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David Harvey
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CONDIÇAO
Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural
Tradução
A dail U birajara Sobral
Maria Stela Gonçalves
Edições Loyola
Título original:
The Condition of Postmodernity
An Enquily into the Origins ofCultural Change
©David Harvey 1989
Basil Blackwell Ldt
108 Cowley Road, Oxford OX4 lJF, U K
l ~~::~~~~~~~]
Edições Loyola
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ISBN: 978-85- 15-00679-3
17• edição: maio de 2008
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 1992
"
Indice
A tese...... ......... ........................................... ............. ......................................................
7
Prefácio ....... .......... .........................................................................................................
9
Agradecünenlos. ...... .................. ...... ............. .. ....................................................... .......
11
Parte I - Passagem da modernidade à pós-m odernidade na cultura
conte1nporânea ..... ......................................................................................
13
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Introdução..... ......... ..... ...... .................. ... ... .. .. ......................................................... 15
Modernidade e n1odernis1n o ................ ..................................... ...... ................... 21
Pós-n1odernis1no ............................... ............. ........ ............. .... ...... ..... ................... 45
O pós-modernismo na cidade: arquitetura e projeto urbano ... ................... 69
Modernização ... .......... .............. ........... ............................. .. ................................... 97
PÓS-moderniSMO ou pós-MODERNismo?.................................................... 109
Parte Il - A transformação político-econômica do capitalism o do fin al
do século XX ........ .. ................................. ................................................... 115
Introdução ................... ..................... .................................................... ..................
O fordisn1o .... .. .... ...... ....................... ........ .............................................. ................
D o fordismo à acumulação flexível .................................. ... .............................
Teorizando a transição .......................................................... ..............................
Acumulação flexível - transformação sólida ou reparo temp orário?......
117
121
135
163
177
Parte III - A experiência do espaço e do tempo ................................................. 185
12.
13.
14.
15.
16.
In trodução .................... ........ ..................................... .............................................
Espaços e tempos individuais na vida social .................................................
Tempo e espaço como fontes de poder social.... ...........................................
O tempo e o espaço do projeto do Iluminism o..................................... ........
A compressão do tempo-esp aço e a ascensão d o modernismo como
força cultural ............................... ..........................................................................
17. A compressão do tem po-esp aço e a condição pós-m oderna ............... .......
18. O tempo e o espaço no cinema p ós-moderno .... ...........................................
187
195
207
219
237
257
277
Parte IV - A condição pós-moderna ............................................ ...... .................... 291
19. A pós-modernidade como condição histórica .............. .................................. 293
20. Econonüa con1 espelhos ...................................................................................... 295
21. O pós-modernismo como o espelho d os espelhos........................................ 301
~220 Modernismo fordista
versus pós-modernismo flexível, ou a
interpenetração de tendências opostas no capitalismo como mntodoooooo
~230 A lógica transformativa e especulativa do capital
240 A obra de arte na era da reprodução eletrônica e dos bancos de
in1agen1 ooo ooOOoo ooooooo Oooo oooo oooooooooooo ooooo oooooooo oooooo oooooooooooo oo ooooooooOOOoooo oooo oo oo oo ooooo ooooooo ooooooooo
250 Respostas à compressão do tempo-espaço oooooooooooooooooooooooooooooooooo oooooooooooooooooooo
~ 260 A crise do materialismo histórico oooooooooooooooo .............. oo .. oooooooo .... oo .. ooooooooooooooooooo
270 Rachaduras nos espelhos, fusões nas extremidades 00 00 000000 ...... .. 0000000000000000000
0000000000 0000000000 00000000000000000000
303
307
311
315
319
323
Referências ooooo00 oooooooooo00 oooooooooooo00 oo00 oooo00 oooooooooo00 oooo000 ooo00 oooo00 oooo.. oooo00 oooo00 ooooooo00 oooooooooo.ooooo 327
Índice de notnes ooo oo oo oo ooooo oo ooooooooo•oo••o•oo•oo•ooooooo oooo oooooooooooooooooooooo ooooooo oooo ooooooooooooo oooooo ooo•oo 335
Índice de assuntos oooo oo oooooooooooooooooo oo oooooooo o000000000000000000000000000000 00 00000 00000000 00 0000 o00000 00 o00 o0000 0 341
\
A tese
Vem ocorrendo uma mudança abissal nas práticas culturais, bem como políti,
co-econômicas, desde mais ou meno~
Essa mudança abissal está vincula~mergência de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço.
Embora a simultaneidade nas dimensões mutantes do tempo e do espaço não
seja prova de conexão necessária ou causal, podem-se aduzir bases a priori em
favor da proposição de que há algum tipo de relação necessária entre a ascensão
de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de "compressão do tempo-espaço" na organização do capitalismo.
Mas essas mudanças, quando confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da aparênda superficial do
que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo
pós-industrial inteiramente nova.
Prefácio
Não consigo me lembrar exatamente de quando deparei pela primeira vez com
o termo pós-modernismo. É provável que eu tenha reagido a ele mais ou menos
da mesma maneira como o fazia diante dos vários outros "ismos" que surgiram e
desapareceram no último par de décadas, na esperança de que ele sumisse sob o
peso da sua própia incoerência ou simplesmente perdesse seu encanto de modismo.
Ao que parece, contudo, o clamor dos argumentos pós-modernos antes aumentou
do que diminuiu com o tempo. Uma vez vinculado com o pós-estruturalismo, com o
pós-indushialismo e com todo um arsenal de outras "novas idéias", o pós-modernismo dava a impressão crescente de uma poderosa configuração de novos sentimentos
e pensamentos. Ele parecia a caminho de desempenhar um papel crucial na definição
da trajetória do desenvolvimento social e político apenas em virtude da maneira como
definia padrões de crítica social e de prática política. Em anos recentes, ele vem determinando os padrões do debate, defi1úndo o modo do "discurso" e estabelecendo
parâmetros para a crítica culturat política e intelectual.
Portanto, parecia apropriado investigar mais profundamente a natureza do
pós-modernismo, não tanto como um conjunto de idéias quanto como uma condição histórica que requeria elucidação. Tive, no entanto, de fazer um levantamento
das idéias dominantes e, como o pós-modernismo mostra ser um campo minado
de noções conflitantes, o projeto não se revelou de forma alguma fácil de levar a
efeito. Os resultados desse levantamento, apresentados na Parte I, foram reduzidos
ao mínimo indispensávet embora, espero, não de maneira pouco razoável. O restante do trabalho examina (mais uma vez de modo um tanto simplificado) os
fundamentos político-econômicos, antes de explorar com muito mais profundidade a experiência do espaço e do tempo como um vínculo mediador singularmente
importante entre o dinamismo do desenvolvimento histórico-geográfico do capitalismo e complexos processos de produção cultural e transformação ideológica.
Assim, torna-se possível entender alguns dos discursos completamente novos que
têm surgido no mundo ocidental nas últimas décadas.
Hoje, há sinais de que a hegemonia cultural do pós-modernismo está perdendo
força no Ocidente. Quando até os agentes do desenvolvimento dizem a um arquiteto como Moshe Safdie que estão cansados disso, pode o pensamento filosófico
ficar tão atrás? Em certo sentido, pouco importa se o pós-modernismo está ou não
se exaurindo, visto que muito se pode aprender com uma pesquisa histórica das
raízes do que tem sido uma desestabilizadora fase do desenvolvimento econômico,
político e cultural.
* **
Ao escrever este livro, recebi muita ajuda e estímulo crítico. Vicente Navarro,
Erica Schoenberger, Neil Smith e Dick Walker fizeram muitos comentários sobre o
original ou sobre. as idéias que eu estava desenvolvendo. O Roland Park Collective
ofereceu um grande fórum para a discussão e o debate intelectual. Tive também a
10
PREFÁCIO
grande sorte de trabalhar com um grupo extremamente talentoso de estudantes de
pós-graduação da Universidade Johns Hopkins e gostaria de agradecer a Kevin
Archer, Patrick Bond, Michael Johns, Phil Schmandt e Eric Swyngedouw pelo tremendo estímulo intelectual que me deram nos meus últimos anos lá. Jan Bark me
iniciou nos prazeres de ver alguém fazer com competência e bom humor o
processamento de texto, ao mesmo tempo que assumiu boa parte da carga de
elaboração dos índices. Angela Newman desenhou os diagramas, Tony Lee ajudou
nas fotografias, Sophie Hartley conseguiu as permissões e Alison Dickens e John
Davey, da Basil Blackwell, fizeram muitos comentários e sugestões editoriais úteis.
E Haydee foi uma maravilhosa fonte de inspiração.
Agradecitnentos
O autor e o editor agradecem às pessoas e instituições a seguir pela sua gentil
permissão de reprodução de ilustrações: Alcatel 3.2; Archives Nationales de France
3.3, 3.8; The Art Institute of Chicago, Coleção Joseph Winlerbotham, © The Art
Institute of Chicago. Todos os Direitos Reservados. © DACS 1988 3.9; Associated
Press 1.21; Coleção A. Aubrey Bodine, cortesia do Peale Museum, Baltimore. 1.22;
Jean-François Batellier 1.4; Bildarchiv Photo Marburg 1.20; British Architectural
Library I RIBA 3.6; The British Library 3.4; Leo Castelli Gallery, Nova Iorque, ©
Robert Rauschenberg, © DACS 1988 (fotografia de Rudolph Burckhardt) 1.9;
Deutsches Architekturmuseum, Frankfurt sobre o Meno, 1.28; P. Dicken, Global
Shift (Mudança Global) 3.1; Equitable Life Assurance Collection of the U.S. 1.5;
Fondation Le Corbusier, Paris, © DACS 1988, 1.1a; Galerie Bruno Bishofberger,
Zurique, 1.6; Untas Limited, Londres, 1.10; Lloyds Bank P1c, Londres, 4.1; Lloyd's
of London (fotografia de Janet Gill) 1.19; Los Angeles Times 1.18; Coleção Mansell
1.7; Metro Pictures, Nova Iorque, 1.2; Arquivos da Metropolitan Life Insurance
Company, Nova Iorque, 1.1b; Musée National d' Art Moderne, Centro Georges
Pompidou, Paris,© ADAGP, Paris e DACS, Londres 1988 3.11, 3.12; Musée d'Orsay,
Cliché des Musées Nationaux, Paris, 1.8; The Museum of Modem Art, Nova Iorque,
Purchase Fund, © ADAGP, Paris, e DACS, Londres 1989, 3.10; National Portrait
Gallery, Londres 3.5; Roger-Viollet 1.3. Todas as outras fotografias foram gentilmente fornecidas pelo autor.
O autor e o editor também gostariam de agradecer ao espólio de T. S. Eliot e
aos editores de Four Quartets, Faber and Faber Ltd e Harcourt Brace Jovanovich,
pela permissão para reproduzir o excerto de Brant Norton, e aos de Heinrich Klotz,
Revision der Moderne: Postmoderne Architektur 1960-1980, Prestei Verlag München,
1984, pelo catálogo descritivo de Piazza d'Italia, de Charles Moore.
I
I
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I
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I
I
Passagem da
modernidade
à pós-modernidade na
cultura contemporânea
O destino de uma época que comeu da árvore do conhecimento é ter
de ... reconhecer que as concepções gerais da vida e do universo
nunca podem ser os produtos do conhecimento empírico crescente,
e que os mais elevados ideais, que nos movem com mais vigor,
sempre são formados apenas na luta com outros ideais que são tão
sagrados para os outros quanto os nossos para nós.
Max Weber
I
I
I
1
Introdução
Soft city, de Jonathan Raban, um relato deveras personalizado da vida de Londres no início dos anos 70, foi publicado em 1974, tendo recebido um bom número
de comentários favoráveis na época. Mas ele desperta meu interesse enquanto
marco lústórico, por ter sido escrito num momento em que se pode detectar certa
mudança na maneira como os problemas da vida urbana eram tratados nos círculos populares e acadêmicos. Ele pressagiou um novo tipo de discurso que viria a
gerar termos como gentrificação [gentrification, surgimento de uma camada social
média] e "yuppie" [jovens profissionais urbanos] como descrições comuns da vida
urbana. E também foi escrito no auge da história intelectual e cultural em que algo
chamado "pós-modernismo" emergiu de sua crisálida do antimoderno para estabelecer-se por si mesmo como estética cultural.
Ao contrário da maioria dos escritos críticos e oposicionais sobre a vida urbana
nos anos 60 (e aqui penso em especial em Jane Jacobs, cujo livro The death and life
of great American cities surgiu em 1961, mas também em Theodore Roszak), Raban
descreve como vibrante e presente o que muitos autores anteriores tinham sentido
como ausência crônica. À tese de que a cidade estava sendo vitimada por um
sistema racionalizado e automatizado de produção e consumo de massa de bens
materiais, Raban opôs a idéia de que, na prática, se tratava principalmente da
produção de signos e imagens. Ele rejeitava a concepção de uma cidade rigidamente estratificada por ocupação e classe, descrevendo em vez disso um individualismo e um empreendimentismo disseminados em que as marcas da distinção social
eram conferidas em larga medida pelas posses e pela aparência. Ao suposto domíRaban opôs a imagem da cidanio do planejamento racional (ver a ilustração
de como uma "enciclopédia" ou "empório de estilos" em que todo o sentido de
hierarquia e até de homogeneidade de valores estava em vias de dissolução. O morador da cidade não era, dizia ele, alguém necessariamente dedicado à racionalidade
matemática (ao contrário do que presumiam muitos sociólogos); a cidade parecia mais
um teatro, uma sé1ie de palcos em que os indivíduos podiam operar sua própria
magia distintiva enquanto representavam uma multiplicidade de papéis. À ideologia
da cidade como alguma comunidade perdida, mas objeto de anseios, Raban respondia
com um quadro da cidade como labirinto, formado, como uma colméia, por redes tão
diversas de interação social orientadas para metas tão diversas que "a enciclopédia se
toma um livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos sem nenhuma
relação entre si, nenhum esquema determinante, racional ou econômico".
Meu propósito aqui não é criticar essa representação particular - embora
pense que não seria difícil mostrar ser ela uma percepção bem específica das coisas
por parte de um jovem profissional recém-chegado a Londres. Pretendo concentrar-me em como essa interpretação pôde ser afirmada com tanta confiança e ser
1.n
Ilustração 1.1
(em cima) Dream for Paris, de Le Corbusier, para a Paris dos anos 20; e (embaixo) o
projeto realizado para a Stuyvesant Town, Nova Iorque.
INTRODUÇÃO
17
tão bem recebida. Porque há algumas coisas ocorrendo em Soft city que merecem
estrita atenção.
Para começar, o livro oferece mais que um pequeno conforto aos que temiam
que a cidade estivesse sendo devorada pelo totalitarismo dos planejadores, dos
burocratas e das elites corporativas. A cidade, insiste Raban, é um lugar demasiado
complexo para ser disciplinada dessa forma; labirinto, enciclopédia, empório, teatro, a cidade é lugar em que o fato e a imaginação simplesmente têm de se fundir.
Raban também apelou sem reservas a noções de individualismo subjetivo que com
freqüência eram empurradas para os subterrâneos pela retórica coletivista dos
movimentos sociais dos anos 60. Porque a cidade também era um lugar em que as
pessoas tinham relativa liberdade para agir como queriam e para se tornar o que
queriam. "A identidade pessoal tinha se tornado suave, fluida, interminavelmente
aberta" ao exercício da vontade e da imaginação:
Para o bem ou para o mal, [a cidade] o convida a refazê-la, a consolidá-la numa
forma em que você possa viver nela. Você também. Decida quem você é, e a
cidade mais uma vez vai assumir uma forma fixa ao seu redor. Decida o que
ela é, e a sua própria identidade será revelada, como um mapa fixado por
triangulação. As cidades, ào contrário dos povoados e pequenos municípios,
são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, nos
moldam por meio da resistência que oferecem quando tentamos impor-lhes
nossa própria forma pessoal. Nesse sentido, parece-me que viver numa cidade
é uma arte, e precisamos do vocabulário da arte, do estilo, para descrever a
relação peculiar entre homem e material que existe na contínua interação criativa da vida urbana. A cidade tal como a imaginamos, a suave cidade da
ilusão, do mito, da aspiração, do pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto
a cidade dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas monografias
de sociologia urbana, de demografia e de arquitetura (pp. 9-10).
Embora afirmativo nesse sentido, Raban não achava que tudo corria bem na
vida urbana. Demasiadas pessoas perdiam o rumo no labirinto, era fácil demais
nos perder uns dos outros e de nós mesmos. E se havia algo de libertador na
possibilidade de representar muitos papéis distintos; também havia alguma coisa
estressante e profundamente desestabilizadora em ação. Por trás de tudo isso estava a tenebrosa ameaça da violência inexplicável, a companhia inevitável da onipresente tendência à dissolução da vida social no caso absoluto. Na verdade, os
assassinatos irracionais e a violência urbana indiscriminada formam o gambito
inicial do relato de Raban. A cidade pode ser um teatro, mas isso significava que
havia oportunidades de vilões e tolos se imiscuir ali e transformar a vida social em
tragicomédia, e até em melodrama violento, em especial se não conseguíssemos
decifrar os códigos direito. Embora sejamos "necessariamente dependentes das
superficies e aparências", nem sempre era claro como poderíamos aprender a encarar
essas superfícies com a simpatia e a seriedade requeridas. Essa tarefa tornou-se
duplamente difícil devido ao modo como o empreendimento foi reduzido à tarefa
de produzir fantasias e disfarces, enquanto, por trás de todas as misturas de códigos e modas, espreitava um certo "imperialismo do gosto" voltado para recriar,
18
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
sob novas formas, a própria hierarquia de valores e significações que as modas
mutantes solapavam:
Sinais, estilos, sistemas de comunicação rápida altamente convencionalizada
são o sangue vital da cidade grande. É quando esses sistemas entram em
colapso - quando perdemos o nosso domínio da gramática da vida urbana que [a violência] assume o controle. A cidade, nossa grande forma moderna,
é suave, acessível à estonteante e libidinosa variedade de vidas, de sonhos, de
interpretações. Mas as próprias qualidades plásticas que fazem da grande cidade o liberador da identidade humana também a tornam especialmente vulnerável à psicose e ao pesadelo totalitário.
Há mais do que um toque da influência do crítico literário francês Roland
Barthes nessa passagem, e com certeza o texto clássico desse autor, O Grau Zero da
Escritura, recebe menção favorável em mais de uma ocasião. Na medida em que o
estilo modernista de arquitetura de Le Corbusier (ilustração 1.1) é a bête noire do
esquema de coisas de Raban, 5oft city registra um momento de forte tensão entre
um dos grandes heróis do movimento modernista e alguém como Barthes, que
logo se tornaria uma das figuras centrais do pós-modernismo. 5oft city, escrito
naquele momento, é um texto presciente que não deve ser lido como antimodernista,
e sim como afirmação vital de que soara o momento pós-moderno.
Lembrei-me recentemente das descrições evocativas de Raban quando visitava
uma exposição das fotografias de Cindy Sherman (ilustração 1.2). As fotografias
mostram mulheres aparentemente diferentes em várias atividades da vida. Demora um pouco para se perceber, com um certo choque, que se trata de retratos da
mesma mulher com aparências diferentes. Só o catálogo diz que a mulher é a
própria artista. O paralelo com a insistência de Raban na plasticidade da personalidade humana propiciada pela maleabilidade das aparências e superfícies é notável, tal como o é o p osicionamento auto-referencial dos autores diante de si mesmos como sujeitos. Cindy Sherman é considerada uma figura de proa no movimento pós-moderno.
Assim sendo, que é esse pós-modernismo de que muitos falam agora? Terá a
vida social se modificado tanto a partir do início dos anos 70 que possamos falar
sem errar que vivemos numa cultura pós-moderna, numa época pós-moderna? Ou
será simplesmente que as tendências da alta cultura deram, como é do seu feitio,
mais uma circunvolução e que as modas acadêmicas também mudaram sem um
único vestígio ou eco de correspondência na vida cotidiana dos cidadãos comuns?
O livro de Raban sugere que há mais coisas envolvidas do que a última moda
intelectual importada de Paris ou do que a m ais nova reviravolta do mercado de
arte de Nova Iorque. Também há mais do que a mudança do estilo arquitetônico
que Jencks (1984) registra, embora, aqui, abordemos um reino que tem o potencial
de aproximar mais as preocupações da alta cultura da vida diária através da produção da forma construída. Com efeito, ocorreram grandes mudanças nas qualidades da vida urbana a partir de mais ou menos 1970. Mas determinar se essas
mudanças merecem o nome de "pós-moderno" é outra questão. Na verdade, a
resposta está na dependência direta do sentido específico que possamos dar a esse
INTRODUÇÃO
19
termo. E, nesse ponto, temos de nos ver às voltas com as últimas modas intelectuais importadas de Paris e com as mais novas reviravoltas do mercado de arte de
Nova Iorque, visto ter sido a partir desses fermentos que surgiu o conceito de "pós-n1oderno".
Quanto ao sentido do termo, talvez só haja concordância em afirmar que o
"pós-modernismo" representa alguma espécie de reação ao "modernismo" ou de
afastamento dele. Como o sentido de modernismo também é muito confuso, a
reação ou afastamento conhecido como "pós-modernismo" o é duplamente. O crítico
literário Terry Eagleton (1987) tenta definir o termo da seguinte maneira:
Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato pós-moderno típico é travesso,
auto-ironizador e até esquizóide; e que ele reage à austera autonomia do alto
modernismo ao abraçar impudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e sua falta de
profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes através de uma brutal estética da sordidez e do choqu·e.
Mais positivamente, os editores da revista de arquitetura PRECIS 6 (1987, 7-24)
vêem o pós-modernismo como legítima reação à "monotonia" da visão de mundo
do modernismo universal. "Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico
e racionalista, o modernismó universal tem sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais
ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção." O pós-moderno,
em contraste, privilegia "a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras
na redefinição do . discurso cultural". A fragmentação, a indetem1inação e a intensa
desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito)
"totalizantes" são o marco do pensamento pós-moderno. A redescoberta do pragmatismo na filosofia (p. ex., Rorty, 1979), a mudança de idéias sobre a filosofia da ciência
promovida por Kuhn (1962) e Feyerabend (1975), a ênfase foucaultiana na
descontinuidade e na diferença na história e a primazia dada por ele a "correlações
polimorfas em vez da casualidade simples ou complexa", novos desenvolvimentos na
matemática- acentuando a indeterminação (a teoria da catástrofe e do caos, a geometria dos fractais) - , o ressurgimento da preocupação, na ética, na política e na
antropologia, com a validade e a dignidade do "outro" - tudo isso indica uma
ampla e profunda mudança na "estrutura do sentimento". O que há em comum
nesses exemplos é a rejeição das "metanarrativas" (interpretações teóricas de larga
escala pretensamente de aplicação universal), o que leva Eagleton a completar a
sua descrição do pós-modernismo da seguinte maneira:
O pós-modernismo assinala a morte dessas "metanarrativas", cuja função terrorista secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana
"universal". Estamos agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razão manipulacl,ora e seu fetiche da totalidade, para o
pluralismo retornado do pós-moderno, essa gama heterogênea de estilos de
vida e jogos de linguagem que renunciou ao impulso nostálgico de totalizar e
legitimar a si mesmo .. . A ciência e a filosofia devem abandonar suas grandio-
I
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20
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.2 Cindy Sherman, Untitled, 1983 e Untitled "' 92, 1981.
O pós-modernismo e a máscara: a arte fotográfica de Cindy Shennan usa a própria
fotografia como sujeito em múltiplos disfarces, muitos dos quais em aberta referência
a imagens cinematográficas ou publicitárias.
sas reivindicações metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como
apenas outro conjunto de narrativas.
Se essas descrições estão corretas, certamente pareceria que 5oft city, de Raban,
está infundido de sentimento pós-moderno. Mas o real alcance disso ainda está por
ser estabelecido. Como o único ponto de partida consensual para a compreensão
do pós-moderno reside em sua possível relação com o moderno, é ao sentido deste
último que devemos dar atenção em primeiro lugar.
2
Modernidade e modernismo
"A modernidade", escreveu Baudelaire em seu artigo seminal "The painter of
modem life" (publicado em 1863), "é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma
metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável." ·
Desejo examinar con\ muita atençã~ essa conjugação entre o efêmero e fugidio
e o eterno e imutável. A história do modernismo como movimento estético tem
oscilado de um lado para o outro dessa formulação dual, muitas vezes dando a
impressão de poder, como certa feita observou Lionel Trilling (1966), apresentar
oscilações de significado até voltar-se para a direção oposta. Armados com o sentido de tensão de Baudelaire, podemos, penso eu, melhor compreender alguns dos
sentidos conflitantes atribuídos ao modernismo e algumas das correntes extraordinariamente diversas de prática artística, bem como avaliações estéticas e filosóficas
feitas em seu nome.
Deixo de lado, por agora, a questão de por que a vida moderna deveria ser
caracterizada por tanta enfermidade e mudança - mas o que não costuma ser
contestado é que a condição da modernidade tenha essa característica. Eis, por
exemplo, a descrição de Berman (1982, 15):
Há uma modalidade de experiência vital- experiência do espaço e do tempo,
do eu e dos outros, das possibilidades e perigos de vida - que é partilhada
por homens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de
experiência "modernidade". Ser moderno é encontrar-se num ambiente que
promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de si e do mundo - e, ao mesmo tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernos cruzam
todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade,
da religião e da ideologia; nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une
toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da
desunidade; ela nos arroja num redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser
parte de um universo em que, como disse Marx, "tudo o que é sólido desmancha no ar".
Berman mostra que uma variedade de escritores de diferentes lugares e épocas
(Goethe, Marx, Baudelaire, Dostoiévskí e Biely, entre outros) enfrentaram e tentaram lidar com essa sensação avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudança caótica. Esse mesmo tema recentemente encontrou eco em Frisby (1985), que,
num estudo de três p ensadores modernos - Simmel, Kracauer e Benjamin - ,
destaca que "seu interesse central era uma experiência distintiva do tempo, do
22
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
espaço e da causalidade como coisas transitórias, fugidias, fortuitas e arbitrárias".
Embora possa ser verdade que tanto Berman como Frisby estão identificando no
passado uma sensibilidade contemporânea muito forte à efemeridade e à fragmentação, e, portanto, talvez superenfatizem esse lado da formulação dual de Baudelaire,
há abundantes evidências a sugerir que a maioria dos escritores "modernos" reconheceu que a única coisa segura na modernidade é a sua insegurança, e até a sua
inclinação para "o caos totalizante" . O historiador Carl Schorske (1981, XIX) nota,
por exemplo, que, na Viena fin de siecle:
A alta cultura entrou num turbilhão de inovação infinita, cada campo proclamando-se independente do todo, cada parte dividindo-se, por sua vez, em
partes. Para a implacável centrifugadora da mudança foram atraídos os próprios conceitos mediante os quais os fenômenos culturais poderiam ser fixados
no pensamento. Não somente os produtores da cultura, como também os seus
analistas e críticos, foram atingidos pela fragmentação.
O poeta W. B. Yeats captou essa mesma disposição nos versos:
Things fali apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world.*
Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do
efêmero, do fragmentário e do contingente, há algumas profundas conseqüências.
Para começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu próprio passado,
para não falar do de qualquer ordem social pré-moderna. A transitoriedade das
coisas dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há
algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo a partir de dentro do
turbilhão da mudança, um turbilhão que afeta tanto os termos da discussão como
o que está sendo discutido. A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve
uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes,
como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações
internas inerentes. Uma vanguarda sempre desempenhou, como registram Poggioli
(1968) e Bürger (1984), um papel vital na história do modernismo, interrompendo
todo sentido de continuidade através de alterações, recuperações e repressões radicais. Como interpretar isso, como descobrir os elementos "eternos e imutáveis" em
meio a essas disrupções radicais, é o problema. Mesmo que o modernismo sempre
tenha estado comprometido com a descoberta, como disse o pintor Paul Klee, do
"caráter essencial do acidental", ele agora precisava fazê-lo num campo de sentidos continuamente mutantes que com freqüência pareciam "contradizer a experiência racional de ontem" . As práticas e juízos estéticos fragmentaram-se naquele
tipo de "livro de rabiscos de um maníaco, cheio de itens coloridos que não têm
nenhuma relação entre si, nenhum esquema determinante, racional ou econômico", que Raban descreve como aspecto essencial da vida urbana.
[As coisas se desfazem; o centro não se sustém; /
A pura anarquia está solta no mundo.]
MODERNIDADE E MODERNISMO
23
Onde, em tudo isso, poderíamos procurar algum sentido de coerência, para
não falar da necessidade de dizer alguma coisa consistente sobre o eterno e imutável" que se supunha espreitar nesse turbilhão de mudança social no espaço e no
tempo? Os pensadores iluministas geraram uma resposta filosófica e até prática
para essa pergunta. Como essa resposta dominou boa parte do debate subseqüente
acerca do sentido da modernidade, cabe examiná-la mais de perto.
Embora o termo "moderno" tenha uma história bem mais antiga, o que
Habermas (1983, 9) chama de projeto da modernidade entrou em foco durante o
século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos
pensadores iluministas "para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei
universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas". A idéia
era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre
e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida
diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia
a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do
uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza
humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas.
O pensamento iluminista (e, aqui, sigo Cassirer, 1951) abraçou a idéia do progresso e buscou ativamente a ruptura com a história e a tradição esposada pela
modernidade. Foi, sobretudo, um movimento secular que procurou desmistificar e
dessacralizar o conhecimento e a organização social para libertar os seres humanos
de seus grilhões. Ele levou a injunção de Alexander Pape de que o estudo próprio
da humanidade é o homem" muito a sério. Na medida em que ele também saudava a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do progresso humano, os pensadores iluministas acolheram o
turbilhão da mudança e viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário como
condição necessária por meio da qual o projeto modernizador poderia ser realizado. Abundavam doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana (uma
Yez permitidos os benefícios da educação) e razão universal. "Uma boa lei deve ser
boa para todos", pronunciou Condorcet às vésperas da Revolução Francesa, exatamente da mesma maneira como uma proposição verdadeira é verdadeira para
todos". Essa visão era incrivelmente otimista. Escritores como Condorcet, observa
Habermas (1983, 9), estavam possuídos da extravagante expectativa de que as
artes e as ciências iriam promover não somente o controle das forças naturais como
também a compreensão do mundo e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos" .
O século XX - com seus campos de concentração e esquadrões da morte, seu
militarismo e duas guerras mundiais, sua ameaça de aniquilação nuclear e sua
experiência de Hiroshima e Nagasaki- certamente deitou por terra esse otimismo. Pior ainda, há a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a
voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num
sistema de opressão universal em nome da libertação humana. Foi essa a atrevida
ese apresentada por Horkheimer e Adorno em The dialectic of Enlightenment (1972).
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Escrevendo sob as sombras da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stálin, eles
alegavam que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma
lógica da dominação e da opressão. A ânsia por dominar a natureza envolvia o
domínio dos seres humanos, o que no final só poderia levar a "uma tenebrosa
condição de autodominação" (Bernstein, 1985, 9). A revolta da natureza, que eles
apresentavam como a única saída para o impasse, tinha portanto de ser concebida
como uma revolta da natureza humana contra o poder opressor da razão puramente instrumental sobre a cultura e a personalidade.
Saber se o projeto do Iluminismo estava ou não fadado desde o começo a nos
mergulhar num mundo kafkiano, se tinha ou não de levar a Auschwitz e Hiroshima
e se lhe restava ou não poder para informar e inspirar o pensamento e a ação
contemporâneos são questões cruciais. Há quem, como Habermas, continue a apoiar
o projeto, se bem que com forte dose de ceticismo quanto às ·suas metas, muita
angústia quanto à relação entre meios e fins e certo pessimismo no tocante à possibilidade de realizar tal projeto nas condições econômicas e políticas contemporâneas. E há também quem - e isso é, como veremos, o cerne do pensamento
filosófico pós-modernista- insista que devemos, em nome da emancipação humana, abandonar por inteiro o projeto do Iluminismo. A posição a tomar depende de
como se explica o "lado sombrio" da nossa história recente e do grau até o qual o
atribuímos aos defeitos da razão iluminista, e não à falta de sua correta aplicação.
Com efeito, o pensamento iluminista internalizava uma imensa gama de problemas e não possuía poucas contradições incômodas. Para começar, a questão da
relação entre meios e fins era onipresente, enquanto os alvos em si nunca podiam
ser especificados precisamente exceto em termos de algum plano utópico que com:
freqüência parecia tão opressor para alguns quanto emancipador para outros. Além
disso, a questão de determinar de maneira exata quem podia considerar-se possuidor da razão superior e sob que condições essa razão deveria ser exercida como
poder tinha de ser honestamente enfrentada. A humanidade vai ter de ser forçada
a ser livre, disse Roussean; e os jacobinos da Revolução Francesa começaram sua
prática política onde o pensamento filosófico de Rousseau tinha parado. Francis
Bacon, um dos precursores do pensamento iluminista, concebeu em seu tratado
utópico Nova Atlântida uma casa de sábios que seriam os guardiães do conhecimento, os juízes éticos e os verdadeiros cientistas; enquanto vivessem no mundo exterior a vida diária da comunidade, eles exerceriam sobre esta uma extraordinária
força moral. A essa concepção de uma sabedoria de elite, mas coletiva, masculina
e branca, outros opunham a imagem de um individualismo sem peias de grandes
pensadores, os grandes benfeitores da humanidade, que, por intermédio de suas
lutas e esforços singulares, levariam a razão e a civilização do nada ao ponto da
verdadeira emancipação. Outros afirmavam ou que havia alguma teleologia inerente em ação (talvez até de inspiração divina) a que o espírito humano estava
fadado a responder, ou que existia algum mecanismo social, tal como a celebrada
mão invisível do mercado proposta por Adam Snüth, que converteria até o mais
dúbio sentimento moral num resultado vantajoso para todos. Marx, que em muitos
aspectos era filho do pensamento iluminista, buscou transformar o pensamento
utópico - a luta para os seres humanos realizarem sua "natureza específica",
como ele dizia em suas primeiras obras - numa ciência mate1ialista ao mostrar
MODERNIDADE E MODERNISMO
25
que a emancipação humana universal poderia emergir da lógica classista e evidentemente repressiva, embora contraditória, do desenvolvimento capitalista. Ao fazê-lo, concentrou-se na classe trabalhadora como agente da libertação e da emancipação humanas precisamente por ser ela a classe dominada da moderna sociedade
capitalista. Só quando os produtores diretos tivessem o controle do seu próprio
destino, argumentava ele, poderíamos alimentar a esperança de substituir o domínio e a repressão por um reino de liberdade social. Mas se "o reino da liberdade
só começa quando o reino da necessidade é superado", então o lado progressista
da história burguesa (em particular a sua criação de enormes forças produtivas)
tinha de ser plenamente reconhecido, e os resultados positivos da racionalidade
ilumüústa, plenamente apropriados.
O projeto da modernidade nunca deixou de ter seus críticos. Edmund Burke
não fez nenhum esforço para esconder as suas dúvidas e o seu desgosto com os
excessos da Revolução Francesa. Malthus, rebatendo o otimismo de Condorcet,
mostrou a impossibilidade de um dia se escapar das amarras da escassez natural
e da necessidade. Sade também revelou que poderia haver uma dimensão da libertação humana bem distinta da concebida no pensamento iluminista convencional.
E, no início do século XX, dois grandes críticos, com posições bem diferentes,
imprimiram sua marca no debate. Em primeiro lugar, Max vVeber, cujo argumento
fulcral é resumido por Bernstein, um protagonista-chave do debate sobre a modernidade e seus significados, da seguüüe maneira:
Weber alegava que a esperança e a expectativa dos pensadores iluministas era
uma amarga e irônica ilusão. Eles mantinham um forte vínculo necessário
entre o desenvolvimento da ciência, da racionalidade e da liberdade humana
universal. Mas, quando desmascarado e compreendido, o legado do Iluminismo
foi o triunfo da racionalidade ... proposital-instrumental. Essa forma de
racionalidade afeta e infecta todos os planos da vida social e cultural, abrangendo as estruturas econômicas, o direito, a administração burocrática e até as
artes. O desenvolvimento da [racionalidade proposital-instrumental] não leva
à realização concreta da liberdade universal, mas à criação de uma "jaula de
ferro" da racionalidade burocrática da qual não há como escapar (Bernstein,
1985, 5).
Se a "sóbria advertência" de Weber soa como o epitáfio da razão iluminista, o
ataque anterior de Nietzsche às suas próprias premissas deve por certo ser considerado a sua nêmese. Era como se Nietzsche mergulhasse por inteiro no outro lado
da formulação de Baudelaire para mostrar que o moderno n ão era senão uma
energia vital, a vontade de viver e d e poder, nadan do num mar d e desordem,
anarquia, destruição, alienação individual e desespero. "Sob a superfície da vida
moderna, dominada pelo conhecimento e pela ciência, ele discernia energias vitais
selvagens, primitivas e completamente impiedosas" (Bradbury e McFarlane, 1976,
446). Todo o conjunto d e imagens iluministas sobre a civilização, a razão, os direios universais e a moralidade de nada valia. A essência eterna e imutável da humanidade encontrava sua representação adequada na figura mítica de Dioniso:
Ser a um só e mesmo tempo 'destrutivamente criativo' (isto é, formar o mundo
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
temporal da individualização e do vir-a-ser, um processo destruidor da unidade)
e 'criativamente destrutivo' (isto é, devorar o universo ilusório da individualização,
um processo que envolve a reação da unidade)" (loc. cit.). O único caminho para
a afirmação do eu era agir, manifestar a vontade, no turbilhão da criação destrutiva
e da destruição criativa, mesmo que o desfecho esteja fadado à tragédia.
A imagem da "destruição criativa" é muito importante para a compreensão da
modernidade, precisamente porque derivou dos dilemas práticos enfrentados pela
implementação do projeto modernista. Afinal, como poderia um novo mundo ser
criado sem se destruir boa parte do que viera antes? Simplesmente não se pode
fazer um omelete sem quebrar os ovos, como o observou toda uma linhagem de
pensadores modernistas de Goethe a Mao. O arquétipo literário desse dilema é,
como Bennan (1982) e Lukács (1969) assinalam, o Fausto de Goethe. Um herói épico
preparado para destruir mitos religiosos, valores tradicionais e modos de vida
costumeiros para construir um admirável mundo novo a partir das cinzas do antigo,
Fausto é, em última análise, uma figura trágica. Sintetizando pensamento e ação,
Fausto obriga a si mesmo e a todos (até a Mefistófeles) a chegar a extremos de
organização, de sofrimento e de exaustão, a fim de dominar a natureza e criar uma
nova paisagem, uma sublime realização espiritual que contém a potencialidade da
libertação humana dos desejos e necessidades. Preparado para eliminar tudo e
todos os que se ponham no caminho da concretização dessa visão sublime, Fausto,
para o seu próprio horror último, faz Mefistófeles matar um velho casal muito
amado que vive numa casinha à beira-mar por nenhuma outra razão além do fato
de não se enquadrar no plano do mestre. "Parece", diz Berman (1982), "que o
próprio processo de desenvolvimento, na medida em que transforma o deserto
num espaço social e físico vicejante, recria o deserto no interior do próprio agente
de desenvolvimento. Assim funciona a tragédia do desenvolvimento."
Há várias figuras modernas - Haussmann trabalhando na Paris do Segundo
Império e Robert Moses na Nova Iorque pós-Segunda Guerra Mundial - para dar
à figura da destruição criativa uma estatura superior à do mito (ilustrações 1.3, 1.4).
Mas vemos aqui em ação, com uma aparência bem distinta, a oposição entre o
efêmero e o eterno. Se o modernista tem de destruir para criar, a única maneira de
representar verdades eternas é um processo de destruição passível de, no final,
destruir ele mesmo essas verdades. E, no entanto, somos forçados, se buscamos o
eterno e imutável, a tentar e a deixar a nossa marca no caótico, no efêmero e no
fragmentário. A imagem nietzschiana da destruição criativa e da criação destrutiva
estabelece uma ponte entre os dois lados da formulação de Baudelaire de uma
nova maneira. Note-se é que o economista Schumpeter empregou essa mesma
imagem para compreender os processos do desenvolvimento capitalista. O empreendedor, que Schumpeter considera uma figura heróica, era o destruidor criativo
par excellence porque estava preparado para levar a extremos vitais as conseqüências da inovação técnica e social. E era somente através desse heroísmo criativo que
se podia garantir o progresso humano. Para Schumpeter, a destruição criativa era
o leitmotif progressista do desenvolvimento capitalista benevolente. Para outros,
era tão só a condição necessária do progresso do século XX. Eis Gertrude Stein
escrevendo sobre Picasso em 1938:
MODERNIDADE E MODERNISMO
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Do mesmo modo como tudo se autodestrói no século XX e nada continua, o
século XX tem um esplendor todo seu, e Picasso é do seu século, sendo dotado
da estranha qualidade de uma terra que ninguém jamais viu e de coisas
destruídas de uma-maneira que ninguém nunca viu. Assim, pois, Picasso tem
o seu esplendor.
Proféticas palavras e profética concepção essa, por parte de Schumpeter e Stein,
nos anos que precederam o maior evento da história da destruição criativa do
capitalismo - a Segunda Guerra Mundial.
No começo do século XX, e em especial depois da intervenção de Nietzsche,
já não era possível dar à razão iluminista uma posição privilegiada na definição da
essência eterna e imutável da natureza humana. Na medida em que Nietzsche dera
início ao posicionamento da estética acima da ciência, da racionalidade e da política, a exploração da experiência estética- "além do bem e do mal"- tornou-se
um poderoso meio para o estabelecimento de uma nova mitologia quanto àquilo
a que o eterno e imutável poderia referir-se em meio a toda a efemeridade, fragmentação e caos patente da vida moderna. Isso deu um novo papel e imprimiu um
novo ímpeto ao modernismo cultural.
Nessa nova concepção do projeto modernista, artistas, escritores, arquitetos,
compositores, poetas, pensadores e filósofos tinham uma posição bem especial. Se
o "eterno e imutável" não mais podia ser automaticamente pressuposto, o artista
moderno tinha um papel criativo a desempenhar na definição da essência da
humanidade. Se a "destruição criativa" era uma condição essencial da modernidade, talvez coubesse ao artista como indivíduo uma função heróica (mesmo que as
ilustração 1.3 A destruição criativa de Haussmm m na Paris do Segundo Império:
a reconstrução da Praça Saint-Germain.
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.4 A arte parisiense de boulevard atacando a destruição modernista do
antigo tecido urbano: um cartum de ]. F. Batellier em "Sans Retour, Ni Consigne".
conseqüências pudessem ser trágicas). O artista, alegou Frank Lloyd Wright- um
dos maiores arquitetos modernistas -, deve não somente compreender o espírito
de sua época como iniciar o processo de sua mudança.
Deparamos aqui com um dos mais sugestivos, mas para muitos profundamente perturbador, aspectos da história modernista. Porque, quando Rousseau substituiu a famosa máxima de Descartes "Penso, logo existo" por "Sinto, logo existo",
assinalou uma mudança radical de uma estratégia racional e instrumentalista para
uma estratégia mais conscientemente estética de realização das metas iluministas.
Mais ou menos na mesma época, Kant também reconheceu que o juízo estético
tinha de ser elaborado independentemente da razão prática Quízo moral) e da
compreensão (conhecimento científico), e que formava uma ponte necessária, embora
problemática, entre as duas. A exploração da estética como domínio cognitivo
distinto foi em larga medida uma questão do século XVIII. Surgiu em parte da
necessidade de chegar a um acordo com a imensa variedade de artefatos culturais,
produzidos sob condições sociais bem diferentes, que o crescente comércio e contato cultural revelavam. Os vasos Ming, as urnas gregas e a porcelana de Dresden
expressavam algum sentimento comum de beleza? Mas essa exploração também
surgiu da mera dificuldade da tradução dos princípios iluministas da compreensão
racional e científica em princípios morais e políticos apropriados à ação. Foi nessa
MODERNIDADE E MODERNISMO
29
lacuna que Nietzsche mais tarde iria inserir sua potente mensagem, a de que a arte
e os sentimentos estéticos tinham o poder de ir além do bem e do mal, com efeitos
tão devastadores. A busca da experiência estética como fim em si mesma se tornou,
com efeito, o marco do movimento romântico (exemplificado por, digamos, Shelley
e Byron). Ela gerou a onda de "subjetivismo radical", de "individualismo desenfreado" e de "busca da auto-realização individual" que, ao ver de Daniel Bell
(1978), há muito tinha estabelecido um conflito fundamental entre o comportamento cultural e as práticas artísticas modernistas e a ética protestante. O hedonismo
se integra mal, segundo Bell, à poupança e ao investimento que supostamente
alimentam o capitalismo. Seja qual for o nosso modo de encarar a tese de Bell, é
por certo verdade que os românticos abriram o caminho para as intervenções estéticas ativas na vida cultural e política, intervenções antecipadas por escritores
como Condorcet e Saint-Simon. Este último insistia, por exemplo, em que,
Seremos nós, artistas, que serviremos a vocês de vanguarda. Que belo destino
para as artes, o de exercer sobre a sociedade um poder positivo, uma verdadeira função sacerdotal, e de marchar vigorosamente na dianteira de todas as
faculdades intelectuais na época do seu maior desenvolvimento! (citado em
Bell, 1978, 35; cf. Poggioli, 1968, 9).
O problema desses sentimentos é o fato de verem o vínculo estético entre
ciência e moralidade, entre conhecimento e ação, de maneira a "nunca serem
ameaçados pela evolução histórica" (Raphael, 1981, 7). O juízo estético, como nos
casos de Heidegger e Pound, podia levar com a mesma facilidade para a direita ou
para a esquerda do espectro político. Como Baudelaire logo percebeu, se o fluxo
e a mudança, a efemeridade e a fragmentação formavam a base material da vida
moderna, então a definição de uma estética modernista dependia de maneira crucial
o posicionamento do artista diante desses processos. O artista individual podia
contestá-los, aceitá-los, tentar dominá-los ou apenas circular entre eles, mas o artista
nunca os poderia ignorar. O efeito de qualquer dessas tomadas de posição era, na
' 'erdade, alterar o modo como os produtores culturais pensavam o fluxo e a mudança,
bem como os termos políticos mediante os quais representavam o eterno e imutável.
As reviravoltas do modernismo como estética cultural podem ser largamente compreendidas contra o pano de fundo dessas escolhas estratégicas.
Não posso revisar aqui a vasta e complexa história do modernismo cultural
desde os seus primórdios na Paris pós-1848. Mas é preciso, se quisermos compreender a reação pós-moderna, examinar alguns pontos gerais. Se voltarmos à formulação de Baudelaire, por exemplo, vemo-lo definindo o artista como alguém
capaz de concentrar a visão em elementos comuns da vida da cidade, compreender
suas qualidades fugidias e ainda assim extrair, do momento fugaz, todas as sugesões de eternidade nele contidas. O artista moderno bem-sucedido era alguém
c_apaz de desvelar o universal e o eterno, "destilar o sabor amargo ou impetuoso
o vinho da vida" a partir do efêmero, das formas fugidias de beleza dos nossos
dias" (Baudelaire, 1981, 435). Na medida em que a arte modernista conseguiu fazer
isso, ela se tornou a nossa arte, precisamente porque é a arte que responde ao
enário do nosso caos" (Bradbury e McFarlane, 1976, 27).
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Mas como, em meio a todo o caos, representar o eterno e o imutável? Considerando-se que o naturalismo e o realismo se mostraram inadequados (ver adiante,
p. 239), o artista, o arquiteto e o escritor tinham de encontrar alguma maneira
especial de representá-los. Por conseguinte, desde o começo, o modenúsmo se
preocupava com a linguagem, com a descoberta de alguma modalidade especial de
representação de verdades eternas. A realização individual dependia da inovação
na linguagem e nas formas de representação, disso resultando que a obra modernista, como Lunn (1985, 41) observa, "com freqüência revela voluntariamente sua
própria realidade de construção ou artifício", transformando assim boa parte da
arte num" constmcto auto-referencial, em vez de um espelho da sociedade". Escritores como James Joyce e Proust, poetas como Mallanné e Aragon, pintores como
-Manet, Pissarro, Jackson Pollock mostravam uma tremenda preocupação com a
criação de novos códigos, novas significações e novas alusões metafóricas nas
linguagens que construíam. Mas se a palavra era de fato fugidia, efêmera e caótica, o artista tinha, por essa mesma razão, de representar o eterno através de um
efeito instantâneo, tornando "a tática do choque e a violação das continuidades
· esperadas" vitais para fazer chegar ao destino a mensagem que o artista procurava
't ransmitir.
O modernismo só podia falar do eterno ao congelar o tempo e todas as suas
qualidades transitórias. Para o arquiteto, encarregado de projetar e construir uma
estrutura espacial relativamente permanente, tratava-se de uma proposição bem
simples. A arquitetura, escreveu Mies van der Rohe nos anos 20, "é a vontade da
época concebida em termos espaciais". Mas, para outros, a "espacialização do tempo" através da imagem, do gesto dramático e do choque instantâneo, ou, simplesmente, pela montagem/ colagem, era mais problemática. T. S. Eliot debruçou-se
sobre o problema em Four Quartets da seguinte maneira:
To be conscious is not to be in time
But only in time can the moment in the rose-garden,
The moment in the arbour where the rain beat,
Be remembered; involved with past and future.
Only through time time is conquered.*
O recurso às técnicas da montagem / colagem fornecia um meio de tratar desse
problema, visto que diferentes efeitos extraídos de diferentes tem.pos (velhos jornais) e espaços (o uso de objetos comuns) podiam ser superpostos para criar um
efeito simultâneo. Ao explorar a simultaneidade desse modo, "os modernistas
estavam aceitando o efêmero e transitório como locus de sua arte", ao mesmo
tempo que eram forçados coletivamente a reafirmar o poder das próprias condições contra as quais reagiam. Le Corbusier reconheceu o problema em seu tratado
* [Ser consciente é não ser no tempo /
Mas só no tempo pode o instante no canteiro de rosas,/
O instante na pérgola onde a chuva cai, /
Ser lembrado; envolvido no passado e no fu turo. /
Só pelo tempo é o tempo conquistado.]
MODERNIDADE E MODERNISMO
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de 1924, The city of tomorrow. "As pessoas me rotulam com muita facilidade de
revolucionário", queixava-se ele; mas o "equilíbrio que elas tanto tentam manter é,
_ r razões vitais, puramente efêmero: é um equilíbrio que precisa ser perpetuamente restabelecido." Além disso, a própria inventividade de todas aquelas menes ávidas capazes de perturbar" o equilíbrio produzia as qualidades efêmeras e
transitórias do próprio juízo estético, mais acelerando do que reduzindo o ímpeto
das modas estéticas: impressionismo, pós-impressionismo, cubismo, fauvismo,
dadaísmo, surrealismo, expressionismo etc. "A vanguarda", comenta Poggioli em
seu tão lúcido estudo da história desta, está condenada a conquistar, pela influênàa da moda, a própria popularidade que um dia desdenhou - e isso é o começo
o fin1."
Além disso, a mercadificação e comercialização de um mercado de produto ~
culturais durante o século XIX (e o concomitante declínio do patronato aristocrá-c
·co, estatal ou institucional) forçaram os produtores culturais a seguir uma formae.. ...1
e competição de mercado que viria a reforçar processos de "destruição criativa" '& c
o interior do próprio campo estético. Isso refletiu e, em alguns casos, antecipou .J ~
alguma coisa que ocorria na esfera político-econômica. Todos os artistas procura- C
am mudar as bases do juízo estético, ao menos para vender seu próprio produto. ~. t.l
Isso também dependia da formação de uma classe distinta de consumidores cul- ~~ <.
tnrais". Os artistas, apesar de sua predileção por uma retórica antiestablishment e ~L ~
antiburguesa, gastavam muito mais energia lutando entre si e com as suas próprias
rradições para vender seus produtos do que o faziam engajando-se na ação política é.. ":&
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A luta para reproduzir uma obra de arte, uma criação definitiva capaz de encon:rcir um lugar ímpar no mercado, tinha de ser um esforço individual forjado em
drcunstâncias competitivas. Portanto, a arte modernista sempre foi o que Benjamin
~eno mina "arte áurica", no sentido de que o artista tinha de assumir uma aura de
::tiatividade, de dedicação à arte pela arte, para produzir um objeto cultural origi- , sem par e, portanto, eminentemente mercadejável a preço de monopólio . O
~ltado era muitas vezes uma perspectiva altamente individualista, aristocrática,
::..esdenhosa (particularmente da cultura popular) e até arrogante da parte dos
::--rodutores culturais, mas também indicava como a nossa realidade poderia ser
nstruída e reconstruída através da atividade informada pela estética. Podia ser,
melhor das hipóteses, algo profundamente comovente, desafiador, incômodo
exortativo para muitos que a ele estavam expostos. Reconhecendo essa carac·a:ística, certas vanguardas - os dadaístas, os primeiros surrealistas - tentaram
~ obilizar suas capacidades estéticas para fins revolucionários ao fundir a sua arte
m a cultura popular. Outros, como Walter Gropius eLe Corbusier, esforçaram--se por impô-las ele cima para propósitos revolucionários similares. E não era só
opius que considerava importante "devolver a arte ao povo por meio da produção de coisas belas". O modernismo internalizou seu próprio turbilhão de ambigüi~ des, de contradições e ele mudanças estéticas pulsantes, ao mesmo tempo que
cava afetar a estética da vida diária.
Os fatos dessa viela, no entanto, tiveram mais do que uma influência passagei:a sobre a sensibilidade estética criada, por mais que os próprios artistas proclasem uma aura de "arte pela arte" . Para começar, como Benjamin (1969) assi-
tw! ID
1115
>
~
L
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
nala em seu celebrado ensaio sobre "A obra de arte na era da reprodução mecânica", a capacidade técnica mutante de reproduzir, disseminar e vender livros e
imagens a públicos de massa, e a invenção da fotografia e, depois, do filme (ao que
hoje acrescentaríamos o rádio e a televisão), mudaram radicalmente as condições
materiais de existência dos artistas e, portanto, seu papel social e político. E, sem
relação com a consciência geral do fluxo e da mudança presente em todas as obras
modernistas, um fascínio pela técnica, pela velocidade e pelo movimento, pela
máquina e pelo sistema fabril, bem como pela cadeia de novas mercadorias que
penetravam na vida cotidiana, provocou uma ampla gama de respostas estéticas
que iam da negação à especulação sobre possibilidades utópicas, passando pela
imitação. Logo, como Reyner Banham (1984) mostra, os primeiros arquitetos modernistas, como Mies van der Rohe, tiraram muito de sua inspiração dos silos para
cereais com elevadores, puramente funcionais, que então surgiam por todo o Meio
Oeste americano. Le Corbusier, em seus planos e escritos, tomou o que viu como
possibilidades inerentes à era da máquina, da fábrica e do automóvel e as projetou
em algum futuro utópico (Fishman, 1982). Tichi (1987, 19) documenta que revistas
americanas populares como Good Housekceping descreviam a casa como "nada mais
do que uma fábrica para a produção de felicidade" já em 1910, anos antes de Le
Corbusier apresentar seu celebrado (e hoje muito rejeitado) ditado de que a casa
é uma máquina para a vida moderna".
É importante ter em mente, portanto, que o modernismo surgido antes da
Primeira Guerra Mundial era mais uma reação às novas condições de produção (a
máquina, a fábrica, a urbanização), de circulação (os novos sistemas de transportes
e comunicações) e de consumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicidade, da m.oda de massas) do que um pioneiro na produção dessas mudanças. Mas
a forma tomada pela reação iria ter uma considerável importância subseqüente. Ela
não apenas forneceu meios de absorver, codificar e refletir sobre essas rápidas
mudanças, como sugeriu linhas de ação capazes de modificá-las ou sustentá-las.
Reagindo à desprofissionalização dos artesãos por causa da máquina e da produção fabril sob o comando de capitalistas, William Morris, por exemplo, tentou
promover uma nova cultura artesã que combinava o poder da tradição artesanal
com uma forte defesa da simplicidade de desenho, da retirada de toda exibição,
de todo desperdício e de todo comodismo" (Relph, 1987, 99-107). Como Relph
assinala, Bauhaus, a tão influente unidade germânica de design fundada em 1919,
no início se inspirou muito no Arts and Crafts Movement que Morris tinha fundado, e só mais tarde (1923) se voltou para a idéia de que "a máquina é o nosso meio
moderno de design Bauhaus pôde exercer a influência que exerceu sobre a produção e o design por causa precisamente da redefinição de "ofício artesanal" como
a habilidade de produzir em massa bens de natureza esteticamente agradável com
a eficiência da máquina.
Foram d essa espécie as diversas reações que fizeram do modernismo uma
questão tão complexa e, com freqüência, contraditória. Tratava-se, escrevem
Bradbury e McFarlane (1976, 46),
11
11
11
•
de uma extraordinária combinação entre o futurista e o niilista, o revolucionário
e o conservador, o naturalista e o simbolista, o romântico e o clássico. Foi a cele-
MODERNIDADE E MODERNISMO
33
bração de uma era tecnológica e a sua condenação; uma excitada aceitação da
crença de que os velhos regimes da cultura tinham chegado ao fim e a um profundo desespero diante desse temor; uma mistura de convicções de que as novas
formas eram fugas do historicismo e das pressões da época com convicções de que
essas formas eram precisamente a expressão viva dessas coisas.
