais, Associações ou por grupos que fortaleçam o homem e a escola do campo. Esses elementos evidenciam a necessidade de considerarmos as práticas pedagógicas nas escolas do campo interligadas ao movimento das transformações presentes no território campesino. Essa proposta permite, ao mesmo tempo, o resgate da memória como aprendizado histórico e educativo, bem como nos instiga a pensar na contribuição da escola do campo para a construção de um novo projeto de sociedade para o campo. 48 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel. Da cor da terra: representações sociais de professores sobre os alunos no contexto da luta pela terra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. 178p. BOGO, Ademar. O vigor da mística. São Paulo: MST/ANCA, 2002. 189p. BOGO, Ademar. A arte e a mística na Educação Camponesa. In: CARVALHO, Cristiene Adriana da Silva; MARTINS, Aracy Alves (Orgs.). Práticas artísticas do campo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 41-57. (Coleção Caminhos da Educação do Campo; 8) CALDART, Roseli Salete. A escola do campo em movimento. Currículo sem Fronteiras, v. 3, n. 1, p. 60-81, jan./jun. 2003. CARVALHO, Cristiene Adriana da Silva. Representações sociais das práticas artísticas na formação e atuação de professores do campo. Curitiba: APPRIS, 2018. 373p. CARVALHO, Cristiene Adriana da Silva; ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel; MARTINS, Aracy Alves. Quando a Educação do Campo interroga as práticas artísticas: tecendo reflexões. In: CARVALHO, Cristiene Adriana da Silva; MARTINS, Aracy Alves (Orgs.). Práticas artísticas do campo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, p. 19-37. (Coleção Caminhos da Educação do Campo; 8) COMILO, Maria Edi da Silva; BRANDÃO, Elias Canuto. Educação do Campo: a mística como pedagogia dos gestos no MST. Revista Eletrônica de Educação, ano III, n. 6, n.p., jan./jul. 2010. DINIZ-MENEZES, Luciane de Souza. Representações sociais sobre a Educação do Campo construídas por educandos do curso de licenciatura em Educação do Campo. 2013. 89f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pósgraduação em Conhecimento e Inclusão Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite. São Paulo: Editora Hucitec, 1989. 147p. MOLINA, Monica Castagna. Possibilidades e limites de transformações das escolas do campo: reflexões suscitadas pela licenciatura em Educação do Campo-UFMG. In: ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel; MARTINS, Aracy Alves (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 185-197. (Coleção “Caminhos da Educação do Campo”) 49 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS 50 POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO CRÍTICOEMANCIPATÓRIA: CONTRIBUIÇÕES PARA A RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DO PPP NO CONTEXTO DAS ESCOLAS E COMUNIDADES CAMPONESAS Elson Augusto do Nascimento1 Valter Martins Giovedi2 Primeiras palavras O texto é fruto de uma pesquisa de caráter teórico e bibliográfico, animada pela necessidade de compreender a escola do campo em sua multidimensionalidade. Tem como objetivo contribuir com a reflexão e ação político-pedagógica dos sujeitos que fazem a Educação do Campo no dia-a-dia das escolas do campo, apresentando uma síntese de aspectos que definem uma Educação do Campo em uma perspectiva Crítico-Emancipatória. O trabalho inicia com as justificativas que suscitaram a elaboração do texto, a explicitação da lógica interna que ele propõe e um pouco sobre a tarefa que ele pretende desempenhar no processo de luta por uma Educação do Campo Crítico-Emancipatória. Ele se desenvolve abordando dez proposições que sustentam uma proposta de Educação do Campo Crítico-Emancipatória, tendo em vista a reinvenção, construção e resistência para contextos de escolas do campo e comunidades camponesas. Por fim, o trabalho encerra com algumas considerações sobre o processo de formação de educadores e educadoras que é necessário quando assumimos como projeto a Educação do Campo Crítico-Emancipatória. Justificativas para uma Educação do Campo Crítico-Emancipatória Este texto se justifica diante de um contexto de fechamento de escolas do campo, da crescente imposição de currículos, práticas pedagógicas e formativas de modelo hegemônico, neoliberal e urbanocêntrico colocadas para o contexto de escolas do campo, permanentemente. Além disso, ressaltamos as nossas experiências como educadores, gestores e pesquisadores vinculados à Educação Básica, ao Ensino Superior e ao desenvolvimento e realização de formações iniciais e em serviço que nos permitem 1 2 Mestre em Educação. Professor da Educação Básica – Anos Iniciais e Finais de estudantes do campo. Doutor e Mestre em Educação. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, atuando como coordenador e professor do curso de Licenciatura em Educação do Campo. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS escutas e reflexões sobre as práticas diárias dos docentes, suscitadoras da necessidade de sistematizar e apresentar reflexões, que concebemos como oportunas, por suas situações problemas sobre as práticas pedagógicas em escolas do campo, vivenciadas durante os momentos formativos realizados com os educadores/as. Os diálogos, as leituras teóricas e da realidade camponesa, os estudos a respeito da temática, os tempos-espaços formativos e as pesquisas nos levam cotidianamente a compreender a necessidade de sistematizar pensamentos e ideias sobre a organização possível da escola do campo e ousar sugerir questões que instiguem o desvelamento da realidade. Nesse sentido, pretende-se promover reflexões que se traduzam como um chamado crítico e emancipatório. A nossa trajetória no campo da educação e da pesquisa educacional, em especial com assessorias a redes públicas de ensino e a escolas do campo; com a formação inicial e permanente de docentes (NASCIMENTO, 2019); com experiências enquanto professores e gestores da Educação Básica e com pesquisas e estudos desenvolvidos com educadores/as de várias modalidades e esferas educacionais sobre a temática, trouxeram experiências que nos permitiram testemunhar que, invariavelmente, as escolas do campo são atingidas por discursos e ações governamentais, tendo como principais porta-vozes técnicos de Secretarias de Educação e de Superintendências de Ensino, que buscam convencer e, às vezes intimidar, os sujeitos que atuam no chão das escolas, tentando lhes impor um conjunto de concepções e práticas político-pedagógicas que se afastam imensamente dos princípios defendidos pela concepção educacional denominada Educação do Campo. Para resistir a esse tipo de “assédio”, entendemos que é com reflexões que contribuam para o aumento da clareza a respeito das concepções que nos animam, adquirindo cada vez mais consciência do que queremos e do que defendemos, que teremos melhores condições de avaliar as propostas, as narrativas, os decretos, as normatizações, etc. (muitas vezes sedutoras e camufladas com um discurso bonito) que tecnocratas tentam implantar de modo autoritário. Neste texto, reconhecemos a Educação do Campo como um espaço para a construção de processos de libertação, a partir do entendimento de que é possível, neste contexto educativo, um processo formativo que problematiza e reflita criticamente sobre a realidade em que estão inseridos os sujeitos camponeses. Concebemos o educador do campo como aquele sujeito que se compromete com um projeto político transformador que respeita e valoriza a cultura local e é construído a partir da autonomia, do respeito às necessidades socioculturais concretas e do acervo de conhecimento coletivo e individual dos educandos/as camponeses/as. 52 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Nosso objetivo principal é apresentar pontos de reflexão/ proposições com os quais todo Projeto Político-Pedagógico de Educação do Campo deve se preocupar. Priorizamos a abrangência e não o aprofundamento exaustivo sobre cada aspecto tratado. Ou seja, tentamos abordar a escola do campo em uma perspectiva de conjunto, a partir de um percurso que atrela as reflexões a partir da delimitação de dez proposições que integram todo e qualquer projeto políticopedagógico escolar. Optamos por apresentar as ideias por uma lógica de pensamento que realiza um triplo esforço: 1º. Breve explicação do que trata o item; 2º. A denúncia; 3º O anúncio. O/a leitor/a vai perceber que, em cada item apresentado, indicamos do que ele trata, o que rejeitamos (justificando o porquê dessa rejeição) e o que defendemos (justificando essa posição). Ao expor o que rejeitamos, pretendemos contribuir com as ações de resistência de todos aqueles que atuam na Educação do Campo diante dos ataques que sofremos cotidianamente, principalmente das políticas públicas governamentais. Ao expor o que defendemos, pretendemos contribuir com a superação de velhas práticas e proposição de outras que condizem com os nossos anseios. Dessa forma, pretendemos oferecer uma visão bem sistemática das nossas ideias, tendo em vista o fortalecimento da Educação do Campo Crítico-Emancipatória como referência e horizonte. Em suma, organizamos a seguir dez proposições para refletir e dialogar a respeito de uma prática social e política de educação do campo, alinhada com provocações críticas sobre os fazeres, numa perspectiva endossada diretamente por princípios freireanos, pois reconhecemos que as proposições do pensador para Educação Popular estão diretamente ligadas aos princípios da Educação do Campo. Dez proposições para uma política educacional de Educação do Campo Crítico-Emancipatória. Proposição 1: O campo que queremos Trata-se aqui de afirmar desde o início que a educação escolar não acontece fora da sociedade. A educação é sempre uma tomada de posição em relação ao que se quer para a vida social. As perguntas aqui são bem claras: o que queremos para o campo? O que não queremos para o campo? Rejeitamos a ideia de campo reduzido a território de produção de alimentos como mercadorias para o lucro proveniente da exportação. As consequências dessa concepção de campo são terríveis para os seres humanos e para a natureza. 53 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS É por causa do predomínio dessa visão de campo que vivenciamos nas regiões brasileiras, que presenciamos: os desertos verdes, a crise hídrica, a exploração da mão-de-obra, o uso de agrotóxicos, construção de barragens que inviabilizam comunidades, a fuga dos camponeses jovens para as cidades, o empobrecimento do/a agricultor/a familiar, extinção de espécies de animais e vegetais, derrubadas de florestas, a falta de infraestrutura, de emprego, de lazer, de transporte, de estradas, de escolas etc. O discurso modernizador da agricultura que sacrifica os seres humanos não nos interessa. Em suma, é a alienação no sentido forte da palavra. Quando as decisões sobre o território do campo são tomadas por grupos poderosos com base exclusivamente no critério da lucratividade do agronegócio, o campo deixa de servir aos seres humanos que nele vivem. Tudo passa a se moldar aos interesses de uma minoria poderosa que concentra as terras, a riqueza e o poder político. Não é esse campo que queremos. Por isso, somos contra as políticas que favorecem a este modelo de campo. Em contrapartida, afirmamos o campo como espaço de vida digna para os seres humanos e em equilíbrio com a natureza. Este campo, com essa finalidade, só é possível com: 1. A ampliação e fortalecimento da lógica de produção da agricultura camponesa; 2. Com o fortalecimento das organizações e associações dos/as camponeses/as que lutam por este modelo; 3. Com a difusão de práticas de democracia participativa nas várias comunidades e; 4. Com o fortalecimento de políticas públicas que favoreçam esses sujeitos; 5. Superação de todas as formas de discriminação no campo: gênero, etnia, raça, origem social, idade, sexo, religião etc. A hegemonia desta concepção de campo é condição para que o esvaziamento do campo e as tendências destrutivas dos seres humanos e da natureza sejam revertidas. A sociabilidade que emerge da agricultura camponesa favorece a construção de valores como solidariedade, igualdade política, cooperação, cidadania, dignidade, respeito pelas diferenças, respeito pela natureza e pelos seus ciclos etc. Em suma, é a materialização da ideia de emancipação humana. Proposição 2: O papel da escola do campo implicado no nosso projeto de campo A educação escolar não ocorre no vácuo. Ela se dá sempre dentro de um contexto econômico, político, social e cultural local, macrossocial e global. Diante de tal contexto, só há três posições possíveis para a escola: 1ª. Formar em acordo com os valores e práticas dominantes (educação a serviço da adaptação); 2ª Omitir-se diante dos valores e práticas dominantes (educação a serviço da cumplicidade com a ordem); 3ª. Formar em favor de valores e práticas contra- 54 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS hegemônica. Não existe educação/escola/professor neutros. Essa hipótese contraria a própria natureza da educação. Rejeitamos toda e qualquer narrativa que afirme a neutralidade da educação e do professor. Quem defende isso não está sendo neutro. Quem diz isso está defendendo que a escola ensine (por ação ou por omissão) os valores e práticas hegemônicas na sociedade e na educação: individualismo, competitividade, intolerância religiosa, machismo, LGBTfobia, empreendedorismo capitalista, indiferença, discriminações, passividade, obediência cega, naturalização das hierarquias sociais, subserviência, opressão, silenciamento, classificações, rotulações, desprezo pelo campo, exaltação da vida da cidade, desprezo pelo trabalho produtivo, desgosto pelos estudos, falta de sentido do conhecimento, distanciamento do saber em relação à vida, etc. Em contrapartida, a escola que defendemos é a principal instituição responsável pela formação do sujeito camponês que protagonizará a concepção de campo que afirmamos na Proposição 1. Com base no que afirmamos acima, o/a camponês/a precisa vivenciar na escola as experiências e a aquisição de conhecimentos que lhe possibilitará construir o campo que sonhamos. Nela ele/a deverá aprender: a ser sujeito político, a gerir o espaço coletivo, a indignar-se contra todas as formas de discriminação e opressão, os princípios e técnicas da agricultura camponesa, a organizar associações comunitárias, a expressar sentimentos, a fruir e produzir arte, a denunciar as injustiças, a denunciar o latifúndio e o agronegócio, a valorizar a cultura e propor mudanças quando achar necessário, a ler, escrever e contar de modo não-mecânico (ou seja, como formas de melhor entender o mundo, propor mudanças e transformá-lo), enfim, a se desenvolver omnilateralmente. Para formar este sujeito, a escola que defendemos realiza duas mudanças: no seu conteúdo e na sua forma. As duas são necessárias, pois se o conteúdo muda e as relações sociais de poder se mantêm as mesmas que têm sido historicamente cultivadas, não ocorre a formação de novos sujeitos. É preciso que os/as educandos/as vivam a experiência de protagonismo em todos os aspectos da vida escolar: na gestão, na construção de conhecimento, na definição do currículo, na elaboração de projetos, nas reuniões pedagógicas, na organização dos espaços e tempos etc. Proposição 3: A nossa concepção de política educacional Em todas as suas modalidades (desde a Educação Infantil até a PósGraduação), a educação está sujeita a políticas educacionais emanadas pelo poder público. Tais decisões sempre tratam de um certo conteúdo e são tomadas de uma certa forma. Ou seja, forma e conteúdo são duas dimensões constituintes de toda política educacional. De acordo com ambas, podemos identificar a favor 55 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS de quem e contra quem; a favor de quê e contra o quê determinada política educacional está sendo proposta e praticada. Isto posto, no que concerne à FORMA, rejeitamos toda e qualquer política educacional que toma decisões de modo unilateral, tecnocrático, centralizado, sem consulta às bases. Esse tipo de decisão é absolutamente antidemocrática e revela claramente o caráter autoritário de determinado governo. Esse tipo de governo não quer favorecer a participação política do povo nas decisões que lhe afetam. Esse tipo de política concebe o povo camponês como incapaz, inferior, despreparado e que, portanto, deve se submeter às decisões dos técnicos que supostamente sabem o que é melhor para as escolas. Esse tipo de governo só sabe fazer política para o povo obedecer. Em relação ao CONTEÚDO, rejeitamos toda e qualquer política educacional de fechamento de escolas, períodos e turmas do campo. A Constituição Federal de 88, a legislação federal e as legislações educacionais em vigor deixam claro que o fechamento de escolas, sem o aval das próprias comunidades que serão afetadas, é violação da ordem jurídica vigente, portanto, é crime. Em relação à FORMA, temos total convicção na democracia participativa como melhor caminho para a elaboração de políticas educacionais de Educação do Campo. O princípio é muito simples: que todos os sujeitos que serão afetados por determinada decisão possam participar do processo que vai elaborá-la. Tal princípio vale tanto para as decisões de nível macropolítico (por exemplo, nas Secretarias de Educação) quanto para as de nível micropolítico (por exemplo, no interior das escolas). Quando as decisões não são tomadas dessa forma, são absolutamente ilegítimas, ainda que possam estar amparadas na legalidade. Os/as camponeses/as e todos/as os/as envolvidos/as com a Educação do Campo devem ser os sujeitos da política educacional da Educação do Campo, seja no nível local, no municipal, no estadual e no federal. Em relação ao CONTEÚDO, defendemos que a política educacional respeite a legislação em vigor, garantindo o direito dos/as camponeses/as de acesso à escola em suas próprias comunidades. Cada fechamento de escola é uma derrota para o acesso e qualidade da Educação do Campo. Quanto mais próximas das comunidades estiverem as escolas, tanto mais poderão atender os/as camponeses/as nas suas necessidades específicas. Proposição 4: A nossa concepção de gestão escolar A escola do campo é regulamentada por uma determinada legislação em vigor e por uma determinada política educacional, mas possui uma relativa autonomia para se autogovernar. A gestão escolar é o modo pelo qual a escola exerce essa autonomia relativa. Ou seja, no interior da escola do campo várias 56 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS decisões administrativas, financeiras e pedagógicas, que regulam o funcionamento do espaço coletivo, são tomadas constantemente. Como elas estão sendo tomadas? É disso que fundamentalmente trata o tema da Gestão Escolar. Rejeitamos a concepção burocrática, gerencial e tecnocrática de gestão, por entendermos que são todas expressões do autoritarismo educacional. Os/as diretores/as de escola não devem se ver como representantes do governo dentro das escolas e sim como administradores democráticos. Quando se vêem como meros porta-vozes do “governo de plantão”, tendem a recair na perspectiva da gestão burocrática (ou seja, aquela que apenas executa sem questionar o que está pré-estabelecido pelos órgãos superiores, repassando as ordens para os subordinados), na gestão gerencial (ou seja, aquela que assume as metas impostas pelos governantes como verdades absolutas, reproduzindo essa lógica de controle dentro da escola) ou na gestão tecnocrática (que pressupõe que só o/a próprio/a diretor tem competência para tomar decisões, porque sabe o que é melhor para todos/as: professores/as, alunos/as, corpo administrativo, comunidade etc.). Em contrapartida, defendemos que o único remédio contra a gestão autoritária é o fortalecimento dos mecanismos de democracia participativa no interior da escola. Diretores/as precisam entender que, antes de serem representantes do Estado, são servidores do povo que frequenta a escola que dirigem. O espírito de todo servidor democrático é “governar obedecendo” aqueles que são a razão última da existência da instituição escolar: comunidade, estudantes e professores/as. Por isso, o/a diretor/a de escola, compromissado/a com a Educação do Campo, deve se colocar a serviço dos anseios dos sujeitos da escola. Daí a importância de ele/a ser, antes de tudo, um/a porta-voz das decisões do Conselho de Escola e não dos órgãos burocráticos. Isso exige três atitudes: 1. Coragem e capacidade estratégica para saber lidar com o histórico de autoritarismo das instituições administrativas e seus órgãos auxiliares; 2. Coragem e humildade democrática para presidir o Conselho de Escola, sabendo que suas teses podem algumas vezes ser derrotadas, entendendo que isso é parte da democracia; 3. Incentivar a participação paritária dos segmentos que compõem a escola, pois só assim as decisões poderão ser consideradas legítimas e de fato representativas do coletivo escolar. Dessa forma, o/a diretor/a estará materializando o ensinamento de Caldart (2012, p. 262): “A Educação do Campo (...) busca conjugar a luta pelo acesso à educação pública com a luta contra a tutela política e pedagógica do Estado (reafirma em nosso tempo que não deve ser o Estado o educador do povo)”. 57 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Proposição 5: A nossa concepção de conhecimento A escola lida com o conhecimento. Isso supõe duas perguntas que toda escola e seus profissionais precisam saber responder: 1ª Como se dá o processo de conhecimento? 2ª Quais conhecimentos consideramos prioritários, valiosos e legítimos para a escola? As respostas a essas perguntas estão necessariamente ligadas à concepção de mundo e de formação humana que se tem. O fato é que não é possível à escola ensinar todos os conhecimentos existentes e servir a todas as concepções de ensino-aprendizagem. Ela precisa fazer escolhas. Rejeitamos a perspectiva que defende que o processo de conhecimento se dá por assimilação passiva. Também rejeitamos a perspectiva que afirma que sobre o processo de conhecimento nada podemos afirmar, já que os seres humanos são tão plurais que não é possível afirmar ao certo como aprendemos. A primeira concepção resulta na Educação Bancária, que reduz os/as alunos/as a recipientes que devem ser enchidos pelos depósitos de informação realizados pelo professor. A segunda resulta no “tudo vale”. Ou seja, ela atribui uma autonomia absoluta ao professor que pode fazer o que acha que é o melhor de acordo com os seus critérios pessoais: “já que nada se pode afirmar sobre o ato de conhecer, nada se pode afirmar com certeza sobre o ato de ensinar”. Por fim, rejeitamos a ideia de que só o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade (científico, filosófico e artístico) deve ser tratado pela e na escola. Tal concepção leva à desconsideração, ao desrespeito e, no limite, ao desprezo pelo saber dos/as educandos/as e de suas comunidades. Defendemos que, o processo de conhecimento, para ser crítico, precisa garantir que todos/as dele sejam sujeitos. Ou seja, a aprendizagem crítica, enquanto aprendizagem que se coloca a serviço da emancipação humana só é possível quando todos/as que nela estão envolvidos/as se coloquem em uma posição ativa, indagando, problematizando, falando, criando hipóteses, divergindo, construindo, reconstruindo etc. Ou seja, só o diálogo possibilita esse processo de conhecimento que aqui defendemos. Além disso, defendemos que os conhecimentos comunitários e aqueles com que os/as estudantes chegam à escola são valiosos. Eles/as devem ser o ponto de partida para a seleção do currículo e para a organização do trabalho pedagógico no contexto de aula, seja ele disciplinar ou por área de conhecimento. Em outras palavras, são os conhecimentos e necessidades socioculturais dos estudantes e das suas comunidades que indicam quais os conhecimentos sistematizados que as escolas devem selecionar. Quando a seleção é feita sem referência a esses conhecimentos, a experiência escolar torna-se alienante, sem sentido, favorecendo a desistência e a apatia, enfim, impossibilitando o ensinoaprendizagem crítico. 58 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Proposição 6: A nossa concepção de currículo, tempos e espaços escolares Quando falamos em currículo, referimo-nos aos conhecimentos e vivências oferecidos/as pela escola em seus tempos e espaços, tendo em vista os pressupostos e objetivos políticos e axiológicos por ela assumidos. Rejeitamos a escola a serviço de objetivos políticos e axiológicos de reprodução e adaptação à ordem social vigente. Por isso, rejeitamos toda a imposição curricular que se coloca a serviço deste objetivo: sistemas apostilados, currículos oficiais feitos em gabinetes, livros e materiais didáticos que não dialogam com o campo concreto e projetos educacionais patrocinados e mantidos por sistemas do agronegócio, com premiações para escolas do campo. Também rejeitamos currículos que são base de projetos de escolas do campo que visam à mera adaptação acrítica por serem, meramente, centrados no indivíduo, nos seus projetos pessoais e nas ideologias de mercado, excludentes da coletividade e dos projetos comunitários de libertação, pois reconhecemos que esses currículos não servem aos propósitos da Educação do Campo. Em contrapartida, defendemos que o valor maior que orienta a Educação do Campo é a libertação. Essa consiste na superação das condições econômicas, sociais, políticas e culturais que impedem a vida digna para os/as camponeses/as. Tal superação só é possível por meio da organização coletiva e luta política dos/as oprimidos/as: a práxis transformadora. Nessa organização, a educação tem papel fundamental, já que ela possibilita a conscientização de educadores/as e educandos/as a respeito das causas da opressão e dos caminhos para superá-la. Eis aí o projeto ético-político da Educação do Campo. Como o currículo pode ser organizado para atendê-lo? Antes de qualquer coisa, é preciso ter clareza de que o currículo não pode entrar em contradição com o propósito acima e com a concepção de conhecimento exposta na Proposição 5. Para tanto, é necessário que ele se articule com a vida concreta dos/as educandos/as e suas comunidades. Ou seja, a vida concreta que há e que se quer deve ser a referência para a seleção dos conhecimentos e das experiências escolares. Articulando as reflexões de Severino (2001) com as contribuições de Caldart (2004; 2009), entendemos que, pelo menos, três são os aspectos da vida concreta que precisam ser referências para a organização do currículo da Educação do Campo: a práxis econômica (o trabalho); a práxis política (a luta social); a práxis simbolizadora (a cultura). Ou seja, o currículo deve: 1. Possibilitar a reflexão crítica sobre o trabalho que se faz na sua comunidade, a aprendizagem deste trabalho e a elaboração de propostas para fazê-lo melhor; 2. Possibilitar a reflexão crítica sobre os problemas sociais, políticos e ambientais da comunidade, sobre as formas de organização para enfrentá-los e a vivência da 59 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS organização coletiva necessária a esse enfrentamento; 3. Possibilitar a reflexão crítica sobre a cultura da comunidade, a aprendizagem dessa cultura e a elaboração de propostas para reinventá-la, quando assim for necessário. Portanto, para a construção e organização de seu currículo, a escola deve ir às comunidades e aprender com elas e sobre elas. É nesse sentido que se sugere a organização dos tempos e espaços em Alternância, a investigação temática freireana (FREIRE, 2005) e o inventário de realidade (CALDART et al, 2016). Proposição 7: A nossa concepção pedagógico-metodológica Metodologia, no contexto pedagógico, é diferente de método. Método diz respeito às etapas sucessivas que se deve trilhar para se chegar a um determinado objetivo. A metodologia se refere a um conjunto de princípios que devem orientar as ações práticas para que se atinja determinado objetivo. Quando se trata do fazer concreto na escola sempre procedemos com um método, porém ele sempre está inscrito em uma concepção metodológica mais ampla. É sobre esta última que falamos nesta Proposição 7. Rejeitamos a concepção metodológica que afasta a concepção e a execução. Ou seja, dicotomiza a teoria e a prática, atribuindo a alguns a tarefa de pensar, criar, elaborar etc. e a outros a tarefa de reproduzir, copiar, obedecer etc. Tal metodologia é própria das sociedades hierárquicas e dos sistemas de produção de exploração. Quando ela se reproduz na escola, esta instituição está servindo, muitas vezes de modo inconsciente, à reprodução da ordem da dominação. No contexto das aulas, essa metodologia se materializa em métodos passivos e apassivadores dos/as estudantes. Traduz-se em práticas de ensino entendidas como processos de transferência de quem sabe para quem não sabe. Tal metodologia é antagônica ao que defendemos na Educação do Campo, pois entendemos que ela forma sujeitos para a subserviência na experiência da alienação. Em contrapartida, a Educação do Campo compromete-se com uma formação para a inserção crítica dos sujeitos nos processos sociais. Portanto, sua metodologia tem que ser coerente com essa finalidade. Diante disso, destacamos os seguintes princípios metodológicos da Educação do Campo Crítico-Emancipatória: 1) A dialogicidade: A dialogicidade é o modo propriamente humano de estar no mundo. O diálogo nos leva a existenciar a horizontalidade e o sentido de vida comunitária. As relações sociais defendidas pela Educação do Campo são radicalmente democráticas, por isso, o diálogo deve ser constantemente vivenciado na escola em todos os seus momentos e espaços. A Educação do Campo não faz concessões às relações antidialógicas. 2) O trabalho como princípio educativo: O trabalho é a ação coletiva consciente dos seres humanos no mundo para transformá-lo: é práxis. A Educação do Campo não aceita a imposição de 60 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS tarefas que contrariam o sentido fundamental da experiência do trabalho: a coletividade e a ação consciente criadora. Todos devem ser sujeitos das tarefas escolares: sejam as de natureza física, sejam as de natureza intelectual. Quanto mais todos/as participarem da concepção e execução das tarefas, tanto mais nos aproximaremos da sociedade que queremos construir. 3) A pesquisa como princípio educativo: Educação do Campo não separa o ato de aprender e o ato de pesquisar. As habilidades e procedimentos exigidos pelo segundo são as mesmas exigidas pelo primeiro: indagar, comparar, questionar, testar hipóteses etc. Tais princípios metodológicos se apresentam em consonância com o projeto autossustentável de emancipação social e política, capaz de fortalecer a cultura e os valores da comunidade campesina, articulando-se, à educação pautada em princípios que valorizem o povo do campo e respeite sua diversidade (PIRES, 2012, p. 92). O campo é visto numa perspectiva em defesa da vida digna, que se traduz como uma luta legítima por políticas públicas e por um projeto de educação próprio para os sujeitos do campo e não mero resultado de adaptação ou adequação ao urbano. Proposição 8: A nossa concepção de conteúdos escolares Os conteúdos escolares são os tópicos de conhecimentos que se propõe para o trabalho pedagógico junto aos/às educandos/as no contexto escolar. Rejeitamos pacotes e listas de conteúdos elaborados por “sabichões” em seus gabinetes. Entendemos isso como uma das marcas mais perversas do autoritarismo dos gestores da educação. Recorremos a Paulo Freire para nos ajudar a expressar essa rejeição. Em um de seus textos, Freire enumera 7 atitudes que não podem ser realizadas por quem se proclama progressista. Na sétima ele diz o seguinte: [O progressista não deve] Fundar sua procura da melhora qualitativa da educação na elaboração de ‘pacotes’ conteudísticos a que se juntam manuais ou guias endereçados aos professores para o uso dos pacotes. Percebe-se como uma tal prática transpira autoritarismo. De um lado, no nenhum respeito à capacidade crítica dos professores, a seu conhecimento, à sua prática; de outro, na arrogância com que meia dúzia de especialistas que se julgam iluminados elabora ou produz o ‘pacote’ a ser docilmente seguido pelos professores que, para fazê-lo, devem recorrer aos guias. Uma das conotações do autoritarismo é a total descrença nas possibilidades dos outros. O máximo que faz a liderança autoritária é o arremedo de democracia com que às vezes procura ouvir a opinião dos professores em torno do programa que já se acha, porém, elaborado. Em lugar de apostar na formação dos educadores o autoritarismo aposta nas suas ‘propostas’ e na avaliação posterior para ver se o ‘pacote’ foi realmente assumido e seguido (FREIRE, 2001a, p. 71-72). Em contrapartida, apostamos na capacidade dos/as educadores/as de selecionarem e elaborarem conteúdos e atividades pedagógicas a partir dos 61 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS diagnósticos/investigações que o coletivo escolar faz da realidade concreta dos seus alunos/as camponeses/as e das necessidades que eles/as apresentam. Para a Educação do Campo, o ponto de partida para a seleção dos conteúdos são os Temas Geradores provenientes da pesquisa sociocultural (FREIRE, 2005) e da pesquisa do agroecossistema comunitário (CALDART et al, 2016) que o coletivo escolar realiza junto às comunidades atendidas pela escola. Da problematização dessas informações que emergem tópicos de conhecimento significativos e necessários aos/às educandos/as. Emergem daí tópicos de conhecimento de diversas fontes, inclusive do chamado “conhecimento historicamente acumulado”. Para a Educação do Campo, não são os/as estudantes que devem estar a serviço dos conteúdos. Pelo contrário, são os conteúdos que devem estar a serviço das necessidades dos/as estudantes e das comunidades camponesas. Cabe aos/às educadores/as do campo desenvolverem, no seu processo de formação permanente, habilidades de leitura de realidade das comunidades, de escuta dos sujeitos, de problematização das informações, de interpretação crítica dos achados e de proposição de conhecimentos significativos. Esse é o grande desafio para a formação de professores do campo. Proposição 9: A nossa concepção de avaliação A avaliação, em termos gerais, é a atribuição de um valor (não necessariamente quantitativo) a determinado fato, processo, acontecimento, trabalho etc. com base em uma expectativa prévia. Quando falamos de avaliação no contexto escolar, estamos nos referindo, principalmente, a dois momentos. A avaliação institucional e a avaliação da aprendizagem. A primeira é a que incide sobre a instituição e o seu trabalho, a partir de objetivos e metas previamente estabelecidos. A segunda é a que incide sobre a aprendizagem dos/as estudantes. Rejeitamos a avaliação que é utilizada como mecanismo de coerção, punição, intimidação, controle externo, submissão, silenciamento, classificação, rotulação, hierarquização, competição. Essa concepção tem sido a tônica dos processos de avaliação desde o início da escolarização. No âmbito institucional ela tem se realizado como avaliação que os órgãos e instituições público-administrativas fazem sobre as instituições escolares. Tais órgãos estipulam metas que as escolas devem alcançar e aplicam provas de larga escala para averiguar o resultado. Ou seja, impõem um padrão de qualidade arbitrário, impõem currículos a partir deste padrão e esperam que as escolas e seus professores executem de modo obediente tais prescrições autoritárias. Para ganhar o apoio da sociedade, publicam rankings e dizem que os desempenhos melhores são sinônimos de qualidade. Ou seja, nessa perspectiva o 62 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS discurso de respeito pelas diferenças não passa de retórica, já que todo o processo é absolutamente homogeneizador. No âmbito da aprendizagem ela se realiza pelo uso da avaliação como forma de produzir medo e uma atitude submissa dos/as estudantes. Distorce todo o processo: quando tiram notas boas, achamos que aprenderam; quando tiram notas ruins, que não aprenderam. Contudo, [...] aprendemos na caminhada da EdoC que unidade política não é padronização. Quem quer padronizar tudo é o capital. Somos diversos e queremos compor territórios de igualdade social e diversidade (natural e humana). E podemos/precisamos ter unidade política (e afinidade de concepção formativa/pedagógica) contra nossos inimigos comuns e em torno de objetivos de longo prazo em comum (CALDART, 2018, p. 7). Por isso, defendemos que a avaliação é momento de reflexão crítica sobre uma prática realizada. Todos são corresponsáveis pelo resultado. Quando ele é bom, onde acertamos e por quê? Quando ele é ruim, onde e por que estamos errando? Em termos institucionais, defendemos que cada escola do campo, com a participação de todos os segmentos, deve criar seus próprios critérios de avaliação sem ter que se submeter a padrões colonizadores arbitrários externos. O papel dos órgãos públicos de educação é de apoiar as escolas neste processo e sugerir caminhos para que ele seja bem-sucedido. O órgão público de educação não deve se colocar como patrão e sim como parceiro corresponsável pelos processos e resultados. Quanto à avaliação da aprendizagem dos/as estudantes, defendemos que se trata de um momento em que estamos avaliando o nosso trabalho com eles. As produções e atitudes deles são expressões do processo pedagógico global da sociedade e do nosso trabalho. O não aprendizado deve ser visto como um desafio para nós e não como uma oportunidade de os culpabilizarmos, punirmos, falar mal das suas famílias e terceirizar a responsabilidade. Enfim, a avaliação é momento de parceria e não de perseguições que apenas alimentam o autoritarismo da nossa sociedade por meio da reprodução das práticas escolares opressoras. Proposição 10: Enfim, o nosso Projeto Político-Pedagógico (PPP) O PPP é o documento que: 1º. Traz a concepção educacional da escola; 2º. Traz o diagnóstico da/s realidade/s que ela atende; 3º. Antecipa/Projeta, no plano das ideias, as práticas da escola. Trata-se de um documento vivo, pois as concepções mudam, o diagnóstico é aprimorado e as práticas são constantemente refletidas, levando a mudanças no documento. Não há um padrão único 63 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS para este documento. Os temas que ele vai tratar podem variar muito de escola para escola. Rejeitamos os PPPs que já vêm prontos para as escolas. Rejeitamos os PPPs que não são construídos coletivamente de modo participativo. Rejeitamos “PPPs de fachada” que só servem para atender uma demanda burocrática e que ficam engavetados na sala do/a diretor/a da escola. Rejeitamos os projetos político-pedagógicos: 1º Que não é feito pelo coletivo da escola; 2º Que são implantados sacrificando/ negando a identidade, os valores da escola e o diálogo com sua comunidade; 3º Que defendem valores absolutamente antagônicos aos da Educação do Campo: por exemplo, a competição e o empreendedorismo individual a partir do conceito de projetos de vida de alunos individualmente. Ao centrar o ensino nos projetos de vida individuais, não compreende que estudantes não são apenas sujeitos individuais, mas também coletivos, que possuem uma comunidade e que por ela devem lutar, como condição para uma vida digna para si e para os outros sujeitos. Em contrapartida, defendemos PPPs que são construídos coletivamente com a participação direta de todos os segmentos que compõem a comunidade escolar: gestores/as, professores/as, corpo técnico-administrativo, estudantes, pais/responsáveis, comunidade, movimentos sociais etc. Defendemos que periodicamente tais segmentos sejam convidados para avaliar o PPP e o trabalho da escola a partir do que nele está escrito. O PPP é expressão da concepção coletiva. Ele serve de parâmetro/ /instrumento para avaliar (aceitando ou rejeitando), inclusive, as propostas externas (propostas vindas de cima ou de fora da escola) e as ações dos sujeitos no dia a dia. Por isso, ele garante a autonomia da escola enquanto instituição. O PPP da Educação do Campo exige, pelo menos: 1. Explicitação de uma concepção de mundo, de sociedade, de campo e de educação emancipatórias; 2. Explicitação de um diagnóstico rigoroso a respeito das comunidades atendidas pela escola; 3. Explicitação das concepções e proposições administrativas, com ênfase na maneira de concretizar a gestão democrático-participativa na escola; 4. Explicitação das proposições propriamente e pedagógicas. Enfim, o PPP da Educação do Campo expressa o grande objetivo dessa concepção: a construção de um mundo mais justo, humano, solidário, sustentável, sem discriminações. Em suma: sem opressores e oprimidos. A Educação do Campo traça uma concepção de educação e de campo, vinculada ao conceito de sociedade e de transformação social de classe. É uma educação transformadora do cotidiano. Tem como princípios a defesa pela distribuição de terras, a agricultura agroecológica e um modo de produção cooperativo. É aquela que foi fundada para atender aos direitos e à defesa dos ideais de movimentos de pequenos agricultores, de movimentos de 64 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS trabalhadores sem-terra, de associações rurais, de reforma agrária popular, ou seja, para regiões cuja maioria da população é rural. É um exercício pedagógico em favor da formação permanente de sujeitos coletivos para a formação política. Nessa dimensão, a escola é compreendida como lugar para vivência dos momentos e elementos de uma sociedade, para que a vida experimentada na escola seja base para aquilo que se quer como sociedade. Portanto, espera-se uma vida social mais compreendida como coletiva e menos como individual. Para isso, é preciso dar às/aos estudantes uma posição de lutadores e construtores críticos da realidade concreta. Nesse contexto escolar, aprender é um ato de pesquisa e de investigação consciente da realidade, numa perspectiva social, cultural, econômica e política, no qual o trabalho do educando e educador se dá como trabalho criativo, como categoria articuladora e interdisciplinar da práxis para a formação dos sujeitos coletivos, definindo uma existência humanizada e emancipada. Considerações finais Com as nossas experiências formativas e de discussão nessa perspectiva da Educação do Campo Crítico-Emancipatória, a partir de formações dos docentes de escolas do campo, tem sido possível notar: 1. A necessidade de formações e defesas que tenham a perspectiva freireana calcada na experiência concreta como determinantes do processo formativo e de reinvenção dos paradigmas da Educação do Campo; 2. Divulgar a possibilidade que a visão freireana traz para professores/as de escolas do campo poderem construir currículos e práticas pedagógicas fundamentadas numa concepção libertadora de educação; 3. Ser caminho para vivenciar aproximações, desalienação e para o exercício da autonomia docente nos fazeres da Educação do Campo; 4. Romper com o silenciamento e medo de falar; 5. Ser possibilidade de reencantamento e de descoberta de novos sentidos para a organização das políticas e práticas na Educação do Campo. Logo, o desafio é assumir uma postura crítico-reflexiva e se posicionar com a finalidade de garantir condições para uma formação emancipatória que se dá pelos sujeitos, a partir de práticas de formação de educadoras/es e educandas/os que desvelem as condições de opressão, injustiça, mazelas e alienação impostas. É preciso passar a ver a Educação do Campo não como uma ação em que as/os estudantes estejam a serviço dos conteúdos, mas, pelo contrário, em que os conteúdos estejam a serviço das necessidades das/os estudantes e das comunidades camponesas. Por essa razão, é necessário repensar a formação docente de educadoras e educadores do campo, que por muitas vezes é tão ignorada e marginalizada no processo de políticas públicas educacionais. Entendemos que 65 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS reinventar e repensar a formação docente das/os educadoras/es das escolas do campo é um desafio necessário, que requer pesquisa, formação, reflexão sobre a prática pedagógica e sobre o currículo que acontece nas escolas do campo, para que assim possamos vislumbrar uma escola em que os profissionais sejam capazes de conduzir uma prática coerente com as necessidades e os princípios da escola do campo e pelos fundamentos da Educação do Campo. Freire (2018), ao apresentar pensamentos em favor da liberdade, da justiça, da ética e da autonomia do ser humano, tanto na escola quanto na sociedade, compreende que a democracia não é algo que acontece em um intervalo ou instante, por decreto, por uma concessão de autoridade que se auto constitui democrática, ou por meio de afirmações de que a sociedade precisa deixar de ser capitalista. O autor compreende que a democracia, a autonomia e a liberdade são processos. Não um processo autoritário, feito por alguns sobre outros. Pelo contrário, dá-se pela conquista coletiva, através do respeito, do diálogo e da tomada de decisão feita por meio daqueles que fazem a caminhada, processo que concebe o novo, a partir de seres humanos mergulhados em suas histórias e nas condições concretas de vida (FREIRE, 2001b, p. 18). É preciso ver a vida que é produzida no campo e compreendê-la a partir de um olhar baseado no sentido de justiça. A mudança da compreensão só se dá com a tomada de uma consciência política, pautada na re-conceituação sobre relações sociais, trabalho, inclusão, libertação, diferenças, igualdade e ser humano. Por fim, fica notório que as práticas da Educação do Campo não são práticas que começam do nada. São movidas por heranças de luta e resistência que emanam de uma pedagogia da luta, da transformação e da libertação, de um projeto de educação popular na ação contra a educação como método e técnica neutra, para dar lugar a uma educação como ato político. Tanto a educação pensada por Paulo Freire, quanto a Educação do Campo trazem uma concepção de consciência referenciada na realidade concreta, compreendendo-a não como algo que vem de fora, mas que está relacionada às práticas culturais e políticas vivenciadas na produção de existência. Nessa perspectiva, educador-educandos crescem juntos como sujeitos na formação, é missão coletiva, caminhada que se faz junto com o povo, reconhecendo, valorizando e respeitando-o e seus saberes. Por isso, nela é central o papel da cultura, o respeito à diversidade, a defesa dos direitos iguais, a luta pelo direito à diversidade, a valorização dos movimentos sociais no processo de formação, em prol da libertação e da emancipação a ser dada como prática no exercício de fazer educação. 66 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo 20 anos: a construção de um projeto político-formativo. Roteiro de Exposição. FONEC – Encontro Nacional – 20 anos Educação do Campo e PRONERA, Brasília, jun.2018. ______. Educação do Campo. In: CALDART, Roseli Salete et al. Dicionário da Educação do Campo. 2 ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Expressão Popular, 2012. ______. 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O poema pode não embalar seu leitor a princípio, mas ao decorrer o convida para sair de seu conforto e assim dar início ao confronto existencial de seu território. As obras dialogam na necessidade existente do convite à reflexão e da empatia posta a quem as ler e a quem as vive geograficamente. Através da discussão da obra Morte e Vida Severina e da referência à Pedagogia do Movimento Sem-Terra, será traçado o perfil do sujeito pedagógico e sua realidade social, verificando como a contemporaneidade da literária brasileira se adéqua e está presente nos movimentos socioculturais. Após as análises espera-se compreender como a Literatura Brasileira está presente na identidade educativa de um povo. E o quanto a formação desses movimentos tem suas raízes identitárias dentro dela, permitindo averiguar suas influências nesse cenário. O diálogo quebra a projeção feita pela sociedade durante toda a história, aproximando a marginalidade sofrida pelo campesinato ao decorrer de sua luta pela sobrevivência. CHEGADA DO REALISMO AO BRASIL As grandes mudanças ocorridas na Europa na metade do século XIX influenciaram bastante a Escola Literária Realismo, contrária às ideias do 1 Educadora Popular, Professora de linguagens na Educação de Jovens e Adultos do Campo. Especialista em Literatura Brasileira e Educação do Campo. Integrante do Setor de Educação do MST/PE, do Centro de Formação Paulo Freire/PE e do Coletivo Nacional de Educação do MST . EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Romantismo de poesias formais, estruturadas e sentimentalismo romântico. O Realismo chega para denunciar a realidade com olhares mais críticos sobre o cotidiano, analisando as estruturas sociais, sem subjetividade. A exemplo disso temos como marco inicial as obras Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), do Machado de Assis e O mulato (1881), de Aluísio Azevedo. Ambas retratam com punho social bastante crítico, o que de fato, a sociedade encoberta nas suas falsas nuances, o preconceito racial, as diferenças de classes, o adultério, os crimes cometidos pela igreja, o descaso com a saúde, o desprendimento da moralidade. A ironia restaurada na reflexão das obras, dão início a uma movimentação que desestabilizam o prestígio social da elite brasileira, dando partida ao discurso despreocupado dos porões da burguesia. O Capitalismo aqui também está em estágio avançado, com a 2º Revolução Industrial as tensões só aumentam. De um lado o progresso industrial alarmante, do outro a classe trabalhadora (o operariado) fazendo reivindicações sociais. Logo surge nesse cenário posições ideológicas adversas. A Europa estava passando por um momento agitado no que diz respeito à Filosofia e às Ciências, nesse contexto de novas ideias o ser humano começa a ser compreendido de um modo mais amplo. No Brasil influenciado pelo contexto da Europa, traz para o seu cenário mudanças significativas. As últimas décadas do século XIX nos mostra uma monarquia em crise, um Império Político afundando e a urbanização aqui começa a ficar muito marcante A Lei Áurea que extinguiu a escravatura surge de uma forma maquiada de “pôr um fim” ao trabalho escravo no país e essa desumana façanha dar subsídios e roupagem para a escola aqui comungada. O Realismo então surge dentro de um contexto de correntes filosóficas e assim é rapidamente influenciado pelo Positivismo de Augusto Comte, pelo Evolucionismo de Charles Darwin, pelo Socialismo de Marx e Engels, pela teoria determinista de Hipólito Taine e pelo surgimento das primeiras correntes da Psicologia moderna. Dentro dessas fortes influências, o Realismo passa então a ter suas ideologias focadas nas ciências, na razão e na pesquisa, todos ocupando o sentimentalismo que existia na escola que o antecede, o Romantismo. Os realistas começam a partir daí observar o homem em sua natureza real, pensando-o dentro de suas reflexões sociais, em seu engajamento social e político, e tendo novas ideologias com o pensamento Marxista ,a realidade começa a ser espelhada e despida em todas as classes e trazendo aqui os problemas que as envolvem, nesse contexto explicar cientificamente como funciona o capitalismo torna-se a tática desse pensamento. As críticas às instituições- a igreja, o casamento e a literatura- pensadas para transformar a realidade começam a ganhar um contexto desadornado. Todo o formato aqui terá um engajamento para auxiliar às mudanças na sociedade brasileira. Sejam elas nas escritas, nas artes plásticas, nas pinturas. 70 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Todos focados nas causas sociais, alerta para o cotidiano de modo objetivo e impessoal dos artistas. Sendo o Realismo uma reação contrária ao eu romântico construído no Romantismo, que por vez teve a emoção exacerbada e estética da burguesia em destaque, assim dando vazão ao que se rebate. Novos valores aparecem para modificar e ressignificar a produção literária da época. A crítica passa a mostrar a realidade de como as situações estão se desenvolvendo. Tudo será observado e criticado nesse provocativo modelo de se pensar a literatura. Apoiando-se nesse instigante formato da literatura, os movimentos sociais entram com um papel fundamental nas mudanças que os séculos posteriores causaram dentro da sociedade brasileira. Tendo em vista o ponta pé que essa Escola Literária nos traz, os autores brasileiros contribuem para fazer-se notar os equívocos sociais que desde sempre são vivenciados nesse cenário. Machado de Assis é o grande pioneiro do Realismo no Brasil, ainda que o Romantismo figurasse quando sua primeira obra “Memórias póstumas de Brás Cubas” é escrita. Diversos autores europeus influenciaram o Realismo no Brasil, tais como Gustave Flaubert com a sua obra “Madame Bovary” que estava causando um reboliço no falso moralismo e na religiosidade da sociedade francesa. O que levou o seu autor aos tribunais. Eça de Queirós, um dos maiores escritores da literatura portuguesa, com sua obra polêmica “O crime do Padre Amaro” que agitou a igreja católica, fazendo-a protestar quando a obra foi publicada. E Dostoiévski, filósofo russo, um dos maiores romancistas da história, trouxe em suas obras análises de estados patológicos e é considerado o fundador do existencialismo. MORTE E VIDA SEVERINA E A INSPIRAÇÃO NO MOVIMENTO SOCIAL SEM TERRA A Literatura de João Cabral de Melo Neto abrange questões sociais que levam o leitor a uma viagem crítica e aprofundada do mundo ao seu redor. Estando esse leitor inserido ou não no contexto abordado. O autor retira-o do seu cômodo, e assim o torna responsável pelas mazelas causadas por um sistema de desigualdades sociais, políticas, culturais e econômicas. Segundo Gomes (2015), é possível estabelecer e discutir relações entre o texto poético, a crítica literária e a realidade, de modo que o leitor possa, a partir dessas relações, encontrar novas possibilidades de enxergar o real. A poesia Cabralina bebe na fonte do Realismo, no que diz respeito ao modo que o autor faz uma denúncia social. Morte e Vida Severina nos traz construções críticas sociais, sendo um poema feito por encomenda para um auto de natal pernambucano. A exemplo dessa denúncia destaco essa passagem do poema, no qual se observa a morte de um trabalhador que em vida lutou pela terra e foi morto pelo latifundiário. 71 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS — Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio. — Não é cova grande. É cova medida, é a terra que querias ver dividida. (MELO NETO, p. 12, 13) Nessa parte da peça, podemos notar a quão sensata é a crítica, e o quanto se mata e morre por terras em sua grande parte devolutas. Partindo desse trecho, podemos dizer que a obra é impactante e movimenta uma empatia com o Movimento Social Sem-Terra. O poema escrito em 1954 e 1955 (esse último ano também de sua publicação), períodos esses no qual a política foi a mais agitada na história do Brasil e conturbada com o Contra Golpe, nos dar margens futuras e embasamentos de uma leitura questionadora e denunciante. Anterior a todos esses acontecimentos, o marco do movimento dos trabalhadores rurais surge em 1945-1947 com as chamadas “Ligas Camponesas” que ganham força em 1954, ano que também o João Cabral começa a escrever Morte e Vida Severina. No final de 1955, é criado também o MST, entre outros movimentos que já se organizavam pela luta por sobrevivência. Conforme relatos históricos: Após o ano de 1954, as Ligas Camponesas organizaram-se ainda com mais força, principalmente no estado de Pernambuco. De modo geral, será esse o principal foco de resistência e atuação desse movimento rural. Isto porque havia uma série de fatores que contribuíram para o desenvolvimento do movimento no local, destacam-se: o fenômeno da seca, altos índices de mortalidade, a decadência da economia da região, dentre outros. A atuação das Ligas desenvolveu-se no sentido de conscientização e politização dos trabalhadores do campo e a busca pela reforma agrária também estava vinculada a melhores condições de trabalho. DADOS DO AUTOR E DA OBRA João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife. Seus pais e seu avôs eram donos de engenho. Começou juntar suas primeiras palavras aos dois anos de idade, quando aprendeu a ler, lia de tudo que aparecesse em sua frente. Por causa dessa fome de ler tudo que encontrava logo se tornou muito conhecido entre os trabalhadores do engenho de açúcar. Para eles João recitava romances de cordel no intervalo que os cassacos tinham para repousar antes de retomar a jornada. Cresceu em meio a cantadores, repentistas e cordel, no interior de Pernambuco, passou a infância no Engenho do Poço do Aleixo, que ficava em São Lourenço da Mata, propriedade da família. Em meio a todo esse público, canaviais, engenhos, coqueiros, o poeta - embora não gostasse de assim ser chamadocresceu “sem imaginar que aquilo seria cultura”, como ele afirma O seu encantamento pelo Rio Capibaribe, nos faz pensar que João é filho das entranhas desse rio e sua poesia é parida mediante a força e o contentar e/ou descontentamento de suas águas. Segundo Castello (1996, p. 33),” tem o Capibaribe, rio que se entranhara em sua poesia como uma febre, por testemunha.” 72 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS João também foi funcionário público, embora o poeta e o funcionário público nunca conseguiram se encaixar muito bem um no outro. Foi diplomata e esse era o emprego dos seus sonhos, já que gostava de escrever e sendo assim teria muito mais horas para se dedicar a serventia da poesia. Por longo tempo sua poesia esteve congelada, João Cabral é chamado para responder a um inquérito administrativo no qual foi acusado de subversão pelo ministro das Relações Exteriores e fica em disponibilidade inativa por um decreto do presidente Getúlio Vargas. Durante esse tempo e inconformado João fica por Recife e viaja sempre percorrendo o itinerário do rio Capibaribe, daí resulta grandes poemas. E se a poesia precisava ter uma função, ela foi encontrada e reconhecida com o poema “Morte e Vida Severina”, o auto de natal é levado aos palcos do Rio de Janeiro e São Paulo e musicado por Chico Buarque de Holanda, conforme Nadai apud Melo (1982,p.5) “ é a primeira vez que a poesia tem alguma utilidade em minha carreira” comentaria João Cabral, entre irônico e agradecido à poesia.” Com o poema dramático Morte e Vida Severina vem à tona uma realidade brasileira tão pouco conhecida até então. Mostrando com tamanha clareza a severidade da vida de uns tantos e o desafio de conviver lado a lado com a morte, essa se torna um parente próximo, essa se torna um desafio e essa morte que se faz vida para continuar. Sua obra carrega um tanto do retirante que João Cabral é, e nessa retirada seu leitor segue junto um caminho sem volta. Sua poesia é um soco no estômago. MOVIMENTO SOCIAL MST O movimento social sem-terra traz ao cenário histórico-político brasileiro uma discussão significativa, voltada para um grupo marginalizado na sociedade e que incomoda por trazer questões que surgem desde a reforma agrária até o formato educacional dos seus camponeses. É um debate e construção bastante resistentes. Na visão de Caldart (2012, p. 32), “forte porque mexe com a própria estrutura social de um país fortemente marcado pelo latifundiário, parente da escravidão”. Compreender o sem-terra como sujeito sociocultural de nossa sociedade é olhar para a construção histórica e assumir as condições e bárbaras falhas que se fez esse processo. Segundo Caldart apud Thompson (2012, p.97,98): Quando me refiro à formação do sem-terra brasileiro, trato, inspirada em Thompson, do processo através do qual trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra fizeram-se ou ainda fazem-se este novo sujeito social chamado Sem Terra, com uma identidade e uma consciência que lhes insere nos embates políticos do nosso tempo. Diz Thompson, ao explicar o sentido do fazer-se da classe operária inglesa, que se trata de compreendê-la como um processo ativo, que se deve tanto 73 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS à ação humana como aos condicionamentos. A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se (1987, p. 9). Em geral os movimentos sociais do campo visam à democratização da posse pela terra, assim podendo fazer as reparações sociais que colocaram os trabalhadores do campo em uma situação de injustiças frente a uma sociedade que não quer validar a vivência do campesinato. Importante compreender que o MST atua através da ocupação de grandes latifúndios e de terras improdutivas para construir seus assentamentos, porém não sendo esse o seu objetivo final. Para Caldart (2012, p. 103) Por fim, podemos dizer que o MST enraíza o sem-terra significa afirmar que ele proporciona a essas pessoas a condição de vincular-se novamente a um passado e a uma possibilidade de futuro, que lhes permite desenvolver-se como seres morais, intelectuais, espirituais e poderíamos acrescentar, culturais. Enquanto os trabalhadores da terra de quem foi tirada a terra ou a possibilidade social de têla como objeto de seu trabalho. Os sem-terra foram desenraizados e, portanto diminuídos em sua condição humana. Sendo assim o MST é um movimento que trabalha para organizar os trabalhadores campesinos para uma melhor qualidade de vida, isso diz respeito a educação, a melhoria de trabalhos, ao combate de substituição do homem pela máquina no meio agropecuário, a reforma agrária e o direito às condições melhores de sobrevivência. Essas são as principais bandeiras de luta que abrangem e abraçam uma vida humanizada no campo. Conforme Fragoso (2000) Roseli Caldart nos mostra que o campo brasileiro está vivo, com uma dinâmica social e cultural própria, e que o MST surge não só questionando as estruturas sociais e a cultura que as legitima, mas também questionando a estrutura escolar e sua concepção pedagógica correspondente. A educação no MST é um movimento que surge de dentro da dinâmica social no campo, colocando no foco de sua pedagogia a formação humana em sua relação com a dinâmica de luta social e, mais especificamente com a luta pela Reforma Agrária. O DIÁLOGO EDUCATIVO ENTRE MORTE E VIDA SEVERINA E O MST Para uma melhor compreensão do diálogo educativo existente entre a obra Morte e Vida Severina e o MST, levamos em conta a necessidade de haver uma comunhão entre a literatura e a sociedade, tendo em vista que essas duas formam a base que sustentam a nossa comunicação. A literatura é primordial no processo de evolução de uma comunidade, em suas diferentes manifestações. Segundo Cândido (1995, p. 146): A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma “comunicação” Assim compreende-se que o homem também é um sujeito coletivo pertencente a um grupo, e que a esse, a dialética comunga na dimensão existente do 74 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS tempo. Quando trazemos esse tempo para o texto, as falas, crendices e modos de um povo, tudo pode ser em questão de segundos fatos ou imaginário popular. A literatura aqui tem papel fundamental na emancipação histórica de um povo. O leitor observa a influência social que o trabalho literário tem dentro do público que protagoniza e compõe o cenário aqui estudado. Na obra Morte e Vida Severina esses fatores se apresentam na imigração, na luta pela sobrevivência e o enfrentamento aos descasos sociais. O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI — O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. (MELO NETO, p. 2) Nesse primeiro contato com o auto de natal podemos notar uma familiaridade partindo dos nomes, a exemplo Severino e Maria são nomes comuns nesse espaço geográfico de vida nos sertões. Já de marca se apresenta os nomes de pia (que aqui compreende-se como a pia do batistério), lugar onde a religião católica consagra a existência dos seus fiéis. Aqui se consagra a imagem e a palavra associadas à vida e empatizando com seu leitor. De acordo com Cândido (2005, p. 33), “se encararmos os fatores presentes em bloco na estrutura social, nos valores e nas técnicas de comunicação, veremos logo a necessidade de particularizar o seu campo de atuação.” Temos em contrapartida a essa obra uma vinculação ao que Paulo Freire nos fala sobre “palavra-mundo”, como essa é importante na raiz identitária de um povo. Conhecer seu território e se enxergar nele é tarefa principalmente da educação. O Movimento Sem Terra acompanha essa linha de raciocínio, compreendendo seus sujeitos dentro de suas especificidades, partindo daí a formação de suas escolas e de sua própria pedagogia. Tendo como fundamentos e foco o sujeito homem e mulher do campo. [...] em um tempo de vida e cada tempo de vida tem um jeito de ser trabalhado. O trabalho pedagógico do MST visa a formação humana, o próprio sujeito, afirma portanto, deve - se reconhecer o conhecimento, a trajetória, a história de vida desses sujeitos, afirma Marcos (ENTRE os sem-terra ..., 2006) Podemos observar que à obra Morte e Vida Severina tem suas raízes inspiradas na luta pela terra, onde se assimila ao Movimento Sem Terra. O poema também abrange questões muito além da distribuição de terra, também se pode avaliar a cegueira a qual está inserida nossa sociedade, a alienação e 75 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS desconhecimento do real sentido da luta dos povos dos campos e dos movimentos do campo. A linha é tênue entre os dois mundos: literatura e sociedade. Os Severinos estão espalhados por todo o país, os elementos que compõem a narrativa da obra nos remetem a paisagens vistas e vividas por um grupo que determina seu modo de vida. