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A PRAXE COMO FENÓMENO SOCIAL RELATÓRIO FINAL

A PRAXE COMO FENÓMENO SOCIAL RELATÓRIO FINAL COORDENAÇÃO CIENTÍFICA João Teixeira Lopes, IS-UP, Universidade do Porto João Sebastião, CIES-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa INVESTIGADORES Elísio Estanque, CES-UC, Universidade de Coimbra João Mineiro, CRIA-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa João Sebastião, CIES-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa João Teixeira Lopes, IS-UP, Universidade do Porto José Pedro Silva, IS-UP, Universidade do Porto CONSULTOR JURÍDICO Nuno Beato Alves, CIES-IUL, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ENTIDADE PROPONENTE E FINANCIADORA Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) 31 DE JANEIRO DE 2017 AGRADECIMENTOS Agradecemos a António Firmino da Costa o diálogo profícuo que foi mantendo com a equipa ao longo deste trabalho e cujos comentários, em várias fases, muito nos ajudaram a problematizar este complexo objeto de estudo. Agradecemos a António Pedro Pombo a análise detalhada de notícias sobre praxe, a elaboração do capítulo onde esta é apresentada, e ainda a atenta revisão de várias partes do presente relatório. Este estudo não teria sido possível sem a disponibilidade de dezenas de estudantes, dirigentes de Instituições de Ensino Superior e de Associações e Federações Académicas e de Estudantes, de Núcleos e Provedores de Estudantes. A todos eles agradecemos a colaboração no processo de recolha de informação e a sua abertura à concretização da pesquisa. Finalmente, agradecemos o contributo da Ana Chaves, Ana Luísa Aguiar, Ana Mendes e Vanessa Claro na transcrição das entrevistas e focus groups realizados. 2 ÍNDICE SUMÁRIO EXCUTIVO ............................................................................................................. 7 INTRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO DO ESTUDO ........................................................... 15 CAPÍTULO I - A PRAXE ACADÉMICA EM PORTUGAL: APRESENTAÇÃO BREVE DAS INVESTIGAÇÕES JÁ REALIZADAS ......................................................................... 19 1.1. O significado da palavra “praxe” ..................................................................................... 19 1.2. A praxe enquanto ritual de iniciação ................................................................................ 22 1.3. Praxe, violência e poder ................................................................................................... 24 1.4. O que pensam os estudantes sobre a praxe? ..................................................................... 32 1.5. A praxe como reflexo da juventude e dos seus dilemas ................................................... 40 1.6. Praxe e consumo de álcool ............................................................................................... 41 1.7. Estereótipos sobre os alunos que praticam a praxe .......................................................... 43 1.8. Praxe, sexualidade e sexismo ........................................................................................... 44 1.9. Breve contextualização internacional ............................................................................... 45 Síntese conclusiva ....................................................................................................................... 45 CAPÍTULO II - CARACTERÍSTICAS E TENDÊNCIAS DA PRAXE ACADÉMICA. INQUÉRITO A INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR E A ASSOCIAÇÕES ACADÉMICAS E DE ESTUDANTES .................................................................................. 51 2.1. A praxe segundo as Instituições de Ensino Superior ...................................................... 51 2.1.1 Práticas e características da praxe .............................................................................. 51 2.1.2 Modos de relação com a praxe ................................................................................... 55 2.1.3. Violência, abusos e estruturas de apoio às vítimas ................................................... 57 2.1.4. As alternativas à praxe .............................................................................................. 59 2.1.5. A proibição da praxe no campus ............................................................................... 61 2.2. A praxe segundo as Associações Académicas e de Estudantes ....................................... 63 2.2.1. Práticas e características da praxe ............................................................................. 63 2.2.2. Modos de relação com a praxe .................................................................................. 66 2.2.3. Violência, absusos e estruturas de apoio às vítimas .................................................. 68 2.2.4. As alternativas à praxe .............................................................................................. 70 2.2.5. A proibição da praxe no campus ............................................................................... 72 2.2.6. A posição das Associação Académica ou de Estudantes relativamente face praxe académica ........................................................................................................................... 74 Síntese conclusiva ....................................................................................................................... 75 3 CAPÍTULO III - DISCURSOS E ATITUDES FACE À PRAXE ....................................... 77 3.1. Discursos e atitudes de dirigentes de Instituições de Ensino Superior ............................ 77 3.1.1. A atitude de rejeição e condenação absoluta ............................................................. 78 3.1.2. A atitude de integração preventiva ............................................................................ 81 3.1.3. A atitude de legitimação e normalização institucional ............................................. 83 3.2. A praxe e as Associações Académicas e de Estudantes: discursos, atitudes e modos de relação ..................................................................................................................................... 84 3.2.1. A atitude favorável à praxe ....................................................................................... 84 3.2.2. A atitude equilibrista ................................................................................................. 86 3.2.3. Mecanismos indiretos de legitimação ....................................................................... 87 3.2.4. A praxe e o associativismo estudantil: relações e (inter)dependências ..................... 88 3.3. A praxe segundo os estudantes: uma interpretação sociológica dos motivos e contextos de participação ....................................................................................................................... 90 3.3.1. A praxe como mecanismo integrador ....................................................................... 90 3.3.2. A praxe como ritual de passagem ............................................................................ 92 3.3.3. A praxe como normalidade institucional .................................................................. 93 3.3.4. A praxe como opção.................................................................................................. 98 3.3.5. A praxe como prática niveladora ............................................................................ 101 3.3.6. A praxe como um ensinamento da vida e para a vida ............................................. 103 3.3.7. A praxe como teste de entrega e fidelidade ............................................................ 109 3.3.8. O carácter único e excepcional da experiência vivida ............................................ 110 3.3.9. A praxe como tradição a preservar .......................................................................... 113 3.3.10. A praxe como encenação ...................................................................................... 117 3.4. A praxe segundo os estudantes: razões e contextos de ruturas e desistência ................ 121 Síntese conclusiva ................................................................................................................ 126 CAPÍTULO IV - AS PRÁTICAS E RITUAIS DE PRAXE ACADÉMICA ..................... 130 4.1. Uma descrição geral das interações da praxe ................................................................ 132 4.2. Cânticos, palavras de ordem e gritos de guerra ............................................................. 137 4.2.1. Os cânticos escandalosos ........................................................................................ 130 4.2.2. Os cânticos e gritos de guerra e de pertença............................................................ 140 4.2.3. Cânticos e palavras de ordem de depreciação e disputa .......................................... 142 4.2.4. Cânticos de beber .................................................................................................... 145 4.2.5. Cânticos de protesto ................................................................................................ 146 4.2.6. As coreografias ........................................................................................................ 146 4.3. Praxes de exercício físico .............................................................................................. 147 4.4. Praxes de crime e castigo .............................................................................................. 147 4.5. Praxes de medo e de susto ............................................................................................ 150 4 4.6. Praxes de nojo ............................................................................................................... 151 4.7. Estórias, rimas e charadas ............................................................................................ 153 4.8. Encenações físicas e simulacros sexuais ...................................................................... 155 4.9. Os jogos e brincadeiras da praxe ................................................................................... 157 4.10. As praxes de gozo e ridicularização ........................................................................... 158 4.11. Praxes sobre a praxe ................................................................................................... 159 4.12. O lado convivial, festivo e carnavalesco da praxe ...................................................... 160 4.12.1. Jantares de curso em Coimbra .......................................................................... 161 4.12.2. Rally das tascas no Porto .................................................................................. 161 4.12.3. Latada no Porto ................................................................................................ 162 4.12.4. Latada em Coimbra .......................................................................................... 163 4.12.5. Mostras em Bragança ....................................................................................... 164 4.13. O batismo .................................................................................................................... 166 4.14. As praxes turísticas, culturais e solidárias................................................................... 167 Síntese conclusiva ................................................................................................................ 167 CAPÍTULO V – ORIGEM, HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO DA PRAXE ACADÉMICA EM PORTUGAL .......................................................................................... 171 5.1. As origens da praxe na Universidade de Coimbra: contextualização ........................... 171 5.2. A universidade medieval e seus privilégios .................................................................. 173 5.3. Violência estudantil na era medieval ............................................................................ 175 5.4. Investidas, canelões, caçoadas e trupes ......................................................................... 177 5.5. Polícia académica, trupes e «praxe» no século XIX ..................................................... 180 5.6. Praxe, humor e boémia estudantil no início do século XX ........................................... 184 5.7. Politização da tradição: anos sessenta .......................................................................... 188 5.8. A normalização democrática e o regresso da praxe ..................................................... 191 5.9. A restauração das tradições em Coimbra ...................................................................... 192 5.10. O caso do Porto ........................................................................................................... 195 5.11. O caso de Lisboa ......................................................................................................... 197 5.12. Movimentos alternativos ............................................................................................. 199 Síntese conclusiva ................................................................................................................ 201 CAPÍTULO VI – A PRAXE SOB O OLHAR DA COMUNICAÇÃO SOCIAL ............. 202 CAPÍTULO VII - ENQUADRAMENTO JURÍDICO......................................................... 212 7.1. O sistema normativo-coativo (a legalidade) e a legitimidade própria do direito ......... 212 7.2. O plano do direito constitucional .................................................................................. 214 7.3. O plano do direito penal ................................................................................................ 215 5 7.4. O plano da responsabilidade civil ................................................................................. 217 7.5. O plano do direito disciplinar ........................................................................................ 218 7.6. O plano jurisprudencial: cinco exemplos, cinco decisões a ter em conta ..................... 220 CAPÍTULO VIII - RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE A PRAXE ACADÉMICA ......................................................................................................................... 224 8.1. Em articulação com as Instituições de Ensino Superior ............................................... 224 8.2. Em articulação com as autarquias ................................................................................. 225 8.3. Em articulação com o sistema de justiça....................................................................... 225 8.4. Em articulação com a Administração Interna ............................................................... 226 8.5. Em articulação com as Associações de Estudantes....................................................... 226 8.6. Recomendações a serem aplicadas diretamente pelo Governo ..................................... 227 CONCLUSÕES ....................................................................................................................... 229 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 236 ANEXO .................................................................................................................................. 242 ANEXO I - O que fazer com a praxe: opiniões dos atores interessados .............................. 242 ANEXO II – Fontes noticiosas sobre as Praxes Académicas .............................................. 245 ANEXO III - Guião-modelo de entrevista a estudantes que participaram na praxe ............ 255 ANEXO IV - Guião-modelo de entrevista a reitores, presidentes de institutos politécnicos, diretores de unidades orgânicas e outros dirigentes de Instituições de Ensino Superior ..... 259 ANEXO V - Guião-modelo de entrevista para dirigentes de associações académicas e de estudantes que não participam ou participaram na praxe académica ................................... 262 ANEXO VI - Guião-modelo de entrevista para dirigentes associativos que participam ou participaram na praxe .......................................................................................................... 265 ANEXO VII - Tópicos de entrevista a Dux Veteranorum ................................................. 270 ANEXO VIII - Grelha de Pesquisa Observacional ............................................................ 271 6 SUMÁRIO EXECUTIVO 1. O principal objetivo do presente estudo consiste em compreender o fenómeno da praxe académica em profundidade, privilegiando-se a interpretação dos significados que diversos atores do sistema de ensino superior (estudantes, dirigentes associativos e dirigentes das instituições de ensino) atribuem ao fenómeno. Para além disso, fez-se uma caracterização mais geral da praxe no momento atual, a sua contextualização histórica, o seu enquadramento jurídico, o seu tratamento na comunicação social e um levantamento das investigações já realizadas sobre o tema. 2. Desenvolveu-se uma estratégia metodológica diversificada, que explora a complementaridade de diversas técnicas de recolha de informação: administrou-se um inquérito por questionário, realizaram-se sessões de observação direta de momentos de praxe, foram feitos grupos focais com estudantes e dirigentes associativos, entrevistaramse autoridades académicas, dirigentes estudantis, estudantes e antigos estudantes, analisou-se o tratamento dado pela comunicação social ao fenómeno e, por fim, recolheram-se e analisaram-se vários documentos sobre a praxe. 3. A praxe, na sua origem, traduz uma tentativa de preservação dos costumes estudantis oriundos de um passado que surge mitificado, simultânea à atribuição, a esses mesmos costumes, de uma essência de originalidade e do caráter prescritivo da norma. 4. Historicamente, o termo “praxe” surge na segunda metade do século XIX, conferindo um novo significado social a um conjunto de práticas que envolviam os estudantes universitários recém-chegados à Universidade de Coimbra, apesar de se verificar, desde os tempos medievais, um processo de fechamento, autonomização e privilégio por parte da Universidade que facilitava práticas de violência. No século XVIII, por seu lado, surgem as chamadas Investidas, que correspondiam a práticas diretamente infligidas aos novatos por parte dos mais velhos, a que se somarão os “canelões”, as “caçoadas”, as “troças/assuadas” e o surgimento de “trupes”, fenómenos estes inseridos numa atmosfera simbólica em que os estudantes se representavam como possuidores de um espírito corporativo, boémio e romântico. 5. No início do século XX, viveram-se em Coimbra tempos de controvérsia em torno da praxe, que culminaram com a sua abolição em 1910. Ela é retomada em 1919 e reforçada com a publicação do Código de Praxe de Coimbra em 1957. No início da década de sessenta do século XX, durante a ditadura, as tradições académicas sofreram uma forte politização, tendo a conjugação entre o movimento estudantil e as tradições ajudado a camuflar a resistência organizada na clandestinidade. A utilização da simbologia praxista 7 permitiu que a contestação se inserisse no fluxo das vivências tradicionais de Coimbra, beneficiando de uma certa complacência por parte da elite dirigente nacional. Assim, a praxe académica foi, primeiro, mobilizada para o combate político e cultural ao regime para, posteriormente, entrar em desuso num contexto da crescente dissidência social e política dos meios estudantis que culminou com o luto académico em 1969 a que se associaram manifestações e greves contra a tutela opressiva que o regime exercia sobre a Universidade e a sociedade em geral. Ao longo dos anos 70, a praxe continuou abolida, embora tenha sido alvo de polémica, particularmente entre setores que a pretendiam recuperar e setores que a associavam ao fascismo. Com o fim do luto académico em 1980 e a recuperação das tradições académicas, os rituais de praxe regressam, num processo de generalização que rapidamente se estendeu a todo o ensino superior. 6. Um referencial teórico pluriperspectivado, como o que aqui adotamos, realça o seu cariz de ritual de iniciação, passagem e agregação, separando os que sofreram tal processo (a praxe), dos que o não viveram; uma prática frequentemente associada ao assédio moral, intimidação e coação; à violência física e simbólica; ao sexismo, homofobia e machismo, num quadro de vincada hierarquia, mas também à socialização e integração dos “caloiros”; e, finalmente, a uma dimensão lúdica e festiva. Este caráter múltiplo e contraditório associa-se aos dilemas da juventude portuguesa e às tensões sobre a massificação do ensino superior, à inflação dos diplomas e à perda do seu valor relativo, bem como à generalização da moratória nas transições para a via adulta, num cenário de instalação em culturas e modos de vida precários. 7. As “cadeias de rituais” em que a praxe se estrutura, sendo marcadas por repetições de rituais no espaço e no tempo entre um número alargado de indivíduos, implicam agrupamento (co-presença), criação de barreiras e símbolos de demarcação com o exterior, focalização mútua e partilha emocional, traduzindo-se em sentimentos de solidariedade grupal, efervescência coletiva, energia emocional individual, simbolização da relação social e em novas normas de moralidade, dotadas de eficácia simbólica, socializadora e identitária. Os ritos de iniciação que marcam a praxe, ao encenarem papéis, sugerem que a segurança perfeita no contexto de chegada se baseia na ocupação de um lugar e um papel social pré-determinado. A assunção desse papel social implica o respeito pelas relações entre os níveis da hierarquia tradicional e estabelecida. 8. Em termos de presença nos media, o fenómeno das praxes abusivas tende a assumir maior visibilidade nas academias de Coimbra, Lisboa e Porto – porventura por terem as universidades mais antigas do país e onde o peso simbólico das “tradições académicas” é 8 mais forte, sendo também as que contam com maior número de alunos. Todavia, estão representadas outras instituições, um pouco por todo o país, através de numerosas notícias publicadas na comunicação social alusivas a situações de praxes violentas ou abusivas, de que resultaram várias mortes, hospitalizações, agressões físicas e outros tipos de abusos. 9. O “caso Meco” (como foi batizado pela comunicação social), ocorrido em dezembro de 2013, marca uma viragem na atenção mediática, assumindo contornos de momentocharneira na evolução da perceção pública sobre o fenómeno da praxe e atraindo as atenções gerais para dois acontecimentos posteriores: a morte de três estudantes da Universidade do Minho na queda de um muro, em abril de 2014, e a hospitalização de uma aluna da Universidade do Algarve em estado de coma alcoólico, em setembro de 2015. 10. Não obstante os casos de praxe violenta e perigosa continuarem a alimentar as páginas da imprensa, têm surgido com regularidade, ao longo dos anos mas porventura com maior ênfase após o “caso Meco”, diversas propostas alternativas à praxe “tradicional”, sob a forma de atividades de divulgação científica, roteiros culturais pelas cidades ou voluntariado social, num movimento que tem sido apelidado de “praxe solidária” ou “integração solidária”. 11. Em termos de comparação internacional, é possível encontrar fenómenos análogos em vários outros países: trote académico no Brasil, novatadas em Espanha, bizutage em França e hazing nos países anglo-saxónicos. Comparativamente, assinala-se que, de acordo com inquérito realizado pelas redes Universia e Trabalhando.com, 73% dos portugueses que participaram na sondagem reconheceram ter sido praxados no ensino superior, número que, para o conjunto dos países abrangidos pelo inquérito, não excede os 25%. 12. As “praxes” são também uma linguagem e uma performance que apenas pode ser compreendida inteiramente recorrendo a um vasto leque de técnicas de investigação, incluindo, num lugar cimeiro, a observação etnográfica que permite resgatar o sentido que os atores envolvidos conferem às suas práticas, ainda que nem sempre delas tenham consciência. Enquanto quadro de interação, a praxe fornece pistas aos atores sociais de como atuar adequadamente. Tais “deixas” são verbais e não-verbais, objeto de um investimento linguístico e dramatúrgico. 13. O vestuário é um elemento crucial de identificação dos lugares na hierarquia da praxe e, simultaneamente, de fechamento e distinção face ao exterior. A redução da conversa a 9 cânticos e palavras de ordem acentua a uniformização e adesão que o ritual pretende. Palavras de ordem e gritos de guerra; cânticos escandalosos, assentes na celebração da sexualidade, muitas vezes de forma sexista; cânticos e gritos de guerra e de pertença ao grupo; cânticos agonísticos, de depreciação e disputa, com insultos e provocações dirigidos ao outro; cânticos de beber e de protesto; praxes de exercício físico e de punição; praxes de medo e de susto; praxes de “nojo”, que testam os limites da repugnância; praxes de troça; praxes lúdicas, com charadas e jogos; praxes com uma intenção pedagógica, com visitas às cidades e ações de solidariedade social, são alguns dos exemplos encontrados. 14. A praxe contém momentos espetacularizados de intensa celebração coletiva, repletos de elementos carnavalescos. Estes momentos, em que se exalta a fruição hedonista do imediato, reforçam o sentimento de pertença e cumprem uma função de distinção social. 15. No entanto, os aspetos que unificam as várias práticas, permitindo-nos falar de “praxe” em vez de “praxes”, são bastante salientes. Desde logo o significado sociológico e antropológico da praxe enquanto ritual de passagem, assente num conjunto de práticas, usos e costumes que visam uma “desbestialização do caloiro” com vista à ressurreição simbólica e identitária numa nova fase da sua vida social. Depois, as características fundamentais da sua organização, assentes invariavelmente numa hierarquia que opera numa distinção fundamental entre quem manda e quem obedece, e que estabelece a verticalidade, a reverência à autoridade e o respeito ao superior como regras fundamentais de sociabilidade nos rituais praxísticos. Os elementos de cada um destes dois grupos que ocupam estatutos hierárquicos desiguais distinguem-se de uma forma clara pelo seu vestuário, pelos seus papéis no jogo e pela forma como os desempenham. Esta hierarquia, uma vez aceite, implica uma assimetria de poder vincada entre os “caloiros” e os “doutores”. 16. A realização de um Inquérito às Instituições de Ensino Superior e às Associações Académicas e de Estudantes, a que responderam 64 instituições e 25 Associações de Estudantes, não sendo suficiente para uma extrapolação estatística, permite ainda assim ter uma primeira fotografia da realidade das praxes académicas no conjunto dos distritos do país. As atividades de praxe podem estender-se por todo o ano letivo, embora se concentrem preferencialmente num mês, de acordo com as direções. Já as associações de estudantes referem que as atividades ocorrem ao longo de todo o ano. 17. De acordo com estas organizações, a participação dos estudantes tem-se mantido estável e a praxe acontece simultaneamente dentro e fora do campus, por norma em espaços 10 públicos (jardins, parques, centros) e comerciais (bares, discotecas, cafés) da cidade, embora também possa haver atividades em Câmaras Municipais. Em alguns casos as atividades de praxe podem passar pela participação em iniciativas institucionais organizadas pelas direções das instituições. 18. À maioria das instituições nunca chegaram casos de violência ou de abuso, embora nos casos em que tenha havido, ou não existiram consequências, ou as sanções consistiram na suspensão temporária da praxe ou dos responsáveis ou na proibição da praxe na instituição. 19. Apenas 52% das associações de estudantes afirmam existir estruturas de apoio psicológico, e mais de metade dizem desconhecer a existência de estruturas de apoio jurídico a vítimas de violência. 20. Apenas em metade das instituições existem estruturas de apoio psicológico a vítimas de violência no contexto da instituição e só num terço delas é que encontramos estruturas de apoio jurídico às vítimas. 21. Mais de metade das instituições - cerca de 60 % - afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições, por dois motivos: haver maior possibilidade de controlo dentro do campus; ou concordância com as atividades realizadas. 22. A maioria das associações académicas e de estudantes - cerca de 79 % - afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições por três motivos: concordância e, por vezes, a participação dos dirigentes estudantis nas atividades de praxe; a maior capacidade de controlo e fiscalização destas atividades dentro do campus; e o carácter livre da adesão aos rituais de praxe 23. Mais de 80 % das instituições reúne formalmente com as estruturas de praxe para um de três objetivos: sensibilizá-las e alertá-las para as situações de abuso; articular iniciativas conjuntas; ou estabelecer uma regulação interna destas atividades. 24. Cerca de 83 % das associações reúne formalmente com as estruturas de praxe com os seguintes objetivos: aprovação de financiamento; planeamento e organização de atividades conjuntas; regulamentação das atividades; e sensibilização, informação e conhecimento relativamente às atividades previstas. Mais de metade das associações refere que organizam iniciativas comuns com as estruturas de praxe. 25. A grande maioria das associações de estudantes declara que concorda com as atividades de praxe, não se identificando nenhuma associação que tenha uma posição declaradamente contra o fenómeno na sua instituição. 11 26. Ao nível dos discursos, recolhidos através de entrevistas e de grupos focais, os dirigentes das Instituições de Ensino Superior oscilam entre uma atitude de rejeição e condenação absoluta do fenómeno; uma atitude de integração preventiva e uma atitude de legitimação e normalização institucional. 27. No primeiro caso, refuta-se a ideia de que há “uma praxe boa” e “uma praxe má”. Pelo contrário, interpreta-se a praxe como um sistema de poder inaceitável e incompatível com os valores da academia, independentemente das variações que possa ter. 28. No segundo caso, claramente maioritário, defende-se que, se as praxes forem integradas na instituição, tornar-se-á mais fácil prevenir situações de violência ou de abusos que possam ocorrer. Esta atitude baseia-se numa análise do fenómeno da praxe substancialmente distinta da anterior. Os dirigentes que partilham esta atitude acentuam que a adesão é voluntária e que, embora também não tolerem humilhações e abusos, é importante diferenciar aquilo que é um conjunto de “praxes saudáveis” daquilo que são formas de violência que nelas possam ocorrer. 29. No terceiro caso, a atitude baseia-se no enquadramento e na aceitação do fenómeno da praxe como fazendo parte natural da vida da instituição, estando regulamentadas nos próprios estatutos. Em alguns casos as instituições que partilham esta perspetiva articulam igualmente com os órgãos do poder autárquico a cedência de espaços para determinadas iniciativas de praxe, particularmente nos momentos mais ritualizados que implicam o uso de vias públicas para desfiles e atividades de maior exposição perante a comunidade da cidade onde se inserem. 30. Quanto às associações de estudantes, encontramos apenas dois tipos de atitudes: favoráveis e equilibristas. 31. No primeiro caso, maioritário, os dirigentes associativos partilham da ideia de que a praxe é um fenómeno útil para a integração dos estudantes. 32. No segundo caso, enquadram-se aqueles que afirmam que têm sobre a praxe uma posição neutra ou de não interferência, justamente porque a sua missão é representar todos os estudantes, praxistas e não-praxistas, e não apenas uma parte da comunidade estudantil. 33. Quanto aos estudantes, justificam a adesão à praxe pela eficácia que ela garante na integração na instituição a que chegam, ajudando a criar laços amizade, de união, companheirismo e de interconhecimento, particularmente em conjunturas de maior dificuldade pessoal e/ou institucional. Assim, preenche um vazio social. Aos sentimentos de incerteza, insegurança, inquietação ou vulnerabilidade perante um mundo simbólico 12 desconhecido, a experiência da praxe ativa os laços de pertença de quem chega e reforça a adesão a uma identidade coletiva. 34. Um dos imaginários sociais mais presentes entre muitos estudantes é o de que a chegada ao ensino superior é um momento marcante e de viragem para uma nova fase de vida. Neste sentido, a praxe é vista também como um ritual iniciático e de passagem, que tende a marcar essa transição, uma vez que quem chega à universidade, o novato, deve ser investido de um novo estatuto social e simbólico, passando a ser reconhecido como membro do conjunto da comunidade de chegada. 35. Além disso, para muitos estudantes, a praxe parece ser um fenómeno normal e natural no seu processo de chegada, justamente porque ele é enquadrado por um sistema de legitimação e normalização que envolve o conjunto da comunidade académica e muitas vezes da própria comunidade local. Aliada com a ausência ou a ineficácia de alternativas, a adesão à praxe torna-se quase natural pela força simbólica do enquadramento social do fenómeno. 36. A praxe é ainda percebida como um momento excecional, na medida em que corresponde a uma encenação bem delimitada no espaço e no tempo, uma espécie de jogo onde cada um desempenha um papel. 37. Sendo um acontecimento excecional, a praxe proporciona vivências percebidas também elas como excecionais. Assim, a praxe de cada academia, instituição ou curso é tida, por quem a viveu, como um momento único, gerador de experiências irrepetíveis e geralmente muito valorizadas. A natureza extraordinária dessas vivências torna-as supostamente muito difíceis de compreender por quem não passou por elas. 38. De igual modo, é referido o cariz nivelador da praxe, pois através do traje não há traços que distingam as origens sociais dos estudantes. Para além disso, os caloiros aprendem na praxe que são todos iguais, devendo ser solidários entre si. 39. A praxe é ainda representada por muitos/as como um ensinamento da vida e para a vida. É um ensinamento da vida porque não se pode desligá-la dos rituais do mundo escolar onde os estudantes foram socializados e do mundo académico no qual ela emerge. É entendida como um ensinamento para a vida na medida em que supostamente reproduz as dinâmicas sociais mais vastas, antecipando o futuro laboral, onde existe obediência e hierarquia. A praxe põe à prova os estudantes e leva-os a ultrapassar obstáculos para começar uma nova etapa da sua vida e ser aceite pelos “superiores”, desenvolvendo competências de dedicação, determinação, disciplina, entrega, fidelidade, lealdade, respeito, esforço e sacrifício. Os estudantes que praxam consideram que a praxe os ajuda 13 a desenvolver várias competências, tais como a capacidade de organização e o à-vontade para falar em público. 40. Quando se referem à praxe enquanto mecanismo socializador, ou seja, quando falam sobre as competências e valores que aprendem no ritual, os estudantes nem sempre se mostram plenamente conscientes da natureza contraditória desse conteúdo moral. Aos seus elementos mais salientes – o espírito de grupo, a solidariedade entre iguais, a disciplina, o respeito pela hierarquia e pela autoridade do “superior”, o espírito de sacrifício, a lealdade e fidelidade ao grupo – juntam-se ainda manifestações de hedonismo, humor e sátira, gregarismo, masculinidade e sexismo. 41. Os estudantes também valorizam a praxe enquanto um conjunto de usos e costumes tradicionais relacionados com a sua identidade coletiva. Todavia, têm consciência de que a praxe é uma tradição plástica, que se reinventa a todo o momento. Muitos deles consideram que as mudanças que ela tem conhecido vão precisamente no sentido de retirar da praxe os seus aspetos que possam ter uma carga mais violenta, ofensiva ou humilhante, sem, contudo, atingir a sua “essência”, ou seja, a sua hierarquia e a sua natureza integradora. 42. A maioria dos estudantes salienta o cariz voluntário da praxe. Contudo, alguns que decidiram abandoná-la identificam custos sociais e simbólicos. 43. Uma das principais razões de desistência prende-se com os horários longos e rígidos das atividades de praxe. 44. Alguns estudantes abandonam a praxe simplesmente porque não se identificam com aquilo que ela propõe, desenvolvendo uma atitude de relativa indiferença. Outros consideram que ela contém aspetos positivos e negativos, acabando por se afastar devido aos segundos. Por fim, também há estudantes que deixam a praxe porque a consideram um fenómeno intolerável. 45. Considera-se que o enquadramento jurídico existente é adequado para dar resposta a eventuais factos ilícitos que possam ocorrer no contexto da praxe académica, sendo, no entanto, importante reforçar um efetivo conhecimento da legislação e dos mecanismos ao dispor dos estudantes para que ela seja aplicada. 14 INTRODUÇÃO E APRESENTAÇÃO DO ESTUDO Dos objetivos e da pertinência do estudo O relatório que agora se apresenta teve por base um estudo cujo principal objetivo consistiu em proceder à caracterização e análise do fenómeno social conhecido como “Praxe” no ensino superior em Portugal. O foco principal situou-se na evolução recente e na situação atual da “Praxe”, analisando as suas manifestações mais relevantes e as circunstâncias sociais em que ocorrem. No entanto, foi também nossa intenção elaborar um breve enquadramento histórico (relativo a períodos anteriores) porque a compreensão da génese de um fenómeno e das suas metamorfoses nos ajuda a des-essencializar e a des-naturalizar as suas manifestações (capítulo V). A “Praxe” académica tem sido alvo de controvérsia pública, de tomadas de posição de estudantes e outros cidadãos, e de ação institucional por parte do Estado, Universidades e Insitutos Politécnicos. As valorizações e as atitudes de diversos grupos e sectores da sociedade acerca do fenómeno têm oscilado. Os graus de adesão e os modos de envolvimento dos estudantes e das instituições do ensino superior também têm sido variáveis. Têm-se verificado épocas ou contextos de alastramento da “Praxe” e épocas ou contextos de retração. Entre os estudantes encontram-se posições de promoção exacerbada de “Praxes” e posições de oposição frontal às suas práticas e rituais, assim como modalidades diversificadas de conivência e tolerância ou de distanciamento e rejeição. Faz também parte do quadro social a análise das iniciativas alternativas à “Praxe” no contexto da sociabilidade juvenil e da integração académica no ensino superior. Assim, partiremos do pressuposto, decorrente de experiência direta e de estudos anteriores, de que a “Praxe” é um fenómeno social muito complexo, com características que o tornam de difícil compreensão. Por conseguinte, adotar-se-á uma abordagem multidimensional e multinível, investigando as incidências que poderão ter na “Praxe” académica diversas constelações de fatores e processos – nomeadamente fatores e processos socioeconómicos e socioculturais, ideológicos e políticos, históricos e comunicacionais, institucionais e interativos, relativos a trajetórias pessoais e a mudanças sociais. Nesse sentido, o presente estudo, sem deixar de proceder às necessárias caracterizações de situação, concentrar-se-á sobretudo no exame da “Praxe” em 15 profundidade, com o intuito de alcançar, acerca dela, avanços analíticos de interpretação e explicação. Acresce ainda que, sendo este um estudo orientado fundamentalmente para o aprofundamento analítico, procurou-se equacionar também possíveis instrumentos de ação alicerçados no conhecimento adquirido, designadamente medidas de integração académica e de política pública. Da metodologia Este estudo foi planeado tendo em vista compatibilizar objetivos de conhecimento com objetivos de política pública. Assim, foi considerada, no desenho metodológico, a necessidade de tempos de execução relativamente curtos, embora sem comprometer as exigências de fundamentação e aprofundamento cognitivo. Para esse efeito, elaborou-se um plano de trabalho decomposto em duas fases, quanto a atividades a realizar e quanto a resultados esperados. Atendendo aos objetivos centrais do estudo sinteticamente expostos anteriormente e aos constrangimentos temporais referidos acima, optou-se por uma metodologia mista convergente (convergent mixed methods), envolvendo as seguintes operações metodológicas principais: a) Uma meta-análise de estudos já realizados sobre o tema, visando identificar padrões e elementos chave, confrontar interpretações e explicações, e explorar novas articulações analíticas integradoras (capítulo I); b) Construção e aplicação de dois inquéritos online, respetivamente, às direções de Instituições de Ensino Superior e às direções das associações académicas e de estudantes. Os resultados dos inquéritos, cuja análise descritiva se desenvolve no capítulo II desde relatório, permitiram convocar um quadro amplo de análise das manifestações da praxe académica numa parte substancial do país. Para além de perguntas com opções de resposta fechadas, que nos possibilitaram algumas análises quantitativas, foram incluídas, igualmente, um conjunto de perguntas de resposta aberta, em que foi possível começar já a trabalhar algumas tipologias sobre os modos de relação com o fenómeno; c) Um conjunto de estudos de caso, a partir de oito insituições universitárias e três institutos politécnicos, analisados à escala das suas unidades orgânicas, e diversificados por subsistema (universitário e politécnico), estatuto jurídico (público e privado) e região (norte, centro, sul; litoral, interior). Esses estudos de caso incluíram uma abordagem multidimensional implicando: visitas aos locais; 16 seis dezenas de sessões de observação direta; recolha documental e análise de conteúdo de códigos de praxe e outros documentos relevantes; 41 entrevistas semi-dirigidas a estudantes, dirigentes estudantis e dirigentes de Instituições de Ensino Superior; 5 grupos focais com estudantes, professores, responsáveis das instituições e dirigentes estudantis; dezenas de conversas etnográficas ou informais; e utilização da fotografia social. De facto, foram realizadas observações sistemática da praxe académica nos distritos de Lisboa, Porto, Coimbra, Beja, Castelo Branco, Bragança, analisando-se rituais onde participaram estudantes de mais de duas dezenas de instituições universitárias e politécnicas. Estas observações implicaram a criação de grelhas de análise comuns, que permitiram o desenvolvimento de análises comparativas. (capítulo III e capítulo IV); d) Recolha documental e levantamento de fontes secundárias para a sistematização e contextualização histórica do fenómeno da praxe na Universidade de Coimbra e os seus desenvolvimentos noutras zonas do país. (Capítulo V); Complementarmente, concretizaram-se também as seguintes operações metodológicas: e) Análises de comunicação social a notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre o tema (capítulo VI); f) Uma identificação de aspetos jurídicos relevantes a tomar em conta na caracterização dos problemas associados à “Praxe” e no equacionamento de medidas para os enfrentar (capítulo VII). O conjunto das operações metodológicas aplicadas permitiu recolher informação, dados e depoimentos sobre o fenómeno da praxe em todos os distritos e ilhas do país, abrangendo os discursos e as práticas de todos os atores sociais nele envolvidos: estudantes que participam na praxe, que a abandonaram ou que nunca nela participaram, dirigentes associativos e estudantis, provedores do estudante, diretores e vice-diretores de unidades orgânicas, reitores, vice-reitores, presidentes e vice-presidente de instituições politécnicas e ainda a antigos estudantes. O procedimento metodológico planeado implica que os resultados analíticos mais significativos decorram da triangulação dos elementos obtidos nas várias operações metodológicas acima enumeradas e da sua análise integradora teoricamente orientada. Esta combinação de procedimentos quantitativos e qualitativos permitiu-nos confrontar as práticas declaradas dos agentes envolvidos (através dos inquéritos, 17 entrevistas e grupos focais) com as práticas observadas através da observação e da presença no terreno a partir de um olhar próximo e por dentro. Da triangulação resultaram contradições e descoincidências várias (nem sempre o que se afirma é o que se faz e muitas vezes não se tem consciência do que efetivamente se faz) que foram heuristicamente aproveitadas para complexificar a análise. As conclusões procuram situar a praxe na expressão e constituição da condição juvenil contemporânea (que a ela não se resume), em contextos intra e extrauniversitários, bem como nas dinâmicas sociais portuguesas, quer as mais instituídas, quer as mais emergentes. A praxe não é um mero epifenómeno, mas não deixa de se relacionar tanto com o modo de funcionamento das Instituições de Ensino Superior, incluindo as suas representações simbólico-identitárias, quanto com o grau mutável de relevância da escolaridade superior nas várias instâncias da sociedade portuguesa, incluindo a produção, circulação e apropriação de sentidos, valores e normas de comportamento. Finalizamos com a apresentação de um conjunto de recomendações para a conceção de políticas públicas favoráveis ao combate das dimensões de dominação (física e simbólica) existentes na praxe, articulando a ação governamental com as Instituições de Ensino Superior (IES), as associações de estudantes, as autarquias e o sistema de justiça (Capítulo VIII). Para uma leitura sintética dos principais resultados, precedemos este relatório de um sumário executivo. 18 CAPÍTULO I A PRAXE ACADÉMICA EM PORTUGAL: APRESENTAÇÃO BREVE DAS INVESTIGAÇÕES JÁ REALIZADAS Faremos agora uma viagem em retrospetiva, necessariamente sintética e inevitavelmente incompleta, mas tão exaustiva quanto possível, pelos estudos sobre a praxe académica já produzidos no nosso país. Constatámos a existência de dezenas de trabalhos prévios que, em múltiplos formatos, a partir de vários pontos de vista, enquadrados por diversas disciplinas do saber e recorrendo a diferentes estratégias metodológicas, procuram compreender melhor o fenómeno em questão. De uma maneira geral e algo simplificadora, porque vários dos estudos encontrados abordam múltiplas facetas da praxe, podemos agrupar os vários trabalhos consultados tendo em conta o aspeto da praxe sobre o qual o seu olhar incide com mais atenção. Assim, e ainda que de forma imperfeita, podemos distinguir entre: (1) trabalhos que procuram definir a praxe, tentando igualmente perceber as suas origens, as suas caraterísticas distintivas e as suas funções; (2) estudos que se esforçam por compreender a praxe enquanto ritual de passagem ou ferramenta de integração num grupo; (3) trabalhos que abordam a praxe preocupados com a violência e o exercício de poder; (4) investigações focadas nas perceções sobre a praxe dos seus protagonistas, ou que revelam as diferentes maneiras de a viver e sentir; (5) reflexões sobre a juventude a partir da praxe; (6) estudos sobre o consumo de álcool em contexto de praxe; (7) investigações sobre a forma como os estudantes que praticam a praxe são estereotipados. Embora nenhum estudo faça deste o seu tema principal, é possível encontrar, na literatura consultada, várias alusões à forma como a sexualidade é retratada na praxe e a manifestações de sexismo nesse ritual, aspetos a que também nos referiremos. Por fim, procederemos a uma breve contextualização internacional do fenómeno da praxe. 1.1. O significado da palavra “praxe” A socióloga Maria Eduarda Cruzeiro (1979) fez um esforço no sentido de delimitar a noção de praxe e de compreender as funções do fenómeno. No seu entendimento, ele pode ser definido como um conjunto de práticas institucionais dotadas de especificidade e que têm o propósito de preservar uma tradição tida como original, assumindo por isso formas que as aproximam do ritual. O termo “praxe” surge na segunda metade do século XIX, conferindo um novo significado social a um conjunto de práticas que envolviam os 19 estudantes universitários recém-chegados à Universidade de Coimbra e os que lhes eram mais antigos, muito marcadas pela violência que estes exerciam sobre aqueles. A emergência da praxe enquanto conceito traduz uma tentativa de preservação dos costumes estudantis oriundos de um passado que surge mitificado, simultânea à atribuição, a esses mesmos costumes, de uma essência de originalidade e do caráter prescritivo da norma. Tendo também em conta o contexto histórico da sua origem, marcado por mudanças relativas à composição social dos estudantes do ensino superior, pela emergência de novas instituições de ensino em Lisboa e no Porto e pela deslocação do órgão responsável pelo ensino superior para Lisboa, Eduarda Cruzeiro defende que a emergência da praxe teve como função a reprodução da identidade e da coesão institucionais da Universidade de Coimbra. A autora avança ainda com algumas hipóteses que tentam explicar a razão pela qual, de entre os costumes estudantis, foram consagrados como praxe aqueles que dizem respeito às práticas entre os novos estudantes e os alunos mais velhos. Assim, em primeiro lugar, admite-se que a sua antiguidade possa ter tido alguma importância para a atribuição de valor tradicional; em segundo lugar, e tratandose ela de um esforço no sentido de proteger a originalidade e coesão da universidade, faz sentido que a praxe se dirija aos novos estudantes, transmitindo-lhes os valores institucionais e funcionando como um direito de entrada que há que pagar para pertencer plenamente a essa instituição. Por fim, a autora admite que a diversificação social dos alunos do ensino superior, que ameaçava o seu tradicionalismo e elitismo, contribui para explicar a praxe enquanto mecanismo de integração e homogeneização dos estudantes. A autora refere-se ainda às praxes contemporâneas, observando nelas um grau de formalização que as aproxima cada vez mais do ritual, e, por outro lado, uma distância do seu contexto de origem que as torna anacrónicas e as converte numa espécie de prática folclórica para consumo turístico. Criticando diretamente Maria Eduarda Cruzeiro, António Manuel Nunes (2004) considera que a praxe académica, ainda que contendo uma importante dimensão identitária - o autor considera-a uma marca da especificidade sociocultural dos estudantes de Coimbra -, não pode ser reduzida a um mero mecanismo de reprodução institucional, uma vez que isso não tem em conta o caráter autónomo e contra-cultural dos costumes estudantis. A praxe é retratada por este autor como um ritual de iniciação que opera a morte e o renascimento de alguém estranho ao grupo (logo, ameaçador) antes de ser plenamente aceite por este. Admite-se que a praxe conteve sempre um grau de violência, variável ao longo dos tempos, mas argumenta-se que, por ser regulada, essa violência se 20 diferencia da delinquência. O autor destaca também o carácter humorístico e satírico da praxe, com um importante componente de crítica e subversão da ordem social, e, apesar do seu elevado grau de hierarquização, interpreta-a como uma celebração da convivialidade e da vida em comunidade. A perspetiva de Aníbal Frias sobre a praxe académica contém alguns pontos de contacto com os trabalhos que apresentámos anteriormente. Para este autor, a praxe coimbrã tem uma dimensão simbólica importante, na medida em que é um instrumento de afirmação da originalidade da Universidade de Coimbra (2003). A praxe é definida enquanto um conjunto de práticas humilhantes impostas pelos estudantes mais velhos aos recém-chegados e de brincadeiras satíricas com um certo grau de violência. Trata-se de uma marca cultural dos estudantes que absorve e reinterpreta influências originárias tanto da universidade como da cultura popular. O caráter distintivo da praxe, a sua simbologia, a hierarquia onde os mais velhos têm autoridade sobre os mais novos e o seu carácter violento não são dissociáveis daquilo que é a realidade histórica da cultura escolar. Frias apresenta-nos algumas características importantes da praxe: ela é plástica, moldando-se e readaptando-se ao sabor das transformações sociais mais vastas, e apesar de ser balizada por regras, estas, na prática, tanto podem ser seguidas como transgredidas. Para além disso, e ainda que ao código de praxe seja reconhecida legitimidade na sua função de regular o universo praxista, ele não é exaustivo. O conteúdo da praxe acaba por ser determinado por desvios e reajustamentos que vão acontecendo em relação aos planos iniciais das comissões de praxe e de outros atores responsáveis pela sua organização, desvios estes que podem ter múltiplas origens, entre elas a consideração da vontade dos “caloiros”, e que podem acabar por suavizar as atividades. Frias estabelece ainda uma separação entre as práticas de submissão e as práticas de socialização, referindo, porém, que a linguagem corporal dos “doutores” introduz muitas vezes nas primeiras um elemento de ambiguidade, questionando a sua autenticidade e remetendo-as assim para uma esfera lúdica. Desta forma, a praxe afasta-se, até certo ponto, dos seus valores tradicionais, num contexto onde a sua reprodução não seria fácil à partida, devido à natureza efémera da passagem da maior parte dos estudantes pelo ensino superior e, consequentemente, ao horizonte curto da sua memória relativamente às tradições académicas. Ainda de acordo com este autor, a praxe deixou de ser um conjunto de usos e costumes para se transformar numa tradição, isto é, num conjunto de comportamentos codificados onde existe um esforço de preservação, ou de invenção, de uma ideia de 21 memória coletiva (Frias, 2000). Tal como Cruzeiro, também Frias considera que essa metamorfose remonta à segunda metade do século XIX, momento em que se inicia a sua institucionalização. Porém, isto não significa que a praxe se tenha tornado estática e imutável a partir desse momento. Na década de 1980 verificaram-se esforços no sentido da sua patrimonialização. Antes disso, na década de 1960, ela foi utilizada enquanto elemento unificador dos estudantes num contexto de luta política contra o Estado Novo, quando já se tinha tornado crítica relativamente ao regime e abandonado alguns dos seus aspetos mais violentos (Frias, 2004). A este propósito, Miguel Cardina (2004, 2008) mostra como, num período de contestação estudantil ao Estado Novo, a praxe foi, primeiro, mobilizada para o combate político e cultural para, posteriormente, ser abolida num contexto de crescente politização e viragem à esquerda dos estudantes. De acordo com Frias, a partir desta década, a praxe começou também a ser associada ao fascismo por alguns dos seus opositores (2004). 1.2. A Praxe enquanto ritual de iniciação São vários os trabalhos sobre a praxe académica que a analisam enquanto um ritual de iniciação ou de passagem. Alguns deles fazem deste conceito o ponto de partida para o estudo desse fenómeno, como é o caso da tese de mestrado em antropologia de Rita Ribeiro (2000) sobre a praxe académica praticada na Universidade do Minho. Neste trabalho, a praxe é concebida enquanto um ritual de passagem trifásico, composto por um período de separação, uma fase liminar e uma etapa de agregação. No entanto, a sua estrutura é complexa, e as diferentes fases podem cruzar-se e sobrepor-se no mesmo período temporal. Quando se submetem à praxe, os “caloiros” estão a pagar o direito de acesso ao estatuto de estudante do ensino superior pela segunda vez, uma vez que já pagaram uma primeira “portagem” com o seu mérito escolar, e já se encontram formalmente nesse grupo. Ora, este segundo tributo demonstra bem a importância do significado social de que, no nosso país, se reveste a frequência de uma instituição de ensino superior. Mas a praxe, enquanto ritual de passagem, pode ainda ser interpretada de outras formas: como marca da transição entre fases biográficas distintas, marcando a entrada na idade adulta, e também como ritual de elevação de estatuto num contexto social onde o investimento na educação é central para as estratégias de mobilidade social ascendente. A praxe joga ainda um papel importante na construção de uma identidade coletiva diferenciadora face 22 a quem está fora do grupo dos estudantes universitários. Por outras palavras, ela é uma ferramenta de distinção social. A fase liminar do ritual trifásico, isto é, o momento de indefinição e transição entre dois estados, é particularmente importante na praxe: os sinais de status dos “caloiros” são removidos, estes são designados de “animais” ou “bestas” e recebem um novo nome, são pintados e sujos, e são ainda vestidos de forma ridícula e relativamente uniformizada. Deste modo, eles são homogeneizados com o objetivo de se produzir entre eles uma relação marcada pela igualdade e por laços de companheirismo e solidariedade mútua. A função da praxe consiste então em criar um grupo pautado por relações interpessoais intensas. As condições para tal emergem da experiência inicial de humilhação coletiva, na qual ocorre também, como já se referiu, um trabalho de homogeneização. Da investigação realizada por Rita Ribeiro ressalta ainda um conjunto de características da praxe que importará reter. Nela existe uma hierarquia vincada, que mimetiza aquela que existe na universidade (veja-se o título de “doutor” conferido aos estudantes mais velhos). Não obstante, esta hierarquia é precária porque existe apenas nos momentos do ritual, o que faz com que se esbata facilmente. Curiosamente, ainda que se inspire na hierarquia da universidade, a praxe também a subverte parcialmente no início de cada ano letivo, momento em que os alunos se ausentam das aulas e os professores perdem o controlo sobre o espaço da universidade, que se torna algo caótico. Afinal, o ruído e o carnavalesco também são marcas da praxe. De um modo geral, as regras da praxe são implícitas, não se encontrando escritas em nenhum documento. É certo que existe um código de praxe, porém, este não só contém diversas lacunas como o conhecimento do seu conteúdo, por parte da generalidade dos praxistas, é débil. Isto confere à praxe uma grande elasticidade. Também Diana Dias e Maria José Sá apresentam a praxe enquanto uma prática que visa a iniciação num novo grupo. A praxe académica é assim definida enquanto um ritual iniciático, com origens históricas antigas, através do qual os novos alunos do ensino superior se tornam estudantes de pleno direito, sendo aceites pela comunidade de estudantes mais antigos. O objetivo da praxe, tal como é enunciado por aqueles que a praticam, consiste na integração dos jovens que acabaram de chegar ao ensino superior. No entanto, essa integração acarreta um preço que consiste na submissão dos novos estudantes aos seus colegas mais antigos, num jogo onde a fronteira entre a brincadeira e a humilhação nem sempre é clara. 23 Um artigo destas autoras, publicado em 2014, mostra que a praxe contribui para a construção da identidade comum do grupo, bem como para a sua coesão. As práticas de iniciação são frequentemente rígidas e ameaçadoras, configurando, para o novo membro, uma experiência negativa que, por ser penosa, estimula a criação de certos laços emocionais e, por isso, potencia um sentimento de devoção e lealdade relativo ao novo grupo. A praxe promove, por um lado, a dependência social do indivíduo relativamente ao grupo e, por outro, sentimentos de filiação entre os “caloiros” e entre estes e os “doutores”. Os primeiros produzem-se como resposta ao ambiente ameaçador da praxe, por sua vez, os segundos manifestam um desejo de ascensão social no interior do grupo. 1.3. Praxe, violência e poder O terceiro tipo de trabalhos que enumerámos volta a sua atenção para a problemática da violência e do exercício de poder no contexto da praxe. O tema é abordado por Rita Ribeiro na sua tese de mestrado (2000). Para a autora, a violência, a intimidação e a coação marcam o ambiente da praxe. São impostos atos humilhantes aos caloiros; para além disso, ainda que um novo estudante possa recusar participar na praxe, isso tem um custo, materializado na sua exclusão dos costumes académicos. Os abusos por parte dos praxistas consistem no principal problema que afeta a praxe dos caloiros, e estão na origem de muitas das críticas que são feitas a este ritual. Rita Ribeiro afirma que não existiam no contexto da praxe, à época, mecanismos formalizados de combate aos abusos, ainda que alguns casos ocasionais gerassem julgamentos por parte do Cabido de Cardeais (o órgão com mais autoridade na praxe da Universidade do Minho). Por sua vez, a tese de mestrado em sociologia de António Manuel Revez, cujos aspetos essenciais foram publicados num artigo (2000), dedica-se à praxe académica praticada na Universidade de Évora. O seu tema central consiste no conteúdo moral da praxe e nas relações de poder que marcam este fenómeno. O autor optou por uma estratégia metodológica qualitativa, privilegiando a observação direta mas recorrendo também à análise documental. Revez concebe a praxe enquanto um conjunto de rituais de iniciação, passagem e agregação que assinala a transição para um novo momento na vida do indivíduo e a obtenção de um novo estatuto. Estes rituais são enquadrados por uma organização, uma hierarquia e uma esfera normativa próprias e específicas, a que os novos elementos de um grupo se devem submeter para serem aceites enquanto seus membros plenos. O autor deteta aqui uma sobreposição do coletivo ao individual típica 24 de grupos fechados como, por exemplo, o exército. Revez recusa atribuir à praxe de Évora – tal como a quase todas as outras – qualquer carácter tradicional, considerando-a uma invenção recente, inspirada na praxe de Coimbra - essa sim, dotada de um certo peso histórico -, ao mesmo tempo que se tenta demarcar da sua referência inspiradora através da afirmação de alguns aspetos originais. O autor observa na praxe uma tendência para se tornar cada vez mais festiva e carnavalesca, o que, na sua opinião, está relacionado com o choque entre os valores dominantes entre os jovens – o individualismo, o consumismo, a tolerância e o gosto pela transgressão – e a natureza coletivista e tradicionalista do fenómeno em estudo. Do ponto de vista das relações de poder, elas são bem visíveis na praxe: os estudantes mais velhos, situados nas posições mais elevadas de uma hierarquia fundada na antiguidade e onde os direitos aumentam e os deveres recrudescem à medida que se sobe nela, exercem um poder punitivo sobre os seus colegas mais novos. Uma vez que isto acontece no âmbito de um quadro de valores institucionalizado e perene, o poder exercido na praxe pode ser interpretado como dominação. A sua legitimação não se dissocia do ritualismo da praxe, nem do seu sistema moral. A praxe é também moralista, no sentido em que contém uma determinada moral que é transmitida pelos estudantes mais antigos aos seus colegas mais recentes através do exercício de poder. Para o autor, as relações de poder e a moral da praxe mais não são do que um reflexo de uma realidade social mais vasta onde a praxe se encontra inserida, realidade essa que é hierarquizada, moralista e violenta. Assim, tal como o código da praxe de Coimbra de 1957 reflete o clima político e cultural dominante durante o Estado Novo, também a sua recuperação nas décadas finais do século XX levanta um conjunto de questões sobre o poder nas sociedades contemporâneas. Mas Revez observa que a compreensão que os protagonistas da praxe têm acerca daquilo que está em jogo nesse ritual, do ponto de vista moral, é escassa. A explicação para tal reside na fase da vida que os estudantes – principalmente os mais novos – atravessam, num momento em que a compreensão moral e a autonomia ainda estão em construção e, concomitantemente, existe um desejo de conformidade com o grupo. Revez menciona brevemente a questão da obrigatoriedade (ou não obrigatoriedade) da participação na praxe, quando afirma que a maior parte dos estudantes com quem conversou informalmente ao longo do seu trabalho lhe revelou que não optou pela participação na praxe de forma livre nem foi informada sobre a opção de não alinhar no jogo sem sofrer qualquer penalização. 25 Ao longo do seu trabalho, o autor deixa várias pistas para a compreensão da praxe. Assim, a sua inspiração são os rituais de instituições jurídicas, militares, religiosas e escolares. Se ela era, nas suas origens, extremamente violenta do ponto de vista físico, a praxe observada por Revez na década de 1990 era violenta sobretudo através da ofensa, da humilhação, da ameaça e da impossibilidade de comunicar. Tudo podia servir para troçar do caloiro: o local de origem, a pronúncia, a dicção, a personalidade. Desta forma, a praxe atacava as referências identitárias do novo estudante, ao mesmo tempo que as substituía por outras. Esta violência, conjugada com intrusões na esfera privada (com questões, por exemplo, sobre a vida sexual dos novos estudantes), não contribui nem para a integração, nem para a construção de uma identidade saudável, produzindo antes os efeitos opostos. Para além disso, o “caloiro” será tão melhor, aos olhos de quem praxa, quanto menos resistência mostrar. Por sua vez, o conformismo dos “caloiros” não só é compreensível como expectável, uma vez que responde a uma realidade ritualizada, regulada e integradora. Apesar do tom crítico do seu trabalho, Revez não nega a existência de uma face festiva e convivial da praxe, que não investigou, admitindo ainda que este ritual poderá ter funções virtuosas nas esferas da sensibilidade cívica, do entretenimento e da cultura. Em 2008 foi publicado um relatório da responsabilidade da Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, de que foi relatora a então deputada Ana Drago, preocupado sobretudo com as manifestações de violência na praxe. Esta é retratada como um fenómeno plural, variável consoante as instituições em que ocorre. As suas raízes podem ser mais antigas ou mais recentes consoante os diferentes contextos, e as práticas concretas que encerra são diversificadas. O relatório considera insuficiente a informação então disponível sobre a violência na praxe. Defende-se que a lógica hierárquica do fenómeno, assente no exercício de poder dos estudantes mais antigos sobre os mais recentes, não é dissociável dos comportamentos abusivos e violentos que nele ocorrem. Por sua vez, tais comportamentos também estarão relacionados com a inexistência de mecanismos de regulação e intervenção externos. Considera-se fundamental aprofundar o conhecimento disponível sobre a praxe, implementar ferramentas que facilitem a denúncia de situações abusivas e evitar a legitimação da praxe por parte das instituições do ensino superior. O relatório sintetiza também aquelas que são as posições das instituições do ensino superior relativamente à praxe, apresentando três posicionamentos típicos distintos. O primeiro agrupa as instituições que consideram que a legislação criminal em 26 existência é suficiente para lidar com as situações abusivas que ocorrem na praxe e que, por isso, se abstêm de criar regulamentos internos vocacionados para essa problemática. A segunda posição diz respeito às instituições que defendem a criação de mecanismos de regulação específicos para a praxe, podendo verificar-se a proibição das atividades praxísticas ou a criação de instrumentos com o objetivo de tratar e punir eventuais abusos e encaminhar para o sistema judicial as situações que tal justifiquem. Por fim, a terceira posição tende a considerar a praxe académica um fenómeno autónomo relativamente às Instituições de Ensino Superior e que, consequentemente, se deve autorregular. Também digno de nota é um relatório do Observatório dos Direitos Humanos, assinado pela relatora Dulce Nascimento (2010). Orientado por uma perspetiva mais jurídica, este documento também se mostra preocupado com as várias formas de violência que se revelam na praxe académica. A praxe é apresentada como um costume, repetido ao longo do tempo, relacionado com a integração dos novos elementos de um grupo. Neste contexto são comuns as humilhações infligidas a esses novos elementos; mesmo quando parecem inofensivas, elas poderão produzir efeitos negativos a longo prazo. A prática concreta da praxe nas Instituições de Ensino Superior portuguesas é descrita como militarista, hierárquica, humilhante e contrária à individualidade de cada um. Trata-se, de acordo com esta argumentação, de uma atividade degradante que muitas vezes atenta contra os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos. Na praxe ocorrem situações de violência que configuram crimes, relativamente aos quais o consentimento das vítimas é irrelevante, uma vez que estas nem sempre têm plena consciência dos seus direitos ou a possibilidade de recusar livremente a sua participação. A autora conclui manifestando repúdio pela praxe académica, relembrando a irrelevância que o consentimento da vítima tem no caso de crimes que ocorram na praxe, defendendo que os códigos de praxe e as decisões dos seus julgamentos não têm qualquer validade jurídica, e argumentando que os estabelecimentos do ensino superior deverão procurar impedir as praxes humilhantes. Nos casos em que aqueles optem por ser coniventes com a praxe, deverão ser responsabilizados, por ação ou omissão, por quaisquer danos que ocorram. A tese de mestrado de Tiago Jacinto em Ciências Policiais (2011) apresenta também um esforço de análise jurídica da praxe, defendendo-se igualmente que o consentimento das vítimas não implica que certos atos de natureza criminal que possam ser perpetrados em praxe passem a ser lícitos. Este argumento é justificado de três formas: em primeiro lugar, o consentimento só é válido quando se refere a bens jurídicos 27 disponíveis, o que não é o caso da integridade física. Em segundo lugar, ele tem de ser expresso de forma livre e consciente, o que não acontecerá na praxe, onde o consentimento é condicionado pelo receio de exclusão do grupo. Por fim, a maior parte dos crimes que poderão eventualmente ocorrer em praxe requerem a apresentação de queixa por parte do ofendido, o que torna irrisória esta discussão. Jacinto alude ainda ao debate sobre a hipotética autonomização dos crimes passíveis de acontecer na praxe, referindo que todos eles estão previstos pela legislação penal. As instituições do ensino superior deverão utilizar as suas competências disciplinares para sancionar atos de coação ou de violência que ocorram nas praxes; por outro lado, a Polícia de Segurança Pública deverá intervir quando as circunstâncias o justificarem, focando a sua ação na prevenção e no esclarecimento dos estudantes sobre os seus direitos e deveres e alicerçando-a numa relação de confiança com a comunidade estudantil que deve ser progressivamente construída ao longo do tempo. Defende-se uma postura das autoridades (académicas e policiais) voltada para a supervisão e responsabilização. Mesmo reconhecendo que o conteúdo concreto das praxes varia muito nas diversas Instituições de Ensino Superior, o autor chama ainda a atenção para o grau de violência que existe em muitas delas, um problema que, apesar das medidas de prevenção já implementadas, merece uma maior atenção. Considerando que uma proibição da praxe poderia remetê-la para a clandestinidade e assim agravar os problemas, Jacinto aponta a sua institucionalização como uma forma de responsabilizar os estudantes praxistas pelos seus atos, sugerindo ainda a implementação de atividades de integração no ensino superior alternativas à praxe. Na sua opinião, deverão também ser criados mecanismos que promovam o esclarecimento dos estudantes e que facilitem as denúncias de situações abusivas. A investigação em causa não se esgota nesta indagação de natureza jurídica, uma vez que o seu autor, focando-se na vertente violenta da praxe, se propõe a perceber porque é que os alunos recém-chegados ao ensino superior decidem participar nesse ritual e procura ainda avaliar a necessidade de um programa de policiamento de proximidade para este. Para Jacinto, a praxe atua como uma ferramenta de integração, de elevação do estatuto social e de afirmação da identidade diferenciada das instituições do ensino superior. Reconhece-se que ela possui uma dimensão integradora e pedagógica; não obstante, as práticas que encerra não são vistas como devidamente adequadas ao seu objetivo declarado de facilitar a integração dos “caloiros”. Este autor conclui que a forte 28 adesão dos novos estudantes à praxe se explica pela vontade de se integrarem no mundo académico, ao mesmo tempo que se deparam com uma escassez de alternativas para alcançarem esse fim. Alguns estudantes, sobretudo os que têm de mudar de residência, encontram-se numa posição vulnerável que os torna mais propensos a aceitar participar na praxe para contrariar o medo de serem rejeitados. Fávero, Pinto, Ferreira e Del Campo (2015) investigaram a violência na praxe recorrendo, para esse fim, a um inquérito por questionário administrado a uma amostra construída através do processo “bola de neve” e composta de mais de meia centena de estudantes e ex-estudantes de várias Instituições de Ensino Superior do país. O inquérito mostrou que cerca de três quartos dos inquiridos (77,8%) foram vítimas de algum tipo de violência na praxe pelo menos uma vez, 38,8% exerceram violência sobre outros enquanto praxavam e 86,9% testemunharam atos violentos no mesmo contexto. As vítimas foram mais frequentemente alvo de violência verbal (em 63,5% das ocasiões), psicológica (47,3%) e sexual (47,1%), tendo sido consideravelmente mais raros os casos de violência física (6,8%). Relativamente aos inquiridos que admitiram ter praticado ações violentas na praxe, 43,5% admitiram ter exercido violência verbal, 30,5% reconheceram ter recorrido à violência psicológica, 20,8% referiram ter forçado “caloiros” a abraçarem-se ou dar as mãos (classificado como violência sexual pelos autores) e apenas 1,6% reconheceram ter recorrido à violência física. A violência verbal materializa-se sobretudo em gritos, mas também em comentários depreciativos; a violência psicológica traduz-se frequentemente pelo gozo, pelo controlo e pela intimidação; a forma de violência sexual mais comum consiste no contacto físico não desejado e prolongado, materializado em abraços e mãos dadas; e a violência física está presente principalmente na forma de empurrões. Devemos, no entanto, referir uma ressalva dos autores, que afirmam que ser obrigado a dar as mãos (uma das formas de violência sexual definidas no questionário) é comum na praxe quando os “caloiros” se deslocam, e que esta e outras situações mostram que seria necessária uma abordagem qualitativa para perceber quando é que certos atos podem efetivamente ser considerados violentos. Este estudo revelou ainda que os “caloiros” que são alvo de violência na praxe têm uma maior probabilidade de a exercerem quando chegam ao estatuto de “doutor” e que há uma relação entre o exercício da violência e a posição hierárquica do praxista, sendo o primeiro mais provável quando a segunda é mais elevada, talvez devido à dificuldade de controlar a conduta daqueles que estão nas posições cimeiras da hierarquia. 