Esses elementos e oposições diversos formaram misturas bem diferentes do
sentimento e da sensibilidade modernistas em diferentes épocas e lugares:
É possível traçar mapas mostrando os centros e províncias artísticos, o equilíbrio internacional de poder cultural - nunca exatamente equivalente ao equilíbrio do poder econômico e político, mas sem dúvida com profundas relações
com ele. Os mapas mudam com a mudança da estética: Paris por certo é, para
o modernismo, o principal centro dominante, na qualidade de fonte da boêmia,
da tolerância e do estilo de vida do émigré, mas podemos sentir o declínio de
Roma e de Florença, a ascensão e queda de Londres, a fase de domínio de
Berlim e Munique, as potentes explosões da Noruega e da Finlândia, a irradiação partida de Viena como estágios essenciais da cambiante geografia do
modernismo, mapeada pelo movimento de escritores e artistas, do fluxo de
ondas de pensamento, de explosões de produção artística significativa (Bradbury
e McFarlane, 1976, 102).
Essa complexa geografia histórica do modernismo (que ainda precisa ser escrita e explicada por inteiro) torna duplamente difícil interpretar com exatidão o que
era o modernismo. As tensões entre internacionalismo e nacionalismo, globalismo
e etnocentrismo paroquial, universalismo e privilégios de classe nunca estiveram
longe da superfície. Em seus melhores momentos, o modernismo tentou enfrentar
as tensões, mas, nos seus piores, ou as varreu para baixo do tapete ou as explorou
- como fizeram os Estados Unidos em sua apropriação da arte modernista depois
de 1945 - para tirar vantagens cínicas, de cunho político (Guilbaut, 1983). O
modernismo parece bem diferente a depender de onde e quando nos localizamos.
Porque, embora o movimento como um todo tivesse uma atitude internacionalista
e universalista definida, muitas vezes buscada e concebida deliberadamente, também havia um forte apego à idéia de "uma arte de vanguarda internacional de elite
mantida numa frutífera relação com um forte sentido de lugar" (ibid., p. 157). As
particularidades do lugar- e não penso apenas nas comunidades semelhantes a
vilas em que os artistas tipicamente se moviam, mas também nas condições sociais,
econômicas, políticas e ambientais deveras distintas que prevaleciam em, digamos,
Chicago, Nova Iorque, Paris, Viena, Copenhague ou Berlim - , por conseguinte,
deixaram uma marca distintiva na diversidade do esforço modernista (ver a Parte
III adiante).
Também parece que o modernismo, depois de 1848, era em larga medida um
fenômeno urbano, tendo existido num relacionamento inquieto, mas complexo com
a experiência do crescimento urbano explosivo (com várias cidades passando da
marca do milhão no final do século), da forte migração para os centros urbanos, da
industrialização, da mecanização, da reorganização maciça dos ambientes
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34
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
construídos e de movimentos urbanos de base política de que os levantes revolucionários de Paris em 1848 e 1871 eram um símbolo claro, mas agourento. A crescente necessidade de enfrentar os problemas psicológicos, sociológicos, técnicos,
organizacionais e políticos da urbanização maciça foi um dos canteiros em que
floresceram movimentos modernistas. O modernismo era "uma arte das cidades"
e, evidentemente, encontrava "seu habitat natural nas cidades" - e Bradbury e
McFarlane reúnem uma variedade de estudos de cidades individuais para sustentar essa tese. Outros estudos, como a magnífica obra de T. J. Clark sobre a arte de
Manet e dos seus seguidores na Paris do Segundo Império, ou a síntese igualmente
brilhante de Schorske dos movimentos culturais da Viena fin-de-siecle, confirmam
quão importante foi a experiência urbana na formação da dinâmica cultural de
diversos movimentos modernistas. E foi, afinal, como reação à profunda crise da
organização, do empobrecimento e da congestão urbanos que toda uma tendência
de prática e pensamento modernista foi diretamente moldada (ver Timms e Kelley,
1985). Há uma forte cadeia de conexões que vai da reformulação de Paris nos anos
1860 por Haussmann às propostas feitas por Ebenezer Howard (a "cidade-jardim"
- 1898), Daniel Burnham (a "Cidade Branca" construída para a Feira Mundial de
Chicago de 1893 e o Plano Regional de Chicago de 1907), Garnier (a cidade industrial linear de 1903), Camilo Sitte e Otto Wagner (com planos bem diferentes para
transformar a Viena fin-de-siecle), Le Corbusier (A cidade do futuro e o Plano Voisin
proposto para a Paris de 1924), Frank Lloyd Wright (o projeto Broadacre de 1935),
chegando aos esforços de renovação urbana em larga escala feitos nos anos 50 e 60
no espírito do alto modernismo. A cidade, observa de Certeau (1984, 95), "é simultaneamente o maquinário e o herói da modernidade" .
Georg Simmel deu uma interpretação bem especial a essas conexões em seu
extraordinário ensaio "The metropolis and mental life", publicado em 1911. Ali,
Simmel contemplou a questão de como poderia responder psicológica e intelectualmente à incrível diversidade de experiências e de estímulos a que a vida urbana moderna nos expunha - e como seria possível internalizá-la. De um lado,
tínhamos sido libertados das cadeias da dependência subjetiva, tendo sido agraciados com um grau muito maior de liberdade individual. Isso, no entanto, fora
alcançado às custas de tratar os outros em termos objetivos e instrumentais. Não
havia escolha senão nos relacionarmos com "outros" sem rosto por meio do frio e
insensível cálculo dos necessários intercâmbios monetários capazes de coordenar
uma proliferante divisão social do trabalho. Também nos submetemos a uma rigorosa disciplina do nosso sentido de espaço e de tempo, rendendo-nos à hegemonia
da racionalidade econômica calculista. Além disso, a rápida urbanização produziu
o que ele chamou de "atitude blasé", porque somente afastando os complexos
estímulos advindos da velocidade da vida moderna poderíamos tolerar os seus
extremos. Nossa única saída, ele parece dizer, é cultivar um falso individualismo
através da busca de sinais de posição, de moda, ou marcas de excentricidade individual. A moda, por exemplo, combina "a atração da diferenciação e da mudança com a da similaridade e conformidade"; "quanto mais nervosa uma época, tanto
mais rapidamente mudam as suas modas, porque a necessidade da atração d a
diferenciação, um dos agentes essenciais da moda, é acompanhada de perto pelo
enlanguescer de energias nervosas" (citado em Frisby, 1985, 98).
MODERNIDADE E MODERNISMO
35
Não é meu propósito julgar a visão de Simmel (embora os paralelos e contrastes com o ensaio pós-moderno mais recente de Raban sejam muito instrutivos),
mas vê-la como uma representação de um vínculo entre a experiência urbana e o
pensamento e a prática modernistas. As qualidades do modernismo parecem ter
variado, se bem que de maneira interativa, ao longo do espectro das grandes cidades poliglotas surgidas na segunda metade do século XIX. Com efeito, certas
modalidades de modernismo alcançaram uma trajetória particular pelas capitais
do mundo, cada qual florescendo como uma arena cultural de uma espécie particular. A trajetória geográfica de Paris a Berlim, Viena, Londres, Moscou, Chicago
e Nova Iorque podia ser revertida ou reduzida a depender do tipo de prática
modernista que se tivesse em mente.
Se, por exemplo, considerássemos apenas a difusão das práticas materiais de
que o modernismo intelectual e estético retirou tanto do seu estímulo- as máquinas, os novos sistemas de transporte e comunicação, os arranha-céus, as pontes e
as maravilhas de todo tipo da engenharia, bem como a instabilidade e insegurança
incríveis que acompanharam a rápida inovação e mudança social - , os Estados
Unidos (e Chicago em particular) provavelmente deveriam ser considerados o
catalisador do modernismo a partir de mais ou menos 1870. Contudo, nesse caso,
a própria falta de resistência "tradicionalista" (feudal e aristocrática) e a aceitação
popular paralela de sentimentos amplamente modernistas (da espécie que Tichi
documenta) fizeram as obras de artistas e intelectuais bem menos importantes
como a lâmina cortante de vanguarda da mudança social. O romance populista de
uma utopia modernista, Looking backwards, de Edward Bellamy, ganhou rápida
aceitação e até originou um movimento político nos anos 1890. A obra de Edgar
Allan Poe, por outro lado, atingiu no início bem poucas honras em seu país, embora ele fosse considerado um dos grandes escritores modernistas por Baudelaire
(cujas traduções de Poe, até hoje muito populares, foram ilustradas por Manet já
em 1860). O gênio arquitetônico de Louis Sullivan também permaneceu largamente
enterrado no fermento extraordinário da modernização de Chicago. O conceito
altamente modernista que Daniel Burnham tinha do planejamento urbano racional
tendeu a se perder em sua inclinação pela ornamentação de prédios e pelo classicismo no projeto de prédios individuais. As ferozes resistências de classe e tradicionais à modernização capitalista na Europa, por outro lado, tornaram os movimentos estéticos e intelectuais do modernismo muito mais importantes como a
lâmina cortante da mudança social, conferindo à vanguarda um papel social e
político amplamente negado a ela nos Estados Unidos até 1945. Não surpreende,
pois, que a história do modernismo intelectual e estético seja muito mais
eurocentrada, com alguns centros urbanos menos progressistas ou divididos em
classes (como Paris e Viena) gerando alguns dos mais fortes fermentos.
É odioso, mas mesmo assim útil, impor a essa complexa história algumas
periodizações relativamente simples, ao menos para ajudar a compreender a que
tipo de modernismo reagem os pós-modernistas. O projeto do Iluminismo, por
exemplo, considerava axiomática a existência de uma única resposta possível a
qualquer pergunta. Seguia-se disso que o mundo poderia ser controlado e organizado de modo racional se ao menos se pudesse apreendê-lo e representá-lo de
maneira correta. Mas isso presumia a existência de um único modo correto de ·
36
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
representação que, caso pudesse ser descoberto (e era para isso que todos os
empreendimentos matemáticos e científicos estavam voltados), forneceria os meios
para os fins iluministas. Assim pensavam escritores tão diversos quanto Voltaire,
D' Alembert, Diderot, Condorcet, Hume, Adam Smith, Saint-Simon, Auguste Comte,
Matthew Arnold, Jeremy Bentham e John Stuart Mill.
Mas, depois de 1848, a idéia de que só havia um modo possível de representação começou a ruir. A fixidez categórica do pensamento iluminista foi
crescentemente contestada e terminou por ser substituída por uma ênfase em sistemas divergentes de representação. Em Paris, escritores como Baudelaire e Flaubert
e pintores como Manet começaram a explorar a possibilidade de diferentes modalidades representacionais de maneiras que lembravam a descoberta das geometrias
não-euclidianas que abalou a suposta unidade da linguagem matemática no século
XIX. Tímida a princípio, essa contestação expandiu-se a partir de 1890, gerando
uma inacreditável diversidade de pensamento e de experimentação em centros tão
distintos quanto Berlim, Viena, Paris, Munique, Londres, Nova Iorque, Chicago,
Copenhague e Moscou, chegando ao seu apogeu pouco antes da Primeira Guerra
Mundial. A maioria dos comentadores concorda que esse furor de experimentação
resulfou numa transformação qualitativa na natureza do modernismo em algum
ponto entre 1910 e 1915. (Virgínia Woolf preferia a primeira data e D. H. Lawrence,
a última.) Em retrospecto, como o documentam convincentemente Bradbury e
McFarlane, não é difícil ver que alguma c:pécie de transformação radical de fato
ocorreu nesses anos. O caminho de Swann, de Proust (1913), os Dublinenses, de Joyce
(1914), Filhos e Amantes, de Lawrence (1913), Morte em Veneza, de Mann (1914), e o
"Manifesto Vorticista", de Pound, escrito em 1914 (em que ele comparava a linguagem pura com a eficiente tecnologia da máquina), são alguns dos textos-marco
publicados numa época que também testemunhou uma extraordinária eflorescência
na arte (Matisse, Picasso, Brancusi, Duchamp, Braque, Klee, de Chirico, Kandinsky,
que exibiram muitas obras no famoso Armory Show de Nova Iorque em 1913,
obras que foram vistas por mais de 10.000 visitantes por dia), na música (O despertar da primavera, de Stravinsky, provocou uma revolução em 1913 e teve como
paralelo a chegada da música atonal de Schoenberg, Berg, Bartok e outros), para
não falar da dramática mudança na lingüística (a teoria estruturalista da linguagem de Saussure, em que o sentido das palavras é determinado antes pela sua
relação com outras palavras do que pela sua referência a objetos, foi concebida em
1911) e na física, a partir da generalização da teoria da relatividade de Einstein,
com seu recurso às, e sua justificação material das, geometrias não-euclidianas.
Igualmente significativa foi a publicação, em 1911, de Os princípios da administração
científica, de F. W. Taylor, dois anos antes de Henry Ford instalar a primeira linha
de produção em Dearborn, Michigan.
É difícil não concluir que todo o mundo da representação e do conhecimento
passou por uma transformação fundamental nesse curto espaço de tempo. Como
e por que isso ocorreu é a essência da questão. Na Parte III, exploraremos a tese
de que a simultaneidade derivou de uma radical mudança na experiência do espaço e do tempo no capitalismo ocidental. Mas há alguns outros elementus da
situação que merecem menção.
MODERNIDADE E MODERNISMO
37
As mudanças por certo foram afetadas pela perda da fé na inelutabilidade do
progresso e pelo crescente incômodo com a fixidez categórica do pensamento iluminista. Esse incômodo veio em parte do caminho turbulento da luta de classes,
em particular depois das revoluções de 1848 e da publicação do Manifesto Comunista. Antes disso, pensadores da tradição iluminista, como Adam Smith ou Saint-Simon, podiam razoavelmente alegar que, uma vez derrubadas as grades das
relações de classe feudais, um capitalismo benevolente (organizado quer pela mão
invisível do mercado ou pelo poder de associação tão defendido por Saint-Simon)
poderia trazer os benefícios da modernidade capitalista para todos. Essa tese, vigorosamente rejeitada por Marx e Engels, tornou-se menos sustentável à medida
que o século passava e as disparidades de classe produzidas no âmbito do capitalismo se tornavam cada vez mais evidentes. O movimento socialista contestava
cada vez mais a unidade da razão iluminista e inseriu uma dimensão de classe no
modernismo. Seria a burguesia ou o movimento dos trabalhadores que daria forma
e dirigiria o projeto modernista? E de que lado estavam os produtores culturais?
Para essa pergunta não podia haver uma resposta simples. Para começar, a arte
propagandística e diretamente política que se integrava a um movimento político
revolucionário tinha dificuldade para ser consistente com o cânon modernista da
arte individualista e intensamente "áurica". De fato, a idéia de uma vanguarda
artística poderia, sob certas circunstâncias, ser integrada à de um partido político
de vanguarda. De vez em quando, os partidos comunistas se esforçavam por
mobilizar "as forças da cultura" como parte de seu programa revolucionário, ao
mesmo tempo que alguns movimentos artísticos e artistas de vanguarda (Léger,
Picasso, Aragon etc.) apoiavam ativamente a causa comunista. Contudo, mesmo na
ausência de uma agenda política explícita, a produção cultural tinha de ter efeitos
p olíticos. Afinal, os artistas se relacionam com eventos e questões que os cercam,
e constroem maneiras de ver e de representar que têm significados sociais. Nos
agradáveis dias da inovação modernista pré-Primeira Guerra Mundial, por exemplo, o tipo de arte produzido celebrava universais mesmo em meio a múltiplas
p erspectivas; exprimia alienação, opunha-se a todo sentido de hierarquia (mesmo
do sujeito, como mostrou o cubismo) e, com freqüência, criticava o consumismo e os
estilos de vida "burgueses". Nessa fase, o modernismo estava bem do lado de um
espírito democratizador e do universalismo progressista, embora estivesse no auge da
concepção "áurica". Entre as guerras, por outro lado, os artistas foram cada vez mais
forçados pelos acontecimentos a explicitar seus compromissos políticos.
A mudança de tom do modernismo também decorria da necessidade de enfrentar diretamente o sentido de anarquia, de desordem e de desespero que
_lietzsche semeara numa época de espantosa agitação, insatisfação e instabilidade
na vida político-econômica - uma instabilidade que o movimento anarquista do
final do século XIX teve de enfrentar, tendo contribuído para ela de maneiras
importantes. A articulação de necessidades eróticas, psicológicas e irracionais (do
tipo que Freud identificou e Klimt representou em sua arte do livre fluxo) contribuiu para a confusão. Essa manifestação particular do modernismo, portanto, teve
de reconhecer a impossibilidade de representar o mundo numa linguagem simples. A compreensão tinha de ser construída por meio da exploração de múltiplas
perspectivas. Em resumo, o modernismo assumiu um perspectivismo e um
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38
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
relativismo múltiplos como sua epistemologia, para revelar o que ainda considerava a verdadeira.natureza de uma realidade subjacente unificada, mas complexa.
O que pode ter sido essa singular realidade de base e a sua "eterna presença"
permaneceu obscuro. Desse ponto de vista, Lênin, por exemplo, investiu contra os
erros do relativismo e do perspectivismo múltiplo em suas críticas à física "idealista" de Mach, tentando acentuar os perigos políticos e intelectuais para os quais
o relativismo informe por certo apontava. Há um sentido no qual a irrupção da
Primeira Guerra Mundiat essa vasta batalha interimperialista, justificou o argumento de Lênin. Há com certeza muitos fundamentos para afirmar que "a subjetividade modernista ... simplesmente foi incapaz de lidar com a crise em que a
Europa de 1914 foi mergulhada" (Taylor, 1987, 127).
O trauma da guerra mundial e de suas respostas políticas e intelectuais (algumas das quais analísaremos mais diretamente na Parte III) abriu caminho para
uma consideração daquilo que poderia constituir as qualidades essenciais e eternas
da modernidade relacionadas na parte inferior da formulação de Baudelaire. Na
ausência das certezas iluministas quanto à perfectibilidade do homem, a busca de
um mito apropriado à modernidade tornou-se crucial. O escritor surrealista Louis
Aragon, por exemplo, sugeriu que seu objetivo central em Paris peasant (escrito nos
anos 20) era elaborar um romance "que se apresentasse como mitologia", acrescentando "naturalmente, uma mitologia do moderno". Mas também parecia possível
construir pontes metafó1icas entre mitos antigos e modernos. Joyce escolheu Ulisses,
ao passo que Le Corbusier, segundo Frampton (1980), sempre procurou "resolver
a dicotomia entre a Estética do Engenheiro e a Arquitetura, dar à utilidade a
contribuição da hierarquia do mito" (uma prática que ele acentuou cada vez mais
em suas criações em Chandigarth e Ronchamp nos anos 60). Mas quem ou o que
estava sendo mitologizado? Foi essa a principal interrogação do chamado período
"heróico" do modernismo.
O modernismo do período entre-guerras pode ter sido "heróico", mas também
estava assolado pelo desastre. Havia uma clara necessidade de ação para reconstruir as economias devastadas pela guerra na Europa, bem como para resolver
todos os problemas de descontentamento político associados com formas capitalistas de crescimento Urbano-industrial que germinavam. A queda das crenças
iluministas unificadas e a emergência do perspectivisri1o deixavam aberta a possibilidade de dar à ação social a contribuição de alguma visão estética, de modo que
as lutas entre as diferentes correntes do modernismo passaram a ter um interesse
mais do que passageiro. E, mais do que isso, os produtores culturais o sabiam. O
modernismo estético era importante e as apostas, altas. O atrativo do mito "eterno"
tornou-se ainda mais imperativo. Mas essa busca provou ser tão confusa quanto
perigosa. "A razão, chegando a um acordo com suas origens míticas, se torna
espantosamente misturada com o mito ... O mito já é iluminismo, e o iluminismo
volta a ser mitologia" (Huyssens, 1984).
O mito ou tinha de nos redimir do "universo informe da contingência" ou,
mais programaticamente, fornecer o ímpeto para um novo projeto de ação humana. Uma ala do modernismo apelou para a imagem da racionalidade incorporada
na máquina, na fábrica, no poder da tecnologia contemporânea, ou da cidade como
"máquina viva". Ezra Pound já apresentara a tese de que a linguagem devia con-
MODERNIDADE E MODERNISMO
39
formar-se à eficiência da máquina, e, como Tichi (1987) observou, escritores modernistas tão diferentes quanto Dos Passos, Hemingway e William Carlos Williams
modelaram a sua escritura exatamente nessa proposição. Williams mantinha especificamente, por exempo, que um poema é mais ou menos como "uma máquina
feita de palavras" . E esse foi o tema que Diego Riv era celebrou tão vigorosamente
em seus extraordinários murais de Detroit e que se tornou o leitmotif de muitos
diretores progressistas de murais dos Estados Unidos durante a depressão (ilustração 1.5).
"A verdade é a significação do fato", disse Mies van der Rohe, e um sem-número de produtores culturais, em particular os que trabalhavam no e em torno
do influente movimento Bauhaus dos anos 20, se dedicaram a impor ordem racional (definindo-se "racional" pela eficiência tecnológica e pela produção via máquina) para atingir metas socialmente úteis (a emancipação humana, a emancipação
do proletariado e coisas do tipo). "Pela ordem, promover a liberdade" foi um dos
slogans de Le Corbusier, que enfatizou que a liberdade e a libertação na metrópole
contemporânea dependiam de maneira vital da imposição da ordem racional. O
modernismo assumiu no período entre-guerras uma forte tendência positivista e,
graças aos intensos esforços do Círculo de Viena, estabeleceu um novo estilo de
filosofia que viria a ter posição central no pensamento social pós-Segunda Guerra.
O positivismo lógico era tão compatível com as práticas da arquitetura modernista
q uanto com o avanço de todas as formas de ciência como avatares do controle
técnico. Foi esse o período ein que as casas e as cidades puderam ser livremente
concebidas como "máquinas nas quais viver". Também foi nesses anos que o
poderoso Congress of International Modem Architects (CIAM) se reuniu para adotar
sua celebrada Carta de Atenas de 1933, uma carta que, nos trinta anos seguintes,
iria definir amplamente o objeto da prática arquitetônica modernista.
Uma visão tão limitada das qualidades essenciais do modernismo estava bastante propensa à perversão e ao abuso. Há fortes objeções, mesmo no interior do
mo dernismo (pensemos em Tempos Modernos, de Chaplin), à idéia de que a máquina, a fábrica e a cidade racionalizada oferecem uma concepção rica o bastante para
definir as qualidades eternas da vida moderna. O problema do modernismo "heróico" foi, para resumir, o fato de que, uma vez abandonado o mito da máquina,
qualquer mito podia alojar-se na posição central da "verdade eterna" pressuposta
no projeto modernista. O próprio Baudelaire, por exemplo, dedicara seu ensaio "O
Salào de 1846" ao burguês que buscava "realizar a idéia do futuro em todas as suas
diversas formas, políticas, industriais e artísticas" . Um economista como Schumpeter
por certo teria aplaudido -isso.
Os futuristas italianos tinham tanto fascínio pela velocidade e pelo poder que
acolheram a destruição criativa e o militarismo violento a tal ponto que Mussolini
pôde tornar-se seu herói. De Chirico perdeu o interesse pela experimentação modernista depois da Primeira Guerra, e procurou uma arte comercial com raízes na
beleza clássica combinada com vigorosos cavalos e desenhos narcisistas de si mesmo
vestido em roupas históricas (tendo todas as suas obras desse tipo merecido a
aprovação de Mussolini). Também Pound, com sua avidez por conferir à linguagem a eficiência da máquina e com a sua admiração pelo poeta guerreiro
vanguardista capaz de dominar uma "multidão incapaz", tornou-se profundamen-
40
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.5 O mito da máquina dominou tanto a arte modernista
como a realista no período entre-guenas: o mural "Instrumentos do
Poder", de Thomas Hart Benton (1929), é um exemplar típico.
te ligado a um regime político (o de Mussolini) que pudesse garantir a pontualidade dos trens. Albert Speer, o arquitetp de Hitler, pode ter atacado ativamente os
princípios estéticos do modernismo em sua ressurreição de temas clássicos, mas
incorporaria muitas técnicas modernistas, pondo-as a serviço de fins nacionalistas,
com a mesma energia que os engenheiros de Hitler mostraram ao usar as práticas
dos projetos do Bauhaus na construção dos campos de concentração (ver, por
exemplo, o iluminador estudo de Lane, 1985, Architecture and politics in Germany,
1918-1945). Revelou-se possível combinar práticas atualizadas da engenharia científica, tal como incorporadas nas formas mais extremas da racionalidade técnico-burocrática e da máquina, com um mito da superioridade ariana e do sangue e do
solo da Terra-Pai. Foi exatamente assim que uma forma virulenta de "modernismo
reacionário" veio a ter o encanto que teve na Alemanha nazista, sugerindo que
todo esse episódio, embora modernista em certos aspectos, devia mais à fraqueza
do pensamento iluminista do que a alguma reversão ou progressão dialética para
uma conclusão "natural" (Herf, 1984, 233) ..
Foi um período em que as tensões sempre latentes entre internacionalismo e
nacionalismo, universalismo e política de classe foram levadas a uma contradição
absoluta e instável. Era difícil manter-se indiferente à Revolução Russa, ao crescente poder de movimentos socialistas e comunistas, ao colapso de economias e governos e à ascensão do fascismo. A arte politicamente comprometida assumiu uma
ala do movimento modernista. O surrealismo, o construtivismo e o realismo socialista procuravam mitologizar o proletariado de suas maneiras respectivas, e os
russos puseram-se a escrever isso no espaço, tal como o fez toda uma sucessão de
governos socialistas na Europa, através da criação de prédios como o celebrado
MODERNIDADE E MODERNISMO
41
Karl Marx-Hof, em Viena (projetado não somente para abrigar trabalhadores, como
também para ser um bastião de defesa militar contra qualquer ataque rural conserador lançado a uma cidade socialista). Mas as configurações eram instáveis. Assim que as doutrinas do realismo socialista foram enunciadas como um lembrete
ao modernismo burguês e ao nacionalismo fascista "decadentes", a política de
frentes populares de muitos partidos comunistas levou a um retorno à arte e à
cultura nacionalistas como um meio de a.liar as forças proletárias às forças oscilanes de classe média numa frente única contra o fascismo.
Muitos artistas de vanguarda tentaram resistir a essa referenciação social direta
e lançaram suas redes nas águas das afirmações mitológicas mais universais. T. S.
Eliot criou um virtual cadinho de imagens e linguagens advindas de todos os
cantos da terra em The Waste Land, e Picasso (entre outros) mergulhou no mundo
da arte primitiva (africana em especial) durante algumas de suas fases mais cria·vas. No período entre-guerras, havia algo de desesperado na busca de uma miologia que pudesse de algum modo aprumar a sociedade naquela época conturada. Raphael (1981, xii) captura os dilemas em sua cortante mas simpática crítica
e Guernica, de Picasso:
As razões pelas quais Picasso foi compelido a recorrer a signos e alegorias
deveriam agora estar bem claras: seu profundo desamparo político diante de
uma situação histórica que ele se propusera registrar; seu titânico esforço para
enfrentar um evento histórico particular com uma verdade alegadamente eterna; seu desejo de dar esperança e conforto e de fornecer um final feliz, para
compensar o terror, a destruição e a desumanidade do evento. Picasso não viu
o que Goya já vira, isto é, que o curso da história só pode ser mudado por
meios históricos e apenas se os homens moldarem a sua própria história, em
vez de agirem como o autômato de um poder terreno ou de uma idéia
alegadamente eterna.
Infelizmente, como sugeriu Georges Sorel (1974) em sua brilhante obra Reflexões sobre a Violência, publicada pela primeira vez em 1908, era possível inventar
mitos que tivessem o poder de superar a política de classe. O sindicalismo do tipo
ue Sorel promovera originou-se como movimento participativo da esquerda, proiundamente antagônico a todas as formas de poder do Estado, mas evoluiu para
um movimento corporativista (atraente para alguém como Le Corbusier nos anos
30) que se tornou um poderoso instrumento de organização da direita fascista. Ao
fazê-lo, foi capaz de apelar para certos mitos de uma comunidade hierarquicamene organizada, mas mesmo assim participativa e exclusiva, com uma clara identidade e estreitos vínculos sociais, repleta dos seus próprios mitos de origem e d e
onipotência. É instrutivo observar o quanto o fascismo aproveitou referências clássicas (arquitetônicas, políticas, históricas) e construiu concepções mitológicas correspondentes. Raphael (1981, 95) sugere uma interessante razão: os gregos "sempre
·veram consciência do caráter nacional da sua mitologia, ao passo que os cristãos
:empre atribuíram à sua um valor independente do espaço e do tempo" . O filósofo
alemão Heidegger também baseou em parte sua lealdade aos princípios (senão às
práticas) do n azism o em sua rejeição de uma racionalidade d e máquina
42
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
universalizante como mitologia apropriada para a vida moderna. Ele propôs, em
vez disso, um contramito de enraizamento no lugar e de tradições atreladas ao
ambiente como o único fundamento seguro para a ação social e política num mundo
manifestamente conturbado (ver Parte III). A estetização da política através da
produção desses mitos todo-abrangentes (de que o nazismo era apenas um exemplo) foi o lado trágico do projeto modernista, lado que ficou cada vez mais saliente
à medida que a era "heróica" chegava, trôpega, ao fim na Segunda Guerra Mundial.
Enquanto o modernismo dos anos entre-guerras era "heróico" mas acossado
pelo desastre, o modernismo "universal" ou "alto" que conseguiu hegemonia depois de 1945 exibia uma relação muito mais confortável com os centros de poder
dominantes da sociedade. A contestada busca de um mito apropriado pareceu
receder em parte, suspeito eu, porque o sistema de poder internacional - organizado, como veremos na Parte li, ao longo de linhas fordistas-keynesianas, sob os
olhos vigilantes da hegemonia norte-americana- se tornou relativamente estável.
A arte, a arquitetura, a literatura etc. do alto modernismo tornaram-se artes e
práticas do establishment numa sociedade em que uma versão capitalista corporativa
do projeto iluminista de desenvolvimento para o progresso e a emancipação humana assumira o papel de dominante político-econômica.
A crença "no progresso linear, nas verdades absolutas e no planejamento racional de ordens sociais ideais" sob condições padronizadas de conhecimento e de
produção era particularmente forte . Por isso, o modernismo resultante era "positivista, tecnocêntrico e racionalista", ao mesmo tempo que era imposto como a obra
de uma elite de vanguarda formada por planejadores, artistas, arquitetos, críticos
e outros guardiães do gosto refinado. A "modernização" de economias européias
ocorria velozmente, enquanto todo o impulso da política e do comércio internacionais era justificado como o agente de um benevolente e progressista "processo de
modernização" num Terceiro Mundo atrasado.
Na arquitetura, por exemplo, as idéias do CIAM, de Le Corbusier e de Mies
van der Rohe tinham a primazia na luta para revitalizar cidades envelhecidas ou
arrasadas pela guerra (reconstrução e renovação urbana}, reorganizar sistemas de
transporte, construir fábricas, hospitais, escolas, obras públicas de todos os tipos e,
por último, mas não menos importante, construir habitações para uma classe trabalhadora potencialmente inquieta. É fácil, em retrospecto, argumentar que a arquitetura resultante apenas produzia impecáveis imagens de poder e de prestígio
para corporações e governos conscientes da publicidade, enquanto desenvolvia
projetos modernistas de habitação popular que se tornaram "símbolos de alienação
e de desumanização" (Huysses, 1984, 14; Frampton, 1980). Mas também é possível
dizer que, se se desejavam encontrar soluções capitalistas para os dilemas do desenvolvimento e da estabilização político-econômica pós-guerra, era necessário
algum tipo de planejamento e industrialização em larga escala na indústria da
construção, aliado à exploração de técnicas de transporte de alta velocidade e de
desenvolvimento de alta densidade. Em muitos desses aspectos, o alto modernismo teve bastante sucesso.
Seu real lado inferior estava, sugiro, em sua celebração subterrânea do poder
e da racionalidade burocráticos corporativos, sob o disfarce de um retorno ao culto
MODERNIDAbE E MODERNISMO
43
- uperficial da máquina eficiente como mito capaz de encarnar todas as aspirações
humanas. Na arquitetura e no planejamento, isso significava desprezar o ornameno e a personalização (a ponto de os inquilinos das casas públicas não poderem
modificar o ambiente para atender a necessidades pessoais e de os alunos que
:iviam no Pavilhão Suíço de Le Corbusier terem de torrar todos os verões porque
o arquiteto se recusava, por razões estéticas, a permitir a instalação de persianas).
ignificava ainda uma enorme paixão pelos espaços e perspectivas maciços, pela
uniformidade e pelo poder da linha reta (sempre superior à curva, pronunciou Le
Corbusier. Space, time and architecture, de Giedion, publicado pela primeira vez em
1941, tornou~se a Bíblia estética desse movimento. A grande literatura modernista
de Joyce, Proust, Eliot, Lawrence, Faulkner- antes julgada subversiva, incompreensível ou chocante - foi üicorporada e canonizada pelo establishment (em universidades e nas grandes revistas literárias).
O relato de Guilbaut (1983) em How New York stole the idea of modem art é
instrutivo aqui, não apenas por causa das múltiplas ironias que a história revela.
Os traumas da Segunda Guerra e da experiência de Hiroshima e Nagasaki eram,
al como os traumas da Primeira Guerra, difíceis de absorver e de representar de
maneira realista, e a inclinação para o expressionismo abstrato por parte de pinto~es como Rothko, Gottlieb e Jackson Pollock refletia conscientemente essa necessiade, embora as suas obras tenham se tornado centrais por razões bem diferentes.
ara começar, a luta contra o fascismo era descrita como uma luta para defender
cultura e a civilização ocidentais do barbarismo. Explicitamente rejeitado pelo
· cismo, o modernismo internacional nos Estados Unidos "confundiu-se com a
ltura definida em termos mais amplos e abstratos". O problema é que o mo der. mo internacional tinha exibido fortes tendências socialistas, e até propagandis' nos anos 30 (por meio do surrealismo, do construtivismo e do realismo soda. ta). A despolitização do modernismo, que ocorreu com a ascensão do expressio. mo abstrato, pressagiou ironicamente sua assimilação pelo establishment político
i! cultural como arma ideológica na Guerra Fria. A arte era suficientemente plena
e alienação e ansiedade, e bastante expressiva da fragmentação violenta e da
estruição criativa (temas que por certo eram apropriados à era nuclear) para ser
usada como um maravilhoso exemplo do compromisso norte-americano com a
:.íberdade de expressão, com o individualismo exacerbado e com a liberdade de
criação. Embora a repressão macarthista fosse dominante, as corajosas telas de
ackson Pollock provavam que os Estados Unidos eram um bastião de ideais liberais num mundo ameaçado pelo totalitarismo comunista. Nessa virada, havia aina uma reviravolta mais tortuosa. "Agora que a América é reconhecida como o
entro em que a arte e os artistas de todo o mundo devem se encontrar", escreveram Gottlieb e Rothko em 1943, "chegou o momentG de aceitarmos valores culturais num plano verdadeiramente global." Ao fazê-lo, eles procuravam um mito que
·osse "trágico e in temporal". O que esse apelo ao mito permitia na prática era uma
rápida passagem do "nacionalismo para o internacionalismo e, deste, para o
universalismo" (citado em Guilbaut, 1983; p . 174). Mas, para se distinguir do
modernismo existente alhures (em Paris principalmente), era preciso forjar uma
·nova estética viável" a partir de matérias-primas distintamente americanas. O que
tivesse essa característica tinha de ser celebrado como a essência da cultura ociden-
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
tal. E assim ocorreu com o expressionismo abstrato, ao lado do liberalismo, da
Coca-Cola, dos Chevrolets e das casas de subúrbio cheias de bens de consumo
duráveis. Artistas de vanguarda, conclui Guilbaut (p. 200), "agora politicamente
individualistas 'neutros', articulavam em suas obras valores que eram mais tarde
assimilados, utilizados e cooptados pelos políticos, disso resultando a transformação da rebelião artística em agressiva ideologia liberal".
Considero muito importante, como Jameson (1984a) e Huyssens (1984) insistem, reconhecer a significação dessa absorção de uma espécie particÚlar de estética
modernista pela ideologia oficial e estabelecida e o seu uso com relação ao poder
corporativo e ao imperialismo cultural. Essa absorção significou que, pela primeira
vez na história do modernismo, a revolta artística e cultural, bem como a revolta
política "progressista", tiveram de ser dirigidas para uma poderosa versão do
próprio modernismo. O modernismo perdeu seu atrativo de antídoto revolucionário para alguma ideologia reacionária e "tradicionalista". A arte e a alta cultura se
tornaram uma reserva tão exclusiva de uma elite dominante que a experimentação
no seu âmbito (com, por exemplo, novas formas de perspectivismo) ficou cada vez
mais difícil, exceto em campos estéticos relativamente novos como o cinema (onde
obras modernistas como Cidadão Kane, de Orson Welles, transformaram-se em clássicos). Pior ainda, parecia que essa arte e essa cultura não podiam senão monumentalizar o poder corporativo ou estatal, ou o "sonho americ~no", como mitos
auto-referenciais, projetando um certo vazio de sensibilidade no lado da formulação de Baudelaire que se apoiava nas aspirações humanas e nas verdades eternas.
Foi esse o contexto em que os vários movimentos contraculturais e antimodernistas dos anos 60 apareceram. Antagônicas às qualidades opressivas da racionalidade técnico-burocrática de base científica manifesta nas formas corporativas e
estatais monolíticas e em outras formas de poder institucionalizado (incluindo as
dos partidos políticos e sindicatos burocratizados), as contraculturas exploram os
domínios da auto-realização individualizada por meio de uma política distintivamente "neo-esquerdista" da incorporação de gestos antiautoritários e de hábitos
iconoclastas (na música, no vestuário, na linguagem e no estilo de vida) e da crítica
da vida cotidiana. Centrado nas universidades, institutos de arte e nas margens
culturais da vida na cidade grande, o movimento se espraiou para as ruas e culminou numa vasta onda de rebelião que chegou ao auge em Chicago, Paris, Praga,
Cidade do México, Madri, Tóquio e Berlim na turbulência global de 1968. Foi quase
como se as pretensões universais de modernidade tivessem, quando combinadas
com o capitalismo liberal e o imperialismo, tido um sucesso tão grande que fornecessem um fundamento material e político para um movimento de resistência
cosmopolita, transnacional e, portanto, global, à hegemonia da alta cultura modernista. Embora fracassado, ao menos a partir dos seus próprios termos, o movimento de 1968 tem de ser considerado, no entanto, o arauto cultural e político da
subseqüente virada para o pós-modernismo. Em algum ponto entre 1968 e 1972,
portanto, vemos o pós-modernismo emergir como um movimento maduro, embora ainda incoerente, a partir da crisálida do movimento antimoderno dos anos 60.
3
Pós-modernismo
Nas últimas duas décadas, "pós-modernismo" tornou-se um conceito com o
qual lidar, e um tal campo de opiniões e forças políticas conflitantes que já não
pode ser ignorado. "A cultura da sociedade capitalista avançada", anunciam os
editores de PRECIS 6 (1987), "passou por uma profunda mudança na estrutura do
5entimento." A maioria, acredito, concordaria com a declaração mais cautelosa de
Huyssens (1984):
O que aparece num nível como o último modismo, promoção publicitária e
espetáculo vazio é parte de uma lenta transformação cultural emergente nas
sociedades ocidentais, uma mudança da sensibilidade para a qual o termo
"pós-moderno" é na verdade, ao menos por agora, totalmente adequado. A
natureza e a profundidade dessa transformação são discutíveis, mas transformação ela é. Não quero ser entendido erroneamente como se afirmasse haver
uma mudança global de paradigma nas ordens cultural, social e econômica;
qualquer alegação dessa natureza seria um exagero. Mas, num importante setor
da nossa cultura, há uma notável mutação na sensibilidade, nas práticas e nas
formações discursivas que distingue um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições do de um período precedente.
No tocante à arquitetura, por exemplo, Charles Jencks data o final simbólico do
odernismo e a passagem para o pós-moderno de 15h32m de 15 de julho de 1972,
:mando o projeto de desenvolvimento da habitação Pruitt-Igoe, de St Louis (uma
·ersão premiada da "máquina para a vida moderna" deLe Corbusier), foi dinamido como um ambiente inabitável para as pessoas de baixa renda que abrigava.
Jüravante, as idéias do CIAM, de Le Corbusier e de outros apóstolos do "alto
odernismo" cederam cada vez mais espaço à irrupção de diversas possibilidades,
:.entre as quais as apresentadas pelo influente Learning from Las Vegas, de Venturi,
: ott Brown e Izenour (também publicado em 1972) mostraram ser apenas uma
:.as fortes lâminas cortantes. O centro dessa obra, como diz o seu título, era insistir
ue os arquitetos tinham mais a aprender com o estudo de paisagens populares e
merciais (como as dos subúrbios e locais de concentração de comércio) do que
m a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários. Era hora, diziam os auto~, de construir para as pessoas, e não para o Homem. As torres de vidro, os
- ocos de concreto e as lajes de aço que pareciam destinadas a dominar todas as
-aisagens urbanas de Paris a Tóquio e do Rio a Montreal, denunciando todo ornaente como crime, todo individualismo como sentimentalismo e todo romantismo
mo kitsch, foram progressivamente sendo substituídos por blocos-torre ornamen-~dos, praças medievais e vilas de pesca de imitação, habitações projetadas para as
46
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
necessidades dos habitantes, fábricas e armazéns renovados e paisagens de toda
espécie reabilitadas, tudo em nome da defesa de um ambiente urbano mais "satisfatório". Essa busca se tornou tão popular que o próprio Príncipe Charles dela
participou com vigorosas denúncias sobre os erros do redesenvolvimento urbano
de pós-guerra e da destruição promovida pelos desenvolvimentistas, que, segundo
ele, tinham feito mais para destruir Londres do que os ataques da Luftwaffe na
Segunda Guerra Mundial.
Nos círculos de planejamento, podemos identificar uma evolução semelhante.
O influente artigo de Douglas Lee, "Requiem for large-scale planning models",
apareceu num número de 1973 da ]ounzal of the American lnstitute of Planners e
previu corretamente a queda do que considerava os fúteis esforços dos anos 60
para desenvolver modelos de planejamento de larga escala, abrangentes e integrados (muitos deles especificados com todo o rigor que a criação de modelos matemáticos computadorizados podia então permitir) para regiões metropolitanas. Pouco
depois, o New York Times (13 de junho de 1976) descreveu como "dominantes" os
planejadores radicais (inspirados por Jane Jacobs) que tinham feito um ataque tão
violento aos pecados sem alma do planejamento urbano modernista nos anos 60.
Hoje em dia, é norma procurar estratégias "pluralistas" e "orgânicas" para a abordagem do desenvolvimento urbano como uma "colagem" de espaços e misturas
altamente diferenciados, em vez de perseguir planos grandiosos baseados no
zoneamento funcional de atividades diferentes. A "cidade-colagem" é agora o tema,
e a "revitalização urbana" substituiu a vilificada "renovação urbana" como a palavra-chave do léxico dos planejadores. "Não faça pequenos planos", escreveu Daniel
Burnham na primeira onda da euforia planejadora modernista no final do século
XIX, ao que um pós-modernista como Algo Rossi pode agora responder, mais
modestamente: "A que, então, poderia eu ter aspirado em minha arte? Por certo a
pequenas coisas, tendo visto que a possibilidade das grandes estava historicamente
superada".
Podem-se documentar mudanças desse tipo em toda uma gama de campos
distintos. O romance pós-moderno, alega McHale (1987), caracteriza-se pela passagem de um dominante "epistemológico" a um "ontológico" . Com isso ele quer
dizer uma passagem do tipo de perspectivismo que permitia ao modernista uma
melhor apreensão do sentido de uma realidade complexa, mas mesmo assim singular à ênfase em questões sobre como realidades radicalmente diferentes podem
coexistir, colidir e se interpenetrar. Em conseqüência, a fronteira entre ficção e
ficção científica sofreu uma real dissolução, enquanto as personagens pós-modernas com freqüência parecem confusas acerca do mundo em que estão e de como
deveriam agir com relação a ele. A própria redução do problema da perspectiva à
autobiografia, segundo uma personagem de Borges, é entrar na labirinto: "Quem
era eu? O eu de hoje estupefato; o de ontem, esquecido; o de amanhã, imprevisível?"
Os pontos de interrogação dizem tudo.
Na filosofia, a mescla de um pragmatismo americano revivido com a onda pós-marxista e pós-estruturalista que abalou Paris depois de 1968 produziu o que
Bernstein (1985, 25) chama de "raiva do humanismo e do legado do Iluminismo".
Isso desembocou numa vigorosa denúncia da razão abstrata e numa profunda
aversão a todo projeto que buscasse a emancipação humana universal pela
PÓS-MODERNISMO
47
mobilização das forças da tecnologia, da ciência e da razão. Aqui, também, ninguém menos que o papa João Paulo II tomou o partido do pós-moderno. O Papa
· não ataca o marxismo nem o secularismo liberal porque eles são a onda do futuro", diz Rocco Buttiglione, um teólogo próximo do Papa, mas porque "como as
filosofias do século XX perderam seu atrativo, o seu tempo já passou". A crise
moral do nosso tempo é uma crise do pensamento iluminista. Porque, embora esse
possa de fato ter permitido que o homem se emancipasse da comunidade e da
tradição da Idade Média em que sua liberdade individual estava submersa", sua
afirmação do "eu sem Deus" no final negou a si mesmo, já que a razão, um meio,
oi deixada, na ausência da verdade de Deus, sem nenhuma meta espiritual ou
moral. Se a luxúria e o poder são os únicos valores que não precisam da luz da
razão para ser descobertos", a razão tinha de se tornar um mero instrumento para
subjugar os outros (Baltimore Sun, 9 de setembro de 1987). O projeto teológico pós-moderno é reafirmar a verdade de Deus sem abandonar os poderes da razão.
Com figuras ilustres (e centristas) como o Príncipe de Gales e o papa João
Paulo II recorrendo à retórica e à argumentação pós-modernas, poucas dúvidas
pode haver quanto ao alcance da mudança ocorrida na estrutura do sentimento"
~os anos 80. Ainda assim, há bastante confusão quanto ao que a nova "estrutura
o sentimento" poderia envolver. Os sentimentos modernistas podem ter sido
501apados, desconstruídos, superados ou ultrapassados, mas há pouca certeza quanto
à coerência ou ao significado dos sistemas de pensamento que possam tê-los subs"tuído. Essa incerteza torna peculiarmente difícil avaliar, interpretar e explicar a
mu dança que todos concordam ter ocorrido.
O pós-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o moernismo ou é apenas uma revolta no interior deste último contra certa forma de
alto modernismo" representada, digamos, na arquitetura de Mies van der Rohe e
nas superfícies vazias da pintura expressionista abstrata minimalista? Será o pós-niodernismo um estilo [caso em que podemos razoavelmente apontar como seus
~ recursores o dadaísmo, Nietzsche ou mesmo, como preferem Kroker e Cook (1986),
as Confissões de Santo Agostinho, no século IV] ou devemos vê-lo estritamente
como um conceito p eriodizador (caso no qual d ebatemos se ele surgiu nos anos 50,
' ou 70)? Terá ele um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas
formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as moda-dades de razão iluminista) e da sua estreita atenção a outros mundos" e outras
··ozes" que há muito estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizaos com sua história própria)? Ou não passa da comercialização e domesticação do
modernismo e de uma redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo
e mercado "vale tudo", marcado pelo laissez-faire? Portanto, ele solapa a política
eoconservadora ou se integra a ela? E associamos a sua ascensão a alguma reesrruturação radical do capital, à emergência de alguma sociedade de "p ós-industrial", vendo-o até como a "arte de uma era inflacionária" ou como a "lógica culral do capitalismo avançado" (como Newman e Jameson propuseram)?
Acredito que podemos começar a dominar essas questões difíceis examinando
as diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-modernismo nos termos de
Hassan (1975, 1985; ver tabela 1.1). Hassan estabelece uma série de oposições
estilísticas para capturar as maneiras pelas quais o pós-m odernismo poderia ser
11
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Tabela 1.1 Diferenças esquemáticas entre modernismo e pós-modernismo
modernismo
pós-modernismo
romantismo/simbolismo
forma (conjuntiva, fechada)
propósito
projeto
hierarquia
domínio/lagos
objeto de arte/obra acabada
distância
criação/totalização/síntese
presença
centração
gênero/fronteira
semântica
paradigma
hipotaxe
metáfora
seleção
raiz/profundidade
interpretação/l eitura
significado
lisible (legível)
narrativa/grande histoire
código mestre
sintoma
t ipo
genital/fálico
paranóia
origem/ca usa
Deus Pai
metafísica
determinação
tran scendência
parafísica/dadaísmo
antiforma (disjuntiva, aberta)
jogo
acaso
anarquia
exaustão/silêncio
processo/performance/happening
participação
descriação/desconstrução/antítese
ausência
dispersão
texto/intertexto
retórica
sintagma
parataxe
metonímia
combinação
rizoma/superfície
contra a interpretação/desleitura
significante
scriptible (escrevível)
antinarrativa/petite histoire
idioleto
desejo
mutante
polimorfo/andrógino
esquizofrenia
diferença-diferença/vestígio
Espírito Santo
ironia
indeterminação
imanência
Fonte: Hassan (1985, 123-4)
retratado como uma reação ao moderno. Digo "poderia" porque considero perigoso (como o faz Hassan) descrever relações complexas como polarizações simples,
quando é quase certo que o real estado da sensibilidade, a verdadeira "estrutura
do sentimento" dos períodos moderno e pós-moderno, está no modo pelo qual
PÓS-MODERNISMO
49
essas posições estilísticas são sintetizadas. Não obstante, creio que o esquema tabular de Hassan fornece um útil ponto de partida.
Há muito para contemplar nesse esquema, visto que ele recorre a campos tão
distintos quanto a lingüística, a antropologia, a filosofia, a retórica, a ciência política e a teologia. Hassan se apressa a assinalar que as próprias dicotomias são
inseguras, equívocas. No entanto, há muito aqui que captura algo do que a diferença poderia ser. Os planejadores "modernistas" de cidades, por exemplo, tendem
de fato a buscar o "domínio" da metrópole como "totalidade" ao projetar deliberadamente uma "forma fechada", enquanto os pós-modernistas costumam ver o
processo urbano como algo incontrolável e "caótico", no qual a "anarquia" e o
"acaso" podem "jogar" em situações inteiramente "abertas". Os críticos literários
"modernistas" de fato têm a tendência de ver as obras como exemplos de um
"gênero" e de julgá-las a partir do "código mestre" que prevalece dentro da "fronteira" do gênero, enquanto o estilo "pós-moderno" consiste em ver a obra como
um "texto" com sua "retórica" e seu "idioleto" particulares, mas que, em princípio,
pode ser comparado com qualquer outro texto de qualquer espécie. As oposições
de Hassan podem ser caricaturas, mas é difícil haver uma arena da atual prática
intelectual em que não possamos identificar uma delas em ação. A seguir, examinarei algumas delas com a riqueza de detalhes que merecem.
Começo com o que parece ser o fato mais espantoso sobre o pós-modernismo:
-ua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que
armavam uma metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pós-modernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos "eternos e imutáveis" que poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse.
Foucault (1983, xiii) nos instrui, por exemplo, a" desenvolver a ação, o pensamento
e os desejos através da proliferação, da justaposição e da disjunção" e a "preferir
o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os
arranjos móveis aos sistemas. Acreditar que o que é produtivo não é sedentário,
mas nômade". Portanto, na medida em que não tenta legitimar-se pela referência ao
passado, o pós-modernismo tipicamente remonta à ala de pensamento, a Nietzsche em
particular, que enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar
com ele com o pensamento racional. Isso, contudo, não implica que o pós-modernismo
não passe de uma versão do modernismo; verdadeiras revoluções da sensibilidade
podem ocorrer quando idéias latentes e dominadas de um período se tornam ex!Jlícitas e dominantes em outro. Não obstante, a continuidade da condição de fragmentação, efemeridade, descontinuidade e mudança caótica no pensamento modernista pós-moderno é importante. Vou explorá-la a seguir.
Acolher a fragmentação e a efemeridade de maneira afirmativa tem grande
número de conseqüências que se relacionam diretamente com as oposições de
Hassan. Para começar, encontramos autores como Foucault e Lyotard atacando
explicitamente qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma
metanarrativa ou uma metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser
conectadas ou representadas. As verdades eternas e universais, se é que existem,
não podem ser especificadas. Condenando as metanarrativas (amplos esquemas
50
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
interpretativos como os produzidospor Marx ou Freud) como "totalizantes", eles
insistem na pluralidade de formações de "poder-discurso" (Foucault) ou de "jogos
de linguagem" (Lyotard). Lyotard, com efeito, define o pós-moderno simplesmente
como "incredulidade diante das metanarrativas".
As idéias de Foucault - em particular as das primeiras obras - merecem
atenção por terem sido uma fonte fecunda de argumentação pós-moderna. Nelas,
a relação entre o poder e o conhecimento é um tema central. Mas Foucault (1972,
159) rompe com a noção de que o poder esteja situado em última análise no âmbito
do Estado, e nos conclama a "conduzir uma análise ascendente do poder, começando pelos seus mecanismos infinitesimais, cada qual com a sua própria história, sua
própria trajetória, suas próprias técnicas e táticas, e ver como esses mecanismos de
poder foram - e continuam a ser- investidos, colonizados, utilizados, involuídos,
transformados, deslocados, estendidos etc. por mecanismos cada vez mais gerais e
por formas de domínio global". O cuidadoso escrutínio da micropolítica das relações de poder em localidades, contextos e situações sociais distintos leva-o a concluir que há uma íntima relação entre os sistemas de conhecimento ("discursos")
que codificam técnicas e práticas para o exercício do controle e do domínio sociais
em contextos localizados particulares. A prisão, o asilo, o hospital, a universidade,
a escola, o consultório do psiquiatra são exemplos de lugares em que uma organização dispersa e não integrada é construída independentemente de qualquer estratégia sistemática de domínio de classe. O que acontece em cada um deles não pode
ser compreendido pelo apelo a alguma teoria geral abrangente; na verdade, o
único irredutível do esquema de coisas de Foucault é o corpo humano, por ser ele ·
o "lugar" em que todas as formas de repressão terminam por ser registradas.
Assim, embora Foucault afirme, numa frase celebrada, que não há "relações de
poder sem resistências", há igualmente uma insistência sua em que nenhum esquema utópico pode jamais aspirar a escapar da relação de poder-conhecimento de
maneiras não-repressivas. Nesse ponto, ele faz eco ao pessimismo de Max Weber
quanto à nossa capacidade de evitar a "gaiola de ferro" da racionalidade burocrático-técnica repressiva. Mais particularmente, ele interpreta a repressão soviética
como o desfecho inevitável de uma teoria revolucionária utópica (o marxismo) que
recorria às mesmas técnicas e sistemàs de conhecimento presentes no modo capitalista que buscava substituir. O único caminho para "eliminar o fascismo que está
na nossa cabeça" é explorar as qualidades abertas do discurso humano, tomando-as como fundamento, e, assim, intervir na maneira como o conhecimento é produzido e constituído nos lugares particulares em que prevaleça um discurso de
poder localizado. O trabalho de Foucault com homossexuais e presos não pretendia produzir reformas nas práticas estatais, dedicando-se antes ao cultivo e aperfeiçoamento da resistência localizada às instituições, técnicas e discursos da repressão organizada.
É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de tal ataque
multifacetado e pluralista às práticas localizadas de repressão que qualquer desafio
global ao capitalismo poderia ser feito sem produzir todas as múltiplas repressões
desse sistema numa nova forma. Suas idéias atraem os vários movimentos sociais
surgidos nos anos 60 (grupos feministas, gays, étnicos e religiosos, autonomistas
regionais etc.), bem como os desiludidos com as práticas do comunismo e com as
PÓS-MODERNISMO
51
políticas dos partidos comunistas. Mas deixam aberta, em especial diante da rejeição deliberada de qualquer teolia holística do capitalismo, a questão do caminho
pelo qual essas lutas localizadas poderiam compor um ataque progressivo, e não
regressivo, às formas centrais de exploração e repressão capitalista. As lutas localizadas do tipo que Foucault parece encorajar em geral não tiveram o efeito de
desafiar o capitalismo, embora ele possa responder com razão que somente batalhas movidas de maneira a contestar todas as formas de discurso de poder poderiam ter esse resultado.
Lyotard argumenta em linhas semelhantes, embora numa perspectiva bem
diferente. Ele toma a preocupação modernista com a linguagem e a leva a extremos
de dispersão. Apesar de "o vínculo social ser lingüístico", argumenta, ele "não é
tecido com um único fio", mas por um "número indeterminado" de "jogos de
linguagem". Cada um de nós vive "na intersecção de muitos desses jogos de linguagem", e não estabelecemos necessariamente "combinações lingüísticas estáveis,
e as propriedades daquelas que estabelecemos não são necessariamente comunicáveis". Em conseqüência, "o próprio sujeito social parece dissolver-se nessa disseminação de jogos de linguagem". É muito interessante o emprego por Lyotard de
uma extensa metáfora de Wittengenstein (o pioneiro da te olia dos jogos de linguagem) para iluminar a condição do conhecimento pós-moderno: "A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de ruelas e pracinhas,
de velhas e novas casas, e de casas com acréscimos de diferentes períodos; e tudo
isso cercado por uma multiplicidade de novos burgos com ruas regulares retas e
casas uniformes".
