Tavira, memória e identidade1
Daniel Santana
Iniciamos este texto saudando a organização do Seminário Cultural “Saber Popular em
Torno da Mobilidade” pela escolha do tema que orientou o evento. De facto, são vários os
fenómenos em torno da mobilidade que atualmente despertam atenções e influenciam a
ação de inúmeros agentes políticos, sociais e culturais. Basta pensar na facilidade com que
hoje pessoas, bens, serviços, capitais, informações e ideias se movimentam, física ou
mentalmente, e como essa realidade tem desafiado humanidade a vários níveis. Dominam a
atualidade questões como o elevado fluxo migratório de refugiados, como a globalização e a
livre circulação de capitais, como a emigração e a quebra de fronteiras ou como o incremento
do turismo a nível mundial e, muito particularmente, em Portugal onde o aumento súbito e
significativo deste fenómeno tem suscitado reações ambíguas típicas das crises de
crescimento.
No plano dos conteúdos mentais os fenómenos de mobilidade afirmam-se em moldes
assumidamente contemporâneos através da rápida circulação de ideias e de informações
proporcionada pelo desenvolvimento da web, dos meios de comunicação e das redes sociais
virtuais.
Se as questões em torno da mobilidade centram atenções e marcam a atualidade, a
verdade é que sempre assumiram significativa importância ao longo dos tempos, funcionando
como reconhecida alavanca de desenvolvimento em muitos momentos da História. Inclusive
a nível local. Tavira é hoje um exemplo de relevância cultural em função da sua História e da
1
Agradecemos à Associação Internacional de Paremiologia e à Sociedade de Geografia de Lisboa,
organizadores do Seminário Cultural “Saber Popular em Torno da Mobilidade”, o convite para orientar visita
efetuada ao centro histórico de Tavira, a 24 de setembro de 2017, no âmbito do referido seminário.
Agradecemos, ainda, ao Padre Miguel Neto (Paróquia de Tavira) e sua equipa, à Dr.ª Alexandra Rufino e Maria
de Fátima Liberato (Santa Casa da Misericórdia de Tavira) e à direção da Pousada da Graça de Tavira pela
colaboração que proporcionou o acesso aos monumentos integrados no percurso da visita, nomeadamente, à
igreja matriz de Santiago, à igreja da Misericórdia e ao antigo convento de Nossa Senhora da Graça.
O presente texto resulta da revisão, síntese e adaptação de um artigo mais extenso publicado no catálogo da
exposição Memória e Futuro. Património, Coleções e a Construção de um Museu para Tavira, patente no
Palácio da Galeria/Museu Municipal em 2014. Cf. Daniel SANTANA, e TEIXEIRA, Célia, “A cidade do
Museu. Memória e Identidade do Centro Histórico de Tavira”, in AAVV, Memória e Futuro. Património,
Coleções e a Construção de um Museu para Tavira, (catálogo de exposição), Câmara Municipal de Tavira,
2014, pp. 61-78.
1
sua herança patrimonial, devendo-o em grande parte a fenómenos de mobilidade, de
deslocação de povos e culturas, a movimentos de expansão ou contração territorial, à
mobilidade e contaminação de ideias e técnicas, à viagem de formas artísticas, etc. Com essa
ideia em mente foi organizada a visita guiada integrada no seminário, de que resulta o
presente texto.
Em virtude da nossa especialização, neste escrito, tal como na visita guiada
empreendida, centramos a atenção na riqueza do património histórico, monumental e
artístico da cidade. A dimensão cultural de Tavira, no entanto, é muito mais ampla e estendese a outros variados domínios, destacando-se, obviamente, a vertente do património
imaterial dada a identificação da cidade como comunidade representativa de Portugal na
inscrição da “Dieta Mediterrânica” na lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade
da UNESCO2.