29 Por último, os dados mostram ainda uma associação entre o sexo masculino e a conduta violenta na praxe. Neste estudo parte-se de uma conceção de praxe enquanto um rito de iniciação que envolve um conjunto de jogos frequentemente humilhantes e violentos. Tal como a simbologia da praxe (tesoura, colher de pau e moca) e o seu mote (dura praxis sed praxis) - indicam, participar na praxe tem um custo. Tal como outros trabalhos já referidos, este estudo considera que, historicamente, as práticas de receção dos novos estudantes universitários pelos seus colegas mais velhos foram marcadas por um elevado grau de violência, embora muitas delas tenham sofrido transformações ou desaparecido. A questão da violência é, mais uma vez, considerada ainda mais pertinente quando se tem em conta que os novos estudantes, perante uma atmosfera coerciva e mecanismos grupais de persuasão para participarem na praxe, poderão não estar plenamente conscientes dos seus direitos nem ter a possibilidade de escolher livremente entre participar na praxe ou recusar fazê-lo. Os aspetos abusivos da praxe são também a principal preocupação de outro trabalho recente assente em métodos quantitativos, da autoria de Oliveira, Villas-Boas e Las Heras (2016), onde se estuda o assédio moral em contexto de praxe. O estudo mostra que a grande maioria dos estudantes inquiridos pelas autoras (92,8%), todos eles alunos da Universidade da Beira Interior, já foi exposta a pelo menos uma situação de assédio moral, ainda que se tratem, geralmente, de situações de baixa intensidade. Na maior parte das vezes, elas materializam-se em restrições à comunicação e em ações de desprestígio para as pessoas. Apesar destes números, os resultados obtidos, quando avaliados de acordo com os índices de assédio psicológico utilizados pelas autoras, mantêm-se abaixo dos valores considerados necessários para considerar que um indivíduo é alvo de assédio moral. Este estudo também mostra que a praxe é percebida pelos estudantes de muitas maneiras diferentes, por vezes antagónicas e dificilmente conciliáveis. Assim, enquanto 71% dos inquiridos afirmam que a praxe é divertida, uma percentagem muito elevada (53%) mantém-se na praxe apesar de se sentir desconfortável. Do mesmo modo, ainda que 60% dos inquiridos considerem a praxe violenta, apenas 17% partilham a opinião de que ela não deveria existir. Para as autoras, estes dados revelam o carácter dúplice da praxe, na medida em que se define por uma vertente violenta e humilhante e, simultaneamente, por uma dimensão socializadora e integradora. A primeira vertente é tolerada porque se encontra balizada num determinado momento, não sendo também de descartar fatores como a tendência para a conformidade com aquilo que é norma, a 30 vontade de participar plenamente na vida académica, e a expectativa de praxar no futuro. Por fim, as autoras referem ainda que os homens são sujeitos a situações de assédio moral mais intensas, mas são as mulheres que se sentem mais desconfortáveis na praxe, discrepância que poderá eventualmente explicar-se por um efeito de género enquanto condição socialmente construída. Também Elísio Estanque (2007, 2008, 2011, 2016) alude à presença da violência (física e simbólica) na praxe académica, identificando-a como um foco gerador de controvérsia, sobretudo a partir da primeira década do século XXI. A lógica da praxe obedece a um jogo de submissão onde os estudantes mais velhos troçam dos mais novos e estes se submetem às provocações, procurando também estar à altura dos desafios lançados. Tal como outros autores já referenciados, Estanque assinala que a violência marca desde há muito os costumes através dos quais os estudantes mais antigos de Coimbra recebem os recém-chegados. Por outro lado, ela não pode ser dissociada dos métodos que, no passado, foram utilizados pelas instituições escolares para disciplinar os alunos. Também a hierarquia rígida da praxe é vista por este sociólogo como um reflexo de uma lógica marcante na história das instituições escolares, onde os mais novos se devem submeter à autoridade dos mais velhos. A resistência que os “caloiros” possam eventualmente exercer é um elemento importante: a posturas mais submissas corresponde um maior risco de exercício de violência, de acordo com a lógica de um jogo onde se colocam à prova os limites da força mental dos novos estudantes. Devemos ainda referir que, de acordo com Estanque, um dos propósitos da provocação e da violência consistia, pelo menos em determinados períodos históricos, em suscitar uma resposta do “caloiro” que revelasse presença de espírito e sentido de humor. Elísio Estanque (2016) contesta o argumento, frequentemente invocado pelos defensores e praticantes da praxe, segundo o qual as situações abusivas são acidentes alheios à lógica da praxe, defendendo que dela fazem parte situações de pura humilhação e abuso de poder. Ainda que admita que a generalidade dos estudantes possa afirmar que a praxe lhes proporciona uma experiência positiva e divertida, este sociólogo lembra que, ainda que importantes, as perceções subjetivas dos protagonistas de um determinado fenómeno social não são por si só suficientes para obter uma explicação convincente a seu respeito, sendo necessária uma interpretação mais crítica e distanciada. 31 1.4. O que pensam os estudantes sobre a praxe? Relativamente ao quarto tipo de estudos, encontramos duas tendências diferentes: enquanto alguns deles dão conta de uma opinião geral positiva sobre a praxe, retratandoa como um momento que permite conhecer os colegas, construir relações intersubjetivas e passar momentos divertidos, outros mostram os estudantes profundamente divididos sobre o assunto, com vários deles a contestar os efeitos positivos da praxe ou, pelo menos, a identificar a existência de diversos problemas. Dentro desta categoria, o mais antigo dos estudos que consultámos consiste num trabalho realizado por Rebelo e Lopes (2001) sobre a adaptação e integração dos alunos do 1º ano de licenciatura da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde se inclui uma breve secção sobre a praxe académica. Reconhecendo a sua importância enquanto marco de transição entre fases distintas das trajetórias escolares e procurando dar resposta a uma preocupação da direção daquela instituição, os autores conceberam um questionário que lhes permitisse avaliar as representações dos estudantes sobre este tema, adaptando-o também aos alunos que não participaram na praxe. Rebelo e Lopes chamaram a atenção para a natureza exploratória do estudo e referiram não ter testado o questionário do ponto de vista da sua validade psicométrica; ainda assim, os resultados obtidos fornecem algumas indicações interessantes sobre a perceção que os alunos daquela faculdade tinham sobre a praxe há década e meia atrás. Desde logo, eles sugerem que se encontrava amplamente difundida pelos estudantes uma impressão positiva desse ritual. Entre aqueles que participaram na praxe (83% da amostra, composta por 139 indivíduos), 76,5% declararam concordar ou concordar totalmente com a frase ”gostei de participar na praxe”, ao mesmo tempo que afirmações como “a praxe contribui para fazer amigos”, “a praxe ajuda a conhecer a FEUP”, “a praxe facilita a integração na FEUP”, ou “a praxe não deve terminar” reuniram também o acordo de claras maiorias entre participantes no estudo, ao mesmo tempo que os estudantes que se identificaram com posições como “na praxe senti-me desprotegido”, “preferia que a FEUP não tivesse praxe, ou “se fosse hoje não teria participado na praxe” foram visivelmente minoritários. Os resultados obtidos para as questões que aludiam, direta ou indiretamente, à obrigatoriedade da praxe são particularmente interessantes: embora 73,5% dos estudantes praxados tenha concordado com a frase “fui à praxe porque quis” e apenas 11,6% tenha mostrado desacordo, não deixa de ser curioso verificar que a frase “é difícil afirmar que não queremos ser praxados” tenha ido ao encontro da opinião de 45,5% dos participantes, 32 enquanto 36,9% consideraram que “quem não participa na praxe sente-se excluído” e 19,5% concordaram com a ideia “senti-me obrigado a participar na praxe”, a respeito da qual 35,8% não manifestaram acordo nem desacordo. Isto indicia que a noção de que “vai à praxe quem quer” podia, naquela altura, não ser assim tão simples. Também interessante é a elevada concordância com as frases “nem toda a gente sabe praxar” (88,7%) e “a qualidade da praxe depende de quem a organiza” (96%), dando a entender que, para a quase totalidade parte dos inquiridos que passaram pelo processo, a praxe podia ser “boa” ou “má”, dependendo da forma como os seus “doutores” a organizavam e implementavam. As respostas dos 17% de participantes no estudo que não participaram na praxe apresentam maior dispersão e algumas contradições, sendo de mais difícil interpretação. No entanto, curiosamente, muitas das frases que veiculam uma ideia positiva da praxe continuaram a merecer acordo por parte da maioria dos inquiridos, ao mesmo tempo que a concordância com afirmações como, por exemplo, “preferia que a FEUP não tivesse praxe” ou “deviam acabar com a praxe” foi minoritária. Refira-se, porém, o número mais elevado de alunos que não foram praxados que concordou com as frases “a praxe é humilhante” (50%) e “a praxe obriga os alunos a fazerem coisas que não querem (64,3%). Finalmente, note-se que, apesar da perceção globalmente positiva da praxe que perpassa nestes resultados, 56,9% dos alunos que participaram na praxe e 78,6% dos que não o fizeram manifestaram-se a favor da criação de formas de integração na faculdade alternativas. A Universidade do Minho promoveu, há alguns anos atrás, a recolha de opiniões sobre a praxe entre os seus alunos, professores e funcionários. Desta iniciativa resultou um relatório, cujas conclusões foram publicadas em 2002 num texto da autoria de Carlos Alberto Gomes e Rita Ribeiro. Os seus autores dão conta de uma divisão marcada entre as posições favoráveis e desfavoráveis à praxe académica. Compondo o primeiro tipo de posicionamento encontram-se argumentos como o contributo dado pela praxe para a integração na universidade, a sua importância para o reforço dos laços interpessoais e grupais, a sua função enquanto elemento para a construção da identidade coletiva e do sentimento de pertença ao grupo, e o seu valor enquanto tradição. Por sua vez, a posição contrária à praxe denuncia a sua natureza antidemocrática, considera que esta não respeita a dignidade humana, acusa-a de utilizar o medo enquanto ferramenta de submissão, defende que ela assenta numa lógica vingativa (quem praxa vinga-se da praxe a que foi sujeito) e argumenta que o fenómeno prejudica o bom funcionamento da instituição. 33 Ocupando o terreno entre estas duas posições irreconciliáveis encontrámos uma terceira, mais moderada, que condena os excessos que ocorrem na praxe e pede a sua regulação. De uma maneira geral, os docentes mostraram-se críticos da praxe. Os autores destacam ainda alguma vontade de mudança que perpassa nos testemunhos recolhidos, no sentido de dignificar a praxe e terminar com a exclusão de quem opta por não participar nela. Os autores concluem identificando algumas das mudanças reivindicadas: sensibilização dos estudantes, erradicação da violência e da humilhação, criação de programas de integração dos novos estudantes mais eficazes, direito efetivo de recusa, regulamentação, intervenção e participação na praxe por parte dos órgãos de gestão da universidade. Preocupados com as descontinuidades que estes enfrentam nesta fase da vida e com as suas potenciais consequências negativas – stress, solidão, inadaptação e desinteresse Freitas, Martins e Vasconcelos (2003) conduziram um inquérito sobre a adaptação dos novos estudantes da Universidade do Minho ao ensino superior. O questionário em causa apresentava uma secção sobre a praxe, onde as respostas dos alunos mostram que estes a consideraram útil para conhecer pessoas e construir relações interpessoais, mas não para obterem uma melhor preparação para o novo contexto em que se encontravam. De notar que uma maioria significativa de indivíduos considerou que a praxe os ajudou a integrarem-se melhor na sua turma (82,7%) e no ensino superior (75,9%), enquanto cerca de dois terços (62,6%) afirmaram que a praxe foi útil para formar um grupo de amigos. Apenas 9% não reconheceram qualquer utilidade à praxe, e aqueles que lhes reconheceram efeitos negativos, como contribuir para evitar as aulas ou para alimentar um sentimento de solidão, são em número ainda menor. Devemos também referir, ainda relativamente ao ano de 2003, um estudo sobre a praxe promovido pela Escola Superior de Enfermagem Bissaya Barreto, em Coimbra (Queirós, Neves, Loureiro, Reis, Silva e Areias citados por Estanque, 2016). Elísio Estanque menciona este trabalho para dar conta da forma como a praxe divide as opiniões dos estudantes. Ele mostra que os sentimentos de repulsa pela praxe são minoritários, mas crescem quando se passa de um plano mais geral (a praxe) para outro mais concreto (a praxe da instituição frequentada), ao mesmo tempo que os sentimentos de simpatia, maioritários no plano mais abstrato, diminuem com o mesmo exercício. Para além disso, ao deixar espaço para que os estudantes pudessem, de forma aberta, transmitir algumas ideias sobre a praxe, o estudo em causa mostrou como as opiniões sobre esse fenómeno facilmente se polarizam no meio estudantil. Em 2005, Artur Cristóvão conduziu um inquérito junto de 42 alunos de 2 turmas 34 de cursos distintos da Universidade de Trás-os-Montes-e-Alto-Douro, numa iniciativa que conseguiu, na altura, atrair considerável atenção mediática. Haverá que ter em conta as limitações deste inquérito, resultantes, desde logo, da amostra utilizada e do número reduzido de inquiridos; no entanto, ele permite vislumbrar algumas atividades que eram praticadas na praxe dos cursos de Economia e Gestão da UTAD naquela época. Estas podiam variar entre cantar, encenar novelas ou anúncios publicitários, realizar atividades físicas (flexões, abdominais, rastejar...), comer coisas desagradáveis (malaguetas, alho...), comer sem talheres (ou substituindo-os por palitos), imitar posições sexuais ou responder publicamente a questões do foro pessoal, entre outras. Igualmente interessante foi o facto de Cristóvão ter pedido aos seus inquiridos para identificarem aquilo que fizeram em praxe que consideraram divertido, aceitável (embora desprovido de piada) e inaceitável. Este exercício demonstra a forma como a perceção da violência e da humilhação pode ser, pelo menos até certo ponto, subjetiva, uma vez que algumas experiências – como, por exemplo, trincar alimentos desagradáveis, receber morcões nos pés ou rastejar na lama - surgem em mais do que uma destas três categorias. Nos casos apontados como exemplo, as três situações em questão são consideradas ou inaceitáveis, ou aceitáveis, mas sem piada. Apesar dos momentos considerados inaceitáveis, a perceção global destes alunos sobre a praxe não é negativa: muitos afirmaram que ela serviu para se divertirem e conhecerem pessoas, e alguns consideraram que em nenhum momento fizeram nada que fosse inadmissível. Após esta iniciativa de Artur Cristóvão, a UTAD realizou outro inquérito em 2006, desta vez com uma amostra de 1136 estudantes, com o objetivo de identificar medidas para uma melhor integração dos seus alunos. Os seus resultados apontam para a conclusão de que a maior parte dos estudantes considera que a praxe facilita a sua integração no ensino superior (Afonso, 2012). A pluralidade de formas de sentir e viver a praxe, mesmo entre alunos que se encontram no mesmo degrau da sua hierarquia, é revelada de forma muito clara num artigo organizado por Manuela Ferreira e Fernanda Moutinho (2007) e comentado por Diana Tavares, João Teixeira Lopes e Gabriela Moita. Este é um trabalho que apresenta, na primeira pessoa, a forma como alguns estudantes da licenciatura em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto passaram pela praxe académica praticada nessa instituição. A chegada à universidade foi marcada por sentimentos de desorientação e incerteza (sentir-se “perdido”, para recorrer às palavras de vários entrevistados) e, por 35 vezes, de nervosismo e ansiedade. Com a entrada na praxe, estas emoções deram lugar a outras, amplamente variáveis e subjetivas: enquanto alguns estudantes contaram que a praxe gerou sentimentos de desconforto e até sofrimento, podendo levar ao abandono (ainda que por vezes apenas temporário) das atividades, outros retratam-na como um momento inofensivo, ou até com alguma piada, e importante para conhecer os colegas e forjar relações de amizade. As narrativas apresentadas tornam clara a dupla natureza da praxe enquanto exercício de poder e meio de socialização e integração. Com as diferentes formas de sentir a praxe existem também diferentes entendimentos daquilo que ela deve ser, com alguns relatos a reclamarem a erradicação dos seus traços mais agressivos. Destas entrevistas emerge também a questão da efetiva liberdade de optar por recusar a praxe, havendo testemunhos de alunos que aguentaram a praxe (ou regressaram após terem desistido) por perceberem que as suas relações com os colegas sofreriam sem ela, ou porque queriam usar o traje posteriormente e participar na vida académica. Por outro lado, também se reconhece a pressão que a maioria exerce no sentido da adesão à praxe académica, que se conjuga com a vulnerabilidade e desorientação que um estudante acabado de chegar ao ensino superior pode sentir. Trabalhando sobre a realidade da Universidade de Coimbra, Elísio Estanque (2007, 2008) deparou-se com divisões de opinião profundas entre os estudantes relativamente à praxe. Este sociólogo revela que o costume estudantil então mais valorizado pelos estudantes era o cortejo da Queima das Fitas (considerado importante por 78,5% dos seus inquiridos), seguido pela utilização do traje académico (71,7%) e pelo cortejo da Latada (65,4%). A praxe dos caloiros era valorizada por 44,3% dos inquiridos, um valor minoritário mas ainda assim bastante considerável. A maior parte dos estudantes de Coimbra que participaram no estudo defendeu que a praxe deve ser voluntária (71,8%), o que levou o seu autor a interrogar-se se cada estudante terá efetiva liberdade para decidir se quer ou não participar nela. É também saliente o número de estudantes que declarou que a praxe deveria libertar-se de qualquer forma de violência, física ou simbólica (67,3%). Por outro lado, os dados recolhidos por Estanque mostram que a maior parte dos estudantes da Universidade de Coimbra desejava manter a praxe, mas com a introdução de reformas. Assim, ainda que apenas 3,3% dos inquiridos tenham concordado com a abolição total da praxe, aqueles que defenderam que ela deve permanecer inalterada também estão claramente em minoria (15%), ao mesmo tempo que um pouco mais de metade (51,5%) concordaram que deviam ser introduzidas melhorias que permitissem receber melhor os novos estudantes. Refira-se ainda que a percentagem de inquiridos que 36 manifestou acordo com a ideia de que a praxe devia ser alterada para evitar a discriminação entre homens e mulheres não foi além de 18,3%. Estanque revelou ainda que os estudantes que viviam em Repúblicas eram tendencialmente mais críticos relativamente à praxe do que a generalidade dos seus colegas. Assim, quando confrontados com a possibilidade de abolir a praxe, 39,7% dos Repúblicos mostrou-se favorável a essa ideia, contra apenas 2,6% dos demais estudantes. Pimentel, Mata e Pereira (2011) procuraram perceber qual a opinião dos estudantes sobre a praxe, recorrendo para isso a uma abordagem quantitativa. Assim, utilizaram uma escala criada especificamente para o efeito: a Escala de Perceção dos Rituais de Integração e Socialização Académica (EPRISA). Neste trabalho, a problemática da praxe académica surge balizada por várias coordenadas. Em primeiro lugar, a entrada no ensino superior é descrita como um período de transição e mudança que coloca aos indivíduos desafios que requerem estratégias de adaptação; caso estas falhem gera-se stress. Para além disso, a praxe e as tradições académicas não constituem um universo estanque, antes refletindo mudanças sociais mais vastas e produzindo efeitos económicos importantes através do contacto entre os estudantes e os restantes indivíduos. Em terceiro lugar, as tradições académicas são vistas como um instrumento de reprodução do estatuto e poder da universidade. Por último, a vida académica não pode ser dissociada da cultura boémia, fortemente marcada pela masculinidade. Este estudo, implementado junto de 273 alunos do primeiro e segundo ano da Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Bragança, mostrou que prevalece uma opinião benéfica, mas longe de ser unânime, sobre a praxe. Assim, 43% dos estudantes que participaram no estudo mostraram ter uma perceção totalmente positiva da praxe; 25% valorizaram os seus aspetos positivos, mas também reconheceram a existência de aspetos negativos; 13% mostraram uma perceção inteiramente negativa, e 19% não revelaram qualquer opinião. Tendencialmente, os aspetos negativos da praxe são tolerados e compensados pelo seu lado positivo. A maior parte dos inquiridos concorda que a praxe proporciona momentos alegres (73,6%), divertidos (74,8%) e de bem-estar (54,9%), ao mesmo tempo que discorda ou, pelo menos, concorda pouco, com a ideia de que a praxe proporcione situações de indignação (21,6% discordam e 31,2% concordam pouco), bem como momentos humilhantes (44,3% discordam e 27,8% concordam pouco) ou intimidantes (42,1% não concordam e 26,4% concordam pouco). Relativamente às caraterísticas negativas sobre as quais os estudantes mostram maior grau de acordo, há que referir o cansaço provocado pela praxe, a sua duração, a falta de educação, os 37 desentendimentos entre os estudantes que praxam sobre as atividades que devem compor a praxe, e a ausência de iniciativas que proporcionem o convívio com os colegas das outras escolas do IPB. Deste estudo ressaltam dois dados adicionais interessantes. Por um lado, devemos referir que 75,1% dos inquiridos concorda “muito” ou “muitíssimo” com a ideia de que a praxe ajudou a sua integração académica. Por outro lado, as perceções sobre a praxe variam significativamente consoante o curso (indiciando diferentes práticas e culturas praxistas) e, por outro lado, o ano frequentado, sendo mais positivas no segundo ano do que no primeiro. Na sua tese de mestrado, intitulada “Transição e Adaptação ao Ensino Superior: Vivências Académicas e Identidade Vocacional” (2012), Tiago Afonso introduziu num inquérito administrado na Universidade da Beira Interior algumas questões sobre a praxe. Dos seus inquiridos, 85,5% declararam ter participado na praxe e, destes, 81% consideraram-na uma experiência positiva, contra 19% que a retrataram como negativa. Afonso defende que os estudantes com uma perceção positiva da praxe tendem a estar melhor integrados entre os seus colegas e na instituição de ensino. Através de uma investigação alicerçada em 30 entrevistas a alunos do primeiro ano do ensino superior, Diana Dias e Maria José Sá (2013) mostraram, mais uma vez, como as formas de viver e sentir a praxe enquanto “caloiro” são díspares entre os estudantes do ensino superior. Palavras como a diversão e o orgulho são frequentemente utilizadas para descrever essa vivência, mas, por outro lado, também lhe são associadas emoções negativas como a humilhação, a vergonha e o ridículo. Se a maior parte dos participantes no estudo identificam a integração dos novos estudantes, a diversão e a promoção de laços de amizade entre os “caloiros” como os principais objetivos da praxe, outros há que consideram que ela serve fundamentalmente para impor regras e divertir apenas os estudantes mais antigos, ou até permitir que estes aliviem algumas frustrações. Por fim, se muitos dos estudantes do primeiro ano entrevistados (27%) dizem que não fariam qualquer alteração à praxe, são ainda mais aqueles que consideraram que certos traços da praxe, relacionados com o exercício de poder e com a prática de violência e humilhação, deviam ser abandonados. As autoras questionam-se ainda sobre até que ponto a decisão de participar ou não participar na praxe pode ser tomada livremente, uma vez que muitos “caloiros” afirmaram que a praxe deveria ser voluntária. Ora, na sua interpretação, isto tanto poderá indicar que estes estudantes estão mal informados como poderá ser revelador de que a adesão à praxe nem sempre é um ato plenamente livre. 38 A forma como a praxe polariza sentimentos e opiniões, mesmo entre aqueles que escolhem participar nela, está também presente no trabalho de Caldeira, Silva, Mendes e Botelho (2015a, 2015b). Inquirindo uma amostra composta por alunos da Universidade dos Açores, os autores depararam-se com uma percentagem minoritária, mas importante, de estudantes que consideraram que a praxe não contribui para a integração no ensino superior (37,7%), enquanto aqueles que pensavam que a praxe é útil para esse fim são ainda menos (30,4%). Olhando apenas para a minoria de estudantes inquiridos que participaram na praxe (37,6%), constata-se que 38,7% disseram não ter gostado da experiência, 32,4% recordaram-na como uma experiência positiva, e 28,8% revelaram um sentimento de indiferença. Por outro lado, a percentagem de estudantes que consideraram que a praxe não é violenta é claramente maioritária (92,8%). Perante estes dados, os autores consideraram que os estudantes toleram a praxe e não a vêm como um fenómeno violento, apesar de, geralmente, não a considerarem algo aliciante nem particularmente eficaz do ponto de vista da integração no ensino superior. Martins, Caldeira, Silva, Mendes e Botelho (2015) estudaram as opiniões e representações sobre a praxe dos estudantes da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre, um contexto onde os alunos que participam na praxe estão claramente em maioria (90,43% dos inquiridos) e onde cerca de um terço dos indivíduos que responderam ao inquérito declararam participar ativamente em quase todas as atividades da praxe. Estes números não se traduzem, porém, num apoio inequívoco a esse ritual: embora a proporção de alunos que transmitiram uma opinião positiva cresça à medida que o olhar dos investigadores se desloca do primeiro para o terceiro ano, é sempre possível encontrar percentagens relativamente elevadas de alunos que revelaram ter uma opinião negativa ou ambivalente sobre a praxe. Por sua vez, as opiniões ambíguas materializam-se frequentemente em expressões que os autores consideram irreconciliáveis (como, por exemplo, “abusiva” e “integradora”). Mostra-se que, mesmo num contexto de elevada participação na praxe, as opiniões dividem-se e polarizam-se, ao mesmo tempo que alguns estudantes experimentam sentimentos claramente contraditórios. Noutro trabalho, desta vez utilizando dados recolhidos junto de alunos da Universidade dos Açores e do Instituto Politécnico de Portalegre, Caldeira, Silva, Sousa, Martins, Mendes e Botelho (2015) pediram aos estudantes inquiridos para caracterizar as praxes usando um adjetivo. “Integradoras” foi o vocábulo mais utilizado, seguido de “divertidas” e ainda de “desnecessárias”. Revela-se assim, mais uma vez, a forma 39 globalmente positiva mas, ainda assim, subjetiva e potencialmente contraditória como a praxe é percebida. Um número baixo - mas que não é completamente despiciendo - de inquiridos (11%) revelou já ter sido agredido, física ou verbalmente, em contexto de praxe. Este valor global, no entanto, escamoteia diferenças importantes entre os dois estabelecimentos de ensino analisados, uma vez que na Universidade dos Açores apenas 7,7% dos inquiridos revelou ter sido vítima de agressão na praxe, enquanto esse valor ascende a 19,5% no caso do Politécnico de Portalegre, indiciando uma cultura praxista distinta relativamente ao grau de violência das suas práticas e/ou à forma como a violência é percecionada. De acordo com os autores do estudo, a violência sentida na praxe não tem muito impacto sobre os projetos de vida individuais, embora se reconheça que já ocorreram situações extremas com consequências dramáticas. 1.5. A praxe como reflexo da juventude e dos seus dilemas Moisés Martins (1993) parte da praxe para refletir sobre a juventude enquanto categoria social. Este autor associa o ressurgimento desse fenómeno a partir da década de 1980 à cultura dominante entre os jovens que o reabilitaram, marcada pelo individualismo e pelo hedonismo. Mais do que uma valorização do tradicionalismo, que é considerado apenas superficial, aquilo que explica o regresso da praxe é o seu carácter festivo e a procura de vivências imediatas. A sua popularidade reflete o afastamento das causas coletivas e a perda de um sentido de futuro em detrimento da fruição do presente e da urgência do imediato. Mais recentemente, também Elísio Estanque (2016) procurou analisar a praxe, mais especificamente a praxe coimbrã, à procura de pistas para a compreensão das subjetividades dos estudantes do ensino superior. Para este autor, os rituais estudantis, sempre em mutação, já conheceram vários significados: se na década de 1960 funcionavam como elemento de legitimação e de construção de uma identidade comum num contexto de ação coletiva de natureza política e cultural, eles hoje mostram uma parte da juventude à procura de referências coletivas e de sentido para o presente num mundo colonizado pelo mercado, onde imperam o consumismo e o individualismo, muitos dos laços sociais tradicionais se desfazem, os protagonistas da política surgem descredibilizados, o futuro é incerto e as trajetórias individuais através do espaço social são imprevisíveis. Estanque não deixa de equacionar, também, a importância que a aura de prestígio e autoridade da Universidade de Coimbra tem para a popularidade da praxe 40 nessa instituição, considerando o seu ritualismo como uma forma de reprodução da sua identidade num contexto de massificação do ensino superior e consequente chegada à instituição de jovens das mais diversas origens sociais e geográficas. Por outro lado, o autor também reflete sobre a forma como as lógicas do poder que marcam o movimento associativo se articulam com a praxe, podendo esta funcionar para mobilizar eleitores, construir listas e criar laços de lealdade, numa lógica mais relacionada com as relações pessoais que se criam do que com as causas coletivas. 1.6. Praxe e consumo de álcool O primeiro estudo onde encontrámos uma referência ao consumo de álcool é a tese de mestrado de Rita Ribeiro (2000). Neste trabalho – centrado, como já referimos, na praxe praticada na Universidade do Minho - identificam-se a Latada, o Cortejo e as festas noturnas da semana do Enterro da Gata como momentos propícios a excessos. Relativamente aos estudos focados especificamente neste tema, há que referir a tese de doutoramento de Lídia do Rosário Cabral, intitulada “consumo de bebidas alcoólicas em rituais/praxes académicas” (2007). A autora, que parte de uma visão da praxe com pouco distanciamento crítico, no sentido de que apresenta argumentos próximos daqueles que os estudantes que a praticam utilizam quando fazem a sua defesa, considera que o elevado consumo de álcool é uma característica marcante de alguns rituais académicos. Isto tem potenciais efeitos negativos, tais como o absentismo das aulas. Um número importante de estudantes inquiridos pela autora afirmou sentir-se pressionada para consumir álcool nestes contextos por parte dos seus colegas (cerca de 38%), aproximadamente metade revelou aumentar o consumo nesses momentos e cerca de 59% afirmaram já se terem embriagado nessas ocasiões. Não obstante, são muito poucos os inquiridos que consideraram que a embriaguez alguma vez gerou a necessidade de assistência médica, provocou remorsos ou ameaçou a sua segurança. No seu trabalho, a autora identifica o consumo excessivo de álcool como um problema transversal na sociedade portuguesa, na qual se verifica uma valorização simbólica do consumo de bebidas alcoólicas e a prevalência de alguns mitos enganadores sobre esta substância. Assim, ainda que este excesso não seja específico dos rituais académicos ou sequer dos alunos do ensino superior, Cabral admite que ele se possa relacionar também com os dilemas e desafios que os estudantes enfrentam decorrentes da fase de transição em que se encontram. 41 A tese de mestrado de Joana Grácio (2009), dedicada ao consumo de álcool entre os estudantes do ensino superior de Coimbra e construída com recurso a uma metodologia qualitativa, oferece uma perspetiva importante sobre a relação entre esta substância e a cultura estudantil da cidade. A autora mostra-nos como as bebidas alcoólicas estão presentes nas sociabilidades e nos costumes dos estudantes, facilmente acessíveis nos bares de algumas Instituições de Ensino Superior e disponíveis a baixo preço em muitos bares, tascas e discotecas da cidade. A sua ingestão adquire contornos particularmente abusivos em determinadas festas estudantis de grande importância simbólica como a Queima das Fitas, sobretudo no dia do Cortejo. Em muitos casos, o álcool também integra os rituais de praxe. Alguns dos seus cânticos estão precisamente relacionados com a bebida. Os estudantes mais velhos incentivam os “caloiros” ao consumo, sobretudo em momentos como o “peddie-tascas”1 ou os jantares de curso, perpetuando assim o seu papel de relevo nos costumes estudantis. Os novos estudantes, algo deslumbrados com a chegada ao ensino superior e com o que isso implica, para muitos deles, em termos de acréscimo da sua independência e de contacto com uma nova cidade, não são forçados a beber pelos “doutores”, mas sentem uma pressão a que é difícil resistir e relativamente à qual, muitas vezes, não oferecem sequer resistência, uma vez que pretendem mostrar que estão à altura da situação. O consumo de álcool raramente é iniciado na universidade, mas a chegada ao primeiro ano é muitas vezes marcada por um aumento importante das saídas à noite e da ingestão de bebidas alcoólicas que se retraem nos anos seguintes, ao mesmo tempo que conhecem novas modalidades. Também José Pedro Arruda (2013) alude ao caso de Coimbra, referindo-se especificamente aos jantares de curso e à semana da Queima das Fitas. Voltando a sua atenção também para os estudantes desta cidade, Elísio Estanque (2016) observou o consumo de álcool abusivo em certos momentos festivos relacionados com os costumes académicos, associando-o aos interesses das cervejeiras e a novas modalidades de consumo entre os jovens, como o binge drinking, onde o objetivo é atingir o mais rapidamente possível o estado de embriaguez. 1 Atividade praxística noturna que inclui visitas a vários bares da cidade. 42 1.7. Estereótipos sobre os alunos que praticam a praxe Encontrámos apenas um trabalho centrado na forma como os estudantes que praxam são socialmente percebidos. Na sua tese de mestrado em psicologia, Paula Lopes (2011) articulou contributos da teoria da identidade social, da teoria da auto-categorização e das investigações sobre estereótipos sociais para avaliar de que modo o grupo dos estudantes mais identificados com a praxe é estereotipado. A investigação dividiu-se em várias etapas distintas. Num primeiro estudo, pediu-se aos 64 participantes, todos eles estudantes no ensino superior, que indicassem quais as caraterísticas que, no seu entender, melhor definiam o grupo dos estudantes praxistas. Obteve 295 palavras e expressões, que foram posteriormente agrupadas em 65 dimensões, das quais se selecionaram as 22 que foram usadas por pelo menos 8% da amostra. Entre elas encontram-se tanto expressões que podemos considerar como tendo uma carga predominantemente positiva (como “unidos”, a palavra mais popular, que surge em 20% dos casos, seguida de “integração”, com 19%) como expressões cuja carga que será sobretudo negativa (como “submissos”, 3ª expressão mais popular, com 17%, e “autoritários” que, com 13%, surge como a 9ª palavra mais frequente). Depois, a autora pediu a 131 estudantes do ensino superior que valorassem cada uma das 22 categorias anteriores, usando uma escala de 1 a 9, em que 1 correspondia a “extremamente negativo” e 9 a “extremamente positivo”. As categorias que apresentavam médias mais extremadas foram removidas, bem como aquelas que remetiam para comportamentos grupais, e as restantes foram submetidas a uma análise de componentes principais, da qual resultaram 4 fatores. No 3º e último estudo foram utilizadas as 14 dimensões referentes às caraterísticas do grupo dos estudantes praxistas obtidas nos dois estudos anteriores. Foi pedido a 164 estudantes que valorassem novamente as categorias estereotípicas da praxe, de acordo com uma escala com 9 graus. Desta vez, porém, Paula Lopes controlou o grau de identificação destes estudantes com o próprio grupo que estava a ser avaliado. Depois de outra análise de componentes principais, a autora chegou novamente a quatro fatores. O primeiro, “competências sociais positivas”, integra as dimensões “ser divertido”, “ser sociável” e “integração”, todos eles com valoração muito positiva. O segundo, designado de “atitudes em relação à hierarquia”, compreende as dimensões “impor uma hierarquia”, “hierarquia”, “procurar o poder”, as três com uma valoração muito próxima do centro da escala, e ainda “exagero”, com uma valoração negativa. O terceiro fator, “atitudes de 43 comprometimento social”, integra as dimensões “respeitar regras” e “dedicação”, ambas com valoração muito positiva, e “sacrifício”, com valoração positiva. Por fim, o fator “competências sociais negativas” integra as dimensões “ser conformista”, “ser elitista” e “ser prepotente”, todas com valorações claramente negativas. Foi então pedido aos participantes no estudo que valorassem um conjunto de grupos, entre os quais os estudantes da praxe, de acordo com a mesma escala de 9 graus em que um representa o valor mais negativo e 9 o mais positivo. A média obtida para os praxistas foi de 5,34, refletindo uma avaliação ligeiramente positiva. Recorrendo novamente a uma escala de 9 graus, os inquiridos indicarem até que ponto cada uma das dimensões referidas se adequava aos estudantes da praxe, bem como a dois grupos de comparação selecionados do conjunto de grupos previamente valorados pelos inquiridos: os ambientalistas (valoração positiva) e os políticos (valoração negativa). O exercício foi realizado para mais dois fatores compostos, relativos à moralidade e à competência. Surpreendentemente, não se verificou qualquer efeito de favorecimento dos estudantes praticantes da praxe por parte dos inquiridos identificados com o grupo. No entanto, considerou-se que existe um estereótipo sobre os praxistas, uma vez que a associação de determinadas caraterísticas ao grupo ocorreu sem que se verificasse um efeito de comparação com os grupos de contraste negativo (políticos) e positivo (ambientalistas). Todas as caraterísticas estereotípicas definidas nas primeiras fases do estudo foram positivamente associadas aos praxistas por uma amostra diferente na última fase, o que robustece esta ideia. Dos quatro fatores, o fator “atitudes em relação à hierarquia”, composto pelas dimensões “hierarquia”, “impor uma hierarquia”, “procurar o poder” e “exagero” foi aquele que surgiu mais claramente associado aos estudantes praxistas, podendo residir aí um componente particularmente importante do estereótipo sobre o grupo. 1.8. Praxe, sexualidade e sexismo Antes de concluirmos o capítulo, é necessário referir ainda que alguns estudos aludem ao conteúdo sexual da praxe, e, por outro lado, a manifestações de sexismo nesse ritual, ainda que não façam de nenhum destes temas a sua preocupação central. Como nota Ribeiro (2000), as referências sexuais são ubíquas na praxe, estando presentes nas atividades realizadas pelos caloiros (simulacros de caráter sexual), nos cânticos entoados e também em algumas questões sobre a vida íntima dos caloiros, potencialmente embaraçosas, que 44 lhes são colocadas pelos “doutores”. Ainda segundo esta autora, estas referências são sempre utilizadas de uma forma indecorosa. Fávero, Pinto, Ferreira e Del Campo (2015) abordaram este tema no seu estudo sobre a violência na praxe. Historicamente, a praxe e a generalidade dos costumes académicos são marcadamente masculinos, na medida em que os seus protagonistas eram homens, e ainda hoje algumas atividades são vedadas às mulheres. Os cargos de maior poder em contexto praxístico são quase sempre ocupados por homens, e são também os homens que predominam nos conselhos de veteranos e outros organismos da praxe. Estanque (2016) também dedicou algumas linhas ao sexismo e à discriminação baseada no género em contexto de praxe. Constatando que a masculinidade é um aspeto importante da cultura académica (e não apenas da praxe), e lembrando que a universidade foi, até a um passado recente, frequentada predominantemente por homens, o autor observa que as referências ao sexo feminino são sempre de natureza sexista ou romântica. A discriminação ainda encontra terreno fértil, não só na praxe, mas em várias esferas da cultura juvenil; no entanto, raramente é denunciada. A participação feminina ainda é restringida em certos aspetos da tradição académica (pense-se no fado de Coimbra) e os cartazes que promovem as festividades estudantis coimbrãs, mesmo em anos recentes, traduzem a presença do sexismo na cultura académica – tudo isto apesar do espetacular aumento da presença de mulheres na universidade ao longo das últimas décadas. 1.9. Breve contextualização internacional Com o intuito de melhor situar o fenómeno da praxe em Portugal, apresentamos agora uma perspetiva breve daquilo que são as práticas de receção aos novos estudantes do ensino superior, promovidas pelos estudantes mais antigos, no plano internacional. Esta é uma dimensão que está presente em alguns trabalhos de investigação sobre a praxe académica realizados no nosso país, e aquilo que fazemos aqui é apresentar uma panorâmica muito geral, apoiada nesses contributos prévios. Devemos desde logo referir que Portugal não é o único país onde os estudantes mais velhos do ensino superior recebem os seus novos colegas através de um conjunto de práticas que contêm uma dimensão de exercício de poder e um grau variável de violência. E, tal como por cá, também noutros países se registaram alguns incidentes relacionados com esta realidade (Martins, Caldeira, Nunes, Silva, Mendes, Botelho, 2015). De acordo com Dias e Sá (2014), este tipo de atividades é proibido pela lei em vários países por se 45 considerar que delas fazem parte o abuso, o assédio e a humilhação. Existem palavras em vários idiomas que visam, precisamente, definir este tipo de práticas de receção aos novos alunos. Deste modo, elas são conhecidas como trote académico no Brasil, novatadas em Espanha, bizutage em França e hazing nos países anglo-saxónicos (Martins, Caldeira, Nunes, Silva, Mendes, Botelho, 2015). As realidades a que estes termos se referem têm todas algo em comum: elas são semelhantes aos rituais de passagem que se podem encontrar em múltiplas culturas (Dias e Sá, 2014) e, no contexto das sociedades ocidentais, aos rituais de iniciação a que os novos membros de grupos muito diferentes entre si (gangs, escolas, equipas desportivas, unidades militares) são sujeitos (Fávero, Pinto, Ferreira, Machado e Dal Campo, 2015). No caso específico dos Estados Unidos da América, o hazing é uma realidade que faz parte da vida académica, sendo frequente, desde logo, nas fraternities e sororities (Oliveira, Villas-Boas e Las Heras, 2016). Mas os dados apresentados pela literatura especializada mostram que tal prática não se limita a estas coletividades de estudantes. Num estudo de 2005 implementado junto dos estudantes da universidade de Cornell (Campo, Poulos e Sipple citados por Favero, Pinto, Ferreira, Machado e Dal Campo, 2015) 37% dos participantes revelaram ter estado envolvidos em atividades classificadas como hazing pelos investigadores, ao mesmo tempo que apenas 12% consideraram, eles próprios, não ter sido alvo desse tipo de prática. Um estudo de grande escala 2 realizado três anos depois no mesmo país (Allan e Madden citados por Martins Caldeira, Nunes, Silva, Mendes, Botelho, 2015) concluiu que 47% dos estudantes do ensino superior norteamericano tinham sido objeto de hazing, número que sobe para 55% no caso dos alunos integrados em vários tipos de coletividades estudantis. As práticas mais vezes reportadas consistiam na privação do sono, no consumo excessivo de álcool e em atos de natureza sexual. Ainda assim, a maior parte dos estudantes sujeitos ao hazing não consideraram estas práticas humilhantes nem as reportaram aos órgãos de gestão das respetivas Instituições de Ensino Superior. Por sua vez, outro país anglo-saxónico, o Reino Unido, apresenta uma realidade muito diferente desta. De acordo com Dulce Nascimento e o Observatório dos Direitos Humanos (2010), neste país existe uma “semana de boas-vindas” (welcome week) em que se realizam múltiplas atividades culturais e recreativas. É também neste período que 2 No âmbito deste estudo foi administrado um inquérito por questionário a 11482 estudantes, tendo sido ainda realizadas centenas de entrevistas com estudantes e docentes de várias universidades norteamericanas. 46 várias coletividades se apresentam aos estudantes, procurando cativá-los para as suas iniciativas. Este modelo permite aos novos alunos escolher o caminho que querem percorrer no sentido de melhor se integrarem na nova instituição, colocando em pé de igualdade as várias possibilidades disponíveis. Em 2015 foram divulgados os resultados de um inquérito sobre praxes realizado pelas redes Universia e Trabalhando.com a 2.453 dos seus utilizadores oriundos de dez países da Península Ibérica e da América Latina: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Porto Rico, Portugal e Uruguai3. De acordo com os resultados obtidos, a incidência da praxe é particularmente relevante em Portugal: 73% dos portugueses que participaram na sondagem reconheceram ter sido praxados no ensino superior, número que, para o conjunto dos países abrangidos pelo inquérito, não excede os 25%. Aliás, no plano global, a percentagem de praxados neste patamar de ensino não difere muito do peso que têm os indivíduos que foram sujeitos em momentos anteriores do seu percurso escolar (17%). A ideia de as instituições de ensino são permissivas face a estas práticas é relativamente comum tanto em Portugal (assinalada por 31% dos participantes) como na globalidade da amostra (41%). Por outro lado, quer em Portugal quer no conjunto dos 10 países em causa, as denúncias são raras. Ainda de acordo com esta fonte, mais de metade dos portugueses que participaram no inquérito considera que a praxe pode gerar consequências psicológicas. Não sendo, por si só, suficientes para situar Portugal no contexto internacional de uma forma rigorosa no que à praxe diz respeito, as informações acima apresentadas funcionam como indicadores importantes relativamente, por um lado, à situação de dois países anglo-saxónicos e, por outro, à realidade ibero-americana. Eles permitem-nos perceber que os rituais de receção aos novos estudantes do ensino superior realizados no nosso país partilham algumas semelhanças com aqueles que se verificam noutros contextos, mas que também existem realidades onde tais práticas são pouco comuns. 3 Os resultados deste inquérito podem ser consultados online no seguinte endereço eletrónico: http://noticias.universia.pt/destaque/noticia/2015/12/11/1134653/50-jovens-portugueses-considerapraxes-podem-trazer-consequencias-psicologicas.html 47 Síntese conclusiva Em jeito de conclusão, podemos considerar que a produção científica sobre a praxe no nosso país não é muito abundante. No entanto, existem diversos estudos promovidos por investigadores filiados em várias disciplinas do saber (sociólogos, antropólogos, psicólogos, entre outros) que se debruçaram sobre o fenómeno através de múltiplos pontos de vista e orientados por questões e preocupações de pesquisa distintas. As estratégias metodológicas utilizadas também diferem, sendo possível encontrar investigações de natureza qualitativa, assentes em técnicas como a entrevista, observação e análise documental, e outras informadas pelo método quantitativo, com recurso a inquéritos por questionário. Não é comum a articulação das duas estratégias numa lógica de complementaridade. Finalizamos o capítulo apresentando uma síntese das principais conclusões sobre a praxe patentes nos estudos analisados. A praxe é definida como um ritual de passagem que celebra a entrada no ensino superior, momento muito valorizado na sociedade portuguesa. Ela apresenta semelhanças com outros rituais do mesmo tipo, obedecendo a uma estrutura trifásica e consistindo no preço que os novos elementos de um grupo têm de pagar para serem considerados seus membros de pleno direito. Para além disso, é também um ritual de elevação de status, na medida em que permite a diferenciação dos estudantes que chegam ao topo do sistema de ensino. A origem do conceito “praxe” remonta ao século XIX, quando, em Coimbra, alguns aspetos dos costumes estudantis dos séculos anteriores se cristalizaram e foram investidos de valor tradicional e original. Isto aconteceu num momento em que a Universidade de Coimbra enfrentava a concorrência de novas instituições do ensino superior no Porto e em Lisboa e de recomposição social dos seus estudantes. Neste contexto, funcionou como uma forma de reforçar o seu prestígio alicerçado numa autenticidade conferida pela antiguidade e pela tradição. Após vários períodos em que a prática da praxe foi suspensa, o último dos quais após a “crise académica” de 1969, ela ressurgiu em força a partir das décadas de 1980 e 1990. Alguns observadores vêm na popularidade que tem vindo a conhecer desde então um reflexo da realidade mais vasta de uma juventude divorciada das causas coletivas, que vive num tempo precário e incerto em que não é possível planear o futuro com um grau mínimo de segurança. Neste contexto, as suas vivências são orientadas pelo hedonismo e pela urgência do presente. Atentemos agora naquele que é o objetivo primeiro da praxe de acordo com muitos daqueles que praxam, ou seja, a integração dos novos estudantes no ensino superior. Os resultados dos estudos consultados tendem a apontar para um contributo 48 efetivo da praxe para a integração dos estudantes recém-chegados no grupo dos alunos do ensino superior, criando um espírito de pertença a (e de identificação com) esta nova comunidade, facilitando também a criação de laços de entreajuda e camaradagem. Os estudos focados na opinião dos alunos mostram que, de uma maneira geral, estes consideram a praxe divertida e útil para conhecer pessoas e fazer amigos. Porém, e embora sejam minoritários, também há estudantes que consideram a sua experiência na praxe negativa, conduzindo, no extremo, a momentos de descontrolo emocional como episódios de choro e ao abandono sofrido das suas atividades. E há também opiniões contraditórias sobre a praxe, mostrando que existem estudantes que a consideram globalmente positiva mas que são críticos em relação a vários dos seus aspetos. Quer isto dizer que a conclusão geral acima apresentada está longe de ser unânime ou irrefutável. Devemos ainda introduzir outra ressalva a seu respeito: um espírito crítico deverá ter em conta que a integração no grupo dos estudantes favoráveis à praxe não é a mesma coisa do que a integração plena no ensino superior, que só pode ser avaliada se tivermos em conta não só os laços estabelecidos com os colegas mas também o desempenho escolar e o envolvimento na vida cultural, associativa e científica da universidade. Apenas um dos estudos consultados se referiu ao efeito produzido pela praxe sobre os contactos dos alunos com a instituição, considerando-o positivo. Em segundo lugar, referimo-nos a uma questão muito debatida: até que ponto o novo estudante terá ou não liberdade para recusar a praxe. As investigações já existentes apontam no sentido de que a participação na praxe é formalmente voluntária; no entanto, também mostram que existem mecanismos inibidores de uma eventual recusa. Por um lado, alguns autores questionam até que ponto os estudantes estão efetivamente conscientes de que são livres para recusar a praxe. Outros indicam que um estudante que recuse participar na praxe será privado de usufruir de certos costumes estudantis, exercendo-se assim um efeito de chantagem. Por fim, algumas investigações identificam a pressão social e o desejo de conformidade com a maioria ou com o grupo de referência como mecanismos que convidam o novo estudante a passar pela experiência de ser “caloiro”, mesmo que na verdade não o deseje. A questão da violência nas praxes não é de importância menor. Se os estudos baseados em metodologias quantitativas apresentam resultados contraditórios (alguns assinalam uma grande percentagem de estudantes que são vítimas de violência, em várias das suas formas, na praxe, enquanto outros mostram que a maior parte dos estudantes não considera a praxe violenta), os estudos que recorrem à observação direta identificam 49 como comum o exercício de várias formas de violência sobre os “caloiros”. Não nos referimos aqui aos casos mais graves e dramáticos, que poderão ser considerados excecionais, relatados pelos media, mas antes a um clima de humilhação, intimidação e coação identificado por alguns autores. Alguns dos atos que podem ser praticados em praxe são criminalizáveis e, de acordo com os estudos que também adotam uma perspetiva jurídica, o facto de serem consentidos pelas suas vítimas não isenta de responsabilidade criminal os seus perpetradores. O consentimento da vítima é questionável por várias razões: os atos praticados referem-se frequentemente a bens jurídicos não disponíveis, a vítima encontra-se numa fase da vida em que ainda não tem plena consciência dos seus direitos, e a existência de efetiva liberdade escolher entre participar ou não participar na praxe é, como vimos, considerada questionável. Não obstante o que foi acima exposto, qualquer reflexão sobre a praxe deve ter em conta que a violência é socialmente definida. Quer isto dizer que aquilo que é percebido como violento por um observador externo pode não ser definido como tal pelos estudantes envolvidos no ritual. Alguns autores apontam o consumo excessivo de álcool como uma característica de certos costumes estudantis mais festivos, como os jantares, os desfiles e as festas na época da Queima das Fitas. Esse consumo tem por vezes consequências negativas para a saúde e o quotidiano dos jovens. Há estudos onde se considera que os estudantes mais velhos incitam os mais novos ao consumo em alguns momentos da praxe. No entanto, deve ser lembrado que o consumo excessivo de álcool se afigura como um problema transversal na sociedade portuguesa, e não apenas exclusivo dos jovens ou daqueles que, dentro destes, frequentam o ensino superior. A sua explicação relaciona-se com múltiplos fatores socioculturais e económicos. Embora este seja um aspeto pouco abordado nas investigações e reflexões consultadas, devemos ainda apontar as críticas tecidas por alguns autores que encontram na praxe manifestações de sexismo e machismo. Por fim, a contextualização internacional realizada mostra que Portugal está longe de ser o único país do mundo onde os estudantes mais velhos recebem os novos colegas com práticas de imposição de poder. Existem rituais de iniciação no ensino superior semelhantes à praxe noutros contextos geográficos. No entanto, a sua incidência no nosso país parece ser particularmente saliente. 50 CAPÍTULO II CARACTERÍSTICAS E TENDÊNCIAS DA PRAXE ACADÉMICA. INQUÉRITO A INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR E A ASSOCIAÇÕES ACADÉMICAS E DE ESTUDANTES Como primeira abordagem metodológica ao fenómeno das praxes académicas em Portugal, procurámos proceder à mais caracterização ampla do fenómeno, através da aplicação de dois inquéritos online, dirigidos, respetivamente, às direções de Instituições de Ensino Superior e às associações académicas e de estudantes. Em termos globais, o número de respostas aos inquéritos ficou aquém do desejado pelos investigadores, embora os dados nos permitam proceder desde já a uma caracterização geral da praxe académica no conjunto dos distritos do país. 2.1. A praxe segundo as Instituições de Ensino Superior4 2.1.1. Práticas e características da praxe Entre as sessenta e quatro Instituições de Ensino Superior, a prática de praxe académica é maioritária. Na verdade, 89 % delas revelaram que os seus estudantes participam em práticas de praxe académica, enquanto apenas 11 % afirmaram que os estudantes da sua instituição não participam. Já quanto aos tempos de duração, estes variam muito. 4 No caso das direções das Instituições de Ensino Superior o inquérito foi respondido por 64 instituições. Destas 29 são do subsistema público, entre elas 11 universitárias e 18 politécnicas; e 35 do subsistema privado, entre elas 9 instituições universitárias, 26 politécnicas. Em termos de representação geográfica a amostra contempla 18 distritos representados: Aveiro, Beja, Braga, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Portalegre, Porto, Setúbal, Vila Real, Viana do Castelo, Ilha da Madeira, Ilha de São Miguel, Viseu; e 29 concelhos: Almada, Amadora, Aveiro, Beja, Cascais, Coimbra, Covilhã, Évora, Fafe, Faro, Funchal, Guarda Guimarães, Leiria, Lisboa, Matosinhos, Oliveira de Azeméis, Penafiel, Ponta Delgada, Portalegre, Portimão, Porto, Póvoa do Lanhoso, Santa Maria da Feira, Setúbal, Torres Vedras, Vila Nova de Gaia, Vila Nova da Cerveira, Vila Real e Viseu. 51 Figura nº 1: Duração da praxe, de acordo com as instituições do ensino superior. 30% 26% 25% 21% 20% 15% 17% 12% 9% 10% 7% 5% 2% 5% 2% 0% Um a três dias Uma semana De duas De um a dois De dois a três De três a seis Ao longo de meses meses meses todo o ano semanas a um letivo mês Não sabe Não responde No caso das instituições em que os estudantes participam em atividades de praxe, constatamos que as maiores percentagens de resposta relativamente à duração destas atividades se encontram nas extremidades dos intervalos temporais, ou seja, 50 % das instituições afirma que as atividades de praxe acontecem entre “um a três dias”, “uma semana” e “de duas semanas a um mês”; o passo que em 26 % das instituições afirmam que as atividades de praxe acontecem “ao longo de todo o ano letivo”5. Figura nº 2: Locais onde decorre a praxe, de acordo com as Instituições de Ensino Superior. 1,7% 1,7% 15,0% 25,0% 56,7% Em ambos Fora do campus No interior do camus NS NR Em mais de metade das instituições a praxe acontecem simultaneamente dentro e fora do campus, enquanto que em 25% acontece apenas fora e 15 % apenas no interior do campus. 5 De notar que das sete instituições onde os estudantes não participam em atividades de praxe, quatro delas alegam que estas atividades já se praticaram no passado, enquanto uma afirma que estas iniciativas nunca se realizaram na instituição. 52 Figura nº 3: Núvem de palavras dos locais onde decorre a praxe, de acordo com as Instituições de Ensino Superior Através de uma núvem de palavras procurou-se analisar a lista de locais, fora do campus, onde acontecem as atividades de praxe, com o objetivo de perceber quais são os mais recorrentes. Em síntese podemos constar que os locais mais recorrentes são o das “imediações do campus”, em “jardins”, “parques”, no “centro da cidade”, “espaços públicos”, na “Câmara Municipal”, mas também em “clubes recreativos”, “discotecas”, “bares”, “cafés”, “florestas” ou na “praia”. Figura nº 4: Tendência de evolução do número de estudantes na praxe, de acordo com as Instituições de Ensino Superior. 70,0% 58,1% 60,0% 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 12,9% 15,5% 9,7% 10,0% 4,8% 0,0% A participação dos A participação dos A participação dos estudantes tem estudantes tem estudantes tem sido aumentado diminuído semelhante 53 Não responde Não sabe Para mais de metade das instituições (58,1%) a participação dos estudantes têm sido semelhante, enquanto que quase 13 % revela que a participação tem aumentado e 15,5 % que diminuído. Questionadas sobre o tipo de atividades de praxe privilegiadas pelos estudantes da sua instituição, são destacadas atividades de tipo muito diferentes. Tabela nº 1: Tipos de iniciativa de praxe académica, segundo as Instituições de Ensino Superior TIPOS DE INICIATIVAS DE PRAXE ACADÉMICA “Explicação do funcionamento dos órgãos” “Apresentação da instituição e dos seus serviços” “Partilha de experiências sobre as disciplinas” “Enterro do caloiro” “Ensino de cânticos tradicionais” “Benção do caloiro” “Sessão de esclarecimento sobre o funcionamento da biblioteca digital e do Sistema de Informação” “Divulgação das atividades da Associação de Estudantes e dos Núcleos de Estudantes” “Pinturas faciais” “Visita ao campus” “Semana académica” “Ir ao primeiro ensaio da orquestra académica vestido de pijama” “Actividades constituídas por jogos com farinha, água e ovos” “Receção académica” “Cortejo Académico” “Jantar-convívio com professores” “Jogos” “Cânticos de curso” “Festas” “Peditório” “Jantares de alunos” “Atividades desportivas” “Exercícios análogos a instrução militar” “Passeio pela cidade” “Receção pela Presidente de Câmara” “Atividades solidárias” “Concerto de tunas” “Amedrontamento” “Peddy-paper” “Festival de tunhas” “Exercício físico” “Desfiles” “Recolha de certos alimentos para o Banco Alimentar” “Rally tascas” “Caça ao tesouro” 54 “Partilha de material de estudo e entre ajuda em alojamento e transportes” “Aula fantasma” “Vestidos [os caloiros] de uma forma característica e/ou transportar um objeto particular” “Conhecimento do regulamento, das simbologias académicas e do reconhecimento do campus e dos vários organismos” “É-lhes ensinado o Hino da Escola” “Limpezas de casas de veteranos” “Sessão Solene com a presença de todos os Docentes e Alunos dos diferentes anos” “Reunião de boas-vindas com a presença do Reitor e dos Directores das Faculdades” “Cumprimento de tarefas” “Serenatas” “Jogos tradicionais” “Concurso de talentos” “Caminhadas” Estas podem passar por sessões formais de apresentação da instituição, atividades culturais como festivais de tunas ou concertos, iniciativas solidárias, convívios e atividades festivas, atividades desportivas, mas também podem passar por atividades formais como uma “receção pelo Presidente da Câmara” ou outras muito diferentes como “limpezas das casas dos veteranos” ou “exercícios análogos à instrução militar”. 2.1.2. Modos de relação com a praxe6 Analisando a relação das direções da Instituições de Ensino Superior com as estruturas da praxe académica, constatamos que mais de 80 % das instituições reúne formalmente com as estruturas de praxe, enquando cerca de 16 % opta por não o fazer. Os objetivos fundamentais dessas reuniões, como se pode ler na Tabela 2, onde se dá voz aos dirigentes das instituições, podem passar por “sensibilizar”, “alertar” ou “tomar conhecimento” junto das estruturas de praxe; mas também “articular” iniciativas ou “regulamentar” as atividades de praxe. Por “modos de relação” entendem-se aqui, especificamente, os modos de relação concretos das pessoas (neste caso, de pessoas representantes de instituições), nos seus contextos imediatos de ação, percepção e atuação, especificamente no domínio das práticas institucionais em que se enquadram os papeis sociais de dirigente/representante de uma instituição ou de dirigente/representante de uma Associação Académica. 6 55 Tabela nº 2: Objetivos das reuniões entre as Instituições de Ensino Superior e as estruturas da praxe académica, de acordo as Instituições de Ensino Superior OBJETIVOS DAS REUNIÕES Sensibilização Alertar Articulação Tomar conhecimento Regulamentação EXCERTOS “Sensibilização para que a praxe seja percecionada como efetiva integração (…) uma dinâmica construtiva e de criação de laços afetivos e de boas memórias” “Elucidar os estudantes sobre o que é uma praxe” “sensibilizar os organismos liderados por estudantes para os princípios e práticas que devem nortear uma praxe integradora” “Sensibilização para a realização de atividades não-violentas, nem humilhantes” “Promover o entendimento que a Praxe serve para integrar, salvaguardando todos aqueles que o não desejam” “Alertar para a necessidade de tornar as praxes num momento de inclusão” “alertar para as consequências da violação das regras estabelecidas” “Articular horários e funcionamentos institucionais e de praxe” "O Conselho de Direção nomeou um elemento como elo de ligação à Comissão de Praxe, no sentido de se promoverem reuniões [com o objetivo de] manter e reforçar a cooperação e articulação entre a integração de novos estudantes na Escola e as Praxes Académicas” “Coordenar as atividades de praxe com o calendário académico” “promover a coordenação entre dirigentes da instituição, responsáveis dos órgãos de gestão e a Comissão de Praxe e Associação de Estudantes” “Definição do programa de atividades incluídas no período de praxes académicas” “Saber quais as atividades previstas” (…) “Conhecer o programa das praxes e verificar se o mesmo respeita as normas institucionais; e também para aconselhar moderação e contenção” “Entender o tipo de atividades que pretendem levar a cabo e zelar para que sejam de integração dos alunos” “proibir alguma [praxe] que não se ajuste à integração dos novos alunos” “Explicitar os contornos em que deve ocorrer [a praxe], (…) os limites das atividades e estabelecer um conjunto de compromissos em termos de linguagem a utilizar e atividades a praticar” “Estabelecer regras e normas de conduta e comportamento com vista a uma praxe integradora” “Trabalho de proximidade, recepção e acolhimento dos novos alunos, processo de verificação, validação e controlo das dinâmicas da praxe” “…acordar um conjunto mínimo de princípios que devem orientar as praxes académicas. De entre estes salientamos: a adesão às praxes académicas é um ato voluntário e nenhum estudante pode ser prejudicado por não querer participar (…); a praxe terá de salvaguardar a integridade física, psicológica e moral dos estudantes; as praxes não se podem prolongar indefinidamente no tempo e não podem ocorrer à hora das aulas; e existência de responsáveis pelas atividades de praxe.” “Responsabilizá-los pela praxe. Assinam um declaração com o diretor da Escola” 56 2.1.3. Violência, abusos e estruturas de apoio às vítimas Questionadas as instituições sobre se chegaram à direção casos de violência e/ou absusos ocorridos em situações de praxe académica, a maioria das instituições - cerca de 76 % revela que nunca lhes chegaram casos, enquanto cerca de 17 % refere que eles já lhes foram comunicados. Para as instituições onde chegaram casos de violência ou abusos, quatro delas referem que recebem menos de uma denúncia por ano e nove que recebem uma a cinco denúncias anuais. Nos casos em que foram relatadas situações de abuso e/ou violência foi impossível descodificar concretamente que tipo de situações ocorreram, na medida em que as instituições relataram apenas que estes casos estavam relacionados com “linguagem utilizada”, “atividades que decorrem durante toda a noite dificultando a presença dos caloiros nas aulas da manhã”, “pressões e ofensas”, “práticas abusivas (ofensas) fora dos recintos das Escolas” e "violência verbal”. No entanto, olhando para as respostas às questões sobre quais foram as consequências das situações de abuso e violência, verificamos a existência de casos em que não existiram consequências “pela impossibilidade de se identificarem os alegados agressores/prevaricadores”, sendo que uma instituição refere que pouco pode fazer uma vez que as praxes ocorrem fora do campus. Noutras instituições, as denúncias tiveram consequências: “elaboração de inquéritos internos”; “suspensão de responsáveis devido a praxes nas residências”; “processos disciplinares”; “proibição de realização de atividades de praxe nas instalações da instituição”; “suspensão temporária de atividades de praxe”; “reforço da divulgação dos direitos e deveres dos estudantes, nomeadamente à não participação nas atividades da praxe”. Num outro caso, “foram contatadas as direções das Unidades Orgânicas a que pertencem os estudantes, assim como as estruturas dos estudantes, para avaliar a situação ocorrida e solicitar pedido de desculpas, assim como para evitar novas situações”. 57 Figura nº 5: Existência de estruturas de apoio psicológico a vítimas de violência, de acordo com as Instituições de Ensino Superior. 3% 2% Sim Não 50% 45% Não sabe Não responde Figura nº 6: Existência de estruturas de apoio jurídico a vítimas de violência, de acordo com as Instituições de Ensino Superior. 2% 5% Sim 34% Não Não sabe Não responde 59% É apenas em metade das instituições que existem estruturas de apoio psicológico a vítimas de violência no contexto da instituição. Por sua vez, as estruturas de apoio jurídico, existem somente em 34% das instituições. Depreende-se que, em parte das instituições, as eventuais vítimas de situações de abuso ou violência nas praxes académicas não têm ao seu dispôr mecanismos de acompanhamento psicológico ou jurídico a que possam recorrer. Entre as estrturas que prestam apoio psicológico e/ou jurídico, as instituições destacam as seguintes entidades. 58 Tabela nº 3: Estruturas de apoio psicológico e jurídico a vítimas de violência, segundo as Instituições de Ensino Superior ESTRUTURAS DE APOIO PSICOLÓGICO E JURÍDICO O Provedor do Estudante Gabinete de Apoio Psicológico Um gabinete de apoio aos estudantes com psicólogos especializados e juristas Assessora jurídica Gabinete de Aconselhamento ao Aluno Gabinete do Estudante Docente-Tutor Protocolos celebrados com entidades para o apoio psicológico e jurídico O Serviço de Consulta Psicológica. Entre as estruturas de apoio psicológico e/ou jurídico relatadas pelas instituições destacam-se os gabinetes de apoio psicológico, o provedor do estudante, a assessoria jurídica da instituição ou da associação e serviços como os ação social ou as tutorias. 2.1.4. As alternativas à praxe No que diz respeito a alternativas de recepção e integração dos novos alunos, mais de 70% das instituições afirmam que estas existem, enquanto cerca de 20 % afirma que não existem. Já quanto às entidades que presidem à organização dessas iniciativas idennficiam-se quinze entidades. Figura nº 7: Entidades responsáveis pela a organização de alternativas à praxe, de acordo com as instituições de ensino superior Curso e unidades orgânicas 2% Estrutura da cruz vermelha 2% Sistema de tutorias 2% Gabinete de relações internacionais 2% Serviços administrativos 2% Serviços de ação social 4% Gabinete de apoio ao aluno 4% Conselho Geral 4% 18% Coletivos estudantis informais 22% Conselho Pedagógico 34% Núcleos de alunos ou de curso 36% Provedor do Estudante 54% Direcções das Unidades Orgânicas 56% Reitoria da Universidade ou Presidência do Instituto Politécnico 86% Associação Académica ou de Estudantes 0% 20% 59 40% 60% 80% 100% Entre as várias entidades, destacam-se as Associação Académicas e de Estudantes (86%), a Reitoria da Universidade ou Presidência do Instituto Politécnico (56%) e as Direcções das Unidades Orgânicas (54%). Em algumas instituições participam também da organziação o Provedor do Estudante (36%), os Núcleos de alunos e de curso (34%), o Conselho Pedagógico (22 %) ou Coletivos estudantis informais (18%). Contudo, analisando o teor concreto destas iniciativas identificam-se alternativas muito distintas. Tabela nº 4: Tipos de atividades alternativas à praxe, de acordo as Instituições de Ensino Superior. TIPOS DE ATIVIDADES Apresentação e visita ao campus EXCERTOS Sessões formais e institucionais “Explicação dos objetivos de varias unidades curriculares, funcionamento dos órgãos e em particular do Provedor do estudante” Convívios Iniciativas de voluntariado Iniciativas com empresas e organizações da sociedade civil Atividades artísticas “Apresentação do campus, serviços e unidades de apoio” “Visita às instalações, sensibilização para a vida académica e profissional, para nos programas de voluntariado, na AE e nas tunas” “Sessão com a presença da Presidência, Escolas, Provedora do Estudante, Serviços de Ação Social e Associação Académica” “[organizamos um] convívio institucional” “[organizamos o] evento que designamos por "Aula Inaugural"; “Receção pelos Srs. Presidentes de Câmara” “Jantares de convívio”; “Jantares e encontros informais, para os quais os docentes também são normalmente convidados”. “Entrar nas salas de aulas do 1º ano, mascarados, e dar as boas vindas aos novos alunos com gritos e buzinas.” “Fim de semana do caloiro numa zona do país, festas fora do campus” “Atividades de voluntariado” “Actividades de serviço à comunidade (vindima)”. “Recolha de alimentos para Banco Alimentar [e] leilão de peças de roupa antigas”. “Divisão entre mentores (alunos do 2º e 3º ano), tutores (docentes) e colaboradores e ainda de de antigos alunos (alumni) e de responsáveis de diversas organizações/empresas do panorama nacional e internacional”. Os novos alunos são divididos por cinco temas e “ao longo dos dias do evento, os novos estudantes são desafiados a propor soluções para as questões levantadas. Os novos estudantes são agrupados em equipas multidisciplinares (de diversas licenciaturas) e estão acompanhados por mentores”. “apresentação às Tunas Académicas” “Atividades culturais, tertúlias, concertos, jogos, wokshops, lançamento de livros” “Concerto convívio” Visitas à cidade “visitas guiadas à cidade (…) e de conhecimento de várias instituições culturais e desportivas, que os novos alunos podem frequentar através de protocolos que a Universidade celebra” Tutorias “Sistema de tutoria, onde participam todos os docentes da Instituição, sob a coordenação da Provedora do Estudante” 60 Analisando o tipo de iniciativas que são organizadas, constatamos que há uma forte componente de apresentação e visita ao campus e sessões institucionais de recepção, embora também se destaquem iniciativas de convívio, voluntariado, vistias à cidade ou atividades artísticas. Com menos relevância estão iniciativas relacionadas com a ligação com empresas e organizações ou os sistemas de tutorias. 2.1.5. A proibição da praxe no campus Várias Instituições de Ensino Superior têm optado pela proibição das atividades de praxe dentro do seu campus. Contudo, essa não parece ser a opiniões maioritária entre as instituições inquiridas. Figura nº 8: Concorda com a proibição de atividades de praxe no campus das Instituições de Ensino Superior? 1,6% Sim 1,6% 16,4% 19,7% Não Indiferente Não responde Não sabe 60,7% Mais de metade das instituições - cerca de 60 % - afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições, enquanto cerca de 20 % diz que concorda. Destaca-se ainda cerca de 16 % para quem é indiferente e mais de 3 % que não sabem ou não respondem. 61 Tabela nº 5: Posição e argumentos das Instituições de Ensino Superior face à proibição da praxe académica. POSIÇÃO Contra proibição a ARGUMENTOS CITAÇÕES Dentro do campus há maior controlo “[o] provável resultado [da proibição no campus] será o de empurrar a sua realização para locais sem qualquer controlo das instituições e de estimular ainda mais o seu carácter abusivo” “remete para a clandestinidades estas práticas e não resolve o problema” “A praxe em si não é um fenómeno negativo (…) é um ritual de iniciação da comunidade académica que, como tal, pode aproximar os alunos entre si” Concordância com as atividades "São criados momentos saudáveis de confraternização”. A favor da proibição Dependendo dos casos Ausência de regulamentação ou regulação “Todos os anos, durante a Cerimónia das Queimas das Fitas, os alunos recordam, com muito agrado, o 1.º dia da escola e as brincadeiras que realizaram" “A praxe académica é uma atividade com tradição na comunidade académica” “Faz parte da vida académica, do envolvimento e do histórico nacional do ensino superior.” “Porque, pela nossa experiência é possível ter atividades praxistas que respondam a uma efetiva integração de novos estudantes e criação de redes de solidariedade entre os estudantes. Para além de competências relacionais, comunicações, liderança, espírito de grupo, resiliência, entre outras, importantes para o desenvolvimento académico e profissional futuro” “A praxe académica não se rege por Regulamentos da IES, nem tem uma regulação prevista na Lei, pelo que a mesma não deve ser realizada no campus da IES” Perturbação funcionamento “Perturbam as aulas e o sossego no campus” Devido às situações de abusos ocorridas Diconcordância com os valores da praxe “Pelos abusos lamentáveis que têm sido relatados noutras instituições” “Porque não constituem atividades de integração quando acontecem comportamentos em que o respeito pela dignidade, integridade e vontade dos estudantes é negada. (…)” “muitas vezes veiculam ou estimulam um desequilíbrio de poder e uma submissão e obediência à autoridade (…) que não são os valores que uma IES quer incutir nos seus estudantes” “(…) onde existem práticas abusivas reiteradas e se é algo contrário à vontade e liberdade dos novos alunos, deve ser proibida; [onde] o nome "praxe" é simplesmente a designação para uma ação de integração (…) não há motivo para proibição” A proibição deve ocorrer onde tenham existido absusos Entre as instituições que não concordam com a proibição das atividades de praxe no campus destacam-se dois argumentos: o facto de dentro do campus das instituições ser mais fácil haver um controlo destas atividades; e o facto de a instituição reconhecer a 62 importância da existência dos rituais de praxe. Quanto às instituições que concordam com a proibição destacam-se três argumentos: o facto da instituição não concordar com os valores que a praxe promove; devido aos abusos que têm sido cometidos nestas atividades; e pelo facto destas iniciativas perturbarem o funcionamento da instituição. 2.2. A praxe segundo as associações académicas e de estudantes7 2.2.1. Práticas e características da praxe Das 29 direções de Associações Académicas e de Estudantes que responderam ao inquérito, 97 % delas responderam que os estudantes da sua instituição realizam práticas de praxe académica, enquanto apenas 3 % afirmarmaram que os estudantes não participam nestas atividades. Figura nº 9: Duração da praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. 66% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 7% 7% 7% 7% 3% 3% De duas De dois a três Ao longo de semanas a um meses todo o ano mês letivo Não resposta 0% Um a três dias Uma semana Duas semanas já quanto aos tempos de duração, constatamos que, em 66 % dos casos, as atividades de praxe se desenvolvem ao longo de todo o ano letivo, sendo menores os casos em que estas ocorrem nos restantes intervalos temporais analisados. 7 No caso das direções de Associações Académicas e de Estudantes responderam ao inquérito 29 associações. Destas 21 são do subsistema público, entre elas 15 universitárias e 6 politécnicas; e 8 são do subsistema privado, entre elas 6 instituições universitárias e politécnicas. Em termos de representação a amostra contempla 7 distritos representados: Aveiro, Braga, Coimbra, Ilha da Madeira, Lisboa, Porto, Viana do Castelo; e 10 concelhos: Aveiro, Braga, Cascais, Coimbra, Funchal, Lisboa, Maia, Oeiras, Porto, Viana do Castelo. 