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear. (MELO NETO, p. 11) A relação da didática apresentada pelo Movimento Sem Terra busca trazer o seu sujeito para a responsabilidade sociocultural de sua existência. A posição social em sua pedagogia procura subsidiar o homem e a mulher do campo para suas necessidades coletivas, trazendo então a construção de uma escola pensada para o campo, onde essa deverá contribuir também para a formação intelectual e política do campesinato. Segundo Caldart (2008, p. 06) A Educação do campo surgiu em um determinado momento e contexto histórico e não pode ser compreendida em si mesma, ou apenas desde o mundo da educação ou desde os parâmetros teóricos da pedagogia. Ela é um movimento real de combate ao ‘atual estado de coisas’: movimento prático, de objetivos ou fins práticos, de ferramentas práticas, que expressa e produz concepções teóricas, críticas a determinadas visões de educação, de política de educação, de projetos de campo e de país, mas que são interpretações da realidade construídas em vista de orientar ações/lutas concretas Podemos aqui pensar na Educação do Campo como alicerce para o desenvolvimento dessa compreensão. Onde o sujeito pode pensar seu mundo e sua vivência como instrumentos de formação, sem precisar desvalidar ou se distanciar de suas práticas. Na visão de Caldart (2002, p. 49) “compreender o processo de formação dos sujeitos sociais também como um processo cultural” CONSIDERAÇÕES FINAIS Na obra Morte e Vida Severina, alguns fatores marcam a vida de tal grupo, tais como a imigração, a luta pela sobrevivência e o enfrentamento aos descasos sociais. Severino procura em sua caminhada por dia e condições melhores de vida e mesmo não encontrando e se deparando com situações ainda mais desesperadoras, encontra passeando lado a lado com a morte à solução e às 76 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS respostas para seguir os dias. Frente a esses fatores, na Pedagogia do Movimento Sem Terra seus Severinos encontram uma ressignificação de vida, por meio da educação, um enraizamento. O diálogo educativo entre o MST e a obra Morte e Vida Severina nos apresentam o modo de vida de um grupo que é marginalizado na sociedade, assim podemos identificar a contemporaneidade literária que o auto de natal carrega. A vida e a morte aqui são elementos primordiais de construção identitária. Os sujeitos dessas obras aparecem em um enredo onde se protagonizam as injustiças, as desigualdades e a luta pelo respeito à vida, respeito a diversidade cultural, respeito ao espaço geográfico, e a ancestralidade da identidade desse povo. O encontro dessas duas obras nos traz a vivacidade da pedra que já está entranhada na vida desses sertanejos, assim como a reflexão e leitura de mundo, na compreensão de sociedade refletida no realismo da nossa literatura e a literatura lendo a nossa sociedade. O intuito aqui é analisar essa proposta de estudo, onde se objetiva uma aproximação existente e real da inspiração dialética. Pensar a educação como ato político nesse espaço, é compreender as especificidades dos grupos existentes na sociedade. A educação do campo age como processo formativo social, colocando o movimento como precursor educativo, esse aliado com a literatura nos dá subsídios para pensar uma educação humanizada, onde os sujeitos protagonizam sua formação. As contribuições literárias e pedagógicas que as obras agregam ajudam na formação de leitores críticos, pensantes, politizados, esses assumem a sua função dialógica com a escola. Nesse aspecto o sujeito compreende seu espaço, seu território, que em seguida dar início a um processo de territorialidade e pertencimento. Essa concepção enriquece o indivíduo, tornando-o continuador e multiplicador dos conhecimentos adquiridos em seu solo. Sendo assim, a educação como ato político desenraiza padrões culturais estabelecidos de educar, esses na sua maioria não representam a diversidade cultural dos grupos existentes. O território é parte integrante formativa desse pensar político, nesse lugar. De acordo com Caldart (2002, p 43) “compreender a história de baixo para cima”. Aqui o espaço geográfico de aprendizagem é fundamental na formação humana do sujeito, esse que já se apresenta em um contexto político de sobrevivência carregado de experiências que dialogam com a literatura marginal, urgente e necessária de Morte e Vida Severina alinhadas à Educação como ato político é preciso. 77 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4.ed.São Paulo: Expressão Popular, 2012. 443 p. CASTELLO, José. João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco,1996. 184 p. ENTRE os sem-terra, sempre é tempo de aprender. 2006. Disponível em: < http:// www2.fct.unesp.br/cursos/geografia/CDROM_IXSG/Anais%20-%20PDF/Natalya %20Dayrell.pdf >. Acesso em: 25/06/2020 FRAGOSO, Maria Beatriz. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Rev. Bras. Educ. no.15 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2000 GOMES,Rafaela de Abreu. JOÃO CABRAL, UM POETA-CRÍTICO: POIESIS E CRÍTICA. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/15177/1/2015_dis_ ragomes.pdf> Acesso em 09/08/2017. HISTÓRIA.com.br. História das Ligas Camponesas- Movimentos de luta pela terra. Disponível em:<http://www.ahistoria.com.br/ligas-camponesas-movimentos-de-lutapela-terra/> Acesso em 10/08/2017. MELO NETO, João Cabral de. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982. 108 p. NETO, João Cabral de Melo. Morte e Vida Severina. Disponível em:< http://www. jornaldepoesia.jor.br/joao01.html > Acesso em 22/04/2020. NETO,João Cabral de Melo. Morte e Vida Severina. Disponível em: <file:///C:/Users/ Home/Downloads/MORTE%20E%20VIDA%20SEVERINA%20-%20JOAO% 20CABRAL%20DE%20MELO%20NETO%20(1).PDF > Acesso em: 09/08/2017. Rev. Bras. Educ. no.15 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2000. Disponível em : < https://www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782000000300011 > Acesso em : 25/06/2020 78 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS O MOVIMENTO SEM TERRA COMO PROTAGONISTA DA CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO, E O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA DOS CAMPONESES Francisco do Livramento Andrade 1 O MST tem a “estranha mania” de misturar gente com terra para fazer a reforma agrária, possibilitando assim um retorno às origens da vida e da formação de um ser social que tem seu início no trabalho ligado a terra, e nessa relação passa a compreender a sociedade e se inserir no processo de construção da mesma em seu tempo presente. Assim é o processo de formação dos camponeses ligados ao MST. O presente texto tem como pano de fundo o fenômeno da educação do campo, e apresenta o Movimento Sem Terra, como um dos principais movimentos protagonistas do pensar e do fazer pedagógico desta educação, destacando os diversos espaços onde se desenvolve as ações pedagógicas e formativas dos camponeses. Faz-se uma reflexão sobre o processo de desenvolvimento do pensamento crítico, ou seja, do processo de elevação da consciência dos camponeses e camponesas inseridos em diversos espaços de luta, desde a escola, as comunidades, e até as grandes mobilizações sociais articuladas pelo MST. O texto evidência assim o processo de formação política e conscientização dos trabalhadores rurais ligados ao MST, indagando-os sobre, até que ponto sua inserção nas lutas políticas e organizativas lhes possibilitam um processo de politização e conscientização. Neste sentido as reflexões realizadas aqui enfatizam a importância das práticas pedagógicas desenvolvidas no âmbito no MST. A inserção dos camponeses nos processos de lutas, abrem várias oportunidades de formação, pois este se percebe como sujeito construtor de sua realidade, quando se misturam à terra, concebendo-a como um bem supremo. É neste processo de luta contínua que se desenvolve no cotidiano, que os camponeses se educam, numa perspectiva de educação como prática de liberdade, pois, esta é um ato de conhecimento e uma aproximação de sua realidade. Na perspectiva de educação e formação para a libertação no âmbito do Movimento Sem Terra-MST, este vem se efetivando como um grande e importante agente, quando assume de várias formas o processo de formação de sua base. Por 1 Pedagogo, Especialista em Educação do Campo, Mestre em Ciências da Educação do Campo e Doutorando em Humanidade Arte e Educação. 79 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS ser um movimento social de massa, e por ter como objetivo principal e imediato a reforma agrária, este tem demonstrado preocupação com inúmeras áreas de atuação política, pois além de atuar na produção, tem desenvolvido várias atividades muito interessante, no que se refere a saúde comunitária através da medicina alternativa com plantas fitoterápicas. Tem também um trabalho bem adiantado sobre a discussão e articulação em defesas da igualdade de gênero. No que se refere à produção agrícola o MST vem desenvolvendo várias atividades inovadoras, e com isso tem si apropriado dos conceitos teóricos e práticos através de experiências com a produção agrícola baseada na agroecologia. O Movimento Sem Terra tem sustentado uma articulação muito forte contra a produção dos alimentos transgênicos, contra a monocultura e o modelo de produção para o agronegócio. Pois para o MST, isso tudo são componentes de um só pacote agrícola que deve fortalecer o espaço do campo apenas como um espaço de produção de capital, negando assim as possibilidades de produção da agricultura familiar/camponesa, que defende e produz a vida com as várias possibilidades de sustentabilidade. Com isso, pode-se perceber que por trás de todas as investidas do capital no campo, há uma concepção política e ideológica que norteia essas práticas. Assim o campo se apresenta como um espaço de disputa de projetos de homem e de sociedade, e para dar conta dos desafios existentes nestas disputas a educação/formação tem se tornado uma forte arma para os camponeses. Para o MST a educação perpassa os muros da escola, ou seja, a “escola cabe no MST, mas o MST não cabe na escola”, exatamente por este ser muito mais amplo do que a escola em seu sentido estrito. Para este movimento a educação se dá em vários espaços, (formais e não formais) por isso é grande a luta dos camponeses ligados ao MST, no sentido de garantir um processo de formação que contemplem os elementos de caráter político e social. Muitos avanços só foram possíveis pelo forte interesse dos movimentos sociais do campo, e isso se deve muito ao processo de alfabetização, escolarização e conscientização política. O projeto pedagógico do MST soma vários autores do campo educacional (Paulo Freire, Caldart, Piaget e Makarenko) e do campo das lutas nacionalistas e de esquerda na América Latina (José Martí e Che Guevara). Tal sincretismo teórico gera uma formulação original de construtivismo, trazendo experiências revolucionárias (apoiadas na noção de “homem novo”) como o marxismo e a fenomenologia educacional. Na Educação do Campo o debate sobre o campo precede o da educação ou da pedagogia, ainda que o tempo todo se relacione com ele. E no debate sobre o campo é fundamental a reflexão sobre o trabalho, que por sua vez está ligado a dimensão da cultura, vinculada às relações sociais e aos processos produtivos 80 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS da existência social. Isso demarca uma concepção de educação, e se integra a uma tradição teórica que concebe a natureza da educação vinculada ao trabalho. No contexto social e político do MST, existem dois processos educativos que se relacionam entre si, um deles refere-se ao processo educativo presente nas lutas, propiciando um aprendizado pela experiência da ocupação de terras, das reuniões, das manifestações públicas, da vida nos acampamentos, da organização do trabalho, da vida produtiva e social que se desenvolve nos assentamentos, além dos intercâmbios, dos enfrentamentos, enfim, de todos os desafios de uma luta radical pela democratização da terra. O outro processo é mais sistematizado, intencional e planejado, pois refere-se aos cursos desenvolvidos pelo MST, e as iniciativas escolares. Os assentamentos rurais ligados ao MST contam com escolas da rede regular de ensino, vinculadas às redes estaduais e municipais, de Educação Infantil, anos iniciais e finais do Ensino Fundamental; alguns assentamentos contam também com escolas de Ensino Médio, além dos espaços de educação infantil conhecidos como Cirandas Infantis. Um elemento que pode se destacar como base norteadora para a experiência de educação crítico-libertadora desenvolvida pelo MST, são as proposta pedagógica que devem contemplar a diversidade rural, a partir dos aspectos culturais, sociais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia”. As práticas e experiências educacionais e escolares que o MST desenvolve apresentam uma inovação em relação aos conceitos de educação e de escola. Para além da escola considerada “tradicional”, nos espaços de organização do MST, pode-se destacar a “Escola Itinerante” criada na mesma lógica dos acampamentos, isso porque ela deve sempre estar em movimento, pois deve acompanhar as ocupações, as marchas e os acampamentos nas cidades. Pode se dizer que é uma escola que vai aonde o educando está, pois não há necessidades de parar em um determinado lugar para o aluno estudar, este aprende inserido nos processos de luta. A Escola Itinerante traz em si a carga histórica da instituição escolar, de seus problemas e potencialidades, carrega também o acúmulo do Setor de Educação do MST, compondo seu projeto de escola. Neste sentido, observamos que não é totalmente diferente da escola de assentamento ou das demais escolas do MST; seus objetivos e princípios são os mesmos, que, todavia, se aplicam de um modo determinado a depender da situação concreta. Então, a Escola Itinerante expressa, a seu modo, a luta social, porque é pensada e gestada pedagogicamente desde o espaço organizativo do acampamento. (DALMAGRO, BAHNIUK, e CAMINI, 2018; p. 03). A Escola Itinerante como única, não basta ter quadros, giz, recursos audiovisuais, é preciso ser construída coletivamente, pois não serve as receitas prontas, deve apresentar elementos que contemplem as potencialidades que cada educando apresenta em termos de necessidade e vontade de aprender. 81 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Pode-se apresentar também a experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes, uma escola de formação de militantes com base numa metodologia que estimula o pensamento crítico e a experimentação de valores e práticas ligadas aos trabalhos coletivos. Da mesma forma, atua o Instituto Técnico de Pesquisa e Capacitação da Reforma Agrária– ITERRA, que além de formar tecnicamente os estudantes, envolve-os num espaço e num tempo de estudo e trabalho com base na autogestão. Estes exemplos, apontam para a gestação pedagogia de uma escola que busca ainda que, com muitos limites, construir formas, espaços e relações diferenciadas em termos educacionais, com base no trabalho coletivo, no exercício da autogestão, na articulação entre trabalho e estudo e entre teoria e prática, no envolvimento de sujeitos com idades variadas, em que todos aprendem no processo, construindo uma pedagogia que perpassa e transforma o espaço tradicional escolar. O processo de formação também acontece em nível técnico, como por exemplo no curso de magistério para a formação de professores de assentamentos, e o curso técnico em Administração de Cooperativas, que se desenvolvem em vários espaços, e que são ligados ao Instituto Técnico de Ensino e Pesquisa em Reforma Agrária – ITERRA (vinculado ao MST). Além de curso superior de Pedagogia da Terra e Licenciatura em Educação do Campo. Os alunos que participam desses cursos contribuem com o processo de gestão, e realizam vários trabalhos práticos nos assentamentos. Essa metodologia de trabalho na educação é conhecida como Pedagogia da Alternância 2. Além de escolas, cursos e programas, o MST também desenvolve vários momentos de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes e em outros espaços políticos e de lutas. A Escola Nacional Florestan Fernandes é um espaço construído pelos e para os trabalhadores, onde acontece vários cursos de formação para os acampados e assentados, entre os cursos pode-se enfatizar o Curso Básico de Formação de Militantes e Cursos de Formação de Formadores. Em todo o país funciona um Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (PRONERA), que é um convênio com aproximadamente 50 universidades, atendendo em torno de trinta mil jovens e adultos assentados e acampados. Desde de 2010, o PRONERA deixou de ser um programa e passou a ser uma política de governo. Com essa política e dinâmica de formação, o MST contam hoje com profissionais de diversas áreas, como agronomia, educação, medicina, técnico em administração, e técnicos agrícolas. 2 A Pedagogia de alternância intercala um período de convivência na sala de aula com outro no campo. É pensado principalmente para amenizar as dificuldades dos jovens do meio rural, que fica um tempo na escola e um tempo em casa. 82 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Com isso é possível afirmar que os movimentos sociais do campo, entre eles o MST, vêm pressionando o governo não só pela Reforma Agrária e por uma política agrícola que viabilize a pequena produção no campo, mas também, por uma educação e escolarização para uma população historicamente alijada dessas políticas públicas. Ainda que o Movimento esteja envolvido diretamente nas lutas por uma educação do campo, seu projeto de formação vai mais além, ao desenvolver ações políticas que em si são educativas, e ao direcionar a formação não só para o aspecto técnico e escolar, mas também nos aspectos políticos. Neste sentido, a ênfase que se pretende realizar neste texto é exatamente ao processo de formação que se efetiva fora do espaço escolar, ou seja, quando se fala neste texto sobre práticas pedagógicas e formativas, pretende-se refletir sobre um processo de formação mais amplo do que o processo que se desenvolve no espaço escolar, pois o MST traz na sua gênese a intencionalidade formativa, e as suas ações são carregadas desta intencionalidade pedagógica, onde se constitui como um movimento social altamente pedagógico. O foco de análise neste texto é a educação do campo em uma perspectiva informal, como já foi apresentado anteriormente o objeto de análise deste texto é sem dúvidas o processo de formação e conscientização política dos camponeses a partir das ações formativas ou pedagógicas que são desenvolvidas pelo Movimento Sem Terra, e pelos próprios assentados e acampados. O processo de formação informal não acontece de forma desorganizada, embora se desenvolva em espaços não formalizados, não deixa de ser uma formação significativa. A mente humana possui uma estrutura organizada e hierarquizada de conhecimentos e essa estrutura é continuamente alterada pela incorporação de novos conceitos, proposições e ideias, sem espaço e tempo certo para aprender. Para a aprendizagem ter um caráter significativo, ela deve estabelecer uma interação entre a nova informação e um elemento cognitivo da estrutura mental do aprendiz, porém não se trata de um elemento aleatório, mas sim, aquele elemento que dê possibilidades de desenvolvimento e modificações na forma de pensar. Por aprendizagem significativa entendo uma aprendizagem que é mais do que uma acumulação de fatos. É uma aprendizagem que provoca uma modificação, quer seja no comportamento do indivíduo, na orientação futura que escolhe ou nas suas atitudes e personalidade. É uma aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimento mas que penetra profundamente todas as parcelas da sua existência. (ROGERS, 2001. p. 01) Esses saberes considerados significativos podem ter origens na experiência educativa, no senso comum ou na educação não formal. Portanto, a importância da educação informal se remeterá na possibilidade de trabalhar com o coletivo, ou seja, com os processos de construção de aprendizagens e saberes 83 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS coletivos, promovendo o desenvolvimento de saberes que atrelados ao conhecimento formal atuará como promotora de mecanismos de inclusão social. A educação é um meio de construção e reconstrução de valores e normas que dignificam as pessoas e as tornam mais humanas. “Numa educação ética, é preciso resgatar e incorporar os valores de solidariedade, de fraternidade, de respeito às diferenças de crenças, culturas e conhecimentos, de respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos.” (SIEGEL, 2005, p. 41). Nesse sentido, a educação na escola pode ser resumida como aquela que está presente no ensino escolar institucionalizado, cronologicamente gradual e hierarquicamente estruturado. A educação informal, porém, define-se como qualquer tentativa educacional organizada e sistemática que normalmente se realiza fora dos quadros do sistema formal de ensino, não se deve confundi-la com a não formal, que é aquela na qual qualquer pessoa adquire e acumula conhecimentos através de experiência diária em casa, no trabalho e no lazer. Portanto, o espaço e o tempo poderão influenciar no ensino, na aprendizagem, na relação dos membros escolares, desde o aluno até a coordenação dos processos de formação construindo assim um espaço harmonioso. Para o professor Paulo Freire (1983, p. 126) “a educação é o fator mais importante para se alcançar a felicidade”. A vivência do cotidiano escolar significa uma experiência de vida, localizada em um espaço, cuja materialização é muito objetiva. O conteúdo da experiência escolar varia de sociedades, de cultura, de escola, e de sujeito. Para construir uma nova forma de organização dos tempos, é preciso superar a ideia de cronometrar o tempo organizado em etapas, em ascensão, calcado na tecnologia de aceleração, da qualidade total e da produtividade. Reorganizar o tempo na escola é dar aos alunos condições adequadas para pensar, agir e interagir com o conhecimento e com a vida. A instituição escolar tradicional organiza seu tempo detalhadamente, assim, os educadores não exploram pedagogicamente a riqueza das relações humanas presentes no tempo e no espaço escolar. Dessa forma, há pelo menos duas maneiras de entender a distinção entre educação formal e informal. De um lado, pode-se afirmar que educação formal é aquela ministrada em instituições especialmente criadas e organizadas com o objetivo de educar, como é o caso da escola, e educação informal é aquela que se realiza através de outras instituições, cuja finalidade principal talvez não seja a de educar; a saber; o lar, a igreja, a empresa, centros comunitários, os movimentos sociais, as associações etc. Não resta a menor dúvida de que pessoas forma-se, e se informam, sem jamais frequentar uma escola. Neste sentido, a chamada “educação sem escolas” não só sempre foi possível como sempre ocorreu e ainda ocorre em larga escala, e o apelo no sentido 84 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS de que a educação hoje se torne mais informal seria uma convocação de outras instituições, (além da escola) a um maior envolvimento com o processo educacional, muitas vezes relegado, nos dias atuais por diversas razões, quase que exclusivamente à escola. Acontece porém, que a educação informal, frequentemente é bastante “formal”, pois acabam existindo de maneira bastante semelhante à ministrada nas escolas, como é o caso das igrejas que criam “Escolas Dominicais”, “Classes de Catecismo”, as empresas, os movimentos sociais e centros comunitários oferecem e ministram “Cursos”, etc., onde há professores, alunos, ensino, salas de aula, em uma réplica quase perfeita do que acontece na escola propriamente dita. Nesses casos, a aprendizagem é promovida principalmente através do ensino, que muitas vezes assume feições altamente tradicionais. Há muita distinção entre educação formal e educação informal, além do fato de que a primeira ocorre em instituições criadas com a finalidade quase única de educar, e a segunda em instituições que têm outros objetivos além do objetivo de educar, objetivos esses que se sobrepõem às suas tarefas formativas. Essas atividades e esses processos podem ocorrer fora da escola, em outras instituições, ou de maneira inteiramente não institucionalizada, como também pode ocorrer dentro da própria escola. Em decorrência do modo pelo qual uma escola é organizada e administrada, ou da maneira como professores e funcionários se comportam em relação uns aos outros e aos alunos, pessoas podem vir a aprender e compreender conteúdos considerados de grande valor, sem que haja a qualquer momento a intenção de que alguém aprenda alguma coisa em consequência disto, o que não quer dizer que a forma de organização e administração da escola ou o comportamento de seus professores e funcionários seja não intencional; frequentemente é intencional, mas a intenção não é a de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos. O exemplo de um professor é mais educacional do que os conteúdos que ele ensina, pois seus alunos podem aprender mais conteúdos valiosos (ou conteúdos menos valiosos) em decorrência da observação de suas atitudes e de seu comportamento do que em consequência de seu ensino. Embora o professor possa se comportar de uma ou outra maneira com a intenção de que seus alunos aprendam algo significativo em função de seu comportamento, o professor comumente não tem esta intenção ao se comportar como o faz, o que novamente não quer dizer que seu comportamento não seja intencional, pode sê-lo, mas em função de outras intenções. No caso dos pais que procuram educar seus filhos através do ensino tradicional, não poderá esquecer que suas próprias atitudes, poderão ensejar a aprendizagem e compreensão de conteúdos muito valiosos, principalmente na 85 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS área da moralidade, sem que tenham a intenção de que seus filhos aprendam alguma coisa em decorrência da maneira pela qual se comportam. A educação formal é baseada na transferência de conhecimento através da comunicação. Já a educação informal é baseada na aquisição de conhecimento através de estudos, vivências, experimentações auto motivadas, isto é, tenta-se transferir o conhecimento que o professor tem, (e muitas vezes não o tem), para o aluno, com a ajuda de livros e materiais de apoio. A educação informal não é obrigatória e depende em grande parte da motivação dos sujeitos envolvidos. Normalmente, as pessoas que se auto educam são tão motivadas e focadas que não deixam passar uma página sem ler ou uma questão sem responder. A educação é um reflexo dos modos de vida do homem, por isso, encontra-se atrelada ao contexto das relações sociais, que por sua vez, encontra-se em construção constantemente. Logo, deve-se ter em mente que educar é romper com as tendências que focam o condicionamento social do indivíduo, pois o processo educacional deverá garantir liberdade e autonomia dos aprendentes. Buscando a compreensão do desenvolvimento humano no contexto sociocultural, bem como a promoção das potencialidades do sujeito em interação com o outro social. Considera-se que uma informação é aprendida de forma significativa quando se relaciona com outros conceitos, proposições ou idéias dotadas de relevância e inclusões claras, disponíveis no intelecto do aprendiz e que possam ser suportes para outras aprendizagens que venham a partir desta para serem ancoradas. Tendo em vista que educação não é só ensinar, treinar, domesticar, mas sim, formar a autonomia do sujeito histórico competente, uma vez que o educando não é o objeto de ensino, mas sim sujeito do processo. O processo de educação deverá envolver campos diferenciados da educação formal e informal. Em relação a educação informal desenvolvida nos espaços do MST, este juntamente com sua base tem garantido a organização de suas ações políticas e pedagógicas, e para isso elaborou os princípios pedagógicos da educação, que são assim definidos: -Relação entre teoria e prática. -Combinação metodológica entre processo de ensino e de capacitação. -A realidade como base da produção do conhecimento. - Conteúdos formativos socialmente úteis. -Educação para o trabalho e pelo trabalho. -Vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos. - Vínculos orgânicos entre educação e cultura. - Gestão democrática. -Auto-organização dos sujeitos envolvidos no processo. -Criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores. - Atitude e habilidades de pesquisa. (CADERNO DE EDUCAÇÃO DO MST Nº 03- 2000, P.16). 86 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Diante desses princípios, é possível afirmar que para o MST, educar os sujeitos para um novo projeto de desenvolvimento social para o campo, educar para a ação transformadora, precisa se desenvolver a capacidade de organização e de se articularem com competências cada vez mais efetivas, desse ponto de vista, olhar para a formação dos camponeses deste movimento é olhar para o MST como um sujeito pedagógico, ou seja, como um movimento educativo, e que atua intencionalmente no processo de formação dos sujeitos que o constituem. Ao passo que o MST se forma como um movimento pedagógico, desenvolve várias atividades de formação, produzindo em sua trajetória histórica a participação dos diversos sujeitos nas lutas de classe, e construindo assim momento de formação política e ideológica de forma extraordinária. Pois o sujeito camponês desenvolve a sua formação de classe exatamente neste espaço de luta, na tentativa de se efetivar como um sujeito de direito. O processo que orienta esse projeto de formação ligada ao MST, se fundamenta em um projeto de sociedade e de ser humano novo, e se sustenta pela presença de pessoas com saberes próprios, e pelo vínculo permanente com outras práticas sociais que começaram e continuam esta tarefa. Deve-se pensar que para os trabalhadores do campo a educação é desenvolvimento de potencialidades e apropriação do saber socialmente construído. Trata-se de buscar na educação conhecimentos e habilidades que permitam uma melhor compreensão da realidade e elevem a capacidade de fazer valer os próprios interesses econômicos, ambientais, políticos e culturais. Neste contexto, deve-se aprender a valorizar as potencialidades presentes nas diversas experiências desenvolvidas transformando-as em um movimento consciente da construção de práticas formativas no campo. As práticas que são tratadas neste trabalho, refere-se a uma educação voltada para o esforço da liberdade do sujeito individual e coletivo. Pois é uma educação voltada para a diversidade e o reconhecimento do outro, além de estar vinculada a vontade de corrigir a desigualdade das situações e das oportunidades. As práticas educativas e formativas vividas pelos sujeitos do campo se desenvolvem dentro de uma pedagogia das lutas e dos movimentos sociais, e estes sujeitos questionam o tempo, o espaço e as relações sociais que estabelecem no meio onde estão inseridos. Eles aprendem fazendo no dia-a-dia as atividades do seu cotidiano, ou aquelas que se tornam extraordinário, ou seja fazendo uma revolução, que é exatamente quando a ação extraordinária faz parte do cotidiano. É possível dizer que a prática educativa se manifesta no cotidiano das relações que são desenvolvidas na escola, no assentamento e nos diversos espaços de lutas. Não como mera prática, mas como atitude reflexiva e criativa das atitudes que permeiam o processo pedagógico em seu sentido mais amplo”. (SOUSA, 2006, p. 47) 87 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Com isso, pode-se afirmar que as práticas pedagógico-formativas desenvolvidas pelo MST, partem da prática social, das condições e contradições materiais de existências, localizando o ser humano no centro da ação social. Pois esta prática está inserida em um contexto de conflitos e mudanças que é vivida em um espaço de lutas constantes. O despertar da consciência dos camponeses a partir da inserção nas lutas políticas e sociais do campo. Nos acampamentos e assentamentos do MST a importância que se dá a educação tem exigido muita dedicação, isso porque a preocupação deve ir além da alfabetização, escolarização, e dos próprios processos pedagógicos que se desenvolvem no âmbito escolar. Mesmo que haja no Brasil milhares de pessoas sem saber ler, (fato incompreensível) a educação é uma tarefa natural obrigatória. Extraordinário deve ser a educação do ser humano incorporado à noção de todas as coisas que rodeia o sujeito, provocando-o para que crie e invente formas de transformar esta realidade, para que ela sirva melhor ao desenvolvimento da vida humana. A taxa de analfabetismo no Brasil é de 7,0%. Faz parte dessa população indivíduos com 15 anos ou mais, isso representa 11,5 milhões de pessoas. Esse número cresce ainda mais quando a população com mais 60 anos é inserida na pesquisa. Além disso, ainda há os analfabetos funcionais. Esses indivíduos conseguem escrever e ler um bilhete, mas não são capazes de interpretar o que foi escrito. 29% da população brasileira faz parte desse grupo. (IBGE, 2017, p. 09) O processo de educação ligado ao processo de conscientização e politização é o que se pode chamar de “utopia”, pois a conscientização está evidentemente ligada à ideias utópicas. O caso dos camponeses ligados ao MST evidencia esta utopia, pois ao mesmo tempo em que desenvolvem a luta pelos seus direitos conseguem se inserir em um processo de conscientização, que para eles “quanto mais conscientizados se tornarem mais capacitados estarão para denunciar a realidade que historicamente os oprime. Neste sentido pode-se afirmar que o processo de conscientização é um teste de realidade. Quanto mais conscientizados, mais desvela a sua realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual se encontra para analisá-lo. Por isso a conscientização não consiste em estar frente a uma realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. Essa conscientização de que se fala não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação - reflexão. Quando se fala em processo de consciência e não apenas em consciência é porque não se concebe como algo que possa ser adquirido e que, portanto, antes de sua posse, pode se supor um estado de “não consciência”. Por isso é preciso que se entenda esse fenômeno da consciência como um movimento e não como algo dado. “A consciência seria o processo de representação mental(subjetiva) de uma realidade concreta e externa (objetiva), formada neste momento, 88 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS através de seu vínculo de inserção imediata (percepção). Dito de outra maneira, uma realidade externa que se interioriza”. (IASI, 2007, p. 14). Nem sempre a tomada de consciência ou o seu amadurecimento é acompanhado das condições objetivas para realizar as tarefas que a história lhe impõe, na verdade a vida cobra das pessoas posturas para qual não foram internalizadas as estruturas prévias para a sua realização. Diante disso, a consciência assume uma dimensão que não tem como se realizar dentro de limites do pensamento desenvolvendo-se necessariamente pelo campo da prática, mais é preciso estar fundamentada em uma realidade concreta a qual este indivíduo se encontra inserido. A proposição deste texto é, sem dúvida conhecer e analisar as práticas educativas/formativas realizadas pelo MST, e especificamente aquelas que se julga capaz de transcender a educação como prática de reprodução de valores sociais, por isso enfoca-se as práticas do cotidiano dos camponeses, percebendo de forma concreta os elementos formativos presentes na comunidade e nas lutas do dia a dia. A consciência a qual se refere aqui, (comungando inclusive com Freire) não é uma consciência ingênua, que se crê superior aos fatos, dominando-os de fora e, por isso se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agradar. E sim uma consciência crítica que é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica. É próprio da consciência crítica a integração com a realidade, enquanto que a ingênua tenta uma superarão da realidade. “Esse processo é ao mesmo tempo múltiplo e uno. Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de certa concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõem a base material de sua concepção de mundo. Como então podemos falar em “processo” como um todo? Acreditamos que a partir da diversidade de manifestação particular podemos encontrar, nitidamente, uma linha universal quando falamos em consciência de classe”.”Essa consciência não se contrapõe a consciência individual, mas forma uma unidade, em que as diferente particularidades derivadas do processo próprio de vida de cada um sintetiza pois, sob alguma condição, em todo que podemos chamar de consciência de classe”. (IASI, 2007. p. 23). A clareza de que “não somos sujeitos da história” é o primeiro momento da tomada de consciência frente à realidade existente. Quando o homem se percebe como objeto da história, sem a capacidade de dirigir-se, sem ser dono de seu próprio destino, é exatamente esse o momento que o faz pensar que pode deixar de ser objeto e começar a se assumir como sujeito – aquele que pratica a ação-começa então a se libertar das cadeias que o prendem nos aspectos políticos e sociais. Quando o homem vive o trabalho alienado, ele se aliena de sua própria relação com a natureza, pois se sabe que é através do trabalho que o homem se relaciona com a natureza, humaniza-a e por isso poderá compreendê-la. Quando o homem vive as relações de trabalho onde ele mesmo se coisifica, tornando o 89 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS produto de seu trabalho, algo estranho, e que não lhe pertence, a natureza se distancia de si e se fetichiza. Porém quando o homem consegue atribuir um significado social para a sua ação na natureza, ou seja quando este tem a capacidade de compreender qual o seu verdadeiro papel na produção de algo (produto do seu trabalho) ele deixa de ser coisa e passa a ser sujeito da sua história, saindo de uma situação de alienação e se descobrindo consciente de sua ação na natureza, que a partir deste momento consegue atribuir outros sentidos para a transformação da mesma, como da própria transformação de si mesmo. Com a ideia de que a consciência consiste no desenvolvimento do pensamento crítico, torna-se convicto da justeza e da beleza que existe na realização das práxis formativas existente no MST. Pois isso implica em ultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade para chegar a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível, onde o homem assume uma posição epistemológica. A consciência crítica é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica”. “Nas suas correlações causais e circunstâncias”. A consciência ingênua (pelo contrário) se crê superior aos fatos, denominando de fora e por isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agradar. (FREIRE 2002, p. 113) Ainda citando Paulo Freire, no sentido de analisar e compreender o processo de efetivação da consciência, este fala. “A consciência mágica, por outro lado, não chega a acreditar-se “superior aos fatos, denominando-os de fora, nem se julga livre para entendê-los como melhor lhe agradar”. Simplesmente os capta, emprestando-lhes um poder superior, que a domina de fora e a que tem, por isso mesmo, de submeter-se com docilidade. É próprio desta consciência o fatalismo, que leva ao cruzamento dos braços, a impossibilidade de fazer algo diante dos fatos, sob os quais fica vencido o homem”. (FREIRE 2002, p. 113) Diante disso, é possível afirmar que a consciência crítica tem uma integração com a realidade, porém a consciência ingênua leva ao irracional promovendo a acomodação, o ajustamento e a adaptação, mas a compreensão de algo cedo ou tarde deverá levar a um ação. Por isso acredita-se que as ações educativas vivenciadas no MST poderão possibilitar o desenvolvimento de uma consciência crítica no sentido que fala Paulo Freire. A consciência de que é preciso superar os desafios de uma classe que historicamente foi oprimida, como também, superar os próprios desafios que a consciência de classe poderá lhe trazer. Para isso, o MST lança mão de uma metodologia popular de construção de conhecimentos fundamentada em uma realidade concreta e existencial. Apropriando-se de uma educação que propõe o desenvolvimento de uma consciência livre, da qual o sujeito possa despertar para a construção da libertação do 90 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS pensamento que se encontra aprisionado por um sistema que detém a ideologia sobre o processo de educação e formação deste e de outros sujeitos. Para o MST a educação não-formal é considerada uma modalidade de educação que pode ser compreendida em várias dimensões, inclusive para o desenvolvimento de atividades comunitárias, aprendizagem política de direitos. Neste sentido o MST vem desenvolvendo educação não-formal, pois incentiva os sujeitos envolvidos nos processos de lutas a refletirem sobre as condições de produção de vida, sobre os processos históricos onde estão inseridos, e ainda sobre qual de fato é a sua contribuição para transformação da realidade existente. Percebe-se uma grande sensibilidade do Movimento Sem Terra no que tange à conscientização das pessoas, para que não haja uma reprodução das ideias dominantes e que de alguma forma contribuem para a manutenção de um sistema violento, onde há uma supremacia do processo de produção de capital sob o processo de emancipação humana, pois neste sentido a conscientização tem o papel de despertar as capacidades individuais e coletivas, para que o sujeito de posse desta consciência consiga identificar elementos que compõem os paradigmas sociais, os quais precisam ser superados. As experiências educativas no MST estão cada vez mais qualificadas, e de acordo com o contexto histórico e a realidade onde estão inseridas. As mais recentes experiências tem se dado no sentido de ampliar a participação política dos camponeses nos processos de qualificação das lutas sociais e nas comunidades organizadas para intervir na construção da história da classe trabalhadora. A educação do campo é uma importante experiência existente no Brasil, protagonizada pelos próprios sujeitos populares, apesar de alguns “transformismos”, realizados pelo próprio Estado e por outras instituições. Seus impulsionadores são os movimentos populares do campo. Merece destaque o protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No atual momento histórico brasileiro, é esse movimento, sem dúvida, o que mais tem contribuído na discussão e efetivação de experiências de processos não formais, a chamada formação política, e de uma nova educação e uma nova escola, que resgatam os lineamentos centrais da educação popular (CALDART, E MUNARIM, 2010 p. 232). As experiências de formação política e conscientização nos assentamentos do MST têm contribuído muito para a igualdade social, para o desenvolvimento pessoal, além de proporcionar melhor qualidade de vida e elevação da autoestima deste grupo de sujeitos que foram socialmente excluídos. Para o MST, o processo de formação precisa se tornar mais frequente, pois vem possibilitando o desenvolvimento de uma luta por justiça e inclusão social. O processo de formação e conscientização política adota uma metodologia que trabalha com uma interdisciplinaridade, pois são vastos os temas que são discutidos nos assentamentos e em outros espaços de formação ligados ao MST. São conhecimentos que se apresentam no confronto com a realidade existente, e isso permite muitas mudanças nas atitudes, nos valores e práticas dos 91 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS camponeses que se inserem neste processo de luta, que também é um processo de formação política, conscientização e emancipação, desse modo adotam valores vinculados a solidariedade, ao respeito aos elementos da natureza e aos direitos humanos. Pois os conhecimentos que geralmente são construídos articulam se com o conhecimento acumulado historicamente pela humanidade. O processo de construção da consciência dos camponeses no cotidiano comunitário, se dá principalmente a partir das reuniões, das assembleias comunitárias onde as pautas de discussão estão ligadas diretamente com a sua vida, e como não lhe resta mais opções de construção de vida fora deste espaço, as discussões passam a ter um caráter de garantia de resistência e até de sobrevivência das condições de vida a que estão imbuídos. Na solidariedade através das trocas, no companheirismo, na camaradagem e na solidariedade é visível a construção de novos valores, que a sociedade por vários motivos em outros espaços não lhes possibilitou vivenciar. A necessidade de entender sobre a política agrária, ou a própria reforma agrária, e ainda sobre a consolidação do latifúndio, créditos agrários e outros temas relacionados a sua vida, forja uma nova concepção das políticas de direitos, forja uma visão mais crítica sobre a sua própria realidade que agora se desvela pela necessidade que se apresenta. A participação nas discussões, na associação, na escola e na saúde, e em outros tantos espaços políticos, possibilita uma efetiva troca de conhecimentos e informações atualizadas, e os colocam frente a situações em que estes precisam opinar, sugerir e decidir, e para isso faz-se necessário uma certa compreensão das políticas relacionadas à agricultura, saúde e a educação. Quando fala a presidente da associação, a agente de saúde, o professor e o gestor da escola, é momento de aprendizagem, pois é preciso entender para questionar, sobre a ida do médico somente uma vez ao mês, ou porque o recurso destinado a escola não pode ser usado para outro fim ao invés daquele determinado por alguém que nem conhece a realidade local, ou ainda, entender quais os impedimentos legais que estão dificultando a liberação do projeto de habitação, de eletrificação ou o próprio processo de desapropriação das áreas em questão. Outro momento que pode ser citado como pedagógico ou formador, no sentido da politização e conscientização, é a participação dos camponeses nas lutas que se desenvolvem fora dos espaços dos assentamento e acampamentos, pois para o MST estes momentos são tão pedagógicos quanto os momentos de desenvolvimentos das lutas dentro da comunidade. As lutas externas a que se refere aqui, são as mobilizações em parceria com outros movimentos sociais do campo e da cidade, são as ocupações dos espaços públicos, as marchas, as ocupações de terras para outras famílias que também estão se inserindo na luta para adquirir um pedaço de terra. 92 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS As lutas externas organizadas pelo MST conta com a participação de sua massa, ou seja, os assentados e acampados, esse lutas externas podem ser também caracterizadas como espaço de formação, devido às ações políticas e concretas que se desenvolvem, e pela própria situação política que leva a tal mobilização, ocupação ou seja qual for a ação planejada e organizada. Neste espaço é visível a apropriação pelos camponeses dos temas discutidos, há um grande envolvimentos de todos os sujeitos nas questões em disputa nesses espaço de luta por direitos, e nesta tentativa de se fazer sujeito de direito este se fazem também sujeitos conscientes de seu papel na história, e do seu dever de ser consciente. Quando se levanta hipóteses referentes ao processo de formação que se desenvolvem nos espaços organizativos do MST, é no sentido de dizer, este vem se tornando um movimento protagonista no fazer histórico de gente que não tinha condições estruturais se desenvolver com sujeito consciente de seus direitos, frente a essa sociedade excludente, que marginaliza e oprime de várias formas, em especial aqueles que foram desprovidos do acesso ao conhecimento. É através de seus objetivos, princípios, valores e jeito de ser que o Movimento “intencionaliza” suas práticas educativas, ao mesmo tempo que, aos poucos, também começa a refletir sobre elas, à medida que se dá conta de sua tarefa histórica: além de produzir alimentos em terras antes aprisionadas pelo latifúndio, também deve produzir seres humanos ou, pelo menos, ajudar a resgatar a humanidade em que já a imaginava quase perdida”. (CALDART, 2004, p. 316). No contexto das práticas formativa do MST, é possível afirmar que há uma grande diversidade de momentos e espaços que promovem significativas aprendizagens, e é nesta conjuntura de ações políticas e pedagógicas que o homem do campo, se insere como sujeitos em formação, com grandes possibilidades de atuação política no sentido de transformar a sociedade, começando de seu chão, do lugar onde estar produzindo os seus meios de vida, e que poderá ir bem mais além, com perspectivas de contribuir de forma mais geral as lutas ligadas ao MST, na intenção de mudar a consciência de outros homens e mulheres que mudarão a sociedade. Portanto, pode-se concluir essa reflexão afirmando que o MST aparece como um dos movimentos sociais protagonista de práticas pedagógicas e com várias experiências formativas e educativas que vem efetivamente contemplando as reais necessidades de formação dos camponeses que estão envolvidos neste processo de luta, que tanto educa como forma na perspectiva da conscientização, politização e emancipação humana. Com isso acredita-se que o Sem Terra do MST, detém uma especificidade que os diferenciam dos demais trabalhadores do campo, pois estes acumulam um saber social, que é elaborado a partir das práticas que se efetivam no interior desse movimento de luta e de emancipação humana. 93 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS CALDART, R. S. Elementos para a construção de um projeto político e pedagógico da educação do campo. In: MOLINA, M.C., JESUS, S.M.S.A. Por uma educação do campo: contribuições para a construção de um projeto de educação do campo. Brasília, DF: Articulação Nacional “Por uma educação do campo”, 2004. CALDART, R. e MUNARIM, A. Educação do campo: reflexões e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2010. CADERNO DE EDUCAÇÃO DO MST Nº 03- 2000. DALMAGRO, Sandra L, BAHNIUK, Caroline, e CAMINI, Isabela, ESCOLA ITINERANTE DO MST: 20 ANOS DE APRENDIZADOS NA LUTA. Germinal: Marxismo Educação em Debate, Salvador 2018. FREIRE, Educação como Pratica da Liberdade. 26ª edição, RJ: Paz e Terra, 2002. IASI, Mauro. Ensaio sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão popular, 2007. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS - IBGE, Analfabetismo no Brasil, São Paulo. Rio de Janeiro, 2017. ROGERS, Carl R. Tornar-se pessoa. 5. Ed São Paulo: Martins, 2001. SIEGEL, Norberto. Fundamentos da Educação: Temas Transversais e Ética. Associação Educacional Leonardo da Vinci, (ASSELVI). Indaial: Ed. ASSELVI, 2005. 94 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A LUTA PELA LEITURA DA PALAVRA: TRABALHO E EDUCAÇÃO EM TRAJETÓRIAS DE MULHERES DO CAMPO1 Evely Cristine Pereira de Aquino 2 José Eustáquio de Brito 3 Vânia Aparecida Costa 4 Ao longo das duas últimas décadas, a Educação do Campo tem se consolidado enquanto conteúdo de reivindicações políticas pautado pelos movimentos sociais do campo no contexto da luta pela terra (CALDART, 2012). Este artigo situa-se nesse contexto e tem como objetivo analisar trajetórias de mulheres da Educação de Jovens e Adultos (EJA), do assentamento Dois de Julho, vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), localizado nos municípios de Betim e Esmeraldas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. O nome do assentamento é uma homenagem à data de ocupação da terra, que ocorreu no dia 02 de Julho de 1999. Estudos sobre a dinâmica dos movimentos sociais do campo têm refletido sobre a incorporação, por parte desses movimentos, de conteúdos que fazem referência ao campo da diversidade, com destaque para questões de gênero e raça5. Este texto é parte de uma pesquisa 6 realizada com 24 (vinte e quatro) 1 2 3 4 5 6 Este texto foi originalmente publicado na RTPS – Revista Trabalho, Política e Sociedade, Vol. III, nº 04, p. 291-312, jan.-jun./2018, ISSN 2526-2319, DOI: https://doi.org/10.29404/rtps-v3i4.3625. Este artigo é uma versão revista do trabalho intitulado “Trajetórias de mulheres da educação de jovens e adultos em um assentamento de reforma agrária: entre a luta pela terra e pela leitura da palavra”, publicado nos anais da 37ª Reunião Nacional da ANPEd, ocorrida de 04 a 08 de outubro de 2015. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Educação Básica da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. E-mail: evelyaquino@hotmail.com. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais. E-mail: joseeustaquio.brito@uemg.br Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: vania.costa63@gmail.com. Cf. o estudo realizado por MAGRINI e LAGO (2013), que discute a presença de temas transversais nas lutas desencadeadas pelo MST tendo por referência documentos e materiais produzidos pelo próprio movimento social. Trata-se de uma pesquisa de mestrado intitulada “Trajetórias humanas de homens e mulheres da Educação de Jovens e Adultos em um assentamento de reforma agrária e a tensa luta pela leitura da palavra”,do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (PPGE/FaE/UEMG), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no âmbito do Observatório da Educação do Campo, em 2012, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), em 2013. 95 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS homens e mulheres que participaram de turmas de EJA, que funcionaram no período de 2001 a 2009 a partir das ações de quatro projetos desenvolvidos no interior do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, o que, por força do conjunto dessa experiência, será aqui denominado “Projeto Educação, Campo e Consciência Cidadã” (SILVA & COSTA, 2014). Na pesquisa, foi evidenciado que as narrativas das mulheres chamam atenção para alguns aspectos que entrelaçam suas trajetórias e as diferenciam das trajetórias dos homens. Revelaram as imagens construídas historicamente sobre as mulheres e seus lugares sociais, que têm implicações em seus percursos de escolarização e em suas atividades de trabalho. Ao discutir a condição da mulher, Michelle Perrot (2001a) faz uma revisão bibliográfica na qual mostra duas perspectivas de representação das mulheres: a da opressão e a da resistência. Na segunda perspectiva, as mulheres assumem um papel mais ativo na história e estão investidas de poder nos espaços onde atuam. Essa perspectiva é a que orienta os trabalhos de Perrot (2001a). A partir dessa referência e provocados pelas narrativas produzidas pelas mulheres pesquisadas no assentamento, elaboramos as seguintes questões que nos conduziram em nossa reflexão: o que as mulheres participantes da EJA percebem acerca de sua condição de protagonistas nas lutas pela terra e pela educação do campo? Como vêem a si mesmas enquanto mulheres presentes nessas lutas? O que dizem sobre suas trajetórias de escolarização e sobre a participação na dinâmica do assentamento? As reflexões desse texto estão organizadas em três partes. Na primeira parte, apresentamos as opções teórico-metodológicas da pesquisa de modo a evidenciar que a história oral e o conceito de memória coletiva nos orientaram na produção dos dados da pesquisa, na condução e análise das entrevistas. Na segunda parte, destacamos das trajetórias das mulheres as situações opressoras e de resistências vivenciadas em suas experiências de escolarização, trabalho e participação no movimento social. Nas considerações finais chamamos atenção para o quanto a vivência no MST tem possibilitado às mulheres a ampliação da participação em espaços de poder. Como captar o que dizem as mulheres? Reflexões sobre as opções teóricometodológicas da pesquisa A pesquisa foi realizada no período de 2012 a 2014, sendo o trabalho de campo concentrado em 2013. Analisamos o perfil de 24 (vinte e quatro) homens e mulheres que participaram das turmas de EJA dos quatro projetos desenvolvidos no assentamento Dois de Julho. Desse grupo, 8 (oito) foram entrevistados, sendo 4 (quatro) homens e 4 (quatro) mulheres, com idades entre 44 e 77 anos. 96 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A pesquisa desenvolveu-se a partir da abordagem qualitativa (FLICK, 2009). De acordo com Flick (2009) “O nome ´pesquisa qualitativa´ é usado como um grande guarda-chuva para incluir uma série de enfoques à pesquisa nas ciências sociais” (p.17), com diferentes abordagens teóricas e métodos de pesquisa. Diante dessa diversidade, o autor destaca algumas características que seriam comuns à pesquisa qualitativa. Sendo assim, a pesquisa qualitativa usa o texto como material empírico (em vez de números), parte da noção da construção social das realidades em estudo, está interessada nas perspectivas dos participantes, em suas práticas do dia a dia e em seu conhecimento cotidiano relativo à questão em estudo. Os métodos devem ser adequados àquela questão e devem ser abertos o suficiente para permitir um entendimento de um processo ou relação. (FLICK, 2009, p. 16) Nessa abordagem, interessam-nos o pressuposto de que as perspectivas dos sujeitos participantes da pesquisa, seus conhecimentos, experiências e vivências em determinados contextos possam ser investigados. Situada nesse quadro de referência, a história oral é a metodologia 7 que julgamos adequada para desenvolver a investigação. Foram realizadas entrevistas temáticas na perspectiva da história oral, abordagem teórico-metodológica que se vale da memória e é centrada em narrativas orais, com especificidades relacionadas tanto à forma de produção das entrevistas, quanto de sua transcrição e disponibilização, visto que se tornam fontes para outras pesquisas (MEIHY & HOLANDA, 2011). As entrevistas foram feitas nos locais de moradias dos homens e mulheres, pois esses espaços, além de revelarem a intimidade das pessoas, possibilitam o contato com seus objetos de memória (BOSI, 2003). Foram realizadas seis sessões de entrevistas individuais e uma com um casal, sendo que três foram gravadas em áudio e vídeo e quatro apenas em áudio. A transcrição das entrevistas seguiu as orientações de Ângela Dionísio (2009), que respalda seu trabalho na Análise da Conversação (AC). Nessa abordagem, a transcrição deve explicitar o máximo de informações possíveis da entrevista. A análise das entrevistas seguiu as orientações de Gibbs (2009) a partir do que o autor denomina de “codificação e categorização temáticas” e “análise de biografias e narrativas”, que consistem na realização de um trabalho cuidadoso de organização e análise das entrevistas de modo a identificar os pontos comuns e divergentes entre elas. Os processos de escolarização na infância, adolescência e na EJA constituíram-se o eixo temático das entrevistas. Contudo, as narrativas extrapolam esse recorte ao evidenciarem as “trajetórias humanas dos sujeitos da EJA” 7 Há debates sobre o estatuto da história oral. Ferreira e Amado (2005) explicitam os argumentos dos que a utilizam de três formas, como técnica, disciplina e metodologia. Já Meihy e Holanda (2011) acrescentam mais duas possibilidades de uso história oral, como ferramenta e forma de saber. 