A "atomização do social em redes flexíveis de jogos de linguagem" sugere que
cada um pode recorrer a um conjunto bem distinto de códigos, a depender d a
situação em que se encontrar (em casa, no trabalho, na igreja, na rua ou no bar,
num enterro etc.). Na medida em que Lyotard (tal como Foucault) aceita que o
"conhecimento é a principal força de produção" nestes dias, o problema é definir
o lugar desse poder quando ele está evidentemente "disperso em nuvens de elementos narrativos" dentro de uma heterogeneidade de jogos de linguagem. Lyotard
(mais uma vez, tal como Foucault) aceita as qualidades abertas potenciais das
conversas comuns, nas quais as regras podem ser flexibilizadas e mudadas para
"encorajar a maior flexibilidade de enunciação". Ele atribui muita importância à
aparente contradição entre essa abertura e a rigidez com que as instituições (os
"domínios não-discursivos" de Foucault) circunscrevem o que é ou não é admissível
em suas fronteiras. Os reinos do direito, da academia, da ciência e do governo
burocrático, do controle militar e político, da política eleitoral e do poder corporativo
circunscrevem o que pode ser dito e como pode ser dito de maneiras importantes.
Mas os "limites que a instituição impõe a potenciais 'movimentos' de linguagem
nunca são estabelecidos de uma vez por todas", sendo "eles mesmos as balizas e
resultados provisórios de estratégias de linguagem dentro e fora da instituição".
Portanto, não deveríamos reificar prematuramente as instituições, mas reconhecer
como a realização diferenciada de jogos de linguagem cria linguagens e poderes
institucionais em p1imeiro lugar. Se "há muitos diferentes jogos de linguagem uma heterogeneidade de elementos", também temos de reconhecer que eles só
podem "dar origem a instituições em pedaços - determinismos locais".
52
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Esses "determinismos locais" têm sido compreendidos por outros (e. g., Fish,
1980) como "comunidades interpretativas", formadas por produtores e consumidores de tipos particulares de conhecimento, de textos, com freqüência operando
num contexto institucional particular (como a universidade, o sistema legal, agrupamentos religiosos), em divisões particulares do trabalho cultural (como a arquitetura, a pintura, o teatro, a dança) ou em lugares particulares (vizinhanças, nações
etc.). Indivíduos e grupos são levados a controlar mutuamente no âmbito desses
domínios o que consideram conhecimento válido.
Como podem ser identificadas múltiplas fontes de opressão na sociedade e
múltiplos focos de resistência à dominação, esse tipo de pensamento foi incorporado pela política radical e até importado para o coração do próprio marxismo.
Assim é que vemos Aronowitz argumentando em The crisis of historical materialism
que "as lutas pela libertação, múltiplas, locais, autônomas, que ocorrem por todo
o mundo pós-moderno tornam todas as encarnações de discursos mestres absolutamente ilegítimas" (Bove, 1986, 18). Aronowitz se deixa seduzir, suspeito eu, pelo
aspecto mais libertador e, portanto, mais atraente do pensamento pós-moderno sua preocupação com a "alteridade". Huyssens (1984) fustiga particularmente o
imperialismo de uma modernidade iluminada que presumia falar pelos outros
(povos colonizados, negros e minorias, grupos religiosos, mulheres, a classe trabalhadora) com uma voz unificada. O próprio título do livro de Carol Gilligan, In a
different voice (1982) - uma obra feminista que ataca o viés masculino no estabelecimento de estágios fixos do desenvolvimento moral da personalid)lde - , ilustra
um processo de contra-ataque a essas presunções universalizantes. A idéia de que
todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de
ter aceita essa voz como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno. O trabalho de Foucault com grupos marginais e intersticiais influenciou
muitos pesquisadores, em campos tão diversos quanto a criminologia e a antropologia, a assumir novas maneiras de reconstruir e representar as vozes e experiências de seus sujeitos. Huyssens, por sua parte, enfatiza a abertura dada no pósmodernismo à compreensão da diferença e da alteridade, bem como o potencial
liberatório que ele oferece a todo um conjunto de novos movimentos sociais (mulheres, gays, negros, ecologistas, autonomistas regionais etc.) Curiosamente, a
maioria dos movimentos dessa espécie, embora tenha ajudado definitivamente a
mudar "a estrutura do sentimento", dá pouca atenção aos argumentos pós-modernos, e algumas feministas (e. g., Hartsock, 1987) são hostis a eles por razões que
mais tarde vamos considerar.
Significativamente, podemos detectar essa mesma preocupação com a "alteridade" e com "outros mundos" na ficção pós-moderna. McHale, ao acentuar o
pluralismo de mundos que coexistem na ficção pós-moderna, considera o conceito
foucaultiano de heterotopia uma imagem perfeitamente apropriada para capturar o
que a ficção se esforça por descrever. Por heterotopia Foucault designa a coexistência, num "espaço impossível", de um "grande número de mundos possíveis fragmentários", ou, mais simplesmente, espaços incomensuráveis que são justapostos
ou superpostos uns aos outros. As personagens já não contemplam como desvelar
ou desmascarar um mistério central, sendo em vez disso forçadas a perguntar
"Que mundo é este? Que se deve fazer nele? Qual dos meus eus deve fazê-lo?"
PÓS-MODERNISMO
53
Podemos ver o mesmo no cinema; num clássico modernista como Cidadão Kane, um
repórter procura desvendar o mistério da vida e da personalidade de Kane ao
~eunir múltiplas reminiscências e perspectivas daqueles que o tinham conhecido.
_ o formato mais pós-moderno do cinema contemporâneo, vemos, num filme como
' eludo Azul, a personagem central girando entre dois mundos bem incongruentes
- o mundo convencional da cidadezinha americana dos anos 50, com sua escola
secundária, sua cultura de drogaria e um submundo estranho, violento e louco de
drogas, demência e perversão sexual. Parece impossível que esses dois mundos
existam no mesmo espaço, e a personagem central se move entre eles, sem saber
al é a verdadeira realidade, até que os dois mundos colidem num terrível desence. Um pintor pós-moderno como David Salle também tende a "reunir numa
.:::olagem materiais-fonte incompatíveis como uma alternativa a fazer uma escolha
mtre eles" (Taylor, 1987, 8; ver ilustração 1.6). Pfeil (1988) chega ao ponto de
escrever o campo total do pós-modernismo como "uma representação destilada
todo o mundo antagônico e voraz da alteridade".
Mas aceitar a fragmentação, o pluralismo e a autenticidade de outras vozes e
utros mundos traz o agudo problema da comunicação e dos meios de exercer o
~ der através do comando. A maioria dos pensadores pós-modernos está fascina::a pelas novas possibilidades da informação e da produção, análise e transferência
o conhecimento. Lyotard (1984), por exemplo, localiza firmemente seus argumen. s no contexto de novas tecnologias de comunicação e, usando as teses de Bell e
-=:-ouraine sobre a passagem para uma sociedade "pós-industrial" baseada na infor:nação, situa a ascensão do pensamento pós-moderno no cerne do que vê como
:JIDa dramática transição social e política nas linguagens da comunicação em socie.:mdes capitalistas avançadas. Ele examina de perto as novas tecnologias de produ;ão, disseminação e uso desse conhecimento, considerando-as "uma importante
- rça de produção". O problema, contudo, é que agora o conhecimento pode ser
dificado de todas as maneiras, algumas das quais mais acessíveis que outras.
ortanto, há na obra de Lyotard mais do que um indício de que o modernismo
udou porque as condições técnicas e sociais de comunicação se transformaram.
Os pós-modernistas também tendem a aceitar uma teoria bem diferente quanto
., natureza da linguagem e da comunicação. Enquanto os modernistas pressupu- am uma relação rígida e idenficável entre o que era dito (o significado ou "men- gem") e o modo como estava sendo dito (o significante ou "meio"), o pensamen• pós-estruturalista os vê "separando-se e reunindo-se continuamente em novas
:ombinações". O "desconstrucionismo" (movimento iniciado pela leitura de Martin
3:eidegger por Derrida no final dos anos 60) surge aqui como um poderoso estíulo para os modos de pensamento pós-modernos. O desconstrucionismo é mes uma posição filosófica do que um modo de pensar sobre textos e de "ler"
·atos. Escritores que criam textos ou usam palavras o fazem com base em todos
s outros textos e palavras com que depararam, e os leitores lidam com eles do
esmo jeito. A vida cultural é, pois, vista como uma série de textos em intersecção
- m outros textos, produzindo mais textos (incluindo o do crítico literário, que visa
:'roduzir outra obra literária em que os textos sob consideração entram em inter~cção livre com outros textos que possam ter afetado o seu pensamento). Esse
trelaçamento intertextual tem vida própria; o que quer que escrevamos transmi-
54
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.6 A colisão e superposição de diferentes mundos
ontológicos é uma das principais características da arte pós-moderna.
"Tight as Houses", de David Salle, 1980, ilustra a idéia.
te sentidos que não estavam ou possivelmente não podiam estar na nossa intenção,
e as nossas palavras não podem transmitir o que queremos dizer. É vão tentar
dominar um texto, porque o perpétuo entretecer de textos e sentidos está fora do
nosso controle; a linguagem opera através de nós. Reconhecendo isso, o impulso
desconstrucionista é procurar, dentro de um texto por outro, dissolver um texto em
outro ou embutir um texto em outro.
PÓS-MODERNISMO
55
Dessa forma, Derrida considera a colagem/montagem a modalidade primária
de discurso pós-moderno. A heterogeneidade inerente a isso (seja na pintura, na
escritura ou na arquitetura) nos estimula, como receptores do texto ou imagem, "a
produzir uma significação que não poderia ser unívoca nem estável". Produtores
e consumidores de "textos" (artefatos culturais) participam da produção de significações e sentidos (daí a ênfase de Hassan no "processo", na "pe1jormance", no
uhappening" e na "participação" no estilo pós-moderno). A minimização da autoridade do produtor cultural cria a oportunidade de participação popular e de
determinações democráticas de valores culturais, mas ao preço de uma certa incoerência ou, o que é mais problemático, de uma certa vulnerabilidade à manipulação
do mercado de massa. De todo modo, o produtor cultural só cria matérias-primas
(h·agmentos e elementos), deixando aberta aos consumidores a recombinação desses elementos da maneira que eles quiserem. O efeito é quebrar (desconstruir) o
poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narrativa contínua. Cada
elemento citado, diz Derrida, "quebra a continuidade ou linearidade do discurso
e leva necessariamente a uma dupla leitura: a do fragmento percebido com relação
ao seu texto de origem; a do fragmento incorporado a um novo todo, a uma
totalidade distinta". A continuidade só é dada no "vestígio" do fragmento em sua
passagem entre a produção e o consumo. O efeito disso é o questionamento de
todas as ilusões de sistemas fixos de representação (Foster, 1983, 142).
Há um grau considerável desse tipo de pensamento na tradição modernista
(no surrealismo, por exemplo) e há o perigo de se pensar as metanarrativas da
tradição iluminista como mais fixas e estáveis do que de fato o eram. Marx, como
o observa Ollman (1971), criou seus conceitos em termos relacionais, de modo que
termos como valor, trabalho, capital estão "separando-se e reunindo-se continuamente em novas combinações", numa luta interminável para chegar a um acordo
com os processos totalizantes do capitalismo. Benjamin, um complexo pensador da
tradição marxista, levou a idéia da colagem / montagem à perfeição, para tentar
capturar as relações multiestratificadas e fragmentadas entre economia, política e
cultura, sem jamais abandonar a perspectiva de uma totalidade de práticas que
constituem o capitalismo. Taylor (1987, 53-65) também conclui, após rever as evidências históricas do seu uso (particularmente por Picasso), que a colagem é um
indicador muito pouco adequado da diferença entre a pintura modernista e pós-moderna.
Mas se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma
representação unificada do mundo, nem retratá-lo com uma totalidade cheia de
conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como
poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? A resposta pós-moderna simples é de que, como a representação e a ação coerentes são repressivas ou
ilusórias (e, portanto, fadadas a ser autodissolventes ~ autoderrotantes), sequer
deveríamos tentar nos engajar em algum projeto global. O pragmatismo (do tipo
de Dewey) se torna então a única filosofia de ação possível. Assim, vemos Rorty
(1985, 173), um dos principais filósofos americanos do movimento pós-moderno,
descartando "a seqüência canônica de filósofos de Descartes a Nietzsche como uma
distração da história da engenharia social concreta que fez da cultura norte-americana contemporânea o que ela é agora, com todas as suas glórias e todos os seus
56
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
perigos". A ação só pode ser concebida e decidida nos limites de algum determinismo local, de alguma comunidade interpretativa, e os seus sentidos tencionados
e efeitos antecipados estão fadados a entrar em colapso quando retirados desses
domínios isolados, mesmo quando coerentes com eles. Da mesma forma, vemos
Lyotard (1984, 66) alegando que "o consenso se tornou um valor suspeito e ultrapassado", mas acrescentando, o que é bem surpreendente, que, como a "justiça
como valor não é ultrapassada nem suspeita" (como ela porleria ter permanecido
um tal universal, intocada pela diversidade de jogos de linguagem, ele não nos
diz), "devemos chegar a uma idéia e uma prática da justiça que não estejam ligadas
à de consenso".
É precisamente esse tipo de relativismo e derrotismo que Habermas procura
combater em sua defesa do projeto do Iluminismo. Embora esteja mais do que
disposto a admitir o que denomina "a realização deformada da razão na história"
e os perigos ligados à imposição simplificada de alguma metanarrativa a relações
e eventos complexos, Habermas também insiste em que "a teoria pode localizar
uma delicada, mas obstinada, nunca silente, mas raramente redimida, reivindicação da razão, uma reivindicação que deve ser reconhecida de fato quando quer e
onde quer que deva haver ação consensual". Ele também trata da questão da
linguagem, e, na Teoria da Ação Comunicativa, insiste nas qualidades dialógicas da
comunicação humana, na qual falante e ouvinte se orientam necessariamente para
a tarefa da compreensão recíproca. A partir disso, argumenta Habermas, surgem
de fato declarações consensuais e normativas, fundamentando assim o papel da
razão universalizante na vida diária. É isso que permite que a "razão comunicativa" opere "na história como força vingativa". Contudo, os críticos de Habermas
são mais numerosos do que os seus defensores.
O retrato do pós-modernismo que esbocei até agora parece depender, para ter
validade, de um modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo o que nos leva ao que é, talvez, a mais problemática faceta do pós-modernismo:
seus pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a fragmentação e instabilidade da linguagem e dos
discursos leva diretamente, por exemplo, a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se concentra na esquizofrenia (não, deve-se enfatizar,
em seu sentido clínico estrito), em vez de na alienação e na paranóia (ver o esquema de Hassan). Jameson (1984b) explora esse tema com um efeito bem revelador.
Ele usa a descrição de Lacan da esquizofrenia como desordem lingüística, como
uma ruptura na cadeia significativa de sentido que cria uma frase simples. Quando
essa cadeia se rompe, "temos esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si". Se a identidade pessoal é forjada por
meio de "certa unificação temporal do passado e do futuro com o presente que
tenho diante de mim", e se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de
unificar passado, presente e futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante
de "unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica". Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com
o significante, e não com o significado, com a participação, a pe1jormance e o
happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritário, antes com as
aparências superficiais do que com as raízes (mais uma vez, ver o esquema de
PÓS-MODERNISMO
57
Hassan). O efeito desse colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência a
uma série de presentes puros e não relacionados no tempo". Sem oferecer uma
contrapartida, a concepção de linguagem de Derrida produz um efeito esquizofrênico, explicando assim, talvez, a caracterização que Eagleton e Hassan dão ao
artefato pós-moderno típico, considerando-o esquizóide. Deleuze e Guattari (1984,
245), em sua exposição supostamente travessa, Anti-Édipo, apresentam a hipótese
de um relacionamento entre esquizofrenia e capitalismo que prevalece "no nível
mais profundo de uma mesma economia, de um mesmo processo de produção",
concluindo que "a nossa sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira
como produz o xampu Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os
esquizofrênicos não são vendáveis".
O predomínio desse motivo no pensamento pós-moderno tem várias conseüências. Já não podemos conceber o indivíduo alienado no sentido marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente, e não-fragmentado,
o qual se alienar. Somente em termos de um tal sentido centrado de identidade
pessoal podem os indivíduos se dedicar a projetos que se estendem no tempo ou
_ ensar de modo coeso sobre a produção de um futuro significativamente melhor
do que o tempo presente e passado. O modernismo dedicava-se muito à busca de
:ilturos melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia.
_,ias o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar-se
nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as insta:nl.idades (inclusive as lingüísticas) que nos impedem até mesmo de representar
coerentemente, para não falar de conceber estratégias para produzir, algum futuro
radicalmente diferente. O modernismo, com efeito, não deixava de ter seus momentos esquizóides - em particular ao tentar combinar o mito com a modernidae heróica -, havendo uma significativa história de "deformação da razão" e de
modernismos reacionários" para sugerir que a circunstância esquizofrênica, em. ra dominada na maioria das vezes, sempre estava latente no movimento moder- · ta. Não obstante, há boas razões para acreditar que a "alienação do sujeito é
eslocada pela fragmentação do sujeito" na estética pós-moderna (Jameson, 1984a,
-3). Se, como insistia Marx, o indivíduo alienado é necessário para se buscar o
;-rojeto iluminista com uma tenacidade e coerência suficientes para nos trazer airum futuro melhor, a perda do sujeito alienado pareceria impedir a construção
.:onsciente de futuros sociais alternativos.
A redução da experiência a "uma série de presentes puros e não relacionados
o tempo" implica também que a "experiência do presente se torna poderosa e
arrasadoramente vívida e 'material': o mundo surge diante do esquizofrênico com
:nna intensidade aumentada, trazendo a carga misteriosa e opressiva do afeto,
:x>rbulhando de energia alucinatória" (Jameson, 1984, 120). A imagem, a aparência,
espetáculo podem ser experimentados com uma intensidade Uúbilo ou terror)
oossibilitada apenas pela sua apreciação como presentes puros e não relacionadas
o tempo. Por isso, o que importa "se o mundo perde assim, momentaneamente,
:ua profundidade e ameaça tornar-se uma pele lisa, uma ilusão estereoscópica,
:rn1a sucessão de imagens fílmicas sem densidade"? (Jameson, 1984b) O caráter
rmediato dos eventos, o sensacionalismo do espetáculo (político, científico, militar,
:.em como de diversão) se tornam a matéria de que a consciência é forjada.
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58
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Essa ruptura da ordem temporal de coisas também origina um peculiar tratamento do passado. Rejeitando a idéia de progresso, o pós-modernismo abandona
todo sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela classifica como
aspecto do presente. A arquitetura pós-moderna, por exemplo, pega partes e pedaços do passado de maneira bem eclética e os combina à vontade (ver capítulo 4).
Outro exemplo, tirado da pintura, é dado por Crimp (1983, 44-5). Olínzpia, de
Manet, um dos quadros seminais dos primórdios do movimento modernistas, teve
como modelo a Vênus de Ticiano (ilustrações 1.7; 1.8). Mas a maneira como isso
ocorreu assinalou uma ruptura autoconsciente entre modernidade e tradição, além
da intervenção ativa do artista nessa transição (Clark, 1985). Rauschenberg, um dos
pioneiros do movimento pós-moderno, apresentou imagens da Vênus Rokeby, de
Velázquez, e de Vênus no Banho, de Rubens, numa série de quadros dos anos 60
(ilustração 1.9). Mas ele usa essas imagens de maneira bem diferente, empregando
a técnica do silk-screen para apor um original fotográfico numa superfície que contém toda espéice de outros elementos (caminhões, helicópteros, chaves de carro).
Rauschenberg apenas reproduz, enquanto Manet produz, e esse é um movimento,
diz Crimp, "que exige que pensemos em Rauschenberg como pós-modernista" . A
"aura" modernista do artista como produtor é dispensada. "A ficção do sujeito
criador cede lugar ao franco confisco, citação, retirada, acumulação e repetição de
imagens já existentes".
Esse tipo de mudança se transfere para todos os outros campos com fortes
implicações. Dada a evaporação de todo sentido de continuidade e memória histórica, e a rejeição de metanarrativas, o único papel que resta ao historiador, por
exemplo, é tornar-se, como insistia Foucault um arqueólogo do passado, escavando seus vestígios como Borges o faz em sua ficção e colocando-os, lado a lado, no
museu do conhecimento moderno. Rorty (1979, 371), ao atacar a idéia de que a
filosofia possa algum dia esperar definir algum quadro epistemológico permanente
de pesquisa, também termina por insistir que o único papel do filósofo, em meio
à cacofonia de conversas cruzadas que compreende uma cultura, é "depreciar a
noção de ter uma visão, ao mesmo tempo que evita ter uma visão sobre ter visões" .
"O trapo essencial da ficção", dizem-nos os ficcionistas pós-modernos, é uma "técnica que requer a suspensão da crença, bem como da descrença" (McHale, 1987,
27-33). Há, no pós-modernismo, pouco esforço aberto para sustentar a continuidade de valores, de crenças ou mesmo de descrenças.
Essa perda da continuidade histórica nos valores e crenças, tomada em conjunto com a redução da obra de arte a um texto que acentua a descontinuidade e a
alegoria, suscita todo tipo de problemas para o julgamento estético e crítico. Recusando (e "desconstruindo" ativamente) todos os padrões de autoridade ou supostamente imutáveis de juízo estético, o pós-modernismo pode julgar o espetáculo
apenas em termos de quão espetacular ele é. Barthes propõe uma versão particularmente sofisticada dessa estratégia. Ele distingue entre plaisir (prazer) e "jouissance"
(cuja melhor tradução talvez seja "bem-aventurança física e mental sublime") e
sugere que nos esforcemos por realizar o segundo, um efeito mais orgásmico (observe-se o vínculo com a descrição jamesoniana da esquizofrenia), através de um
modo particular de encontro com os artefatos culturais de outro modo sem vida
PÓS-MODERNISMO
59
Ilustração 1.7 A Vênus de Urbino, de Ticiano,
inspirou Olímpia de Manet de 1863.
e preenchem a nossa paisagem social. Como a maioria de nós não é esquizóide
• o sentido clínico, Barthes define uma espécie de "prática de mandarim" que nos
ermite alcançar "jouissance" e usar essa experiência como base para juízos estéti-os e críticos. Isso significa a identificação com o ato de escrever (criação), e não
-om o de ler (recepção), mas Huyssens (1984, 38-45) reserva sua ironia mordaz
• ara Barthes, afirmando que ele reinstitui uma das mais cansativas distinções
odernistas e burguesas: a de que "há prazeres inferiores para a ralé, isto é, a
ltura de massas, e há a nouvelle cuisine do prazer do texto, jouissance". Essa
eintrodução da disjunção cultura superior I cultura inferior evita todo o problema
a destruição potencial das formas culturais modernas pela sua assimilação à cultura
pop através da pop arte." A eufórica apropriação americana da jouissance de Barthes
é predicada em ignorar esses problemas e em fruir, de modo não muito diferente
o dos yuppies de 1984, os prazeres do connoisseurismo escrevível e da gentrificação
:extual." A imagem de Huyssens, como sugerem as descrições de Raban em 5oft
.:."ty, pode ser bem apropriada.
O outro lado da perda da temporalidade e da busca do impacto instantâneo é
:una perda paralela de profundidade. Jameson (1984a; 1984b) tem sido particularlente enfático quanto à "falta de profundidade" de boa parte da produção cultural contemporânea, quanto à sua fixação nas aparências, nas superfícies e nos
pactos imediatos que, com o tempo, não têm poder de sustentação. As seqüên·as de imagens das fotografias de Sherman têm exatamente essa qualidade, e,
60
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.8 A obra modernista pioneira de Manet, Olímpia,
retrabalha as idéias de Ticiano.
como observou Charles Newman num artigo no New York Times sobre o estado do
romance americano (NYT, 17 de julho de 1987):
O fato é que um sentido de redução do controle, da perda da autonomia
individual e de uma impotência generalizada nunca foi tão instantaneamente
reconhecível na nossa literatura - as personagens mais planas possíveis nas
paisagens mais planas possíveis, traduzidas na dicção mais plana possível. A
suposição parece ser a de que a América é um vasto deserto fibroso em que
umas poucas sementes lacônicas mesmo assim conseguem brotar por entre as
rachaduras.
"Falta de profundidade planejada" é a expressão usada por Jameson para
descrever a arquitetura pós-moderna, e é difícil não dar crédito a essa sensibilidade
como o motivo primordial do pós-modernismo, afetado apenas pelas tentativas de
Barthes de nos ajudar a chegar ao momento de jouissance. A atenção às superfícies
sempre foi, na verdade, importante para o pensamento e a prática modernistas
(particularmente a partir dos cubistas), mas sempre teve como paralelo o tipo de
questão que Raban formulou sobre a vida urbana: como podemos construir, representar e dar atenção a essas superfícies com a simpatia e a seriedade exigidas a fim
de ver por trás delas e identificar os sentidos essenciais? O pós-modernismo, com
sua resignação à fragmentação e efemeridade sem fundo, em geral se recusa a
enfrentar essa questão.
PÓS-MODERNISMO
61
O colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneidade
surgiram em parte em decorrência da ênfase contemporânea no campo da produção cultural em eventos, espetáculos, happenings e imagens de mídia. Os produtores culturais aprenderam a explorar e usar novas tecnologias, a mídia e, em última
análise, as possibilidades multimídia. O efeito, no entanto, é o de reenfatizar e até
celebrar as qualidades transitórias da vida moderna. Mas também permitiu um
Ilustração 1.9 A obra pós-modernista pioneira de Rauschenberg,
Persimon (1964), faz a colagem de muitos temas, incluindo a
reprodução direta de Vênus no Banho, de Rubens.
62
{
.• .
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
rapprochement, apesar das intervenções de Barthes, entre a cultura popular e o que
um dia permaneceu isolado como "alta cultura" . Esse rapprochement foi procurado
antes, embora quase sempre de maneira mais revolucionária, quando movimentos
como o dadaísmo e o surrealismo inicial, o construtivismo e o expressionismo
tentaram levar sua arte ao povo como parte integrante de um projeto modernista
de transformação social. Esses movimentos vanguardistas tinham uma forte fé em
seus próprios objetivos e uma imensa crença em novas tecnologias. A aproximação
entre a cultura popular e a produção cultural do período contemporâneo, embora
dependa muito de novas tecnologias de comunicação, parece carecer de todo impulso vanguardista ou revolucionário, levando muitos a acusar o pós-modernismo
de uma simples e direta rendição à mercadificação, à comercialização e ao mercado
(Foster, 1985). Seja como for, boa parte do pós-modernismo é conscientemente antiáurica e antivanguardista, buscando explorar mídias e arenas culturais abertas a
todos. Não é por acaso que Sherman, por exemplo, usa a fotografia e evoca imagens pop que parecem saídas de um filme nas poses que assume.
Isso evoca a mais difícil questão sobre o movimento pós-moderno: o seu relacionamento com a cultura da vida diária e a sua integração nela. Embora quase toda a
discussão disso ocorra no abstrato, e, portanto, nos termos não muito acessíveis que
sou forçado a usar aqui, há inúmeros pontos de contato entre produtores de artefatos
culturais e o público em geral: arquitetura, propaganda, moda, filmes, promoção de
eventos multimídia, espetáculos grandiosos, campanhas políticas e a onipresente televisão. Nem sempre é claro quem está influenciando quem no processo.
Venturi et al. (1972, 155) recomenda que aprendamos nossa estética arquitetônica nos arredores de Las Vegas ou com os subúrbios tão mal-afamados como
Levittown, ap enas porque as pessoas evidentemente gostam desses ambientes. "Não
temos de concordar com a política operária", afirmam, "para defender os direitos
da classe média média à sua própria estética arquitetônica, e descobrimos que a a
estética do tipo Levittown é compartilhada pela maioria dos membros da classe
média média, branca e negra, liberal e conservadora." Nada há de errado, insistem
eles, em dar às pessoas o que elas querem, e o próprio Venturi foi citado no New
York Times (22 de outubro de 1972), numa matéria apropriadamente intitulada
"Mickey Mouse ensina os arquitetos", dizendo "Disneyworld está mais próxima
do que as pessoas querem do que aquilo que os arquitetos já lhes deram". A
Disneylândia, assevera ele, é "a utopia americana simbólica" .
Há, no entanto, quem veja essa concessão da alta cultura à estética da
Disneylândia antes como uma questão de necessidade do que de escolha. Daniel
Bell (1978, 20), por exemplo, descreve o pós-modernismo como a exaustão do
modernismo através da institucionalização dos impulsos criativos e rebeldes por
aquilo que ele chama de "a massa cultural" (os milhões de pessoas que trabalham
nos meios de comunicação, no cinema, no teatro, nas universidades, nas editoras,
nas indústrias de propaganda e comunicações etc. e que processam e influenciam
a recepção d e produtos culturais sérios, e produzem os materiais populares para
o público d e cultura de massas mais amplo). A degeneração d a autoridade intelectual sobre o gosto cultural nos anos 60 e a sua substituição pela pop arte, pela
cultura pop, pela moda efêmera e pelo gosto da massa são vistas como um sinal
do hedonismo inconsciente do consumismo capitalista.
PÓS-MODERNISMO
63
Iain Chambers (1986; 1987) interpreta um processo semelhante de maneira bem
- tinta. A juventude da classe operária da Inglaterra teve dinheiro suficiente du:ante a expansão do pós-guerra para participar da cultura de consumo capitalista,
:::sando ativamente a moda para construir um sentido de sua própria identidade
_ública, e até definindo suas próprias formas de pop arte, diante de uma indús. da moda que buscava impor o gosto através da pressão da publicidade e da
'dia. A conseqüente democratização do gosto numa variedade de subculturas
o "macho" das cidades aos campi universitários) é interpretada como o desfecho
~ uma batalha vital que fortaleceu os direitos de formação da própria identidade
-·é dos relativamente desprivilegiados, diante de um comercialismo poderosamen"' organizado. Os fermentos culturais de base urbana que começaram no início dos
os 60 e existem até hoje estão, na visão de Chambers, na raiz da virada pós-moderna:
O pós-modernismo, seja qual for a forma que a sua intelectualização possa
tomar, foi fundamentalmente antecipado nas culturas metropolitanas dos últimos vinte anos: entre os significantes eletrônicos do cinema, da televisão e do
vídeo, nos estúdios de gravação e nos gravadores, na moda e nos estilos da
juventude, em todos os sons, imagens e histórias diversas que são diariamente
mixados, reciclados e "arranhados" juntos na tela gigante que é a cidade contemporânea.
Também é difícil não atribuir alguma espécie de papel plasmador à prolifera--o do uso da televisão. Afinal, sabe-se que o americano médio hoje assiste à
: evisão por mais de sete horas diárias, e a propriedade de televisões e vídeos
este último caso, presentes em ao menos metade dos lares americanos) é hoje tão
- - seminada no mundo capitalista que alguns efeitos devem por certo ser registra-os. As preocupações pós-modernas com a superfície, por exemplo, podem remonao formato necessário das imagens televisivas. A televisão também é, como
-. onta Taylor (1987, 103-5), "o primeiro meio cultural de toda a história a apresenar as realizações artísticas do passado como uma colagem coesa de fenômenos
üi-importantes e de existência simultânea, bastante divorciados da geografia e
.:la história material e transportados para as salas de estar e estúdios do Ocidente
-um fluxo mais ou menos ininterrupto". Isso requer, além disso, um espectador
u e compartilhe a própria percepção da história do meio como uma reserva in~rrninável de eventos iguais". Causa pouca surpresa que a relação do artista com
_história (o historicismo peculiar para o qual já chamamos a atenção) tenha mu- do, que, na era da televisão de massa, tenha surgido um apego antes às super.: ·es do que às raízes, à colagem em vez do trabalho em profundidade, a imagens
--itadas superpostas e não às superfícies trabalhadas, a um sentido de tempo e de
....::paço decaído em lugar do artefato cultural solidamente realizado. E todos esses
~ementas são aspectos vitais da prática artística na condição pós-moderna.
Apontar a potência dessa força na moldagem da cultura como modo total de
da não é, no entanto, cair necessariamente num determinismo tecnológico simlista do tipo "a televisão gerou o pós-modernismo". Porque a televisão é ela
esma um produto do capitalismo avançado e, como tal, tem de ser vista no
64
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
contexto da promoção de uma cultura do consumismo. Isso dirige a nossa atenção
para a produção de necessidades e desejos, para a mobilização do desejo e da
fantasia, para a política da distração como parte do impulso para manter nos
mercados de consumo uma demanda capaz de conservar a lucratividade da produção capitalista.
Charles Newman (1984, 9) vê boa parte da estética pós-modernista como uma
resposta ao surto inflacionário do capitalismo avançado. "A inflação", diz ele, "afeta a troca de idéias tão certamente quanto afeta os mercados comerciais." Assim,
"somos testemunhas das contínuas batalhas intestinas e mudanças espasmódicas
na moda, na exibição simultânea de todos os estilos passados em suas infinitas
mutações e na contínua circulação de elites intelectuais diversas e contraditórias,
o que assinala o reino do culto da criatividade em todas as áreas do comportamento, uma receptividade não crítica sem precedentes à Arte, uma tolerância que, no
final, equivale à indiferença". Desse ponto de vista, conclui Newman, "a celebrada
fragmentação da arte já não é uma escolha estética: é somente um aspecto cultural
do tecido social e econômico".
Isso por certo ajudaria a explicar o impulso pós-moderno de integração à cultura popular através do tipo de comercialização aberta, e até crassa, que os modernistas tendiam a rejeitar com sua profunda resistência à idéia (embora nem sempre
ao fato) da mercadificação de sua produção. Há, no entanto, quem atribua a exaustão
do alto modernismo precisamente à sua absorção como a estética formal do capitalismo corporativo e do Estado burocrático. Assim, o pós-modernismo não assinala senão uma extensão lógica do poder do mercado a toda a gama da produção
cultural. Crimp (1987, 85) é deveras acerbo quanto a esse ponto:
O que temos visto nos últimos anos é a virtual tomada da arte pelos grandes
interesses corporativos. Porque, seja qual for o papel desempenhado pelo capital na arte do modernismo, o atual fenômeno é novo precisamente por causa
do seu alcance. As corporações se tornaram, em todos os aspectos, os principais patrocinadores da arte. Elas foram impressionantes coleções. Concedem
fundos para toda grande exposição nos museus ... As casas de leilão se tornaram instituições de empréstimos, dando um valor completamente novo à arte
como algo colateral. E tudo isso afeta não somente a inflação do valor dos
velhos mestres como a própria produção artística ... [As corporações] estão
comprando barato e em quantidade, contando com a escalada do valor de
jovens artistas ... O retorno à pintura e à escultura em moldes tradicionais é o
retorno à produção de mercadorias, e eu sugeriria que, enquanto tradicionalmente tinha uma condição ambígua de mercadoria, a arte tem uma condição
de mercadoria totalmente clara.
O desenvolvimento de uma cultura de museu (na Inglaterra é aberto um museu
a cada três semanas e, no Japão, mais de 500 foram abertos nos últimos quinze
anos) e uma florescente "indústria da herança" que se iniciou no começo dos anos
70 dão outra virada populista (se bem que, desta vez, bastante classe média) à
comercialização da história e de formas culturais. "O pós-modernismo e a indústria da herança estão ligados", diz Hewison (1987, 135), já que "ambos conspiram
PÓS-MODERNISMO
65
ara criar uma tela oca que intervém entre a nossa vida presente e a nossa histó:da". A história se torna "uma criação contemporânea, antes um drama e uma re-
-representação de costumes do que discurso crítico". Estamos, conclui ele, citando
·ameson, "condenados a procurar a História através das nossas próprias imagens
_, simulacros pop dessa história, história que permanece sempre fora do alcance" .
• casa já não é vista como máquina, mas como "uma antigüidade na qual viver".
A invocação de Jameson nos traz, por fim, à sua ousada tese de que o pós-modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado. Seguindo
.1andel (1975), ele alega que passamos para uma nova era a partir do início dos
os 60, quando a produção da cultura "tornou-se integrada à produção de merLadorias em geral: a frenética urgência de produzir novas ondas de bens com
parência cada vez mais nova (de roupas a aviões), em taxas de transferência cada
··ez maiores, agora atribui uma função estrututural cada vez mais essencial à ino·ação e à experimentação estéticas". As lutas antes travadas exclusivamente na
:rrena da produção se espalharam, em conseqüência disso, tornando a produção
:ultural uma arena de implacável conflito social. Essa mudança envolve uma trans. rmação definida nos hábitos e atitudes de consumo, bem como um novo papel
_ara as definições e intervenções estéticas. Enquanto alguns alegam que os movientes contraculturais dos anos 60 criaram um ambiente de necessidades não
- endidas e de desejos reprimidos que a produção cultural popular pós-modernista
penas procurou satisfazer da melhor maneira possível em forma de mercadoria,
utros sugerem que o capitalismo, para manter seus mercados, se viu forçado a
. roduzir desejos e, portanto, estimular sensibilidades individuais para criar uma
ova estética que superasse e se opusesse às formas tradicionais de alta cultura.
ja como for, considero importante aceitar a proposição de que a evolução cultu~ que vem ocorrendo a partir do início dos anos 60 e que se afirmou como
egemônica no começo dos anos 70 não ocorreu num vazio social, econômico ou
_olítico. A promoção da publicidade como "a arte oficial do capitalismo" traz para
arte estratégias publicitárias e introduz a arte nessas mesmas estratégias (como
:.;rua comparação da pintura de David Salle com um anúncio dos Relógios Citizen
"ilustrações 1.6 e 1.10] revela). Portanto, é necessário deter-se sobre a mudança
~-tilística que Hassan estabelece com relação às forças que emanam da cultura do
onsumo de massa: a mobilização da moda, da pop arte, da televisão e de outras
rmas de mídia de imagem, e a verdade dos estilos de vida urbana que se tornou
_arte da vida cotidiana sob o capitalismo. Façamos o que fizermos com o conceito,
. -o d evemos ler o pós-modernismo como uma corrente artística autônoma; seu
aizamento na vida cotidiana é uma de suas características mais patentemente
daras.
O retrato do modernismo que tracei, com a ajuda do esquema de Hassan, está
r certo incompleto. É igualmente certo ser ele um retrato tornado fragmentário
e efêmero pela enorme pluralidade e caráter enganoso de formas culturais envoltas
. os mistérios do fluxo e da mudança rápidos. Mas creio ter dito o bastante sobre
que constitui o quadro geral da "profunda mudança na estrutura do sentimento"
ue separa a modernidade da pós-modernidade para iniciar a tarefa de desvelar as
:uas origens e formular uma interpretação especulativa do que isso poderá signicar para o nosso futuro. Contudo, considero útil arrematar esse retrato com um
66
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
CITIZEN
Ilustração 1.10 Um anúncio dos Relógios Citizen incorpora diretamente as
técnicas pós-modernas de superposição de mundos ontologicamente diferentes sem
relação necessária entre si (compare-se o anúncio com o quadro
de David Salle na ilustração 1.6). O relógio anunciado é quase invisível.
exame mais detalhado de como o pós-modernismo se manifesta na arquitetura
urbana contemporânea, porque a proximidade ajuda a revelar as microtexturas em
vez das grandes pinceladas de que a condição pós-moderna é feita na vida cotidiana. É essa a tarefa de que me encarrego no próximo capítulo.
PÓS-MODERNISMO
67
_-OTA
As ilustrações usadas neste capítulo foram criticadas por algumas feministas
de convicção pós-moderna. Elas foram deliberadamente escolhidas porque permitiam uma comparação entre os campos supostamente separados do pré-moderno, do moderno e do pós-moderno. O nu clássico de Ticiano é ativamente retrabalhado na Olímpia modernista de Manet. Rauschenberg apenas
reproduz através da colagem pós-moderna; David Salle superpõe mundos diferentes; e o anúncio dos Relógios Citizen (o mais ultrajante do lote, mas que
apareceu nos suplementos de fim de semana de vários jornais britânicos de
qualidade por um longo período) é um engenhoso uso da mesma técnica pós-moderna para fins puramente comerciais. Todas as ilustrações usam um corpo
feminino para inscrever sua mensagem particular. Procurei dizer também que
a subordinação da mulher, uma das muitas "contradições problemáticas" das
práticas iluministas burguesas (ver p. 24 acima e p. 228 abaixo), não pode
esperar nenhum alívio particular pelo recurso ao pós-modernismo. Pensei que
as ilustrações diziam isso tão bem que tornavam desnecessário explicar. Mas,
ao menos em alguns círculos, essas imagens particulares não valeram suas
costumeiras mil palavras. Do mesmo modo, parece que eu não deveria ter
pensado que os pós-modernos apreciassem sua própria técnica de contar mesmo uma história ligeiramente diferente por meio das ilustrações em comparação com o texto. (Junho de 1990.)
4
O pós-modernismo na cidade:
arquitetura e projeto urbano
No campo da arquitetura e do projeto urbano, considero o pós-modernismo no
sentido amplo como uma ruptura com a idéia modernista de que o planejamento
e o desenvolvimento devem concentrar-se em planos u rbanos de larga escala, de
alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma
arquitetura absolutamente despojada (as superfícies "funcionalistas" austeras do
wdernismo de "estilo internacional"). O pós-modernismo cultiva, em vez disso,
m conceito do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um
palimpsesto" de formas passadas superpostas umas às outras e uma." colagem"
e usos correntes, muitos dos quais podem ser efêmeros. Como é impossível comandar a metrópole exceto aos pedaços, o projeto urbano (e observe-se que os pós-modernistas antes projetam do que planejam) deseja somente ser sensível às traições vernáculas, às histórias locais, aos desejos, necessidades e fantasias particu2res, gerando formas arquitetônicas especializadas, e até altamente sob medida,
.ue podem variar dos espaços íntimos e personalizados ao esplendor do espetácu:o, passando pela monumentalidade tradicional. Tudo isso pode florescer pelo
recurso a um notável ecletismo de estilos arquitetônicos.
Verifica-se, sobretudo, que os pós-modernistas se afastam de modo radical das
-oncepções modernistas sobre como considerar o espaço. Enquanto os modernistas
·êem o espaço como algo a ser moldado para propósitos sociais e, portanto, semre subserviente à construção de um projeto social, os pós-modernistas o vêem
-omo coisa independente e autônoma a ser moldada segundo objetivos e princíios estéticos que não têm necessariamente nenhuma relação com algum objetivo
: cial abrangente, salvo, talvez, a consecução da intemporalidade e da beleza "de5lnteressada" como fins em si mesmas.
É útil considerar o sentido dessa mudança por uma variedade de razões. Para
omeçar, o ambiente construído constitui um elemento de um complexo de expe_.ência urbana que há muito é um cadinho vital para se forjarem novas sensibilides culturais. A aparência de uma cidade e o modo como os seus espaços se
rganizam formam uma base material a partir da qual é possível pensar, avaliar
realizar uma gama de possíveis sensações e práticas sociais. Uma dimensão de
:oft city, de Raban, pode ficar mais ou menos dura pelo modo como o ambiente
:onstruído é moldado. Inversamente, a arquitetura e o projeto urbano têm sido
:oco de um considerável debate polêmico sobre as maneiras pelas quais os juízos
"-téticos podem ou devem ser incorporados a uma forma espacialmente fixada e
-orn que efeitos na vida diária. Se experimentarmos a arquitetura como comunica--o, se, como Barthes (1975-92) insiste, "a cidade é um discurso e esse discurso é
70
PASSA CEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
na verdade uma linguagem", então temos de dar estreita atenção ao que está sendo
dito, em particular porque é típico absorvermos essas mensagens em meio a todas
as outras múltiplas distrações da vida urbana.
O "gabinete doméstico" de conselheiros do Príncipe Charles sobre questões
vinculadas à arquitetura e ao projeto urbano inclui o arquiteto Leon Krier. As
queixas de Krier contra o modernismo, tal como publicadas (manuscritas, para
obter um efeito especial) em 1987 em Architectural Design Profile (nº 65), nos interessam diretamente, visto que hoje dão forma ao debate público na Inglaterra tanto
no nível mais elevado como no mais geral. O problema central para Krier é que o
planejamento urbano modernista trabalha quase sempre com o zoneamento
monofuncional. Como resultado, a circulação de pessoas entre zonas por meio de
artérias artificiais se torna a principal preocupação do planejador, gerando um
padrão urbano que é, ao ver dele, "antiecológico", por ser uma perda de tempo,
de energia e de espaço:
A pobreza simbólica da arquitetura e da paisagem urbana atuais é resultado e
expressão diretos da monotonia funcionalista legislada pelas práticas de
zoneamento funcional. Os principais tipos de construção e modelos de planejamento modernos, como o Arranha-Céu, o Arranha-Solo [Groundscraper], o
Setor Central de Negócios, a Faixa Comercial, o Setor de Escritórios, o Subúrbio Residencial etc., são invariavelmente superconcentrações horizontais ou
verticais de um mesmo uso numa zona urbana, num programa de construção
ou sob o mesmo teto.
Krier contrasta essa situação com a "boa cidade" (por sua natureza ecológica),
em que "a totalidade das funções urbanas" é fornecida dentro de "distâncias a pé
compatíveis e agradáveis". Reconhecendo que tal forma urbana "não pode crescer
por extensão em largura e altura", mas somente "por multiplicação", Krier procura
uma forma de cidade formada por "comunidades urbanas completas e finitas",
cada uma delas constituindo um quarteirão urbano independente dentro de uma
grande família de quarteirões urbanos que formam, por sua vez, " cidades no interior de uma cidade". Somente nessas condições seria possível recuperar a "riqueza simbólica" de formas urbanas tradicionais baseadas na "proximidade e no diálogo da maior variedade possível e, portanto, na expressão da verdadeira variedade,
evidenciada pela articulação signjficativa e honesta de espaços públicos, do tecido
urbano e do horizonte" .
Krier, tal como outros pós-modernistas europeus, busca a restauração e recriação ativas dos valores urbanos "clássicos" tradicionais. Isso significa quer a restauração de um tecido urbano mais antigo e a sua reabilitação para novos usos, quer
a criação de novos espaços que exprimam as visões tradicionais com todo o avanço
que as tecnologias e materiais modernos permitem. Embora seja apenas uma de
muitas direções possíveis que os pós-modernistas podem cultivar - bem oposta,
por exemplo, à admiração de Venturi pela Disneylândia, pela faixa de Las Vegas
e pela ornamentação suburbana - , o projeto de Krier por certo se apóia numa
determinada concepção de modernismo como ponto de partida reativo. É útil,
portanto, considerar até que ponto e por que o tipo de modernismo que Krier
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
71
eprecia se tornou uma característica tão dominante da organização urbana do
• ás-guerra.
Os problemas políticos, econômicos e sociais enfrentados pelos países capita. tas avançados na esteira da Segunda Guerra Mundial eram tão amplos quanto
.rraves. A paz e a prosperidade internacionais tinham de ser construídas de alguma
aneira a partir de algum programa que atendesse às aspirações de povos que
dnham dado maciçamente suas vidas e energias numa luta geralmente descrita (e
_ustificada) como luta por um mundo mais seguro, por um mundo melhor, por um
futuro m.elhor. Isso por certo não significava o retorno às condições pré-guerra de
recessão e desemprego, de marchas contra a fome e locais de distribuição de sopa,
de habitações deterioradas e de penúria, nem ao descontetamento social e à instabilidade política que essas condições tão facilmente propiciavam. Para se manter
democráticas e capitalistas, as políticas do pós-guerra tinham de tratar de questões
do pleno emprego, da habitação decente, da previdência social, do bem-estar e das
amplas oportunidades de construção de um futuro melhor (ver Parte li).
Embora as táticas e condições variassem de lugar para lugar (em termos de,
por exemplo, grau de destruição durante a guerra, nível aceitável de centralização
do controle político ou de compromisso com o Estado de bem-estar social), havia
em toda parte a tendência a considerar a experiência de produção e planejamento
de massa da época da guerra um meio de lançar um vasto programa de reconstrução e de reorganização. Foi quase como se uma versão nova e rejuvenescida do
rojeto do Iluminismo tivesse surgido, como fênix, da morte e destruição do conilito global. A reconstrução, reformulação e renovação do tecido urbano se tornaram um ingrediente essencial desse projeto. Foi esse o contexto em que as idéias
do CIAM, de Le Corbusier, de Mies van der Rohe, de Frank Lloyd Wright e outros
puderam ter a aceitação que tiveram, menos como a força controladora das idéias
-obre a produção do que como quadro teórico e justificativa para aquilo que engenheiros, políticos, construtores e empreendedores tinham passado a fazer por
pura necessidade social, econômica e política.
Nesse quadro geral, todos os tipos de soluções foram explorados. A Inglaterra,
or exemplo, adotou uma legislação municipal e nacional de planejamento bastane rigorosa. O efeito foi restringir a suburbanização e substituí-la pelo desenvolvimento planejado de novas cidades (seguindo o modelo de Ebenezer Howard) ou
ela expansão ou renovação de alta densidade (seguindo o modelo deLe Corbusier).
Sob o olho vigilante e às vezes a mão forte do Estado, foram tomadas medidas para
eliminar habitações miseráveis e construir casas, escolas, hospitais, fábricas etc.
modulares através da adoção dos procedimentos de planejamento racional e dos
-istemas de construção industrializada que os arquitetos modernistas há muito
tinham proposto. E tudo isso integrado por uma profunda preocupação, expressa
repetidas vezes nas leis, com a racionalização dos padrões espaciais e dos sistemas
de circulação para promover a igualdade (ao menos de oportunidade), o bem-estar
e o crescimento econômico.
Enquanto muitos outros países europeus buscaram variantes da solução britânica, os Estados Unidos empreenderam uma reconstrução urbana de tipo bem
diferente. A suburbanização rápida e pouco controlada (a resposta ao sonho de
72
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
todo soldado desmobilizado, como dizia a retórica da época) foi desenvolvida por
particulares, mas pesadamente subsidiada por sistemas de habitação mantidos com
recursos do governo e por investimentos públicos diretos na construção de estradas e em outras infra-estruturas. A deterioração do centro das cidades provocada
pela saída de empregos e pessoas gerou então uma forte, e, mais uma vez, subsidiada pelo governo, estratégia de renovação urbana através da demolição e reconstrução de centros urbanos mais antigos. Foi nesse contexto que alguém como Robert
Moses- o "corretor do poder", como Caro (1974) o descreve, do redesenvolvimento
metropolitano de Nova Iorque- foi capaz de se inserir entre as fontes de fundos
públicos e as exigências dos empreendedores privados com um efeito tão forte,
refazendo toda a região metropolitana de Nova Iorque por meio da construção de
auto-estradas e de pontes, do planejamento de parques urbanos e da renovação
urbana. A solução americana, embora de forma diferente, também se apoiava
bastante na produção em massa, nos sistemas de construção industrializada e numa
arrasadora concepção sobre como fazer emergir um espaço urbano racionalizado
ligando-o, como Frank Lloyd Wright tinha apresentado em seu projeto Broadacre
dos anos 30, por meio de formas individualizadas de transporte através do uso de
infra-estruturas fornecidas pelo Estado.
Creio que seria errôneo e injusto descrever essas soluções "modernistas" para
os dilemas do desenvolvimento e redesenvolvimento urbano do pós-guerra como
puros fracassos. Cidades arrasadas pela guerra foram reconstruídas rapidamente e
populações foram abrigadas em condições muito melhores do que as do período
entre-guerras. Dadas as tecnologias disponíveis na época e a evidente escassez de
recursos, é difícil ver como tudo isso poderia ter sido conseguido, exceto por uma
variante do que foi de fato feito. E, apesar de algumas soluções terem se revelado
mais bem-sucedidas (no sentido de gerar ampla satisfação pública, como aconteceu
com a Unité d'Habitation de Le Corbusier em Marselha) do que outras (e chamo
a atenção para a inclinação pós-moderna de citar, sempre e apenas, as ruins), o
esforço geral teve razoável êxito na reconstituição do tecido urbano de modo a
preservar o pleno emprego, a melhorar os equipamentos sociais materiais, contribuindo para metas de bem-estar social e, de modo geral, facilitando a preservação
de uma ordem social capitalista bastante ameaçada em 1945. Nem seria verdadeiro
dizer que os estilos modernistas foram hegemônicos por razões puramente ideológicas. A padronização e a uniformidade de linha de montagem, de que os pós-modernistas mais tarde se queixariam, eram tão onipresentes na faixa de Las
Vegas e em Levitown (dificilmente construída de acordo com as especificações
modernistas) quanto nos prédios de Mies van der Rohe. Tanto governos trabalhistas como conservadores promoveram projetos modernistas na Inglaterra do pósguerra, embora seja curioso que a esquerda hoje seja acusada por eles, quando
foram os conservadores, ao reduzirem os custos, particularmente das habitações
para pessoas de baixa renda, que perpetraram muitos dos piores exemplos de
cortiços instantâneos e de condições de vida alienadas. Os ditames dos custos e da
eficiência (que têm especial importância no tocante às populações menos afluentes
servidas), associados com restrições organizacionais e tecnológicas, por certo tiveram um papel tão importante quanto a preocupação ideológica com o estilo.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
73
Contudo, de fato era moda nos anos 50 louvar as virtudes do estilo internacional, alardear suas capacidades de criação de uma nova espécie de ser humano, vê-lo como o braço expressivo de um aparelho estatal burocrático intervencionista
considerado, ao lado do capital corporativo, o guardião de todos os avanços do
bem-estar humano. Algumas alegações ideológicas eram grandiosas, mas as transformações radicais das paisagens sociais e físicas das cidades capitalistas muitas
vezes tinham pouca relação com elas. Para começar, as terras especulativas e o
desenvolvimento de propriedades (obter aluguel pela terra e construir com lucro,
rapidamente e com baixos custos) eram forças dominantes numa indústria do
desenvolvimento e da construção que era um dos principais setores de acumulação
do capital. Mesmo quando contido por regulamentos de planejamento ou orientado em torno de investimentos públicos, o capital corporativo ainda tinha muito
poder. E, quando comandava (especialmente nos _Estados Unidos), o capital
corporativo se apropriava alegremente de todo artifício modernista do livro do
arquiteto para dar continuidade à prática da construção de monumentos que se
elevavam cada vez mais no horizonte como símbolos do poder corporativo. Monumentos como o prédio do Chicago Tribune (construído a partir de um projeto
escolhido por concorrência entre muitos dos grandes arquitetos modernistas do
eríodo) e o Rockefeller Center (com sua extraordinária entronização do credo de
John D. Rockefeller) são parte de uma contínua história de celebração do poder de
classe supostamente sacrossanto que nos deu, em tempos mais recentes, a Trump
Tower ou o monumentalismo pós-moderno do prédio da AT & T, de Philip Johnson
ver ilustrações 1.11, 1.12, 1.13). É completamente errado, penso eu, pôr toda a
culpa dos males urbanos do desenvolvimento do pós-guerra nas costas do movimento moderno, sem considerar a música político-econômica conforme a qual
dançava a urbanização do período. O surto de sentimento modernista era, no
entanto, disseminado, e podia sê-lo, ao menos em parte, em função da considerável
variedade de construções neomodernistas realistas a que a reconstrução de pós-guerra deu origem.
Penso ser útil examinar outra vez o ataque de Jane Jacobs a tudo isso em The
death and life of great American cities, publicado em 1961, não somente por ser um
dos primeiros, mais articulados e mais influentes tratados antimodernistas, como
também por ter procurado definir toda uma abordagem para a compreensão da
vida urbana. Embora os "alvos principais" de sua ira fossem Ebenezer Howard e
Le Corbusier, ela na verdade atirava em grande número de alvos, que iam de
planejadores urbanos, formuladores de políticas federais e financeiras a editores de
- uplementos dominicais e de revistas femininas. Examinando a cena urbana tal
como fora reconstruída a partir de 1945, ela viu:
Projetos para pessoas de baixa renda que se tornaram piores centros de delinqüência, de vandalismo e de desamparo social geral do que as favelas que
pretendiam substituir. Projetos de habitação para pessoas de renda média que
são verdadeiras maravilhas da estupidez e de sujeição, privados de toda jovialidade ou vitalidade da vida na cidade. Projetos de habitações de luxo que
mitigam sua inanidade, ou tentam, com a vulgaridade insípida. Centros culturais incapazes de sustentar uma boa livraria. Centros cívicos que só não são
74
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
evitados pelos vagabundos, que têm menos escolhas de locais de vagabundagem do que outros. Centros comerciais que são imitações apagadas de shoppings
suburbanos padronizados com lojas de departamentos. Calçadões que vão do
nada a lugar nenhum e que não têm quem passe neles. Vias expressas que
desfiguram as grandes cidades. Isso não é reconstrução de cidades; trata-se de
devastação de cidades.