63 Questionadas sobre se estas atividades acontecem dentro ou fora do campus, percebe-se que a maioria delas acontece dentro do campus. Figura nº 10: local onde decorre a praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. 14% 28% Em ambos 59% Fora do campus da instituição No interior do campus da instituição Na verdade, em cerca de 59 %, as praxes acontecem simultaneamente dentro e fora do campus, enquanto que em 28% acontece apenas fora e 14 % apenas no interior do campus. Figura nº 11: Nuvem de palavras dos locais onde decorre a praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. Através de uma nuvem de palavras analisou-se a lista de locais fora do campus onde acontecem as atividades de praxe e quais os mais recorrentes. Em síntese podemos constatar que na maioria dos casos as atividades de praxe ocorrem nas “imediações do 64 campus”, em “jardins”, “parques,” “locais históricos” ou na “baixa”, “por toda a cidade”, em “matas”, “florestas” ou “restaurantes”. Analisando agora se na sua percepção estas práticas têm aumentado ou diminuído, constatam-se as seguintes tendências. Figura nº 12: Tendência de evolução do número de estudantes na praxe, de acordo com as associações de estudantes. 38% 40% 35% 31% 28% 30% 25% 20% 15% 10% 3% 5% 0% A participação dos A participação dos estudantes tem aumentado estudantes tem diminuído A participação dos estudantes tem sido semelhante Não sabe Em termos de participação, as respostas são muito equilibradas. Se 38 % afirma que a participam dos estudantes tem sido semelhante, 28 % acredita que esta tem aumentado e 31 % que esta tem diminuído. Questionadas sobre o tipo de atividades de praxe privilegiadas pelos estudantes da sua instituição, associações de estudantes destacam atividades de tipo muito diferentes. 65 Tabela nº6: Lista de atividade de praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. LISTA DE ATIVIDADES DE PRAXE RELATADAS Cooperação no estudo Recepção aos caloiros Guerras de balões de água Jantares Formação a nível de funcionamento da nossa instituição Serenata em cada semestre Convívios festas Queima das Fitas recolha de alimentos/tampinhas para instituições de solidariedade Dinâmicas de grupo Jogos didáticos Atividades de índole turística, cultural e de lazer. Abraços grátis Atividade física Peddy paper pela cidade Rally-tascas Noite do Pijama. Cortejo académico Cantigas Traçar da capa Despiques contra outras faculdades Discursos dos alunos mais velhos Jogos tradicionais Estas atividades podem passar por sessões formais de apresentação da instituição, atividades culturais como serenatas, iniciativas solidárias, convívios como jantares, dinâmicas de grupo, despiques e atividades festivas. 2.2.2. Modos de relação com a praxe Analisando a relação das direções das associações com as estruturas da praxe académica, constatamos que 83 % das instituições reúne formalmente com as estruturas de praxe, enquando cerca de 17 % opta por não o fazer. Questionadas sobre os objetivos dessas reuniões, identificam-se cinco objetivos fundamentais. 66 Tabela nº 7: Objetivos das reuniões entre as Associações de Estudantes e as estruturas da praxe académica, de acordo com as Associações de Estudantes OBJETIVOS EXCERTOS Aprovação de financiamento à praxe “Aprovação de orçamento” “ A Associação de Estudantes não tem participação direta na praxe mas, no entanto, financia, em parte, a Comissão Permanente (Comissão de Praxe) e é quem entrega o subsídio da IPDJ à CORC (Comissão Organizadora da Receção ao Caloiro)” “A Comissão [da praxe] é um Núcleo da AE, ou seja, a AE apoia financeira e logisticamente” “Apoiamos monetariamente a Comissão de Praxe” “Oferecer ajuda logística” “Cedência de materiais e espaços” “Empréstimo de material recreativo para festas” Planeamento e organização de atividades “[Organização] da semana de matrículas/integração, semanas académicas e desfile da semana académica e a discussão das tradições académicas”. “Estruturação do calendário de atividades para que não haja colisão de eventos programados” “Organizar o calendário das festas académicas/de praxe” “Planeamento anual [de atividades]” “os representantes das praxes académicas reúnem com a Associação para decidirem quando serão as suas atividades principais e quando participarão nas nossas atividades” “Garantir a segurança dos estudantes em atividade de praxe e o definir os moldes em que as atividades devem ocorrer” “Garantir que todos os alunos que integram a praxe estão a ser respeitado e que todas as actividades se realizam dentro das conformidades” “Garantir que a integridade física e psicológica dos novos alunos não é de qualquer maneira ofendida” “Prevenir situações de praxes violentas e outras situações que resultem em algo danoso para qualquer um dos intervenientes.” “Ficar informado das suas actividades para que todas as estruturas da Faculdade possam trabalhar em conjunto” “O objectivo é manter-se a par das diversas actividades que acontecem e de quaisquer eventuais problemas” Regulamentação Sensibilização Informação e conhecimento Já no caso das associações que optam por não reunir com as estruturas da praxe académica são sobretudo alegados motivos de independência da Associação de Estudantes face à praxe: “não é parte integrante nas atividades por eles [membros da praxe] promovidas”; “na opinião de ambas as partes não se mistura a praxe com o associativismo”, “a Praxe na nossa IES é autónoma, no entanto existe uma comissão de acompanhamento da praxe onde está incluída a IES, uma assistente social, uma jurista e a Associação de Estudantes para fiscalizar a actividade praxista”. 67 Ainda analisando a relação entre Associações Académicas e de Estudantes e estruturas de praxe, 62% das associações referem que organizam iniciativas comuns, enquanto 38% afirmam não o fazer. Para o caso das associações que organizam iniciativas comuns, estas podem ser de tipo muito diferente, destacando-se atividades de de convívio, mas também atividades formais como “palestras de recepção” ou a “semana das matrículas”. Tabela nº 8: Lista de iniciativas de praxe académica, segundo as Associações de Estudantes. LISTA DE INICIATIVAS DE PRAXE ACADÉMICA “Receção aos novos “Semana de matrículas” “Recepção ao Caloiro” “Batismo do caloiro” “Semana Académica”/”Queima das alunos” “Enterro do caloiro” fitas” “Convívios” “Jantares” / “almoços” “Festas” “Atividades “Eventos recreativos” “Campanhas de acção social” Queima das Fitas “Palestras de recepção” desportivas” “Praxes solidárias” No caso das associações que não organizam iniciativas comuns, são apresentados dois motivos. O principal relaciona-se com a independência da Associação de Estudantes face à praxe: “O propósito e missão da Associação perante a comunidade que representa não se relaciona intimamente com as atividades inerentes à Praxe Académica”; “Não temos o mesmo âmbito de acção.”; “defendemos que deve haver uma diferenciação entre a actividade da Associação de Estudantes e dos restantes núcleos, comissões, etc”; “A associação de estudantes promove iniciativas para todos os alunos, ligados à praxe ou não, mas não tem como hábito envolver as comissões de praxe na organização desses eventos por considerar que são âmbitos diferentes”. Um outro argumento tem que ver com o facto da comissão de praxe não desejar a realização de atividades conjuntas: “devido aos responsáveis pela praxe até a data não o desejarem” 2.2.3. Violência, absusos e estruturas de apoio às vítimas Quando questionadas sobre se chegaram à direção da associação casos de violência e/ou absusos ocorridos em situações de praxe académica a maioria das associações, cerca de 69 %, revela que nunca lhes chegaram casos, enquanto cerca de 14 % refere que eles já lhes foram comunicados. Já 17 % afirmam não saber ou optam por não responder à questão. Para as associações que relatam ter havido casos de violência ou abusos, três 68 delas referem que chegaram à instituição menos de uma denúncia por ano e outras três entre uma e cinco denúncias por ano. Entre estas denúncias destacam-se quatro tipos de violência e abuso: “insultos e abusos de poder”; “um estudante sentiu-se obrigado a consumir bebidas alcoólicas”; “abusos psicológicos”; “abusos que possam ser praticados na via pública, nomeadamente ruído”. Ao nível das consequências relativas a estas situações elas foram de dois tipos. Uma primeira que se centrou na dissuasão e tentativa de sensibilização das estruturas de praxe: “falamos com os responsáveis para que a situação se resolva”; “Averiguamos junto dos envolvidos, os queixosos e os praticantes da infração, procurando sensibilizar para a não repetição e não ocorrência destas situações”. Outro tipo de consequências teve a ver com medidas concretas e diretas, por exemplo: “a pessoa responsável foi proibida de voltar a participar em actividades de praxe”. Figura nº 13: Existência de estruturas de apoio psicológico a vítimas de violência, de acordo com as Associações de Estudantes. Sim Não 31% Não sabe 52% 17% Figura nº 14: Existência de estruturas de apoio jurídico a vítimas de violência, de acordo com as Associações de Estudantes. Sim 31% Não Não sabe 55% 14% Quanto às estruturas de apoio psicológico, 52% das associações de estudantes afirmam que estas existem nas suas instituições, enquanto 17 % declaram que não e 31% dizem não saber. Em relação a estruturas de apoio jurídico, 55 % das associações afirmam 69 desconhecer a sua existência, sendo que em 31 % dos casos afirma-se que estas estruturas existem e em 14 % que não existem. Tabela nº 9: Tipos de estruturas de apoio psicológico e jurídico a vítimas de violência, segundo as Associações de Estudantes. Tipos de estruturas existentes de apoio às vítimas Estruturas de apoio psicológico Citação "O gabinete pedagógico da reitoria da universidade faz acompanhamento a casos de violência psicológica em alunos” “O Gabinete de Apoio Psicopedagógico ao Estudante” “Gabinete de apoio ao aluno coordenado por uma doutorada em psicologia. Este gabinete funciona como ligação entre a direcção da Instituição e a Associação de Estudantes” Advogados e/ou apoio jurídico “Advogado da Associação” “O Gabinete de apoio ao estudante tem um advogado com horário de atendimento mediante marcação" “Advogado contratado pela Associação de Estudantes” “A AE tem uma estrutura de apoio jurídico disponível a apoiar qualquer aluno que dele necessite” “Jurista da Instituição” Provedor do Estudante “A Universidade elege o Provedor do Estudante, a quem cabe auscultar e acolher todo o tipo de situações que perturbe o melhor interesse do estudante” Serviços de Ação Social “Assistente Social dos Serviços de Ação Social” Entre as estruturas de apoio psicológico e/ou jurídico relatadas pela instituição destacam-se os gabinetes de apoio psicológico, advogados/juristas providenciados pelas associações de estudantes ou pela instituição e o provedor do estudante. 2.2.4. As alternativas à praxe No que diz respeito a alternativas de recepção e integração dos novos alunos, 83% das associações académicas e de estudantes afirmam que estas existem, enquanto cerca de 14 % revelam que não existem. Identificam-se oito entidades presidem à organização dessas iniciativas. 70 Figura nº 15: Entidades que dirigem iniciativas alternativas à praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. 96% 100% 90% 80% 70% 60% 50% 42% 40% 42% 29% 25% 30% 20% 8% 10% 8% 8% 0% Associação Reitoria da Direcções Núcleos de Conselho Provedor do Coletivos de Serviços de Académica Universidade das Unidades alunos ou Pedagógico Estudante estudantes mentorado ou Orgânicas da núcleos de informais ou de curso Estudante Presidência Instituição do Instituto Politécnico Quanto à da organização destas iniciativas alternativas destacam-se como entidades organizadoras a Associação Académica ou de Estudantes (96%), a Reitoria da Universidade ou Presidência do Instituto Politécnico (42%) e os Núcleos de alunos e de curso (42%), tendo também alguma relevância a participação das Direcções das Unidades Orgânicas (29%) e o Conselho Pedagógico (25%). Contudo, se analisarmos qual o teor concreto destas iniciativas estas alternativas são muito distintas entre si. Tabela nº 10: Tipos de atividades alternativas à praxe, de acordo com as Associações de Estudantes. ATIVIDADES ALTERNATIVAS À PRAXE Apresentação e visita ao campus Sessões institucionais Convívio EXCERTOS “Dá-se a conhecer um pouco da Universidade, a Associação Académica e o seu trabalho; dá-se também a conhecer a praxe se eles quiserem participar” “Visita-se o campus, a Associação, os seus núcleos de curso (…) [e] as unidades orgânicas respetivas” “Apresentação da universidade, da faculdade, dos cursos e dos órgãos de gestão” “Reunião de boas-vindas, apresentação das pessoas que integram os quadros de gestão e diretores de departamento e pessoal docente” “Sessão de boas vindas dada por cada departamento dos cursos” “Sessão solene no início de cada ano lectivo” “Palestras de recepção” “festa de integração” “Atividades lúdicas e recreativas, desportivas e pedagógicas” Visitas à cidade Atividades artísticas “Eventos desportivos” “Embarques de fim-de-semana e actividades desportivas” "Visitas guiadas ao principais pontos de Lisboa” “passeio pela cidade do Porto” “Atuação das Tunas da faculdade” 71 Analisando o tipo de iniciativas que são organizadas, constatamos que há uma forte componente de apresentação e visita ao campus e sessões institucionais de recepção, embora também se destaquem iniciativas de convívio, visitias à cidade ou atividades artísticas. 2.2.5. A proibição da praxe no campus Como se referiu, várias Instituições de Ensino Superior têm optado pela proibição das atividades de praxe dentro do seu campus. Contudo, essa não parece ser a opiniões maioritária das instituições inquiridas. A maioria das associações académicas e de estudantes, cerca de 79 %, afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições, enquanto apenas 3 % dizem concordar. Destacam-se ainda cerca de 14 % que afirmam não saber e 3 % que optam por não responder. A partir da análise de conetúdo de respostas abertas que se pode ler na tabela seguinte, foi possível sintetizar, para o caso das associações que não concordam com a proibição da praxe no campus, que se destacam três argumentos fundamentais: a concordância e, por vezes, a participação dos dirigentes estudantis nas atividades de praxe; a maior capacidade de controlo e fiscalização destas atividades dentro do campus; e o carácter livre da adesão aos rituais de praxe. Contudo, entre pelas associações favoráveis à proibição é destacada a proteção dos estudantes que não querem participar e o facto destas atividades perturbarem o normal funcionamento das instituições. 72 Tabela nº 11: Posicação e argumentos das Associações de Estudantes face à proibição de praxe académica. POSIÇÃO FACE À PROIBIÇÃO DA PRAXE NO CAMPUS ARGUMENTOS CITAÇÕES Concordância com as atividades “[as praxes] servem de integração para os alunos que participam” “Há atividades de Praxe bem dinamizadas em Portugal (…) [a praxe] aproxima alunos, cria laços de amizade, desinibe personalidades introvertidas e cultiva um espírito de partilha, cooperação e entrega” “A praxe é uma atividade de promoção do espírito académico” “Porque a praxe académica não é violenta mas sim integradora dos novos alunos. Os valores que a praxe académica transmite a um estudante do ensino superior são únicos e importantes no percurso académico de qualquer estudante” Contra a proibição Maior controlo e regulação “É preferível que as Instituições reconheçam estas actividades para que possam actuar de forma mais célere sobre qualquer imprevisto ou abuso” “[A proibição] levará estas atividades para fora do campus sendo o controlo mais difícil” “[Dentro da instituição há] uma maior segurança e transparência para todos os estudantes” Caráter livre da adesão “Não chateia ninguém e só vai quem quer” “Acho que os estudantes que participam vão para lá de livre e espontânea vontade, portanto a decisão de estar ou não presente deve ser apenas do praticante” “A praxe não é obrigatória só está lá quem quer” A favor da proibição Dependendo dos casos Maior proteção de quem não participa “a proibição possibilita que alunos que não concordam com esse tipo de praticas não tenham de ser constantemente confrontados com as mesmas” Perturbação do funcionamento “[dentro da instituição os casos de praxe] eram desconfortáveis e prejudicavam o funcionamento das aulas e do bem-estar de alunos e professores” Dependendo da alternativa “em casos particulares onde não haja uma alternativa próxima ao local do Campus, não deve haver essa proibição (…) já nos locais onde haja uma alternativa faz todo o sentido que haja esse desprendimento” 73 2.2.6. A posição das Associação Académica ou de Estudantes relativamente face Praxe Académica Questionadas sobre qual a posição da Associação face à praxe académica, apenas foram declarados argumentos favoráveis ou de neutralidade face ao fenómeno. Tabela nº 12: Posição das Associações de Estudante face à praxe académica. POSIÇÃO FACE À PRAXE Posição favorável Posição de neutralidade CITAÇÕES “Desde que não haja ofensas à integridade física dos envolvidos e que não seja utilizada como instrumento de "poder", pode perfeitamente co-existir numa faculdade” “A Associação reconhece os benefícios inerentes à prática da Praxe Académica no âmbito da integração e da promoção de valores importantes e fundamentais para o desenvolvimento pessoal e coletivo dos estudantes” “Temos uma excelente relação com a praxe académica da nossa instituição e procuramos sempre ajudar naquilo que pudermos complementando a ajuda que receberemos por parte deles” “A nossa posição é a de que deve haver praxe para incluir os novos alunos no meio social, fazer jogos de conhecimento, dar a conhecer a cidade de Lisboa e também as várias atividades da escola” “A Associação apoia a praxe e tenta ajudar a comissão de praxe em tudo o que consegue” “A Associação é favorável à praxe académica pois o histórico da mesma na nossa instituição diz-nos que é um elemento fundamental no percurso académico de um estudante” “Apoiamos totalmente a realização da praxe académica que tem inúmeras provas dadas no apoio à integração dos alunos” “A Associação de Estudantes apoia e colabora com a praxe de forma a garantir o sentido virtuoso da palavra e a garantir que não existem casos de abuso.” “A Associação considera que a praxe tem decorrido sem quaisquer problemas e o facto de ver familiares de novos estudantes presentes em diversos momentos desta tradição é uma das provas que tem sido feito um bom trabalho” “Associação Académica tem uma posição neutra em relação à praxe (…) são estruturas independentes (…) o trabalho corrente é separado” "[Temos uma] posição neutra sempre que se fala neste tema pois temos que defender os interesses de todos os estudantes” “A Associação não se considera a favor ou contra praxe, é um órgão a quem todos os estudantes podem recorrer” “A Associação é uma instituição apraxista e apartidária. Não pratica nenhum ato de praxe” “A Associação tem uma perspectiva neutra institucionalmente relativamente à praxe académica, não a promovendo mas também não a contrariando. No entanto, a relação com as comissões de praxe é próxima não só pelos membros eleitos da, que na sua maioria integram ou integraram comissões de praxe mas também na facilitação de acesso a apoios financeiros através de pedidos de IPDJ. 74 Um primeiro dado curioso emerge da análise da posição das associações face à praxe: a grande maioria declara que concorda com estas atividade, não se identificando nenhuma associação que tenha uma posição declaradamente contra o fenómeno. Entre as associações com uma posição favorável evidencia-se o acordo com a sua função de integração e com os valores que a praxe promove. Outras destacam a história do fenómeno nas suas instituições. Contudo, identificam-se associações que são favoráveis desde que não haja abusos e ofensas à integridade dos estudantes, defendendo algumas delas que é necessário reforçar o carácter de integração das atividades. Um conjunto de outras associações afirma ter uma posição neutral, nem contra nem a favor da praxe, uma vez que a sua função é representar a globalidade dos estudantes da sua instituição. Síntese conclusiva Em termos gerais, a perceção das Instituições de Ensino Superior e das Associações Académicas e de Estudantes sobre o fenómeno da praxe é bastante próxima. Segundo a maioria das Instituições de Ensino Superior, as atividades de praxe podem durar até cerca de mês, embora 26% afirmem que elas podem ocorrer durante todo o ano letivo. Nos últimos anos, a participação tem sido semelhante e, em mais de metade das instituições, a praxe aconteçe simultaneamente dentro e fora do campus, por norma em espaços públicos (jardins, parques, centros) e comerciais (bares, discotecas, cafés) da cidade, embora também possa haver atividades em Câmaras Municipais. Segundo as instituições, as atividades de praxe podem passar por sessões formais de apresentação da instituição, atividades culturais, solidárias e desportivas, mas também podem basear-se em atividades institucionais como uma “receção pelo Presidente da Câmara” ou outras como “limpezas das casas dos veteranos” ou fazer “exercícios análogos à instrução militar”. Mais de 80 % das instituições reúne formalmente com as estruturas de praxe para um de três objetivos: sensibilizá-las e alertá-las para as situações de abuso; articular iniciativas conjuntas; ou estabelecer uma regulação interna destas atividades. À maioria das instituições nunca chegaram casos de violência ou de abuso, embora nos casos em que tenha havido, ou não existiram consequências, ou as sanções consistiram na suspensão temporária da praxe ou dos responsáveis ou a proibição da praxe na instituição. Apenas em metade das instituições existem estruturas de apoio psicológico a vítimas de violência no contexto da instituição e só num terço delas é que encontramos estruturas de apoio jurídico às vítimas. Mais de metade das instituições - cerca de 60 % - afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições, enquanto 75 cerca de 20 % diz que concordar. Entre as instituições que não concordam com a proibição das atividades de praxe no campus destacam-se dois argumentos: o facto de dentro do campus das instituições ser mais fácil haver um controlo destas atividades; e o facto de a instituição reconhecer a importância da existência dos rituais de praxe. No que respeita à perceção das Associações Académicas e de Estudantes, em mais de metade dos casos as atividades de praxe desenvolvem-se ao longo de todo o ano letivo e acontecem geralmente dentro e fora do campus. Só em 28% é que acontecem exclusivamente fora, geralmente nas imediações do campus ou em espaços públicos e comerciais da cidade. Cerca de 83 % das associações reúne formalmente com as estruturas de praxe com os seguintes objetivos: aprovação de financiamento; planeamento e organização de atividades conjuntas; regulamentação das atividades; e sensibilização, informação e conhecimento relativamente às atividades previstas. Mais de metade das associações refere que organiza iniciativas comuns com as estruturas de praxe. Cerca de 14 % declara que já lhes foram comunicados casos de violência mas as consequências, por norma, ficam-se, apenas, por num mero contacto com os envolvidos para que a situação não se repita. Apenas 52% das associações de estudantes afirma existirem estruturas de apoio psicológico, e mais de metade delas diz desconhecer a existência de estruturas de apoio jurídico. Apenas em 31 % dos casos se afirma que estas estruturas existem. A maioria das associações académicas e de estudantes - cerca de 79 % - afirma não concordar com a proibição da praxe académica nos campus das instituições por três motivos: concordância e, por vezes, a participação dos dirigentes estudantis nas atividades de praxe; a maior capacidade de controlo e fiscalização destas atividades dentro do campus; e o carácter livre da adesão aos rituais de praxe. A grande maioria declara que concorda com as atividades de praxe, não se identificando nenhuma associação que tenha uma posição declaradamente contra o fenómeno na sua instituição. 76 CAPÍTULO III DISCURSOS E ATITUDES FACE À PRAXE Compreender a praxe académica do ponto de vista sociológico implica uma análise combinada e interpretativa dos discursos e das atitudes dos agentes sociais face a este complexo fenómeno social. Para dar voz e visibilidade ao conjunto de protagonistas que nele se encontram envolvidos ou implicados, ao longo dos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2016 realizámos sessões de trabalho de campo em rituais de praxe em sete distritos: Lisboa, Porto, Coimbra, Beja, Covilhã, Bragança e Faro. Ao trabalho de campo associou-se uma abordagem metodológica diversificada assente em cinco técnicas de pesquisa: (1) cerca de seis dezenas de sessões de observação orientadas e prolongadas de rituais e práticas de praxe; (2) seis focus group com a presença de dirigentes associativos estudantis, dirigentes das praxes académicas e estudantes do ensino superior; (3) quarenta e duas entrevistas semi-estruturadas a estudantes que participam na praxe, que a abandonaram ou que nunca nela participaram, dirigentes associativos e estudantis, provedores do estudante, diretores e vice-diretores de unidades orgânicas, reitores, vice-reitores, presidentes e vice-presidente de instituições politécnicas e ainda a antigos estudantes; (4) recolha e análise de fontes documentais online ou fornecidas pelos agentes no campo; (5) produção de material fotográfico dos rituais de praxe; (6) e, finalmente, dezenas de conversas etnográficas ou informais. Através destas técnicas pudemos apreender, com maior profundidade, a diversidade dos discursos e atitudes face à praxe académica. 3.1. Discursos e atitudes de dirigentes de Instituições de Ensino Superior O posicionamento e a atitude dos dirigentes das Instituições de Ensino Superior face ao fenómeno das praxes académicas é fundamental para compreender o tipo de enquadramento que elas têm nas instituições de ensino às quais chegam todos os anos milhares de jovens. Pela posição central que ocupam na estrutura e funcionamento das IES procurámos, então, entrevistar reitores e vice-reitores de universidades, presidentes e vice-presidentes de institutos politécnicos e diretores e subdiretores de unidades orgânicas. Nos seus discursos identificámos atitudes e posicionamentos muito contrastantes que importa detalhar. Comecemos pelos seguintes exemplos: 77 “A nossa posição é a de que não há espaço para as praxes, nem no campus nem fora do campus. Regular praxe não é admissível. A praxe por essência tem uma dimensão de exercício de poder não democrático, não autorizável e de humilhação. Se não há nem exercício de poder nem humilhação deixa de ser praxe” (Reitor de Instituição Universitária Privada) “A posição do instituto é [a de que] as escolas têm autonomia para gerirem as coisas como entenderem […]. Entre as matrículas e o início das aulas há um espaço de uma semana onde não há aulas e portanto a associação de estudantes e a comissão [de praxe] podem fazer o seu planeamento de atividades […]. Não diria que se não podes vencer junta-te a eles, mas foi separar as coisas e deixar claro que não é uma coisa obrigatória, as pessoas participam se quiserem e se não participarem não têm qualquer espécie de prejuízo académico” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) “Nunca se tentou proibir mas tentamos integrar-nos junto com os estudantes na organização deste processo [de praxe]. Consideramos que as praxes académicas são as atividades de receção ao estudante que têm esta designação, dificilmente se consegue alterar, não é? Até porque está nos nossos estatutos. […] A nossa participação nisso foi no sentido de procurar amaciar aquele regulamento [de praxe] e retirar de lá tudo aquilo que não nos parecia bom e conseguir transformá-lo num regulamento mais amigável” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) Estes exemplos ilustram três tipos de atitudes face à praxe académica: no primeiro caso identifica-se uma atitude de rejeição e condenação absoluta do fenómeno; no segundo uma atitude de integração preventiva; e no terceiro uma atitude de legitimação e normalização institucional. Estas posições ajudam a esclarecer os modos de relação com o fenómeno e dão conta, por um lado, de discursos institucionais distintos, e por outro, de diferentes estratégias e tipos de atuação institucional. Estes diferentes modos de relação com o fenómeno condicionam o seu enquadramento nas instituições e influenciam a forma como os estudantes olham para ele. 3.1.1. A atitude de rejeição e condenação absoluta Analisando os dados inquérito online e as entrevistas realizadas facilmente constatamos que a atitude de rejeição e condenação absoluta do fenómeno da praxe é bastante minoritária entre as Instituições de Ensino Superior. A análise demonstra que poucas são as instituições e os dirigentes que apresentam uma perspetiva de oposição a qualquer expressão que ela possa ter nas suas instituições. 78 Em termos gerais, esta atitude de rejeição e condenação baseia-se na recusa da ideia de que há “uma praxe boa” e “uma praxe má”. Pelo contrário, interpreta-se a praxe como um sistema de poder inaceitável e incompatível com os valores da academia, independentemente das variações que possa ter. Para alguns dirigentes a praxe implica sempre uma dimensão de exercício de poder abusivo e não-democrático que o torna inaceitável. Sem as dimensões de poder e de humilhação a praxe não existe porque essas são as características que estão no (e são o) seu âmago. Subjacente a esta interpretação, um Reitor entrevistado acredita ainda que o fenómeno tem fortes implicações nas atitudes dos estudantes face à instituição universitária. “[A praxe] só traz prejuízos porque cria no aluno, quando ele entra na universidade, uma atitude face à instituição universitária, que poderia ser um espaço de abertura, de diálogo, de construção, de solidariedade, e transforma isso numa relação de exercício de poder.” (Reitor de uma Instituição Universitária Privada) Como argumenta, o fenómeno praxe é contraditório com um ideal de “abertura”, “diálogo” e “solidariedade” que deve marcar a vida académica. Ele desvirtua esse ideal de universidade e condiciona as próprias atitudes dos estudantes face ao mundo académico. Associada a esta visão, os dirigentes que partilham esta atitude defendem que a praxe não pode ser entendida como sendo totalmente voluntária, justamente porque, como nos diz um Reitor, “há imensas formas de pressão e intimidação por parte de quem praxa; há ameaças; uma ideia que se generalizou foi que o aluno pode rejeitar, pode teoricamente, mas na verdade não pode”. Identificam-se formas de assédio e intimidação dirigidos aos novos estudantes que condicionam a sua liberdade de escolha e participação. Este diagnóstico crítico traduz-se depois num conjunto de atitudes institucionais face à praxe e às estruturas que a planeiam e organizam. Uma dessas atitudes baseia-se justamente na ausência de qualquer relacionamento formal (ou até informal) com as comissões e grupos que organizam a praxe. “Não há nenhum contacto com a comissão de praxe. Nenhum. Nem há nenhuma cerimónia em que eu esteja presente. As comissões de praxe não sei bem o que são, havendo uma associação de estudantes eleita democraticamente, nem sei o que eles representam” (Reitor de uma Instituição Universitária Pública) 79 “Se eu sei que há uma estrutura de praxe eu destruo-a imediatamente. As estruturas de praxe são clandestinas. Com o reitor de certeza que não [reúnem], nem com outras unidades orgânicas, que eu saiba não” (Reitor de uma Instituição Universitária Pública) As declarações destes dois reitores exemplificam uma prática comum a alguns dirigentes de instituições e que consiste em recusar qualquer relação da instituição com as estruturas que organizam as praxes académicas, às quais não é reconhecida qualquer legitimidade. Em muitos casos essa recusa implica mesmo o desenvolvimento de estratégias de desmembramento destas comissões que são consideradas “clandestinas” e “não democráticas”. Para além de não reconhecerem as estruturas de praxe presentes nas suas instituições, outros reitores e diretores têm ido mais longe, não autorizando a realização de atividades de praxe no campus, precisamente por considerarem, como diz um Reitor de uma Universidade Privada, que “[as praxes] têm de ser combatidas com todos os recursos; portanto, as universidades não têm que regular aquilo que à partida já está errado”. Como vimos no capítulo II, esta posição de proibição é muito polémica. Mas, para os dirigentes que partilham desta atitude de rejeição e condenação do fenómeno, ela justifica-se por se considerar que, por um lado, não é “admissível” regular a praxe, e por outro, que o fenómeno tem de ser combatido ou, pelo menos, não pode ser legitimado pelas autoridades académicas. Outro dirigente que partilha esta atitude de rejeição da praxe considera que o seu caráter tradicionalista e associado a manifestações ritualizadas de poder não é compatível com aquela que deve ser, no seu entendimento, a vocação da universidade: voltada para o conhecimento, para o futuro e para as possibilidades de transformação. Por outro lado, também dentro desta posição, devemos referir um outro dirigente que, aceitando alguns dos costumes e das cerimónias estudantis (por exemplo, o uso do traje), opõe-se de forma inequívoca à praxe, considerando-a uma tradição inventada que envolve um exercício de poder hierárquico dos alunos mais velhos sobre os mais novos, ofensiva para a dignidade da pessoa humana e desprovida de qualquer utilidade ou pertinência enquanto ritual de iniciação ou passagem. Por último, as instituições que partilham esta atitude procuram ainda desenvolver atividades de receção dos estudantes alternativas e autónomas das comissões de praxe, podendo também colaborar com iniciativas da mesma natureza, e nas mesmas condições, promovidas pelas Associações de Estudantes. Estas atividades, para os dirigentes, devem evoluir no sentido de se transformarem nas formas normais e naturais de receção dos novos alunos quando chegam à instituição. Ambicionam, por esta via, esvaziar o sentido 80 da praxe nas suas instituições. Alguns destes dirigentes mostram-se céticos quanto aos efeitos de uma “proibição por decreto” da praxe, defendendo por isso um combate alicerçado na sensibilização e transformação cultural que até deverá começar a montante do ensino superior. 3.1.2. A atitude de integração preventiva A atitude de integração preventiva revelou-se, nesta investigação, como aquela que é maioritariamente assumida pelos dirigentes das Instituições de Ensino Superior. Trata-se fundamentalmente de defender que, se as praxes forem integradas na instituição, será mais fácil prevenir situações abusivas ou de violência que possam ocorrer. Esta atitude baseia-se numa análise do fenómeno da praxe substancialmente distinta da anterior. Os dirigentes que a partilham, entendem, maioritariamente, que a adesão é voluntária e que, embora também não tolerem humilhações e abusos, consideram ainda assim importante diferenciar aquilo que são praxes saudáveis daquilo que são formas de violência que nelas possam ocorrer. “Tenho claramente a noção que é uma coisa voluntária, não há qualquer espécie de prejuízo em si. O feedback que tenho tido com os alunos é que gostaram muito e foi uma oportunidade de conhecerem outras pessoas” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) “A direção nunca entrou nisso a fundo porque nunca houve um problema. A perceção que temos é que é uma coisa muito localizada, voluntária e respeitadora, não há qualquer fenómeno [de abuso]” (Subdiretor de uma Faculdade de uma Instituição Universitária Pública) Estes dirigentes salientam que não têm, nas suas instituições, uma atitude de condenação ou crítica das práticas de praxe globalmente consideradas precisamente porque consideram que não se identificam abusos, que a participação é voluntária e que não há formas de pressão, assédio ou coação sobre os novos estudantes. No entanto, não deixam de salientar que qualquer queixa que recebam será tratada de forma adequada, conforme previsto nos regulamentos. Enquanto alguns dos entrevistados enquadrados nesta categoria não mantêm contactos regulares com as estruturas da praxe, outros procuram exercer influência sobre elas através do diálogo informal no sentido de “suavizar a praxe”, impedir as situações abusivas e passar a mensagem de que os alunos têm de poder decidir livremente se querem ou não participar. Assim, esta apreciação do 81 fenómeno traduz-se, igualmente, num distinto modo de relação com as estruturas de praxe, materializado em práticas institucionais específicas. “O que articulamos com eles [comissão de praxe] é que há sempre uma parte mais institucional onde há uma apresentação dos órgãos da escola que é articulada entre a associação e a comissão de praxe” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) “[Os “caloiros”] vão em cortejo, deitam-lhes farinha para cima, é tipo um batismo. É apenas isso. É dentro da instituição. Não temos a política interna de proibição de praxe. No que diz respeito a essa atividade, o cortejo é até ao auditório, é um pedido que a comissão faz à direção para esse dia em especial e portanto nós autorizamos” (Subdiretor de uma Faculdade de uma Instituição Universitária Pública) No primeiro exemplo, o Vice-Presidente de um Instituto Politécnico esclareceunos que reúne com as comissões de praxe e com a Associação de Estudantes no sentido de fazer confluir as atividades de praxe numa sessão institucional de apresentação dos órgãos e serviços da escola. Clarificou que “não tolera esse tipo de abusos” que se vêm nas notícias, mas ao mesmo tempo não consegue deixar de reconhecer que “há ali um conjunto de atividades entendidas como atividades de integração”. No segundo caso, salienta-se que a direção tem boa relação com a estrutura de praxe justamente porque as suas atividades são limitadas no tempo e têm ocorrido sem abusos que tenham chegado ao conhecimento da instituição. Por isso, a direção aceita ceder o auditório para a realização do “batismo de praxe” e nesse dia suspende as aulas. Entre os dirigentes que partilham esta perspetiva há quem saliente que não devia haver uma diferenciação entre comissões de praxe e associações de estudantes, sugerindo que, para se garantir maior transparência, “a comissão que organiza a praxe decorra da associação de estudantes”. Como nos diz um dirigente entrevistado, “mesmo que não seja a associação de estudantes diretamente a fazer ou planear essas atividades de receção, que tenha o controlo sobre quem o faz”. E justifica esta posição da seguinte forma: “É um bocado como os nossos filhos, enquanto não temos razões de queixa não podemos dizer não. Se agem de um modo responsável e nunca houve qualquer espécie de situação grave também não temos razão nenhuma para não colaborar. Até porque a própria escola beneficia muito desta atividade porque eles dão muito apoio na fase das matrículas, dão a conhecer parte da escola.” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) 82 Neste caso, o dirigente chega mesmo a reconhecer que as atividades de praxe beneficiam a escola, porque garantem o apoio aos estudantes na fase de matrículas. Além disso, vários dirigentes salientaram que a praxe, quando decorre de forma normalizada, pode cumprir um papel útil na gestão da vida institucional. De acordo com esta posição, ela não só facilita a integração dos novos alunos como funciona como uma estrutura que identifica e comunica à direção casos de estudantes que transmitam indícios de que, por diversas razões, necessitam de um acompanhamento mais atento. Estes são depois encaminhados para os serviços e programas existentes para esse efeito. 3.1.3. A atitude de legitimação e normalização institucional A atitude de integração da praxe no contexto da instituição pode assumir uma dimensão de ainda maior legitimação e normalização institucional. Esta atitude baseia-se no enquadramento e na aceitação do fenómeno como fazendo parte natural da vida da instituição. Nestes casos, a praxe aparece aos olhos dos estudantes como fazendo parte da própria instituição de ensino a que chegam, tendo inclusive o enquadramento e apoio das suas estruturas de direção. Veja-se o exemplo deste instituto politécnico: “As praxes académicas estão estatutariamente [definidas], são três semanas. A semana de matrículas da primeira fase, e depois as duas semanas a seguir. Nós [a direção] o que fazemos é integrarmos as nossas atividades de receção ao estudante nestas mesmas duas semanas” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) Neste caso, as atividades de praxe constam dos próprios estatutos da instituição, onde se estabelece que estas são “atos de integração na vida académica e sociocultural da região”, determinando-se igualmente em que período podem ocorrer. Apesar de ser salientado que não são atividades obrigatórias, a direção da instituição reconhece-as como sendo atividades normais e legítimas de receção aos novos estudantes. Assim, a partir de um reconhecimento do fenómeno como fazendo parte natural da vida da instituição, a direção procura ter uma intervenção no sentido da sua regulação e regulamentação. Neste sentido, discute com a associação de estudantes e os membros da comissão de praxe o enquadramento das atividades e as formas da sua regulação. “Nós também assumimos que devem existir responsáveis e os nomes dos responsáveis saem aqui no nosso despacho. Portanto, qualquer coisa que seja necessária nós contactamos com uma dessas pessoas.” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) 83 Neste caso, os membros da comissão de praxe nomearam uma pessoa por curso que assina inclusivamente uma declaração à Associação Académica em como se responsabiliza pelas atividades de praxe. Como, em síntese, nos diz uma dirigente desta instituição: “Já que elas existem então que sejam melhores do que piores”. Vários dirigentes de instituições partilham desta perspetiva que assume que as praxes existem e, nesse sentido, é preferível contribuir para que elas sejam algo positivo. Geralmente esta atitude tem associadas duas práticas institucionais: por um lado, mantémse uma relação de diálogo entre a direção da instituição, a Associação de Estudantes e as estruturas organizadoras da praxe; por outro lado, desenvolvem-se esforços no sentido da consensualização de regras e normas que devem ser seguidas pelas estruturas de praxe. Em alguns casos, as instituições que partilham esta perspetiva articulam igualmente com os órgãos do poder autárquico a cedência de espaços para determinadas iniciativas de praxe e as regras das atividades que implicam o uso de vias públicas, como desfiles e acontecimentos com uma maior exposição perante a comunidade da cidade onde se inserem. 3.2. A Praxe e as Associações Académicas e de Estudantes: discursos, atitudes e modos de relação No caso das Associações Académicas e de Estudantes, como já indiciavam os dados do capítulo II, não se identificou nenhuma posição de oposição às praxes académicas apesar de, em alguns casos, haver dirigentes cuja posição pessoal é crítica do fenómeno. No essencial identificam-se dois tipos de atitudes: uma delas refere-se às associações e aos dirigentes que são favoráveis e colaboram com as práticas de praxe académica; a outra refere-se às associações que têm o que podemos designar de uma “atitude equilibrista”, baseando a sua ação numa aparente posição “neutral” face ao fenómeno. 3.2.1. A atitude favorável à praxe Em vários casos analisados, os dirigentes associativos partilham da ideia de que a praxe é um fenómeno útil para a integração dos estudantes. Por ser largamente partilhado pela comunidade estudantil, muitos dirigentes alegam que a associação tem o dever de ter uma boa relação com os organismos que gerem e tutelam a praxe, até porque, na sua perspetiva, essa é a melhor estratégia para evitar eventuais abusos. 84 Num dos casos de estudo, um Vice-Presidente de uma Associação Académica revelou-nos, sem constrangimento ou secretismo, que a associação reúne com a estrutura que dirige a praxe e dá-lhe todo o apoio que precisa. “Reúne-se muitas vezes. A associação ajuda muito a estrutura da praxe com datas, com materiais, com espaços. Por exemplo, a apresentação do líder da praxe é feita no bar da Associação Académica. Porquê? É para os caloiros conhecerem, registam o número dele. Qualquer problema que exista ele é o órgão máximo. É ligar: “aconteceu isto, isto e isto”; e ele tem a obrigação de atuar8” Como se percebe, neste caso há uma relação próxima e cúmplice entre a estrutura da praxe e a Associação Académica. Além disso, o dirigente revelou-nos que recebe anualmente queixas de alunos relacionadas com a praxe e o “procedimento”, como lhe chama, consiste em remeter todos os casos para a estrutura que dirige a praxe, justamente porque “tem que haver alguém dentro da praxe que meta ordem nisso”. Nos casos das associações que partilham esta atitude, elas reúnem com as comissões responsáveis pela praxe e, através dessas reuniões, procuram cumprir vários objetivos. Entre outros, destaca-se a definição de apoio e financiamento das atividades de praxe; o planeamento e articulação de atividades de integração conjuntas; a adaptação do calendário das atividade e planeamento da relação com os órgãos diretivos; a sensibilização para o controlo e vigilância de possíveis situações de abuso ou violência. “Deve haver um contacto muito maior entre associações de estudantes, direção da faculdade e representante da praxe, Dux, como lhe queiram chamar. Esse contacto deve ser evidente, deve existir, deve ser aberto, devem estar todos coordenados uns em relação aos outros. […] E isto tem de ser integrado na questão de as instituições permitirem a praxe nas instalações. Isto por uma questão não de controlo, porque controlo é um bocadinho forte, mas supervisionamento. Porque o facto de ser dentro das instalações da instituição permite que docentes e funcionários vão vendo. Não é que isto seja para mostrar, mas há sempre algum controlo, que pode ser benéfico para algumas situações” (Vice-Presidente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Usamos aqui os termos “estrutura da praxe” e “líder da praxe” porque, dada especificidade da terminologia hierárquica desta academia, a utilização das designações tal como são usadas pelos atores facilmente identificaria o caso em estudo. Em todo o caso, estas designações remetem para o que noutras academias se designa, respetivamente, de “comissão de praxe/conselho de veteranos” e “dux veteranorum”. 8 85 Em alguns destes casos, muitos dirigentes associativos são, simultaneamente, membros das praxes académicas e, em alguns casos, das suas cúpulas dirigentes. Salientam, assim, que é necessário um reforço da relação entre as Associações de Estudantes, as estruturas de praxe e as Instituições de Ensino Superior. 3.2.2. A atitude equilibrista O que aqui designamos de “atitude equilibrista” diz respeito aos dirigentes e associações que afirmam ter, sobre a praxe, uma posição neutra ou de não interferência, por considerarem que a sua missão é representar todos os estudantes, praxistas e nãopraxistas, e não apenas uma parte da comunidade estudantil. “A associação tenta manter-se sempre agnóstica em relação à praxe. […] Nós temos sempre de representar os alunos da melhor maneira possível. A associação é totalmente agnóstica e tenta sempre ser neutra. Estamos aqui no meio da guerra, entre aspas, e então temos de nos manter agnósticos. Queremos boas relações com todos.” (Presidente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Esta atitude procura dar conta da independência que as associações de estudantes devem ter em relação às atividades de praxe e aos conflitos que ela suscita. Mas, em simultâneo, reforça que a associação não deve ter uma atitude de condenação ou de crítica da praxe e das suas estruturas de organização. Trata-se de uma atitude que pode ser adotada por associações de estudantes independentemente daquilo que são as posições pessoais dos seus elementos. Um elemento de uma Associação de Estudantes entrevistado esclarece-nos que têm “de respeitar as pessoas que participam”; “respeitamos, mas não temos relação quase nenhuma e não gostamos propriamente da praxe”. Um outro acrescenta que, independentemente de participar na praxe, a associação tem o dever de se manter distanciada. “Temos de ser imparciais. Por muito que eu seja praxista, ou que a minha colega seja praxista, nós não podemos tomar uma atitude com a praxe. Nós temos de nos saber manter além dela. O que acontece na praxe é da responsabilidade de quem lá está, e o núcleo oferece outras oportunidades, também de convívio e de integração, mas que não estão em nada relacionadas com a praxe. E nós, enquanto núcleo, não podemos sequer tentar entrelaçar as duas coisas”. (Dirigente de um Núcleo de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) 86 O facto de procurarem manter uma posição neutra relativamente à praxe, procurando não se envolver nem interferir nas atividades praxísticas ou sequer formular uma opinião sobre elas a título oficial não significa que, pelo menos em alguns casos, se abstenham de fornecer alguma informação sobre essa prática: “O núcleo sim, procura por vezes promover e ter palestras […]. E procura esclarecer alguns mitos e algumas ideias mal concebidas que os alunos possam ter, e procura esclarecer e informar melhor os alunos para eles terem o poder de decisão sobre estar ou não estar lá” (Vice-Presidente de um Núcleo de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Em suma, as associações que adotam esta posição consideram que devem trabalhar em prol da integração dos novos alunos, o que fazem através de atividades de índole desportiva e cultural, entre outras, mas sem se misturarem com a proposta de integração oriunda da praxe. Até porque, enquanto representantes de todos os estudantes, sejam eles “monárquicos” ou “anarco-comunistas”, não podem excluir nem quem se entrega à praxe, nem quem a condena. 3.2.3. Mecanismos indiretos de legitimação Apesar de uma parte das associações apresentar uma posição de neutralidade e nãointerferência, isso não significa que não existam casos em que se desenvolvem um conjunto de práticas que, indiretamente, dão legitimidade à praxe e às suas estruturas. “A Direção [da instituição] tem uma posição contra, isto é, não aceita que sejam feitas coisas por parte da praxe aqui dentro. A associação não é desta opinião. [...] E uma vez que às vezes não é possível que eles façam as coisas, damos nós a cara como Associação de Estudantes e participamos com a comissão de praxe em aspeto como festas, eventos… A associação dá a cara e responsabiliza-se por tudo e assim já não é uma festa organizada pela comissão de praxe e a Direção já não pode dizer nada” (Presidente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Neste caso, o dirigente afirma que a associação tem uma posição neutra em relação à praxe. No entanto também revela que, como a praxe não está autorizada no campus, a associação “dá a cara” pelas festas e iniciativas da comissão de praxe, contornando-se deste modo o impedimento. Noutro caso anteriormente mencionado, um dirigente estudantil afirma que “associação não tem nada a ver com a praxe”, mas ao mesmo tempo ajuda “com datas, com materiais, com espaços, com isso tudo”. 87 Estes exemplos revelam que existe, por vezes, uma dissociação entre os discursos e as atitudes concretas face ao fenómeno da praxe. 3.2.4. A praxe e o associativismo estudantil: relações e (inter)dependências A relação entre a praxe académica, o associativismo e os movimentos estudantis tem sido largamente estudada em termos históricos e sociológicos9. Por razões de economia de espaço não se retomam aqui essas discussões. No entanto, o trabalho de terreno permitenos a este respeito identificar três características. Primeiro, identificaram-se casos em que as comissões de praxe têm uma relação umbilical com as Associações Académicas e de Estudantes. “Eu porque antes de ser presidente fazia parte da comissão de praxe, concordava com o método de praxe que era praticado, não é por ficar presidente da AE que eu vou estar a sair […] Continuo a ter o meu papel e não vejo que deixe de representar todos os estudantes por fazer pare de uma comissão de praxe” (Presidente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Os dirigentes associativos e da praxe confundem-se, usando-se a estrutura da Associação de Estudantes para apoiar as iniciativas de praxe; e usando a estrutura da praxe para mobilizar estudantes para as atividades da Associação de Estudantes. As características da praxe, designadamente o número de pessoas que envolve, a lealdade que estimula e as suas formas de organização que ocupam um espaço indefinido entre o formal e o informal10, colocam vários desafios à forma como as Associações de Estudantes podem lidar com elas. Uma das questões que se levantam tem a ver, precisamente, com a natureza não institucionalizada das organizações de praxe, que faz com que, como referimos, algumas associações acabem por, oficialmente, dar a cara pela organização de eventos que, na verdade, são da responsabilidade dessas organizações. Embora muitos dirigentes defendam que a praxe e o associativismo devam seguir “duas linhas paralelas”, admite-se que a dimensão que a praxe ganhou pode permitir que essas linhas se cruzem. Como argumenta um dirigente de uma associação académica, alguém Ver, entre outros, Estanque (2016); Estanque e Bebiano (2007); Cardina (2004, 2008); Prata (2002). Geralmente a organização da praxe contempla órgãos de decisão e regulação (como os conselhos de veteranos) e comissões com funções de organização e implementação das atividades de praxe (como as comissões de praxe). Os primeiros têm muitas vezes nomes coletivos e símbolos distintivos, e são eles que aprovam e revêm os documentos que visam regular a praxe. Uns e outros podem encetar diálogo, enquanto coletividades, com atores como associações de estudantes, reitorias e direções de instituições. No entanto, não conhecemos casos em que estes atores coletivos tenham uma existência formalmente reconhecida. 9 10 88 que concorra a um cargo associativo e que também esteja na praxe poderá ganhar alguma vantagem com isso, justamente porque sendo a praxe “um contexto social alargado a quase toda a gente”, “quem tem uma presença muito assídua nesses contextos naturalmente irá ter uma abrangência […] portanto, é natural que depois haja um envolvimento posterior por essa razão” Um segundo aspeto diz respeito ao facto do fenómeno da praxe ter uma grande influência na vida associativa. Envolvendo um grande número de estudantes a partir de relações de poder e lealdade, os organismos de praxe podem influenciar de forma decisiva os processos eleitorais e, desta forma, condicionar as Associações de Estudantes e as suas atividades. Alguns dirigentes associativos admitem que se um praxista com um posto hierárquico elevado assim o desejar, pode mobilizar um elevado número de estudantes que participem na praxe para votar numa determinada lista, utilizando para isso o poder que detém nesse universo: “Do ponto de vista democrático é muito perigoso teres a praxe a manietar aquilo que poderá ser o resultado de uma eleição para a Associação de Estudantes […]. Eu acho que é uma ameaça real, e certamente já aconteceu em muitos sítios, haver uma instrumentalização da praxe como meio de se imiscuir no processo eleitoral.” (Dirigente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Esta possibilidade torna-se mais relevante num momento em que a mobilização estudantil se encontra fragilizada, sendo escasso o número de pessoas que o movimento estudantil consegue envolver: “Há um desligamento grande nos mecanismos formais de participação política, assembleias gerais, votos […]. Eu acho que é tão grave numa lista para a Associação de Estudantes, como para as listas para o Conselho Geral, as Comissões de Acompanhamento igual, os Conselheiros Pedagógicos, et cetera. Ou há aí um grupo que de facto, dentro da instituição, está preocupado, que está atento a estes espaços de participação e tenta mobilizar e consegue pelo menos construir listas para preencher os lugares, e depois a pessoa se tem um lugar consegue perceber a importância daquilo que faz, ou há lugares que ficam naturalmente vagos sem grande dificuldade.” (Presidente de uma Federação Académica) Num contexto de défice de participação estudantil na vida democrática das instituições, um presidente de uma associação de estudantes chega mesmo a lembrar89 nos que, se numa eleição para a direção desse tipo de coletividade analisarmos “o número total de votos e o número total de praxistas, [o número de praxistas] acaba por ser, se calhar, superior ao número total de votos contados nas urnas.” Finalmente, uma outra perspetiva prende-se com o facto de muitas Associações de Estudantes abdicarem, ou não terem capacidade para implementar iniciativas próprias de receção, deixando às comissões de praxe o “monopólio” das atividades de integração dos novos alunos. O enfraquecimento do movimento associativo contribui também para que ele sinta dificuldades em cumprir aquilo que muitos dos dirigentes que ouvimos identificaram como uma das suas vocações naturais: a integração dos novos estudantes. Alguns deles entendem que, por não dispor de muitos recursos, e por ter uma capacidade de mobilização mais limitada, uma Associação de Estudantes não tem capacidade para oferecer uma alternativa de integração tão abrangente e eficaz como a praxe: “Não existe uma alternativa tão forte [à integração] quanto a praxe. Acho que é isso. Até porque não existem mecanismos ou instituições com a capacidade que a praxe oferece. Pelo menos em termos comparativos, pelo menos na minha faculdade, não há nada que permita o acompanhamento e a capacidade de acompanhar os estudantes da praxe” (Presidente de um Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) “Se eu tiver uma atividade do núcleo, sei lá, uma visita à cidade, aparecem-me lá cinco macacos. E se for de praxe aparecem-me quarenta e cinco.” (Presidente de um Núcleo de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) 3.3. A praxe segundo os estudantes: uma interpretação sociológica dos motivos e contextos de participação 3.3.1. A praxe como mecanismo integrador Nas várias incursões no terreno que se realizaram, muitos estudantes, de várias partes do país e de várias instituições, salientaram que um dos mais importantes motivos por que participam na praxe tem a ver com a eficácia que ela garante na integração na instituição a que chegam. 90 “[O melhor da praxe] foi a integração entre caloiros, fiz muitos amigos novos e até mesmo com superiores, porque atualmente eu sei que existem superiores que se eu tiver algum problema pessoal, posso ir falar com eles que eles resolvem” […] “[a praxe ensinou-me] “que somos todos uma família, que há união e que temos de ser todos uns para os outros” (“Caloira de uma Instituição Universitária Pública) Um dirigente estudantil chegou mesmo a afirmar que “quando alguém me mostrar um processo que integre tão bem os alunos quanto a praxe, eu sou o primeiro a dizer: eu não praxo mais, eu sigo esse processo”. Pela praxe os novos alunos sentemse parte do novo mundo que atingiram e criam verdadeiros laços de amizade, de união, companheirismo e de inter-conhecimento com os seus novos colegas. Na praxe sentem que pertencem a algo maior que eles. Daí que os momentos de maior dificuldade ou dureza sejam vistos por vários estudantes como fundamentais. É porque passam todos juntos por eles que criam laços fortes de pertença e solidariedade. Como dizia uma estudante num debate público: “Aquilo que eu senti quando fui caloira, é que quando me mandavam olhar para o chão, eu trocava um olhar com o meu colega do lado. Olhando para o chão, mas aí criava uma ligação com a pessoa que estava ao meu lado”11 Esta necessidade de pertença e reconhecimento do grupo a que se chega é ainda mais forte quando, em muitos casos, os estudantes chegam sozinhos a uma instituição, estando muitas das vezes deslocados simultaneamente da sua região de origem e das relações sociais anteriores, como as relações familiares e de pares. “Há um grande papel do mecanismo em si, que tem a ver com o sentimento de pertença. Tem a ver com o sentimento de pertença em relação à faculdade, numa fase em que muitos são arrancados dos sítios de onde vinham, ou pelo menos das escolas, no caso daqueles que não são deslocados, que acaba por ser o contexto social mais próximo. Então, aquilo [a praxe] dava uma estrutura de acolhimento muito, muito sólida que, seja ou não – e já sei mais sobre isto, agora – tão verdade como as histórias que se vão contando, acaba por dar uma certa segurança.” (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) 11 Debate sobre a praxe na Aula Magna da Universidade de Lisboa, minuto 1:08. URL: https://www.youtube.com/watch?v=rB9iQZF1CcI 91 Assim, para a maioria dos estudantes, a praxe assume a sua força de atração simbólica porque preenche um vazio social. Aos sentimentos de incerteza, insegurança, inquietação ou vulnerabilidade perante um mundo simbólico desconhecido, a experiência da praxe ativa os laços de pertença de quem chega e reforça a filiação numa identidade coletiva num momento crucial em que os antigos vínculos sociais e fatores de coesão se encontram ausentes ou, pelo menos, enfraquecidos. Na maioria das instituições, as atividades de praxe são as mais longas e duráveis iniciativas de receção e integração (quando não as únicas…), sendo feitas por estudantes e para estudantes. Dai que a participação seja vista como uma fase própria, natural e intrínseca à entrada numa nova fase de vida. 3.3.2. A praxe como ritual de passagem Um dos imaginários sociais mais presentes entre os estudantes é o de que a chegada ao ensino superior é um momento marcante, de viragem para uma nova fase de vida. Sinónimo de rutura com a juventude adolescente e de entrada numa fase adulta do desenvolvimento da personalidade, a conquista da universidade é associada ao reforço da autonomia, da liberdade e da emancipação do estudante face aos seus contextos sociais anteriores. “[Ser caloira tem um significado especial] porque é o início de uma nova etapa da minha vida tanto a nível académico, porque é o início de um novo ciclo, tanto a nível pessoal, porque é o concretizar de um sonho” (“Caloira” de uma Instituição Universitária Pública) “[Todos nós] chegamos aqui perdidos e somos crianças. E, ainda por cima, aquilo que acontece aqui é que todos têm médias de 17 para cima e muitos deles [caloiros], naturalmente, acham que são os maiores. Acham que… têm-se em demasiada boa conta. Pensam que a vida é feita para eles. E nós [praxistas], aquilo que nós queremos, é que eles percebam que fazem parte de um grupo. Queremos que eles deixem de ser uns miúdos e passem a ser homens e mulheres” (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública que ainda mantém presença nas estruturas de praxe) Esta “nova etapa da vida”, que também simboliza a ascensão social almejada e antecipada (particularmente num contexto de massificação do acesso ao ensino), é acompanhada de rituais de passagem que tendem justamente a marcar essa transição de ciclo. 92 A força dos ritos associados à praxe resulta de uma aceitação e legitimação generalizada da ideia de que quem chega à universidade, o novato, deve ser investido de um novo estatuto social e simbólico passando a ser reconhecido como membro do conjunto da comunidade de chegada. Mas para ser eficaz, esse processo implica o seu envolvimento num conjunto de ritos de iniciação e de passagem, materializados em formas cerimoniais, performativas e de espetáculo que, perante a coletividade, reforçam o sentimento de pertença a uma identidade coletiva alicerçada em costumes e práticas que remetem para o universo da “tradição”. Os ritos de iniciação que marcam a praxe, ao teatralizarem e encenarem papéis, sugerem que a segurança perfeita no contexto de chegada se baseia na ocupação de um lugar e um papel social pré-determinado. A assunção desse papel social implica o respeito pelas relações entre os níveis da hierarquia tradicional e estabelecida. À integração coletiva que estes ritos proporcionam acrescenta-se a legitimação de um poder que se estrutura numa troca intensiva, emotiva e mobilizadora, quer por via de rituais marcados por traços de seriedade e formalismo, quer por via de dimensões lúdicas, em contexto festivo, onde a produção de consentimento ganha enorme eficácia. A praxe como ritual de passagem reflete de forma precisa a tríade identificada por Van Gennep12: numa primeira fase tratam-se de ritos de separação e rutura com a identidade e as socializações anteriores; numa segunda fase surgem os ritos de margem destinados à aprendizagem do novo papel social; e por fim encontramos ritos de agregação, com uma ressurreição simbólica e identitária do indivíduo baseada na agregação ao grupo de chegada. Nos ritos da praxe assiste-se todavia à complexificação desta tríade através da sobreposição no tempo das suas diferentes fases (Ribeiro, 2000). 3.3.3. A praxe como normalidade institucional Um dos argumentos muito partilhados entre estudantes que participam ou participaram nas praxes é o de que estas são atividades de integração que os estudantes desejam que aconteçam e às quais aderem voluntariamente. Em muitas instituições, o primeiro contacto que os estudantes têm mal chegam às suas instalações é com os membros da praxe. Sendo ela hegemónica, e perante a ausência ou a ineficácia de outros mecanismos de receção e integração, o primeiro contacto que novo estudante tem com a praxe materializa-se frequentemente logo no dia 12 Ver Van Gennep (1981). 93 das matrículas. Vários estudantes praxistas posicionam-se nas zonas de acesso às instituições, muitas vezes usando cartolinas com o nome do curso. Os caloiros aproximam-se para conhecer os futuros colegas e, nesse momento, são informados sobre a praxe e as suas atividades que irão acontecer. Muitas direções das instituições têm conhecimento e, como vimos no ponto 3.1.2, admitem que sejam as pessoas ligadas às estruturas da praxe a dar apoio aos estudantes na fase de matrículas. Perante a ausência ou a marginalidade de outros mecanismos de receção, na maioria das instituições dezenas de alunos mais velhos esperam os mais novos na semana de inscrição e iniciam muitos deles na praxe. Na semana seguinte, quando as atividades de praxe ocorrem e as aulas oficialmente começam, não são poucos os casos, como também vimos, em que as direções dão tolerância às aulas durante o período de praxe. Por vezes organizam com as comissões de praxe um momento de receção institucional, em que os estudantes que praxam têm a função de levar os “caloiros” para um grande auditório da instituição a fim de assistirem à sessão de apresentação conduzida pelos órgãos dirigentes. “Após as inscrições, há dois dias em que são do direcção e da associação onde são dados a conhecer os professores das cadeiras, com palestras, a AE dá-se a conhecer e depois numa dessas palestras, no final da palestra, a comissão de praxe aparece, e aos caloiros que estão todos no auditório é-lhes perguntado quem é que quer fazer parte da praxe […] as pessoas que não querem fazer parte da praxe levantam o braço, vêm ter com a comissão de praxe e um a um explicam o porquê de não quererem participar” (Presidente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Como fica claro também neste exemplo, o enquadramento institucional em que a praxe emerge ao novo estudante é muito forte, implicando mesmo, neste caso, uma exposição individual do estudante que não quer participar. Ele deve, perante toda a comunidade, levar o braço e dirigir-se à comissão de praxe para apresentar as suas razões. Este sistema de legitimação e/ou normalização do fenómeno na vida da instituição, aliado à ausência ou ineficácia de uma alternativa prolongada de integração dos novos alunos promovida pelas Associações de Estudantes, acaba por transformar a praxe num fenómeno central, normal e natural no processo de chegada à instituição. “Quando um novo estudante entra no campus universitário e vê, sei lá, duzentos, trezentos doutores, ou quatrocentos, conforme a dimensão da faculdade, realmente considera que todas aquelas pessoas que estão ali estarão por um motivo, e esse motivo será algo bom, 94 algo positivo” (Presidente de uma associação de estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Embora com variações, é este o contexto geral que parte considerável dos estudantes encontra quando chega ao ensino superior. Nesse sentido, em muitos casos, os mais velhos não precisam de recorrer a outras formas de persuasão para convencer os mais novos a participar nestes rituais. Muito frequentemente, os estudantes aderem livremente e consentem em submeter-se às atividades que para eles estão programadas, podendo até já ter tomado essa decisão quando se dá o primeiro contato. No entanto, e apesar de não ser, naturalmente, o único fator que explica a adesão à praxe, o sistema de legitimação e enquadramento desse fenómeno contribui para que os próprios estudantes queiram participar, uma vez que ela lhes aparece como uma fase esperada, ou seja, como um processo que faz “naturalmente” parte de uma nova etapa da sua trajetória de vida, etapa essa que lhes proporcionará a entrada numa nova instituição onde contam passar alguns dos melhores momentos da sua juventude. Desejam, por isso, estar bem integrados entre as pessoas com quem os irão partilhar. “Houve pessoas que optaram por não serem praxadas, a nível de integração parecia que eram colocadas de parte… Tanto pelos caloiros como pelos superiores. Parecia que eram como uns bichos que ali estavam à parte. Como não faziam praxe não faziam parte do grupo. E depois eu também decidi fazer praxe porque na altura não haveria grande opção porque como dizem: “se não fizeres praxe não podes trajar”; “não podes isto”; “não podes aquilo”. Ou seja, aquilo era quase, se quiseres, fazia parte da vida académica, tens que fazer parte da praxe, tens que te sujeitar a isto. Não tens a opção de dizer: “não quero”, “não faço”, “não pode ser”. Não tinha grande opção. E eu depois também pronto, integrei-me na praxe” (Estudante praxista numa Instituição Universitária Pública) Como se percebe neste excerto, mesmo para aqueles estudantes que possam não ter a certeza de querer participar, a perceção da praxe como “acontecimento normal”, por um lado, e a potencial estigmatização de quem não participa, por outro, são processos com muita importância. É certo que se deve diferenciar entre aquilo que é o isolamento “natural” de que não participa na normalidade de uma dinâmica hegemónica e os casos em que quem não adere é deliberadamente alvo de várias exclusões, como a impossibilidade de trajar ou de participar em certas cerimónias e iniciativas académicas. No entanto, a desigualdade de poderes é muito acentuada entre quem chega sozinho a uma instituição, estando muitas vezes numa nova cidade onde conhece poucas ou 95 nenhumas pessoas, e, por outro lado, o grupo de praxistas que aborda os “caloiros” logo no primeiro dia com uma proposta organizada e vários métodos de persuasão ao seu dispor. É certo que existem casos em que o novo estudante já decidiu previamente que irá participar na praxe e outros em que ele recusa a praxe e não sente qualquer tipo de prejuízo por isso. Porém, dizer não às estruturas de praxe nem sempre é simples, especialmente naquelas instituições em que não existem espaços alternativos que permitam conhecer outros novos estudantes e pessoas que já estejam na instituição de uma forma tão rápida. “No primeiro ano eu tinha aulas com muitas pessoas. Eu não tinha uma turma. E as pessoas que eu conheci em praxe, se não fosse a praxe, eu não ia conhecê-las, porque eu não tinha aulas com elas. Mesmo que passasse por elas nos corredores não ia haver essa proximidade” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Paralelamente, em vários casos, o fenómeno da praxe vive ainda de uma outra rede de legitimação associada a autoridades, empresas, instituições e serviços exteriores à academia. “O batismo é no final do desfile académico, isso é feito fora do instituto. Portanto eles vão buscar os espaços à Câmara. A Câmara perguntou-nos se podiam ceder e a nossa informação foi [que] só podem ceder espaços para aquilo que está aqui no nosso despacho” (Vice-Presidente de um Instituto Politécnico Público) No caso desta instituição, a Câmara Municipal, em articulação com a direção da instituição, cede espaços para atividades de praxe, especialmente para o cortejo e o batismo que marcam o fim das duas semanas de atividades. Essa é uma prática comum em muitas cidades e instituições.Veja-se, a título de exemplo, o caso da Latada na Covilhã, em que o cortejo interrompe toda a circulação no centro da cidade. 96 Figura nº 16: Latada da Universidade da Beira Interior na Covilhã Fonte: Câmara Municipal da Covilhã Noutros casos que observámos, as autarquias cedem as suas piscinas municipais para várias atividades de praxe, bem como vários espaços no centro histórico, onde as comissões de praxe podem praxar e organizar o material para o cortejo. Figura nº17: Praxe numa piscina municipal cedida pela autarquia Fonte: Produção própria Para além das autarquias, uma grande rede de outras entidades, onde se contam restaurantes, cafés, bares e discotecas, estabelecem parcerias com as comissões de praxe para vários tipos de iniciativa. Nos casos das cidades mais pequenas, o fenómeno da praxe trespassa todos os espaços públicos de sociabilidade estudantil. 97 A praxe parece, assim, ser um fenómeno que envolve a comunidade académica e grande parte da comunidade local, convertendo-se num conjunto de rituais em que se espera que os novos estudantes participem. A adesão torna-se quase natural pela força simbólica do enquadramento social do fenómeno. Importa por isso notar que há casos em que ir à praxe é uma escolha mediada por um contexto social (e até institucional) onde aquela aparece como a única ou a mais eficaz forma de integração, amplamente aceite e legitimada dentro e fora da academia. Sem prejuízo do que aqui foi dito sobre a forma como a praxe se impõe, em muitas Instituições de Ensino Superior, enquanto uma forma de integração "natural" dos novos alunos, não podemos deixar de referir uma mudança em curso naquilo que são as representações sobre a praxe. Por um lado, o caso do Meco marca um momento de viragem na forma como a praxe é retratada nos media, passando a conferir-se mais atenção aos casos de violência. Por outro lado, os próprios estudantes que praxam consideram que a sua imagem atual é negativa. Alguns deles relataram-nos que os desentendimentos e conflitos entre estudantes em praxe e transeuntes aumentaram desde os acontecimentos trágicos da praia do Meco. Apesar disto, e tal como se constatará através da observação de eventos como as latadas, este não poderá ser considerado um momento de rejeição social generalizada da praxe. 3.3.4. A praxe como opção Descrevemos, no ponto anterior, um conjunto de circunstâncias que devem ser ponderadas quando se considera que a adesão à praxe é tomada livremente por quem nela participa. De todo o modo, não podemos deixar de referir que a maioria dos nossos entrevistados insistiu na ideia de que não foi sentida qualquer pressão quando fizeram a sua opção. Em alguns casos, os estudantes referiram mesmo que, já tendo algumas informações prévias sobre a praxe, tomaram a iniciativa de falar com os colegas mais velhos, pedindo-lhes para a experimentar. Alguns estudantes decidiram depois que não se identificavam com as atividades da praxe e decidiram abandoná-las. Outros preferiram permanecer e, num ou outro caso, identificam a liberdade que lhes foi dada para optar como um fator que acabou por contribuir para essa continuidade. Essa liberdade pode ir para além da simples decisão de entrar ou não no universo da praxe: alguns dos nossos entrevistados disseram-nos que, enquanto “caloiros”, podiam gerir livremente a sua assiduidade na praxe, sem sofrer quaisquer penalizações caso se apresentassem menos 98 vezes nas atividades; outros referiram que tinham margem para recusar fazer algumas das coisas que lhes eram propostas pelos mais velhos. “Existe um horário para a praxe, e eu, se não puder ir nesse horário completo, eu vou o que eu puder. Se eu puder ir 15 minutos, vou. Se eu quiser ir 1 hora, eu vou. E, quando me quiser ir embora, peço a um doutor, despeço-me, e vou.” (“Caloira” de uma Instituição Universitária privada) O caráter voluntário da praxe é salientado por estudantes praxistas das várias academias estudadas. No entanto, em alguns casos, os códigos de praxe estipulam que não participar na praxe acarreta um custo. É o caso de Bragança. É verdade que os estudantes daquela cidade com quem falámos nos disseram que quem decide não participar na praxe não perde nada a não ser o direito de ser praxado e, posteriormente, de praxar; no entanto, veja-se o que consta, a este respeito, no artigo 64º13 do código de praxe [2009]: todos os alunos têm o direito de se declarar anti-praxe; para o fazerem, devem entregar uma declaração escrita à associação de estudantes ou associação académica, acompanhada de fotografia e identificação. A partir desse momento estarão sujeitos a um conjunto de “sanções”, que passamos a enumerar: não poder participar nas atividades académicas das associações de estudantes e associação académica, perder o direito de associação esses organismos, não usar traje nem anel de curso, não participar na queima das fitas, missa da bênção das pastas e entrega protocolar de diplomas. Para além disso, a identificação dos alunos anti-praxe será publicada e estes deverão fazer-se acompanhar sempre da declaração que comprova o seu estatuto, devendo ainda respeitar a praxe académica. Para além disso, o Magno Senado de Praxe, com a Comissão de Praxe de um determinado curso, podem declarar alguém desse mesmo curso anti-praxe à sua revelia. No mesmo artigo pode ainda ler-se esta alínea: “os alunos que se declaram antipraxe fazem parte da comunidade académica. Ser anti-praxe é uma opção de vida que temos o dever de respeitar”. Como dizíamos, vários participantes na praxe por nós entrevistados defendem que existe liberdade não só no momento da praxe, mas também dentro dela. Assim, os “caloiros” que tenham uma razão válida (como, por exemplo, uma limitação física) 13 Sabemos que nem tudo o que está previsto nos vários códigos de praxe é implementado ou levado a sério. No entanto, consideramos também que a existência de artigos como este pode ser utilizado por praxistas para procurar legitimar as eventuais práticas de exclusão que, num determinado momento, decidam adotar relativamente aos estudantes que optam por não participar nas praxes. 