É certo que Tavira continua a ser das cidades algarvias que mais interesse oferece aos
visitantes. O ambiente melancólico que em tempos dominou a cidade é hoje menos
manifesto3. Nos edifícios há mais vãos abertos e as ruas estão mais movimentadas com
residentes e turistas. Destes, deve-se referir uma percentagem significativa que vem à
descoberta do centro histórico, que sobe ao castelo, entra nas igrejas de Santa Maria e da
Misericórdia e nas demais que se encontrem abertas, atravessa a ponte antiga e observa o
peculiar ambiente urbano e os seus marcos arquitetónicos. O aspeto das ruas pouco
movimentadas inverte-se a cada ano que passa. O número de visitantes do museu vem
2
Inscrição essa que teve como base um processo de candidatura transnacional e que atualmente engloba sete
países, tendo em vista a salvaguarda da “Dieta Mediterrânica” enquanto património cultural partilhado por todos
os povos do Mediterrâneo. Dieta deriva da palavra grega “Daiata”, que quer dizer modo de vida, não
compreende apenas a alimentação, pois é um elemento cultural que propícia a interação social. Compreende-se a
“Dieta Mediterrânica” como um conjunto de competências, conhecimentos, práticas e tradições relacionadas
com a alimentação humana, que vão da terra à mesa, abarcando as culturas, as colheitas e a pesca, assim como a
conservação, transformação e preparação dos alimentos e, em particular, o seu consumo. Cf. Jorge QUEIROZ,
“Dieta Mediterrânica: Portugal, Território e Culturas. Património Cultural Imaterial, Algarve e Tavira”, in
AAVV, Dieta Mediterrânica. Património Cultural Milenar, Câmara Municipal de Tavira – Museu Municipal de
Tavira, 2013, p. 38.
3
Escrevendo em 1932, Mário Lyster Franco (1902-1984) nota que em Tavira “há qualquer coisa de melancólico
no ambiente (…), qualquer coisa de saudosista nos seus curiosos aspectos, nas suas ruas pouco movimentadas,
nas janelas quási sempre fechadas dos seus prédios, nas poéticas margens do rio que a corta pelo meio e em que
a casaria perpetuamente se revê. Dir-se-ia que é a recordação de um passado grandioso que a faz apresentar
aquele ar de renúncia, como se esse passado não fosse susceptível de voltar, como se de uma terra condenada se
tratasse”. Guia-Album do Algarve. Sotavento, (compilação, orientação e legendas de Mário Lyster Franco),
Lisboa, S. Zambrano Gomez, 1932, p. 49.
2
aumentando e integra pessoas das mais diversas origens, para além do público escolar
integrado em visitas de estudo.
Se a cidade foi-se tornando um conhecido destino de turismo cultural deve-se em
grande parte à dinâmica de preservação, estudo e divulgação/musealização registada em
Tavira nas duas últimas décadas e à revelação do “passado grandioso” que lhe está associado.
De facto, a História cumpriu bem o seu papel, assaz generoso, para com a cidade de
Tavira. Legou um passado urbano assinalável, preenchido com importantes vestígios das mais
distintas épocas. Quando há 16 anos foi iniciado o projeto do Museu Municipal, o centro
histórico obviamente centralizou atenções, ocupando um papel incontornável no âmbito das
funções museológicas, dado que nele se reflete a memória da cidade e de uma comunidade.
Como conjunto construído a cidade é um atrativo do ponto de vista da história e da
arte devido à sua arquitetura, homogeneidade e integração na paisagem, e cujo passado
começa a ser relativamente conhecido, permitindo boas condições de divulgação.
Mas onde reside verdadeiramente o carácter excecional do centro histórico de Tavira?
Local de cruzamento de diversos povos e culturas – fenícios, turdetanos, árabes, judeus – foi
após a reconquista cristã sede de um concelho com crescente influência no reino de Portugal.
Terra do Rei e de importância fulcral para os sucessos da expansão portuguesa para o Norte
de África nos séculos XV e XVI, viu crescer o seu prestígio político, religioso e económico,
permitindo desenvolver uma notável atividade construtiva e artística, de que é exemplo a
célebre escola de arquitetura renascentista de André Pilarte, e mais tarde, durante o século
XVIII, a atividade do arquiteto Diogo Tavares e Ataíde.