Essa "Grande Influência Maligna da Estupidez" (ver ilustração 1.14) veio, ao
ver de Jacobs, de uma profunda incompreensão do que são as cidades. "Os processos são a essência", alegou ela, e é nos processos sociais de interação que devemos concentrar nossa atenção. E quando os vemos com os pés no chão, em ambien-
Ilustração 1.11 O monumentalismo modernista do Rockefeller Cerzter.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
75
Ilustração 1.12 Trump Tower: uma das mais recentes celebrações arquitetônicas do
poder pessoal a enfeitar o horizonte da cidade de Nova Iorque.
:es urbanos "saudáveis", descobrimos um intrincado sistema de complexidade an-es organizada do que desorganizada, uma vitalidade e uma energia d e interação
:: cial que depende crucialmente da diversidade, da complexidade e da capacidade
e lidar com o inesperado de maneiras controladas mas criativas. "Quando se
ensa em processos urbanos, é preciso pensar nos catalisadores desses processos
isso também é a essência." Havia, observou ela, alguns processos de mercado em
ção que tendiam a contrariar a afinidade humana "natural" com a diversidade e
_ produzir uma rígida conformidade dos usos da terra. Mas esse problema tinha
grande contribuição da maneira como os planejadores se declararam inimigos da
-l'versidade, temendo o caos e a complexidade por considerá-los d esorganizados,
:eios e irremediavelmente irracionais. "É curioso", queixou-se ela, "que o planeja-
76
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.13 O modernismo da Trump Tower (esquerda) briga
com o pós-modernismo do prédio da AT & 'T, de Philip ]ohnson (direita),
por uma posição no horizonte de Nova Iorque.
mento da cidade nem responde à autodiversificação espontânea entre as populações urbanas nem consegue fornecê-la. É curioso que os planejadores das cidades
pareçam não reconhecer essa força de autodiversificação nem ser atraídos pelos
problemas estéticos de exprimi-la."
Na superfície, ao menos, parece que o pós-modernismo procura justamente
descobrir maneiras de exprimir essa estética da diversidade. Mas é importante
considerar como ele o faz. Desse modo, poderemos descobrir as profundas limita-
r
.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
~
77
I
ções (que os pós-modernistas mais reflexivos admitem) e as vantagens superficiais
de muitos esforços pós-modernos.
Jencks (1984), por exemplo, afirma que a arquitetura pós-moderna tem como
raízes duas significativas mudanças tecnológicas. Em primeiro lugar, as comunicações contemporâneas derrubaram as "fronteiras usuais do espaço e do tempo",
produzindo tanto um novo internacionalismo como fortes diferenciações internas
em cidades e sociedades baseadas no lugar, na função e no interesse social. Essa
"fragmentação produzida" existe num contexto com tecnologias de comunicação e
de transporte capazes de lidar com a interação social no espaço de maneira bastante diferenciada. A arquitetura e o projeto urbano viram-se, portanto, diante de
oportunidades novas e mais amplas de diversificar a forma espacial do que ocorrera no período pós-guerra imediato. Formas urbanas dispersas, descentralizadas
e desconcentradas são hoje muito mais factíveis tecnologicamente do que antes.
Em segundo lugar, as novas tecnologias (particularmente os modelos computadorizados) dissolveram a necessidade de conjugar a produção em massa com a repetição em massa, permitindo a produção em massa flexível de "produtos quase
personalizados" que exprimem uma grande variedade de estilos. "Os resultados
estão mais próximos do artesanato do século XIX do que dos superblocos regimentais de 1984." Do mesmo modo, toda uma nova gama de materiais de construção,
alguns dos quais permitindo a imitação quase exata de estilos bem mais antigos
' de vigas de carvalho a tijolos climatizados), pode hoje ser adquirida a preços bem
baixos. Dar essa espécie de proeminência às novas tecnologias não é interpretar o
Ilustração 1.14 A "Grande Influência Maligna da Estupidez" de que se queixa ]ane
]acobs está bem representada neste exemplo típico de habitação pública em Baltimore.
78
.<·
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
movimento pós-moderno como algo tecnologicamente determinado. Mas Jencks de
fato sugere que o contexto em que os arquitetos e planejadores urbanos hoje operam se alterou de modo a libertá-los de algumas das restrições mais fortes existentes no período do imediato pós-guerra.
O arquiteto e o projetista urbano pós-moderno podem, em conseqüência, aceitar com mais facilidade o desafio de se comunicar com grupos distintos de clientes
de maneira personalizada, ao mesmo tempo que talham produtos para diferentes
situações, funções e "culturas de gosto". Eles estão, diz Jencks, muito preocupados
com "marcas de status, com a história, o comércio, o conforto, o domínio ético,
sinais que indiquem familiaridade" e dispostos a aceitar todos os gostos, tais como
os de Las Vegas ou de Levittown - gostos que os modernistas tendiam a considerar comuns e banais. Em princípio, portanto, a arquitetura pós-moderna é
antivanguardista (não deseja impor soluções, ao contrário da tendência passada'e presente - dos altos modernistas, dos planejadores burocráticos e dos empreendedores autoritários).
Entretanto, de modo algum está claro que uma simples virada para o populismo
iseja suficiente para atender às queixas de Jane Jacobs. Rowe e Koetter, em Collage
Cíty (cujo título indica simpatia pela tendência pós-moderna), acham estranho o
fato de que "os proponentes do populismo arquitetônico sejam a favor da demo.cracia e da liberdade, mas, caracteristicamente, não se disponham a especular sobre
os conflitos necessários entre a democracia e a lei, sobre as colisões necessárias
entre a liberdade e a justiça" . Ao se renderem a uma entidade abstrata chamada
"povo", os populistas não conseguem reconhecer a multiplicidade que é o povo,
nem, em conseqüência, "como os seus componentes precisam de proteção uns dos
·outros". Os problemas das minorias e dos desprivilegiados ou dos diversos elementos contraculturais que tanto intrigaram Jane Jacobs foram jogados para debaixo do tapete até que se pudesse conceber algum sistema bem democrático e igualitário de planejamento baseado na comunidade que atenda às necessidades dos
ricos e dos pobres. Isso pressupõe, no entanto, uma série de comunidades urbanas
bem formadas e coesas como ponto de partida num mundo urbano que está sempre em fluxo e transição.
Esse problema é agravado pelo grau em que as diferentes "culturas do gosto" e
comunidades exprimem seus desejos por meio de uma influência política e de um
poder de mercado diferenciados. Jencks concede, por exemplo, que o pós-modernismo
na arquitetura e no projeto urbano tende a ser desavergonhadamente orientado para
o mercado por ser esta a linguagem primária de comunicação da nossa sociedade.
Embora a integração ao mercado traga claramente o perigo de atender às necessidades
do consumidor rico e privado, e não do consumidor pobre e público, trata-se para
Jencks de uma situação que o arquiteto tem possibilidade para mudar.
Essa resposta cortês ao domínio do poder do mercado pouco favorece um
resultado que atenda às objeções de Jacobs. Para começar, ela tem muita probabilidade de substituir o zoneamento do planejador por um zoneamento de mercado
baseado na capacidade de pagar, por uma alocação de terra a usos baseados antes
nos princípios do aluguel de terra do que no tipo de princípios de projeto urbano
que alguém como Krier claramente defendia. A curto prazo, uma transição de
mecanismos planejados para mecanismos de mercado pode combinar temporaria-
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
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Ilustração 1.15 Os sinais de reabilitação e de gentrificação com freqüência
assumem quase exatamente a mesma monotonia serial do modernismo que se
destinavam a substituir: a reabilitação de Baltimore é assinalada, em toda
parte, pelo lampião-padrão pendurado fora da casa.
ente usos distintos em interessantes configurações, mas a velocidade da gentri.. cação e a monotonia do resultado (ver ilustração 1.15) sugerem que, em muitos
casos, o curto prazo é na verdade bem curto. A alocação de mercado e de terra de
aluguel dessa espécie já enquadrou muitas paisagens urbanas em novos padrões
de conformidade. O populismo do livre mercado, por exemplo, encerra as classes
médias nos espaços fechados e protegidos dos shoppings (ilustração 1.16) e átrios
ilustração 1.17), mas nada faz pelos pobres, exceto ejetá-los para uma nova e bem
·enebrosa paisagem pós-moderna de falta de habitação (ver ilustração 1.18).
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
A ênfase dos ricos no consumo levou, no entanto, a uma ênfase muito maior
na diferenciação de produtos no projeto urbano. Ao explorarem os domínios dos
gostos e preferências estéticas diferenciados (fazendo tudo o que podiam para
estimular essa tendência), os arquitetos e planejadores urbanos reenfatizaram um
forte aspecto da acumulação de capital: a produção e consumo do que Bourdieu
(1977; 1984) chama de "capital simbólico", que pode ser definido como "o acúmulo
de bens de consumo suntuosos que atestam o gosto e a distinção de quem os
possui". Esse capital se transforma, com efeito, em capital-dinheiro, que "produz
seu efeito próprio quando, e somente quando, oculta o fato de se originar em
formas 'materiais' de capital". O fetichismo (a preocupação direta com aparências
Ilustração 1.16 O Gallery, de Harbor Place, Baltimore, é
exemplo típico dos inúmeros shoppings que vêm sendo
construídos desde mais ou menos 1970.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
81
Ilustração 1.17 Este átrio do prédio da IBM em Madison Avenue, Nova Iorque,
ensaia uma atmosfera de jardim num lugar seguro, hermeticamente afastado de uma
cidade perigosa, poluída e cheia de construções pesadas lá fora.
superficiais que ocultam significados subjacentes) é evidente, mas serve aqui para
ocultar deliberadamente, através dos domínios da cultura e do gosto, a base real
das distinções econômicas. Como "os efeitos ideológicos mais bem-sucedidos são
os que não têm palavras e não pedem mais do que o silêncio cúmplice", a produção do capital simbólico serve a funções ideológicas porque os mecanismos por
meio dos quais ela contribui "para a reprodução da ordem estabelecida e para a
perpetuação da dominação permanecem ocultos".
É instrutivo situar a busca de riqueza simbólica de Krier no contexto das teses
de Bourdieu. A procura de meios de comunicar distinções sociais através da aquisição de todo tipo de símbolos de status há muito é uma faceta central da vida
urbana. Simmel fez brilhantes análises do fenômeno na virada do século, e toda
uma série de pesquisadores (como Firey em 1945 e Jager em 1986) retoma repeti-
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.18 A falta de habitação em Los Angeles cria uma forma
inteiramente nova de arquitetura popular indesejada e proscrita.
das vezes à sua consideração. Mas creio ser razoável dizer que o impulso modernista- parcialmente por razões práticas, técnicas e econômicas, mas também ideológicas - de fato se deu ao trabalho de reprimir a significação do capital simbólico
na vida urbana. A inconsistência dessa democratização e desse igualitarismo forçados do gosto diante das distinções sociais típicas do que, afinal, permanecia uma
sociedade capitalista vinculada a classes sem dúvida criou um clima de demanda
reprimida, senão de desejo reprimido (parte do qual foi expressa nos movimentos
culturais dos anos 60). Esse desejo reprimido provavelmente teve importante papel
na promoção do mercado de ambientes e estilos arquitetônicos urbanos mais diversificados. Trata-se, com efeito, do desejo que muitos pós-modernistas buscam
satisfazer, senão estimular sem disfarces. "Para o suburbano de classe média~~,
observam Venturi et al., "viver não numa mansão de antes da guerra, mas numa
versão menor ·perdida num enorme espaço, a identidade deve vir do tratamento
simbólico da forma da casa, seja pela estilização oferecida pelo agente de desenvolvimento (por exemplo, o colonial em vários planos) ou por uma variedade de
ornamentos simbólicos aplicados depois pelo proprietário.~~
O problema é que o gosto está longe de ser uma categoria estática. O capital
simbólico só se mantém como capital na medida em que os caprichos da moda o
sustentam. Existem lutas entre os formadores do gosto, como mostra Zukin em sua
excelente obra Loft living, que examina as funções do "capital e da cultura na
mudança urbana" por meio de um estudo da evolução do mercado imobiliário do
distrito do Soho, Nova Iorque. Forças poderosas, mostra ela, estabeleceram novos
critérios de gosto na arte e na vida urbana e tiraram bom proveito de ambas. Por
conseguinte, unir a idéia do capital simbólico com a busca da riqueza simbólica de
Krier tem muito a nos dizer sobre fenômenos urbanos como a gentrificação, a
produção da comunidade (real, imaginária ou apenas empacotada para venda pelos
produtores), a reabilitação das paisagens urbanas e a recuperação da história (mais
uma vez, real, imaginária ou apenas reproduzida como pastiche). Isso também nos
ajuda a compreender o atual fascínio pelo embelezamento, pela ornamentação e
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
83
pela decoração como códigos e símbolos de distinção social. Não tenho nenhuma
...erteza de que tenha sido isso que Jane Jacobs tinha em mente quando criticou o
planejamento urbano modernista.
Dar atenção às necessidades da "heterogeneidade de habitantes urbanos e
culturas do gosto", contudo, afasta a arquitetura do ideal de alguma metalinguagem
unificada e a decompõe em discursos altamente diferenciados." A 'Zangue' (conjuno total de fontes comunicativas) é tão heterogênea e diversa que toda 'parole'
singular (seleção individual) reflete isso." Embora não use a frase, Jencks poderia
facilmente ter dito que a linguagem da arquitetura se dissolve em jogos de línguaem altamente especializados, cada qual apropriado à sua maneira a uma comunidade interpretativa bem distinta.
O resultado é a fragmentação, muitas vezes conscientemente adotada. O catá~ogo Postmodem visions (Klotz, 1985), por exemplo, afirma que o grupo Office for
..1etropolitan Architecture entende "as percepções e experiências do presente como
simbólicas e associativas, uma colagem fragmentária, com a Grande Cidade fomerendo a metáfora última". O grupo produz obras gráficas e arquitetônicas "caracelizadas pela colagem de fragmentos da realidade e estilhaços de experiência
,mriquecidos por referências históricas". A metrópole é concebida como "um sis-ema de signos e símbolos anárquicos e arcaicos em constante e independente
-uto-renovação" . Outros arquitetos se esforçam por cultivar as qualidades labirín·cas dos ambientes urbanos mesclando interiores e exteriores (como na planta
aixa dos novos arranha-céus entre a Quinta e a Sexta Avenidas no Mid-Town de
_fanhattan ou no complexo AT & Te IBM na Madison Avenue- ver ilustração
.17) ou simplesmente por meio da criação de um sentido interior de complexidade
escapável, de um labirinto interior como o do museu na Gare d'Orsay reformulada
de Paris, do novo prédio do Lloyds em Londres ou do Hotel Bonaventure de Los
.-\ngeles - que tiveram as suas confusões dissecadas por Jameson (1984b). Os
ambientes construídos pós-modernos costuman procurar e reproduzir deliberadaente temas que Raban tanto enfatizou em Soft city: um empório de estilos, uma
a1ciclopédia, um "livro de rabiscos de um maníaco cheio de itens coloridos".
A resultante multivalência da arquitetura gera, por sua vez, uma tensão que a
·orna "radicalmente esquizofrênica por necessidade". É interessante ver como Jencks,
principal cronista do movimento pós-moderno na arquitetura, invoca a esquizofrenia que muitos outros identificam como característica geral da mentalidade pós-moderna. A arquitetura, alega ele, deve personificar uma dupla codificação, "uma
tradicional popular que, tal como a língua falada, muda aos poucos, estão cheia de
clichês e se enraíza na vida familiar" e uma moderna, cujas raízes estão numa
sociedade em rápida mudança, com suas novas tarefas funcionais, seus novos
materiais, suas novas tecnologias e ideologias", bem como uma arte e uma moda
que não param de mudar. Aqui, encontramos a formulação de Baudelaire, mas
com uma nova aparência historicista. O pós-modernismo abandona a busca modernista do sentido interior em meio à atual balbúrdia e afirma uma base mais
ampla para o eterno numa visão construída da continuidade histórica e d a memória coletiva. Mais uma vez, é importante ver como isso é feito exatamente.
Krier, como vimos, procura recuperar de modo direto os valores urbanos clássicos. O arquiteto italiano Aldo Rossi apresenta um argumento diferente:
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.19 Richmond Riverside Panorama (Londres), de Quinlan Terry, ilustra
a tendência pós-moderna de reviver formas urbanas do passado - neste caso, o
classicismo do século XVIII. Essas réplicas, sem vestígios de ironia ou de paródia, criam
simulacros difíceis de distinguir de versões bem restauradas do original.
A destruição e a demolição, a expropriação e as rápidas mudanças do uso
como resultado da especulação e da obsolescência são os sinais mais reconhecíveis da dinâmica urbana. Mas, além de tudo isso, as imagens sugerem o
destino ininterrupto do indivíduo, de sua participação freqüentemente triste e
difícil no destino do coletivo. Essa visão, em sua inteireza, parece estar refletida com uma qualidade de permanência em monumentos urbanos. Monumentos, signos da vontade coletiva expressa pelos princípios da arquitetura, se
oferecem como elementos primários, pontos fixos na dinâmica urbana (Rossi,
1982, 22).
Encontramos aqui, mais uma vez, a tragédia da modernidade, mas desta feita
estabilizada pelos pontos fixos de monumentos que incorporam e preservam um
"misterioso" sentido de memória coletiva. A preservação do mito por meio do
ritual "constitui uma chave para a compreensão do significado dos monumentos,
bem como as implicações da fundação de cidades e da transmissão de idéias num
contexto urbano". A tarefa do arquiteto, ao ver de Rossi, é participar "livremente"
da produção de "monumentos" que exprimem a memória coletiva, ao mesmo
tempo que reconhece que aquilo que constitui um monumento é em si um mistério
que "deve ser encontrado sobretudo na secreta e incessante vontade de suas manifestações coletivas". Rossi fundamenta sua compreensão disso no conceito de
"genre de vie" - um modo de vida relativamente permanente que as pessoas comuns constroem para si mesmas em certas condições ecológicas, tecnológicas e
sociais. Esse conceito, retirado da obra do geógrafo francês Vidal de la Blache, dá
a Rossi um sentido daquilo que a memória coletiva representa. O fato de Vidal
considerar o conceito apropriado para interpretar sociedades agrícolas de mudança
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
85
relativamente lenta, mas ter começado, perto do final da vida, a duvidar de sua
aplicação às paisagens em rápida mudança da industrialização capitalista (ver seu
Geographie de l'est, publicado em 1916), escapa à atenção de Rossi. O problema, em
condições de mudança industrial rápida, é evitar que sua postura teórica se reduza
a uma produção estética do mito através da arquitetura, caindo na própria armadilha que o modernismo "heróico" encontrou nos anos 30. Não é de surpreender
que a arquitetura de Rossi tenha recebido pesadas críticas. Umberto Eco a descreve
como "assustadora", enquanto outros assinalam o que vêem como sobretons fascistas (ilustração 1.20).
Rossi ao menos tem a virtude de levar a sério o problema da referência histórica. Outros pós-modernistas apenas acenam para a legitimidade histórica por meio
de uma extensa e muitas vezes eclética citação de estilos passados. Através de
5lmes, da televisão, de livros ou coisa parecida, a história e a experiência passada
:ão transformadas num arquivo aparentemente vasto, "recuperável num instante
e capaz de ser consumido repetidas vezes ao apertar de um botão" . Se, como
-:-aylor (1987, 105) o diz, a história pode ser vista "como uma reserva interminável
e eventos iguais", os arquitetos e projetistas urbanos podem sentir-se livres para
'tá-los na ordem que quiserem. A inclinação pós-moderna de acumular toda esécie de referências a estilos passados é uma de suas características mais presentes.
_ o que parece, a realidade está sendo moldada para imitar as imagens da mídia.
Mas o resultado da inserção dessa prática no contexto socioeconômico e políco contemporâneo é mais que um cacoete sem importância. Por exemplo, desde
ais ou menos 1972, aquilo que Hewison (1987) chama de "indústria da herança"
.::e tornou de súbito grande negócio na Inglaterra. Museus, casas de campo, paisa::rens urbanas reconstruídas e reabilitadas que fazem eco a formas passadas, cópias
· etamente produzidas de infra-estruturas urbanas passadas se tornaram parte de
ma vasta transformação da paisagem britânica, a ponto de, no juízo de Hewison,
Inglaterra estar substituindo a manufatura de bens pela manufatura da herança
omo sua principal indústria. Hewison explica o impulso por trás di.sso tudo em
ermos que lembram um pouco Rossi:
O impulso de preservar o passado é parte do impulso de preservar o eu. Sem
saber onde estivemos, é difícil saber para onde estamos indo. O passado é o
fundamento da identidade individual e coletiva; objetos do passado são a fonte
da significação como símbolos culturais. A continuidade entre passado e presente cria um sentido de seqüência para o caos aleatório e, como a mudança
é inevitável, um sistema estável de sentidos organizados nos permite lidar com
a inovação e a decadência. O impulso nostálgico é um importante agente do
ajuste à crise, é o seu emoliente social, reforçando a identidade nacional quando a confiança se enfraquece ou é ameaçada.
Penso que Hewison revela aqui algo de grande importância potencial; porque,
m efeito, a preocupação com a identidade, com raízes pessoais e coletivas, está
.uito mais presente a partir do início dos anos 70 por causa da disseminada
egurança em mercados de trabalho, em mixes tecnológicos, sistemas de crédito
_ c. (ver Parte II). A série de televisão Raízes, que acompanhava a história de uma
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.20 O projeto de Aldo Rossi para alojamentos de
estudantes em Chieti produz uma impressão bem diferente no âmbito
do ecletismo da arquitetura pós-moderna.
família negra americana desde as origens africanas, espalhou uma onda de pesquisas de história familiar, e de interesse por esse tema, por todo o mundo ocidental.
Infelizmente, mostrou-se impossível separar a inclinação pós-moderna de citação histórica e populismo da tarefa simples de atender a impulsos nostálgicos,
quando não de alcovitá-los. Hewison vê uma relação entre a indústria da herança
e o pós-modernismo: "Os dois conspiram para criar uma tela oca que intervém
entre a nossa vida presente e a nossa história. Não temos uma compreensão profunda da história, recebendo em vez disso uma criação contemporânea, que é mais
um drama e uma re-representação de costumes do que discurso crítico".
O mesmo julgamento pode ser aplicado ao modo como a arquitetura e o projeto pós-modernos citam a vasta gama de informações e de imagens de formas
urbanas e arquitetônicas presentes em diferentes partes do mundo. Todos trazemos, diz Jencks, um musée imaginaire na mente, extraído da experiência (muitas
vezes turística) de outros lugares e do conhecimento adquirido em filmes, na televisão, em exposições, em brochuras de viagem, revistas populares etc. É inevitável,
diz ele, que tudo isso se agregue, sendo tanto excitante quanto saudável que seja
assim. "Por que nos restringirmos ao presente, ao local, se podemos viver em
épocas e culturas distintas? O ecletismo é a evolução natural de uma cultura que
tem escolha." Lyotard apresenta um eco exato desse sentimento: " O ecletismo é o
grau zero da cultura geral contemporânea. Ouvimos reggae, assistimos faroestes,
almoçamos no McDonalds e jantamos comida local, usamos perfume de Paris em
Tóquio e roupas ' retrô' em Hong Kong" .
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
87
A geografia de gostos e culturas diferenciados se torna um pot-pourri de internacionalismo que em muitos aspectos é mais espantoso, talvez porque mais saturado,
do que o alto internacionalismo já o foi. Quando acompanhado por fortes ondas de
migração (não somente do trabalho como do capital), isso produz uma pletora de
"pequenas" Itálias, Havanas, Tóquios, Coréias, Kingstons e Karachis, bem como
Chinatowns, barrios latinos, quarteirões árabes, zonas turcas etc. Mas o efeito, mesmo
numa cidade como São Francisco, onde as minorias, juntas, são a maioria, é estender um véu sobre a geografia real através da construção de imagens e reconstruções, dramas de costumes, festivais étnicos e assim por diante.
O mascaramento vem não só da inclinação pós-moderna de citação eclética,
mas de um evidente fascínio pelas superfícies. Jameson (1984b), por exemplo, acredita que as superfícies de vidro refletor do Hotel Bonaventure servem para "repelir
a cidade lá fora", mais ou menos como óculos de sol evitam que quem vê seja visto,
o que permite ao hotel "uma peculiar e deslocada dissociação" de sua vizinhança.
As colunas, a ornamentação, as extensas citações de diferentes estilos (no tempo e
no espaço) planejadas dão a boa parte da arquitetura pós-moderna a sensação de
"falta de profundidade planejada" de que Jameson se queixa. Mesmo assim, o
mascaramento confina o conflito entre, por exemplo, o historicismo de ter raízes
num lugar e o internacionalismo do estilo extraído do musée imaginaire, entre função e fantasia, entre o objetivo do produtor de significar e a propensão do consumidor de receber a mensagem.
Ilustração 1.21 Distúrbios, incêndios e saques eram um espetáculo urbano demasiado
freqüente nas cidades médias americanas nos anos 60. Baltimore, em abril de 1968,
depois do assassinato de Martin Luther King, foi um dentre muitos exemplos.
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.22 A renovação urbana de Baltimore, nos anos 60,
no estilo modernista: o Federal Building na Hopkins Plaza.
Por trás de todo esse ecletismo (em particular no campo da citação histórica e
geográfica), é difícil vislumbrar algum projeto proposital particular. E, no entanto,
parece haver efeitos que são por si mesmos tão propositais e disseminados que,
retrospectivamente, é difícil não atribuir isso a um mesmo conjunto de princípios.
Darei um exemplo para ilustrar.
"Pão e circo" é uma fórmula antiga e consagrada de controle social. Tem sido
freqüente o seu uso consciente para pacificar elementos descontentes ou agitados
de uma população. Mas o espetáculo também pode ser um aspecto essencial do
movimento revolucionário (ver, por exemplo, o estudo de Ozouf, de 1988, dos
festivais como meio de exprimir a vontade revolucionária na Revolução Francesa).
Afinal, não foi o próprio Lênin que se referiu à revolução como "o festival do
povo"? O espetáculo sempre foi uma potente arma política. Como tem sido apresentado o espetáculo urbano nos últimos anos?
Nas cidades americanas, o espetáculo urbano dos anos 60 se constituiu a partir
dos movimentos de oposição de massa da época. Manifestações pelos direitos civis,
distúrbios de rua, levantes nas cidades, vastas manifestações contra a guerra e
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
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eventos contraculturais (concertos de rock em particular) eram trigo para o cortante
moinho do descontentamento urbano que girava em torno da base dos projetos
modernistas de habitação e de renovação urbanas. Mas, mais ou menos por volta
de 1972, o espetáculo fora capturado por forças bem diferentes e empregado para
fins bem distintos. A evolução do espetáculo urbano numa cidade como Baltimore
é típica e instrutiva.
Na esteira dos distúrbios que irromperam depois do assassinato de Martin
Luther King em 1968 (Ilustração 1.21), um pequeno grupo de políticos, profissionais e líderes de negócios influentes se reuniram para ver se havia alguma maneira
de reunir a cidade. O esforço de renovação urbana tinha criado um centro da
cidade altamente funcional e fortemente modernista de escritórios, praças e, por
vezes, exemplares espetaculares de arquitetura como o prédio do One Charles
Centre, de Mies van der Rohe (ilustrações 1.22 e 1.23). Mas os distúrbios ameaçavam a vitalidade do centro e a viabilidade dos investimentos já feitos. Os líderes
procuraram um símbolo em torno do qual construir a idéia da cidade como comunidade, de uma cidade que pudesse confiar em si o bastante para superar as divisões e a mentalidade de cerco com que o cidadão comum encarava o centro da
cidade e seus espaços públicos. "Devido à necessidade de combater o medo e o
Ilustração 1.23 O modernismo na renovação urbana de Baltimore: o
prédio do One Charles Centre, de Mies van der Rohe.
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
não-uso das áreas do centro da cidade, causados pelo descontentamento cívico do
final dos anos 60", disse um relatório ulterior do Departamento de Habitação e
Desenvolvimento Urbano, "a Baltimore City Fair surgiu ... como forma de promover o redesenvolvimento urbano." A feira pretendia celebrar a vizinhança e a diversidade étnica da cidade, que até se deu ao trabalho de promover a identidade
étnica (em oposição à racial). No primeiro ano (1970), ela recebeu 340.000 visitantes, alcançando, em 1973, quase dois milhões.
Maior, mas, passo a passo, inexoravelmente menos "familiar" e mais comercial
(os próprios grupos étnicos começaram a lucrar com a venda da etnicidade), a feira
se tornou a principal causa da atração regular de multidões cada vez maiores para
o centro d a cidade, para assistirem a toda espécie de espetáculos. Bastou um passo
para a comercialização institucionalizada de um espetáculo mais ou menos permanente na construção de Harbor Place (um desenvolvimento à beira-mar que, segundo dizem, hoje atrai mais pessoas que a Disneylândia), de um centro de ciências, de um aquário, de um centro de convenções, de uma marina, de inúmeros
hotéis, de cidadelas do prazer de toda espécie. Julgada por muitos um notável
sucesso (apesar de o impacto sobre a pobreza, a falta de habitação, a assistência
Ilustração 1.24 Baltimore vai à Feira da Cidade: uma colagem de cenas de um
espetáculo urbano administrado e controlado (Apple Pie Graphics).
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
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Ilustração 1.25 Harbor Place procura criar uma atmosfera pós-modernista de lazer
espalhada em torno de cenas modernistas de renovação urbana.
médica e o fornecimento de oportunidades de educação na cidade ter sido insignificante e, talvez, negativo), essa forma de desenvolvimento exigia uma arquitetura totalmente diferente do modernismo austero da renovação do centro das cidades que dominara os anos 60. Uma arquitetura do espetáculo, com sua sensação
de brilho superficial e de prazer participativo transitório, de exibição e de
efemeridade, de jouissance, se tornou essencial para o sucesso de um projeto dessa
espécie (ilustrações 1.24, 1.25, 1.26).
Baltimore não estava sozinha na construção desses novos espaços urbanos.
Faneuíl Hall, de Boston, Fishennan's Wharf (com Ghirardelli Square), de São Francisco, South Street Seaport, de Nova Iorque, Riverwalk, de San Antonio, Covent
Garden (que logo seria seguido por Docklands), de Londres, Metrocentre, de
Gateshead, para não falar do famoso West Edmonton Mall, são apenas os aspectos
fixos de espetáculos organizados que incluem eventos mais transitórios como os
Jogos Olímpicos de Los Angeles, o Garden Festival de Liverpool e as novas montagens de quase todos os eventos históricos imagináveis (da Batalha de Hastings
à de Yorktown). Ao que parece, as cidades e lugares hoje tomam muito mais
cuidado para criar uma imagem positiva e de alta qualidade de si mesmos, e têm
procurado uma arquitetura e formas de projeto urbano que atendam a essa neces-
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
sidade. O fato de estarem tão pressionadas e de o resultado ser uma repetição em
série de modelos bem-sucedidos (como Harbor Place, de Baltimore) é compreensível, dada a sombria história da desindustrialização e da reestruturação, que deixaram a maioria das cidades grandes do mundo capitalista avançado com poucas
opções além da competição entre si, em especial como centros financeiros, de consumo e de entretenimento. Dar determinada imagem à cidade através da organização de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio de atrair capital e
pessoas (do tipo certo) num período (que começou em 1973) de competição intenubana e de empreendimentismo urbano intensificados (ver Harvey, 1989).
Embora retornemos a um exame mais detalhado desse fenômeno na Parte III,
é importante aqui observar como a arquitetura e o projeto urbano responderam a
essas necessidades urbanas recém-sentidas. A projeção de uma imagem definida
de lugar abençoada por certas qualidades, a organização do espetáculo e a teatralidade foram conseguidas com uma mistura eclética de estilos, com a citação histórica, com a ornamentação e com a diversificação de superfícies (em Baltimore, a
Scarlett Place exemplifica a idéia de maneira um tanto estranha: ver ilustração
1.27). Todas essas tendências estão exibidas na Piazza d'Itália, de Moore, em Nova
Orleans. Vemos aqui a combinação de muitos dos elementos até agora descritos
num projeto singular e bem espetacular (ilustração 1.28). A descrição no catálogo
Post-modern visions (Klotz, 1985) é bastante reveladora:
Numa área de Nova Orleans que precisava de redesenvolvimento, Charles Moore
criou o espaço público Piazza d'ltalia para a população italiana local. Sua forma
Ilustração 1.26 Os pavilhões de Harbor Place têm a reputação de
atrair tantos visitantes para Baltimore quanto a Disneylândia.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
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Ilustração 1.27 Scarlett Place, de Baltimore, une a preservação histórica (o
Sca1.Zett Seed Warehouse, do século XIX, é incorporado no canto esquerdo) e o
impulso pós-moderno de citação, nesse caso de uma cidade montanhosa
mediterrânea (observe-se ao fundo as habitações públicas modernistas).
e linguagem arquitetônica levaram as funções sociais e comunicativas de uma
praça européia e, mais especificamente, italiana para o sul dos Estados Unidos.
No contexto de um novo conjunto de prédios que cobrem uma área substancial
e apresentam janelas relativamente regulares, retas e angulares, Moore inseriu
uma grande praça circular que representa uma espécie de forma negativa, sendo
por isso ainda mais surpreendente quando rompemos a barreira da arquitetura
circundante. Há um pequeno templo na entrada anunciando a linguagem formal
da praça, que é estruturada por colunatas fragmentadas. No centro do arranjo está
uma fonte, o "Mediterrâneo" banhando a bota da Itália, que vem desde os "Alpes". A localização da Sicília no centro da praça é um tributo ao fato de a população italiana da área ser majoritariamente de imigrantes dessa ilha.
As arcadas, diante das fachadas convexas do prédio em torno da praça, fazem
uma referência irônica às cinco ordens da coluna clássica (dórica, jônica, coríntia,
toscana e composta), ao colocá-las num contínuo sutilmente colorido que deve
alguma coisa à Pop Art. As bases das colunas estriadas são formadas como
peças de uma arquitrave fragmentada, mais uma forma negativa que um detalhe arquitetônico plenamente tridimensional. Sua elevação tem faces de
mármore e a sua secção transversal é como uma fatia de bolo. As colunas são
separadas dos seus capitéis coríntios por anéis de tubos de neon, que à noite
lhes dá coloridos colares luminosos. A arcada arqueada no topo da bota italiana também tem luzes de neon na fachada. Outros capitéis assumem uma forma
angular precisa e estão sob a arquitrave como broches Art Deco, enquanto
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Ilustração 1.28 A Piazza d'Italia (Nova Orleans), de Charles Moore, é citada
freqüentemente como uma das obras clássicas da arquitetura pós-modernista.
outras colunas apresentam outras variações, com estrias criadas por jatos de
água.
Tudo isso faz o vocabulário dignificado da arquitetura clássica atualizar-se
com técnicas da Pop Art, com uma paleta pós-moderna e com a teatralidade.
A obra concebe a história como um contínuo de acessórios portáteis, refletindo
o modo pelo qual os próprios italianos foram "transplantados" para o Novo
Mundo. Apresenta um quadro nostálgico dos palácios barrocos e renascentistas
italianos e de suas praças, mas, ao mesmo tempo, há um sentido de deslocamento. Afinal, não se trata de realismo, mas de uma fachada, de um cenário
teatral, de um fragmento inserido num contexto novo e moderno. A Piazza
d'Italia é tanto uma obra de arquitetura como de teatro. Na tradição da "res
publica" italiana, é um lugar para o público se reunir; mas, ao mesmo tempo,
não se leva muito a sério e pode ser um lugar para jogos e diversões. As
características alienadas da pátria italiana agem como embaixadores do Novo
Mundo, reafirmando assim a identidade da população vizinha num distrito de
Nova Orleans que ameaça tornar-se decadente. Essa praça deve ser considerada um dos mais importantes e notáveis exemplos da construção pós-moderna
do mundo. O erro de muitas publicações tem sido mostrar a praça isolada,
quando o modelo mostra a integração bem-sucedida desse evento teatral no
seu contexto de prédios modernos.
O PÓS-MODERNISMO NA CIDADE
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Mas, se a arquitetura é uma forma de comunicação e a cidade, um discurso, o
que pode tal estrutura, inserida no tecido urbano de Nova Orleans, dizer ou significar? Os próprios pós-modernistas provavelmente vão responder que depende
pelo menos tanto, senão mais, dos olhos que contemplam como dos pensamentos
do produtor. Mas há certa ingenuidade fácil nessa resposta. Porque há demasiada
coerência entre as imagens da vida na cidade apresentadas em livros como Soft city
de Raban e o sistema de produção arquitetônica e projeto urbano aqui descrito
para que não haja nada de particular sob o brilho da superfície. O exemplo do
espetáculo sugere certas dimensões de sentido social, e a Piazza d'ltalia de Moore
dificilmente é inocente no que procura dizer e na maneira como o diz. Vemos ali
o gosto pela fragmentação, o ecletismo de estilos, os tratamentos peculiares do
espaço e do tempo ("a história como um contínuo de acessórios portáteis"). Há
alienação compreendida (ocamente) em termos de emigração e formação de bairros pobres, que o arquiteto tenta recuperar por meio da construção de um lugar
onde a identidade possa ser reclamada mesmo em meio ao comercialismo, à pop
art e a todos os atavios da vida moderna. A teatralidade do efeito, o esforço de
alcançar jouissance e o efeito esquizofrênico (no sentido de Jencks) estão conscienemente presentes ali. A arquitetura e o projeto urbano dessa espécie transmitem
:obretudo um sentido de alguma busca de um mundo de fantasia, da "viagem"
ilusória que nos tire da realidade corrente e nos leve à imaginação pura. A matéria
o modernismo, declara abertamente o catálogo da exposição Post-modem visions
Klotz, 1985), não é "apenas a função, mas a ficção".
Charles Moore representa apenas uma corrente prática do guarda-chuva eclético
do pós-modernismo. A Piazza d'Italia dificilmente seria aprovada por Leon Krier,
cujos instintos de retomada do clássico são tão fortes que às vezes o põem totalmente fora da designação pós-moderna, instintos que parecem bem estranhos
uando justapostos a um projeto de Aldo Rossi. Além disso, o ecletismo e as
imagens pop que estão no cerne da linha de pensamento que Moore representa
:eceberam fortes críticas precisamente devido à falta de rigor teórico e às concepções populistas. A linha mais forte de ataque vem agora do chamado "desconstru'vismo". Em parte como reação ao modo pelo qual boa parte do movimento pós-moderno se tornou a corrente dominante e gerou uma arquitetura popularizada
ye é exuberante e tolerante, o desconstrutivismo procura recuperar os altos padrões de elite e de prática arquitetônica vanguardista através da desconstrução do
odernismo dos construtivistas russos dos anos 30. Parte do interesse que o mo:imento desperta se deve ao seu esforço deliberado de fundir o pensamento des-onstrucionista advindo da teoria literária com práticas arquitetônicas pós-moder!laS que muitas vezes parecem ter se desenvolvido segundo uma lógica toda pró- ria. Ele compartilha com o modernismo a preocupação de explorar a forma e o
paço puros, mas o faz de uma maneira que concebe o prédio não como um todo
:mificado, mas como '"textos' e partes disparatados que permanecem distintos e
ão alinhados, sem adquirir sentido de unidade", e que são, portanto, suscetíveis
..:e várias leituras "assimétricas e irreconciliáveis". O que o desconstrutivismo tem
m-~ comum com boa parte do pós-modernismo é, porém, sua tentativa de refletir
um mundo desgovernado sujeito a um sistema econômico, político e moral desorganizado". Mas ele o faz de modo a ser "desorientador, e até promotor da confu-
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'
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
são", para assim produzir uma ruptura nas "nossas maneiras habituais de perceber
a forma e o espaço". A fragmentação, o caos, a desordem, mesmo dentro de uma
ordem aparente, permanecem como temas centrais (Goldberger, 1988; Giovannini,
1988).
Ficção, fragmentação, colagem e ecletismo, todos infundidos de um sentido de
efemeridade e de caos, são, talvez, os temas que dominam as atuais práticas da
arquitetura e do projeto urbano. E, evidentemente, há aqui muita coisa em comum
com práticas e pensamentos de muitos outros campos, como a arte, a literatura, a
teoria social, a psicologia e a filosofia. Como, então, a atitude prevalecente toma a
forma que toma? Para responder a essa pergunta com alguma consistência, primeiro temos de examinar as realidades mundanas da modernidade e da pós-modernidade capitalistas e verificar que indícios poderão estar aí quanto às possíveis
funções dessas ficções e fragmentações na reprodução da vida social.
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Modernização
O modernismo é uma perturbada e fugidia resposta estética a condições de
!lodernidade produzidas por um processo particular de modernização. Em conseüência, uma interpretação adequada da ascensão do pós-modernismo tem de se
aver com a natureza da modernização. Somente assim poderá ela ser capaz de
ulgar se o pós-modernismo é uma reação diferente a um processo imutável de
odernização ou pressagia ou reflete uma mudança radical da natureza da pró- ria modernização, rumo a, por exemplo, algum tipo de sociedade "pós-indusrrial" ou mesmo "pós-capitalista".
Marx oferece uma das primeiras e mais completas interpretações da modernização capitalista. Penso ser útil começar por ela, não somente porque Marx foi, co_m o
ega Bem1an, um dos primeiros grandes escritores modernistas, combinando todo o
- ego e vigor do pensamento iluminista com um sentido nuançado dos paradoxos
contradições a que o capitalismo está sujeito, mas também porque a teoria da
dernização capitalista por ele oferecida favorece uma leitura particularmente
tigante quando confrontada com as teses culturais da pós-modernidade.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels afirmam que a burguesia criou um
novo internacionalismo através do mercado mundial, ao lado da "sujeição das
·orças da natureza ao homem, do maquinário, da aplicação da química à agricul-ura e à indústria, da navegação a vapor, das estradas de ferro, do telégrafo, da
evastação de continentes inteiros para cultivo, da canalização de rios, do surgimento de populações inteiras como por encanto". Fê-lo a um alto custo: violência,
destruição de tradições, opressão, redução da avaliação de toda atividade ao frio
álculo do dinheiro e do lucro. Além disso:
Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema
social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época
burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente
veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo
de ossificar-se. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é
profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade
suas condições de existência e suas relações recíprocas (Marx e Engels, 1952,
25).
Os sentimentos por certo equivalem aos de Baudelaire e, como assinala Berman,
Marx aqui desata uma retórica que define o lado subterrâneo de toda a estética
m odernista. Mas o que há de especial em Marx é a maneira como ele disseca a
origem dessa condição geral.
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
Por exemplo, Marx começa O Capital com uma análise da mercadoria, das
coisas cotidianas (comida, abrigo, roupa etc.) que consumimos no curso da nossa
própria reprodução. Mas a mercadoria é, adverte ele, "uma coisa misteriosa", porque
incorpora simultaneamente um valor de uso (ela atende a um desejo ou necessidade particular) e um valor de troca (posso usá-la como objeto de barganha para
conseguir outras mercadorias). Essa dualidade sempre torna a mercadoria ambígua para nós; devemos consumi-la ou trocá-la? Mas, à medida que as relações de
troca proliferam e se formam os mercados de fixação de preços, uma mercadoria
é cristalizada tipicamente como dinheiro. Com o dinheiro, o mistério da mercadoria assume uma nova dimensão, porque o valor de uso do dinheiro está em sua
representação do mundo do trabalho social e do valor de troca. O dinheiro lubrifica a troca, mas, sobretudo, se torna o meio pelo qual comparamos e avaliamos
tipicamente, tanto antes como depois do fato da troca, o valor de todas as mercadorias. Em suma, como a maneira pela qual atribuímos valor às coisas é importante, uma análise da forma dinheiro e das conseqüências advindas do seu uso tem
interesse fundamental.
O advento de uma economia do dinheiro, alega Marx, dissolve os vínculos e
relações que compõem as comunidades "tradicionais", de modo que o "dinheiro se
torna a verdadeira comunidade". Passamos de uma condição social em que dependemos de maneira direta de pessoas a quem conhecemos pessoalmente para uma
situação em que dependemos de relações impessoais e objetivas com outras pessoas. Com a proliferação das relações de troca, o dinheiro aparece cada vez mais
como "um poder exterior aos produtores e independente deles", razão pela qual
o que "originalmente surge como meio de promoção da produção torna-se uma
relação alheia" a eles. A preocupação com o dinheiro domina os produtores. O
dinheiro e a troca no mercado põem um véu, "mascaram" as relações sociais entre
as coisas. Essa condição é denominada por Marx "fetichismo da mercadoria". Trata-se de uma das mais importantes percepções marxianas, porque apresenta o
problema da interpretação das relações reais, mas mesmo assim superficiais, que
podemos observar prontamente no mercado em termos sociais apropriados.
As condições de trabalho e de vida, a alegria, a raiva ou frustração que estão
por trás da produção de mercadorias, os estados de ânimo dos produtores, tudo
isso está oculto de nós ao trocarmos um objeto (o dinheiro) por outro (a mercadoria). Podemos tomar o nosso café da manhã sem pensar na miríade de pessoas
envolvidas em sua produção. Todos os vestígios de exploração são obliterados no
objeto -não há impressões digitais da exploração no pão de cada dia. Não podemos dizer, a partir da contemplação de um objeto no supermercado, que condições
de trabalho estiveram por trás de sua produção. O conceito de fetichismo explica
como, em condições de modernização capitalista, podemos ser tão objetivamente
dependentes de "outros" cuja vida e aspirações permanecem tão totalmente opacas
para nós. A m etateoria de Marx procura derrubar essa máscara fetichista e entender as relações sociais que estão por trás dela. Ele por certo acusaria os pós-modernistas que proclamam a "impenetrabilidade do outro" como seu credo de aberta
cumplicidade com o fato do fetichismo e de indiferença aos significados sociais
subjacentes. O interesse das fotografias de Cindy Sherman (ou, quanto a isso,
qualquer romance pós-moderno) é o fato de se concentrarem em máscaras sem um
MODERNIZAÇÃO
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comentário direto sobre sentidos sociais a não ser quanto à própria atividade de
mascaramento.
Mas é possível aprofundar a análise do dinheiro. Para realizar suas funções
com eficácia, alega Marx, ele deve ser substituído por meros símbolos de si mesmo
(moedas, símbolos, papel-moeda, crédito), o que o leva a ser considerado um mero
símbolo, uma "ficção arbitrária" sancionada pelo "consentimento universal da
humanidade". Mas é através dessas "ficções arbitrárias" que todo o mundo do
trabalho social, da produção e do trabalho duro dÍário é representado. Na ausência
do trabalho social, o dinheiro de nada valeria; mas é somente através do dinheiro
que o trabalho social pode ser representado.
Os poderes mágicos do dinheiro recebem o acréscimo da maneira corno os
proprietários "emprestam sua voz" às mercadorias ao colarem urna etiqueta de
preço nelas, apelando para "sinais cabalísticos" com nomes como libras, dólares,
francos. Logo, embora o dinheiro seja o significante do valor do trabalho social, há
o perigo perpétuo de que o significante se torne o objeto da ambição e do desejo
humanos (o entesourador, o miserável avaro etc.). Essa probabilidade se torna
certeza quando se reconhece que o dinheiro, de um lado um "nivelador radical"
de todas as outras formas de distinção social, é ele mesmo uma forma de poder
social que pode ser apropriada como "o poder social de pessoas privadas". A
sociedade moderna, conclui Marx, "logo depois do seu nascimento, puxou Plutão
pelos cabelos da cabeça, retirando-o das entranhas da terra, saudando o ouro corno
o seu Santo Graal, como a encarnação brilhante do próprio princípio de sua própria vida". Será que o pós-modernismo assinala uma reinterpretação ou um reforço do papel do dinheiro como o objeto próprio do desejo? Baudrillard descreve a
cultura pós-moderna como "cultura do excremento", e dinheiro = excremento tanto em Baudrillard como em Freud (alguns vestígios desse sentimento estão presentes em Marx). As preocupações pós-modernas com o significante e não com o
significado, com o meio (o dinheiro) e não com a mensagem (o trabalho social),
com a ênfase na ficção e não na função, nos signos em vez das coisas, antes na
estética do que na ética, sugerem um reforço, e não uma transformação, do papel
do dinheiro descrito por Marx.
Contudo, na qualidade de produtores de mercadorias em busca de dinheiro,
dependemos das necessidades e da capacidade de compra dos outros. Em conseqüência, os produtores têm um permanente interesse em cultivar "o excesso e a
intemperança" nos outros, em alimentar "apetites imaginários" a ponto de as idéias
sobre o que constitui a necessidade social serem substituídas pela "fantasia, pelo capricho e pelo impulso" . O produtor capitalista tem cada vez mais "o papel de alcovieiro" entre os consumidores e seu sentido de necessidade, excitando neles "apetites
mórbidos, à espreita de cada uma de suas fraquezas- tudo isso para que possa exigir
o numerário pelo seu serviço de amor". O prazer, o lazer, a sedução e a vida erótica
são trazidos para o âmbito do poder do dinheiro e da produção de mercadorias.
Portanto, o capitalismo "produz, de um lado, a sofisticação das necessidades e dos
seus meios, e, de outro, uma bestial barbarização, uma completa, brutal e abstrata
simplificação da necessidade" (Marx, 1964, 148). A propaganda e a comercialização
destroem todos os vestígios da produção em suas imagens, reforçando o fetichismo
que surge automaticamente no curso da troca no mercado.
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
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Além disso, o próprio dinheiro, como representação suprema do poder social
na sociedade capitalista, se torna objeto de luxúria, de ambição e de desejo. Mas
também nesse plano deparamos com duplos sentidos. O dinheiro confere o privilégio de exercer poder sobre outros- podemos comprar seu tempo de trabalho ou
os serviços que oferecem, e até criar relações sistemáticas de domínio de classes
exploradas apenas com o controle sobre o poder do dinheiro. Na verdade, o dinheiro funde o político e o econômico numa genuína economia política de
avassaladoras relações de poder (um problema que os microteóricos do poder
como Foucault evitam sistematicamente e que os teóricos macrossociais como
Giddens- com a sua divisão estrita entre fontes alocativas e autoritárias de poder
-não conseguem apreender). As linguagens materiais comuns do dinheiro e da
mercadoria fornecem uma base universal no capitalismo de mercado para ligar
todos a um sistema idêntico de avaliação do mercado e, assim, promover a reprodução da vida social através de um sistema objetivo de ligação social. Mas, nessas
restrições amplas, estamos "livres", por assim dizer, para desenvolver à nossa
própria maneira nossa personalidade e nossas relações, nossa "alteridade", e até
para forjar jogos de linguagem grupais, desde, é claro, que tenhamos dinheiro
bastante para viver satisfatoriamente. O dinheiro é um" grande nivelador e cínico",
um poderoso solapador das relações sociais fixas e um grande "democratizador".
Como poder social passível de ser detido por pessoas individuais, ele forma a base
de uma liberdade individual muito ampla, uma liberdade que pode ser empregada
no nosso desenvolvimento como indivíduos livre-pensadores, sem referência aos
outros. O dinheiro unifica precisamente através de sua capacidade de acomodar o
individualismo, a alteridade e uma extraordinária fragmentação social.
Mas por qual processo a capacidade de fragmentação latente na forma dinheiro é transformada numa característica necessária da modernização capitalista?
A participação na troca de mercado pressupõe certa divisão do trabalho, bem
como a capacidade de separação (alienação) do produtor com relação ao seu produto. O resultado é um estranhamento com relação ao produto da nossa própria
experiência, uma fragmentação de tarefas sociais e uma separação do significado
subjetivo de um processo de produção da avaliação objetiva de mercado do produto. Uma divisão social e técnica altamente organizada do trabalho, embora de
modo algum seja peculiar ao capitalismo, é um dos princípios fundadores da
modernização capitalista. Isso forma uma poderosa alavanca de promoção do crescimento econômico e da acumulação do capital, em particular sob condições de
troca de mercado em que os produtores individuais de mercadorias (protegidos
por direitos privados de propriedade) podem explorar as possibilidades de especialização num sistema econômico aberto. O que explica o poder do liberalismo
econômico (do livre mercado) como doutrina fundadora do capitalismo. É precisamente nesse contexto que o individualismo possessivo e o empreendimentismo, a
inovação e a especulação criativos podem florescer, embora isso também implique
uma proliferante fragmentação de tarefas e responsabilidades, bem como uma transformação necessária das relações sociais que chega a ponto de forçar os produtores
a ver os outros em termos puramente instrumentais.
Mas o capitalismo não se restringe à produção de mercadorias e à troca de
mercado. Certas condições históricas - em especial a existência do trabalho assa-
L.:__ _ __
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MODERNIZAÇÃO
101
lariado - são necessárias antes de a busca de lucro - pôr dinheiro em circulação
para ganhar mais dinheiro - poder se tornar o modo básico de reprodução da vida
social. Baseada na violenta separação entre a massa de produtores diretos e o
controle dos meios de produção, a emergência do trabalho assalariado- pessoas
que têm de vender força de trabalho para viver- é o "resultado de muitàs revoluções, da extinção de toda uma série de modos de produção mais antigos" (Capital, 1: 166-7). O sentido de uma ruptura radical, total e violenta com o passado
- outro elemento básico da sensibilidade modernista - é onipresente no relato de
Marx sobre as origens do capitalismo.
Mas Marx avança ainda mais. A conversão do trabalho em trabalho assalariado
significa "a separação entre o trabalho e o seu produto, entre a força de trabalho
subjetiva e as condições objetivas do trabalho" (Capital, 1: 3). Trata-se de um tipo
bem distinto de troca de mercado. Os capitalistas, ao comprar força de trabalho,
tratam-na necessariamente em termos instrumentais. O trabalhador é visto antes
como uma "mão" do que como pessoa inteira (para usar o comentário satírico de
Dickens em Hard Times), e o trabalho contribuído é um "fator" (observe-se a
reificação) de produção. A compra de força de trabalho com dinheiro dá ao capitalista certos direitos de dispor do trabalho dos outros sem considerar necessariamente o que estes possam pensar, precisar ou sentir. A onipresença dessa relação
de domínio de classe, compensada somente na medida em que os trabalhadores ·
lutem ativamente para afirmar seus direitos e exprimir seus sentimentos, sugere
um dos princípios fundadores sobre os quais a própria idéia de "alteridade" é
produzida e reproduzida de maneira contínua na sociedade capitalista. O mundo
da classe trabalhadora torna-se o domínio do "outro", tornado necessariamente
opaco e potencialmente não conhecível em virtude do fetichismo da troca de
mercado. Eu ainda acrescentaria que, se já houver na sociedade membros (mulheres, negros, povos colonizados, minorias de todo tipo) que possam ser conceituados prontamente como o outro, a união da exploração de classe com o sexo, a raça,
o colonialismo, a etnicidade etc. pode produzir toda espécie de resultados desastrosos. O capitalismo não inventou "o outro", mas por certo fez uso dele e o
promoveu sob formas dotadas de um alto grau de estruturação.
Os capitalistas podem utilizar seus direitos de modo estratégico para impor
todo tipo de condições ao trabalhador. Este último costuma estar alienado do produto, do comando do processo de produção, bem como da capacidade de realizar
o valor do fruto de seus esforços - esse valor é apropriado pelo capitalista como
lucro. O capitalista tem o poder (que de forma alguma é arbitrário ou total) de
mobilizar os poderes da cooperação, da divisão do trabalho e do maquinário como
poderes do capital sobre o trabalho. Disso resulta uma detalhada divisão organizada do trabalho na fábrica, o que reduz o trabalhador a um fragmento de pessoa.
"A fábula absurda de Menenius Agrippa, que torna um homem um mero fragmeno de seu próprio corpo, se concretiza" (Capital, 1: 340). Aqui encontramos o princípio da divisão do trabalho com uma aparência bem distinta. Enquanto a divisão
do trabalho na sociedade "põe em contato produtores independentes de mercadorias, que não reconhecem outra autoridade além da competição, da coerção exercida pela pressão dos seus interesses mútuos", a "divisão do trabalho na fábrica
implica a autoridade indisputada do capitalista sobre homens, que não passam de
102
Íh
(.
1- .,
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
partes de um mecanismo que pertence a ele". A anarquia da divisão social do
trabalho é substituída pelo despotismo - levado a efeito por meio de hierarquia
de autoridades e estreita supervisão de tarefas - da fábrica.
Essa fragmentação forçada, que é tanto social como técnica num mesmo processo de trabalho, é acentuada pela perda do controle sobre os instrumentos de
produção, que transforma o trabalhador, efetivamente, num "apêndice" da máquina. A inteligência (conhecimento, ciência, técnica) é objetificada na máquina, separando o trabalho manual do trabalho mental e reduzindo sua aplicação por parte
dos produtores diretos. Em todos esses planos, o trabalhador individual é "tornado
pobre" em poderes produtivos individuais "para tornar o trabalhador coletivo e,
através dele, o capital, rico em força produtiva social" (Capital, 1: 341). Esse processo não pára nos produtores diretos, nos camponeses tirados da terra, nas mulheres
e crianças forçadas a trabalhar nas fábricas e minas. A burguesia "rompeu
impiedosamente os vínculos feudais heterogêneos que ligavam o homem aos seus
'superiores naturais' e não deixou outro nexo entre o homem e o homem além do
insensível'pagamento em dinheiro' . ... [Ela] privou do seu halo toda ocupação até
então honrada e encarada com reverência. Ela converteu o médico, o advogado, o
sacerdote, o poeta, o hon1en1 de ciência etn seus trabalhadores ~ssalariados" (O
manifesto comunista, 45).