99 podem recusar uma determinada atividade14. Para além disso, também nos foi dito que os “caloiros” podem mesmo recusar atividades em que prefiram não se envolver, embora também tenham sido identificados alguns limites. Assim, e como revelam as palavras de dois entrevistados que alcançaram posições muito elevadas na hierarquia da praxe: “A participação nas atividades da praxe e da tradição é uma questão individual, cada um decide até que nível se envolve. P: 'Tá bem. Mas eu posso, no meio do ritual, dizer que não? R: Há uma coisa de que as pessoas têm de ter consciência: todos os rituais estão balizados por determinadas normas. E, desde que essas normas sejam cumpridas, não há problema nenhum em dizer que não”. (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) “Houve muitas vezes que eu [alertei] as pessoas mais novas que estão na praxe para aquela noção que se passa para os caloiros, de que podes dizer que não. Deves. Não é podes, é deves dizer que não. É óbvio que se chegar a um ponto em que se está a dizer que não a muita coisa porque não se concorda é preciso chegar a um entendimento: “ok, se calhar isto não é aquilo de que estás à procura”. (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Mas o livre arbítrio concedido ao “caloiro” enquanto participante no ritual tem limites que são variáveis consoante as diferentes academias e instituições de ensino. Já aqui apresentamos o exemplo de “caloiros” que puderam livremente decidir quanto do seu tempo investir nas atividades de praxe. Porém, sabemos que os registos de presenças são muito comuns. Se em alguns casos eles têm uma finalidade puramente organizacional, sendo utilizados apenas para se saber quantos “caloiros” costumam participar nas iniciativas de praxe e assim facilitar a sua implementação, noutros casos eles servem para controlar a assiduidade de cada caloiro e impor castigos a quem falta que podem ir até à expulsão da praxe. Por outro lado, também recolhemos o testemunho de estudantes que abandonaram a praxe por sua iniciativa mas a contragosto, por não conseguirem cumprir os horários ditados pelos “doutores”. O fato de entenderem a praxe como uma atividade de participação voluntária acaba por dar origem a um argumento utilizado pelos praxistas na defesa desse ritual contra as críticas que lhe são dirigidas de fora, designadamente, e recentemente, pelo Pelo menos em alguns contextos, os estudantes praxistas procuram, assim que o novo estudante aceita participar na praxe, recolher informações sobre o seu estado de saúde, no sentido de perceberem que atividades podem implementar e de que modo o podem fazer. 14 100 próprio Ministério da Ciência e do Ensino Superior: uma vez que é uma atividade onde apenas está quem assim decidiu, a liberdade dos estudantes que pretendem dar continuidade à praxe deve ser respeitada. - “Acabar com a praxe é anti-democrático, não vale a pena andarem a fazer uma caça às bruxas” - “Partindo do princípio do Ministro de que a praxe é uma prática fascizante que deve ser eliminada de imediato, é importante não cairmos no erro de inverter a discussão…” - “Pois… É que essa é que é uma posição fascizante” - “Nem ia por aí, é importante não assumirmos o erro de, assumindo uma posição como esta, corrermos o risco das próprias instituições indicarem “vamos contrariar a praxe” e “proibir a praxe”, sabendo que acontecendo fora se gera situações muito mais complicadas e muito mais críticas”. (Focus Group de Dirigentes Associativos) “A praxe não é obrigatória. De todo, de todo. E daí ficarmos algo tristes quando ouvimos dizer na televisão que querem acabar de todo com ela, porque acho que é mau. Da mesma maneira que nós não obrigamos ninguém a vir ter connosco e estar lá a ser praxado, também não gostávamos que nos tirassem essa oportunidade de praxar quem quer. Se existe democracia para uma coisa, também pode haver para a outra.” (Vice-presidente de um Núcleo de Estudantes e praxista de uma Instituição Universitária Pública) A respeito deste tema, deve ser levada em conta, tal como em muitos outros casos, a diversidade de maneiras de fazer e de pensar a praxe que existe por todo o território nacional. Para além disso, há que considerar que aquilo que os diferentes grupos que praxam implementam pode não seguir, na prática, as regras ditadas pelas autoridades mais elevadas das hierarquias locais – para o bem e para o mal. Por fim, há que ter em conta ainda que, como vimos, a praxe surge muitas vezes como um cenário de normalidade institucional, apresentando-se frequentemente, por isso, como a “escolha natural” para quem acaba de chegar a uma instituição do ensino superior. 101 3.3.5. A praxe como prática niveladora Um dos argumentos mais fortes que tende a aparecer como justificação para a pertença à praxe, e especialmente para o uso do traje15, é que ambos simbolizam uma diluição das diferenças e das distinções sociais e económicas entre os estudantes. Na praxe, todos - ricos ou pobres, do litoral ou do interior, homens ou mulheres, imigrantes ou de origem nacional - são tratados da mesma forma e de acordo com as mesmas regras. Não há privilégios nem distinções. Todos são “caloiros”: um corpo unido para defender o curso e se integrar numa instituição onde vão passar os melhores anos da sua vida. Com o traje não há traços que distingam quem tem mais ou menos rendimentos, mais ou menos posses. O traje uniformiza a imagem do estudante perante o coletivo a que pertence e desfaz qualquer traço que possa revelar as desigualdades entre estudantes. Por ouro lado, mesmo antes de usarem o traje, também os novos estudantes são vistos como iguais. O “caloiro” deve ser limpo, depurado e despojado de traços que remetam para a sua individualidade. Para isso servem os nomes de praxe16 e certas peças de vestuário e acessórios que, em muitos contextos, eles devem usar. E para isso serve o “gozo ao caloiro”: para que todos se sintam no mesmo patamar, independentemente das suas personalidades, das suas origens e das suas trajetórias de vida. “O nosso modus operandi, no início, é muito o mesmo para todos. Não há preferidos, eles [os caloiro] são todos iguais e têm de perceber que o são. A maneira como o fazemos é irrelevante, porque a verdade é que todos eles vão ser tratados da mesma maneira, quer tenham uma personalidade, quer tenham outra”. (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública que ainda mantém presença nas estruturas de praxe) Este argumento revela um facto simultaneamente interessante e paradoxal. Interessante no sentido em que, apesar do fenómeno da praxe ser disciplinador, rígido e hierárquico, tem igualmente no seu seio argumentos políticos relacionados com a importância de não haver diferenciações ou discriminações entre estudantes a partir do seu status económico O traje académico tende a ser considerado, pelos nossos entrevistados, um símbolo da identidade do estudante, e não apenas do estudante praxista. Existem de facto alunos do ensino superior que trajam mas que não praxam e que, por vezes, nem sequer completaram o seu período de “caloiros”. A valorização do traje per se é muito visível, por exemplo, em Coimbra. Não obstante, e deixando de parte algumas exceções mais específicas, o traje é também o “uniforme” de quem praxa, e a sua utilização mais comum e frequente está geralmente relacionada com esta atividade. Para além disso, convém não esquecer que vários códigos de praxe estipulam que o uso do traje deve ser vedado a quem está fora da praxe. Por tudo isto, o traje académico está intimamente associado à praxe, ainda que não se esgote nela. 16 Isto é particularmente pertinente quando, em vez de alcunhas, são atribuídos números aos “caloiros”. 15 102 ou social. Mas paradoxal por duas razões. Primeiro, porque a utilização do traje vem de um tempo histórico em que apenas uma elite acedia à universidade e, mesmo atualmente, pode ser visto como um símbolo de elevação de status dos estudantes do ensino superior. Hoje, apesar da massificação do ensino superior, continua a haver largos milhares de jovens que não têm acesso por razões económicas. Segundo, porque apesar da crítica das desigualdades, o traje e os seus adereços têm um custo que não pode ser suportado por parte da comunidade estudantil de mais baixos rendimentos. Num contexto de propinas muito elevadas e uma ação social direta (bolsas de ação social) e indireta (cantinas, residências, bolsas de fotocópias, etc.) insuficientes, esta divisão é ainda mais acentuada17. Ainda assim, apesar destes paradoxos, não deixa de ser interessante que o fenómeno da praxe assuma em si mesmo um discurso social igualitário. Isto pode eventualmente ser explicado por três motivos. Em primeiro lugar, esse discurso não é incompatível com o apelo à solidariedade entre pares e ao sentido de coletivo a que os praxistas apelam. Por outro lado, ele indicia que as preocupações cívicas, sociais e políticas dos estudantes, particularmente em relação às suas condições de vida e dos seus colegas, não desapareceram nem se diluíram na voragem do “individualismo”. Por fim, perante a ausência de outros protagonismos políticos para responder a esta situação de dificuldade, em particular de um movimento estudantil que se deixou enfraquecer18, a praxe preenche esse vazio social, manifestando-se nos discursos dos seus protagonistas esta preocupação com a igualdade entre os estudantes. 3.3.6. A praxe como um ensinamento da vida e para a vida A praxe académica é um fenómeno fortemente codificado nos chamados “Códigos de Praxe”. Estes regulamentos são delineados e aprovados pelos “Conselhos de Veteranos” (ou em órgãos com nomes diferentes mas com funções semelhantes) de cada instituição, embora por vezes (raramente) sejam submetidos à aprovação em Assembleias Gerais de Alunos. Como vimos, em casos excecionais estes códigos são ainda alvo de parecer pelas direções das Instituições de Ensino Superior. Sobre os custos de frequência do ensino superior, o problema de acessibilidade e a evolução e polémicas da política de propinas e de ação social, ver Cerdeira et al (2012); Cerdeira (2009); Mineiro (2016). 18 Sobre as transformações no movimento estudantil e nas atitudes juvenis, ver Estanque e Bebiano (2007). 17 103 A definição da hierarquia da praxe aparece quase sempre na terceira alínea destes documentos19, depois da sua definição e da caracterização dos seus objetivos – que são geralmente bem intencionados, visando a integração do estudante na academia e nas suas “tradições”. No final da hierarquia está o “caloiro”, geralmente considerado, na linguagem dos próprios Códigos, como um “inseto”, um “bicho” ou uma “besta”. A premissa da hierarquia e da autoridade do mais velho na instituição é, invariavelmente, a base da praxe. Quem entra na universidade deve obediência e respeito aos seus superiores hierárquicos. Em praxe existem regras estritas para se dirigir aos mais velhos, devendo tratá-los por “Excelentíssimo/a Sr/a Veterano/a” ou “Excelentíssimo/a Doutor/a”, e é norma comum ter de manter a cabeça baixa, nunca olhando para o seu “superior” ou, pelo menos, saudá-lo com os olhos dirigidos para o chão. Nos códigos de praxe encontram-se igualmente definidos os deveres específicos dos “caloiros”. A título de exemplo: “cuidar da limpeza dos sapatos dos Veteranos” (ISCAL); “ser criado de mesa de alto nível” (UTAD); “não olhar nos olhos” (Algarve e Leiria). Reconhece-se que alguns deveres se encontrarão nos códigos a título meramente humorístico20; porém, outros foram inscritos nos códigos para serem cumpridos e levados a sério. Noutros casos, é prescrita uma hora a partir da qual o novo aluno não pode estar na rua, uma espécie de recolher obrigatório que, em vários locais, é vigiado por “Trupes” (Coimbra) ou “Melícias”(Covilhã) que patrulham e recriminam os infratores, a partir da meia-noite no primeiro caso e das 23h no segundo. Também se pode ler no código que 19 Na maioria dos casos a hierarquia baseia-se no pressuposto de que quanto mais matrículas tem um estudante mais elevado é o seu estatuto; logo, maior é o seu poder. Assim, apenas os estudantes com um certo número de inscrições podem chegar ao lugar cimeiro da estrutura hierárquica. Tal princípio leva a que o estudante que ocupa essa posição possa ser muito mais velho do que as pessoas praxadas. Em Coimbra e no Porto encontramos dois exemplos paradigmáticos: na primeira cidade referida, o Dux Veteranorum João Luís Jesus, estudante desde 1988, chegou a esta posição em 2000 e em 2017 ainda ocupa o cargo; no Porto, o Dux Veteranorum Américo Martins já tem 65 anos e detém o título desde 1988. Como o próprio afirma em declarações de 2007: “A tradição académica é a minha vida. Já não entro numa sala de aulas há vários anos, mas a cada ano letivo não perco a receção ao caloiro e as atividades mensais da praxe. Sou um profissional destas andanças” (Jornal Correio da Manhã , 9 de Maio de 2007). 20 É deste modo que interpretamos, por exemplo, que o código de praxe do ISEG determine que os “caloiros” daquela instituição tenham, entre outros, os deveres de saber o número de páginas da lista telefónica da Suazilândia e de conhecer os feitos de Tó Madeira, um jogador de futebol fictício que foi indevidamente introduzido numa edição do conhecido jogo de computador Championship Manager. A irreverência e a zombaria que estão presentes em alguns códigos, bem como as suas lacunas e ambiguidades, fazem com que nem sempre seja fácil decifrá-los. Estas características, naturalmente, fazem também com que eles sejam extremamente flexíveis e alvo de muitas interpretações diferentes enquanto instrumentos de regulação da praxe. 104 regula a praxe de Évora, o CEGARREGA [2013], que as trupes “caçam” os “caloiros” a partir das 21h. A vivência neste contexto hierárquico não é, no entanto, percebida como algo negativo pela maioria dos estudantes. Muitos argumentam mesmo que a praxe é um ensinamento da vida e um ensinamento para a vida. “Isto não é humilhação, ou pelo menos não é humilhação gratuita. É suposto ser duro, porque tal como acontece na praxe, a praxe acontece muito antes sequer das pessoas chegarem à faculdade e vai continuar a acontecer muito depois. O “estar de quatro”, o comer coisas [de] que não gostamos… A praxe é a vida, isso acontece na vida. A vida é dura! [palmas]21” A praxe é um ensinamento da vida na medida em que ela não pode ser desligada dos rituais do mundo escolar e do mundo académico. O mundo académico é profundamente depositário de uma rigidez assente, por um lado, numa forte hierarquia no seu interior, e por outro lado, por uma certa solenidade que procura marcar uma distinção em relação ao exterior. A própria transição entre as diferentes etapas da carreira é marcada por cerimoniais de solenidade que funcionam como marcadores de estratificação social entre diferentes estatutos no seu interior. Ambos, a hierarquia e a solenidade, são estruturados e são estruturantes dos ritualismos de estratificação e distinção dentro do próprio mundo académico. Na verdade, o quotidiano do mundo académico contém momentos ritualizados que contribuem para reforçar o estatuto de superioridade do saber e do conhecimento que as Instituições de Ensino Superior produzem e detêm. Os cerimoniais académicos, como as aberturas solenes do ano letivo, as aulas magistrais, as tomadas de posse, os cortejos, a imposição de insígnias, os doutoramentos honoris causa ou as próprias provas de doutoramento ou de agregação, são marcados por fortes ritualismos destinados a reforçar o poder simbólico da instituição. A vivência da praxe reflete a vivência da própria universidade na qual emerge e através da qual se reproduz. Não é possível entender a aceitação das regras da praxe sem entender o contexto mais amplo dos ritualismos e das hierarquias de que as Instituições de Ensino Superior, e em particular as universidades, são herdeiras e depositárias. 21 Debate sobre a praxe na Aula Magna na Universidade de Lisboa, minuto 0:29. URL: https://www.youtube.com/watch?v=rB9iQZF1CcI 105 Mas a praxe é também um ensinamento da vida no sentido em que os próprios jovens que nela participam, como praxantes ou praxados, mimetizam a ideia incorporada da forma como se organiza a própria instituição escolar prévia à entrada no ensino superior. “Tu antes de ires para a Universidade já tens uma professora que tens de respeitar no secundário ou na primária e acaba por ser a mesma coisa. Ou é a mesma coisa de dizer: “olha, portaste-te mal, vai ali para a parede”. Eu acho que todos, antes de entrarmos para a praxe aprendemos a respeitar as pessoas mais velhas e as pessoas superiores a nós” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Na escola os alunos são quem está a ouvir o professor, quem ignora, quem precisa de ser submetido ao saber, à ordem e à disciplina. As inteligências de professores e de alunos não se encontram, não pensam nem experimentam em conjunto. O professor, dotado de autoridade e poder (incluindo poder simbólico), tem tudo a ensinar à sua planeia de alunos. O aluno é alguém que tem tudo para ouvir e aprender. Na escola, como na praxe, há alguém tem tudo a ensinar e alguém que tem tudo a aprender. Na escola, como na praxe, o saber ouve-se e decora-se, não se constrói em conjunto e não se experiencia. Na escola, como na praxe, há uma autoridade que se deve respeitar e que não deve ser questionada ou criticada. Na escola, como na praxe, há uma quarta parede entre quem transmite o saber e quem o assimila, decora e reproduz. A praxe estrutura-se, pelo menos em parte, a partir da experiência de socialização escolar prévia à entrada no Ensino Superior, justamente porque os ritualismos não nascem do vazio social22. Mas, para muitos estudantes, praxe não é apenas um ensinamento da vida, mas também um ensinamento para a vida. O discurso em torno da praxe baseia-se não apenas nas socializações passadas e presentes, mas também numa projeção que é feita sobre como vão ser as suas socializações futuras. Sobre a relação entre o sistema escolar e a cultura da praxe académica ver “Entrevista a João Ramos do Ó”, Público, 4 de Maio de 2014. Disponível em: https://www.publico.pt/2014/05/04/sociedade/noticia/ecomo-se-estivessemos-numa-especie-de-loucura-consentida-a-aprender-o-que-ha-de-pior-para-ser-umcidadao-1631338 22 106 “Todos vamos ser estagiários que nos vão mandar buscar café. Todos vamos ser as pessoas no seu primeiro emprego que têm de fazer horas extraordinárias e às vezes não remuneradas. O objetivo inicial é exatamente eles [os caloiros] meterem-se nesse papel, o papel de serem iguais aos outros. Não é a questão de ser maltratado, ou de ser escumalha, que é o que muita gente, infelizmente, acha que é o que praxe é. É uma questão de ser igual aos outros, de estar na base da hierarquia.” (Antigo estudante de uma Instituição Universitária Pública que ainda mantém presença nas estruturas de praxe) “No início o pessoal não ‘tá muito habituado a ter de se calar perante os outros. Então eles [os doutores] dizem que não é por mal, a maneira como eles falam. Eles dizem que na vida profissional vai ser mesmo assim, eles têm de se calar perante pessoas mais velhas, mais importantes.” (“Caloira” de um Instituto Politécnico Privado) Esse imaginário em relação ao futuro diz respeito à próxima grande etapa de transição: a entrada no mercado de trabalho. O imaginário que se tem sobre o mercado de trabalho assenta na ideia de que todos serão confrontados com as hierarquias do mundo laboral, em que há patrões e trabalhadores, chefes e subordinados, e em que quem chega deve respeitar o superior e a sua autoridade. A hierarquia deve ser escalada através do esforço, dedicação e lealdade à empresa. Daí que quando os estudantes abordam a praxe como um ensinamento para a vida estão justamente a refletir sobre o facto de a praxe ensinar a importância do respeito ao superior hierárquico, da disciplina, da obediência à autoridade e da lealdade e fidelidade ao grupo. Essas são as aprendizagens que, no imaginário de vários destes jovens, são associadas ao mercado de trabalho e à sua próxima fase de vida. Mas a praxe não é uma lição de vida apenas para quem está a ser praxado. Ela também funciona desse modo para quem praxa. Assim, quem está neste segundo papel considera que desenvolve e aplica um conjunto de competências necessárias para o planeamento e a implementação das atividades de praxe. Estas competências também podem surgir projetadas para o futuro, associando-se ao mundo profissional. Se, enquanto “caloiros”, os estudantes aprendem a lidar com a natureza hierarquizada do mundo do trabalho, é enquanto “doutores” que adquirem algumas das competências que serão úteis para as suas carreiras profissionais, tais como capacidade de planeamento, organização e liderança, à-vontade para falar em público e competências relacionais. 107 “Acho que [a praxe] é uma forma de aprendizagem, porque nós aprendemos a lidar com todo o tipo de pessoas e ganhamos um pouco… sei lá, chegamos lá fora e conseguimos lidar melhor com diferentes tipos de pessoas. Mesmo no trabalho, por exemplo. Acho que quando saímos daqui temos maior facilidade em ir para um trabalho” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Mas, na opinião de vários estudantes, as aprendizagens que se desenrolam na praxe vão para lá da esfera académica ou laboral, expandindo-se para a esfera da boa convivência em sociedade. “Nós aprendemos na praxe que somos um só. E isso aplica-se não só na praxe, porque nós vivemos em sociedade. Ou seja, nós estamos todos uns relacionados com os outros, e temos de saber lidar e viver com as outras pessoas. Isso é importante” (“Caloira” de uma Instituição Universitária Privada.) “Eu acho que o respeito foi o que me ficou mais. Porque é mesmo um valor muito importante, nós temos de respeitar para podermos ser respeitados. E há muita gente que não entende isso. Eu vi muita gente a mudar na praxe. Num mês de praxe já ‘tão pessoas muito diferentes, muito mais civilizadas. Aprenderam a respeitar as pessoas mais velhas” (“Caloira” de uma Instituição Politécnica Privada) Para alguns dos nossos entrevistados, é precisamente esta faceta de aprendizagem que justifica que a praxe também contenha momentos de desconforto. Eles servem para consolidar a lição, cimentar os valores transmitidos e repreender condutas que os contrariem. Como nos disse um praxista, colocar alguém de quatro “faz parte da educação”, pois acontece quando o “caloiro” “fez alguma coisa que não devia ter feito”. Demonstra-se assim a natureza socializadora da praxe, apreendida tanto pelos “caloiros” como pelos seus colegas mais velhos, enquanto mecanismo que transmite determinados valores, favorece certas condutas e ensina competências. No entanto, pode ser questionado até que ponto os estudantes do ensino superior estarão realmente conscientes do conteúdo moral deste ritual, sendo discutível que ele transmita todos os valores que lhe são atribuídos e podendo igualmente veicular mais alguns de forma inadvertida. Este é um tema a que voltaremos no próximo capítulo. 108 3.3.7. A praxe como teste de entrega e fidelidade Muitos estudantes que participam ou participaram na praxe não consideram que dela façam parte situações de humilhação. Muitos chegam mesmo a dizer que estas não podem ser classificadas como praxe, mesmo que ocorram no seu contexto, vendo-as antes como incidentes que também podem acontecer nos mais variados quadros. Argumentam ainda que é necessário diferenciar os momentos da “praxe de gozo”, mais frequentemente associados a humilhação, do conjunto da “praxe” enquanto instituição, caracterizada como um sistema de valores assentes no espírito de grupo, de camaradagem e de solidariedade. Quanto às praxes mais duras, muitos estudantes não as consideram humilhantes justamente porque não são feitas com a finalidade de ofender a dignidade física, psicológica ou emocional dos caloiros. Elas consistem em testes de entrega e fidelidade ao grupo sem qualquer intenção de afrontar a dignidade do “caloiro” ou em lições que devem ser aprendidas, ou então são vistas como uma encenação, uma mera brincadeira. O carácter de simulacro de tais práticas ocorre justamente na base da premissa de que a pessoa tem de ser posta à prova e ultrapassar desafios para começar uma nova etapa da sua vida e ser aceite pelos “superiores”. Os testes a que os novos estudantes são sujeitos devem ser proporcionais aos níveis de entrega à instituição e ao coletivo onde se pretendem inserir e integrar. A força do candidato à entrada depende da sua dedicação, determinação, entrega, fidelidade, lealdade, esforço e sacrifício perante as provas a que é sujeito pelos seus superiores hierárquicos. Dai que seja possível assistir, na praxe, a provas de esforço e sofrimento que levam os “caloiros” ao limite. “Eu numa equipa vejo muito [que] os treinos físicos muitas vezes é que unem a equipa estás a entender? Porque toda a gente está aí a passar mal (…) A questão ali é mais uma questão de fortaleceres o grupo, estás a entender? (…) Tens ali uma fase de testares o grupo, para o grupo ganhar mais elos estás a entender?” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) A necessidade de se organizar um ambiente onde estes valores possam ser testados faz com que muitas vezes o que se consideram “brincadeiras” possam rapidamente ser vistas e interpretados como humilhações. No entanto, como afirma um antigo Dux de uma universidade em Lisboa com quem conversámos: 109 “A hierarquia é ilusória porque no trato pessoal, à margem dos cânticos e das performances, todos se tratam de igual para igual. A praxe no fundo é um teatro, tem os seus símbolos e rituais, para facilitar a integração das pessoas e transformar pessoas introvertidas em pessoas mais extrovertidos na relação com os outros” (Antigo Dux Praxis de uma Instituição Universitária Pública) Muitos estudantes nos dizem que a rigidez da praxe se dilui nas atividades festivas e nos copos que vão tomar a seguir com os mais velhos. Em alguns desses ambientes toda a gente é tratada como igual e desfaz-se a rigidez da praxe. Trata-se de uma suspensão temporária da ordem e da disciplina que caracteriza as relações entre veteranos e caloiros no contexto praxístico. Esta suspensão contribui para a perpetuação do fenómeno justamente porque apresenta a relação entre os mais velhos e os caloiros como sendo baseada na horizontalidade, na amizade e no companheirismo. A praxe, por seu turno, é excecional porque se trata apenas de uma encenação. Essa perceção de que, no fundo, a relação entre veteranos e caloiros é horizontal, leva o caloiro a aceitar todas as ordens porque pressupõe que nenhuma é dada com o intuito de o maltratar, humilhar ou ridicularizar. Afinal de contas, estão apenas a brincar e depois da praxe são amigos: “A primeira semana é durinho, mas depois é tanto tempo de convívio… Tu chegas ao final da praxe e já somos amigos. (…) Pá: “o caloiro portou-se bem”; “mais ou menos”; “pá, mereceu o respeito”. Pá, fica uma relação amigável. [Nas Melícias] és um bocadinho mais agressivo [mas] é mesmo só para dar aquela emoção à coisa. Depois normalmente acabamos sempre com a brincadeira (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Num dos casos estudados tivemos oportunidade de entrevistar uma caloira e mais tarde de falar com os pais. Este dilema nunca ficou tão claro como nessa ocasião. Em entrevista a jovem dizia-nos que tudo corria bem, não tinha havido excessos, apenas esforço em nome da união do curso. Em conversa com os pais, estes relataram que a jovem, nos dias das provas mais duras, chegava a casa a chorar, mas continuava a ir porque tinha de aguentar como todo o grupo aguentava. 3.3.8. O carácter único e excepcional da experiência vivida Na opinião de muitos estudantes, a experiência da praxe foi única e excecional no sentido em que foi percecionada como sendo uma praxe diferente de todas as outras. Na sua opinião não se pode confundir os relatos que vêm a público relacionados com 110 situações de humilhação, violência e abuso, com a verdadeira praxe que viveram. O argumento usado é recorrente e ouve-se em quase todos os pontos do país: “aqui a praxe é diferente”. “A praxe na minha faculdade é muito mais suave do que noutras faculdades, é mais tolerante. É menos rígida. É mais… as coisas são mais calmas. Estamos aqui para nos divertirmos”. (Caloira de uma Instituição Universitária Privada.) “Vi situações de colegas meus que foram estudar para outras universidades onde, de facto, as coisas que eles me contaram e contam do que se passa lá e que, na altura em que a praxe foi mais criticada, onde houve um Prós e Contras aqui no nosso Teatro Académico Gil Vicente, e onde foram divulgadas imagens de praxes praticadas noutros locais onde eu, de facto, posso admitir que não me identifico com aquilo. Mas lá está: não me identifico com aquilo ao ponto de, tendo em conta aquilo que está estabelecido no meu código de praxe, e que eu estou habituado a ver por Coimbra e maioritariamente no meu curso, não conseguir sequer conceber e considerar aquilo como praxe”. (Vice-presidente de um Núcleo de Estudantes e praxista de uma Instituição Universitária Pública) Quem defende esta perspetiva salienta que há praxe bem feita e mal feita, reivindicando para si a primeira, ou seja, aquela que é verdadeiramente integradora, e que reforça o espírito do grupo e do curso. As situações abusivas que se admite existirem noutros cursos, instituições ou academias são contrastadas com as chamadas “praxes solidárias”, que consistem em ações de caridade e de voluntariado para causas consideradas justas. Os estudantes que partilham este tipo de discurso acentuam a sua intolerância relativamente às situações que consideram abusivas e lembram que abandonaram práticas que, ao longo do tempo, foram considerando como impróprias ou ofensivas. Consideramos que este apelo ao carácter de excecionalidade da “sua” praxe em relação à praxe “dos outros”, relatada na comunicação social ou nas redes sociais, funciona como um mecanismo que reforça o sentido do grupo, uma vez que quem se envolve nas atividades acredita que está de facto a organizar ou a participar em algo que se distingue pela positiva. Essa singularidade da experiência vivida desperta por vezes um sentimento de orgulho relativo à “sua” praxe e aos seus resultados. E esse sentimento reforça a participação, contribuindo também para que os caloiros aguentem os momentos mais difíceis - que também existem - por acreditarem estar a participar numa praxe exemplar. 111 Mas, sendo a praxe de cada curso ou instituição considerada excecional no sentido em que é diferente de todas as outras, ela também pode ser assim descrita a partir de uma outra perspetiva. A praxe é entendida, por vários estudantes, como uma vivência irrepetível, não só porque que não acontece mais do que uma vez, mas também porque proporciona um conjunto de relações interpessoais, aprendizagens e experiências que ficarão entre as mais importantes e gratificantes das suas vidas. Estas começam logo quando se é “caloiro”, período descrito por vários estudantes como o melhor das suas vidas e, pelo menos para alguns, continuam quando passam a praxar os seus colegas mais novos: “Aquilo que lhe posso dizer, pela minha personalidade, é que adorei ser doutor. Eu adorei a possibilidade de proporcionar aos miúdos que vieram a seguir a mim aquilo que me proporcionaram a mim, fazer o máximo e lidar com a comunidade e… aprendi demasiado para, apesar de o ano de caloiro ter sido o melhor ano da minha vida per se, aprendi demasiado e cresci demasiado para não poder dizer que ser doutor foi a melhor experiência da minha vida até agora”. (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública que ainda mantém uma presença nas estruturas de praxe) Assim, não surpreende que a praxe seja descrita por alguns estudantes como uma experiência transformadora das suas próprias personalidades, ajudando-os a vencer as suas inibições e transformando-os em pessoas mais confiantes e expansivas: “Quando eu entrei aqui, eu era super tímida. Se calhar, se fosse caloira hoje, eu não ‘tava aqui a falar consigo, porque eu era mesmo muito tímida. Muito. E agora eu falo p’ra toda a gente, falo para os caloiros, falo para os doutores, sem problema nenhum” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Esta valorização da praxe enquanto experiência excecional pode ser melhor entendida se tivermos em conta a fase da vida em que ela ocorre. A chegada ao ensino superior, para além de ser tipicamente uma parte importante dos projetos de vida, proporciona em muitos casos uma maior autonomia face à família, a multiplicação de contactos pessoais, novas vivências. Para muitos estudantes, a praxe é o primeiro contexto de sociabilidade – e de socialização - que encontram na universidade, marcando indelevelmente uma nova realidade. E se a praxe é caracterizada por momentos rígidos e disciplinados, também tem um importante componente convivial, e ainda uma vertente festiva e carnavalesca, com momentos intensos de “efervescência coletiva” (Durkheim, 112 2002), que nos permitem perceber melhor o porquê deste discurso. Por outro lado, quem continua na praxe como “doutor” envolve-se em grau variável numa empresa coletiva de dimensões consideráveis, muitas vezes pela primeira vez, adquirindo novas competências e solidificando os laços e o sentido de pertença a um grupo construídos enquanto caloiro. Resta-nos ainda referir que o caráter de excecionalidade atribuído à praxe – nos dois sentidos aqui explorados – contribui ainda para que muitos estudantes praxistas defendam que ela se trata de uma experiência muito peculiar e, por isso, difícil de compreender por quem está de fora, o que redunda frequentemente num lugar-comum que ouvimos por diversas vezes, em vários pontos do país: “só quem foi praxado é que pode compreender verdadeiramente o que é a praxe”23. Ora, também nos deparámos com alguns estudantes que levaram esta linha de argumentação mais longe, dizendo mesmo que só quem foi praxado é que pode legitimamente opinar sobre a praxe. 3.3.9. A praxe como tradição a preservar Outro aspeto que é por vezes evocado pelos estudantes que participam na praxe quando racionalizam a sua adesão ao fenómeno é a sua carga tradicional. Nesta perspetiva, a praxe é interpretada como parte de um conjunto de usos e costumes que marcam, desde tempos remotos, a vida dos estudantes do ensino superior. Desse conjunto de tradições fazem parte igualmente elementos como as tunas ou a capa e batina, sendo valorizados enquanto marca identitária específica das vivências estudantis. “[A praxe] é um conjunto de processos que começa por ter como objetivo principal a malta nova que chega, e a inclusão dela no sistema da praxe. Cujo objetivo é manter uma estrutura que mantém vivo um conjunto de tradições, que têm um significado cultural que vai para lá da receção ao caloiro e do gozo ao caloiro. Nascem ali, embora se possam autonomizar mais ou menos. Temos um conjunto de atividades sociais que se podem autonomizar e fazer em todo um conjunto de cenários, mas ali também são feitas. O objetivo principal, para o primeiro ano, na minha perspetiva, é integrá-los e fazer com que se possam conhecer, e dar-lhes a conhecer uma forma diferente de viver, de estar na faculdade. Que é pela praxe. É desenvolver atividades de uns anos para os outros. É passar a história disto, como ela nos foi sendo passada – e modificada – de uns para os outros” (Antigo estudante praxista do de uma Instituição Universitária Pública) Este argumento é facilmente refutável, como julgamos que se compreenderá. A este respeito diremos apenas que se a perspetiva desenvolvida por quem protagoniza os fenómenos sociais fosse, por si só, suficiente para compreensão desses mesmos fenómenos, as ciências sociais seriam inteiramente desnecessárias. 23 113 De acordo com esta perspetiva, a praxe contém um conjunto de práticas e símbolos que evocam a originalidade das vivências dos estudantes de gerações passadas, possuindo por isso um valor intrínseco e um interesse cultural que fazem com que seja percebida como património. No caso de Coimbra, onde a cidade e a academia convivem ao longo de séculos, este património estudantil confunde-se com o próprio património da cidade. Compreende-se, portanto, que um dirigente estudantil e membro da praxe tenha afirmado que “aquilo de que eu gosto mais na praxe de Coimbra é mesmo a ligação à cidade e à tradição; eu valorizo muito porque eu nasci em Coimbra, cresci em Coimbra e, como tal, a história de Coimbra diz-me muito e faz parte de mim.” Com a revitalização da praxe em Coimbra a partir do início dos anos 80 e a consequente expansão triunfante a todo o país nessa década e nas seguintes, aquela academia converte-se na principal inspiração de todas as outras que, ainda assim, procuram encontrar nas realidades locais aspetos que lhes permitam distinguir-se da sua principal referência24. Conscientes disto, alguns estudantes desta cidade não deixam de reivindicar uma certa autenticidade no que diz respeito à praxe e a outros costumes estudantis, diferenciadora da sua academia. “Com outros nomes, mas [as trupes] existem noutros sítios. Por exemplo, no Porto também existem. Também se chamam trupes, mas funcionam de forma diferente. Sei que em Évora não se chamam trupes, têm outro nome, mas existem umas estruturas de fiscalização noturna, também. Não conheço muito mais sítios onde isso exista. É assim: nem que quisessem inventar alguma coisa específica para lhe dar origem é um bocado complicado, porque as trupes, aqui, têm a ver com os estudantes se terem substituído à polícia académica. Em mais nenhum sítio houve polícia académica a não ser em Coimbra” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Como diriam Hobsbawm e Ranger (1983), inventaram-se assim diferentes tradições de praxe que se apropriaram de vários aspetos da história coimbrã, recriando ou adaptando os seus significados. Convém aqui lembrar duas caraterísticas fundamentais das tradições, identificadas pelos autores acima referidos: para além de, muito frequentemente, a sua origem histórica ser muito mais recente do que elas reivindicam para si próprias, a sua função consiste em legitimar práticas e instituições Esta articulação da forte influência de Coimbra com a procura de uma originalidade localmente enraizada foi descrita por Ribeiro (2000) no caso da academia de Braga e mencionada também por Revez (2000) na sua investigação sobre a praxe de Évora. 24 114 contemporâneas. No caso da praxe pode-se mesmo falar de uma tradição inventada e reinventada a todo o momento, na medida em que as práticas se transformam à medida que as gerações se renovam, processo que é facilitado pela transmissão oral. Como nos disse um dos nossos entrevistados: “[A praxe] é um sistema muito dado ao formalismo, ao embelezamento, o que depois também melhora a sua imagem, a sua atratividade. O mistério é uma coisa… aquilo é muito hermético para quem está de fora, o que se compreende, e isso também contribui para o sentimento de pertença. Ao mesmo tempo, as pequeninas justificações históricas, que na sua esmagadora… não posso dizer na sua esmagadora maioria, mas há muitas delas que não são tão literais como nós gostamos de contar, mas ajudam a embelezar muitas coisas das regras que nos chegam aos dias de hoje, e que são tipo… porque raio é que em pleno ano de 2016 me estás a dizer que não é suposto um caloiro estar fora da casa depois das 10 da noite, quando obviamente que nunca, em momento algum, isto é levado a sério? É para explicar que os deslocados, por causa disto e daquilo, e por aí fora. Isto embeleza a coisa do ponto de vista das curiosidades históricas, muitas. Ao longo dos anos, como estou fora, vou a um jantar de longe a longe, e ouço para a mesma coisa uma explicação completamente diferente daquela que me contaram a mim, passada como se fosse a maior verdade absoluta.” (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública)25 São vários os entrevistados que consideram que a praxe tem um valor tradicional que justifica por si só a sua preservação, mas não defendem que ela deva ser conservada de forma imutável. Pelo contrário, argumentam que a praxe deve sofrer modificações que, sem colocarem em causa a sua originalidade, possam torná-la compatível com o atual contexto sociocultural. Quer isto dizer que se advoga o seu ajustamento à sociedade portuguesa hodierna, compatibilizando-a com aquilo que são as suas regras, os seus valores partilhados e os direitos reconhecidos aos indivíduos. Assim, os nossos entrevistados aceitam seletivamente alguns aspetos da praxe, como, por exemplo, a sua hierarquia, ao mesmo tempo que rejeitam outros, como a violência que marcava os rituais que a inspiraram. No seu entendimento, as práticas que não são consideradas aceitáveis no momento histórico em que vivemos podem e devem ser abandonadas, embora alguns estudantes defendam que elas devam manter uma presença meramente simbólica e evocativa. Ainda que não seja o caso da instituição onde este entrevistado estudou, a hora de recolher é levada a sério em alguns contextos, como tivemos oportunidade de mostrar anteriormente. 25 115 “Há rituais que podem parecer violentos mas que podem estar devidamente adaptados de modo a que as pessoas sintam que aquilo era violento, mas que não sintam como violento dado o contexto em que estão. Eu acho que isso é possível. Só que isso demora tempo, para que as pessoas se consciencializem de que é nesse sentido que as coisas têm de evoluir. E... também demora tempo a arranjar alternativas sem que seja desvirtualizada [sic] a origem daquilo que lhe deu origem.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Os estudantes têm, portanto, consciência de que a praxe é uma tradição em permanente estado de reinvenção. E muitos deles consideram que as mudanças que ela tem conhecido vão precisamente no sentido de retirar da praxe os seus aspetos que possam ter uma carga mais violenta, ofensiva ou humilhante. “Quando eu entrei [na universidade] nós utilizávamos umas orelhas de cartão. Muita gente lhes chama orelhas de burro. […]. Agora utiliza-se cada vez menos. Isso foi uma das coisas que cada vez mais deixamos de fazer, utilizar orelhas. Basicamente, o que é que aquilo tinha? Tinha uma banda com umas orelhinhas para cima, e nós à frente escrevíamos o nosso nome de caloiro, ou de caloira. E, basicamente, tipo, andávamos com aquilo pela rua, pela cidade. Depois começaram os professores daqui… nós começámos a ser mais próximos dos docentes em algumas coisas, algumas pessoas que estavam na estrutura praxística, mais acima, e nós começámos também a pensar um bocadinho sobre isso. Oh pá, acaba se calhar por não fazer muito sentido os miúdos… primeiro não faz sentido chamar asnos, nem burros, nem outra coisa qualquer. Isso é aquilo que passa, que estes são uma quantidade de burros. Mas não são. Porque, primeiro, são pessoas, jovens, na sua maioria, que entraram no ensino superior. Logo completaram pelo menos doze anos de formação académica, escolar, e estão a entrar no percurso superior da sua formação. Tiveram notas para entrar numa faculdade, independentemente das médias ou outra coisa qualquer. Logo, não são burros nenhuns. Ponto final. Logo, ninguém é burro, ponto final. É importante deixar isso. Nós deixamos de ter essas orelhas para evitar essas confusões e porque chegámos à conclusão: não faz sentido.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Mas, como referimos, os estudantes pensam que as modificações não devem ameaçar aquilo que é entendido como a essência da praxe, ou seja, a sua hierarquia e a sua natureza integradora. Ao zelarem pela originalidade da sua tradição, os estudantes estão também a preservar elementos da sua identidade socialmente construída que contribuem para que se sintam parte de um grupo específico, dotado de um estatuto e de um património que o distingue dos outros. E isto, naturalmente, não é de importância menor para que se possa compreender a participação, por vezes entusiástica e com 116 elevado nível de compromisso e empenho, dos estudantes na praxe, especialmente num contexto em que o estatuto do estudante do ensino superior se encontra mais ameaçado do que nunca pela massificação do ensino e pela desvalorização dos diplomas, isto num tempo em que muitas das referências identitárias tradicionais se perderam e é impossível prever com alguma segurança aquilo que o futuro irá trazer26. 3.3.10. A praxe como encenação Alguns estudantes apresentam-nos a praxe como uma encenação onde tudo – as atividades, as hierarquias, as ordens – não são mais do que um jogo que ocorre num contexto bem delimitado no tempo, e que se dissolve assim que os seus limites são transpostos. Neste sentido, tudo o que acontece na praxe tem de ser entendido num contexto de fingimento. Para além disso, alguns dos nossos entrevistados revelaram-nos que as próprias regras do jogo podem ser frequentemente quebradas sem que isso gere consequências para quem as viola. “Nós olhamos muitas vezes para os doutores. Só quando eles querem assim, não sei, pegar mais connosco… mas é em tom de brincadeira, em que dizem: “olha p’rós meus sapatos”, não sei quê, “não quero que conheças a minha cara”. Mas é muito em tom de brincadeira, não é muito sério” (“Caloira” de uma Instituição Universitária Pública) “Tudo isso [a praxe] é uma coisa muito inorgânica e acho que deve ser olhada assim, como uma brincadeira, um conjunto de costumes que é passado num contexto de brincadeira. O problema é que não é encarado dessa forma muitas vezes, e é encarado pelas próprias pessoas que praxam como uma doutrina, como uma espécie de caminho que se tem de fazer, para responder às hierarquias e isso tudo. Acho que não há mal nenhum em brincar com esse costume hierárquico numa lógica de “mas claro que tu és igual a mim, estás no mesmo patamar do que eu”. No fundo, uma encenação, uma atuação. Pelo menos foi sempre assim que eu encarei”. Vice-presidente de uma Associação Académica de uma Instituição Universitária Pública) Uma das razões apontadas pelos estudantes que entendem a praxe desta maneira para explicar a sua participação consiste no caráter divertido da encenação. Recebem ordens e podem, por vezes, passar por momentos desconfortáveis, mas tudo isso faz parte 26 A este respeito ver Martins (1993) e Estanque (2016). 117 de um jogo em que aceitaram participar e cujas regras têm, por isso mesmo, de cumprir. Nestes casos salienta-se o caráter lúdico da praxe, mas é importante esclarecer que nem todos os estudantes que aludem a este ritual enquanto um jogo que depende da vontade de participar e aceitar as regras dos seus participantes a consideram uma mera brincadeira. Esta perspetiva surge igualmente no discurso de praxistas que, embora considerem a praxe uma lição de vida ou um instrumento que permite a construção de um grupo coeso (ou ambos), também a vêm como um fenómeno que tem algo de encenado e representado: “É tudo fictício no sentido em que se limita a saber de praxe. Eu sou mais velho do que tu, logo sei mais do que tu. Neste contexto. E, por saber mais do que tu, vou-te… ensinar da maneira que acho melhor. Sendo que a maneira que cada pessoa acha melhor está coadunada com aquilo que são os nossos valores e nossa maneira de fazer as coisas.” (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública que mantém presença nas estruturas de praxe) Dentro desta linha de entendimento da praxe enquanto encenação, e quando confrontados com acontecimentos concretos observados, como os cânticos com letras sexistas e homofóbicas, muitos estudantes dizem que não são coisas para levar a sério precisamente porque quem praxa não tem o objetivo intencional de ofender ou humilhar27. A este respeito, alguns responsáveis pelas praxes apresentam duas justificações para aquilo que, visto de fora, pode parecer “excessivo”. Relativamente às músicas cujas letras são preenchidas com palavrões e insultos, argumentam que elas têm como objetivo proporcionar uma vivência sem qualquer constrangimento. Ao contrário da esfera pública, que é regida por regras e códigos de conduta, espera-se que na praxe as pessoas possam berrar quaisquer barbaridades justamente para se sentirem livres, descontraídas, extrovertidas e sem constrangimentos de nenhum tipo. 27 A questão do caráter humilhante da praxe é polémica. Por exemplo, João Luís Jesus, Dux Veteranorum da Universidade de Coimbra (UC), afirmou ao Jornal universitário A Cabra, a 17 de Abril de 2012: “A praxe é hierárquica, é machista, é sexista. São características intrínsecas à praxe da UC e quando isso deixar de existir, deixa de ser a praxe da UC”. No entanto, apesar daquilo que este interveniente define como “características intrínsecas”, muitos praxistas consideram que as humilhações e os vexames que possam ocorrer têm de ser interpretados como incidentes que nada têm a ver com a natureza da praxe. 118 “Eu acho que, muitas das vezes, os caloiros encaram certas coisas de que normalmente não gostam quase como uma libertação de coisas reprimidas. Às vezes apetecia-lhes berrar e não o podiam fazer e ali podem berrar à vontade que ninguém lhes vai dizer nada. Pá, às vezes é levado ao exagero.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública.) Alguns estudantes das várias cidades onde implementamos este estudo garantem-nos que os papéis e as regras que regem a encenação da praxe se aplicam apenas a ela, enquanto o que não lhe pertence também não a contamina Como vimos num ponto anterior, as saídas à noite, onde todos convivem como colegas, e não como “caloiros” e “superiores”, são mencionadas para comprovar esta ideia. No entanto, é sabido que os rituais, quando eficazes, criam efeitos sociais que não são negligenciáveis28. Nesta medida, seria ingénuo acreditar que as lógicas grupais e de poder ritualizadas que caraterizam de uma forma tão visível a praxe se esgotam assim que terminam as atividades praxísticas. Veja-se o que nos dizem a este respeito dois estudantes de academias distintas: “Está sempre presente a hierarquia da praxe. Agora, o jantar propriamente dito, ou agarrar em quatro ou cinco caloiros, “vá, oh caloiros, hoje vamos todos para minha casa, vamos fazer uma jantarada e depois sair à noite”, apesar de isso ser ambiente onde está presente a hierarquia da praxe, não é propriamente praxe. […] Foi a praxe que permitiu que houvesse uma relação entre aquelas pessoas […] [,] eles conheceram-se na praxe, através de uma estrutura hierarquizada. É perfeitamente normal que essa questão esteja sempre presente, independentemente de estarem a beber copos ou a jantar em casa. E é perfeitamente normal que... pá, já que o caloiro foi para lá e esteve a comer, a beber e a divertir-se, no fim ajuda a arrumar a casa e a lavar a loiça. E os outros evitam fazer esse serviço. “Pá, oh caloiro, estiveste a comer e a beber, 'tamos numa boa, agora lava a loiça”. Não vejo problema nenhum nisso. Eu quando vou jantar a casa de alguém também ajudo a lavar a loiça no fim.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Sobre os efeitos sociais dos rituais, ver Lévi-Strauss (1971; 2005); Durkheim (2002); Collins (2004); Leach (1966); Rivière (1997; 1998). 28 119 “Eu costumo fazer muito bem a distinção entre aquilo que é a minha forma de estar em praxe e aquilo que é a minha forma de estar fora. Lá dentro eu tenho um nome e eu tenho um estatuto, e as pessoas tratam-me por aquele nome e aquele estatuto. Eu continuo a ser o mais velho e se eu disser “cala-te” as pessoas calam-se, em termos de entrar no jogo. Cá fora eu sou o Orlando [nome fictício], e quero que as pessoas me tratem como Orlando, e não como excelentíssimo veterano ou outra coisa qualquer. Se for na brincadeira até pode ser, mas eu digo isto montes de vezes nos corredores, ao caloiro, ao doutor, a todas as pessoas: “é assim, o meu nome é Orlando, é o que está no meu cartão do cidadão”. Não é doutor, como às vezes as pessoas falam, nem excelentíssimo veterano ou outra coisa qualquer. Eu tento que as pessoas separem, porque acho isso fundamental, separar o contexto dentro de praxe e fora de praxe. Evitavam-se muitas confusões se as pessoas fossem mais capazes de fazer isso. Agora, eu admito - e eu próprio só consegui fazer isso quando estive um ano mais afastado da faculdade, um ano só a vir algumas vezes por mês aqui à faculdade - que para quem está dentro do jogo é muito difícil fazer essa separação. O que origina conflitos, origina confusões, origina as tricas que a gente tem, e por aí fora. E nem sempre é uma coisa positiva.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) Em nenhum outro aspeto será tão evidente que as lógicas da praxe podem por vezes contaminar a vida quotidiana dos estudantes como quando está em causa a regulação da vida afetiva daqueles que nela participam. Pelo menos em alguns contextos está instituída a regra de que os “caloiros” não se podem envolver romanticamente com estudantes que se encontrem acima de si na hierarquia praxística. A justificação apresentada para esta interdição é evitar que os primeiros sofram abusos por parte dos segundos. Porém, a regra pode por vezes ser estendida para proibir, igualmente, relações entre caloiros. Embora pareça ser frequentemente desrespeitada, ela não deixa de produzir os seus efeitos. “Entre os caloiros é assim: nós temos aqui pares de namorados que já namoravam antes. Portanto, yá, o que é que lhes vamos fazer? Houve uma altura em que houve pessoas que faziam também uma espécie de caça às bruxas. Então quase que faziam a vida negra, porque o caloiro namora com a caloira, mandavam umas bocas e não sei quê. Para algumas dessas pessoas que eu conheço foi um bocado delicado. Do ponto de vista formal, o que é que se faz? Quer seja caloiros com caloiros ou caloiros com doutores pode-se fazer uma carta azul de 25 linhas a solicitar autorização para namorar com a bênção do padrinho e da madrinha, do nosso senhor e não sei quê, para mandar ao Conselho de Veteranos e ao Dux. Isso foi uma coisa que se fez algumas vezes.” (Estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) 120 De todo o modo, os estudantes que partilham a visão de que a praxe é uma encenação chamam a atenção para a questão do contexto na interpretação das práticas que envolvem a interação hierarquizada de doutores e caloiros: situações que podem parecer autoritárias, ofensivas ou até humilhantes não o são porque decorrem num quadro muito especial, um jogo com regras que são partilhadas com todos e onde cada um aceitou desempenhar o seu papel. 3.4. A praxe segundo os estudantes: razões e contextos de ruturas e desistência Ao longo do processo de recolha de informação para este relatório tivemos a oportunidade de recolher testemunhos de alguns estudantes que aderiram à praxe e acabaram por a abandonar, por vezes ainda enquanto “caloiros”, outras vezes já depois de terem subido na hierarquia praxística. Esses testemunhos que explicam as desistências dos estudantes podem ser agrupados em quatro categorias distintas: (1) estudantes que abandonaram a praxe por contingências pessoais; (2) estudantes que desistiram da praxe por não se terem identificado com aquilo que ela lhes oferecia mas que não são especialmente críticos do fenómeno; (3) estudantes que, tal como muitos praxistas convictos, identificam uma “boa praxe” e uma “má praxe”, mas, ao contrário dos anteriores, acabam por sair impelidos pela segunda; (4) estudantes que recusam e condenam a praxe, considerando muitas vezes que ela não devia sequer existir. Os estudantes que se enquadram no primeiro caso abandonaram a praxe, por vezes contra as suas intenções, devido a algum problema que os impediu de continuar. Foram citados alguns problemas de saúde e também a incapacidade de cumprir os horários exigentes das atividades de praxe. Nestes casos pode existir um sentimento de tristeza ou até de arrependimento pela desistência. “Eu saí porque… foi provavelmente uma das piores decisões que eu tomei. Portanto, a praxe começava, imaginemos, às oito e um. E eu p’ra estar aqui às oito e um tinha de me levantar às seis da manhã. […] E hoje arrependo-me imenso de ver os meus colegas que vão para a praxe, arrependo-me imenso, mas naquela altura fui fraca, não quis estar a fazer aquele esforço de me levantar às seis da manhã e hoje perco por isso.” (Estudante não praxista de uma Instituição Universitária Pública) Relativamente ao segundo tipo-ideal, ele remete para os casos em que a praxe é vista como uma coisa relativamente inofensiva, mas, ao mesmo tempo, com a qual o 121 estudante não se identifica, optando por isso pela não continuidade nas suas atividades. Nestes casos a praxe pode ser descrita como uma coisa ridícula, aborrecida, ou as duas em simultâneo: “E depois tínhamos de cantar uma música, e cada um tinha de cantar uma parte da música a solo, e eu pensei: “não!”. Mas cantei, e agora sinto-me akward por pensar que cantei. Mas pronto, foi assim. Eu pensei: “eu já fiz tanta coisa na vida e agora vim p’raqui cantar debaixo deste alpendre, não tem nada a ver comigo”. Não sei. Depois chegou a uma altura em que começaram a falar p’ra mim: “ah, a caloira ‘tá a fazer não sei quê, tá-se a rir?”. E eu fiquei tipo: “sim!?”. Tipo, ‘tava no teatro, ‘tava no teatro em que eles tentavam fazer isto e aquilo e eu tinha de ‘tar a respeitar. Não é bruto, mas é assim mesmo, sei lá… com é que hei-de explicar isto? É assim parvo. E eu também não os conhecia de lado nenhum, sei lá. Quem és tu p’ra eu ‘tar a fazer o que tu dizes porque ‘tou na praxe?” (Dirigente de uma Associação de Estudantes de uma Instituição Universitária Pública) Como nos explicaram vários estudantes, nem todos os “caloiros” se mostram interessados em praxar de seguida. O sentimento de desajustamento em relação à praxe pode surgir numa fase posterior, quando já se ocupa um patamar superior na hierarquia e um novo papel. Como já referimos, muitos praxistas fazem uma distinção entre a praxe bem praticada e a praxe má praticada, acreditando que podem contribuir para a primeira e assim proporcionar uma experiência socializadora, integradora e divertida aos “caloiros”. No entanto, alguns estudantes que partilham desta apreciação da praxe podem acabar por se afastar por se depararem com situações de “má praxe” que não consideram admissíveis. Como exemplo deste tipo-ideal apresentamos os motivos que levaram um estudante que considera que uma praxe bem praticada é algo positivo a afastar-se das atividades: “Eu cheguei a um ponto em que, ao fim de vários anos, disse para comigo que aquilo não dava mais. Porque aconteceram certas e determinadas coisas na praxe que me fizeram pensar se valia a pena estar inserido num grupo que praticava certas e determinadas ações. Pronto. Não sei se foste praxista ou não, ou se continuas a ser, mas, se calhar, se estivesses presente em certas situações, ou se te fossem apresentadas certas situações que aconteceram na praxe da minha faculdade, tu se calhar pensavas o que é que estavas ali a fazer. Foi o que me aconteceu.” (Presidente de uma associação de estudantes de uma Instituição Universitária Pública) 122 Por fim, apresentamos o último dos quatro tipos-ideais: aquele que compreende os estudantes que, após experimentarem a praxe, acabaram por construir uma visão de tal forma crítica da mesma que os leva não só a recusá-la como a condená-la de forma inequívoca. Este tipo de posição pode ser construído na sequência de uma experiência de praxe mais sofrida, como mostram as seguintes palavras: “E foi esta a ideia com que eu fiquei da praxe. É assim, se me deu algo de bom? Não, não me deu algo de bom. Eu não fiquei integrada, os meus amigos não foram os da praxe, a única coisa que eu senti foi mesmo humilhação e estar a obedecer a alguém que é mais velho que eu um ano ou dois, ou a outros como veteranos e et cetera, que andam aqui a pastar, passe a expressão”. (Estudante não praxista de uma Instituição Universitária Pública) Porém, também encontramos casos em que a condenação absoluta da praxe pode surgir dissociada de uma má experiência de praxe. Vejamos o caso de um residente numa República sem uma posição coletiva sobre a praxe29: “No primeiro ano fui praxado, passei pelo processo todo de praxe. Admito que, tirando alguns insultos e alguma diarreia mental do ponto de vista discursivo, nunca me senti propriamente humilhado. Nunca ninguém do meu curso me pôs de quatro. Nunca me senti humilhado no sentido de: “ok, ‘tou a fazer uma figura tão ridícula que me estou a sentir mal”. Isso nunca aconteceu no meu caso. Nunca praxei. No meu primeiro ano fui-me descartando cada vez mais da praxe porque, não tendo tido essa perceção na praxe do meu curso, tive-a nas outras: a extrema agressividade, a forma como te tratam sem qualquer legitimidade. A parte que me chateia é a questão da legitimidade, que é: é incompreensível, para mim, tu poderes cometer atos que são passíveis de ser crime numa praxe. Não podes fazer no teu dia-a-dia, é crime! É uma questão de direito. É uma questão básica, isto é uma questão de direito. Há atos na praxe que deviam ser criminalizados. A praxe promove uma prática que é o bullying, e de uma forma bastante agressiva. E bullying é crime. A praxe promove uma violência sexista. A praxe é machista em todos os aspetos. Todos!” (Antigo estudante não praxista de uma Instituição Universitária Pública) As Repúblicas são casas comunitárias de estudantes. Algumas delas encontram-se filiadas na praxe, outras condenam-na, e outras ainda não se obrigam a qualquer posicionamento sobre este fenómeno, permitindo que os seus residentes adotem individualmente a postura que melhor entenderem. 29 123 Devemos ainda referir que existem estudantes que abandonam a praxe de “gozo ao caloiro” antes do momento imposto pelos “doutores”, ou que decidem não praxar depois de subirem na hierarquia, mas que ainda assim aderem a outros aspetos da tradição académica, como o uso do traje, o cortejo ou a cartola. “Eu vesti sempre o traje. Cumpri determinados parâmetros da praxe, determinadas cerimónias. Participei nos cortejos. Participava trajado. Pontualmente andava trajado […]. [Fui] praxista nesse sentido. Recusava-me a praxar pessoas. Recusava-me. Não tinha qualquer tipo de sentido.” (Antigo estudante de uma Instituição Universitária Pública) Estes casos mostram-nos que, ao contrário do que se possa pensar, a chantagem que ainda existe em alguns locais, e que consiste em procurar impedir que os estudantes que não se querem submeter à praxe possam depois beneficiar de certos costumes estudantis, não é despiciente. De facto, esses costumes, enquanto símbolo de status e de promessa de mobilidade social ascendente, e enquanto elementos de uma tradição com um componente identitário importante para muitos estudantes, exercem um certo fascínio sobre muitos alunos do ensino superior que almejam vestir o traje ou desfilar no cortejo, numa celebração do seu percurso escolar que se estende às suas famílias. Importa ainda fazer uma breve reflexão sobre as condições em que a desistência da praxe ocorre. Por um lado, existem contextos onde ela se pode processar de uma forma simples e amigável, sem gerar ressentimentos de parte a parte: “Nunca houve animosidades, nunca me senti excluído, porque também soube explicar porque é que não queria lá estar. Eu fui a jantares de curso sendo anti-praxe. Havia um grupo de repúblicos anti--praxe e, durante dois anos, fomos aos jantares, sem trajar. Pá, eu não me quero dissociar das pessoas só porque temos uma ideia diferente sobre um assunto como a praxe” (Antigo estudante não praxista de uma Instituição Universitária Pública) Porém, casos existem em que a pressão para a não desistência pode ser muito grande, tendo até em conta as expectativas dos estudantes sobre a sua inserção e integração no meio académico e, por outro lado, os custos simbólicos e sociais que – mais numas Instituições de Ensino Superior do que noutras – tal decisão pode acarretar. 124 “Até podem nem gostar, até podem nem se sentir bem, muitos até choram, mas depois dizem assim: “quero fazer latada”; “quero trajar”, “quero fazer parte de um grupo”; “eu tenho que fazer praxe”. Ou seja, é aquela opção do género: tens aqui um papel à tua frente, se quiseres assinas e és anti praxe, mas se assinares…” (Antigo estudante praxista de uma Instituição Universitária Pública) A praxe garante um conjunto de compensações a que se acede caso os estudantes superem as dificuldades. Neste caso, apesar de a existência de uma “declaração antipraxe” servir, na ótica do estudante praxista, para “não haver problemas quer para um lado quer para o outro”, e de o “caloiro” poder dizer “já me declarei anti-praxe pá, não faço praxe não me chateiem mais”, a verdade é que nem sempre este mecanismo é usado. Uma das estudantes que nesta academia decidiu desistir da praxe relatou-nos que não assinou nenhuma declaração. Decidiu sair pelo ambiente da praxe do seu curso. No primeiro dia, o professor apenas se apresentou e informou os alunos que não ia dar aula, deixando entrar os alunos mais velhos para levarem os mais novos para as primeiras atividades de praxe. “Sinceramente, eu chegava a casa super psicologicamente desgastada e achei que sinceramente não valia a pena. Porque, ainda por cima, estava a entrar numa fase da minha vida que era suposto, pronto estar a entrar na fase adulta e assim. Ter independência e liberdade e não sei quê, e depois chegas ali estão-te a obrigar a fazer coisas que tu não queres e assim. […] Era estar no chão, tipo de quatro ou de três ou não sei quê […]. Depois lembro-me também de um jogo, estávamos no jardim do lago e basicamente estávamos em roda e faziam uma pessoa ir ao meio fazer posições sexuais. […] Não poder olhar para a frente, isso é que me fez um bocado de confusão” (Estudante não praxista de Instituição Universitária Pública) No seu caso a vivência da praxe revelava-se dissociada com a experiência que esperava viver no ensino superior: uma transição de vida assente no reforço da independência, na autonomia e liberdade. Na sua praxe foi obrigada a fazer coisas que não queria, sentia-se psicologicamente desgastada, assistiu a praxes sexualizantes e não compreendia as regras de tratamento e reverência ao superior hierárquico. A circunstância de estudar na sua cidade de origem, onde tinha uma rede familiar e de amigos, ajudou-a a tomar a decisão de rutura. Quando decidiu informar o responsável da praxe que queria sair, ele reagiu dizendo “você tem noção que depois não pode trajar?”. Mas ela comprou o traje, sobretudo pela importância para a família, e ninguém a impediu de trajar, apesar 125 de ter sido alvo de alguns comentários de estudantes mais velhas ressentidas com o facto dela não ter completado o ano de “caloiro”. Síntese conclusiva Em termos gerais, podemos afirmar que os discursos e as atitudes de estudantes, dirigentes de Instituições de Ensino Superior e dirigentes de Associações de Estudantes e Académicas em relação à praxes académicas são muito diversificados e apontam para diferentes modos de relação com este fenómeno social. Se em alguns casos se identificam discursos de maior aprovação, que se materializam em atitudes de legitimação e normalização do fenómeno; noutros casos os discursos apontam para uma crítica à sua génese, que se materializa em atitude de condenação e combate às suas expressões no Ensino Superior português. No que respeita aos dirigentes das Instituições de Ensino, foi possível sinalizar três atitudes claramente distintas. A mais comum foi uma “atitude de integração preventiva”, isto é, muitos dirigentes defendem que se as praxes forem integradas e regulamentadas pela instituição, tornar-se-á mais fácil prevenir situações de violência ou de abusos que possam ocorrer. Paralelamente, foi possível identificar uma “atitude de legitimação e normalização institucional”, que se baseia no enquadramento e na aceitação do fenómeno da praxe como fazendo parte natural da vida da instituição. As instituições reúnem com as estruturas da praxe académica, articulam iniciativas e, em alguns casos, funcionam como ponte com os órgãos do poder autárquico para a cedência de espaços para determinadas iniciativas. Finalmente, assinala-se uma “atitude de rejeição e condenação absoluta”, que assenta numa refutação da ideia de que há “uma praxe boa” e “uma praxe má” e que, pelo contrário, interpreta a praxe como um sistema de poder inaceitável e incompatível com os valores da academia. Os dirigentes que partilham desta atitude geralmente não autorizam práticas de praxe no campus e não reconhecem as suas estruturas de organização. Quanto às Associações Académicas e de Estudantes, a atitude identificada como maioritária é favorável ao fenómeno da praxe, considerado útil e desejável para a integração dos estudantes. Em muitos casos, os dirigentes associativos participam ou participaram nas estruturas da praxe, reúnem com elas e apoiam as suas iniciativas. Paralelamente, verificou-se uma “atitude equilibrista”, baseada numa posição neutra ou de não interferência em relação ao fenómeno justamente por se considerar que missão das Associações é representar todos os estudantes, praxistas e não-praxistas, e não apenas 126 uma parte da comunidade estudantil. Para além disto, foi possível escrutinar, em alguns casos, uma dissociação entre discursos e práticas, justamente porque muitas associações que alegavam uma posição neutral contribuíam para um conjunto de mecanismos indiretos de legitimação, tais como a cedência de instalações e materiais ou o apoio a iniciativas das estruturas de praxe. Ainda no que respeita às interdependências entre a praxe académica e o associativismo estudantil, foi possível observar três características. Primeiro, identificaram-se casos em que as comissões de praxe têm uma relação umbilical com as Associações Académicas e de Estudantes. Um segundo aspeto diz respeito ao facto de o fenómeno da praxe ter uma grande influência na vida associativa, nomeadamente em processos eleitorais. Finalmente, muitas Associações de Estudantes abdicam ou não têm capacidade de promover iniciativas próprias de receção, deixando às comissões de praxe o “monopólio” das atividades de integração dos novos alunos. A adesão dos estudantes à praxe académica pode ser também explicada por diversos motivos. Um primeiro prende-se com a eficácia que ela garante na integração na instituição e na comunidade a que chegam. Aos sentimentos de incerteza, insegurança, inquietação ou vulnerabilidade perante um mundo simbólico desconhecido, a experiência da praxe ativa os laços de pertença de quem chega e reforça a pertença a uma identidade coletiva. Paralelamente, a praxe é vista pelos estudantes como um ritual iniciático e de passagem, que tende a marcar uma transição para uma nova fase de vida. Sinónimo de rutura com a juventude adolescente e de entrada numa fase adulta do desenvolvimento da personalidade, a conquista da universidade é associada ao reforço da autonomia face aos seus contextos sociais anteriores. Esta “nova etapa da vida”, símbolo inclusive da ascensão social almejada (particularmente num contexto de massificação do acesso ao ensino), é acompanhada de rituais de passagem que tendem justamente a marcar essa transição de ciclo. A força dos ritos associados à praxe resulta de uma aceitação generalizada da ideia de que quem chega à universidade, o novato, deve ser investido de um novo estatuto social e simbólico, passando a ser reconhecido como membro do conjunto da comunidade de chegada. Além disso, para muitos estudantes a praxe parece ser um fenómeno normal e natural no seu processo de chegada, justamente porque ele é frequentemente enquadrado por um sistema de legitimação e normalização que envolve o conjunto da comunidade académica (direções, associações de estudantes, núcleos de estudantes, etc.) e muitas vezes da própria comunidade local (autarquias, espaços comerciais circundantes, etc.). 127 Este sistema de legitimação e/ou normalização do fenómeno na vida da instituição, aliado à ausência ou ineficácia de uma alternativa prolongada de integração dos novos alunos, acaba por transformar a praxe num fenómeno central, normal e natural no processo de chegada à nova instituição. A praxe é ainda percebida pelos estudantes como um momento único, na medida em que corresponde a uma encenação bem delimitada no espaço e no tempo, uma espécie de jogo que pode ser visto como uma brincadeira ou de forma mais séria e onde cada um desempenha um papel aceite desde o início. Sendo um acontecimento excecional, a praxe proporciona vivências percebidas também elas como excecionais. Assim, a praxe de cada academia, instituição ou curso é tida, por quem a viveu, como um momento único, gerador de experiências irrepetíveis e geralmente muito valorizadas. Esta perceção não se pode dissociar da fase de transição e descoberta vivida pelos sujeitos, nem da própria natureza da praxe, designadamente dos sentimentos de pertença que gera e dos momentos de celebração coletiva que contém. De igual modo, é referido o cariz nivelador da praxe, pois através do traje não há traços que distingam as origens sociais dos estudantes e todos os “caloiros” são iguais, constituindo um corpo que deve ser uno, solidário e indivisível. A praxe é ainda representada por muitos/as como um ensinamento da vida e para a vida. É um ensinamento da vida porque não se pode desligá-la dos rituais do mundo escolar onde os estudantes foram socializados e do mundo académico no qual ela emerge. O mundo académico é profundamente depositário de uma rigidez assente, por um lado, numa forte hierarquia no seu interior, e por outro lado, numa certa solenidade que procura marcar uma distinção em relação ao exterior. A vivência da praxe reflete a vivência da própria universidade na qual emerge e através da qual se reproduz. Além disso, a praxe é também um ensinamento da vida no sentido em que os próprios jovens que nela participam mimetizam a ideia incorporada da forma como se organiza a própria instituição escolar prévia à entrada no ensino superior. Mas a praxe é entendida também como um ensinamento para a vida na medida em que reproduz as dinâmicas sociais mais vastas, antecipando o futuro laboral esperado. Vários estudantes consideram que a praxe ensina a importância do respeito ao superior hierárquico e ao mais velho, a obediência à autoridade e a lealdade e fidelidade ao grupo. Essas são as aprendizagens que, no imaginário de muitos destes jovens, surgem associadas ao mercado de trabalho e à sua próxima fase de vida. 128 Os estudantes também valorizam a praxe como um conjunto de usos e costumes tradicionais relacionados com a sua identidade coletiva. Nesta perspetiva, a praxe é interpretada como parte de um conjunto de tradições que marcam, desde tempos remotos, a vida dos estudantes do ensino superior. Ao zelarem pela originalidade da sua tradição, os estudantes estão também a preservar elementos da sua identidade socialmente construída que contribuem para que se sintam parte de um grupo específico, dotado de um estatuto e de um património que o distingue dos outros. E isto, naturalmente, não é de importância menor para que se possa compreender a participação, por vezes entusiástica e com elevado nível de compromisso e empenho, dos estudantes na praxe, especialmente num contexto em que o estatuto do estudante do ensino superior se encontra mais ameaçado do que nunca pela massificação do ensino e desvalorização dos diplomas e num tempo em que muitas das referências identitárias tradicionais enfraqueceram e é impossível prever com alguma segurança aquilo que o futuro irá trazer. A maioria dos estudantes que participaram neste estudo salienta o cariz voluntário da praxe, referindo ter optado por participar nela de forma livre. Por outro lado, alguns daqueles que decidiram abandoná-la salientam como razões da rutura determinadas contingências pessoais que não lhes permitiram continuar. Outros dizem ter desistido por terem considerado a praxe ridícula e/ou aborrecida, embora inofensiva. Contudo, há também quem, embora vendo aspetos positivos na praxe, tenha alegado que assistiu a situações de “má praxe” que considerou inadmissíveis, tendo-se por isso afastado. Outros viveram situações de violência e desgaste psicológico que os levaram a assumir uma atitude de crítica, condenação e rejeição do fenómeno, embora tal postura não surja sempre associada a uma vivência mais sofrida da praxe. 