97 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS (ARROYO, 2011), redirecionando a pesquisa para a compreensão de que suas vidas são entrelaçadas por experiências coletivas. Na pesquisa, foi possível identificar e analisar quatro tramas que, entrelaçadas por vários fios, constituem as trajetórias de homens e mulheres entrevistados: o trabalho; a vivência no assentamento; a condição da mulher e a questão racial. Nesse artigo, daremos ênfase à condição da mulher no assentamento. A história oral tratada enquanto referencial teórico-metodológico da pesquisa mobiliza o uso do conceito de memória. Por compreendermos que os homens e mulheres do assentamento são constituídos por trajetórias de coletivos, consideramos o conceito de memória coletiva (HALBWACHS, 2006) mais adequado na pesquisa. Essas memórias são expressas nas narrativas dos sujeitos produzidas a partir das entrevistas realizadas, bem como nas interações entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa. As notas de campo constituíram-se em uma estratégia metodológica fundamental durante toda a pesquisa de campo. Gibbs (2009) esclarece que esse tipo de registro geralmente é utilizado em pesquisas associadas à etnografia, contudo podem ser usadas em outros tipos de pesquisa que trabalham com entrevistas. As notas derivaram das observações realizadas no assentamento. Por isso, foram usadas como suporte para as reflexões teóricas e produção escrita da pesquisa. As trajetórias das mulheres da EJA e a tensa luta pela leitura da palavra Com intuito de refletir sobre as especificidades das trajetórias das mulheres da pesquisa, destacamos de suas entrevistas três aspectos que, a nosso juízo, são reveladores da particularidade dessas mulheres em relação à luta pela palavra no contexto da luta pela terra: o acesso à educação; as atividades de trabalho e a participação em práticas organizativas no assentamento Dois de Julho. No item sobre as atividades de trabalho, apresentamos informações das 13 (treze) mulheres pesquisadas, com destaque para as 4 (quatro) entrevistadas. Das mulheres entrevistadas, apenas Rosilene, 53 anos, é um nome fictício; as outras três mulheres - Demiciana Edna, Geralda e Maria de Lourdes - optaram por se identificar a partir de seus nomes verdadeiros e, nesse sentido, fazem um movimento de afirmação de suas presenças negando a condição do anonimato. O acesso à educação As relações entre trabalho e educação estão presentes nas entrevistas de todos os homens e mulheres pesquisados. Aliada a essa trama comum, Maria de Lourdes, 64 anos, e Geralda, 74 anos, destacam a condição de opressão vivenciada por elas diante da proibição dos pais para estudar. Maria de Lourdes teve sua primeira experiência de escolarização na turma de EJA no assentamento 98 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Dois de Julho e Geralda foi à escola pela primeira vez depois de adulta, em uma turma de EJA no bairro que mora em Betim. Ao refletir sobre a importância dos estudos, Geralda comenta: A escola não era na cidade, era na roça. Tinha um professor que dava aula lá e o meu irmão, que é abaixo de mim, foi e aprendeu e a minha mãe não deixou eu ir. Naquela época, põe sentido para você ver... eles achavam que o estudo só valia para homem, para mulher não e sendo que no mundo atual que nós estamos vivendo hoje, o estudo vale demais da conta para todo mundo, tanto para mulher quanto para homem. E eu não aprendi nem assinar meu nome. (GERALDA) A lembrança do passado é reconstruída por Geralda a partir da vivência no presente, como podemos observar: “sendo que no mundo atual que nós estamos vivendo hoje, o estudo vale demais da conta para todo mundo (...)”. Ao mesmo tempo em que reconhece como determinante para a não frequência à escola o impedimento dos pais, Geralda individualiza sua situação ao usar com recorrência durante a entrevista as palavras “tristeza” e “arrependimento” para se referir ao não aprendizado da leitura e da escrita. A trajetória de Maria de Lourdes é semelhante à de Geralda. A relação com os pais também é mencionada por ela: Então, meu pai, que era muito carrasco, não abria muito mão da gente. Ele não deixava a gente ir ((para escola)), até o motivo que a gente era os pés e as mãos dele para trabalhar na roça e porque também era a distância. Ele não deixava. Ele...principalmente eu, como eu era a mais velha dos meus irmãos, então ele segurava muito a gente para a gente não sair, que tinha aquela coisa, aquele cuidado. Não podia sair. Na minha época eu namorei e casei. (MARIA DE LOURDES) A condição da mulher é explicitada quando Maria de Lourdes usa a expressão “principalmente eu”. A inserção precoce no mundo do trabalho é comum aos irmãos, mas o tratamento dispensado a ela é diferenciado. A relação da mulher com os estudos é marcada por questões culturais, como salienta Magalhães (2006) ao discutir em sua pesquisa a história de Mariana – migrante nordestina e moradora da cidade de Paranoá, Distrito Federal: “As razões que impediram Mariana de aprender a ler e escrever estão ligadas ao contexto de cultura, isto é, aos valores socioculturais atribuídos à escrita em muitos povoados e cidades pequenas do Brasil” (p. 221). Tomando por referência o trabalho de Del Priore (1993), Magalhães (2006) completa: “As tradições destas comunidades, ainda bastante arraigadas, lembrando a época colonial, reservavam para a mulher um papel centrado no lar, no casamento e na procriação” (p. 221). Os papéis atribuídos ao homem e à mulher são acentuados no século XIX, segundo Perrot (2001a), a partir de um discurso de cunho naturalista de diferenciação entre os sexos: “Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos” (p. 177). Esse discurso justificava a 99 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS participação do homem no espaço público e político e da mulher no espaço privado e familiar. As narrativas das mulheres pesquisadas sobre as atitudes de seus pais evidenciam a atualização de tal discurso visto que há uma tentativa de controle de seus corpos e demarcação de seus espaços de circulação. A escola, possivelmente compreendida como um espaço público, não era apropriado às mulheres, assim como outros espaços de socialização como, por exemplo, as rezas na comunidade onde Maria de Lourdes morava: Se tivesse uma reza, como tinha muitas rezas, e ele autorizasse, os meus dois irmãos mais velhos me levavam, mas tinha que levar eu lá na reza e quando acabava eles tinham que voltar comigo para casa. Se eles quisessem ir para lá, eles tinham que ir sozinhos, mas eu não podia. Ele ((pai)) não deixava. Meu pai me trazia muito segura ((sorri de forma contida)). Então, a gente não tinha liberdade para nada. Com o tempo, graças a Deus, eu casei. Eu tinha vinte e um anos de idade, mas a pessoa que eu acho que eu vou dizer que eu conheci e casei é meu esposo. (MARIA DE LOURDES) Na consideração feita por Maria de Lourdes – “Então, a gente não tinha liberdade para nada. Com o tempo, graças a Deus, eu casei” – identificamos duas possibilidades de interpretação de sua condição: uma é o matrimônio, como objetivo e realização pessoal da mulher; a segunda possibilidade é a percepção do matrimônio como meio de livrar-se do controle do pai. Percebe-se que a divisão sexual tem implicações nas trajetórias de escolarização das mulheres da EJA, aspecto também discutido por Costa & Rosa (2014) em uma pesquisa realizada com cinco educadoras vinculadas ao MST e à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG), inseridas no “Projeto Educação Campo e Consciência Cidadã”: Pode-se perceber que as marcas da exclusão na EJA são muitas, no entanto, quando se trata do direito à educação para a população feminina, a exclusão se torna mais forte. As políticas públicas de EJA numa perspectiva de gênero ainda são poucas. O acesso à educação está marcado tanto pela relação cidade e campo quanto pelas desigualdades de gênero (COSTA & ROSA, 2014, p. 95). Na pesquisa de Amorim (2009) sobre as trajetórias de escolarização de quatro mulheres alfabetizadoras da EJA vinculadas ao PRONERA em assentamentos de reforma agrária na Região Tocantina, estado do Maranhão, a autora considera que o programa possibilitou às mulheres a garantia do direito à educação. Sobre a participação das mulheres, a autora comenta: “A tomada de decisão, de dizer, ‘vou participar e voltar a estudar’, não ocorre acidentalmente, ao contrário, é estudada, planejada e negociada no âmbito de relações complexas da família, do trabalho e da comunidade” (AMORIM, 2009, p. 117-118). Essa negociação nem sempre é simples e tem implicações na ampliação da escolarização das mulheres. Demiciana Edna, 44 anos, aprendeu a ler e escrever aos 10 anos de idade, quando ficou internada durante um ano no Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte, para fazer uma cirurgia no baço porque na 100 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS época havia contraído esquistossomose. Esse foi o único período em que estudou na infância porque tinha que trabalhar desde pequena. Retomou os estudos no assentamento Dois de Julho e quando teve oportunidade de continuar sua formação não pôde fazê-lo devido às funções de cuidado com os filhos, como explicitou: “O MST também dá as bolsas de estudo. Nesse daí eu não quis não. Eu já tinha minha família, tinha meus filhos. Então, eu ficava mais presa, mas muita gente estudou.” A narrativa de Demiciana Edna e das outras mulheres pesquisadas evidenciam que os desafios enfrentados para a garantia do direito à educação não estão vinculados apenas às suas condições econômicas, mas também às relações de gênero; da relação que estabelecem com espaços públicos abertos ou não à participação das mulheres. Durante a pesquisa de campo, observamos que Demiciana Edna, nas reuniões no assentamento, sempre estava com um caderno em mãos a fazer anotações. Então, perguntamos como fazia para registrar as discussões das reuniões quando não sabia escrever, e ela responde: Antes quando a gente não sabia escrever, eu já sou de guardar as coisas na cabeça. Eu ia, ouvia tudo direitinho e conseguia passar tudo direitinho. Mas também não era só eu não, porque agora eu sou a coordenadora do Núcleo 2, mas antes tinha a oportunidade/ toda vida no assentamento o homem não trabalha só e nem a mulher só, é o homem e a mulher. E, às vezes, eu não sabia, mas eu trabalhava junto com o meu marido, o Tim, nós dois éramos coordenadores, os dois juntos. Então, ele sempre anotava tudo. Na hora que ele ficava um pouco perdido, ele tinha tudo anotado. Então, sempre estava me ajudando. Assim, não foi difícil, mas depois que eu aprendi a escrever, a anotar as minhas coisas, foi muito mais fácil. Porque antes era muito difícil. Depois eu fiz um... curso de militante. Então, foi muito importante quando eu sentei naquela casa ali em cima ((sede do assentamento)) no meio de trinta pessoas e conseguia anotar no caderno o que eles estavam ensinando no quadro. Se eu não participasse, eu não teria aprendido a fazer aquilo ali. Abriu outras portas. Eu já saio, vou numa reunião com o INCRA, já sento na mesa com eles, já sei escrever, ler, escrever tudo que está acontecendo e é muito gratificante, muito bom. É a oportunidade que a gente num/ eu mesmo... acho que eu não teria se não tivesse participado do movimento. Hoje eu não tenho mais vergonha de chegar, sentar, pegar uma anotação ou de fazer uma entrevista com você igual você está fazendo comigo ((sorri)). Não tenho mais vergonha. Antigamente era impossível, mas agora... está tudo mais fácil. Agora eu voltei a enxergar. (DEMICIANA EDNA) Demiciana relata que aprendeu o “ABC” e a assinar o nome no período em que ficou internada no Hospital das Clínicas quando era criança. Desde os primeiros anos da ocupação do Dois de Julho, Demiciana Edna participou de coordenações de Núcleos e Setores no assentamento. Combinada a essas atividades, a inserção na turma de EJA no Dois de Julho, no período aproximado de um ano, contribuiu para o desenvolvimento de habilidades relacionadas à leitura e à escrita. 101 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Na narrativa de Demiciana Edna, o aprendizado da leitura e da escrita emerge do engajamento nas práticas organizativas do MST. É com satisfação que detalha os momentos de contato com a escrita e sua percepção de que o par oralidade-memória tem um lugar importante para as pessoas que não sabem escrever: “Eu ia, ouvia tudo direitinho e conseguia passar tudo direitinho”. Percebemos que o desejo de aprender a escrever emerge também a partir da convivência com o outro letrado, no caso dela, com o cônjuge. Em sua narrativa, ocorre a apropriação da leitura e da escrita no contexto da luta pela terra, que amplia a participação em espaços de decisão, de poder: “Eu já saio, vou numa reunião com o INCRA, já sento à mesa com eles, já sei escrever, ler, escrever tudo que está acontecendo...” Por outro lado, a narrativa é encerrada com uma forte afirmação: “agora eu voltei a enxergar”. O que significa voltar a enxergar? A metáfora da cegueira é utilizada por Demiciana Edna ao se referir aos sujeitos que não dominam o código escrito. Há uma negação da vida anterior sem escrita. De acordo com Galvão e Di Pierro (2007), tal metáfora traz como marca o preconceito contra o analfabeto, como se viver sem a escrita fosse o mesmo que viver na escuridão. No entanto, percebe-se que, mesmo que seja contraditório com a percepção de Demiciana Edna enquanto leitora do mundo, o discurso sobre a incapacidade do analfabeto não é predominante em sua narrativa. O olhar para os sujeitos enquanto leitores do mundo, investidos da capacidade de ler suas realidades, é um pressuposto que adotamos na pesquisa, inspirados em Freire (2011): A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto (FREIRE, 2011, p. 19 - 20). Quais são os desafios do contexto da luta pela terra postos às mulheres que estão em posição de liderança e que não sabem ler e escrever? Maria de Lourdes traz em sua trajetória evidências dessa questão. Na entrevista, ressalta várias vezes seus esquecimentos, que segundo ela interferem no aprendizado da palavra. Maria de Lourdes participou de turmas de EJA no assentamento do ano 20008 a 2009, mas não de forma contínua nem linear. A questão do tempo na EJA é fundamental para o aprendizado da leitura e da escrita de forma sistematizada. A interrupção dos projetos e fechamento das turmas podem desmobilizar os educandos e comprometer o trabalho iniciado em sala de aula. A experiência nas turmas foi avaliada de forma positiva por Maria de Lourdes, contudo não foi suficiente para que aprendesse a ler e a escrever. A participação na coordenação do 8 A primeira turma de EJA no Dois de Julho foi constituída no ano 2000 em função de uma parceria estabelecida entre o MST e o Movimento de Educação de Base – MEB. 102 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Setor de Finanças e, posteriormente, no de Alimentação, exige o contato com a escrita e, como não sabe assinar o nome, Maria de Lourdes relata as estratégias utilizadas quando tinha que lidar com documentos relativos às suas atividades: Aquilo que eu não podia escrever, que eu não sabia, eu punha meu dedo ((sorri)) que meu dedo vai até hoje em muitas coisas, mas o que eu tinha que assinar, como eu não podia, não sabia escrever, eu punha o dedo. Às vezes, não tinha nem aquele negócio de por o dedo assim ((faz o movimento com a mão direita)) eu passava a tinta da caneta. Mas já teve várias coisas que eu tinha que fazer isso e eu fazia com o dedo mesmo ((sorri)). Deixa eu ver o que mais... ( ) Quando vinha algumas notas, que vinham de fora de alguma coisa que a gente tinha que assinar se, às vezes, fosse uma nota que tinha que ser eu, eu punha o dedo. Se não fosse eu, pedia alguém para pôr meu nome, que poderia escrever para mim. Tem coisas que a pessoa pode escrever o nome da gente, não precisa da gente pôr o dedo, mas aí o que precisava que eu tinha que pôr o dedo mesmo eu tinha que pôr ((sorri)). Era o jeito. E por aí nós fomos e estamos até hoje... Eu ainda estou nessa vida porque até hoje não entrou nada na minha cabeça para eu poder fazer isso. (MARIA DE LOURDES) Na pesquisa realizada por Ratto (2006) a participação política foi evidenciada como fator de inserção de um representante sindical não-escolarizado na cultura escrita. A estratégia descrita por Maria de Lourdes - solicitar alguém que escrevesse para ela - era semelhante a utilizada pelo sujeito pesquisado. A autora considera que o líder sindical desempenha um papel de letrado, pela circunstância atípica em que faz uso da escrita, ou seja, ele dita discursos burocráticos a uma secretária que atua como escriba (RATTO, 2006, p. 278). A participação nas práticas organizativas do Movimento politiza as relações dos sujeitos com a leitura e a escrita. A escola, como espaço de veiculação da cultura escrita, é mencionada com frequência. Contudo, não tem centralidade nas vidas dos sujeitos, mesmo porque suas trajetórias escolares muitas vezes são truncadas. As atividades de trabalho das mulheres da EJA As particularidades das trajetórias das mulheres não estão presentes apenas no âmbito da escolarização. A divisão sexual tem implicações no mundo do trabalho e é isso que percebemos ao analisar as atividades de trabalho desenvolvidas pelas 13 (treze) mulheres pesquisadas, organizadas no quadro 1. Aspectos particulares dessas trajetórias são evidenciados nas formas das mulheres nomearem suas atividades ao responderam ao item “trabalho” da ficha de identificação9, composto por três perguntas: se trabalha dentro ou fora do assentamento, que profissões já exerceu e em que trabalha atualmente. Quadro 1: Atividades de trabalho exercidas pelas mulheres dentro e fora do assentamento 9 A ficha de identificação foi utilizada no trabalho de campo com o objetivo de mapear informações sobre o perfil dos sujeitos da EJA do assentamento. A ficha contém itens sobre dados pessoais; inserção no MST; participação em organizações/movimentos; trabalho e escolaridade. 103 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Mulher Mulher 0110 Mulher 02 Demiciana Edna Mulher 03 Mulher 04 Mulher 05 Mulher 06 Maria de Lourdes Mulher 07 Mulher 08 Mulher 09 Rosilene Atividades que exerce dentro do assentamento (2013) Dona de casa. Atividades que exerce fora do assentamento (2013) – Faz varetas de bambu para produção de pipa e cultiva hortaliças, mandioca, milho, feijão e quiabo. – Dona de casa. Dona de casa, cultiva hortaliças e cuida de galinhas no quintal de casa, vende os produtos que cultiva. Tira leite, cuida da casa, cultiva horta no quintal de casa, cultiva na área coletiva das mulheres, trabalha com apicultura e vende mel e própolis. – Dona de casa, cultiva horta e feijão na área coletiva das mulheres. – Dona de casa e faz varetas de bambu para produção de pipa. Cultiva feijão, milho, mandioca e cuida de animais de pequeno e grande porte. – Apicultura e cultivo de feijão e mandioca. – – Mulher 1011 Mulher 11 Cultiva feijão na área coletiva das mulheres. Mulher 12 Cultiva mandioca. – – – Empregada doméstica em Betim. Auxiliar de cozinha em Betim. Casa de família. Os dados de 12 mulheres foram expressos no quadro 1. A outra pesquisada a completar o número total de 13 mulheres é Geralda, que não aparece no quadro porque não trabalha e nem mora dentro do assentamento por motivos de saúde. Geralda relatou que trabalhou durante 20 (vinte) anos em “casa de família” e 15 (quinze) anos como faxineira em uma conservadora. Atualmente é aposentada. As atividades de trabalho exercidas pelas mulheres pesquisadas estão mais ligadas ao cuidado, à organização, ao espaço e trabalho doméstico e às atividades menos qualificadas. Desse modo, percebe-se que algumas características encontram-se arraigadas em nossa cultura. Perrot (2001b), em uma abordagem histórica, traz contribuições para refletirmos sobre esse fato: O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual dos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a Casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado é temporária, credenciada pelas necessidades da família, a qual comanda, remunerada com um salário de trocados, confinada às tarefas ditas não-qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas (PERROT, 2001b, p. 186-187). 10 11 Nesse quadro, apenas os nomes das mulheres entrevistadas na pesquisa foram revelados. As atividades apontadas mantêm as expressões utilizadas por elas para nomear suas ocupações. Não mencionou as atividades que desenvolve no assentamento. 104 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS As características apontadas pela autora estão presentes no assentamento, como observado na pesquisa de campo. O Dossiê sobre o Dois de Julho, produzido pela Fundação Artístico-Cultural de Betim (FUNARBE)12, reforça esse traço ao afirmar que o cuidado com a lavoura e com os animais de grande porte é realizado principalmente por homens. Às mulheres cabe o cuidado doméstico com os filhos, as refeições, as pequenas criações, a horta caseira e a guarda do barraco durante o dia. Essa divisão sexual do trabalho só é quebrada nos períodos de trabalho mais intenso, tal como no plantio e na colheita, quando a demanda por braços é maior (FUNARBE, 2011, p. 87-88). Na ficha de identificação, as mulheres não mencionam as atividades que exerciam na infância e adolescência. Apenas nas entrevistas com as quatro mulheres pesquisadas são oferecidas informações acerca desse período de suas vidas. Percebe-se ainda nas entrevistas que 3 (três) mulheres nomeiam como “trabalho” suas atividades na infância e adolescência. Somente Demiciana Edna utiliza em alguns momentos a palavra “ajuda” como sinônimo de “trabalho”: “Depois que eu saí ((do Hospital das Clínicas)), depois de um ano, eu não retornei para escola não. Fui ajudar meu pai e minha mãe e dois irmãos, que era no interior. Meu pai tomava conta de fazenda, era vaqueiro”. As narrativas de mulheres em pesquisas de Amorim (2009) e Magalhães (2006) revelam que algumas mulheres usam com recorrência a palavra “ajuda” como sinônimo de trabalho ao se referir ao trabalho que desempenham, seja na infância ou na vida adulta. Isso nos revela a forma como reproduzem um olhar de desprezo e diminuição do trabalho feminino. Silva (2010) contribui com essa reflexão ao afirmar que, “no entanto, as mulheres sempre trabalharam. Os afazeres domésticos, o cuidado com os filhos e com a casa são trabalhos, embora não remunerados e pouco considerados por ser praticamente invisíveis (talvez até por isso mesmo!)” (SILVA, 2010, p. 36). A forma de algumas mulheres nomearem o trabalho doméstico como trabalho em “casa de família” também chama atenção e merece ser discutida. Qual é o modelo de família e de casa contido nessa expressão? Supomos que o modelo de família em questão seja o nuclear, formado por pai, mãe e filhos. No entanto, nem sempre é esse o modelo presente nas famílias das mulheres. Os arranjos familiares no assentamento incluem filhos, netos, irmãos, noras e genros dessas mulheres, dentre outros graus de parentesco. As barracas no 12 Esse material, publicado em 2011, é o Dossiê de Tombamento do Núcleo Histórico do Assentamento Dois de Julho, produzido pela Fundação Artístico-Cultural de Betim (FUNARBE), Prefeitura de Betim e Miguilim – cultura e meio ambiente. O material integra os documentos do processo de tombamento do Núcleo Histórico do Assentamento pela importância econômico-social da antiga fazenda Ponte Nova para história de Betim. Disponível em: http://www.betim.mg.gov.br/ patrimoniocultural/bens_tombados_e_inventariados. Acessado em: 27 de setembro de 2017. 105 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS assentamento acomodam uma família ampliada, que não condiz com o modelo da família nuclear. Os diversos arranjos familiares implicam também nas atividades exercidas pelas mulheres que responderam serem atualmente donas de casa. Observamos na pesquisa de campo que algumas dessas mulheres, além dos cuidados com suas barracas, são responsáveis pelo cuidado dos netos enquanto seus filhos trabalham na cidade. A diferenciação das atividades produtivas desempenhadas por homens e mulheres perdura no assentamento. A constatação dessa situação não é suficiente para, em princípio, afirmarmos um lugar de submissão e opressão da mulher. As mulheres pesquisadas vão nos provocar a refletir sobre as formas de reinvenção de seus lugares sociais, visto que a participação delas em movimentos sociais interroga o lugar reservado a elas historicamente vinculado ao espaço privado. Por essa razão, a ocupação do espaço público pelas mulheres militantes na luta pela terra, além de ser compreendida como um ato de resistência, nos indaga acerca das estratégias de desnaturalização das formas de inserção no mundo. A participação das mulheres no assentamento O MST, fundado em 1984, é um dos movimentos sociais mais importantes do Brasil. Sua principal bandeira é a reforma agrária, mas, historicamente, seus sujeitos têm se mobilizado em torno de outras bandeiras de modo a reivindicar uma vida digna no campo. Desde o início da organização do movimento, chama atenção a presença de mulheres. Caldart (2004) ressalta que, inicialmente, as mulheres religiosas e companheiras dos militantes eram as responsáveis pela discussão no setor de educação do movimento. Diante do grande número de crianças que estavam nas ocupações, era necessário garantir a escolarização destas. Por isso, as mulheres tiveram um papel fundamental porque ensinavam as crianças dentro dos acampamentos. Magrini e Lago (2013) também oferecem elementos para pensar sobre o lugar das mulheres no MST ao afirmar que a questão de gênero aparece como pauta de luta desde o primeiro Congresso Nacional do MST. De acordo com os autores, o MST tem incorporado bandeiras de lutas identitárias, tais como de gênero e raça/etnia. Contudo, apenas a discussão sobre gênero está mais avançada no movimento, inclusive organizado como Setor de Gênero 13, como pode ser conferido na página institucional do movimento. A pesquisa realizada no assentamento Dois de Julho nos possibilitou perceber que a presença de mulheres militantes nesses espaços, longe de ser 13 O MST é organizado em setores, nacionalmente, regionalmente e em suas áreas ocupadas. Alguns setores são: Frente de Massa; Formação; Educação; Produção; Comunicação; Projetos; Gênero; Direitos Humanos; Saúde; Finanças; Relações Internacionais. Disponível em: http://www.mst. org.br/quem-somos/. Acessado em: 07 de agosto de 2016. 106 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS residual, invisível ou periférica, apresenta-se como protagonista de várias iniciativas. Observamos que a participação das mulheres no MST em espaços de liderança demanda determinadas atitudes, tais como sair de seus locais de moradia para participar de ocupações, reuniões, tomar a palavra, se posicionar, conciliar o trabalho doméstico com atividade no espaço público. Essas atitudes interrogam a representação de subalternidade construída historicamente sobre o lugar do feminino. Interpretamos como forma de resistência e de reinvenção do lugar do feminino a decisão das mulheres em participar da ocupação da terra. De acordo com Caldart (2004), essa ação do Movimento promove a quebra de “padrões culturais”. Sendo a elas determinados os espaços privado e doméstico, não podemos considerá-las como resistentes ao saírem de suas casas para morar em um barraco de lona coberto de incertezas? As mulheres pesquisadas afirmam suas presenças políticas, suas capacidades de romper com “padrões culturais” ao mostrarem-se publicamente na luta coletiva pela terra. No assentamento, participam de espaços de decisão e assumem coordenações. Nas entrevistas concedidas à Costa & Rosa (2014), as educadoras revelam que a participação delas em atividades dos movimentos tem possibilitado a construção de um novo lugar social para a mulher. Esse aspecto também é revelado pelas mulheres do Dois de Julho ao narrarem suas experiências no MST. Quando Rosilene e o marido decidiram participar de uma ocupação na cidade de Carmo da Mata, Minas Gerais, ele trabalhava em Betim e ela ocupavase das tarefas de casa. Nessa condição, ela se viu com mais disponibilidade para ficar no acampamento. Ao perguntarmos à Rosilene como era a vida em Carmo da Mata, ela responde: Pior do que aqui ((assentamento Dois de Julho)), minha filha, que lá era lona até coberto por cima, aquele trem todo preto. Quando cheguei lá, eu falei “meu Deus do céu, o que eu vim fazer aqui?” E eu queria vir embora na hora e o pessoal “ah, não vai não, não vai não”. E foi só eu e o Igor, meu menino, porque falaram que seria seis meses. Falei “seis meses passa rápido. Nós vamos porque seu pai está trabalhando, depois ele vai”. (ROSILENE) A expectativa de ter a posse da terra em seis meses foi o que motivou Rosilene a sair de sua casa com o filho mais novo e participar da ocupação. Atitude ousada para uma mulher ao considerarmos que culturalmente foi a ela atribuído o espaço privado. Algum tempo depois o marido rompeu o vínculo de trabalho e foi para a ocupação. Lá trabalharam e permaneceram por quatro anos. Depois, pediram transferência para o assentamento Dois de Julho porque ele ficou doente e o casal avaliou que em Betim teriam acesso ao tratamento médico com mais facilidade. 107 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS O MST14 orienta que nos acampamentos e assentamentos seja garantida a participação da mulher em coordenações, bem como o direito a voto em assembleias. Esse aspecto é explicitado na bandeira do Movimento com a imagem de um homem e de uma mulher. E não é só na bandeira que a mulher é reconhecida na luta; elas se reconhecem em luta. Desse modo, 3 (três) mulheres citaram experiências em alguma coordenação no assentamento Dois de Julho. A narrativa de Demiciana Edna sobre a luta pela educação contribui para compreendermos como as mulheres se percebem diante das demandas coletivas no Dois de Julho: Eu vim para cá no dia dois de julho. Aí a gente batalhou com a prefeitura de Betim porque tinha as crianças que estudavam aqui do primeiro ano até a quarta série e eles mandaram os professores. A Kombi vinha trazer os professores de manhã. Eles davam aula só meio período, de manhã até onze horas. Nossas crianças estudavam nesse período e aí surgiu a EJA para ensinar a gente, os adultos à noite. Isso a partir de 99, foi... em 2000 por aí até 2003 mais ou menos, 2004 funcionou a EJA. (DEMICIANA EDNA) O uso da expressão “a gente” ao falar da reivindicação junto à prefeitura explicita a percepção de Demiciana de sua inserção no processo de luta e no reconhecimento da esfera pública como responsável pela garantia de direitos básicos. Observamos que há participação efetiva das mulheres em atividades organizativas no Dois de Julho, fato também destacado na pesquisa de Costa (2010) e de Costa & Rosa (2014). Contudo, as duas pesquisas problematizam as formas de participação das mulheres, visto que cargos de maior prestígio são ocupados por homens. Essa realidade, interpretada à luz das relações de gênero, revela resquícios de um tratamento preconceituoso dispensado à mulher: Espaços de lideranças no limite dos assentamentos e acampamentos têm sido, com frequência, ocupados por mulheres. Todavia, setores como o de produção e a coordenação-geral do assentamento ainda têm sido mais ocupados por homens. Ou seja, em setores de direção mais amplos, por exemplo, direções estaduais e direção nacional predomina a liderança de homens (COSTA & ROSA, 2014, p. 101). Essa questão nos provoca a pensar que, apesar do MST constituir um Setor de Gênero como parte integrante de sua estrutura institucional, a participação das mulheres em suas atividades organizativas não tem acontecido de forma igualitária. No estudo de Costa & Rosa (2014) essa questão emergiu como uma contradição entre o ideal político do movimento e suas formas de organização interna. Por isso, torna-se uma necessidade a investigação acerca dessa tensão a partir de narrativas de mulheres militantes do Movimento. As entrevistas possibilitam compreendermos que a participação das mulheres nas atividades organizativas do Movimento amplia suas percepções 14 Informação disponível em: http://www.mst.org.br/taxonomy/term/330. Acessado em: 28 de abril de 2014. 108 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS sobre sua condição feminina e evidencia que a luta pela terra está articulada à luta por outros direitos sociais básicos, dentre eles o direito à educação. Considerações finais As narrativas das mulheres revelam os limites impostos à escolarização na infância, visto que suas trajetórias são marcadas por relações de gênero fundadas na desigualdade dos papéis sociais entre homens e mulheres. Como evidenciado, o trabalho é uma trama constitutiva das trajetórias de homens e mulheres. Contudo, no caso das mulheres, outros ingredientes alimentam essa trama, tais como questões culturais que perpassam as decisões dos pais em permitir ou não frequência das filhas à escola ou em espaços públicos; a negociação que as mulheres fazem com seus companheiros para conciliar cuidado com a família e estudo; as relações com o mundo do trabalho, que historicamente reserva às mulheres o espaço doméstico. A pesquisa evidencia que a EJA do “Projeto Educação, Campo e Consciência Cidadã”, possibilita às mulheres a oportunidade de retomarem os estudos, ou iniciá-los, como é o caso de Maria de Lourdes, que estudou pela primeira vez no assentamento. A presença da sala de aula no assentamento revela a imbricação entre luta pela terra e pela leitura da palavra. A participação no movimento motiva os sujeitos a voltar a estudar para desenvolver habilidades de leitura e de escrita. Ao desenvolver essas habilidades, as mulheres percebem que suas realidades são modificadas, pois passam a ocupar espaços de poder, como no caso de Demiciana Edna, ao relatar sua participação em negociações com o INCRA e dos registros que, sozinha, realiza nesses momentos. A busca constante pela leitura da palavra é o que mobiliza Maria de Lourdes a participar em diferentes momentos de vários projetos de EJA desenvolvidos no assentamento. Sua narrativa revela que seu maior sonho é ler a Bíblia, por isso participou da EJA. Entretanto, a relação com a escrita é mencionada de um modo particular quando faz referência ao seu contato com documentos enquanto coordenadora do Setor de Finanças do assentamento, revelando que a participação no movimento coloca os sujeitos diante de práticas de leitura e de escrita que são constitutivas da luta pelo direito à terra. A participação das mulheres na EJA pode ser considerada um ato de resistência às formas de subalternização que vivenciaram ao longo de suas trajetórias. Por isso, suas narrativas nos oferecem elementos para percebermos o quanto a luta dessas mulheres contribuiu para a implantação da EJA no assentamento e seu desenvolvimento ao longo dos anos de existência do “Projeto Educação, Campo e Consciência Cidadã”. Tal empenho revela-nos um acerto de 109 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS contas com o passado para a construção de um presente e de um futuro em que mulheres e homens tenham acesso igualitário ao direito à educação. A participação na organização do assentamento é formativa e repercute na luta pelo direito à palavra, que são evidenciadas nas atividades exercidas ao secretariar reuniões ou mesmo ao gerenciar recursos financeiros que demandam habilidades de escrita e cálculos que são aprendidas e potencializadas nos momentos formativos proporcionados pela EJA. As trajetórias das mulheres da pesquisa oferecem-nos elementos para percebê-las em um movimento de atualização de papéis atribuídas a elas historicamente e de resistências às condições opressoras. Nesse sentido, o engajamento em atividades organizativas no assentamento tem possibilitado a ampliação da participação das mulheres em espaços de poder. 110 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências AMORIM, Elisângela S. Camponesas e educadoras em assentamentos da reforma agrária. In: AMORIM, Elisângela S. Trajetória educacional de mulheres em assentamentos de reforma agrária na Região Tocantina – MA. 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Em várias partes, o tema tem ocupado papel de destaque nas agendas governamentais – políticas públicas- quer negando a sua importância, quer reafirmando-o; além de trazer para a cena principal questionamentos sobre a educação ofertada para as diferentes populações. Especialmente no Brasil, quando se vive um momento de significativas mudanças e questionamentos a modos tradicionais de se fazer educação e/ou se questionam as fragilidades das ‘poucas’ políticas públicas existentes que buscam dar conta de minimizar as discrepâncias sociais que reverberam (também) na área educacional, cabe pensar mais detidamente sobre a importância que adquirem as políticas públicas relativas ao acesso à educação, em uma perspectiva que busque garantir a equidade social mínima. O interesse nessas discussões/reflexões considera, dentre outros fatores, as pressões sociais impostas pelas novas e complexas demandas contemporâneas, os impasses e incertezas dos ‘novos’ tempos e, ainda a pressão exercida pelos diferentes grupos que se sentem alijados de processos educacionais formais, em busca de sua inserção quer no mercado de trabalho, quer à procura de qualidade de vida, que lhes empreste dignidade. (DELORS: 1998; MORIN: 2000). Todos parecem concordar que em uma sociedade denominada como ‘do conhecimento’, a escolaridade representa papel preponderante, já que é capaz de proporcionar ao sujeito experiências e informações universais, mas, sobretudo, sobre sua cultura. Ao mesmo tempo, o processo de escolarização garante ou busca garantir a construção e o reconhecimento de um conjunto de conhecimentos tidos socialmente como relevantes e de formas de operar 1 2 Doutora em Educação. Professora do Instituto Federal de Minas Gerais – Campus Diamantina. Contato: emg_bethgomes@yahoo.com.br Doutora em Educação. Professora no Departamento de Ciências Aplicadas à Educação FaE/UFMG. Contato: isabelantunes@fae.ufmg.br EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS intelectualmente segundo padrões dos contextos social e cultural (REGO: 2003, p. 16), desempenhando, nessa perspectiva, uma função social. Dessa forma, acredita-se que a escolarização desempenha um papel crucial na constituição de um sujeito com mais capacidade para lidar com as incertezas e ‘novidades’ do mundo contemporâneo. Logo, a exclusão, o fracasso e abandono da escola por parte dos alunos são fatores graves; não ter acesso à escola ou ter acesso fragmentado a processos de escolarização significa o impedimento de uma apropriação de saberes sistematizados, de instrumentos de atuação no meio social e de construção de novos conhecimentos (cf. REGO:2003). Entretanto, vale ressaltar que a simples frequência do sujeito à escola não necessariamente lhe garante a apropriação dos percursos escolarizados (ideais) até aqui mencionados; tal crença seria antes de mais, ingênua. Há que se pensar principalmente como a qualidade da educação ofertada interfere na manutenção/alteração desses ‘status quo’. Dessa maneira, é importante pensar de que maneiras os contextos desiguais, os percalços (ou as ‘provações 3’) sociais e uma fragilidade quer institucional, quer das políticas públicas constituídas no Brasil podem reforçar atitudes excludentes em relação à apropriação de tais processos de escolarização, no que tange ao acesso (a) e permanência na escola de determinados grupos sociais, neste caso, de populações camponesas. Assim, uma pergunta que norteia a escrita deste artigo, parte de duas premissas. A primeira diz respeito à importância de desenvolvimento de processos de escolarização formais; a segunda refere-se à inserção do sujeito na sociedade do conhecimento. Reconhece-se, assim, a escola como lócus de desenvolvimento dos planos afetivo, motor, cognitivo, cultural, além acatar também a ideia de que a escola pode dotar o sujeito para a construção de estratégias que lhe garantam a inserção no mundo contemporâneo de forma crítica e com possibilidades de participar desse mundo, garantindo-lhe uma qualidade educacional que lhe permita a construção da qualidade de vida. É exatamente por reconhecer o papel preponderante da escola, que as populações campesinas brasileiras têm desenvolvido uma intensa luta pelo acesso e permanência de seus sujeitos no interior dela. Se, historicamente, esses grupos sociais têm sido conhecidos (ou não reconhecidos) pela negação de seus saberes, imputando-se lhes um papel social conservador e têm sido reputados como sinônimo de atraso, que emperram o desenvolvimento e o progresso do país, como tais grupos têm dado conta de uma apropriação cultural que lhes permita entender a importância da escola? Como tais grupos têm se organizado de modo a promoverem o enfrentamento de suas ‘provações’, no sentido de ampliarem o acesso e permanência nesse espaço 3 Conforme Martuccelli: Gramáticas do Indivíduo. 116 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS social? Com quem ou com que instrumentos de luta esses grupos podem contar, e têm contado para romper o círculo vicioso em que se encontram, buscando alcançar o ‘círculo virtuoso’, no dizer de Antunes-Rocha (2012). Este artigo objetiva apresentar algumas reflexões, a partir das trajetórias de dois campesinos, com vistas a redescobrir a importância da família, especialmente as mulheres/mães campesinas para a construção de uma perspectiva de luta pelo acesso e permanência dos filhos(as) na escola. Além disso, quer se ressaltar o descompasso entre a construção/proposição de algumas políticas públicas (neste caso políticas estaduais) e como tais reverberam na vida de estudantes campesinos. Por fim, é importante ressaltar que este artigo se vale das entrevistas narrativas feitas em meu processo de doutoramento, quando foram realizadas 15 entrevistas com sujeitos que cursam a graduação em educação do campo na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, do curso de Linguagens e Códigos, no ano de 2017. Para efeitos deste trabalho retiramos duas entrevistas e a análise é feita na perspectiva da presença/ausência de políticas públicas, e, ao mesmo tempo, busca-se realçar o papel das mulheres na educação de seus filhos. Um estudo das narrativas autobiográficas: metodologia utilizada A metodologia desenvolvida neste artigo parte das narrativas de dois sujeitos campesinos (de um total de 15 entrevistas realizadas). Certamente, há que se questionar o porquê a escolha de apenas duas entrevistas. Os objetivos que nortearam a escrita deste artigo coloca a ênfase em dois aspectos. De um lado, o papel da família na tentativa de oferecimento de suportes4 para garantir o acesso e permanência de seus filhos na escola; por outro lado, busca-se evidenciar o efeito de políticas públicas que não consideram as diversidades vivenciadas no Brasil, tão vasto, tão desigual. O principal instrumento para a coleta de dados foi feita a partir de um levantamento bibliográfico preliminar sobre o tema- educação do campo- à época do doutoramento. Após me debruçar sobre tal temática, parti para estudos de campo, com a realização de entrevistas narrativas, tendo como sujeitos dessa pesquisa, estudantes campesinos que cursavam Licenciatura em educação do Campo – curso Linguagens e Códigos- na UFVJM. As entrevistas foram gravadas e depois transcritas e tiveram como um dos objetivos a narrativa da vida escolar/pessoal dos sujeitos envolvidos, até a sua entrada na universidade. Buscou-se identificar a partir das memórias dos entrevistados o significado da escola em suas trajetórias individuais, buscando entender os impactos do processo de escolarização e o papel das famílias e dos 4 Ver Martuccelli. Obra citada. 117 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS contextos sociais em que viviam/vivem; trabalhou-se com o objetivo de identificar as ‘marcas’ que as escolas poderiam ter evidenciado em suas vidas, permitindo-lhes chegar à graduação5. As narrativas feitas por sujeitos (considerados os problemas nos quais os sujeitos se veem implicados), e que trazem consequências imprevisíveis sobre suas vidas, tem se mostrado uma ferramenta interessante que contribui para ampliar o entendimento acerca de uma ‘macroestrutura’; daí entender como a ausência/presença de políticas públicas interfere no cotidiano dos sujeitos tornase fundamental. A pesquisa se propõe, pois a entender as narrativas com os sujeitos, possibilitando aos entrevistados a realização de uma análise de suas vidas, dos processos vivenciados em suas relações com a escolarização. Retomam-se autores como Lima, Geraldi e Geraldi (2015) que afirmam: Defendemos aqui a ideia de que é fundamental que os saberes da experiência sejam resgatados e postos em diálogos com o conhecimento científico, já que neste está baseado o modelo de educação existente que resulta da crença de que para a participação democrática é necessário que os sujeitos tenham acesso aos conhecimentos científicos, únicos que têm tido espaço no modelo atual de ensino, o qual é preciso ultrapassar. (2015, p. 21) Afirmamos ainda em conformidade com os autores citados, que diferentes grupos culturais, sociais e econômicos têm seus próprios modos de construírem e validarem suas explicações de mundo que foram elaborados ao longo do tempo, sem, contudo, perderem de vista os contextos, as outras culturas com as quais convivem. Esses autores, citando Bruner (1998), informam ainda que: (...) a narrativa é um modo de pensamento que se apresenta como princípio organizador da experiência humana no mundo social, do seu conhecimento sobre ele e das trocas que com ele mantêm os sujeitos. O modo narrativo organiza-se a partir da experiência particular dos sujeitos, no que é contextual e singular. (Idem: p. 22). Também retomamos Ecléa Bosi (1994) em seu notável trabalho Memória e Sociedade: lembranças de velhos, quando ela evidencia que, na maior parte das vezes, lembrar não é apenas reviver, mas reconstruir e reelaborar as experiências passadas e que o trabalho de recuperar a memória de uma vida (ou parte dela) ‘fica o que significa’. Entretanto, note-se, que o conteúdo das memórias sempre 5 Importante ressaltar que para esse grupo social – campesinos- não tem sido fácil o acesso à escolarização, tendo esse grupo começado alcançar, apenas no início do XXI, níveis mais altos de escolaridade. Se a lei que assume a educação básica como obrigatória, pública e gratuita para todxs, data de 1996 (LDB 9394/1996), os campesinos ainda estão em luta pelo alcance de níveis elementares de educação formal, mesmo tendo decorrido mais de vinte anos da promulgação da LDB 9394/96. Nesse sentido, é fundamental refletir como essas populações têm enfrentado cotidianamente as questões de acesso e permanência na escola. 118 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS será avaliado com o olhar e os recursos do presente, o que não retira da narrativa a sua importância, nem diminui sua significação. Por fim, em relação às narrativas é fundamental ressaltar que no processo de percepção/compreensão da narrativa, o ‘receptor’ exerce um papel tão ativo quanto o locutor, pois assume uma atitude responsiva, ativa como ouvinte. Bakhtin (1992) ao analisar a atitude responsiva ativa do interlocutor ressalta: A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (...); toda compreensão é prenhe de resposta, e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz; o ouvinte torna-se o locutor (BAKHTIN: 1992, 290). Nesse sentido, admitir a participação ativa daquele que narra e daquele que ouve, bem como as trocas estabelecidas nesse processo comunicacional, leva a reconhecer que as entrevistas são decodificadas não apenas pelos sujeitos que as produziram, mas como uma ‘re-interpretação’, construídas pelos contextos que caracterizam o ‘antes’ e o ‘agora’, pelos interlocutores e suas relações no momento da narrativa, e, ainda pelas relações estabelecidas pelos entrevistados com suas famílias, com o ‘objeto’ (fato) da narrativa e o conjunto de experiências passadas e presentes pelos interlocutores no momento da narrativa. Assim, acredita-se, de acordo com Brunner (1997: p. 106) que ‘a história-de-uma-vida, tal como é contada para uma pessoa específica, é (...) uma produção conjunta do narrador e entrevistador’. Finalmente, devem ser especificadas as categorias que serviram de base para as análises a serem apresentadas. Como já foi mencionado, o objetivo é entender como a trajetória escolar individual é vista pelos sujeitos entrevistados, considerando a presença/ausência de alguma política pública. Nesse sentido, busca-se identificar qual o papel desempenhado pelas famílias, especialmente as mulheres/mães que buscam construir ‘estratégias’ de modo a darem suporte para os filhos terem acesso e permanecerem na escola. Os sujeitos da pesquisa Os critérios para a escolha dos sujeitos que compõem a presente pesquisa consideraram: o gênero (masculino)- ambos são do sexo masculino, jovens, com idades de 30 (entrevistado 1) e 19 anos (entrevistado 2) (à época da entrevista), obviamente são campesinos e cursam a licenciatura em educação do campo – curso Linguagens e Códigos. O entrevistado 1 cursava o 5º módulo e o entrevistado 2 o 3º módulo. A fim de preservar a identidade dos entrevistados, foram atribuídos a eles pseudônimos, Juca e José, respectivamente. A característica que os une é, 119 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS principalmente, a liderança percebida em ambos, que, embora de natureza diferentes, constituem-se como referências para o conjunto de estudantes. Juca é uma liderança explícita, bastante falante e participativo; enquanto José, mais tímido, apresenta-se como um bom aluno, com bom aproveitamento escolar em relação a notas e em relação à leitura. Ambos demonstram uma relação intensa com a leitura e a escrita. Além de, em sua trajetória, enfrentarem problemas em relação às políticas públicas em educação: o primeiro pela ausência completa de uma política de suporte, o segundo pela interferência de uma política estadual (“Choque de Gestão”) realizada no governo mineiro pela chapa Aécio Neves/Antônio Anastasia (2003/2010). Análise das entrevistas Entrevista 01: Juca Visão geral: Juca é estudante do 5º Módulo do Curso Linguagens e Códigos, 30 anos, casado, pai de um filho e é proveniente do Município de xxxxx, de uma pequena comunidade. Ao narrar a sua história, sua trajetória escolar, reconhece, mesmo que timidamente a sua capacidade intelectual, pois, quando ainda era criança, aprendeu a ler sozinho. A mãe, por ser professora, ajudou-o a ter contato com a escola muito cedo, visto que desde os 3, 4 anos ele a acompanhava quando ela ia dar aulas. Mas depois, no decorrer de sua trajetória ‘jogou isso fora’, pois quis trabalhar para ganhar dinheiro e não completou os estudos. Aos onze anos era um marceneiro aprendiz e fazia alguns serviços, junto com o pai. “Aos 13 anos já sabia fazer um tamborete, uma cadeira mais simples...”. Desde cedo viveu uma contradição familiar: a mãe adotava uma posição em relação à escola e o pai outra. Já na adolescência Juca se perde no emaranhado das dificuldades que a vida lhe impõe desde cedo. Até os 13 anos, vive uma jornada diurna de trabalho e de estudos à noite. Os deslocamentos diários tanto para o trabalho, quanto para os estudos, cansam-no. Juca gostava de ter seu próprio dinheiro: “Fui trabalhar com meu pai, mas ele não me pagava salário, então eu trabalhava, mas não tinha dinheiro. Isso me deixou meio revoltado”; esse fato acabou por prejudicá-lo, visto que a sua trajetória escolar foi interrompida pela necessidade de dinheiro que um jovem ‘pobre’ tem, ‘reforçando’ a ideia de que a escola é algo distante e só poderá lhe oferecer um futuro melhor, a longo prazo. A juventude quer o imediato, o aqui, agora, logo a escola passa a ser um segundo objetivo, embora seja reconhecida a sua importância, fica evidente que ela, (escola), não oferece algo que seja ‘imediatamente palpável’:”eu queria dinheiro pra comprar minhas coisas, minhas roupas, enfim pra fazer coisas que todo jovem faz’. 120 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A necessidade e o desejo de um adolescente em se manter, em ter dinheiro para comprar suas coisas, o desejo de independência, afastam-no de uma escola que, naquele momento, não lhe oferece ‘nada’, pois se coloca como uma possibilidade de melhoria da qualidade de vida a ‘longo’ prazo. Defronta-se assim com a dura realidade: ou se estuda e não se tem dinheiro (nem a ilusão de tê-lo), ou se trabalha para ter alguma condição mais imediata, ‘defendendo alguns trocados’ que certamente lhe valiam algumas festinhas e finais de semana mais livres. “Então eu ia pra escola e chegava em casa muito tarde, no outro dia tinha que levantar cedo pra trabalhar e não ganhava nada com o trabalho, nem com a escola, pelo menos em relação à escola eu pensava assim naquele tempo”. Essa dupla jornada o vence e, aos 13 anos, abandona por completo a escola e continua a trabalhar com o pai, na esperança de ‘ter as suas coisas’, compradas com o próprio dinheiro. Então, resolve desistir dos estudos. Depois de algum tempo, Juca para de trabalhar com o pai: “Então resolvi parar de trabalhar com meu pai. E como não achava emprego... também eu via o ‘Seu XXXX’ que contava histórias pros filhos dele, dizia que tinha ido pra São Paulo, ele que conhecia um tanto de lugares... eu queria ter alguma coisa pra contar pros meus filhos também, então fui embora pra S. Paulo”. Quando muda de sua comunidade para São Paulo, Juca enfrenta a dureza da cidade grande e sua história repete tantas outras. Chega a São Paulo e vai morar com parentes que o acolhem. O trabalho duro, a saída cada vez mais cedo e a volta para casa cada vez mais tarde, o dinheiro pouco. Não cobre os gastos que ele tem, mal dá para se manter e, certamente, ajudar a tia com quem mora. A vida também ali é dura, tanto quanto em sua comunidade, onde era uma espécie de ‘faz tudo’ junto com o pai, quando trabalhava como pedreiro, marceneiro, encanador... enfim, todo serviço que aparecesse. Ao sair de sua comunidade inconscientemente, Juca esperava uma vida um pouco menos difícil, um trabalho menos árduo e menos pesado daquele que vinha desenvolvendo junto com o pai, e que lhe proporcionasse melhor remuneração; mas não encontrou nada disso. Pouco preparado para viver na cidade grande, devido também à baixa escolarização, não conseguia emprego com facilidade, nem tampouco um salário melhor, que desse para juntar as sonhadas economias. A mãe, mesmo antes que ele saísse de casa, sempre lhe dissera sobre a necessidade de estudar. O pai, ao contrário, não acreditava na necessidade de estudos. Pois se o filho, aos 13 anos, já fizera um tamborete, que fora bem vendido, então os estudos eram desnecessários. Para o pai, a escola não lhe ensinaria nada, as coisas que ele deveria aprender, aprenderia na ‘lida’ cotidiana. O pai acreditava que a escola pouco tinha 121 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS a oferecer a pessoas como ele e o filho, pois essa só ensinava coisas que não o preparariam para a sobrevivência. Juca conviveu com essas dicotomias. De um lado, o pai que não ‘dava valor’ aos estudos, talvez por ter ele mesmo sobrevivido sem tal acesso, e também por entender que um homem deve ser afeito ao trabalho, e, nesse caso, trabalho ‘pesado’, ter uma profissão- pedreiro, marceneiro- e, de outro, a mãe, que, talvez por ser professora, queria o filho na escola, tendo acesso a informações e, certamente, desejando um ‘futuro melhor’ para ele; o que, no interior significa ter algum estudo que possibilite a fuga do trabalho com a enxada, com o martelo, ter um trabalho ‘mais leve’, que seja descolado da força física. Assim, Juca seguiu para São Paulo com a esperança de ter uma vida menos árdua. Mas ao chegar lá também não pôde viver esse sonho, pois ganhava pouco dinheiro e a vida era muito cara na cidade grande. As palavras da mãe, entretanto, continuavam a ressoar em seus ouvidos, embora ela estivesse distante fisicamente. Mas as cartas e telefonemas continuavam a ‘impor’ uma possibilidade de mudança de vida: a escola. ‘A mãe não parava de falar na minha cabeça’, você tem que estudar. Precisa estudar para melhorar de vida. Assim, diante da crueza da vida tanto do interior, e, agora, na cidade grande, São Paulo, resolve mais uma vez romper com aquele estilo de vida, buscar talvez outros caminhos. A vida no interior não lhe oferecerá oportunidades, tampouco a cidade grande o fizera. Juca se sente perdido, e diante das dificuldades encontradas, faz o que lhe parece, naquele momento, o mais correto a ser feito: Juca retorna à sua comunidade. Trajetória pessoal e escolar e a convivência com paradigmas dicotômicos: o mundo masculino e a escola: Juca relatou que teve uma trajetória escolar fragmentada. Entrou para a escola aos seis anos e, por ser filho de professora, já sabia ler e escrever; logo, com grandes possibilidades de sucesso escolar, e, seria um percurso natural a continuidade de processos de escolarização de modo a alcançar um nível ‘alto’ de letramento. Entretanto, os contextos de vida o levaram para outros ‘lugares’. Estudante na própria comunidade das séries iniciais até o 9º ano, por volta dos 13 anos se tornou um trabalhador. ‘Mas mesmo antes dessa idade, já ficava com o pai na parte da manhã, e à tarde eu ia pra escola’, aprendendo a trabalhar e já trabalhando. Porém, os trabalhos realizados por ele ainda na infância, são as suas ‘provações’. Quando ainda era bem pequeno, o pai fazia vários tipos de trabalho, pedreiro, encanador, tinha uma pequena roça na qual trabalhava como meeiro, enfim, fazia qualquer serviço para tentar suprir as necessidades da família. A 122 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS mãe dava aulas em escolas da Prefeitura. Inicialmente, ele não tinha com quem ficar e ia com a mãe para a escola, para o trabalho dela. Assim, por volta dos 3, 4 anos de idade, iniciou sua vida escolar. Paralelamente, entretanto, era o responsável por levar o almoço para o pai no trabalho. Quando o pai mudava de trabalho, acordava-o mais cedo e ele ia com o pai para aprender o caminho para o trabalho. Voltava para casa, levava o almoço para o pai e depois ia para a escola. Essa se constitui como uma de suas primeiras ‘provações’. Na infância, estudava um período do dia e depois ia para o trabalho com o pai. Assim seus tempos eram divididos entre escola, ‘almoço’ e trabalho. Era praticamente um adulto em miniatura, com a diferença de frequentar a escola durante uma parte do dia. Eu comecei trabalhar na, com marcenaria... foi com 13 anos, tipo assim, 13 anos eu lembro, assim, que eu fazia tipo uma cadeira, um tamborete, uma mesa, fazia sozinho, né? tipo assim, pegava do começo ao fim, então... (pausa) Com 13 anos eu... eu sei que eu... eu... eu... (pausa) eu, é... eu já sabia fazer isso. Mas, assim, eu sempre trabalhei, assim, junto com meu pai, assim, antes dele, é... vamos supor, entregava as empreitadas, pra capinar, pra roçar, é... é... às vezes fazia cerca, então, assim, eu... eu sempre ia levar almoço pra ele todo dia no lugar que ele trabalhava, então, é... às vezes, quando ele mudava de lugar que ele ‘tava’ trabalhando, ele me levava cedo, e aí eu ia junto com ele até lá, no lugar que era, voltava, e aí a minha mãe terminava o almoço e aí eu levava pra ele, aí ficava lá um tempo e depois voltava pra escola à tarde, né? (Entrevista Juca) Algum tempo depois, a mãe compra um terreno na Comunidade XXXX, o pai constrói uma casa e eles se mudam para lá. Nessa ‘nova’ comunidade, ele frequenta a escola até o 9º ano. Ao iniciar o Ensino Médio, ele tem que se matricular em outra escola, que se situava a cerca de 20 km. de sua casa. E então começam outras provações: as chuvas, o ônibus que nem sempre estava ‘disponível’, andar (a pé) a distância entre a casa e a escola, o trabalho, o cansaço: (...) eu estudava em xxxx (nome de cidade), que é um município vizinho lá. E aí eu andava uns 20, 20 e poucos quilômetros a pé, então ‘tava’ muito difícil, mas muito difícil mesmo, e aí eu tinha que trabalhar, eu trabalhava todo dia, ajudava meu pai lá na... na marcenaria, lá; nós mexíamos com móveis, aí eu tinha que acordar cedo todo dia pra trabalhar, tinha dia que eu chegava, é... conseguia chegar em casa duas, três hora da manhã, e aí pra levantar sete horas, era difícil. Tipo assim, a gente tinha que trabalhar, porque dependia do trabalho pra... pra... pra sobreviver... (Entrevista Juca) Assim, a infância e adolescência se configuram como tempos de responsabilidades e a desistência da escola torna-se cada vez mais evidente. Embora a mãe o incentivasse, o pai mantinha uma representação de escola como algo distante para pessoas como eles (o pai e o filho), pois faziam parte daqueles que ‘não precisavam de escola’ e dizia claramente: 123 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS (...) meu pai, ele sempre falava assim “ah, isso é bobagem”, tipo assim, tem que ter gente no mundo pra fazer tudo, né? Nem todo mundo precisa estudar, não, tipo assim, é... é... é, tem que ter gente pra, pra capinar, pra roçar, pra trabalhar na rua, tem que ter professor, então, tipo assim, uns não vão estudar não, então, assim, isso é bobagem... Aí ele me... como eu era mais apegado a ele, aí, tipo assim, eu não dava muita importância pro estudo. Então, eu... eu parei(...) (Entrevista Juca) Passaram-se cerca de quatro anos, e Juca continua sem estudar. A mãe, por sua vez continuava insistindo para que o filho voltasse aos estudos. Acreditava que ele precisava terminar, pelo menos, o ensino médio. O pai, ao contrário, continua insistindo para que ele trabalhe. O universo masculino liga-se à provisão. O homem deve ser o provedor da casa e assim, o trabalho é algo inerente à masculinidade. Entretanto, o filho não recebia salário, e a ‘voz’ do pai afirmava coisas como: “você continua trabalhando comigo... e quando for se casar eu ajudo você a construir uma casa, porque não tenho como lhe pagar um salário” (Entrevista Juca). Como se vê, a vida se reduz a trabalho com o objetivo de garantir a sobrevivência. Por volta dos 16/17 anos o pai já o alertava para o casamento, para a construção de uma casa, para a formação de uma família; para isso, deveria trabalhar. Sem salário e com pouca ou nenhuma perspectiva, Juca se muda. Vai para um Município próximo, xxxx, começa a trabalhar e se afasta da escola. Ali, fica por cerca de um ano, um ano e meio. O pai o chama de volta, pois tem muito serviço e não consegue entregá-lo em tempo, pois está sozinho. Juca volta para o trabalho com o pai, mas não para casa. Fica na Comunidade. Mas... tendo saído de casa uma vez, nada mais o satisfaz... então, decide ir para mais longe: São Paulo. Um tio morava em São Paulo e quando voltava era bem recebido pelos familiares, contava histórias de cidades e lugares que conhecia. Isso conferia aos olhos do adolescente que o olhava, uma grande importância. A família fazia ‘almoços’ para o tio, que ganhava importância local e familiar; esse tio contava histórias, como eram os lugares que conhecia... então, Juca também resolve e reafirma o desejo de sair, quer ir para São Paulo. E vai. A mãe, mais uma vez, insiste que ele termine o ensino médio, principalmente porque para sair sem estudo nenhum, tudo seria mais difícil. Então Juca cede e começa a fazer o Supletivo, uma forma de preparação para a partida. Os estudos voltam a fazer parte de sua vida. Com o apoio da mãe, que organiza toda a documentação relativa à escola, ele faz as provas, não sem sofrimento, mas finalmente consegue algumas aprovações que lhe valem, no momento da partida, uma ‘Declaração’ de conclusão do ensino médio. Em São Paulo, começa a trabalhar e a morar com a tia. A vida não seria muito diferente: trabalho e casa. Não havia tempo nem para ir ao banco resolver suas coisas. As economias que pensara em fazer colocavam-se em um horizonte cada vez mais distante. Começava a trabalhar às 9 horas da manhã, trabalhava 124 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS até por volta das 19:30h e chegava a casa da tia por volta das 23 horas! Continuava a mesma vida: trabalhar... e pior: não via perspectivas de mudanças. Além do mais, ele se sentia só na cidade grande. Sua vida se resumia em ir para o trabalho e voltar para a casa da tia. O cansaço o vence e ele resolve voltar. De volta à comunidade, compra um pequeno lote, constrói uma casa; e, em 2010, casa-se. Trabalha com o cunhado, fazendo carvão. Ganha cerca de $25,00 por dia; leva a marmita para o trabalho e só retorna para casa à noite. A mãe continua a sua insistência, quer que o filho volte a estudar. O filho, diante da insistência da mãe, e agora também da esposa, deixa o trabalho com o cunhado e passa a trabalhar em uma secretaria de escola. Ali, volta a ter contato com a escrita, com a escola, mesmo que de forma indireta, pois ‘vê’ outras pessoas estudando. O desejo de continuar os estudos começa a se ‘re-desenhar’ como uma possibilidade. Trabalha na secretaria da escola e toma contato com o computador. Esse instrumento de trabalho mudaria sua vida. Toma conhecimento da existência da Licenciatura em Educação do Campo, pois uma amiga lhe pedira para fazer a inscrição online. Então, no último momento, resolve fazer a própria inscrição também. Depois de ficar cerca de 12 anos distante dos estudos, não acredita em sua aprovação, mas faz o vestibular assim mesmo. Foi aprovado em 12º lugar. Ainda meio sem acreditar na aprovação e na própria permanência, vem para o Curso em Diamantina. (...) eu nem... eu nem queria vim fazer, não, mas eu vim, mas, assim... é... é porque, tipo assim, você tá... assim.... na minha vida, na minha trajetória, assim, eu sempre vi a universidade distante, né?, tipo assim, (pausa), é... portanto, o primeiro carro da universidade federal que chegou na minha comunidade foi da Licenciatura em Educação do Campo, né?, foi um encontro que teve na comunidade... é... nossa lá e chegou o carro, então, tipo assim, eu... assim... eu via isso aí como uma coisa impossível de alcançar, assim, aí... aí você nem cria expectativa, você nem... nem sonha, nem pensa nisso aí, não... (...) (...) Aí na primeira semana de aula, eu trouxe só uma bolsa, assim, uma bolsa pôr nas costa um mon... de roupa, trouxe uns três pares de roupa só, (pausa)... que eu falei assim “ah, eu não vou ficar, não, mas eu vou lá só pra ver”. (pausa) E aí, e aí eu vim... é... aí eu vim e trouxe só uma mochilinha de roupa e falei assim “ah, eu num vou ficar, não”. Que lá também, tipo assim, a minha esposa também achava que eu não ficava, todo mundo lá da comunidade achava que eu não ficava no curso... porque, tipo assim, eles, eles, todo mundo assustou, né? (Entrevista Juca) A distância entre ele e o mundo universitário era enorme. Suas representações de escola o faziam distanciar-se ainda mais. Embora negue, a figura do pai era ainda forte o suficiente para que ele se lembrasse de suas palavras: “tem que ter gente pra tudo, uns vão capinar(...) outros vão ser professores”. Entretanto, ele estava ali, agora, na Universidade. Ficaria? Continuaria? 