Como é então que a "burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção?" A resposta que Marx dá em O Capital é completa e convincente. As "leis coercitivas" da
competição de mercado forçam todos os capitalistas a procurar mudanças tecnológicas e organizacionais que melhorem sua lucratividade com relação à média social, levando todos os capitalistas a saltos de inovação dos processos de produção
que só alcançam seu limite sob condições de maciços superávits de trabalho. A
necessidade de manter o trabalhador sob controle na fábrica e de reduzir o seu
poder de barganha no mercado (particularmente sob condições de relativa escassez
de trabalho e ativa resistência de classe) também estimula o capitalista a inovar. O
capitalismo é por necessidade tecnologicamente dinâmico, não por causa das míticas
capacidades do empreendedor inovador (como Schumpeter viria a alegar), mas
por causa das leis coercitivas da competição e das condições de luta de classes
endêmicas no capitalismo.
O efeito da inovação contínua é, no entanto, desvalorizar, senão destruir, investimentos e habilidades de trabalho passados. A destruição criativa está embutida
na própria circulação do capital. A inovação exacerba a instabilidade e a insegurança, tornando-se, no final, a principal força que leva o capitalismo a periódicos
paroxismos de crise. Não somente a vida da indústria moderna passa a ser uma
série de períodos de atividade moderada, prosperidade, excesso de produção, crise
e estagnação, "mas a incerteza e a instabilidade a que as máquinas sujeitam o
emprego e, em conseqüência, as condições de existência, dos operadores se tornam
normais". Além disso:
Todos os meios de desenvolvimento da produção se transformam em meios de
domínio sobre os produtores e de exploração deles; eles mutilam o trabalhador, tornando-o um fragmento de homem, degradam-no ao nível de um apên-
MODERNIZAÇÃO
103
dice da máquina, destroem todos os resquícios de encanto do seu trabalho, que
passa a ser uma labuta odiosa; eles o alienam das potencialidades intelectuais
do processo de trabalho na mesma proporção em que a ciência é incorporada
neste como força independente; eles distorcem as condições nas quais ele trabalha, sujeitando-o, durante o processo de trabalho, a um despotismo tanto
mais odioso quanto mais humilhante; eles transformam seu tempo de vida em
tempo de trabalho, esmagando sua esposa e filhos sob as engrenagens do
capital (Capital, 1:604).
A luta pela manutenção da lucratividade apressa os capitalistas a explorarem
todo tipo de novas possibilidades. São abertas novas linhas de produto, o que
significa a criação de novos desejos e necessidades. Os capitalistas são obrigados
a redobrar seus esforços para criar novas necessidades nos outros, enfatizando o
cultivo de apetites imaginários e o papel da fantasia, do capricho e do impulso. O
resultado é a exacerbação da insegurança e da instabilidade, na medida em que
massas de capital e de trabalho vão sendo transferidas entre linhas de produção,
deixando setores inteiros devastados, enquanto o fluxo perpétuo de desejos, gostos
e necessidades do consumidor se torna um foco permanente de incerteza e de luta.
Abrem-se necessariamente novos espaços quando os capitalistas procuram novos
mercados, novas fontes de matérias-primas, uma nova força de trabalho e locais
novos e mais lucrativos para operações de produção. O impulso de realocação para
locais mais vantajosos (o movimento geográfico do capital e do trabalho) revoluciona periodicamente a divisão territorial e internacional do trabalho, acrescentando à insegurança uma dimensão geográfica vital. A resultante transformação da
experiência do espaço e do lugar é acompanhada por revoluções na dimensão do
tempo, na medida em que os capitalistas tentam reduzir o tempo de giro do seu
capital a um "piscar de olhos" (ver a Parte III). Em resumo, o capitalismo é um
sistema social que internaliza regras que garantem que ele permaneça uma força
permanentemente revolucionária e disruptiva em sua própria história mundial. Se,
portanto, "a única coisa segura sobre a modernidade é a insegurança", não é difícil
ver de onde vem essa insegurança.
Contudo, insiste Marx, há um princípio unitário que sustenta e dá forma a
odo esse distúrbio revolucionário, à fragmentação e à insegurança perpétua. O
princípio reside no que ele denomina, bem abstratamente, "valor em movimento",
ou, mais simplesmente, a circulação do capital, incansável e eternamente em busca
de novas maneiras de auferir lucros. Do mesmo modo, há sistemas coordenadores
de ordem superior que parecem ter o poder - embora, no final, Marx insista ser
ele transitório e ilusório- de impor ordem a todo esse caos e de assentar os trilhos
da modernização capitalista num terreno mais aceitável. O sistema de crédito, por
exemplo, tem um certo poder de regular os usos do dinheiro; os fluxos de dinheiro
podem ser revertidos para estabilizar relações entre produção e consumo, arbitrar
entre despesas correntes e necessidades futuras e transferir superávits de capital de
uma linha de produção ou região para outra de modo racional. Mas também aqui
encontramos logo uma contradição central, porque a criação do crédito e o desembolso nunca podem estar separados da especulação. Segundo Marx, sempre se
deve considerar o crédito "capital fictício", uma espécie de aposta em dinheiro
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PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
numa produção que ainda não existe. Disso decorre uma permanente tensão entre
o que Marx denomina "sistema financeiro" (cartas de crédito, capital fictício, instrumentos financeiros de todo tipo) e sua "base monetária" (até recentemente vinculada a alguma mercadoria tangível como o ouro ou a prata). Essa contradição se
baseia num paradoxo particular: o dinheiro tem de assumir alguma forma tangível
(ouro, moedas, notas, registro num livro etc.), embora seja uma representação geral
de todo trabalho social. A questão de saber qual das diversas representações tangíveis é dinheiro "real" costuma surgir em épocas de crise. É melhor conservar
ações e certificados, notas, ouro ou latas de atum no meio de uma depressão? Disso
também decorre que aquele que controla a forma tangível mais "real" num dado
momento (os produtores de ouro, o governo, os bancos que dão crédito) tem enorme influência, mesmo que, em última análise, sejam os produtores e trocadores de
mercadorias, juntos, que de fato definem "o valor do dinheiro" (termo paradoxal
que todos compreendemos, mas que em termos técnicos significa "o valor do valor").
Em conseqüência, o controle das regras de formação do dinheiro é um terreno de
luta fortemente contestado que gera uma insegurança e uma incerteza consideráveis quanto ao "valor do valor" . Em fases de expansão especulativas, um sistema
financeiro que parece um recurso saudável para regular as tendências incoerentes
da produção capitalista se torna "o principal elemento da superprodução e da
superespeculação". O fato de a arquitetura pós-moderna considerar-se voltada para
a ficção, e não para a função, parece, à luz das reputações dos financistas, empreendedores e especuladores que organizam a construção, mais do que adequado.
O Estado, constituído como sistema coercitivo de autoridade que detém o
monopólio da violência institucionalizada, forma um segundo princípio organizador
por meio do qual a classe dominante pode tentar impor sua vontade não somente
aos seus oponentes, mas também ao fluxo, à mudança e à incerteza anárquicos a
que a modernidade capitalista sempre está exposta. Os instrumentos vão da
regulação do dinheiro e das garantias legais de contratos de mercado leais às
intervenções fiscais, à criação do crédito e às redistribuições de impostos, passando
pelo fornecimento de infra-estruturas sociais e físicas, controle direto das alocações
de capital e de trabalho, bem como dos salários e dos preços, nacionalização de
setores essenciais, restrições ao poder da classe trabalhadora, vigilância policial,
repressão militar etc. Mas o Estado é uma entidade territorial que se esforça por
impor a sua vontade a um processo fluido e espacialmente aberto de circulação do
capital. Ele tem de enfrentar em suas fronteiras as forças divisivas e efeitos
fragmentadores do individualismo disseminado, da mudança social rápida e de
toda a efemeridade que costuma estar associada à circulação do capital. Ele também depende da taxação e dos mercados de crédito, de modo que os Estados
podem ser disciplinados pelo processo de circulação ao mesmo tempo que podem
tentar promover estratégias particulares de acumulação do capital.
Para fazê-lo com eficácia, o Estado deve criar um sentido de comunidade
que seja uma alternativa ao que se baseia no dinheiro, além de formular uma
definição dos interesses públicos acima dos interesses e lutas de classes e setores
contidos nas suas fronteiras; deve, em resumo, legitimar-se. Portanto, está fadado
a engajar-se em alguma medida na estetização da política. Essa questão é tratada no
estudo clássico de Marx do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Como é que, pergun-
MODERNIZAÇÃO
105
ta ele, mesmo no auge do fermento revolucionário, os próprios revolucionários
"convocam ansiosamente os espíritos do passado para servi-los e tomam deles
nomes, gritos de guerra e aparências para apresentar a nova cena da história do
mundo com esse semblante e com essa linguagem emprestada honrados pelo tempo"? O "despertar do morto nas revoluções [burguesas] serviu ao propósito de
glorificar as novas lutas, e não de parodiar as antigas; de magnificar sua tarefa na
imaginação, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar mais uma vez
o espírito da revolução, e não de fazer o seu fantasma caminhar outra vez". A
invocação do mito pode ter tido um papel-chave em revoluções passadas; mas,
aqui, Marx se esforça por negar o que Sorel mais tarde afirmaria. "A revolução
social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado", afirma Marx, "mas
somente do futuro." Ela deve livrar-se "de toda superstição com relação ao passado", para evitar que "a tradição de todas as gerações mortas pese como um pesadelo na cabeça da viva" e transforme a tragédia catártica da revolução no ritual da
farsa. Ao atacar tão impiedosamente o poder do mito e a estetização da política,
Marx na verdade afirma seus notáveis poderes de sufocar as revoluções progressistas da classe trabalhadora . Para Marx, o bonapartismo era uma forma de
"cesarismo" (com todas as suas alusões clássicas) que poderia, na pessoa de Luís
Bonaparte, que assumia o manto do tio, bloquear as aspirações revolucionárias
tanto da burguesia progressista como da classe trabalhadora. Assim Marx explicou
a estetização da política, que o fascismo mais tarde concretizou de maneira bem
mais virulenta.
A tensão entre a fixidez (e, portanto, estabilidade) que a regulação do Estado
impõe e o movimento fluido do capital permanece um problema crucial para a
organização social e política do capitalismo. Essa dificuldade (à qual retornaremos
na Parte II) é modificada pela maneira como o próprio Estado é disciplinado por
forças internas (nas quais baseia o seu poder) e por condições externas- competição na economia mundial, taxas de câmbio, movimentos de capital, migração, ou,
às vezes, intervenções políticas diretas de potências superiores. Por conseguinte, a
relação entre o desenvolvimento capitalista e o Estado tem de ser vista como
mutuamente determinante, e não unidirecional. Em última análise, o poder do
Estado não pode ser mais nem menos estável do que o permite a economia política
da modernidade capitalista.
Há, no entanto, muitos aspectos positivos na modernidade capitalista. O potencial comando da natureza que surge quando o capitalismo "levanta o véu" dos
mistérios da produção tem uma tremenda capacidade latente de redução das forças das necessidades impostas pela natureza à nossa vida. A criação de novos
desejos e necessidades pode nos alertar para novas possibilidades culturais (do
tipo que os artistas de vanguarda mais tarde explorariam). Mesmo a "variação do
trabalho, fluência de função, mobilidade universal do trabalhador" exigidas pela
indústria moderna têm um potencial de substituir o trabalhador fragmentado "pelo
indivíduo plenamente desenvolvido, apto para uma variedade de trabalhos, pronto para enfrentar qualquer mudança da produção e para quem as diferentes funções realizadas são modalidades que dão livre curso aos seus próprios poderes
naturais e adquiridos" (Capital, 1: 458). A redução d as barreiras espaciais e a formação do mercado mundial permitem um acesso generalizado aos produtos diver-
106
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
sificados de diferentes climas e regiões, além de nos fazerem entrar em contato
direto com todos os povos da terra. E, sobretudo, as revoluções na força produtiva,
na tecnologia e na ciência abrem novos panoramas para o desenvolvimento e a
auto-realização humanos.
É particularmente útil examinar essas concepções no tocante às relações do
modernismo "heróico" com a mitologia. Esta última, afirma Marx, "controla e
molda as forças da natureza na imaginação e pela imaginação; desaparece, portanto, quando se estabelece o real controle sobre essas forças". A mitologia é, em
suma, um vínculo humanamente construído, intermediário e historicamente determinado que desaparece quando os seres humanos adquirem a capacidade de fazer
a sua história segundo uma escolha e um projeto consciente (Raphael, 1981, 89). As
revoluções tecnológicas possibilitadas pela divisão do trabalho e pela ascensão das
ciências materialistas tiveram o efeito de desmistificar os processos de produção
(apropriadamente chamados de "mistérios" e "artes" no período pré-moderno) e
de criar a capacidade de liberar a sociedade da escassez e dos aspectos mais opressivos da necessidade irúposta pela natureza. Esse foi o lado bom da modernização
capitalista. O problema, no entanto, consistia em nos libertar dos fetichismos das
trocas de mercado e desmistificar (e, por extensão, desmitologizar) o mundo histórico e social exatamente da mesma maneira. Essa foi a tarefa científica a que
Marx se dedicou em O Capital.
Mas sempre é possível, em particular diante das incertezas e fragmentações a
que o capitalismo é propenso (crises econômicas, por exemplo), remitologizar,
procurar outra vez controlar e moldar as forças sociais na imaginação e pela imaginação, sob condições em que toda semelhança de controle dessas forças parece
estar perdida. A luta para criar uma arte e uma ciência da história "desmitologizadas" (projetos perfeitamente factíveis ao ver de Marx) tem de ser vista como
parte integrante dessa luta social mais ampla. Mas essa batalha (para a qual Marx
acreditava ter preparado um poderoso fundamento) só poderia ser ganha através
da transição para o socialismo todo-abrangente e poderoso, que tornaria a apropriação do mundo natural e social através do mito redundante e irrelevante. Enquanto isso, a tensão entre as mistificações, fetichismos e construções mitológicas
da velha ordem e a inclinação de revolucionar as nossas concepções do mundo têm
de ser apreciadas como pontos centrais da vida intelectual, artística e científica.
É a partir da tensão entre as qualidades negativas e positivas do capitalismo
que se podem construir novas maneiras de definir a natureza d a nossa espécie:
Assim sendo, o capital cria a sociedade burguesa e a apropriação universal da
natureza, bem como o próprio vínculo social entre os membros da sociedade.
Daí decorre a grande influência civilizatória do capital; sua produção de um
estágio da sociedade em comparação com o qual todos os estágios anteriores
parecem meros desenvolvimentos locais da humanidade e idolatria da natureza.
Pela primeira vez, a natureza se torna para a humanidade mero objeto, mera
questão de utilidade, cessando de ser reconhecida como um poder em si mesma; e a descoberta teórica de suas leis autônomas parece somente um artifício
destinado a subjugá-la às necessidades humanas ... O capital impele para além
das barreiras e preconceitos nacionais e do culto da natureza, bem como [para
MODERNIZAÇÃO
107
além] de todas as satisfações tradicionais, confinadas, tolerantes e incrustadas
de necessidades presentes e da reprodução de velhos modos de vida. Ele destrói tudo isso e o revoluciona constantemente, fazendo ruir por terra todas as
barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, a expansão
das necessidades, o desenvolvimento total da produção e a exploração e intercâmbio de forças naturais e mentais (Grundrisse, 410).
Há em passagens como essa mais do que indícios do projeto iluminista. E Marx
nos dá muitos conselhos sobre como fundir todas as resistências, descontentamentos e lutas esporádicos mas disseminados contra os aspectos opressivos, destrutivos,
fragmentadores e desestabilizadores da vida sob o capitalismo, para dominar o
turbilhão e nos tornar criadores coletivos da nossa própria história segundo um
plano consciente. "O reino da liberdade só começa de fato quando o trabalho
determinado pela necessidade e pelas considerações mundanas deixa de existir ...
Depois disso, começa o desenvolvimento da energia humana que é um fim em si
mesmo, o verdadeiro reino da liberdade."
Marx descreve, pois, processos sociais que agem no capitalismo caracterizados
por promover o individualismo, a alienação, a fragmentação, a efemeridade, a
inovação, a destruição criativa, o desenvolvimento especulativo, mudanças
imprevisíveis nos métodos de produção e de consumo (desejos e necessidades),
mudança da experiência do espaço e do tempo, bem como uma dinâmica de
mudança social impelida pela crise. Se essas condições de modernização capitalista
formam o contexto material a partir do qual pensadores e produtores culturais
modernos e pós-modernos forjam suas sensibilidades, princípios e práticas estéticos, parece razoável concluir que a virada para o pós-modernismo não reflete
nenhuma mudança fundamental da condição social. A ascensão do pós-modernismo ou representa um afastamento (se assim podemos chamar) de modos de pensar
sobre o que pode ou deve ser feito com relação a essa condição social, ou (proposição que exploramos com considerável profundidade na Parte 11) reflete uma
mudança na maneira de operação do capitalismo em nossos dias. Em ambos os
casos, a descrição do capitalismo feita por Marx nos oferece, se for correta, uma
base muito sólida para pensar as relações gerais entre a modernização, a modernidade e os movimentos estéticos que extraem energias dessas condições.
6
;
POS-moderniSMO ou pós-MODERNismo?
Como avaliar o pós-modernismo em geral? Como avaliação preliminar, eu
diria que, em sua preocupação com a diferença, as dificuldades de comunicação,
a complexidade e nuanças de interesses, culturas, lugares etc., ele exerce uma
influência positiva. As metalinguagens, metateorias e metanarrativas do modernismo (particularmente em suas manifestações ulteriores) tendiam de fato a apagar
diferenças importantes e não conseguiam atentar para disjunções e detalhes importantes. O pós-modernismo tem especial valor por reconhecer as múltiplas formas
de alteridade que emergem das diferenças de subjetividade, de gênero e de sexualidade, de raça, de classe, de (configurações de sensibilidade) temporal e de localizações e deslocamentos geográficos espaciais e temporais" (Huyssens, 1984, 50).
É esse aspecto do pensamento pós-moderno que lhe dá um lado radical, tanto
assim que neoconservadores tradicionais como Daniel Bell mais temem do que
acolhem suas acomodações com o individualismo, o comercialismo e o empreendimento. Afinal, esses neoconservadores dificilmente aceitariam a asserção de
Lyotard (1980, 66) de que "o contrato temporário está suplantando na prática as
instituições permanentes nos domínios profissionais, emocionais, sexuais, culturais, familiares e internacionais, bem como nos assuntos políticos". Daniel Bell se
ressente claramente do colapso dos valores burgueses sólidos e da erosão da ética
do trabalho na classe trabalhadora, vendo as tendências contemporâneas menos
como uma virada para um futuro pós-moderno vibrante do que como uma exaustão
do modernismo que por certo anuncia uma próxima crise social e política.
O pós-modernismo também deve ser considerado algo que imita as práticas
ociais, econômicas e políticas da sociedade. Mas, por imitar facetas distintas des-as práticas, apresenta-se com aparências bem variadas. A superposição, em tantos
romances pós-modernos, de diferentes mundos entre os quais prevalece uma aleridade" incomunicativa num espaço de coexistência tem uma estranha relação
com a crescente favelização, enfraquecimento e isolamento da pobreza e das populações minoritárias no centro ampliado das cidades britânicas e norte-americanas.
_ ão é difícil ler um romance pós-moderno como um corte transversal metafórico
das paisagens sociais em fragmentação, das subculturas e modos locais de comunicação de Londres, Chicago, Nova Iorque ou Los Angeles. Como a maioria dos
indicadores sociais sugere um forte aumento da favelização real a partir de 1970,
é proveitoso pensar a ficção pós-moderna como uma possível mimese desse fato.
Mas a crescente afluência, poder e autoridade que emergem na outra extremidade da escala social produzem um ethos inteiramente distinto. Porque, embora
-eja difícil perceber que o trabalho do prédio pós-moderno da AT & T, de Philip
ohnson, difere do trabalho do prédio modernista da Seagram, de Mies van der
ohe, a imagem projetada para o exterior é diferente. A AT & T insistiu que
11
11
11
....
)
110
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
queria algo diferente de mais uma caixa de vidro", disse o arquiteto. "Estávamos
procurando alguma coisa que projetasse a imagem de nobreza e força da empresa.
Nenhum material faz isso melhor do que o granito" (embora custasse o dobro do
vidro). No tocante às casas de luxo e às sedes das corporações, a ousadia estética
se torna uma expressão do poder de classe. Crimp (1987) vai mais longe:
Na atual condição da arquitetura, os arquitetos debatem uma estética acadêmica e abstrata enquanto estão dominados, na realidade, pelos desenvolvimentistas
imobiliários que estão arruinando as nossas cidades e expulsando as pessoas
da classe trabalhadora de suas casas ... O novo arranha-céu de Philip Johnson ...
é um prédio de desenvolvimentistas, a que se aplicaram uns poucos enfeites,
imposto a uma vizinhança que não precisa particularmente de mais um arranha-céu.
Invocando a memória do arquiteto de Hitler, Albert Speer, Crimp ataca a máscara pós-moderna do que considera um novo autoritarismo na direção das formas
da cidade.
Escolhi esses dois exemplos para ilustrar a importância de indagar quais são
exatamente os tipos de prática social, os conjuntos de relações sociais, que estão
sendo refletidos em diferentes movimentos estéticos. Mas essa análise é por certo
incompleta, porque ainda temos de estabelecer - o que será o objeto de exame das
Partes II e III - o que exatamente o pós-modernismo pode estar imitando. Além
disso, também é perigoso supor que o pós-modernismo seja só mimético, e não
uma intervenção estética na política, na economia e na vida social por direito
próprio. A forte injeção de ficção e de função na sensibilidade comum, por exemplo,
deve ter conseqüências, talvez não previstas, na ação social. Afinal, até Marx insistiu que o que distingue o pior dos arquitetos da melhor abelha é o fato de o
arquiteto erigir estruturas na imaginação antes de lhes dar forma material. Mudanças na maneira como imaginamos, pensamos, planejamos e racionalizamos estão
fadadas a ter conseqüências materiais. A ampla gama do pós-modernismo só pode
fazer sentido nesses termos bem amplos da conjugação entre mimese e intervenção
estética.
O pós-modernismo, no entanto, vê a si mesmo de modo bem mais simples: na
maioria das vezes, como um movimento determinado e deveras caótico voltado
para resolver todos os supostos males do modernismo. Mas, quanto a isso, creio
que os pós-modernistas exageram quando descrevem o moderno de maneira tão
grosseira, quer caricaturando todo o movimento modernista a ponto de, como o
próprio Jencks admite, "acusar a arquitetura moderna de se ter tornado uma forma
de sadismo que está ficando fácil demais", quer isolando uma tendência do modernismo (althusserianismo, brutalismo moderno ou seja o que for) para criticar como
se fosse todo o movimento. Houve, afinal, muitas correntes no modernismo, e os
pós-modernistas ecoam de maneira bem explícita algumas delas Gencks, por exemplo, remonta ao período de 1870-1914, e até às confusões dos anos 20, ao mesmo
tempo que inclui o Mosteiro de Ronchamp, de Le Corbusier, como importante
precursor de um aspecto do pós-modernismo). As metanarrativas que os pós-mo-
PÓS-moderniSMO ou pós-MODERNismo?
111
dernistas desdenham (Marx, Freud e até figuras ulteriores como Althusser) eram
muito mais abertas, nuançadas e sofisticadas do que os críticos admitem. Marx e
muitos marxistas (penso em Benjamin, Thompson, Anderson, entre outros) tinham
olho para o detalhe, para a fragmentação e para a disjunção, olho que com freqüência é substituído por uma caricatura nas polêmicas pós-modernas. O relato de
Marx sobre a modernização é notavelmente rico em percepções das raízes do modernismo e da possibilidade pós-moderna.
É igualmente errado apagar com tanta facilidade as realizações materiais das
práticas modernistas. Os modernistas encontraram um meio de controlar e conter
uma explosiva condição capitalista. Foram eficazes, por exemplo, na organização
da vida urbana e na capacidade de construir o espaço de maneira a conter os
processos interferentes que contribuíram para a rápida mudança urbana no capitalismo do século XX. Se há uma crise implícita nisso tudo, não é de modo algum
claro que a culpa seja dos modernistas, e não dos capitalistas. Há, com efeito,
alguns sucessos extraordinários no panteão modernista (cito o programa de projeto
e construção da escola britânica do início dos anos 60, que resolveu alguns dos
agudos problemas prediais da educação dentro de rígidas restrições orçamentárias). Embora alguns projetos fossem de fato fracassos retumbantes, outros não o
foram, em particular quando comparados com as condições de favelização de que
muitas pessoas emergiram. E verifica-se que as condições sociais de Pruitt-Igoeo grande símbolo do fracasso modernista - contribuíram muito mais para o problema do que a pura forma arquitetônica. Acusar a forma física pelos problemas
sociais é recorrer ao tipo mais vulgar de determinismo ambiental, que poucos
estariam preparados para aceitar em outras circunstâncias (embora eu observe com
tristeza que outro membro do "gabinete doméstico" do Príncipe Charles é a geógrafa
Alice Coleman, que confunde regularmente a correlação entre mau projeto e comportamento anti-social com uma relação de causa e efeito). É interessante notar,
portanto, que os inquilinos do "habitat para viver" de Le Corbusier em Firminy-le-Vert organizaram um movimento social para evitar sua destruição (eu ainda
acrescentaria, não por alguma lealdade particular aLe Corbusier, mas simplesmente porque por acaso aquele era o seu lar). Como o próprio Jencks admite, os pós-modernistas absorvem todas as grandes realizações dos modernistas no projeto
arquitetônico, embora por certo tenham alterado a estética e as aparências ao menos
superficialmente.
Também concluo que há mais continuidade do que diferença entre a ampla
história do modernismo e o movimento denominado pós-modernismo. Parece-me
mais sensível ver este último como um tipo particular de crise do primeiro, uma
crise que enfatiza o lado fragmentário, efêmero e caótico da formulação de Baudelaire
(o lado que Marx disseca tão admiravelmente como parte integrante do modo
capitalista de produção), enquanto exprime um profundo ceticismo diante de toda
prescrição particular sobre como conceber, representar ou exprimir o eterno e
imutável.
Mas o pós-modernismo, com sua ênfase na efemeridade da jouissance, sua
insistência na impenetrabilidade do outro, sua concentração antes no texto do que
na obra, sua inclinação pela desconstrução que beira o nilismo, sua preferência
112
PASSAGEM DA MODERNIDADE À PÓS-MODERNIDADE
pela estética, em vez da ética, leva as coisas longe demais. Ele as conduz para além
do ponto em que acaba a política coerente, enquanto a corrente que busca uma
acomodação pacífica com o mercado o envereda firmemente pelo caminho de uma
cultura empreendimentista que é o marco do neoconservadorismo reacionário. Os
filósofos pós-modernos nos dizem que não apenas aceitemos mas até nos entreguemos às fragmentações e à cacofonia de vozes por meio das quais os dilemas do
mundo moderno são compreendidos. Obcecados pela desconstrução e pela
deslegitimação de toda espécie de argumento que encontra, eles só podem terminar por condenar suas próprias reivindicações de validade, chegando ao ponto de
não restar nada semelhante a uma base para a ação racional. O pós-modernismo
quer que aceitemos as reificações e partições, celebrando a atividade de mascaramento e de simulação, todos os fetichismos de localidade, de lugar ou de grupo
social, enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos político-econômicos (fluxos de dinheiro, divisões internacionais do trabalho, mercados
financeiros etc.), que estão se tornando cada vez mais universalizantes em sua
profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida cotidiana.
Pior do que isso, enquanto abre uma perspectiva radical mediante o reconhecimento da autenticidade de outras vozes, o pensamento pós-moderno veda imediatamente essas outras vozes o acesso a fontes mais universais de poder, circunscrevendo-as num gueto de alteridade opaca, da especificidade de um ou outro jogo
de linguagem. Por conseguinte, ele priva de poder essas vozes (de mulheres, de
minorias étnicas e raciais, de povos colonizados, de desempregados, de jovens etc.)
num mundo de relações de poder assimétricas. O jogo de linguagem de um conluio
de banqueiros internacionais pode ser impenetrável para nós, mas isso não o torna
equivalente à linguagem igualmente impenetrável dos negros das adjacências dos
centros das cidades do ponto de vista das relações de poder.
A retórica do pós-modernismo é perigosa, já que evita o enfrentamento das
realidades da economia política e das circunstâncias do poder global. A ingenuidade da "proposta radical" de Lyotard, de franquear o acesso de todos aos bancos
de dados como prólogo para uma reforma radical (como se todos fôssemos ter
igual poder de aproveitar essa oportunidade), é instrutiva, porque indica que mesmo
o mais resoluto dos pós-modernistas no final tem de decidir se faz algum gesto
universalizante (como o apelo de Lyotard a algum conceito prístino de justiça) ou,
alternativamente, cai, como Derrida, no silêncio político total. Não é possível descartar a metateoria; os pós-modernistas apenas a empurram para o subterrâneo,
onde ela continua a funcionar como uma" efetividade agora inconsciente" (Jameson,
1984b).
Em conseqüência, vejo-me concordando com o repúdio de Eagleton às idéias
de Lyotard, para quem "não pode haver diferença entre verdade, autoridade e
sedução retórica; quem tem a língua mais macia ou a conversa mais atraente tem
o poder". O reinado de oito anos de um contador de histórias carismático na Casa
Branca sugere que há mais do que uma pequena continuidade desse problema
político, e que o pós-modernismo se aproxima perigosamente da cumplicidade
com a estetização da política que lhe serve de fundamento. Isso nos faz remontar
a uma questão deveras essencial. Se tanto a modernidade como a pós-modernida-
PÓS-moderniSMO ou pós-MODERNismo?
113
de derivam a sua estética de alguma espécie de luta com o fato da fragmentação,
da efemeridade e do fluxo caótico, eu sugeriria que é muito importante estabelecer
por que tal fato se te1ia tornado um aspecto tão presente da experiência moderna
por um período de tempo tão longo, e por que a intensidade dessa experiência
parece ter assumido tanto poder a partir de 1970. Se a única coisa certa sobre a
modernidade é a incerteza, devemos sem dúvida dar considerável atenção às forças sociais que produzem tal condição. Para essas forças sociais volto-me agora.
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j
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A. transformação
político-econômica
do capitalismo do final
do século XX
O intervalo entre a decadência do antigo e a formação e estabelecimento do novo constitui um período de transição, que sempre deve ser necessariamente marcado pela incerteza, pela confusão, pelo erro e pelo fanatismo selvagem e implacável.
John Calhoun
7
Introdução
Se houve alguma transformação na economia política do capitalismo do final
do século XX, cabe-nos estabelecer quão profunda e fundamental pode ter sido a
mudança. São abundantes os sinais e marcas de modificações radicais em processos de trabalho, hábitos de consumo, configurações geográficas e geopolíticas,
poderes e práticas do Estado etc. No Ocidente, ainda vivemos uma sociedade em
que a produção em função de lucros permanece como o princípio organizador
básico da vida econômica. Portanto, precisamos de alguma maneira representar
todos os grandes eventos ocorridos desde a primeira grande recessão do pós-guerra, em 1973, maneira que não perca de vista o fato de as regras básicas do
modo capitalista de produção continuarem a operar como forças plasmadoras
invariantes do desenvolvimento histórico-geográfico.
\f')
A linguagem (e, portanto, a hipótese) que vou explorar é uma linguagem na f ,
qual vemos eventos recentes como uma transição no regime de acumulação e no modo ~
de regulamentação social e política a ele associado. Ao representar as coisas assim, ~..:._€,.
recorro à linguagem de uma escola de pensamento conhecida como a escola da '~ .l
regulamentação". Seu argumento básico, que teve como pioneiro Aglietta (1979) e · ~
como propositores Lipietz (1986), Boyer (1986a; 1986b) e outros, pode ser resumido~~""õ
em poucas palavras. Um regime de acumulação descreve a estabilização, por um o ~
longo período, da alocação do produto líquido entre consumo e acumulação; ele 't J
implica alguma correspondência entre a transformação tanto das condições de o::
produção como das condições de reprodução de assalariados". Um sistema particular de acumulação pode existir porque "seu esquema de reprodução é coerente".
O problema, no entanto, é fazer os comportamentos de todo tipo de indivíduoscapitalistas, trabalhadores, funcionários públicos, financistas e todas as outras espécies de agentes político-econômicos -'-- assumirem alguma modalidade de configuração que mantenha o regime de acumulação funcionando. Tem de haver,
portanto, "uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de
normas, hábitos, leis, redes de regulamentação etc. que garantam a unidade do
processo, isto é, a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o
esquema de reprodução. Esse corpo de regras e processos sociais interiorízados
tem o nome de modo de regulamentação" (Lipietz, 1986, 19).
Esse tipo de linguagem é útil, em primeira instância, como recurso heurístico.
Ele concentra a nossa atenção nas complexas inter-relações, hábitos, práticas políticas e formas culturais que permitem que um sistema capitalista altamente dinâmico e, em conseqüência, instável adquira suficiente semelhança de ordem para
funcionar de modo coerente ao menos por um dado período de tempo.
Há duas amplas áreas de dificuldade num sistema econômico capitalista que
têm de ser negociadas com sucesso para que esse sistema permaneça viável. A ·
11
11
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
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advém das qualidades anárquicas dos mercados de fixação de preços, e
a segunda deriva da necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da
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força de trabalho para garantir a adição de valor na produção e, portanto, lucros
positivos para o maior número possível de capitalistas.
Os mercados de fixação de preços, para tratar do primeiro problema, fornecem
tipicamente inúmeros sinais com alto grau de descentralização que permitem que
os produtores coordenem as decisões de produção com as necessidades, vontades
e desejos dos consumidores (respeitando, com efeito, as restrições de orçamentos
e custos que afetam as partes envolvidas em toda transação de mercado). Mas a
celebrada "mão invisível" do mercado, de Adam Smith, nunca bastou por si mesma para garantir um crescimento estável ao capitalismo, mesmo quando as instituições de apoio (propriedade privada, contratos válidos, administração apropriada . do dinheiro) funcionam adequadamente. Algum grau de ação coletiva - de
modo geral, a regulamentação e a intervenção do Estado - é necessário para
compensar as falhas de mercado (tais como os danos inestimáveis ao ambiente
natural e social), evitar excessivas concentrações de poder de mercado ou combater
o abuso do privilégio do monopólio quando este não pode ser evitado (em campos
como transportes e comunicações), fornecer bens col~~s (defesa, educação, infra-estruturas sociais e físicas) iJ,.Ue não podem ser pro_d~_e_ v~ndidos pelo mercado e impedir falhas descontroladas decorrentes de surtos especulativos, sinais de
mercado aberrantes e o intercâmbio potencialmente negativo entre expectativas
dos empreendedores e sinais de mercado (o problema das profecias auto-realizadas no desempenho do mercado).
Na prática, as pressões coletivas exercidas pelo Estado ou por outras instituições
(religiosas, políticas, sindicais, patronais e culturais), aliadas ao exerádo do poder de
domínio do mercado pelas grandes corporações e outras instituições poderosas, afetam de modo vital a dinâmica do capitalismo. Essas pressões podem ser diretas (como
a imposição de controles de salários e preços) ou indiretas (como a propaganda subliminar que nos persuade a incorporar novos conceitos sobre as nossas necessidades
e desejos básicos na vida), mas o efeito líquido é moldar a trajetória e a forma dó
desenvolvimento capitalista de modos cuja compreensão vai além da análise das transações de mercado. Além disso, as propensões sociais e psicológicas, como o individualismo e o impulso de realização pessoal por meio da auto-expressão, a busca de
segurança e identidade coletiva, a necessidade de adquirir respeito próprio, posição ou
alguma outra marca de identidade individual, têm um papel na plasmação de modos
de consumo e estilos de vida. Basta considerar todo o complexo de forças implicadas
na proliferação da produção, da propriedade e do uso em massa do automóvel para
reconhecer a vasta gama de significados sociais, psicológicos, políticos, bem como mais
propriamente econômicos, que estão associados a um dos principais setores de crescimento do capitalismo do século XX. A virtude do pensamento da "escola da regulamentação" está no fato de insistir que levemos em conta o conjunto total de relações
e arranjos que contribuem para a estabilização do crescimento do produto e da distribuição agregada de renda e de consumo num período histórico e num lugar particulares.
A segunda arena de dificuldade geral nas sociedades capitalistas concerne à
conversão da capacidade de homens e mulheres de realizarem um trabalho ativo
INTRODUÇÃO
~
119
~·i
num processo produtivo cujos frutos possam ser apropriados pelos capitalistas. ~ / , /
Todo tipo de trabalho exige concentração, autodisciplina, familiarização com dífe- _)''}~
rentes instrumentos de produção e o conhecimento das potencialidades de várias"f.~'
matérias-primas em termos de transformação em produtos úteis. Contudo, a pro- ~
dução de mercadorias em condições de trabalho assalariado põe boa parte do conhe- J'
cimento, das decisões técnicas, bem como do aparelho disciplinar, fora do controle da
pessoa que de fato faz o trabalho. A familiarização dos assalariados foi um processo
histórico bem prolongado (e não particularmente feliz) que tem de ser renovado com
a incorporação de cada nova geração de trabalhadores à força de trabalho.~- <:i''~
disciElinação da força de trabalho 12ara os }2IOp.QsitQs_de_ªcum la ão do cp.pJtal- um ~ '~
processo a que vou me referir, de modo geral, como "controle do trabalho" - é uma~.~
questão muito complicada. Ela envolve, em primeiro lugar alg};!ma mistura de repr~- ~
são, famili~ção, c~optação e coo eraç~ _Eementos que têm de ser organizados 0u~
não somente no local de trabalho como na sociedade como um todo. A socialização
~~
do trabalhador nas condições de produção capitalista envolve o controle social
(HI J
1
bem amplo das capacidades físicas e mentais. A educação, o treinamento, a persua- ~ 0 ~~
são, a mobilização de certos sentimentos sociais (a ética do trabalho, a lealdade aos -;?1J...
companheiros, o orgulho local ou nacional) e propensões psicológicas (a busca da
~1
identidade através do trabalho, a iniciativa individual ou a solidariedade social) de- o ~~-~
sempenham um papel e estão cla~te presentes na fom1ação de ideologia donú- ~.i!
nantes cultivadas pelos meios de comunicação de massa, pelas instituições religiosas ~'jt{
e educacionais, pelos vários setores do aparelho do Estado, e afirmadas pela simples 4 q é
articulação de sua experiência por parte dos que fazem o trabalho. Também aqui o -f-~
"modo de regulamentação" se toma uma maneira útil de conceituar o tratamento
dado aos problemas da organização da força de trabalho para propósitos de acumulação do capital em épocas e lugares particulares.
Aceito amplamente a visão de que o longo período de expansão de pós-guerra,
que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida
mudança, de fluidez e de incerteza. Não está claro se os novos sistemas de produção e de marketing, caracterizados por processos de trabalho e mercados mais
flexíveis, de mobilidade geográfica e de rápidas mudanças práticas de consumo
garantem ou não o título de um novo regime de acumulação nem se o renascimento do empreendimento e do neoconservadorismo, associado com a virada cultural
para o pós-modernismo, garante ou não o título de um novo modo de regulamentação. Há sempre o perigo de confundir as mudanças transitórias e efêmeras com
as transformações de natureza mais fundamental da vida político-econômica. Mas
os contrastes entre as práticas político-econômicas da atualidade e as do período
de expansão do pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipótese de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado regime de
acumulação "flexível" uma reveladora maneira de caracterizar a história recente.
E, embora eu vá enfatizar, para propósitos didáticos, os contrastes, terei ocasião de
voltar à questão valorativa de quão fundamental são de fato as mudanças à guisa
de conclusão geral.
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O fordismo
A data inicial simbólica do fordismo deve por certo ser 1914, quando Henry
Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os
trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele estabelecera no
ano anterior em Dearbon, Michigan. Mas o modo de implantação geral do fordismo
foi muito mais complicado do que isso.
Em muitos aspectos, as inovações tecnológicas e organizacionais de Ford eram
mera extensão de tendências bem-estabelecidas. A forma corporativa de organização de negócios, por exemplo, tinha sido aperfeiçoada pelas estradas de ferro ao
longo do século XIX e já tinha chegado, em particular depois da onda de fusões e
de formação de trustes e cartéis no final do século, a muitos setores industriais (um
terço dos ativos manufatureiros americanos passaram por fusões somente entre os
anos de 1988 e 1902). Ford também fez pouco mais do que racionalizar velhas
tecnologias e uma detalhada divisão do trabalho preexistente, embora, ao fazer o
trabalho chegar ao trabalhador numa posição fixa, ele tenha conseguido dramáticos ganhos de produtividade. Os Princípios da Administração Científica, de F. W.
Taylor - um influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho
podia ser radicalmente aumentada através da decomposição de cada processo de
trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho
fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento -,
tinham sido publicados, afinal, em 1911. E o pensamento de Taylor tinha uma
longa ancestralidade, remontando, através dos experimentos de Gilbreth, na década de 1890, às obras de escritores da metade do século XIX como Ure e Babbage,
que Marx considerara reveladoras. A separação entre gerência, concepção, controle
e execução (e tudo o que isso significava em termos de relações sociais hierárquicas
e de desabilitaçáo dentro do processo de trabalho) também já estava bem avançada
em muitas indústrias. O que havia de especial em Ford (e que, em última análise,
distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito
de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de
reprodução da força de trabalho, uma nova política de· controle e gerência do
trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de
sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista.
O líder comunista italiano Antonio Gramsci, jogado numa das prisões de
Mussolini umas duas décadas mais tarde, extraiu exatamente essa implicação. O
americanismo e o fordismo, observou ele em seus Cadernos do Cárcere, equivaliam
ao "maior esforço coletivo até para criar, com velocidade sem precedentes, e com
uma consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador
e um novo tipo de homem". Os novos métodos de trabalho "são inseparáveis de
um modo específico de viver e de pensar e sentir a vida". Questões de sexualidade,
122
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
de família, de formas de coerção moral, de consumismo e de ação do Estado
estavam vinculadas, ao ver de Gramsci, ao esforço de forjar um tipo particular de
trabalhador "adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo". Contudo, duas décadas depois dos movimentos iniciais de Ford, Gramsci julgava que
"sua elaboração ainda está apenas em seu estágio inicial, sendo, portanto, (aparentemente) idílica". Por que, então, levou tanto tempo para que o fordismo se tornasse um regime de acumulação adulto?
Ford acreditava que o novo tipo de sociedade poderia ser construído simplesmente com a aplicação adequada ao poder corporativo. O propósito do dia de oito
horas e cinco dólares só em parte era obrigar o trabalhador a adquirir a disciplina
necessária à operação do sistema de linha de montagem de alta produtividade. Era
também dar aos trabalhadores renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produtos produzidos em massa que as corporações estavam por fabricar em quantidades cada vez maiores. Mas isso presumia que os trabalhadores
soubessem como gastar seu dinheiro adequadamente. Por isso, em 1916, Ford enviou
um exército de assistentes sociais aos lares dos seus trabalhadores "privilegiados"
(em larga medida imigrantes) para ter certeza de que o "novo homem" da produção de massa tinha o tipo certo de probidade moral, de vida familiar e de capacidade de consumo prudente (isto é, não alcoólico) e "racional" para corresponder
às necessidades e expectativas da corporação. A experiência não durou muito tempo, mas a sua própria existência foi um sinal presciente dos profundos problemas
sociais, psicológicos e políticos que o fordismo iria trazer.
Era tal a crença de Ford no poder corporativo de regulamentação da economia
como um todo que a sua empresa aumentou os salários no começo da Grande
Depressão na expectativa de que isso aumentasse a demanda efetiva, recuperasse
o mercado e restaurasse a confiança da comunidade de negócios. Mas as leis coercitivas da competição se mostraram demasiado fortes mesmo para o poderoso
Ford, forçando-o a demitir trabalhadores e cortar salários. Foi necessário o New
Deal de Roosevelt para salvar o capitalismo - fazendo, através da intervenção do
Estado, o que Ford tentara fazer sozinho. Ford tinha se esforçado por antecipar-se
aos acontecimentos, nos anos 30, fazendo seus trabalhadores proverem a maior
parte de suas próprias necessidades de subsistência. Eles deveriam, alegava ele,
cultivar legumes nas horas vagas nos próprios jardins (uma prática seguida com
grandes resultados durante a Segunda Guerra Mundial na Inglaterra). Ao insistir
em que "a auto-ajuda é a única maneira de combater a depressão econômica", Ford
reforçou o tipo de utopia controlada de volta à terra que caracterizou os planos de
Frank Lloyd Wright para Broadacre City. Mas, mesmo nesse caso, podemos detectar interessantes sinais de futuras configurações, visto que foi a suburbanização e
desconcentração da população e da indústria (e não a auto-ajuda), implícitas na
concepção modernista de Wright, que se tornaria o principal elemento de estímulo
da demanda efetiva pelos produtos de Ford no longo período de expansão do pós-guerra a partir de 1945.
O modo como o sistema fordista se estabeleceu constitui, com efeito, uma
longa e complicada história que se estende por quase meio século. Isso dependeu
de uma miríade de decisões individuais, corporativas, institucionais e estatais, muitas
delas escolhas políticas feitas ao acaso ou respostas improvisadas às tendências de
O FORDISMO
123
crise do capitalismo, particularmente em sua manifestação na Grande Depressão
dos anos 30. A subseqüente mobilização da época da guerra também implicou
planejamento em larga escala, bem como uma completa racionalização do processo
de trabalho, apesar da resistência do trabalhador à produção em linha de montagem e dos temores capitalistas do controle centralizado. Era difícil, para capitalistas e trabalhadores, recusar racionalizações que melhorassem a eficiência numa
época de total esforço de guerra. Além disso, as confusões entre práticas ideológicas e intelectuais complicavam as coisas. A direita e a esquerda desenvolveram sua
própria versão de planejamento estatal racionalizado (com todos os seus atavios
modernistas) como solução para os males a que o capitalismo estava tão claramente exposto, em particular na situação dos anos 30. Foi esse tipo de história intelectual e política confusa que fez Lênin louvar a tecnologia de produção taylorista e
fordista enquanto os sindicatos da Europa Ocidental a recusavam; Le Corbusier
aparecer como apóstolo da modernidade enquanto se aliava a regimes autoritários
(Mussolini por algum tempo e o regime de Vichy na França); Ebenezer Howard
forjar planos utópicos inspirados no anarquismo de Geddes e Kropotkin- apenas
para serem apropriados por desenvolvimentistas capitalistas - e Robert Moses
começar o século como "progressista" político (inspirado pelo socialismo utópico
apresentado em Looking backwards, de Edward Bellamy) e terminar como o "corretor do poder" que "levou o moedor de carne" para o Bronx em nome da
automobilização da América (ver, por exemplo, Caro, 1974).
Houve, ao que parece, dois principais impedimentos à disseminação do fordismo
nos anos entre-guerras. Para começar, o estado das relações de classe no mundo
capitalista dificilmente era propício à fácil aceitação de um sistema de produção
que se apoiava tanto na familiarização do trabalhador com longas horas de trabalho puramente rotinizado, exigindo pouco das habilidades manuais tradicionais e
concedendo um controle quase inexistente ao trabalhador sobre o projeto, o ritmo
e a organização do processo produtivo. Ford usara quase exclusivamente a mão-de-obra imigrante no seu sistema de produção, mas os imigrantes aprenderam e
os trabalhadores americanos eram hostis. A rotatividade da força de trabalho de
Ford mostrou-se impressionantemente alta. O taylorismo também enfrentou fortes
resistências nos anos 20, e alguns comentadores, como Richard Edwards (1979),
insistem que a oposição dos trabalhadores infligiu uma grande derrota à implantação dessas técnicas na maioria das indústrias, apesar do domínio capitalista dos
mercados de trabalho, do fluxo contínuo de mão-de-obra imigrante e da capacidade de mobilizar exércitos de reserva da América rural (e, por vezes, negra). No
resto do mundo capitalista, a organização do trabalho e as tradições artesanais
eram simplesmente muito fortes, e a imigração muito fraca, para permitir ao
fordismo ou ao taylorismo qualquer facilidade de produção, muito embora os
princípios gerais da administração científica fossem amplamente aceitos e aplicados. Nesse sentido, Administration industrielle et générale, de Henri Fayol (publicado
em 1916), mostrou-se um texto muito mais influente na Europa do que o de Taylor.
Com sua ênfase nas estruturas organizacionais e na ordenação hierárquica do fluxo
de autoridade e de informação, o livro deu origem a uma versão bem diferente da
administração racionalizada, em comparação com a preocupação taylorista de simplificar o fluxo horizontal dos processos de produção. A tecnologia de linha de
124
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
montagem para produção de massa, implantada em muitos pontos dos Estados
Unidos, tinha um desenvolvimento muito fraco na Europa antes da metade dos
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~0 anos 30. A indústria de automóveis européia, com exceção da fábrica da Fiat em
0-.·~ Turim, permanecia em sua maior parte uma indústria artesanal de alta habilidade
(embora organizada corporativamente), produzindo carros de luxo para consumidores de elite, sendo apenas ligeiramente influenciada pelos procedimentos de
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linha de montagem na produção em massa de modelos mais baratos antes da
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Segunda Guerra Mundial. Foi preciso uma enorme revolução das relações de classe
~ ; (uma revolução que começou nos anos 30, mas só deu frutos nos anos 50) para
~ :: acomodar a disseminação do fordismo à Europa.
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"' A segunda barreira importante a ser enfrentada estava nos modos e mecanis~ mos de intervenção estatal. Foi necessário conceber um novo modo de regulamen_f_ tação para atender aos requisitos da produção fordista; e foi preciso o choque da
;? 8 depressão selvagem e do quase-colapso do capitalismo na década de 30 para que
~-\> as sociedades capitalistas chegassem a alguma nova concepção da forma e douso
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dos poderes do Estado. A crise manifestou-se fundamentalmente como falta de
demanda efetiva por produtos, sendo nesses termos que a busca de soluções começou. Com o benefício da compreensão a posteriori, é verdade, podemos ver com
mais clareza todos os perigos representados pelos movimentos nacional-socialistas.
Mas, à luz do fracasso evidente dos governos democráticos em fazer qualquer
coisa além de parecer condescender com as dificuldades de um imenso colapso
econômico, não é difícil ver o atrativo de uma solução política em que os trabalhadores fossem disciplinados em sistemas de produção novos e mais eficientes e em
que a capacidade excedente fosse absorvida em parte por despesas produtivas e
infra-estruturas muito necessárias para a produção e o consumo (sendo a outra
parte alocada para inúteis gastos militares); Não poucos políticos e intelectuais
(cito o economista Schumpeter como exemplo) consideravam os tipos de soluções
explorados no Japão, na Itália e na Alemanha nos anos 30 (despidos do apelo à
mitologia, ao militarismo e ao racismo) corretos, e apoiaram o New Deal de Roosevelt
porque o viam precisamente sob essa ótica. A estase democrática dos anos 20
(embora vinculada a classe) tinha de ser superada, muitos concordavam, por um
pouco de autoritarismo e intervencionismo estatais, para os quais bem f10Ucos
precedentes (salvo a industrialização do Japão ou as intervenções bonapartis'tas da
França do Segundo Império) podiam ser encontrados. Desiludido com a incapacidade dos governos democráticos de assumir o que ele considerava tarefas essenciais de modernização, Le Corbusier se voltou primeiro para o sindicalismo e, mais
tarde, para regimes autoritários como as únicasjgrmas políticas capazes de enfren:tar a crise. O problema, tal como o via um economista como Keynes, era chegar a
um conjunto de estratégias administrativas científicas e poderes estatais que esta~
bilizassem o capitalismo, ao mesmo tempo que se evitavam as evidentes repressões
e irracionalidades, toda a beligerância e todo o nacionalismo estreito que as soluções nacional-socialistas implicavam. É nesse contexto confuso que temos de compreender as tentativas altamente diversificadas em diferentes nações-Estado de
chegar a arranjos políticos, institucionais e sociais que pudessem acomodar a crônica incapacidade do capitalismo de regulamentar as condições essenciais de sua
própria reprodução.
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O FORDISMO
125
O problema da configuração e uso próprios dos poderes do Estado só foi
resolvido depois de 1945. Isso levou o fordismo à maturidade como regime de
acumulação plenamente acabado e distintivo. Como tat ele veio a formar a base
de um longo período de expansão pós-guerra que se manteve mais ou menos
intacto até 1973. Ao longo desse período, o capitalismo nos países capitalistas
avançados alcançou taxas fortes, mas relativamente estáveis de crescimento econômico (ver figura 2.1 e tabela 2.1). Os padrões de vida se elevaram (figura 2.2), as
tendências de crise foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça
de guerras intercapitalistas, tornada remota. O fordismo se aliou firmemente ao
keynesianismo, e o capitalismo se dedicou a um surto de expansões internacionalistas
de alcance mundial que atraiu para a sua rede inúmeras nações descolonizadas. A
maneira como esse sistema veio a existir é uma história dramática que merece ao
menos um ligeiro escrutínio caso desejemos compreender melhor as transições que
ocorreram a partir de 1973.
O período pós-guerra viu a ascensão de uma série de indústrias baseadas em
tecnologias amadurecidas no período entre-guerras e levadas a novos extremos de
racionalização na Segunda Guerra Mundial. Os carros, a construção de navios e de
equipamentos de transporte, o aço, os produtos petroqtiímicos, a borracha, os eletrodomésticos e a construção se tornaram os propulsores do crescimento econômico, concentrando-se numa série de regiões de grande produção da economia mundial
- o Meio Oeste dos Estados Unidos, a região do Rur-Reno, as Terras Médias do
Oeste da Grã-Bretanha, a região de produção de Tóquio-Iocoama. As forças de
trabalho privilegiadas dessas regiões formavam uma coluna de uma demanda efetiva
em rápida expansão. A outra coluna estava na reconstrução patrocinada pelo Estado de economias devastadas pela guerra, na suburbanização ( particularmente
nos Estados Unidos), na renovação urbana, na expansão geográfica dos sistemas de
transporte e comunicações e no desenvolvimento infra-estrutural dentro e fora do
mundo capitalista avançado. Coordenadas por centros financeiros interligados, tendo
como ápice da hierarquia os Estados Unidos e Nova Iorque, essas regiões-chave da
economia mundial absorviam grandes quantidades de matérias-primas do resto do
mundo não-comunista e buscavam dominar um mercado mundial de massa crescentemente homogêneo com seus produtos.
Mas o crescimento fenomenal da expansão de pós-guerra dependeu de uma
série de compromissos e reposicionamentos por parte dos principais atores dos
processos de desenvolvimento capitalista. O Estado teve de assumir novos
eynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo
eve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha
a lucratividade segura; e o trabalho organizado teve de assumir novos papéis e
nções relativos ao desempenho nos mercados de trabalho e nos processos de
produção. O equilíbrio de poder, tenso mas mesmo assim firme, que prevalecia
entre o trabalho organizado, o grande capital corporativo e a nação-Estado, e que
·ormou a base de poder da expansão de pós-guerra, não foi alcançado por acaso
- resultou de anos de luta.
A derrota dos movimentos operários radicais que ressurgiram no período pós-guerra imediato, por exemplo, preparou o terreno político para os tipos de conole do trabalho e de compromisso que p ossibilitaram o fordismo. Armstrong,
126
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Japão
10.4 o/o
Alemanha Ocidental
1960-8 1968-73
1973-9
1979-85
Figura 2.1 Taxas anuais de crescimento econômico em países
capitalistas avançados selecionados e da OCDE como um todo
segundo períodos de tempo selecionados, 1960-1985.
(Fonte: OCDE)
Glyn e Harrison (1984, capítulo 4) oferecem detalhada análise d e como se preparou
o ataque às formas tradicionais (orientadas para os ofícios) e radicais de organização do trabalho tanto nos territórios ocupados do Japão, da Alemanha Ocidental
e da Itália como nos territórios supostamente "livres" da Grã-Bretanha, da França
O FORDISMO
127
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e dos Países Baixos. Nos Estados Unidos, onde a Lei Wagner de 1933 tinha dado
aos sindicatos poder no mercado (com o reconhecimento explícito de que os direitos de negociação coletiva eram essenciais para a resolução do problema da demanda efetiva) em troca do sacrifício no campo da produção, os sindicatos viramse sob um ataque virulento nos anos de pós-guerra por uma prentensa infiltração
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1950 1955 1960 1965
1970 1975 1980 1985
Ano
Figura 2.2 Salários reais e renda familiar nos Estados Unidos, 1947-1986.