129 CAPÍTULO IV AS PRÁTICAS E RITUAIS DE PRAXE ACADÉMICA Ao longo do trabalho de campo realizámos cerca de seis dezenas de sessões de observação através de uma abordagem metodológica baseada na pesquisa observacional. Analisaramse diversos tipos de rituais e práticas de praxe em seis distritos do país, abrangendo estudantes de mais de duas dezenas de instituições, com o objetivo de diversificar os contextos de observação do ponto de vista social e geográfico 30. Alguns destes rituais envolviam alunos apenas de uma escola ou até mesmo de um determinado curso do ensino superior. Outros tinham entre os seus participantes alunos de uma universidade ou de um politécnico. Por fim, certos rituais processavam-se ao nível da academia, envolvendo alunos de várias universidades e institutos daquela cidade e, num caso, até alunos de instituições exteriores à academia em causa. A pesquisa observacional aqui empreendida baseou-se numa interpretação da dimensão ritual da praxe académica. Isto é, entende-se o fenómeno da praxe como uma sociabilidade ritualizada geradora de “efervescência coletiva”31, dotada de eficácia simbólica, socializadora e identitária, e que, inculcando nos jovens uma constelação de novos símbolos, valores e práticas, garante e reproduz a ideia de que a chegada ao contexto académico deve ser acompanhada da assunção, pelo novato, de um novo estatuto social, simbólico e identitário. Mas, para ser eficaz, esse processo implica o seu envolvimento num conjunto de ritos de iniciação e de passagem, ampliados por formas cerimoniais, performativas e de espetáculo que, perante a coletividade, reforçam o sentimento de pertença a uma identidade coletiva alicerçada em costumes e práticas que remetem para o universo da “tradição”. As “cadeias de rituais”32 em que a praxe se estrutura, sendo marcadas por repetições de rituais no espaço e no tempo entre um número alargado de indivíduos, implicam agrupamento (co-presença), criação de barreiras e símbolos de demarcação com Identificámos rituais com a presença de estudantes de mais de duas dezenas de instituições. Não é possível precisar com segurança o número exato de contextos institucionais a que pertencem todos os estudantes envolvidos nos rituais que observámos, justamente porque, em rituais praxísticos mais amplos (como as latadas), é frequente a presença de estudantes de uma grande número de instituições e até de várias academias. Não temos dúvidas, no entanto, que se trata de mais de duas dezenas. 31 O conceito de “efervescência coléctiva” foi primeiramente inaugurado na análise ritual de Émile Durkheim em “As formas elementares da vida religiosa”, 2002, Oeiras, Celta. 32 O conceito de “cadeias de rituais” e as suas implicações foi inaugurado por Randal Collins em “Interaction Ritual Chains”, 2004 Princeton, NJ, Princeton University Press. 30 130 o exterior, focalização mútua e partilha emocional, traduzindo-se em sentimentos de solidariedade grupal, energia emocional individual, simbolização da relação social e em novas normas de moralidade. Os ritos de iniciação que marcam a praxe, ao teatralizarem e encenarem papéis, sugerem que a segurança perfeita no contexto de chegada se baseia na ocupação de um lugar e um papel social pré-determinado. A assunção desse papel social implica o respeito pelas relações entre os níveis da hierarquia tradicional e estabelecida. No capítulo II deste relatório tivemos oportunidade de revelar aquelas que, segundo as Instituições de Ensino Superior e as associações académicas, constituem as mais recorrentes práticas de praxe académica. Iremos agora para lá da informação declarada, passando da análise de discursos para a interpretação de rituais que pudemos observar na primeira pessoa e que discutimos com estudantes que neles participavam. Dada a diversidades de práticas de praxe optou-se por classificá-las num conjunto de categorias interpretativas. Mas, antes de prosseguirmos, impõe-se um esclarecimento. A hierarquia da praxe é complexa e apresenta variações consoante as Instituições de Ensino Superior, podendo existir vários patamares hierárquicos distintos entre os alunos que praxam, ligeiramente diferentes quanto mais não seja nas suas denominações, consoante as academias. Dois destes patamares são especialmente importantes: se a denominação mais comum para quem tem mais de uma matrícula no ensino superior é a de “doutor”, em algumas academias estudadas, os alunos com duas inscrições não podem ainda praxar, ocupando uma posição intermédia entre os “caloiros” e os “doutores”. Em muitas outras academias existe a categoria dos “veteranos”, composta, de um modo geral, pelos estudantes com mais matrículas do que as que são necessárias para terminar o seu curso e que ocupam os lugares mais elevados da hierarquia da praxe. É entre os “veteranos” que são escolhidos os chefes máximos da praxe. Noutros contextos, a categoria de “veteranos” designa todos os estudantes que praxam, logo a partir da segunda matricula. Porém, dada esta diversidade, ao longo deste capítulo, apenas separaremos “doutores” de “veteranos” quando tal for relevante, e utilizaremos a expressão “doutores” para nos referirmos aos estudantes que estão em contexto de praxe a praxar (por oposição aos que estão a ser praxados), e incluiremos nela os “veteranos”. 131 4.1. Uma descrição geral das interações da praxe Começamos por descrever aquilo que é possível observar habitualmente quando decorrem atividades inseridas na praxe académica, no que diz respeito às interações entre os sujeitos. Um dos aspetos que mais rapidamente chama a atenção de qualquer observador de uma atividade da praxe é a existência de dois grupos bem distintos: o dos “doutores” e o dos “caloiros”. A distinção entre uns e outros opera-se de múltiplas formas. Ela está presente no vestuário, na ocupação dos espaços, nos objetos utilizados, e no modo como interagem, sendo bem claro que cada grupo tem papéis muito distintos no jogo da praxe. É certo que é possível captar, entre os “doutores”, alguns papéis diferenciados, mas são diferenças pouco importantes quando comparadas com aquelas que os separam, coletivamente, dos “caloiros”. Começando pelo vestuário, quase todos os intervenientes na praxe estão, de uma forma ou outra e pelo menos até certo ponto, uniformizados. Do lado dos “doutores”, a sua “farda” é constituída pelo traje académico. Em Bragança, para além do traje, quem praxa é ainda identificado por um crachá onde constam o seu nome e o seu lugar na hierarquia. Apesar de ser esta a regra, observámos contextos em que os “veteranos” - ou seja, os estudantes com mais inscrições do que aquelas que são necessárias para terminar o seu curso e que se encontram nos lugares cimeiros da hierarquia da praxe – estavam presentes na praxe e participavam nas suas atividades sem o seu traje académico completo, mas traziam a sua capa; outras em que vimos estudantes sem traje ao lado de “doutores” uniformizados em plena praxe, mas por um período curto de tempo, conversando com um ou outro colega e observando simultaneamente o que ia acontecendo, sem aparente interferência nas atividades. Para além disso, identificámos exceções a esta regra ocorridas numa cerimónia festiva onde um estudante particularmente influente da academia local dirigia a atividade sem qualquer vestígio do seu traje e na Covilhã, onde os grupos de praxantes (“Grão-Mestres”, “Veteranums”, “Consulums”, “Senadorums”, entre outros) praxavam sem recurso a traje num jardim da cidade. 132 Os “doutores” também podem carregar consigo determinados objetos que são frequentemente avistados na praxe, designadamente colheres de pau e mocas. Estes são utensílios que, no contexto da praxe, têm funções e um simbolismo muito específico, como veremos33. No contexto de praxe, a indumentária dos “caloiros” pode não ser tão rígida nem tão homogénea como aquela que é usada pelos “doutores”. Em alguns casos poderá nem sequer haver a preocupação de se lhes impor um uniforme mas, na maior parte das vezes, observou-se sempre algum aspeto do seu vestuário, partilhado por todos, que permitia rapidamente identificar o seu estatuto na praxe. Esse elemento identificador pode ser um simples “bilhete de identidade” ou “cadastro” pendurado ao pescoço, com elementos como o “nome de praxe” do “caloiro” - ou seja, a alcunha pela qual ele é conhecido na praxe, que geralmente evoca, de forma humorística e por vezes depreciativa, determinada característica do novo estudante (origem geográfica, atributo físico, verbalização ou gesto recorrente, entre outras possibilidades) ou alguma coisa que ele tenha dito ou feito e que tenha chamado a atenção –, o ano letivo de entrada no ensino superior (por vezes escrito de forma humorística, por exemplo “2015+1/2017), a data de nascimento. Em alguns casos, ao “caloiro” é atribuído um número em vez de uma alcunha. Nestes identificadores da praxe, que podem usar a expressão “besta” em vez de “caloiro”, também pode estar presente a imagem de um animal: o burro. No entanto, muitas vezes, os “caloiros” utilizam pelo menos uma t-shirt ou sweatshirt padronizada, onde é comum estarem presentes as cores da instituição do ensino superior frequentada, o nome da universidade (ou politécnico), faculdade (ou instituto) e curso, a palavra “caloiro”, e o ano a que a “tshirt” se refere. Também é comum a presença da imagem de um animal nestas peças de vestuário, tendo sido observado o burro, com menor frequência o javali e, apenas por uma vez, o tigre. A esta peça de vestuário podem-se acrescentar acessórios padronizados como a trouxa, o cachecol, ou múltiplos objetos que os “caloiros” podem usar na cabeça: orelhas de cartão que fazem lembrar as orelhas dos burros, chapéus, funis, penicos. Nas suas versões mais completas (e menos observadas), os “uniformes” do caloiro podem incluir todo o vestuário visível, traduzindo-se, por exemplo, por um macacão. Estes vestuários padronizados são ainda mais comuns nos momentos cerimoniais e performativos, Para além das utilizações que observámos e que descreveremos mais à frente, devemos referir que há academias onde pode ser usada uma colher de pau para aplicar sanções de unhas a estudantes que violem regras da praxe. Tanto a moca como a colher de pau são ainda obrigatórias nas trupes (grupos de estudantes que zelam pelo cumprimento da hora de recolher imposta pelo código de praxe) de certos locais. A este respeito veja-se o código de praxe de Coimbra [2013], designadamente as secções “das sanções” e “das trupes”. 33 133 ocorram eles perante a comunidade da praxe ou perante a comunidade da cidade em que se inserem. Todas estas versões têm algo em comum: para além de contribuírem para colocar os caloiros num pé de igualdade (um objetivo da praxe que nos foi revelado por vários praxistas em entrevista e em conversa informal), contêm pelo menos uma marca identitária de pertença a uma determinada instituição do ensino superior, nem que seja através da sua cor. Para além, disso, tornam o “caloiro” facilmente identificável. Para além desta questão do “fardamento”, e tendo em conta o seu vestuário, os caloiros são muitas vezes identificáveis relativamente a qualquer outro jovem da mesma idade de duas outras maneiras diferentes. Em primeiro lugar, a roupa que utilizam na praxe tende a sujar-se. Vimos camisolas esverdeadas do contacto com relva, ou esbranquiçadas por misturas contendo farinha. Por outro lado, os “caloiros” podem personalizar os seus “uniformes” de praxe, autografando-os, rabiscando-os e desenhandoos. Numa praxe de um politécnico do Porto ouvimos um “doutor” incentivar os “caloiros” a fazer isto. A iniciativa de personalizar os “uniformes” dos estudantes mais novos pode partir dos próprios “doutores” quando, por exemplo, escrevem o nome de praxe de cada caloiro nas suas orelhas de cartão, ou quando fazem com que um caloiro utilize uma peruca colorida ou uns óculos extravagantes. Por outro lado, os “caloiros” também podem envergar roupas mais excêntricas e, de certa forma, ridículas, como em Coimbra, onde vimos, por exemplo, um estudante fantasiado de banana. A forma como espaço é ocupado numa atividade de praxe é quase sempre a mesma: num canto amontoam-se as mochilas e, se for caso disso, os casacos dos “caloiros”. Estes estão alinhados de forma disciplinada, formando um retângulo, um quadrado ou uma ou mais filas, com espaços similares entre si. Se a formação se parte após alguma atividade mais movimentada, os “doutores” rapidamente a restabelecem. Os “doutores” e “veteranos” que dirigem a atividade (são geralmente em número restrito, como veremos) estão posicionados à sua frente. Os restantes “doutores” podem estar ao lado destes colegas ou espalhados pelo espaço, flanqueando os “caloiros”. É comum, sobretudo no Porto, formarem um círculo, o mais fechado possível, em torno dos alunos mais novos, com a intenção evidente de não permitir que os “caloiros” vejam nada para lá da praxe e de, ao mesmo tempo, impedir que quem não faz parte da praxe consiga ver o que lá acontece. Foi-nos dito por dois “doutores” de uma faculdade do Porto que existe a preocupação de ocultar aquilo que acontece na praxe de observadores externos, com o objetivo de proteger a privacidade de todos e evitar oferecer um espetáculo público: se aquilo que os “caloiros” estão a fazer for visto por “doutores” que fazem parte do grupo 134 e passaram pelo mesmo, estão a transformar os “caloiros” em elementos desse grupo; no entanto, se aos “doutores” se juntarem observadores externos, estão a oferecer um espetáculo de entretenimento e a humilhar os “caloiros”. As nossas observações revelaram que esta preocupação não é partilhada por todos os estudantes que praxam, como iremos ver. Tudo isto mostra bem a separação entre dois grupos com estatutos diferentes: de um lado estão os “caloiros”, do outro lado, (ou melhor dizendo, à sua frente e em seu redor) estão os “doutores”, com uma clara demarcação entre ambos, vincada pela forma como ocupam o espaço, pelas roupas que vestem e pela forma como interagem, representando os seus respetivos papéis no jogo da praxe. Apenas por uma vez, em Coimbra, vimos esta lógica desrespeitada, com a participação de alunos trajados numa atividade dos “caloiros”: os estudantes formaram em comboio, colocando inicialmente as mãos nos ombros do colega da frente, mas posteriormente agarrando outras partes do corpo, como os joelhos e os tornozelos, resultando em posições bizarras. Também em Coimbra, é usual separar homens de mulheres durante a praxe. É comum ver um grupo de “doutores” a praxar “caloiros” e, logo ali ao lado, um grupo de “doutoras” a praxar “caloiras”. No entanto, também se observaram praxes “mistas” nesta cidade. Quando a praxe se movimenta pelas ruas, a separação entre “caloiros” e “doutores” mantém-se clara: os primeiros circulam em fila, frequentemente dois a dois, de mãos dadas – ou, usando uma expressão ouvida no Porto, de “cascos dados”. Em Coimbra vimos algumas variantes deste tipo de organização: caloiros vendados e de mãos dadas, formando um longo cordão que tinha de confiar exclusivamente nas orientações dos “doutores” para se deslocarem pela cidade, e “caloiras” agrupadas duas a duas, caminhando com uma mão introduzida num dos bolsos de trás das calças da sua colega, em vez de andarem de mãos dadas. Os “doutores” espalham-se pelo cortejo: um pequeno grupo, geralmente onde vai alguém que transporta uma grande colher de pau, encabeça o desfile e dirige os seus participantes, outro grupo de estudantes trajados fecha-o, e alguns “doutores” ladeiam os “caloiros”, preocupados em orientá-los e fazer com que alcancem de novo os da frente quando o grupo se fratura perante qualquer contingência, como alguma rua movimentada que é preciso atravessar. Se procurarmos descrever as interações que ocorrem na praxe da forma mais simples possível (e certamente algo simplista), podemos fazê-lo dizendo que os “doutores” dão ordens e os “caloiros” executam-nas. Se excetuarmos os momentos festivos da praxe, sobre os quais nos debruçaremos mais à frente, é isto que, de uma forma 135 genérica, acontece na praxe (e esta dimensão, ainda que esbatida, não está totalmente ausente das tais celebrações praxísticas a que nos referiremos adiante). Dos “caloiros” não é esperada qualquer iniciativa espontânea, apenas que respondam aos estímulos induzidos pelos “doutores”, da forma que os “doutores” pretendem. Aliás, quando não estão a executar nenhuma ordem, ou quando a praxe não se encontra num momento que permite alguma descontração (que também existem, como se verá), eles devem permanecer imóveis, silenciosos e atentos, enquanto ouvem as instruções para a próxima atividade que os “doutores” irão ordenar. Muitas vezes permanecem “em sentido”, ou seja, em pé, olhando em frente, com as mãos caídas ao longo do tronco ou atrás das costas. Tão ou mais comum é uma variação desta posição em que, permanecendo de pé, devem manter a cabeça baixa e o olhar direcionado para o chão, não podendo olhar para o rosto dos “doutores”. Outra coisa que não podem fazer em muitas situações é rir. Observamos em várias praxes uma certa permissividade dos “doutores” em relação a estas duas regras, embora, noutras ocasiões, tenhamos presenciado punições pelo seu desrespeito (teremos oportunidade de descrever o modo como os caloiros podem ser punidos mais à frente). O tom em que as ordens são dadas aos “caloiros” é variável. Na maior parte das vezes surgem numa voz impositiva e autoritária; outras vezes num tom calmo, e, outras vezes, são transmitidas através de gritos agressivos e intimidantes, por vezes emitidos muito perto dos ouvidos do destinatário. A linguagem corporal dos “doutores” que emitem ordens também varia: podem adotar uma postura relativamente relaxada, ou mais assertiva, ou até mesmo agressiva, aproximando o rosto do semblante dos destinatários das ordens e olhando-os de forma dura. Os “doutores” por vezes exemplificam aquilo que querem que os “caloiros” façam – entoando um cântico ou executando uma determinada coreografia, por exemplo. Quando perguntam alguma coisa ao grupo dos “caloiros”, é esperado, na maior parte das vezes, que eles respondam afirmativamente, em coro e de uma forma padronizada. A mais comum dessas respostas consiste em dizer “sim senhor doutor/veterano” ou “sim excelentíssimo doutor/veterano”, mas também pode passar por uma onomatopeia (hi-hó) ou por um gesto (levar as mãos às orelhas fletindo os cotovelos junto ao tronco e tocar levemente com os indicadores nas orelhas três vezes). As atividades de praxe são dirigidas por um número relativamente reduzido de estudantes mais velhos. Aqueles que usam a palavra de forma mais frequente são geralmente portadores de uma moca ou colher de pau de grandes dimensões. Os restantes “doutores” desempenham diversos papéis na praxe: ajudar a exemplificar atividades; retransmitir ordens; corrigir ou repreender os “caloiros”; tapar a visibilidade do que está 136 a acontecer para outras pessoas no local (e limitar também a visibilidade dos “caloiros” para aquilo que os rodeia); observar, mais ou menos divertidos, aquilo que se passa, podendo fazer algumas piadas jocosas; conversar com outros colegas trajados, de uma forma relativamente alheada daquilo que está a acontecer. Também pode acontecer alguns dos “doutores” selecionarem um ou mais “caloiros” para uma atividade de duração mais curta, separada daquela que os seus colegas estão a executar. De tudo isto se depreende que as praxes são fortemente marcadas pela disciplina (excetuando os seus momentos mais festivos, onde ela ainda marca presença, mas de forma menos ostensiva): disciplina dos “caloiros”, que obedecem a ordens e são punidos quando não o fazem (ou quando a maneira como o fazem não agrada aos “doutores”) e disciplina dos “doutores”, que se organizam de modo a que poucos assumam um papel de comando e não existam ordens contraditórias, esforçando-se também que as atividades decorram de acordo com as suas intenções. Apesar do ambiente rígido acima descrito, e ainda que existam vários momentos que serão certamente desagradáveis para os “caloiros” (como ouvir gritos aos ouvidos ou permanecer com os joelhos e as mãos apoiados no chão sem poder levantar o olhar, escolhendo apenas dois de entre os muitos exemplos possíveis), o riso e a boa disposição também têm o seu lugar. Para além dos momentos festivos da praxe, há ocasiões em que um ou outro “caloiro”, ou mesmo a generalidade dos mesmos, parece estar verdadeiramente divertido na praxe. Isto acontece em determinados jogos, ou então quando um “doutor” lhe dirige palavras zombeteiras que são entendidas como uma mera brincadeira e ouvidas com um sorriso mal contido. Isto pode suscitar uma frase como “caloiro não ri!”, por vezes verbalizada com dureza e seguida de uma sanção, mas proferida com pouca seriedade noutras ocasiões. 4.2. Cânticos, palavras de ordem e gritos de guerra Um dos tipos de praxe mais comuns no conjunto do país são os chamados “cânticos de praxe” e podem ser observados dentro das instituições e nos espaços públicos das cidades. Aglomerados de estudantes em praxe, geralmente organizados por cursos, vestem roupas específicas, muitas vezes colocam tabuletas ao pescoço com o seu nome de praxe e circulam pelas instituições e pelas cidades a cantar ou a gritar, quanto mais alto melhor, músicas cujas temáticas, como veremos, podem ser descritas através de um número relativamente pequeno de categorias. Outras vezes, os “caloiros” concentram-se num 137 determinado local, cantando e gritando enquanto executam coreografias pensadas e dirigidas pelos “doutores”. Estes cânticos são geralmente apresentados pelos estudantes como uma das práticas mais inofensivas na praxe académica, mas nem por isso deixam de ter uma grande importância. Enquanto cânticos entoados coletivamente e em uníssono, são passados de geração em geração de estudantes, e reforçam os sentimentos de identidade, fidelidade, pertença e unidade do grupo e do curso a que pertencem e que representam. Esses sentimentos são ainda exponenciados pela simulação de um confronto com um inimigo exterior ao grupo. Compete-se contra o curso rival e opositor ou contra outra instituição, e a vitória representa o triunfo coletivo do grupo, conquistado pelo empenho e o esforço árduo dos caloiros. Mas se, como dissemos, estes cânticos são muitas vezes tidos como inócuos, os conteúdos concretos do que é cantado podem ser alvo de interpretações mais discordantes, críticas e controversas. Descreveremos agora os vários cânticos que escutamos nas nossas deambulações pelas praxes, agrupando-os de acordo com uma tipologia que passamos a apresentar. 4.2.1. Os cânticos escandalosos Alguns dos cânticos entoados durante a praxe parecem procurar chocar ou escandalizar quem os ouve e eventualmente quem os entoa, talvez com o propósito de desinibir alguns estudantes mais retraídos. O ingrediente utilizado para tentar obter esse choque é sempre o mesmo: o sexo, invariavelmente apresentado de uma forma manifestamente brejeira e indecorosa. Em muitos casos os estudantes apropriam-se de músicas populares para as adaptar com as suas próprias letras. Na cidade universitária em Lisboa, por exemplo, os estudantes reproduzem, com uma nova tonalidade, uma música dos Irmãos Catita, cantando em pequenos grupos: Chupa na banana, dá-me o ananás és boa na cama, p'la frente ou por trás. P'la frente ou por trás, és boa na cama dá-me o ananás e chupa na banana. A dimensão sexual presente nesta música parece constituir um traço comum entre a maioria dos hinos cantados pelos estudantes em praxe. Efetivamente, se alguns cânticos parecem servir para dar corpo a letras que abordam o sexo a partir de uma perspetiva 138 escandalosa, a verdade é que ele está presente, ainda que em conjunto com outras dimensões, em muitos outros cânticos da praxe. Nos jardins do Campo Grande, onde centenas de estudantes se concentram em rituais de praxe, pudemos reconhecer algumas destas músicas. Nos seguintes exemplos recorre-se aos clássicos “Chico Fininho”, de Rui Veloso, e “Vem viver a vida amor”, de José Cid. A ambos são atribuídas uma nova letra e outra roupagem: Tabela n º13: Letras de cânticos de praxe. Fonte: Elaboração própria em contexto de observação. Adaptação da música Adaptação da música «Chico Fininho» de Rui Veloso «Vem viver a vida, amor», de José Cid: “Chegas ao pátio Com as mamas à mostra Sei o porquê Já sei quem aposta; Eu não sou o único gajo que vejo que estás disposta E quando passas na porcada* toda a gente grita poooorca, “Vem chupar-me a piça amor, que a tusa não passou, nem vai passar Puta fina Uuuuuh uuuuuuuuuhh (x4) Põe-te, de quatro por favor, vou induzir-te a dor, na veia anal”. . Venho do arco**, com uma cabra do caralho, vejo SS*** à procura de trabalho, Levo-a para casa faço o trabalho sujo fica toda rebentada entra logo em desuso pia fininho puuuuuuuta (2x) piem fininho putas!” * Festa organizada pela comissão da praxe do ISCTE-IUL. ** Arco do Cego, jardim e zona de sociabilidades estudantis e de boémia. *** Curso de serviço social Nas ruas do Porto, circulando pelas imediações do Hospital de São João, onde se concentram vários estabelecimentos de ensino superior, quem passa não consegue deixar de ouvir cânticos deste tipo, entoados a plenos pulmões. Por aqui, a letra do refrão da canção “Puerto Rico”, da banda belga Vaya Com Dios (“ai ai ai ai ai ai, Puerto Rico”), converte-se em “ai ai ai ai ai ai, faz-me um bico”, a que, depois de uma breve pausa, se segue uma exclamação com as palavras “sua puta!”. 139 4.2.2. Os cânticos e gritos de guerra e de pertença Alguns dos cânticos e das palavras de ordem ouvidos na praxe surgem como manifestações de um sentimento de pertença a um grupo que se quer forte e unido. Este grupo pode ser a academia, a faculdade/instituto, ou o curso. Tais cânticos e gritos podem ser acompanhados por determinadas posturas ou gestos. Por exemplo: vimos os “caloiros” de uma universidade privada do Porto formarem um círculo, baixarem-se ligeiramente, colocarem as mãos umas sobre as outras no centro desse círculo, e depois entoarem um prolongado “ooooooooooooh...”, seguido por um grito curto com o nome da instituição de ensino, ao mesmo tempo que levantavam o tronco e os braços. Por vezes, estes “gritos de pertença” são pequenas frases, que podem surgir como resposta a um mote proferido pelos doutores, onde surgem o nome do curso frequentado pelos alunos, da escola superior, da academia ou de todas as três. Damos um exemplo ouvido nas ruas da baixa do Porto, numa 5ª feira (dia de praxe em várias instituições do ensino superior da cidade, mesmo após o período de “receção aos caloiros”) ao fim da tarde: um “doutor” berra “academia!?”, a que os “caloiros” respondem “Porto!”, depois o mesmo “doutor” grita “faculdade!?” e os “caloiros” respondem com o nome da sua faculdade, por fim, o estudante mais velho pergunta “quantos somos!?”, ao que os outros respondem “muitos e bons!”. A partir deste exemplo percebemos outra possibilidade deste tipo de gritos de guerra: para além de referências à pertença grupal, eles podem conter elogios aos elementos desse mesmo grupo. Estes autoelogios podem ser muito genéricos, consistindo numa afirmação de superioridade daqueles estudantes: eles são “os maiorais”, os “melhores”, os “mais potentes”, os que “fodem toda a gente” ou aqueles que fazem “o chão tremer”. Tal como estes gritos, os cânticos dos cursos também consistem frequentemente em gritos de pertença e identificação com um determinado grupo. Também é muito comum uma afirmação genérica de superioridade relativamente aos demais estudantes, de outros cursos ou instituições. Assim, em Coimbra, várias vezes ouvimos variações do mesmo cântico, sobre a melodia de “when the saints go marching in”, todas iniciadas com a pergunta “qual é qual é, qual é qual é, qual é qual é o melhor curso?” (a resposta, naturalmente, é o seu curso). Outro exemplo, retirado do Porto, consiste num cântico de inspiração militar que, há vários anos atrás, se podia ouvir num anúncio televisivo de uma marca de tintas. A letra sofreu as necessárias adaptações para o contexto da praxe: “um dois três quatro cinco seis sete, com [nome da faculdade] ninguém se mete! Sete seis 140 cinco quatro três dois um, nós fodemos qualquer um!”. Tal como verificámos no respeitante aos “cânticos escandalosos”, também os cânticos de pertença consistem frequentemente em temas famosos com novas letras. Mas os elogios que os diferentes grupos de praxe fazem a si próprios nem sempre são assim tão genéricos. Frequentemente incluem referências sexuais, quase sempre num tom brejeiro, que celebram a líbido dos estudantes e a sua pujança sexual: assim, em Coimbra, enquanto um grupo de alunos se anunciava como “malta cheia de tesão, na cama e no chão” através do cântico que entoava, outros cantavam versos como “é a malta do caralho, é a que tem maior vergalho, é a que fode toda a gente”. Noutro contexto, no Porto, os estudantes de um determinado curso entoavam um cântico que incluía versos como “somos o curso mais potente, e só para ficares contente, vamos-te enrabar, e tu vais gostar”. O que estes exemplos mostram é que as referências sexuais, para além de surgirem sempre de uma forma que se pretende escandalosa, partem constantemente de uma perspetiva que celebra a masculinidade e a virilidade, podendo adquirir traços machistas e homofóbicos A este propósito, relembramos que, em Coimbra, a praxe separa frequentemente homens e mulheres. Curiosamente, quando estes cânticos são entoados exclusivamente por “caloiras”, as suas letras não costumam mudar, continuando a manter-se as referências a práticas sexuais a partir de uma perspetiva masculinizada. Refira-se que ouvimos o segundo exemplo coimbrão apresentado acima entoado por grupos compostos apenas de raparigas. Tal como os gritos, também os cânticos de pertença podem ser acompanhados de posturas e gestos específicos. O caso mais paradigmático, até porque revela a importância que eles podem ter para a construção e manutenção de um espírito de grupo, chega-nos de Bragança: num momento festivo da praxe - um espetáculo de entretenimento organizado pelo “doutores” e pela associação académica, protagonizado pelos “caloiros” e aberto a toda a academia -, enquanto entoavam o hino do seu curso no final da sua performance, os “caloiros” colocavam uma mão sobre o peito e outra sobre os genitais, enquanto as “caloiras” colocavam uma mão sobre o peito e outra atrás das costas. As suas vozes eram levadas ao limite em quase todos os casos, e foi sem surpresa que, no dia seguinte, foi constatada a rouquidão de vários estudantes que conversavam na central de camionetas da cidade antes de fazerem a viagem de regresso às suas localidades de origem (o espetáculo decorrera na noite de quinta para sexta feira). Ao mesmo tempo, muitos “doutores” do mesmo curso, uns trajados, outros não, entoavam também entusiasticamente o “seu” hino, alguns permanecendo em sentido, levando a mão ao peito 141 ou erguendo no ar um cachecol da sua academia, numa manifestação identitária clara e que não será assim tão diferente daquelas a que podemos assistir em estádios de futebol. 4.2.3. Cânticos e palavras de ordem de depreciação e disputa Outro tipo de cânticos e palavras de ordem muito comuns são aqueles que têm como objetivo provocar ou depreciar estudantes de outros cursos. Estes podem-se ouvir, sobretudo, quando alunos de diferentes cursos se cruzam em contextos praxísticos, o que pode acontecer quando os desfiles da praxe circulam pela cidade ou em grandes momentos festivos como são as latadas. Nesses momentos geram-se verdadeiras disputas entre cursos e instituições, em que, para além dos cânticos e gritos de pertença, também são utilizados outros com conteúdo insultuoso ou provocatório para os estudantes “do outro lado da barricada”. Em Coimbra, com a sua especificidade de (geralmente) manter uma separação entre rapazes e raparigas na praxe, estas disputas podem também surgir entre grupos masculinos e femininos. Por vezes, estas provocações são generalizáveis, podendo-se aplicar a qualquer rival que surja pela frente, como é o caso deste exemplo: “onde é que está o curso? Aqui! Onde é que está a merda? Ali!”. Porém, noutras ocasiões, as palavras de ataque são pensadas especificamente para um determinado curso. Foi possível observar que existem mesmo rivalidades acesas entre cursos específicos, uma espécie de “ódiozinhos de estimação” que resultam em disputas verbais quando esses cursos se encontram. No entanto, foi-nos dito por estudantes que essas situações começam e acabam na praxe e se limitam a disputas verbais, em nada interferindo nas relações de amizade que possam manter com alunos desses cursos “rivais”. Assim, ouvimos palavras de ordem e cânticos como “O ICBAS é uma casa de alterne” (pronunciadas, naturalmente, por estudantes de outra instituição do ensino superior do Porto), ou ainda “oh Pessoa, oh Pessoa, anda cá, anda cá, vira o cu p'ra gente, vira o cu p'ra gente, toma lá, toma lá”, mensagem cantada sobre a melodia de “frère Jacques” e dirigida aos alunos da Universidade Fernando Pessoa pelos estudantes de outro estabelecimento de ensino. Em Bragança presenciámos disputas constantes entre os alunos de duas escolas da mesma instituição do ensino superior, com um dos grupos a berrar repetidamente para o outro (constituído maioritariamente por raparigas) “suas porcas”, entre outras provocações, e ouvindo como resposta um conjunto de palavras de ordem ofensivas ou depreciativas repetidas em coro inúmeras vezes, como por exemplo “não tens piça p'ra mim”. 142 Ainda que os ataques – o timing, o conteúdo verbal, a duração – sejam geralmente dirigidos pelos “doutores”, os “caloiros” participam neles de forma entusiástica, berrando a plenos pulmões, inclinando o tronco e gesticulando ritmicamente na direção oposta, fletindo e esticando um braço no ar, recordando-nos, mais uma vez, dos estádios de futebol, mais especificamente das disputas verbais entre adeptos de clubes distintos. Num caso como no outro, estamos perante manifestações de pertença a um grupo e de diferenciação face aos grupos considerados rivais. Mudando de contexto, passamos um dia em Lisboa numa faculdade onde a praxe está proibida no campus. Na quinta-feira da primeira semana, os estudantes em praxe ocupam a escadaria principal, numa guerra de cursos e de cânticos. Alguns deles dizem que é praxe e não devia ser permitida. Outros argumentam que os cânticos não estão proibidos. Como ninguém intervém, os estudantes concentram-se e a música prossegue. Figura nº 17: Cânticos de praxe em Os cursos rivalizam-se e quem grita mais alto ganha simbolicamente o confronto. Todavia, nesta instituição existe uma rivalidade entre a generalidade dos cursos e o curso de Ciências de Comunicação, o maior da faculdade. Os cânticos tornam-se, portanto, confrontos diretos. 143 Tabela nº 14: Letras de cânticos de depreciação e disputa. Fonte: Elaboração própria em contexto de observação. Ataques ao curso de Ciências de Comunicação Respostas do curso de Ciências de Comunicação “Oh CC, oh CC, Anda cá, anda cá, Vira o cu para a gente Vira o cu para a gente Toma lá, toma lá” “As meninas de CC As meninas de CC Não há pu, não há pu, não há putas como elas E as mães dessas meninas e as mães dessas meninas Fazem bro, fazem bro, fazem broxes à maneira E as doutouras de CC, e as doutoras de CC, não rapam os pintelhos E as caloiras de CC, e as caloiras de CC Também vão, também vão ser como elas” “Quem é que nós somos? CC O que é que eles são? Putas” (x3) “Allez allez allez allez Davas o cu para estar em CC” (8 x) Como se percebe, os cânticos aqui olhados como exemplos de Lisboa, bem como alguns dos que foram ouvidos nas outras cidades referidas, são profundamente marcados por uma linguagem sexista. Esse é um traço comum à maioria dos cânticos pelo país fora. As mulheres dos outros cursos são acusadas de serem “putas” pela forma como se vestem e por estarem sempre “dispostas”; a linguagem é claramente homofóbica, utilizando-se as expressões “enrabar”, “levar no cu”, “gays” e “paneleiros” como sinónimos de depreciação e de insultos aos alunos de outros cursos. Em Coimbra, como já referimos, as disputas podem acontecer entre um grupo formado apenas por rapazes e outro constituído exclusivamente por raparigas. Observámos uma delas, em que as referências sexuais estiveram particularmente presentes. Os rapazes faziam comentários depreciativos sobre as raparigas onde elas surgiam como estando sempre disponíveis para satisfazer o desejo masculino, ou então como não sendo desejáveis de um ponto de vista sexual, gritando em coro, por exemplo, “só serves p’ra chupar”. Por sua vez, elas atacavam a virilidade e o desempenho sexual dos primeiros, berrando a uma só voz coisas como “eu até queria, mas não vejo nada”. A disputa desenrola-se em jeito de “pergunta e resposta”, em que cada ataque de um grupo é seguido por um contra-ataque do outro. 144 4.2.4. Cânticos de beber O álcool é outro elemento que marca presença na praxe e nos seus cânticos, sobretudo nos seus momentos mais festivos ou que, podendo não ser estritamente praxe, estão de alguma forma relacionados com ela, como alguns jantares de estudantes, quando são entoadas músicas que incentivam o consumo ou para exaltam o gosto dos estudantes pelas bebidas alcoólicas. Deixamos dois exemplos, ouvidos em jantares académicos de Coimbra: “e se o [nome do estudante] quer ser cá da malta, tem de beber este copo até ao fim”, encorajando o visado a beber de uma só vez o conteúdo do seu copo; e “nós só queremos cervejas p'ra beber, cervejas p'ra beber, e gajas p'ra foder”, letra cantada sobre a melodia do refrão de “yellow submarine”, dos Beatles. A respeito do consumo de álcool na praxe, devemos ainda referir que ele ocorre sobretudo nos momentos de celebração, mas não só. Em Bragança34 e em alguns contextos em Lisboa, “caloiros” e “doutores” estão estritamente proibidos de consumir álcool durante as atividades de praxe entendida no seu sentido mais restrito, mas estas são seguidas de saídas para os bares e discotecas da cidade, onde, de acordo com os estudantes com quem falámos, as hierarquias praxísticas se dissolvem por entre copos e conversas. Em Coimbra, foi-nos revelado que alguns grupos de praxe (conhecidos como “tertúlias”) incentivam ativamente o consumo de álcool por parte dos seus elementos, escolhendo por vezes nomes coletivos que refletem o gosto dos seus membros pela ingestão dessa substância. Mas, na mesma cidade, também houve quem nos referisse que os “caloiros” já chegam à universidade com hábitos de consumo e os estudantes mais velhos sentem que devem tentar refrear a ingestão de bebidas. De qualquer modo, o consumo de álcool abusivo por parte de alguns estudantes em certas atividades de praxe não poderá ser dissociado daquilo que são as tendências globais de consumo, de uma certa valorização social do mesmo, das estratégias mobilizadas pelas marcas comerciais nem, por outro lado, da cultura boémia que, historicamente, marca certos ambientes estudantis. O artigo 63º do código de praxe de Bragança [2009] proíbe que se exerça pressão sobre os “caloiros” no sentido de beberem. Para além disso, estipula ainda que nenhum estudante que esteja alcoolizado pode praxar. Levando esta interdição ainda mais longe, vários estudantes com quem conversámos disseram-nos que ninguém, independentemente do seu estatuto hierárquico, pode consumir álcool enquanto está a praxar ou a ser praxado. 34 145 4.2.5. Cânticos de protesto Também há quem use os cânticos com uma conotação política, como pudemos observar com um grupo de caloiros que corria pelos jardins do Campo Grande a cantar: “e se eu ficar desempregado; o governo vai pró caralho”. No Porto, os “caloiros” de uma faculdade entoaram a célebre canção “Grândola Vila Morena” de José Afonso a plenos pulmões, possivelmente pretendendo manifestar a sua opinião (ou melhor, a dos alunos mais velhos que decidem o que deve ser cantado na praxe) sobre a posição do Ministro da Ciência e do Ensino Superior acerca da praxe. Afinal, nas praxes da mesma faculdade ouvimos “caloiros” a gritar frases como “praxe é vida” e “eu amo a praxe” e a cantar em uníssono “a praxe é fixe, o resto que se lixe”. Alguns cânticos funcionam ainda como sátira ao governo, a alguns órgãos de comunicação social, ao reitor ou aos professores. 4.2.6. As coreografias As coreografias executadas durante os cânticos e gritos de guerra que se ouvem nas concentrações da praxe contêm graus de complexidade variáveis. Se na maioria dos contextos observados são de simples execução, em cidades como a Covilhã as coreografias de curso são preparadas durante quase dois meses para serem apresentadas à comunidade em eventos abertos ao público em locais históricos da cidade. Na sua forma mais básica, consistem apenas em oscilações dos corpos de um lado para o outro, seguindo os movimentos de uma moca ou colher de pau nas mãos de um “doutor”, ou em saltos curtos, que podem ou não ser sincronizados. Outras variantes incluem mais movimentos corporais ou trocas de posição entre os “caloiros”. O significado que retiramos dessas coreografias através da sua observação também pode ser diversificado. Por vezes mais não parecem do que um conjunto de gestos pensados para manter os “caloiros” em movimento enquanto cantam, que podem comportar algum tipo de relação com o sentido da letra que é cantada. Ainda assim, podemos classificar algumas delas como “coreografias guerreiras” e outras como “coreografias de carácter sexual”. As primeiras podem incluir gestos e poses de desafio como batimentos no peito com os punhos fechados, posturas com as pernas ligeiramente fletidas e afastadas, batidas vigorosas dos pés no chão. Detetamos, pelo menos num caso, a influência do Haka, a dança tradicional do povo Maori celebrizada pela seleção nacional de Rugby da Nova Zelândia. 146 Por sua vez, as segundas incluem movimentos pélvicos que remetem claramente para o coito e oscilações laterais do braço ao nível da cintura, simulando o ato de dar palmadas. 4.3. Praxes de exercício físico Outra das praxes mais comuns entre as diversas instituições são aquelas que consistem na realização de exercícios físicos. Entre elas, a mais comum que pudemos observar traduzse em estudantes a realizarem flexões, perante os “doutores”/”veteranos” que muitas vezes vão encorajando o sacrifício, dedicação e devoção ao grupo através do esforço físico. Se aguenta um, aguentam todos. Constituem exemplos de outros exercícios observados em praxe as séries de agachamentos e permanências em posições que só podem ser mantidas com esforço, como em prancha e em agachamento. Se todos têm de executar os exercícios (salvo alguma limitação física, como numa ocasião em que vimos um “caloiro” com uma perna engessada que era poupado a muitas das atividades), os “doutores” não se costumam mostrar rigorosos com a forma como muitos deles são efetuados, permitindo flexões de braços incompletas ou pranchas mal alinhadas. Em Coimbra, vimos ainda outra praxe enquadrável nesta categoria: “caloiros” a subir e a descer as Escadas Monumentais, sozinhos ou em grupo, com os braços sobre os ombros uns dos outros, de frente ou de costas, e por vezes descendo um degrau após terem subido dois. 4.4. Praxes de crime e castigo Mas nem sempre as praxes de exercício físico vêm associadas a um discurso de reforço do grupo pelo esforço físico. Muitas vezes o exercício físico também serve como penalização do “caloiro” ou de todo o grupo pelo facto de alguns membros não cumprirem regras ou desafiarem a autoridade dos mais velhos. Se um “caloiro” chega atrasado; se alguém responde de forma direta ou mais brusca ao superior hierárquico; se alguém falta à praxe; se um caloiro não vem acompanhado do material solicitado; se alguém recusa fazer alguma atividade; se alguém ri quando deve estar sério; em todos estes casos, a regra é simples: pagam todos pelos erros de alguns. Este preço pode ser expresso em flexões ou agachamentos que todos fazem, mas também na permanência na posição “de quatro” - posição de submissão que agrupa diversas variantes sob o mesmo nome, como estar ajoelhado ou agachado com as mãos no chão, mas que implica sempre estar com a cabeça num plano abaixo daquele onde está a dos “doutores” e dirigir o olhar para o chão - e em 147 casos mais graves na posição “de três” - com a testa e joelhos no chão, mãos atrás das costas e pés no ar. A punição pode passar ainda por repetir uma atividade debaixo de gritos e comentários depreciativos até que os “doutores” se declarem satisfeitos com a sua execução. Afinal de contas, são um grupo e devem agir enquanto tal. Os estudantes mais velhos alegam que o facto de todos serem penalizados pelas ações dos incumpridores faz com que se reforce a solidariedade e o espírito de grupo, mas também se pode considerar que, deste modo, os conflitos se infiltram entre caloiros e não entre caloiros e “veteranos”/”doutores”. Além disso, o facto de todo o grupo ser penalizado com atividades físicas pode reforçar a obediência e inibir o estudante de questionar as regras a que está sujeito. Mas as punições também podem ser individuais. Entre este tipo de castigos um das mais comuns consiste em punir o caloiro que se riu quando devia estar sério. É-lhes assim ordenado que faça saltos de canguru seguidos, enquanto grita: “ri-me, fodi-me” até que um “doutor” o mande parar. Numa variante observada em Coimbra, os “caloiros” castigados tinham de bater repetidamente com a palma da mão na testa enquanto corriam ou saltavam ao “pé-cochinho”, repetindo aquela expressão. Vimos ainda os mesmos gestos serem conjugados com outras frases, repetidas até os “doutores” que ordenaram a punição se darem por satisfeitos: “nunca mais me engano no nome da doutora” e “sou uma caloira lenta”. Junto a uma Faculdade em Lisboa um “veterano” explicou-nos que iam fazer uma praxe para reforçar o espírito de grupo. Os “caloiros” foram colocados em grupo e a sua “missão” consistia em descer e subir a grande escadaria junto à Reitoria. Quando chegam ao topo têm que dizer em uníssono qual o número de degraus que subiram. Se houver caloiros com contagens diferentes, têm de voltar a descer e a subir as dezenas de degraus. Como nos explica o “veterano”, esta é uma praxe que implica foco e concentração mas também sentido de coletivo: se um falhar, falha o grupo. E se o grupo falha tem de ser castigado repetindo a prova até todos acertarem. Os dois exemplos que conhecemos em que os rituais de punição e castigo são levados mais a sério são os casos de Coimbra e da Covilhã. Em Coimbra, alguns praxistas organizam-se em trupes que a partir da meia-noite circulam a cidade à procura de caloiros que estejam na rua para os punir com castigos que, segundo o código de praxe, podem ser severos, como abaixo se demonstra: 148 TITULO IV Da condição de Caloiro Nacional Artigo 20º 1. Aos Caloiros é vedada a permanência na via pública após a meia-noite (zero horas) até à hora do primeiro toque matutino da Cabra e estão sujeitos à PRAXE de Trupe e só a esta, durante este espaço de tempo; 2. A infração ao que se dispõe neste artigo traduzir-se-á em rapanço, se as crinas do animal tiverem mais de dois dedos de comprimento no caso dos Caloiros Nacionais e de unhas no caso dos Caloiros Estrangeiros, a aplicar por Trupe.35 No caso da Covilhã estes grupos chamam-se Melícias e esperam os caloiros à saída dos espaços onde estes estão a construir os carros da latada. Levam-nos para praxes em locais isolados que muitas vezes podem durar até de manhã. As sanções podem ser igualmente duras: Secção Terceira Objetos da Praxe […] As sanções normais são orelhadas com a mola; considera-se uma orelhada a colocação da mola de madeira no lóbulo da orelha do mesmo modo que se coloca um brinco com a duração de 15 segundos, podendo o Forum Veteranum ou Forum Praxis estabelecer acertos e criar sanções extraordinárias.36 No Porto as trupes também existem, mas, na prática, são menos comuns e funcionam de acordo com uma lógica diferente, servindo sobretudo para sancionar e disciplinar “doutores”. A este propósito devemos referir que nem todas as punições da praxe são direcionadas para os “caloiros”. Algumas são dirigidas para os “doutores” que violam as regras da praxe ou têm comportamentos considerados abusivos para os “caloiros”. Como vimos, os diversos códigos de praxe preveem sanções para certas violações de normas, a que poderão acrescer outras que não constem nesses documentos. Em Bragança foi-nos revelado que os “doutores” infratores podem ser praxados, geralmente longe dos olhares dos “caloiros”, uma vez que é considerado humilhante que um “doutor” seja praxado à 35 Código de Praxe da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://mcv.aac.uc.pt/files/Codigo_da_Praxe3ed.pdf 36 Código de Praxe da Universidade da Beira Interior. Disponível em: http://neubi.pt/anexos/CodigodePraxeUBI.pdf 149 vista dos estudantes que estão na base da hierarquia. De acordo com um estudante de Coimbra, no limite, pode ser retirada a um “doutor” a possibilidade de voltar a praxar. Porém, se alguns estudantes praxistas nos falaram destas possíveis sanções, outros revelaram-nos que não conhecem qualquer punição para condutas menos adequadas no contexto de praxe, dizendo que qualquer infração que pudessem cometer se resolveria certamente com uma conversa ou, no máximo, uma repreensão. Resta-nos acrescentar que, pelo menos em alguns contextos, a praxe a “doutores” não existe apenas para castigar infrações ou má conduta. Ela também pode acontecer com outros propósitos, como trocar informações e opiniões sobre o decurso da praxe, divertir os “doutores” ou ensaiar coisas que serão transpostas para a praxe aos “caloiros”. 4.5. Praxes de medo e de susto Outros tipos de praxes que pudemos conhecer baseiam-se em provocar e produzir um sentimento de medo e de susto nos caloiros. Estas praxes não se baseiam num exercício de violência física mas antes no exercício de violência psicológica que se considera instrumental para a obtenção dos fins considerados úteis e de desejável apreensão pelos caloiros. Um antigo praxista de Lisboa, com quem conhecemos algumas situações de praxe, explicou-nos que a praxe em que participou tinha uma grande preocupação com a proteção dos caloiros. E para o exemplificar faziam uma atividade dura mas tida como fundamental para os caloiros perceberem que a praxe é um espaço seguro. A meio da semana levavam todos os caloiros para uma sala de aulas escura. Todos os “veteranos” estão lá dentro, de capa traçada. Apenas se vêm fios de luz, provocados por velas acesas, e que permitem reconhecer a presença de “veteranos” na sala. Como nos diz: “o ambiente é construído para meter medo aos caloiros”. Estes são colocados de joelhos e entre eles está um “veterano” disfarçado de caloiro. Os “veteranos” trajados chegam junto desse “veterano” disfarçado e dizem-lhe que lhe vão rapar o cabelo. Ele protesta, grita e tenta resistir. Eles pressionam-no, berram, seguram-no e não o deixam sair da sala. Este acaba por se submeter e o seu cabelo é cortado. O suposto caloiro sai então da sala e os “veteranos” dizem que vai ser agora a vez de outra pessoa. Com os caloiros em pânico, o “veterano” a quem foi cortado cabelo volta à sala mas desta vez trajado. As luzes acendem-se e os caloiros ficam surpreendidos com a situação. Este explica-lhes a moral da história: na praxe ninguém pode ser obrigado fazer nada que não queira; a praxe é 150 voluntária e podem sair quando quiserem. Este exemplo apresentado como uma praxe positiva para os caloiros também pode ser interpretado como uma forma de exercício de poder em que quem está em cima dá a entender a quem está por baixo que se encontra à sua mercê: “se eu quisesse, podia-te fazer mal; só não faço porque não quero, nunca te esqueças disso”. Outro exemplo paradigmático de intimidação dos “caloiros” chega-nos de Bragança, onde, de acordo com o que nos foi relatado por alguns estudantes, aqueles que têm de enfrentar o “tribunal de praxe” o fazem sozinhos num cenário intimidante que envolve pouca luz, “doutores” com as caras tapadas, odores fétidos e vários ruídos atemorizantes, produzidos sem que os caloiros possam ver a sua origem, e que podem incluir o som de motosserras em funcionamento. Mesmo em circunstâncias de praxe mais comuns, que não sejam encenadas para assustar deliberadamente os “caloiros”, é possível encontrar frequentemente um elemento de intimidação. No Porto, como referimos, é comum ver “doutores” a rodear completamente um grupo de “caloiros” (com estes por vezes em minoria) durante a praxe. Ainda que as intenções declaradas de quem o faz sejam, como vimos anteriormente, outras, é inevitável admitir a possibilidade de um efeito de amedrontamento de quem está dentro do círculo. A pressão e a ameaça podem estar presentes também na forma como as ordens são dadas aos “caloiros”: como referimos, elas podem ser gritadas em tom autoritário ou agressivo, com uma linguagem corporal correspondente e uma grande proximidade física entre o “doutor” que as emite e o “caloiro” que as recebe. Para além disso, também se verbaliza a mensagem de que o “caloiro” que não cumprir determinada ordem ou conduta estará “fodido”, o que pode ser interpretado como uma forma de intimidação. 4.6. Praxes de nojo As praxes de nojo são também bastante comuns e procuram confrontar o caloiro com o seguinte dilema: se quer provar a plena adesão ao grupo, tem de passar por algo verdadeiramente incomodativo e repugnante. Quando aceita o sacrifício prova a dedicação incondicional ao coletivo. Entre estas praxes de nojo há tonalidades diferentes. Numa versão mais suave, elas passam por atividades em que os caloiros acabam por ficar com a cara suja com produtos alimentares como farinha e ovos; mas outras “praxes sujas”, como são conhecidas entre os estudantes, podem ir mais longe. Vejamos três exemplos de contextos regionais muito diferentes. 151 Em Lisboa, nos jardins do Campo Grande, um grupo de “veteranos” pede aos caloiros que fechem os olhos. Depois de alguns segundos em que é testada a ansiedade e o nervosismo é-lhes despejado um líquido castanho e malcheiroso nas costas, por dentro da roupa. Os “caloiros”, enojados, procuram saber o que contém o líquido. Um dos “veteranos” responde-lhes que o princípio da praxe é confiarem nos mais velhos, por isso não precisam de se preocupar. Num grupo ao lado os “caloiros” estão sentados no chão e é-lhes dito para retiraram um dos seus sapatos e passarem a um outro “caloiro”. Depois, cada um tem que colocar o sapato no nariz durante 20 segundos, sem pausas. O sapato é posteriormente trocado com outro e recomeça a atividade. Em Bragança, no já referido “tribunal”, os “caloiros” não só têm de suportar cheios incómodos como ainda são sujos com múltiplos produtos alimentares. No entanto, e conforme nos foi relatado, a sua capacidade para vencer o sentimento de repugnância enfrenta um teste mais duro quando têm de beijar uma cabeça de boi decapitada. Na Covilhã observamos um exemplo em que esta filosofia é levada ao extremo. A propósito do ritual de “Batismo”, acompanhámos um dos cursos num dia de praxe. O frio da serra estalava os ossos. Os “caloiros” foram levados para junto de uma fonte natural da Serra da Estrela e foram colocados em fila de costas para a fonte. Cada um é chamado vez à vez pelos padrinhos de praxe. É-lhes dito que se sentem na água fria, enquanto o padrinho e a madrinha lhe esborram um ovo na cabeça, cobrindo-a de seguida com polpa de tomate. De seguida, o “caloiro” vem para outra zona onde fica com outros colegas, em pelotão, à espera que todos os caloiros passem pelo mesmo ritual. Depois de cumprido este ritual, avança-se para a segunda parte. Os caloiros são deitados no chão e os veteranos despejam-lhes em cima garrafões cujo conteúdo é preparado durante todo o ano: uma mistura de leite estragado, ovos podres, óleo, farinha, leite de coco, vinagre, azeite, vinho, mostarda e ketchup estragados, pasta de dentes, enfim, tudo o que viver à cabeça do “veterano” ao longo desse ano. Enquanto espalham o líquido sobre os “caloiros”, os “veteranos” têm uma máscara na cara para não terem de cheirar o preparado. Outros colocam pasta de dentes nas narinas para o mesmo efeito. Uma vez vencido este teste de repugnância fica provada verdadeira adesão do caloiro à praxe, ao curso e à universidade a que chega. 152 Figura nº. 18: Batismo de curso – parte 1 Figura nº 19: Batismo de curso – parte 2 4.7. Estórias, rimas e charadas Outras práticas de praxe baseiam-se em estórias, rimas e charadas, algumas a partir de situações reais, outras ficcionadas, que são contadas em grupos de “caloiros” e “doutores” num ambientes de riso e descontração entre as pausas dos exercícios mais duros. Entre estórias que cada caloiro conta e charadas que cada “doutor” vai desafiando o grupo a solucionar, estes são momentos de maior descontração e de pausa depois da rigidez de praxes de exercício físico, dos cânticos ou de outras atividades mais cansativas. Muitas vezes optam-se também por jogos de rimas mantendo um carácter cómico e descontraído. Num jogo de rimas e de gozo numa faculdade em Lisboa, os “caloiros” estão em fila e a “veterana” grita o nome de cada um deles. Aqueles, vez a vez, têm de fazer uma rima com o seu nome que tenha piada perante o grupo. 153 Tabela nº 15: Charadas em contexto de praxe. Fonte: Elaboração própria em contexto de observação. Chamamento da Veterana Resposta do Caloiro «Oh Joanaaaaa» «o meu rabo não engana» «Oh Anaaaaaaa» «a minha fruta preferida é banana» «Oh Inêêêêêêês» «trás um colega para sermos três» «Oh Pedrooooo» «a minha pila mete medo» «Oh Mafaldaaaa» «quero a banana na minha cara» No fim deste ritual, abordámos uma “caloira” que nos disse que este é sobretudo um momento de relaxamento e à vontade. Os “caloiros” podem inclusivamente rir-se sem serem punidos. Para além disso, são jogos feitos para que os caloiros conhecem os nomes uns dos outros. Estes jogos criam outro tipo de laços, argumenta connosco uma “caloira”, que na verdade outras praxes não conseguem promover de forma tão eficaz. No Porto, as charadas assumem especial importância numa atividade chamada cascus paper, uma espécie de rally paper adaptado à praxe. Embora haja estudantes praxistas de certas instituições que organizem o seu próprio cascus paper, existe um à escala da academia, envolvendo várias escolas da Universidade e do Politécnico do Porto, bem como de instituições privadas, e que conta com a presença do mais poderoso órgão da praxe naquela cidade: o Magnum Consilium Veteranorum, composto pelos estudantes que encabeçam a hierarquia praxística das diferentes escolas de ensino superior (os Dux Facultis) e presidido pelo Dux Veteranorum, que ocupa o topo da hierarquia da praxe portuense. Antecedida por uma concentração e por algumas atividades de praxe que podem incluir cânticos e praxes de exercício físico, e, no caso do cascus paper da academia, por uma saudação formal ao Dux Veteranorum e restantes elementos do Magnum Consilium Veteranorum (os caloiros erguem a mão direita em jeito de saudação romana e, olhando sempre para o chão, dizem em coro “ave Dux Veteranorum, praxituri te salut” e “ave Magnum Consilium Veteranorum, praxituri te salut”), esta atividade consiste num jogo em que equipas de “caloiros” percorrem a cidade seguindo um conjunto de pistas e resolvendo enigmas que foram previamente preparados pelos estudantes mais velhos. Observámos parte do cascus paper da academia. Começada a atividade, a rigidez presente noutros momentos de praxe abranda: os “caloiros” das equipas conversam espontaneamente entre si com alguma frequência (têm de o fazer para resolver as 154 charadas) e as deslocações pela cidade não obedecem à lógica habitual dos cortejos da praxe, caracterizada pelas filas organizadas de caloiros de mãos dadas. No entanto, não se pense que a hierarquia está ausente deste jogo: todas as equipas são seguidas e supervisionadas por “doutores”; estes corrigem o posicionamento dos “caloiros” no espaço (ordenando-lhes, por exemplo, que desocupem o espaço de um passeio em frente a uma passadeira); aceleram ou desaceleram a velocidade com que as equipas se movimentam; ordenam, se assim entenderem, que se entoem cânticos da praxe. A este respeito, não é despiciendo assinalar que vimos uma “caloira” a pedir autorização a um “doutor” antes de se dirigir a um funcionário de uma livraria emblemática do Porto para o questionar a respeito de um dos enigmas que precisava de resolver. 4.8. Encenações físicas e simulacros sexuais Um outro tipo de praxes que se pôde observar consiste em promover simulações físicas e simulacros sexuais entre os caloiros. Nos jardins do Campo Grande, por exemplo, os caloiros são colocados dois a dois, um rapaz e uma rapariga, segurando um esparguete cru com a boca, cada um na sua extremidade. Os doutores vão dando indicações sobre que movimentos devem ir fazendo com os corpos. A massa vai-se partindo e as bocas vão-se aproximando, num jogo de simulação e encenação física, interrompida de imediato pelos “doutores” quando as bocas estão demasiado próximas. Observámos uma atividade semelhante a esta em Coimbra: agrupados dois a dois (um rapaz e uma rapariga) e ajoelhados, de frente um para o outro, os “caloiros” deveriam comer uma maçã em simultâneo, sem usar as mãos, até serem interrompidos, já com as bocas muito próximas. Ao mesmo tempo, os “doutores” iam dando indicações: “mais sensual!”, “olha a mãozinha na cara!”. A meio da atividade, um “caloiro” que não estava envolvido nela dirigiu-se a um “doutor” que a dirigia, repetindo “o que é esta merda, pá!? Não sabes praxar!” (seguramente cumprindo uma ordem de outro “doutor”). O seu castigo foi participar neste jogo emparelhado com outro rapaz. 155 Figura nº 20: Praxe de simulação física e sexual Regressando ao mesmo jardim de Lisboa, noutro grupo os caloiros estão sentados no chão em fila. O segundo da fila tem as pernas presas à cintura do primeiro e por ai fora até aos últimos do comboio. Encaixados uns nos outros têm de percorrer um conjunto de metros, agarrando o cabelo da pessoa da frente e simulando orgasmos enquanto os doutores gritam: “mais alto!”; “não estão a gostar?”; “mais fundo, mais fundo”. Mais à frente um outro grupo junto a uma árvore faz uma das praxes mais conhecidas: o pudim Danone. Neste caso foi pedido a uma “caloira” que se colocasse agarrada a uma árvore “com o rabo empinado”. A um “caloiro” foi dito que com uma mão lhe agarrasse a cintura e com a outra o cabelo. A seguir tinham de simular atos sexuais. Ele grita alto: “é pudim Danone”; Ela responde: “não pares, não pares”. Isto em loop até os veteranos mandarem parar e trocarem o par. De novo em Coimbra, na movimentada Praça da República, vimos um “caloiro” a agarrar-se a um poste, inclinando o tronco para a frente. A alguns metros de distância, atrás dele, outro rapaz iniciou uma corrida que só terminou quando entrou em contacto com o primeiro, tendo depois realizado movimentos pélvicos até se ouvir o barulho de um balão a estourar. Os dois permaneceram onde estavam, e um terceiro “caloiro” iniciou nova corrida, saltando contra os quadris do colega da frente e rebentando novo balão. A atividade continuou até todos os “caloiros” daquele grupo terem passado por ela desempenhando os dois papéis. 156 4.9. Os jogos e brincadeiras da praxe Uma parte das atividades que se desenrolam na praxe consiste num conjunto de jogos que vários estudantes com quem conversámos de forma mais formal ou informal, sobretudo entre os “caloiros”, classificaram como “divertidos”, apesar de “infantis”. Apresentamos agora exemplos de algumas dessas brincadeiras que pudemos observar. Situemo-nos primeiro em Coimbra, na Praça da República, ao fim da tarde. Um grupo de “doutores” praxa alguns novos estudantes. Todos os presentes são do sexo masculino. De súbito, um “doutor” grita “inundação!”. Os “caloiros” disparam em corrida em todas as direções, sobem aos bancos e agarram-se aos postes, tentando pendurar-se nestes. Um “caloiro” fica para trás e tem de se deitar no chão, fingindo nadar de bruços, enquanto os restantes observam e comentam, divertidos. O mesmo jogo foi interrompendo periodicamente as outras atividades de praxe deste grupo. Mais tarde, na mesma praça, assistimos a outro jogo da praxe: os “caloiros” (agora rapazes e raparigas) ouvem uma indicação de uma “doutora” e iniciam uma corrida na direção de uma cabine telefónica. Uma vez lá chegados, todos se comprimem e contorcem tentando entrar e permanecer dentro dela em simultâneo; uma tarefa que, pelo número de participantes envolvidos, era manifestamente impossível. A atividade continua até que os “doutores” os mandam regressar. Alguns “caloiros”, embora regressem com a respiração pesada e o rosto corado, sorriem, e uma rapariga diz “que pena, estávamos a gostar”. Viajemos agora para uma rua no Pólo Universitário da Asprela, no Porto. Um grupo de “caloiros” parece divertir-se enquanto faz mosh (uma atividade que se pode observar em alguns concertos de rock e metal em que os elementos do público saltam uns contra os outros) ao mesmo tempo que entoa um cântico de pertença ao seu curso. A atividade foi antecedida de alguns cuidados: os rapazes foram separados das raparigas e avisados de que se algum deles se atrevesse a tocar numa colega sofreria consequências sérias; e todos foram instruídos para não levantarem os braços enquanto o mosh durasse, devendo mantê-los junto ao corpo. Na mesma cidade, mas noutro dia, noutro local e com outros protagonistas, um grupo de “caloiros” está sentado no chão, tentando construir uma espécie de balões com materiais fornecidos pelos “doutores”. Terminada esta tarefa, os balões foram lançados numa competição por equipas. Enquanto os restantes “caloiros” esperavam no passeio de uma rua, um representante de uma equipa subia umas escadas até um plano mais elevado, 157 onde estavam os “doutores”, e lançava de lá o seu balão. Os “doutores” instruíam os restantes “caloiros” dessa equipa a fazer claque pelo seu balão. Ainda no Porto, no Parque da Cidade, os “doutores” de uma faculdade decidiram organizar um conjunto de “jogos tradicionais” em que os jogadores são, naturalmente, os “caloiros”. As atividades em causa incluem transportar um ovo numa colher segura com a boca, com as mãos amarradas atrás das costas, fazer corridas de sacos, ou colocar uma fila de “caloiros” a descer uma ladeira, com cada “caloiro” sentado entre as pernas do colega que está imediatamente atrás, tudo isto ao som ora de incentivos, ora de comentários jocosos proferidos pelos “doutores”. Muitos caloiros têm a cara e a roupa suja com aquilo que parece ser farinha. Podemos ainda enumerar outros jogos, que não vimos mas que nos foram relatados, apenas para dar conta da diversidade de atividades dentro deste espírito que se podem encontrar na praxe. Num deles, um grupo de “caloiros” tem de formar uma muralha humana e impedir que os seus colegas furem a sua linha; noutro, alguns “caloiros” permanecem em pé, como pinos, e um dos seus colegas corre contra eles, devendo os restantes lançar-se para o chão quando ele se aproxima, simulando uma jogada de bowling. Também há quem jogue ao mata com balões cheios de água, ou então faça corridas com barquinhos de papel construídos pelos próprios “caloiros”. 4.10. As praxes de gozo e ridicularização Numa conversa com um praxista em Lisboa ele explicou-nos que uma das coisas que a sua comissão de praxe tenta organizar é “uma espécie de testes de ridículo”. Isto porque consideram que se num grupo todos os membros forem testados no ridículo, toda a gente se ridiculariza, criando-se mais à vontade, confiança e cumplicidade entre os membros. É por isso, por exemplo, que quando em Lisboa passa um avião junto à cidade universitária os caloiros têm de se atirar para o chão e esforçar-se por fazer os gestos mais ridículos que conseguirem, clamando pela mãe e pela família, como se o avião estivesse prestes a cair. Quando mais ridículos forem, mais se riem uns dos outros e mais fortes ficam os laços porque são ridículos todos juntos. Numa atividade de Coimbra algo similar, os “caloiros”, quando ouvem um “doutor” gritar “bomba!”, têm de se deitar de costas no chão, agitando depois as mãos e os braços no ar até que algum “doutor” os mande parar. Outra das praxes que acompanhámos consistia em que os caloiros fossem abordar pessoas na rua, começando a fazer-lhes declarações de amor. Como nos disse um 158 caloiro, “a situação torna-se ridícula mas todos fazemos, por isso somos ridículos juntos e ninguém se importa”. Em Coimbra observamos uma praxe de ridicularização com uma dimensão especialmente relevante, uma vez que foi intencionalmente dirigida a uma audiência que incluía não apenas os colegas mais velhos, mas várias pessoas presentes no local: cinco “caloiros” que estavam envolvidos em atividades de praxe naquela praça aproximaramse de uma esplanada repleta de pessoas, maioritariamente jovens. Colocaram os braços em redor dos ombros uns dos outros. Um deles declarou em voz alta: “boa noite. Nós somos cinco putas e viemo-nos apresentar”. Começaram então a dançar o can-can, ao mesmo tempo que cantavam uma letra ao som de uma melodia frequentemente associada a esta dança. Não conseguimos discernir a letra completa, mas o refrão, cantado de forma mais enérgica, era facilmente audível: “nóóóóós somos cinco putas, cinco prostitutas, lá do cabaret, olé olé”. Este pequeno espetáculo foi recebido pela generalidade da plateia com risos e aplausos. Ouvimos alguém dizer numa mesa próxima: “curtia ter feito isto na praxe”. Ainda dentro deste estilo de praxe, e também em Coimbra, foi-nos relatado por uma estudante que é muito comum, naquela cidade, colocar um “caloiro” a dançar em frente aos automóveis numa passadeira enquanto o semáforo está verde para os peões. A estudante em causa disse-nos ainda que, apesar de ser inconcebível fazer uma coisa dessas fora da praxe, acaba por ser divertido fazê-lo naquele contexto. 4.11. Praxes sobre a praxe Na praxe podem também existir momentos em que, de formas diversificadas, os “caloiros” recebem diretamente dos mais velhos ensinamentos sobre a própria praxe. Tais ensinamentos podem incidir sobre aspetos muito diversificados: o que é que os “doutores” podem e não podem ordenar-lhes que façam e em que circunstâncias é que é legítimo fazê-lo, em que consistem determinados aspetos da praxe e dos costumes estudantis, quais as regras e princípios que regem a praxe. Assim, no Porto, vimos um grupo de “caloiros” sentados no chão, de forma descontraída, de frente para os “doutores”, alguns deles igualmente sentados no chão, outros em pé, numa sessão de “perguntas e respostas” sobre a praxe. Também no Porto, um dos nossos entrevistados revelou-nos uma praxe que era realizada uma vez por ano na sua faculdade, entretanto abandonada há cerca de uma década porque se concluiu que poderia gerar problemas. Durante um dia de praxe, um 159 grupo de “doutores” encenava todo o tipo de situações que, no seu entendimento, devem ser evitadas em praxe: simulavam estar fortemente alcoolizados, davam ordens que contrariavam outras ordens prévias, havia gritos e trocas de ameaças e insultos, tudo de forma combinada. Se algum caloiro interviesse, era-lhe imediatamente ordenado que se calasse. A ideia era encenar um clima de elevada tensão. Os “caloiros” tinham sido instruídos previamente de que esse tipo de situações é anómalo e de que não deveriam submeter-se a elas. Esta situação servia de teste para avaliar se abandonariam o cenário como deveriam ou se ficavam. Àqueles que pretendessem ir embora era explicado, em privado, o que estava a acontecer e era dada a opção de permanecerem ou irem. Os que permaneciam também podiam ser envolvidos na encenação, sendo separados dos restantes pelos “doutores” encarregues de aumentar a tensão. No final, todos os “caloiros” eram levados para o local onde estavam os “caloiros” antes separados e era-lhes explicado, numa longa conversa, o propósito da encenação. Em Coimbra, algumas “doutoras” de um determinado curso disseram-nos que encorajam os seus “caloiros” a ler o código de praxe, podendo fazer-lhes questões sobre o mesmo e castigar quem não soubesse responder corretamente. Outra coisa que por vezes fazem consiste em ordenar aos “caloiros” que façam coisas que não são permitidas pelo código, testando-os e avaliando se eles, como deveriam, recusam a ordem. Estes testes, tal como a encenação de descontrolo que era praticada há alguns anos atrás numa instituição do Porto, têm um objetivo declarado comum: ensinar os “caloiros” a dizer não em situações abusivas que, em momentos de praxe comuns a múltiplas instituições, poderão eventualmente ser desencadeadas por “doutores” menos escrupulosos e estranhos à “casa”. As práticas de praxe, tal como as personalidades dos “doutores” e “veteranos” que as podem comandar, são muito diversificadas. E, se os interlocutores que nos relataram estas situações concretas afirmam que, na praxe dos respetivos cursos, se evitam as situações abusivas, também admitem a hipótese de que outros estudantes “praxistas” não sejam sempre tão conscientes quanto eles próprios. 4.12. O lado convivial, festivo e carnavalesco da praxe Não podemos deixar de referir uma vertente da praxe mais convivial e festiva, plena de elementos carnavalescos e frequentemente marcada por vários tipos de excessos. Esta faceta corporiza-se em momentos de celebração da identidade grupal como são alguns jantares de estudantes, a Latada ou o Rally das Tascas. Pela sua elevada importância para 160 a consolidação da identidade grupal, com todas as suas marcas de distinção e regras informais de conduta, analisaremos com algum detalhe estes momentos. 4.12.1. Jantares de curso em coimbra Na noite da Serenata na Sé Nova, as ruas de Coimbra encheram-se de estudantes, muitos deles trajados, outros não, a caminho de restaurantes ou agrupados à porta dos mesmos, neste caso segurando frequentemente cigarros acesos e copos contendo bebidas alcoólicas. Pela Baixa da cidade ecoavam os cânticos e gritos de guerra da praxe, designadamente os cânticos de pertença e os cânticos de bebida. Estes jantares são momentos de reforço dos laços interpessoais e da identidade grupal, mais descontraídos e espontâneos do que a praxe em sentido estrito, e marcados pelo consumo de álcool. Porém, as hierarquias e lógicas de poder não estão completamente ausentes. Num restaurante de Coimbra vimos os alunos trajados a entrar no estabelecimento e escolher os seus lugares; só depois de o terem feito autorizaram os “caloiros” a entrar e a sentarem-se. Na noite seguinte, na Praça 8 de Maio, deparámo-nos com uma concentração de estudantes que, como nos explicou uma das pessoas presentes, se agrupavam para partir para o restaurante onde tinham marcado o seu jantar de curso. É verdade que as interações entre eles eram espontâneas e que reinava um ambiente de boa-disposição, em tudo diferente das interações mais rígidas e programadas observadas noutros contextos de praxe; no entanto, os mais velhos usavam o traje académico, enquanto os “caloiros” traziam orelhas de burro de cartão na cabeça com o seu nome de praxe escrito nelas. Ainda assim, a estudante com quem falámos não considerava aquele um momento de praxe. 4.12.2. Rally das tascas no Porto O rally das tascas é uma atividade onde praxe, convívio e consumo de bebidas alcoólicas se misturam. Decorrendo durante a noite, consiste em visitas a bares da cidade. Neste contexto, observámos durante algum tempo as interações e atividades dos estudantes nas imediações do café Âncora D'Ouro, mais conhecido por Piolho, local emblemático da noite portuense e há muito associado aos estudantes do ensino superior e à sua boémia. “Doutores” e “caloiros” movimentavam-se pelo local, alguns consumindo bebidas alcoólicas, outros conversando em pequenos grupos, outros ainda envolvidos em atividades de praxe. Entre estas presenciámos os habituais cânticos e ainda praxes que 161 poderemos classificar como de ridicularização: alguns rapazes a dançar de uma forma desengonçada, um rapaz a cantar “sobe sobe balão sobe, sobe sobe sem parar” com um balão preso sobre a sua roupa, na zona genital, ou dois rapazes exclamarem para duas raparigas alheias à praxe “Kinder... surprise!”, ao mesmo tempo que revelavam balões colocados na roupa, também nas suas zonas genitais. Todavia, o ambiente geral é muito mais descontraído do que aquele que marca a maior parte dos momentos de praxe observados, com mais sorrisos, maior espontaneidade dos “caloiros”, e mais diálogo entre estes e entre estes e os “doutores”. 