O intercâmbio de distintas épocas e sensibilidades culturais marcou indelevelmente a
paisagem, a morfologia urbana, a arquitetura e a arte, no fundo, o seu desenvolvimento
artístico em geral. E, não obstante algumas calamidades cíclicas – terramotos, cheias, crises
político-sociais –, a herança patrimonial tem conseguido sobreviver. Tavira é hoje um
exemplo de uma cidade mediterrânica fortificada, no limite da Europa, excecional pela
qualidade formal, harmonia e coerência de alguns espaços urbanos, onde confluem modelos
medievais e renascentistas, com um conjunto distinto de imóveis ilustrando várias épocas,
usos, estilos artísticos e cambiantes regionais.
Dificilmente encontramos em Portugal, tão bem como em Tavira, os elementos
históricos constitutivos de uma cidade de estuário atlântico-mediterrânica, com formas que
3
muitas vezes foram assimiladas além-mar e reproduzidas localmente. Vejamos alguns dos
seus destacados elementos:
a) Uma colina de fenícios...
O Alto de Santa Maria, ligeira colina junto ao rio Gilão, foi primeiramente povoado no
século VIII a.C. por gentes relacionadas com contexto expansionista fenício a Ocidente do
Estreito de Gibraltar. O local permitia a boa visibilidade do tráfego comercial fluvial e das
eventuais aproximações inimigas. Há alguns anos as escavações arqueológicas dirigidas por
Maria Maia e Manuel Maia no subsolo da pensão “Netos” revelaram parte da espessa
muralha que cercava o antigo povoado. Os achados encontrados indiciam a vivência de um
povo que dominava a cultura escrita e realizaria alguma produção metalúrgica em ferro e
prata, eventualmente utilizada para negociar com outros povoados (foto 1). Os “poços
votivos” localizados onde hoje se situa o Palácio da Galeria indicam que este povo marinheiro
teria aqui, muito provavelmente, um lugar reservado a práticas religiosas consagradas ao
deus Baal.
Crê-se que o povoado fenício de Tavira terá sobrevivido e mantido alguma relevância
económica e comercial regional entre os séculos V e IV a.C., acabando, mais tarde, por falir.
A riqueza científica dos vestígios encontrados é, até agora, única em Portugal e deverá ser
conjugada com a criação de um novo núcleo museológico.
b)...e árabes.
Em Tavira são parcos os dados arqueológicos do período romano, indiciando que a
colina de Santa Maria terá sido secundarizada face à proximidade de Balsa, a maior cidade
romana do Sul do país, a escassos oito quilómetros de distância.
Os muçulmanos retomam a povoação de Tavira em finais do século X ou inícios do XI,
bem como a vocação portuária e comercial do lugar. O topo da colina é refortalecido com o
castelo, destinado a proteger o vau do Gilão que permitia o trânsito entre as duas margens,
supostamente, antes da construção da ponte. O perímetro muralhado atinge cerca de cinco
hectares, todavia, é patente que o traçado e extensão da cerca sofrem mutações, ao longo da
presença islâmica, sensíveis às circunstâncias militares e à sucessão dos poderes (almorávida,
taifas, almóadas). No topo estaria a alcáçova, concentrando os edifícios políticos e religiosos
- duas mesquitas, posteriormente convertidas em igrejas católicas.
4
Partes da muralha islâmica ainda se avistam pela cidade, na Bela Fria por exemplo,
mas também no interior das casas da atual praça da República. São muros constituídos por
uma fortíssima amálgama de cal, areia e pedras revestidas por pedra aparelhada. Outra
herança da muralha islâmica é a torre octogonal que cai para a rua da Liberdade que, apesar
de refeita, deve ser colocada em paralelo com outras torres poligonais ibéricas de época
muçulmana (foto 2).