125 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS As Linguagens do Curso no Curso: Oralidades e Escritas Primeiro dia de aula. Há uma “Aula Inaugural”. Nesse espaço acadêmico, embora se encontre com vários colegas e amigos, não se sente confortável. O início não se constitui como algo ‘fácil’. Ao assistir à aula inaugural, não entende as palavras usadas. Nunca as ouvira. O professor fala de ‘paradigmas, alteridade, subjetividade, estereótipos’, termos que nunca ouvira, logo não conhecia seus significados e o dicionário pouco ajudava, porque mesmo o utilizando, continuava sem entender... ‘parecia outra língua’ e Juca se sente um estrangeiro em seu próprio país. Mesmo participando de uma atividade que fazia uso da linguagem oral, portanto, espera-se, menos formal, a distância entre os dois mundos mostravase abismal e ele não entendia o que era dito: (...) dificuldade de entender até o que que o pessoal falava, que assim cê tá num... num mundo lá que... o pessoal, tipo assim, conversa... conversa normal com a gente, né?, num uso muito... é... essa linguagem formal, essa linguagem acadêmica... tipo assim, na aula inaugural mesmo, eu tava ali por tá... tipo assim, tem muita coisa que hoje eu entendo, que eu fico pensando lá atrás, que eu... é... é... eu sentado lá na cadeira do auditório lá, às vezes ouvindo quem tava lá na frente falando, que eu entendo hoje, mas no dia, tipo assim, falava, falava, tipo assim, ouvia muita palavra, mas (risos) num entendia nada do que eles tava falando. Tipo assim, parece que é até outra língua. E muita coisa eu num entendia mesmo, não, sabe, assim, tipo assim, no início mesmo, eu ficava com o dicionário direto, pra tentar entender o que que o pessoal tava falando, porque eles fala muito, usa muito, paradigma... é... é... é... vão supor, é... umas palavras que sempre usa... é... (pausa) é... alteridade, é... é... como é que chama a outra lá? aquela que (pausa)... é... (...) É, subjetividade... é... é... esse que é tipo um preconceito que a gente cria duma pessoa6... (pausa) Sempre, várias palavra, assim, que usava que eu num entendia nada, aí, tipo assim, hoje eu entendo ainda mais ou menos, mas tipo assim, essa questão do... do... da comunicação, tipo assim, é(...)eu penso muito nisso, na questão de, tipo assim, se o cara que eu tô falando com ele tá me entendendo, entendeu? (pausa) porque, tipo assim, se eu usar uma linguagem muito padrão, o... o... alguns vão entender e outros, não; entendeu? (Entrevista Juca. Grifos meus) As provações não haviam terminado com a aprovação no vestibular. Surgiriam outras, talvez tão difíceis quanto as já vividas, mas que deveriam ser enfrentadas, caso quisesse continuar os estudos. A linguagem utilizada no interior da Universidade ‘era outra língua’, a língua acadêmica. Era um mundo desconhecido e difícil de ser enfrentado, porque se configurava como distante, mas ao mesmo tempo muito próximo. Era o uso de uma modalidade linguística que o impedia de entender as pessoas; mas se quisesse continuar no curso, deveria se apropriar dessa linguagem. As exigências de leitura eram constantes e Juca ‘dormia’ sobre os textos literalmente. Entretanto, acordava às 5 horas da manhã, 6 Depois da entrevista, durante a análise, penso que o informante se referia ao termo ‘estereótipo’. 126 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS para continuar as leituras. Precisava reler várias vezes o mesmo texto, para começar a entendê-lo. E ele o faz. A primeira disciplina cursada conseguira despertar nele certa curiosidade: ‘Políticas para o Campo e Cidadania’ “(...)nós estávamos estudando mesmo a história e a trajetória do homem do campo, essa discussão ela... (...)ela me deu vontade, sabe? De... de aprofundar e conhecer mais. Aí eu já... já fui em casa final de semana, aí trouxe mais roupa”. (Entrevista Juca). Juca permanece no Curso, integra-se a ele. Finalmente, consegue produzir sentido para a escola da qual participa. E, mais que isso, consegue enxergar que essa escola, esse curso lhe dá prazer, faz muito bem a ele. Tornou-se uma liderança no interior do curso. E vai construindo ‘pontes’ entre eles e os colegas. Redescobriu a solidariedade, ao começar a entender as Políticas Públicas que envolvem a continuidade do curso, as propostas que o envolvem e as ações de outros para que o curso aconteça, preocupa-se com os colegas que chegarão, reconhecendo as dificuldades impostas. Finalmente, em relação ao futuro, Juca se mostra cheio de planos. Participante ativo quer nos momentos do curso, quer em atividades desenvolvidas em sua comunidade, redesenha outras configurações para si, para sua vida. As linguagens, inclusive a escrita, deixaram de se constituir como barreiras e hoje, estabelecem pontes entre ele, sua comunidade e o mundo. Suas representações sobre escola, alteraram profundamente e a graduação, como processo de formação foi imprescindível nesse processo. Juca consegue produzir sentidos para a vida na ‘escola’. Finalizo com uma frase que ele identificou em algum momento de sua vida, e repetida no momento de sua narrativa: “quando se nasce pobre a maior arma contra o sistema é ser estudioso”. Descoberta que lhe custou caro, mas que agora ele não mais abandona. Entrevista 02- Pseudônimo: José -3º Módulo Visão Geral: José nasceu em uma pequena Comunidade no Vale do Mucuri-MG. É de uma família pequena, tem apenas mais um irmão, e vivem juntos com o pai e a mãe. Tem 19 anos e cursa o 3º Módulo da LEC/UFVJM. Durante os anos iniciais, estudou em uma cidade próxima, e depois seguiu para o seu Município para continuar os estudos (Ensino Fundamental e Médio). Aos cinco anos de idade José teve um problema de saúde, que o impediu de andar; ele ficou em uma cadeira de rodas durante cerca de dois anos. Isso atrasou um pouco a sua entrada para a escola, porque esta era longe e como ele não podia se locomover sozinho, não pôde ir à escola como as outras crianças. 127 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS José entrou para a escola aos sete anos de idade, para fazer a fase introdutória (pré-escolar), mas como em sua Comunidade era muito pequena e não tinha escola teve que se mudar para a casa da avó, em uma comunidade próxima. Logo no início de sua vida, José enfrenta provações muito ‘duras’ para uma criança tão pequena; primeiro a doença, depois a saída de casa para iniciar o Ensino Fundamental. Esses fatos o fizeram sofrer muito, principalmente a saída de casa, pois segundo ele, não queria deixar ‘a roça’, que era o lugar de que ele gostava e do qual não queria se afastar. E eu tinha muita vontade de começar a estudar, porque meus amigos todos, de infância, já tinham começado a estudar, e eu, não; por causa da doença não podia ir, que eu fiquei uma parte do tempo de cadeiras de rodas, outra parte, de muletas; e por a escola ser longe, eu não pude ir. (pausa) Aí quando eu comecei a estudar, com sete anos, eu fui, eu tive que... fui morar em xxxx (pausa), que é onde minha avó mora, uma cidade próxima. (...)E aí eu sofri muito na época, porque eu queria estudar, mas eu num queria ter que sair da roça, sabe? Eu era muito ligado, ainda sou, ligado ao campo, ao meio de vida, assim, essa forma de vida... Eu gostava muito, então na época, tipo assim, eu ia pra escola... assim... eu gostava muito de estudar... (pausa) só que eu sentia muita falta de casa (pausa)... mas eu acho que isso, de certa forma, me ajudou também... com a minha trajetória de vida. (Entrevista José). Embora a vida tenha sido dura no início, sua vida transcorreu com certa facilidade, porque foram lhe oferecidos alguns suportes. Na casa da avó, a madrinha, que também morava lá, começou a lhe ensinar, oferecendo-lhe o suporte necessário para o início da vida escolar. Colocava-o para estudar constantemente, e a leitura passa a ser uma companheira de infância. “Minha madrinha me colocava muito pra estudar, durante o dia, porque como eu era atrasado, essa questão de idade, ela sempre me colocava pra estudar, fazendo cópias de textos... lendo muito... e isso me ajudou muito...” (Entrevista José). Dessa maneira, ainda no início da infância, José vivencia uma grande contradição estabelecida entre o desejo de ficar em casa e a vontade de ir para a escola, logo em seus primeiros anos de vida. Trajetória Escolar: livros à mancheia Como se afirmou anteriormente, José ‘sai da casa paterna’ aos sete de idade para iniciar os estudos na Comunidade de xxxx (MG), cursa a fase introdutória (pré-escolar). Como ele se mostrou muito disciplinado e, apesar dos problemas vivenciados, teve na madrinha um importante suporte; no ano seguinte, com 8 anos deveria ir para a primeira série, mas a supervisora da escola o avalia, e o ‘promove’ para a série correspondente à sua idade; ele passa, então à segunda série. E se adapta muito bem à turma e à escola. Eu me adaptei rápido à turma, logo consegui fazer alguns amigos, e isso foi... foi bom pra mim, de certa forma, porque eu acompanhei a fase que seria adequada 128 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS à minha idade. (pausa) Aí eu fiquei em xxxxx (nome da escola) três anos. E o interessante lá porque eles tinham um projeto (pausa), o Zé do Livro, era um projeto que a gente ia pra casa com um boneco e um livro...(...) e aquilo todo mundo da sala adorava, levar o livro e o boneco, pra ler e contar história. Aquilo era muito bom... (Entrevista José. Grifos meus). Esse Projeto ampliaria a sua relação com a leitura, consolidando sua formação como leitor. Os constantes incentivos da professora para que a turma desenvolvesse hábitos de leitura, realmente fariam muito sentido para José, que adquire o hábito de leitura. Na terceira série, portanto, depois de cerca de quatro anos morando na comunidade de xxxxxx, José volta à casa paterna e retoma seus estudos nesta comunidade. Mas aí novamente vive outra provação: já fizera amigos e gostava da escola onde estudava, mas agora, já estava em condições de andar de sua casa até a escola de sua comunidade, e, ainda, morar com os pais ‘na roça’, que ele tanto gostava. Porém, os amigos e a escola da cidade lhe eram atrativos, assim, ele novamente vai viver outra provação: além do distanciamento dos amigos da escola aos quais se acostumara, teria que enfrentar outros: o conserto da escola e a conseguinte dispersão das turmas em vários locais, já que o prédio estava em reforma: E aí eu voltei pra roça. (pausa) Assim... foi meio difícil de novo, porque eu já tinha feito muitas amizades lá, mas eu tava adorando a ideia de ter que voltar pra casa, voltar a conviver dentro de casa com meus pais, voltar pro campo (que eu sempre gostei)... Porque mesmo esses três anos, eu num consegui me adaptar à vida da cidade (pausa). Aí eu comecei... na quarta série, (pausa), logo que eu cheguei, a escola estava em processo de transição, estava em reforma, então a gente foi estudar num pré, no pré escolar do... em xxxx, que é distrito de xxxx, que é nove quilômetros da comunidade que eu morava (pausa). E a gente, foi assim, só foi minha turma pra lá, quarta série... (Entrevista José) Esses conflitos seriam, entretanto, amenizados pela nova professora que, assim como as anteriores, fazia um trabalho interessante em relação à leitura, propondo a escrita de peças de teatro pelas crianças, também levava livros para a sala de aula, a fim de desenvolver hábitos de leitura. Essas ações da professora diminuíram os conflitos e José rapidamente se readaptou ao novo momento de sua vida pessoal e escolar. (...) enquanto a escola estava em reforma, (pausa) e aquilo foi uma época muito boa da minha vida; porque na infância, assim... a gente tava, tava só minha turma lá no pré-escolar. A gente tinha, ficava grande parte, assim, focado mesmo, a professora também gostava de motivar a gente, sempre levava livros, pra entreter a turma... (pausa) e ela sempre motivou muito a gente a fazer teatro; a gente mesmo que escreveu os teatros. Tem uma colega minha que a gente sempre fazia em dupla. Ela escrevia os teatros e eu sempre melhorava. (pausa) Porque nossos teatros eram sempre... a gente levava prum lado mais cômico, aí a gente... ela escrevia e eu tornava o teatro engraçado. (Entrevista José) A leitura, incentivada pela escola, passa a fazer parte do universo de José de forma cada vez mais efetiva e com a chegada da adolescência, óbvio, seus 129 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS gostos vão mudando, mas a leitura permanece. Entretanto, quando cursava o ensino fundamental, o 9º ano (antiga 8ª série) ocorre em Minas Gerais uma política pública (estadual) que ficou conhecida como “choque de gestão” (do Governo de Aécio Neves/Antônio Anastasia). Essa política visava, dentre outros, ao corte de gastos da educação pública. Assim, a turma do nono ano da escola, por ter somente 11 alunos, fundiu-se à turma do 8º ano e o ensino médio foi extinto nessa escola. Essa política pública afetou diretamente o processo escolar vivenciado por José, pois teve um desenvolvimento escolar comprometido: Meu ensino fundamental... (pausa) todinho eu estudei em xxxxx. (pausa) Só que aí a escola passou, depois que a gente voltou a estudar na escola normal, (pausa), que aí a escola passou por um processo que, como a escola era pequena, o povoado era pequeno, (pausa), eles tiraram o ensino médio. (pausa) E a gente, no oitavo ano, no nono ano, mesmo, foi bem, foi bem difícil, porque o governador... unificou as turmas; o nono e o oitavo ano. (pausa) Então a gente estudava na mesma sala, duas turmas na mesma sala. Então um professor dando aula pra duas turmas na mesma sala. Isso foi um período bem difícil... (pausa) porque o oitavo ano era bem grande, era uma turma barulhenta, então isso... atrapalhava bastante a gente prestar atenção. E também era complicado pro professor, tá explicando pra duas turmas ao mesmo tempo. (Entrevista José) Embora, com tantos percalços individuais e coletivos José consegue terminar o ensino fundamental e iniciar o ensino médio. Novamente, ele tem que sair de casa para continuar os estudos. Volta para a casa da avó, na cidade, despedindo-se, com pesar, da casa paterna. Mas novamente, a leitura irá diminuir os conflitos. Dessa vez, a professora de Português e Literatura que era extremamente focada nas questões de vestibular, leva para a sala de aula livros de Literatura Brasileira, comenta-os a partir da leitura dos estudantes, pratica a escrita, analisa e corrige textos com os alunos em sala de aula. E, principalmente, demonstra enorme prazer em ‘dar aula’ e ele decide ser professor: Quando ela estava trabalhando Literatura, mesmo, ela pegou, distribuía em grupos e a gente dava aula. Ela ficava avaliando e dando dica de como se portar. Eu acho que isso já influenciou muito, também, pra mim ter vindo aqui pra LEC, porque hoje eu falo que essa professora, ela foi essencial pra que eu pensasse em seguir a carreira de professor. (pausa) Porque o amor que ela tinha pela profissão me fez pensar que, tipo assim... Eu não queria ser professor... mas quando eu via ela dando aula e ela falando que ela gostava tanto daquilo... e eu vendo isso, tipo assim, aquela realidade, quando eu me vi, assim, sem outra opção, outras opções de... Eu não queria sair da roça (pausa), e aí quando eu fiquei sabendo da LEC, eu falei “É, eu acho que é por aí que eu tenho que ir”. (Entrevista José) Assim, findo o Ensino Médio, José participa do processo seletivo na LEC/UFVJM e inicia o curso de Licenciatura em Educação do Campo/ Linguagens e Códigos. A metodologia adotada (regime de alternância), os ensinamentos focados na realidade campesina contribuiriam para aumentar o desejo de permanecer no curso, embora soubesse que não seria fácil. 130 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS O Curso Linguagens e Códigos: “E agora José?” No mês de julho de 2015, José vem para Diamantina para dar início à Licenciatura em Educação do Campo/Curso Linguagens e Códigos. Como todos os ‘começos’, esse também não seria fácil. Novamente alguns suportes encontrados o ajudariam a prosseguir os estudos: “O primeiro módulo foi bem difícil, porque a gente tá acostumando com a rotina daqui, por ser um curso bem condensado e muita gente passou mal, eu pensei até em desistir no primeiro módulo, mas aí eu vi meus amigos falando, incentivando a ficar e tentar. ” (Entrevista José). Se por um lado, a metodologia de Alternância (adotada no Curso) facilita a permanência do estudante, por outro, a intensidade dos primeiros dias assusta e dificulta, pois há uma exigência muito grande de concentração, de foco, há um esforço que é intelectual, mas que também é físico. Há, por fim, uma exigência de leituras e escritas as quais os estudantes ainda precisam se habituar. E, neste momento, o suporte oferecido pelos colegas, em uma perspectiva coletiva é fundamental para a continuidade e permanência do estudante. Ao fazer a inscrição, a primeira opção de José foi o Curso de Ciências da Natureza (LEC/CN), hoje, porém, no 3º Módulo, ele pretende mudar para Linguagens e Códigos, porque, no decorrer do mesmo foi descobrindo e reafirmando o gosto pelas leituras e escritas: Quando eu fui vendo, com o desenvolver do curso, eu acho que eu tenho mais a ver com essa questão de escrever, mesmo; com relatório global, então eu acho que essa parte da escrita, pra mim, vai ser mais fácil; literatura, que é uma coisa que eu gosto, (pausa), então acho que na área de Linguagens, eu vou me dar melhor. (Entrevista José) O fato de os Cursos se organizarem a partir de um ‘Núcleo Comum’ (até o 3º Módulo), oportuniza aos estudantes uma escolha mais consciente, no sentido de que, minimamente, eles têm contato com as áreas de conhecimento (CNCiências da Natureza- e LC- Linguagens e Códigos) que se constituirão no desenvolvimento dos cursos. Embora façam uma primeira opção no momento da inscrição para o processo seletivo, é oferecida uma ‘segunda opção’ a partir do 3º Módulo, quando os estudantes já têm maior clareza para fazerem tais escolhas. Em relação às questões dos contatos iniciais com as Linguagens da ‘Universidade’, a partir do início do curso, José esclarece alguns pontos sobre os quais é importante refletir. Em primeiro lugar, ele reafirma um ponto comum encontrado nas narrativas feitas por todos(as) entrevistados(as), qual seja, a dificuldade inicial com a leitura de textos acadêmicos. Há um cansaço inicial conforme se afirmou, mas há também os primeiros contatos com a linguagem acadêmica, que deixam entrever as diferentes concepções de linguagem que perpassam as representações acerca de escrita: 131 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS (...) o gênero textual da universidade é muito diferente do que a gente trabalhava no ensino médio. (pausa) Esses textos científicos... assim, meu primeiro contato foi meio que difícil, porque era uma linguagem diferente, eram textos mais complexos, mas isso num... assim... acho que se a gente empenhar e tentar entender e ir lendo, ir lendo, a gente vai pegando o jeito. Então, eu acho que isso não era tanto o fato que eu pensei em desistir. Eu acho que o cansaço, mesmo; e tá longe de casa esse tempo todo, ser um curso condensado, é um curso... num é aquele curso, assim, tranquilo. Mas... e o primeiro módulo tinha muita pressão, também, dos colegas; falando que o curso era difícil, que os professores eram rígidos, e a gente tentava virar a madrugada, pra dar conta de ler todos os textos... Eu acho que, então, isso que de uma sobrecarga que desmotivou muita gente. (pausa) Mas, fora isso, acho que... esses textos científicos, hoje, eu acho que eles melhoraram muito minha forma de entender o mundo e na minha forma de falar, também, que isso influenciou muito no meu... vocabulário. (pausa) Que dei uma certa mudada a partir do contato com os textos científicos. (pausa) E eu acho que esses textos, eles me deram uma base boa pra, na escrita, na forma de escrever e ler, (pausa), porque eu penso em seguir a área de Linguagens, mas eu sempre falei que eu sou, em questão de pontuação, (pausa), essas coisas, pontuação, “ss”, essas coisas, assim, da área da linguagem gramatical, eu não sou muito bom; eu tenho uma dificuldade, às vezes, com... dois ‘esses’, ‘cê-cedilha’, (pausa), isso às vezes me pega um pouco. (Entrevista José) O trecho evidencia o distanciamento das línguas. De um lado uma língua cotidiana, usada em atividades linguageiras comuns; de outro, a linguagem acadêmica, distante. Isso gera em José um medo de não conseguir alcançar seus objetivos: a continuidade e o término do curso. Além disso, convive-se com um imaginário colocado pelos colegas que evidenciam essas diferenças: “primeiro módulo tinha muita pressão, também, dos colegas; falando que o curso era difícil, que os professores eram rígidos, e a gente tentava virar a madrugada, pra dar conta de ler todos os textos...” Os discursos dos colegas sobre o curso, obviamente, valorizam-no, uma vez que o ‘classificam’ como um curso difícil; mas aí também se percebe que se algo é considerado ‘difícil’ implica que nem todos conseguirão atingir as metas: ler todos os textos de todas as disciplinas, fazer todos os trabalhos das várias disciplinas. Ao ‘virar a madrugada’ há uma valorização/reafirmação do curso, a partir de um aumento da responsabilidade ‘individual’ em conseguir fazer todas as tarefas demandadas, e, para tanto, há necessidade de empenho; coloca-se, de certa forma, uma responsabilidade compartilhada com o estudante, pois, embora lhes sejam dadas algumas condições para a realização do curso (moradia, alimentação, material...) ele deve se empenhar enormemente para conseguir desempenhar as tarefas propostas a contento; ainda mais porque ele ‘ocupa’ uma vaga que, caso não consiga responder adequadamente, pode ser visto como o impedimento de outro(a) que poderia ‘dar conta’ de um desempenho satisfatório, exigido pelo curso. Há uma responsabilização individual em relação à política pública e ao emprego de verbas públicas que não ‘podem’ ser desperdiçadas. 132 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Ainda, vale ressaltar no trecho em análise: “esses textos científicos, hoje, eu acho que eles melhoraram muito minha forma de entender o mundo e na minha forma de falar, também, que isso influenciou muito no meu... vocabulário”. Se para José os textos acadêmicos lhe oportunizaram “conhecer novas palavras e tornar outras mais belas”, porque ele assevera um enriquecimento vocabular a partir das leituras que desenvolveu na Universidade, houve também o desenvolvimento de pensamentos mais críticos em relação ao mundo que o cerca. Entende-se o mundo também por meio de informações a que se tem acesso e as leituras acadêmicas lhe propiciaram entendimentos anteriormente impensados. Enfatize-se ainda que no trecho citado ele afirma que a sua forma de falar foi alterada, que ele atribui ao aumento do vocabulário, mas há aí uma pista que não se pode deixar escapar. Durante a entrevista, a pesquisadora pôde perceber, no texto do entrevistado, uma organização frasal/textual fluente, bem como uma desinibição diante do gravador, que certamente remetem ao seu processo de escolarização (presença de leituras, escritas, de realização de teatros...), mas também reafirmam o processo vivenciado na Universidade, e que foi ressaltado pelo próprio informante. Finalizando, pois a presente análise cumpre destacar um posicionamento de José, em relação ao princípio da Educação do Campo: o Protagonismo e a Participação dos sujeitos do campo. A participação em movimentos sociais de sua localidade - ele é membro da Associação de Pequenos Agricultores da sua cidade-, é um indicativo de sua participação no coletivo; mas também ele declara durante a sua narrativa que tem se preocupado em buscar formas a partir das quais ele possa dar um retorno de suas aprendizagens e de seus trabalhos no curso para a sua comunidade. Considerações Finais Encaminhando para o fechamento do presente artigo ressaltamos alguns elementos que constituíram a proposta inicial, quais sejam, de um lado a importância das famílias, especialmente as mulheres (mãe, esposa, madrinha, professora) dos entrevistados. Elas desempenharam um papel fundamental para o acesso e permanência desses em espaços formais de escolarização. As mulheres nos Vales Jequitinhonha/Mucuri sempre exerceram papel preponderante nas histórias de resistências/mudanças desses lugares. Embora a história oficial não tenha registro (ou quando existem são raros) de suas formas de participação nesses processos. Entretanto a história local e individual revisitada pelos entrevistados nos dá testemunho de uma participação significativa nas trajetórias individuais 133 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS dessas pessoas. Oriundos de comunidades campesinas, onde as escolas se constituem como as denominadas por Arroyo (1997) como ‘escolinhas cai não cai’ (devido à precariedade em sua estrutura e falta de apoio governamental) esses grupos populacionais- campesinos- enfrentam verdadeiras ‘batalhas’ para terem acesso e o direito a permanecerem nas escolas. Entretanto, assim como se evidenciou nos depoimentos anteriores, as mulheres e as famílias constroem estratégias para a permanência das crianças e adolescentes na escola. Se inicialmente, as mães garantem o acesso, por outro, nas escolas a presença feminina, a partir das professoras é ressaltada e ganha significação especial, pois são elas as grandes incentivadoras da permanência de crianças e jovens em seu interior. Por outro lado, observa-se a ausência de políticas públicas que concorrem para a garantia do acesso e permanência da infância e juventude campesinas no interior das escolas é fato. Essas políticas não existem e quando existem em nada contribuem para a permanência de jovens em seu interior. O ‘choque de gestão’ promovido pelo governo estadual (mineiro) nos anos 2000, em nada contribuiu para garantir uma educação para todxs. Ao contrário, dificultou ainda mais a permanência dos jovens no processo educacional formal, implicando ainda mais, a perda de qualidade do ensino ofertado. Parece não se ter dimensão das implicações teóricas e efetivas para a implantação de tais políticas que visam basicamente uma contenção de gastos governamentais. As trajetórias individuais evidenciadas aqui correspondem, de fato, a uma significativa quantidade de trajetórias de jovens dispersos em todo o país, que não têm ‘com quem contar’ em relação a processos educacionais formais. Aos campesinos, especialmente, resta a luta e a construção, a partir também de movimentos sociais, que lhes permitam desenvolver a cidadania e o reconhecimento de si mesmos como sujeitos de direitos. 134 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. _____________. Marxismo e Filosofia da Linguagem São Paulo: Martins Fontes, 1996. BOSI, E. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BRUNNER, J. Atos de significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. KATO, M. No mundo da escrita. São Paulo: Ática, 1986. LIMA, Maria Emília Caixeta de Castro Lima; GERALDI, Corinta Maria Grisolia e GERALDI, João Wanderley. O trabalho com narrativas na investigação em educação. In: Educação em Revista, Belo Horizonte, v.31, n.01,p.17-44, Janeiro-Março 2015. REGO, Teresa Cristina. Memórias de escola: cultura escolar e constituição de singularidades. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. 135 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS 136 UM OLHAR SOBRE A POLÍTICA PÚBLICA PARA A ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL EM MINAS GERAIS E O ENSINO APRENDIZAGEM DE MATEMÁTICA PARA ALUNOS DO CAMPO Iracema Neves Lima1 Kyrleys Pereira Vasconcelos2 Este trabalho tem como objetivo refletir e analisar as propostas da SEE/MG (Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais) voltadas para a educação de tempo integral, em especial para a disciplina de Matemática e sua relação com a educação campo, além de aspectos da formação dos professores, principais agentes no processo. A necessidade de compreender como são as aulas de Matemática no período em que os alunos e alunas estão nas turmas de tempo integral e quais são as aprendizagens que ocorrem, surgem de observações durante o período de estágio na Graduação de Matemática no LeCampo/UFMG e do acompanhamento na escola como bolsista do PIBID, acrescido da minha experiência como professora dos anos iniciais em escola multisseriada no campo no período de 1993 a 2014. As Diretrizes da Educação do Campo, lançadas no final do ano de 2015 apontavam em seu artigo 3º, V das Diretrizes da Educação do Campo como um de seus princípios a “valorização da identidade da escola do campo, considerando as práticas socioculturais e suas formas específicas de organização do tempo, por meio de projetos pedagógicos com conteúdo curriculares e metodologias adequadas às reais necessidades dos estudantes do campo”. Nesse sentido, Vasconcelos (2011, p. 24) ao se referir a proposta de etnomatemática, concorda com Knijnik (2004) que considera importante analisar as culturas populares sob uma perspectiva de uma autonomia, associando-as às condições sociais dos grupos estudados, sem esquecer que, quando comparadas sociologicamente com as culturas hegemônicas, elas se mostram desigualmente diferentes. Desse modo o tempo integral poderá se apresentar como uma alternativa a aprendizagem interdisciplinar buscando a compreensão de fenômenos em 1 2 Mestranda em Educação. Professora da Rede Estadual de MG. Contato: nevesiracema03@gmail.com Mestra em Educação. Professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Contato: kvasconcelos81@gmail.com EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS sua totalidade, respeitando a especificidade das disciplinas, viabilizando saberes que se complementam, desenvolvendo a análise crítica, contribuindo para a melhor compreensão da dinâmica da realidade e ampliando os horizontes do pensar. Considerando ainda que a aprendizagem teórica aliada à prática constitui método eficaz para construção do conhecimento, sendo esse um atrativo a mais para os alunos. Nos valemos aqui de uma pesquisa qualitativa e de natureza bibliográfica. Para produção de dados, analisamos as propostas específicas para a educação de tempo integral bem como as demais orientações contidas no Programa Mais Educação, buscando perceber as contribuições para o desempenho e melhoria dos discentes que participam do Tempo Integral em escola no contexto campesino. Como aporte teórico apoiaremos em trabalhos de autores como: Deodato (2012); Knijnik (2004); Vasconcelos (2011); Justino (2016); Cavaliere (2007); Mota (2008) entre outros. Assim compreende a nossa análise a seguir para compreender o que propomos nesse artigo no que se diz a política pública para as escolas de tempo integral no estado de Minas Gerais. Escola de Tempo Integral e a Política de Tempo Integral A partir da década de 80, muito em função do início da abertura política que viesse sanar problemas em salas de aula, vieram à tona muitas discussões sobre a qualidade no sistema de educação pública. Uma das possibilidades discutidas para o desdobramento dessa qualidade foi à ampliação da jornada escolar. Na mesma década uma experiência que muito reverberou no cenário nacional e que continua acontecendo até hoje foi a criação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no Rio de Janeiro (DEODATO, 2012). Para dar continuidade a essa discussão foi lançado no ano de 2007 pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC), o Programa Mais Educação. Uma política de educação nacional que prevê a oferta de atividades socioeducativas no contra turno escolar, apostando que a ampliação do tempo e dos espaços educativos possa ser a solução para os problemas da qualidade de ensino, bem como se apresentam como estratégia de combate à pobreza, à exclusão social e à marginalização cultural (BRASIL, 2009). Parte constitutiva do Plano de Desenvolvimento da Escola - PDE, o Programa Mais Educação [...] “objetiva a implementação de educação integral a partir da reunião dos projetos sociais desenvolvidos pelos ministérios envolvidos – inicialmente para estudantes do ensino fundamental nas escolas de baixo IDEB” (BRASIL, 2009d., p. 13). A política educacional do Estado de Minas Gerais, principalmente nas últimas décadas, vem sendo marcada pela proposição de vários projetos, 138 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS propostas, programas e experiências de educação (de/em tempo) integral na rede pública do ensino, com o objetivo de enfrentar o desafio da melhoria da qualidade da educação ofertada no estado. (Figueiredo, 2017. p. 52) Nesse sentido, a política pública de tempo integral implantada pelo Estado de Minas Gerais conforme documento que trata das orientações para as escolas (SEE/MG, 2015) em 2015, dizia que a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) tem como referências para a construção de sua política de Educação Integral a meta 6 do Plano Nacional de Educação (PNE) e o Programa Mais Educação/MEC (PME). Desta forma, as atividades a serem ofertadas deverão seguir os macro campos e suas respectivas atividades apresentados no Manual Operacional do PME a fim de facilitar o conhecimento dos grupos de atividades, a sugestão de materiais (kit) específicos para cada atividade e para que as escolas façam suas escolhas dos macrocampos e atividades referentes à sua categoria : Escola do Campo ou Escola Urbana . Dentre os diversos grupos de atividades, cada escola poderá escolher 4 macro campos, no mínimo, e 6 macro campos, no máximo; No macrocampo Acompanhamento Pedagógico, a atividade Orientação de Estudos é obrigatória para as escolas urbanas e a atividade Campos de Conhecimento para as escolas do campo (MINAS GERAIS, 2015, p. 1). A proposta de desenvolver na escola atividades em tempo integral parte da adesão ao programa e sua implantação depende de cadastro no sistema próprio da SEE/MG que possuem orientações específicas, porém que faz menção ao atendimento dos alunos do campo, mas não garantem metodologias voltadas para esse grupo de alunos ou que envolvam a comunidade nessa ação dentro da escola. Para tanto a escola poderá escolher o acompanhamento Pedagógico para as escolas urbanas ou escolher atividade campos de conhecimento para as escolas do campo diante do que orientava a SEE/MG em 2015, tendo sofrido alterações posteriores. Nessa perspectiva há necessidade de entender como os marcos legais que instituem essa política propõem o ensino de Matemática de maneira a atender as especificidades da população do campo como garantia de direito. Porém, há de se considerar que o estudante nessa perspectiva se constitui somente como matrícula para composição de turmas com escolha do macrocampo na categoria Escola Urbana mesmo tendo em sua maioria discentes do campo. Sendo assim, o que se via em relação ao discente do campo era a ampliação do tempo de permanência na escola, pois não havia proposta diferenciada para o atendimento de suas especificidades enquanto sujeito de direito. Ao que parece devido à escola pesquisada está em um espaço urbano e, tanto o Projeto Político Pedagógico (PPP) quanto o planejamento anual para atendimento ao aluno não contemplam ou diferenciam o público a ser atendido. Deodato (2012 apud Cavaliere, 2007) considera ao se referir a ampliação do tempo na escola, que esse é determinado por demandas que podem estar diretamente relacionadas ao bem-estar das crianças, ou às necessidades do Estado 139 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS e da sociedade ou, ainda, à rotina e conforto dos adultos, sejam eles pais ou professores (CAVALIERE, 2007. p.116). Há que se ressaltar que a proposta de implantação de educação em tempo integral no Brasil não é algo novo se analisarmos a história da educação nacional, mas que não possui um olhar diferenciado ao sujeito campesino e que dentro da escola são considerados urbanos. Assim, o que se vê nas escolas são as inovações que em muitos casos não consideram as especificidades dos sujeitos envolvidos no processo, cabendo colocá-la em prática com poucas orientações e sem capacitações nem mesmo em serviço. Mota (2008), afirma que as propostas de Escola de Tempo Integral, principalmente as propostas de Anísio Teixeira, representam para seus discentes, não como lugar de confinamento e sim uma oportunidade de vida melhor, a possibilidade de reapropriação de espaços de sociabilidade. A proposta de Educação em Tempo Integral tem sustentação na Lei Federal nº 9.394/96, que fixa as diretrizes e bases da Educação Nacional (LDB), especialmente quando afirma no art. 40 que a jornada escolar no Ensino Fundamental incluirá “... pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola e ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino” (SANTOS, 2008, p.44). Porém, pela análise da legislação que pretende orientar o programa dentro da escola e sendo responsabilidade dos sistemas de ensino estabelecer os critérios a ser ministrado ainda aponta para essa possibilidade de confinamento privando o aluno dessa possibilidade de vida melhor, não que a escola não tenha buscado mudanças em suas ações, mas frente a forma como são levadas as propostas para a escola e nas condições que são implantadas, principalmente no que se refere a capacitação de professores e infraestrutura para atendimento. Pesquisas recentes mostram que muitas foram as tentativas dentro das escolas de efetivação dessa ação (DEODATO, 2012; SOUZA, 2012; JUSTINO, 2016; CUSATI, 2013). Porém, as tentativas muitas vezes sem sucesso ou que não se saíram da forma pensada continua sendo um desafio à educação. Outro ponto que não podemos desconsiderar é a expansão e aumento de turmas nas escolas estaduais com caráter assistencialista a que se propõe o programa e que chama muito a nossa atenção uma vez que a população do campo atendida não se trata da permanência na escola devido a questões como violência e permanência na rua e sim a habilidades e conhecimentos socialmente valorizados, bem como as diversas experiências culturais (GLORIA, 2013). Assim, é necessário ainda, levar em conta outra função social desempenhada pela escola, que é o caráter histórico da sociedade e que a mesma vive em constante transformação, apontada por Gilberto Alves (2001). 140 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Por fim, o tema tem nos inspirado a levantar questionamentos sobre a função social da escola neste programa, visto que o que presenciamos é mais uma ação contra a pobreza, que deve se articular de forma local com parcerias entre público e privado, mas que na realidade não ocorre ficando somente como mais uma ação dentro da escola sem apresentar os resultados esperados e que servem de disputa por cargos e funções (ROSA, 2012). A política de tempo integral implantada nas escolas estaduais de Minas Gerais e a matemática De acordo com Molina (2008) a elaboração de políticas públicas educacionais tem que atender aos direitos fundamentais da educação conforme art. 206 CF/88, zelando pelo princípio da igualdade de condições de acesso e permanência na escola. Contudo, a complexidade das condições socioeconômicas e educacionais das populações rurais exige maior coerência na construção de estratégias que visem alavancar a qualidade da Educação do Campo considerando os sujeitos, suas formas de vida, sua cultura e suas diversidades. Criar e implantar políticas que busquem suprir as enormes desigualdades no direito ao acesso e a permanência na escola para estes sujeitos faz parte desta estratégia, que não visa favorecimento dos sujeitos campesinos, mas sim de reconhecimento de uma dívida histórica com esse povo. Sendo assim, não basta ter na escola a política pública, é preciso atender ao aluno e suas necessidades reais de aprendizado, afinal o que se busca não é somente a igualdade de acesso “tolerada” pelos liberais, mas, fundamentalmente a igualdade de resultados. Colaborando com essa ideia Arroyo (1988, p. 5) questiona: “em que se pensa quando se propõe uma escola pública de tempo integral?” Indagação como essa e vivências na escola poderão nortear o trabalho e colaborar para entender situações de aprendizagens dentro desse período em que os discentes participam dessas atividades. E, que estratégias metodológicas são utilizadas para proporcionar melhor desempenho na disciplina de Matemática, visto que um dos objetivos do Programa Nacional Mais Educação e das Orientações para implantação da mesma ação em escolas estaduais é melhorar o desempenho dos alunos e alunas e resultados da escola como descrito no macro campo. O PROETI (Programa de Educação em Tempo Integral) como era chamado em Minas Gerais, tinha como objetivo melhorar a aprendizagem dos discentes por meio da ampliação da sua permanência diária na escola, com horas que permitam trabalhar com os conteúdos de forma significativa, revestidos de caráter exploratório, vivenciados e protagonizados por todos os envolvidos na relação ensino aprendizagem. (SEE/MG, 2009). Ao se referir ao trabalho com os conteúdos de forma significativa fica claro a intenção da secretaria em melhorar índices e resultados e assim para 141 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS garantir o melhor funcionamento do PROETI na escola, a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais segundo (LOPES, 2013, p. 26) determina que as turmas atendam no máximo 25 e no mínimo 18 discentes. Orienta ainda que a escola deve realizar um diagnóstico inicial com atividades avaliativas e de sondagem nas duas primeiras semanas letivas, que mapeiam competências e habilidades nas aprendizagens de Matemática, leitura e escrita previstas nas matrizes curriculares para o ano de escolaridade em curso, identificando os níveis das habilidades consolidadas e em construção. Discentes carentes, que se encontram em baixo nível de rendimento, conforme sua faixa etária, são convidados a fazerem parte do PROETI desde que os pais assinem o termo de consentimento para que seus filhos frequentem a escola no contra turno. Exemplo de publicação da SEE/MG que busca subsidiar o trabalho do professor, o Caderno de Boas Práticas dos Professores das Escolas de Tempo Integral surgiu no ano de 2010, a partir de encontros promovidos pela SEE/MG, para troca de experiências entre os professores do PROETI. LOPES (2013) destaca que este caderno contém cinco eixos fundamentais, os quais contemplam a consolidação da alfabetização e a ampliação do letramento; a resolução de problemas; o desenvolvimento do conhecimento e a sensibilidade através da Arte; a aprendizagem por meio de jogos e recreação e o desenvolvimento de bons hábitos tanto sociais quanto de higiene. Além das boas práticas sugeridas, cada eixo possui um rol de ações concretas, que são exemplos de como estas práticas foram implantadas em escolas que obtiveram excelentes resultados. Porém, não é só a ampliação do tempo de permanência do estudante na escola no contra turno que proporciona uma educação integral para esses sujeitos. Ainda é preciso construir caminhos que levem a experiências exitosas e contribuirão com maior desempenho na vida acadêmica pois se uma das preocupações da secretaria é elevar os índices da educação no estado não se pode pensar que a educação integral sirva somente de espaço de lazer para esses sujeitos. Na proposta da SEE/MG para 2017, que parte dos resultados da pesquisa de mestrado intitulada “Programa Mais Educação: diálogos a partir da percepção dos pais de estudantes de uma comunidade rural” defendida na Universidade Federal de Minas Gerais no dia 11 de fevereiro de 2016 pela pesquisadora Justino ( 2016 ) propõe uma política pública de Educação Integral diferenciada aos povos do campo por meio da Coordenação de Educação do Campo na Secretaria de Estado da Educação, considerando todas as dimensões formativas dos sujeitos, compartilhando a tarefa de educar entre os profissionais da educação, as famílias e diferentes atores sociais. Buscando, assim, a diminuição das desigualdades educacionais, a valorização da diversidade cultural mineira, 142 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS ampliando a abrangência curricular e tornando a escola do campo mais atrativa, contribuindo para a aprendizagem e a melhoria da qualidade na educação. Desse modo busca contemplar adequadamente as necessidades formativas e didáticas, reconhecendo o elo que os une – povos do campo – sem ignorar as suas singularidades, apresentando propostas de Educação do Campo Integral específicas para as populações indígenas e quilombolas, e propostas gerais que abarcam todas as escolas do campo. Assim, Vasconcelos (2011, p. 24) ao se referir a proposta de etnomatemática, concorda com Knijnik ( 2004) que considera importante “analisar as culturas populares sob uma perspectiva de uma (relativa) autonomia, associando-as às condições sociais dos grupos estudados, sem esquecer que, quando comparadas sociologicamente com as culturas hegemônicas, elas se mostram desigualmente diferentes” e ainda, observam que existe um apagamento das marcas que instituem as etnomatemáticas camponesas de maneira tal que permanece a Matemática produzida por cientistas, aquela que reina e é soberana (KNIJNIK, 2004). Embora fosse essa nova proposta lançada em 2017 ainda não possuísse avaliação de resultados, o referido documento trazia implícito o desejo de contribuir para a efetivação do que está disposto nas Diretrizes na política pública de Educação do Campo de Minas Gerais, propondo a Formação Integral. Assim acreditamos que a Matemática que é desenvolvida nas aulas na turma de tempo integral deveria estabelecer um novo plano de ação\trabalho elaborado agora considerando os alunos do campo e não mais um planejamento de aulas que se concretiza em poucos momentos dedicados à disciplina ou que não tenha relação com a formação do cidadão ao contrário do durante o período observado.(LIMA, 2016) Nesse sentido Cusati (2013, p. 38) afirma que a Matemática, enquanto prática pedagógica, deve levar a uma visão de conjunto entre a realidade e a sociedade. Ela tem seus códigos e sua linguagem, tem um sistema de comunicação e de representação da realidade construído de forma gradativa ao longo da história. Compreendê-la e interpretá-la é compreender a organização e a lógica dessa linguagem e seu significado historicamente construído. Assim, é preciso repensar a Matemática no tempo integral adotando as práticas acadêmicas ou escolares onde estejam presentes práticas cotidianas significativas como práticas sociais considerando se possível também o jogo e oficinas como forma de aprendizagem e metodologia de trabalho docente que venha despertar o interesse dos discentes. Isso vale dizer a compreensão de um sujeito que deve ser considerado em sua dimensão biopsicossocial com a Matemática a serviço dos interesses dos discentes e de suas necessidades levando em conta suas relações e 143 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS especificidades enquanto sujeitos do campo que possuem conhecimentos e práticas cotidianas que podem ser utilizado por meio do diálogo como ponto de partida para discussão dos conteúdos matemáticos em sala de aula dando significado ao conhecimento e propiciando ao aluno ou a aluna a sua utilização em sua vida na comunidade. Para tanto é necessário que o professor considere no processo de ensino e aprendizagem de Matemática elementos como as práticas, os conceitos e suas tendências metodológicas. Desse modo, não podemos perder de vista as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do Campo (contidas na Resolução CNE/CEB 01, de 03 de abril de 2002), que sinalizam a necessidade de se repensar a organização da escola, do conhecimento e da prática pedagógica, considerando as especificidades das populações e das condições de vida do campo. Valente (2008) propõe uma nova Matemática, de um ensino de conteúdos com métodos totalmente inovadores para o ensino da disciplina, um sentido para o aprendizado dos conteúdos matemáticos, um modo de articular a vida real e nosso trabalho cotidiano, um ensino menos formal, mais intuitivo que deve permear as aulas de Matemática nas turmas de tempo integral de modo a gerar novas expectativas no aluno. E ainda, considerando o conceito mais tradicional encontrado para a definição de educação integral que considera o sujeito em sua condição multidimensional, não apenas na sua dimensão cognitiva, como também na compreensão de um sujeito que é sujeito corpóreo, tem afetos e está inserido num contexto de relações. Os quintais produtivos nascem com o objetivo de servir como instrumentos disseminadores de saberes que vão além do ato de plantar e cultivar alimentos: a temática da segurança alimentar, o respeito ao meio ambiente e também às pessoas. Ainda, os quintais são um laboratório ao ar livre para aulas de todas as áreas do conhecimento: Ciências Humanas, da Natureza e Exatas. (SEE/MG,2017). Desse modo ao se apresentar como uma alternativa a aprendizagem interdisciplinar buscando a compreensão de fenômenos em sua totalidade, respeitando a especificidade das disciplinas, viabiliza saberes que se complementam, desenvolve a análise crítica, contribui para a melhor compreensão da dinâmica da realidade, ampliando os horizontes do pensar. Se os resultados da proposta de 2015, conforme pesquisa realizada indicavam que o tempo integral não se concretizava e não atendia as demandas dos sujeitos inseridos no contexto campesino, continuando por reproduzir os tratamentos desiguais e excluindo-os de conhecimentos proporcionados a outros sujeitos como os da cidade, com a proposta de implantação em 2017, desde que houvesse uma formação consistente voltada para os professores, gestores e 144 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS coordenadores do programa de tempo integral e integrado acreditamos que seria o passo inicial para mudanças importantes e que poderiam trazer resultados positivos e eficácia ao ensino de Matemática. Quando destacamos a importância da formação estamos nos referindo principalmente a dificuldade que os professores demonstram com a metodologia da educação do campo por desconhecimento, assim como trabalhar de forma interdisciplinar. Na opinião de Leite, (2018) o que a educação integral pode trazer de mais transformador para as políticas públicas é reconhecer que os discentes são gente, que é vida, corpo, tempo – espaço e que não deve separar escola e vida, experiência social e aprendizagem escolar, e sim garantir uma educação democrática voltada para a justiça social. Concordamos com Leite (2018), uma vez que acreditamos ser impossível a escola desconsiderar e separar a escola e a vida, porque a escola faz parte da vida do discente que busca antes de mais nada, melhorar enquanto pessoa, procurando ajuda para melhor desempenho ou como local de abrigo e formação de grupos sociais. Confundir a proposta de trabalho principalmente da matemática sem relação com a vida é perder a oportunidade de proporcionar ao discente vincular o seu conhecimento de mundo, ou seja, aquilo que presencia seja na sua casa, na sua comunidade ou mesmo aos arredores da escola àquilo que se busca trabalhar de forma acadêmica na escola. Nesse aspecto a formação de professores no campo da educação Matemática, acreditamos ser preciso repensar os processos dentro das escolas, visto que são os docentes da área que assumem a responsabilidade pelo trabalho da Matemática no tempo integral. São esses profissionais que adotam uma postura adequada às práticas Matemáticas acadêmicas ou escolares, indiferente de onde estejam presentes as práticas cotidianas significativas como práticas sociais. Vale mencionar que esses são capazes de reconhecer o discente e sua relação com o campo onde vive, o que contribui muito no processo de aprendizagem. Nesse sentido, a aprendizagem teórica aliada à prática constitui método eficaz para construção do conhecimento, sendo esse atrativo e oportuno àqueles que estão no exercício da função. Conforme resultados em pesquisa (LIMA ,2016) indicaram que o tempo integral não se concretizava e não atendia às demandas dos sujeitos inseridos no contexto campesino, o que é lamentável, pois continua por reproduzir os tratamentos desiguais e excludentes de conhecimentos proporcionados a outros sujeitos como os da cidade. Concordamos que a formação de professores que ensinam matemática, embora tenha tido avanços significativos, é bastante carente de investigações, sobretudo na proposição de novas metodologias de ensino. O mesmo podemos dizer da prática docente voltada para a realidade do estudante, haja vista a grande necessidade de se renovar os discursos de sala de aula, deixando para trás 145 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS velhas práticas e adotando metodologias inovadoras, capazes de estimular quem ensina e quem aprende Matemática (MANRIQUE, MOREIRA e MARANHÃO, 2016 a; b). Seguindo esse mesmo viés, Santos (2017) afirma que [...] formação continuada no campo da Matemática deve colocar os professores em contato com tendências pedagógicas que proporcionem novos fazeres pedagógicos, tais como: resolução de problemas; modelagem Matemática; etnomatemática; história da Matemática e investigações Matemáticas. Nesse sentido, entendemos que necessitamos de propostas de formação que busquem superar a dicotomia entre teoria e prática, que reconheçam os professores como trabalhadores que produzem conhecimento. Nesse contexto, concebemos o professor como protagonista de seu desenvolvimento profissional e não como um sujeito passivo diante de formações prescritivas e esvaziadas de sentido (SANTOS, 2017, p. 35). Quando nos referimos ao professor que atua na educação de tempo integral na disciplina de Matemática e longe de antecipar julgamentos, o que se acredita é que o professor deve ser parte da ação proposta pela política de tempo integral e a ele deve ser oferecido formação para o exercício da função. Nesse sentido concordamos com GATTI, B.A. (2013, p. 96) quando diz Embora estejamos no século XXI, no que se refere à condição de formação de professores (para os vários níveis educacionais e as várias áreas disciplinares e mesmo com as orientações mais integradoras das normas vigentes quanto à relação “formação disciplinar – formação para a docência”) ainda se verifica a prevalência do modelo consagrado no início do século XX. Sabemos que para o sucesso da Educação Matemática aconteça nas escolas que oferecem o tempo integral é preciso que se tenha uma política de formação de professores preocupada em atendê-lo com uma prática docente voltada para o desenvolvimento de habilidades cognitivas. É imprescindível para uma formação efetiva dos discentes o modo como o professor encaminha o seu trabalho pedagógico em sala de aula, pois é o viés que irá direcionar todo o processo da significância na aquisição de novas informações. Conforme Lorenzato (2006), para ensinar é preciso partir do que o discente conhece o que também significa valorizar o passado do aprendiz, seu saber extraescolar, sua cultura primeira adquirida antes da escola, enfim, sua experiência de vida. Por último o documento orientador para o ano de 2020 (SEE/MG 2020.p.4) chama atenção em relação a função da Educação Básica e o que se propõe o EFTI (Ensino Fundamental em Tempo Integral) ao dizer que A Educação Básica, conforme reconhece a Base Nacional Comum Curricular, deve ter como objetivo a formação e o desenvolvimento humano global, independentemente da duração da jornada escolar. Nesse sentido, o Ensino Fundamental em Tempo Integral - EFTI - propõe a formação integral dos estudantes a partir da ampliação da matriz curricular, que por sua vez, está assentada em uma proposta pedagógica integrada, na qual componentes curriculares e atividades integradoras articulam-se de forma a garantir os direitos à aprendizagem e o pleno desenvolvimento do educando. 146 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Diante da nova proposta fica claro a intenção da secretaria em buscar integrar de forma ampliada a matriz curricular dos anos finais o desejo de investir na melhoria da educação básica priorizando os componentes curriculares por meio das competências e habilidades em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Currículo Referência de Minas ao reafirmar no mesmo documento (SEE/MG. p. 7) ser fundamental, que as práticas pedagógicas desenvolvidas pelos professores das atividades integradoras sejam planejadas em consonância com os conteúdos trabalhados nas áreas do conhecimento, contemplando atividades significativas e contextualizadas, que propiciem a aprendizagem de acordo com essas habilidades e competências. Essa integração deve ser mediada pelo Especialista da Educação Básica a partir do acompanhamento do trabalho docente e do processo de aprendizagem dos estudantes. Fica demonstrado também a preocupação com o planejamento e o acompanhamento do trabalho docente pelo especialista e pelo docente por meio de avaliação e registro no chamado Diário Eletrônico criado pelo estado que já é instrumento utilizado pelos professores. Quanto a atividade estabelece que deverá ser trabalhado de forma significativa e contextualizada de forma interdisciplinar com os componentes curriculares da Base Nacional Curricular Comum destacando no eixo do Componente de Matemática aqui denominado atividade integradora Laboratório de Matemática, o trabalho deverá ser desenvolvido de maneira que os estudantes possam vivenciar aquilo que a teoria não é capaz de demonstrar, através da experimentação. Sendo indispensável criar um ambiente de aprendizagem que possibilite integração entre a teoria e a prática, com princípios e objetivos, para que os estudantes possam observar, investigar, fazer e perceber os diferentes conceitos matemáticos. Além da atividade integradora Laboratório de Matemática, o documento orientador estabelece na Ementa para os anos finais do ensino fundamental: Estudos Orientados, Educação para a Cidadania, Comunicação e Linguagens, Projeto de Vida, Ciências e Tecnologia. Se a aprendizagem da Matemática ocorre na escola e sofre influências da prática como afirma Deodato (2012) de acordo com os indícios a partir da análise de uma oficina de Matemática do Programa Escola Integrada UFMG e sendo que em Escola de Tempo Integral os alunos e alunas possuem número representativo de aulas semanais na atividade Laboratório de Matemática, a aprendizagem nessa escola deve ser superior em relação às turmas similares. Para se pensar em alto desempenho em uma escola que desenvolva ações de tempo integral não basta levar em conta número de aulas semanais é preciso considerar o contexto dessa escola, o professor e sua prática, os sujeitos envolvidos no processo e o contexto em que ocorrem as atividades da disciplina Matemática, como mínimo para análise. 