4.12.3. Latada no Porto A Latada é uma celebração repleta de elementos carnavalescos, durante a qual partes da Baixa do Porto (Praça Gomes Teixeira, Cordoaria, Clérigos, Praça da Liberdade e Avenida dos Aliados) se tornam quase como que propriedade dos estudantes, sendo cortado o trânsito automóvel e acorrendo ao local um grande número de familiares que procuram localizar, fotografar e dirigir algumas palavras ao elemento da família que participa no evento. Trata-se de um desfile que começa em frente ao edifício da Reitoria da Universidade do Porto e termina em frente ao edifício da Câmara Municipal, onde decorre um juramento dos “caloiros”. O dia só termina com o batismo dos “caloiros”, na fonte da Praça Gomes Teixeira. Os estudantes mais velhos envergam o seu traje académico e os “caloiros” os seus “uniformes” da praxe com elementos alusivos ao curso que frequentam. Transportam também tarjas e cartazes com frases que professam o seu orgulho por pertencerem a determinada faculdade ou curso, a sua devoção pela praxe e, em casos mais raros, com mensagens provocatórias para cursos e instituições “rivais”. Transportam ainda cordões de latas em volta do corpo, que chocalham e fazem barulho enquanto estes caminham, correm ou saltam. O nível de ruído que se produz durante o cortejo é verdadeiramente impressionante. Para além das latas, dos cânticos (os cânticos e gritos de guerra de pertença são uma constante, com cada curso a procurar suplantar os demais na entrega com que os entoa) e das ordens e incentivos gritados peloos “doutores”, os barulhos são produzidos por todo o tipo de ferramentas com que os estudantes se equiparam para esse efeito: instrumentos de percussão como as pandeiretas e os tambores, instrumentos de percussão improvisados, como latas e bidões que são sovados com paus e bastões (as suas amolgadelas comprovam o entusiasmo dos estudantes), apitos, vuvuzelas, megafones, 162 buzinas. O desfile segue uma ordem pré-estabelecida, com os grupos de cada faculdade a ocuparem um determinado lugar na romaria, mas é algo caótico, com paragens a meio e algumas corridas para recuperar distâncias que entretanto se estabeleceram para o grupo da frente. No final do cortejo, os estudantes agrupam-se em frente à Câmara Municipal do Porto, sentados ou em pé, continuando com os cânticos e o barulho e, nalguns casos, executando coreografias simples, dirigidas pelos “doutores” com movimentos das suas mocas e colheres de pau. A troca de provocações e insultos entre os estudantes das diferentes escolas anima o ambiente, perante o olhar do Dux Veteranorum e outros elementos do Magnum Consilium Veteranorum, que assistem ao desenrolar dos acontecimentos no centro do primeiro quadrante da Avenida, num espaço mais elevado. Elementos da Federação Académica do Porto ajudam a coordenar a chegada e disposição dos cursos à medida que estes vão chegando a este local. O cortejo é seguido de um momento que se quer solene: um “caloiro” de cada instituição é escolhido para subir ao palco onde está o Dux Veteranorum onde, numa posição submissa e reverencial (joelhos e mãos no chão), deve repetir as palavras de um juramento (que, infelizmente, não conseguimos ouvir). Os restantes “caloiros” permanecem também eles em diversas poses de submissão e reverência, desde ficarem em pé com a cabeça baixa e os braços erguidos ao lado do corpo até várias variações da posição “de quatro”. No final do juramento dá-se um grande momento de celebração coletiva, com os estudantes a produzirem, com a sua voz e os seus instrumentos e acessórios acima descritos, o máximo de ruído que conseguem. 4.12.4. Latada em Coimbra Tal como no Porto, a Latada de Coimbra consiste num desfile dos estudantes pela cidade envolvendo latas presas ao corpo dos “caloiros”. Exatamente como no contexto anterior, também na “cidade dos estudantes” esse desfile atrai uma multidão de espectadores, na sua generalidade familiares dos estudantes, obrigando ao corte do trânsito automóvel em múltiplas ruas. E também a latada de Coimbra consiste numa celebração carnavalesca e muito ruidosa de um determinado estatuto, o estatuto de estudante do ensino superior, e, ao mesmo tempo, numa operação de diferenciação dos restantes habitantes da cidade. No entanto, várias diferenças separam as duas variantes da latada observadas. 163 A latada de Coimbra é, provavelmente, ainda mais ruidosa do que a do Porto: os “caloiros” têm as suas latas presas aos tornozelos, e o contacto destas com o solo enquanto eles caminham produz mais ruído do que o chocalhar dos cordões de latas com que os “caloiros” do Porto desfilam. Por outro lado, o lado carnavalesco é ainda mais vincado, uma vez que os novos estudantes envergam diversos disfarces. São comuns os homens maquilhados e vestidos de mulheres, envergando, por vezes, nada mais do que roupa interior feminina e uma cabeleira colorida. Mas vimos também estudantes disfarçados de bonecas Barbie (com embalagem incluída), ambulâncias, demónios, vacas, legionários (com inscrições nos seus escudos como “phalus maximus” ou “coitus infinitus”), entre outros disfarces. Todo o cortejo é mais caótico do que o do Porto, com os estudantes, passado algum tempo, a quebrarem a lógica de desfile e formarem uma grande massa humana que se espalha pela cidade desde a Praça da República até ao Mondego. Muito deste caotismo terá a ver com o consumo excessivo de álcool: o desfile parte da Universidade e muitos estudantes chegam à Praça da República apresentando sinais de pesada embriaguez, ficando logo por ali. O cenário rapidamente se torna decadente, com estudantes cambaleantes ou deitados nos carrinhos de supermercado que antes serviam para transportar bebidas, estudantes que urinam publicamente na rua, garrafas que rolam pelo chão e se estilhaçam, jovens que se banham vestidos (por vezes trajados) na fonte da praça 8 de Maio, e o ruído das sirenes das ambulância que chegam para assistir os casos mais graves de bebedeira. Pelo meio de tudo isto, alguns “caloiros” usam penicos para pedir dinheiro aos espectadores do cortejo. Os “caloiros” que conseguem chegar ao Mondego são então batizados pelos seus padrinhos de praxe, num ritual que descreveremos mais à frente. 4.12.5. Mostras em Bragança As mostras são mais um momento festivo da praxe, com grande importância do ponto de vista do reforço do sentimento de pertença ao grupo, que pudemos observar em Bragança. Os caloiros de cada curso da academia sobem a um palco montado num anfiteatro e, perante toda a comunidade académica, devem interpretar musicalmente uma determinada letra. No fim é selecionado um curso vencedor. As letras têm de incluir obrigatoriamente algumas palavras pré-definidas e, de acordo com uma “caloira” com quem conversámos, são elaboradas pelos “doutores” de praxe. As músicas consistem frequentemente em adaptações de sucessos de artistas de universos musicais populares como o pop, o rock, 164 o hip-hop e a música pimba. As interpretações contam quase sempre com alguma música pré-gravada, mas os “caloiros”, por vezes vestidos de forma extravagante, cantam, executam coreografias, e tocam vários instrumentos. As letras dos números musicais contêm alusões à praxe e aos seus “doutores”, vistos de uma forma positiva; à boémia e à vida de estudante; à academia e ao curso, elogiando os seus alunos; e ao sexo e à sexualidade, geralmente numa perspetiva masculina, senão mesmo machista. Muitos deles apresentam também uma carga humorística. Os números são encerrados com um cântico da praxe, da categoria de orgulho e pertença, entoado com enorme entusiasmo e acompanhado por muitos dos colegas mais velhos presentes na plateia. Mas, de um ponto de vista sociológico, as interações que decorrem entre grupos de estudantes de instituições diferentes não são menos interessantes do que aquilo que acontece sobre o palco. Os “caloiros” de cada escola chegam em grupo, orientados pelos “doutores”, devidamente “uniformizados” com as suas roupas da praxe. Fazem-se anunciar da forma mais barulhenta que conseguem, com gritos e cânticos de guerra e de pertença, berrando “i-i-invasão” e, apenas num caso, lançando petardos. Os estudantes instalam-se no anfiteatro e envolvem-se em disputas com os grupos já presentes, em especial com os seus “rivais”. Estas disputas são dirigidas por estudantes mais velhos. Para cada grupo há um que assume um papel particularmente relevante na direção dos cânticos e palavras de ordem dos “caloiros”, transmitindo o que gritar ou cantar, incentivando-os a fazê-lo mais alto, e indicando-lhes quando parar com um gesto em que erguem uma mão e fecham o punho. Curiosamente, por entre as manifestações de rivalidade, os estudantes dos vários cursos também se saúdam uns aos outros à medida que vão chegando novos grupos, cumprimentando ainda os dirigentes académicos e as mais altas hierarquias da praxe local. Por vezes, durante as performances no palco, eclodem disputas verbais que os mais velhos têm alguma dificuldade em encerrar. No início de cada número, os estudantes na plateia de um dado curso ou instituição que vai ser representada em palco incentivam os colegas, gritando em coro “boa sorte, colegas”. No final da performance, quando os alunos de um dado curso que estão no palco entoam de forma particularmente convicta um cântico de pertença, são muitos os colegas que, nas bancadas, os acompanham, numa clara manifestação simbólica de identidade comum. Ao longo da noite, alguns estudantes seguem com atenção o que acontece no palco, fazendo comentários sobre o desenrolar dos acontecimentos, enquanto outros se alheiam um pouco dos números musicais, circulando pelo espaço, conversando ruidosamente ou namorando. Circulam muitos copos de cerveja pelas mãos dos estudantes, por vezes 165 transportados por “caloiros”, que os vão buscar a uma barraca montada no espaço para vender a bebida. Apesar de todas as demonstrações de rivalidade entre estudantes de diferentes cursos e escolas, o evento termina com um momento de intensa celebração partilhado por todos: os estudantes presentes produzem coletivamente um ruído impressionante com os seus gritos e cânticos, em pé, agitando os corpos, os braços e as mãos. Alguns fazem rodopiar no ar cachecóis alusivos ao seu curso ou escola. Gritam uma a uma, de forma rítmica, as iniciais da instituição de ensino que frequentam. Depois de alguns momentos começam a abandonar o local, uns dirigindo-se a casa, outros dispostos a prolongar a noite nos bares e discotecas locais, como é habitual fazerem durante o tempo de praxe naquela cidade. 4.13. O Batismo O batismo consiste num ritual de iniciação em que é derramado um líquido (água no Porto e em Coimbra, embora, como vimos com o exemplo da Covilhã apresentado numa secção anterior, possam existir variações mais pestilentas) sobre a cabeça do “caloiro”. A inspiração é óbvia – o batismo cristão – e o significado será, igualmente, o de iniciar um novo membro no grupo. Tivemos oportunidade de observar alguns batismos em Coimbra, no final da Latada. Na margem do Mondego, cada “caloiro” a ser batizado coloca-se “de quatro”, na variação em que os joelhos e as mãos estão em contacto com o chão, com o tronco paralelo ao solo e o olhar na direção dos dedos das mãos. Um estudante mais velho trajado, o seu “padrinho” ou “madrinha”, utiliza um penico para recolher alguma água do rio. Essa água é depois despejada sobre a cabeça do “caloiro”. Em alguns casos, a cerimónia era observada de perto por um terceiro estudante que se encarregava de registar o momento utilizando um smartphone, e era encerrada com um abraço prolongado entre o “caloiro” ou “caloira” e o seu “padrinho” ou “madrinha”, revelando a sua importância para os participantes. No caso da Covilhã (ver ponto 4.4), o batismo tem a particularidade de se dividir em três momentos. Um primeiro, em que os “caloiros” de cada curso fazem a coreografia que andaram a organizar durante meses perante um júri encabeçado pelo Imperatorum (chefe máximo da praxe), que depois batiza os “caloiros” com água e farinha. Essa primeira parte acontece em sítios históricos e conhecidos da cidade e envolve uma grande presença de familiares, amigos e curiosos. Num segundo momento cada curso vai para uma zona da cidade de mais difícil acesso e visibilidade (floresta, fábricas abandonadas, 166 descampados, etc.) e cada caloiro é batizado pelo padrinho de curso, geralmente com ovos e polpa de tomate esfregados na cabeça. O momento final é o batismo feito por todos os praxistas a todos os caloiros que, como referimos, consiste em despejar sobre os caloiros garrafões com um grande número de líquidos guardados durante o ano e com um cheiro que, como pudemos comprovar na primeira pessoa, é digno de vómitos. 4.14. As praxes turísticas, culturais e solidárias Quando identificam os aspetos positivos da praxe, os estudantes referem muitas vezes que estas contêm uma vertente cultural, na medida em que incluem passeios, diurnos e noturnos, pelas cidades, mostrando-lhes os seus principais pontos de interesse. No já referido cascus paper que se realiza no Porto, este propósito é evidente. Partindo da Praça Gomes Teixeira, em frente ao edifício da Reitoria da Universidade do Porto, vimos grupos de caloiros a parar no jardim da Cordoaria, na Torre dos Clérigos e na Livraria Lello, e também a descer os Clérigos rumo à Praça da Liberdade. Estas atividades são valorizadas na medida em que ajudam os estudantes recém-chegados a conhecer a cidade e a melhor se orientarem nela. Outra vertente da praxe a que temos de nos referir, tanto mais não seja pela sua mediatização recente, consiste nas chamadas “praxes solidárias”. Neste caso, os “caloiros” são envolvidos em atividades de solidariedade organizadas pelos “doutores” com parceiros externos, tais como, por exemplo, recolher alimentos ou fazer um peditório para uma instituição de solidariedade social. Numa tarde pudemos ver as ruas da Baixa do Porto repletas de alunos de uma escola do Politécnico, devidamente identificados com o seu “uniforme” da praxe, divididos por pequenos grupos sempre acompanhados de perto por colegas trajados, a pedirem dinheiro para uma instituição. Devemos ainda assinalar que as “praxes solidárias”, embora sejam muitas vezes elogiadas, também são alvo de críticas. Os reparos são efetuados por parte de opositores da praxe, que as vêm como uma atividade que pode perfeitamente existir fora da praxe e apenas está dentro dela para a legitimar. Síntese conclusiva As práticas encerradas pela praxe académica são extremamente diversificadas e variam consoante o contexto institucional e geográfico. Entre algumas dessas práticas, neste estudo destacaram-se os jogos e brincadeiras relativamente inócuas; as encenações que 167 colocam os “caloiros” em situações embaraçosas; os exercícios físicos e os simulacros sexuais; os cânticos e coreografias; as sanções, castigos e punições; os sustos e a intimidação; os testes de nojo e repugnância; os ensinamentos sobre a praxe; a apresentação da cidade aos “caloiros”; as ações solidárias. Devem também ser referidos os momentos de festa e celebração coletiva que fazem parte dos costumes estudantis e que, não se constituindo como “praxe” no sentido estrito utilizado neste trabalho, também não podem ser totalmente separados dela, uma vez que se podem observar neles os símbolos e a hierarquia da praxe. Os objetivos destas atividades serão também distintos. O principal objetivo (declarado) dos membros da praxe consiste em facilitar a integração dos alunos no ensino superior, envolvendo-os num conjunto de atividades que não só permitem que se conheçam uns aos outros, como estimulam a criação de um espírito de grupo e de laços de solidariedade entre si. Os métodos para atingir este fim são vários: podemos inferi-los quando os “caloiros” são forçados a enfrentar coletivamente uma experiência menos agradável; quando respondem em coro “um!” ao “doutor” que lhes pergunta “quantos é que vocês são?”; quando se encenam conflitos e disputas com outros cursos37; e também nas celebrações coletivas plenas de manifestações identitárias e distintivas. Para além destas, conseguimos também discernir outras finalidades (desejadas ou não pelos atores sociais) produzidas pelas atividades realizadas. Algumas delas colocam à prova certas qualidades dos “caloiros”, entre as quais a sua desenvoltura, a sua presença de espírito e capacidade de improviso, a sua resistência física e a sua força mental. Outras são partidas e atividades de gozo em que os “doutores” se divertem à custa dos “caloiros”. Também existem algumas iniciativas que visam instruir um pouco os “caloiros”, muitas vezes sobre a própria praxe, mas também sobre a cidade onde se localiza a instituição do ensino superior. Paralelamente verificam-se atividades fortemente marcadas pelo hedonismo, onde se procura a diversão de todos os envolvidos. Quando desfilam pelas cidades entoando os seus cânticos e exibindo ostensivamente as marcas da sua identidade, os estudantes estão a demarcar-se de todos os que não são estudantes e a afirmar e elevar simbolicamente o seu estatuto. Além disso, não podemos deixar de referir as manifestações de uma certa cultura viril e machista, marcada pela objetivação das Simmel (1968) defendeu, num ensaio clássico, que o conflito com inimigos externos reforça a união dos elementos do grupo, ao mesmo tempo que robustece a estrutura interna de poder. 37 168 mulheres e consumo “heróico” de álcool, que já abordámos a propósito dos cânticos da praxe, bem como da cultura boémia há muito associada à comunidade estudantil. Algumas das atividades de praxe decorrem de forma ostensiva e até encenada para quem as quiser ver nos centros das cidades. São facilmente identificáveis através do vestuário utilizado pelos seus protagonistas e pelo ruído produzido. Outras decorrem de forma quase secreta para os “não iniciados”, durante a noite, em locais recatados ou em espaços fechados. Como nos disseram vários estudantes, a praxe pode ser consideravelmente diferente entre instituições do ensino superior e, dentro destas, entre diferentes cursos. Houve quem nos dissesse que essa diversidade tornava qualquer tentativa de compreensão do fenómeno da praxe na sua globalidade um esforço inevitavelmente inglório. Em alguns contextos pode-se insistir mais num determinado tipo de atividades do que noutros e os cânticos e gritos de guerra podem conter uma linguagem mais ordinária ou ser mais “civilizados”. Para além disso, a forma como as atividades de praxe são dirigidas e interpretadas também é variável consoante o contexto e até mesmo a personalidade dos estudantes mais velhos responsáveis pela sua organização e implementação. Assim, os “doutores” podem optar por manter uma postura mais ou menos ríspida e podem ser mais ou menos permissivos relativamente a infrações cometidas pelos “caloiros” como rir quando não é suposto, olhar nos olhos de um “doutor” (nos cursos em que tal não é permitido, que não são todos) ou falar espontaneamente num momento de silêncio. A praxe é enquadrada pelo costume, na medida em que os estudantes se inspiram naquilo que os colegas mais velhos fizeram nos anos anteriores e pelos seus códigos; mas tal enquadramento deixa espaço para que cada “doutor” imprima nas práticas de praxe o seu cunho pessoal, praxando do modo que entende mais adequado à sua própria conceção de praxe. As restrições que a imposição de um cunho pessoal na praxe enfrenta são as objeções que possam ser colocadas por outros “doutores” - sobretudo por aqueles que estejam em lugares mais elevados da hierarquia, conhecidos como “veteranos” em várias academias. No entanto, os aspetos que unificam as várias práticas, permitindo-nos falar de “praxe” em vez de “praxes”, são bastante salientes. Desde logo, o significado sociológico e antropológico da praxe enquanto ritual de passagem, assente num conjunto de práticas, usos e costumes que visam uma “desbestialização do caloiro” com vista à ressurreição simbólica e identitária numa nova fase da sua vida social. Depois, as características fundamentais da sua organização, assentes invariavelmente numa hierarquia que opera 169 numa distinção fundamental entre quem manda e quem obedece, e que estabelece a verticalidade, a reverência à autoridade e o respeito ao superior como regras fundamentais de sociabilidade nos rituais praxísticos. Os elementos de cada um destes dois grupos que ocupam estatutos hierárquicos desiguais distinguem-se de uma forma clara pelo seu vestuário, pelos seus papéis no jogo e pela forma como os desempenham. Esta hierarquia, uma vez aceite, implica uma assimetria de poder vincada entre os “caloiros” e os “doutores” (isto para além dos diferenciais de poder que podem existir entre os diversos tipos de “doutores” e “veteranos”) que estrutura o fenómeno da praxe como um fenómeno de dominação e poder simbólico. Isto significa que na praxe, voluntária ou involuntariamente, com maior ou menor grau de consentimento, os “caloiros” desempenham durante a maior parte do tempo um papel que consiste no cumprimento das ordens dadas pelos “doutores” e comportam-se de acordo com parâmetros, regras e códigos de conduta por estes definidos. Por fim, e como certamente se foi notando ao longo do texto, não podemos deixar de nos referir à natureza socilalizadora destas práticas, uma vez que elas não deixam de transmitir um determinado conteúdo moral, muitas vezes de forma intencional por parte de quem as dirige. No entanto, esse conteúdo não está isento de contradições. Valores como o respeito e a obediência à hierarquia, a disciplina, o sacrifício, a solidariedade entre pares e o espírito de grupo são particularmente salientes, mas podemos também encontrar nestas práticas manifestações de hedonismo, humor e sátira, masculinidade, sexismo e gregarismo. 170 CAPÍTULO V ORIGEM, HISTÓRIA E DESENVOLVIMENTO DA PRAXE ACADÉMICA EM PORTUGAL 5.1. As origens da praxe na Universidade de Coimbra: contextualização Para identificar as origens históricas do fenómeno que hoje designamos por “praxe académica” é necessário adotar uma dada perspetiva, ou seja, situar qual a premissa (dirse-á, “epistemológica”) em que assenta o nosso olhar. Uma abordagem mais ingénua ou impressionista diria que se trata, antes de tudo, de descobrir o “momento”, a “data” ou o “período” em que os comportamentos estudantis associados ao fenómeno tiveram o seu início. Por outro lado, um olhar sociológico que pretenda esclarecer quais os parâmetros ou fatores socioculturais que suscitaram o florescimento do que chamaremos, hoje, a “cultura praxista” exige de nós um esforço acrescido para «situar» no tempo, e no seu devido contexto, os principais elementos – ou variáveis sociológicas – que enquadram o nascimento destes fenómenos e que, portanto, estão na génese da praxe. Segundo o historiador Paulo Archer de Carvalho, as praxes “ainda hoje são a sobrevivência simbólica de rituais de passagem, de presentificação e de heteroreconhecimento, balizadas por gestos que tentam assinalar a des-bestialização do aprendiz e a sacralização do ofício intelectual, partindo do princípio – consagrado na própria nomenclatura (o burro, a cabra, o chocalho, a “magna besta”, etc.) – de que o ser humano é à nascença uma besta e que só pela formação intelectual ou espiritual se liberta dessa primitiva condição” (Assembleia da República, 2008, p. 3). Como é evidente, o fenómeno assume contornos particulares consoante o situarmos no ambiente comunitário tradicional ou no campo universitário. Por outro lado, tanto os rituais iniciáticos (no seu sentido mais lato) como nos contextos académicos ou corporativos onde ocorrem as chamadas “Praxes”, evoluíram consideravelmente ao longo dos tempos. No caso de uma cidade com uma longa tradição estudantil, como Coimbra, a visibilidade que lhe advinha de ter sido até ao início do século XX a única universidade portuguesa – e num longo período de tempo em que o estatuto elitista de quem acedia a Estudos Gerais (o termo que definiu inicialmente a instituição Universidade) era particularmente vincado – ganha ainda maior significado a presença de tais ritos de passagem (fossem eles meramente lúdicos e simbólicos ou assumissem contornos de violência como foi o caso em muitos momentos históricos, como veremos). 171 O ponto de vista histórico é aqui indissociável da nossa visão sociológica. Daí que o percurso a delinear procure ilustrar o estreito vínculo entre universidade e sociedade, identificando alguns dos contornos dessa permanente osmose ao longo dos séculos. As tensões, conflitos e conexões entre o mundo social mais vasto e a cultura académica são uma constante desde os primórdios da Universidade Portuguesa. Importa por isso começar por uma referência histórica ao período de fundação e de instabilidade dos «Estudos Gerais» (a designação original da Universidade), desde que foram criados por D. Dinis, em 1290, até à sua fixação definitiva em Coimbra, por D. João III, em 1537. Esse registo é fundamental, não só por necessidade de informação factual mas sobretudo porque a génese do fenómeno aqui em estudo se inscreve no referido contexto de conflitualidade, ou seja, o conjunto de práticas e rituais de iniciação que marcaram os modos de vida dos estudantes nos primeiros séculos de vida universitária deriva diretamente da relação, quase sempre tempestuosa, entre a comunidade académica e a população da cidade de Coimbra. As primeiras Instituições de Ensino Superior do Ocidente, fundadas nos séculos XII-XIII, foram criadas, a maioria delas por decisões e poderes vinculados às igrejas e a diversas ordens religiosas, a partir de conventos, ou abadias, e outras geradas por grupos de origem diversa, incluindo escolas laicas. A expansão deste movimento obedeceu a uma lógica de consolidação corporativista (o sentido originário do termo «Universitas») destinada a dar resposta às novas tendências associadas a alterações demográficas, concentração urbana, dinamismo comercial, crescimento de novas camadas sociais, etc., etc., e que colocavam as elites medievais – clero, aristocracia e nobreza – perante novas inquietações. Vale a pena no entanto reter que, no caso de Portugal, a iniciativa de criação de uma Universidade se deveu às principais instâncias do ensino que até então asseguravam a formação avançada (essencialmente destinada às corporações religiosa). Alguns historiadores identificam diferentes modelos que deram origem às primeiras universidades medievais: ex-consuetudinae (criadas por via espontânea de acordo com o costume); ex-privilegio (ou seja, por determinação do próprio poder clerical ou monárquico); ou ex-secessione (em consequência de uma separação ou secessão). As universidades de Cambridge (1209) e de Pádua são exemplos deste último modelo, tendo a primeira nascido de uma secessão com Oxford e a segunda com Bolonha (1222). Mas o importante é que tais divisões partiram de uma crescente conflitualidade social entre estudantes e os novos setores burgueses que começavam a surgir na sociedade de então (Jaca, 2010: 6). 172 Para além das origens elitistas do corpo estudantil ao longo de toda a idade média (e mesmo, já na era moderna, pelo menos até aos anos sessenta do século XX), o que por si só justifica a clivagem social e de classe na relação com as comunidades populares, as diferenças distintivas entre a comunidade universitária e a população assumiram um carácter institucional e jurídico que assegurava à primeira todo um conjunto de prerrogativas e privilégios de que o povo jamais poderia beneficiar. 5.2. A universidade medieval e seus privilégios Pouco depois da fundação da Universidade (em 1290), a mesma seria instalada pela primeira vez em Coimbra em 1307, o rei D. Dinis mandou publicar, no ano seguinte, um decreto instituindo horas de estudo e de recolher obrigatório para os estudantes, estabelecendo que os infratores fossem vigiados e sancionados pelos estudantes mais velhos (de acordo com a sua própria hierarquia, baseada exclusivamente na antiguidade de cada membro). É claro que, subjacente a estes regulamentos iniciais estava o estatuto exclusivista de que era depositária a estrita elite que, nesta primeira fase, beneficiava do protetorado da monarquia, visível logo na viragem dos séculos XII-XIII, quando a Universidade se sediou pela primeira vez em Coimbra. É nessa altura (1309) que D. Dinis na sua “Charta Magna Privilegiorum” (versão atualizada da Carta fundadora da Universidade, de 1290) estabeleceu um conjunto de medidas destinadas a disciplinar, mas também a proteger os estudantes. Nela se tornam claras algumas das suas preocupações quanto ao estatuto exclusivo da condição estudantil e às medidas destinadas a acautelar a sua defesa. Tais regulamentos, só cerca de um século mais tarde seriam readaptados e de certa forma incorporados no Foro Académico (1408). Convém entretanto recordar que, nessa época, o estudante típico estava longe da ideia atual do “jovem universitário”, ou seja, os segmentos etários que primeiramente acederam à Universidade eram “homens feitos” e, como se disse, quase exclusivamente de elevada condição social. Note-se, na passagem seguinte do citado documento, essa preocupação por parte do rei fundador da Universidade: 173 “ - Ordena-se que sejam eleitos todos os anos dois ‘homens probos’ do concelho de Coimbra e dois escolares idóneos para tratarem dos problemas relativos à residência estudantil, quando surgirem dúvidas a tal respeito; eram os taxadores que ficavam encarregados de avaliarem os justos preços das rendas das casas. - Os estudantes não podem ser postos fora das casas onde moravam ou delas expulsos, desde que tivesse havido acordo quando às rendas a pagar. Tal disposição só poderia ser revogada caso os donos pretendessem as moradias para nelas residirem ou para as venderem ou oferece-las por ocasião de matrimónio de sus filhos, ou ainda para doá-los a alguém da sua linha descendente. - Proíbe que cortesãs, soldados ou jograis se intrometam na vida dos escolares ou frequentem as suas casas, a fim de lhes ser garantida a máxima tranquilidade. Anualmente devia um pregoeiro público anunciar este capítulo de privilégios pela cidade de Coimbra, para que ninguém pudesse alegar desconhecimento ou ignorância. - Concede aos estudantes que se desloquem ao Estudo Geral com as suas cavalgaduras, livros, criados e alfaias sem terem de pagar portagem em qualquer parte do reino. Esta determinação devia ser comunicada aos alvazis de Coimbra para que passassem cartas abonatórias sempre que os estudantes lhas solicitassem para as suas deslocações.” (Jaca: 46). Parece claro que as disposições iniciais da “Magna Carta” do Fundador já promoviam, na prática, uma situação privilegiada para os universitários, o que viria a confirmar-se com a formalização de um sistema jurídico-judiciário exclusivo da Universidade de Coimbra. O Foro Académico (também designado Juízo da Conservatória da Universidade de Coimbra), criado por D. João I em 1408, garantia aos membros do corpo universitário um estatuto de exceção, permanecendo resguardados das exigências da justiça civil. A ele se liga a generalização do uso do traje académico – que se tornaria obrigatório durante longos períodos – destinado a distinguir o corpo universitário da restante sociedade civil. Entre outros aspetos este regulamento estabelece que: “A Universidade é dotada de personalidade própria, a sua existência estava garantida por estatutos especiais: tem selo privativo, governa-se por si, organiza o ensino como melhor entende, escolhe livremente os seus mestres, para além de estar fora da jurisdição ordinária, já que os seus membros, mestres ou discípulos, têm o privilégio do foro eclesiástico e, chegando mesmo a criar-se para eles um foro especial, o denominado foro académico. Assim, como clérigos e súbditos do Papa, estavam isentos da lei civil e respondiam perante juízes eclesiásticos.” (Bastos, 1920). 174 Ora, os referidos privilégios dedicados aos corpos universitários deixam, desde logo, antever o clima de tensão entre estes e a comunidade local. Como refere Eduarda Cruzeiro, tal clima turbulento acompanhava os ambientes estudantis, tanto na sede universitária lisboeta como na coimbrã. “Uma das razões apontadas para a primeira transferência da Universidade de Lisboa para Coimbra, em 1307, é a conflitualidade existente entre estudantes, fortemente privilegiados e protegidos por um foro privado que os subtraia às justiças comuns” (Cruzeiro, 1979: 814-815). Poucos anos depois, em 1312, D. Dinis ordena punições aos estudantes que permanecessem na rua após o terceiro toque do sino da Sé, enquanto a polícia académica assegurava a vigilância e lhe eram dadas ordens para prender os estudantes e que fossem sujeitos a “penas pesadas” aqueles que infringissem tal regra. 5.3. Violência estudantil na era medieval Mesmo ao longo do século XV, quando a universidade permaneceu em Lisboa, iniciativas houve (como o projeto do infante D. Pedro, enquanto regente) que denunciam a constante violência e tentativas de regular os “bons costumes” dos estudantes. E isto em períodos muito diversos, onde se denuncia que os mesmos se entregam “a vida airada, à tuna, nome talvez derivado dos noctuni grassatores, que andavam provocando rixas com os burgueses, fiados na impunidade do foro privilegiado” (in Teófilo Braga, apud Cruzeiro, 1979: 815, nota 46). A violência a que neste tópico nos referimos, embora focando essencialmente o corpo estudantil, constituía uma realidade social bem mais vasta e que ao longo dos séculos de toda a Idade Média permaneceu um traço marcante na sociedade portuguesa, fosse ela orientada por desígnios sociais e políticos particulares, como muitas vezes aconteceu, fosse unicamente o resultado da miséria e expressão de criminalidade quotidiana a ela associada. Acresce que, em Coimbra, durante um largo período – principalmente nos primeiros séculos de funcionamento da Universidade – o controlo e a disciplina exercida sobre os estudantes e o funcionamento letivo era praticamente desprovido de preocupações pedagógicas ou de vigilância presencial sobre os estudantes. Não só a frequência das aulas não era obrigatória como inicialmente apenas se prestavam exames por ocasião da conclusão dos cursos, para obtenção dos diplomas. Tudo isso facilitava alguma indefinição dado que com facilidade se poderiam confundir estudantes com não-estudantes, acalentando o oportunismo de muitos (designadamente em situações de violência noturna onde grupos embuçados cometiam as mais diversas tropelias). 175 Pouco depois da transferência definitiva da Universidade para Coimbra, em 1537, foram estabelecidas disposições régias por D. João III, visando conter e proibir o porte de armas, um meio ameaçador e então de uso comum em situações de conflito no seio dos estudantes e entre estes e outros grupos populares. Reivindicada desde 1541, a Prisão Académica, só mais tarde seria formalmente reconhecida pelos estatutos de 1591, tendo entrado em funções dois anos depois, nas instalações onde se haviam concentrado os antigos colégios dos Estudos Gerais (ou seja, o tradicional núcleo central da Universidade, hoje conhecido por Polo I). Em 1674 foi adotada, por decisão régia, a proibição do uso da capa cobrindo a cabeça e o rosto, a fim de evitar que os “embuçados” cometessem impunemente os mais diversos atos cuja gravidade, por vezes mortífera, atemorizava populações, estudantes e não estudantes. Com efeito, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII foi possível a certas categorias de funcionários inscreverem-se como estudantes: “também pessoas alheias ao estudo, com vista apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos, donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este abuso” (Rodriguez, 2012: 48). Daí o surgimento de diversos grupos de arruaceiros (alguns integrados também por falsos estudantes), que protagonizaram diversas atividades ilícitas e violentas, incluindo agressões, assaltos e crimes diversos, à sombra da proteção especial garantida pelo seu estatuto e pela justiça privada da Universidade. Vale a pena assinalar os contornos do problema no início do século XVIII. Armados de navalhas, varapaus e pequenas facas, diversos grupos de pretensos estudantes chegaram a semear por vezes o pânico entre a população (estudantil e não só). Diz-nos Teixeira Bastos, acerca de um dos mais famosos bandos de delinquentes que atuaram em Coimbra no início do século XVIII: “A que maior celebridade adquiriu foi o Rancho da Carqueja que cometeu as maiores tropelias em 1720 e 1721, sendo reitor o Dr. Sanches de Baena. Um dos seus fins era raptar donzelas, levando a audácia a ponto de pretenderem raptar uma sobrinha do próprio reitor. Uma das suas proezas foi fazer despir um novato e açoitá-lo com disciplinas, depois de palmatoadas e corte rente do cabelo. Foi preciso vir a Coimbra força armada para o conter. Chegada a força (em Fevereiro de 1721), foram presos trinta e tantos estudantes e conduzidos algemados para Lisboa. D. João V mandou-os degredados para a índia, e o seu chefe, o estudante canonista, Francisco Jorge Aires, da Vila da Feira, acusado dum assassinato, foi degolado [no pelourinho, a 20 de Junho de 1722], sendo a sua cabeça remetida para Coimbra, e aqui exposta na Praça de S. Bartolomeu (desde 1 de Julho de 1722).” (Bastos, 1920). 176 O castigo exemplar (e atroz) do referido chefe não foi suficiente para extinguir a delinquência. Numa provisão do mesmo ano se relatam atos atribuídos a estudantes que andam “de dia e de noite com capotes por toda a parte, com espadas e outras armas debaixo do braço, e muitos embuçados e outros afectando assim com cabeleiras trazer a cara descoberta, obrando solturas e intimidando a toda a pessoa como é notório […]” (T. Braga, in Cruzeiro, 1979: 816). E na mesma fonte pode ainda registar-se um outro caso ilustrativo: “[…] na ocasião dos touros que houve no Mosteiro de Sta Clara, se mascararam alguns estudantes, que juntos foram em um dia insultar o juiz de fora e em outro ao corregedor da comarca, que, vendo o excesso dos ditos mascarados e intentando prende-los, estes lhe resistiram com armas de fogo e lhe feriram um alcaide; e que, não obstante a resistência, o dito corregedor prendera nove dos mascarados (…) sem embargo de serem estudantes, não remetesse os presos nem as culpas ao conservador seu juiz privativo, derrogando por esta vez os privilégios dos ditos estudantes, como protetor que sou da mesma Universidade […]” (T. Braga, in Idem: 816). Para além dos problemas relacionados com violência e conflito, o ambiente universitário de Coimbra, entre finais do século XVIII e ao longo do século XIX, é necessário clarificar algumas das práticas específicas dos comportamentos estudantis que mais diretamente estão relacionados com as praxes (nome que, como adiante se recorda só começa a ser usado a partir de meados do século XIX). 5.4. Investidas, canelões, caçoadas e trupes Desde início do século XVIII as chamadas Investidas, correspondiam a práticas diretamente infligidas aos novatos por parte dos mais velhos. Porém, comportamentos similares já eram usuais nesse tempo, alguns deles associados aos meios de transporte mais comuns na época. Note-se que as viagens a Coimbra eram extremamente morosas e muitas vezes acidentadas. Os estudantes chegavam montados em burros, éguas e machos. Os cavalos e diligências seriam exclusivo dos poucos oriundos dos extratos mais elevados das famílias nobres e aristocráticas. Eduarda Cruzeiro refere-se aos estudantes caloiros que nesse contexto se tornaram “vítimas de arrieiros e estalajadeiros, exploradores vorazes que não lhes poupam as bolsas nem os corpos, usurpando-lhes os primeiros as montadas a meio caminho, ratilhando-lhes os segundos os confortos da cama e mesa que deviam proporcionar-lhes” Cruzeiro, 1979: 810). Era esse o quadro com que se 177 deparavam muitos dos novatos (caloiros) pela primeira vez com os seus colegas mais velhos. É nas investidas que mais surge essa mistura de práticas entre a receção ritualizada e humilhante do caloiro e a violência a resvalar para a criminalidade. A proibição de tais atos decretada por D. João V (em 1727) e a sua denúncia é também apresentada por Ribeiro Sanches na sua crítica aos costumes estudantis de então: “não havia defesa daquelas bárbaras e indecentes investidas, feitas com violência e desacatos, armados os agressores como para assaltar um castelo: e destes excessos resultaram mortes, incêndios e sacrilégios” (Ribeiro Sanches, 1769, in Cruzeiro, Ibidem: 805). A delinquência e o caos foram assumindo proporções particularmente graves ao longo da segunda metade do século XVIII, o que levou o Governo do Marques de Pombal a promover uma reforma profunda do funcionamento da Universidade (em 1772), não apenas nos processos e conteúdos de ensino ministrados, mas também no campo disciplinar, inclusive nos critérios de admissão dos estudantes. O processo foi conduzido pelo Reitor-Reformador D. Francisco de Lemos, que, mesmo assim se queixava, dois anos depois, de “alguma alteração da paz e ordem, causada por alguns vadios, que se vestiam de batina para passarem por estudantes, metendo-se pelas casas dos mesmos estudantes e perturbando-os” (D. Francisco de Lemos, apud Cruzeiro, Ibidem, 817). Em todo o caso, na sequência da reforma, o numero de estudantes da UC foi substancialmente reduzido, passando em poucos anos de cerca “de 3000 para apenas 800 nos primeiros tempos depois dela” (Ibidem, nota 54). As ações de indisciplina incluíam perseguição, sujeição e violência física aplicadas aos novatos, as quais se podem assemelhar aos mais recentes “julgamentos”, incluindo a humilhação pública, palmatoadas até sangrar e corte de cabelo rente. Ou seja, podiam aqui incluir-se um pouco de tudo o que fossem práticas abusivas como sejam os insultos, troça, tourada ou a “patente”. Já no caso da caçoada e da troça seriam ações onde a violência física estaria bastante atenuada (ao contrário das investidas), sendo neste caso a variante simbólica que mais sobressaía. O canelão era igualmente um ato de grande dureza aplicado aos caloiros, aqui entendido como forma de pagamento de direitos à entrada material e simbólica da Universidade, no caso, a Porta Férrea. Quando em 1864 foi inaugurada a linha de caminho-de-ferro que liga LisboaCoimbra-Porto, o Largo da Portagem era um local de eleição onde os novatos eram confrontados com as primeiras investidas, troças e rituais, principalmente no mês de outubro, mas que se repetiam ao longo do ano escolar. O cenário incluía todo um cardápio 178 de iniciativas e uma terminologia muito própria. Pelo menos até meados do século XX, o mundo das tradições académicas de Coimbra tinha criado e reproduzido uma cosmologia e um estilo de vida próprios, que, como se disse, só teve o alcance que teve na medida em que foi criação de uma elite restrita e poderosa. Um conhecido estudioso do tema das praxes António Manuel Nunes (2004), sublinha justamente a ideia de que a tradição académica se inscreve no tempo cíclico que a atmosfera estudantil pretende aparentemente eternizar. Eis uma perceção que, apesar de se justar melhor a épocas históricas transatas do que à atualidade, não deixa ser interessante para perceber a inscrição destes rituais no espaço e no tempo. Um espaçotempo marcado pelo sentido de encantatório, de sublimação juvenil, e do direito a prolongar ad eternum o estatuto de adolescente ou jovem. “O caloiro iniciado separa-se do seu meio familiar, geográfico e sociocultural. O tempo de caloiro equivale a um tempo de purgação e de gestação embrionária no ventre da Alma Mater, outrora personificado pela entrada vaginal na Porta Férrea (Canelão) e pelo encerramento temporário em ataúde durante os Julgamentos (morte, enterro, descida aos infernos através do rio Estígio). Quando renascia em Maio-Junho, na categoria de estudante, o Caloiro-Monstro era um homem novo, via de regra identificado e reconhecido por outro nome, a alcunha, dominando os mitos, lendas e segredos da cultura tradicional estudantil, perpetuando costumes, conhecendo a gíria académica” (Nunes, 2004). Esse sentido ao mesmo tempo secular e mítico que olha as tradições a partir da sua ligação ambivalente ao imaginário popular, ao carnavalesco e às contaminações filosóficointelectuais das elites académicas, surge no contexto das praxes estudantis que marcaram a Universidade de Coimbra até meados do século XIX. 179 “Antes de meados do século XIX estas práticas foram designadas por INVESTIDAS (até finais do século XVIII), TROÇAS/ASSUADAS e CAÇOADAS (1ª metade do século XIX), comportando elevado grau de violência física e psicológica. Contrariamente ao que se possa pensar, esta violência ritualizada, e veementemente condenada desde o iluminismo, pouco ou nada se distinguia das troças com que os fidalgos mimoseavam os vilões e as raparigas do povo, das penalidades infamantes vigentes nos forais e Ordenações até ao advento do Liberalismo, da defesa da honra entre rapazes de aldeias rivais, e da exercitação da vingança privada nas comunidades rurais. São disso exemplo as latadas aos recém-casados e nubentes viúvos, as cornetadas à porta das adúlteras, os chocarreiros testamentos da Serração da Velha e Queima do Judas, o deitar pulhas, os entrudos porcos com arremesso de cinzas, ovos podres e tripas, as pancadarias dos habilidosos manejadores de paus em feiras e romarias, os insultos acompanhados de murros, taponas, escarros, sinais obscenos, palmadas nas nádegas, a coroação e sermonário dos maridos cucos/cornos (…)” (Nunes, 2004; in Ibidem) 5.5. Polícia Académica, trupes e «praxe» no século XIX Com a extinção do Foro Académico, abolido em 1834, foi criada em 1836 a Polícia Académica, na sequência de pressões corporativas que exigiam a preservação da autonomia universitária, a que D. Maria II acedeu. A conduta desta polícia junto da comunidade estudantil e da população de Coimbra seria no entanto objeto de controvérsia e contestação culminando, já no período da I República, com a sua extinção. Fontes consultadas referem que em 1854, o patrulhamento da cidade era organizado em 3 rondas, tendo os archeiros ordem para obrigarem os estudantes a recolherem a casa após o toque vespertino da ‘Cabra’. Cada turno era assegurado por 6 soldados e um a dois archeiros” (Gama, 1964, in Lamy, 1990). De acordo com a mesma fonte, a partir de 1883, ocorreu uma redução de competências e privilégios da Polícia Académica, devido à pressão de sentido inverso que a sociedade vinha exercendo contra a situação vigente, visto que “existia uma cada vez menor tolerância aos desacatos estudantis, pois que ainda muitos dos mesmos eram resolvidos internamente (à luz do regulamento disciplinar da Universidade), considerando-se, por exemplo, que muitas infrações mereciam penas mais duras do que o encarceramento na prisão académica (que, na verdade, nessa altura, era algo já pouco duro – os presos recebiam visitas, víveres, e até estudantinas vinham tocar à janela dos presos – e era antes visto como um feito heróico” (in Blogue Notas & Melodias). A referência às Trupes remonta a meados do século XIX e supõe-se que o surgimento das mesmas esteja associado não diretamente ao fim do Foro Académico, mas 180 à redução de funções e competências atribuídas à Policia Académica, a partir de 1883. As Trupes são grupos de estudantes (pelo menos três) subordinados a um chefe, formalmente destinadas a zelar pela observância da praxe, executar um Julgamento (a um caloiro) ou cumprir uma diretiva do Conselho de Veteranos. Permanecem até aos dias de hoje, muito embora quase sempre envoltas em controvérsia e objeto de contestação por parte de largos setores sociais e estudantis, necessariamente usando traje académico e sem outras cores visíveis que não o negro. O chefe da trupe é o estudante mais velho (pelo menos “Pastrano”), superior na hierarquia da praxe, e faz-se sempre acompanhar dos três símbolos elementares da praxe: a tesoura, a colher e a moca. Em épocas recuadas, as trupes eram o principal fator de controlo e de exercício de violência sobre os novatos. No caso de ser apanhado fora de casa após o toque vespertino da Cabra, o caloiro “tresmalhado” (apanhado na rua fora de horas) podia ser caçado por estes grupos de estudantes mais velhos, armados de mocas, tesourões, palmatórias, pistolas. Nestes casos poderia ser vítima de “tonsura” parcial ou completa e palmatoadas (antigamente chamadas “bôlas”) nas mãos ou nas unhas. Podia no entanto defender-se em duelo com o chefe da trupe e caso vencesse não sofreria as sanções. Há relatos curiosos e ilustrativos de como estas ações constituíam uma mistura, por vezes perigosa, entre a ironia corrosiva, a pressão psicológica e humilhante exercida sobre os novatos e, em geral, a violência física, que, não poucas vezes assumia formas macabras e criminosas. Conforme relato de Sousa Lamy, citado pelo blogue Notas e Melodias, “na noite de 26/12/1841, uma patrulha do corpo de segurança fuzilou pelas costas José Costas Lobos, terrível facínora estudante do 3º ano [pelas costas por estar em fuga]”, e que “em 1858, vários ‘troupistas’ foram hóspedes da prisão académica durante 8 dias, entre os quais os bem conhecidos Antero de Quental e Alberto Sampaio” (Lamy, 1990: 694). Os episódios de que existem registos são diversificados e alguns reportam-se ao período de viragem do século XIX para o século XX. Um deles refere-se a uma trupe cujo chefe era uma célebre figura da boémia estudantil de Coimbra, o conhecido Pad’ Zé (e envolvendo, segundo o relato, o bispo de Bragança), aqui descrito por um membro da referida trupe: 181 “Quando eu vivia na Ladeira do Seminário com o José de Almada, ao lado da casa do Bacelar e do José Perestrelo, organizamos algumas vezes uma troupe terrível. Projectávamos assaltar os viandantes que transitassem a deshoras pelos lugares mas solitários das cercanias. Corríamos embuçados, armados de espadas e pistolas, punhais e caveiras, ao longo da alameda que ladeia o Jardim Botânico, pela rua Tomar, pela Estrada da Beira… O Pad’Zé ia sempre de cara descoberta. Em vez de capa pela cabeça, uma toalha turca, amarrada em forma de turbante, compunha-lhe o distintivo de chefe. Era o primeiro a avançar resoluto, quando comandava. Algumas vítimas, julgando-se em perigo, fugiam apavoradas; outras preparavam-se para a luta, dispondo-se a vender cara a sua resistência ou rendição. Por fim a gargalhada lutherana do Pad, seguida do nosso riso, era a única fusilaria que estrondeava, quer se pusessem em fuga, quer tentassem heroicamente bater-se connosco. Uma noite, perto do seminário, defronte do caminho que vai `às Ursulinas, caímos ameaçadores sobre alguém que parou nobremente e o ataque. Essa figura venerável viu-se rodeada de espadas e pistolas, apontadas ao peito, aos braços, e às costas. A caveira, saindo de uma capa negra, rasgava a alvura do seu riso macabro em frente do rosto do caminhante. O Pad autoritário interrogou: - Quem é? Donde vem? Para onde vai? - Sou o Bispo de Bragança, respondeu o prelado com serenidade. - V. Ex.ª pode seguir, ordenou cortesmente o chefe, enquanto nós abríamos alas àquele português de lei que, imperturbável, sem a mais simples contracção nervosa, nos desarmara com a sua placidez. As espadas, os punhais e as pistolas eram de facto inofensivas, sucata ferrugenta, incapaz de contundir qualquer tecido animal; mas quem fosse surpreendido à noite, na escuridão, por aquêle encontro, é que não podia ajuizar de chofre do estado do armamento” (Noronha, 1928: 113-115, in Notas & Melodias, Ibidem). Outras fontes retratam episódios igualmente ilustrativos dessa mistura de dimensões onde o burlesco e a sátira podiam combinar-se com a presença de interesses culturais, intelectuais e literários mais profundos. A esse propósito vale a pena lembrar que, já nessa época, as Repúblicas estudantis ocupavam um lugar de destaque. Como refere Manuel Alberto Prata, “as repúblicas constituem não só espaços de sociabilidade geradores de muita camaradagem, mas também um tempo de enriquecimento cultural, de diversão e de lazer. Era Afonso Lopes Vieira quem, na mansarda do Pad’Zé, propunha que ‘se lesse a Bíblia e Camões, se representasse Hamlet, se escrevesse e se discutisse adorando a Arte e se rendesse também culto à vida em festins nocturnos’” (Prata, 2002: 253). 182 O termo Praxe começara a ser usado a partir da segunda metade do século XIX, concretamente, algumas fontes citam o ano de 1863 como a data da primeira referência conhecida ao termo “praxe”, e que era na época identificado com o adjetivo “selvagem”, ou seja, um termo que invoca a natureza cruel e violenta já então atribuída a esses atos (Nunes, 1989). A taxonomia da época pode ser confirmada na sentença de condenação a um estudante, relatada por Teófilo Braga: “Mostra-se outrossim que, entrando em casa de uns novatos, cinco homens, quatro mascarados, era o quinto réu sem máscara, e buscando positivamente a um novato […] o mandaram despir nu, e lhe deram muitos açoites com umas disciplinas, de que correra sangue, e muita palmatoada, e lhe cortaram o cabelo rente pelo casco […]” (Braga, 1892-1902). Também o citado clássico Palito Métrico nos dá uma ideia do que eram as investidas: “Tal sucede ao Novato, que indeciso Deixando-se ficar no chão prostrado Observa a seu pesar de grande riso, Com que o seu toureador é festejado: Assim que se levanta, de improviso De um rústico Beirão se vê montado, Que a repetidos golpes de um chicote, Por toda a sala o faz correr de trote.” (Ferrão, 1912) Como sabemos, “as referências escritas aos rituais estudantis para trás de 1850 são rarefeitas, tendo em conta os processos dominantes de transmissão oral, passados aos mais novos através dos veteranos, de antigos estudantes para filhos e de futricas para caloiros, num processo onde intervinham barbeiros, alfaiates, taberneiros, engomadeiras, criadas domésticas, funcionários da UC e proprietárias de bordéis. Aliás, até à emergência da primeira grande codificação de 1957, as praxes e os costumes estudantis transmitiamse oralmente, radicando a sua coerência no mito e na antiguidade” (Cruzeiro, 1979; Nunes, 2004). Há no entanto passagens reveladoras da persistente contradição que definiu ao longo dos tempos a relação entre os estudantes e a restante população de Coimbra. Num período em que o associativismo académico (e também nos meios artesãos e operários oitocentistas) começava a ganhar força, surgiram na cidade diversas instituições, tais como a Academia Dramática de Coimbra (1852), que estaria na génese, ao fundir-se com 183 o Clube Académico (1861) da fundação da Associação Académica de Coimbra (1887). Ainda anteriormente nascera a Sociedade de Instrução dos Operários (1851), mas como contraponto de iniciativas beneméritas dos estudantes chegou a formar-se uma designada Liga Académica, visando “sustentar o afastamento de todas as relações dos estudantes com os filhotes da terra, fazer a ronda nocturna pela cidade para a proteção dos estudantes e organizar uma cooperativa de consumo em que por conta dos associados mandassem vir de fora de Coimbra os géneros alimentícios” (Teófilo Braga, 1902; cf. Bastos, 1920, apud Cruzeiro, 831). 5.6. Praxe, humor e boémia estudantil no início do século XX No início do século XX, antes e depois da queda da monarquia, viveram-se em Coimbra tempos de controvérsia em torno da praxe. E com o advento da I República o fenómeno esbateu-se, embora continuasse a ser um tema polémico. Logo em 1902 afirmava-se que “a praxe académica é uma sobrevivência de costumes de gerações que a História já de há muito arrecadou, numa vala comum, fria e insugestiva. É uma tradição em guerra aberta com o progresso, uma espécie de hereditariedade doentia e revela-se numa triste promiscuidade de sintonias. Em 1905, contra o que era costume, José de Arruela e outros companheiros, procuram receber com simpatia e afabilidade os novos estudantes; em 1910, em nome da liberdade, a praxe é praticamente abolida, para ressuscitar em 1919.” (Prata, 2002: 256). A anterior citação é bem reveladora de um dos argumentos que tem sido desenvolvido em torno desta questão, segundo o qual existe uma estreita articulação entre dimensões como : i) as tradições académicas no seu conjunto; ii) os rituais das praxes – nas suas diferentes modalidades e designações do passado, tais como as investidas, as caçoadas, as trupes –; e iii) a intervenção intelectual e associativa do movimento estudantil (veja-se Estanque, 2016). É nesse sentido que advogamos, a título de hipótese interpretativa, que tais conexões tendem a oscilar ao longo dos tempos, de acordo com a conjuntura sociopolítica mais geral, entre fases de uma maior inclinação para a irreverência ou dissensão (o que tende a estimular a rebeldia, o ativismo e o associativismo) e, noutros períodos, uma maior entrega aos rituais/ jogos “pesados” e aceitação dos abusos de poder (o que tende a favorecer a atitude nostálgica e a resignação perante o statu quo). Porém, é importante esclarecer que não se trata de estabelecer qualquer tipo de causalidade determinista, mas antes de considerar que as atmosferas culturais onde ocorrem as sociabilidades estudantis 184 – inclusive no espaço lúdico – constituem ambientes constitutivos de formas identitárias, subjetividades e práticas onde se inscrevem modalidades e paradigmas, em geral, dotados de algum potencial político (ou sociopolítico). Entre a viragem dos séculos XIX-XX e as primeiras décadas do regime republicano viveram-se em Portugal tempos particularmente agitados e onde os planos cultural, político e estético se confrontavam, numa sociedade em rápida mudança e conflitualidade entre as pulsões do progresso e a reação do conservadorismo e do elitismo instalado. A este respeito, a referência aos ambientes de irreverência e de boémia não deixam de ser fundamentais para se entender os contornos – quer das atmosferas lúdicas quer da própria linguagem – em que a praxe foi sendo redesenhada ao longo dos tempos. O importante livro de Trindade Coelho In Illo Tempore (1902) retrata bem o ambiente dessa época, onde transparece a cultura meio marialva meio satírica e irreverente, que se traduz no incentivo ao “despique” e ao contraditório através da provocação, da ironia e do sarcasmo. Isto, num tempo em que a violência sobre os novatos tinha como principal função suscitar a réplica e a resposta imaginativa. Veja-se uma passagem bem ilustrativa do panorama coimbrão em finais do século XIX, citada por José Pacheco, onde se sintetiza o espírito da referida obra de Trindade Coelho. “(…) a propósito daqueles rapazes que viviam em comunidade, a quem uma vizinha velha enviou uma taça de marmelada, que agradeceram num poema escrito a várias mãos; ou do modo como os estudantes usavam o carnaval para organizar desfiles de escárnio e crítica. Mas, o principal do humor que se derrama por essas páginas, diz respeito à palavra: a réplica rápida e mordaz, o trocadilho bem conseguido, a frase dúbia e mortífera, as alcunhas certeiríssimas. (…) Jovens que estavam de passagem por Coimbra (mesmo, como acontecia a muitos, quando demoravam demasiado tempo a concluir o curso) e, durante essa passagem, quase no sentido iniciático, se deixavam enredar mais facilmente pela alegria das noitadas, do que pela obrigação do estudo; muito mais pelo desrespeito relativamente à autoridade, do que pelo exemplo vindo de cima. Há, nessa Coimbra de outro tempo, a intuição clara de que se estão a gastar os últimos cartuchos: dali a poucos anos serão, todos eles, senhores casados e respeitáveis. Serão advogados ou engenheiros, no comboio da rotina respeitáveis. É divertido? Creio que sim. Mas de uma diversão que transporta em si um elemento de nostalgia e despedida. A juventude é destravada porque é breve. Coimbra, que pertencia aos jovens, era necessariamente destravada – e breve.” (T. Coelho, In Illo Tempore, in Pacheco, 2015) Já vimos que o ambiente burlesco e desbragado tanto nos remete para as atmosferas lúdicas e de boémia juvenil quanto põe em evidência o papel do sarcasmo e 185 do riso. As figuras mais populares no meio estudantil eram, sem dúvida, aquelas que melhor personificavam a dimensão humorística. Uma delas, já atrás referida, foi o Pad’ Zé que, além de chefe de trupe, foi estudante irreverente. É, porventura, o caso de um personagem que passou por Coimbra no início do século XX, conhecido pela alcunha de Pássaro. Segundo o relato de Trindade Coelho no citado livro, terá sido ele o “legislador” da primeira Festa das Latas que decorreu de forma organizada em Coimbra (1903), num texto alegadamente escrito numa aula do 4º ano (de um professor de nome Chaves) e cujo sugestivo título «Aux Lates Citoyens», e que espelha bem a irreverência estudantil em tempos de viragem sociopolítica. O dito personagem autodefine-se no seu característico humor nos seguintes termos: “Eu, Dom Chinfrim Banzé, por graça da rapaziada amiga, e de Sua Majestade Imperial a Arruaça, Inspetor da Troça, Chanceler-Mor do Pagode, Cavaleiro Professo da Nobilíssima Ordem da Bolsa Vazia, Grã Cruz da Piada Fina e do vinho do Pancada, socio de mérito e effectivo de varias associações de Prego e de Pendura, tanto nacionais como estrangeiras, condecorado com a medalha de ouro das campanhas do Canelão e do Corte-de-Cabello, admirador lamecha encartado do sopeirame da Alta e Director syndico em chefe da pantagruelica festividade das Latas, etc., etc.” (Trindade Coelho, 1902: 15-16). Boémios famosos de inícios do século XX continuaram já no período da I República, e convém não esquecer que – paralelamente aos excessos de ritualismo e de violência (por vezes gratuita e outras vezes criminosa) que temos vindo a referir – se expandiu rapidamente a politização dos estudantes, e com ela as ações de protesto, nomeadamente a reivindicação de direitos e condições para o pleno exercício das liberdades republicanas. Tal tendência não poderia deixar de contaminar os estudantes. A chamada Tomada da Bastilha (que ocorreu em na noite de 24 para 25 de novembro de 1920) foi um dos momentos culminantes dessa atmosfera, quando um grupo de estudantes invadiu e ocupou o Clube dos Lentes, numa ação verdadeiramente “revolucionária”, exigindo um espaço condigno para sede da AAC, até então inexistente. Entretanto, as atmosferas do quotidiano de Coimbra, embora certamente sujeitas à evolução dos tempos, permaneceram durante séculos num quadro onde, apesar da presença estudantil, era visível a pobreza e a degradação das estruturas, das habitações dos estudantes e da paisagem urbana em geral. Sabemos por um lado que as origens sociais do corpo estudantil eram predominantemente das classes superiores, nomeadamente os fidalgos, a nobreza de toga, filhos de morgados, de brasileiros, de ricos comerciantes e lavradores das redondezas, mas, como refere Eduarda Cruzeiro, “também 186 por alguns menos afortunados e mesmo pobres”, os quais viviam, “em muitos casos, de expedientes, explorando, na medida do possível, os seus companheiros e todos os que a isso se prestassem” (Cruzeiro, Ibidem: 812). Tais ambientes, ainda que em muitos casos denunciando alguma falta de dinheiro, não impediam, por outro lado, alguma vida faustosa ou pelo menos de excessos, muitos dando-se ares de poder económico que não possuíam. Ter muito dinheiro “gastálo depressa” parecia ser uma regra em certos meios. Isto ilustra também o simbolismo dos ambientes informais de lazer, em que a afirmação de status exige alguma postura ostentatória, como reverso da angariação de simpatias e popularidade. Pagar a todos o sorvete, o chocolate ou o copo de vinho era um ato que sempre caia bem entre os convivas de ocasião. Os segmentos estudantis de estatuto mais elevado poderiam exibir de modo particular essa condição privilegiada: “excesso de serviçais, um e às vezes três criados; se é cavaleiro tem seu cozinheiro, um criado e um pajem ou, pelo menos um negro (…)” (Cruzeiro, Ibidem: 813). Quando o dinheiro começava a escassear, a imaginação e o engenho poderiam suprir as necessidades, incluindo o recurso ao conhecido “prego.” Também o jogo e a prática das rifas, envolvendo os mais diversos objetos pessoais (valiosos ou não, como fossem relógios, anéis, livros, pistolas, esporas, peças de vestuário, etc.), deram azo a um hábito de transações e sorteios de que o Palito Métrico se fez eco. Várias outras figuras marcaram os ambientes boémios e estudantis de finais dos anos 1920 na cidade, tais como o chamado “Pantaleão” (Henrique Pereira da Mota), um “boémio” e estudante de medicina, que promoveu a sua primeira “Reunião de Curso” com todos os colegas a apresentarem-se de chapéu de coco (ou chapéu alto), de bengala e fumando charuto, uma prática que viria a enraizar-se enquanto tradição nos meios académicos de Coimbra. Juntamente com outra figura da boémia de então, Castelão de Almeida, fundou o jornal satírico O Ponney, em 1929. A variedade de personagens marcantes no meio estudantil, como os atrás citados Pad’Zé e o Pássaro (e muitos outros), reforçam a ideia de que a irreverência e a boémia, ainda que possam ajudar a aumentar o número de anos de frequência da Universidade, constituíram em épocas distintas fatores de enriquecimento formativo, e afirmaram-se mesmo como um património enriquecedor da academia e das contraculturas estudantis, dando origem à germinação de movimentos socioculturais de grande impacto, dos quais, aliás, Coimbra foi palco, nomeadamente ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. 187 Naturalmente que, entre as múltiplas cambiantes que, no contexto de Coimbra, ajudaram a modelar os contornos das tradições praxistas ao longo dos tempos, ocuparam um lugar central as atividades culturais mais variadas, desde as Tunas ao Fado e à Guitarra de Coimbra, passando pela literatura, o teatro e a poesia. Não sendo essa dimensão o nosso principal tema do presente estudo, é importante realçar o seu papel na estruturação da cultura estudantil em geral, e em particular no contributo que teve na consolidação da “contracultura” de resistência, sobretudo nos finais do Estado Novo. Para além disso, também o ambiente comunitarista que vingou nas residências estudantis (as “Repúblicas”), que ocuparam um lugar de relevo no estímulo da irreverência e espírito crítico, tendo-se afirmado como focos decisivos de diversos movimentos e formas de dissidência face aos padrões convencionais. 5.7. Politização da tradição: anos sessenta É nesse contexto que, no início da década de 1960, e na sequência de um trabalho cultural exercido na clandestinidade por parte das Repúblicas estudantis, foi eleita uma lista de esquerda para a Direção Geral da AAC, apoiada pelo Conselho de Repúblicas. Note-se que o ambiente das Repúblicas também evoluiu desde meados do século XX. Enquanto no início deste ciclo na carta constitutiva do Conselho de Repúblicas (de 1948) se declarava que as mesmas estavam “unidas pela praxe”, tal posição foi evoluindo para uma conceção mais culturalista e interventiva com a entrada na década de 1960. “Em lugar de se focalizarem na sua vertente mais boémia e jocosa, as Repúblicas passam a autodefinir-se como ‘centros de formação cultural do estudante, agrupamentos regidos pelo princípio democrático da autogestão, gozando de independência económica e ideológica, libertas de qualquer género de tutela’” (in Cardina, 2008; 125; veja-se Estanque, 2016). Apesar do fechamento do país, os ecos dos movimentos sociais internacionais e da mudança de mentalidades suscitada pelo Maio de 68 e durante os sixties não deixaram de contagiar alguns setores da juventude estudantil. Desde os finais da década de 1950 as correntes oposicionistas de esquerda já vinham apostando numa conceção solidarista da praxe, procurando influenciar os meios tradicionalistas no sentido de lhes incutir um novo conceito de “política”, ao mesmo tempo que se visava imprimir no movimento associativo uma orientação reivindicativa e combativa, que se traduzia, na linguagem da época, a uma perspetiva “sindicalista” do movimento estudantil (Estanque e Bebiano, 2007; Cardina, 2008). Naquele tempo, estas diferentes dimensões da cultura estudantil 188 eram praticamente indestrinçáveis: “O pôr em causa da Universidade salazarista e dos fundamentos em que esta assentava [...] fez-se incorporando nessa cultura [académica] em movimento, feita ação política, os valores e as tradições da memória coletiva da juventude universitária, especialmente Coimbra. Por outro lado, a política foi — pela fraternidade, no apelo inteligente e afetivo, na música, na palavra, no canto, na imaginação, no amor, na transgressão e na festa — em si mesma, uma nova expressão cultural” (Martins, 1982, in Frias 2009; veja-se também Frias, 2003 e Namorado, 1989). Essa estreita ligação entre tradição académica, associativismo estudantil e ação política podia exprimir-se, por exemplo, na inclusão de imagens ou mensagens de denúncia do regime nos rituais. Isso mesmo ocorreu no desfile da Latada de 1961/62, em que um carro puxado por um estudante negro ostentava a frase do regime “Angola é nossa!” ou ainda um cartaz bem sarcástico que exibida a frase: “O Tó [Salazar] tem um cancro. Coitado do cancro!”. Nessa época, pode dizer-se que “a praxe académica desempenhou um papel importante como instrumento político na oposição à ditadura de Salazar e à Guerra Colonial, uma vez que foi usada para disfarçar de tradições académicas as intervenções antirregime” (Dias e Sá, 2013:22). Pode, portanto, dizer-se que a conjugação entre o movimento estudantil e as tradições ajudou a camuflar a resistência organizada na clandestinidade. Miguel Cardina refere-se a isso quando afirma: “a utilização dos rituais e da simbologia praxista permitia que a contestação se inserisse no fluxo das vivências tradicionais coimbrãs, o que não só lhes conferia legitimidade como despertava uma certa complacência por parte da elite dirigente nacional, para quem Coimbra era ainda, simultaneamente, o lugar de um certo espírito corporativo, boémio e romântico e uma instituição universitária produtora dos cérebros do regime” (Cardina, 2008: 117). Foi ainda por volta desse período (1961-1964) que se expandiram na cidade as novas sonoridades musicais e produção poética que viriam a ser conotadas com a nova canção de protesto. Aí se destacaram nomes como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira e, com eles, se inaugurou o novo e irreverente movimento musical-cultural de contestação ao regime. Novas referências e novos valores culturais eram transmitidos pela música, as baladas líricas e a poesia. Na sua pesquisa sobre o tema, o antropólogo luso-francês Aníbal Frias sintetizava do seguinte modo o panorama coimbrão deste período: 189 “A partir dos anos 60 e sobretudo com os episódios de lutas que se seguiram alguns estudantes assemelharam a praxe ao fascismo, como o testemunha por exemplo um panfleto de BD, desenhado em 1972 quando alguns estudantes tentaram organizar uma Queima das Fitas, onde se vê um estudante estilizado gritar no vazio: ‘Coooolegas! A praxe é o inimigo do proletariado estudantil’. Alguns elementos da tradição coimbrã (…) estão ligados a uma modernidade contestatária, ancorada num quadro ativista e ideológico de tipo progressista. Assim, o fado saudosista torna-se contextualmente canto de intervenção a partir de 1960, com o Zeca, o Adriano e outros; o hino académico F-R-A é gritado num desfile silencioso de protesto em 1968; a comemoração em 1968 da Tomada da Bastilha, tornou-se “um imenso desfile de protesto” (…); a capa e batina serve de sinal de luto académico logo a seguir ao 17 de Abril e, praticamente, para ocultar comunicados (…)” (Frias, 2009). Os acontecimentos da Crise Académica de 1969 levaram, como se disse, ao início de um longo período de luto académico, que se traduziu na interrupção das festas estudantis e da praxe aos caloiros. Desde então e até finais da década de 1970 (e mesmo aí setores como o Conselho de Repúblicas permaneceram, até hoje, em modo de luto), o uso do traje só foi admitido em momentos especiais, ou seja, como forma de protesto contra o regime. Isso implicou não só a interrupção das festas e cortejos habituais, assim como a praxe de gozo ao caloiro, mas estabeleceu também o preceito de usar a capa descaída pelos ombros, com o colchete da batina apertado no pescoço e com as fitas, os pins e insígnias escondidas. Por outro lado, ao contrário da ideia que hoje prevalece entre os estudantes, os momentos de controvérsia, relacionados com a tradição e o seu significado político, antes e depois de 1969, continuaram a ocorrer múltiplas reconfigurações e formas de ação coletiva, quer no terreno sociopolítico quer na dimensão mais estritamente cultural e ritualista, onde a praxe permaneceu como foco de polémicas – se bem que mais esporádicas – que alimentavam a dissensão entre grupos rivais. Segundo Miguel Cardina, no período que se seguiu, a praxe continuou a ser um tema em discussão e, ainda antes de 1974, houve quem pretendesse a reabilitação das tradições académicas. Um exemplo foi a tentativa de reeditar a Queima das Fitas em 1972, em plena vigência do luto académico, gerando uma forte reação dos então autodesignados “Núcleos Sindicais” de estudantes. Para estes, “a Queima era a ‘manifestação da ideologia burguesa no meio estudantil’, que não se distinguia, na essência, de um tipo de formação universitária que se pretendia combater, fazendo um paralelo entre ‘um ensino passivo, acrítico e autoritário’ e a criação de um ‘tipo de estudante futuro e fiel cão-de-guarda do sistema’. 190 Na mesma altura, a Comissão Associativa, constituída por vários organismos autónomos da AAC, condenava uma ‘festa toda voltada para si, como numa autocontemplação totalmente abstraída duma realidade a que os estudantes já não eram alheios’”. Entretanto, ainda em 1970, um grupo cisionista do Conselho de Repúblicas ironizava em documento escrito acerca do destino do referido conselho: “O que restará ao CR será conservar a sua faceta tradicionalista, imbuída de um certo casticismo de fados, copos de vinho, campeonatos de ‘matrecos’ e suecas com um fundo negro de capas e batinas. Enfim abandonamos!...” (documento “Requiem pelo Conselho de Repúblicas”, de 28/11/1970). Esta é uma época de intensa controvérsia no seio do universo estudantil, quer dentro do próprio movimento, quer entre a resistência de esquerda ao regime e os grupos pró-fascistas de Coimbra. É também desse período a cooperativa Cidadela, que controlava então a Oficina de Teatro da Universidade de Coimbra, um grupo alinhado com posições ideológicas de extrema-direita. Em 1970, depois de uma atribulada viagem a Angola, conseguiram autorização do Magnífico Reitor (Gouveia Monteiro) para a apresentação no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) da obra O Livro de Cristóvão Colombo, iniciativa que teve lugar no dia 9 de abril de 1970, mas destinada apenas a um grupo restrito de convidados. Isso motivou uma mobilização dos estudantes que cercaram o TAGV em protesto contra um evento considerado “pró-fascista” e num formato seletivo, donde resultaram confrontos com a polícia, com disparos de balas de borracha e pelo menos um ferido (Marchi, 2008: 570). 5.8. A normalização democrática e o regresso da praxe É costume pensar-se que os períodos mais intensos de mobilização cívica – ou seja quando a gesellschaft (associação ou sociedade) se reforça e a gemeinschaft (comunidade) recua – estimulam a mudança mas podem também contribuir para uma maior coesão social. Embora num registo diferente, muitos cientistas sociais citam Émile Durkheim, que no século XIX mostrou como a perda dos laços sociais e o esbatimento das crenças comuns conduz a patologias, em especial quando os indivíduos se submetem sem limites à força coerciva do social, abdicando do seu envolvimento ativo na revitalização das crenças e valores morais da sociedade. Com base neste autor clássico, podemos até compreender a praxe como uma “instituição social”, no sentido em que corresponde a um conjunto de crenças, de ideias e modos de conduta estabelecidos e partilhados pela sociedade: “os factos sociais são externos ao indivíduo, esses factos existem sem a nossa consciência da sua existência ou 191 da sua autonomia”. Em suma, a sociedade é produto da ação dos indivíduos na medida em que estes, ao atuarem uns sobre os outros, geram uma fusão da consciência individual com a consciência coletiva, conjugando três componentes: a generalização, a externalização e a coercividade. Um processo de que os indivíduos dificilmente tomam consciência visto que as etapas de socialização desenvolvem uma adesão “espontânea” aos “costumes”, disfarçando o seu carácter vinculativo. É isso o processo de “naturalização” ou “normalização” da força coerciva da sociedade. Acresce que, como referiu Max Weber, para além da intersubjetividade na relação entre os atores sociais, raramente os resultados da ação coincidem com as intenções dos seus mentores. Esta linha de argumentação, seguida por muitos cientistas sociais, poderá justificar a seguinte hipótese sociológica: sempre que o individualismo atinge proporções extremas as sociedades ou entram em bloqueio e “anomia”; sempre que ocorrem momentos de viragem e ruturas históricas significativas aumentam os níveis de mobilização e a coesão da sociedade tende a reforçar-se. Prende-se com isso um dos aspetos mais difíceis de clarificar ao longo de toda a história da civilização ocidental. Trata-se da relação entre o indivíduo e a sociedade, desde sempre marcada pela ambivalência. Por um lado, no plano social, os direitos individuais foram sendo historicamente reconhecidos pelas instituições, mas, por outro lado, a relação entre o indivíduo e a sociedade permaneceu contraditória e foi-se tornando mais complexa devido à crescente presença das forças de mercado e à aceleração da mudança social e tecnológica. Este é um aspeto importante a reter porque isso nos pode ajudar a compreender os processos de adesão dos estudantes aos rituais da praxe académica, mesmo quando eles resvalam para formas abusivas e violentas em relação aos direitos individuais. Foi nos finais da década de 1970 que a restauração dos desfiles e da praxe suscitaram os primeiros confrontos da era democrática, retomando assim, com novos contornos, a conflitualidade atrás assinalada. 