Encontramos um vislumbre da cultura urbana deste período no que resta do bairro
almóada descoberto no subsolo do convento da Graça, constituindo um dos melhores
exemplos em território nacional do modelo de casas e ruas citadinas usado na Península
Ibérica e no Magreb durante o período em apreço.
Todo o acervo de peças recolhidas neste e noutros contextos arqueológicos islâmicos
espalhados pela cidade demonstram, não só as áreas que foram habitadas, mas também os
hábitos e as posses dos seus residentes. Por vezes com alguma exuberância. Exemplo disso é
o célebre Vaso de Tavira e todo um conjunto de artefactos menos conhecidos, mas
igualmente admiráveis, atualmente expostos no núcleo islâmico do Museu Municipal de
Tavira.
c) Um urbanismo multissecular.
A conquista de Tavira pela Ordem de Santiago acontece em 1242. A mudança do poder
tem efeitos na feição urbana. Dentro das muralhas deixa de caber a comunidade muçulmana,
desalojada, passando esta a residir do lado exterior, diante da antiga e desaparecida Porta do
Postigo. Aí ficava a mouraria, da qual a memória toponímica é ainda bem patente na rua dos
Mouros, ou no Largo do Pocinho dos Mouros.
Mais portas atravessam a muralha. A principal, junto ao rio, chamava-se Porta da Vila,
acrescentando-se a esta as portas da Alfeição, do Buraco, da Vila Fria, a Porta Nova contra o
Cano e a Porta dos Pelames. Todas serão definidoras das vias que estruturam a “vila-adentro”, caracterizada pela conjugação de uma malha regular e densa com uma área pouco
construída e sem uma estruturação clara dos quarteirões.
Os reis portugueses promovem beneficiações na muralha. D. Dinis faz obras no castelo
e D. Fernando terá alargado a cerca. Inevitável, no entanto, é a expansão do núcleo medieval
para a zona extramuros. Além da Mouraria, nascem os núcleos do alto de São Francisco, as
Tercenas (ao longo da margem direita do rio) e um primeiro desenvolvimento na margem
5
esquerda. Desenvolve-se também um eixo principal confinante com a muralha e definido pela
rua do Malforo (rua Miguel Bombarda), rua Nova Grande (rua da Liberdade), praça da Ribeira
(República) e a ponte, do qual depois progridem as áreas ribeirinhas nas duas margens.
Orlando Ribeiro realça, justamente, Tavira como raríssimo exemplo de cidade fluvial
portuguesa que contaminou, indiferentemente, as duas margens sem quebra de unidade4.
Salienta o facto de, em épocas recuadas, a ponte ter sido habitada, o que conferia uma
imagem de edificação contínua que superava a natural divisão oferecida pelo rio.
Para tal contribuirá também o acelerado desenvolvimento urbano durante o reinado
de D. Manuel I. É notável a urbanização que nasce na zona ribeirinha em finais da Idade
Média, à ilharga da “vila-a-dentro”, denunciando princípios renascentistas e características
fundamentais do urbanismo português de então. Designadamente, o chamado “urbanismo
regulado” (baseado na regulamentação e não no desenho). Alinhando num esquema de ruatravessa, geram-se áreas que apresentam uma enorme regularidade quer no traçado das
ruas, quer na sua própria base cadastral e altimétrica5. Com uma malha regular orientada pelo
rio, esta “nova” cidade articula-se habilmente com a “velha” através da Praça da Ribeira, com
o campo através da Corredoura e com o mundo através do Gilão.
Na definição do espaço urbano saliente-se o papel dos numerosos edifícios religiosos.