147 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Ao considerar e propor um trabalho adotando a metodologia de conteúdo com destaque para o Laboratório de Matemática ainda que de forma significativa e contextualizada é preciso considerar os sujeitos envolvidos e sua relação com a vida cotidiana. Assim, a orientação da SEE/MG para 2020 aponta para avanços e retrocessos. Avanços ao estabelecer metodologia de trabalho e por pensar em trabalho significativo, porém alinhado ao conteúdo da Base Nacional Curricular, ou seja, o professor possui um caminho a seguir. Retrocessos por ainda não proporcionar formação aos professores que atuam nessas turmas. Sendo indicado somente “ apoio das Superintendências Regionais de Ensino (SRE) nas ações e a articulação, principalmente entre as escolas, para a troca de experiências e de boas práticas, que considero insuficiente diante do potencial que poderia representar para as escolas a educação de tempo integral, além de indicar caminhos para resolver problemas de infraestrutura nas escolas que atendem a esse público. Além de não mencionar alunos do campo, ou seja, considera que todos possuem as mesmas condições e saberes. Assim, continuamos por produzir a mesma prática Matemática, como descreve Hiratsuka, (2014) e a fomentar uma educação que apresenta resultados insatisfatórios, mesmo diante de investimentos e de políticas públicas tão importantes. Considerações finais Nossa proposta neste trabalho foi refletir e analisar as propostas da SEE/MG voltadas para a educação de tempo integral, em especial para a disciplina de Matemática e sua relação com a educação campo, além de aspectos da formação dos professores, principais agentes no processo foi conhecer e analisar como se realiza a Política de Tempo Integral. Verificamos que a política de tempo integral possui propósitos em sua criação em específico nos marcos legais que justificariam e dariam conta de elevar o IDEB e o desempenho dos discentes atendidos sejam em Matemática ou português ou ainda de formação integral do sujeito, desejo maior da educação do campo. Porém nem sempre esses propósitos são efetivados na base, na escola. Mesmo diante da negação de direitos ao aluno do campo, acreditamos nas contribuições possíveis do Programa de Tempo Integral e da escola ao propor tal ação aos sujeitos do campo. Assim, seria preciso repensar o modelo que está hoje que amplia o tempo de permanência do estudante na escola, mas que não se caracteriza na verdadeira escola de tempo integral e buscar alternativas viáveis e que realmente sejam transformadoras e eficientes, porque este que aí está e da forma que é proposto não atende aos sujeitos do campo e sim continua por reproduzir os tratamentos desiguais e que os excluem de conhecimentos 148 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS proporcionados a outros sujeitos como os da cidade além de representar processos de retrocessos como a orientação de 2020 da SEE/MG que sequer menciona o aluno do campo. 149 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS: BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Congresso Nacional, [1996]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l9394.htm. Acesso em: nov. 2019. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC. 2017. Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: nov. 2019. BRASIL. Ministério da Educação. Série Mais Educação: Educação Integral. – Brasília: MEC – Secad., 2009b. BRASIL. Ministério da Educação. Série Mais Educação: Rede de Saberes Mais Educação – pressupostos para projetos pedagógicos de educação integral: caderno para professores e diretores de escolas. – Brasília: MEC – Secad., 2009d. BRASIL. Ministério Da Educação. Decreto nº. 7.083, de 27 de janeiro de 2010, Programa Mais Educação, 2010.2 p. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7083.htm>. Acesso em: 28 out. 2015. BRASIL. Ministério Da Educação. Programa Mais Educação: Manual Operacional de Educação Integral. Brasília: MEC–Secad., 2014.Disponível em: <http://portal.mec. gov.br/dmdocuments/passoapasso_maiseducacao.pdf>. Acesso em 28 out.2015 BRASIL. Educação do Campo: marcos normativos. Ministério Da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Brasília, 2012. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília, DF, 2001. BRASIL. Educação do campo: diferenças mudando paradigmas. Cadernos SECAD 2, Brasília, DF: INEP/MEC, BRASIL. Diretrizes Operacionais da Educação do Campo do Estado de Minas Gerais: Comissão Permanente de Educação do Campo. Instituída pelo Decreto estadual nº 46.218, de 15 de abril de 2013, alterado pelo Decreto estadual nº 46.233, de 30 de abril de 2013 e Decreto Estadual nº 46.939 de 21 de janeiro de 2016. CUSATI, I. C. Educação em Tempo Integral: resultados e representações de professores de Matemática e de alunos e alunas do terceiro ciclo da Rede de Ensino de Belo Horizonte. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo: s.n., 2013.216 p DEODATO, André Augusto. Matemática no projeto escola integrada: distanciamentos e aproximações entre as práticas das oficinas e as práticas da sala de aula. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 2012. 150 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS GATTI, Bernadete Angelina. Por uma política nacional de formação de professores – 1ª ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2013. LOPES, Fátima Abadia de Oliveira. Funcionamento do Projeto Escola de Tempo Integral - PROETI: uso otimizado do tempo e espaço em duas escolas da Superintendência Regional de Ensino de Patrocínio – MG. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Educação/CAEd. Programa de Pós- Graduação em Gestão e Avaliação da Educação Pública, 2013. JUSTINO, Érica Fernanda: Educação Integral e Educação do Campo: Diálogos possíveis a partir da percepção dos pais de estudantes de Comunidade Rural; Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 2016. MOLINA, Mônica Castagna. A Constitucionalidade e a Justicibilidade do Direito à Educação dos Povos do Campo. In: SANTOS, Clarice Aparecida dos. (org.).Por uma educação do campo. (Campo – Políticas Públicas – Educação). Vol. 7. INCRA/MDA, Brasília, 2008. p. 20 – 27. MOTA, Silvia Maria Coelho. Escola de Tempo integral : da concepção à prática. 2008. 292 f. Dissertação (Mestrado em Educação e Formação) - Universidade Católica de Santos. Santos, 2008. VASCONCELOS, Kyrleys Pereira: Um Estudo Sobre Práticas De Numeramento Na Educação Do Campo: Tensões Entre Os Universos Do Campo E Da Cidade Na Educação De Jovens E Adultos; Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais; Belo Horizonte, 2011. p.126 SEE/MG. Manual Operacional de Educação Integral - Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16690&I temid=1115); Belo Horizonte,2014. SEE/MG. ENSINO FUNDAMENTAL EM TEMPO INTEGRAL - Disponível em: seemg.gov.br. Belo Horizonte,2020. Acesso em 05 fev.2020 151 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS 152 UMA ANÁLISE DA EDUCAÇÃO DO CAMPO E AS PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS COM A BNCC Adriana Rodrigues dos Santos Brito1 O texto em questão visa discutir as políticas públicas relacionadas a proposta da Educação do Campo. Esta reflexão terá como eixo norteador as relações entre educação e cultura, apropriadas das ideias de Freire pela afirmação do caráter político da educação e necessidade do fortalecimento da cultura popular. E, partindo do pressuposto que a Educação é um processo em que não há neutralidade, analisaremos como a Educação do Campo se apresenta na BNCC (Bases Nacionais Comuns Curriculares) uma vez que esta afigura-se como norteadora da Educação Básica em nosso país. A BNCC estabelece competências que devem articular e direcionar a compreensão sobre o desenvolvimento integral dos estudantes, definida como a “mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2017, p. 06), Sendo assim, buscaremos de forma sucinta, questionar como e o que se propõe e para quem se propõe a Educação do Campo. Objetivou-se, empreender leituras acerca dos projetos para a Educação do Campo e como estes incidem na realidade camponesa. Educação do Campo no Brasil e alguns marcos importantes A Educação do Campo no Brasil é marcada por longas histórias de lutas, desafios, contradições e resistência. Isso se deve ao fato de que é impossível desvincular a Educação do Campo dos problemas sociais, políticos, culturais, econômicos, ambientais e educacionais dos sujeitos envolvidos. O campo é um espaço macro. É o lugar e o canto do viver e das vivências que as contextualizam e propiciam as condições de: educação, saúde, esporte, lazer, humanismo, cultura e infraestrutura. Na observância da moradia, da saúde, da escola com dignidade. O cidadão do campo é um ser como qualquer outro, na busca dos seus ideais, seus benefícios, dos direitos e deveres por uma vida digna. Logo, 1 Professora na rede estadual de ensino de Mato Grosso, licenciada em Ciências Biológicas-Unemat/ Cáceres MT2000/1; Bacharel em Enfermagem pela Faculdade de Quatro Marcos- São José dos Quatro Marcos MT2010/2; Licenciada em Pedagogia- Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz 2014/1; Especialista em Química- Universidade Federal de Lavras MG 2006/2; Especialista em Urgência e emergência em enfermagem - Associação Varzeagrandedense de Ensino e Cultura 2011; Especialista em Enfermagem em saúde da família- Associação Varzeagrandedense de Ensino e Cultura 2011. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS é um cidadão de direitos e deveres para conviver em sociedade e com ela interagir de acordo com as possibilidades pelo estado de direito (DRC/MT, p. 67). Sendo assim, compreender o campo como espaço macro significa entender campo e camponês no contexto socioeconômico e cultural brasileiro. Todavia, fatores como a agroecologia, produção agrícola; questão agrária, territorialidade, desenvolvimento econômico e sustentável, história e cultura das diferentes populações do campo não podem ser desvinculadas deste contexto, uma vez que são essenciais para a conquista de uma vida digna. A especificidade mais forte da educação e da formação do campo, em relação a outros referenciais sobre educação deve-se ao fato da permanente associação com as questões do desenvolvimento e do território no qual o campesinato se enraíza. A afirmação de que só há sentido o debate sobre a educação e a formação do campo como parte de uma reflexão maior sobre a construção de um projeto de desenvolvimento integral do campo e este ligado à ideia de um projeto popular de nação (ZART, 2011, p. 34). Tornando-se a Educação do Campo, direito do homem, da mulher, da criança, do jovem do campo, direito esse, resultante da luta dos povos campesinos aliada aos mais variados contextos, pautada na defesa da efetiva igualdade de direitos à educação, respeito à diversidade e as especificidades camponesas, “ a essência da Educação do Campo não pode ser apreendida senão no seu movimento real(...), como prática/projeto/política de educação e cujo sujeito é a classe trabalhadora do campo” (CALDART, ALENTEJANO e FRIGOTTO, 2012, p. 13). Ao examinar a história da educação no meio rural no Brasil, comungamos com Arroyo, Caldart e Molina (2004): onde dizem que a escola, no meio rural foi tratada como resíduo do sistema educacional brasileiro e, consequentemente, à população do campo foi negado o acesso aos avanços ocorridos nas duas últimas décadas como o reconhecimento e a garantia do direito à educação básica. As escolas rurais no Brasil foram construídas morosamente, até as primeiras décadas do século XX, a educação era privilégio de poucos e a educação rural não foi nem ao menos mencionada nos textos constitucionais até 1981 (BRASIL, 2002). O Estado brasileiro omitiu-se: (1) na formulação de diretrizes políticas e pedagógicas específicas que regulamentassem como a escola do campo deveria funcionar e se organizar; (2) na dotação financeira que possibilitasse a institucionalização e a manutenção de uma escola com qualidade em todos os níveis de ensino; (3) na implementação de uma política efetiva de formação inicial e continuada e de valorização da carreira do docente do campo (BRASIL, 2005, p. 7). Com a negligência das Políticas Educacionais em relação à Educação do Campo, as próprias comunidades se organizaram para criar escolas e garantir a educação de seus filhos, contando muitas vezes com os movimentos sociais, igrejas, sindicatos rurais e outros movimentos que se comprometeram com a educação popular. 154 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A partir da Constituição Federal de 1998 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), acentuaram-se os debates sobre a educação do campo, no entanto, os problemas se tornaram cada vez mais visíveis, tendo em vista que nas últimas décadas, os sujeitos do campo estão cada vez mais buscando espaço no cenário político e cultural, seja denunciando o silêncio e o esquecimento dos órgãos governamentais, seja na luta por uma escola do campo que não seja apenas uma cópia da escola urbana. Diante dessas problemáticas, Leite (1999), afirma que alguns pontos devem ser considerados. 1. Quanto à clientela da escola rural: a condição do aluno como trabalhador rural; distâncias entre locais de moradia/trabalho/escola; heterogeneidade de idade e grau de intelectualidade; baixas condições aquisitivas do alunado; acesso precário a informações gerais. 2. Quanto à participação da comunidade no processo escolar: um certo distanciamento dos pais em relação à escola, embora as famílias tenham a escolaridade com valor sócio-moral;3. Quanto à ação didático-pedagógico: currículo inadequado, geralmente, estipulado por resoluções governamentais, com vistas à realidade urbana; estruturação didático-metodológica deficiente; salas multisseriadas, calendário escolar em dissonância com a sazonalidade da produção; ausência de orientação técnica e acompanhamento pedagógico; ausência de material de apoio escolar tanto para professores quanto para alunos (LEITE, 1999, p. 55-56). A Educação do Campo constitui-se como prática educativa de humanização, sendo assim, produz-se como construção coletiva e se concretiza no esforço de aproximação de saberes da terra com os saberes acadêmicos. Durante a análise acerca dos projetos defendido pelos trabalhadores e a proposta educacional apresentada a este público, é fundamental provocar uma reflexão sobre a organização escolar, a sua relação com a comunidade, observando seus princípios e fundamentos, colocando-os em prática no cotidiano da escola, sob o respaldo do marco regulatório. Desta forma, acreditamos que uma orientação curricular deve apresentar possibilidades de inovações das práticas pedagógicas, de modo a incentivar as potencialidades dos alunos, pois: A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. [...] não é possível pensar os seres humanos longe sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe, ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu processo formador (FREIRE, 1996, p. 36-37). Compreender como as práticas de ensino podem impactar positivamente a comunidade assistida, favorecerá tanto a formação do profissional quanto do aluno que será atendido por este. A autonomia do sujeito exige romper a perspectiva fatalista da história (FREIRE, 1988) e para que isso ocorra, acredita-se que é necessário que se 155 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS desenvolvessem nos sujeitos a capacidade de realizar uma leitura crítica da realidade. Ler criticamente a realidade é um processo de questionar o que está posto e perceber-se como autor de uma determinada história e cultura. Para que a educação seja instrumento de transformação é necessário que esse processo aconteça na constante invenção e reinvenção social e cultural, tendo na construção do conhecimento um dos elementos de desvelamento da realidade, em que ocorre a transição de uma visão ingênua da realidade para uma crítica, o que necessita uma mudança nos conteúdos da aprendizagem. A educação do campo trabalha com a mudança do conteúdo e a forma de a escola funcionar para qualificar o processo educativo. Isso sem perder de vista o ser humano como sujeito envolvido no processo de formação e tipo de sociedade que se quer construir (MORIGI, 2003, p. 24) Essa perspectiva de educação vinculada aos conteúdos, aos projetos pedagógicos dos cursos vai de encontro às ideias centrais de Freire que é o reconhecimento de que os sujeitos são seres de aprendizagens e de construção do conhecimento, como produção cultural, e, em sendo produção, traduz os interesses e valores de determinados grupos. O ato de conhecer é constituído pela produção do conhecimento e o outro de conhecer o conhecimento existente, e para que esse segundo momento seja privilegiado no processo de ensino/aprendizagem são necessários aos sujeitos cognoscentes: “a ação, a reflexão crítica, a curiosidade, o questionamento exigente, a inquietação, a incerteza” (FREIRE, SHOR, 2008). Documentos como as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo (Res. CNE/CEB n.1/2002) e o Decreto 7357/2010 que dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, reforçam o respeito à diversidade, incentivo a projetos políticos pedagógicos específicos para escola do campo, articulação com o meio de trabalho rural, valorização da identidade da escola do campo, flexibilidade na organização escolar, controle social na qualidade da educação escolar, mediante a efetiva participação da comunidade e dos movimentos sociais do campo ( Brasil, 2010). Contudo, ao propor a reforma educacional, é necessário considerar todos os sujeitos envolvidos no processo, em especial aqueles que protagonizam a comunidade escolar: professores, alunos, pais e também compreender a diversidade geográfica e cultural brasileira que irá influenciar no processo de ensino aprendizagem. A BNCC A Base Comum Curricular (BNCC) é uma proposta para promover a equidade educacional em nosso país, portanto foi elaborada com a finalidade de estabelecer os princípios básicos que todos os alunos devem adquirir. Embora a BNCC tenha sido estabelecida em 2017, o movimento em busca de uma base 156 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS comum, surge como possibilidade de superação da crise estrutural, manifestado, especialmente, na via neoliberal. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente a educação escolar, tal como o defini o § 1° do artigo 1° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n° 9394/1996), e está orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam a formação humana e a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2017, p. 8). De acordo com o Ministério da Educação do Brasil (MEC), a BNCC estabelece o que os alunos devem aprender ao longo de seu processo de escolarização, durante toda a Educação Básica. Portanto, essa base deve nortear os currículos dos sistemas e das redes de ensino, bem como as propostas pedagógicas de todas as escolas tanto da rede pública ou privada, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. No documento, são determinadas as competências, as habilidades e as aprendizagens essenciais que os estudantes devem desenvolver ao longo da educação básica. A BNCC faz parte da Política Nacional da Educação Básica que tem por objetivo a criação de práticas e estruturas organizacionais que se ajustam a outras políticas e ações no âmbito federal, estadual e municipal, de maneira a garantir um mesmo nível de aprendizagem a todos os alunos. Nesse contexto, a BNCC apresenta-se como uma proposta atualizada dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados em 1997, associados a Lei de Diretrizes e Bases LDB 9394/1996 e ao Plano Nacional de Educação instituído pela lei 13005/2014. No Brasil, a discussão acerca da construção de referenciais nacionais comuns para a educação é um debate de longa data na política educacional, no entanto, a elaboração da BNCC, contou com consultas individualizadas e direcionadas, o que gerou inúmeras críticas a respeito de sua construção, aos principais sujeitos envolvidos e seus interesses; e o conjunto de outras medidas que a circunscreve na reforma empresarial da educação, como por exemplo: a Emenda Constitucional 95/2016, que congela os investimentos sociais por 20 anos, restringindo as possibilidades de implementação da BNCC, e também das próprias metas do PNE, sufocando a educação pública; a Lei 13.415/2017 que altera, sobretudo a LDB 9394/96 principalmente em relação ao Ensino Médio, marcada por uma flexibilização seletiva; a centralização do sistema nacional de avaliação da educação básica como indicador da educação brasileira, e, especialmente, os eventos econômico e político sob a hegemonia neoliberal. A apresentação em defesa da igualdade de direito verificado na BNCC não combina com as condições objetivas para garantia 157 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS desse direito, de acordo com o pacto federativo, a igualdade é assegurada pela base comum e pelo sistema de controle e responsabilização e a equidade é função dos sistemas e redes de ensino, através da contextualização da base comum e da implementação da parte diversificada. Isso remete ao empresariamento da educação, e ao reduzi-la a condição de mercadoria e subordiná-la à lógica empresarial, a BNCC funciona como meio de definição do controle da qualidade da educação, de acordo com os parâmetros do mercado, a ser precisamente controlada por um sistema de avaliação externa, onde todas as atividades deverão, portanto, ser empreendidos para se alcançar o padrão. É possível padronizar uma Base Comum considerando a realidade das escolas do Campo? A implantação da Base Comum está pautada na garantia do direito à aprendizagem, através das competências, habilidades e conteúdos definidos para serem aplicados em todas as escolas, independentemente da localização, seja no campo ou na cidade, como meio de garantir a qualidade de ensino e diminuir as desigualdades, de modo a preparar os alunos para o mercado de trabalho. Contudo, Alves (2014) afirma: No presente, sua necessidade efetiva vem sendo questionada pela maioria dos que estudam currículos, no Brasil, por algumas razões que tem a ver: com o momento internacional de surgimento do modelo de “currículo nacional” e a ideia de que poderia ser importado, sem consideração dos contextos em que se inserem; com a ideia de ‘escola’, criação do capitalismo em seus primórdios, na modernidade, como precisando de um ensino igual para todos – “ o ler, escrever e contar”, de Comenius (1984); a entrada nas escolas, em boa parte dos países do mundo, seja pela descolonização, seja por lutas daquelas que eram chamadas de ‘minorias’, naquele então, dos ‘diferentes’ que tinham estado fora delas até então – isto trouxe indagações que governos não souberam responder, nem conseguiram preparar os docentes para atuar neste novo ‘ambiente’ (ALVES, 2014, p. 1468). Quando se trata da Educação do Campo, sabemos que ela apresenta suas particularidades que devem ser consideradas, pois tanto a Escola do Campo quanto a comunidade envolvida nesse contexto apresentam realidade diferente das demais, por isso o interesse em perceber como a mesma está contemplada neste documento. Para Caldeira e Zaidan (2013). Ao considerar a atividade docente como expressão do saber pedagógico e este como, ao mesmo tempo, fundamento e produto da atividade docente que acontece no contexto escolar, numa instituição social e historicamente construída, a ação docente é compreendida como uma prática social. Prática que se constrói no cotidiano dos sujeitos nela envolvidos e que, portanto, nela se constituem como seres humanos. (p. 19) 158 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A BNCC, enfatiza o currículo único, que é tido como o documento norteador das práticas pedagógicas dos professores, envolvendo as ações e práticas educativas no espaço escolar com os sujeitos das práxis pedagógicas. Com isso, “BNCC e currículos têm papéis complementares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica, uma vez que tais aprendizagens só se materializam mediante o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação”. (BRASIL 2017, p.16). Contrariando o que é defendido para a Educação do Campo, a BNCC reforça que, “ao longo da Educação Básica, as Aprendizagens essenciais definidas na BNCC devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências, gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento”. (BRASIL 2017, p. 08) Nessa perspectiva, o conceito de competência é definido na BNCC como mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, de pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho, o que nos remete a pensar criticamente que a principal preocupação é transformar a escola numa instituição voltada exclusivamente para atender o mercado de trabalho. Por vez, isso é muito preocupante pois no currículo apresentado na BNCC, não é possível perceber o ensino contextualizado do campo, uma vez que a vida cotidiana camponesa apresenta peculiaridades inerentes a sua realidade, tais como: mão de obra familiar, trabalho temporário ou acessório; trabalho assalariado ou arrendatário; sazonalidade; propriedade da terra, reforma agrária; socialização camponesa; meios de produção e de transporte, bem como jornada de trabalho. Para Caldart (2012) “O povo tem direito de ser educado no lugar onde vive; o povo tem direito a uma educação pensada desde seu lugar e com sua participação vinculada a sua cultura e as suas necessidades humanas e sociais”. Concordar ou discordar da necessidade da BNCC na Educação do Campo, nos remete a revelar como são encaradas as relações sociais e como cada um percebe a realidade ao seu redor. São os pontos críticos e contradições que nos levam a buscar uma educação mais humanitária e de qualidade. A BNCC a Reforma do Ensino Médio e a Educação do Campo, é possível uma conciliação? Ideologicamente, a BNCC, assim como a Reforma do Ensino Médio representa o avanço do capital ao setor educacional levando a preocupação quanto a inconsistências democráticas e constitucionais. Ao analisar a última versão da BNCC no que se refere ao Ensino Médio, o que nos chama a atenção é a proposta de trabalho por área de conhecimento, onde Língua Portuguesa e Matemática apresentam-se como obrigatórias nos 159 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS três anos do ensino médio, enquanto as demais disciplinas poderão ser remanejadas e distribuídas de acordo com cada sistema de ensino. Desse modo, facultará a escola o direito de oferecer ou não as demais disciplinas, exceto Língua Portuguesa e Matemática. No entanto, quando nos referimos a Educação do Campo poderá sofrer significativos impactos, pois nesta modalidade de ensino uma das prioridades é trabalhar com a interação entre o estudante que vive no campo e a realidade que ele vivencia em seu dia a dia, de maneira a promover constante troca de conhecimentos entre seu ambiente de vida e trabalho e o escolar. Isso se deve ao fato de que onde há falta de professores nas áreas específicas, a tendência é suprir os recursos humanos com os profissionais que já residem nesses locais ou aqueles que acabaram sem espaço nas escolas urbanas. Na organização proposta pela Lei 13415/2017 (BRASIL 2017), o Novo Ensino Médio deverá ter sua carga horária anual progredida de 800 para 1400 horas a partir de 2017 e ao final de 5 anos (até 2022) não poderá ofertar menos que 1000 horas/ano. Assim, o ensino médio terá no mínimo 3000 horas, das quais 1800 destinadas a BNCC e outras 1200 para os itinerários formativos, momento esse em que o aluno poderá aprofundar em uma das áreas. Ainda de acordo com o artigo 4° da Lei 13415/2017, os itinerários formativos são: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e Suas Tecnologias e Formação Técnica e Profissional. De acordo com toda essa teoria, o aluno poderá escolher em qual área se aprofundar, eis o questionamento? As escolas possuem estruturas físicas, didáticas e recursos humanos suficientes para oferecer tal demanda? Pois ao pensar em todas essas lindas ideologias logo ficamos a imaginar, uma escola acolhedora, com espaços apropriados, salas de aulas adequadas, laboratórios, bibliotecas, quadra de esportes, equipamentos disponíveis para desenvolver atividades pedagógicas básicas. Mas o fato é que na realidade tudo é diferente, se nas escolas urbanas já são escassos muitos desses recursos, nas escolas do campo essa realidade se apresenta mais triste ainda, e mesmo com toda a luta ainda há muito o que se ser feito. De acordo com o Inep (2007): As escolas rurais apresentam características físicas e dispõem de infraestrutura bastante distinta daquelas observadas nas escolas urbanas. Por exemplo, enquanto 75,9% dos estabelecimentos urbanos estão equipados com microcomputadores, apenas 4,2% dos estabelecimentos rurais de ensino contam com este recurso. Equipamentos como biblioteca, laboratório e quadras de esporte não fazem parte da realidade das escolas rurais (INEP, p. 29). A BNCC foi apresentada como a garantia ao direito de aprendizagem de todos os brasileiros, no entanto, podemos questionar alguns pontos a saber: professores perderão a autonomia quanto aos conteúdos e a forma de trabalhálos? Haverá desvalorização da cultura local? E foi justamente indagando esses 160 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS pontos que esbarramos nos entraves da BNCC e a Educação do Campo. Uma vez que a BNCC padroniza toda e qualquer escola, seja urbana, rural, ribeirinha, quilombola, pública ou particular... Os entraves entre a BNCC e a Educação do Campo se tornam bem nítidos quando analisamos os pontos destacados por (CALDART 2012), pois nesta visão, a Educação do Campo está estreitamente ligada à autonomia de projeto, à formação humana, e à educação libertadora, enquanto a BNCC se apresenta como uma política educacional tecnicista, construída com pouca participação dos movimentos sociais. Todo o contexto de discussão da BNCC nos leva a essa e muitas outras reflexões dialéticas e também a uma análise a que tipo de transformações a educação deverá se submeter, o que é viável de fato. O documento em si, é muito rico em competências e habilidades, mas infelizmente os caminhos que nos levam a alcançar, esses ainda ficam a critério do professor. Quanto a referência à Educação do Campo na BNCC, essa se apresenta timidamente: ● Na primeira versão da BNCC (2015) a Educação do Campo aparece somente relacionada a distribuição da população e o ambiente em que vivem, contemplada nos componentes curriculares de Geografia, Física e Ciências. ● Em 2016, numa segunda versão, enfatiza a necessidade de adequações às peculiaridades de vida do campo, tais como: currículo, calendário escolar e condições climáticas. ● Na Terceira versão, é possível perceber referências ao termo “campo” nos objetos de conhecimento do segundo ao nono ano do Ensino Fundamental, nas seguintes unidades temáticas: natureza, ambientes e qualidade de vida; o sujeito e o seu lugar no mundo; conexões e escalas; mundo do trabalho; o lugar em que se vive; a noção de espaço público e privado; circulação de pessoas, produtos e culturas. Os problemas da educação no Brasil são muitos, no entanto, no que se refere à Educação do Campo, a situação é ainda mais complexa, pois uma política de educação do campo requer reconhecer o campo como espaço de vida e de criar oportunidades para permanecer no campo. Portanto, é de suma importância que as políticas públicas considerem os aspectos da diversidade, das particularidades de cada comunidade bem como os anseios dos que vivem no campo. Considerações Partindo do pressuposto que a BNCC e a Educação do Campo são políticas públicas que compartilham a conjuntura econômica e política do atual 161 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS estágio do capitalismo neoliberal, consideramos que ambas estão entrelaçadas no movimento geral da reforma empresarial da educação. Isso, nos leva a perceber que a Educação do Campo, fruto de inúmeras lutas em nosso país, inclusive a luta pela igualdade de direitos à educação e no reconhecimento e respeito à diversidade desses povos e da necessidade de adequação das políticas educacionais, encontra-se ameaçada, pelo avanço da agricultura capitalista e do território do agronegócio. Educar é um ato político, e pensando desta forma acreditamos que a educação por si não é neutra, carrega visões políticas, econômicas e societárias que revela a forma de pensar de uma sociedade, podendo desta maneira fortalecer ou “banir” uma determinada classe. O presente estudo buscou também discutir a relação entre a Educação do Campo e BNCC, já que o principal para essa proposta são os sujeitos, suas relações e práticas sociais, e não apenas a dimensão da espacialidade, no entanto, mesmo a BNCC com sua astuciosa promessa da garantia da igualdade de direitos às aprendizagens básicas, enfatizando as diversidades, com equidade, não encontra base material nem no proposto como Base, nem na perspectiva de condições objetivas para sua concretização, afirmando, antes, com uma ênfase na padronização curricular, limitando ainda mais as possibilidades de diversidade no currículo, base da Educação do Campo. Na verdade, essa padronização minimalista, que tem como principal visão as necessidades do mercado, podem levar a Educação do Campo e outros movimentos educacionais que vinham se constituindo como políticas públicas, a partir da ideia do direito à diversidade, entram em rota de colisão com as reformas educacionais em curso no Brasil. Como síntese da discussão, ao relacionar BNCC e a Educação do Campo, percebemos que as Escolas do Campo, apresentam-se com complexidade, e os desafios que os seus professores e alunos enfrentam exigem posicionamento articulado. A padronização do currículo não parece uma boa alternativa para essa modalidade de ensino, pois a realidade difere muito do mundo urbano e toda uma luta de conquista poderá se perder se não houver uma valorização da cultura e diversidade presentes nesse espaço. 162 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS ALVES, Nilda. Sobre a possibilidade e a necessidade curricular de uma base nacional comum. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n.3 p.1464-1479, dez, 2014. ANTUNES- Rocha, Maria Isabel et all – Territórios Educativos na Educação do Campo: escola, comunidade e movimentos sociais. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Gutenberg 2012. ARROYO, Miguel Gonzales. A Educação básica e o movimento social do campo. 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Unemat – Cáceres, 2006. 164 O CONCEITO DE IDENTIDADE NAS DIRETRIZES CURRICULARES DA EDUCAÇÃO DO CAMPO DO PARANÁ1 Vanessa Bomfim2 Rodrigo dos Santos3 A pesquisa tem como objetivo central, analisar o conceito de Identidade nas Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Estado do Paraná (PARANÁ, 2006). Ela busca identificar e visualizar as especificidades da Educação do Campo, uma vez que esta tem função fundamental no ensino e desenvolvimento do homem do campo. Assim, se faz necessário destacar a importância da Educação do Campo, uma vez que ela visa um direito e o meio em que os sujeitos do campo foram criados, destacando seu contexto e formando o sujeito como um todo, valorizando sua história e a realidade da sociedade atual. Como aponta Caldart (2012) apesar de um conceito em construção, pode ser configurada como uma categoria da classe trabalhadora que se opõe ao agronegócio. A Educação do Campo defendida por essa pesquisa é aquela que agrega os vários sujeitos do campo (assentados, acampados, faxinalenses, atingidos por barragens, ilhéus, posseiros, entre outros) em luta por um direto e um dever do Estado, não desvinculado das discussões de território. Este estudo trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, bibliográfica e documental. Procurou-se um embasamento teórico através de autores que discutissem Educação do Campo e/ou o conceito de identidade, como: Leite (1999), Caldart (2002; 2012), Hall (2006; 2014) e Ribeiro (2012). O trabalho a ser apresentado está dividido em dois momentos, o primeiro, apresenta as principais diferenças entre esses dois tipos de educação e assim visa valorizar a importância de cada uma, uma vez que elas encontram-se presentes no desenvolvimento intelectual do homem do campo. E o segundo, busca-se destacar qual a identidade da Educação do Campo por meio do 1 2 3 A pesquisa foi desenvolvida em 2018 como Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus Laranjeiras do Sul – Pr. Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Contato: vanessa_bomfimbf@hotmail.com Doutor em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Docente do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Membro do Laboratório da Educação do Campo e Indígena (LAECI). Contato: digao_santos9@hotmail.com EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS documento analisado, visando esclarecer como ela está exposta e qual a sua importância para o povo do campo. EDUCAÇÃO RURAL E EDUCAÇÃO DO CAMPO Antes de adentrar as discussões sobre identidade é necessário compreender a diferença entre Educação do Campo e Educação Rural. Conforme Leite (1999), a educação rural conhecida também como “ruralismo pedagógico” surge da necessidade de manter o homem no meio rural, busca conter a migração do campo para a cidade. Desta forma, cria-se uma educação voltada apenas para a “modernização do campo”, uma vez que deve-se manter em seu local de origem e progredir junto com a sociedade capitalista para ter um desenvolvimento local. Nesta perspectiva, o homem/mulher do campo perdem a sua independência, pois o ensino passa a ser adotado de forma que não atinja a sua realidade, a educação em vez de construir o conhecimento passa a treinar o sujeito visando à produtividade, e assim fazendo com que ele se adapte à nova realidade do campo. Esse conceito educacional busca formar sujeitos similares aos que vivem nas cidades (SANTOS, 2014), não dando importância aos costumes e modos de viver, ignorando o exercício que o camponês realiza com a terra. Desse modo, o sistema educacional não inclui temas relacionados ao trabalho rural, uma vez que ele é excluído por diversos motivos, seja por não ser um trabalho fundamentado ou por ter um limite quanto a sua sustentabilidade. Assim, esse tipo de ensino considera o individualismo da classe urbana, e esta por sua vez, contempla uma educação voltada para formar mão de obra barata e sistemática, onde o produtor recebe pouco, sem ter os valores da terra assegurados e busca-se alienar o sujeito do campo. Segundo Caldart (2012) a Educação do Campo surgiu do termo Educação Básica do Campo, passando a ter a atual nomenclatura a partir de discussões realizadas no Seminário Nacional de Educação e Reforma Agrária em novembro de 2002. A Educação do Campo manifestou-se por meio de lutas para alterar a realidade da educação das áreas rurais, visando um conteúdo que abrangesse a realidade do educando. Dessa forma, buscou-se uma atenção especial com a formação deste educando do campo, desde a educação infantil ao ensino superior. Valorizando a sua cultura, a sua forma de produzir, de trabalhar e principalmente a sua presença dentro desta sociedade. Nesse sentido, a mesma autora aponta que esse modelo educacional visa beneficiar as comunidades do campo. Tendo como objetivo o sujeito envolvido nesta sociedade, como também as suas lutas sociais e as adversidades de classes, o termo ‘campo’ traz consigo uma análise sobre o sujeito que vive no meio rural, como as suas lutas por melhorias e da sua sobrevivência por meio do trabalho que realiza no campo. 166 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A Educação do Campo se torna um instrumento para garantir políticas públicas que intervenham para a realidade do sujeito da área rural, uma vez que não se propõe perder a sua autenticidade. Porém, transforma-se em uma luta contra a própria sociedade capitalista, pois esta visa apenas o lucro/capital. O camponês, por sua vez, como sujeito dessa educação, confronta esse ideal capital e de exploração pelo capital. [...] como defender a educação dos camponeses sem confrontar a lógica da agricultura capitalista que prevê sua eliminação social e mesmo física? Como pensar em políticas de educação no campo ao mesmo tempo em que se projeta um campo com cada vez menos gente? E ainda, como admitir como sujeitos propositores de políticas públicas movimentos sociais criminalizados pelo mesmo Estado que deve instituir essas políticas? (CALDART, 2012, p. 122). Todos têm direito à educação, assegurado pela constituição de 1988, mas a realidade é outra. Não há realização plena desse direito, no caso da Educação do Campo, não existe grande interesse do Estado em expandir essa educação apesar da demanda e da necessidade de um sistema público de educação no e do campo. Como conceito se torna uma esfera de pesquisa da condição ou de padrões e políticas educacionais do trabalhador rural. Como prática social, está em desenvolvimento de formação histórica, sendo o camponês o principal sujeito dessa formação. Constituindo-se como esforço social para o ingresso do sujeito do campo ao sistema educacional, uma educação criada por eles mesmos e não apenas em representação a eles. Dessa forma, busca-se aliar a educação com a luta pela terra, defendendo a peculiaridade dessa luta e das práticas criadas por ela, acerca do sistema educacional quanto ao modo de vida do homem do campo. O sujeito, não se vê sozinho nessa ação, procura trabalhar com as diferenças da sociedade. Como prática dos processos públicos dos camponeses, investiga-se a ação que o Estado tem sobre a educação, buscando emancipar tal poder, uma vez que a educação é relacionada ao governo, e tal órgão administrativo não expressa interesse quanto à realidade de cada grupo para adequar o ensino (CALDART, 2012). Conforme Caldart (2012), a Educação do Campo é pautada na realidade, não foi criada como conceito educacional, suas primeiras indagações foram de forma realista, visando o contexto em que o educando está inserido, encarando obstáculos concretos, os quais vão além da teoria. Nesse sentido, a escola é a função central, pois a partir dela e por ela que ocorrem as reflexões pedagógicas sobre a Educação do Campo, uma educação que tenha ação social coerente, compreendendo o meio em que vive o aluno, não apenas as suas práticas educacionais. Essa educação se orienta pelo resultado de um trio, formado pela educação, políticas públicas e campo, uma educação realista para o povo trabalhador do campo. 167 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Assim, a educação rural visa apenas à formação básica do sujeito, sem grandes avanços, desvalorizando a realidade do educando, admitindo o poder total do Estado e da sociedade moderna, alienando os sujeitos envolvidos em seu contexto (RIBEIRO, 2012). Já a Educação do Campo, visa um sujeito em todos os seus aspectos, buscando fazer com que ele cresça dentro de sua realidade, usando-a como incentivo, seja a luta por terra, por uma educação digna de sua vida no campo ou pelos seus direitos como cidadãos. A IDENTIDADE E AS DIRETRIZES CURRICULARES DA EDUCAÇÃO DO CAMPO DO PARANÁ Na atualidade, a sociedade vem sofrendo inúmeras mudanças em todo o seu contexto, seja ele político, social ou econômico. [...] Um tipo diferente de mudança estrutural esta transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nos próprios como sujeitos integrados (HALL, 2006, p. 9). Assim, o sujeito se torna o protagonista dessas mudanças, seja de forma direta ou indireta, reagindo de formas diferentes com o decorrer do tempo, baseando-se em sua cultura. Dessa forma, estabeleceu-se uma ligação entre os fatos atuais e o sujeito em transformação. Neste sentido, Stuart Hall (2006, p. 48), aponta que “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. Por meio disso, cada sujeito e/ou sociedade se transforma e busca resultados mais sensatos e adequados para o seu povo. Desse modo, a Educação do Campo vista como instrumento de melhoria para a sociedade rural, é alterada conforme a necessidade dos sujeitos envolvidos. Porém, ela sempre se encontrou na fronteira da educação, uma vez que o Estado não tem interesses em elaborar uma educação “digna do campo”. Neste trabalho, o documento analisado é as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (PARANÁ, 2006). Elas foram criadas em 2006, e tinham como principal objetivo a construção de novas políticas para a Educação do Campo. Educação essa que também contou com a ajuda dos movimentos sociais do campo, dentre eles o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). “A educação do campo deve estar vinculada a um projeto de desenvolvimento peculiar aos sujeitos que a concernem” (PARANÁ, 2006. p. 27). Na construção das diretrizes, percebe-se o esforço dos movimentos sociais, os quais tiveram a iniciativa de propor uma educação voltada para eles, se distinguindo da educação da sociedade urbana. A partir desse ideal, foram feitas inúmeras reuniões para discutir propostas a cerca da criação deste documento, 168 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS para enfim chegarem a um acordo, onde incorporassem as perspectivas dos movimentos sociais ligados ao campo, apresentando uma educação criada por eles e para eles. Destacado que o estado do Paraná foi um dos pioneiros na construção de um documento, voltado diretamente para o homem do campo, um documento que destaca a Educação do Campo e assim busca superar a educação rural. Essa segunda, desfavorece o sujeito em vários aspectos, considerando o homem do interior como um atrasado, e assim volta-se a partir desse processo à valorização da pessoa do campo, partindo de sua cultura e de sua realidade (JURASCK, 2010). Este documento se divide em cinco partes. Sendo elas: introdução, a qual ressalta as conquistas e o avanço da Educação do Campo; a segunda parte, que expõe a trajetória da Educação do Campo; a terceira parte, que aponta a concepção de Campo e de Educação do Campo, estas tendo relação direta com a base de formação das diretrizes; e a quarta parte, que fala sobre os quatro eixos temáticos e sobre as alternativas metodológicas. Essas alternativas são: Trabalho – Divisão social e territorial, Cultura e Identidade, Interdependência campocidade, questão agrária e desenvolvimento sustentável e Organização política, movimentos sociais e cidadania. A quarta parte, igualmente, comenta sobre as Alternativas Metodológicas, onde tem ênfase a organização dos saberes escolares, como a investigação e interdisciplinaridade como princípios pedagógicos e a Organização do tempo e do espaço escolar. E finalizando a quinta parte, onde são citadas as referências. Assim, empenha-se para ter uma Educação do Campo, que contenha como principais objetivos estender a percepção em volta do homem do campo e ao mesmo tempo reconhecer o campo como um ambiente de debates políticos e públicos, e de construção de conhecimentos, ressaltando que isso se dá por meio do reconhecimento da cultura desse povo. Dessa forma, destaca-se ter uma educação voltada para o campo, sendo utilizada como principal ferramenta para a formação integral do homem do campo. Desta forma, “trata-se de um rural pensado a partir da lógica economicista, e não como um lugar de vida e trabalho, de construção de significados, saberes e culturas” (PARANÁ, 2006, p. 22). Com a intensificação das lutas por uma melhor educação, a qual fosse ligada com a realidade do educando e estivesse presente de forma concreta na vida rural, surgem inúmeros movimentos, assim instituindo diretrizes e leis que amparam essa educação. Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo “Os sujeitos do campo têm direito a uma educação pensada, desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada a sua cultura e as suas necessidades humanas e sociais” (PARANÁ, 2006, p. 09). Assim, a sociedade deve refletir e considerar este sujeito como parte de sua organização, levando em consideração o que ele já traz 169 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS consigo e a partir disso deve se pensar em um ensino voltado e principalmente adequado para esta realidade. A Educação do Campo forma o sujeito em todos os seus aspectos, levando em consideração que deve ser instruído conforme o tempo entre ele ea natureza, e ele e suas necessidades sociais. [...] o povo tem o direito de ser educado no lugar onde vive; [Do, pois] o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais (CALDART, 2002, p. 26). Como a autora afirma, a Educação do Campo promove um ensino construído pelos sujeitos no local onde vive, pensando a sua cultura e suas necessidades. Assim, se relacionando com Hall (2014) que prevê uma construção de identidades, onde o sujeito busca estabelecer ligações entre a sua realidade e a sua representatividade perante a sociedade. Trata-se de uma valorização que deve se dar pelos próprios povos do campo, numa atitude de recriação da história. Em síntese, o campo retrata diversidade sociocultural, que se dá a partir dos povos que nele habitam: assalariados rurais temporários, posseiros, meeiros, arrendatários, acampados, assentados, reassentados atingidos por barragens, pequenos proprietários, veleiros rurais, povos das florestas, etnias indígenas, comunidades negras rurais, quilombos, pescadores, ribeirinhos e outros mais (PARANÁ, 2006, p. 27). Deste modo, compreender como que vive o sujeito do campo comprova e cria a sua identidade que é rica e grandiosa. Partindo do seu meio onde não existe apenas uma cultura ou apenas um modo de se viver, mas vários modos de existir diante da sociedade urbana. Entre estes, há os que estão vinculados a alguma forma de organização popular, outros não. São diferentes gerações, etnias, gêneros, crenças e diferentes modos de trabalhar, de viver, de se organizar, de resolver os problemas, de lutar, de ver o mundo e de resistir no campo (PARANÁ, 2006, p. 27). Tendo essas peculiaridades, a Educação do Campo deve ser submetida à realidade dessas culturas que a cercam, lembrando que se trata de povos que foram submetidos à exploração da cultura capitalista e, assim, não receberam atenção adequada para a sua formação. A cultura, os saberes da experiência, a dinâmica do cotidiano dos povos do campo raramente são tomados como referência para o trabalho pedagógico, bem como para organizar o sistema de ensino, a formação de professores e a produção de materiais didáticos. Essa visão, que tem permeado as políticas educacionais, parte do princípio que o espaço urbano serve de modelo ideal para o desenvolvimento humano. Esta perspectiva contribui para descaracterizar a identidade dos povos do campo, no sentido de se distanciarem do seu universo cultural (PARANÁ, 2006, p. 28). Para o ensino do campo, deve-se buscar a valorização dos conhecimentos de mundo dessas pessoas, criando uma educação crítica, que deve 170 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS problematizar esse conhecimento do sujeito, resultando na reflexão de suas práticas, assim refletindo sobre a cultura inserida na vida do educando e o conhecimento que o educador retrata, para transformar em temas que tenham relevância para a identidade do campo e do sujeito. Da mesma forma que o ensino deve buscar da realidade para a prática, idealizando a identidade do sujeito do campo, deve valorizar também, os “tempos pedagógicos” (PARANÁ, 2006, p. 50), estes sendo as fases do campo, sendo elas “ciclos produtivos, período de pesca e turismo, épocas de chuvas, entre outros” (PARANÁ, 2006, p. 50), cabendo à educação adaptar-se para esses momentos, pois os mesmos já estão presentes na vida desses sujeitos. Em vista disso, a educação deve dar significados para esse aluno, gerando de forma crítica e autônoma, a importância do espaço onde ele vive, faz parte e principalmente que pode transformá-lo em um lugar ainda melhor. Nas Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Estado do Paraná, o conceito de identidade tem sentido pensado a partir das suas singularidades. “A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na sua temporalidade e saberes próprios dos estudantes” (BRASIL, 2002, p. 37). Desta forma, a Educação do Campo tem as suas especificidades, visando o que o que o aluno já traz consigo e não fugindo de sua realidade, assim “a escola do campo deve corresponder à necessidade da formação integral dos povos do campo” (PARANÁ, 2006, p. 16), visando o sujeito em todos os seus aspectos, onde cada um tem as suas subjetividades e os seus limites. A valorização do campo nas propostas educacionais depende de cada um de nós. E os nós do campo são desvelados na pesquisa como fundamento da prática pedagógica. Os nós do campo podem ser desvelados na gestão democrática da escola e da educação pública. Os nós da escola pública podem ser compreendidos mediante a atitude coletiva de indagação sobre a trajetória da institucionalização dos 50 tempos escolares e da escola como lugar de aquisição de conhecimentos (PARANÁ, 2006, p. 50). A Educação do Campo expõe a relevância da cultura do campo, pois é um espaço de reconhecimento da história desse povo, do seu modo de vida, de seus objetivos e, principalmente, um espaço para luta social, buscando melhorias para todos os movimentos sociais do campo. CULTURA E IDENTIDADE Uma escola situada no campo é um espaço de fortalecimento do povo do campo, visando cada homem/mulher como sujeitos sociais com funções fundamentais na construção da identidade do campo. A identidade da Educação do Campo estabelecida pelos seus sujeitos deve estar ligada a sua cultura, esta que se gera por meio de relações associadas à produção material e cultural. 171 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Desta forma, a Educação do Campo deve possibilitar a transformação de conhecimento já estabelecido pelo sujeito. Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo, deve se ter como objetivo principal a valorização da cultura do povo do campo, onde os conteúdos culturais do povo se façam presentes nas práticas pedagógicas, rompendo com o modelo comum de distinção de conteúdos acadêmicos, que tradicionalmente tem rejeitado a cultura camponesa. Dessa forma, a escola do campo, deve expor e valorizar temas inerentes ao educando, fazendo com que ele reconheça e valorize a sua própria cultura e história, sendo que o meio rural é um espaço heterogêneo e repleto de valores, tendo as suas particularidades e, simultaneamente é objeto e resultado de sua cultura. A identidade “é dada pelo conceito de cultura como práxis”, como essencial para que a Educação do Campo possa formar sujeitos capazes de atuar na construção de um modelo de desenvolvimento contra hegemônico, que tenha como “fundamento o interesse por um modelo cujo foco seja o desenvolvimento humano” (PARANÁ, 2006, p. 27). Dessa forma, busca se valorizar os conhecimentos desse sujeito, e ampliar o que já apresenta consigo, visando o desenvolvimento integral do indivíduo e construindo novos conhecimentos, tornando se um processo contínuo ao longo da vida. A escola situada no campo deve propor uma educação por meio de uma metodologia, a qual busca formar sujeitos críticos e autônomos. Sendo assim, a Educação do Campo, deve ampliar os conhecimentos e saberes sociais do homem do campo, pois são os sujeitos com os seus saberes, que constituem a identidade das escolas do campo. Assim, o conteúdo contido nas escolas do campo precisa estar de acordo com as práticas culturais de seus sujeitos, desta forma visando formar indivíduos com os conhecimentos científicos, mas que sejam desenvolvidos em equilíbrio com o modo de vida do campo, sendo adaptada à diversidade do meio rural. Desse modo, a educação do campo deve ter relações diretas com a construção e consolidação da identidade do meio rural, buscando a efetivação em suas práticas pedagógicas, voltadas para a valorização da cultura e da história do local, valorizando os saberes sociais daqueles sujeitos. CONSIDERAÇÕES A luta pela valorização da Educação da população no campo, ainda está em andamento, uma vez que o governo até então não valoriza esta forma de educação e a sociedade urbana de alguma forma ainda rege o ensino da área rural. A Educação do Campo busca valorizar a realidade em que o aluno está inserido. Assim, quando se pensa em identidade, especialmente nas Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Paraná (PARANÁ, 2006), demonstra172 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS se interesse pela formação integral do sujeito e do ambiente escolar em que ele está inserido, demonstrando quais são seus sujeitos e tendo função fundamental no desenvolvimento de todos os envolvidos. Quanto à cultura do homem do campo, ocorre certa ligação das diretrizes com os princípios de Stuart Hall (2006; 2014), visto que o autor busca com que o sujeito modifique e seja modificado pela sua cultura, em uma forma pluralista. Educar é um ato político, pois a Educação do Campo é um movimento que necessita de uma prática além da escola, apesar de ter ela como um de seus pilares. É um posicionamento, e uma luta por um campo da classe trabalhadora. As Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Paraná (PARANÁ, 2006) promovem esse movimento com a valorização e respeito ao outro, enfatizando a necessidade de pensar um campo diverso e marcado por práticas culturais. Os sujeitos do campo sofrem alterações que colaboram para o seu desenvolvimento nas suas múltiplas dimensões, da mesma forma nas diretrizes encontra-se essa visão, mesmo que em suas entrelinhas, se defende a cultura em que o sujeito está inserido, porém, uma cultura que está sendo modificada por eles. Dessa forma, cabe aos sujeitos do campo lutar por uma educação que a respeite e que traga melhorias para toda a população rural, visando o seu crescimento e valorizando o seu meio. 173 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: MEC, 2002. CALDART, Roseli S. Por uma educação do campo: traços de uma identidade em construção. In: KOLLING, Edgar J.; CERIOLI, Paulo R.; CALDART, Roseli S. (orgs). Educação do campo: identidade e políticas públicas. Brasília: Articulação Nacional “Por Uma Educação Do Campo”, 2002. CALDART, Roseli S.. Educação do Campo. In: CALDART, Roseli Salete et al (org). Dicionário da Educação do Campo. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. Rio de Janeiro: Fio Cruz, 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Tomaz Tadeu da Silva (org). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petropólis: Vozes, 2014. JURASCK, Jaqueline Assis. Diretrizes Curriculares da Educação do Campo. In: HIDALGO, Ângela; MELLO, Claudio J; SAPELLI, Marlene L S. (orgs.). Pluralismo Metodológico nas Diretrizes Curriculares do Paraná. Guarapuava: Unicentro, 2010. LEITE, Sérgio Celani. Escola rural: urbanização e políticas educacionais. São Paulo: Cortez, 1999. PARANÁ. Secretaria de Educação. Diretrizes Curriculares da Educação do Campo. Curitiba: Seed, 2006. RIBEIRO, Marlene. Educação Rural. In: CALDART, Roseli Salete et al (org). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro; Brasília: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz. Rio de Janeiro, Fio Cruz, 2012. SANTOS, Rodrigo dos. Reflexões sobre a educação rural no Brasil. MELO, Alessandro; HIDALGO, Angela M.; SAPELLI, Marlene L. S. (orgs). Terra e Educação: contexto e experiências em educação do campo. Guarapuava: UNICENTRO, 2014. 174 EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL: CONTEXTO HISTÓRICO-POLÍTICO1 Maria Aparecida Afonso Oliveira2 Eliano de Souza Martins Freitas3 Pensar sobre a construção do movimento da Educação do Campo no Brasil exige conhecer um tempo histórico de formação social e política do Brasil, bem como a construção histórica de duas décadas da Educação do Campo. Antunes-Rocha (2012) descreve o retrato idealizado para o campo e seus sujeitos ainda no Brasil da educação rural: No início do século XIX, as ideias de progresso e civilização se associaram às cidades, enquanto o campo passou a significar tradição, conservadorismo e rusticidade. [...] até o final do século XIX o ideário desqualificador sustentou-se com a contribuição de viajantes, jornalistas, políticos e romancistas. No início do século XX a justificativa para a desvalorização dos povos do campo recebe apoio da ciência. A produção de médicos, sociólogos e estudiosos em geral cuida de dar legitimidade científica aos fundamentos que sustentam o ideário (ANTUNES-ROCHA, 2012, p. 48). A educação no meio rural foi relegada por muitas décadas no Brasil. Somente em 1961 foi aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 4.024/1961, que atribuía aos Estados e municípios a responsabilidade pela educação primária e média (BRASIL, 1961). Entretanto, tal lei ainda era omissa em relação à Educação no Campo, que ficou sob a responsabilidade dos municípios e cada vez mais submissa aos interesses de mercado. Em seu artigo 105 a LDB assentia que “os poderes públicos instituirão e ampararão os serviços e entidades que mantenham na zona rural escolas capazes de favorecer a adaptação do homem ao meio e o estímulo de vocações profissionais” (BRASIL, 1961, grifo nosso). Ainda na década de 1990, conservava-se um modelo de educação rural para o campo no qual a educação era subordinada às prefeituras e fazendeiros, detentores de grandes latifúndios de terra e, consequentemente, da água. Nesta lógica, a educação rural ainda propagava um projeto de campo submisso e explorado, em 1 2 3 Este trabalho faz parte de um recorte da dissertação de mestrado desta autora, intitulada ‘Sentidos Políticos sobre a água: discursos e práticas pedagógicas em uma escola do campo no assentamento Craúno Jequitinhonha-MG’, orientada pelo professor Dr. Eliano de Souza M. Freitas. Mestre em Educação. Educadora e Comunicadora Popular. Contato: mariahafonso@ yahoo.com.br. Doutor em Geografia. Professor de geografia do COLTEC/UFMG e pesquisador-colaborador da Pós-graduação da FAE/UFMG. Contato: elianofreitas@gmail.com. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS que os sujeitos camponeses ainda eram tachados de muitos estereótipos como “pé rachado, pé de poeira, jeca”. Além dos estereótipos, camponeses eram postos em lugar de subalternidade. Subalternizados, os povos do campo não tinham direito à escolarização uma vez que, para o Estado, não necessitavam aprender para desenvolverem seus trabalhos. Para Leal (2012), o coronelismo representava uma troca de proveitos entre o poder público e a influência de chefes locais, sobretudo, os senhores da terra. Relação que ainda sobrevive em nossa sociedade. Considerando a desqualificação da cultura camponesa e das condições de submissão dos povos do campo aos “senhores da terra”, junto com a negação de direito de uma política pública comprometida à sua realidade, podemos apontar alguns elementos que ao longo dos anos permeia o campo e seus sujeitos. Muitos, sendo agregados, meeiros, acabavam por ser expulsos por seus patrões, após longos anos de servidão, o que em muitos casos os obrigavam a aceitarem subempregos ou trabalhos informais nas cidades. Secas também impediam que as famílias ficassem no campo, sendo atraídas por políticas que favorecia somente o crescimento econômico dos/nos principais centros urbanos. Segundo Leal (2012, p. 46), “é, pois, para o próprio ‘coronel’ que o roceiro apela nos momentos de apertura, comprando fiado em seu armazém para pagar com a colheita, ou pedindo dinheiro, nas mesmas condições, para outras necessidades”. Assim, diante de tantas ausências e desigualdades das políticas pensadas para o campo, em 1996, movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre outros, iniciam o Movimento Por uma Educação do Campo. A mobilização desses movimentos foi essencial e era urgente para promover uma mudança no cenário das políticas educacionais para o campo. Um importante passo foi o estabelecimento da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN), em 1996. A Lei de nº 9394/1996 (nos artigos 3º, 23º, 27º, 28º e 71º) instituía as Diretrizes da educação para a população rural, reconhecendo sua diversidade sociocultural, a igualdade e a diferença, fato que possibilitava a participação da sociedade civil ao pautar diretrizes operacionais específicas para o campo (BRASIL, 1996). Com estas possibilidades na LDBEN, em meados de 1998, movimentos sociais e sindicais começaram a lutar para mudar essa realidade e construir outro modelo de educação em uma perspectiva emancipadora, com um projeto de campo e de sociedade que democratizasse direitos: acesso à reforma agrária, educação, saúde, lazer etc. Ou seja, estes movimentos, juntamente com universidades e sujeitos coletivos do campo, empreenderam uma luta para construir outro modelo de campo e de sociedade aliados a um projeto educativo. A LDBEN 176 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS (1996), em seu artigo 28, reconhece o sentido de uma Educação do Campo, quando estabelece: Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - Conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - Organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - Adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996, p. 18). Era um momento oportuno para que o conjunto de sujeitos iniciassem uma série de debates no qual perceberam a necessidade de reunir um coletivo maior visando reforçar as discussões e proposições. Com este objetivo foi pensado e realizado o I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA) em 1997. E, neste contexto político em que as mobilizações se intensificavam, percebeu-se que seria importante a realização de uma Conferência. Assim, foi realizada a I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo que ocorreu entre os dias 27 e 31 de julho de 1998, em Luziânia/GO, organizada por diversos movimentos: MST, CNBB, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e Universidade de Brasília (UnB). O encontro tinha como objetivo recolocar o rural e a educação a ele vinculada, na agenda política do país. E, principalmente, dar visibilidade às populações do campo requerendo sua inclusão a uma educação de qualidade como direito (CALDART; CERIOLI; FERNANDES, 1998). Os debates e proposições são considerados um marco histórico e conceitual sobre a Educação do Campo, uma vez que deram sentido e revelava sua atuação em um campo de radicalidade pedagógica adentrando em um chão instável das políticas estadistas em que beneficiava um lado em detrimento de outro. No primeiro caderno da Coleção, Por Uma Educação Básica do Campo, percebe-se o tom da I conferência logo no início de sua apresentação, publicado em seu texto base de debates, em 1998: Há uma tendência dominante em nosso país, marcado por exclusões e desigualdades, de considerar a maioria da população que vive no campo, como a parte atrasada e fora de lugar no almejado projeto de modernidade. No modelo de desenvolvimento que vê o Brasil apenas como mais um mercado emergente, predominantemente urbano, camponeses e indígenas são vistos como espécies em extinção. Nesta lógica, não haveria necessidade de políticas públicas específicas para estas pessoas, a não ser do tipo compensatório, à sua própria condição de inferioridade, e/ou diante de pressões sociais. A situação da educação no meio rural hoje retrata bem essa visão (CALDART; CERIOLI; FERNANDES, 1998, p. 05). Nessa perspectiva, torna-se indispensável salientar a importância da sistematização de propostas apresentadas desde as primeiras mobilizações, no 177 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS sentido de demarcar um campo de atuação em prol da reivindicação dos direitos à Educação dos povos do campo, principalmente no que se refere ao protagonismo e envolvimento de todos ‘Por uma Educação do Campo’. As primeiras propostas sistematizadas deram início a uma série de publicações, resultado de intensos debates entre os coletivos dos movimentos e universidades que contribuem significativamente para o avanço da educação, da pesquisa, bem como dos movimentos sociais populares. Atualmente, existem sete publicações da Coleção Por Uma Educação Básica do Campo, que entre 1998 e 2008 apresentou os debates e sistematizações destas lutas as quais revelam concepções político-pedagógicas, processos de luta que discutem projetos de sociedade antagônicos e as contradições do modelo de escola que temos e o que queremos4. Caldart (2008, p.69) enfatiza que seria necessária a compreensão de como se dá a materialidade das lutas em um “campo das contradições de classe efetivamente sangrando”. E que, o conceito de Educação do Campo é parte de um paradigma teórico e político situado na tríade: campo, educação, política pública, os quais têm orientado estudos e lutas sociais da Educação do Campo, um campo real das lutas por terra, trabalho, conhecimento. Uma luta de sujeitos sociais e históricos. Todavia, para se construir outro projeto de campo e de sociedade aliado a um projeto de educação era preciso pensá-lo em conjunto com a classe trabalhadora. Antunes-Rocha (2012) nos esclarece: A escola do campo demandada pelos movimentos sociais vai além da escola das primeiras letras, da escola da palavra, da escola dos livros didáticos. É um projeto de escola que se articula com os projetos sociais e econômicos do campo, que cria uma conexão direta entre formação e produção, entre educação e compromisso político. Uma escola que, em seus processos de ensino e de aprendizagem, considera o universo cultural e as formas próprias de aprendizagem dos povos do campo, que reconhece e legitima esses saberes construídos a partir de suas experiências de vida. Uma escola que se transforma em ferramenta de luta para a conquista de seus direitos como cidadãos (ANTUNES-ROCHA, 2012, p. 77). Diante de tais afirmações e demandado pelas mobilizações e lutas dos movimentos sociais e sindicais, universidades e demais sujeitos coletivos, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou em 2002 as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo com o objetivo diminuir as diferenças educacionais ainda existentes entre campo e cidade e que evidenciava as características de uma educação contextualizada para o meio rural (BRASIL, 2002). 4 Além dessa coleção, há inúmeras e diversas publicações que tratam da concepção e materialidade da Educação do Campo, suas conquistas, contradições, desafios e potencialidades na luta por políticas públicas tais como: teses, relatórios, dissertações, manifestos, dentre outras. Estes conhecimentos e vivências sistematizadas têm sido de grande relevância para pesquisadores, educadores e militantes, sendo utilizados como fonte de referência conceitual, política e pedagógica para estes sujeitos. 178 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Visando à ampliação e institucionalização da participação dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas para o campo foi criado, no âmbito do MEC, em 2003, o Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPTEC)5 visando atuar juntamente com o governo para a institucionalização, disseminação e enraizamento das políticas públicas para a Educação do Campo. Outra importante conquista efetivou-se em 2004, quando foi criada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), que posteriormente se transformou em Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). Neste mesmo ano também foi elaborado e aprovado o Manual de Operações do Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (PRONERA) pela Portaria 282 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Embora os apontamentos contidos na LDBEN pudessem promover mudanças no campo educacional, era preciso lutar para que tais apontamentos se materializassem na prática. Diante de desafios e tensões presentes em uma sociedade capitalista, torna-se preciso lutar com consciência de qual lado ocupar em meio a uma sociedade dominada por políticas estatais neoliberais, pois o movimento da Educação do Campo exige mudança de paradigmas, jamais poderá ser um movimento neutro, mas sim, ético e de esperança transformadora. E, considerando que o debate das políticas públicas na história da Educação do Campo perpassa sempre pela discussão dos direitos, esse tema ganha mais centralidade a partir da II Conferência Nacional de Educação Básica do Campo, realizada em 2004, quando as palavras de ordem “Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado” é consolidada. Para Molina (2012), no debate das políticas públicas torna-se indispensável utilizar outros quatro conceitos fundamentais, tais como: direitos, Estado, movimentos sociais e democracia. Desse modo, verifica-se que o papel da escola, e, sobretudo, a escola do campo, não deve ser a mera tarefa de transmitir conteúdos de livros didáticos, mas sim envolver todos os sujeitos presentes em seu entorno, demonstrando suas potencialidades, valorizando o trabalho dos sujeitos coletivos, em uma perspectiva política e emancipadora. Neste sentido, dialogando com a visão dos movimentos sociais, Molina (2006, p. 55) afirma que “a produção pedagógica dos movimentos aponta para um diálogo entre teoria pedagógica e prática em que o projeto educativo não pode estar dissociado de um projeto político social”. No panorama de conquistas ligadas à Educação do Campo, em 2006, foi instituído o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO), sendo um importante passo para que as 5 Colegiado criado pela Portaria MEC n° 1.374/03, para subsidiar a formulação de políticas públicas para a Educação do Campo. 179 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS instituições de ensino pudessem promover formação específica às populações do campo. No ano de 2008 foram publicadas as Diretrizes complementares para a Educação do Campo, por meio da Resolução CNE/CEB que visavam propor normas, princípios e elementos práticos, diante da pluralidade e características intrínsecas ao campo. Já em 2009, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEB)6, aprovou custo aluno diferenciado para os alunos do campo, por reconhecer a especificidade da Educação do Campo enquanto modalidade de ensino. No que concerne às contradições das políticas públicas elaboradas no âmbito da Educação do Campo, Caldart (2009) reflete que: Podemos dizer sobre a Educação do Campo, parafraseando Emir Sader (prefácio a Mészáros, 2005, p. 15), que sua natureza e seu destino estão profundamente ligados ao destino do trabalho no campo e, consequentemente, ao destino das lutas sociais dos trabalhadores e da solução dos embates de projetos que constituem a dinâmica atual do campo brasileiro, da sociedade brasileira, do mundo sob a égide do capitalismo em que vivemos (CALDART, 2009, p. 36-37). Em 2010, houve a aprovação do Decreto nº 7.352 7 para regulamentar a política de Educação do Campo e o PRONERA, cujo executor era o Ministério de Desenvolvimento Agrário, implementada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Este programa foi de fundamental importância no âmbito da Educação do Campo, pois se tratou de uma política de Estado, a fim de garantir direitos fundamentais à educação dos povos do campo, ofertando não somente educação básica, mas também de nível superior, devendo ser desenvolvida, por meio de colaboração entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (BRASIL, 2010). Em seu primeiro artigo, destaca-se a seguinte proposição: A política de educação do campo destina-se à ampliação e qualificação da oferta de educação básica e superior às populações do campo, e será desenvolvida pela União em regime de colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de acordo com as diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação e o disposto neste Decreto (BRASIL, 2010). Levando em conta que a escola precisa estar onde os sujeitos estão ela tem que ser construída e organizada a partir das vivências das comunidades camponesas para não acontecer de forma desvinculada da realidade desses sujeitos. É nesse sentido que o texto preparatório da I Conferência Nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, assegurava conceber uma educação básica do campo a qual leve em conta o interesse e o desenvolvimento sociocultural e econômico dos povos que habitam e trabalham no meio rural, e que atenda suas 6 7 Vide FUNDEB, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7352.htm. Acesso em 28 fevereiro, 2018. 180 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS diferenças históricas, para que vivam com dignidade. Também “não basta ter escolas no campo; queremos ajudar a construir escolas do campo, ou seja, escolas com um projeto político-pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e à cultura do povo trabalhador do campo” (CALDART; CERIOLI; FERNANDES, 2005, p. 27). Significa constituir um projeto de Educação do Campo com uma atuação que contemple as dimensões: formativa, política, pedagógica, epistemológica, propositiva, gestora e metodológica, conforme analisa Silva (2018). Ao avaliar o projeto de educação para as escolas das comunidades rurais, Menezes Neto (2009) pontua que a Educação do Campo se compromete com a superação do modelo capitalista no campo e na sociedade, ao ponderar que: Devem-se buscar propostas condizentes com uma educação camponesa, tendo por base que essa não seja um projeto de integração capitalista, ou seja, que não forme força de trabalho nem crie conhecimento apenas para a reprodução do capital, mas educação centrada no interesse daqueles que vivem de seu trabalho (MENEZES NETO, 2009, p. 31). Sob esse aspecto, entende-se que a educação deve ser pautada não na lógica do mercado, mas sim na lógica dos direitos e interesse dos povos do campo, construídos democraticamente em conjunto com o povo. Direito a terra, vida, cultura, identidade, memória e educação contextualizada em seus territórios. Sobretudo, é preciso criar possibilidades políticas para que os conteúdos curriculares compreendam o contexto social e suas especificidades, que submerja a identidade cultural camponesa, o campo e seus conflitos territoriais e sociais. Ademais, é preciso legitimar uma educação emancipadora, que eduque para a vida, para que todos (educandos/as, educadores, gestores e comunidades) entendam as relações sociais e políticas, compreendendo o sentido que a escola e a classe trabalhadora representam para uma formação humana que construa democracia e cidadania, que forme cidadãos politicamente conscientes. Ainda em 2010, foi criado o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC) objetivando analisar e propor políticas públicas em Educação do Campo e, praticar o exercício da análise crítica constante e independente acerca de políticas públicas de Educação do Campo, bem como a correspondente ação política com vistas à implantação, à consolidação e, mesmo, à elaboração de proposições de políticas públicas nesta modalidade (FONEC, 2012, p. 16). Reunidos no Seminário Nacional em Brasília, entre os dias 15 a 17 de agosto 2012, o FONEC tratou especificamente do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) lançado em março de 2012 pelo governo da presidenta Dilma Rousseff, apresentado como um conjunto de ações articuladas de uma política de Educação do Campo, nos termos do decreto de nº. 7352, de 4 de novembro de 2010. O coletivo de representações do FONEC presentes no 181 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS seminário avaliou o Programa como modelo da educação rural, na lógica do agronegócio. Para o coletivo do Fórum: O formato de programa, a lógica de sua formulação, suas ausências e ênfases nos permitem situar o Pronacampo muito mais próximo a uma política de “educação rural”, no que esse nome encarna historicamente na forma de pensar a política educacional para os trabalhadores do campo em nosso país, do que das ações e dos sujeitos que historicamente constituíram a prática social identificada como Educação do Campo (FONEC, 2012, p. 01). Assim, torna-se evidente a necessidade de se pensar na descolonização do currículo na Educação do Campo para não correr o risco de esta educação continuar a atender ao modelo hegemônico do agronegócio, do latifúndio, mas sim à classe trabalhadora do campo, considerando que a Educação do Campo visa justamente à superação do modo de produção que subordina trabalhadores à lógica do capital mercadológico e opressor. É preciso atender o protagonismo e o direito a uma educação que possibilite a escolha destes sujeitos de viverem em seu lugar de vida com dignidade. Um projeto de escola abarcando concepções: Do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos e entre lógicas de agricultura, que têm implicações no projeto de país e de sociedade nas concepções de política pública, de educação e de formação humana (CALDART, 2012, p. 257). Entretanto, diante das concepções políticas do movimento de luta e da efetividade da Educação do Campo, após mais de duas décadas ainda falta muito a materializar-se na práxis do fazer político e pedagógico, há que se promover a necessária ruptura com o modelo de educação rural que ainda resiste para promover a construção de uma educação que respeite a diversidade sociocultural dos povos do campo, que atenda aos seus direitos e respeite seus territórios onde vivem e lutam. Mészáros (2005, p. 27) aponta que, “é necessário romper a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”. Ao avaliar as políticas em nível municipal, presencia-se um alarmante quadro com o grande número de escolas sendo fechadas no campo nas últimas décadas. Observando o esvaziamento e diminuição de alunos no campo, é preciso ficar atentos aos governos que fecham inúmeras escolas alegando a necessidade de economia na gestão municipal. Estima-se que entre 2000 e 2015, foram fechadas 110.873 escolas em todo o Brasil, sendo 35.432 urbanas e 75.441 rurais. Somente no estado do Pará foram fechadas 944 urbanas e 4.411 rurais. Mas, esses fechamentos se alastram para diversos estados do país, tais como Minas Gerais, Bahia, Piauí, Ceará, Espírito Santo, São Paulo entre outros 8·. O projeto intitulado Expedição Catástrofe: por uma arqueologia da ignorância revelou, em 2017, que 18.609 8 Dados disponíveis em: https://mst.org.br/2015/06/24/mais-de-4-mil-escolas-do-campo-fechamsuas-portas-em-2014/ Acesso em 20 de março de 2020. 182 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS escolas do campo foram fechadas nos estados de Goiás (583), Bahia (9.495) e Minas Gerais (8.531)9. Para Erivan Hilário, do setor de Educação do MST, o fechamento destas escolas representa um atentado à educação, um direito historicamente conquistado. Segundo ele: “O fechamento das escolas no campo não pode ser entendido somente pelo viés da educação. O que está em jogo é a opção do governo por um modelo de desenvolvimento para o campo, que é o agronegócio”10. As prefeituras alegam, além do fator econômico, que o número de alunos matriculados não é o suficiente para manter novas unidades educacionais. Percebe-se que tais justificativas implicam um preconceito histórico com as populações e a educação dos povos do campo. Em nome da economia nos gastos públicos, promovem o esvaziamento do campo bem como o apagamento da identidade dos diversos sujeitos campesinos. Além desses fechamentos, que tanto prejudicam as populações do campo, é importante discutir, mais profundamente, as condições de funcionamento dessas escolas que, via de regra, possuem grandes deficiências. O acesso a água em quantidade e qualidade nas escolas do campo é um tema que merece destaque. Em inúmeras escolas localizadas no campo, a falta de água, e ainda mais, a falta de água adequada para consumo, interfere diretamente na qualidade do processo de ensino-aprendizagem. Muitas não conseguem cumprir o calendário escolar. Em alguns casos, contribui diretamente para o fechamento das escolas. O relatório Direito de Aprender, resultado de uma pesquisa realizada em 2009 pelo UNICEF, assinala que das 37,6 mil escolas da zona rural da região semiárida, 28,3 mil não tinham acesso ao abastecimento de água potável pela rede pública (UNICEF, 2009). Diante de tais apontamentos, urge assegurar o acesso à água e a segurança hídrica nas escolas do campo. Também de acordo com o Censo Escolar de 2016 “96,3% das escolas dispõem de abastecimento de água, mas a rede pública de abastecimento chega a apenas 72% das escolas”. Na zona rural, 11,6% não têm abastecimento de água e 12,7% não têm esgoto sanitário. Já na zona urbana, apenas 0,2% não têm abastecimento de água e 0,2% não têm esgoto sanitário (INEP, 2016, p. 06). Percebe-se, então, que é a partir deste contexto de descaso por parte do poder público que surgem diversas iniciativas educacionais através das próprias populações, organizações e movimentos ligados ao campo, como meio de reação à exclusão e com o intuito de exigir políticas públicas que garantam o acesso, permanência e uma educação diferenciada, o que tem possibilitado construir uma identidade própria nas escolas do campo. 9 10 Dados disponíveis em: http://www.obeltrano.com.br/portfolio/escolas-rurais-interrompidas/ Acesso em 20 de março de 2020. Retirado do site do MST: http://www.mst.org.br/2015/06/24/mais-de-4-mil-escolas-do-campofecham-suas-portas-em-2014.html, Acesso em 12 de fevereiro, 2019, às 18h10min. 183 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A continuidade do fechamento de escolas no campo impulsionou o MST a realizar em 2014, uma ocupação no MEC, pelas crianças Sem Terrinha. Durante a realização do VI Congresso Nacional do MST, em Brasília, cerca de 750 Sem Terrinha e educadores Sem Terra e de áreas rurais ocuparam a sede do Ministério para denunciarem o ataque à educação dos sujeitos camponeses (MST, 2014). De acordo com o Manifesto entregue pelas crianças e adolescentes ao MEC, anunciavam ainda que, “Somos dos acampamentos e assentamentos e queremos que lá no campo tenha escola. Precisamos de uma educação melhor. Queremos que nossos professores sejam do assentamento para que não faltem muito”11. Uma importante conquista ainda no referido ano foi a instituição da Lei de nº 12.960/2014, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff. Esta lei alterou a Lei nº 9.394/1996, fazendo constar a exigência de manifestação de órgão normativo do sistema de ensino para o fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas. De acordo com a lei, em seu artigo 28 qualquer fechamento dessas escolas deveria ser “precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar” (BRASIL, 2014)12. Entretanto, no mesmo ano de sua aprovação, foram fechadas 4.084 escolas do campo no Brasil, sendo 290 somente no Estado de Minas Gerais. Assim, para que se concretize a legitimação dos direitos dos povos campesinos, faz-se importante mobilizar comunidades, movimentos sociais, e sindicatos para lutarem e impedirem que mais escolas sejam fechadas, por meio de resistências e ações contrárias à lógica de banalização da educação. Todas estas práticas podem ser importantes para que as comunidades escolares do campo tenham conhecimento e se mobilizem para evitar o fechamento de mais escolas e lutem para reabrir as que foram fechadas. Cada escola do campo fechada representa uma derrota para a política da Educação do Campo. Apesar da redução dos fechamentos de escolas do campo, entre os anos de 2014 e 2017, a luta por escolas do campo abertas e de qualidade ainda permanece como um grande desafio a ser enfrentado, por meio da articulação dos movimentos sociais que atuam junto a esses estados e municípios, no sentido de reafirmar a importância e manutenção dessas escolas no campo. Assim, importa refletirmos sobre a materialização dos direitos sociais, levando em conta o conceito apontado por Marilena Chauí e citado por Molina (2012, p. 586), “um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e 11 Informação disponível em: http://www.mst.org.br/2014/02/12/criancas-do-mst-ocupamministerio-da-educacao-por-escolas-do-campo.html. Acesso em outubro, 2018. 12 Informação disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal= 1&pagina=1&data=28/03/2014. Acesso em fevereiro, 2018. 184 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS específico, mas geral e universal, válido, para todos os indivíduos, grupos e classes sociais”. Na história de luta da Educação do Campo, outro marco importante foi a realização do II ENERA em 2015, no qual foi lançado um Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, em que evidenciava um momento em que o grande desafio colocado era o de construir unidade em torno de uma educação pública e popular, e de um projeto de país para superar as desigualdades, combatendo os ditames do agronegócio e o Paradigma do Capitalismo Agrário que se aprofunda no país a cada ano (Manifesto de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, 2015). Neste sentido, vale reforçar o movimento de luta e resistência da Educação do Campo como um instrumento para a compreensão da realidade atual do campo, possibilitando aos seus sujeitos exercitarem uma análise crítica e até mesmo a explicitar os diversos conflitos presentes em seus territórios. Só assim será possível provocar a necessária ruptura ao modelo de políticas hegemônicas e excludentes para o campo, visando à promoção de uma formação humana, soberania e justiça social à suas populações. Educação do Campo: por Escola, Terra e Dignidade A construção da Educação do Campo é permeada por desafios, especialmente no cenário das políticas públicas. No âmbito das políticas voltadas para a Educação do Campo é necessário refletir, por exemplo, sobre as alterações ocorridas com o Programa Nacional do Livro Didático para o Campo (PNLD – Campo), que foi instituído em 2011, atendendo “a necessidade de ampliar as condições de atuação dos professores das escolas nas comunidades situadas em áreas rurais, em consonância com as políticas nacionais voltadas para a educação no campo; [e] a importância de consolidar um programa nacional de distribuição de livro didático adequado às classes multisseriadas e às turmas seriadas do campo, para melhor atendimento às necessidades educacionais de públicos específicos” (BRASIL, 2011). Entretanto, o programa foi extinto no final do ano de 2017. Diante de tais apontamentos, pode-se dizer que estamos diante de tempos de profundas destituições de direitos constituídos com muitas lutas e por muitas mãos e mentes. No que diz respeito à construção de materiais didáticos, específicos para o campo, faz-se necessário mobilizarmos para que a iniciativa permaneça. As experiências vivenciadas alertam para a necessidade de contribuirmos para a melhoria dos materiais didáticos destinados ao campo, uma vez que ainda percebemos educadores que têm dificuldade de exercitar suas práticas pedagógicas para além dos livros didáticos. 185 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS No que se refere à formação dos sujeitos do campo, tem havido avanços relevantes como os cursos de licenciatura em Educação do Campo ofertados por diversas Universidades, dentre as quais, localizadas em Minas Gerais: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, dentre outras instituições no Brasil. A instituição precursora na oferta do primeiro curso de licenciatura em Educação do Campo foi a UFMG. Em 2004, a universidade recebeu do MST, a demanda de criação de um curso de Pedagogia, a ser realizado em parceria com o PRONERA. Posteriormente, criou-se uma comissão composta por professores da Universidade e representantes do MST. Os debates feitos por tal comissão provocaram o entendimento de que seria importante a ampliação da oferta de educação básica no campo. Dessa forma, surgiu a proposta de construir um curso que habilitasse o cursista para a docência nas séries finais do ensino fundamental e para o ensino médio. Mesmo não tendo se concretizado a ideia do curso de Pedagogia, o curso ganhou o nome Pedagogia da Terra, fazendo referência à materialidade histórica a qual sustentava a base de formação de seus sujeitos, provenientes de diversos coletivos de luta pela terra. Assim o termo pedagogas e pedagogos da terra demarcava a forte ligação de luta e resistência pela terra e na terra, daqueles sujeitos camponeses ingressantes no curso (ANTUNESROCHA, 2011, p. 39-44). Atualmente, já são 32 universidades que ofertam o curso no Brasil. A respeito desta formação específica, Antunes-Rocha (2009, p. 41) destaca que “as necessidades presentes na escola do campo exigem um profissional com uma formação mais ampliada, mais totalizante, já que ele tem de dar conta de uma série de dimensões educativas presentes nessa realidade”. Um ponto importante no curso é a valorização do saber prévio dos estudantes, pois com esse trabalho é possível garantir a participação de cada um em seu processo de aprendizagem, tendo uma referência para interligar e comparar saberes prévios com os produzidos após a experiência de aprendizagem. Para tanto, as Diretrizes Operacionais ressaltam que os cursos de formação para os educadores do campo deverão incluir conteúdos problematizadores que contribuam para que esses possam atuar nessa realidade específica. Todavia, tratando de informações possibilitadas pela representante do MEC, em 201713, foi possível reafirmar certos desafios como a própria 13 Entrevista concedida às mestrandas da Linha Educação do Campo/PROMESTRE/UFMG, durante a realização do Seminário de Formação Continuada de Professores das Licenciaturas em Educação do Campo no Brasil, em 03 de agosto de 2017, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, com o objetivo de atualização do histórico da Educação do Campo. 186 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS infraestrutura das universidades que precisam receber os alunos durante o tempo universidade e não possuem alojamento para tal. Também os docentes dos cursos que se deslocam para comunidades de origem dos estudantes durante o tempo comunidade. Tudo isso demanda recurso, por isso, se houver redução, consequentemente, pode haver redução da oferta de vagas. Assim, percebe-se um grande empenho dessas universidades para que esses cursos tenham continuidade. Considerando a relevância destes cursos de licenciatura é um grande desafio que precisa de mobilização popular no sentido de pautar a continuidade de financiamento. A representante do MEC ainda destaca que “ainda temos cento e quarenta e cinco mil professores que só tem o ensino médio no campo, de acordo com o Censo Escolar”. Desta maneira, para construirmos a identidade do educador do campo, torna-se essencial destacar o compromisso político que as universidades devem adotar no âmbito da formação destes educadores, preparando-os para atuarem em diversos seguimentos: escola e organizações do campo, envolvendo as especificidades de seus contextos. Assim, a política de Educação do Campo deve oportunizar uma escolarização que além de contextualizada, aconteça em todos os níveis e modalidades de ensino. Assim, na perspectiva de assegurar o acesso a direitos e o exercício da cidadania, importante destacar a instituição das Diretrizes para a Educação Básica nas Escolas do Campo do estado de em Minas Gerais, no ano de 2015, por meio da Resolução da Secretaria Estadual de Educação (SEE), de nº 2.820, do mês de dezembro. A guisa de conclusões: Projetos em disputa no campo e os possíveis impactos para a Educação do Campo Ao fazermos um balanço histórico e político da Educação do Campo, observamos a existência de projetos antagônicos em disputa no campo brasileiro. De um lado, há os que defendem a agricultura camponesa e de outro lado, os defensores do agronegócio. Nesse processo, as políticas educacionais para “esse setor” estão revestidas dessas disputas. No âmbito da Educação do Campo, faz-se importante esta análise no sentido de entender as mudanças ocorridas entre os modelos que estão em disputa no campo, uma vez que a defesa de suas pautas inclui o fortalecimento da agroecologia14 e da agricultura familiar camponesa. E, quanto mais houver o fortalecimento do agronegócio, entendido como a tradução do conceito de agribusiness (agricultura de negócio), mais se enfraquece o modelo da “agri-cultura” 14 A agroecologia integra um conjunto diverso e complexo de conhecimentos, com alto valor científico e cultural. Sua chave de análise da realidade está nas relações e na abordagem dos agroecossistemas como totalidade, explorando vínculos entre natureza, produção, política e cultura (CALDART, 2016, p. 7). 187 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS familiar camponesa, o que impacta diretamente na escola do campo e no projeto educativo concebido pela Educação do Campo. Com o avanço do agronegócio no campo, mais terras e água serão concentradas, e, consequentemente, mais escolas serão fechadas gerando o esvaziamento do campo. Importante reafirmar que democracia e agroecologia são indissociáveis. E, falar de agroecologia não é somente falar de produzir sem agrotóxico, é um ato político. Não é possível construir um Projeto Político-Pedagógico com referenciais políticos e metodológicos onde não esteja incluído o trabalho com a agroecologia. Outra reflexão importante é de que, nos últimos anos, tem-se acentuado iniciativas que visam inverter a lógica proposta e construída pelos movimentos populares na Educação do Campo. Atualmente, mais fortemente, a própria política da Educação do Campo também está em disputa. Por meio da investida de empresas que financiam projetos de educação empreendedora e sustentável, às vezes com a roupagem de Educação Ambiental ou Educação para o Desenvolvimento Sustentável, nomeando-se e apropriando de nomes como “escola do campo” ou “escola da terra”, chegam às populações do campo e às escolas ofertando modelos de projetos que engendram o empreendedorismo e o agronegócio, na lógica de formar para atender ao capital. Essas instituições e empresas procuram destacar seus projetos como sendo modelos de “Escolas da Terra”, mas, apresentam um modelo educacional acoplado aos pressupostos do agronegócio que vai de encontro ao modelo político e pedagógico idealizado pela Educação do Campo. Pode-se considerar que, propostas educativas na perspectiva do agronegócio, podem contribuir, sobretudo, para difundir ideologias que fortaleçam o objetivo de formar uma força de trabalho para o capital, e não a de fazer com que o camponês compreenda sua própria condição na sociedade capitalista, o que pode favorecer o avanço do agronegócio. De acordo com Camacho (2017): O campo está em disputa por modelos distintos de desenvolvimento territorial e de educação. A Educação do Campo nasceu da luta dos movimentos camponeses, mas foi apropriada pelo Estado e pelas grandes empresas e seus institutos de responsabilidade social. Muitas das práticas intituladas dessa forma são reacionárias e rompem com o caráter revolucionário, essência da Educação do Campo, formando para subalternidade ao capital ao invés de para a resistência política, cultural e econômica (CAMACHO, 2017, p. 651). No estado do Paraná, por exemplo, existe um Programa educacional, intitulado Agrinho, que chega às inúmeras escolas do campo. “Anualmente, o programa envolve a participação de mais de 1,5 milhão de crianças e aproximadamente 80 mil professores da educação infantil, do ensino fundamental e da 188 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS educação especial, estando presente em todos os municípios do Estado do Paraná” (AGRINHO, 2018)15. Em palestra realizada no Encontro Nacional dos 20 anos da Educação do Campo e do PRONERA16, promovido pelo FONEC, realizado em Brasília, junho de 2018, uma professora integrante da Articulação Paranaense por uma Educação do Campo (APEC), no estado do Paraná, ressaltou que a linguagem utilizada pelos formadores do Programa, inclusive nos materiais didáticos construídos, pode confundir educadores, gestores e comunidade escolar, quando estes não têm acesso a outros meios de formação, sobretudo, das políticas endossadas pela Educação do Campo. Vale reforçar que uma das propostas do programa é ensinar aos alunos produzirem alimentos saudáveis, porém, utilizando defensivos químicos. Identifica-se em um dos boletins feitos pela APEC, em 2015, a seguinte análise e provocação “O programa Agrinho é travestido de um programa de educação ambiental e ensina as crianças do campo a usarem os pesticidas. [...] Na verdade, elas são educadas para consumirem e aplicar os agrotóxicos na agricultura” (BOLETIM APEC, 2015, p. 8). Diante das contradições do Programa, a professora informou que há uma mobilização da Articulação no sentido de acabar com o programa no estado, pois não condiz com as Diretrizes e Princípios da Educação do Campo, que vem sendo construída há 20 anos, no Brasil. Em 2014, o Ministério Público do estado notificou o SENAR, emitindo um parecer contrário à realização do programa nas escolas públicas e fez uma recomendação ao Conselho Estadual de Educação do Paraná no sentido de impedir que escolas participassem do programa. Tal recomendação alertava sobre a necessidade de a educação manter o compromisso com a qualidade do ambiente e a vida no planeta 17. Neste sentido, vale pautar o que agudiza Tiradentes (2012): Particularmente na esfera do agronegócio, observam-se muitos programas fundamentados na concepção ambiental e de produção congruente com os interesses do capital. [...] A descaracterização dos movimentos sociais, a ideologia pactualista que desqualifica a ação das lutas no campo e na cidade, são traços deste projeto que vem penetrando no território da formação humana, representando antagonismo à sua perspectiva contra-hegemônica (TIRADENTES, 2012, p. 250). Assim, algumas empresas, idealizando “parcerias” ocupam espaço nas comunidades e escolas no campo, formando discentes e docentes, trabalhadores do campo, visando o fortalecimento de suas atividades e, consequentemente, valorização do capital e disseminação de estratégias hegemônicas na perspectiva 15 16 17 Disponível no link: http://www.agrinho.com.br/institucional. Acesso em 22 de junho, 2018. Registros feitos pela pesquisadora durante o evento. Disponível no link: https://www.camaracascavel.pr.gov.br/noticias/item/5590-paulo-portoquestiona-distribuicao-do-material-agrinho-em-escolas.html. Acesso em 22 de junho 2018. 189 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS da classe dominante. Modelo este, incompatível com uma educação emancipatória e problematizadora de seus contextos. Trata-se de projetos e programas educacionais que podem servir, apenas, para enaltecer a imagem do agronegócio e, ao mesmo tempo, pode subordinar a escola e os trabalhadores docentes aos interesses do agronegócio, legitimando os interesses da reprodução capitalista (LAMOSA, 2015). Ao promoverem parcerias com gestores públicos, como as secretarias de educação, representantes empresariais e do agronegócio recebem permissão para adentrarem às escolas com um ensino, que não raro, está desprovido de construção coletiva, podendo ser conduzido por interesses particulares e com ausência de interposições críticas, retirando desta maneira, a autonomia e até mesmo a dimensão da escola como um direito público e gratuito. Neste contexto, vale refletirmos no campo das lutas por direitos, democracia e igualdade, sobre como animar estratégias de ação no sentido de promover um campo protagonista, quando muitas forças fazem o trabalho de manter seu lugar de subalternidade e atraso, dando lugar ao avanço do capital, inclusive por meio do agronegócio (LAMOSA, 2015; FREITAS, 2016). Para tanto, é relevante compreender os mecanismos e meios de financiamentos dos grandes grupos empresariais que ocupam as escolas, estabelecendo suas ideologias sem ao menos conhecer o contexto social de seus educandos e destituídas de uma perspectiva transformadora. Nesta lógica, evidencia-se que não faz sentido a escola seguir dois caminhos distintos, ou está a serviço da vida e dos direitos ou está a serviço do capital e de uma educação mercadológica. Neste sentido, ao considerarmos que a “Educação do Campo é direito nosso e dever do Estado”, há que se intensificar as lutas por mudanças na busca de construir outro projeto de campo, sociedade e escola que promova a autonomia e os direitos da classe trabalhadora. Reafirmando as reflexões de Oliveira e Santos (2018): É preciso afirmar a “práxis de resistência”, considerando-se que a Educação do Campo deve incidir de forma indissociável na luta pela terra, pela água e pelo território, na luta pela reforma agrária. Assim, a democratização da terra deve acontecer em conjunto com a democratização do acesso ao conhecimento e demais direitos (OLIVEIRA; SANTOS, 2018, p. 119, 129). Considerando ainda que, para Oliveira e Santos (2018, p. 129), “a luta é no campo das políticas públicas, porque esta é a única maneira de universalizar o acesso de todos os camponeses à Educação do/no Campo”, é relevante reafirmar o importante papel dos movimentos sociais populares e sindicais, de educadores historicamente comprometidos com a luta pela Educação do Campo e a Reforma Agrária, na construção de um projeto que implique cada vez mais, no contraponto a uma sociedade capitalista e na concretização de uma democracia participativa e efetivamente inclusiva. Por tudo isso, a luta pela formação inicial e continuada de 190 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS educadores do campo deve permanecer para que se fortaleça práticas educativas construídas a partir dos princípios e diretrizes endossados pela Educação do Campo. Ademais, é relevante considerar que estes sujeitos formados possam permanecer no campo, contribuindo para o fortalecimento da organização social e comunitária, ou seja, contribuir para além do espaço educacional. 191 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências ANTUNES-ROCHA. Maria Isabel. Da cor da terra: representações sociais de professores sobre os alunos no contexto da luta pela terra. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2012. ANTUNES-ROCHA. Maria Isabel. Licenciatura em Educação do Campo: histórico e projeto político-pedagógico. In: MARTINS, Aracy Alves. ROCHA, Maria Isabel Antunes. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora, 2009. APEC. Articulação Paranaense por uma Educação do Campo. (Boletim impresso). Programa Agrinho nas Escolas do Campo, não. Nº 1, junho, 2015. BRASIL. Decreto nº 7.352/2010. Diário Oficial da União de 04/11/2010. 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O conjunto de conceitos e princípios da Educação do Campo foi um dos amparos teóricos desse estudo. A escola campesina de Bento Rodrigues foi um dos edifícios completamente destruídos com a chegada da lama de rejeitos minerários (figura 1) que vazaram da barragem de Fundão, em 05 de novembro de 2015. Figura 1 – Fotos da escola de Bento Rodrigues: antes e depois da ruptura da barragem Fonte: HUNZICKER (2019) Fonte: Justiça Global (2015) Essa escola, foco do estudo, era localizada no subdistrito Bento Rodrigues, pertencente ao município de Mariana, Minas Gerais. Quatro anos após o Rompimento da Barragem de Fundão (RBF) e a instituição de ensino ainda não está instalada no seu lugar definitivo. A comunidade escolar teve que ser instalada na cidade de Mariana até que a escola seja reconstruída no reassentamento do novo Bento Rodrigues e isso provocou alterações na rotina escolar e nas 1 2 Doutoranda em Educação - FaE/UFMG. Contato: Email: adrianegeo@yahoo.com.br. Doutora em Educação. Professora no Departamento de Ciências Aplicadas à Educação FaE/UFMG. Contato: isabelantunes@fae.ufmg.br. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS práticas docentes. Os professores dessa instituição, diante de um novo contexto, tiveram repercussões no âmbito pessoal e profissional de suas vidas. Alguns dos efeitos do rompimento da barragem de Fundão no campo A barragem de Fundão é de responsabilidade da mineradora Samarco, cujas acionistas são a Vale S/A e BHP Billiton. Essa barragem armazenava aproximadamente 55 milhões de metros cúbico de rejeitos. Quando houve a ruptura, os rejeitos passaram por cima da barragem Santarém (composta por água), o que agravou ainda mais o cenário de destruição. Os rejeitos minerários seguiram os cursos hídricos por aproximadamente 663 km entre Mariana/MG até ao litoral do Espírito Santo, em Linhares (IBAMA, 2016). Figura 2. No primeiro momento, os rejeitos atingiram o Córrego Santarém e o Rio Gualaxo do Norte e, depois, os Rios do Carmo e Doce. Ao longo de todo o trajeto, afetaram áreas urbanas e, principalmente rurais, onde vários camponeses (pescadores; indígenas; assentados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); comunidades quilombolas; agropecuaristas familiares; e, garimpeiros que historicamente extraíam ouro do rio) sofreram comprometimentos em suas práticas de trabalho, pois usavam os recursos do rio e/ou do solo em seu entorno para sobreviver. Figura 2- Mapa com o percurso dos rejeitos entre Mariana/ MG até Linhares/ ES Fonte: VASCONCELOS In ZHOURI et al, p. 32, 2018. Bento Rodrigues foi o primeiro povoado a ser atingido e, posteriormente, também outras comunidades campesinas dos municípios de Mariana e Barra Longa. A área urbana deste último município também foi afetada pela lama mineral. Na zona rural de Mariana e Barra Longa muitos agricultores tiveram 198 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS prejuízos diante da lama que adentrou seus terrenos, ou da impossibilidade de escoar insumos e cultivos devido à interrupção de estradas e pontes destruídas com o RBF (BRASIL, MPMG, 2016). Bento Rodrigues é um subdistrito com mais de três séculos de história, cujo processo de territorialização teve início no ciclo do ouro, entre a última década do século XVII e o início do XVIII. Nos últimos anos do século XX e início do XXI, o extrativismo mineral foi sendo desenvolvido pela extração de minério de ferro, praticado por mineradoras de grande porte – Vale e Samarco – exportadoras de commodities. O complexo minerário das duas empresas se localiza a aproximadamente 3 km do povoado de Bento Rodrigues. As atividades econômicas do subdistrito não se limitavam à extração mineral, visto que alguns moradores (mulheres e homens) desenvolviam atividades relacionadas ao campo. Diante do RBF, toda a comunidade foi desterritorializada e está instalada provisoriamente na sede da cidade de Mariana a mais de quatro anos, onde os habitantes aguardam o reassentamento que está sendo construído em um novo território. Os modos de produção e reprodução da vida foram interrompidos e, muitos dos sujeitos camponeses que durante gerações trabalhavam na prática da agropecuária familiar e no extrativismo mineral rudimentar (de ouro), agora são obrigados a se sustentar com um cartão de auxílio emergencial pago pela Fundação Renova3/Samarco e se adequar aos modos de vida no ambiente urbano. O subdistrito tinha aproximadamente 600 habitantes. Ao migrar de maneira forçada para a cidade de Mariana, tiveram além da interrupção das atividades de trabalho, perdas materiais em relação às suas terras, criações e propriedades e, ainda, perdas de vidas humanas, já que houve mortes de moradores locais. Houve também prejuízos na esfera cultural, religiosa e nos laços de convivência coletiva. Ao longo dos anos, as terras de Bento Rodrigues foram sendo expropriadas pelos interesses das empresas mineradoras em extrair minerais no subsolo do território. Com isso, a agropecuária praticada por sujeitos camponeses foi sendo cada vez mais sucumbida. Os estudos de Hunzicker (2019) evidenciam que as mineradoras, sobretudo a Samarco, oferecia valores acima do preço de mercado para compra de terrenos de agricultores no entorno do povoado, com a intenção de ampliar a extração mineral e/ou construir novas barragens de rejeitos minerais. No Brasil, ao longo dos anos, povos camponeses são expulsos de suas terras por grupos hegemônicos que exploram territórios na perspectiva 3 Fundação responsável em reparar os danos do RBF em toda bacia hidrográfica do Rio Doce. 199 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS capitalista. Para Fernandes (2006, 2008, 2013), há distintas intencionalidades dos usos dos territórios, podendo ser relacionadas aos usos econômico ou social. A exemplo do uso econômico do território, citamos determinados grupos sociais ou empresas que se apropriam de certos espaços com a finalidade de extrair recursos naturais e comercializá-los, de modo que sirvam ao sistema capitalista, por exemplo, os territórios em que são produzidas mercadorias pelo agronegócio, por polos industriais, ou pela extração de recursos minerais em grande escala. Por outro lado, há territórios originários da lógica de produção para subsistência de grupos coletivos, como os povos tradicionais e camponeses. A respeito dos usos dos territórios, o autor assevera: A produção de commodities está associada a um modelo de desenvolvimento [...]. A constituição de um modelo de desenvolvimento organiza as infra-estruturas e os serviços, determinando os tipos de usos dos territórios, expropriando os sujeitos e relações sociais que não são incorporadas ou cooptadas. (FERNANDES, 2013, p. 178-179) O autor faz referência aos usos do território para a prática do agronegócio que exporta toneladas de alimentos, o que também traz à luz os problemas da estrutura fundiária brasileira, na qual a concentração de terras acirra conflitos entre minifundiários e latifundiários, tornando a desigualdade social crescente na vida dos camponeses. De acordo com Fernandes (2013), esse modelo capitalista de produção de commodities “promove a exclusão pela intensa produtividade [...]” (p. 141). Considerando que a concentração de lucros dessa produção é desigual e, por vezes, os sujeitos camponeses não se beneficiam dos ganhos do modelo implantado pela sociedade capitalista, assim como no contexto minerário que estamos discutindo neste texto. Esse modelo agro-minerário exportador apresenta em comum algumas questões, que podemos refletir com o contexto em análise, tais como: os sujeitos moradores de territórios onde há interesses de usos capitalista do território sofrem distintas formas de violências, e, geralmente, esses sujeitos são expulsos de suas terras; quando são ofertados postos de trabalho para os moradores locais, muitos desses sujeitos são explorados com má remuneração e cargas exaustivas de trabalho que comprometem a saúde física e psicológica; no modelo de produção capitalista, sempre que possível, há a opção de usos de máquinas e equipamentos, as quais substituem o trabalho humano com o objetivo de lucrar cada vez mais em menos tempo; medidas políticas beneficiam, frequentemente, mineradoras e latifundiários, com a justificativa da geração de renda e impostos para os cofres públicos; provocam danos ambientais como contaminação da água e do solo, como por exemplo no agronegócio que faz uso indiscriminado de agrotóxicos e degradação dos biomas brasileiros. 200 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Na atividade minerária, podemos destacar os danos provocados no volume de água dos lençóis freáticos que são alterados durante o processo de extração, beneficiamento e transporte (no caso da Samarco, usa-se água no mineroduto), sem falar dos incalculáveis danos ambientais provocados quando ocorre a ruptura de barragens que destrói bacias hidrográficas, como exemplos recentes citamos a do Rio Doce com a ruptura da barragem de Fundão em Mariana e, a ruptura da barragem B1 da Vale em Brumadinho que atingiu a bacia do Rio Paraopeba, em janeiro de 2019. Os danos socioambientais provocados pela mineração ocorrem em todas as etapas do processo. Os estudos de Viana (2012) demonstraram que as atividades minerárias praticadas no território próximo à Bento Rodrigues já causavam impactos socioambientais, como por exemplo a contaminação e escassez da água, antes de ocorrer o RBF. Aqui refletimos: será que as escolas inseridas em contextos de usos capitalistas dos territórios discutem e fazem reflexões acerca de algumas dessas problemáticas mencionadas acima? Os sujeitos entrevistados na pesquisa de Hunziker (2019) apontam indicativos para um “silêncio pedagógico” no contexto escolar de Bento Rodrigues. Em outras palavras, constatamos que, antes do RBF, as mineradoras buscavam parcerias com a Secretaria Municipal de Educação e a escola para realizar projetos de Educação Ambiental. Porém, sem o objetivo de problematizar os danos ambientais provocados pelas práticas minerárias no território onde a escola era inserida. A escola campesina de Bento Rodrigues atingida pelo RBF A Escola Municipal Bento Rodrigues é considerada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) como uma escola rural. Neste texto, não iremos tecer discussões teóricas que diferem a educação rural e do campo, as quais vêm sendo construídas coletivamente ao longo de mais de duas décadas pelo movimento de Educação do Campo no Brasil. Contudo, ressaltamos que a condição da identidade campesina é aqui um assunto pertinente para se discorrer. Os educandos das escolas do campo têm uma identidade vinculada aos aspectos culturais e socioeconômicos relativos às práticas de vivências no campo. Sobre os desafios de garantir a permanência da cultura e identidade dos educandos das escolas do campo, Antunes-Rocha e Martins (2009) afirmam que: 201 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS um dos aspectos relevantes para o funcionamento de uma escola que possa ser considerada “do campo” é o reconhecimento e a valorização da identidade de seus sujeitos. Reconhecer e valorizar implica construir e desencadear processos educativos, dentro, e ao redor e no entorno da escola que não destruam a autoestima dos sujeitos pelo simples fato de serem do meio rural; sem-terra; de serem filhos de assentados, filhos de agricultores, extrativistas, ribeirinhos quebradeiras de coco [...]. (ANTUNES-ROCHA, MARTINS, 2009, p. 27). Arroyo (1999) faz uma reflexão sobre instituições de ensino que não contemplam, em suas práticas escolares, um currículo com bases de uma escola do campo para atender às demandas necessárias de cidadãos que desenvolvem suas práticas socioculturais e modo de trabalho característicos do campo. O tempo do homem, da mulher do campo tem seu ritmo, a escola não pode chegar com um tempo urbano no tempo social do campo. O tempo social dos indivíduos, das famílias, das comunidades está vinculado aos tempos da natureza, da produção. As festas, os encontros, as relações entre homem, mulher, entre crianças e adultos são inseparáveis dos tempos de produção e reprodução da existência, das relações sociais, produtivas, culturais. (ARROYO, 1999, p. 32). A fim de elucidar as ideias apresentadas por Antunes-Rocha e Martins (2009) e Arroyo (1999), refletimos sobre o contexto dos alunos da escola aqui apresentada. Quando uma das autoras deste texto lecionava na escola de Bento Rodrigues, era perceptível nas observações empíricas e nas conversas de sala de aula, que os discentes tinham um modo de vida típico da vida no campo. Alguns comentavam sobre suas experiências cotidianas, nas quais desenvolviam no seio de suas famílias, como: tratar dos animais (galinhas, porcos, cachorros, vacas, etc); tirar leite das vacas e cabras; buscar cavalos no pasto; cultivo de hortas, pomares e outros alimentos; também contavam sobre as brincadeiras e lazer que tinham na praça São Bento e nas várias cachoeiras e rios, nas quais eram limpas antes do RBF; além dos causos sobre a vida cotidiana. Também era comum que alguns alunos chegassem à escola com os pés e mãos besuntadas de terra. Nessa perspectiva de relação com a natureza, compreendemos um pouco do modo de produção e reprodução da vida camponesa daquele povoado. É importante destacarmos a necessidade de discutir o contexto campesino na prática educativa, possibilitando o protagonismo dos sujeitos, sendo este um dos princípios da Educação do Campo (ANTUNES-ROCHA, 2014). Nesse aspecto, ressaltamos que o campo é um lugar de fixação da vida dos sujeitos de direitos, onde a identidade cultural relaciona-se às práticas de trabalho, de lazer e de saberes. Na pesquisa de Hunziker (2019), foi construída uma cartografia escolar, em que se comprovou por meio de documento datado de 1950, acerca da compra do terreno para construção de um “grupo escolar rural” no endereço onde a escola se localizava antes do RBF. Não se sabe ao certo quantos anos tem 202 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS a instituição de ensino, contudo, tal documento evidencia que a escola fazia parte da forma de socialização daquele povoado histórico a uma longa data. A escola de Bento Rodrigues atendia alunos dos anos Iniciais e Finais do Ensino Fundamental em dois turnos: matutino e vespertino. Oferecia também oficinas de Educação em Tempo Integral para alunos dos anos iniciais em um contraturno (na parte da tarde). Em 2015, a escola tinha 11 turmas com 102 alunos matriculados. A maior parte desses alunos moravam próximos ao núcleo central do povoado porém alguns residiam em outro povoado campesino – Camargos – localizado a aproximadamente 6 km. Depois do RBF, os habitantes de Bento Rodrigues foram instalados em casas alugadas em diversos bairros da sede da cidade de Mariana e região, assim todos os alunos passaram a ser transportados para a escola em ônibus contratado pela Fundação Renova. O distanciamento geográfico das famílias com a escola acarretou na diminuição da presença dos pais e responsáveis na escola, tanto em momentos de festas quanto em reuniões pedagógicas. No ano da ruptura da barragem, em 2015, a escola tinha o total de 31 funcionários, dentre eles: professoras/es; monitoras/es que atuavam na Educação em Tempo Integral; funcionárias dos serviços gerais; e funcionários do quadro administrativo, como diretora, pedagoga, secretária, dentre outros. Alguns destes funcionários moravam em Bento Rodrigues, consequentemente, além de terem perdido a escola (local de trabalho), também perderam suas casas; os demais funcionários moravam em Mariana e, em outros territórios e municípios. Dois dos professores entrevistados narraram que, após a instalação da escola na cidade de Mariana, tiveram transtornos por ter aumentado a distância de suas residências até o local de trabalho, já que moram em outro município. O que dizem os professores da escola de Bento Rodrigues acerca dos desafios enfrentados após o RBF Foram entrevistados seis professoras/es dos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental da Escola Municipal Bento Rodrigues no ano de 2019. Para este texto, selecionamos algumas entrevistas narrativas que remetem ao tema discutido acerca da Educação do Campo. As entrevistas narrativas foram realizadas com o amparo teórico/metodológico de Bauer e Jovchelovitch (2002), em que muitas vezes, as narrativas são organizadas pelos próprios entrevistados em uma temporalidade dos fatos, ou seja, antes e depois do RBF. Na tarde do dia 05 de novembro de 2015, a Escola Municipal Bento Rodrigues estava em horário de aula com os alunos do 6º ao 9º ano, e crianças da Educação em Tempo Integral. A notícia da ruptura da barragem chegou por meio 203 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS do marido da diretora Eliene Geralda, que imediatamente pediu para os alunos, professores e funcionários evacuarem a escola. Tiveram que correr para o local mais íngreme do povoado, onde passaram a noite ao relento à espera do resgate. Dois alunos da escola de Bento Rodrigues que estavam em casa no dia do RBF não conseguiram se salvar e vieram a óbito. Outros moradores da comunidade e funcionários da mineradora também perderam suas vidas. No total foram 19 mortes, e mais o aborto sofrido por uma moradora de Bento Rodrigues. As entrevistas narrativas evidenciam que o RBF acarretou comprometimentos na saúde psicológica de alguns professores e alunos, como menciona a professora entrevistada: [...] todo dia tinha comentário, os alunos não falavam sobre outra coisa a não ser o rompimento. [...] Uns ficaram com depressão, ficaram muito nervosos, assim, lembrando, choravam, tudo... até eu chorava com eles, foi muito tempo. Aí tive depressão e afastei um tempo de dar aula [...]. (Entrevistada F, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 104). Diante da situação pós-traumática vivenciada pelos sujeitos que estavam em Bento Rodrigues no dia do RBF, o luto, e as mudanças bruscas dos modos de vida após a desterritorialização de toda a comunidade, houve também comprometimento no processo de ensino-aprendizagem, como evidencia a fala da professora entrevistada: Depois da Barragem, a gente passou por uma fase bem turbulenta dessa aceitação. Eu acho que eles [os alunos] ficaram mais agressivos, até entender o que estava acontecendo, o que tinha sido tirado deles, que eles não iam ter de volta, eles ficaram muito agressivos, com a gente também, eles não aceitavam o que tinha acontecido e de alguma forma eles tinham que colocar aquilo pra fora. Então, no começo, foi muito difícil, porque o interesse pelo estudo diminuiu, o valor das coisas meio que se perdeu, “eu não preciso cuidar da escola, porque não cuidaram das minhas coisas, tiraram a minha casa [...]”. (Entrevistada A, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 103). Após dez dias sem aulas, a escola voltou a funcionar na estrutura compartilhada de uma escola no bairro Rosário em Mariana. Nesta instituição, a comunidade escolar de Bento Rodrigues ficou por quase dois anos, entre novembro de 2015 a maio de 2017. Contudo, alguns desafios foram enfrentados pelos alunos, funcionários e professores nesta instalação provisória, como narra a professora entrevistada: [...] no começo foi muito ruim mesmo, a gente ficava emprestado na escola, e todo mundo achando que estávamos incomodando eles, né? [...] Não tinha lugar nem pra elas [as cozinheiras da escola] fazerem comida direito. [...] nós ficamos totalmente deslocados, e os meninos em uma escola que não era nem aconchegante pra eles. Entendeu? Era muito grande e as salas que sobraram, que as professoras outras não quiseram, ficaram pra gente, mais ou menos assim. [...] a gente via que tirava a rotina deles [...]. (Entrevistada D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 102-103). 