(Fontes: Estatísticas Históricas dos Estados Unidos e Relatórios Econômicos ao Presidente)
128
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Tabela 2.1 Taxas médias de crescimento dos países capitalistas avançados ao longo de
vários períodos de tempo a partir de 1820
Taxas percentuais anuais de mudança
1820-1870
1870-1913
1913-1950
1950-1973
1973-1979
1979-1985
Produto
Produto per capita
Exportações
2,2
2,5
1,9
4,9
2,6
2,2
1,O
1,4
1,2
3,8
1,8
1,3
4,0
3,9
1,O
8,6
5,6
3,8
Fontes: Maddison, 1982 (1820-1973) e OCDE (1973-85)
comunista e terminaram por ser submetidos a uma disciplina legal estrita pela Lei
Taft-Hartley de 1952 (lei promulgada no auge do período macarthista- cf. Tomlins,
1985). Com seu principal adversário sob controle, os interesses da classe capitalista
puderam resolver o que Gramsci denominara antes problema de "hegemonia" e
estabelecer uma base aparentemente nova para relações de classes conducentes ao
fordismo.
Há disputas sobre a profundidade dessas novas relações de classe, mas, de
todo modo, isso por certo variou muito de país para país e até de região para
região. Nos Estados Unidos, por exemplo, os sindicatos ganharam considerável
poder na esfera da negociação coletiva nas indústrias de produção em massa do
Meio Oeste e do Nordeste, preservaram algum controle dentro das fábricas sobre
as especificações de tarefas, sobre a segurança e as promoções, e conquistaram importante poder político (embora nunca detenninante) sobre questões como benefícios da seguridade social, salário mínimo e outras facetas da política social. Mas adquiriram e mantiveram esses direitos em troca da adoção de uma atitude cooperativa no
tocante às técnicas fordistas de produção e às estratégias corporativas cognatas para
aumentar a produtividade. Burawoy, em seu Manufaturing consent, ilustra a profundidade dos sentimentos cooperativos entre a força de trabalho, embora modificados
por toda espécie de "jogos" de resistência a todas as incursões excessivas do poder
capitalista no interior das fábricas (com relação, por exemplo, ao ritmo do trabalho). Assim ele confirma amplamente, com dados americanos, o perfil da atitude
de cooperação compilado por Goldthorpe na Grã-Bretanha em The affluent worker.
Mas há um registro suficiente de súbitas irrupções de descontentamento, mesmo
entre trabalhadores afluentes (por exemplo, na fábrica da General Motors em
Lordstown, pouco depois de sua abertura, ou entre os operários afluentes da indústria automobilística que Goldthorpe estudou), para sugerir que isso pode ser
mais uma adaptação superficial do que uma reformulação total das atitudes dos
trabalhadores com respeito à produção em linha de montagem. O problema perpétuo de acostumar o trabalhador a sistemas de trabalho rotinizados, inexpressivos
O FORDISMO
129
e degradados nu_nca pode ser completamente superado, como alega vigorosamente
Braverman (1974). Não obstante, as organizações sindicais burocratizadas foram
sendo cada vez mais acuadas (às vezes através do exercício do poder estatal repressivo) para trocar ganhos reais de salário pela cooperação na disciplinação dos
trabalhadores de acordo com o sistema fordista de produção.
Os papéis das outras partes no contrato social geral, embora com freqüência
tácito, que reinava no período de expansão do pós-guerra eram bem definidos.
Utilizava-se o grande poder corporativo para assegurar o crescimento sustentado
de investimentos que aumentassem a produtividade, garantissem o crescimento e
elevassem o padrão de vida enquanto mantinham uma base estável para a realização de lucros. Isso implicava um compromisso corporativo com processos estáveis, mas vigorosos de mudança tecnológica, com um grande investimento de
capital fixo, melhoria da capacidade administrativa na produção e no marketing e
mobilização de economias de escala mediante a padronização do produto. A forte
centralização do capital, que vinha sendo uma característica tão significativa do
capitalismo norte-americano desde 1900, permitiu refrear a competição
intercapitalista numa economia americana todo-poderosa e fazer surgir práticas de
planejamento e de preços monopolistas e oligopolistas. A administração científica
de todas as facetas da atividade corporativa (não somente produção como também
relações pessoais, treinamento no local de trabalho, marketing, criação de produtos, estratégias de preços, obsolescência planejada de equipamentos e produtos)
tornou-se o marco da racionalidade corporativa burocrática. As decisões das corporações se tornaram hegemônicas na definição dos caminhos do crescimento do
consumo de massa, presumindo-se, com efeito, que os outros dois parceiros da
grande coalizão fizessem tudo o que fosse necessário para manter a demanda
efetiva em níveis capazes de absorver o crescimento sustentado do produto capitalista. O acúmulo de trabalhadores em fábricas de larga escala sempre trazia, no
entanto, a ameaça de uma organização trabalhista mais forte e do aumento do
poder da classe trabalhadora- daí a importância do ataque político a elementos
radicais do movimento operário depois de 1945. Mesmo assim, as corporações
aceitaram a contragosto o poder sindical, particularmente quando os sindicatos
procuravam controlar seus membros e colaborar com a administração em planos
de aumento da produtividade em troca de ganhos de salário que estimulassem a
demanda efetiva da maneira originalmente concebida por Ford.
O Estado, por sua vez, assumia uma variedade de obrigações. Na medida em .
que a produção de massa, que envolvia pesados investimentos em capital fixo, '
requeria condições de demanda relativamente estáveis para ser lucrativa, o Estado
se esforçava por controlar ciclos econômicos com uma combinação apropriada de
políticas fiscais e monetárias no período pós-guerra. Essas políticas eram dirigidas
para as áreas de investimento público - em setores como o transporte, os equipamentos públicos etc. - vitais para o crescimento da produção e do consumo de
massa e que também garantiam um emprego relativamente pleno. Os governos
também buscavam fornecer um forte complemento ao salário social com gastos de
seguridade social, assistência médica, educação, habitação etc. Além disso, o poder
estatal era exercido direta ou indiretamente sobre os acordos salariais e os direitos
dos trabalhadores na produção.
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130
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Tabela 2.2 A organização da negociação de salários em quatro países, 1950-1975
França
Grã-Bretanha
Itália
Alemanha
Ocidental
baixa
alta,
colarinho azul
variável
moderada
fraca com
facciosismo
político
fragmentada
entre
indústrias e
categorias
periódica com
movimentos
de massa
estruturada e
unificada
Patrões
divididos entre
tendências e
organizações
fraca
organização
coletiva
rivalidade
setor privado
setor público
fortes e
organizados
Estado
intervenções
amplas e
regulamentação
do trabalho e
dos salários
através de
acordos
tripartites
negociação
coletiva
voluntária com
normas
fixadas pelo
Estado a partir
da metade
dos anos 60
intervenção
legislativa
periódica
dependente
de luta de
classes
papel muito
fraco
Sindicalização
Organização
Fonte: a partir de Boyer, 1986b, tabela 1
As formas de intervencionismo estatal variavam muito entre os países capitalistas avançados. A tabela 2.2 ilustra, por exemplo, a variedade de posturas tomadas por diferentes governos da Europa Ocidental diante das negociações de contratos trabalhistas. Diferenças qualitativas e quantitativas semelhantes podem ser
encontradas no padrão dos gastos públicos, da organização dos sistemas de bem-estar social (no caso do Japão, por exemplo, mantidos principalmente pela própria
corporação) e do grau de envolvimento ativo do Estado, em oposição ao
envolvimento tácito, nas decisões econômicas. Padrões de descontentamento trabalhista, de organização de fábrica e de ativismo sindical também variavam consideravelmente de Estado para Estado (Lash e Urry, 1987). Mas o notável é a maneira
pela qual governos nacionais de tendências ideológicas bem distintas --:- gaullista,
na França, trabalhista, na Grã-Bretanha, democrata-cristão, na Alemanha Ocidental
etc. - criaram tanto um crescimento econômico estável como um aumento dos
padrões materiais de vida através de uma combinação de estado do bem-estar
social, administração econômica keynesiana e controle de relações de salário. É
claro que o fordismo dependia da assunção pela nação-Estado - como Gramsci
previra- de um papel muito especial no sistema geral de regulamentação social.
O FORDISMO
131
Por conseguinte, o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um
mero sistema de produção em massa do que como um modo de vida total. Produção em massa significava padronização do produto e consumo de massa, o que
implicava toda uma nova estética e mercadificação da cultura que muitos neoconservadores como Daniel Bell mais tarde considerariam prejudicial à preservação da ética do trabalho e de outras supostas virtu~s capitalistas. O fordismo
também se apoiou na, e contribuiu para a, estética do modernismo - particularmente na inclinação desta última para a funcionalidade e a eficiência - de maneiras muito explícitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal (orientadas
por princípios de racionalidade burocrático-técnica) e a configuração do poder
político que davam ao sistema a sua coerência se apoiavam em noções de uma
democracia econômica de massa que se mantinha através de um equílfbrio de
forças de interesse especial.
O fordismo do pós-guerra também teve muito de questão internacional. O
longo período de expansão do pós-guerra dependia de modo crucial de uma maciça
ampliação dos fluxos de comércio mundial e de investimento internacional. De
desenvolvimento lento fora dos Estados Unidos antes de 1939, o fordismo se implantou com mais firmeza na Europa e no Japão depois de 1940 como parte do
esforço de guerra. Foi consolidado e expandido no período de pós-guerra, seja
diretamente, através de políticas impostas na ocupação (ou, mais paradoxalmente,
no caso francês, porque os sindicatos liderados pelos comunistas viam o fordismo
como a única maneira de garantir a autonomia econômica nacional diante do desafio
americano), ou indiretamente, por meio do Plano Marshall e do investimento direto americano subseqüente. Este último, que começou aos poucos nos anos entre-guerras, quando as corporações americanas procuravam mercados externos para
superar os limites da demanda efetiva interna, tomou impulso depois de 1945. Essa
abertura do investimento estrangeiro (especialmente na Europa) e do comércio
permitiu que a capacidade produtiva excedente dos Estados Unidos fosse absorvida alhures, enquanto o progresso internacional do fordismo significou a formação
de mercados de massa globais e a absorção da massa da população mundial fora
do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo de capitalismo. Além
disso, o desenvolvimento desigual na economia mundial significou a experiência
de ciclos econômicos já paralisados como oscilações locais e amplamente compensatórias no interior de um crescimento razoavelmente estável da demanda mundial. Do lado dos insumos, a abertura do comércio internacional representou a
globalização da oferta de matérias-primas geralmente baratas (em particular no
campo da energia). O novo internacionalismo também trouxe no seu rastro muitas
outras atividades - bancos, seguros, hotéis, aeroportos e, por fim, turismo. Ele
trouxe consigo uma nova cultura internacional e se apoiou fortemente em capacidades recém-descobertas de reunir, avaliar e distribuir informação.
Tudo isso se abrigava sob o guarda-chuva hegemônico do poder econômico e
financeiro dos Estados Unidos, baseado no domínio militar. O acordo de Bretton
Woods, de 1944, transformou o dólar na moeda-reserva mundial e vinculou com
firmeza o desenvolvimento econômico do mundo à política fiscal e monetária norte-americana. A América agia como banqueiro do mundo em troca de uma abertura
dos mercados de capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações. Sob
132
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
essa proteção, o fordismo se disseminou desigualmente, à medida que cada Estado
procurava seu próprio modo de administração das relações de trabalho, da política
monetária e fiscal, das estratégias de bem-estar e de investimento público, limitados internamente apenas pela situação das relações de classe e, externamente, somente pela sua posiçãq hierárquica na economia mundial e pela taxa de câmbio
fixada com base no dólar. Assim, a expansão internacional do fordismo ocorreu
numa conjuntura particular de regulamentação político-econômica mundial e uma
configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio de um
sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder.
Nem todos eram atingidos pelos benefícios do fordismo, havendo na verdade
sinais abundantes de insatisfação mesmo no apogeu do sistema. Para começar, a
negociação fordista de salários estava confinada a certos setores da economia e a
certas nações-Estado em que o crescimento estável da demanda podia ser acompanhado por investimentos de larga escala na tecnologia de produção em massa.
Outros setores de produção de alto risco ainda dependiam de baixos salários e de
fraca garantia de emprego. E mesmo os setores fordistas podiam recorrer a uma
base não-fordista de subcontratação. Os mercados de trabalho tendiam a se dividir
entre o que O'Connor (1973) denominou um setor "monopolista" e um setor "competitivo" muito mais diversificado em que o trabalho estava longe de ter privilégios. As desigualdades resultantes produziram sérias tensões sociais e fortes movimentos sociais por parte dos excluídos - movimentos que giravam em torno da
maneira pela qual a raça, o gênero e a origem étnica costumavam determinar quem
tinha ou não acesso ao emprego privilegiado. Essas desigualdades eram particularmente difíceis de manter diante do aumento das expectativas, alimentadas em
parte por todos os artifícios aplicados à criação de necessidades e à produção de
um novo tipo de sociedade de consumo. Sem acesso ao trabalho privilegiado da
produção de massa, amplos segmentos da força de trabalho também não tinham
acesso às tão louvadas alegrias do consumo de massa. Tratava-se de uma fórmula
segura para produzir insatisfação. O movimento dos direitos civis nos Estados
Unidos se tornou uma raiva revolucionária que abalou as grandes cidades. O surgimento de mulheres como assalariadas mal-remuneradas foi acompanhado por
um movimento feminista igualmente vigoroso. E o choque da descoberta de uma
terrível pobreza em meio à crescente afluência (exposta, por exemplo, em The other
America de Michael Harrington) gerou fortes contramovimentos de descontentamento com os supostos benefícios do fordismo.
Embora fosse útil sob certos aspectos, do ponto de vista do controle do trabalho, a divisão entre uma força de trabalho predominantemente branca, masculina
e fortemente sindicalizada e "o resto" também tinha seus problemas. Ela significava uma rigidez nos mercados de trabalho que dificultava a realocação do trabalho
·de uma linha de produção para outra. O poder exclusivista dos sindicatos fortalecia sua capacidade de resistir à perda de habilidades, ao autoritarismo, à hierarquia
e à perda de controle no local de trabalho. A inclinação de uso desses poderes
dependia de tradições políticas, formas de organização (o movimento dos comerciários da Inglaterra era particularmente forte) e disposição dos trabalhadores em
trocar seus direitos na produção por um maior poder no mercado. As lutas trabalhistas não desapareceram, pois os sindicatos muitas vezes eram forçados a respon-
O FORDISMO
133
der a insatisfações das bases. Mas os sindicatos também se viram cada vez mais
atacados a partir de fora, pelas minorias excluídas, pelas mulheres e pelos
desprivilegiados. Na medida em que serviam aos interesses estreitos de seus membros e abandonavam preocupações socialistas mais radicais, os sindicatos corriam
o risco de ser reduzidos, diante da opinião pública, a grupos de interesse fragmentados que buscavam servir a si mesmos, e não a objetivos gerais.
O Estado agüentava a carga de um crescente descontentamento, que às vezes ))l~~
culminava em desordens civis por parte dos excluídos. No mínimo, o Estado tinha- ··~
de tentar garantir alguma espécie de salário social adequado para todos ou engajar- 0f"'~
-se em políticas redistributivas ou ações legais que remediassem ativamente as
- '
desigualdades, combatessem o relativo empobrecimento e a exclusão das minorias.
A legitimação do poder do Estado dependia cada vez mais da capacidade de levar
os benefícios do fordismo a todos e de encontrar meios de oferecer assistência
médica, habitação e serviços educacionais adequados em larga escala, mas de modo
humano e atencioso. Os fracassos qualitativos nesse campo eram motivo de inúmeras críticas, mas, no final, é provável que os dilemas mais sérios fossem provocados
pelo fracasso quantitativo. A condição do fornecimento de bens coletivos dependia
da contínua aceleração da produtividade do trabalho no setor corporativo. Só assim o Estado keynesiano do bem-estar social poderia ser fiscalmente viável.
Na ponta do consumo, havia mais do que uma pequena crítica à pouca qualidade de vida num regime de consumo de massa padronizado. A qualidade do
oferecimento de serviços através de um sistema não discriminador de administração pública (baseado na raçionalidade burocrática técnico-científica) também recebia pesadas críticas. O ge~encialismo estatal fordista e keynesiano passou a ser
associado a uma austera estética funcionalista (alto modernismo) no campo dos
projetos racionalizados. Os críticos da aridez suburbana e da monumentalidade
monolítica dos centros das cidades (como Jane Jacobs) se tornaram, como vimos,
uma minoria vociferante que articulava todo um conjunto de insatisfações culturais. As críticas e práticas contraculturais dos anos 60 eram, portanto, paralelas aos
movimentos das minorias excluídas e à crítica da racionalidade burocrática
despersonalizada. Todas essas correntes de oposição começaram a se fundir, formando um forte movimento político-cultural, no próprio momento em que o
fordismo como sistema econômico parecia estar no apogeu.
Devem-se acrescentar a isso. todos os insatisfeitos do Terceiro Mundo com um
processo de modernização que prometia desenvolvimento, emancipação das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição
de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em
troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos
(por exemplo, no campo da saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional. Movimentos
em prol da libertação nacional- algumas vezes socialistas, mas com mais freqüência burgueses-nacionalistas - mobilizaram muitos desses insatisfeitos sob formas
que por vezes pareciam bem ameaçadoras para o fordismo global. A hegemonia
geopolítica dos Estados Unidos estava ameaçada, e o país, que começara a era do
pós-guerra empregando o anticomunismo e o militarismo como veículos de pro-
134
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
moção da estabilização geopolítica e econômica, logo se viu às voltas com o problema da opção "armas ou manteiga" em sua própria política econômica fiscal.
Contudo, a despeito de todos os descontentamentos e de todas as tensões
manifestas, o núcleo essencial do regime fordista manteve-se firme ao menos até
1973, e, no processo, até conseguiu manter a expansão do período pós-guerra que favorecia o trabalho sindicalizado e, em alguma medida, estendia os "benefícios" da produção e do consumo de massa de modo significativo - intacta. Os
padrões materiais de vida para a massa da população nos países capitalistas avançados se elevaram e um ambiente relativamente estável para os lucros corporativos
prevalecia. Só quando a aguda recessão de 1973 abalou esse quadro, um processo
de transição rápido, mas ainda não bem entendido, do regime de acumulação teve
início.
9
Do Fordismo à Acumulação Flexível
Em retrospecto, parece que havia indícios de problemas sérios no fordismo já
em meados dos anos 60. Na época, a recuperação da Europa Ocidental e do Japão
tinha se completado, seu mercado interno estava saturado e o impulso para criar
mercados de exportação para os seus excedentes tinha de começar (figura 2.3). E
isso ocorreu no momento em que o sucesso da racionalização fordista significava
o relativo deslocamento de um número cada vez maior de trabalhadores da manufatura. O conseqüente enfraquecimento da demanda efetiva foi compensado nos
Estados Unidos pela guerra à pobreza e pela guerra do Vietnã. Mas a queda da
produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966 (figura 2.4) marcou
o começo de um problema fiscal nos Estados Unidos que só seria sanado às custas
de uma aceleração da inflação, o que começou a solapar o papel do dólar como
moeda-reserva internacional estável. A formação do mercado do eurodólar e a
contração do crédito no período 1966-1967 foram, na verdade, sinais prescientes da
redução do poder norte-americano de regulamentação do sistema financeiro internacional. Foi também perto dessa época que as políticas de substituição de importações em muitos países do Terceiro Mundo (da América Latina em particular),
associadas ao primeiro grande movimento das multinacionais na direção da manufatura no estrangeiro (no Sudeste Asiático em especial), geraram uma onda de
industrialização fordista competitiva em ambientes inteiramente novos, nos quais
o contrato social com o trabalho era fracamente respeitado ou inexistente. Daí por
diante, a competição internacional se intensificou à medida que a Europa Ocidental
e o Japão, seguidos por toda uma gama de países recém-industrializados, desafiaram a hegemonia estadunidense no âmbito do fordismo a ponto de fazer cair por
terra o acordo de Bretton W oods e de produzir a desvalorização do dólar. A partir
de então, taxas de câmbio flutuantes e, muitas vezes, sobremodo voláteis substituíram as taxas fixas da expansão do pós-guerra (figura 2.5).
De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente
a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo}*a-&UR_erfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas
por uma palavra:\._..Q_gidez} Havia problemas com a rigidez dos investimentos de
~ital fixo de lar ~a e ~lon~ razo em sistemaSâe pro uçao em massa
ue im ediam muita fl~xi ifidade de 12lanejamento e presumiãm crescimento estável em mer_s:ados de consumo invariantes. Havia probiemas de ngidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (especialmente no chamado setor
"monopolista" ). E toda tentativa de superar esses problemas de rigidez encontrava
a força aparentemente invencível do poder profundamente entrincheirado da elase trabalhadora - o que explica as ondas de greve e os problemas trabalhistas do
período 1968-1972. A rigidez dos compromissos do Estado foi -se intensificando à
136
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Parcela das exportações dos EUA
no comércio da OCDE
36
32
Importações como parcela
do PNB dos EUA
28
24
20
16
12
8
...... •••. ·••·••·•··••
4 ···•·····•··········• · ···••••··· ·••···•·
% 0+--.-----r-----.-----.----~r-----.-----~------~
1948 1950
1955
1960
1965
1970
1975
1980
1985
1987
Figura 2.3 Parcela' dos EUA no comércio e nas importações de produtos manufaturados
da OCDE como porcentagem do PNB dos EUA, 1948-1987.
(Fontes: OCDE, Estatísticas Históricas dos Estados Unidos e
Relatórios Econômicos ao Presidente)
medida que programas de assistência (seguridade social, direitos de pensão etc.)
aumentavam sob pressão para manter a legitimidade num momento em que a
rigidez na produção restringia expansões da base fiscal para gastos públicos. O único
instrumento de resposta flexível estava na política monetária, na capacidade de imprimir moeda em qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia
estável. E, assim, começou a onda inflacionária que acabaria por afundar a expansão
do pós-guerra. ~t[ás de t~ a rigidez es ecífica de cada-~ estava uma con!igEraç~p~rentemente fixa de pod~r polítiçg_e_Lelações reciprocas
que unia o grande_trabalho, o _gEande c_apital e o grande gov~o no que parecia
ada vez mais uma defesa disfuncional de interesses escusos definidos-de ma e·
tão estreita qíi"e ~olapavam, em vez de ~a acumulação_Q.o êa.p ita; .
O ímpeto da expansão de pós-guerra se manteve no período 1969-1973 por
uma política monetária extraordinariamente frouxa por parte dos Estados Unidos
e da Inglaterra. O mundo capitalista estava sendo afogado pelo excesso de fundos;
e, com as poucas áreas produtivas reduzidas para investimento, esse excesso significava uma forte inflação. A tentativa de frear a inflação ascendente em 1973
expôs muita capacidade excedente nas economias ocidentais, disparando antes de
tudo uma crise mundial nos mercados imobiliários (ver figura 2.6) e severas dificuldades nas instituições financeiras. Somaram-se a isso os efeitos da decisão da
OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão árabe de embargar as exportações de petróleo para o Ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973. Isso
(1) mudou o custo relativo dos insumos de energia de maneira dramática, levando
todos os segmentos da economia a buscarem modos de economizar energia através
da mudança tecnológica e organizacional, e (2) levou ao problema da reciclagem
dos petrodólares excedentes, problema que exacerbou a já forte instabilidade dos
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
~
8
- - Taxa de acumulação
7
• .. • • Taxa de lucro
25
20
6
o
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10
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137
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40
35
30
25
20
15
10
5
(b)
..... .
.... .·.:..·
Manufatura antes
- - dos impostos
· • • • • Todas as empresas,
antés dos impostos
,•
%o
Figura 2.4 Taxas de acumulação e de lucro nos países capitalistas avançados,
1950-1982 (a partir de Armstrong, Glyn e Harrison) e taxas de lucro como
(a) porcentagem do custo de substituição do estoque de capital e
(b) porcentagem da renda nacional nos EUA, 1948-1984.
(Fonte: Pollin, 1986)
mercados financeiros mundiais. A forte deflação de 1973-1975 indicou que as finanças do Estado estavam muito além dos recursos, criando uma profunda crise
fiscal e de legitimação. A falência técnica da cidade de Nova Iorque em 1975cidade com um dos maiores orçamentos públicos do mundo - ilustrou a seriedade do problema. Ao mesmo tempo, as corporações viram-se com muita capacidade
excedente inutilizável (principalmente fábricas e equipamentos ociosos) em condições de intensificação da com:r.etição (figura 2.7). Isso as obrigou a entrar num
período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho
(caso pudessem superar ou cooptar o poder sindical). A mudança tecn.ológica, a
automação, a busca de novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão
geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para
138
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Desvios percentuais com relação ao dólar de outubro de 1967
(médias mensais de números diários*}
1.
2.
3.
4.
5.
6.
240
220
200
180
160
140
120
100
80
60
( desvalorizada (18.11.67)
Franco francês desvalorizado (1 0.8.69)
Flutuação (30.9.69) e revalorização (26.10.69) do marco alemão
Flutuação do dólar canadense (1.6.70)
Flutuação do marco alemão e do florim holandês; revalorização do do franco suíço (9.5.71)
Convertibilidade do dólar em ouro suspensa (15.8.71 ); flutuação de facto das. principais moedas
7. Realinhamento smithsoniano; dólar formalmente desvalorizado; ~. marco alemão e outras moedas
revalorizadas (18.12.71)
8. Flutuação da f: (23.6 72)
9. Flutuação do franco suíço (23.1.73); dólar desvalorizado, flutuação do ~ e da lira (1 3.2.73)
1O. Mercados fechados (2.3.73); revalorização do marco alemão. flutuação conjunta (19.3.73)
11 . Revalorização do marco alemão (29.6.73)
12. Revalorização do florim holandês (17.9.73)
13. Franco francês deixa a flutuação conjunta (19.1.74)
14. Franco francês volta à flutuação conjunta (1 0.7.75)
15. Franco francês deixa a flutuação conjunta (15.3.76)
16. Revalorização do marco alemão (meados de outubro de 1976)
17. Revalorização do marco alemão (meados de outubro de 1978)
18. Medidas de Apoio ao Dólar (1.11 .1978)
19. Introdução do SME !Sistema Monetário Europeu! (meados de março de 1979)
20. Primeiro realinhamento do SME: revalorização do marco alemão (fins de setembro de 1979)
21 . Realinhamento do SME; desvalorização da lira (março de 1981)
22. Realinhamento do SME; revalorização do marco alemão e do florim holandês; desvalorização do franco
francês e da lira (outubro de 1981)
23. Realinhamento do SME; revalorização do marco alemão e do florim holandês; desvalorização
do franco francês e da lira (junho de 1982)
24. Realinhamento do SME; marco alemão, florim holandês e franco belga revalorizados;
franco francês, lira e libra irlandesa desvalorizados
(fins de março de 1983)
25. Realinhamento do SME; lira desvalorizada
(meados de julho de 1985)
26. Realinhamento do SME; marco alemão,
florim holandês e franco belga
revalorizados, franco francês
desvalorizado (início de abril de 1986)
27 . Realinhamento do SME; marco alemão,
10C
florim holandês e franco
belga revalorizados
80
(início de janeiro
60
de 1987)
40
40
20
20
o
o
-20
-20
-40
-60
• Centavos de dólar
por unidade
-80
-40
. -60
-80
Figura 2.5 Taxas de câmbio das principais moedas com relação ao dólar.
(Fonte: OCDE, Economic Outlook, junho de 1988.)
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
%
60 I
50 ' Taxa anual de variação na dívida
40! hipotecária nos Estados Unidos
! (Departamento de Comércio)
30
20
10
1955
1965
139
1975
Preços de títulos: Investimento Imobiliário Fundos
(Fundos Hipotecários) - Estados Unidos
1967
1970
1974
Índice de Preços de Títulos de Propriedade -
Inglaterra
300
200
100
1962
1966
1970
1974
Figura 2.6 Alguns índices da expansão e da queda do mercado imobiliário na
Inglaterra e nos Estados Unidos, 1955-1975. Alto: Taxa anual de variação na dívida
hipotecária nos Estados Unidos (dados do Departamento de Comércio). Meio: Preços
dos títulos dos fundos de investimento imobiliário nos Estados Unidos.
(Fonte: Revista Fortune). Baixo: Índice de preços de títulos de propriedade na
Inglaterra (Fonte: Investors Chronicle)
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
140
100
-
Produção total
produtiva
90
80
70
1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988
Figura 2.7 Capacidade de utilização nos Estados Unidos, 1970-1988.
(Fonte: Diretoria da Reserva Federal)
acelerar o tempo de giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias
corporativas de sobrevivência em condições gerais de deflação.
A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo, evidentemente retirou o mundo capitalista do sufocante torpor da "estagflação" (estagnação da produção de bens e alta inflação de preços) e pôs em movimento um
conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Em conseqüência, as
décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de reestruturação econômica e
de reajustamento social e político (figura 2.8). No espaço social criado por todas
essas oscilações e incertezas, uma série de novas experiências nos domínios da
organização industrial e da vida social e política começou a tomar forma. Essas
experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta.
A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto
com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho,
dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se
pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológiCa e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas udanças dos padrões do desenvo0'imento desigual,j
tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto
movimento no emprego no chamado "setor de serviços", bem como conjuntos
industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (tais como
a "Terceira Itália", Flandres, os vários vales e gargantas do silício, para não falar
da vasta profusão de atividades dos países recém-industrializados). Ela também
envolve um novo movimento que chamarei de "compressão do espaço-tempo"
(ver Parte III) no mundo capitalista - os horizontes temporais da tomada de
decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a
queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata
dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado.
Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do:trabalho sobre uma força de
4
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
141
Taxa de desemprego (%)
12
10
8
6
4
Europa
2
o
14
Europa
12
10
Taxa de inflação (%)
8
6
EUA
4
2
o
1965
1970
1975
1980
1985
Figura 2.8 Taxas de desemprego e de inflação na Europa e nos EUA, 1961-1987.
(Fonte: OCDE)
trabalho de qualquer maneira enfraquecida por dois surtos selvagens de deflação,
força que viu o desemprego aumentar nos países capitalistas avançados (salvo, talvez,
no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra.....O trabalho organizado foi solaEado pcla..m
trução de focos de acumula ão flexível em regiões que careciam de
tradições industriais anteriores e pela reimportação para os centros mais antigos das
normas e práticas regressivas estabelecidas nessas novas áreas. A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego estrutural" (em
oposição a friccionai"), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos
modestos (quando há) de salários reais (ver figuras 2.2 e 2.9) e o retrocesso do
poder sindical - uma das
do regime fordista.
- colunas políticas
-.
11
11
~
,.___
~
142
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
102
100
98
96
94
92
o
10
9
8
7
6
5
%0
80
60
40
20
%o
31
30
29
28
Renda (milhares
de dólares americanos)
27
o
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
Figura 2.9 (a) Índice de ganhos por hora em trabalhos não agrícolas, (b) porcentagem
de desempregados, (c) porcentagem de desempregados que recebem benefícios de
desemprego, e (d) renda familiar mediana nos EUA, 1974-1987.
(Fontes: Agência de Estatísticas do Trabalho e Relatórios Econômicos ao Presidente)
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
143
O mercado de trabalho, por exemplo, passou por uma radical reestruturação.
Diante da forte volatilidade do mercado, do aumento da competição e do estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder
sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados ou
subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. É difícil
esboçar um quadro geral claro, visto que o propósito dessa flexibilidade é satisfazer as
necessidades com freqüência muito espeáficas de cada empresa. Mesmo para os
empregados regulares, sistemas como "nove dias corridos" ou jornadas de trabalho
que têm em média quarenta horas semanais ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar bem mais em períodos de pico de demanda, compensando com
menos horas em períodos de redução da demanda, vêm se tornando muito mais
comuns. Mais importante do que isso é a aparente redução do emprego regular em
favor do crescente uso do trabalho em tempo pardal, temporário ou subcontratado.
O resultado é uma estrutura de mercado de trabalho do tipo detalhado na
figura 2.10, retirada, como as citações seguintes, de Flexible Pattems of Work (1986),
Autônomos
Q)
"O
Figura 2.10 Estruturas do mercado de trabalho em condições de acumulação flexível.
Fonte: Flexible Patterns of Work, editado por C. Curson, Institute of Personnel Management)
144
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
do Institute of Personnel Management. O centro - grupo que diminui cada vez
mais, segundo notícias de ambos os lados do Atlântico - se compõe de empregados "em tempo integral, condição permanente e posição essencial para o futuro de
longo prazo da organização". Gozando de maior segurança no emprego, boas
perspectivas de promoção e de reciclagem, e de uma pensão, um seguro e outras
vantagens indiretas relativamente generosas, esse grupo deve atender à expectativa de ser adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel. Os custos
potenciais da dispensa temporária de empregados do grupo central em época de
dificuldade podem, no entanto, levar a empresa a subcontratar mesmo para funções de alto nível (que vão dos projetos à propaganda e à administração financeira), mantendo o grupo central de gerentes relativamente pequeno. A periferia abrange
dois subgrupos bem distintos. O primeiro consiste em "empregados em tempo
integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho, como
pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoal das áreas de trabalho rotineiro e de
trabalho manual menos especializado". Com menos acesso a oportunidades de
carreira, esse grupo tende a se caracterizar por uma alta taxa de rotatividade, "o
que torna as reduções da força de trabalho relativamente fáceis por desgaste natural". O segundo grupo periférico "oferece uma flexibilidade numérica ainda maior
e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato
por tempo determinado, temporários, subcontratação e treinandos com subsídio
público, tendo ainda menos seguranças de emprego do que o primeiro grupo
periférico". Todas as evidências apontam para um crescimento bastante significativo desta categoria de empregados nos últimos anos.
Esses arranjos de emprego flexíveis não criam por si mesmos uma insatisfação
trabalhista forte, visto que a flexibilidade pode às vezes ser mutuamente benéfica.
Mas os efeitos agregados, quando se consideram a cobertura de seguro, os direitos
de pensão, os níveis salariais e a segurança no emprego, de modo algum parecem
positivos do ponto de vista da população trabalhadora como um todo. A mudança
mais radical tem seguido a direção do aumento da subcontratação (70 por cento
das firmas britânicas pesquisadas pelo National Economic Development Council
[Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico] relataram um aumento da
subcontratação entre 1982 e 1985) ou do trabalho temporário- em vez do trabalho
em tempo parcial. Isso segue um padrão há muito estabelecido no Japão, onde,
mesmo no fordismo, a subcontratação de pequenas empresas agia como protetor
das grandes corporações do custo das flutuações do mercado. A atual tendência
dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores" centrais" e empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem
custos quando as coisas ficam ruins. Na Inglaterra, os "trabalhadores flexíveis"
aumentaram em 16 por cento, alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto
os empregos permanentes caíram em 6 por cento, ficando em 15,6 milhões (Financiai
Times, 27 de fevereiro de 1987). Mais ou menos no mesmo período, cerca de um
terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA estavam na categoria
"temporário" (New York Times, 17 de março de 1988).
Evidentemente, isso não mudou de maneira radical os problemas, surgidos nos
anos 60, dos mercados de trabalho "duais" ou segmentados, mas o reformulou
segundo uma lógica bem diferente. Embora seja verdade que a queda da impor-
TI
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
145
tância do poder sindical reduziu o singular poder dos trabalhadores brancos do
sexo masculino nos mercados do setor monopolista, não é verdade que os excluídos desses mercados de trabalho - negros, mulheres, minorias étnicas de todo
tipo- tenham adquirido uma súbita paridade (exceto no sentido de que muitos
operários homens e brancos tradicionalmente privilegiados foram marginalizados,
unindo-se aos excluídos). Mesmo que algumas mulheres e algumas minorias tenham tido acesso a posições mais privilegiadas, as novas condições do mercado de
trabalho de maneira .geral reacentuaram a vulnerabilidade dos grupos desprivilegiados (como logo veremos no caso das mulheres).
A transformação da estrutura do mercado ds _ trabalho t~como paralelo
mudanças de igual importância na organização industrial. Por exemplü, a su contratação organizacta~al:Jre..:.opurturríâa es para a fõrmação de pequenos negócios e,
em alguns casos, permite que sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista ("padrinhos", "patronos" e até estruturas
semelhantes à da máfia) revivam e floresçam, mas agora como peças centrais, e não
apêndices do sistema produtivo. O retorno de formas de produção que envolvem
exploração em cidades como Nova Iorque, Los Angeles e Londres se tornou objeto
de comentários na metade dos anos 70 e proliferou, em vez de diminuir, na década
de 80. .O rápido crescimento de economias "negras", "informais" ou "subterrâneas" também tem sido documentado em todo o mundo capitalista avançado, levando alguns a detectar uma crescente convergência entre sistemas de trabalho "terceiromundistas" e capitalistas avançados. Contudo, a ascensão de novas formas de
organização industrial e o retorno de formas mais antigas (com freqüência dominadas por novos grupos de imigrantes em grandes cidades, como filipinos, sul-coreanos, vietnamitas e naturais de Taiwan em Los Angeles, ou indianos e nativos
de Bangladesh no leste de Londres) representam coisas bem diferentes em diferentes lugares. Às vezes, indicam o surgimento de novas estratégias de sobrevivência
para os desempregados ou pessoas totalmente discriminadas (como os haitianos
em Miami ou Nova Iorque), enquanto em outros casos existem apenas grupos
imigrantes tentando entrar num sistema capitalista, formas organizadas de sonega- ,
ção de impostos ou o atrativo de altoslucros no comércio ilegal em sua base. Em__;
todos esses casos, o efeito é uma transformação do modo de controle do trabalho
e de emprego.
As formas de organização da classe trabalhadora (como os....J)indicatos), por
exemplo, dependiam ~stante .do acúmulo de tra~~.lhadgres na fá~rica 12ara sere!Jl
viaveis, sendo peculiarmente difícil ter acesso aos sistemas de trabalho familiares
e domésticos. Os sistemas paternalistas são territórios perigosos para o organização
dos trabalhadores, porque é mais provável que corrompam o poder sindical (se ele
estive-r presente) do que tenham seus empregados liberados por este do domínio
e da política paternalista de bem-estar do "padrinho". Com efeito, uma das gran. des vantagens do uso dessas formas antigas de processo de trabalho e de produção
pequeno-capitalista é o solapamento da organização da classe trabalhadora e a
transformação da base objetiva da luta de classes. Nelas, a consciência de classe já
não deriva da clara relação de classe entre capital e trabalho, passando para um
terreno muito mais confuso dos conflitos interfamiliares e das lutas pelo poder
num sistema de parentescos ou semelhantes a um clã que contenha relações sociais
l
146
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
hierarquicamente ordenadas. A luta contra a exploração capitalista na fábrica é
bem diferente da luta contra um pai ou tio que organiza o trabalho familiar num
esquema de exploração altamente disciplinado e competitivo que atende às encomendas do capital multinacional (tabela 2.3).
Os efeitos são duplamente óbvios quando consideramos a transformação do
papel das mulheres na produção e nos mercados de trabalho. Não apenas as t\Ovas
estruturas do mercado de trabalho facilitam muito a exploração da força de trabalho das mulheres em ocupações de tempo parcial, substituindo assim trabalhadores homens centrais melhor remunerados e menos facilmente demitíveis pelo trabalho feminino mal pago, como o retorno dos sistemas de trabalho doméstico e
familiar e da subcontratação permite o ressurgimento de práticas e trabalhos de
cunho patriarcal feitos em casa. Esse retorno segue paralelo ao aumento da capacidade do capital multinacional de levar para o exterior sistemas fordistas de produção em massa, e ali explorar a força de trabalho feminino extremamente vulnerável em condições de remuneração extremamente baixa e segurança do emprego
negligenciável (ver Nash e Fernandez-Kelly, 1983). O programa Maquiladora, que
permite que administradores e a propriedade do capital norte-americano permaneçam ao norte da fronteira mexicana, enquanto se instalam as fábricas, que empregam principalmente mulheres jovens, ao sul da fronteira, é um exemplo particularmente dramático de uma prática que se tornou generalizada em muitos dos
países menos desenvolvidos e recém-industrializados (as Filipinas, a Coréia do Sul,
o Brasil etc.). A transição para a acumulação flexível foi marcada, na verdade, por
uma revolução (de modo algum progressista) no papel das mulheres nos mercados
e processos de trabalho num período em que o movimento de mulheres lutava
tanto por uma maior consciência como por uma melhoria das condições de um
segmento que hoje representa mais de 40 por cento da força de trabalho em muitos
países capitalistas avançados.
Novas técnicas e novas formas organizacionais de produção puseram em risco
os negócios de organização tradicional, espalhando uma onda de bancarrotas, fechamento de fábrica, desindustrialização e reestruturações que ameaçou até as
corporações mais poderosas. A forma organizacional e a técnica gerencial apropliadas à produção em massa padronizada em grandes volumes nem sempre eram
convertidas com facilidade para o sistema de produção flexível - com sua ênfase
na solução de problemas, nas respostas rápidas e, com freqüência, altamente
especializadas, e na adaptabilidade de habilidades para propósitos especiais. Onde
a produção podia ser padronizada, mostrou-se difícil parar o seu movimento de
aproveitar-se da força de trabalho mal remunerada do Terceiro Mundo, criando ali
o que Lipietz (1986) chama de "fordismo periférico". A falência do Penn Central
em 1976 e os problemas da Chrysler em 1981 indicaram a seriedade do problema
nos Estados Unidos. Além de a lista das 500 maiores corporações do país, feita pela
Fortune, ter passado por uma considerável modificação, o papel dessas corporações
na economia também mudou - sua taxa global de emprego permaneceu estacionária depois de 1970 (com uma perda líquida nos Estados Unidos), em comparação
com a duplicação da oferta de empregos ocorrida em suas fábricas entre 1954 e
1970. Por outro lado, a formação de novos negócios nos Estados Unidos disparou
dramaticamente, dobrando no período entre 1975 e 1981 (um ano de forte recessão).
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
14t
Tabela 2.3 Diferentes formas de processo de trabalho e de organização da produção
Tipo de produção
Forma
Base de
exploração
Política de
produção
Autônoma
Consultores,
artesãos e setor
informal
troca de bens e
serviços
individualista e
regida pelo
mercado,
antimonopólio ou
regulamentação
estatal
Cooperativa
coletivos e
cooperativas
acordos internos,
intercâmbio
externo
negociação
Patriarcal
pequenas firmas
familiares
(exploradoras)
parentesco
baseado em idade
e sexo
paroquial
Paternalismo
comunitário
grandes firmas
domésticas
(trabalho duro)
comunidade
baseada em
normas, em costumes e na força
aparência e status
Paternalismo
burocrático
sistemas
corporativos e de
gerência estatal
racionalidade,
lealdade e
antigüidade
calcl{ladas
possibilidade de
ascensão funcional
e competição
dentro das
organizações
Patrimonial
impérios
hierarquicamente
organizados na produção, no comércio ou nas finanças
relações de poder
e troca de favores
(privilégio
tradicional)
barganhas, ganhos
mútuos e lutas
dinást icas
Proletária
empresa capitalista
e sistema de
fábricas
compra e venda
de força de
trabalho e controle
sobre o processo
de trabalho e os
meios de produção
competição no
mercado, ação
coletiva,
negociação e luta
de classes
Fonte: a partir de Oeyo, 1987
148
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Muitos dos novos pequenos negócios se inseriram na matriz da subcontratação de
funções especializadas ou de consultores.
As economias de escala buscadas na produção fordista de massa foram substituídas por uma crescente capacidade de manufatura de uma variedade de bens
e preços baixos em pequenos lotes. As economias de escopo derrotaram as economias de escala. Por exemplo, em 1983, a Fortune revelou que "setenta e cinco por
cento de todas as peças de máquinas são produzidas hoje em lotes de cinqüenta ou
menos". As empresas fordistas podiam, é verdade, adotar as novas tecnologias e
processos de trabalho (uma prática apelidada por alguns de "neofordista"), mas,
em muitos casos, as pressões competitivas e a luta por um melhor controle do
trabalho levaram quer ao surgimento de formas industriais totalmente novas ou à
integração do fordismo a toda uma rede de subcontratação e de "deslocamento"
para dar maior flexibilidade diante do aumento da competição e dos riscos. A
produção em pequenos lotes e a subcontratação tiveram por certo a virtude de
superar a rigidez do sistema fordista e de atender a uma gama bem mais ampla de
necessidades do mercado, incluindo as rapidamente cambiáveis.
Esses sistemas de produção flexível permitiram uma aceleração do ritmo da
inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado altamente
especializados e de pequena escala- ao mesmo tempo que dependeram dela. Em
condições recessivas e de aumento da competição, o impulso de explorar essas
possibilidades tornou-se fundamental para a sobrevivência. O tempo de giro que sempre é uma chave da lucratividade capitalista - foi reduzido de modo
dramático pelo uso de novas tecnologias produtivas (automação, robôs) e de novas
formas organizacionais (como o sistema de gerenciamento de estoques "justi-in-time", que corta dramaticamente a quantidade de material necessária para manter
a produção fluindo). Mas a aceleração do tempo de giro na produção teria sido
inútil sem a redução do tempo de giro no consumo. A meia vida de um produto
fordista típico, por exemplo, era de cinco a sete anos, mas a acumulação flexível
diminuiu isso em mais da metade em certos setores (como o têxtil e o do vestuário), enquanto em outros- tais como as chamadas indústrias de "thoughtware"
(por exemplo, videogames e programas de computador) - a meia vida está caindo
para menos de dezoito anos. A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do
' consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista
cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética
E_Ós-moderna que .E._elebra a diferença, a efemeridade, o espetácul~moda e a
mercadificação de formas culturais.
~
Essas mudanças na ponta do consumo, associadas a mudanças na produção,
na reunião de informações e no financiamento, parecem estar na base de um notável aumento proporcional do emprego no setor de serviços a partir do início dos
anos 70. Em certa medida, essa tendência podia ser detectada muito antes, talvez
como conseqüência de rápidos incrementos da eficiência em boa parte da indústria
manufatureira através da racionalização fordista e da evidente dificuldade de obter
ganhos de produtividade semelhantes no fornecimento de serviços. Mas a rápida
contração do emprego industrial depois de 1972 (tabela 2.4) deu maior relevância
-
-
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
149
ao rápido aumento do emprego em serviços, não tanto no varejo, na distribuição,
nos transportes e nos serviços pessoais (que se mantiveram razoavelmente estáveis
ou até perderam terreno), como na assistência, nas finanças, nos seguros e no setor
de imóveis, bem como em outros segmentos como saúde e educação (ver Walker,
1985; ver também Noyelle e Stanback, 1984; Daniels, 1985). A exata interpretação
(ou, na verdade, definições báscias sobre o que significa um serviço) a ser dada a
isso é objeto de considerável controvérsia. Pode-se atribuir parte da expansão, por
exemplo, ao crescimento da subcontratação e da consultoria, que permitem que
atividades antes intemalizadas nas firmas manufatureiras (legais, de marketing, de
publicidade, de secretaria etc.) sejam entregues a empresas separadas. Também
pode ser, como veremos na Parte III, que a necessidade de acelerar o tempo de giro
no consumo tenha provocado uma mudança de ênfase da produção de bens (muitos dos quais, como facas e garfos, têm um tempo de vida substancial) para a
produção de eventos (como espetáculos, que têm um tempo de giro quase instantâneo). Seja qual for a explicação completa, para tratar da transformação das economias capitalistas avançadas a partir de 1970, é preciso considerar cuidadosamente essa marcada transformação da estrutura ocupacional.
Tudo isso valorizou o empreendimentismo inovador e "esperto", ajudado e
estimulado pelos atavios da tomada de decisões rápida, eficiente e bem-fundamentada. O incremento da capacidade de dispersão geográfica de produção em pequena escala e de busca de mercados de perfil específico não levou necessariamente,
Tabela 2.4 Estrutura do emprego em países capitalistas avançados escolhidos, no
período 1960-1981, ilustrando o aumento da economia de serviços
Porcentagem da população empregada em:
Agricultura
Indústria
Serviços
1960
1973
1981
1960
1973
1981
1960
1973
1981
Austrália
Canadá
ra nça
I. Ocidental
á lia
apão
::spanha
Suécia
=leino Unido
::uA
10,3
13,3
22,4
14,0
32,8
30,2
42,3
13,1
4,1
8,3
7,4
6,5
11,4
7,5
18,3
13,4
24,3
7,1
2,9
4,2
6,5
5,5
8,6
5,9
13,4
10,0
18,2
5,6
2,8
3,5
39,9
33,2
37,8
48,8
36,9
28,5
32,0
42,0
48,8
33,6
35,5
30,6
39,7
47,5
39,2
37,2
36,7
36,8
42,6
33,2
30,6
28,3
35,2
44, 1
37,5
35,3
35,2
31,3
36,3
30,1
49,8
53,5
39,8
37,3
30,2
41,3
25,7
45,0
47,0
58,1
57,1
62,8
48,9
45,0
42,5
49,3
39,0
56,0
54,5
62,6
62,8
66,2
56,2
49,9
49,2
54,7
46,6
63,1
60,9
66,4
OC DE
21,7
12,1
10,0
35,3
36,4
33,7
43,0
51 ,5
56,3
Fonte: Estatísticas da Força de Trabalho da OCDE
- - - --
150
- - - - - - - - -- - --
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
no entanto, à diminuição do poder corporativo. Com efeito, na medida em que a
informação e a capacidade de tomar decisões rápidas num ambiente deveras incerto, efêmero e competitivo se tornaram cruciais para os lucros, a corporação bem
organizada tem evidentes vantagens competitivas sobre os pequenos neg1kios. A
desregulamentação" (outro slogan político da era da acumulação flexível) significou
muitas vezes um aumento da monopolização (passada uma fase de competição intensificada) em setores como empresas de aviação, energia e serviços financeiros. Num
dos extremos da escala de negócios, a acumulação flexível levou a maciças fusões e
diversificações corporativas. As companhias americanas gastaram 22 bilhões de dólares comprando uma às outras em 1977, mas, por volta de 1981, a cifra chegara a 82
bilhões, alcançando em 1985 um extraordinário pico de 180 bilhões. Embora as fusões
e aquisições tenhani. declinado em 1987, em parte como resposta ao choque da Bolsa,
o valor total ainda estava em 165,8 bilhões em 2.052 transações (de acordo com W.T.
Grimm, um grupo de consultores de fusões). Mesmo em 1988, a mania das fusões
continuou. Nos Estados Unidos, negociações de fusão equivalentes a 198 bilhões
de dólares foram concretizadas nos três primeiros trimestres do ano, enquanto na
Europa a tentativa de Benedetti, da Olivetti, de assumir o Union Générale da
Bélgica, um banco que controlava cerca de um terço dos ativos produtivos do país,
indicou a disseminação global da mania das fusões. Muitos dos empregados das
500 maiores companhias norte-americanas segundo Fortune hoje trabalham em linhas de atividade sem relação alguma com a linha primária de negócios com que
a sua empresa está identificada. A tarefa da administração é fazer dinheiro, e não
aço", anunciou James Roderick, presidente da US Steel, em 1979; em seguida, ele
se lançou numa campanha de aquisições e expansões para diversificar as atividades da empresa. No outro extremo da escala, os pequenos negócios, as estruturas
organizacionais patriarcais e artesanais também floresceram. Mesmo o trabalho
autônomo, que caíra consistentemente nos Estados Unidos depois de 1950, sofreu,
segundo Reich (1983), uma substancial recuperação depois de 1972, aumentando a
uma taxa superior a 25% em menos de uma década (uma tendência que abrangia
tudo, do trabalho casual dos desempregados aos consultores, projetistas, operários-artífices e especialistas). Novos sistemas de coordenação foram implantados,
quer por meio de uma complexa variedade de arranjos de subcontratação (que
ligam pequenas firmas a operações de larga escala, com freqüência multinacionais), através da formação de novos conjuntos produtivos em que as economias de
aglomeração assumem crescente importância, quer por intermédio do domínio e
da integração de pequenos negócios sob a égide de poderosas organizações financeiras ou de marketing (a Benetton, por exemplo, não produz nada diretamente,
sendo apenas uma potente máquina de marketing que transmite ordens para um
amplo conjunto de produtores independentes).
Isso sugere que a tensão que sempre existiu no capitalismo entre monopólio e
competição, entre centralização e descentralização de poder econômico, está se
manifestando de modos fundamentalmente novos. Isso, porém, não implica necessariamente que o capitalismo esteja ficando mais desorganizado", como sugerem
Offe (1985) e Lash e Urry (1987). l:2!.ç ue o mais interess.ankna_a.t.ual situação é a
maneira como o apitalis!Il.s> está se tornando cada vez mais organizado...a~a
~ersão, da mobilidade geogr~fica e das respostas flexíveis nos mer_Eados de
11
11
11
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
...,t.rªball~o,
151
nos processos de trabalho e nos mercados de consumo, tudo isso acompanhado por pesadas doses de inovação tecnológica, de produto e institucional.
A organização mais coesa e a centralização implosiva foram alcançadas, na
verdade, por dois desenvolvimentos paralelos da maior importância. Em primeiro
lugar, as informações precisas e atualizadas são agora uma ·m ercadoria muito
valorizada. O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte
capacidade de análise instantânea de dados, tornaram-se essenciais à coordenação
centralizada de interesses corporativos descentralizados. A capacidade de resposta
instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das modas e dos gostos e
iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a sobrevivência
corporativa do que teve sobre o fordismo. A ênfase na informação também gerou
um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente especializados capazes de
fornecer informações quase minuto a minuto sobre tendências de mercado e o tipo
de análise instantânea de dados útil para as decisões corporativas. Ela também
criou uma situação em que vastos lucros podem ser realizados com base no acesso
privilegiado às informações, em particular nos mercados monetários e financeiros
(como o testemunham os proliferantes escândalos de "venda de informações confidenciais" dos anos 80, que abalaram tanto Nova Iorque como Londres). Mas isso
é, em certo sentido, apenas a ponta ilegal de um iceberg em que o acesso privilegiado a informações de qualquer espécie (tais como conhecimentos científicos e
técnicos, políticas do governo e mudanças políticas) passa a ser um aspecto essencial das decisões bem-sucedidas e lucrativas.
O acesso ao conhecimento científico e técnico sempre teve importância na luta
competitiva; mas, também aqui, podemos ver uma renovação de interesse e de
ênfase, já que, num mundo de rápidas mudanças de gostos e necessidades e de
sistemas de produção flexíveis (em oposição ao mundo relativamente estável do
fordismo padronizado), o conhecimento da última técnica, do mais novo produto,
da mais recente descoberta científica, implica a possibilidade de alcançar uma
@portante vantagem com12etitiva . .Q_J2,!:Qprio saber se torna uma mercadoría-cha..Y.t.. a ser produzida e vendida i{ quem pagar mais, sob condições que são elas
mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas. Universidades e institutos de pesquisa competem ferozmente por pessoal, bem como pela honra de
patentear primeiro novas descobertas científicas (quem primeiro conseguir o antídoto para o vírus da AIDS certamente terá bons lucros, como o reconheceu claramente o acordo entre pesquisadores norte-americanos e o Instituto Pasteur francês
sobre a partilha de informações e de direitos de patente). A produção organizada
de conhecimento passou por notável expansão nas últimas décadas, ao mesmo
tempo que assumiu cada vez mais um cunho comercial (como o provam as incômodas transições de muitos sistemas universitários do mundo capitalista avançado
de guardiães do conhecimento e da sabedoria para produtores subordinados de
conhecimento a soldo do capital corporativo). As celebradas conexões com a indústria de "alta tecnologia" do Vale do Silício de Stanford ou a Rota 128 MIT-Boston
são configurações bastante novas e especiais da era da acumulação flexível (muito
embora, como assinala David Noble em America by design, muitas universidades
americanas tenham sido instaladas e promovidas pelo capital corporativo desde o
início).
152
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
O controle do fluxo de informações e dos veículos de propagação do gosto e
da cultura populares também se converteu em arma vital na batalha competitiva.
A espantosa concentração de poder econômico na edição de livros (onde 2% dos
editores controlam 75% dos livros publicados nos Estados Unidos), na mídia e na
imprensa não pode ser explicada tão-somente em termos de condições de produção propícias a fusões nesses campos. Ela tem muita relação com o poder de outras
grandes corporações, manifesto no cçmtrole destas sobre os mecanismos de distribuição e as despesas de publicidade. Estas últimas tiveram um marcado crescimento a partir dos anos 60, consumindo proporções cada vez maiores dos orçamentos corporativos, porque, num mundo altamente competitivo, não são apenas
produtos, mas a própria imagem corporativa que tem caráter essencial, não somen•te em termos de marketing como no tocante a levantar capital, realizar fusões e
obter vantagens no campo da produção do conhecimento, das políticas governamentais e da promoção dos valores culturais. O patrocínio corporativo das Artes
;(exposição patrocinada por .. .), de universidades e de projetos filantrópicos é o
•' lado prestigioso de uma escala de atividades que inclui tudo, de perdulárias brochuras, relatórios sobre empresas e promotores de relações públicas a escândalos
- desde que se mantenha constantemente o nome da empresa diante do público.