Igrejas, capelas e conventos marcam o perfil de ruas, largos, servindo como polos de
referência para esses espaços. Aglutinam normalmente conjuntos urbanos e os seus adros
potenciam a criação de zonas amplas (largos ou praças) propícias à afluência e concentração
de fiéis.
d) Cidade das igrejas
É notável o conjunto de arquitetura religiosa que a cidade possui. Apesar de não ter
sido escolhida para sede do Bispado do Algarve no século XVI, quando Silves se encontrava
em decadência, Tavira manifesta uma enorme sensibilidade religiosa, erigindo inúmeros
centros de devoção, o que é igualmente sintomático da sua importância e prosperidade aos
longos dos séculos.
4
Cf. Orlando RIBEIRO, Geografia e Civilização. Temas Portugueses, 3.ª edição, s.l., Livros Horizonte, 1992,
p. 94.
5 Cf. Pedro BARÃO et al., “Núcleo Urbano da Cidade de Tavira”, Sistema de Informação para o Património
Arquitetónico do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana. Consultado a 28 de dezembro de 2011:
http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=10025
6
O número impressiona. Contam-se, atualmente, vinte e uma igrejas dentro dos limites
da cidade. Com efeito, ainda mal terminara a conquista do lugar pela Ordem de Santiago e já
este contava com as matrizes de Santa Maria e de Santiago, em resultado do aproveitamento
e adaptação das antigas mesquitas árabes (foto 3).
O desenvolvimento urbano será sempre pontuado pela Igreja, seja através das
matrizes, dos templos de ordens terceiras e confrarias ou através de instalações mais amplas,
como os conventos. A Igreja também beneficia da próspera conjuntura socioeconómica dos
séculos XV e XVI, associada ao crescimento demográfico, à expansão urbana e ao período em
que o porto de Tavira era o de maior irradiação para a defesa e manutenção das praças lusas
do Norte de África. A arquitetura e a produção artística para ornamento dos templos
conhecem nestes séculos uma atividade considerável através das paróquias, ordens
religiosas, irmandades e confrarias. Nota-se, aliás, que a origem de algumas casas religiosas
reflete a estreita relação de Tavira com o projeto de expansão da coroa para o Norte de África,
caso do convento de Nossa Senhora da Piedade, fundado por D. Manuel I em ação de graças
pelo levantamento de um cerco mouro a Arzila; ou do convento agostinho de Nossa Senhora
da Graça, fundado em Tavira após uma tentativa frustrada de o fazer erguer em Azamor.
A diminuição da importância da cidade nos séculos posteriores não afeta,
sobremaneira, o ritmo de fundação de novos edifícios religiosos, os quais são marcados com
mais ou menos austeridade de acordo com as flutuações estilísticas e temporais. Os
tavirenses manterão a proximidade aos centros de devoção. Exemplo disso são os anos de
estabilidade de D. Pedro II e D. João V, enquadrados pela exultação barroca da Igreja
contrarreformista, favorecendo um novo período de grande atividade na construção de
igrejas e na ornamentação das existentes. Os sentimentos anticlericais que caracterizam os
séculos XIX e XX traduzem-se na secularização ou no desaparecimento de alguns templos,
fazendo reduzir para vinte e um os cerca de vinte e cinco anteriormente existentes. O saldo
histórico apresenta-se, ainda assim, extremamente vantajoso para a cidade.
É de realçar a riqueza artística acumulada ao longo de séculos nestas igrejas, a
pluralidade de estilos, disciplinas e artistas que nelas se encontram. A qualidade dos vestígios
góticos e manuelinos da matriz de Santa Maria ou do antigo convento de São Francisco, a
elegância personalizada do renascimento na Misericórdia do mestre André Pilarte, a força do
“estilo chão” nas igrejas de São Paulo ou da Graça ou, ainda, a exuberância decorativa dos
espaços barrocos do Carmo (foto 4) ou São José, definem em conjunto, nestes ou noutros
7
templos da cidade, todo um percurso sugestivo da arte portuguesa, das suas cambiantes
estilísticas e interpretações locais.
e) A herança militar
Como afirma Arnaldo Casimiro Anica, “Tavira não é essencialmente uma povoação
castrense, mas a sua História encontra-se indissoluvelmente ligada à actividade militar”6. A
preocupação com a defesa de um território e com a segurança de uma comunidade que,
como vimos, atingiu períodos de grande relevância estratégica e económica, manifesta-se na
construção de diversas infraestruturas e na fixação de corpos militares.