204 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Nessa escola, os alunos e professores também passaram por situações de preconceitos. [...] a gente sentia a discriminação. Os meninos achavam que na hora de brincar, que não queriam os meninos do Bento. Tinha muito disso, mas foram os meninos maiores que reclamavam mais. [...] não gostavam que eles jogassem bola, tinha umas coisas assim [...]. (Entrevista D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 104). As novas relações sociais na cidade trazem à tona uma polaridade entre os moradores da cidade de Mariana e os sujeitos camponeses diretamente atingidos. As vítimas passam a ser vistas pelos moradores como culpados pela perda de empregos na mineradora Samarco, que foi interditada pela justiça. E a gente também passou por momentos de readaptação em Mariana, aonde nós fomos vistos como intrusos, como as pessoas responsáveis pelo caos da cidade de Mariana e os culpados por estar ali no momento que houve o rompimento da barragem. [...] Eu acredito que até hoje grande parte dos moradores de Bento Rodrigues, eu acredito que eles ainda sofram, né? Essa questão dessa, dessa discriminação, porque querendo ou não, isso acabou afetando a economia do município de Mariana, então, tudo é motivo, porque Bento é... porque isso... porque aquilo, em caos do rompimento, como se a gente fosse o culpado de ter acontecido isso, que eu não vejo que seria nós os causadores do problema. (Entrevistado B, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 105-106). As narrativas dos professores A e B nos trazem à luz os estudos de Antunes-Rocha (2012) que evidenciam a histórica depreciação dos sujeitos pobres, especialmente, oriundos do campo brasileiro. No contexto em análise, as mineradoras contribuem para circulação de narrativas com a intenção de provocar uma alienação acerca da necessidade de empregos para gerar renda para o município, mesmo que para isso, pessoas e o meio ambiente sejam sacrificados. Diante das alcunhas que inferiorizavam os alunos, a professora narra que buscou lugares próximos à escola que tinham alguma semelhança com o povoado onde os alunos moravam antes do RBF. Essas atividades propostas pela docente podem ser compreendidas como uma tentativa de resgatar e valorizar a identidade campesina. Eu gostava muito de levá-los pra passear naqueles matos. Porque eles ficavam com saudade do lugar onde eles moravam, aí eu levava muito eles ali. Tem uma trilha ali, aí quando viam cavalo eles ficavam doidos, [...] bichos. Eles gostavam, eles gostam disso. (Entrevistada D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 104-105). Tantos foram os desafios enfrentados nas novas relações sociais urbanas, principalmente, no período que compartilharam o espaço da escola no bairro Rosário em Mariana. Alguns dos docentes entrevistados narraram que foi necessário reivindicar para a Prefeitura Municipal de Mariana e a Fundação Renova que providenciassem um espaço para o funcionamento exclusivo da escola para tentar retomar a rotina escolar e a identidade da escola campesina, como relata o docente: 205 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Viemos para uma casa adaptada, é na cidade de Mariana, no centro de Mariana, praticamente, é onde que os alunos se identificaram melhor, eles tiveram uma identidade novamente da escola de Bento Rodrigues. (Entrevistado B, 2019. Fonte: HUNZICKER, 2019, p. 101). Um dos exemplos dos esforços que os docentes tiveram para a retomada da identidade campesina foi alterar suas práticas pedagógicas. Como o da professora que buscou novos lugares no entorno da escola, onde se pudesse desenvolver atividades típicas do campo, como narra: [...] eu gosto muito de levar eles [...] na natureza, [...] levar eles pra plantar, na pista eu levo semente, a gente planta. (Entrevistada D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 133). A pista que a docente faz referência é uma pista de práticas esportivas no meio de árvores, que se localiza próxima ao local onde a escola está instalada atualmente. Mesmo diante de tentativas de retomar a rotina escolar, é patente que houve danos e comprometimentos na identidade socioterritorial dos sujeitos do campo que tinha uma relação com a natureza no antigo povoado, fato também demonstrado na narrativa do professor B: O rompimento pra mim foi assim, o fim e o início de uma nova história, que eu por estar trabalhando no distrito já há vários anos, eu já me identificava com a comunidade, chegava lá, e via aquela paisagem natural bonita [...] e ter saído de lá vendo que tudo aquilo que você visualizou antes na sua chegada, no outro dia não tinha mais nada, tudo destruído né? (Entrevistado B, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 92). Os vínculos afetivos de professores que atuam em comunidades com condição identitária do campo interpassam por questões de pertencimento com a escola, com as relações afetivas entre alunos e familiares, fato que se materializa também com a identidade socioterritorial, ou seja, o pertencimento com a escola e o seu entorno. Assim como o professor B, a entrevistada A também narrou os prejuízos do RBF nas relações família/escola, que segundo a docente, em Bento Rodrigues as relações eram mais próximas: Trabalhar lá no Bento, tinha suas dificuldades, lógico, como toda sala de aula tem, toda escola tem, mas era uma escola tranquila, eram alunos tranquilos, tínhamos uma relação muito próxima de respeito e nós conseguíamos contornar os problemas que aparecia no dia a dia. A relação dos alunos com a escola era uma relação de confiança, eles acreditavam mesmo no que a escola falava, e quando precisávamos da família, era só chamar, eu acho que era uma relação mais próxima. (Entrevistada A, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 109). A professora A evidencia como eram as relações da escola com as famílias e alunos antes do RBF. Segundo Kolling e Molina (1999), as práticas pedagógicas dos docentes em escolas com condição identitária do campo podem 206 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS reverberar em ações que promovem a intervenção social na comunidade onde a escola está inserida, principalmente porque as instituições ocupam um lugar de centralidade na comunidade, e, para além dos aspectos cognitivos, são também espaços de reuniões e festas. Como afirma a narrativa da entrevistada A, acerca da presença da família na escola quando solicitada. As professoras entrevistadas ratificam as alterações da rotina escolar após o RBF, especialmente quanto à mudança forçada de uma escola que se localizava no espaço campesino e que de uma hora para outra passou a funcionar na cidade, de modo improvisado. Como aponta a docente: Era muito gostoso trabalhar lá e todo mundo conhecia todo mundo, né? Era um lugarzinho tranquilo, muito gostoso. (Entrevistada D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 109). [...] foi um improviso, mas, assim, eles [os alunos] estavam acostumados com aquela escola boa, gostosa, né? (Entrevistada D, 2019. HUNZICKER, 2019, p. 134). Diante da improvisação da escola em um novo contexto urbano, as entrevistas narrativas indicam que os discentes e docentes tinham uma relação de pertencimento com a escola que foi destruída e as reverberações do RBF na rotina escolar ainda são um desafio. Considerações finais Apresentamos aqui alguns dos aspectos acerca dos danos que o Rompimento da barragem de Fundão ocasionou na Escola Municipal Bento Rodrigues. Após a transmutação da escola que se localizava na área rural de Mariana para dois endereços ao longo de quatro anos, podemos constatar alterações na rotina escolar e nas práticas educativas. A escola é um dos poucos espaços onde as relações coletivas dos antigos moradores ainda acontecem, especialmente para as crianças e jovens que por morarem em vários bairros agora só se encontram na escola. Contudo, os professores fazem movimentos para tentar resgatar memórias culturais e a identidade campesina dos alunos, como os passeios em trilhas, plantio de sementes, histórias sobre o antigo Bento, até mesmo quando lutaram por um novo espaço para que houvesse o funcionamento somente da comunidade escolar de Bento Rodrigues. Lutar pela escola, pela identidade campesina dos alunos, e tentar manter viva a esperança de que esses sujeitos terão de volta suas terras, é sem dúvida, um ato político, como nos remetem os escritos de Paulo Freire, e que também motivaram a construção deste livro: “Educar é um ato político”. A escola que os professores tentam manter viva tornou-se também um símbolo de luta e resistência. Sem a intenção de finalizar as discussões aqui propostas, refletimos que essa luta pode ser ainda mais significativa se a reconstrução da escola no 207 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS reassentamento de Bento Rodrigues prevalecer-se na perspectiva dos princípios da Educação do Campo, ou seja, construir coletivamente um projeto social de campo. 208 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências ANTUNES-ROCHA, M. I. Da cor de terra: representações sociais de professores sobre os alunos no contexto da luta pela terra. Belo Horizonte: UFMG, 2012. ______. Da escola Rural à Educação do Campo: construindo caminhos. In: Educação rural e do campo. CARVALHO, C. H. de.; CASTRO, M. de. (Orgs.). Uberlândia: EDUFU, 2014. 260 p. ______; MARTINS, Aracy, A. (orgs.). Educação do campo - Desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009. ARROYO, Miguel G. A educação básica e o Movimento Social do Campo. 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Acesso em: 09 abril 2020. 209 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS JUSTIÇA GLOBAL. Vale de Lama|Rompimento da barragem de rejeitos da Samarco (Vale/BHP). Disponível em: <http://www.global.org.br/blog/vale-de-lama-rompimento -da-barragem-de-rejeitos-da-samarco-valebhp-provoca-destruicao-em-mariana/>. Acesso em: 9 abril 2019. KOLLING, Edgar J.; NERY, ir.; MOLINA, Mônica C. Por uma Educação Básica do Campo: Memória. Brasília, Editora Universidade de Brasília. Coleção por uma Educação Básica do Campo, nº 1. 1999. VIANA, Maurício. Boratto. Avaliando Minas: índice de sustentabilidade da mineração (ISM). (2012). Tese de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável. Brasília, Universidade de Brasília (UnB). 210 UMA LEITURA DA PARTICIPAÇÃO DA JUVENTUDE CAMPESINA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO Cristhianne Antunes David Oliveira1 Maria de Fátima Almeida Martins2 Nayara Cristine Carneiro do Carmo3 O que discutiremos neste artigo está ancorado nos dados obtidos numa pesquisa que teve como propósito a elaboração de uma sequência didática a partir dos conhecimentos adquiridos na prática profissional da educação 4, sobre as juventudes campesinas, em especial os sujeitos participantes daquela pesquisa, sua comunidade e suas aulas, a fim de relacioná-las aos aspectos e sentidos atribuídos ao protagonismo jovem no campo, ou seja, a inserção da participação crítica da juventude no processo da Educação do Campo. Diante disso, entende-se que o referido estudo contribuiu para sistematizar o conhecimento e as práticas dos alunos acerca da participação social jovem no campo, atribuindo as relações destas com as propostas didáticas desenvolvidas na sala de aula de Língua Portuguesa. A incorporação nas práticas formativas, participando das práticas pedagógicas, como visto durante a pesquisa, perpassa pelo conhecimento dessa juventude e suas condições materiais, bem como pela necessária compreensão da atuação e presença dos movimentos sociais e sindicais nas comunidades e escolas. As conclusões após o desenvolvimento daquela pesquisa assinalaram pela possibilidade da participação e inserção do jovem camponês aluno em práticas formativas, demonstrando que, para isso, haveria necessidade da participação dos jovens em movimentos sociais, uma vez que, segundo a autora, “o lugar social que o sujeito ocupa determina muito de sua condição juvenil” (OLIVEIRA, 2019, p. 133). Além disso, mostrou-se que no campo as juventudes camponesas vêm construindo diferentes estratégias para conseguir enfrentar essas condicionantes 1 2 3 4 Mestre em Educação. Professora da rede estadual de ensino de MG. Contato: cristhiannedavoli@gmail.com Doutora em Geografia. Professora Associada da Faculdade de Educação – UFMG. Contato: falmartins.ufmg@gmail.com Mestre em Educação e Cientista Socioambiental. Contato: nayaracarmocsa@gmail.com Esta pesquisa foi realizada por Cristhianne Antunes David Oliveira, professora da escola do campo, e orientada pela professora Maria de Fátima Almeida Martins, como parte integrante de discussão do Núcleo de Pesquisa da Educação do Campo, NEPCAMPO. Nayara Cristine Carneiro do Carmo, pesquisadora deste núcleo, também participa deste trabalho. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS estruturais: luta pela terra, acesso e permanência à educação, permanência no campo, dentre outras. É nesse sentido que a participação em movimentos sociais e movimentos sindicais ressignifica as possibilidades e as potencialidades de ser um jovem camponês, garantindo muitas vezes, o acesso às políticas públicas de formação conquistadas por essas organizações, demonstrando sinais de resistência, de continuidade e de mudança (OLIVEIRA, 2019, p.134). Na discussão dos resultados levantados entre aqueles jovens, constatou-se que “em sua maioria, pensavam em sair do campo em busca de melhores oportunidades de vida, uma vez que onde vivem não há oportunidades de emprego”. Não obstante, destacou que “os sujeitos da pesquisa deixaram claro que, ainda que saíssem do campo, tinham a intenção de voltar um dia, demonstrando os fortes laços com o campo” (OLIVEIRA, 2019, 135-6). Tratar da questão pedagógica no processo formativo, considerando seus sujeitos, propicia um novo repensar sobre a juventude camponesa e sua posição frente a sua formação e sua comunidade. Significa dizer que os trabalhos didáticos que incentivem a conscientização crítica dos jovens pode trazê-los para a discussão de sua própria formação, associando conhecimento, participação, protagonismo e consequente atuação na comunidade. Conforme destaca Molina (2015, p. 16), “cuidar da Terra e cuidar das juventudes camponesas significa cuidar de todos nós.” A autora associa a terra às juventudes camponesas, remetendo-nos ao futuro da própria humanidade, afinal, cuidar desse bem que é a terra não é suficiente se não cuidarmos daqueles que serão os responsáveis por ela. Os jovens de hoje precisam ser preparados, cuidados, educados para que não apenas tomem consciência, mas, para além disso, uma consciência crítica do valor dessa terra e da materialidade e subjetividade que estão ligadas a ela, que sejam preparados para entender que necessitam lutar por uma educação que proporcione isso a eles. E, com essa afirmação, refletimos sobre a importância dos estudos e publicações direcionados a temática aqui discutida. De acordo com Stropasolas (2014, p. 55), atualmente tivemos muitos avanços em relação ao debate sobre políticas para a juventude e sobre a compreensão do que é ser jovem nas suas mais diversas facetas. O autor afirma que “há um sério viés produtivo da vida dos jovens e nós temos que pensar na totalidade da sua vida social”. Pode-se dizer que existem várias juventudes e isso está relacionado ao fato de que: Geralmente, ao se pensar no camponês brasileiro, remete-se à imagem de alguém que teve uma curta escolarização e uma iniciação precoce no mundo do trabalho, tem pouco acesso aos bens consumidos no espaço urbano e restritas práticas de lazer e de sociabilidade. Embora esses aspectos conformem, para muito jovens, a realidade da vida no campo numa sociedade desigual como a nossa, não se pode partir de uma visão homogênea da condição juvenil camponesa no Brasil. Temos jovens que estão no campo, mas vivem experiências e práticas sociais que estão 212 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS tradicionalmente vinculadas ao espaço urbano. Por outro lado, muitos jovens vivem em áreas urbanas, mas trabalham no campo. Encontramos também jovens que nasceram e vivem no campo, mas não desejam ali permanecer, e jovens da cidade que se movimentam em direção ao campo em busca de trabalho e moradia. (ANTUNES- ROCHA e LEÃO, 2015, p. 22). A situação no campo para os jovens tem sido: um caos de desemprego, dificuldades de acesso à educação e de permanência na escola, bem como dificuldade de acessos que poderiam contribuir com a materialidade de suas vidas. Nesses aspectos, a definição de jovem do campo ou juventudes do campo mostra-se heterogênea e fruto de especificidades relacionadas a essa materialidade ou a falta dela. Ainda sobre a definição de juventudes, Puntel, Paiva, Ramos (2011, p. 89) chamam a atenção para a importância de usar a expressão “juventudes” no plural, referindo-se à gama de contextos em que os jovens estão inseridos. Ademais, cabe um alerta, mencionado por Antunes-Rocha e Leão (2015, p. 21) quando explicam que ao usarmos o termo “juventude(s) no/do campo” é importante chamar a atenção para “a dificuldade em nomear esses sujeitos sem cair em uma visão estereotipada e tradicional do campo brasileiro como espaço limitado a um perímetro não-urbano”. Assim, para tratar dos jovens do campo é fundamental investigar as relações sociais em que eles estão inseridos, atentando para as dimensões simbólicas e culturais, como também para as situações materiais que definem limites e possibilidades de viver a experiência juvenil. A juventude é uma fase em que se ampliam as relações pessoais, políticas e sociais para além dos espaços restritos da família e da escola (ANTUNES- ROCHA E LEÃO, 2015, p. 19). Além disso, em muitas situações encontradas em pesquisas, os jovens são submetidos à aceitação de condições de trabalho e educação no que, por exemplo, Molina (2015, p. 13-14) chama de “superexploração”, fruto da sociedade capitalista: As juventudes camponesas contemporâneas enfrentam um tempo histórico no qual os horrores da sociedade capitalista se intensificaram profundamente no campo brasileiro. As transformações trazidas com mudança da lógica de acumulação de capital no campo, pelo modelo agrícola representado pelo agronegócio, que exige cada vez mais vastas extensões de terra para implementação de suas monoculturas para exportação, transformando os alimentos em commodities, intensifica, por diversas estratégias, a superexploração dos camponeses e suas famílias e, entre eles, dos jovens. (MOLINA, 2015, p. 13-14). Antunes–Rocha e Leão (2015, p. 24) alertavam que “os aspectos estruturais que produzem essa realidade podem contribuir para que as políticas públicas sejam direcionadas para garantir o acesso à terra com condições para nela se viver e trabalhar com dignidade”. Como estes jovens podem se desenvolver e lutar materialmente para se manterem de modo digno se nem ao menos têm base 213 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS para isso. A discussão dos autores é no sentido de alertar para a necessidade de políticas públicas voltadas para esse público, para a necessidade de “projetar políticas visando fomentar financiamentos para atividades produtivas, construir equipamentos de lazer, instalar redes para a comunicação digital, entre outras, como pressuposto que esse jovem tem direito a um espaço concreto para viver e trabalhar (ANTUNES–ROCHA e LEÃO, 2015, p. 25). Algumas questões relevantes devem ser brevemente consideradas ao se debater essa juventude camponesa para que possamos aventar, histórica e socialmente, uma construção da necessidade de um repensar didático-pedagógico para as escolas do campo que atendem jovens. A superação da identidade definida como atrasada, ignorante, distante do progresso e da modernidade localizadas no espaço urbano A forma como a sociedade contemporânea urbanocêntrica enxerga o camponês foi sempre associando-os a uma identidade atrasada, à ignorância e, muitas vezes, à distância do progresso e da modernidade. (MARTINS, 1994). Essa identificação estereotipada é um dos grandes desafios para os jovens camponeses, pois há que se considerar a necessidade de superação como real ou não, isto é, eles se incomodam com esses rótulos? Fazem disso um problema para o seu dia a dia e a sua condição de jovem do campo? De fato, a distância das modernidades localizadas no espaço urbano incomodam esses jovens e qual modernidade ainda não faz parte de suas realidades? Para tratar desse assunto é importante destacar a condição social dos jovens que vivem no campo. Weisheimer (2015, p. 31) afirma que esses jovens são submetidos a uma invisibilidade social e que “essa invisibilidade se processou pela reprodução de determinado olhar que tanto nega a existência do outro, quanto o uniformiza em uma unidade descaracterizante”, fazendo aí alusão a identidade definida como atrasada. O autor afirma que “isso implica a negação do direito de ter tratamento e oportunidades iguais e, nesse caso, a negação do próprio direito ao reconhecimento e à identidade” (WEISHEIMER, 2015, p. 31). A questão territorial, conforme Alves (2015, p. 87) é um fator significativo na constituição identitária e na condução e elaboração dos projetos de vida dos jovens. A autora explica que: As desigualdades e diferenças que marcam os territórios do campo e da cidade acabam por estigmatizar e inferiorizar os moradores do campo perante outros grupos territoriais. Diante disso, os limites sociais, econômicos e culturais a que estão expostos os jovens do campo, ou mesmo do interior do Brasil, ainda configuram, nessa virada de século, um dos fatores de desigualdade interna dentro do país e de exclusão das populações que vivem fora dos grandes centros urbanos (ALVES, 2015, p. 87) 214 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A juventude camponesa está inserida nessa complexidade. “Invisível e diversa”, ela está inserida nos processos de transformações do campo brasileiro. Para compreendê-la, torna-se necessário também discutir o contexto do campo brasileiro, onde esses sujeitos se socializam em instituições que também passam por reconfigurações. (ANTUNES- ROCHA e LEÃO, 2015, p. 19). Weisheimer afirma que: Para superar a situação da invisibilidade não basta desenvolver estudos que tenham nos jovens os sujeitos investigados. É preciso antes problematizar a própria construção do objeto, ou seja, as relações sociais nas quais se inserem os jovens e que fazem da própria categoria “juventude” uma construção social em disputa (WEISHEIMER, 2015, p. 31-32). Ademais, diversas pesquisas e artigos têm trazido à tona exemplos de que a identidade da juventude camponesa vem se destacando e trabalhando para superar esta invisibilidade. Como exemplo, podemos citar alguns trabalhos utilizados como referência neste artigo (Dayrell,2007; Lima et al, 2013; Lima e Oliveira, 2017; Matos, 2005; Puntel, Paiva e Ramos, 2011; Oliveira, 2019 e Carmo,2019). Em especial, destacamos o livro “Juventudes do Campo”, que apresenta “relatos de experiências de articulação dos jovens camponeses em diferentes espaços: no movimento social e no movimento sindical, nas lutas quilombolas, nas Escolas Família Agrícola” trazendo nesses relatos a certeza de que: [...] a inserção e o pertencimento a um sujeito coletivo ressignifica as possibilidades e potencialidades de ser um jovem camponês, garantindo, muitas vezes, o acesso às políticas públicas de formação, conquistadas por essas organizações, como, por exemplo, a participação nos cursos do Pronera; do Procampo; do ProJovem campo – Saberes da Terra ... (MOLINA, 2015, p. 16). Nesse sentido, pensamos que o levantamento das relações sociais dos jovens sujeitos desta pesquisa seria de suma importância para contribuir com a superação de sua condição de “invisibilidade”, ou seja, aprofundar em suas relações sociais para então compreendê-los enquanto sujeitos de sua própria educação. A migração em busca de trabalho e estudo como impactos para a permanência e continuidade dos grupos familiares camponeses Quanto à influência da migração para os grupos familiares camponeses pode-se dizer que “a tendência do jovem rural a deixar o campo, escolhendo em geral a migração para uma cidade próxima, é fenômeno que vem ocorrendo desde a década de 40-50 do século passado [...] e continua a ser observada e aprofundada, considerando os dados do último Censo (IBGE, 2010)” (LIMA et al, 2013, p. 17). Segundo Carmo: Esses jovens são atingidos cotidianamente pelo estigma do movimento contraditório de viver no campo; das tensões segregatórias que cumprem o papel de 215 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS “desqualificação simbólica”, associada ao rural, ao ser camponês, ao trabalhador rural, à imagem do atraso. (CARMO, 2019, p. 82) A autora ainda trata da marcação histórica da migração desses jovens para as cidades Por vezes antes mesmo de terminar o ciclo básico de formação escolar (a própria ausência de escolas de Ensino Médio no campo introduz essa ruptura/expulsão). E lembra de que “quem nunca ouviu história sobre jovens que trocaram estudo por trabalho na cidade, partiram rumo aos cafezais, para a colheita de cana de açúcar em outros estados, para o trabalho na construção civil” (CARMO, 2019, p. 83). Essa fase da vida, a juventude, aqui em especial do campo, vive um momento de deslumbramento quanto às descobertas, assim como qualquer jovem. Segundo Lima e Oliveira (2017, p. 3), a eles são apresentadas “as luzes da cidade como alternativa para a escuridão do campo” num misto de desejo pelo diferente e pela vontade “de sair da invisibilidade social”. Os autores explicam este fenômeno como um momento de “disputa e resistência presentes na dicotomia campo versus cidade”, porque os jovens desejam ir, mas também querem ficar no campo, pois há o bem estar em lidar com o conhecido, com o familiar. Lima e Oliveira ainda tratam da necessidade da desconstrução “de consensos de naturalização das vontades da juventude, que colocam a saída do campo como algo certo, linear, pois o rural aparece como símbolo de atraso e a cidade, ao contrário, o lugar moderno o lugar para onde os jovens naturalmente querem ir” (LIMA e OLIVEIRA: 2017, p. 3). Além desse deslumbramento juvenil, quais motivos teriam os jovens para saírem do campo? O Brasil é marcado por uma bimodalidade tecnológica. De um lado, há as explorações modernas que batem record nas safras e na tecnificação acelerada dos setores integrados ao complexo agroindustrial. De outro, destacam-se a pobreza da população rural, o atraso econômico, social e político nas regiões onde predomina o latifúndio, o coronelismo e a “lei do mais forte”. Precisam ser resolvidas questões fundamentais como a falta de políticas públicas estruturantes que possibilitem ao agricultor familiar produzir e colocar seus produtos no mercado, além das dificuldades de acesso à saúde e à educação por parte destes produtores. Esses fatores têm contribuído significativamente para a expulsão permanente dos camponeses para a cidade, em busca de trabalho e renda, principalmente desestimulando os jovens a desenvolverem seu projeto de vida no campo, o que compromete a sustentabilidade geracional. (ABRAMOVAY, 1992 apud PUNTEL, PAIVA e RAMOS, 2011, p. 7). Lima (et al, 2013, p. 17) diz que o tema da migração, especialmente dos jovens do campo, “foi estudado por muitos pesquisadores brasileiros, nos anos que se seguiram à identificação deste fenômeno”. Segundo o autor, essas pesquisas têm se expandido nos últimos anos, “como influência do interesse pessoal dos pesquisadores pelo tema, mas também como um reflexo de sua emergência como questão relevante na agenda política dos países”. O motivo, de acordo com os autores, está relacionado especialmente com a conscientização do que 216 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS representa para as agriculturas nacionais a emigração massiva de jovens do campo para as cidades. Antunes-Rocha e Leão (2015, p. 26) acreditam que, diferentemente do que muitos imaginam, “o campo como lugar de vida não se configura como estando em extinção, mas sim como um território onde se forma a juventude camponesa, de múltiplas possibilidades, de novas relações entre os seres humanos e a natureza, de novas articulações e possibilidades de produção/reprodução de vida”. Para que essas possibilidades se realizem, convém refletir sobre a questão da terra, enquanto meio de subsistência no campo. Uma cidade com atrativos, principalmente em opção ao trabalho remunerado, estudo, oportunidades, lazer e infraestruturas, com adensamentos populacionais disposto de forma ora desorganizadas ora planejadas, os afloramentos das contradições sociais e econômicas saltam aos olhos, pois as desigualdades e os contrastes sociais se evidenciam como a pobreza, violência, desemprego, agitação, poluição, vida tumultuada pautada por horários rígidos. E o campo com aspectos associados às grandes distâncias, desabastecidos de políticas públicas de infraestruturas sociais, culturais e de lazer, com característica referente às raízes do modo de vida local, como os laços familiares e de amizade, a proximidade da natureza, o lugar do sossego, da paz, tranqüilidade, da qualidade de vida. Realidades imediatas com distintas aparências que se entrelaçam concomitantemente aflorando as contradições e suas divergências pelo uso do tempo, que se torna responsável pela fissura que esclarece os motivos essenciais e a mediação dos fenômenos. (LIMA e OLIVEIRA, 2017, p. 8) Para além da invisibilidade social e da modernização das cidades, cabe lembrar o peso da responsabilidade que carrega essa juventude campesina. Segundo Weisheimer (2015, p. 37-38): Os jovens são ao mesmo tempo herdeiros e trabalhadores da unidade de produção familiar. Essa condição impõe uma ambivalência em relação ao trabalho agrícola e à herança do patrimônio familiar que caracterizará a condição juvenil na agricultura familiar. Esses jovens são protagonistas dos impasses e dilemas das dinâmicas de produção, de reprodução, de transformação e de decomposição da unidade de produção familiar uma vez que a eles cabe a tarefa de realizar a sucessão geracional dessa unidade produtiva. O deslumbramento pelo desconhecido está relacionado a uma íntima realidade dos jovens rurais com o mundo globalizado, o que “amplia as fronteiras dos desejos, vontades e sonhos do imaginário social, onde as ações locais estão norteadas por vontades externas de perspectivas perversas de construir um novo caminho com outras possibilidades de repensar o mundo” (LIMA e OLIVEIRA: 2017, p. 3). De acordo com Antunes-Rocha e Leão (2015, p. 23) “a migração juvenil tem sido apontada como maior problema em relação aos jovens rurais por governos, movimentos sociais e famílias”. Ferreira e Alves (2009 apud ANTUNESROCHA e LEÃO, 2015, p. 23) constataram, “analisando os dados da PNAD 2007, um envelhecimento e uma masculinização da população rural, fruto da saída dos 217 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS jovens, especialmente das mulheres jovens”. Os autores concluem que esse movimento de saída é resultado das condições desfavoráveis de acesso à educação, apresentando, para tal conclusão, dados da taxa de analfabetismo no campo que “era seis vezes superior à do meio urbano (4,08% contra 0,64%) e o número médio de anos de estudo era de 6,5 anos entre os jovens do campo contra mais de 9 anos em média para os moradores das cidades”. Além disso, em relação à ocupação, os autores registram que “35% dos jovens rurais estão predominantemente envolvidos em tarefas rurais não agrícolas” o que leva à conclusão de que “nem todos os jovens rurais são agricultores”. Ainda registram que “boa parte desses jovens não aspira ao trabalho agrícola pelas suas condições adversas, enquanto outros não desejam se identificar como jovens do campo” (FERREIRA e ALVES apud ANTUNES- ROCHA e LEÃO, 2015, p. 23). Nesse sentido, encontramos a discussão de Lima e Oliveira (2017) sobre o artigo “Juventude camponesa: unidade dialética campo – cidade”, do Professor Luciano e da Agrônoma Rejiane, que trata das diversas dimensões que estão relacionadas à saída ou a permanência da juventude camponesa em suas comunidades rurais, relacionando elementos contraditórios quando se fala na relação campo e cidade. A ideia dos autores é romper com a crença de que a juventude está deixando o campo para ir viver na cidade. Para tanto, consideraram os elementos que atingem frontalmente o cotidiano de todos os sujeitos que vivem no campo, pelo estigma do movimento que estabelece tensões segregatórias a que os autores remetem ao papel de desqualificação simbólica, associada ao rural, atribuído aos camponeses. Enfim, tratam das dificuldades e das facilidades dos jovens em permanecer no campo ou buscar nas cidades alternativas para se reproduzirem socialmente. Os jovens cultuam laços que os prendem ainda à cultura de origem, ao mesmo tempo em que percebem “sua autoimagem refletida no espelho da cultura urbana”. Estão situados em meio a uma dúvida frequente que ainda os prende à família e à escola, entre o início da vida profissional e o casamento, entre a dependência e a autonomia econômica. (PUNTEL, PAIVA, RAMOS, 2011, p. 9). Estes autores apresentam um gráfico em sua pesquisa sobre os maiores problemas apontados pelos jovens (2010), para continuarem a viver no campo. A leitura desses dados nos mostra que 38% dos sujeitos pesquisados pelos autores alegou que a baixa remuneração era o maior problema para se viver no campo. 23% dos pesquisados alegou como problema o fato de não terem propriedade de terra. Outros fatores foram mencionados como problemas da vida no campo: dificuldades para acessar créditos para novas atividades produtivas (12%), dificuldades de acesso ao ensino (8%), ausência de infra-estrutura (sic.) de saúde (7%), trabalho permanente (7%) e falta de opções de lazer e cultura (5%). 218 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A baixa remuneração e a falta de terra figuram no topo desta pesquisa, chamado a atenção para a falta de materialidade para que os jovens possam se estabelecer no campo, como temos aqui tratado. A lógica do agronegócio, cada vez mais, dificulta e inviabiliza a reprodução material da vida das famílias camponesas (OLIVEIRA, 2007). Ficar ou sair não é simplesmente uma escolha ao bel-prazer dos jovens, mas uma difícil decisão permeada por condicionantes estruturais sobre as quais os jovens individualmente não conseguem incidir no sentido de superá-las. A superação dessas condicionantes estruturais só pode ser conseguida através de intensas lutas coletivas que disputem e pressionem o Estado, e o façam agir através de políticas públicas específicas, que sejam capazes de suprir as necessidades das juventudes camponesas, criando, de fato, as condições para que as mesmas possam realmente escolher viver no campo sua condição juvenil. (MOLINA, 2015, p15). Percebe-se que uma das maiores centralidades é, sem dúvida, a garantia do acesso à terra para juventudes camponesas. Molina (2015, p. 15-16) alerta para a importância em garantir seu acesso aos meios de produção: é o acesso à terra, articulado à política públicas específicas de educação, de crédito e de assistência técnica, direcionadas para construção de outra matriz produtiva, baseada na agroecologia, de cultura e de novas tecnologias, entre outras, que lhes permitirá construir bases sólidas para garantia de sua reprodução social no meio rural. Dessa maneira, podemos dizer que a migração dos jovens do campo para as cidades passa a ser entendida não como uma tendência, mas como algo que deveria ser mais cuidadosamente entendido, em todos os sentidos: suas causas e também suas consequências para o campo. Esse cuidado requer o levantamento de possibilidades para que o campo se desenvolva social e economicamente de forma mais equilibrada e harmônica com os centros urbanos. As políticas que focam a produção, mesmo aquelas pautadas na agroecologia, são fundamentais para a geração de emprego e renda. Essa dimensão nem sempre é suficiente para conter o processo de migração de jovens, por isso é relevante pensar numa estratégia que realmente leve em consideração as diversas dimensões que afetam a vida das juventudes (Stropasolas, 2014, p. 81). Nesse sentido, pensamos em termos de políticas que melhorassem a vida do jovem no campo, dando-lhe oportunidades de trabalho e permanência. Caminhos dos que persistem em continuar em seu território Em oposição à migração, é importante considerar o conceito de permanência na terra. Ou seja, a não-migração: A não-migração ... é caracterizada pela permanência das pessoas residentes em determinada localidade, enquanto os fatores de atração dos locais de origem agem levando parte da população a migrar. A não-migração é então a fixação ou 219 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS permanência da população nos seus locais de origem ou de residência atual... (LISBOA, 2008, p. 10-20). Segundo o Censo de 2010, cerca de 8 milhões de pessoas em uma faixa etária considerada jovem (15 a 29 anos) estão no meio rural, representando 27% de toda a população rural. Mais que migração, nota-se um fenômeno de circulação pela região em busca de oportunidades para construir sua autonomia em um arco restrito de possibilidades. (ANTUNES-ROCHA e LEÃO, 2015, p. 24). Permanecer na terra requer materialidade, mas a impossibilidade do acesso à terra, a ausência de políticas públicas que lhes garantam condições mínimas de sobrevivência nos territórios rurais de origem, impingem a esses jovens, contínuas rotas de migração pela região norte, em busca de espaço para sua reprodução material. (MOLINA, 2015, p. 15). Nesse aspecto, faz-se necessário um repensar na questão social na qual estão inseridas a juventude campesina e a questão dos modelos de desenvolvimento do campo. Wanderley (2011) reflete, nesse sentido: Para compreender a situação atual da juventude rural, bem como suas perspectivas futuras, é preciso levar em conta que esse segmento está inserido numa estrutura social dominada pela concentração de terra e por uma concepção de desenvolvimento definida pela modernização conservadora da agricultura (WANDERLEY, 2011, p. 4). A forma pela qual os camponeses e suas famílias têm para garantir sua existência é o acesso à terra, condição estruturante para a agricultura familiar, pois da terra depende a produção rural para a subsistência e, ainda para o comércio local (LIMA, 2013, p. 26). Além disso, a terra é o principal patrimônio dos agricultores. Fatores que possam impedir o acesso a terra contribuem com a migração para as cidades. Por outro lado, processos que facilitem o acesso a terra – por exemplo, por meio de políticas públicas – pela mesma razão, impulsionariam a permanência na terra. Ainda há estratégias mais cruéis de acumulação e extração de mais valia da força de trabalho da juventude camponesa neste tempo histórico de hegemonia do agronegócio no Brasil, que são os episódios de trabalho análogo à escravidão. De acordo com os dados apresentados no referido artigo, uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho (2011) verifica que 52,9% dos trabalhadores resgatados em ações do Ministério Público do Trabalho, entre os anos de 20002 a 2007, eram pessoas com menos de 30 anos de idade, vindas sobretudo de locais onde não há acesso à terra ou vivendo em condições precárias de reprodução da vida. (MOLINA, 2015, p. 14-15). Esses dados são um alerta para os que querem continuar no campo, para os que desejam permanecer, pois a falta da terra configura-se como fator de peso para a decisão da migração. 220 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Pensar políticas que contribuam com a autonomia dos jovens e das mulheres no campo é fundamental, no sentido de que por vezes o sistema hierárquico familiar, ao não remunerar os jovens dentro de sua expectativa, fortalece a ideia de saída do meio rural. O desafio de construir políticas públicas para a juventude rural se torna ainda maior nesse contexto agrário de concentração de terras, aumento do êxodo rural e o fortalecimento de um modelo agrícola baseado no agronegócio. O fortalecimento da agricultura familiar e camponesa e a aceleração dos processos de Reforma Agrária são as saídas que se apontam para criar um ambiente favorável para a permanência da juventude no campo (COVER e CERIOLI, 2015, p. 65 apud ANTUNES-ROCHA e LEÃO, 2015). Além disso, a saída de jovens do campo está relacionada à falta de acesso à educação. Segundo Abramovay (1992, p. 29 apud PUNTEL, PAIVA e RAMOS, 2011, p.9), “são fortes os indícios de que, ao menos até recentemente, acabaram ficando na propriedade paterna exatamente aqueles jovens que tiveram menos oportunidades educacionais”. Ainda mencionando a recente entrevista sobre a Educação do Campo na atualidade, concedida às mestrandas do Programa de Pós-Graduação: Educação e Docência da Fae/UFMG na Linha: Educação do Campo, cabe ao contexto discutido algumas ponderações do entrevistado Decanor Nunes dos Santos que relata: Uma coisa que me preocupa é que, no campo da educação pra essa juventude do campo com os programas e modelos de escola que a gente tem, no campo dos próprios movimentos sociais que aí está, está falando de forma contraditória, uma lógica que muitas vezes não conduz pra emancipação pra juventude no campo; se discute muito sobre empreendedorismo, no nosso conhecimento de emancipar os povos do campo. Empreendedorismo traz uma essência que, se a gente aprofundar, a gente imagina que está trazendo a essência do capital, essas coisas, esse debate da agricultura familiar que vem com pacotes de ideias de veneno químico, adubos solúveis, máquinas, trazer as máquinas pra alimentar um sistema. O que a gente tem feito com essa juventude é tentar aproximar ao máximo aos movimentos sociais do campo como um todo pra ver o que nós podemos fazer pra poder afirmar o protagonismo dessa juventude no campo, os desafios são muitos (SANTOS, 2017). Ele critica os programas e modelos de ensino, que conduzem a uma educação desviada dos ideais do campo sustentável. Segundo o entrevistado, a juventude camponesa é deficitária de uma política pública que a ampare. A política pública precisa estar voltada pra essa população jovem no campo e nós vimos também que um dos setores que está segurando os jovens no campo é a aposentadoria rural. Sem essa aposentadoria, muitos jovens já tinham saído, pois essa juventude está lá esperando trabalho, porque, quando está lá faltando um apoio de assistência técnica pra que, de fato, essa forma de trabalhar no campo, mesmo sendo na pequena propriedade dos pais, quando jovem vai produzir ele não tem nem espaço, pois tem que ajudar o pai e a mãe (SANTOS, 2017). Ademais, Santos (2017) critica os cursos oferecidos aos jovens, no sentido de que esses cursos se desviam dos princípios basilares da Educação do Campo, da essência pela qual os Movimentos tanto têm lutado. Seria uma 221 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS formação forjada como “do Campo”, mas que na verdade conduzem os jovens para outros caminhos. [...] então a gente está tentando discutir a relação dos cursos de formação, nós estamos vendo muitos cursos que estão sendo ofertado com uma pedagogia do controle social feita pelos sindicatos patronais; a gente vê que muitos jovens estão fazendo esses cursos, e a gente sabe que esses cursos são questionáveis, eles não estão dialogando com uma pedagogia da educação do campo; pelo contrário, ou senão essas instâncias de gestão estão trazendo uma forma de controlar e elas mesmas vão pro campo debater a educação que muitas das vezes não é a que nós queremos. O governo também está aí debatendo os cursos técnicos, e levando a educação do campo mais na pedagogia do capital. Não está sendo fácil, está sendo difícil, porque também a gente está percebendo que nós estamos muito nos quadrados, não estamos em rede pra debater mais aprofundado a educação do campo; com isso a juventude fragiliza. Santos (2017) trata dos desafios e das possibilidades da saída do jovem para estudar na cidade, da falta de conhecimento e formação dos professores, do cerco do sistema que impõe um mercado capitalista. Nesse sentido, ele afirma: Eu diria que isso não está parado; a discussão está sendo feita pra gente ver como rompe a lógica desse modelo que está aí pra formar essa juventude que está no campo, pois a gente percebe que no campo da educação, os jovens estão estudando na cidade e nisso o projeto político-pedagógico lá não adequa ao projeto político-pedagógico da educação do campo e, quando chega esses jovens lá na cidade, há uma diversidade de professores, cada um pensando em seu jeito de desenvolvimento, professor que nunca viveu, nem esteve no campo, nem conhece a educação do campo, e esses mesmos eles estão educando e a preocupação nossa é que educação esse pessoal está dando, e muitas das vezes nem dialoga com projeto de sociedade que queremos da escola. Além do mais, cada um pensando do seu jeito, e lá na cidade tá recebendo uma educação que não é a educação do campo, que é um projeto de transformação. Pensar num futuro para as juventudes camponesas exige que acreditemos nesses jovens e no potencial que eles têm, um trabalho de conscientização, de valorizar as capacidades de articulação coletivas para a construção de novas relações sociais e de novas relações com a natureza. A participação em movimentos sociais como um dos caminhos para os jovens. De acordo com Dayrell (2007, p. 1108), o lugar social que o sujeito ocupa “vai determinar, em parte, os limites e as possibilidades com os quais constroem uma determinada condição juvenil”. Tem-se percebido no campo a manifestação de diferentes estratégias que as juventudes camponesas vêm construindo para conseguir enfrentar essas condicionantes estruturais: luta pela terra, acesso e permanência à educação, permanência no campo, dentre outras. Nesse sentido, Molina (2015) registra que a inserção e o pertencimento a um sujeito coletivo como a participação em movimentos sociais e movimentos sindicais ressignifica as possibilidades e as potencialidades de ser um jovem camponês, garantindo muitas vezes, o acesso 222 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS às políticas públicas de formação conquistadas por essas organizações, como, por exemplo, a participação nos cursos do Pronera; do Procampo; do ProJovem Campo – Saberes da Terra. (MOLINA, 2015, p. 16). Quando os povos do campo reorganizam suas lutas, no final dos anos 1970, vemos emergir os jovens do campo como categoria distinta. Até então, estavam inseridos entre os adultos, no máximo como dependentes dos pais. A emergência de movimentos como o MST e a ampliação dos sindicatos possibilitou a criação de coletivos juvenis, com demandas específicas com relação ao trabalho, às relações de gênero e étnicos- raciais e à educação, entre outras. (ANTUNES- ROCHA e LEÃO, 2015, p. 25-26). Estes autores alertam para o fato de que: Encontramos jovens envolvidos em diferentes ações coletivas, desenvolvendo iniciativas políticas, sociais e culturais, articulados em projetos educativos e com questões de gênero e étnico-raciais, resgatando saberes tradicionais e lutando pelo acesso aos saberes científicos e tecnológicos que possam garantir uma produção sustentável (ANTUNES- ROCHA e LEÃO, 2015, p. 25). Já a década de 80, foi marcada pela emergência de novos sujeitos sociais. Sobre esse assunto, Santos (2010) esclarece, inclusive sobre a experiência brasileira: Se nos países centrais a enumeração dos novos movimentos sociais inclui tipicamente os movimentos ecológicos, feministas, pacifistas, antirracistas, de consumidores e de autoajuda, a enumeração na América Latina – onde também é corrente a designação de movimentos populares ou novos movimentos populares para diferenciar a sua base social da que é característica dos movimentos nos países centrais (a “nova classe média”) – é bastante mais heterogênea. Tendo em vista o caso brasileiro, Scherer-Warren e Krischke destacam a “parcela dos movimentos sociais urbanos propriamente ditos, os CEBs (Comunidades Eclesiais de Base organizadas a partir de adeptos da Igreja Católica), o novo sindicalismo urbano, e, mais recentemente, também rural, o movimento feminista, o movimento ecológico, o movimento pacifista em fase de organização, sectores do movimento de jovens e outros (SANTOS, 2010, p. 257. Grifos não constam no texto original). Como se vê, a década de 80 desencadeou uma gama diversa de organizações variando em campos identitários, sendo que dentre eles despontam organizações das juventudes no campo. Galindo (2015) registrou que: É também na década de 80, mais precisamente em 1983, que nasce a Pastoral da Juventude Rural (PJR), que, juntamente com outras pastorais e grupos, constitui o segmento social da igreja católica. Dada a influência histórica da igreja sobre o sindicalismo rural, não é possível negar a contribuição da PJR para a organização da juventude no movimento sindical (GALINDO, 2015, p. 112). Eryka Galindo cita (2015, p. 113) o 4º CNTR – Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais –, em maio de 1985, quando foram aprovadas duas propostas “em torno da organização específica da juventude do campo”. Desenvolver um trabalho específico junto aos jovens, visando a formação de futuras lideranças para o Movimento Sindical. 223 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Realização de um Congresso Nacional de Jovens, em 1986 e o desenvolvimento de um trabalho específico com jovens visando a formação de futuras lideranças para o movimento sindical (CONTAG, 1985, p. 52 apud GALINDO, 2015, p.113). Além de incorporar o termo juventude, segundo Galindo, o Congresso deixou clara a necessidade de “realizar uma ação específica com esse segmento, focada na estratégia da educação sindical” (GALINDO, 2015, p. 113). E citando o 8º CNTTR – Congresso Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais –, Galindo lembra um marco na organização da juventude do campo que “foi a eleição, em 2001, da primeira coordenadora de Jovens Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais da CONTAG” (apud GALINDO, 2015, p. 115) e do 9º CNTTR ela destaca que “foi aprovada a cota de participação, de no mínimo, 20% de jovens nas instâncias do Movimento Sindical” (GALINDO, 2015, p. 116), conforme dados da CONTAG. Esta autora afirma que “só nos anos 90 ganha corpo uma identidade-juvenil camponesa, que reivindicou estruturas, linguagens e ações diferenciadas dentro do ambiente sindical” (GALINDO, 2015, p. 112). E cita os Festivais da Juventude Rural a nível nacional que ocorreram, de acordo com a autora, em 2006, 2007 e 2010. Menezes, Stropasolas e Barcellos (2014, p. 18) sobre a atuação da Secretaria Nacional da Juventude – SNJ –, ressaltam: O I Seminário representou para a SNJ o esforço de buscar novas metodologias de participação social. Mais do que um evento, foi uma iniciativa importante para o aprofundamento da participação e do controle social como método de governo. Este foi um passo fundamental para a transformação das demandas e pautas em programas, ações e políticas concretas, como o Programa de Fortalecimento da Autonomia Econômica e Social da Juventude Rural (PAJUR), lançado em julho de 2014. Ainda temos muito a construir para a real incorporação desse segmento num projeto de desenvolvimento sustentável e solidário, e para o reconhecimento desses e dessas jovens como sujeitos políticos e de direitos fundamentais em um país mais justo e com soberania alimentar. Atualmente, pode-se assegurar que “os movimentos sociais ocupam um lugar central para os jovens camponeses” (ANTUNES-ROCHA e LEÃO, 2015, p. 25). Estes autores concluem que “ao se vincularem a organizações coletivas, notadamente aquelas de luta pela terra, os jovens constroem possibilidades de acesso aos programas e projetos, ao mesmo tempo em que lutam por um espaço que possa se constituir como um território para a afirmação de sua identidade camponesa”. Dessa maneira, Matos e Alencar (2005) afirmam que: O movimento sindical representa um espaço privilegiado de construção de novos saberes que os tornam críticos, conscientes e serve de base positiva para a afirmação e elaboração da identidade dos jovens rurais sindicalizados. Afirmaram que foi por meio do movimento que aprenderam a valorizar a agricultura familiar e sentir orgulho de serem trabalhadores rurais. 224 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Percebe-se pela leitura feita neste artigo que as juventudes campesinas têm resistido às questões impostas pela sociedade que segrega e não ampara. Assim, os jovens campesinos, organizados em movimentos sociais vêm mostrando sinais de resistência, de continuidade e de mudança. Considerações finais Finalizamos ressaltando que para compreender esse jovem do campo e sua relação com a escola e seu processo de inserção na vida comunitária é preciso evidenciar como estes têm resistido às formas que lhes impõe um lugar do atraso. E, para isso, as juventudes campesinas têm resistido às questões impostas pela sociedade que segrega e não os ampara. O enfrentamento da falta de trabalho, bem como a busca por estudo, levando-os a migrarem para os centros urbanos. Este é o cenário da juventude, ou melhor, das juventudes do campo. Contudo, mesmo diante desse contexto, é evidente que os jovens campesinos, organizados em movimentos sociais, mostram sinais de resistência, de continuidade e de mudança, desde que inseridos nos processos de transformação do campo brasileiro. Compreender como ocorre a inserção desses sujeitos nas estruturas sociais, com pensamento crítico, e com uma formação transformadora, como nos adverte Paulo Freire (1996) em Pedagogia da Autonomia, passa por refletir e formar sujeitos capazes de pensar por si mesmos no mundo e com o mundo. É com essa perspectiva que a escola, especialmente a escola do campo, deve trabalhar pedagogicamente com esse jovem, com a juventude camponesa, assim como evidenciou a pesquisa aqui abordada de Oliveira (2019), ao produzir uma sequência didática no sentido de dar a esses jovens possibilidades para superar esta invisibilidade e inserir-se no processo formativo enquanto principais interessados. 225 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Hucitec, 1992. ALVES, Maria Zenaide. Crescendo “longe demais das capitais”: um olhar sobre a juventude de um município rural mineiro. In: LEÃO, Geraldo; ANTUNES – ROCHA, Maria Isabel (orgs.). Juventudes do campo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 87104. ANTUNES-ROCHA, Maria Isabel e LEÃO, Geraldo. Juventudes no/do campo: questões para um debate. In: Juventudes do Campo/ Geraldo Leão, Maria Isabel Antunes-Rocha (organizadores). Coleção: Caminhos da Educação do Campo. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p.17-27 CARMO, Nayara Cristine Carneiro do. Um mapeamento da Educação do Campo em Minas Gerais: um estudo sobre egressos da licenciatura em educação do campo da UFMG (2005-2011) do Vale do Jequitinhonha. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa De Pós-Graduação: Educação e Docência. Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Fev 2019. COVER, Maciel; CERIOLI, Paulo Ricardo. Juventude rural e modelos de desenvolvimento agrário. In: LEÃO, Geraldo; ANTUNES – ROCHA, Maria Isabel (orgs.). Juventudes do campo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação e Sociedade. Campinas, v 28, n 100, 2007. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/es/v28n100/a2228100Acesso em nov 2018. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 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Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 31-52. 227 A COMUNICAÇÃO POPULAR COMO UM ATO DE EDUCAÇÃO E CORAGEM Decanor Nunes dos Santos1 Maria Aparecida Afonso Oliveira2 A Comunicação Popular na Cáritas: trajetória em movimento Primeiramente, procura-se situar o leitor sobre a trajetória da Cáritas no trabalho com comunicação popular bem como a participação dos autores como comunicadores e educadores populares. Esta contextualização se torna importante, pois permite a compreensão sobre os motivos da escrita deste trabalho, embasando-se principalmente na pesquisa3 de pós-graduação elaborada pelo autor Decanor Nunes. Foi por meio da Cáritas Diocesana de Almenara 4, no ano de 1988, como educador popular, a primeira experiência em contato com o sistema de transmissão com frequência radiofônica AM, pela Rádio Santa Cruz de Jequitinhonha5, na cidade de Jequitinhonha – MG, mais precisamente no Baixo Vale do Jequitinhonha, região reconhecida também como Diocese de Almenara. A entidade Cáritas recém criada em 1983, conseguiu através da Rádio Santa Cruz por volta do ano de 1986, um espaço nessa emissora para comunicar com o povo da região durante 30 minutos, toda semana, em um programa chamado “Abrindo 1 2 3 4 5 Especialista em Educação do Campo. Educador e Comunicador Popular. Coordenador de projetos/Cáritas Diocesana de Almenara – Baixo Jequitinhonha. Contato: decanornunes@gmail.com. Mestre em Educação. Educadora e Comunicadora Popular. Contato: mariahafonso@yahoo.com.br. Trabalho da pós-graduação Lato Sensu em Educação do Campo FaE/UFMG, intitulado ‘Reforma Agrária no Ar – Ocupar, Resistir, Ir Radiar’, orientado pelo Prof. Dr. Marco Scarassatti e pela coorientadora Profª. Drª. Cristiene Adriana da Silva Carvalho. Cáritas Diocesana de Almenara, entidade ligada à Pastoral Social da Igreja Católica, linha 06 da CNBB, situada na Diocese de Almenara, Baixo Vale do Jequitinhonha, fundada em 1983, e com atuação regional em parcerias aos movimentos sociais da região do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas Gerais, com sede na cidade de Jequitinhonha-MG. Da sua fundação até os dias atuais, a Cáritas vem trabalhando com projetos e organização comunitária (ênfase maior no campo), agroecologia, apoio a luta pela terra e na terra, Economia Popular Solidária, Educação do Campo e Contextualizada, formação para cidadania, comunicação popular, implementação de tecnologias sociais de convivência com o semiárido para captação de águas de chuvas, dentre outros. A Rádio Santa Cruz de Jequitinhonha (AM), uma emissora católica, com uma existência de quase meio século. Possui um alcance de potência de 10.000 watts e cobre os Vales do Jequitinhonha, Mucuri e Sul da Bahia. Mais informações: www.santacruz890.com.br. EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Caminhos de libertação”6. Foi nesse programa o primeiro contato com o rádio, no qual contribuía também nas leituras dos conteúdos das laudas radiofônicas e reflexões. Aos poucos, aquela comunicação ia ganhando segurança e a programação chegava fortemente nas moradias, nas vidas do povo dessa região, de modo especial às pessoas residentes no campo a quem a Cáritas focava e concentrava mais o seu trabalho social. Em contato com a programação radiofônica, juntamente com os demais parceiros da entidade, havia também o acompanhamento às comunidades rurais diante dos pequenos projetos comunitários com apoio de verbas provenientes de doações internacionais (fabriqueta de farinha, implementos agrícolas, banco de sementes etc.). Com as andanças pela região, percebia-se que, o rádio de fato estava presente no cotidiano das pessoas no campo, e, por sua vez, seria uma importante ferramenta para contribuir com esse povo camponês disseminando através das ondas do rádio, educação, informação, formação, anúncios, denúncias, participação das pessoas por meio de gravações na própria localidade onde residiam, como também indo até a emissora de rádio para participar da programação da entidade. A iniciativa de comunicar através do rádio para todo o povo da região demonstrava a cada dia que combinava bem a interação entre os acompanhamentos no campo com os projetos sociais desenvolvidos e as programações radiofônicas. Nesse programa se falava de tudo um pouco, porém, com a intencionalidade de tratar das questões que contribuíam com os processos de emancipação e libertação humana inspirado a partir da missão do jeito de ser Cáritas, sem perder de vista os excluídos da sociedade. Posteriormente, com o programa ‘Abrindo Caminhos de Libertação’ tendo o seu público de radiouvintes assegurados pela região, a Cáritas resolveu mudar o nome do programa criando o ‘Mulheres em Ação’7 que tinha como objetivo falar das questões de gênero, até então, um tema muito delicado pela forma que as mulheres eram tratadas pela visão machista dos homens nessa territorialidade em geral, entre outras tantas fragilidades no campo. Os anos foram passando e a instituição dando prioridade nessa comunicação e educação popular. Havia a percepção de que nos programas de rádio aumentando cada vez a audiência e, nas andanças pelas comunidades rurais, feiras livres, nas cidades, o povo certificava tal audiência anunciando que ouvia a programação pela Rádio Santa Cruz. Na convivência com o rádio, acompanhando as comunidades rurais, o prazer e amor por esse tipo de comunicação foi bastante inusitado, chegando a propor para a Cáritas a necessidade de ter um programa também com mais 6 7 Programa radiofônico levado ao ar sob a responsabilidade da Cáritas Diocesana de Almenara, que tinha como objetivo levar informações sobre direitos e cidadania por volta dos anos de 1983/1984. Programa radiofônico voltado mais exclusivamente para a organização das mulheres, em especial as mulheres camponesas, a partir dos anos 1986/1987. 