O segundo desenvolvimento, que foi muito mais importante do que o primeiro, foi a completa reorganização do sistema financeiro global e a emergência de
poderes imensamente ampliados de coordenação financeira. Mais uma vez, houve
um movimento dual; de um lado, para a formação de conglomerados e corretores
financeiros de extraordinário poder global; e, do outro, uma rápida proliferação e
descentralização de atividades e fluxos financeiros por meio da criação de instrumentos e mercados financeiros totalmente inéditos. Nos Estados Unidos, isso significou a desregulamentação de um sistema financeiro rigorosamente controlado
desde as reformas dos anos 30. O Relatório da Comissão Hunt norte-americana, de
1971, foi a primeira admissão explícita da necessidade de reformas como condição
de sobrevivência e expansão do sistema econômico capitalista. Depois dos traumas
de 1973, a pressão pela desregulamentação nas finanças adquiriu impulso nos anos
70 e, por volta de 1986, engolfou todos os centros financeiros do mundo (as celebradas reformas "estrondosas" de Londres, feitas naquele ano, deixaram tudo bem
claro). A desregulamentação e a inovação financeira- processos longos e complicados- tinham se tornado, na época, um requisito para a sobrevivência de todo
centro financeiro mundial num sistema global altamente integrado, coordenado
pelas telecomunicações instantâneas. A formação de um mercado de ações global,
de mercados futuros de mercadorias (e até de dívidas) globais, de acordos de
compensação recíproca de taxas de juros e moedas, ao lado da acelerada mobilidade geográfica de fundos, significou, pela primeira vez, a criação de um único
mercado mundial de dinheiro e de crédito (figura 2.11).
A estrutura desse sistema financeiro global alcançou tal grau de complexidade
que ultrapassa a compreensão da maioria das pessoas. As fronteiras entre funções
distintivas como bancos, corretoras, serviços financeiros, financiamento habitacional,
crédito ao consumidor etc. tornaram-se cada vez mais porosas, ao mesmo tempo
que novos mercados futuros de mercadorias, de ações, de moedas ou de dívidas
153
Horas de Greenwich
Los Angeles
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Hong Kong
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24
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Sidnei a.m.
::·gura 2.11 Padrões de transações num período de vinte e quatro horas em mercados financeiros
globais (cortesia de Nigel Thrift)/ a.m.
= antes do meio-dia;
p.m.
= depois
do meio-dia.
154
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
surgiram em toda parte, introduzindo o tempo futuro no tempo presente de maneiras estarrecedoras. O uso de computadores e as comunicações eletrônicas acentuaram a significação da coordenação internacional instantânea de fluxos financeiros. "A atividade bancária", disse o Financiai Times (8 de maio de 1987), "está se
tornando com rapidez indiferente às restrições de tempo, de espaço e de moeda."
Hoje, "um comprador inglês pode obter uma hipoteca japonesa, um americano
pode ter acesso à sua conta num banco de Nova Iorque através de um caixa automático de Hong Kong, do mesmo modo que um investidor japonês pode comprar ações num banco escandinavo baseado em Londres, cujas ações são denominadas em libras esterlinas, dólares, marcos alemães e francos suíços". Esse "espantoso" mundo das altas finanças envolve uma variedade igualmente espantosa de
atividades entrelaçadas, em que os bancos tomam maciços empréstimos de curto
prazo uns dos outros, as companhias de seguro e fundos de pensão reúnem tal
quantidade de fundos de investimento que terminam por funcionar como "formadores de mercado" dominantes, enquanto o capital industrial, mercantil e imobiliário se integram de tal maneira às estruturas e operações financeiras que se torna
cada vez mais difícil dizer onde começam os interesses comerciais e industriais e
terminam os interesses estritamente financeiros.
Essa confusão tem sido particularmente associada com o crescimento do que
é hoje denominado "empreendimentismo com papéis". Vem sendo dada uma tremenda ênfase, nos últimos anos, à descoberta de maneiras alternativas de obter
lucros que não se restrinjam à produção pura e simples de bens e serviços. As
técnicas variam da sofisticada "contabilidade criativa" à cuidadosa monitoração de
mercados internacionais e condições políticas por multinacionais, de modo que
possam tirar proveito das variações relativas dos valores das moedas ou das taxas
de juro, chegando até à vigilância corporativa direta, seguida da apropriação dos
ativos de corporações rivais ou mesmo sem nenhuma relação. A "mania das fusões
e incorporações" dos anos 80 foi parte integrante dessa ênfase no empreendimentismo com papéis, porque, embora houvesse alguns casos em que essas atividades
tinham uma real justificativa em termos da racionalização ou da diversificação dos
interesses corporativos, a motivação mais comum era obter lucros estritamente
financeiros sem dar importância à produç~o real. Não admira, como observa Robert
Reich (1983), que "o empreendimentismo com papéis hoje preocupe algumas das
melhores,mentes americanas, contamine alguns dos seus talentosos profissionais,
empregue seus mais criativos e originais pensamentos e exiba suas capacidades de
ação mais vibrantes". Nos últimos quinze anos, segundo ele, os empregos mais
procurados e mais lucrativos dos negócios norte-americanos não estavam na gerência da produção, e sim nas esferas legal e financeira da ação corporativa.
Inundado pela liquidez e perturbado por um endividamento que saiu do controle a partir de 1973, o sistema financeiro mundial conseguiu mesmo assim fugir
de todo controle coletivo, mesmo nos Estados capitalistas avançados mais poderosos. A formação do chamado mercado financeiro do "eurodólar" a partir do excedente de dólares americanos na metade dos anos 60 é sintomática do problema.
Sem o controle de nenhum governo nacional, esse mercado de dinheiro "sem Estado"
se expandiu de 50 bilhões de dólares em 1973 para quase 2 trilhões em 1987, aproximando-se assim do montante de agregados monetários existente nos Estados
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
155
Dívida nominal de longo prazo junto a
1.000
C/)
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750
EJ Fontes oficiais
[ ] ] Fontes privadas
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500
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250
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Figura 2.12 Crescimento da dívida de países menos desenvolvidos, 1970-1987.
(Fonte: Tabelas de Dívida do Banco Mundial)
Unidos. O volume de eurodólares aumentou numa taxa de quase 25% ao ano nos
anos 70, em comparação com o aumento de 10% no estoque de moeda dos EUA
e com uma taxa de crescimento de 4% no volume do comércio exterior. A dívida
de países do Terceiro Mundo também saiu de controle (ver figura 2.12). Não é
preciso muita imaginação para perceber que esses desequilíbrios impõem severas
cargas e pressões ao sistema capitalista global. Hoje, abundam profetas do apocalipse
(como o banqueiro de investimentos de Wall Street Felix Rohatyn), e até The
Econornist e o Wall Street ]oumal fizeram sombrias advertências sobre a iminência
do desastre financeiro bem antes do choque da Bolsa de outubro de 1987.
Os novos sistemas financeiros implementados a partir de 1972 mudaram o equilíbrio de forças em ação no capitalismo global, dando muito mais autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o financiamento corporativo, estatal
e pessoal. A acumulação flexível evidentemente procura o capital financeiro como
poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. Isso significa que a potencialidade
de formação de crises financeiras e monetárias autônomas e independentes é muito
maior do que antes, apesar de o sistema financeiro ter mais condições de minimizar
os riscos através da diversificação e da rápida transferência de fundos de empresas,
regiões e setores em decadência para empresas, regiões e setores lucrativos. Boa parte
da fluidez, da instabilidade e do frenesi pode ser atribuída diretamente ao aumento
dessa capacidade de dirigir os fluxos de capital para lá e para cá de maneiras que
quase parecem desprezar as restrições de tempo e de espaço que costumam ter efeito
sobre as atividades materiais de produção e consumo.
Os crescentes poderes de coordenação presentes no sistema financeiro mundial
surgiram em alguma medida graças ao poder da nação-Estado de controlar o fluxo
de capital e, portanto, a sua própria política fiscal e monetária. A .!J.lPíma_,_em 19Zl,
do acordo de Bretton Woods- de fix'l.ÇãO do preço do Q.uro e a..Q nvertibilidade
< o âó a - foi um reconhecfu;rito de que os Estados Unidos já não tinham con-
156
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
dições de controlar sozinhos a política fiscal e monetária do mundo. A adoção de
um sistema de taxa de câmbio flexível em 1973 (em reação às maciças variações
especulativas das moedas com relação ao dólar) assinalou a completa abolição de
Bretton Woods. Desde aquela época, todas as nações-Estado dependem do
disciplinamento financeiro, realizado graças aos efeitos do fluxo de capital (como
o testemunha a reviravolta da política do governo socialista francês diante da forte
fuga de capitais depois de 1981) ou de medidas institucionais diretas. A concessão
britânica, sob um governo trabalhista, a medidas de austeridade ditadas pelo Fundo Monetário Internacional para que o país tivesse acesso ao crédito em 1976 foi
uma simples admissão do poder financeiro externo sobre a política interna (havia
mais coisas, é claro, do que uma mera conspiração dos "gnomos de Zurique", que
tinham sido tão castigados pelo governo Wilson da década precedente). É verdade
que o equilíbrio entre poder financeiro e poder do Estado sob o capitalismo sempre
fora delicado, mas o colapso do fordismo-keynesianismo sem dúvida significou
fazer o prato da balança pender para o fortalecimento do capital financeiro. A
importância de tudo isso fica ainda mais clara diante do contexto da rápida redução de custos de transporte e de comunicação- redução possibilitada pela containerização, pelo transporte em jumbos de carga e pelas comunicações via satélite,
que permitiu a comunicação instantânea, para qualquer parte do mundo, de instruções de projeto e de produção. A indústria, que tradicionalmente dependia de
restrições locais no tocante a fontes de matérias-primas e a mercados, pôde se
tornar muito mais independente. A partir da metade da década de 70, surgiu uma
vasta literatura que tentava dar conta da nova divisão internacional do trabalho,
dos novos princípios de localização e dos proliferantes mecanismos de coordenação no interior de corporações transnacionais, bem como entre diferentes mercados
setoriais de produtos e mercadorias. Os países recém-industrializados (NICs), como
a "gang dos quatro" do Sudeste Asiático (Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coréia
do Sul), começaram a fazer incursões nos mercados de certos produtos (têxteis,
eletrônicos etc.) nos países capitalistas avançados, e logo foram acompanhados por
muitos outros NICs (Hungria, Índia, Egito) e por países que antes tinham implantado estratégias de substituição de importações (Brasil, México) numa reformulação locacional da produção industrial do mundo.
Algumas mudanças de poder da economia política global do capitalismo avançado a partir de 1972 foram verdadeiramente notáveis. A dependência dos Estados
Unidos do comércio exterior (historicamente sempre pequena - na faixa de 4 a 5%
do produto interno bruto) dobrou no período 1973-1980 (ver tabela 2.5). As importações feitas em países em desenvolvimento aumentaram quase dez vezes, e as
importações como um todo (particularmente as feitas no Japão) passaram a ocupar
grande parcela dos mercados norte-americanos em áreas tão diversas quanto placas de silício, televisores e vídeos, equipamentos controlados por computador,
sapatos, produtos têxteis e carros. O balanço de pagamentos de bens e serviços dos
Estados Unidos transformou rapidamente o país de credor global líquido em maior
devedor do mundo (ver figura 2.13). Entrementes, houve um incremento do poder
financeiro japonês, que transformou Tóquio num dos mais importantes centros
financeiros mundiais (superando Nova Iorque, pela primeira vez, em 1987) apenas
em função das vastas quantidades de fundos excedentes controlados pelos bancos
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
157
japoneses. Estes tomaram o lugar dos bancos americanos como os maiores detentores de ativos internacionais em 1985, movimentando, em 1987, 1,4 trilhões de
dólares, para 630 bilhões movimentados pelos americanos. Atualmente, os quatro
maiores bancos do mundo (em termos de ativos) são os japoneses.
Essas mudanças foram acompanhadas e, em parte, promovidas pela ascensão
de um agressivo neoconservadorismo na América do Norte e em boa parte da
Europa Ocidental. b-s vitó..ri~leitorais de Thatch~r _(] 979) e Rea _an (1980)_ç,çstumam ser vistas comoJima cl~a ru12tura d'!,. polít~p~do_ck_pós-guerl",ê. Eu
.rif
as compreendo mais como consolidação do que já vinha acontecendo em boa parte
dos anos 70. A crise de 1973-1975 derivou em parte de um confronto com a rigidez ~~.~
acumulada de práticas e políticas de governo implantadas no período fordista- 0 'f~,
-keynesiano. As políticas keynesianas tinham se mostrado inflacionárias à medid 11' r;~
que as despesas públicas cresciam e a capacidade fiscal estagnava. Como sempre fora parte do consenso político fordista que as redistribuições deviam se fundamentar no crescimento, ~dução do crescimento si nificava inevitavelmente o- ~
blemas~J2.ara.o-Es.tado do bem-estar social e do salário~o~ Os governos de Nixon
{; ae Heath tinham reconhecido o problema no período 1970-1974, iniciando lutas
contra o trabalho organizado e reduções das despesas governamentais. Os governos trabalhista e democrático que mais tarde chegaram ao poder se curvaram aos
r
Tabela 2.5 Dependência do comércio exterior de países capitalistas
avançados escolhidos
Exportações e importações como porcentagem do PNB
EUA
exportações
importações
Reino Un ido
exportações
importações
Japão
exportações
importações
AI. Ocidental
exportações
importações
Itália
exportações
importações
Fonte: OCDE
1960
1970
1980
1986
4,37
4,36
5,35
5,00
10,0
10,5
7,0
10,2
20,9
22,3
23,1
22,2
27,7
25,3
26,2
27,0
10,8
10,3
10,8
9,5
13,7
14,6
11,7
7,6
17,9
16.4
21,2
19,1
26,3
27,0
30,0
24,9
12,1
12.4
15.4
15,0
21,7
24,4
20,4
18,7
158
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
44
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Dívida federal
44
40
40
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32
28
24
36
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28
24
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Dívida pessoal
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46
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Dívida corporativa
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Figura 2.13 Incremento da dívida federal, pessoal e corporativa nos
Estados Unidos e deterioração da balança comercial norte-americana, 1973-1987.
(Fonte: Departamento de Comércio de Diretoria da Reserva Federal)
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mesmos imperativos, embora ideologicamente predispostos a seguir direções bem
distintas. Sua abordagem corporativista de solução do problema pode ter sido
diferente (confiando na obediência voluntária e no respeito sindical pelas políticas
de preços e salários), mas os objetivos tinham de ser os mesmos. Tão logo as
escolhas políticas foram vistas como uma troca entre crescimento e eqüidade, não
havia dúvidas sobre o lado para onde o vento ia soprar mesmo para o mais dedicado governo reformista. A gradual retirada de apoio ao Estado do em-est
social (yeJ_ figuru.9)_g_g_ataque_ao salário~ e ~o poder sindical organizado,_q.ue
S,Q.!ll-eçaram como ..necessidade econô~~c~ na cris_: de_1973-1975, ~ si~2Jes
~.e..transformados elos neoconser.Y.:ador_
e s nqma virtude_govername t . Disseminou-se a imagem de governos fortes administrando fortes doses de remédios
não-palatáveis para restaurar a saúde de economias moribundas.
Na medida em que o aumento da competição internacional em condições de
crescimento lento forçou todos os Estados a se tornarem mais "empreendedores" e
preocupados em manter um clima favorável aos negócios, a força do trabalho organizado e de outros movimentos sociais tinha de ser contida. Embora a política de resistência possa ter variado - com resultados tangíveis, como o demonstra o estudo
comparativo de Estados europeus feito por Therborn (1984) -, a austeridade, as reduções fiscais e a erosão do compromisso social entre o grande trabalho e o grande
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
159
governo se tomaram lemas de todos os Estados do mundo capitalista avançado. Portanto, embora os Estados retenham um considerável poder de intervenção nos contratos de trabalho, aquilo que Jessop (1982, 1983) denomina "a estratégia de acumulação"
de cada nação-Estado capitalista se tomou mais estritamente circunscrito.
Do outro lado da moeda, governos ideologicamente comprometidos com a
não-intervenção e o conservadorismo fiscal foram forçados pelos fatos a ser mais
intervencionistas. Deixando de lado o grau até o qual as evidentes inseguranças da
acumulação flexível criam um clima conducente ao autoritarismo do tipo Thatcher-Reagan, a instabilidade financeira e os enormes problemas de endividamento interno e externo obrigaram a intervenções periódicas em mercados financeiros instáveis. O uso do poder da Reserva Federal para melhorar a crise da dívida mexicana de 1982, e a concordância do Tesouro norte-americano em bancar o que equivalia a 20 bilhões de dólares de dívida mexicana junto aos bancos norte-americanos
registrados como perda, em 1987, são dois exemplos desse novo tipo de
intervencionismo nos mercados internacionais. A decisão de nacionalizar o Continental Illinois Banks falido, em 1984, os maciços dispêndios da Federal Deposit and
Insurance Corporation (FDIC) norte-americana para absorver os crescentes custos
das falências bancárias (ver figura 2.14), e o dreno de recursos semelhante da
Federal Savings and Loan Insurance Corporation (FSLIC), que exigiu um esforço
de recapitalização de 10 bilhões de dólares em 1987, como defesa diante do fato de
cerca de 20% das 3.100 instituições saudáveis do país estarem tecnicamente insolventes, ilustram a escala do problema (estima-se que, no caso da crise das instituições de poupança e empréstimo, em setembro de 1988 a cifra envolvida estivesse
entre 50 e 100 bilhões de dólares). Foi tanta a preocupação de William Isaacs,
presidente da FDIC, que ele se sentiu obrigado a advertir a American Bankers
Association (ABA), já em outubro de 1987, de que os EUA "poderiam seguir a
direção da nacionalização da atividade bancária" se os bancos não suportassem
suas próprias perdas. As operações nos mercados internacionais de divisas, destinadas a estabilizar as taxas de câmbio, não saíram mais baratas - a Reserva Federal de Nova Iorque relatou ter gasto mais de 4 bilhões de dólares nos dois meses
posteriores à crise da Bolsa de outubro de 1987 para manter a taxa de câmbio do
dólar relativamente controlada, e o Banco da Inglaterra vendeu 24 bilhões de libras
em 1987 para evitar que a moeda britânica subisse muito rápido e demais. O papel
do Estado como credor ou operador de último recurso se tornou, é óbvio, muito
mais crucial.
Mas, da mesma maneira, vemos agora que também é possível que as nações-Estado (África do Sul, Peru, Brasil etc.) não cumpram suas obrigações financeiras
internacionais, forçando negociações entre Estados sobre pagamentos de dívidas.
Suspeito que também não seja por acaso que a primeira reunião econômica de
cúpula das grandes potências capitalistas tenha ocorrido em 1975, nem que a busca
de coordenações internacionais - através do FMI ou da feitura de acordos coletivos de intervenção em mercados de divisas - tenha se intensificado desde então,
tornando-se ainda mais enfática na esteira da crise da Bolsa de 1987. Houve, em
resumo, uma luta pela recuperação, para a coletividade de Estados capitalistas, de
parte do poder por eles perdido individualmente nas duas décadas passadas. Essa
tendência foi institucionalizada em 1982, quando o FMI e o Banco Mundial foram
160
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
200
180
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Figura 2.14 Falências bancárias nos Estados Unidos, 1970-1987.
(Fonte: Corporação Federal de Seguro de Depósitos)
designados como autoridade central capaz de exercer o poder coletivo das nações-Estado capitalistas sobre as negociações financeiras internacionais. Esse poder costuma ser empregado para forçar reduções de gastos públicos, cortes de salários
reais e austeridade nas políticas fiscal e monetária, a ponto de provocarem uma
onda dos chamados "distúrbios do FMI" de São Paulo a Kingston, Jamaica, e do
Peru ao Sudão e ao Egito a partir de 1976 (ver Walton, 1987, para uma relação
completa).
Há muitos outros sinais de continuidade, em vez de ruptura, com a era fordista.
Os imensos déficits públicos dos Estados Unidos, atribuíveis principalmente à defesa,
foram fundamentais para o pouco crescimento econômico ocorrido no capitalismo
mundial ao longo da década de 80, sugerindo que as práticas keynesianas de modo
algum morreram. Do mesmo modo, o compromisso com a competição no "livre
mercado" e com a desregulamentação não se enquadra inteiramente na onda de
fusões, consolidações corporativas nem no extraordinário crescimento de interligações entre firmas supostamente rivais de origem nacional distinta. Contudo, foram
abertas arenas de conflito entre a nação-Estado e o capital transnacional, comprometendo a fácil acomodação entre grande capital e grande governo tão típica da
era fordista. Hoje, o Estado está numa posição muito mais problemática. É chamado a_E.gular as atividades do gpital corr.orativo no interes_s_e_danação_e_é forçado,
ao mesmo te p.a,...tam 'n no interesse nacional1 ª- gjar-u "bom clima..dg....R.egócios", ara a.tLair_o_capiwJ fina c_eiro__transl}acional e globaL e conter (por meios
distintos dos controles de câmbio) a fuga de capital para pastagens mais verdes e
mais lucrativas.
DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
161
Embora possa ter havido variações substanciais de país para país, há fortes
evidências de que as modalidades, os alvos e a capacidade de intervenção estatal
sofreram uma grande mudança a partir de 1972~odo-:n_n:_lllndo ca12italista,
ouco importando a teru;i~~J..Çia i.ckç>lógica dQ...g~erno no poder (como o reforça a
recente experiência de governos socialistas na Françaei1a Espanha). Isso não significa, porém, que o intervencionismo estatal tenha diminuído de modo geral, visto
que, em alguns as~ - em particular no tQ_cante ao controle do trab_g
intervençãQ do Estado alcança hoje um grau bem mais fundamental.
~ Isso nos leva, por fim, ao problema ainda mais difícil das maneiras pelas quais
as normas, os hábitos e as atitudes culturais e políticas se modificaram a partir de
1970 e do grau até o qual essas mudanças se integram à transição do fordismo para
a acumulação flexível. Como o sucesso político do neoconservadorismo dificilmente pode ser atribuído às suas realizações econômicas globais (seus fortes resultados
negativos em termos de desemprego, de crescimento sofrível, de rápido deslocamento e da espiral da dívida só são compensados pelo controle da inflação), vários
comentadores têm atribuído sua ascensão a uma mudança geral das normas e
valoFes coletivos que tinham hegemonia, ao menos nas organizações operárias e
em outros movimentos sociais dos anos 50 e 60, para um individualismo muito
mais competitivo como valor central numa cultura empreendimentista que penetrou em muitos aspectos da vida. Esse aumento de competição (tanto nos mercados
de trabalho como entre os empreendimentos) se mostrou, é verdade, destrutivo e
ruinoso para alguns, mas sem dúvida gerou uma explosão de energia que muitos,
até na esquerda, comparam favoravelmente com a ortodoxia e a burocracia rígidas
do controle estatal e do poder corporativo monopolista. Ele também permitiu a
realização de substanciais redistribuições de renda, que favoreceram, na maioria
das vezes, os já privilegiados. Hoje, o empreendimentismo caracteriza não somente
a ação dos negócios, mas domínios da vida tão diversos quanto a administração
municipal, o aumento da produção do setor informal, a organização do mercado
de trabalho, a área de pesquisa e desenvolvimento, tendo até chegado aos recantos
mais distantes da vida acadêmica, literária e artística.
Embora as raízes dessa transição sejam, evidentemente, profundas e complicadas, sua consistência com uma transição do fordismo para a acumulação flexível
é razoavelmente clara, mesmo que a direção (se é que há alguma) da causalidade
não o seja. Para começar, o movimento mais flexível do capital acentua o novo, o
fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valores
mais sólidos implantados na vigência do fordismo . Na medida em que a ação
coletiva se tornou, em conseqüência disso, mais difícil - tendo essa dificuldade
constituído, com efeito, a meta central do impulso de incremento do controle do
trabalho -, o individualismo exacerbado se encaixa no quadro geral como condição necessária, embora não suficiente, da transição do fordismo para a acumulação
flexível. Afinal de contas, foi principalmente por intermédio da irrupção da formação de novos negócios, da inovação e do empreendimento que muitos dos novos
sistemas de produção vieram a ser implementados. Entretanto, como Simmel (1978)
sugeriu há muito tempo, é também nesses períodos de fragmentação e de insegurança econômica que o desejo de valores estáveis faz surgir uma ênfase intensificada na autoridade das instituições básicas - a família, a religião, o Estado. E há
I
I
I
I
I
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I
I
I
I
I
162
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
abundantes provas de um renascimento do apoio a essas instituições e aos valores
por elas representados em todo o mundo ocidental desde mais ou menos 1970.
Essas interligações são, ao menos, plausíveis, devendo por isso ser analisadas com
atenção mais cuidadosa. A tarefa imediata é esboçar uma interpretação dos fundamentos dessa transição tão significativa do regime de acumulação dominante do
capitalismo.
10
Teorizando a transição
Tendo em vista estarmos testemunhando uma transição histórica, ainda longe
de completar-se e, de todo modo, como o fordismo, passível de ser parcial em
determinados aspectos1mportantes, deparamos com uma série de dilemas teóricos. Poderemos apreender teoricamente a lógica, senão a necessidade, da transição? Até que ponto as formulações teóricas passadas e presentes da dinâmica do
capitalismo têm de ser modificadas à luz das radicais reorganizações e reestruturações que ocorrem nas forças produtivas e nas relações sociais? E poderemos
representar o atual regime suficientemente bem para termos alguma idéia do provável curso e implicações do que parece ser uma revolução permanente?
A transição do fordismo para a acumulação flexível evocou, na verdade, sérias
dificuldades para teorias de toda espécie. Teóricos keynesianos, monetaristas e do
equilíbrio parcial neoclássico parecem tão perturbados quanto todas as outras
pessoas. Essa transição também trouxe sérios dilemas para os marxistas. Diante
desses problemas, muitos comentadores abandonaram qualquer pretensão de teoria e simplesmente recorreram à caça de dados para dar conta das rápidas mudanças. Mas também aqui há dúvidas - que dados são indicadores vitais, e não séries
contingentes? O único ponto geral de acordo é que alguma coisa significativa mudou
no modo de funcionamento do capitalismo a partir de mais ou menos 1970.
A primeira dificuldade reside em tentar captar a natureza das mudanças que
estamos examinando. Nas tabelas 2.6, 2.7 e 2.8, resumo três relatos recentes da
transição. O primeiro, uma visão bem laudatória de Halal (1986) do novo capitalismo, enfatiza os elementos positivos e liberatórios do novo empreendimentismo.
O segundo, de Lash e Urry (1987), acentua as relações de poder e a política com
relação à economia e à cultura. O terceiro, de Swyngedouw (1986), fornece muito
mais detalhes sobre transformações no campo da tecnologia e do processo de trabalho, ao mesmo tempo que avalia como o regime de acumulação e suas modalidades de regulamentação se transformaram. Em todos os casos, com efeito, a oposição é usada como artifício didático para dar relevo às diferenças, e não às
continuidades, e nenhum dos autores afirma que as coisas sejam tão claras e diretas em algum lugar quanto os esquemas sugerem. Estes indicam, no entanto, alguns pontos comuns, mas também algumas diferenças, que são instrutivas, já que
sugerem mecanismos bem distintos de causação. Halal parece mais próximo da
teoria de Schumpeter da inovação dos empreendedores como força motriz do
capitalismo e tende a interpretar o fordisÍno e o keynesianismo como um interlúdio
infeliz no progresso capitalista. Lash e Urry vêem a evolução, em parte, como o
colapso das condições materiais para uma política coletiva poderosa da classe trabalhadora, e tentam descobrir as raízes econômicas, culturais e políticas desse
colapso. Pelo próprio uso dos termos "organizado" e "desorganizado" para carac-
164
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Tabela 2.6 O novo capitalismo segundo Halal
O antigo capitalismo
(Paradigma industrial)
O novo capitalismo
(Paradigma pós-industrial)
Fronteira de progresso
crescimento difícil
crescimento esperto
Organização
estrutura mecânica
redes de mercado
Processo de decisão
comando autoritário
liderança participativa
Valores institucionais
alvos financeiros
alvos múltiplos
Foco gerencia l
gerência operacional
gerência estratégica
Macrossistema econômico
grande negócio centrado
no lucro
livre empresa democrática
Sistema mundial
capitalismo versus
socialismo
híbridos do capitalismo e
do socialismo
Fonte: Halal, 1986
terizar a transição, eles acentuam mais a desintegração do que a coerência do
capitalismo contemporâneo, evitando assim o enfrentamento da possibilidade de
uma transição no regime de acumulação. Swyngedouw, por outro lado, ao enfatizar
as mudanças no modo de produção e de organização industrial, situa a transição
na corrente principal da economia política marxiana, ao mesmo tempo que aceita
claramente a linguagem da escola da regulamentação.
Dou preferência à interpretação de Swyngedouw. Mas se a linguagem da escola da regulamentação sobreviveu melhor do que a maioria, isso se explica, suspeito eu, pela sua orientação bem mais pragmática. Há na escola da regulamentação pouco ou nenhum esforço para fornecer uma compreensão detalhada dos
mecanismos e da lógica das transições - o que me parece uma séria falha. Fazer
a passagem requer a volta ao básico e o tratamento da lógica subjacente do capitalismo em geral. E, com efeito, a virtude peculiar de Marx foi ter construído uma
teoria do capitalismo em geral por meio de uma análise-do capitalismo sob o modo
de regulamentação em que vigiam uma ampla competitividade e o laissez-faire,
existente na Inglaterra da metade do século XIX. Retornemos, pois, aos "elementos
e relações invariantes" de um modo capitalista de produção, propostos por Marx,
e vejamos até que ponto esses elementos e relações estão onipresentes sob a superfície tênue e evanescente, sob as fragmentações e disrupções tão características da
atual economia política.
Como a acumulação flexível ainda é uma forma de capitalismo, podemos esperar
que algumas proposições básicas se mantenham. Tentei resumir essas proposições em
outro trabalho, razão por que vou simplesmente extrair alguns elementos fundamentais da argumentação feita em The limíts to capital (Harvey, 1982). Referir-me-ei, em
especial, a três características essenciais do modo capitalista de produção.
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
165
Tabela 2.7 Contraste entre o capitalismo organizado e o capitalismo desorganizado
segundo Lash e Uny
Capitalismo organizado
Capitalismo desorganizado
concentração e centralização do capital
industrial, bancário e comercial em
mercados nacionais
desconcentração do poder corporativo
em rápido crescimento com relação aos
mercados nacionais. Crescente
internacionalização do capital e, em
alguns casos, separação entre capital
industrial e capital bancário
crescente separação entre propriedade
e controle, e emergência de complexas
hierarquias gerenciais
contínua expansão de estratos
gerenciais que articulam suas próprias
pautas políticas e individuais, bem
distintas da política de classe
desenvolvimento de novos setores de
intel!igentsia gerencial, científica e tecnológica e de burocracia de classe média
declínio relativo/absoluto da classe
trabalhadora
desenvolvimento de organizações
coletivas e da negociação em regiões e
nações-Estado
declín io da eficácia da negociação
coletiva nacional
estreita articulação entre os interesses
do Estado e os do capital dos grandes
monopólios e aumento do Estado do
bem-estar social de base classista
crescente independência dos grandes
monopólios com relação aos
regulamentos estatais e desafios
diversificados ao poder e à burocracia
estatais centralizados
expansão de impérios econom1cos e
controle da produção e de mercados no
exterior
industrialização de países do Terceiro
Mundo e desindustrialização de países
centrais, que se voltam para a
especialização em serviços
incorporação de diversos interesses de
classe numa pauta nacional estabelecida
por intermédio de compromissos
negociados e regulamentos burocráticos
forte declínio de políticas e instituições
de base classista
hegemonia da racional idade
écnico-científica
fragmentação cultural e pluralismo
aliados ao solapamento das identidades
tradicionais nacionais ou de classe
concentração de relações capitalistas no
âmbito de um número relativamente
pequeno de indústrias e reg iões
dispersão de relações capitalistas em
muitos setores e regiões
166
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Capitalismo organizado
Capitalismo desorganizado
indústrias extrativo-manufatureiras como
fontes dominantes de emprego
declínio das indústrias extrativo-manufatureiras e ascensão das
indústrias de serviços e organizacionais
forte concentração e especialização
regionais em setores extrativo-manufatureiros
dispersão, diversificação da divisão
territorial-espacial do trabalho
busca de economias de escala através
do aumento da dimensão da fábrica
(força de trabalho)
declínio da dimensão da fábrica
propiciado pela dispersão geográfica,
pelo aumento da subcontratação e por
sistemas de produção global
desenvolvimento de grandes cidades
industriais dominando regiões através
do fornecimento de serviços
centralizados (comerciais e financeiros)
declínio das cidades industriais e
desconcentração - dos centros
urbanos para áreas periféricas ou
semi-rurais -, criando agudos
problemas nos pontos adjacentes ao
centro das cidades
configuração cultural-ideológica do
"modernismo"
configurações cultural-ideológicas do
"pós-modernismo"
Fonte: a partir de Lash e Uny (1987).
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1 O capitalismo é orientado para o crescimento. Uma taxa equilibrada de
crescimento é essencial para a saúde de um sistema econômico capitalista, visto
que só através do crescimento os lucros podem ser garantidos e a acumulação do
capital, sustentada. Isso implica que o capitalismo tem de preparar o terreno para
uma expansão do produto e um crescimento em valores reais (e, eventualmente,
atingi-los), pouco importam as conseqüências sociais, políticas, geopolíticas ou
ecológicas. Na medida em que a virtude vem da necessidade, um dos pilares
básicos da ideologia capitalista é que o crescimento é tanto inevitável como bom.
A crise é definida, em conseqüência, como falta de crescimento.
2 O crescimento em valores reais se apóia na exploração do trabalho vivo na
produção. Isso não significa que o trabalho se aproprie de pouco, mas que o crescimento sempre se baseia na diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo que
cria. Por isso, o controle do trabalho, na produção e no mercado, é vital para a
perpetuação do capitalismo. O capitalismo está fundado, em suma, numa relação
de classe entre capital e trabalho. Como o controle do trabalho é essencial para o
lucro capitalista, a dinâmica da luta de classes pelo controle do trabalho e pelo
salário de mercado é fundamental para a trajetória do desenvolvimento capitalista.
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
167
Tabela 2.8 Contraste entre o fordismo e a acumulação flexível segundo Swyngedouw
Produção fordista
(baseada em economias de escala)
Produção just-in-time
(baseada em economias de escopo)
A. O PROCESSO DE PRODUÇÃO
produção em massa de bens homogêneos
produção em pequenos lotes
uniformidade e padronização
produção flexível e em pequenos lotes
de uma variedade de tipos de produto
grandes estoques e inventários
sem estoques
testes de qualidade ex-post (detecção
tardia de erros e produtos defeituosos)
controle de qualidade integrado ao
processo (detecção imediata de erros)
produtos defeituosos ficam ocultados
nos estoques
rejeição imediata de peças com defeito
perda de tempo de produção por causa
de longos tempos de preparo, peças
com defeito, pontos de
estrangulamento nos estoques etc.
redução do tempo perdido, reduzindo-se
"a porosidade do dia de trabalho"
voltada para os recursos
voltada para a demanda
integração vertical e (em alguns casos)
horizontal
integração (quase-) vertical,
subcontratação
redução de custos através do controle
dos salários
aprendizagem na prática integrada ao
planejamento a longo prazo
B. TRABALHO
rea lização de uma única tarefa pelo
trabalhador
múltiplas tarefas
pagamento pro rata (baseado em
critérios da definição do emprego)
pagamento pessoal (sistema detalhado
de bonificações)
alto grau de especialização de tarefas
eliminação da demarcação de tarefas
pouco ou nenhum treinamento no trabalho
longo treinamento no trabalho
organização vertical do trabalho
organização mais horizontal do trabalho
168
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Produção fordista
(baseada em economias de escala)
Produção just-in-time
(baseada em economias de escopo)
nenhuma experiência de aprendizagem
aprendizagem no trabalho
ênfase na redução da responsabilidade
do trabalhador (disciplinamento da força
de trabalho)
ênfase na co-responsabilidade do
trabalhador
nenhuma segurança no trabalho
grande segurança no emprego para
trabalhadores centrais (emprego
perpétuo). Nenhuma segurança no
trabalho e condições de trabalho ruins
para trabalhadores temporários
C. ESPAÇO
especialização espacial funcional
(centralização/descentral ização)
agregação e aglomeração espaciais
divisão espacial do trabalho
integração espacial
homogeneização dos mercados
regionais de trabalho (mercados de
trabalho espacialmente segmentados)
diversificação do mercado de trabalho
(segmentação interna do mercado de
trabalho)
distribuição em escala mundial de
componentes e subcontratantes
proximidade espacial de firmas
verticalmente quase integradas
D. ESTADO
regulamentação
desreg ula me ntação/re-regu lamentação
rigidez
flexibilidade
negociação coletiva
divisão/individualização, negociações
locais ou por empresa
socialização do bem-estar social
(o Estado do bem-estar social)
privatização das necessidades coletivas
e da seguridade social
estabilidade internacional através de
acordos multilaterais
desestabilização internacional;
crescentes tensões geopolíticas
centra lização
descentralização e agudização da
competição inter-regional/interurbana
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
Produção fordista
(baseada em economias de escala)
169
Produção just-in-time
(baseada em economias de escopo)
o Estado/cidade "subsidiador"
o Estado/cidade "empreendedor"
intervenção indireta em mercados através de políticas de renda e de preços
intervenção estatal direta em mercados
através de aquisição
políticas regionais nacionais
políticas regionais "territoriais"
(na forma de uma terceira parte)
pesquisa e desenvolvimento financiados
pelas firmas
pesquisa e desenvolvimento financiados
p.elo Estado
inovação liderada pela indústria
inovação liderada pelo Estado
E. IDEOLOGIA
consumo de massa de bens duráveis:
a sociedade de consumo
consumo individualizado:
cultura "yuppie"
modernismo
pós-modernismo
totalidade/reforma estrutural
especificidade/adaptação
socialização
individualização; a sociedade do
"espetáculo"
Fonte: Swyngedouw (1986)
3 O capitalismo é, por necessidade, tecnológica e organizacionalmente dinâmico. Isso decorre em parte das leis coercitivas, que impelem os capitalistas individuais a inovações em sua busca do lucro. Mas a mudança organizacional e
tecnológica também tem papel-chave na modificação da dinâmica da luta de classes, movida por ambos os lados, no domínio dos mercados de trabalho e do controle do trabalho. Além disso, se o controle do trabalho é essencial para a produção
de lucros e se torna uma questão mais ampla do ponto de vista do modo de
regulamentação, a inovação orgatúzacional e tecnológica no sistema regulatório
(como o aparelho do Estado, os sistemas políticos de incorporação e representação
etc.) se torna crucial para a perpetuação do capitalismo. Deriva em parte dessa
necessidade a ideologia de que o "progresso" é tanto inevitável como bom.
Marx foi capaz de mostrar que essas três condições necessárias do modo capitalista de produção eram inconsistentes e contraditórias, e que, por isso, a dinâmica
do capitalismo era necessariamente propensa a crises. Não havia, em sua análise,
\
170
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
uma maneira pela qual a combinação dessas três condições necessárias pudesse
produzir um crescimento equilibrado e sem problemas; além de as tendências de
crise do capitalismo apresentarem a tendência de produzir fases periódicas de
superacumulação- definida como uma condição em que podem existir ao mesmo
tempo capital ocioso e trabalho ocioso sem nenhum modo aparente de se unirem
esses recursos para o atingimento de tarefas socialmente úteis. Uma condição generalizada de superacumulação seria indicada por capacidade produtiva ociosa,
um excesso de mercadorias e de estoques, um excedente de capital-dinheiro (talvez
mantido como entesouramento) e grande desemprego. As condições que prevaleciam nos anos 30 e que surgiram periodicamente desde 1973 têm de ser consideradas manifestações típicas da tendência de superacumulação.
O argumento marxista é, 12or conseguinte ue a tendência de su12eracumul~
ção nunca pode ser eliminada sob...o,_capit-ª_lismo. Trata-se de um interminável e
cterno problema de todo modo capitalista de produção. A única questão, portanto,
é como exprimir, conter, absorver ou administrar essa tendência de maneiras que
não ameacem a ordem social capitalista. Deparamos aqui com o lado heróico da
vida e da política burguesa, em que devem ser feitas escolhas reais para que a
ordem social não se transforme em caos. Examinemos algumas dessas escolhas.
1 Desvalorização de mercadorias, de capacidade produtiva, do valor do dinheiro, talvez associada à destruição direta, é uma medida que fornece um modo
de lidar com excedentes de capital. Em termos simples, desvalorização significa a
"baixa" ou "cancelamento" do valor dos bens de capital (particularmente instalações e equipamentos), a liquidação de estoques excedentes de bens (ou sua destruição pura e simples, como a famosa queima do café brasileiro nos anos 30) ou a
erosão inflacionária do poder do dinheiro, ao lado de inúmeras inadimplências em
obrigações de empréstimo. A força de trabalho também pode ser desvalorizada e
até destruída (taxas crescentes de exploração, queda da renda real, desemprego,
mais mortes no trabalho, piora da saúde e menor expectativa de vida etc.). A
Grande Depressão viu uma enorme desvalorização do capital e da força de trabalho, e a Segunda Guerra Mundial viu ainda mais. Há muitos exemplos e abundantes provas da desvalorização como resposta à superacumulação a partir de 1973.
Mas a desvalorização tem um alto preço político e atinge amplos segmentos da
classe capitalista, da classe trabalhadora e das várias outras classes sociais que
formam a complexa sociedade capitalista moderna. Uma certa sacudidela pode
parecer uma boa coisa, mas as falências descontroladas e a desvalorização maciça
expõem o lado irracional da racionalidade capitalista de uma maneira demasiado
brutal para serem sustentadas por muito tempo sem produzir algum tipo deresposta revolucionária (de direita ou de esquerda). Contudo, a desvalorização controlada através de políticas deflacionárias administradas é uma opção muito importante e de modo algum incomum para lidar com a superacumulação.
2 O controle macroeconômico, por meio da institucionalização de algum sistema de regulação, pode conter o problema da superacumulação, talvez por um
considerável período de tempo. A virtude do regime fordista-keynesiano foi, com
efeito, a possibilidade de criação de um equilíbrio de forças, mesmo tênue, através
do qual os mecanismos que causavam o problema da superacumulação (o ritmo da
mudança tecnológica e organizacional e a luta pelo controle do trabalho) pudessem
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
171
ser mantidos sob suficiente controle para se garantir um crescimento equilibrado.
Mas foi necessária uma grande crise de superacumulação para ligar a produção
fordista a um modo keynesiano de regulamentação estatal antes de se poder garantir, por qualquer período estendido, alguma espécie de crescimento macroeconômico
equilibrado. A ascensão de um regime particular de acumulação tem de ser vista,
então como agora, como o resultado de todo um conjunto de decisões econômicas
e políticas, que de modo algum sempre são dirigidas conscientemente para alcançar este ou aquele fim específico, provocadas por persistentes manifestações do
problema da superacumulação.
3 A absorção da superacumulação por intermédio do deslocamento temporal e
espacial oferece, a meu juízo, um terreno mais rico e duradouro, mas também
muito mais problemático, no qual tentar controlar o problema da superacumulação. A discussão aqui tem detalhes bem complicados, razão por que recorrerei
outra vez a elementos publicados em outros trabalhos (Harvey, 1982, 1985c).
(a) O deslocamento temporal envolve seja um desvio de recursos das necessidades atuais para a exploração de usos futuros, seja uma aceleração do tempo de
giro (a velocidade com que os dispêndios de dinheiro produzem lucro para o
investidor), para que a aceleração de um dado ano absorva a capacidade excedente
do ano anterior. O excedente de capital e de trabalho pode, por exemplo, ser
absorvido pela sua retirada do consumo corrente para os investimentos públicos e
privados de longo prazo em instalações, infra-estruturas físicas e sociais etc. Esses
investimentos absorvem superávits no presente apenas para devolver seu equivalente em valor durante um longo período de tempo futuro (esse foi o princípio dos
programas públicos de trabalho usados para combater as condições de baixa de
preços nos anos 30 em muitos países capitalistas avançados). A capacidade de
fazer essa transição depende, no entanto, da disponibilidade de crédito e da capacidade de "formação de capital fictício". Este capital é definido como capital que
tem valor monetário nominal e existência como papel, mas que, num dado momento do tempo, não tem lastro em termos de atividade produtiva real ou de
ativos físicos. O capital fictício é convertido em capital real na medida em que são
feitos investimentos que levem a um aumento apropriado em ativos úteis (por
exemplo, instalações e equipamentos que possam ter emprego lucrativo) ou mercadorias úteis (bens e serviços que possam ser vendidos com lucro). Por isso, o
deslocamento temporal para usos futuros é um paliativo de curto prazo para o
problema da superacumulação a não ser que haja um contínuo deslocamento através da permanente aceleração das taxas de formação do capital fictício e da expansão dos volumes de investimento de prazo mais longo. Tudo isso depende de
algum crescimento dinâmico contínuo e sustentado pelo Estado do endividamento.
As políticas keynesianas aplicadas pelos países capitalistas avançados depois de
1945 tiveram em parte esse efeito.
A absorção de superávits através das acelerações do tempo de giro - uma
forte característica do período recente de acumulação flexível- apresenta um tipo
diferente de problema teórico. A intensificação da competição por certo leva as
firmas individuais a acelerarem seu tempo de giro (as firmas com um tempo de
giro mais rápido tendem a ganhar por isso um excedente de lucros, sobrevivendo
com mais facilidade). Mas só sob certas condições isso permite uma aceleração
172
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
agregada do tempo de giro para permitir uma absorção agregada de excedentes.
Mesmo assim, isso é, na melhor das hipóteses, um paliativo de curto prazo se não
for possível acelerar continuamente, ano após ano, o tempo social de giro (uma
solução que, de qualquer maneira, certamente implica grandes cancelamentos de
ativos passados, já que a aceleração costuma envolver novas tecnologias que deslocam as antigas).
(b) O deslocamento espacial compreende a absorção pela expansão geográfica
do capital e do trabalho excedentes. Esse "reparo espacial" (como o denominei
alhures) do problema da superacumulação promove a produção de novos espaços
dentro dos quais a produção capitalista possa prosseguir (por exemplo, por meio
de investimentos em infra-estrutura) no crescimento do comércio e dos investimentos diretos e no teste de novas possibilidades de exploração da força de trabalho. Também aqui o sistema de crédito e a formação de capital fictício, sustentados
pelo poder fiscal, monetário e, quando preciso, militar do Estado, se tornam vitais
influências mediadoras. Também é possível que a maneira de ocupação anterior
dos espaços para os quais o capitalismo se expande, bem como os graus da resistência encontrada, tenham profundas conseqüências. Em alguns espaços há uma
história de forte resistência à implantação do capital ocidental (por exemplo, na
China), enquanto em outros (por exemplo, o Japão ou os casos mais recentes de
Hong Kong, Singapura ou Taiwan) classes dominantes ou até subordinadas se
inserem agressivamente no que vêem como um sistema econômico superior. Se a
contínua expansão geográfica do capitalismo fosse uma real possibilidade, poderia
haver uma solução relativamente permanente para o problema da superacumulação. Mas, na medida em que a implantação progressiva do capitalismo na face da
terra amplia o espaço no âmbito do qual pode surgir o problema da superacumulação, a expansão geográfica só pode, na melhor das hipóteses, ser uma solução de
curto prazo. O resultado de longo prazo será, quase certamente, o aumento da
competição internacional e inter-regional, com os países e regiões que têm menos
vantagens sofrendo as mais severas conseqüências.
(c) Os deslocamentos tempo-espaciais têm, de fato, um duplo poder no tocante à absorção do problema da superacumulação e, na prática, particularmente na
medida em que a formação de capital fictício (e, em geral, o envolvimento do
Estado) é essencial ao deslocamento temporal e espacial, o que conta é a combinação das estratégias temporal e espacial. Emprestar dinheiro (com freqüência levantado, digamos, nos mercados de capital de Londres ou Nova Iorque por meio da
formação de capital fictício) à América Latina para a construção de infra-estruturas
de longo prazo ou para a compra de bens de capital que ajudem a gerar produtos
por muitos anos é uma forma típica e forte de absorção da superacumulação.
Como, então, o fordismo resolvia as tendências de superacumulação inerentes
ao capitalismo? Antes da Segunda Guerra Mundial, faltava-lhe o aparato regulatório
apropriado para fazer mais do que engajar-se em algumas tentativas de deslocamento temporal e espacial (principalmente dentro dos países, embora o investimento direto no exterior por parte das corporações americanas tenha começado na
década de 20), sendo em conseqüência forçado, na maioria das vezes, a fazer uma
selvagem desvalorização do tipo alcançado nos anos 30 e 40. A partir de 1945e principalmente como conseqüência do detalhado planejamento da época da guerra
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
173
no sentido de estabilizar a ordem econômica do pós-guerra -, surgiu uma estratégia de acumulação com razoável grau de coerência fundamentada no controle da
desvalorização e na absorção da superacumulação por outros meios. A desvalorização através de violentas oscilações no ciclo econômico foi submetida ao controle
e reduzida ao tipo de desvalorização equilibrada através da obsolescência planejada, que causava problemas relativamente pequenos. Por outro lado, foi instituído
um forte sistema de controle macroeconômico que dosava o ritmo de mudança
tecnológica e organizacional (em particular por meio do poder do monopólio corporativo), restringia a luta de classes (por intermédio da negociação coletiva e da
intervenção do Estado) e equilibrava mais ou menos a produção e o consumo de
massa através do gerenciamento estatal. Mas esse modo de regulação sequer teria
se aproximado do sucesso não fosse pela presença maciça de deslocamentos temporais e espaciais, embora sob o olho vigilante do Estado intervencionista.
Em 1972, por exemplo, vimos Business Week queixar-se de que a economia
norte-americana estava sentada sobre uma montanha de dívidas (embora, considerando-se as alturas de hoje, tudo pareça apenas um montículo; ver figura 2.3). O
financiamento keynesiano da dívida, de início entendido como um instrumento
administrativo de curto prazo usado para controlar os ciclos econômicos, tornou-se, como era de esperar, uma tentativa de absorver a superacumulação mediante
a contínua expansão da formação de capital fictício e da conseqüente expansão da
carga da dívida. A expansão equilibrada dos investimentos de longo prazo, orquestrada pelo Estado, mostrou ser uma maneira útil- ao menos até a metade da
década de 60 - de absorver todo excedente de capital ou de trabalho. O deslocamento espacial (combinado, é verdade, com o endividamento de longo prazo) foi
uma influência ainda mais poderosa. Nos Estados Unidos, a radical transformação
das economias metropolitanas (promovida pela suburbanização da manufatura e
das residências), assim como a expansão para o sul e para o oeste, absorveram
vastas quantidades de excedente de capital e de trabalho. Em termos internacionais, a reconstrução das economias da Europa Ocidental e do Japão, a aceleração
dos fluxos de investimento direto e o enorme crescimento do comércio exterior
tiveram um papel crítico na absorção de superávits. O planejamento, durante a
Segunda Guerra Mundial, da "paz com prosperidade" para o pós-guerra enfatizou
a necessidade de uma estratégia global de acumulação do capital num mundo em
que as barreiras ao comércio e ao investimento seriam consistentemente reduzidas
e a subserviência colonial, substituída por um sistema aberto de crescimento, de
avanço e de cooperação no âmbito de um sistema capitalista mundial descolonizado.
Apesar de algumas facetas desse programa se mostrarem ideológicas e ilusórias,
concretizou-se um montante suficiente do seu conteúdo para tornar inteiramente
possível uma revolução espacial no comércio e no investimento global.
Foi principalmente com o deslocamento espacial e temporal que o regime
fordista de acumulação resolveu o problema da superacumulação no decorrer do
longo período de expansão do pós-guerra. Por conseguinte, a crise do fordismo
pode ser interpretada até certo ponto como o esgotamento das opções para lidar
com o problema da superacumulação. O deslocamento temporal estava acumulando dívida sobre dívida até que a única estratégia governamental viável foi afastar
174
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
o problema através da monetização. Isso foi feito, na verdade, imprimindo-se tanto
dinheiro que se disparou um surto inflacionário que reduziu radicalmente o valor
real das dívidas passadas (os milhares de dólares emprestados dez anos antes têm
pouco valor depois de uma fase de inflação alta). O tempo de giro não podia ser
acelerado facilmente sem a destruição do valor dos ativos de capital fixo. Foram
criados novos centros geográficos de acumulação - o sul e o oeste dos Estados
Unidos, a Europa Ocidental e o Japão - e, em seguida, um conjunto de países
recém-industrializados. Com a maturação, esses sistemas fordistas de produção se
tornaram centros de superacumulação novos e, com freqüência, bastante competitivos. A competição espacial entre sistemas fordistas geograficamente distintos se
intensificou, com os regimes mais eficientes (como o japonês) e os de custo de mão-de-obra mais barato (como os de países do Terceiro Mundo em que faltavam
noções de um contrato social com o trabalho ou em que esses contratos não tinham
muita força) levando outros centros a paroxismos de desvalorização através da
desindustrialização. A competição espacial aumentou ainda mais, em particular
depois de 1973, à medida que se esgotava a capacidade de se resolver o problema
da superacumulação por meio do deslocamento geográfico. Assim sendo, a crise
do fordismo foi tanto geográfica e geopolítica como uma crise de endividamento,
luta de classes ou estagnação corporativa nas nações-Estado. Os mecanismos desenvolvidos para controlar tendências de crise simplesmente terminaram por ser
vencidos pela força das contradições subjacentes do capitalismo. Parecia não haver
opção além do retorno à desvalorização do tipo ocorrido no período 1973-1975 ou
1980-1982 como meio primário de lidar com a tendência de superacumulação. Isto
é, a não ser que algum outro regime superior de produção capitalista, capaz de
garantir uma sólida base para uma maior acumulação em escala global, pudesse
ser criado.
Aqui, a acumulação flexível parece enquadrar-se como uma recombinação simples das duas estratégias de procura de lucro (mais-valia) definidas por Marx. A
primeira, chamada de mais-valia absoluta, apóia-se na extensão da jornada de trabalho com relação ao salário necessário para garantir a reprodução da classe trabalhadora num dado padrão de vida. A passagem para mais horas de trabalho
associadas com uma redução geral do padrão de vida através da erosão do salário
real ou da transferência do capital corporativo de regiões de altos salários para
regiões de baixos salários representa uma faceta da acumulação flexível de capital.
Muitos dos sistemas padronizados de produção construídos sob o fordismo
foram, por essa razão, transferidos para a periferia, criando o "fordismo periférico". Mesmo os novos sistemas de produção tenderam a se transferir, uma vez
padronizados, dos seus centros inovadores para localidades terceiro-mundistas (a
transferência da Atari, em 1984, do Vale do Silício para o Sudeste Asiático, com sua
força de trabalho de baixa remuneração, é um caso exemplar). Nos termos da
segunda estratégia, denominada mais-valia relativa, a mudança organizacional e
tecnológica é posta em ação para gerar lucros temporários para firmas inovadoras
e lucros mais generalizados com a redução dos custos dos bens que definem o
padrão de vida do trabalho. Também aqui a violência proliferante dos investimentos, que cortou o emprego e os custos do trabalho em todas as indústrias- mineração de carvão, produção de aço, bancos e serviços financeiros-, foi um aspec-
TEORIZANDO A TRANSIÇÃO
175
to deveras visível da acumulação do capital nos anos 80. Mas apoiar-se nessa
estratégia enfatiza a importância de forças de trabalho altamente preparadas, capazes de compreender, implementar e administrar os padrões novos, mas muito mais
flexíveis, de inovação tecnológica e orientação do mercado. Surge então um estrato
altamente privilegiado e até certo ponto poderoso da força de trabalho, à medida
que o capitalismo depende cada vez mais da mobilização de forças de trabalho
intelectual como veículo para mais acumulação.
No final, com efeito, o que conta é o modo particular de combinação e de
alimentação mútua das estratégias absoluta e relativa. Curiosamente, o desenvolvimento de novas tecnologias gerou excedentes de força de trabalho que tornaram
o retorno de estratégias absolutas de extração de mais-valia mais viável mesmo nos
países capitalistas avançados. O que talvez seja mais inesperado é o modo como as
novas tecnologias de produção e as novas formas coordenantes de organização
permitiram o retorno dos sistemas de trabalho doméstico, familiar e paternalista,
que Marx tendia a supor que sairiam do negócio ou seriam reduzidos a condições
de exploração cruel e de esforço desumanizante a ponto de se tornarem intoleráveis sob o capitalismo avançado. O retorno da superexploração em Nova Iorque e
Los Angeles, do trabalho em casa e do "teletransporte", bem como o enorme crescimento das práticas de trabalho do setor informal por todo o mundo capitalista
avançado, representa de fato uma visão bem sombria da história supostamente
progressista do capitalismo. Em condições de acumulação flexível, parece que sistemas de trabalho alternativos podem existir lado a lado, no mesmo espaço, de
uma maneira que permita que os empreendedores capitalistas escolham à vontade
entre eles (ver tabela 2.3). O mesmo molde de camisa pode ser produzido por
fábricas de larga escala na Índia, pelo sistema cooperativo da "Terceira Itália", por
exploradores em Nova Iorque e Londres ou por sistemas de trabalho familiar em
Hong Kong. O ecletismo nas práticas de trabalho parece quase tão marcado, em
nosso tempo, quanto o ecletismo das filosofias e gostos pós-modernos.