5.9. A restauração das tradições em coimbra O caso de Coimbra serve aqui como ilustração fundamental de uma realidade mais ampla. Um ponto de confluência que ao longo dos tempos se tornou modelar para as universidades mais jovens (ou que mais recentemente promoveram ritualismos similares), apesar das adaptações e particularidades de cada caso. Assim, as festas estudantis, o uso do traje e a praxe académica, que tradicionalmente estavam associados à Universidade de 192 Coimbra, começaram a ser replicados, embora com algumas adaptações, pelas diferentes universidades e institutos que foram proliferando pelo país fora, principalmente a partir da década de 1980. Perante o crescente abrandamento do obstáculo que representou outrora o numerus clausus, a democratização do acesso rapidamente se ampliou. Deste modo, as sucessivas gerações de jovens recém-chegados à Universidade, oriundos de famílias de classe média-baixa e trabalhadora, em muitos casos ainda próximos do mundo rural, facilmente se deixaram render à euforia de um apelo “identitário” lançado pela comunidade estudantil. Ser um “verdadeiro” universitário é demonstrar uma total dedicação e capacidade de sacrifício tal como qualquer recruta ou novato. Tudo isso lhes é oferecido e funciona como oportunidade não apenas de fazer amigos, conviver e criar fortes laços pessoais, mas, também, de lhes elevar o “ego” ao entreabrir as portas de um possível estatuto de “elite” (ou de simulacro de elite). Do ponto de vista de uma tal subjetividade, a condição de universitário só pode, de facto, ser vivida plenamente se a entrega ao coletivismo for incondicional. O modo como o ritualismo tradicionalista de Coimbra se conjugou com os períodos de contestação e o papel histórico das lutas académicas dos anos sessenta do século passado assumiu contornos peculiares, mas mostrou também como, na chamada “Crise Académica de 1969” a praxes e as tradições foram de certo modo apropriadas pelos núcleos mais politizados de estudantes para dissimularem as suas atividades conspirativas contra o remite de então. Convém lembrar que o processo de “secularização da tradição” e o seu questionamento não se extinguiram com o início do luto académico (declarado como resposta à repressão exercida sobre o movimento estudantil). Os principais festejos e rituais académicos foram então abandonados pelos estudantes universitários e até meados da década seguinte quase não se ouviram referências à questão da praxe. O período de agitação político-ideológica que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 mostrou-se hostil à recuperação dos velhos rituais por serem conotados com o regime deposto. Só no final da década de 1970 a praxe e as festas académicas de Coimbra começaram a ser reativadas, aliás num clima de grandes controvérsias e alguma conflitualidade. Os desfiles da Queima das Fitas e a Festa das Latas voltaram à normalidade a partir de 1979-1980, no meio de forte contestação. Como atrás referi, em Coimbra, as Repúblicas foram particularmente ativas na organização das lutas estudantis ao longo das décadas de 1950-1960, quando ainda estava distante o corte que viria a ocorrer entre o mundo das Repúblicas e o dos “praxistas”. Esse “corte” começou a 193 desenhar-se com as primeiras tentativas de relançamento das tradições enquanto o Conselho de Repúblicas permaneceu fiel à decisão que estabeleceu o luto académico. De um lado, os grupos mais entusiastas do regresso das tradições eram conotados com a “direita reacionária”, do outro, a minoria dos “repúblicos” vinculados à esquerda, explicam a intensidade dessa clivagem. Uma divisão que se tornou verdadeiramente estruturante, a mostrar como a vida social encerra uma estreita conexão entre a dimensão político-ideológica e a dimensão estético-cultural. Os mais arreigados defensores das tradições e da praxe eram nesse tempo conotados com a direita mais reacionária. Foi isso que, nos finais da década de 1970, deu lugar a acesos “combates de rua” entre os “pró” e os “contra” a restauração dos festejos, numa altura em que a zona da Praça da República era o centro nevrálgico da vida académica de Coimbra. Os vários espaços e cafés aí localizados eram marcados por conotações diversas, sobretudo de cariz ideológico-partidário. A cooperativa Clepsydra, o Café Moçambique, o Tropical, o Académico (também conhecido por Piolho), o Mandarim e o Pigale todos eram conotados com clientelas partidárias ou estilos de vida particulares, desde os “meninos bem” aos “anarquistas”, passando pelas diferentes correntes de esquerda e extrema-esquerda. Entre 1977 e 1979 “a malta da esquerda” e os grupos anti-tradições, que incluíam os residentes das Repúblicas e outros setores “alternativos,” travavam autênticas “batalhas” visando impedir o ressuscitar dos velhos rituais. Os primeiros grupos que tentaram repor os desfiles e a Serenata Monumental desencadearam protestos da maioria dos estudantes. Eram raros os que se atreviam a usar capa e batina. No início (1977) quer a serenata quer o desfile da Queima, não passaram de meros ensaios que, ainda assim, só sob forte proteção policial puderam notar-se. Na Sé Velha uma carga da polícia de choque evitou o boicote dessa festa “solene” (a Serenata Monumental) no que terá sido a primeira tentativa para a sua revitalização. Já o desfile da Queima das Fitas desse período – na verdade um simulacro – traduzia-se nuns poucos carros alegóricos (com estudantes das faculdades de Direito, Medicina e das Letras) que suscitaram a contestação dos setores “anti-tradições”, a grande maioria dos estudantes. Este conflito ganhava especial intensidade na passagem junto ao Café Tropical (situado na Praça da República). Era aí que habitualmente ocorriam as cenas de maior conflitualidade neste período (final da década de 1970): diversas agressões, garrafas de cerveja pelos ares em ambos os sentidos, ofensas verbais e até um ou outro carro incendiado. 194 Mas estas “batalhas” acalmaram a partir de 1979 quando a Direção da AAC eleita nesse ano optou por uma posição distinta das suas antecessoras. Essa Direção, liderada por Maló de Abreu, decidiu programar uma “Semana Académica” na qual se procurava reavivar as festas estudantis. “Nesses anos, a academia decidia-se pelo confronto partidário, entre duas forças que definiam também a dicotomia do próprio país. Mas tenho de dizer que só me meti na vida associativa e nos movimentos políticos de juventude com o objetivo de contribuir para restaurar todos os meus sonhos de juventude em relação a Coimbra. Muito do que foi a minha participação, nas comissões de curso da Faculdade de Medicina e, sobretudo, depois, como presidente da Académica, teve a ver com esse sonho». Pergunta: ‘O que eram as vivências académicas, quando estudava?’ Resposta: «Não eram. Ou eram demasiado tímidas. Por exemplo, para fazer uma serenata era preciso muito cuidado e fazer tudo muito depressa e muito escondido, caso contrário era certo o confronto físico. Quem queria usar capa e batina tinha dificuldades e era perseguido. Para além disso, o futebol era o que sabemos. Até o Orfeon tinha desaparecido e foi já no meu tempo, em colaboração com o saudoso Dr. Teixeira Santos, que regressou, com o Coro dos Antigos Orfeonistas. Também as secções na Académica, ligadas às tradições, como a Secção de Fado, começaram a ser preparadas, embora tenham arrancado já depois de mim.” (Maló de Abreu, entrevista ao Diário As Beiras, 9/05/2011). 5.10. O caso do Porto A fase de relançamento das tradições na Universidade do Porto coincidiu no tempo com a transição ocorrida em Coimbra. Em ambas as situações, naturalmente, as condicionantes sociopolíticas que marcaram o nosso país nos anos setenta repercutiram-se no contexto, ainda convulsivo, em que esses rituais começaram a ser reanimados. Há, no entanto, aspetos contraditórios, e um deles prende-se com a influência das Repúblicas estudantis. Tal como na UC, também na Universidade do Porto vigoraram tradições académicas antes de 1974, nomeadamente desde a década de 1950, que permaneceram até 1971, altura em que entrou em vigor o luto académico (aqui iniciado mais tarde do que na UC). Pode dizer-se que no Porto o processo ocorreu de modo inverso ao de Coimbra. Ou seja, neste caso as primeiras iniciativas de relançamento das tradições partiram de residências estudantis que, à semelhança de Coimbra, se autodesignavam de Repúblicas. Entrevistei um dos principais animadores desse processo, ainda hoje ligado às atividades da praxe, trinta anos depois de concluir o seu curso. 195 Em 1977 JB integrou a República Reinus das Águias Carecas, dois anos depois de ter chegado de Luanda, Angola, cidade onde iniciou a sua experiência de “ativista” das tradições e da praxe académica. Durante o primeiro mês dormiu “entre o colchão e o sobretudo que tinha em cima”, segundo contou. No interior dessa República já vigoravam os “julgamentos” (em 1979-1980) aplicados aos novos repúblicos. Foi no seguimento de um julgamento desses que JB e um colega de então tomaram a decisão de levar o ritual para a Universidade: “ó pá…, temos de levar isto para a faculdade!”. Já tinha frequentado o liceu e, nos primeiros tempos de Universidade, em Angola, tinha residido em casas de estudantes. Além disso, foi também membro dos escuteiros. Os costumes praxistas da casa eram as brincadeiras habituais desses meios: por exemplo, quando ia à casa de banho caia-lhe o balde de água em cima da cabeça. Fizeram-lhe muitas tropelias relacionadas com a praxe e que, de um modo geral, considera positivas, desde que no respeito pelos direitos de cada um. Em 1982-83 viria a ser designado o primeiro Primus Veteranorum da Academia (o nome evoluiu só depois para Dux Veteranorum). No seu relato, recordou que em 1978 foi o ano em que se realizou no Porto a primeira tentativa de reanimação do Cortejo da Queima das Fitas, a chamada “MiniQueima”, que incluiu o Sarau Académico, cujo palco foi o Coliseu do Porto. Esse Sarau ocorreu num contexto de forte polémica, dado o conflito instalado (também aqui) entre os “pró” e os “anti-praxistas” (contou com a presenta de artistas da época, como Lenita Gentil e do grupo Maranata, além do animador António Sala). Foram sobretudo a faculdade de Medicina e logo depois a Engenharia, as principais entusiastas, mas só no ano seguinte (1979) é que ocorreu o primeiro desfile da Queima das Fitas, propriamente dito. Foi um estudante vindo de Lisboa para o Porto, devido ao problema das “prescrições”, um dos primeiros que aparecia sempre trajado de capa e batina na Universidade do Porto. Ele e JB formularam então o primeiro “Código da Praxe” da Academia do Porto, inspirado no CdP de Coimbra de 1957, mas com adaptações. Uma dessas adaptações foi a inclusão de um Dux Facultis, uma figura tutelar da praxe ao nível de cada faculdade. Para além disso, criou-se depois um Conselho de Veteranos e, na sequência, um Dux Veteranorum. O documento destinado a ser reconhecido como o Código da Praxe foi escrito no nº 28, na Rua da Boa Hora, na chamada República do Bint’Oito. A Faculdade de Engenharia foi a entidade a levar mais a sério a aplicação dos princípios da praxe, enquanto a Medicina, por exemplo, se dedicou mais às festas. Esse Código, apesar de ter começado desde então a ser aplicado, nunca chegou a ser formalizado, por falta de consenso entre as diferentes escolas (situação que se mantém 196 até hoje). Apesar do peso da tradição académica ser escasso no Porto, o poder atrativo da praxe cresceu rapidamente, induzindo uma entrega quase sem limites da parte de sucessivas gerações de estudantes que foram ingressando nas Instituições de Ensino Superior da cidade. Houve, como em diversas outras universidades, casos de abuso e de excesso, levando mesmo a que, em algumas escolas, a praxe tenha sido proibida intramuros. A história de retomada das tradições em Coimbra foi, a esse propósito, bem mais conturbada, como vimos atrás. Aí, os estudantes residentes nas Repúblicas (regra geral) e o próprio Conselho de Repúblicas mantiveram – sobretudo entre o período do PREC e o final da década de 1970, mas que em parte se mantém até hoje –, uma posição de recusa do chamado “espírito praxista”. No entanto, algumas das Repúblicas foram aos poucos adotando uma atitude mais complacente e tolerante perante a praxe. Importa, portanto, sublinhar o universo das Repúblicas continuou a evidenciar a sua diversidade de opções nesta matéria. Existem atualmente Repúblicas abertamente anti-praxe; outras que não permitem a praxe, mas admitem que os seus membros a pratiquem no exterior da casa; algumas aceitam apenas o uso do traje académico; outras há que não tomam posição sobre o tema, dando liberdade aos seus membros; e existem ainda aquelas onde se segue escrupulosamente a tradição académica. 5.11. O caso de Lisboa A emergência e densificação do fenómeno da praxe académica em Lisboa dá-se a partir das últimas duas décadas do século passado. Esse período foi, como se sabe, marcado por uma relativa massificação do acesso ao ensino superior e pela expansão da abertura do sistema aos privados. Como não poderia deixar de ser, tais processos vão marcar também os ritmos da expansão da praxe. No entanto, apesar de ter sido nestas décadas que a praxe começa a ganhar expressão em Lisboa, já na década de 1920 se relatava na imprensa da época, entre as quais a Ilustração Portuguesa, a existência de uma Queima das Fitas. Além disso, há relatos de utilização de um traje académico nos anos 20 e 30 do século passado em algumas instituições universitárias e especialmente em liceus. Paralelamente, alguns dos reitores entrevistados nesta investigação recordaram-nos que nas décadas de 1950 e 1960 não se envolveram em “praxes académicas” como são hoje conhecidas, mas participaram em aulas-fantasma, em que os mais velhos simulavam ser professores, dando aos alunos extensas listas de bibliografia que os deixava receosos e baralhados. 197 Apesar destes exemplos, o fenómeno da praxe só começa a aparecer com alguma expressão no final da década de 1980, sendo que só no período seguinte e principalmente a partir dos anos 2000 é que se expande para o conjunto das instituições lisboetas. É por isso, aliás, que na sua maioria os códigos de praxe lisboetas são datados apenas da viragem dos séculos XX-XXI. O processo de expansão da praxe académica em Lisboa está nestas décadas associado a dois fatores fundamentais: por um lado, a relativa massificação e democratização do acesso ao ensino superior, garantido aos estudantes oriundos de estratos sociais intermédios e baixos que atingiam este grau de ensino, os rituais de passagem essenciais à assunção de uma nova identidade, numa fase da vida particularmente marcante; por outro lado, o fenómeno ganha expressão num grande número de instituições privadas, onde a praxe surgiu como mecanismo de reforço de uma identidade em construção, ou seja, a necessidade de um forte sentimento de pertença do corpo estudantil foi usado para legitimar e consolidar instituições recém-criadas e desprovidas de história. No entanto, o fenómeno da praxe em Lisboa expandiu-se mais lentamente que noutras zonas do país porque ele só começa realmente a surgir num momento em que, em várias instituições, se dá um processo de agitação e dissidência política dos meios estudantis em torno do tema das propinas. Essa agitação começou no final da década de 1980 e início dos anos noventa, primeiro contra o aumento das propinas nos mestrados e depois contra a proposta espelhada em 1990 no Livro Branco sobre o Financiamento Público ao Sistema de Ensino Superior de que deveriam ser os estudantes a cobrir o custo das despesas do seu ensino. Essa agitação crescente dos meios estudantis acabou por espalhar-se a partir de 1992, por ocasião da publicação da Lei n.º 20/92, que provocou um aumento muito considerável das propinas cobradas aos estudantes. A esta mudança corresponde uma nova fase de levantamento estudantil, de organizações de base que confluíram no MCAP (Movimento Contra o Aumento das Propinas) e que depois levam a mudanças em várias associações de estudantes, expandindo o movimento estudantil e dando origem a grandes e sucessivas mobilizações de massas. Em muitas instituições lisboetas este movimento em torno das propinas, que se expandiu e cresceu ao longo do tempo, marcou as sociabilidades estudantis de uma geração, fazendo com que as práticas praxistas tivessem pouco espaço e condições para se expandirem. Por ocasião do início do ano letivo, os novos estudantes de muitas instituições eram confrontados com o problema do aumento das propinas, das mobilizações em marcha e da necessidade de se elegerem representantes de estudantes de 198 curso e de faculdade. Este ambiente de acolhimento deixava pouco espaço para a expansão dos rituais praxísticos entre os novos estudantes. A movimentação estudantil desse período acabou por se traduzir numa suspensão da referida lei em 1995. Mas logo em 1997, foi aprovada uma outra lei que fixou as propinas no valor do salário mínimo. O impacto dessa derrota no movimento estudantil lisboeta traduziu-se num claro refluxo. É justamente a partir desse momento que a praxe se começa a expandir em Lisboa. O crescimento e consolidação da praxe reforçou-se, por um lado, pela perda de vínculos de identificação política entre os estudantes num contexto de diminuição do tempo de socialização estudantil nas instituições, e por outro lado, devido à mudança profunda na gestão democrática das instituições, onde os estudantes passaram a ter uma representação residual nos seus órgãos de governo. Mas a expansão do fenómeno da praxe em Lisboa não foi isenta de conflitos e resistências, nomeadamente com o Movimento Anti-Tradição Académica (M.A.T.A.) que surgiu na década de 1990. 5.12. Movimentos alternativos Este movimento começou como um grupo de reflexão, agitação e propaganda contra a praxe e a tradição académica. Organizava-se de forma muito espontânea e informal em diversas faculdades situadas na capital, sobretudo no início dos anos letivos, para pintar murais, escrever e distribuir publicações, participar em debates. O movimento nunca foi forte, pois, em anos mais ativos, nunca juntou mais do que umas poucas dezenas de pessoas. No entanto, desenvolveu um pensamento sobre a organização da praxe e a sua desconstrução, desenvolveu ações de confrontação direta com praxistas e organizou protagonistas para debates públicos. O tom da propaganda era geralmente muito irónico e provocador, tal como o próprio nome do movimento o sugere. No ano de 2003, o M.A.T.A. juntou-se a outro coletivo anti-praxe do Porto, o Antípodas, e à República das Marias do Loureiro, de Coimbra para voltar a provocar o debate público sobre as praxes, convidando figuras de referência dentro e fora do meio académico a assinar uma tomada de posição conjunta. Muitos artistas e personalidades do meio da cultura subscreveram o texto de denúncia e o apelo a uma receção baseada em relações de igualdade, querendo incentivar “o verdadeiro altruísmo que consiste em ajudar os outros sem exigir qualquer contrapartida”. Foi a partir deste ano de 2003 que o M.A.T.A. foi ganhando maior expressão organizada de combate às praxes, contribuindo para que alguns dos abusos chegassem ao conhecimento público, acompanhando e apoiando quem recorreu à justiça, como por 199 exemplo o caso de Ana Sofia Damião cuja praxe a levou a sair do seu curso no Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros. O caso não conduziu à condenação dos agressores mas chegou até ao Supremo Tribunal de Justiça em 2009, que confirmou a condenação da instituição a uma multa de 38 000 euros pelos danos sofridos pela ex-aluna. A presença do M.A.T.A. nas universidades e no debate público perde força a partir do final da primeira década deste século, altura em que deixa de ter atividade regular. Convém entretanto lembrar que, além deste exemplo de Lisboa, outras iniciativas e movimentos de opinião críticos da Praxe e dos seus abusos tem adotado diversas formas, em variadas cidades universitárias. Coimbra e Aveiro podem aqui ser referidas. Alguns desses casos assumem-se como projetos que procuram implementar uma alternativa à praxe convencional, ou oferecendo uma “praxe solidária”, ou mesmo uma “alternativa à praxe”. Em Coimbra, desde 2014, um grupo de estudantes ligados às Repúblicas levaram a cabo, pelo segundo ano consecutivo, uma iniciativa semelhante o “Criac’tividade”. “As Repúblicas promovem, pelo segundo ano, uma receção alternativa aos alunos, que pretende, em simultâneo, ser um evento de integração alternativo à praxe. Assim, a partir de hoje e até 16 de outubro, O Cria’ctividade organiza atividades culturais. O programa arranca, hoje, no Jardim Botânico, com uma Feira Cria’Activa, entre as 14H00 e as 18H00, onde está um conjunto de bancas com informações e atividades relativas às Repúblicas integrantes e também às secções da AAC – SESLA, GE, SOS Estudante e SDDH – e organismos autónomos, como CITAC, GEFAC e TEUC. Às 18H30, realiza-se um Roteiro pela Alta, que parte do Jardim Botânico e termina na Rua da Matemática. Por fim, às 20H30, no bar Kalifa, realiza-se a projeção do documentário da 1.ª edição do Cria’ctividade. Nos restantes dias, há concertos, artes performativas e de rua, conversas com professores da Universidade de Coimbra, sessões de cinema, exposições e workshops”. (Diário As Beiras, 16/09/2015). Outros exemplos de iniciativas idênticas têm procurado mostrar uma faceta distinta da atividade praxista, o que, evidentemente, é indissociável da imagem negativa com que as praxes passaram a ser conotadas na opinião pública. Na Universidade de Aveiro, por exemplo, os caloiros do Departamento de Biologia (cerca de cem) que ingressaram em 2014 receberam como dever praxista a ordem de “adotar” um pequeno carvalho, que, depois de germinado, vão cuidando em suas casas como se de um filho seu se tratasse. O plano consiste em levar os alunos a assumir o papel de “baby-sitter da árvore” até ao momento em que irão plantá-la na Mata do Buçaco no Dia das Florestas Autóctones (23 de novembro), procurando com isso minimizar os danos resultantes do 200 temporal ocorrido em janeiro de 2013 que destruiu cerca de 2000 árvores daquele Parque Natural. Além disso, a cada um dos novos estudantes que ingressaram em 2015 foi-lhe entregue uma bolota que terão de semear e fazer germinar para que, no próximo ano, sejam os futuros caloiros a dar seguimento a este projeto de replantação e preservação do património ambiental (in “Uni<ersia/Universia New Portugal”). Síntese conclusiva Com a presente incursão histórica nas tradições estudantis procurámos apresentar um quadro genérico da história da praxe, centrada em especial na Universidade de Coimbra, mas também com referências aos casos do Porto e de Lisboa. Vale a pena realçar que este registo corresponde mais a um esforço de contextualização sociocultural do que um levantamento historiográfico exaustivo. A história das tradições e da própria Universidade de Coimbra constitui um imenso património que tem continuado a ser revisitado pelos historiadores, mas que não cabe nas pretensões do nosso estudo. Limitamo-nos a sintetizar alguns contributos a fim de oferecer o enquadramento mínimo no plano sociocultural que permita situar no seu devido tempo, espaço e território os principais contornos que favoreceram o florescer de todo um conjunto de práticas, costumes, rituais e atitudes que marcaram o ambiente estudantil na Universidade ao longo dos séculos. O enfoque direcionado a Coimbra parece justificar-se facilmente, uma vez que foi esse o seu núcleo central de onde irradiaram sucessivos efeitos miméticos desde as últimas décadas do século passado. Quer no discurso, onde se perpetua uma narrativa da “tradição” como elemento justificativo do reavivar dos rituais, quer nas suas múltiplas referências iconográficas e simbólicas, cujas fortes conotações com Coimbra são inquestionáveis. De resto, tem sido visível nos últimos anos uma certa movimentação excursionista – de que demos um exemplo de um grupo do Porto – que se traduz em visitas regulares de estudantes de várias origens geográficas (naturalmente, patrulhados pelos seus padrinhos e doutores), que ali pretendem colher inspiração, bebendo na sua fonte original o elixir revitalizador do ritualismo praxista. 201 CAPÍTULO VI A PRAXE SOB O OLHAR DA COMUNICAÇÃO SOCIAL A presente análise incidiu sobre artigos noticiosos relativos à praxe académica publicados nas edições eletrónicas de alguns meios de comunicação social (essencialmente Expresso, Correio da Manhã e Jornal de Notícias), no período entre 2008 e 201638. A primeira conclusão que se pode retirar é a de que o fenómeno das praxes abusivas tende a assumir maior visibilidade mediática nas academias de Coimbra, Lisboa e Porto – porventura por terem as universidades mais antigas do país e onde o peso simbólico das “tradições académicas” é mais forte, sendo também as que contam com maior número de alunos –, mas encontra-se hoje disseminado por praticamente todas as cidades onde existam Instituições de Ensino Superior (Braga, Aveiro, Vila Real, Évora, Covilhã, Beja, Leiria, Santarém, Tomar…). Exemplo disso são as numerosas notícias publicadas naqueles três órgãos de comunicação social alusivas a situações de praxes violentas ou abusivas (ver fontes no Anexo II), de que resultaram várias mortes, hospitalizações, agressões físicas e outros tipos de abusos. Alguns desses episódios, porventura os que assumiram maior relevância e visibilidade mediática entre os anos de 1999 e 2016 (embora nem sempre por motivos “violentos”), são os seguintes: Novembro de 1999 Uma aluna da Escola Superior de Educação de Leiria declara-se vítima de agressões físicas e humilhações durante as praxes: num “tribunal de praxe” a “sentença” dita o corte do seu cabelo. É a primeira vez que alguém anuncia a vontade de iniciar um processo em tribunal – o que não chegou a acontecer. Janeiro de 2003 Ana Sofia Damião, aluna do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, denuncia publicamente as agressões de que terá sido alvo durante as praxes do início do ano letivo. Insultada, obrigada a despir-se e a vestir-se novamente – com a roupa interior por fora –, forçada a simular orgasmos, a relatar pormenores da sua vida sexual e a simular relações sexuais com colegas. Pedro Lynce, Ministro da Ciência e Ensino Superior da altura, declara que levará “até às últimas consequências” uma 38 Todas as fontes podem ser encontradas no Anexo II. 202 investigação sobre o sucedido e revela que, entre 1997 e 2000, foram arquivados 9 casos de violência nas praxes. No final deste caso, agressores e agredida foram sancionados, por igual, com uma repreensão escrita – Ana Sofia Damião “pela forma subjetiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição”; os agressores “por não terem a preocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir susceptibilidades individuais”. Março de 2003 Ana Santos, estudante da Escola Superior Agrária de Santarém, decide avançar com a denúncia pública. Faz uma queixa na polícia, envia uma carta para a direcção da escola e uma carta para o Ministro do Ensino Superior. Teria sido “esfregada” com bosta, insultada e impedida de usar o telemóvel durante várias horas e, finalmente, abandonada a quilómetros de casa. O Presidente do Conselho Direto da ESAS, Henrique Soares Cruz, abre um inquérito, fazendo contudo saber que, no seu tempo de estudante, também tinha “recebido bosta no corpo”, o que constituía uma “tradição da escola”. O Tribunal de Santarém viria a condenar sete estudantes, numa sentença confirmada em 2009 pela Relação de Évora, a multas entre os 640 e 1600 euros. Foi a primeira condenação da praxe em tribunal. Maio de 2003 Um grupo de alunos do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros denuncia ter sido agredido durante um “tribunal de praxe”. Os alunos agredidos chegam a prometer fazer queixa na polícia, mas acabam por não avançar. O presidente do Instituto suspende, durante 15 dias, os 25 alunos que organizaram o “tribunal” e anuncia a suspensão das praxes “por tempo indeterminado”, pelo menos “até à elaboração do código de praxes com base na Carta de Princípios”. Outubro de 2003 Mais uma queixa no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra: um aluno denuncia que foi obrigado a atar, no seu pénis, um cordel amarrado a um tijolo. A Ministra da Educação recebe um carta assinada pelo pai do aluno e declara que exigirá todos esclarecimentos à escola. O caso ficará por aqui. Novembro de 2003 As praxes na polícia são notícia. “Praxe sexual” no Instituto Superior de Ciências Policiais. Há queixas e ameaças de expulsão. Segundo as notícias, os caloiros teriam 203 sido obrigados a lamber chantilly num pénis de borracha aplicado num manequim. Uma das vítimas afirma na imprensa: “Estive duas noites sem dormir e nunca fui tão humilhado.” Outubro de 2004 A revista Grande Reportagem publica um artigo em que revela a morte, em circunstâncias estranhas, de um membro de uma tuna da Universidade Lusíada de Famalicão. “Morte na tuna” ou “vítima da praxe” são títulos da responsabilidade da jornalista Felícia Cabrita, que pretendem deixar clara a sua tese: Diogo Macedo foi assassinado, pelos seus colegas, numa “praxe” da tuna em 2001. Um pacto de silêncio entre os envolvidos nunca permitiu apurar a responsabilidade pelo crime. Onze anos depois, a justiça obrigou a Universidade Lusíada a pagar uma indemnização de mais de 90 mil euros à família da vítima . Novembro de 2004 O processo judicial de Ana Sofia Damião chega à fase decisiva. O juiz responsável pelo processo declara não haver razões para o julgamento, alegando que a aluna, ao ter participado nas praxes, o teria feito com consentimento, sem se declarar antipraxe. Agosto de 2006 Ana Sofia Damião avança com um processo cívil contra o Piaget de Macedo de Cavaleiros. Perdido o processo-crime contra os agressores, tenta agora responsabilizar a escola, exigindo 70 mil euros pelos “danos morais e patrimoniais” decorrentes do caso. É a primeira vez que uma faculdade se vê obrigada a defenderse em tribunal pela sua negligência e conivência com as violências da praxe. Outubro de 2006 No Porto, uma estudante apresenta queixa na PSP contra uma agressão por um grupo de estudantes e uma ameaça de agressão por parte de dois estudantes, recorrendo a uma colher de pau de grandes dimensões utilizada na praxe. A Reitoria da Universidade de Aveiro proíbe as praxes no interior do “campus”, na sequência de “excessos” que obrigaram à hospitalização de uma aluna. E lança um ultimato: ou se regulamentam as praxes ou serão simplesmente proibidas. 204 Maio de 2007 A imprensa relata o caso de um aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra que terá sido ferido no escroto durante um “rapanço” e de outro que teria vários ferimentos no crânio ocorridos quando lhe rapavam o cabelo. Esta sanção terá sido deliberada por um Tribunal de Praxe. As vítimas decidem não avançar com queixa para além dos organismos das praxes. Novembro de 2007 Dois estudantes ficaram gravemente feridos em iniciativas ligadas à praxe no mesmo dia, em Coimbra e Elvas. Um aluno do 3º ano da Escola Superior Agrária de Coimbra ficou tetraplégico após uma queda durante as praxes. Em Elvas, um aluno do 1º ano da Escola Superior Agrária caiu do do castelo durante o rallye das tascas da semana de receção ao caloiro. Maio de 2008 O Tribunal de Santarém condenou sete ex-alunos da Escola Superior Agrária de Santarém ao pagamento de multas devido a praxes violentas exercidas sobre uma estudante caloira no início do ano letivo de 2002/2003. Foi a primeira vez que um caso com estas características chegou a julgamento. Outubro de 2008 O Instituto Politécnico de Leiria abriu um processo de averiguações após a hospitalização de um aluno, alegadamente vítima de uma praxe violenta. 10 de Novembro de 2008 O âmbito de um referendo interno, cerca de noventa por cento dos alunos da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro declararam-se favoráveis à praxe nos moldes em que ela então se fazia. 15 de Março de 2011 Três dezenas de estudantes da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Braga, que praxavam um grupo de caloiros, envolveram-se em confrontos físicos com um grupo de sem-abrigo que pernoitava junto a um edifício no centro de Braga. 205 Maio de 2011 Um aluno do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa apresentou queixa por discriminação homofóbica durante a receção ao caloiro realizada no campus do ISEL. Setembro de 2012 Uma aluna caloira da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Beja foi hospitalizada, em estado de coma, após uma praxe. A instituição suspendeu “simbolicamente” as atividades de receção dos novos estudantes devido “à reserva e à discrição exigíveis em circunstâncias desta dimensão”. 15 de Dezembro 2013 Seis estudantes da Universidade Lusófona morreram na praia do Meco, arrastados pelo mar. O processo movido contra o único sobrevivente foi arquivado pelo Tribunal de Instrução de Setúbal em 2015, por não ter havido indício de ato criminal, tendo prevalecido a tese de morte acidental. Também não ficou provado que o acontecimento estivesse relacionado com uma praxe académica. Esta decisão judicial foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora em 2016. Janeiro de 2014 Um docente da Universidade do Minho (UM) apresentou queixa por agressões e insultos dentro do campus contra um grupo de alunos que participava numa praxe. A reitoria da UM repudiou a situação e abriu um inquérito. 29 de Janeiro 2014 O movimento de estudantes Manifesto Estudantil Anti-Praxe lançou um manifesto anti-praxe nas instituições de ensino superior intitulado “Contra a praxe, não ficaremos em silêncio”. 22 de Fevereiro de 2014 Dois grupos anti e pro-praxe, o Manifesto Estudantil Anti-Praxe e o Movimento a Favor da Tradição Académica, organizaram pequenas manifestações simultâneas em Lisboa. 206 23 de Abril de 2014 Três alunos caloiros morreram soterrados pela queda de um muro junto ao campus da Universidade do Minho, em Braga, depois de um despique de cânticos entre estudantes de dois cursos diferentes. Quatro alunos foram acusados de homicídio negligente e aguardam julgamento. 23 de Setembro de 2015 Uma aluna caloira da Universidade do Algarve foi hospitalizada em estado de coma alcoólico após uma praxe na praia de Faro. Dois dos alunos envolvidos nessa praxe foram alvo de uma sanção disciplinar imposta pela universidade. Paralelamente, o Ministério Público abriu um inquérito, que concluiu pela inexistência de indícios da prática de crime, tendo sido arquivado. Setembro de 2015 Um aluno da Universidade de Aveiro denunciou ter sido vítima de homofobia e humilhação pública devido à sua orientação sexual. Os seus colegas “proibiramno” de participar nas praxes por ser homossexual, tendo divulgado folhetos no campus sobre o assunto. Dezembro de 2015 Um estudo promovido pela rede de universidades Universia no espaço da América Latina e da Europa concluiu que, “no caso português, (…) 73 por cento dos inquiridos responderam que foram alvo de praxes, 60% admitiram que tiveram consequências psicológicas; para 20 por cento, as praxes levaram ao abandono escolar; já 41% consideraram que as universidades são permissivas e que as praxes mais frequentes são brincadeiras pesadas; 80% nunca fizeram uma denúncia” (CM, 11-12-2015) A partir desta breve cronologia é possível observar que o ocorrido suscitou um vivo interesse junto da opinião pública, que acompanhou o rol de notícias e reportagens exibidas nas televisões e publicadas nos jornais ao longo de meses e anos, como se pode constatar nas fontes noticiosas consultadas nesta análise. O país – incluindo nesta designação quer as autoridades académicas, quer os agentes políticos, quer mesmo a comunicação social – parecia ter definitivamente 207 “descoberto” uma realidade que, até então, era comentada apenas a espaços, sempre que um “caso” de praxe abusiva chegava ao domínio público – e foram muitos os casos no período de 2008 a 2013 (ver Fontes/notícias sobre casos diversos). Apesar de a justiça portuguesa não ter encontrado provas da existência de crime na morte dos seis estudantes da Universidade Lusófona, concluindo pela tese de acidente, nem ter demonstrado tratar-se de uma praxe académica, tal não impediu que fossem organizadas várias demonstrações públicas de solidariedade para com as famílias das vítimas, por entre fortes críticas à alegada “parcialidade” da investigação judicial. Assim, no dia 15 de maio de 2014, o Centro Cultural Malaposta, em Lisboa, levou à cena a peça “Isto Não É uma Praxe”, do encenador Marcantonio del Carlo, a pretexto de uma homenagem aos seis jovens cinco meses após a sua morte. Mais recentemente, em março de 2015, foi inaugurado um memorial na praia do Meco, da autoria do escultor João Cutileiro, a pedido dos pais dos seis alunos. Alguns destes pais foram mesmo recebidos pelo Papa Francisco, no Vaticano, em junho de 2015. O “caso Meco” assumiu, assim, contornos de momento-charneira na evolução da perceção pública sobre o fenómeno da praxe, atraindo as atenções gerais para dois acontecimentos posteriores: a morte de três estudantes da Universidade do Minho na queda de um muro, em abril de 2014, e a hospitalização de uma aluna da Universidade do Algarve em estado de coma alcoólico, em setembro de 2015. Ambas as situações alcançaram, também, grande impacto mediático, embora não comparável à da praia do Meco. Antes do Meco, porém, um outro episódio viria a tornar-se marcante. Em maio de 2008, um tribunal português julgou, pela primeira vez, um crime relacionado com praxes violentas sobre uma aluna de uma instituição de ensino superior de Santarém, ocorridas em 2002, tendo condenado os seus autores ao pagamento de multas pecuniárias. Na esteira do “caso Meco”, as praxes abusivas passaram a ser encaradas pelas sucessivas equipas ministeriais com a tutela do ensino superior como um problema que deve ser combatido, em primeira linha, pelas autoridades das instituições de ensino universitário e politécnico. Em setembro de 2014, o então secretário de Estado do Ensino Superior, José Ferreira Gomes, enviou a todos os responsáveis dessas instituições um conjunto de recomendações assentes na ideia de que os “estabelecimentos têm o dever de atuar para impedir que sejam levadas à prática, nas suas instalações ou fora delas, praxes humilhantes e vexatórias, que podem originar exercícios de violência física e psíquica 208 sobre estudantes, claramente restritivos dos seus direitos, liberdades e garantias”. O mesmo governante considerava, ainda, ser necessária uma “reação firme” por parte das Instituições de Ensino Superior contra os estudantes autores de praxes violentas, devendo estes ser “plenamente responsabilizados no quadro da disciplina académica, para além da responsabilidade civil e criminal que deve ser investigada pelas autoridades policiais”. Além destas recomendações, foi também criado um endereço eletrónico para denúncia de casos (praxesabusivas@mec.gov.pt, atualmente praxesabusivas@dges.mctes.pt). Já o atual ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, tem vindo a criticar publicamente o poder das comissões de praxe e a recomendar que se combatam as suas práticas internas nas universidades e nos politécnicos, tendo enviado uma carta a todas as Instituições de Ensino Superior, a dirigentes académicos e a representantes dos estudantes, no início do ano letivo de 2016/2017, apelando ao fim das praxes e à sua substituição por atividades de caráter cultural, desportivo e científico. Para tal, foi lançado o programa Praxe+, que visa apoiar a integração dos novos alunos no ensino superior através da ciência e da cultura, respeitando a autonomia pessoal e desenvolvendo o sentido crítico dos estudantes. Na sequência do caso atrás relatado ocorrido em Faro, em setembro de 2015, a Universidade do Algarve emitiu um despacho sobre as praxes para o ano letivo de 2016/2017, no qual determinou “tolerância zero” para com todos os atos de acolhimento dos novos estudantes, dentro ou fora do campus académico, que atentem contra os seus direitos constitucionais, ameaçando com a instauração de processos disciplinares e/ou participação às autoridades judiciais. Além disso, proibiu a realização de praxes académicas durante o período de matrículas dos novos alunos (Expresso, 09-09-2016). Já no caso da Universidade do Minho (UM), as praxes abusivas dentro do campus estão proibidas desde 2011, medida que foi recebida com grande insatisfação por muitos estudantes da UM, tendo motivado várias manifestações de protesto. Contudo, também se ouvem vozes discordantes quanto à intenção de banir ou mesmo de “reformar” a praxe. O presidente da Associação Académica de Coimbra, José Dias, afirmou que a posição do ministro Manuel Heitor, bem como a carta por ele enviada, “não mudam substancialmente nada” e que a academia coimbrã “não mistura tradição com atos de abuso e humilhação”. Para este responsável estudantil, atividades como as sugeridas pela tutela são já prática corrente na instituição, onde há uma preocupação com o acompanhamento e a integração dos novos alunos (CM, 17-09-2016). Este 209 entendimento é partilhado por associações académicas e comissões de praxe de várias outras instituições de ensino do país. A Juventude Social Democrata (JSD) de Coimbra também se manifestou frontalmente contra as intenções anti praxe do ministro, reclamando mesmo a sua demissão (JN, 20-09-2016). Em 2014, o presidente do Instituto Politécnico de Bragança (IPB) havia considerado um erro a proibição das praxes, defendendo haver uma “evolução positiva” que permitia manter as praxes dentro de certos limites e facultativas. Este responsável académico entendia que as praxes eram úteis à integração dos novos alunos no IPB, que contava então com mais de 90% de estudantes deslocados (CM, 19-09-2014). Não obstante os casos de praxe violenta e perigosa continuarem a alimentar as páginas da imprensa, têm surgido com regularidade, ao longo dos anos mas porventura com maior ênfase após o “caso Meco”, diversas propostas alternativas à praxe “tradicional”, sob a forma de atividades de divulgação científica, roteiros culturais pelas cidades ou voluntariado social, num movimento que tem sido apelidado de “praxe solidária” ou “integração solidária”. Um dos exemplos mais recentes, já neste ano letivo, foi dado pela Associação Académica do Instituto Politécnico de Castelo Branco, que decidiu abolir a praxe nas seis escolas da instituição, dando lugar a ações culturais e solidárias de integração dos novos alunos. Também a Universidade da Beira Interior, através do novo projeto “Integro”, pretende premiar os núcleos de estudantes que promovam as melhores ações de integração responsável dos novos alunos, com base no convívio, diversão e descoberta da instituição e da cidade, contando com o apoio da associação académica. Um conjunto de 100 personalidades subscreveu uma carta aberta em julho de 2016, intitulada “Integração no Ensino Superior: a democracia faz-se de alternativas”, dirigida a todas as Instituições de Ensino Superior, em que pedem alternativas à praxe “com caráter duradouro”, nomeadamente “atividades de receção e de integração dos novos estudantes e das novas estudantes (...) que configurem uma alternativa lúdica e formativa às iniciativas promovidas pelos grupos e organizações de praxe”. A Assembleia da República (AR), por seu lado, aprovou em fevereiro de 2016 três projetos de resolução, apresentados pelo BE, PS e CDS-PP, exigindo ao Governo o reforço das medidas relativas às praxes académicas, como a realização de um estudo nacional e de campanhas informativas dirigidas aos estudantes. Dois anos antes, em março de 2014, a mesma AR havia aprovado a Resolução n.º 24/2014, na qual 210 recomendava ao Governo a realização de uma campanha de sensibilização pela “tolerância zero à praxe violenta e abusiva”, propunha o envolvimento das associações académicas e dos gabinetes de acolhimento dos novos alunos e defendia o reforço dos mecanismos de “responsabilização e de denúncia”. Outro indicador aparentemente positivo, ainda que não totalmente representativo da realidade das praxes abusivas, é a diminuição do número de queixas apresentadas através do já referido endereço eletrónico da Direção-Geral do Ensino Superior. Com efeito, das 80 queixas relativas ao ano letivo de 2014/2015 – 45 das quais foram acompanhadas pelos órgãos diretivos das Instituições de Ensino Superior e 35 não se enquadravam no âmbito da campanha, segundo o ministério (Expresso, 25-09-2015) –, passou-se para dez denúncias em 2015/2016 (até maio). Como é óbvio, fica por se saber se esta diminuição quantitativa corresponde ao enfraquecimento real do fenómeno da praxe abusiva ou, simplesmente, a fatores circunstanciais como a descrença na eficácia do mecanismo, por exemplo. 211 CAPÍTULO VII ENQUADRAMENTO JURÍDICO Neste capítulo pretende-se discutir as vicissitudes jurídicas dos atos de violência e abusos (atos vexatórios, humilhações, atos de coação física ou psíquica, etc.) no âmbito de relações de praxe académica, dado que os aspetos sociológicos do fenómeno foram abordados nos capítulos antecedentes. Para além de uma síntese do quadro legal, interessa perceber se os atos ilícitos perpetrados no âmbito das relações de praxe encontram respostas adequadas (ou não) no enquadramento jurídico português. Por outro lado, cumpre verificar se os mecanismos legais à disposição da comunidade académica, particularmente dos lesados destas práticas ilícitas, se revelam adequadas e eficazes à regulação do fenómeno. A verdade é que esporadicamente vem à discussão a necessidade de criminalização da violência e dos abusos nas praxes académicas, quer por via de lei especial, quer através de alterações ao cardápio de tipos de ilícito da parte especial do Código Penal, à semelhança do que sucedeu com o crime de violência doméstica (art.º 152.º do CP). Desde já afirmamos a nossa discordância com esta posição. Entendemos, pelo contrário, que o ordenamento jurídico português, nos seus planos civil, penal e disciplinar, se bem compreendido e melhor aplicado, dá resposta adequada e suficiente à generalidade, senão mesmo à totalidade, dos factos ilícitos emergentes das relações sociais de praxe académica. Tal posição reúne, ao que julgamos, o consenso do meio jurídico. Na verdade, as condutas geradoras de violência e de abuso perpetradas em contexto de praxe académica, encontram-se perfeitamente salvaguardadas, quer pelos tipos de ilícito da parte especial do nosso Código Penal, quer pelas disposições relativas à responsabilidade civil (delitual) do Código Civil, conjugadas com as normas processuais civis e penais, quer ainda pelas disposições de natureza disciplinar previstas no Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (Lei n.º 62/2007, de 10/09). 7.1. O sistema normativo-coativo (a legalidade) e a legitimidade própria do direito Somos seres sociais. Nascemos, crescemos, vivemos e morremos em sociedade. À medida que nos adaptamos continuamente às suas exigências, o nosso comportamento torna-se parecido com os demais e as expectativas de comportamento passam a ser suscetíveis de relativa padronização. Toda a vida em sociedade é um compromisso entre as necessidades do indivíduo e as exigências do todo social, e têm a indeterminação e a instabilidade própria das situações desta natureza (Linton, cit. Souto et al, 1981: 2-3). E porque cada ser humano possui características, tendências e inclinações variadas, são 212 imprescindíveis regras que normalizem de modo eficaz a sua conduta social, pois que, sem um mínimo de comportamento reconhecido socialmente como adequado, não pode existir entendimento geral, isto é, realização efetiva de ação social (ibidem: 3). E aqui é que entra o direito. O direito é um sistema ou conjunto de normas reguladoras do comportamento humano, referido a um determinado tempo e sociedade. É também uma técnica de controlo social, uma técnica normativa que contribui para a ordem social, isto é, para a realização de determinado modelo de organização da sociedade. Por intermédio do direito a ordem social passa a ser ordem jurídica, ordem que se impõe como legítima, justa. Pode dizer-se que todo o direito (sistema de legalidade) deriva de um determinado sistema de interesses e valores (sistema de legitimidade em sentido amplo), pelo que, inversamente, todo o sistema de legitimidade jurídica tenta realiza-se através do sistema de legalidade. Ordem e justiça são dois dos objetivos ou aspirações primordiais a alcançar pelo sistema normativo que é o direito, e, simultaneamente, dois valores a partir dos quais se legitima todo o sistema de legalidade (Días, 1992: 11-12). Todo o direito incorpora e realiza assim um certo sistema de legitimidade e um determinado sistema de valores e de interesses. As expressões “tenho direito a …”, ou “não há direito!” reenviam-nos imediatamente para a ideia de direito como norma. A primeira, expressão de um direito subjetivo (faculdade de fazer ou de exigir), encontra o seu fundamento na preexistência de um direito objetivo, de uma norma que garanta tal comportamento. A segunda, sinónimo de “não há justiça!”, reencaminha-nos para a ideia de justiça, isto é, para o sistema de legitimidade, que pode ou não coincidir com o sistema de legitimidade incorporado na própria norma jurídica. Injustiça é pois um conceito ligado, de forma negativa, com o mundo dos valores jurídicos (justiça em sentido amplo), e assim, ao sistema de legitimidade em sentido mais amplo. Ilegalidade e arbitrariedade são, contrariamente, conceitos corelacionados com o direito positivo, isto é, com o sistema de legalidade. O primeiro representa uma ação contrária à legalidade, ao passo que o segundo representa a atuação dos órgãos de poder que ao “torcerem” a legalidade, fazem dela letra morta. Para além da função de controlo social do direito (que deriva da aplicação das normas à resolução de problemas concretos, e que constringe de forma direta e imediata as condutas), ele tem também um certo caráter de persuasão. Diz-se que enquanto sistema normativo-coativo, o direito funciona quer como sistema de segurança, quer como sistema de controlo social, mas pode (deve) funcionar também como fator de mudança social. Pensar as práticas de violência e os abusos no contexto da praxe académica 213 convoca-nos decisivamente, a todas e a todos, a refletir sobre esta última dimensão: o direito como potencial fator de mudança social. Enquadramos o assunto em análise – violência e abusos em contexto de praxe académica - nos planos do direito constitucional, do direito penal, da responsabilidade civil e do direito disciplinar, e finalmente, damos conta da jurisprudência relevante. 7.2. O plano do direito constitucional A Constituição da República Portuguesa (CRP) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) encontram-se no vértice da pirâmide hierárquica das disposições normativas, sendo, em ambos os casos, o conceito de dignidade da pessoa humana considerado um prius (art.º 1.º e 16.º, n.º 1 da CRP, art.º 1.º da DUDH). Na CRP, a dignidade da pessoa humana concretiza-se em múltiplas normas, sobretudo no domínio dos direitos fundamentais. Antes de mais, a dignidade da pessoa humana é a da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana, não é a dignidade de um ser ideal e abstrato: “é o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irreparável e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege” (Miranda, 2005: tomo I: 53). Tal explica, desde logo, a garantia da integridade pessoal contra a tortura e os tratos e penas cruéis, degradantes ou desumanos (art.º 25.º da CRP), bem como o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento normal da personalidade, ao bom nome, à reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação (art.º 26.º da CRP). Cada pessoa tem de ser compreendida em relação com as demais pessoas, pelo que a dignidade de cada pessoa pressupõe necessariamente a dignidade de todas as outras. Por isso, a Constituição completa a referência à dignidade da pessoa humana com a referência à “mesma dignidade social” que possuem todos os cidadãos, decorrente da inserção numa comunidade determinada, fora da qual, como se diz no art.º 29.º, n.º 1 da DUDH, “não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”. A dignidade da pessoa, sendo a dignidade de todas as pessoas, refere-se quer aos cidadãos nacionais quer aos cidadãos estrangeiros; razão pela qual, os direitos fundamentais se aplicam independentemente da nacionalidade dos sujeitos (art.º15.º, n.º 1 da CRP). Dignidade e autonomia pessoal são conceitos incindíveis, concretizando-se, por conseguinte, quer no direito ao desenvolvimento da personalidade (art.º 26.º, n.º1 da CRP), quer na liberdade de aprender e ensinar (art.º 43.º da CRP). Como refere Jorge Miranda (2005: tomo I: 457), porque na época moderna a educação implica sempre, em maior ou menor medida, escola e por ser através da escola que ela se institucionaliza e passa para espaço público, a 214 liberdade de aprender e ensinar apresenta-se também como liberdade na escola. Concebida deste modo, a liberdade de ensino é fundamentalmente um direito de defesa, isto é, um direito a ensinar e a aprender sem quaisquer impedimentos. Mas a Constituição garante também um direito ao ensino enquanto direito positivo, isto é, como direito de acesso livre à escola, como direito a obter ensino (arts. 73.º- 76.º da CRP), que deve ser acompanhado de um dever de obter ensino, incluindo um dever de frequentar a escola (art.º 74.º, n.º 2, al. A) CRP) (Canotilho e Moreira, Vol. I, 2007: 625-626). Ora, situações de violência (física ou psicológica), abusos, humilhações e ataques à dignidade humana em contexto de praxe académica, que nalguns casos constituem crimes públicos, são situações que merecem público repúdio, desde logo, na medida em que limitam ou colocam mesmo em perigo direitos, liberdades e garantias dos visados. Apesar de intervir no contexto da educação, o Estado não é ele próprio titular do direito de ensinar, cumprindo-lhe só o dever de promover a sua democratização, assegurar as condições para que a educação, realizada através da escola, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade, do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e responsabilidade, o progresso social e a participação democrática na vida coletiva, além de outros deveres, como o de criar uma rede de estabelecimentos de ensino superior públicos que cubra as necessidades da população e o de reconhecer e fiscalizar o ensino particular e cooperativo (art.º 73.º a 77.º da CRP). A sua função é essencialmente promotora e fiscalizadora, competindo às universidades organizarem-se, estatutária e administrativamente, no sentido de respeitarem e assegurarem o respeito pelo quadro legal, de acordo com o princípio da autonomia previsto no art.º 76.º, n.º 2 da CRP.39 7.3. O plano do direito penal No plano do direito penal, os tipos de crimes40 com conexão relevante a situações de praxe académica são, entre outros, o de exposição ao abandono (138.º do CP), os crimes contra a integridade física (143.º a 149.º), ameaça (153.º), coação (154.º), difamação e injúria (180.º a 184.º), omissão de auxílio (200.º), dano (212.º-214.º), discriminação “A autonomia é um verdadeiro direito fundamental das universidades” (Miranda, 2005: 740). Considera-se “crime” o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, conforme dispõe o artigo 1º do Código de Processo Penal (CPP). Em Portugal, a promoção do processo penal cabe ao Ministério Público. É ele que tem legitimidade para investigar sobre a ocorrência de factos que a lei classifica como crime. Todavia, o Ministério Público não desencadeia a acção penal por sua iniciativa em todos os crimes. Daí que seja necessário distinguir entre crimes particulares, semipúblicos e públicos. 39 40 215 racial, religiosa ou sexual (240.º), embriaguez e intoxicação (295.º); para não falar dos homicídios (131.º a 133.º e 137.º) e dos crimes sexuais, caso da coação sexual (163.º), violação (164.º) e importunação sexual (170.º), sendo que os crimes particulares41 dependem de formulação de acusação particular; os semipúblicos42 de formalização de queixa, e nos crimes públicos43 o procedimento criminal inicia-se através da notícia pelas autoridades judiciárias ou policiais, ou por denúncia (facultativa) de qualquer pessoa. Questão frequentemente abordada neste domínio é a da relevância do consentimento do ofendido. De acordo com o disposto no artigo 38.º do Código Penal, o consentimento exclui a ilicitude dos factos quando se refira a interesses jurídicos livremente disponíveis, desde que o facto não ofenda os bons costumes (n.º 1). Mas para que o consentimento possa ser considerado válido, tem que ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do direito juridicamente protegido (n.º 2), só se tornando eficaz se for prestado por uma pessoa com mais de 16 anos (n.º 3). Excecionando o disposto no n.º 3, por razões óbvias (os alunos universitários têm idade superior a 16 anos), o problema coloca-se quanto à disponibilidade do bem jurídico (n.º1) e à liberdade de consentimento (n.º 2), suscitando estas questões controvérsia. Todavia, só à primeira vista, pois quanto à questão da liberdade do consentimento, não podendo o consentimento ser valorado mediante qualquer tipo de coação, ameaça ou aproveitamento consciente de erro em que o titular do bem jurídico se encontre, dir-se-á que nas práticas violentas ou abusivas perpetradas em contexto de praxe, o ofendido raramente expressa uma vontade séria, livre e esclarecida como impõe o legislador no Código Penal. Além Nos “crimes particulares” a lei exige que o ofendido apresente queixa. Depois de apresentada, o Ministério Público desencadeia a investigação com os elementos de prova fornecidos pelo ofendido. Findo o inquérito, o Ministério Público convida o queixoso a deduzir acusação. Ou seja, o Ministério Público não acusa, não leva a causa a julgamento. Terá de ser o ofendido a deduzir acusação. Neste tipo de crimes, o queixoso é obrigado a constituir-se assistente no processo, a pagar taxa de justiça e ainda a constituir mandatário judicial. 42 Nos “crimes semipúblicos” é necessária queixa da pessoa com legitimidade para exercer o direito (ofendido ou o seu representante legal ou sucessor). As entidades policiais e funcionários públicos são obrigados a denunciar estes crimes, sem embargo de se tornar necessário que o titular do direito de queixa exerça tempestivamente o respectivo direito, sem o que não se abrirá o inquérito. Mas, ao contrário dos crimes particulares, o Ministério Público acusa, leva a causa a julgamento, por si, sem que seja necessário qualquer tipo de comportamento do ofendido. O ofendido pode, contudo, desistir da queixa até à audiência de julgamento. 43 Designam-se “públicos” os crimes que não são, nem particulares nem semipúblicos. Nos crimes públicos basta que o Ministério Público tome conhecimento da sua existência, designadamente através dos órgãos de polícia, para que a ação penal se desencadeie naturalmente, sendo a denúncia facultativa para qualquer pessoa. As entidades policiais e os funcionários públicos são obrigados a denunciar os crimes de que tenham conhecimento no exercício das suas funções. Nos crimes públicos o processo corre mesmo contra a vontade do titular dos interesses ofendidos. 41 216 disso, na maioria dos casos, estarão em causa apenas crimes particulares ou semipúblicos, nos quais o impulso processual depende da vontade do ofendido, pelo que a relevância prática desta questão se limita aos crimes públicos44. No entanto, não é certamente esta a sede adequada para discutir a pertinência dogmática desta questão. Cumpre apenas constatar a suficiência das normas inseridas no Código Penal no que concerne à regulação de situações de violência e de abuso no âmbito das relações sociais de praxe académica, não se afigurando, portanto, necessária qualquer alteração ao Código Penal, e muito menos um diploma especial sobre esta matéria. 7.4. O plano da responsabilidade civil Em termos genéricos a responsabilidade civil consiste na necessidade imposta por lei a quem causa prejuízos a outrem, de colocar esse outrem (ofendido) na situação em que estaria sem se não houvesse lugar a qualquer lesão (Pinto, 1996: 114). A responsabilidade civil atua através da obrigação de indemnizar.45 Em processo penal, é possível ao ofendido efetuar, no próprio processo-crime, pedido de indemnização fundado na responsabilidade civil decorrente da prática de crime (princípio da adesão), podendo contudo efetua-lo em separado, no tribunal civil, nas condições previstas nos art.ºs. 71.º e 72.º do CPP. Neste sentido, pode dizer-se que a responsabilidade civil emergente de atos ilícitos conexos com a praxe académica, se encontra também assegurada de forma suficiente e adequada em sede processual penal (71.º e 72.º CPP) e processual civil (483.º CC e 548.º, 878.º CPC)46. Embora a problemática do consentimento adquira alguma complexidade, designadamente no caso da integridade física, face ao disposto no art.º 148.º do C.P. 45 A obrigação de indemnizar tem em vista tornar indemne, isto é, sem dano, o lesado. Dito de forma diferente, visa colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do facto danoso. Além da existência de um dano e de uma ligação causal entre o facto gerador de responsabilidade e o prejuízo, devem ainda verificar-se outros dois pressupostos: que o facto seja ilícito (é a regra, mas há também casos em que a responsabilidade civil prescinde da culpa e da ilicitude), isto é, violador de direitos subjetivos ou interesses alheios tutelados por uma disposição legal, e culposo, ou seja, passível de censura ético-jurídica ao sujeito atuante (Pinto, 1996: 114). 46 Está aqui em causa a designada responsabilidade civil extracontratual, aquiliana ou delitual, resultante da prática de atos, culposos, violadores de direitos alheios ou interesses juridicamente protegidos, causadores de prejuízos a outrem (483.º e ss, do CC). 44 217 7.5. O plano do direito disciplinar Plano importante de regulação das situações de violência e abusos no contexto de praxes académicas é o do designado direito disciplinar. O direito disciplinar constitui também a garantia de prossecução dos direitos, liberdades e garantias nas instituições de ensino superior, detendo ainda uma função pedagógica e preventiva, para além do sancionamento das atitudes lesivas dos valores e deveres académicos e profissionais. As instituições de ensino superior gozam de autonomia em múltiplos domínios de atuação, desde logo, no âmbito estatutário, pedagógico, científico, cultural, administrativo, financeiro, patrimonial, mas também disciplinar. A Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, que aprovou o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), sem embargo das suas limitações e de ausência de avaliação do seu real impacto no meio académico47, consagra o princípio da autonomia disciplinar no art.º 11.º, densificando-o no art.º 75.º.48 De acordo com o n.º 2 do art.º 75.º do RJIES, a autonomia disciplinar confere às instituições de ensino superior o poder de punir as infrações de natureza disciplinar praticadas, entre outros agentes, pelos estudantes. O exercício do poder disciplinar, no caso dos estudantes, rege-se pelo disposto nos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 75.º do RJIES, bem como pelos estatutos e pelo regulamento disciplinar de cada instituição, sendo subsidiariamente aplicáveis as normas disciplinares da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas49, independentemente da responsabilidade civil e criminal a que houver lugar.50 Resulta da al. b) do n.º 4 do artigo 75.º do RJIES, que constitui infração disciplinar “a prática de atos de violência ou coação física ou psicológica sobre outros estudantes, designadamente no quadro das «praxes académicas» ”. As infrações praticadas pelos Vide, “Que reforma democrática do Ensino Superior?”, João Mineiro, Público, 27/12/2016. Poder disciplinar define-se de forma simples como o poder de aplicar medidas coativas (sanções disciplinares) a agentes, cuja conduta prejudica(ou) ou coloca(ou) em perigo bens e/ou valores julgados relevantes num determinado contexto social ou organizacional, ou que não seja adequada á correta efetivação de determinados deveres legais, regulamentares ou estatutários; pressupondo as caraterísticas da unilateralidade, da discricionariedade e caráter essencialmente punitivo. 49 O “Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local”, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 09 de setembro, foi revogado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, que aprovou a “Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas”, diploma que, no seu capítulo VII (art.ºs 176.º a 223.º), regulamenta o exercício do poder disciplinar. 50 O procedimento disciplinar é independente e autónomo face ao processo criminal, sendo, portanto, diferentes os pressupostos da respetiva responsabilidade e diversa a natureza e finalidade das sanções aplicadas nos dois processos. A absolvição ou condenação em processo-crime não impõe decisão em sentido idêntico no procedimento disciplinar. No procedimento disciplinar o que releva sobremaneira não são bens jurídicos de elevada ressonância social e previsão constitucional, mas o desrespeito por valores considerados basilares em contexto social e organizacional, tais como os ligados à correção e á conduta dos agentes, valores esses com especial relevo no âmbito das organizações. 47 48 218 estudantes em ambiente de praxe académica são passíveis de aplicação das sanções elencadas nas als. a) a e) do n.º 5) do art.º 75.º do RJIES, as quais, de acordo com a sua gravidade, podem variar da mera advertência à interdição da frequência da instituição de ensino superior até ao prazo máximo de 5 anos; passando pela multa, suspensão temporária das atividades escolares, e suspensão da avaliação escolar durante 1 ano.51 O poder disciplinar compete ao Reitores ou Presidentes das instituições de ensino superior, podendo ser delegado nos diretores ou presidentes das diversas unidades orgânicas, sem prejuízo do direito de recurso para o Reitor ou Presidente (n.º 6)52. O papel dos Reitores e Presidentes das universidades é, pois, fundamental no que concerne á definição das estratégias de prevenção e controlo de práticas ilícitas em contexto de praxe académica, dado o poder de direção da universidade, sendo deles quer o exercício do poder disciplinar, quer o poder de aprovar instrumentos internos de regulação (designadamente, regulamentos disciplinares, códigos de conduta académica, etc.), sendo eles o garante da sua observância, e sobre eles recaindo o dever de propor as iniciativas julgadas adequadas ao bom funcionamento da instituição de ensino superior (art.º 92.º, n.º 1). Os regulamentos disciplinares aprovados pelas instituições de ensino superior são aplicáveis a estudantes, docentes, investigadores e demais funcionários e agentes, podendo ter uma função importante de prevenção de atos de violência, humilhações, e atos vexatórios da dignidade da pessoa humana, razão por que devem ser objeto de adequada publicitação no seio da comunidade académica, e ser utilizados adequadamente, sendo que tal tarefa não cabe ao Estado, pois encontra-se delegada nos órgãos de direção das instituições de ensino superior. De referir que o RJIES confere ainda dignidade institucional à figura do Provedor do Estudante (art.º 25.º), prevendo que em cada instituição exista, nos termos dos seus estatutos, um Provedor do Estudante, cuja ação se desenvolve em articulação com as associações de estudantes e os órgãos e serviços de cada instituição, designadamente, os conselhos pedagógicos e as diversas unidades orgânicas. É pois dever indeclinável e irrenunciável dos órgãos de governo das instituições de ensino superior, sem embargo das competências dos Provedores do Estudante, reunir esforços no sentido da prevenção e sancionamento, dentro e fora das suas instalações, de práticas Constituem infração disciplinar os factos dolosos ou meramente culposos, praticados pelos estudantes, que em abstrato violem deveres ou normas de conduta previstos e punidos na lei ou em regulamento(s) interno(s), em código(s) de conduta, ou ainda nos estatutos da própria instituição de ensino superior. 52 Por conseguinte, e sem prejuízo do poder de delegação, compete ao Reitor ou ao Presidente da instituição de ensino superior, proceder à instauração ou ao arquivamento do procedimento disciplinar, em função do juízo que faça sobre os indícios de infração recolhidos. 51 219 vexatórias da dignidade da pessoa humana, especialmente das que impliquem violência física ou psíquica sobre discentes e coloquem em perigo ou restrinjam de forma inaceitável, direitos, liberdades e garantias (arts. 18.º, n.º 1 e 76.º, n.º 2 da CRP). 7.6. O plano jurisprudencial: cinco exemplos, cinco decisões a ter em conta Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/2009 – Processo n.º 459/05.0TBMCD.S1: I - Um estabelecimento de ensino superior, deverá, por essência, promover os valores humanos, para além de ministrar, fomentar e impulsionar os conhecimentos científicos. Deverá, assim, impulsionar o dever de respeito dos direitos fundamentais do homem, acautelando que esses direitos - tutelados pelos arts. 70.º do CC e 24.º e ss. da CRP -, designadamente os direitos de personalidade de uma pessoa, não sejam ofendidos. II - Embora não se possa negar a possibilidade de as diversas universidades do país terem e exercerem as suas praxes, onde alguma irreverência será até aceitável, não será admissível que com essas praxes se venham a exercer violências físicas e morais sobre alunos, designadamente sobre os mais desprotegidos (os que se aprestam a frequentar o 1.º ano), para gozo e júbilo de alguns e sofrimento (moral e físico) dos atingidos, os mais fracos. III - Um estabelecimento de ensino superior tem, pois, o dever jurídico e social de impedir que seja levado à prática nas suas instalações um “Regulamento de Praxes de Alunos” contendo praxes humilhantes e vexatórias, procedimentos constrangedores que podem levar ao exercício de violência física e psíquica sobre os alunos, claramente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos visados. IV - O estabelecimento de ensino que contempla com a vigência de um Regulamento da Comissão de Praxe com tais características, é responsável, por omissão, pelos danos sofridos por uma aluna que foi submetida a praxes dessa natureza. V - Existe nexo de causalidade entre o comportamento omissivo do estabelecimento de ensino acima referenciado, que originou a que à aluna fossem aplicadas práticas violadoras dos seus direitos de personalidade, e os danos de ordem material (gastos com medicamentos e consultas médicas, despesas com anulação da matrícula e outras, bem como lucros cessantes pelo tardio ingresso no mercado de trabalho) e morais sofridos por esta. 220 VI - Não se pode considerar que os gastos em causa tenham sido realizados pelos pais da aluna se ficou provado que o dinheiro despendido lhe foi entregue pelos seus pais. Nesse caso, ter-se-á verificado uma situação de doação dos pais a favor da filha, assistindo a esta o direito a ser reembolsada. VI - Considerando a humilhação a que a aluna foi sujeita, a tristeza que sentiu, a situação de baixa médica, os sintomas de depressão e stress e o abandono daquele estabelecimento de ensino, tendo perdido um ano escolar, é adequado fixar em 25.000 € o montante da indemnização por danos não patrimoniais. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/04/2013 – Processo n.º 984/07.8TVLSB.P2.S1: I - O incumprimento de contrato pode ser imputado à inobservância dos deveres acessórios de conduta, impostos aos contraentes pelo princípio geral da boa-fé (arts. 799.º e 762.º, n.º 2, do CC). II - No contrato de ensino, educação ou instrução, celebrado com uma Universidade compreendem-se, além dos deveres principais (como os deveres de ensinar e pagar as propinas) – indispensáveis à prossecução do objetivo visado, in casu, alcançar o termo da licenciatura –, deveres acessórios (como os decorrentes da necessidade de acautelar a segurança dos estudantes). III - Se a Universidade viola o dever de garantir tal segurança, (i) à mesma incumbe o ónus de provar que não agiu com culpa (afastando a presunção a que alude o art. 799.º, n.º 2 do CC) e (ii) ao demandante o ónus de provar o nexo de causalidade entre tal violação (designadamente o controlo das práticas praxistas) e o dano morte que veio a ocorrer. IV - O nexo causal é definido em função da variante negativa da causalidade adequada e não pressupõe a exclusividade da condição, tendo-se por verificado se da matéria de facto ficou apurado que “se a ré controlasse as práticas praxistas dentro das suas instalações, impedisse que a agressividade física e psicológica dominasse, o D não teria sido sujeito a humilhação, a vergonha, nas mesmas e teria contribuído para que a sua morte não tivesse ocorrido”. 221 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/11/2008 - Processo n.º 0854752 I - Constitui ilícito civil a conduta de uma instituição do ensino superior que embora conhecendo o conteúdo de um “Código de Praxe” ofensivo, e intimador, violador da dignidade da pessoa humana, permite que o mesmo continue a ser aplicado. II - Tal instituição tem o dever específico de respeitar, fazer respeitar e promover direitos fundamentais, como o respeito mútuo. A liberdade, a solidariedade, a dignidade da pessoa humana. III - Como tal a instituição tem a obrigação de indemnizar quem tenha sido ofendido pelas ditas praxes académicas, relativamente aos danos patrimoniais e morais. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/11/2012 - Processo n.º 984/07.8TVLSB.P2 I - O direito à indemnização [da instituição de ensino superior] por danos não patrimoniais por morte da vítima é um direito próprio do familiar do falecido nos termos definidos no n.º 2 do art.º 496.º do Código Civil. II - O montante da correspondente indemnização, a fixar equitativamente nos termos do n.º 3 daquele artigo, deve ser significativo e não meramente simbólico e resultar da ponderação do grau de culpabilidade do agente, da situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, designadamente o valor atual da moeda. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/01/2016 - Processo n.º 51/13.5MASTB.E1 I - A conduta do arguido só poderia relevar para preencher o tipo criminal do artigo 138.º, n.º1, do Código Penal se ele se tivesse apercebido de que a capacidade de avaliação e decisão das vítimas se encontrava perturbada e tivesse conscientemente tirado partido disso, no sentido de as sujeitar ao perigo de serem arrastadas pelo mar e morrerem por afogamento. II - Não obstante a subordinação hierárquica das vítimas ao arguido, no organismo promotor da praxe, e o facto de o segundo ter sido o «mentor» das atividades desenvolvidas no fim-de-semana fatídico, não faz sentido dizer que o arguido se encontrava então constituído nalgum dever de garante da segurança dos seus colegas, que o acompanhavam, pois estes em nada haviam abdicado da sua autonomia jurídica, sendo cada um deles responsável pela garantia da sua própria 222 segurança perante os perigos que na altura pudessem ameaçar a sua integridade física ou a sua vida. Perante a jurisprudência consolidada, cumpre dizer que os órgãos de governo das instituições de ensino superior, independentemente da sua qualidade (públicas ou privadas) e da sua natureza jurídica, devem adotar uma atitude ativa perante os fenómenos de violência e abusos que ameacem atingir ou violem efetivamente direitos, liberdades e garantias dos sujeitos da comunidade académica em situações de praxe, podendo, em caso contrário, ser civilmente responsabilizados pelos danos causados em virtude de tais situações, por ação ou omissão, designadamente, por não proibirem ou não sancionarem adequadamente práticas ilícitas e contrárias à dignidade da pessoa humana. Neste sentido vai o relatório sobre praxes académicas, publicado pelo Observatório dos Direitos Humanos (2010), quando assinala que “se os alunos escolhem determinado estabelecimento de ensino superior à procura de um nível de formação superior, tem esse estabelecimento o dever de lhes proporcionar todas as condições de segurança e liberdade indispensáveis à sua formação”53. Em síntese, ocorrência de atos e práticas de violência e de abusos em praxes académicas, factos claramente antijurídicos, reclamam que o direito enquanto sistema normativo-coativo seja chamado a regular tais situações. Mas a sanção do ordenamento jurídico não é um elemento essencial da definição da regra de direito, apenas um corolário da sua definição (Réglade, cit. Souto et al, 1981: 94-95). É bom lembrar que se o direito enquanto modo de controlo social, tem toda a força da força, tem também toda a fraqueza da dependência da força. As normas jurídicas estabelecem, a pretexto de determinados valores e condicionantes sociais, o que uma conduta deve ou não deve ser, e nesse imperativo-cognitivo se resume toda a sua existência. Jurisprudência, doutrina, leis, regulamentos administrativos, códigos de conduta, são tudo formas aptas de comunicar regras de direito, pois só o direito conhecido pode ser respeitado e desempenhar uma função eficaz de prevenção. Como refere Ehrlich, (cit. Souto et al, 1981: 95), “o direito vivo é o direito que domina a própria vida mesmo se não tem sido posto em proposições jurídicas”. Só o direito vivo, inscrito na consciência social e que faz com que certas normas sejam consideradas válidas e conformadoras do comportamento, pode realizar efetivamente o objetivo da justiça e contribuir para a mudança social necessária. Relatório disponível em: http://www.observatoriodireitoshumanos.net/relatorios/Relatorio_Praxes_Academicas.pdf 53 223 CAPÍTULO VIII RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE A PRAXE ACADÉMICA 8.1. EM ARTICULAÇÃO COM AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR 1. Proceder a um levantamento sobre o enquadramento do fenómeno da praxe académica nos regulamentos internos das instituições. O levantamento, a análise e a comparação destes regulamentos, constituem elementos imprescindíveis para que se possa proceder a uma recomendação geral, no respeito pela autonomia das instituições, relativamente às sanções disciplinares que devem estar previstas e enquadradas face às situações de humilhação, abuso e violência ocorridas no contexto das praxes académicas, dentro e fora das organizações. 