230 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS especificidades das questões diretas com a terra (reforma agrária, agroecologia etc.). E assim, a emissora radiofônica Santa Cruz aceitou a solicitação da Cáritas e formalizou um espaço para a programação aos domingos, 9 horas da manhã com duração de 30 minutos. O novo programa criado recebeu o nome de ‘Santa Cruz e o Homem do Campo’. Com isso, indagava-se como fazer um programa que de fato fosse despertar mais a atenção dos radiouvintes do campo em especial? O programa iniciou e o horário da programação da emissora era considerado um horário nobre para audiência. É importante ressaltar que, nessa época, já por volta de 1989, já havia uma equipe de quatro pessoas, dentre elas três mulheres assistentes sociais, que passaram a responsabilizar pelo programa ‘Mulheres em ação’, e Decanor, mais individualizado, cuidar do ‘Santa Cruz e o Homem do Campo’, quase sempre com a contribuição dos demais da equipe. Este programa foi ao ar já ganhando espaço tanto nos rádios do povo camponês como também do povo nas cidades pela região. Com isso, houve a necessidade de usar mais criatividade e fazer uma programação alegre, de muita proza, de envio de abraços, de atendimentos de cartas que chegavam, de anúncios e denúncias, enfim, o rádio e a programação afirmando sua importância de formar e educar o povo radiofonicamente. Com a intenção de buscar sempre a criatividade no rádio através de uma comunicação popular, surgiu a ideia de criar personagens dentro da programação. E assim foram criados vários personagens que ganharam o nome de ABC8, Bernadety9, Valdir de pé-de-serra10, Trincado11 e Caboclo Maxacali12. A programação até então, sem esses personagens, tinha um nível mais baixo de audiência, e com a chegada dos personagens, aumentou de forma muito interessante, certificado a partir de centenas de cartas que chegavam para a programação e depoimentos de radiouvintes, conforme demonstra relato a seguir: Recordo-me do ABC e Cia. Lembro de um programa de rádio que fez onde procurou ilustrar para as pessoas fazendo girar sobre a mesa do estúdio uma espiga de milho nativo de paiol e perguntando para os ouvintes através do personagem do ABC: vocês estão ouvindo esse barulho? É uma espiga de milho de qualidade, milho de paiol, o verdadeiro pra se plantar! E outra coisa que me marcava muito e vibrava com aquilo era o futebol, show demais! As pessoas do mato, do campo se identificavam com os personagens, pois eram como eles, sofredores, 8 9 10 11 12 ABC, principal personagem da programação, com sotaque e ideologias fortemente camponesa e muito apreciado e admirados pelos radiouvintes tanto no campo quanto nas cidades. Bernadety, personagem criada a partir da visão de uma adolescente do campo e filha do personagem ABC. Valdir de Pé-de-Serra, personagem que narrava o futebol entre equipes, onde os jogadores eram nomes de elementos da natureza e de pessoas ditas importantes. Bloco radiofônico muito apreciado pelos radiouvintes. Trincado, personagem de fala fina, reportava sempre à beira do gramado em dias de futebol as jogadas importantes, junto com Valdir de Pé-de-Serra. Caboclo Maxacali, personagem inspirado nos povos indígenas da região do Vale do Jequitinhonha, com dialeto próprio da cultura. 231 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS trabalhadores, de rosto suado, de fala sem rodeios e vocabulário simples e carregado de sabedorias, direto e objetivo. Lembro das muitas cartas de ouvintes que chegavam lá na rádio. Essa região nossa, tão sofrida, precisa de mais programas que fale a língua do povo. Frei Eliseu falava comigo que suas palavras são bem entendidas, desde as pessoas mais simples até um doutor. E o programa fazia isso com simplicidade, mas com muita identidade (Depoimento do comunicador popular e radialista da rádio Santa Cruz de Jequitinhonha Anderson Tempo em 29/06/2014). Este depoimento retrata a cena do ato em que foram jogadas sementes sobre a mesa do estúdio de gravação da rádio, e uma bela espiga de milho nativo rodando sobre a mesa, anunciando sobre a importância de preservar as sementes cultivadas historicamente pelas mãos do povo camponês e o perigo do cultivo das sementes modernas e modificadas, as híbridas e/ou transgênicas. Essa comunicação feita por meio do rádio, dentro da programação dominical trouxe muitas reflexões por parte de radiouvintes camponeses, a exemplo de um camponês que deu seu depoimento durante um acompanhamento da entidade Cáritas pela comunidade do Assentamento Jardineira, município de Joaíma-MG, em que disse: Eu tinha comprado no comércio um saco de milho híbrido, daqueles envenenados, pra ser plantado na segunda feira seguinte, e no domingo pela manhã, escutando o programa de rádio “Santa Cruz e o Homem do Campo” - na fala de ABC e Decanor falando sobre sementes de milho nativo, mudei de ideia e plantei outro milho da região e não aquele comprado no comércio. Olha lá, tudo crescido! Eu não planto mais esse milho híbrido aqui, essas sementes que vem com pó vermelho, nas casas de comércio. Diante de tais depoimentos, nota-se que o rádio representa um papel social relevante, pelas experiências vividas nesse tipo de comunicação radiofônica, e dependendo da pedagogia metodológica de se comunicar, contribui efetivamente com a educação dos povos campesinos. Nas palavras de Freire “quanto mais refletir sobre a realidade, sobre sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la” (FREIRE, 1979, p. 35). A rádio comunitária camponesa que faz jus a este nome é facilmente reconhecida pelo trabalho que desenvolve. Ou seja, transmite uma programação de interesse social vinculada a partir da realidade local, não tem fins lucrativos, contribui para ampliar a cidadania, democratizar a informação, melhorar a educação informal e o nível cultural dos receptores sobre temas diretamente relacionados às suas vidas. A emissora radiofônica camponesa de base comunitária deve permitir ainda a participação ativa e autônoma das pessoas residentes na localidade e de representantes de movimentos sociais e de outras formas de organização coletiva na programação, nos processos de criação, no planejamento e na gestão da emissora. Enfim, se baseia em princípios da comunicação libertadora que tem 232 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS como norte a ampliação da cidadania e a Educação do Campo e no campo. Há casos históricos em que mesmo faltando um ou outro desses aspectos em uma rádio, esta consegue prestar bons serviços à comunidade onde se insere. Há rádios que facilitam mais o acesso à programação, outras, embora sejam conduzidas por pessoas comprometidas com a melhoria da “comunidade”, não têm tradição de facilitar o envolvimento amplo de representantes das organizações locais na gestão. Com o passar do tempo, já em 1996, o rádio ainda continuava muito presente na vida das pessoas, e a Cáritas seguia cumprindo sua missão no trabalho com o povo da região. Nessa ocasião, o ‘Santa Cruz e o Homem do Campo’ seguia com muita audiência, e, frequentemente, a Cáritas era convidada por meio de seus agentes, a participar de oficinas de rádio em algum movimento popular pelo país afora. No ano de 1995, agente Decanor Nunes foi convidado pelo Bispo da Diocese de Almenara, Dom Diogo, a fazer um curso de Comunicação Social da Congregação Paulinas em São Paulo. Já um pouco mais informado sobre a comunicação para além de produção de programa de rádio, houve a ideia de instalar a primeira rádio de cunho comunitário na cidade de Jequitinhonha, e porque não, a primeira do Vale do Jequitinhonha que se tem notícia, onde se sensibilizou toda comunidade, as organizações representativas desse município, o que deu início à reforma agrária no ar pela região. A rádio teria como papel principal expressar a comunicação de cunho local, que quase sempre não era difundido nos veículos de comunicação radiofônico de concessão pública, como o caso da Rádio Santa Cruz. Com o advento da luta pela terra já surgindo no Brasil com lutas mais acirradas através do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, inclusive na região marcada por terras devolutas e improdutivas no Baixo Jequitinhonha, o grito de ordem que prevalecia era “ocupar, resistir, produzir”. No entendimento da Cáritas era necessário também, fazer comunicação popular, ocupar o ar improdutivo, quando poucas ondas eletromagnéticas ocupavam os ares da região. Em um cenário ocupado com pouquíssimas ondas eletromagnéticas e de concessão foi criado na cidade de Jequitinhonha a Associação Beneficente e Cultural de Comunicação Comunitária (ABECCO) que passou a representar a rádio comunitária. Por volta do ano de 1995, a emissora foi ao ar com intuito de elevar a comunicação local e sonhar mais tarde com uma possível concessão pública. Foi uma bonita experiência urbana que envolveu jovens, lideranças de comunidades, as entidades etc. Certo dia, com a rádio funcionando e com grande audiência, por denúncia da própria Rádio Santa Cruz, a rádio foi surpreendida pela fiscalização do governo, momento em que foi fechada pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), conforme Termo de Lacração do Ministério das Comunicações, 1997. 233 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS No Brasil há o desafio de uma política nacional de comunicação formulada e expressa, o desafio é ainda maior quando se pensa em radiodifusão comunitária. As políticas são implícitas e mais favoráveis aos grandes grupos da mídia burguesa e ao mercado das comunicações do ponto de vista prioritário do negócio. Neste sentido, Peruzzo (2003) comenta: As rádios comunitárias vêm sendo tratadas como “casos de polícia”, sob o comando da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e da Polícia Federal. Em outras palavras, há leis isoladas, como as da radiodifusão comunitária e dos canais comunitários no sistema cabo de televisão, mas não uma política implementadora que conduzisse a práticas e regulamentação facilitadoras do exercício de direito por parte do cidadão, das comunidades e das organizações civis coletivas e sem finalidade de lucro (PERUZZO, 2003, p. 90). Alguns dias depois, retomou-se a ocupação do ar ao fazer a emissora voltar a funcionar. Porém, a ANATEL novamente veio fechá-la e assim, o coletivo de luta pela democratização da comunicação de rádio se desfez. A partir da práxis vivenciada é que a Cáritas elaborou um projeto de instrumentalização de equipamentos de rádios com a finalidade de ampliar e fazer a reforma agrária no ar, ou seja, nas comunidades rurais e urbanas da região, mais especificamente as rurais, fazendo valer o tripé gerador “ocupar, resistir, ir radiar”. Detoni (2004) alerta sobre o processo que uma rádio de base comunitária pode passar: A presença de uma emissora comunitária mesmo que não totalmente participativa, tem um efeito imediato na população. Pequenas emissoras geralmente começam a transmitir música na maior parte do dia, tendo assim um impacto na identidade cultural e no orgulho da comunidade. O próximo passo, geralmente associado à programação musical, é transmitir anúncios e dedicatórias, que contribuem para o fortalecimento das relações sociais locais. Quanto a esta cresce em experiência e qualidade, começa a produção local de programas sobre saúde ou educação. Isso contribui para a divulgação de informações sobre questões importantes que afetam a comunidade (DETONI, 2004, p. 280). Vale destacar que, rádios comunitárias são emissoras de baixa potência, regidas pela lei 9.612/1998. Começaram a funcionar ainda antes da promulgação desta lei, pois representava uma demanda de lideranças locais e comunitárias, organizações sem fins lucrativos bem como movimentos populares organizados que buscavam construir canais de comunicação autônomos e que pudessem contribuir para o desenvolvimento local, fazendo valer a liberdade de expressão e o processo de mobilização social. De fato, as inúmeras emissoras de rádio que a Cáritas instalou junto às comunidades rurais na região, muitas delas, nem sempre têm uma dinâmica de interação com uma coletividade maior, porém, têm boa aceitação dos membros da comunidade local, especialmente no que diz respeito à veiculação musical e atendimento de cartas e avisos comunitários. 234 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS A Reforma Agrária no Ar: Perspectivas e Desafios Construir comunicação popular é potencializar um ato de educação, amor e coragem, especialmente ao atuar em uma região dominada por um poder político onde muito se promete e pouco se faz. Requer comprometimento e conhecimento de sujeitos coletivos institucionais, diante de um povo carente de cidadania e de seus direitos negados. Dessa forma, Borges (2009) reconhece: Sem enfrentar a ditadura midiática não haverá avanços na democracia, na luta dos trabalhadores por uma vida mais digna, na batalha histórica pela superação da barbárie capitalista e nem mesmo na construção do socialismo. [...] essa luta estratégica exige o reforço dos veículos alternativos, a denúncia da mídia burguesa e uma plataforma pela efetiva democratização da comunicação (BORGES, 2009, p. 14). Como se não bastasse o povo ser vítima do pouco caso do governo, faz parte de grande parcela da população ficar alheia e desinformada a respeito das iniciativas isoladas do poder público, o que faz com que não se tenha a mínima condição de fiscalizar o destino e o uso de verbas públicas. Na maioria das vezes, o povo não é consultado na concepção e realização de certos programas, o que resulta em falta de continuidade, obras que não são do interesse da comunidade e que se transformam em elefantes brancos e desperdício de recursos públicos, sem falar nos desvios dos mesmos. A partir da década de 1995, a Cáritas Diocesana começou a se preocupar em dispor de um instrumento de comunicação que pudesse levar até o povo informações até então mantidas na invisibilidade. Informações que pudessem irradiar mudanças políticas e educacionais em perspectiva crítica e emancipadora. Tal preocupação resultou na ideia de se montar algo que pudesse suprir, ainda que parcialmente, esta lacuna na área social. Um programa que fosse mais direto nas questões políticas e econômicas, o “calcanhar de Aquiles” desta região. Um programa que pudesse mexer com os politiqueiros. O importante era dispor de uma ferramenta que deixasse vulnerável os políticos corruptos: a informação. Além de informar os recursos públicos que vinham para a região, informar também os canais de denúncia. Diante disso, em meados de 1997, a Cáritas Diocesana iniciou a execução desta ideia, mediante a publicação mensal de um boletim, ainda em circulação na região, conforme se vê na imagem abaixo. O Objetivo principal do Boletim era informar à população sobre os recursos públicos destinados a cada município do Baixo Vale do Jequitinhonha e ainda, socializar denúncias e anúncios de políticas públicas na região. Com esta motivação, o boletim foi nomeado de Fique de Olho. 235 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Figura 01 – Boletim informativo Fique de Olho. Fonte: Arquivo Cáritas. Foi nesse período que surgiu a ideia de estimular a Reforma Agrária no Ar, com os instrumentos de rádios comunitárias pela região, tanto na espacialidade camponesa como no meio urbano. Assim, o boletim Fique de Olho e as Rádios se tornaram importantes instrumentos de comunicação e de educação popular na região, em especial, a partir daquele momento histórico. Entre as diversas iniciativas de ocupação do latifúndio do ar com as ondas eletromagnéticas, vale destacar a ocupação que aconteceu no assentamento Craúno em Jequitinhonha, no ano de 2004, quando houve uma grande sensibilização sobre a importância da democratização da comunicação e a utilização de uma rádio camponesa para que as pessoas se comunicassem entre si e para fora, em uma região de área extensa (cerca de 11.000 ha), com famílias distantes umas das outras. As seguir registra-se o momento da instalação da antena, ao lado de uma escola municipal na comunidade. 236 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Figura 02 - Foto: hasteamento da antena de rádio no Assentamento Craúno, Jequitinhonha/MG. Fonte: Arquivo Cáritas, 2004. Diante de tais ações, o grande desafio era fazer com que o povo dessa terra se interessasse pelos bens públicos e pelas iniciativas no campo da comunicação, educação e cidadania. Afinal, o conhecimento possibilita às pessoas enxergarem um mundo mais amplo buscando assim, a luta pelos seus direitos básicos, à vida e a construção da cidadania. E para isto, é necessário que se supere a cultura do silenciamento, do medo, das ausências de falas, que são aprendizados adquiridos historicamente desde os princípios da construção brasileira, o “tolhimento da fala”, conforme lembrado por Vieira (1959, p. 109), afirmando ser “a principal causa de todos os males do Brasil”. Construir essas possibilidades com intencionalidades de emancipação humana frente à educação e a comunicação libertadora, são desafios que já estão dados para análises reflexivas, e, comenta Freire (1971, p. 76) “O mutismo é característico da sociedade a que se negam a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”. Ainda insiste que essas sociedades se tornam preponderantemente “mudas”, referindo-se ao passado colonial do Brasil, refletindo que: Sem direitos cívicos, o povo foi marginalizado, irremediavelmente impedido de qualquer experiência de autogoverno ou diálogo [...] predominantemente marcado pela submissão. O povo se ajustou a uma estrutura de vida rigidamente autoritária, a qual formou e fortaleceu uma mentalidade antidemocrática (FREIRE, 1971, p. 76). Para potencializar frente a frente toda essa iniciativa que busca produzir comunicação e educação libertária, faz-se necessário envolvimento de lideranças comunitárias e demais organizações populares comprometidas com as causas sociais, e reconhecedoras dos seus papéis enquanto educadores. Nesse sentido, Freire nos alerta “o papel da liderança revolucionária é seriamente, enquanto atua, [...] encontrar canais para uma comunhão com ele. Canais pelos 237 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS quais possa ajudar o povo a perceber criticamente a realidade que o oprime” (FREIRE, 1971, p. 195). No cenário da realidade dos povos do campo no território do Vale do Jequitinhonha onde há atuação com a comunicação e educação popular, e em alguns momentos dialogando com escolas do campo, percebe-se que há um distanciamento de uma educação contextualizada que dialogue com a vida desses povos que, em sua maioria, tem a terra como base de sobrevivência. ‘Terra lá, nós aqui’! Os nossos educadores de fato conhecem bem e sabem o que vem acontecendo concretamente com a realidade de vida desses povos campesinos? São indagações que não nos deixam calar e tampouco aceitar esse modo de educação estabelecida no campo. Os meios de comunicação nesse território tampouco trazem esses contextos de vida camponesa ao cenário da publicização popular para que os povos urbanos também tomem conhecimento. O silenciamento provocado no campo traz também uma reflexão questionadora e reflexiva com o entendimento de que este território também é um lugar onde deve ser aprofundado sobre contextos de convívios entre seres humanos, a propriedade privada da terra, da água e porque não, da comunicação. Em uma região historicamente marcada pelo poder do latifúndio, é preciso afirmar que em um processo de educação e comunicação libertadora, a discussão sobre a propriedade privada dos meios de comunicação existentes deve estar entre temas geradores de destaque. A Comunicação e informação nesse cenário regional são instrumentos poderosos para debilitar a corrupção, fortalecer a cidadania e desvendar toda a trama do clientelismo. Temse verificado ações que, pouco a pouco, dão sinais de transformação. Assim, reafirma-se que, para educar e comunicar como um ato político para libertação humana neste cenário faz-se necessário afirmar com prioridade a articulação da comunicação popular em rede, tanto em instância local quanto regional, estadual e nacional. Assim, destaca-se como afirmação desta articulação territorial a Rede de Comunicadores e Educadores Populares do Semiárido Mineiro13, que, a partir da Articulação do Semiárido Brasileiro e Mineiro, há mais de 20 anos, possibilita e realiza uma diversidade de experiências de comunicação e educação popular, vindas do povo, com e para o povo, em sintonia com os movimentos e organizações sociais. Tais vivências são sistematizadas e publicizadas por diversos meios, onde a população, em especial a camponesa, através 13 A Rede de Comunicadores e Educadores Populares para Convivência com o Semiárido Mineiro – ASACom-MG se consolida com diversas organizações populares do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas, sintonizada numa rede à nível nacional que é a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), composta por diversas organizações populares da sociedade civil do Nordeste Brasileiro e do Nordeste de Minas Gerais, com uma ASA em cada estado nesse território, onde se discute o controle social das políticas públicas e o acesso das águas de chuvas como pauta prioritária em seu processo pedagógico histórico, de educação e comunicação popular. 238 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS de rodas de conversas, escolas e outros espaços, compartilham conhecimentos e também debatem a convivência com o semiárido, lugar e contexto de vida com forte relação entre os saberes e fazeres do povo. A Educação do Campo também potencializa e nos provoca a indagar sobre essas questões. Todavia, enquanto educadores que educam no campo, a necessidade de se capacitar nessas questões da terra e da vida dos povos do campo cabe a nós todos, pois educar é uma via de mão dupla. Essa tarefa de educar e ser educado são desafios presenciados e apontados no cotidiano no ato de educar para além das quatro paredes. Educar e comunicar no campo traz diversas questões merecedoras de avanços e da urgência em ampliar conhecimentos entre os saberes e fazeres na escola, organizações e demais instituições de ensino. Se a educação é descontextualizada, os sujeitos coletivos dentre educadores, gestores e representantes do poder público, precisam contextualizá-la, pois a tarefa essencial deve ser a de promover transformação social emancipadora, tanto no âmbito educacional, quanto nos meios de comunicação. Para construir comunicação popular e libertadora, é necessário democratizar a comunicação. Ademais, Pretto (1996) ressalta: Torna-se necessário pensar um pouco mais sobre o papel das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), uma vez que acreditamos que elas não podem ser reduzidas a simples ferramentas ou instrumentos a serviço da Educação, pois, como temos insistido isso seria simplificar demais seu papel, e não só na Educação, mas em todas as áreas do conhecimento e da vida social. Isso seria “uma negação completa das suas dimensões intrínsecas (PRETTO, 1996, p. 113). Outro grande desafio que se verifica na prática é a consciência místicoreligiosa do povo. A inexistência de planos e projetos que resolvessem o problema da comunidade é motivo de lamúria, mas não de mobilização para reverter o quadro. As estratégias no campo da formação fé e política, aquisição de projetos sociais associados aos conhecimentos de cidadania, controle social de políticas públicas, são alguns elementos essenciais para o desenvolvimento de pessoas e comunidades na região. Internamente, na Igreja, não se percebe preocupação por parte de alguns agentes de pastorais para superar esta visão estreita da fé e da caridade. O que sempre foi enfatizado perante a sociedade é que cabe à igreja organizar o assistencialismo nos municípios. E se sabe fazer com muita competência. Esta mentalidade é reforçada pelo grande número de religiosos estrangeiros que, com facilidade, trazem recursos para as obras sociais na região. São temas constantemente discutidos e veiculados via programas radiofônicos e boletins impressos. Neste sentido, os diversos meios de comunicação social existentes, de um modo geral, especialmente no que se refere ao instrumento radiofônico, têm um papel fundamental nesse contexto de vida dessa população. Compreende-se que a terra nessa região foi e ainda é marcada pelo apagamento historicamente 239 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS silenciado das grandes extensões de terras em mãos de poucos, provocando cada vez mais o empobrecimento dessa população. Deste modo, torna-se evidente, que a reforma agrária é um bem urgente e necessário. Da mesma forma, assistese a todo momento os meios de comunicação existentes, dominarem e se apoderarem desses espaços. Percebe-se que as ondas eletromagnéticas que pairam no latifúndio do ar transformando essas mesmas ondas em que faz chegar às inúmeras vozes, são controladas, como se faz o controle de bois no pasto e curral. Para Mészaros (2005): [...] a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”. As soluções educacionais formais, mesmo algumas das maiores, e mesmo quando são sacramentadas pela lei, podem ser completamente invertidas (MÉSZAROS, 2005, p. 45). Se a lógica da educação formal pode ser invertida, assim também pode acontecer com a mídia comercial dominada pelo poder burguês. Daí, importante missão, à exemplo da luta e o grito pela terra – “ocupar, resistir, produzir” – iniciou-se na região o lema “ocupar, resistir, ir radiar” como elemento já presente na cultura. Povo com acesso à terra através da tão sonhada reforma agrária, com acesso aos meios de comunicação, por meio da luta pela democratização desses meios, o controle social das políticas públicas de direito são elementos básicos de perspectivas para melhores condições de vida a partir dos dizeres ver, julgar e agir, diante da presença de saberes e fazeres dos movimentos populares pela região. O que se almeja é restabelecer a dignidade para homens e mulheres, que um dia lhes fora tirada. Em nome da vida. Em nome da comunicação e da Educação Contextualizada. Pela Reforma Agrária no Ar. Reflexões sobre Educação do Campo e Comunicação Popular Defende-se, a partir da atuação pela região, que a temática em foco – reforma agrária no ar –, também se compreende como eixo integrante da modalidade Educação do Campo, e que perpassa as quatro paredes da sala de aula, ou seja, almeja buscar os saberes e fazeres e necessidades dessa realidade cultural de vida, mas também dialoga um retorno concreto junto a esses grupos que estão ligados ao campo. Sobretudo, faz-se importante, cada vez mais, construir e disseminar conhecimentos sistematizados sobre a realidade a fim de entender e transformá-la, para melhor agir nela. Diante disso, a comunicação popular entre as pessoas, no caso específico do veículo instrumental rádio, especialmente as que vivem quase sempre isoladas no campo, negadas de direitos básicos das políticas públicas, da educação e informação, como também submetidas aos processos estereotipantes e 240 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS preconceituosos, é condição básica no contexto da Educação do Campo. Enquanto educadores e comunicadores populares 14, é relevante contextualizar e problematizar as dinâmicas humanizantes e desumanizantes. Neste sentido, reafirma-se a fala de Arroyo (2012, p. 98), “entender com maior profundidade esses processos pedagógicos de desumanização que os movimentos sociais denunciam é uma precondição para entender a radicalidade pedagógica de suas lutas por terra, territórios, águas, solo, teto, moradia, trabalho”. Assim, cabe destacar que, o que marca o movimento de Educação do Campo em seus mais de 20 anos de existência é o debate para o entendimento contraditório historicamente produzido pela sociedade capitalista, onde é questionada a exclusão dos trabalhadores, o seu direito à educação, à terra, trabalho, a defesa da escolarização como processo necessário à formação e emancipação humana, entendendo que “o objetivo central dos que lutam contra a sociedade mercantil, a alienação e a intolerância é a emancipação humana (MÉSZAROS, 2005, p. 15). É importante destacar categorias que explicam a dinâmica da realidade, isto é, uma prática social que é uma categoria imprescindível para compreender o movimento da Educação do Campo. Uma materialidade das relações sociais que possibilita conhecer esse movimento que se alargou pela sociedade brasileira. Trata-se de um movimento pela renovação da qualidade pedagógica e política da denominada Educação Rural. Historicamente e em consonância com a ideologia dominante, a educação rural, quando não relegada, fora usada como instrumento de subordinação estrutural dos povos camponeses. Era uma educação apenas “no” e não “do/para” o campo. Já a Educação do Campo, de acordo com Fernandes (2006): A Educação do Campo está contida nos princípios do paradigma da questão agrária, enquanto Educação Rural está contida nos princípios do paradigma do capitalismo agrário. A Educação do Campo vem sendo construída pelos movimentos camponeses a partir do princípio da autonomia dos territórios materiais e imateriais. A Educação Rural vem sendo construída por diferentes instituições a partir dos princípios do paradigma do capitalismo agrário, em que os camponeses não são protagonistas do processo, mas subalternos aos interesses do capital (FERNANDES, 2006, p. 37). Diante das diversas realidades territoriais e regionais, é necessário explicitar com clareza o modelo de educação que se pretende construir. Para tanto, é preciso desconstruir a educação rural. O modelo escravocrata utilizado por Portugal para colonizar o Brasil e, mais tarde, os adotados pelos próprios brasileiros para a colonização do interior do país, de exploração brutal pelos 14 Todo ser humano pode se tornar um comunicador popular. No panorama nacional da comunicação, a expressão “comunicador popular” está sendo usada para identificar pessoas sem diploma universitário de jornalismo que exercem algum tipo de atividade na área – em especial ligada à organização comunitária – remunerada ou não (DUARTE, 2002). 241 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS proprietários de terra dos trabalhadores rurais, aos quais eram sistematicamente negados direitos sociais e trabalhistas, gerou um forte preconceito em relação aos povos que vivem e trabalham no campo, bem como uma enorme dívida social. Carneiro Leão (s/d) afirma que “os males de uma política inspirada e importada do exterior, sobretudo da Europa, seriam maiores para o campo e para as pequenas cidades do que para os grandes centros urbanos” (LEÃO, s/d, p. 181). Os povos do campo são sujeitos de direito ao trato diferenciado. A educação escolar há de ser universal e condizente com as diversidades étnico-culturais e produção da existência (CALDART, 2002). Desde a revolução neolítica em que o homem começa a ter o domínio das técnicas surge a necessidade da escola, sendo esta, pensada desde tempos remotos para classe dominante. Logo, nota-se que a classe dominada ficaria a mercê e na dependência dos ditames da minoria privilegiada que acaba controlando através das ideias e da força os mecanismos de educação e reprodução do saber no seio social, impondo assim seus valores e interesses. Todavia, o autor Mészáros (2005, p. 10) questiona sobre “como constituir uma educação que realize as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais necessárias?” Dessa análise, esse autor reflete que “o simples acesso à escola é condição necessária, mas não suficiente para tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só é reconhecida nos quadros estatísticos” (p. 11). Importante analisar a partir do raciocínio feito pelo autor, que, “apenas a mais ampla das concepções de educação nos pode ajudar a perseguir uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumento de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital” (ibid, p. 48). Afinal, o conhecimento possibilita às pessoas enxergarem um mundo mais amplo buscando assim, a luta pelos seus direitos básicos à vida e a construção da cidadania. E, a partir das diversas experiências e debates realizados na região acerca da comunicação popular, é notório que esta também representa um papel central para disseminar conhecimentos em uma perspectiva crítica e libertadora. Outra dimensão que se faz importante, no que se refere à educação escolar e a comunicação popular para fora do espaço da escola, é o fato de que a sociedade nem sempre tem a noção da dimensão do que é produzido, construído nos conteúdos do ensino-aprendizagem dos estudantes entre quatro paredes. Normalmente, são conteúdos de grande valia até mesmo para aqueles que não estão em sala de aula. O programa radiofônico popular produzido pela Cáritas Diocesana, semanalmente, dentre outros temas importantes radiofonizados, produz um bloco exclusivamente para que fosse possível a sociedade escutar conteúdos vindos direto da escola de ensino médio sob a responsabilidade de uma professora que leciona a disciplina de História. Neste caso, o bloco radiofônico no Vozes da Terra é chamado de ‘A Escola no Rádio’, com vinheta de abertura 242 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS musical que dialoga com o tema, e em seguida, a educadora expõe resumidamente o conteúdo que semanalmente foi compartilhado com seus estudantes em sala de aula. São conteúdos registrados nos livros de história e contextualizados com a realidade regional dos estudantes. Segundo a professora: É bem interessante minha participação no programa Vozes da Terra no bloco A Escola no Rádio, meus alunos sempre comentam quando ouvem. Eles adoram, os pais deles também, pois escutam pelo rádio assuntos que eu discuto com eles na escola. É importante que outras pessoas possam ouvir conteúdos da disciplina de história, de forma contextualizada com os dias atuais e fora das quatro paredes da escola (Depoimento em março, 2020). Outro espaço educativo dentro do contexto da programação de rádio é outro bloco radiofônico pelo qual chamamos de ‘O livro fala’. Escolhe-se um livro com produção de conteúdos políticos revolucionários que contrapõe a lógica de um modelo capitalista e, portanto, direcionado a um modelo socialista e emancipador da classe trabalhadora. O livro é todo resumido durante a comunicação popular radiofônica, em linguagem de fácil compreensão e ao mesmo tempo são feitas reflexões vindo dos próprios autores, potencializando o contexto de vida real na sociedade atual. Também é partilhado informações sobre autor(a), editora e demais livros com autores importantes que problematizam modelos de sociedade que discutem sobre a classe trabalhadora, dentre outros temas geradores. Em certas programações, uma diversidade de livros é exposta sobre a mesa onde se encontra o estúdio de produção e veiculação da rádio, conforme demonstra fotografia abaixo. Este ato educativo radiofônico também representa um incentivo à sociedade ouvinte de rádio sobre a importância da leitura como um ato político no processo de ser educado para a construção da vida digna, libertadora e não simplesmente para o capital. Figura 03 - Estúdio da rádio Santa Cruz. Foto: arquivo Cáritas, 2017. 243 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Analisando outras dimensões da importância dos meios de comunicação de massa como instrumento de educação e comunicação, é possível perceber os efeitos das ondas eletromagnéticas do rádio chegando às pessoas de forma igualitária no campo e na cidade em um só instante. Nesse cenário se estabelece uma comunicação que pode unir campo e cidade, problematizar conteúdos informativos e formativos que eleva os níveis de consciência das pessoas que ouvem o rádio, tornando-se uma rádio-escola que educa. Percebe-se que o campo é um lugar de silenciamento, onde questões como a propriedade privada da terra, por exemplo, é assunto proibido, não deve ser trabalhada no imaginário crítico, pois é a ideologia do latifúndio. Romper as cercas do latifúndio no ar, ocupar, resistir, ir-irradiar educação para emancipação humana, é o que busca fazer o programa Vozes da Terra. Assim, complementa a afirmação de que sem o debate da reforma agrária, sem a democratização do acesso à terra e à comunicação, é desafiante, também, construir a política da Educação do Campo tanto na espacialidade camponesa quanto urbana. No entanto, se é possível fazer educação e comunicação em um só instante, interagindo campo e cidade, transbordando de outras informações historicamente negadas aos povos, reafirma-se o pensamento de Santoro (1985): O uso do rádio articulado com outros meios de comunicação de forma complementar, inserido e legitimado em movimentos e lutas populares que lhe deem razão de existir, presta-se maravilhosamente a um novo uso voltado à promoção do ser humano, fundamentado no diálogo, em sua participação e libertação (SANTORO, 1985, p. 37). O estúdio de rádio, quando em funcionamento, sendo utilizado pelos agentes educadores comunicadores populares de Cáritas via o Vozes da Terra, se dá de maneira que esses agentes se sintam à vontade, mesmo sabendo que para além do microfone, há invisivelmente milhares de seres humanos atentos, prestando atenção nos conteúdos falados, nos efeitos musicais, nas possibilidades das criatividades sem imagens de quem não vê, apenas ouve. É um momento de educar-se também com músicas que percorrem toda programação entre diálogos e reflexões escritas e comentadas. A música contribui para a formação integral do indivíduo e sua importância é inegável como instrumento pedagógico para seguir comunicando e educando como um ato político. Basta observar um dos conteúdos musicais que constantemente se faz presente na programação radiofônica: Quem tem coragem de virar a página Para escrever tudo de novo? Quem tem coragem de soltar a voz Na língua do povo? (...) Quem tem coragem De assumir com firmeza 244 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Os próprios atos? Quem tem coragem De abrir mão Para ser anonimato? Somos um seremos mais, lado a lado e em frente Um mais um nunca é demais é poesia é gente (...) (Música: Quem tem coragem, de Pedro Munhoz). E assim, na vivência do uso constante do rádio como um instrumento de educação e comunicação popular, torna-se cada vez mais necessário o ato político de comunicar, resistir e ir-radiar como um ato de coragem e rebeldia, em busca de uma educação emancipadora, unindo os povos do campo e da cidade. Entretanto, ainda há forte presença de classes detentoras do poder de dominar e pensar as formas de educação e comunicação. De outro lado a classe que necessita e executa. Certamente, nunca se teve uma educação voltada para a classe trabalhadora, onde esta tivesse a chance de intervir na realidade, assim o que tem é um modelo de educação não pensado pela classe trabalhadora e sim, um modelo imposto que jamais servirá como elemento de emancipação da classe, por que faz parte de um modelo dominante não condizente com os mesmos. Neste sentido, perante o desafio para formação no contexto da Educação do Campo e da comunicação é que as alternativas forjadas pelo próprio povo são primordiais para romper a lógica capitalista e opressora. Assim, as novas percepções e práticas de educação e comunicação emancipadoras, constituídas no seio de organizações e movimentos populares do campo e cidade, são coerentes com um novo entendimento desses sujeitos sobre o papel do Estado e de outras estruturas dominantes. (In)Conclusões A batalha pela democratização dos meios de comunicação não comporta ilusões e, muito menos, omissões. Diante do enorme poder da mídia hegemônica, que manipula informações e deforma comportamentos, a luta por mudanças profundas nesse setor adquire um caráter estratégico. Não haverá avanços na democracia, na mobilização dos trabalhadores por seus direitos e na própria luta pela superação da barbárie capitalista, sem enfrentar e derrotar a ditadura midiática (BORGES, 2009, p. 91). Com esforço centrado na percepção da análise que esse tema nos possibilitou, reafirma-se que seja observado alguns importantes elementos práticos e teóricos de outros pesquisadores, educadores e comunicadores populares. Investigar práticas concretas de luta por conquistas emancipadoras frente aos 245 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS desafios de educar com comunicação popular e crítica em meios de comunicação de massa. Assim, sem pretensão de esgotar o assunto, aponta-se como importante reafirmar alguns aspectos expressados nesse artigo. A comunicação popular tem a capacidade de provocar a fala quando muitos mantêm conhecimentos e habilidades silenciados, guardados para si. Os movimentos populares precisam promover formação para sujeitos individuais e ou coletivos institucionais, seja de movimentos sociais ou não, provocar rebeldia, conhecimento, transformação. A educação jamais poderá afirmar-se para dentro apenas de quatro paredes e sem um ato de manifestação política e contextualizada. Afinal, como constatou Mészaros (2005, p. 9), “educação não é um negócio, é criação. Que a educação não deve qualificar para o mercado, mas para a vida”. Da mesma forma, enquanto educadores populares, percebe-se que a comunicação deve ser alimentada de justiça e vida, para além de negócio. Os meios de comunicação através das diversas formas instrumentais estão por aí disponíveis, cabe a nós, defensores de direitos e justiça social, apoderar-se de diferentes maneiras de criatividades pedagógicas para contribuir na educação dos sujeitos negados de conhecimentos para que possam colaborar na emancipação da própria classe trabalhadora do campo e da cidade bem como promover justiça e transformação social. Neste sentido, nosso estudo busca somar e contribuir com essa tarefa. Além disso, é urgente a continuidade da construção de experiências de educação e comunicação popular na perspectiva emancipadora, pois pode ser uma das formas mais eficientes de resistência e de luta, no enfrentamento à imposição feita pelo capital diante da classe trabalhadora. A partir das reflexões construídas, percebe-se, ainda, que o campo clama pelo direito de se comunicar e por políticas públicas que garantam a democratização da comunicação brasileira. Assim, faz-se necessário reivindicar e afirmar o direito pelas concessões de rádio, também para as espacialidades camponesas. Neste sentido, é importante fortalecer e reafirmar a centralidade das rádios camponesas como instrumento de formação e resistência do povo camponês. Em resumo, pode se afirmar que é possível desconstruir o processo de colonização e silenciamento ainda presentes na sociedade. Há diversos caminhos para esta tarefa, dentre eles, a comunicação como um ato político educacional. 246 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Referências ARROYO, Miguel Gonzales. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2012. BORGES, Altamiro. A ditadura da mídia. São Paulo: Anita Ltda, 2009. CALDART, Roseli S. Por uma Educação do Campo: traços de uma identidade em construção. In: Educação do Campo: identidade e políticas públicas. Caderno 4. Brasília: Articulação Nacional Por Uma Educação Do Campo, 2002. DETONI, Márcia. Radiodifusão comunitária: baixa potência, grandes mudanças? – estudo do potencial das emissoras comunitárias como instrumento de transformação social. 136f. 2004. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social). Escola de Comunicação e Arte, São Paulo, 2004. DUARTE, Rosina. SOS Comunicação: estratégias para divulgação do Terceiro Setor. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2002. FERNANDES, Bernardo Mançano. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e território como categorias essenciais.In: Educação do Campo e Pesquisa: questões para reflexão. MOLINA, Mônica C. (org.). Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário,1996. FREIRE, Paulo. Ação cultural para liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação, uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. LEÃO, A. Carneiro. Sociedade rural: seus problemas e sua educação. Rio de Janeiro: s/d. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária. São Bernardo do Campo,Anuário UNESCO/Umesp de Comunicação Regional, n.6: Umesp, 2003. PRETTO. Nelson de Luca; TOSTA, Sandra Pereira. (organizadores). Do MEB à WEB: o rádio na educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. SANTORO, Luiz Fernando. Rádio e educação: alternativas no interior das emissoras. Cadernos Intercom. São Paulo: Cortez, 1985. VIEIRA, Pe. António. Sermão da visitação de Nossa Senhora (1940). Obras completas de Pe. António Vieira: sermões, v. III, tomo IX. Porto, Portugal: Lello Irmão Editores, 1959. 247 SOBRE OS AUTORES Adriana Rodrigues dos Santos Brito: professora na rede estadual de ensino de Mato Grosso, licenciada em Ciências Biológicas-Unemat/ Cáceres MT2000/1; Bacharel em Enfermagem pela Faculdade de Quatro Marcos- São José dos Quatro Marcos MT2010/2; Licenciada em Pedagogia- Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz 2014/1; Especialista em Química- Universidade Federal de Lavras MG 2006/2; Especialista em Urgência e emergência em enfermagem - Associação Varzeagrandedense de Ensino e Cultura 2011; Especialista em Enfermagem em saúde da família- Associação Varzeagrandedense de Ensino e Cultura 2011. Adriane Cristina de Melo Hunzicker: Doutoranda e Mestra em Educação na Faculdade de Educação (FaE), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Geografia pela Faculdade Santa Rita (FASAR). Especialista em Práticas Pedagógicas pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e em Educação a Distância pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Desenvolve pesquisas sobre a relação educação-mineração, Educação do Campo e Representações Sociais. Atualmente é monitora no curso de Licenciatura em Educação do Campo (LeCampo/FaE/UFMG) e bolsista da Capes/Proex. E-mail: adrianegeo@yahoo.com.br Alexandre Fraga de Araújo: Doutor em Educação pelo programa de Doutorado Latino-Americano em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Viçosa. Possui graduação em Ciência da Computação, Pedagogia, Educação Física, e Pós-graduação em Designer Instrucional para EAD, Planejamento, Implementação e Gestão da EAD, e, Pedagogia da Alternância. É professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES) desde 2010, e atualmente é lotado no Campus Barra de São Francisco/ES. É coordenador do Grupo interdisciplinar de estudos e pesquisas em educação, trabalho e processos institucionais – IFES. Tem experiência na área de Novas tecnologias e Educação do Campo, com ênfase em Informática na educação, Ensino a distância e Pedagogia da Alternância. Cristhianne Antunes David Oliveira: Mestre em Educação e Docência na linha de Educação do Campo na FAE/UFMG. Graduada em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade Estadual de Montes Claros (2005), em Direito pelas Faculdades Unidas do Norte de Minas - FUNORTE (2010) e licenciada em EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Pedagogia pelo Instituto Superior de Educação Elvira Dayrell - ISEED (2017); Pós-graduada em Direito Constitucional pelas AVM Faculdades Integradas; especialização em Educação Especial e Inclusiva e Biblioteconomia pela Faculdade Verde Norte - FAVENORTE (2017); Professora de Educação Básica efetiva na rede estadual de Minas Gerais; atuando no NEPcampo - Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação do Campo, fez parte da equipe do projeto Escola da Terra, FAE/UFMG/ SEE - 2015/2016 e 2017 como professora formadora. E-mail: cristhiannedavoli@gmail.com Cristiene Adriana da Silva Carvalho: Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Métodos e Técnicas de Pesquisa em Educação (UFOP). Pedagoga e Licenciada em Artes Cênicas. Atuou como Coordenadora Pedagógica do Projeto Escola da Terra Minas Gerais. Atuou como Orientadora de Aprendizagem do Eixo Integrador do Curso de Licenciatura em Educação do Campo FAE UFMG. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo (NEPCAMPO) FAE UFMG. Email: cristienecarvalho @gmail.com Decanor Nunes dos Santos: Educador e Comunicador Popular pela Cáritas Baixo Jequitinhonha. Licenciado em Educação do Campo (Ciências Sociais e Humanidades) e Especialista em Educação do Campo pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador de projetos/Cáritas Diocesana de Almenara – Baixo Jequitinhonha. Integra a Comissão Executiva Fórum das Organizações e Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha e a Articulação do Semiárido Mineiro. Email: decanornunes@gmail.com Eliano de Souza Martins Freitas: Graduação em Geografia (2001), mestrado (2004) e doutorado (2013) em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é professor do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais (COLTEC/UFMG), ministrando a disciplina de Geografia. É professor-colaborador no Promestre/FAE/UFMG. Desenvolve pesquisas na área de Geografia com ênfase em Geografia Urbana, Geografia e Educação, Ensino de Geografia e Geografia e Educação do Campo. Email: elianofreitas @gmail.com Elizabeth Moreira Gomes: Elizabeth Moreira Gomes é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais- Campus Diamantina. Possui Graduação em Letras, pela Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina; Mestrado em Educação pela PUC-MG, com o título: A disciplina ‘Língua Portuguesa’ no currículo da Escola Normal Oficial de Diamantina no período de 1880 a 1889: Legislação, Política e História (ano de conclusão: 2006). Doutorado em Educação pela FaE/UFMG: Escritas de estudantes da 250 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Licenciatura em Educação do Campo da UFVJM: um estudo na perspectiva das Representações Sociais em Movimento (ano de conclusão: 2018). É membro do Grupo de Pesquisas em Representações Sociais – GERES, ligado à Faculdade de Educação- FaE/UFMG e Coordenadora do Grupo de Pesquisa do IFNMG/Campus Diamantina – Grupo de Estudos em Metodologias Alternativas (GEMA/ IFNMG/Diamantina). Elson Augusto Nascimento: Professor da Educação Básica – Anos Iniciais e Finais, Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Especialização em Língua Portuguesa, Alfabetização e Letramento, Gestão Escolar, Práticas Pedagógicas e Neuropsicopedagogia e Psicopedagogia Clínica, graduação em Letras e Literaturas e Pedagogia, com pesquisas em formação de professores/as, Educação do Campo, Docência e Gestão de Processos Educativos Email: elsonaugusto2017@gmail.com Evely Cristine Pereira de Aquino: Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG (2011), mestra em Educação pela Faculdade de Educação da UEMG (2014), doutoranda em Educação pela FAE/UFMG. Professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (RME/BH). E-mail: evelyaquino@hotmail.com Francisco do Livramento Andrade: Licenciado em Pedagogia pela UFPA e em Filosofia pela UEMA, especialista em Educação do Campo pela UEMA, Educação de Jovesn e Adultos pela UFSC, e em metodologia do ensino superior pela Faculdade Stella Maris. Mestre em cências da educação pela unisal/UFRJ, e doutorando em hunanidade arte e ducação pela UNR. Educador popular pelo MST coordenador pedagogico no municipio de Açailandia-Maranhão professor nos cursos de pedagogia e psicologia na Faculdade Vale do Aço-Maranhão. email: andradecaliforniaa@hotmail.com Iracema Neves Lima: Graduanda MESTRADO EM EDUCAÇÃO - Linha de pesquisa: Currículo, Avaliação, Práticas Pedagógicas e Formação De Professores pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Campus JK – Diamantina - Programa de Pos graduação em Educação-PPGED/UFVJM. Possui Graduação em Normal Superior na Universidade Do Estado De Minas Gerais (UEMG) e graduação em Educação do Campo pela Universidade Federal de Minas Gerais com habilitação para Matemática, além da Especialização em Educação Inclusiva pela Universidade Castelo Branco ( UCB – RJ )e Gestão Escolar pela Fundação Pitágoras ( Betim ) Professora efetiva na rede municipal de ensino de Senador Modestino Gonçalves \ MG atuando nas séries iniciais como professora alfabetizadora, efetiva na rede estadual de ensino de MG no 251 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Atendimento Educacional Especializado (AEE), Sala de Recursos. E-mail: nevesiracema03@gmail.com José Eustáquio de Brito: Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais. Membro do corpo docente permanente do Programa de Mestrado em Educação e Formação Humana da FaE-UEMG. Desenvolve pesquisas na área de Educação tematizando as dimensões do Trabalho, Educação e Relações Étnico-Raciais. E-mail: joseeustaquio.brito@uemg.br. Kyrleys Pereira Vasconcelos: Possui graduação em licenciatura plena em Matemática pela Universidade Vale do Rio Doce (2004), graduação em Pedagogia (2012) e mestrado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011). Atualmente é professora da Diretoria da Educação a Distância da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus JK. Professora colaboradora do Programa de Pos graduação em Educação -PPGED/UFVJM. Coordenadora de Tutoria e do Estagio Supervisionado na DEAD/UFVJM . Tem experiência na área de Matemática, atuando principalmente nos seguintes temas: educação do campo, educação matemática, práticas de numeramento e etnomatemática e práticas pedagógicas. Membro do Grupo de Estudos sobre Numeramento – UFMG; Membro do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação Matemática e Sociedade – UNISINOS. Maria Aparecida Afonso Oliveira: Mestre em Educação e Docência/Linha Educação do Campo pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Pedagoga e Especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela Universidade Estadual de Montes Claros. Especialista em Educação do Campo pelo Instituto Federal do Norte de Minas Gerais. Integra a Rede Mineira de Educação do Campo e a Comissão Executiva do Fórum das Organizações e Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha - Fórum do Vale. Email mariahafonso@yahoo.com.br Maria de Fátima Almeida Martins: Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (1987), mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente é professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi coordenadora do curso de Licenciatura em Educação do Campo (gestão 2018- 2019); desenvolve pesquisa sobre Educação do Campo, Territórios e comunidades tradicionais. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase no ensino de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação do Campo, Geografia, Ensino de Geografia. E-mail: falmartins.ufmg@gmail.com 252 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Maria Isabel Antunes-Rocha: Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1983), Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995) e Doutorado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Pós Doutorado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Campus Presidente Prudente. Professora Associada da Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. Coordena projeto no âmbito do Programa Pesquisador Mineiro (PPM XI/2017). Coordenadora do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada dos Profissionais da Educação Básica (COMFIC/UFMG), do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo (NEPCAMPO/FaE-UFMG) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Representações Sociais - GERES). Coordenadora de Projetos de Pesquisa e Extensão nas áreas atingidas por rompimento de barragens. Desenvolve projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão com ênfase na Formação e Prática de Educadores, Psicologia Social, Educação do Campo. Maria Jéssica Marques de Lima: Possui graduação em Letras pela Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde (2014). Pós-Graduação em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Arcoverde (2017). Atualmente faz pós-graduação em Educação do Campo e Educação de Jovens e Adultos. Atualmente é professor I do Governo do Estado de Pernambuco na área de Linguagens, atuando na Educação de Jovens e Adultos do Campo.Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular, Educação do Campo, Educação de Jovens e Adultos, Movimentos Sociais e Direitos Humanos atuando principalmente nos seguintes temas: educação do campo,cultura popular,movimentos sociais do campo e educação para a diversidade. Nayara Cristine Carneiro do Carmo: Mestre em Educação, na linha de Educação do Campo do Mestrado Profissional Educação e Docência da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Socioambientais pela Universidade Federal de Minas Gerais. Participou enquanto Formadora do Curso de Aperfeiçoamento “Escola da Terra: formação continuada de Educadores do Campo", ofertado pelo Ministério da Educação em parceria com a UFMG, através do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação do Campo da Faculdade de Educação e com a Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais nas edições de 2017 e 2019. Rodrigo dos Santos: Graduado em História (UNICENTRO), Sociologia (UNINTER). Mestre em História (UNICENTRO) e Doutor em História (UEM). Atualmente é professor do Departamento da UNICENTRO Email: digao_santos9@hotmail.com 253 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS Valter Martins Giovedi: Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, Doutor e Mestre em Educação: Currículo, pela PUC-SP, graduado em Filosofia, com pesquisas em currículo crítico-libertador, violência curricular, Paulo Freire e Educação do Campo, coordenador de programas de extensão de formação continuada para professores de escolas do campo, na perspectiva do paradigma da formação permanente freireana. Vanessa Bomfim: Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Email: vanessa_bomfimbf@hotmail.com> Vânia Aparecida Costa: Docente do Departamento de Práticas Educacionais e Currículos DPEC/CE/UFRN com trajetória construída na articulação entre pesquisa e extensão relacionadas mais especificamente ao(s) letramento(s) na Educação do Campo. É integrante do NEPEJA/FaE/UEMG. 254 ÍNDICE REMISSIVO A Alfabetização, 15 B Barragem de Fundão, 197, 209 Bases Nacionais Comuns Curriculares BNCC, 147, 150, 153, 156, 157, 159, 160, 161, 162 C campo, 7, 8, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 25, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 72, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 82, 83, 87, 88, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 98, 100, 101, 103, 105, 106, 111, 117, 119, 127, 128, 129, 133, 137, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 148, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 158, 159, 160, 161, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 192, 193, 198, 199, 201, 202, 205, 206, 208, 209, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 229, 230, 231, 233, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 244, 245, 246, 252, 253, 254 camponês, 55, 56, 87, 154, 166, 167, 188, 211, 212, 214, 215, 216, 222, 230, 231, 232, 246 camponeses, 29 cidadania, 54, 134, 153, 159, 169, 181, 187, 229, 230, 232, 233, 235, 237, 238, 239, 242 coletivos, 29, 30, 31, 34, 35, 37, 38, 40, 45, 64, 65, 82, 84, 86, 98, 130, 176, 178, 179, 186, 200, 223, 235, 239, 246 Comunicação Popular, 229, 240 Consciência, 96, 100, 109, 111 Crítico-Emancipatória, 51, 53, 60, 65 cultura, 13, 30, 32, 34, 35, 36, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 48, 52, 55, 59, 61, 66, 72, 74, 80, 84, 86, 99, 103, 104, 105, 115, 135, 141, 146, 153, 154, 156, 159, 160, 162, 166, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 176, 181, 182, 187, 201, 218, 219, 231, 237, 240, 253 D desigualdades, 25 direito, 8, 9, 10, 11, 13, 15, 20, 21, 22, 24, 31, 32, 34, 44, 45, 46, 48, 56, 66, 67, 74, 87, 93, 100, 101, 108, 109, 110, 134, 139, 141, 154, 157, EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS 154, 155, 156, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 192, 193, 197, 201, 202, 203, 208, 209, 211, 221, 226, 227, 229, 233, 239, 240, 241, 244, 245, 247, 249, 250, 251, 252, 253, 254 Educação Pública, 138, 151 egressos, 19, 20 Ensino Superior, 51 Escola do Campo, 22, 33, 139, 158 Escola Família Agrícola, 18 158, 159, 160, 162, 165, 167, 169, 170, 176, 177, 179, 182, 183, 184, 190, 204, 214, 234, 240, 241, 242, 246 E educação, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 22, 24, 31, 32, 40, 43, 44, 46, 47, 52, 53, 54, 55, 57, 59, 61, 63, 64, 65, 66, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 98, 100, 101, 106, 108, 109, 110, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 130, 134, 135, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 157, 159, 161, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 188, 189, 190, 192, 193, 201, 209, 211, 212, 213, 215, 216, 218, 219, 221, 222, 223, 224, 226, 230, 232, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 244, 245, 246, 247, 249, 251, 252, 253 Educação Básica, 29, 31, 32, 33, 34, 51, 52, 95, 144, 146, 147, 150, 153, 157, 159, 163, 164, 166, 174, 177, 178, 179, 180, 187, 192, 209, 210 Educação crítica, 16 Educação do Campo, 1, 3, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 43, 44, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 56, 57, 59, 60, 62, 64, 65, 66, 67, 69, 76, 79, 80, 82, 95, 111, 125, 130, 131, 133, 137, 141, 142, 143, 150, 151, 153, F fazer pedagógico, 79 formação, 31, 34, 35, 36, 37, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 51, 52, 55, 58, 60, 61, 62, 65, 66, 67, 69, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 80, 82, 83, 84, 86, 87, 91, 93, 101, 124, 127, 129, 137, 143, 144, 145, 146, 148, 151, 154, 155, 156, 157, 161, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 173, 175, 178, 180, 181, 182, 185, 186, 187, 189, 190, 192, 193, 209, 212, 215, 216, 222, 223, 224, 225, 229, 230, 239, 241, 244, 245, 246 formação de professores, 18, 22, 193 I identidade, 165, 169, 174 J juventudes, 24, 211, 212, 213, 219, 222, 223, 225, 226 256 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS poder público, 55, 176, 183, 235, 239 políticas públicas, 8, 10, 11, 13, 14, 15, 17, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 32, 33, 34, 43, 44, 45, 53, 54, 61, 65, 83, 100, 115, 116, 117, 118, 120, 134, 141, 145, 148, 153, 161, 162, 164, 167, 174, 177, 178, 179, 180, 181, 183, 185, 190, 212, 213, 215, 216, 217, 219, 220, 221, 223, 227, 235, 238, 239, 240, 246, 247 práticas pedagógicas, 9, 14, 17, 21, 23, 24, 25, 36, 38, 39, 40, 44, 45, 47, 48, 51, 52, 65, 79, 83, 93, 147, 155, 159, 172, 175, 185, 193, 206, 211, 252 Professores, 14, 20, 25 Programa Mais Educação, 138, 139, 142, 150 Projeto Político-Pedagógico, 53, 63, 188 Pronera, 15 L Licenciatura, 18, 19, 20 Literatura, 69, 71, 78, 130 M MEC, 138, 139, 150, 157, 163, 164, 174, 179, 184, 186, 187, 192 Mística, 18 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 30, 91, 95, 112, 198, 233 Movimento Sem Terra, 69, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 83, 91, 111 Movimento Sem-Terra, 69 Movimento Social Sem-Terra, 72 Movimentos Sociais, 15, 22, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 38, 39, 41, 43, 44, 46, 47, 48, 253 movimentos socioterritoriais, 19, 24 Movimentos Socioterritoriais, 19 MST, 17, 22, 30, 35, 38, 41, 43, 44, 45, 46, 49, 69, 72, 73, 74, 75, 77, 79, 80, 81, 82, 83, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 100, 101, 102, 103, 106, 107, 108, 112, 164, 168, 176, 177, 183, 184, 186, 198, 223, 251 Mulheres, 10, 111, 230, 231 R Realismo, 69, 70, 71 Reforma Agrária, 29, 31, 32, 33, 34, 44, 47, 74, 82, 83, 96, 156, 163, 166, 177, 179, 180, 185, 190, 192, 221, 227, 229, 235, 236, 240 Representações sociais, 21 P S Paulo Freire, 14, 23, 61, 66, 75, 80, 84, 90, 207, 225, 247, 254 Pedagogia, 33, 67, 69, 77, 78, 82, 111, 153, 164, 165, 186, 225, 226 Pedagogia da Alternância, 17, 18, 19, 21 Piaget, 80 sujeitos do campo, 31, 37, 44, 48, 61, 148, 155, 165, 173 257 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS trajetórias de vida, 20 T Tecnologias de Informação e Comunicação TICs, 19 Tempo Integral, 23, 138, 140, 141, 142, 146, 147, 148, 150, 151, 203 Teoria das Representações Sociais, 20 Trabalho, 67, 95, 112, 163, 165, 169, 179, 192, 220, 229, 252 U Universidade, 13, 17, 18, 19, 20, 24, 25 V Vale do Jequitinhonha, 19 258 EDUCAR É UM ATO POLÍTICO EDUCAÇÃO DO CAMPO E SEUS PRINCÍPIOS 259