Já aqui foram elencados alguns monumentos castrenses que são marcos de identidade
na definição do traçado e da estrutura urbana do aglomerado. A muralha fenícia fixou o local
e determinou o seu desenvolvimento posterior. O castelo medieval predomina e testemunha
aspetos particulares que se referem aos conturbados anos da reconquista cristã e à afirmação
da soberania portuguesa sobre o território do Algarve.
Na orla costeira, as ruínas do forte de Santo António e a fortaleza de São João de
Cabanas são a memória de um tempo em que o perigo vinha, essencialmente, do mar. Quer
o projeto de expansão além-mar, quer a dinâmica da Guerra da Restauração (1640-1668) são
responsáveis pelo aparecimento de mecanismos defensivos na costa, tendo em atenção a
proteção das pessoas e das pescas face aos constantes ataques de piratas mouriscos ou de
corsários encorajados pelos rivais europeus.
Mas não só de fortificações se compõe a arquitetura militar de Tavira. A presença
regular de corpos militarizados e a flexibilidade dos engenheiros militares – que amiúde se
assumem como arquitetos de todo o tipo de edifícios utilizados pelas tropas – justificam a
construção de interessantes equipamentos de apoio. São os casos do antigo hospital militar
da rua dos Mouros (1761) e do imponente Quartel da Atalaia (1795, foto 5); sendo ainda de
destacar um dos mais distintivos símbolos de Tavira: a ponte antiga sobre o Gilão, concebida
segundo modelos da arquitetura militar, fruto da reconstrução de 1657 dirigida por Mateus
do Couto e Pedro de Santa Colomba, dois homens ligados ao exército.
f) Arquitetura civil
6
Arnaldo Casimiro ANICA, Tavira e o Seu Termo. Memorando Histórico, Tavira, Câmara Municipal de
Tavira, 1993, p. 255.
8
Em Tavira o espaço urbano é de raiz medieval e quinhentista mas grande parte dos
seus edifícios remonta aos séculos XVII, XVIII e XIX. Apesar de alguns golpes, o casario urbano
mantém em boa medida uma imagem consistente do seu passado, devendo merecer todos
os cuidados na sua preservação e reabilitação.
São inúmeras as qualidades destes edifícios em que a pedra calcária, a cal, a cerâmica,
o ferro e a madeira se conjugam para formar volumes plenos de carácter e valor identitário.
O século XVI fixa um modelo de casa que perdura sem grandes alterações até ao século XIX
com várias notas dominantes e distintivas. Além dos materiais tradicionais, assinale-se a
tendência para uma escala humana (2 ou 3 pisos), a composição simples mas aberta a valores
eruditos e às novidades depois de alguma transformação local, e ainda uma notória
preocupação pela decoração dos vãos, platibandas e chaminés – características dominantes
da arquitetura regional.
Uma espiral de elementos estruturais e compositivos, de detalhes e características
singulares, forma grande parte do interesse e valor da cultura arquitetónica de Tavira.
Lembramos as janelas e portas perfeita e ritmicamente alinhadas nas fachadas; o fino lavor
de cantarias de vãos com seus ornatos elegantes de épocas distintas; os desenhos das
caixilharias ou dos gradeamentos das janelas de sacada; as platibandas, algumas
exuberantemente trabalhadas e coloridas…
Dentre todas as marcas identitárias há duas de reconhecido destaque. Em primeiro
lugar, os tradicionais telhados de “tesoura” (ou de “tesouro”) – coberturas de quatro águas,
francamente inclinadas, revestidas internamente com caniço e externamente com telha de
canudo. O seu nome advém da ossatura interna de madeira geralmente chamada tesoura.