2. Enquadrar nas funções do Provedor do Estudante as seguintes competências: (a) o desenvolvimento de uma análise anual da situação da praxe académica na instituição a reportar aos seus órgãos internos e, se necessário, à Direção-Geral do Ensino Superior e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ; (b) uma presença regular nas primeiras semanas de receção e integração dos novos alunos, com a finalidade de garantir que os novos alunos sintam que a Provedoria é uma instância a que podem recorrer em qualquer situação considerada abusiva; (c) receber queixas ou participações relativas a situações de abusos e de violência em praxes académicas, com vista ao seu posterior reencaminhamento para os órgãos administrativos (Reitor/Presidente) e/ou judiciários competentes. 3. Em função desses relatórios anuais provenientes das instituições, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior elaboraria um relatório anual nacional, o que permitiria uma acumulação e comparação de informação sobre a situação da praxe académica em Portugal, apontando os casos mais graves, elencando novas sugestões de intervenção e temas emergentes. 4. Proceder a um levantamento das estruturas de apoio psicológico e jurídico existentes em todas as Instituições de Ensino Superior com vista a cumprir dois objetivos de curto/médio prazo: (a) garantir a existência destas estruturas em todas as instituições de ensino; (b) assegurar que estas estruturas salvaguardam uma atenção particular às situações de abuso, humilhação e violência que possam ocorrer no contexto das praxes académicas. Estas medidas poderão implicar uma adaptação das estruturas já 224 existentes ou a criação de novas estruturas, em articulação com as direções das Instituições de Ensino Superior e na observância da sua autonomia. 5. Criação de gabinetes de apoio à vida académica, a funcionar em permanência, que garantam o apoio aos estudantes em todas as fases do seu percurso, mas que tenham uma especial vocação para a receção e integração não apenas académica, mas também social, dos novos alunos. 6. Sensibilizar as direções das Instituições de Ensino Superior para o não reconhecimento das estruturas informais e não legitimadas das praxes académicas, particularmente nas cerimónias e eventos oficiais. 7. Recomendar às instituições, em articulação com as associações de estudantes, a abertura de um debate interno sobre as vantagens e desvantagens da proibição das práticas de praxe no campus da instituição com a finalidade de eliminar as situações de humilhação, abuso e violência, bem como sobre outras alternativas em matéria de política universitária sobre a praxe académica 8.2. EM ARTICULAÇÃO COM AS AUTARQUIAS 1. Articular a ação do Governo com a das autarquias, de modo a existir, em termos das orientações gerais e, particularmente, no combate ao abuso, assédio, violência e humilhação, uma prática concertada. Nada descredibiliza mais a ação do Estado do que a proliferação de modos de atuação distintos em matérias de magna importância, como o respeito pelos Direitos Humanos. 2. Envolver os Conselhos Municipais de Juventude na dinamização de ações de informação sobre a praxe académica e de prevenção de comportamentos abusivos ou violentos no contexto dos respetivos territórios. 8.3. EM ARTICULAÇÃO COM O SISTEMA DE JUSTIÇA 1. Garantir o acompanhamento jurídico e a isenção de custas judiciais de todos os estudantes que pretendam recorrer à justiça para denunciar situações passíveis de serem consideradas crimes no contexto das praxes académicas. 225 8.4. EM ARTICULAÇÃO COM A ADMINISTRAÇÃO INTERNA 1. Celebração de um protocolo entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e o Ministério da Administração Interna no sentido de se garantir um reforço da articulação entre as forças se segurança, as direcções das Instituições de Ensino Superior e as Associações Académicas e de Estudantes, no sentido de se fomentarem práticas de segurança em ambiente académico, partilhando informação, antecipando eventuais problemas e assegurando uma proximidade capaz de garantir o apoio adequado e célere caso ocorram atos ilícitos, relacionados ou não com a praxe. 8.5. EM ARTICULAÇÃO COM AS ASSOCIAÇÕES DE ESTUDANTES 1. Celebração de um protocolo tripartido entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, as Direções das Instituições de Ensino Superior e as Associações Académicas e de Estudantes, no sentido de garantir que em todas as Instituições de Ensino Superior se organizará, a partir do próximo ano letivo, uma semana de receção e integração aos novos aluno. A organização desta semana ser organizada pelas associações de estudantes, núcleos de alunos e de curso e outras organizações de representação estudantil, sendo apoiadas pelas direções das instituições. Para além de incluir uma dimensão mais formal assente na apresentação da instituição, dos seus serviços e dos seus órgãos de gestão e demais estruturas de organização, esta semana deve também incluir atividades lúdicas e festivas de integração, dirigidas a todos os estudantes. 2. Lançamento de um debate público, em colaboração com as Associações de Estudantes, sobre um programa nacional para tutorias no ensino superior. Este programa, em termos genéricos, teria como objetivo permitir que cada estudante ou grupos de estudantes de 2º e 3º ano do 1º ciclo ficassem responsáveis pelo acompanhamento e integração académica e social dos novos alunos na sua instituição e no seu curso, garantindo-lhe informação e apoio no 1º ano, de acordo com uma lógica informal, não tutelar e não hierarquizada". 226 8.6. RECOMENDAÇÕES A SEREM APLICADAS DIRETAMENTE PELO GOVERNO 1. Manutenção de uma linha gratuita e permanente de apoio a vítimas de violência no contexto das praxes académicas. Esta linha deve garantir aconselhamento jurídico e, se necessário, o encaminhamento das denúncias de situações de abuso e violência nas praxes académicas para as entidades judiciais competentes. 2. Distribuição, no início de todos os anos letivos, no ato da matrícula, de um folheto informativo produzido pela Direção-Geral do Ensino Superior, sobre a realidade da praxe, das consequências disciplinares e penais das situações de violência e onde se realce que ninguém é obrigado a participar em qualquer atividade de praxe. Este folheto deve conter informação sobre todos os mecanismos de denúncia e os contactos das autoridades. 3. Criação de um website que centralize informações e recursos sobre a praxe académica, tais como versões digitais do relatório anual a ser implementado, estudos públicos sobre a praxe académica, links para notícias da comunicação social, informações consideradas mais relevantes, entre outros. 4. Impedir o financiamento público de atividades de praxe académica, nomeadamente através do financiamento indireto que é atribuído às estruturas informais e não legitimadas de praxe por via de Associações Académicas e de Estudantes. Este objetivo torna necessário que, no quadro da tutela do Instituto Português do Desporto e Juventude, haja uma orientação clara para bloquear qualquer apoio público que, direta ou indiretamente, seja identificado como tendo como objetivo o financiamento de atividades por parte de tais estruturas. Para tal, os planos de atividades e relatórios de prestação de contas devem ser minuciosamente analisados e este desiderato deveria constar nos critérios gerais de apreciação de candidatura. 5. Criação de uma linha de financiamento a iniciativas e projetos de integração de estudantes do ensino superior na vida académica, a que as estruturas estudantis (associações de estudantes, mas também outro tipo de associações juvenis) se possam candidatar com ideias inovadoras que visem integrar os estudantes de acordo com uma lógica não hierárquica e sem exercício de poder. 6. Recomendação à Assembleia da República de que seja realizada uma edição do Parlamento dos Jovens subordinada ao tema das Praxes Académicas em Portugal. 227 7. Inclusão nos currículos da disciplina de Formação Cívica no Ensino Básico e Secundário de um ponto sobre a praxe académica em Portugal, organizado em articulação com especialistas no tema. 8. Realização de sessões de debate nas escolas do 3.º ciclo do ensino básico e secundárias sobre o fenómeno das praxes académicas. 9. Distribuição pela rede de bibliotecas escolares de livros e de material audiovisual, nomeadamente filmes e documentários já realizados sobre a praxe, de modo a que possam ser pedagogicamente utilizados por professores em situação de sala de aula. 228 CONCLUSÕES 1. As praxes académicas contêm em si unidade e multiplicidade. Unidade, porque existe um núcleo-duro comum às suas várias manifestações e que consiste na sua formalização ritual, patente nas sequências altamente padronizadas, algo rígidas e rotinizadas, quer verbais, quer não-verbais, o que se diz e o que se faz, potenciando a repetição e uma aprendizagem fácil, comunicando valores (ainda que estereotipados), normas e posições sociais. Unidade, ainda, porque delas subjaz um forte conteúdo performativo, uma espécie de narrativa que os estudantes contam a si mesmos, aos familiares, à instituição e ao país sobre si próprios, a sua visão do mundo e a sua perceção do futuro. O ritual, se poderoso, como é o caso, expande o seu núcleo de significação mais restrito, atingindo segmentos sociais mais vastos. Através dele transparece a existência de pares de grupos bem distintos, “doutores” e “caloiros”, quem “está dentro” e quem “está fora”, por referência, sobretudo oral e implícita (os códigos de praxe estão longe de ser precisos), a uma “tradição” que tem muito de inventada. Por “tradição inventada” entende Eric Hobsbawm54 “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceites; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”. Relação artificial, acrescente-se, feita de anacronismos, mas com o intuito de distinguir, isto é, de estabelecer uma demarcação constante: entre dentro e fora, “doutores” e “caloiros”, “universitários” e “não universitários”. Neste sentido unificador é lícito falar de praxe no singular. O facto de se invocar uma tradição permite ainda concentrar a autoridade nos transmissores socialmente reconhecidos, bem como estabelecer precedentes e fixar uma distribuição de papéis sociais, o que favorece a incorporação de hierarquias e desigualdades. À dimensão hierárquica da praxe está assim associado o exercício de poder ritualizado pelos estudantes mais velhos sobre aqueles que acabam de chegar ao ensino superior. Este poder é precário na medida em que está extremamente dependente da aceitação daqueles sobre os quais é exercido. Mas o formalismo da praxe, observável na sua hierarquia bem definida, nos símbolos instituídos, na codificação, ainda que lacónica, das suas regras, nos títulos conferidos pelos postos hierárquicos mais elevados (Dux Veteranorum, Imperatorum, Ancião, Papa, entre outros), nos decretos (ou decretus) Eric Hobsbawm & Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 10. 54 229 emitidos pelos seus organismos de regulação, reduz essa dependência. Dito por outras palavras, a formalização da praxe contribui para a legitimação e naturalização do poder exercido pelos estudantes mais antigos, objetivando-o assim enquanto poder simbólico que estimula a submissão e a naturalização da parte mais vulnerável). 2. Esta tradição “inventada” é também uma “tradição plástica”, uma vez que os significados dos rituais têm um forte potencial de metamorfose e de adaptação aos contextos locais. Coimbra “inventa” o conceito de praxe na segunda metade do século XIX, mas novos significados vão-se acrescentando ao longo do tempo, mantendo alguma continuidade histórica, mas obscurecendo ao mesmo tempo a génese do fenómeno. No início do século XX, viveram-se tempos de controvérsia em torno da praxe, que culminaram com o seu desaparecimento em 1910, com a chegada da República; ela é reativada em 1919 e codificada em Coimbra em 1957, mas é novamente interrompida em 1969, desta feita pela mão dos estudantes, no contexto da crescente dissidência social e política dos meios estudantis que culminou no luto académico; ao longo dos anos 70 a praxe manteve-se praticamente extinta, embora com o fim do luto académico, em 1980, os rituais de praxe tenham regressado em força, num processo de generalização que rapidamente se estendeu a todo o ensino superior. Os rituais devem ser estudados em ação, na sua concretização em contextos sociais, institucionais e quotidianos precisos, critério que este estudo procurou seguir. Em meios urbanos mais pequenos, por exemplo, a celebração da praxe imiscui-se na imagem de cidade e tende a ser usada como capital territorial, rentabilizado na captação de recursos materiais e simbólicos que fazem a diferença na competição entre cidades, extravasando o âmbito estudantil e colonizando as outras esferas de socialização dos jovens estudantes, reduzindo, dessa forma, a possibilidade de surgirem alternativas socializadoras viáveis. 3. A multiplicidade de subjetividades e comportamentos corresponde a um conjunto de modos de relação que estão ancorados em processos e relações sociais. Desde logo, entre os atores sociais envolvidos e as instituições universitárias. Mas também entre os indivíduos e o seu contexto imediato de ação. Se as instituições, por exemplo, encorajam e valorizam as praxes, reconhecendo e legitimando as estruturas estudantis informais (comissões de praxe, conselhos de veteranos, etc.) que mais diretamente organizam atividades, ou promovendo e consagrando momentos e acontecimentos, é provável que os estudantes encarem a sua participação como “natural” ou até “inevitável”, em particular se forem desde cedo 230 integrados em grupos de pares já permeáveis ao fenómeno. Se, pelo contrário, a instituição não legitimar atividades relacionadas com a praxe ou regular fortemente a sua concretização, pode criar-se uma atmosfera institucional (um ethos) desfavorável às manifestações de violência e abuso. Esta atmosfera pode não ser suficiente para impedir que estas manifestações ocorram fora dos campus, embora, se for acompanhada de uma atitude pró-ativa das autoridades académicas e estudantis, possa contribuir para alterar comportamentos e representações, num primeiro momento, e abrir a possibilidade para alternativas, num momento posterior. O nosso estudo demonstra que os dirigentes das Instituições de Ensino Superior oscilam entre uma atitude de rejeição e condenação absoluta do fenómeno; uma atitude de integração preventiva; e uma atitude de legitimação e normalização institucional. Contudo, na atitude claramente maioritária – a de integração preventiva -, defende-se que, se as praxes forem integradas na instituição, tornar-se-á mais fácil prevenir situações de violência ou de abusos que possam ocorrer. Os dirigentes que partilham esta atitude acentuam que a adesão é voluntária e que, embora também não tolerem humilhações e abusos, é importante diferenciar entre aquilo que é um conjunto de “praxes saudáveis” e aquilo que são formas de violência que nelas possam ocorrer. Em suma, distinguem a “ boa” da “má” praxe. Mesmo em relação ao presente estudo, as reações variaram. Alguns dos nossos interlocutores consideraram que é importante aumentar o conhecimento sobre a praxe no sentido de tentar mudar algumas dimensões que julgam estar mal nesse ritual, citando, desde logo, as práticas abusivas. Outros acharam importante estudar a praxe no sentido de desmistificar algumas ideias erradas que existem sobre ela, designadamente a sua equiparação a violência gratuita. Porém, também houve quem considerasse que a praxe é uma prática benéfica, que os abusos que ocorrem são acidentes excecionais que nada têm a ver com a sua natureza e que, por isso, ela não deveria constituir sequer uma preocupação do Governo. Por fim, devemos ainda referir que alguns estudantes, associações de estudantes e dirigentes de instituições recusaram colaborar com o estudo ou deixaram os nossos contactos sem resposta. 4. Multiplicidade, ainda, pela sua variação fenomenológica: palavras de ordem e gritos de guerra; cânticos escandalosos, assentes na celebração da sexualidade, muitas vezes de forma sexista; cânticos e gritos de guerra e de pertença ao grupo; cânticos agonísticos, de depreciação e disputa, com insultos e provocações dirigidos ao outro; cânticos de beber e de protesto; praxes de exercício físico e de punição; praxes de medo e de susto; praxes de “nojo”; praxes de troça, praxes lúdicas, com charadas e jogos; praxes com uma intenção 231 pedagógica, com visitas às cidades e ações de solidariedade social. Esta uma modalidade tem crescido nos últimos anos, mas, ainda assim, com um peso meramente residual. 5. Multiplicidade, particularmente, porque alguns estudantes desenvolvem retóricas de justificação da sua entrada nos mundos da praxe, enquanto outros, mais pragmáticos, a ela aderem pelos conteúdos emocionais, pelo forte sentimento de pertença e de identidade que gera ou pela sua vertente lúdica, sem necessidade de legitimações ou justificações. Esta tendência contrasta abertamente com o contexto social e político atual, como de resto se depreende da análise que efetuámos a uma vasta panóplia de notícias produzidas sobre a praxe, ser crescentemente desfavorável a uma adesão espontânea, dada a amplificação dos casos de abusos, humilhações e violência, alguns deles com fatídicos desfechos. 6. Multiplicidade, finalmente, pelo tipo de adesão que a praxe propicia. As opiniões estudantis sobre a praxe são contraditórias. Apesar de uma grande maioria a valorizar positivamente e considerar a sua adesão como voluntária, existem perspetivas críticas em relação a vários dos seus aspetos, mostrando, uma vez mais, a plasticidade da tradição. Para além dessa imensa variedade, e da sua permanente readaptação, a componente “disciplinar” e a lógica de comando (muitas vezes com semelhanças à tropa de elite) são um traço constante que acompanha as movimentações em grupo. Tais elementos chegam a exibir-se em cortejo no espaço público numa ostentação aberta e impressionante de poder simbólico. 7. Outras dimensões merecem ser consideradas. A praxe dramatiza e encena papéis sociais, previamente atribuídos. Essa encenação favorece a reprodução de uma hierarquia que opera numa clivagem fundamental entre quem manda e quem obedece, e que estabelece a verticalidade, a reverência à autoridade e o respeito ao superior como regras fundamentais de sociabilidade. De igual modo, em certos momentos, a hierarquia e a coesão grupal reforçam-se diminuindo o outro, o que ocorre nas disputas entre cursos, onde pode verificar-se a disseminação de imagens ofensivas para mulheres e homossexuais, assumindo, nessas alturas, contornos claramente sexistas e homofóbicos. Em certo sentido, podemos afirmar que a distribuição de papéis sociais desiguais obscurece (e revela, de certo modo) as desigualdades da sociedade portuguesa, num contexto de relativa massificação do acesso ao ensino superior. “Doutores” e “caloiros” distinguem-se por critérios de antiguidade e por distintos modos de executar e encenar a “tradição”, e não pelas suas origens e trajetórias sociais. Assim, tal como o Carnaval, a 232 praxe “serve a quem está em cima e a quem está em baixo”55, deslocando as diferenças sociais estruturais para o terreno do ritual, numa não-correspondência que reproduz e enrijece a ordem social vigente, ao mesmo tempo que fornece, pelo período da transição estudantil, a ilusão da vigência de outros critérios de distinção. Assimetria, envolvimento dependente e participação passiva são pontos fortes da hierarquia da praxe, para os iniciados, mas existe também a possibilidade de subversão, tal como acontece no início de cada ano letivo, momento em que os alunos se ausentam das aulas e os professores perdem o controlo sobre o espaço da universidade, que se torna algo caótico, durante os cortejos ou nas saídas noturnas. A troca de papéis induz a naturalização do poder despótico. Por exemplo, mesmo quando, como sucede frequentemente, a passagem de um momento de tensão para um momento lúdico é muito rápida, ou seja, quando o personagem que impôs o seu poder em tom militarista é o mesmo que se apresenta logo a seguir como o comparsa, o “protetor” ou o “padrinho” trata-se de uma experiência em que o processo sequencial de alteração de estatutos ajuda a reforçar o consentimento. 8. Por isso, também, a praxe alimenta-se de tensões e ambiguidades, espaços liminares e fronteiras porosas. Veja-se a oscilação entre segredo e espetacularização. O que se passa na praxe é segredo de quem a vive, disseram-nos amiúde. Certos rituais são praticados em locais ermos, muitas vezes formando um círculo que esconde os caloiros (mesmo que tal ocorra em plena praça central da cidade). As informações prestadas ao exterior são muitas vezes filtradas pela hierarquia. Contudo, é um segredo de polichinelo, porque, em geral, todos sabem o que se passa. Assim, o segredo é uma aura que se cria para acentuar a relação com o mito da tradição e reforçar a dimensão grupal e identitária. Através do segredo, a praxe torna-se, ainda mais, numa coisa que é só de quem está “dentro”. Mas o segredo só ganha o seu significado se atentarmos à intensa exposição pública da praxe. A folclorização das tradições no espaço público, como acontece nas latadas, cortejos, serenatas, queima das fitas, etc., mostra à saciedade a espectacularização do fenómeno, a que não é alheia a mercantilização dos consumos, em particular no que ao álcool se refere, mas onde se acrescentam os trajes, adornos e demais objetos, derivando para uma espécie de indústria de entretenimento fortemente lucrativa, em que se exalta a dimensão hedonista da fruição do imediato. O poder do marketing e o controlo exercido por marcas de bebidas em festivais e atividades lúdicas nos meios estudantis DaMatta, Roberto, Carnavais, Malandros e Heróis - para uma sociologia do dilema brasileiro, Rocco: Rio de Janeiro, 1997 55 233 constitui uma das forças que, objetivamente, beneficia e influencia a expansão descontrolada dos rituais estudantis de que a praxe é uma peça importante. Os momentos mais visíveis da praxe, verdadeiras formas cerimoniais e performativas de exposição, cumprem ainda uma função de distinção social, na medida em que “quem está dentro” exibe de forma ostensiva as suas marcas identitárias a todos os que “estão fora”. 9. Outra das ambivalências de que se faz a praxe consiste no facto de integrar e segregar simultaneamente. Para muitos estudantes, é o principal processo de inserção nas Instituições de Ensino Superior que oferece uma vasta rede de sociabilidade, um certo capital social e uma estrutura de papéis previamente definida à qual é fácil acomodar-se. As praxes envolvem-nos numa sociabilidade ritualizada geradora de “efervescência coletiva”, dotada de eficácia simbólica, socializadora e identitária, inculcando nos jovens recém-chegados, com maior ou menor profundidade, uma constelação de novos símbolos, valores e práticas. Em certo sentido, a praxe oferece-se como projeto socializador total que, perante a míngua de alternativas, organiza os quotidianos estudantis e coloniza os mundos juvenis. Paralelamente, a rotatividade ou rápida alteração de papéis (o jovem hoje praxado passa a ocupar o papel de “praxista” logo no ano seguinte) torna-se um fator não só reprodutor mas também um elemento que ajuda a fortalecer os mecanismos de submissão. Contudo, observámos e foram-nos relatadas situações de ostracização e segregação, uma vez que o prestígio e o reconhecimento das praxes residem no seu poder de iniciar e agregar, separando os que aderem dos que não aderem, conforme já referimos. Existem, por outro lado, muitas situações em que a experiência de humilhação se torna insuportável e ajuda a despertar a consciência. Dependendo do curso da experiencia vivida, tanto pode um cético inicial passar a entusiasta da praxe, como alguém que entrou no jogo pode virar-se contra a sua lógica. 10. A praxe é uma expressão de tendências fortes da experiência juvenil. Por um lado, condensa e potencia disposições que foram parcialmente construídas nos percursos anteriores de socialização, nomeadamente junto da escola, da família e dos media, no sentido de valorizar a acomodação aos arranjos institucionais vigentes, a repetir e a naturalizar fórmulas disciplinares de submissão ou a construir compromissos de trabalho, em situações de interação, onde o consenso se estabelece por obediência mais ou menos inquestionada a quem detém poder. Por outro lado, se eventualmente exceptuarmos o topo da hieraraquia, a praxe inibe apetências de autonomia, crítica ou dissidência, criando uma atmosfera em que se colabora para reforçar a pertença ao grupo e para competir com 234 outros ou em que se obedece para gerar aceitação e reconhecimento. Em algumas atmosferas estudantis a consciência da “humilhação” a que o caloiro é sujeito chega a tornar-se, perversamente, um objetivo explicitamente reivindicado: “queremos ter o direito à humilhação”. A produção das desigualdades sociais traduz-se na implementação de dispositivos para disseminar formas de incorporação do conformismo como condição de consentimento face à (re)produção de hegemonias e hierarquias sociais inequalitárias. Não há instituições legítimas sem “instituições bastardas”56 e as formas vigentes de autoridade e justiça alimentam-se em grande medida deste trabalho informal de socialização que opera nos interstícios dos grupos sociais (neste caso, os estudantes do ensino superior). 11. A praxe mimetiza – e por vezes exalta – a ordem disciplinar imaginada das próprias Instituições de Ensino Superior, onde as manifestações de poder simbólico continuam a ser exuberantes (desde logo, os trajes académicos dos docentes), com os marcadores de status a agilizarem sinais explícitos ou subtis de distinção social, numa rede de hierarquias cruzadas e sobrepostas (dentro da carreira docente; entre docentes e estudantes; entre estudantes mais velhos e mais novos). 12. Finalmente, a praxe é uma dramatização dos futuros prováveis, atuando como socialização antecipatória. Em tempos de intensa desvalorização relativa do valor dos diplomas, em que se fala já da categoria emergente de “excluídos com longa carreira escolar”; em que se difunde a inevitabilidade do fim do trabalho estável e socialmente protegido; em que se profecia a generalização da intermitência e da oscilação entre emprego-subemprego-desemprego-formação; em que se assiste à fragmentação do mercado de trabalho e à individualização da relação social, a praxe surge como ritual de suspensão, espaço-tempo para reforçar competências que supostamente são procuradas (obediência, esforço, sacrifício, disciplina), obliterando a ideia de futuro, habitando a precariedade imaginada na exacerbação da passagem que é o ensino superior, revelando, então, que estes jovens estão prisioneiros dessa travessia, bloqueados nas transições (para a vida adulta, o trabalho, uma família de destino) e por isso destinados a vivê-las através de um ritual que exalta o momento, transforma o sacrifício em festa e o anonimato em reconhecimento. Essa é a estória que os jovens contam de si mesmos a si próprios e aos que os rodeiam. 56 Hughes, Everett. C. (1984), The sociological eye. New Brunswick, Transaction 235 BIBLIOGRAFIA Afonso, Tiago João Moreira (2012), Transição e adaptação ao ensino superior: vivências académicas e identidade vocacional, Tese de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade da Beira Interior. Albuquerque, Paulo Pinto de (2011), Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora. Arruda, José Pedro (2013), “Éfe-érre-á. Deambulações sociológicas pela queima das fitas de Coimbra”, Pensata, 3 (1), pp. 189-212. Bastos, H. Teixeira (1920), “A vida do estudante de Coimbra: antiga e moderna”, Conferências na Associação Cristã de Estudantes (29 e 30 de abril de 1920), Coimbra, Imprensa da Universidade. 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Consideramos, por isso, que seria relevante apresentarmos essas posições neste relatório. As ideias abaixo compiladas não poderão ser consideradas tendências de opinião entre os estudantes. Para revelar tais tendências seria necessário um processo de recolha e tratamento de informação completamente diferente. São apenas posicionamentos assumidos pelos interessados, por vezes dirigidos diretamente ao Estado, que pensamos serem importantes tendo em conta o âmbito do estudo desenvolvido. 1. Opiniões sobre a realização do próprio estudo Não foram muitos os estudantes que se pronunciaram sobre a realização de um estudo sobre a praxe apoiado pela Direção-Geral do Ensino Superior. Alguns dos que o fizeram consideraram que é importante aumentar o conhecimento sobre a praxe no sentido de tentar mudar algumas coisas que consideram estar mal nesse ritual, citando, desde logo, as práticas abusivas. Outros acharam importante estudar a praxe no sentido de desmistificar algumas ideias erradas que existem sobre ela, designadamente a sua equiparação a violência gratuita. Porém, também houve quem considerasse que a praxe é uma prática benéfica, que os abusos que ocorrem são acidentes excecionais que nada têm a ver com a sua natureza e que, por isso, ela não deveria constituir sequer uma preocupação do Governo. Por fim, devemos ainda referir que alguns estudantes recusaram colaborar com o estudo dizendo suspeitar que os seus resultados poderiam ser utilizados pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior para fundamentar uma posição crítica construída a priori, para além de poderem ser apresentados de forma parcial e enviesada pelos media. 2. Opiniões sobre uma eventual proibição da praxe Este foi um tema sobre o qual se pronunciaram, de forma direta e frequentemente espontânea, muitos estudantes e alguns dirigentes de instituições do ensino superior com quem contactámos. Todos eles se mostraram contrários a tal proibição, embora a fundamentação utilizada variasse 242 conforme os casos. No que concerne aos estudantes podemos, de uma forma geral, distinguir duas posições diferentes. Os estudantes que condenam a praxe consideraram que torná-la ilegal não só não acabaria com o fenómeno como o remeteria para a clandestinidade, o que o tornaria mais violento e abusivo. Os estudantes praxistas revelaram-nos que banir legalmente a praxe não só não teria o efeito pretendido como a tornaria subterrânea e dificultaria a sua supervisão. Para além disso, utilizou-se ainda outro argumento: no entendimento de quem praxa, a adesão à praxe é feita de forma livre e voluntária, logo, uma eventual proibição seria desrespeitadora da vontade e da liberdade de quem participa no ritual. No caso dos dirigentes do ensino superior podemos igualmente distinguir entre duas posições. A primeira, mais crítica, condena a praxe. No entanto, uma vez que ela é uma realidade instituída, considera-se que uma proibição por decreto não só não seria eficaz como poderia ter efeitos adversos. Em alguns casos defende-se que se deve procurar transformar a praxe, noutros, que ela deve ser combatida sobretudo através de um esforço de sensibilização geral da sociedade, e não apenas dos estudantes do ensino superior. A segunda posição considera que a praxe pode ter algumas virtualidades, e que por isso as direções das instituições devem exercer influência sobre os estudantes no sentido de combater as más práticas e de a tornar progressivamente mais suave. 3. Opiniões sobre a eventual institucionalização e formalização da praxe Durante um focus group realizado com dirigentes associativos emergiu uma discussão sobre as vantagens e desvantagens da institucionalização da praxe. Foi possível distinguir três posições distintas. Uma delas é favorável à institucionalização, alicerçando-se no argumento de que isso permitiria uma maior responsabilização dos envolvidos. A segunda posição é contrária à institucionalização, defendendo-se que a praxe é uma atividade desenvolvida de forma informal e mais ou menos espontânea pelos estudantes do ensino superior, devendo por isso manter a sua natureza informal. Por fim, a terceira posição também é oposta à institucionalização. Neste caso, argumenta-se que ela legitimaria uma forma de organização hierárquica desprovida de processos democráticos de escrutínio. 4. Opiniões sobre as formas de regulação da praxe As formas de regulação da praxe consistiram noutro aspeto discutido pelos estudantes. Registamos três posições distintas: uma posição favorável à regulação por parte das universidades e politécnicos, pelo menos dentro do campus, mas onde se reconhecem limites a esse cenário, uma vez que a praxe é um fenómeno criado e protagonizado pelos estudantes; uma posição favorável a uma regulação assente na negociação informal entre representantes da praxe, associações de estudantes e direções das Instituições de Ensino Superior; e uma posição em que se defende que a regulação da praxe deve ser deixada aos estudantes. 243 5. Opiniões sobre a campanha de informação da direção-geral do ensino superior Alguns estudantes, praxistas na sua quase totalidade, quiseram transmitir a sua opinião sobre a campanha de informação sobre a praxe implementada pela DGES no início do presente ano letivo. Na sua generalidade, os estudantes em causa aprovaram o texto constante no panfleto distribuído pelas Instituições de Ensino Superior; no entanto, todos consideraram que a imagem que o acompanhava transmitia uma imagem errada da praxe, misturava “gozo aos caloiros” com as restantes tradições académicas e veiculava uma ideia negativa e falsa da generalidade dos estudantes do ensino superior. 6. Outras sugestões e opiniões O inquérito por questionário que administrámos junto das Instituições de Ensino Superior e das associações académicas e de estudantes deixava espaço para receber as sugestões que os inquiridos quisessem fazer sobre o projeto de investigação. Foram recolhidas algumas ideias sobre este tópico, mas também algumas sugestões, opiniões e preocupações sobre a praxe. Muitas dessas formulações já se encontram abrangidas pelos pontos acima enumerados, mas nem todas. Assim, foram recebidas as seguintes sugestões: criar programas de integração alternativos dos novos estudantes; combater a violência, a discriminação e a exclusão; limitar o período de duração da praxe; criar uma plataforma nacional sobre a praxe, articulada com as redes sociais; supervisionar fiscalmente os lucros da Queima das Fitas; investigar os apoios financeiros que algumas associações de estudantes concedem a organismos da praxe. 244 ANEXO II – FONTES NOTICIOSAS SOBRE A PRAXE ACADÉMICA 1. Fontes gerais Assembleia da República (2008), As praxes académicas em Portugal, Relatório, Comissão de Educação e Ciência MATA, https://sitiodomata.jimdo.com/sitemap/, consultado a 2 de dezembro de 2016 2. Notícias de âmbito geral Praxe: integração ou violência? Uma tradição sem consensos (Sapo24, 28-09-2016). JSD diz que tempo da ditadura e perseguição à praxe voltou (JN, 20-09-2016). Continuam as queixas por praxes abusivas (JN, 17-09-2016). Governo quer intensificar guerra às comissões de praxe (Expresso, 01-08-2016). Ministro quer “combate cerrado” às praxes (CM, 12-07-2016). Ministro expressa “repúdio total” pelas praxes (CM, 08-07-2016). Parlamento aprova recomendações sobre praxes académicas (CM, 05-02-2016). BE, PS e CDS querem que Governo combata praxes violentas (CM, 04-02-2016). Linha de praxes abusivas recebeu 80 queixas (CM, 15-12-2015). Praxes geram problemas psicológicos (CM, 11-12-2015). O que é e o que não é permitido na praxe académica (JN, 25-09-2015). Reitor apela a denúncias da praxe (CM, 15-09-2015). Reitor do Porto avisa que praxe não é obrigatória (JN, 10-09-2015). Ministério recebeu 80 queixas de praxes abusivas (CM, 07-09-2015). Ministério da Educação recebeu 74 denúncias de praxes abusivas (CM, 02-02-2015). Ministério já recebeu 32 queixas de abusos na praxe e 18 estão a ser investigadas (CM, 24-092014). 245 Universidades mais atentas às praxes (CM, 19-09-2014). Caloiros aumentam e invadem Faro (CM, 15-09-2014). Praxes violentas reprimidas (CM, 10-09-2014). Governo lança campanha contra praxes violentas (CM, 09-09-2014). Parlamento chumba agravamento de crimes em ambiente escolar defendido pelo CDS-PP (CM, 30-04-2014). CDS quer praxe criminalizada (CM, 29-04-2014). Tragédias ensombram festas académicas (CM, 27-04-2014). Proibidos de dar as mãos na praxe (CM, 13-03-2014). Parlamento aprova proposta contra “praxe violenta” (CM, 28-02-2014). Manifestação a favor da praxe reúne mais pessoas (CM, 22-02-2014). Hoje é dia de manifestações contra e a favor das praxes (CM, 22-02-2014). Jorge Miranda considera que praxes são uma questão de polícia (JN, 20-02-2014). Universidade do Porto rejeita financiamento de grupos ligados à praxe (CM, 14-02-2014). Praxes: Reitores querem reforçar capacidade de intervenção (CM, 05-02-2014). Petição pede fim de praxes (CM, 30-01-2014). Praxes: Regulamentos prevêem sanções que nunca foram aplicadas (CM, 30-01-2014). Dux de Coimbra defende que se fizeram cópias mal feitas daquilo que é a praxe (JN, 27-012014). Ministério convoca estudantes para reunião sobre praxes (CM, 26-01-2014). Universidade de Coimbra atualiza código de praxe (CM, 01-03-2013). Veteranos da UMinho contestam proibição de praxar caloiros (JN, 12-09-2012). Oito academias unidas por 'Carta de Princípios' sobre praxe (CM, 08-09-2012). 246 Coimbra: Docentes pedem fim de praxes violentas (CM, 18-04-2012). Reitor de Coimbra diz que violência na praxe é “completamente inaceitável” (JN, 16-04-2012). Não estudar por carência é “inadmissível” (CM, 05-02-2012). Reitor da Universidade do Minho contra as praxes “abusivas” (JN, 17-10-2011). “Aqui não se pinta a cara nem se atiram ovos aos caloiros” (JN, 30-09-2009). Ministro avisa Universidades contra praxes (CM, 29-09-2009). Vila Real: Maioria dos alunos da UTAD a favor da praxe (Expresso, 10-11-2008). Alunos do Piaget contra fim de praxe (JN, 13-10-2008). Praxes podem ser proibidas (CM, 06-08-2008). Politécnico de Leiria reduz tempo das praxes (CM, 25-02-2008). 3. Notícias sobre casos diversos Praxe na praia põe 20 caloiros em risco (CM, 30-10-2016). Mãe de aluno morto em praxe absolvida (CM, 01-07-2016). MP quer absolvição para mãe de aluno morto em praxe (CM, 22-06-2016). Mãe de aluno morto após praxe começou a ser julgada (CM, 23-05-2016). Caçados por simular sequestro em praxe (CM, 08-05-2016). Praxe suspensa após agressão com cinto (JN, 27-11-2015). “Fui humilhado por ser homossexual” (CM, 28-09-2015). Reitoria está a investigar praxe a docente (CM, 26-01-2014). Morte de aluna não trava praxes (CM, 04-09-2013). Lusíada: Nus em praxes da Tuna (CM, 09-05-2013). 91 mil € por praxe fatal (CM, 08-05-2013). 247 Álcool a mais cancela praxe (CM, 21-02-2013). Família de aluno que morreu após praxe indemnizada (CM, 13-11-2012). Escola Superior de Beja suspende praxes (Expresso, 28-09-2012). 2000 ‘doutores’ deixam reitor a falar sozinho (CM, 19-09-2012). ‘Doutores’ abandonam cerimónia em protesto (CM, 17-09-2012). Cinco alunos suspensos durante quatro períodos de praxe por práticas violentas (JN, 30-052012). Alunas agredidas em praxe da Universidade de Coimbra (CM, 01-04-2012). Praxe suspensa em Coimbra devido à agressão violenta a duas alunas (JN, 31-03-2012). Caloiros obrigados a beber e a fumar (CM, 10-10-2011). Aluno apresenta queixa contra ISEL por homofobia (Expresso, 17-05-2011). Estudantes em confrontos (CM, 17-03-2011). Braga: confrontos entre alunos da Católica e sem-abrigo (Expresso, 15-03-2011). Cinco caloiros internados com hipotermia (CM, 25-02-2011). Caloiro ferido nas praxes (CM, 03-10-2010). Alunos obrigados a praxe violenta (CM, 26-02-2010). Viseu: Praxes proibidas no Politécnico (CM, 11-11-2009). Academia do Politécnico suspende praxe e nega abusos (JN, 24-10-2009). Exploração de caloiros sob suspeita no Politécnico (JN, 23-10-2009). Lusíada condenada por morte (CM, 26-09-2009). Tribunal condenou praxe humilhante (CM, 12-07-2009). Praxe violenta custa 38 mil euros (CM, 28-06-2009). 248 Tribunal decide sobre morte de aluno (CM, 19-06-2009). Piaget indemniza caloira (CM, 05-12-2008). Educação: Politécnico de Leiria abre processo para averiguar alegado caso de praxe violenta (Expresso, 30-11-2008). Aluno sofre uma rutura de aneurisma após praxe (JN, 31-10-2008). Inquérito às praxes (CM, 31-10-2008). Reitoria proíbe praxes (CM, 22-10-2008). Multados por praxe (CM, 24-05-2008). Multa por praxes violentas (CM, 23-05-2008). Santarém/Praxes: Pedidas penas simbólicas mas pedagógicas para autores de praxe violenta (Expresso, 24-04-2008). Tribunal quer ouvir vítima da praxe (CM, 19-02-2008). Arguidos negam praxe violenta em tribunal (CM, 14-02-2008). Praxe violenta julgada (CM, 14-02-2008). 4. Notícias sobre o caso de Faro (2015) Processo a dois alunos devido a praxe transita em julgado (CM, 09-09-2016). Praxes: instaurado processo disciplinar a dois alunos da Universidade do Algarve (Expresso, 0909-2016). Inquérito a praxe já tem conclusões (CM, 12-07-2016). Algarve: inquérito a praxe estendido 20 dias (CM, 03-11-2015). Pai apresentou queixa por praxe (CM, 19-10-2015). Justiça investiga praxes na praia de Faro (CM, 26-09-2015). MP investiga praxe no Algarve (Expresso, 25-09-2015). 249 Ministério pede esclarecimentos sobre praxe na Universidade do Algarve (CM, 24-09-2015). Caloira dá entrada no hospital após praxe com álcool. Universidade vai investigar (Expresso, 24-09-2015). Jovem inconsciente após praxe (CM, 24-09-2015). 5. Notícias sobre o caso de Braga (2014) Alunos julgados por três mortes (CM, 09-07-2016). Mortes em muro vão ter culpados (CM, 01-02-2015). Igreja desafia alunos a refletir sobre praxe (CM, 26-04-2014). Reitor da Universidade do Minho condena práticas violentas (CM, 24-04-2014). Reitor da Universidade do Minho diz que é preciso aguardar resultados da investigação (CM, 24-04-2014). Universidade do Minho em luto académico, praxes suspensas (CM, 24-04-2014). Estudantes feridos em Braga já voltaram para casa (Expresso, 24-04-2014). Luto, revolta e incredulidade com morte de três estudantes (CM, 24-04-2014). Queda de muro mata três jovens (CM, 24-04-2014). Três mortos em queda de muro na Universidade do Minho (CM, 24-04-2014). Desafio entre cursos termina em três mortes junto à Universidade do Minho (Expresso, 23-042014). 6. Notícias sobre o caso do Meco (2013) Relação confirma arquivamento do caso Meco, famílias apresentam queixa contra o Estado (Expresso, 26-01-2016). Pais forçam Dux a falar (CM, 16-12-2015). Meco: Familiares assinalam aniversário da morte dos jovens (CM, 14-12-2015). 250 Meco: “Papa vai dar força para a nossa missão” (CM, 24-06-2015). Papa recebe pais de vítimas do Meco (CM, 29-05-2015). Nomes das vítimas do Meco gravados em memorial (CM, 15-03-2015). Meco. João Cutileiro inaugura memorial às vítimas (Expresso, 11-03-2015). Advogado das famílias. “Investigação ao caso Meco falhou em tudo” (Expresso, 04-03-2015). Dux da Lusófona não vai ser julgado pelas mortes no Meco. Juiz: “Não houve comportamento tirânico” (Expresso, 04-03-2015). Meco: Juiz decide hoje se caso vai a julgamento (CM, 04-03-2015). Vítor Parente Ribeiro: Processo judicial “vai continuar” (CM, 17-02-2015). Caso Meco. ‘Dux’ falta a frente a frente com famílias (Expresso, 02-02-2015). Meco. ‘Dux’ será ouvido pela quarta vez (Expresso, 21-01-2015). Relação de Évora já decidiu. Juiz de instrução do processo Meco fica (Expresso, 21-12-2014). Meco. Um ano depois, poucas respostas e nenhuma decisão (Expresso, 15-12-2014). Cutileiro cria memorial dos estudantes do Meco (CM, 12-12-2014). “A minha filha era humilhada pelo dux” (CM, 17-10-2014). Caso Meco. Dux João Gouveia constituído arguido (Expresso, 15-10-2014). Tribunal vai reapreciar caso Meco (Expresso, 15-10-2014). Procurador do Meco (também) processa jornalista e comentadores (Expresso, 14-10-2014). Gozo com caso ‘Meco’ repudiado (CM, 03-10-2014). Jovens gozam com tragédia do Meco (CM, 02-10-2014). Lusófona oficialmente apenas com “semana de acolhimento” (CM, 19-09-2014). Meco: Dux simula afogamento (CM, 16-09-2014). 251 “Se não tivesse encontrado o gorro também estaria morto” (CM, 07-08-2014). “A minha vida parou” (Expresso, 07-08-2014). Pais das vítimas do Meco querem nulidade do inquérito (CM, 03-08-2014). Caso Meco foi mesmo arquivado (Expresso, 30-07-2014). Pais das vítimas do Meco recebem notificação de arquivamento (CM, 30-07-2014). Afinal não houve praxe na praia do Meco (Expresso, 25-07-2014). Caso do Meco foi arquivado (CM, 25-07-2014). Pais das vítimas da tragédia do Meco lamentam silêncio das autoridades (CM, 15-06-2014). PJ quer arquivar tragédia do Meco (CM, 14-06-2014). Famílias do Meco fazem homenagem numa peça de teatro (Expresso, 15-05-2014). Meco: pais dizem que as filhas estavam amarradas (CM, 09-03-2014). Lusófona entregou inquérito interno sobre tragédia no Meco (CM, 27-02-2014). Lusófona admite avançar com queixa por calúnia (CM, 15-02-2014). “Lusófona é a principal vítima do circo mediático” (Expresso, 15-02-2014). Pais de vítimas do Meco apresentam queixa contra sobrevivente (Expresso, 14-02-2014). Meco: mistério com chave de casa arrendada (CM, 11-02-2014). Meco: roupas das praxes nas mãos de peritos (CM, 05-02-2014). As perguntas que precisam de resposta sobre a tragédia do Meco (CM, 03-02-2014). Meco: Lusófona diz que inquérito decorre com “normalidade” (CM, 31-01-2014). O que se passou no Meco “não é praxe académica” (CM, 27-01-2014). Sobrevivente do Meco foi encontrado em estado crítico na praia (Expresso, 25-01-2014). Lusófona abre inquérito à morte de alunos no Meco (Expresso, 20-01-2014). 252 Famílias dos jovens desaparecidos no Meco querem ouvir sobrevivente (Expresso, 18-01-2014). Encontrado último corpo dos jovens mortos no Meco (Expresso, 26-12-2013). Encontrados mais dois corpos no Meco (Expresso, 23-12-2013). Encontrado terceiro corpo junto à praia do Meco (Expresso, 23-12-2013). Identificação do corpo encontrado no Meco vai ser demorada (Expresso, 23-12-2013). Encontrado corpo no Meco (Expresso, 22-12-2013). Sexto dia de buscas no Meco por estudantes desaparecidos (Expresso, 21-12-2013). Polícia Marítima expectante no Meco (Expresso, 20-12-2013). Buscas no Meco suspensas devido ao mau tempo (Expresso, 19-12-2013). Jovens continuam desaparecidos no Meco (Expresso, 17-12-2013). Buscas por jovens desaparecidos no Meco prosseguem em terra (Expresso, 15-12-2013). Um morto e cinco desaparecidos no Meco (Expresso, 15-12-2013). 7. Notícias sobre alternativas à praxe Politécnico de Castelo Branco aboliu a praxe (CM, 19-09-2016). Baixaram as queixas por praxes abusivas (CM, 17-09-2016). Universidade da Beira Interior premeia integração de caloiros (CM, 16-09-2016). Apresentada a Praxe+, que propõe a integração dos alunos com ciência e cultura (DN, 14-092016). Grupo dinamiza um mês de atividades em Coimbra para evitar “monopólio” da praxe (CM, 1209-2016). Politécnicos consideram oportuno apelo de personalidades para alternativas à praxe (CM, 0507-2016). Personalidades querem alternativas à praxe (CM, 05-07-2016). 253 Estudantes de Bragança fazem da praxe solidariedade porta a porta (CM, 19-10-2015). Caloiros trocam praxes por enxadas e pincéis (CM, 26-09-2015). Da teoria à praxe: as práticas de que a malta gosta (JN, 24-09-2015). Alternativa à praxe em Coimbra (CM, 20-09-2015). Caloiros da Católica vão colher batatas (JN, 01-09-2015). Estudantes distribuíram abraços no Hospital de S. João (CM, 18-12-2014). Repúblicas de Coimbra organizam semana de integração alternativa à praxe (CM, 12-09-2014). Praxe solidária põe caloiros a pintar paredes no bairro da Ajuda (CM, 19-09-2012). Praxe académica deu ajuda aos bombeiros (JN, 11-10-2010). Praxe “mais social” como trampolim para Bolonha (JN, 02-10-2008). Praxe transformada em solidariedade (CM, 01-10-2008). 254 ANEXO III - GUIÃO-MODELO DE ENTREVISTA A ESTUDANTES QUE PARTICIPARAM NA PRAXE 1. Caracterização do entrevistado 1.1. Caracterização geral P1. Idade P2. Local de residência durante o ano letivo P3. Local de residência fora do período de aulas P4. Universidade/instituto, faculdade, curso e ano que frequenta P5. Número de matrículas 1.2. Percurso académico P6. Porque é que decidiu ingressar no ensino superior? P7. Porque razões escolheu o curso que frequenta? P8. Porque razões escolheu a universidade/instituto que frequenta? P9. De um modo geral, como descreveria o seu percurso escolar? P10. Como descreveria a sua relação com os professores e os colegas que foi tendo ao longo do seu percurso escolar? 1.3 Origens familiares P11. Local de residência, idade, escolaridade e profissão do pai e da mãe (ou dos educadores) P12. Local de residência, idade, escolaridade e profissão dos irmãos (caso existam) P13. Outros elementos na família que tenham estudado no ensino superior. 2. Expectativas relativas ao ensino superior P14. Quando chegou ao ensino superior que expectativas tinha relativamente às aulas e à aprendizagem? Diria que essas expectativas correspondem àquilo que encontrou? O que é que foi diferente? P15. Quando chegou ao ensino superior que expectativas tinha relativamente aos seus colegas e às relações de convívio e amizade? Diria que essas expectativas correspondem àquilo que encontrou? O que é que foi diferente? 3. Expectativas relativas ao futuro profissional P16. Quando chegou ao ensino superior, que expectativas tinha para o seu futuro profissional? Como é que construiu essas expectativas? 255 P17. Quais são as suas expectativas atuais relativamente ao seu futuro profissional? Em que é que mudaram desde que ingressou no ensino superior? 4. A praxe P18. Como define a praxe académica? Quais os seus aspetos que se destacam, pela positiva e pela negativa? P19. Porque razões decidiu participar na praxe? P20. Como é que descreve a sua participação na praxe académica, desde os primeiros tempos de “caloiro” até agora? P21. Alguma vez se sentiu pressionado para participar na praxe? P22. Qual é a sua posição na hierarquia da praxe? E qual o significado dessa posição? P23. Para além das atividades de praxe em sentido estrito, em que outros momentos associados à praxe e à vida académica participa ou pensa participar (cortejo, latada, imposição de insígnias...)? O que significa para si participar nesses eventos? Participa na organização desses momentos? P24. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma atividade de carácter cívico (por exemplo, recolher fundos para uma associação)? Porquê? Pode descrever essas atividades? P25. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma atividade de carácter cultural e instrutivo (por exemplo, visitar um museu)? Porquê? Pode descrever essas atividades? P26. Que aspetos da praxe deveriam ser modificados (se é que alguns), e como poderiam sê-lo? P27. Teve colegas no curso que não participaram na praxe? Como foi a integração desses colegas? 5. Símbolos da praxe P28. Quais os principais símbolos da praxe (traje, capa colher, tesoura...)? Qual o seu significado? P29. [Caso o entrevistado seja “doutor”] Utiliza a roupa e os símbolos típicos da praxe? Quais, quando e porquê? P.30 [Caso o entrevistado seja “caloiro”] Pensa utilizar roupa e símbolos da praxe? Quais, quando e porquê? 256 7. Praxe, inclusão e exclusão P31. Que iniciativas de integração existem para quem chega ao ensino superior? P32. A Associação de Estudantes ou a instituição de ensino organizam alguma receção aos novos alunos? P33. Participou nessas atividades? Porquê? E os seus colegas? P34. Conhece alguns movimentos críticos da praxe, ou que defendam alternativas à praxe? P35. Que importância teve a praxe para a sua integração na faculdade/instituto? P36. [Caso o entrevistado seja um “caloiro”]: Como descreve a relação que mantém com o seu padrinho/madrinha de praxe? Qual a importância e o significado que essa relação tem para si? P37. [Caso o entrevistado seja um “doutor”]: Tem afilhados de praxe? Como descreve a relação que mantém com eles? Qual a importância e o significado que essa relação tem para si. P38. Existem algumas atividades conviviais na sua faculdade/instituto cuja participação esteja vedada a quem não participa na praxe? Porquê? Pode descrever essas atividades? P39. O que pensa da decisão que alguns estudantes tomam de não integrar a praxe? 8. Integração na vida académica para lá da praxe P40. Alguma vez participou numa lista para a direção da associação de estudantes ou concorreu para outros órgãos? Porquê? P41. Costuma participar nas assembleias de estudantes? Porquê? P42. Costuma votar nas eleições para a direção da associação de estudantes ou para outros órgãos (Conselho Pedagógico, Conselho Geral, Núcleos de Alunos? Porquê? P43. Em que tipo de iniciativas promovidas pela associação de estudantes (festas, debates, visitas, etc.) participa e com que regularidade? Porquê? P44. Em que tipo de iniciativas promovidas pela faculdade (conferências, debates, voluntariado etc.) é que participa e com que regularidade? Porquê? P45. Em que outros aspetos da vida da faculdade é que participa? Porquê? 9. Praxe e violência P50. Existe alguma codificação das regras da praxe na sua faculdade? Qual a sua importância para a prática da praxe? 257 P51. Que consequências pode enfrentar quem violar uma norma da praxe ou desobedecer a uma ordem de um superior na hierarquia da praxe? P52. Tem um “nome de praxe”? Qual é? O que significa essa alcunha para si? Porque acha que lhe foi atribuída? P53. [Caso o entrevistado seja um “doutor”] Como são atribuídos os nomes de praxe? Os estudantes continuam a ser tratados por eles fora da praxe? P54. Alguma vez se sentiu coagido para fazer alguma coisa que não queria na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que aconteceu nesses casos? P.55. Pensando agora nos outros, alguma vez viu alguém a ser coagido para fazer alguma coisa que não queria na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que aconteceu nesses casos? P56. Alguma vez se sentiu alvo de violência (física, verbal ou social) na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que fez nesses casos? P57. Pensando agora nos outros, alguma vez viu alguém a ser alvo de violência (física, verbal ou social) na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que fez nesses casos? P58. Caso ocorram situações de violência ou abuso na praxe, a quem podem recorrer as eventuais vítimas? P59. O que é para si um ato de violência? 258 ANEXO IV GUIÃO-MODELO DE ENTREVISTA A REITORES, PRESIDENTES DE INSTITUTOS POLITÉCNICOS, DIRETORES DE UNIDADES ORGÂNICAS E OUTROS DIRIGENTES DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR 1. Caracterização do entrevistado P1. Cargo P2. Percurso académico e profissional até chegar ao cargo que ocupa 2. Caracterização da instituição P3. Olhando para a sua instituição, como caracterizaria os alunos, atendendo ao seu perfil demográfico, social, escolar, económico e geográfico? P4. Qual o peso dos estudantes deslocados nesta universidade/faculdade? 3. Integração e participação dos alunos na vida da instituição P5. De um modo geral, como avalia a participação dos alunos na vida da instituição, em sentido lato? Relativamente a isto, o que pode ser melhorado e como? P6. A sua instituição organiza alguma iniciativa de integração aos novos alunos? Se não, porquê? Se sim, pode descrever essas iniciativas e indicar quais os seus objetivos? Quem participa na sua organização e implementação? Qual o grau de participação dos alunos nessas iniciativas? P7. Esta universidade/faculdade propõe algumas iniciativas de integração dos novos alunos? Em caso afirmativo, pode descrevê-las? Qual o grau participação dos alunos nessas iniciativas? 4. Praxe na instituição P8. Como define a praxe académica? Quais os seus aspetos que se destacam, pela positiva e pela negativa? P9. Qual a posição da universidade/faculdade relativamente à praxe? Porquê? P10. A praxe é permitida nesta universidade/faculdade, ou encontra-se (parcialmente ou totalmente) proibida no campus? Porquê? P11. Como descreve a praxe que é praticada nesta instituição? 259 P12. A universidade/faculdade promove iniciativas sobre a praxe, ainda que não diretamente ligadas a ela (como debates, sessões de esclarecimento...)? Pode descrever essas iniciativas? Qual a participação que elas costumam ter por parte dos estudantes? P13. Os órgãos de gestão contribuem para a regulação da praxe? De que maneira? P14. Os órgãos de gestão reúnem com representantes da praxe? Se não, porquê? Se sim, com que objetivo? P15. Quando começou a praxe nesta instituição? Tem-se mantido constante desde então? P16. Que tipos de contactos existem entre a instituição e o movimento críticos? Pode descrevê-los? P17. Os docentes e/ou os órgãos diretivos da instituição participam em algum evento associado à praxe académica? Porquê? De que forma? Com que frequência? P18. Há aulas que não se realizam na primeira semana de aulas devido às atividades de praxe? Se sim, os professores apresentam-se igualmente na sala? P19. Que aspetos da praxe deveriam ser modificados (se é que alguns), e como? 5. Praxe, inclusão e exclusão P20. Como avalia a praxe académica enquanto modo de integração dos novos alunos na instituição? P21. Qual o grau de participação dos alunos na praxe nesta instituição? P22. Qual a expressão dos movimentos críticos da praxe nesta instituição? P23. Alguma vez chegaram aos órgãos de gestão queixas de exclusão ou discriminação por parte dos alunos que não aderem à praxe? Com que frequência? Qual é procedimento dos órgãos de gestão face a estas queixas? 6. Praxe e funcionamento da instituição P24. A praxe interfere de algum modo com o normal funcionamento das aulas? De que modo? Existem queixas dos docentes relativamente a este assunto? Quais e com que frequência? 7. Praxe e violência P25. Alguma vez os órgãos de gestão receberam queixas de práticas de violência na praxe? Com que frequência é que isso acontece? Que tipo de violência é que foi relatada? 260 P26. Qual é, ou qual seria, o procedimento dos órgãos de gestão face a essas queixas? P27. Em caso de ocorrência de queixas relativas a crimes em contexto de praxe, existem nesta instituição alguns mecanismos que visem facilitar o acesso das alegadas vítimas aos tribunais? Porquê? Em caso afirmativo, pode descrever esses mecanismos? P28. Existem algumas medidas desenvolvidas pelos órgãos de gestão no sentido de prevenir e combater a violência na praxe? Pode descrevê-las? Que atores são envolvidos na sua implementação? P29. Existem sanções internas previstas para a ocorrência de comportamentos violentos e abusivos em contexto de praxe ou noutras situações? Porquê? Em caso afirmativo, pode descrever essas sanções? 261 ANEXO V GUIÃO-MODELO DE ENTREVISTA PARA DIRIGENTES DE ASSOCIAÇÕES ACADÉMICAS E DE ESTUDANTES QUE NÃO PARTICIPAM OU PARTICIPARAM NA PRAXE ACADÉMICA 1. Caracterização do entrevistado 1.1. Caracterização geral P1. Idade P2. Local de residência durante o ano letivo P3. Local de residência de férias P4. Universidade/instituto, faculdade, curso e ano que frequenta P5. Número de matrículas 1.2. Percurso académico P6. Porque é que decidiu ingressar no ensino superior? P8. Porque razões escolheu o curso que frequenta? P9. Porque razões escolheu a universidade/instituto que frequenta? P10. De um modo geral, como descreveria o seu percurso escolar? P11. Como descreveria a sua relação com os professores e os colegas que foi tendo ao longo do seu percurso escolar? 1.3 Origens familiares P12. Local de residência, idade, escolaridade e profissão do pai e da mãe (ou dos educadores) P13. Local de residência, idade, escolaridade e profissão dos irmãos (caso existam) P14. Outros elementos na família que tenham estudado no ensino superior. 1.4 Percurso associativo P15.Vida cívica e associativa para além da associação de estudantes. 2. Integração e participação dos alunos na vida da instituição P16. De um modo geral, como avalia a participação dos alunos na vida da instituição, em sentido lato? Relativamente a isto, o que pode ser melhorado e como? 262 P17. Qual o grau de participação dos estudantes nas assembleias de estudantes e nas eleições para a direção da associação? P18. Qual o grau de participação dos estudantes nas iniciativas da associação académica/de estudantes? P19. Esta associação de estudantes organiza iniciativas de integração dos novos alunos? Pode descrever essas iniciativas e indicar quais os seus objetivos? Quem participa na sua organização e implementação? Qual o grau de participação dos alunos nessas iniciativas? P20. A universidade/instituto organiza iniciativas de integração dos novos alunos? Pode descrever essas iniciativas? Qual o grau de participação dos alunos? 3. Praxe P21. Como define a praxe académica? Quais os seus aspetos que se destacam, pela positiva e pela negativa? P22. Qual a posição da sua associação de estudantes relativamente à praxe? Porquê? P23. Existem algumas restrições à praxe nesta faculdade impostas pelos órgãos de gestão? Em caso afirmativo, pode descrevê-las? O que pensa delas? P24. A associação de estudantes promove iniciativas sobre a praxe, ainda que não diretamente ligadas a ela (como debates, sessões de esclarecimento...)? Pode descrever essas iniciativas? Qual a participação que elas costumam ter por parte dos estudantes? P25. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma atividade de carácter cívico (por exemplo, recolher fundos para uma associação)? Porquê? Pode descrever essas atividades? P26. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma atividade de carácter cultural e instrutivo (por exemplo, visitar um museu)? Porquê? Pode descrever essas atividades? P27. A associação de estudantes participa de algum modo na regulação da praxe académica? P28. A associação de estudantes reúne com representantes da praxe académica? Se sim, com que objetivos? Se não, porquê? P29. Que tipo de contactos existem entre a associação de estudantes e movimentos críticos da praxe? Pode descrevê-los? P30. Que aspetos da praxe deveriam ser modificados (se é que alguns), e de que modo? 263 4. Praxe, inclusão e exclusão P31. Como avalia a praxe académica enquanto modo de integração dos novos alunos na instituição? P32. Qual o grau de participação na praxe pelos estudantes da sua faculdade/instituto? P33. Qual a expressão do movimento crítico da praxe na sua faculdade/instituto? P34. A participação na praxe académica é inteiramente voluntária? Existe algum tipo de pressão para que os estudantes se juntem à praxe? P35. Alguma vez chegaram à associação de estudantes queixas de exclusão ou discriminação por parte dos alunos que não aderem à praxe? Com que frequência? Qual é procedimento da associação de estudantes face a estas queixas? P36. Na sua perceção, os estudantes que não participam na praxe têm mais dificuldade em integrar-se na universidade? Porquê? 5. Praxe e violência P37. Alguma vez a sua associação de estudantes recebeu queixas de práticas de violência na praxe? Com que frequência? Que tipo de violência é que foi relatada? P38. Qual é, ou qual seria, o procedimento da associação de estudantes face a essas queixas? P39. A associação de estudantes desenvolve algum tipo de iniciativas com objetivo de prevenir a combater a violência nas praxes? Pode descrevê-las? P40. Existem algumas medidas desenvolvidas pelos órgãos de gestão no sentido de prevenir e combater a violência na praxe? Pode descrevê-las? Que atores são envolvidos na sua implementação? 264 ANEXO VI GUIÃO-MODELO DE ENTREVISTA PARA DIRIGENTES ASSOCIATIVOS QUE PARTICIPAM OU PARTICIPARAM NA PRAXE 1. Caracterização do entrevistado 1.1. Caracterização geral P1. Idade P2. Local de residência durante o ano letivo P3. Local de residência de férias P4. Universidade/instituto, faculdade, curso e ano que frequenta P5. Número de matrículas 1.2. Percurso académico P6. Porque é que decidiu ingressar no ensino superior? P7. Porque razões escolheu o curso que frequenta? P8. Porque razões escolheu a universidade/instituto que frequenta? P9. De um modo geral, como descreveria o seu percurso escolar? P10. Como descreveria a sua relação com os professores e os colegas que foi tendo ao longo do seu percurso escolar? 1.3 Origens familiares P11. Local de residência, idade, escolaridade e profissão do pai e da mãe (ou dos educadores) P12. Local de residência, idade, escolaridade e profissão dos irmãos (caso existam) P13. Outros elementos na família que tenham estudado no ensino superior. 1.4 Percurso associativo P14. Vida cívica e associativa para além da associação de estudantes. 2. Expectativas relativas ao ensino superior P15. Quando chegou ao ensino superior que expectativas tinha relativamente às aulas e à aprendizagem? Diria que essas expectativas correspondem àquilo que encontrou? O que é que foi diferente? P16. Quando chegou ao ensino superior que expectativas tinha relativamente aos seus colegas e às relações de convívio e amizade? Diria que essas expectativas 265 correspondem àquilo que encontrou? O que é que foi diferente? 4. Integração e participação dos alunos na vida da instituição P17. De um modo geral, como avalia a participação dos alunos na vida da instituição, em sentido lato? Relativamente a isto, o que pode ser melhorado e como? P18. Qual o grau de participação dos estudantes nas assembleias de estudantes e nas eleições para a direção da associação? P19. Qual o grau de participação dos estudantes nas iniciativas da associação de estudantes? P20. Esta associação de estudantes organiza alguma iniciativas de integração dos novos alunos? Pode descrever essas iniciativas e indicar quais os seus objetivos? Quem participa na sua organização e implementação? Qual o grau de participação dos alunos nessas iniciativas? P21. Conhece outras iniciativas de integração dos novos estudantes na universidade que não estejam relacionadas com a praxe nem sejam promovidas pela associação de estudantes? Em que consistem? Quem as promove? P22. A universidade/instituto organiza iniciativas de integração dos novos alunos? Pode descrever essas iniciativas? Qual o grau de participação dos alunos? 5. A praxe P23. Como define a praxe académica? Quais os seus aspetos que se destacam, pela positiva e pela negativa? P24. Como é que descreve a sua participação na praxe académica, desde os primeiros tempos de “caloiro” até agora? P25. Porque razões decidiu participar na praxe? P26. Alguma vez se sentiu pressionado para participar na praxe? P27. Qual é a sua posição na hierarquia da praxe? E qual o significado dessa posição? P28. Para além das atividades de praxe em sentido estrito, em que outros momentos associados à praxe e à vida académica participa ou pensa participar (cortejo, latada, imposição de insígnias...)? O que significa para si participar nesses eventos? Participa na organização desses momentos? P29. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma actividade de carácter cívico (por exemplo, recolher fundos para uma associação)? P30. Durante a praxe que ocorre nesta instituição desenrola-se alguma actividade de 266 carácter cultural e instrutivo (por exemplo, visitar um museu)? P31. Que aspetos da praxe deveriam ser modificados (se é que alguns), e como? 5.1 A praxe e a associação de estudantes P32. Qual a posição da sua associação de estudantes relativamente à praxe? Porquê? P33. Existem algumas restrições à praxe nesta faculdade impostas pelos órgãos de gestão? Em caso afirmativo, pode descrevê-las? O que pensa delas? P34. A associação de estudantes promove iniciativas sobre a praxe, ainda que não diretamente ligadas a ela (como debates, sessões de esclarecimento...)? Pode descrever essas iniciativas? Qual a participação que elas costumam ter por parte dos estudantes? P35. A associação de estudantes participa de algum modo na regulação da praxe académica? P36. A associação de estudante reúne com representantes da praxe? Se sim, com que objetivo? Se não porquê? P37. Que tipo de contactos existem entre a associação de estudantes e o movimento críticos da praxe? Pode descrevê-los? 6. Símbolos da praxe P38. Quais os principais símbolos da praxe (traje, capa colher, tesoura...)? Qual o seu significado? P39. [Caso o entrevistado seja “doutor”] Utiliza a roupa e os símbolos típicos da praxe? Quais, quando e porquê? P40. [Caso o entrevistado seja “caloiro”] Pensa utilizar roupa e símbolos da praxe? Quais, quando e porquê? 7. Praxe, inclusão e exclusão P41. Como avalia a praxe académica enquanto modo de integração dos novos alunos na instituição? P42. Qual o grau de participação dos alunos na praxe nesta faculdade? P43. Qual a expressão dos movimentos críticos da praxe nesta faculdade? P44. [Caso o entrevistado seja um “caloiro”]: Como descreve a relação que mantém com o seu padrinho/madrinha de praxe? Qual a importância e o significado que essa relação tem para si? P45. [Caso o entrevistado seja um “doutor”]: Tem afilhados de praxe? Como descreve 267 a relação que mantém com eles? Qual a importância e o significado que essa relação tem para si. P46. A participação na praxe académica é inteiramente voluntária? Existe algum tipo de pressão para que os estudantes se juntem à praxe? P47. Alguma vez chegaram à associação de estudantes queixas de exclusão ou discriminação por parte dos alunos que não aderem à praxe? Com que frequência? Qual é procedimento da associação de estudantes face a estas queixas? P48. Existem algumas atividades conviviais na sua faculdade/instituto cuja participação esteja vedada a quem não participa na praxe? Pode descrever essas atividades? P49. Na sua perceção, os estudantes que não participam na praxe têm mais dificuldade em integrar-se na universidade? Porquê? 8. Integração na vida académica para lá da praxe P50. Em que tipo de iniciativas promovidas pela faculdade (conferências, debates, voluntariado etc.) é que participa e com que regularidade? Porquê? P51. Em que outros aspectos da vida da faculdade é que participa? Porquê? 9. Praxe e violência P52. Alguma vez a sua associação de estudantes recebeu queixas de práticas de violência na praxe? Com que frequência? Que tipo de violência é que foi relatada? P53. Qual é, ou qual seria, o procedimento da associação de estudantes face a essas queixas? P54. A associação de estudantes desenvolve algum tipo de iniciativas com objetivo de prevenir a combater a violência nas praxes? Pode descrevê-las? P55. Existem algumas medidas desenvolvidas pelos órgãos de gestão no sentido de prevenir e combater a violência na praxe? Pode descrevê-las? Que atores são envolvidos na sua implementação? P56. Existe alguma codificação das regras da praxe na sua faculdade? Qual a sua importância para a praxe que é praticada? P57. Que consequências pode enfrentar quem violar uma norma da praxe ou desobedecer a uma ordem de um superior na hierarquia da praxe? P58. Tem um “nome de praxe”? Qual é? O que significa essa alcunha para si? Porque acha que lhe foi atribuída? 268 P59. [Caso o entrevistado seja um “doutor”] Como são atribuídos os nomes de praxe? Os estudantes continuam a ser tratados por eles fora da praxe? P60. Alguma vez se sentiu coagido para fazer alguma coisa que não queria na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que aconteceu nesses casos? P61. Pensando agora nos outros, alguma vez viu alguém a ser coagido para fazer alguma coisa que não queria na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que aconteceu nesses casos? P62. Alguma vez se sentiu alvo de violência (física, verbal ou social) na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que fez nesses casos? P63. Pensando agora nos outros, alguma vez viu alguém a ser alvo de violência (física, verbal ou social) na praxe? Com que frequência? Pode descrever algumas dessas situações? O que fez nesses casos? P64. O que é para si um acto de violência? 269 ANEXO VII – TÓPICOS DE ENTREVISTA A DUX VETERANORUM 1. Caracterização 2. O papel do Dux e o seu grau de formalização. 3. Motivação que tem para se manter no papel de Dux, apesar da diferença geracional que existe com a generalidade dos estudantes que se envolvem na praxe 4. Definição de praxe. 5. Funções da praxe e os mecanismos que fazem com que sejam cumpridas. 6. Modificações ocorridas na praxe ao longo dos tempos e explicações para que tenham ocorrido. 7. Diversidade de práticas no contexto da praxe de Coimbra e aspectos unificadores. 8. A hierarquia da praxe e distribuição de poder e responsabilidades entre os diferentes graus da hierarquia. Mecanismos para garantir o reconhecimento e a vigência da hierarquia. 9. Regulação da praxe: códigos de praxe, mecanismos de vinculação e supervisão. 10. Conceito subjectivo de violência, e de violência em contexto de praxe. 11. Lugar da violência (física, psicológica, simbólica) na praxe. 12. Mecanismos de defesa à disposição de eventuais vítimas de violência na praxe. 13. Mecanismos previstos e utilizados pelo Conselho de Veteranos para lidar com eventuais queixas de situações abusivas que recebam. 14. Consumo de álcool em contexto de praxe. 15. Praxe, sexualidade e sexismo 270 ANEXO VIII - GRELHA DE PESQUISA OBSERVACIONAL      1. Identificação do evento da praxe Descrição, data, hora de início e de término da observação; 2. Participantes no evento Número aproximado de “caloiros” (discriminar por género); Número aproximado de “doutores” (discriminar por género); Número aproximado de “veteranos” (discriminar por género); Número aproximado de outros intervenientes e espectadores (discriminar por género);                3. O espaço Designação do espaço; Descrição do espaço; Visibilidade do espaço e das atividades que nele decorrem; Tipo de espaço (público/privado); Distribuição dos atores e ocupação do espaço; Apropriação do espaço e interação com o espaço; 4. Atividades da praxe Duração total do evento da praxe; Descrição das atividades dos “caloiros” (atentar a variações de género); Descrição das atividades dos “doutores” (atentar a variações de género); Descrição das atividades dos “veteranos” (atentar a variações de género); Duração de cada uma das várias atividades compreendidas pelo evento de praxe; 5. Vestuário e indumentária Descrição do vestuário, dos acessórios e das pinturas dos intervenientes: “caloiros”, “doutores” e “veteranos”. Atentar em variações de género; Utilização de acessórios do vestuário (capas, outros) nas atividades da praxe; Limpeza e arrumação do vestuário ao longo das atividades de praxe; 6. Símbolos da praxe Identificação e descrição de símbolos presentes no evento de praxe (para além 271  do vestuário); Interação dos diferentes intervenientes (“caloiros”, “doutores” e “veteranos”) com esses símbolos;    7. Outros objetos Identificação e descrição de outros objetos presentes no momento de praxe observado; Distribuição dos objetos pelo espaço; Interação dos presentes com outros objetos presentes (atentar em variações de hierarquia da praxe e de género);             8. Consumo de álcool Ocorrência de consumo de álcool durante o momento de praxe; Atores que consomem álcool, identificados tendo em conta o género e a hierarquia da praxe; Pressão ou coação para consumir álcool; Efeitos observáveis do consumo de álcool nos presentes; 9. Interações da praxe Interações entre os diferentes grupos de participantes (“caloiros”, “doutores”, “veteranos”, outros intervenientes) e entre os elementos de cada grupo; Interações entre homens e mulheres; Observação das interações em cadeia: que eventos despoletam as interações e como é que estas se resolvem; Dimensão física: postura e linguagem corporal, expressões faciais, olhares, risos e sorrisos, distâncias corporais e contactos físicos; Dimensão verbal: tom de voz, linguagem utilizada, grau de formalidade no tratamento interpessoal; Dimensão do poder: posturas ativas e expectantes, transmissão de ordens, obediência às ordens ou resistência; Dimensão da tensão e da conflitualidade: agressividade verbal (gritos, insultos...) e física (empurrões, estalos...) utilização de alcunhas depreciativas; 5) Significados da praxe expressamente transmitidos durante interações verbais; 272  6) Informações sobre a vida académica transmitidas durante as interações verbais;    10. Nomes de praxe Enumeração das alcunhas individualizadas impostas aos “caloiros” na praxe identificadas Utilização dessas alcunhas nas interações entre “caloiros” e entre estes e os “doutores” e “veteranos” Publicitação dessas alcunhas (em papéis colados na roupa, pendurados ao pescoço, pinturas, etc.) 273