Dado que, em norma, cada divisão da casa é coberta por um telhado de tesouro é comum
observarem-se edifícios com telhados múltiplos, oferecendo ao céu de Tavira uma aparência
muito peculiar (foto 6).
Serão um dos derradeiros vestígios da época das grandes navegações, em cujos
primórdios Tavira largamente participou7. Os aventureiros que daqui partiram a apoiar a
empresa dos Descobrimentos e da expansão portuguesa descobriram paragens distantes,
desde as ilhas atlânticas, passando pelas praias e minas africanas até às formidáveis
novidades asiáticas. No regresso, estes emigrantes exibem avidamente a originalidade, a
7
Veja-se a este respeito o conhecido estudo “Açoteias de Olhão e telhados de Tavira (influências orientais na
arquitectura urbana)” inserido no livro de Orlando RIBEIRO, Op. Cit., 1992, pp. 53-146.
9
riqueza e a experiência de distintas realidades culturais. E assim, Tavira, porto de partida e
chegada de muitas viagens, adota uma forma de cobertura vinda da Ásia das monções e que
em nada o clima algarvio justifica.
Em Tavira os telhados múltiplos de tesouro chegaram aos nossos dias resistindo ao
tempo, às modas e às catástrofes. Fazem parte do património prestigioso da cidade, todavia,
são dos mais ameaçados por ruidosas adulterações ou por desuso.
Outro destacado elemento característico é o emprego de rotulados de madeira na
proteção dos vãos – as tradicionais portas ou janelas de reixa. Traduzem uma preocupação
pela ventilação, arejamento e defesa da intimidade da habitação, surgindo por isso,
maioritariamente, nos pisos térreos. As suas formas geométricas animam as fachadas. Em
Tavira parece ter havido uma maior utilização das reixas relativamente a outras localidades
algarvias, razão pela qual são assumidas como marcos culturais da cidade (foto 7). Apesar
disso, hoje são em menor número, sob a ameaça de desuso.
A preponderância de uma casa-tipo de Tavira não invalida que na cidade a
arquitetura fique alheia aos diferentes contextos cronológicos e movimentos arquitetónicos.
Há cambiantes específicas de várias épocas na forma dos vãos, dos gradeamentos ou na
aplicação de certos materiais. É sobretudo nos séculos XIX e XX que as mudanças são mais
significativas. Como no resto do país, pode referir-se a renovação das formas tradicionais
durante o período do Romantismo, no século XIX, através de modelos arquitetónicos ecléticos
e exteriores à tradição de habitação mais vernácula. O tema mais corrente remete para o
designado chalet. Já o século XX será marcado por soluções dentro da chamada Arte Nova, da
“Casa Portuguesa” e do modernismo, destacando-se dentro destas duas últimas correntes,
respetivamente, as obras na cidade dos distintos arquitetos Raul Lino e Manuel Gomes da
Costa.
Independentemente da antiguidade/modernidade ou da erudição/singeleza dos
edifícios vem sempre à tona um passado histórico e arquitetónico de qualidade e interesse,
que confere à cidade uma personalidade rara no panorama urbanístico português e um
excecional campo de estudos. Joga-se hoje o problema da sua autenticidade e integridade,
sendo importante o empenho dos tavirenses para inverter certos hábitos de reconstrução
que desvirtuam a sua leitura. A prática de reabilitações criteriosas e fundamentadas, dando
particular atenção à recuperação de materiais e técnicas tradicionais deverá ser sempre o
exemplo a seguir.
10
Esta sumária alusão à história e aos valores patrimoniais de Tavira ajuda a perceber a
extraordinária relevância cultural da cidade, particularidade merecedora de celebração, bem
como dos melhores esforços de gestão/conservação em nome dos nossos sonhos de
salvaguarda e de decoro perante o futuro.
Tavira, outubro de 2017
Bibliografia
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- SANTANA, Daniel, Tavira, Cidade das Igrejas, Câmara Municipal de Tavira – Museu Municipal
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12