E, no entanto, há, apesar da diferença de contexto e das especificidades do
exemplo usado, algo de muito atraente e relevante no relato que Marx faz da lógica
da-organização e da acumulação do capitalismo. Reler o que ele diz em O Capital
nos traz um certo choque de familiaridade. Conhecemos ali as maneiras pelas
quais o sistema fabril pode formar intersecções com sistemas de manufatura domésticos, de oficina e artesanais, como um exército de reserva industrial é mobilizado como contrapeso ao poder dos trabalhadores com relação ao controle do
trabalho e aos salários, o modo como forças intelectuais e novas tecnologias são
empregadas para pôr por terra o poder organizado da classe trabalhadora, os
recursos dos capitalistas na tentativa de promover o espírito de competição entre
os trabalhadores, ao mesmo tempo que exigem flexibilidade de disposição, de
localização e de abordagem de tarefas. Somos também forçados a considerar que
tudo isso cria para a classe trabalhadora oportunidades - b.:m como perigos e
dificuldades - , precisamente porque educação, flexibilidade e mobilidade geográfica, uma vez adquiridas, ficam mais difíceis de ser controladas pelos capitalistas.
Muito embora as atuais condições sejam muito diferentes em inúmeros aspectos, não há dificuldade em perceber que os elementos e relações invariantes que
Marx definiu como peças fundamentais de todo modo capitalista de produç~o
176
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
ainda estão bem vivos e, em muitos casos, com uma vivacidade ainda maior do
que a de antes, por entre a agitação e evanescência superficiais tão características
da acumulação flexível. Seria esta última, então, algo mais do que uma versão mais
retumbante da mesma velha história do capitalismo de sempre? Isso seria um
julgamento demasiado simples. Em avaliação dá ao capitalismo um tratamento a-histórico, considerando-o um modo de produção desprovido de dinâmica, quando todas as evidências (incluindo-se aí as explicitamente arroladas por Marx) apontam para o fato de ser o capitalismo uma força constantemente revolucionária da
história mundial, uma força que reformula de maneira perpétua o mundo, criando
configurações novas e, com freqüência, sobremodo inesperadas. A acumulação
flexível se mostra, no mínimo, como uma nova configuração, requerendo, nessa
qualidade, que submetamos a escrutínio as suas manifestações com o cuidado e a
seriedade exigidos, empregando, não obstante, os instrumentos teóricos concebidos por Marx.
11
Acumulação flexível - transformação
sólida ou reparo temporário?
Afirmei que por certo houve uma imensa mudança na aparência superficial do
capitalismo a partir de 1973, embora a lógica inerente da acumulação capitalista e
de suas tendências de crise permaneça a mesma. Precisamos considerar, porém, se
essas mudanças assinalam o nascimento de um novo regime de acumulação capaz
de conter as contradições do capitalismo durante a próxima geração ou se marcam
uma série de reparos temporários, constituindo assim um momento transicional de
dolorosa crise na configuração do capitalismo do final do século XX. A questão da
flexibilidade já vem sendo objeto de alguns debates. Parecem estar surgindo três
posições amplas.
A primeira posição, defendida principalmente por Piore e Sabel (1984) e aceita
em princípio por vários autores subseqüentes, é a de que as novas tecnologias
abrem a possibilidade de uma reconstituição das relações de trabalho e dos sistemas de produção em bases sociais, econômicas e geográficas inteiramente distintas.
Piore e Sabel vêem um paralelo entre a atual conjuntura e a oportunidade perdida
da metade do século passado, quando o capital em larga escala e, eventualmente,
o capital monopolista expulsaram a pequena firma e os inúmeros empreendimentos cooperativos de pequena escala que tinham o potencial de resolver o problema
da organização industrial segundo linhas descentralizadas e democraticamente
controladas (o espectro do anarquismo de Proudhon está pairando aqui). A "Terceira Itália" é muito empregada como exemplo dessas novas formas de organização cooperativa de trabalhadores que, armados com novas tecnologias descentralizadas de comando e controle, podem integrar-se com sucesso às formas dominantes e repressivas de organização do trabalho características do capital corporativo
e multinacional, e até mesmo subvertê-las. Nem todos aceitam essa visão rósea das
formas de organização industrial (ver, por exemplo, Murray, 1987). Há muitas
coisas regressivas e repressivas nas novas práticas. Contudo, muitos partilham da
sensação de que estamos em algum tipo de "segunda divisão industrial" (para me
apropriar do título do livro de Piore e Sabel) e de que novas formas de organização
do trabalho e novos princípios locacionais estão transformando radicalmente a face
do capitalismo do final do século XX. O retorno do interesse pelo papel dos pequenos negócios (um setor altamente dinâmico desde 1970), a redescoberta do trabalho
duro e não muito bem pago e de atividades informais de vária natureza, o reconhecimento de que estas formas de trabalho estão desempenhando importante
papel no desenvolvimento econômico contemporâneo mesmo nos mais avançados
países industrializados e a tentativa de traçar o percurso das rápidas mudanças
geográficas do emprego e das fortunas - tudo isso tem produzido uma massa de
178
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
informações que parece sustentar a visão de que há uma grande transformação no
modo de operação do capitalismo do final do século XX. Com efeito, já surgiu uma
vasta literatura, das extremidades esquerda e direita do espectro político, que tende a descrever o mundo como se ele estivesse no auge de uma ruptura radical em
todas as dimensões da vida socioeconômica e política a que nenhum dos velhos
modos de pensar e de fazer ainda se aplicam.
A segunda posição vê a idéia da flexibilidade como um "termo extremamente
poderoso que legitima um conjunto de práticas políticas" (principalmente reacionárias e contrárias ao trabalhador), mas sem nenhuma fundamentação empírica ou
materialista forte nas reais fases de organização do capitalismo do final do século
XX. Pollert (1988), por exemplo, contesta os fatos que sustentam a idéia da flexibilidade nos mercados de trabalho e na organização do trabalho, e conclui que a
"descoberta da 'força de trabalho flexível' é parte de uma ofensiva ideológica que
celebra a complacência e a eventualidade, fazendo-as parecerem inevitáveis".
Gordon (1988) também ataca a idéia da mobilidade hipergeográfica do capital,
considerando-a bem distante daquilo que os fatos do comércio internacional (particularmente entre os países capitalistas avançados e as nações menos desenvolvidas) sustentam. Gordon se preocupa em especial em combater a idéia da suposta
impotência da nação-Estado (e dos movimentos operários existentes nesse quadro)
de exercer algum grau de controle sobre a mobilidade do capital. Sayer (1989)
também contesta as descrições das novas formas de acumulação em novos espaços
industriais elaboradas por Scott (1988) e outros, fundamentando-se no fato de eles
enfatizarem mudanças relativamente insignificantes e periféricas. Pollert, Gordon
e Sayer alegam não haver nenhuma novidade na busca capitalista de maior flexibilidade ou vantagem geográfica, e que as provas substantivas de uma mudança
radical na maneira de operação do capitalismo são fracas ou insuficientes. Quem
promove a idéia da flexibilidade, sugerem eles, contribui, conscientemente ou sem
se dar conta, para um clima de opinião - uma condição ideológica - que enfraquece os movimentos da classe trabalhadora.
Eu não aceito essa posição. As provas de uma crescente flexibilidade
(subcontratação, emprego temporário e atividades autônomas etc.) em todo o mundo
capitalista são simplesmente demasiado claras para que os contra-exemplos de
Pollert tenham credibilidade. Também considero surpreendente que Gordon, que
antes fizera uma defesa razoavelmente forte da tese de que a suburbanização da
indústria fora em parte motivada por um desejo de aumento do controle do trabalho, reduza a questão da mobilidade geográfica a uma questão de volumes e direções do comércio internacional. Mesmo assim, essas críticas introduzem algumas
correções importantes no debate. A insistência de que não há nada essencialmente
novo no impulso para a flexibilidade e de que o capitalismo segue periodicamente
esses tipos de caminhos é por certo correta (uma leitura cuidadosa de O Capital de
Marx sustenta essa afirmação). O argumento de que há um agudo perigo de se
exagerar a significação das tendências de aumento da flexibilidade e da mobilidade
geográfica, deixando-nos cegos para a força que os sistemas fordistas de produção
implantados ainda têm, merece cuidadosa consideração. E as conseqüências ideológicas e políticas da superacentuação da flexibilidade no sentido estrito de técnica
de produção e de relações de trabalho são sérias o bastante para nos levar a fazer
ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
179
sóbrias e cautelosas avaliações do grau do imperativo da flexibilidade. Se, afinal,
os trabalhadores estiverem convencidos de que os capitalistas podem incorporar
práticas de trabalho mais flexíveis mesmo quando eles não o podem, a disposição
de luta dos trabalhadores por certo será enfraquecida. Mas considero igualmente
perigoso fingir que nada mudou, quando os fatos da desindustrialização e da
transferência geográfica de fábricas, das práticas mais flexíveis de emprego do
trabalho e da flexibilidade dos mercados de trabalho, da automação e da inovação
de produtos olham a maioria dos trabalhadores de frente.
A terceira posição, que define o sentido no qual uso a idéia de uma transição
do fordismo para a acumulação flexível, situa-se em algum ponto entre esses dois
extremos. As tecnologias e formas organizacionais flexíveis não se tornaram
hegemônicas em toda parte ~ mas o fordismo que as precedeu também não. A
atual conjuntura se caracteriza por uma combinação de produção fordista altamente eficiente (com freqüência nuançada pela tecnologia e pelo produto flexível) em
alguns setores e regiões (como os carros nos EUA, no Japão ou na Coréia do Sul)
e de sistemas de produção mais tradicionais (como os de Singapura, Taiwan ou
Hong Kong) que se apóiam em relações de trabalho "artesanais", paternalistas ou
patriarcais (familiares) que implicam mecanismos bem distintos de controle do
trabalho. Estes últimos sistemas sem dúvida cresceram (mesmo nos países capitalistas avançados) a partir de 1970, muitas vezes às custas da linha de produção da
fábric:.. fordista. Essa mudança tem importantes implicações. As coordenações de
mercado (freqüentemente do tipo subcontratação) se expandiram em prejuízo do
planejamento corporativo direto no âmbito do sistema de produção e apropriação
de mais valia. A natureza e a composição da classe trabalhadora global também se
modificaram, o mesmo ocorrendo com as condições de formação de consciência e
de ação política. A sindicalização e a "política de esquerda" tradicional tornaram-se muito difíceis de manter diante de, por exemplo, sistemas de produção patriarcais (familiares) característicos do Sudeste Asiático ou de grupos imigrantes em
Los Angeles, Nova Iorque e Londres. As relações de gênero também se tornaram
muito mais complicadas, ao mesmo tempo que o recurso à força de trabalho feminina passou por ampla disseminação. Do mesmo modo, aumentou a base social de
ideologias de empreendimentismo, paternalismo e privatismo.
Podemos, a meu ver, referir muitas das mudanças superficiais do comportamento econômico e das atitudes políticas a uma simples mudança de equilíbrio
entre sistemas fordistas e não fordistas de controle do trabalho associada com a
imposição de uma dada disciplina aos primeiros, seja através da competição com
estes últimos (reestruturações e racionalizações forçadas), do desemprego disseminado ou de repressão política (empecilhos ao poder sindical) e deslocamentos
geográficos para países ou regiões "periféricos" e de volta aos centros industriais,
num movimento de "serra" de desenvolvimento geográfico desigual (Smith, 1984).
Não considero irreversível essa passagem para sistemas alternativos de controle do trabalho (com todas as suas implicações políticas), interpretando-a como uma
resposta bem tradicional à crise. A desvalorização da força de trabalho sempre foi
a resposta instintiva dos capitalistas à queda de lucros. Mas a generalidade dessa
afirmativa esconde alguns movimentos contraditórios. As novas tecnologias aumentaram o poder de certas camadas privilegiadas; ao mesmo tempo, sistemas
180
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
Ativos
porcentagem de ativos dos
EUA nas mãos do 1%
mais rico da população
38
36
34
32
30
28
26
24
22
20
%
o
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"o
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Índice de desigualdade de
salários e renumerações nos EUA
2, 1
2, 0
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(9.5'
Figura 2,15 Desigualdade na propriedade de ativos (1810-1987) e na renda
(1963-1985) nos Estados Unidos.
(Fontes: Estatísticas Históricas dos Estados Unidos, Relatórios Econômicos ao
Presidente, Harrison e Bluestone, 1988)
ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
181
alternativos de produção e de controle do trabalho abrem o caminho para a alta
remuneração de habilidades técnicas, gerenciais e de caráter empreendedor. A
tendência, exagerada pela passagem para o setor de serviços e pelo alargamento da
"massa cultural", tem sido de aumentar as desigualdades de renda (figura 2.15),
talvez pressagiando o surgimento de uma nova aristocracia do trabalho, bem como
a emergência de uma subclasse mal-remunerada e totalmente sem poder
(Dahrendorf, 1987; Wilson, 1987). Isso, contudo, traz sérios problemas quanto à
sustentação da demanda efetiva e levanta o espectro de uma crise de subconsumo
- o tipo de manifestação de crise que o fordismo-keynesianismo mais quis evitar.
Por isso, não vejo o monetarismo neoconservador que se apega a modos flexíveis
de acumulação e à desvalorização geral da força de trabalho por meio do aumento
do controle do trabalho como algo capaz de oferecer mesmo uma solução de curto
prazo para as tendências de crise do capitalismo. O déficit orçamentário dos Estados Unidos tem tido, a meu ver, um papel muito importante na estabilização do
capitalismo nos últimos anos e, mesmo que ele se mostre insustentável, a trilha de
acumulação capitalista mundial ainda assim será sólida.
O que parece realmente especial no período iniciado em 1972 é o florescimento
e transformação extraordinários dos mercados financeiros (ver figuras 2.12, 1.13 e
2.14). Tem havido fases da história capitalista- de 1890 a 1929, por exemplo em que o "capital financeiro" (como quer que seja definido) parece ocupar uma
posição de fundamental importância no capitalismo - apenas para perder essa
posição nas crises especulativas que sobrevêm. Na atual fase, contudo, o que importa não é tanto a concentração de poder em instituições financeiras quanto a
explosão de novos instrumentos e mercados financeiros, associada à ascensão de
sistemas altamente sofisticados de coordenação financeira em escala global. Esse
sistema financeiro foi o que permitiu boa parte da flexibilidade geográfica e temporal da acumulação capitalista. A nação-Estado, embora seriamente ameaçada
como poder autônomo, retém mesmo assim grande poder de disciplinar o trabalho
e de intervir nos fluxos de mercados financeiros, enquanto se torna muito mais
vulnerável a crises fiscais e à disciplina do dinheiro internacional. Estou, portanto,
tentado a ver a flexibilidade conseguida na produção, nos mercados de trabalho e
no consumo antes como um resultado da busca de soluções financeiras para as
tendências de crise do capitalismo do que o contrário. Isso implicaria que o sistema
financeiro alcançou um grau de autonomia diante da produção real sem precedentes na história do capitalismo, levando este último a uma era de riscos financeiros
igualmente inéditos.
De fato, a ênfase em soluções financeiras e monetárias deriva antes da natureza
inflacionária do que deflacionária da maneira como a crise passou a se manifestar
a partir da metade dos anos 60. O que surpreende é o modo como o endividamento
e a formação de capital fictício se aceleraram desde então, ao mesmo tempo que
foram absorvidas maciças moratórias e desvalorizações, na verdade não sem trauma, no âmbito do aparelho financeiro de regulamentação geral (ver figuras 2.12 e
2.13). Nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema bancário entrou no vermelho,
pela primeira vez desde 1934, no primeiro semestre de 1987, com quase nenhum
murmúrio de pânico. O ritmo de falências bancárias também aumentou dramaticamente a partir d e 1980 (figura 2.14), e basta apenas considerar o valor no mer-
182
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
80
70
60
13rasil
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México
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50
40
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30
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Argentina
Peru
10
%
1
·.
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J A S O N D J F M A M J J A S
1987
1988
Figura 2.16 A mudança do valor no mercado secundário das obrigações de dívida de
países selecionados. (Fonte: The Economist)
Tabela 2.9 A dívida pendente de países do Terceiro Mundo
selecionados e uma estimativa de desvalorização, medida pelo valor no
mercado secundário da dívida no final de 1987
País
Dívida corrente,
final de 1987 (em
bilhões de dólares)
Valor no mercado
secundário,
final de 1987
(% do valor nominal)
Argentina
49,4
Brasil
114,5
Chile
20,5
México
105,0
Peru
16.7
Medida de desvalorização total (os cinco países, em
Desvalorização
estimada (em
bilhões de dólares)
34
45
62
52
96
bilhões de dólares)
Fonte: Tabelas da Dívida do Banco Mundial e The Economist
22,5
63,2
11,8
50,4
16,0
174,0
ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
183
cacto secundário da dívida do Terceiro Mundo, multiplicando-o pelas obrigações
existentes, para obter uma estimativa aproximada do volume de desvalorização
corrente no âmbito do sistema financeiro (ver figura 2.16 e tabela 2.9). Comparadas
com tudo isso, as extraordinárias flutuações manifestas nos mercados de ações e de
moedas se revelam mais como epifenômenos do que como problemas estruturais
fundamentais.
É de fato tentador considerar tudo isso um prelúdio de uma crise financeira
que faça 1929 parecer uma nota de pé de página da história. Embora fosse tolice
descartar isso como uma possibilidade bem real, em particular à luz das pesadas
perdas dos mercados mundiais de ações de outubro de 1987 (ver tabela 2.10), as
circunstâncias sem dúvida parecem radicalmente diferentes desta vez. As dívidas
do consumidor, das corporações e do governo estão muito mais vinculadas umas
com as outras (figura 2.13), permitindo a regulação simultânea de magnitudes do
Tabela 2.10 As perdas nos mercados mundiais de ações, outubro de 1987
País
Variação percentual a partir do ponto alto
do valor das ações em
Austrália
Áustria
Bélgica
Canadá
Dinamarca
França
Alemanha Ocidental
Hong Kong
Irlanda
Itália
Japão
Malásia
México
Países Baixos
Nova Zelândia
Noruega
Singapura
África do Sul
Espanha
Suécia
Suíça
Reino Unido
EUA
Fonte: Financia! Times, 24 de outubro de 1987
-29
-6
-1 6
-25
-1 1
-25
-17
-1 6
-25
-23
-15
-29
-30
-24
-22
-25
-28
-18
-12
-15
-20
-23
-26
184
TRANSFORMAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA DO CAPITALISMO
consumo e da produção por meio de financiamentos especulativos e fictícios. Do
mesmo modo, é muito mais fácil empregar estratégias de deslocamento temporal
e geográfico aliadas a mudanças setoriais sob a proteção hegemônica de mercados
financeiros florescentes. A inovação nos sistemas financeiros parece ter sido um
requisito necessário para superar a rigidez gerat bem como a crise temporal, geográfica e até política peculiar em que o fordismo caiu no final da década de 60.
Duas conclusões básicas (embora provisórias) se seguem. Em primeiro lugar,
se quisermos procurar alguma coisa verdadeiramente peculiar (em oposição ao
"capitalismo de sempre") na atual situação, deveremos concentrar o nosso olhar
nos aspectos financeiros da organização capitalista e no papel do crédito. Em segundo, se deve haver alguma estabilidade de médio prazo no atual regime de
acumulação, é nos domínios das novas rodadas e formas de reparo temporal e
espacial que é mais provável encontrar elementos. Em resumo, pode-se mostrar
possível"reescalonar a crise" através do reescalonamento (por exemplo) da dívida
do Terceiro Mundo e de outras dívidas até o século XXI, ao mesmo tempo que se
provoca uma radical reconstituição de configurações espaciais em que uma diversidade de sistemas de controle do trabalho pode prevalecer ao lado de novos
produtos e padrões na divisão internacional do trabalho.
Desejo enfatizar a natureza provisória dessas conclusões. No entanto, parece
de fato importante acentuar o grau até o qual a acumulação flexível tem de ser
considerada uma combinação particular e, quem sabe, nova de elementos primordialmente antigos no âmbito da lógica geral da acumulação do capital. Além disso,
se tenho razão em analisar que a crise do fordismo foi, em larga medida, uma crise
da forma temporal e espacial, deveríamos dar uma atenção a essas dimensões do
problema muito maior do que se costuma, seja nas modalidades radicais ou convencionais de análise. Fazemos isso de maneira mais cuidadosa na Parte 111, visto
também haver indícios de que a modificação da experiência do tempo e do espaço
está, ao menos de modo parciat na base da impulsiva reviravolta na direção de
práticas culturais e de discursos filosóficos pós-modernistas.
111 _ _ __
A experiência do
espaço e do tempo
Ouço a ruína de todo espaço, de vidro quebrado e de paredes
que caem, e o tempo, uma lívida flama final.
James Joyce
12
Introdução
Marshall Berman (1982) equipara a modernidade (entre outras coisas) e uma
certa maneira de experienciar o espaço e o tempo. Daniel Bell (1978, 107-111) afirma que os vários movimentos que levaram o modernismo ao apogeu tiveram de
elaborar uma nova lógica na concepção do espaço e do movimento. Ele sugere,
além disso, que a organização do espaço se "tornou o problema estético basal da
cultura da metade do século XX, da mesma maneira como o problema do tempo
{em Bergson, Proust e Joyce) o foi das primeiras décadas deste século". Frederic
Jameson (1984b) atribui a mudança pós-moderna a uma crise da nossa experiência
do espaço e do tempo, crise na qual categorias espaciais vêm a dominar as temporais, ao mesmo tempo que sofrem uma mutação de tal ordem que não conseguimos acompanhar. "Ainda não possuímos o equipamento perceptual que nos permita perceber esse novo tipo de hiperespaço", escreve ele, "em parte porque os
nossos hábitos de percepção" foram formados naquele antigo tipo de espaço que
denominei o espaço do alto modernismo."
A seguir, aceitarei essas afirmações pelo seu valor aparente. Mas como poucos
se dão ao trabalho de explicar exatamente o que elas significam, falarei do espaço
e do tempo na vida social com o fito de esclarecer vínculos materiais entre processos político-econômicos e processos culturais. Isso vai me permitir explorar a ligação entre o pós-modernismo e a transição do fordismo para modalidades mais
flexíveis de acumulação do capital através das mediações de experiências espaciais
e temporais.
O espaço e o tempo são categorias básicas da existência humana. E, no entanto,
raramente discutimos o seu sentido; tendemos a tê-los por certos e lhes damos
atribuições do senso comum ou auto-evidentes. Registramos a passagem do tempo
em segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, décadas, séculos e eras, como se
tudo tivesse o seu lugar numa única escala temporal objetiva. Embora o tempo na
física seja um conceito difícil e objeto de contendas, não costumamos deixar que
isso interfira no nosso sentido comum do tempo, em torno do qual organizamos
rotinas diárias. Reconhecemos, é verdade, que os nossos processos e percepções
mentais podem nos pregar peças, fazer segundos parecerem anos-luz ou horas
agradáveis passarem com tanta rapidez que mal nos damos conta. Também podemos aprender a apreciar o fato de diferentes sociedades (ou mesmo diferentes
subgrupos) cultivarem sentidos de tempo bem distintos (ver tabela 3.2).
Na sociedade moderna, muitos sentidos distintos de tempo se entrecruzam. Os
movimentos cíclicos e repetitivos (do café da manhã e da ida ao trabalho a rituais
sazonais como festas populares, aniversários, férias, abertura das temporadas esportivas) oferecem uma sensação de segurança num mundo em que o impulso
geral do progresso parece ser sempre para a frente e para o alto - na direção do
188
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
firmamento do desconhecido. Quando o sentido de progresso é ameaçado pela
depressão ou pela recessão, pela guerra ou pelo caos social, podemos nos reassegurar
(em parte) com a idéia do tempo cíclico ("longas ondas", "ciClos de Kondratieff"
etc.) como um fenômeno natural a que devemos forçosamente nos adaptar ou
recorrer a uma imagem ainda mais forte de alguma propensão univesal estável (tal
como a irascibilidade humana inata) como contraponto perpétuo do progresso. Em
outro nívet podemos ver como o que Hareven (1982) chama de "tempo da família"
(o tempo implícito em criar filhos e transferir conhecimento e bens entre gerações
através de redes de parentesco) pode ser mobilizado para atender às exigências do
"tempo industrial", que aloca e realoca trabalho para tarefas segundo vigorosos
ritmos de mudança tecnológica e locacional forjados pela busca incessante de acumulação do capital. E, em momentos de desespero ou de exaltação, quem entre nós
consegue impedir-se de invocar o tempo do destino, do mito, dos deuses? Os
astrólogos, como viemos a saber, introduziram suas percepções até nos corredores
da Casa Branca na época de Reagan.
Desses diferentes sentidos de tempo podem surgir sérios conflitos: a taxa ótima
de exploração de um recurso deve ser fixada pela taxa de juro ou devemos buscar,
como insistem os ambientalistas, um desenvolvimento sustentado que assegure a
perpetuação das condições ecológicas adequadas à vida humana num futuro indefinido? Essas questões não são de modo algum arcanas. O horizonte temporal
implicado numa decisão afeta materialmente o tipo de decisão que tomamos. Se
queremos deixar alguma coisa no mundo ou construir um futuro melhor para os
nossos filhos, fazemos coisas bem distintas do que faríamos se nos preocupássemos apenas com os nossos próprios prazeres aqui e agora. Por essa razão, o tempo
é usado na retórica política de maneiras confusas. A incapacidade de adiar prazeres costuma ser usada pelos críticos conservadores, por exemplo, para explicar a
persistência do empobrecimento numa sociedade afluente, embora essa sociedade
promova sistematicamente o financiamento de prazeres presentes como uma das
principais engrenagens do crescimento econômico.
Apesar dessa diversidade de conceitos e de conflitos sociais dela decorrentes
(ou, talvez, precisamente por causa dela), ainda há a tendência de considerar as
diferenças como de percepção ou interpretação do que deveria ser fundamentalmente compreendido como um único padrão objetivo da inelutável flecha de
movimento do tempo. Farei uma breve contestação desse conceito.
O espaço também é tratado como um fato da natureza, "naturalizado" através
da atribuição de sentidos cotidianos comuns. Sob certos aspectos mais complexo
do que o tempo - tem direção, área, forma, padrão e volume como principais
atributos, bem como distância-, o espaço é tratado tipicamente como um atributo
objetivo das coisas que pode ser medido e, portanto, apreendido. Reconhecemos,
é verdade, que a nossa experiência subjetiva pode nos levar a domínios de percepção, de imaginação, de ficção e de fantasia que produzem espaços e mapas mentais
como miragens da coisa supostamente "real". Também descobrimos que sociedades ou subgrupos distintos possuem concepções de espaço diferentes. Os índios
das planícies do que são hoje os Estados Unidos de modo algum seguiam o mesmo
conceito de espaço dos colonos brancos que os substituíram; os acordos "territoriais"
entre os grupos se baseavam em significados tão diferentes que era inevitável o
INTRODUÇÃO
189
conflito. Na realidade, o conflito girou em parte precisamente em torno do sentido
próprio de espaço a ser usado para regular a vida social e dar sentido a conceitos
como direitos territoriais. O registro histórico e antropológico está cheio de exemplos de quão variado pode ser o conceito de espaço, enquanto investigações dos
mundos espaciais de crianças, de doentes mentais (particularmente esquizofrênicos),
de minorias oprimidas, de mulheres e homens de diferentes classes, de habitantes
de zonas rurais e urbanas etc. ilustram uma diversidade semelhante em populações exteriormente homogêneas. Mas algum sentido de um significado amplo e
objetivo do espaço que todos devem, em última análise, reconhecer permeia tudo.
Considero importante contestar a idéia de um sentido único e objetivo de
tempo e de espaço com base no qual possamos medir a diversidade de concepções
e percepções humanas. Não defendo uma dissolução total da distinção objetivo-subjetivo, mas insisto em que reconheçamos a multiplicidade das qualidades objetivas que o espaço e o tempo podem exprimir e o papel das práticas humanas em
sua construção. O tempo e o espaço, propõem hoje amplamente os físicos, não
tinham existência (para não falar de significado) antes da matéria; em conseqüência, as qualidades objetivas do tempo-espaço físico não podem ser compreendidas
sem que se levem em conta as qualidades dos processos materiais. Entretanto, não
é de modo algum necessário subordinar todas as concepções objetivas do tempo e
do espaço a essa concepção física particular, visto que também ela é uma construção baseada numa versão específica da constituição da matéria e da origem do
universo. A história dos conceitos de tempo, espaço e tempo-espaço na física tem
sido marcada, na verdade, por fortes rupturas e reconstruções epistemológicas. A
conclusão a que deveríamos chegar é simplesmente de que nem o tempo nem o
espaço podem ter atribuídos significados objetivos sem se levar em conta os processos materiais e que somente pela investigação destes podemos fundamentar de
maneira adequada os nossos conceitos daqueles. Essa não é, com efeito, uma conclusão nova. Ela confirma a idéia geral de vários pensadores anteriores, dentre os
quais se destacam Dilthey e Durkheim.
Dessa perspectiva materialista, podemos afirmar que as concepções do tempo
e do espaço são criadas necessariamente através de práticas e processos materiais
que servem à reprodução da vida social. Os índios das planícies ou os nueres
africanos objetificam qualidades de tempo e de espaço tão distintas entre si quanto
distantes das arraigadas num modo capitalista de produção. A objetividade do
tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução
social; e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. Em
suma, cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado
particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço.
Como o capitalismo foi (e continua a ser) um modo de produção revolucionário em que as práticas e processos materiais de reprodução social se encontram em
permanente mudança, segue-se que tanto as qualidades objetivas como os significados do tempo e do espaço também se modificam. Por outro lado, se o avanço do
conhecimento (científico, técnico, administrativo, burocrático e racional) é vital para
o progresso da produção e do consumo capitalistas, as mudanças do nosso aparato
conceitual (incluindo representações do espaço e do tempo) podem ter conseqüên-
190
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
das materiais para a organização da vida diária. Quando, por exemplo, um arquiteto-planejador como Le Corbusier ou um administrador como Haussmann criam
um ambiente construído em que predomina a tirania da linha reta, temos forçosamente de ajustar as nossas práticas diárias.
Isso não significa que as práticas sejam determinadas pela forma construída
(por mais que se esforcem os planejadores); porque elas têm o estranho hábito de
escapar de sua circunscrição a todo esquema fixo de representação. Podem ser
encontrados novos sentidos para materializações mais antigas do espaço e do tempo. Apropriamo-nos dos espaços antigos de maneiras bem modernas, tratando o
tempo e a história como algo a ser criado, em vez de aceito. O mesmo conceito de,
digamos, "comunidade" (como entidade social criado no espaço através do tempo)
pode esconder diferenças radicais de sentido porque os próprios processos de
produção da comunidade divergem notavelmente de acordo com as capacidades
e interesses de grupo. Mas o tratamento das comunidades como se fossem comparáveis entre si (por, digamos, um órgão de planejamento) tem implicações materiais a que as práticas sociais das pessoas que nelas vivem têm de responder.
Sob a superfície de idéias do senso comum e aparentemente "naturais" acerca
do tempo e do espaço, ocultam-se territórios de ambigüidade, de contradição e de
luta. Os conflitos surgem não apenas de apreciações subjetivas admitidamente
diversas, mas porque diferentes qualidades materiais objetivas do tempo e do espaço
são consideradas relevantes para a vida social em diferentes situações. Importantes
batalhas também ocorrem nos domínios da teoria, bem como da prática, científica,
social e estética. O modo como representamos o espaço e o tempo na teoria importa, visto afetar a maneira como nós e os outros interpretamos e depois agimos com
relação ao mundo.
Consideremos, por exemplo, um dos mais espantosos cismas do nosso legado
intelectual no tocante às concepções de tempo e de espaço. As teorias sociais (e
penso aqui nas tradições que emanam de Marx, Weber, Adam Smith e Marshall)
privilegiam tipicamente em suas formulações o tempo. Elas em geral supõem ou
a existência de alguma ordem espacial preexistente na qual open~m processos temporais, ou que as barreiras espaciais foram reduzidas a tal ponto que tomaram o
espaço um aspecto contingente, em vez de fundamental, da ação humana. A teoria
estética, por sua vez, preocupa-se muito com "a espacialização do tempo".
É um tributo às compartimentalizações do pensamento ocidental o fato de essa
disjunção ter passado por tanto tempo bastante despercebida. Na superfície, a
diferença não é tão difícil de compreender. A teoria social sempre teve como foco
processos de mudança social, de modernização e de revolução (técnica, social,
política). O progresso é seu objeto teórico, e o tempo histórico, sua dimensão primária. Com efeito, o progresso implica a conquista do espaço, a derrubada de
todas as barreiras espaciais e a "aniquilação (última] do espaço através do tempo".
A redução do espaço a uma categoria contingente está implícita na própria noção
de progresso. Como a modernidade trata da experiência do progresso através da
modernização, os textos acerca dela tendem a enfatizar a temporalidade, o processo de vir-a-ser, em vez de ser, no espaço e no lugar. Mesmo Foucault (1984, 70),
obcecado, como confessou, com metáforas espaciais, imagina, quando pressionado,
quando e por que o "espaço foi tratado como o morto, o fixo, o não-dialético, o
~ ·
INTRODUÇÃO
191
imóvel", enquanto "o tempo, pelo contrário, era riqueza, fecundidade, vida, dialética".
A teoria estética, por outro lado, procura as regras que permitam a veiculação
de verdades eternas e imutáveis em meio ao turbilhão do fluxo e da mudança. O
arquiteto, para usar o caso mais evidente, tenta comunicar certos valores por meio
da construção de uma forma espacial. Pintores, escultores, poetas e escritores de
todo tipo não fazem menos do que isso. A própria palavra escrita abstrai propriedades do fluxo da experiência e as fixa em forma espacial. "A invenção da imprensa mergulhou a palavra no espaço", afirmou-se, e a escrita- um "conjunto de
marcas tênues marchando em linha reta, como exércitos de insetos, por páginas e
páginas de papel branco" -é, portanto, uma espacialização definida (citado em
McHale, 1987, 179-81) . De fato, todo sistema de representação é uma espécie de
espacialização que congela automaticamente o fluxo da experiência e, ao fazê-lo,
destrói o que se esforça por representar. "A escrita", diz Bourdieu (1977, 156),
"retira a prática e o discurso do fluxo do tempo." Por essa razão, Bergson, o grande
teórico do vir-a-ser, do tempo como fluxo, se enfureceu com a necessidade das
espacializações do relógio para se dizer as horas.
O filósofo Karsten Harries (1982, 59-69) faz bom uso dessa idéia. A arquitetura,
mantém ele, não é apenas a domesticação do espaço, lutando e moldando um lugar
habitável a partir do espaço; é também uma forte defesa contra "o terror do tempo" . A "linguagem da beleza" é "a linguagem de uma realidade intemporal". Criar
um objeto belo "é ligar o tempo e a eternidade" de maneira e nos redimir da tirania
do tempo. O impulso de "desvalorizar o tempo" ressurge como a vontade do
artista de redimir por meio da criação de uma obra "forte o bastante para parar o
tempo". Boa parte do ímpeto estético do modernismo, como vimos na Parte I, é
lutar por esse sentido de eternidade na voragem do fluxo. Mas, ao inclinar-se para
o lado eterno da formulação de Baudelaire, isso acentua antes o espaço do que o
tempo. A meta das construções espaciais não é "iluminar a realidade temporal
para que possamos [nos] sentir mais à vontade nela, mas livrar-se dela: abolir o
tempo no interior do tempo, ao menos por um tempo". Harries faz eco aqui às
famosas formulações modernistas de Baudelaire - "só podemos esquecer o tempo
fazendo uso dele"- e de T. S. Eliot, "só pelo tempo é o tempo conquistado".
Mas surge aqui o paradoxo. Aprendemos nossos modos de pensar e de
conceitualizar no contato ativo com as espacializações da palavra escrita, no estudo
e na produção de mapas, gráficos, diagramas, fotografias, modelos, quadros, símbolos matemáticos e assim por diante. Até que ponto são adequados esses modos
de pensamento e esses conceitos diante do fluxo da experiência humana e dos
potentes processos de mudança social? Do outro lado da moeda, como podem
espacializações em geral, e práticas estéticas em particular, representar o fluxo e a
mudança, especialmente se estes últimos forem considerados verdades essenciais
a serem transmitidas? Esse foi o dilema que intrigou Bergson. Ele se tornou um
problema central da arte futurista e dadaísta. O futurismo buscou moldar o espaço
de maneiras capazes de representar a velocidade e o movimento; os dadaístas
consideravam a arte algo efêmero e, renunciando a toda espacialização permanente, buscaram a eternidade ao darem aos seus eventos o caráter de ação revolucionária. Foi talvez em resposta a esse impasse que Walter Pater alegou que "toda arte
·
192
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
aspira à condição de música" - a música, afinal, contém seu efeito estético precisamente através do seu movimento temporal. Mas o modo mais óbvio de representação do tempo era o filme. O jovem Sartre ficou particularmente impressionado
com suas possibilidades. "É uma arte que reflete a civilização no nosso tempo",
disse ele; o filme "nos ensina sobre a beleza do mundo em que vivemos, sobre a
poesia da velocidade, das máquinas, e sobre a esplêndida inevitabilidade inumana
da indústria" (Cohen-Solal, 1987). A combinação de filme e música oferece um
poderoso antídoto para a passividade especial da arte e da arquitetura. Mas o
próprio confinamento do filme a uma tela sem profundidade e a um cinema é um
lembrete de que também ele é restrito pelo espaço de algum modo curioso.
Há muito a aprender com a teoria estética sobre o modo como diferentes
formas de espacialização inibem ou facilitam processos de mudança social. Inversamente, há muito a aprender com a teoria social acerca do fluxo e da mudança
com os quais a teoria estética tem de se haver. Contrastando essas duas correntes
de pensamento, talvez possamos melhor compreender os modos pelos quais a
mudança político-econômica contribui para as práticas culturais.
Antes disso, porém, permitam-me ilustrar onde a significância política de tal
argumento poderia residir. Ao fazê-lo, retornarei ao conceito apresentado por Kant
(ver acima, p. 28) do juízo estético como potencial mediador entre os mundos da
ciência objetiva e do julgamento moral subjetivo (sem aceitar necessariamente a
divisão tripartite do conhecimento proposta por Kant nem a satisfação inteiramente desinteressada com que o seu conceito de beleza é associado). Os juízos estéticos
(bem como as práticas artísticas "redentoras") foram introduzidos como poderosos
critérios de ação política e, portanto, social e econômica. Se o julgamento estético
dá prioridade ao espaço, as práticas e conceitos espaciais podem, em certas circunstâncias, assumir papel central na ação social.
No tocante a isso, o filósofo alemão Heidegger é uma figura curiosa. Rejeitando as dicotomias kantianas de sujeito e objeto, ele proclamou a permanência do Ser
sobre a transitoriedade do Vir-a-Ser (Metaphysics, 202). Suas investigações do Ser o
fizeram afastar-se dos universais do modernismo e da tradição judeu-cristã e retornar
ao nacionalismo intenso e criativo do pensamento grego pré-socrático. Toda metafísica e filosofia, declarou ele, só recebem sentido em relação ao destino do povo
(Blitz, 1981). A posição geopolítica da Alemanha nos anos entre-guerras- apertada numa "grande torquês" entre a Rússia e a América - levou às seguintes
reflexões:
Do ponto de vista metafísico, a Rússia e a América são a mesma coisa; o
mesmo frenesi tecnológico tenebroso, a mesma organização irrestrita do homem médio. Numa época em que o canto mais recôndito do globo foi conquistado pela tecnologia e aberto à exploração econômica; em que todo incide:rite,
pouco importa onde e quando ocorra, pode ser comunicado ao resto do mundo
a qualquer velocidade desejada; em que o assassinato de um rei na França e
uma sinfonia em Tóquio podem ser "vividos" simultaneamente; em que o
tempo deixou de ser qualquer coisa além de velocidade, instantaneidade e
simultaneidade, e em que o tempo como história desapareceu da vida de todas
INTRODUÇÃO
193
as pessoas ... então, sim, então, em toda essa perturbação, uma pergunta ainda
nos assombra como um espectro: Para quê? Para onde? E depois?
O sentido da transformação do tempo-espaço e a angústia por ela provocada
dificilmente poderiam ser mais fortes. A resposta de Heídegger é explícita:
Tudo isso implica que esta nação, como nação histórica, deve levar a si mesma
e, por conseguinte, a história do Ocidente para além do centro do seu futuro
"acontecer", para o domínio primordial das forças do ser. Se a grande decisão
no tocante à Europa não for levá-la à aniquilação, essa decisão deve ser tomada
em termos de novas energias espirituais manifestando-se historicamente a partir
de uma posição fora do centro.
Aí, para Heidegger, estava a "verdade interior e grandeza do movimento
Nacional-Socialista" (compreendido como "o encontro entre a tecnologia global e
o homem moderno"). Em apoio à retirada da Alemanha da Liga das Nações, ele
buscava um conhecimento que não "dívida as classes", mas as vincule e una "na
grande vontade do Estado". Ele esperava que, por esses meios, o povo alemão
pudesse "crescer em sua unidade como povo trabalhador, redescobrindo seu valor
simples e seu poder genuíno, e assegurando a sua duração e grandeza como um
Estado do trabalho. Ao homem que encarna essa vontade não ouvida, nosso Führer
Adolf Hitler, um triplo Síeg-Heil!" (citado em Blitz, 1981, 217).
O fato de um grande filósofo do século XX (que, incidentalmente, inspirou o
desconstrucionísmo de Derrída) se comprometer politicamente a tal ponto tem
sido objeto de considerável preocupação (uma preocupação que atingiu mais uma
vez a condição de "escândalo" na França, como resultado da documentação de
Farias [1987] sobre os vínculos bem duradouros de Heídegger com .o nazismo).
Mas creio que algumas observações úteis podem ser feitas com base no caso de
Heidegger. Ele foi evidentemente perturbado pelos suaves uníversalismos da tecnologia, pelo colapso da distinção espacial e da identidade, e pela aceleração aparentemente incontrolada dos processos temporais. Dessa perspectiva, ele exemplifica
todos os dilemas da modernidade tal como articulados por Baudelaire. Ele revela
uma profunda influência das intervenções de Nietzsche (ver acima, pp. 25-29), mas
as vê seguindo o rumo de um niilismo total e inaceitável. É desse destino que ele
procura resgatar a civilização. Sua busca da permanência (a filosofia do Ser) vincula-se a um sentido de geopolítica e de destino determinado pelo lugar, sentido
que era tanto revolucionário (na conotação de se projetar para o futuro) como
intensamente nacionalista. Do ponto de vista metafísico, isso implicava arraigar-se
em valores clássicos (em particular nos da civilização grega pré-socrática), destacando assim uma orientação paralela na direção do classicismo na retórica nazista
em geral e na arquitetura em especial. A rejeição de valores platônicos e judeucristãos, do "mito" da racionalidade da máquina e do ínternacionalismo, foi total,
embora o lado revolucionário de seu pensamento o tenha forçado a comprometerse com os avanços científicos e tecnológicos em questões práticas. O modernismo
reacionário do tipo nazista enfatizava o poder do mito (do sangue e do solo, da
raça e da terra natal, do destino e do lugar), ao mesmo tempo em que mobilizava
194
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
todas as conquistas do progresso social para um projeto de sublime realização
nacional. A aplicação à política desse sentido estético particular alterou o curso da
história, com uma vingança.
O caso nazista nada tem de peculiar. A estetização da política tem uma longa
história e apresenta profundos problemas para doutrinas de progresso social sem
freios. Ela tem suas versões de esquerda e de direita (os sandinistas, afinal, estetizam
a política em torno da figura de Sandino para promover a adesão a um programa
político esquerdista de libertação nacional e de justiça social). A forma mais clara
que o problema assume é a mudança de ênfase da transformação histórica para
culturas e destinos nacionais, produzindo conflitos geográficos entre diferentes
espaços na economia mundial. Os conflitos geopolíticos sempre implicam uma
certa estetização da política em que o recurso à mitologia de lugar e de pessoa tem
um forte papel a desempenhar. Nesse campo, a retórica dos movimentos de libertação nacional é tão forte quanto a contra-retórica, imposta por meio do imperialismo e do colonialismo, do destino manifesto, da supremacia racial ou cultural, do
paternalismo (a responsabilidade do homem branco, por exemplo) e das doutrinas
de superioridade nacional.
Como e por que a história do mundo (o desfecho das lutas de classe em
versões marxianas) se dissolve em conflitos geopolíticos, com freqüência de uma
espécie deveras destrutiva, não podem ser considerados uma questão de mero
acidente. Isso pode ter raízes fincadas nos processos político-econômicos que forçam o capitalismo a assumir configurações de desenvolvimento geográfico desigual, fazendo-o buscar uma série de remédios espaciais para o problema da
superacumulação. Contudo, a estetização da política que acompanha essa virada
geopolítica também deve ser levada a sério. Aqui, penso eu, reside a significação
da conjunção de perspectivas teóricas estéticas e sociais sobre a natureza e o significado do espaço e do tempo. E é exatamente a partir desse tipo de perspectiva
que Eagleton (1987) lança seu ataque mais virulento contra o pós-modernismo de
Lyotard:
A modernidade para Lyotard não parece nada senão um conto da razão terrorista e do nazismo que é pouco mais do que o término letal do pensamento
totalizante. Esse travesti negligente ignora o fato de os campos da morte terem
sido, entre outras coisas, o rebento de um bárbaro irracionalismo que, tal como
alguns aspectos do próprio pós-modernismo, desdenhava a história, recusava
a argumentação, estetizava a política e atribuía tudo ao carisma daqueles que
contavam as histórias.
13
Espaços e tempos individuais na vida social
As práticas materiais de que os nossos conceitos de espaço e de tempo advêm
são tão variadas quanto a gama de experiências individuais e coletivas. O desafio
consiste em cercá-las de algumas estruturas interpretativas gerais que vençam o
hiato entre a mudança cultural e a dinâmica da economia pólítica.
Permitam-me começar com a descrição mais simples das práticas cotidianas,
formulada na geografia temporal de que Hagerstrand foi o pioneiro. Nela, os indivíduos são considerados agentes movidos por um propósito engajados em projetos que absorvem tempo através do movimento no espaço. As biografias individuais podem ser tomadas como "trilhas de vida no tempo-espaço", começando
com rotinas cotidianas de movimento (da casa para a fábrica, as lojas, a escola, e
de volta para casa) e estendendo-se a movimentos migratórios que alcançam a
duração de uma vida (por exemplo, juventude no campo, treinamento profissional
na cidade grande, casamento e mudança para os subúrbios, e aposentadoria passada no campo). Essas trilhas da vida podem ser representadas diagramaticamente
(ver figura 3.1.). A idéia consiste em estudar os princípios do comportamento do
tempo-espaço por intermédio de um exame dessas biografias. Os recursos temporais finitos e a "fricção da distância" (medida em tempo e gastos necessários para
vencê-la) restringem o movimento diário. É preciso encontrar tempo para comer,
dormir etc., e os projetos sociais sempre encontram "restrições de contato",
especificadas como a necessidade de intersecção das trilhas de tempo-espaço de
dois ou mais indivíduos para que qualquer transação social seja realizada. Essas
transações ocorrem tipicamente no âmbito de um padrão geográfico de "estações"
disponíveis (lugares onde certas atividades, como trabalhar, fazer compras etc.,
ocorrem) e "domínios" em que certas interações sociais prevalecem.
O esquema de Hagerstand é uma descrição útil de como a vida diária das
pessoas se desenrola no espaço e no tempo. Mas nada diz sobre como são produzidos "estações" e "domínios" ou por que a "fricção da distância" varia da maneira
como palpavelmente o faz. Ele também deixa de lado a questão de como e por que
certos projetos sociais e suas "restrições de contato" características se tornam
hegemônicos (por que, por exemplo, o sistema de fábrica domina ou é dominado
por formas dispersas e artesanais de produção), e não tenta compreender por que
certas relações sociais dominam outras nem como se atribui sentido a lugares, a
espaços, à história e ao tempo. Infelizmente, a reunião de dados empíricos maciços
sobre as biografias tempo-espaciais não alcança as respostas para essas questões
mais amplas, muito embora o registro dessas biografias componha um corpo de
informações útil para a consideração da dimensão tempo-espacial das práticas
sociais.
196
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
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Figura 3.1 Representação diagramática das trilhas diárias de tempo-espaço
segundo Hiigerstrand (1970).
Consideremos, à guisa de contraste, as abordagens sociopsicológicas e fenomenológicas do tempo e do espaço formuladas por escritores como de Certeau,
Bachelard, Bourdieu e Foucault. Este último trata o espaço do corpo como o elemento irredutível do nosso esquema de coisas social, visto ser sobre esse espaço
que se exercem as forças da repressão, da socialização, da disciplina e da punição.
O corpo existe no espaço e deve ou submeter-se à autoridade (por meio de, por
exemplo, encarceração ou vigilância num espaço organizado) ou criar espaços
particulares de resistência e liberdade - "heterotopias" - diante de um mundo
de outra maneira repressor. Essa luta, peça de resistência da história social ao ver
de Foucault, não tem uma lógica temporal necessária. Mas Foucault considera
ESPAÇOS E TEMPOS INDIVIDUAIS NA VIDA SOCIAL
197
importantes transições históricas particulares, dando grande atenção à periodização da experiência. O poder do ancien régime foi solapado pelo Iluminismo apenas
para ser substituído por uma nova organização do espaço dedicada às técnicas de
controle social, de vigilância e de repressão do eu e do mundo do desejo. A diferença reside na maneira como o poder do Estado na era moderna se torna sem
rosto, racional e tecnográfico (e, portanto, mais sistemático), em vez de personalizado e arbitrário. A irredutibilidade (para nós) do corpo humano significa que
somente desse local de poder pode a resistência ser mobilizada na luta de libertação do desejo humano. O espaço, para Foucault, é uma metáfora para um local ou
continente de poder que de modo geral restringe, mas por vezes libera, processos
de Vir-a-Ser.
A ênfase de Foucault na prisão dentro de espaços de controle social tem mais
do que uma pequena relevância literal (em oposição à metafórica) para o modo
pelo qual se organiza a vida social moderna. A segregação de populações
empobrecidas nos espaços adjacentes às cidades, por exemplo, é um tema que há
muito atraiu a atenção de geógrafos urbanos. Mas a concentração foucaultiana i
I
exclusiva nos espaços de repressão organizada (as prisões, o "panóptico", os manicômios e outras instituições de controle social) enfraquece a generalidade do seu
argumento. De Certeau oferece um interessante corretivo. Ele trata os espaços sociais .QC
como instâncias mais abertas à criatividade e ação do homem. O andar, sugere ele,
define um "espaço de enunciação". Tal como Hagerstrand, ele começa sua história !t: ..
pelo começo, mas, nesse caso, "com os pés" na cidade. "Sua massa fervilhante é
uma coleção inumerável de singularidades. Seus caminhos entrecruzados dão sua
forma aos espaços. Eles unem lugares" e, assim, criam a cidade por meio de atividades e movimentos diários. "Eles não são localizados; são, antes, os responsá§1'11
veis pela espacialização" (observe-se quão diferente é este sentimento daquele trans- -<0
mitido pela obra de Hagerstrand). Os espaços particulares da cidade são criados ii • .
por uma miríade de ações, todas elas trazendo a marca da intenção humana. Respondendo a Foucault, de Certeau vê uma substituição diária "do sistema tecnológico de um espaço coerente e totalizante" por uma "retórica pedestre" de trajetóI
rias que têm "uma estrutura mítica", compreendida como "uma história construída a baixo custo a partir de elementos tomados de expressões comuns, uma história alusiva e fragmentária cujas lacunas se confundem com as práticas sociais que
I
ela simboliza".
De Certeau define aqui uma base para a compreensão do fermento das culturas de rua populares e localizadas, mesmo express:12 no âmbito da estrutura imI
posta por alguma ordem repressiva abrangente. "O alvo", ele escreve, "não é deixar claro como a violência da ordem é transmutada numa tecnologia disciplinar,
I
mas antes trazer à luz as formas clandestinas assumidas pela criatividade dispersa,
tática e paliativa de grupos ou indivíduos já presos nas redes da 'disciplina'." A
"ressurgência de práticas 'populares' na modernidade científica e industrial", ele
I
escrevem, "não pode ser confinada ao passado, ao campo nem aos povos primitivos", mas "está presente no cerne da economia contemporânea". Os espaços poI
dem ser "libertados" mais facilmente do que Foucault imagina, precisamente porque as práticas sociais espacializam em vez de se localizarem no âmbito de alguma
malha repressiva de controle social.
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I
198
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
De Certeau, como veremos, reconhece que as práticas da vida cotidiana podem
ser e são convertidas nas "totalizações" do espaço e do tempo organizados e controlados de maneira racional. Mas ele pouco nos diz sobre por que e como as
racionalizações assumem as formas que assumem. Em alguns casos, parece que o
projeto do Iluminismo (ou mesmo o capitalismo) tem algo a ver com isso, embora,
em outros exemplos, ele assinale as ordenações simbólicas do espaço e do tempo
que dão uma continuidade mais profunda (mas de modo algum necessariamente
libertária) às práticas sociais. No tocante a este último ponto, de Certeau encontra
algum apoio em Bourdieu.
As ordenações simbólicas do espaço e do tempo fornecem uma estrutura para
a experiência mediante a qual aprendemos quem ou o que somos na sociedade. "A
razão pela qual a submissão aos ritmos coletivos é exigida com tanto rigor", escreve Bourdieu (1977, 163), "é o fato de as formas temporais ou estruturas espaciais
estruturarem não somente a representação do mundo do grupo, mas o próprio
grupo, que organiza a si mesmo de acordo com essa representação." A noção do
senso comum de que "há um tempo e um lugar para tudo" é absorvida num
conjunto de prescrições que replicam a ordem social ao atribuir sentidos sociais aos
espaços e tempos. Esse foi o tipo de fenômeno-que Hall (1966) viu como a base de
muitos conflitos interculturais, justamente porque, com o seu uso do espaço e do
tempo, gwpos diferentes produziam sentimentos bem distintos. Mediante estudos
do mundo interior da casa Kabyle e dos mundos exteriores de campos, mercados,
jardins etc. com relação ao calendário anual e às divisões entre a noite e o dia,
Bourdieu mostra que "todas as divisões do grupo são projetadas, em todos os
momentos, na organização espácio-temporal que atribui a cada categoria seu lugar
e tempo: é aqui que a lógica difusa da prática produz maravilhas, ao permitir que
o grupo alcance o máximo de integração social e lógica compatível com a diversidade imposta pela divisão do trabalho entre os sexos, as idades e as 'ocupações'
(ferreiro, açougueiro)". Bourdieu sugere que é através da "relação dialética entre o
corpo e uma organização estruturada do espaço e do tempo que as práticas e
representações comuns são determinadas". E é exatamente a partir dessas experiências (na casa em particular) que se impõem esquemas duradouros de percepção, de pensamento e ele ação (ver figura 3.2). E, num nível mais profundo, "a
organização do tempo e do grupo de acordo com estruturas míticas leva a prática
coletiva a parecer o 'mito realizado'".
Descobertas dessa espécie têm sido reproduzidas em muitos estudos antropológicos recentes (embora sem aceitarem necessariamente todo o arcabouço
interpretativo de Bourdieu). A questão mais geral, porém, refere-se ao grau até o
qual tipos semelhantes de sentidos sociais podem ser assinalados através da organização espacial e temporal na cultura capitalista contemporânea. É certo que não
há dificuldades em identificar exemplos desses processos em ação. A organização
dos espaços dentro de uma casa, por exemplo, ainda diz muito sobre as relações
de gênero e de idade. Os ritmos espácio-temporais organizados do capitalismo
oferecem abundantes oportunidades de socialização de pessoas em papéis distintivos. A -noção comum de que há "um tempo e um lugar para tudo" ainda tem
peso, e as expectativas sociais estão voltadas para o local e o momento em que as
ações ocorrem. Mas, embora possam ser onipresentes na sociedade capitalista, os
ESPAÇOS E TEMPOS INDIVIDUAIS NA VIDA SOCIAL
199
mecanismos para os quais Bourdieu aponta não se conformam com facilidade ao
quadro largamente estático de reprodução social por ele evocado no caso dos
Kabyle. Afinal, a modernização envolve a disrupção perpétua dos ritmos espaciais
e temporais, e o modernismo tem como uma de suas missões a produção de novos
sentidos para o espaço e o tempo num mundo de efemeridade e fragmentação.
Bourdieu fornece um indício bem pequeno sobr2 como a busca do poder financeiro poderia solapar as práticas tradicionais. Moore (1986), em seu estudo dos
Endo, desenvolve essa idéia e, ao fazê-lo, lança mais luz sobre as complexas relações entre as especializações e a reprodução social. O valor e o sentido "não são
inerentes a nenhuma ordem espacial", insiste ela, "devendo ser invocados". A
idéia de que haja alguma linguagem "universal" do espaço, uma semiótica do
espaço que independa de atividades práticas e de atores historicamente situados,
tem de ser rejeitada. Não obstante, no contexto de práticas específicas, a organização do espaço pode de fato definir relações entre pessoas, atividades, coisas e
conceitos. "A organização do espaço entre os Endo pode ser concebida como um
texto; como tal, ela 'fala sobre' ou 'opera sobre' estados de coisas que são imaginários", mas ainda assim importantes, visto representarem preocupações sociais.
Essas representações espaciais são "tanto produto como produtor". Sob pressões
de monetização e de introdução do trabalho assalariado, as representações se transformam. No caso dos Endo, o "modernismo" é exibido pela substituição da casa
redonda tradicional por uma casa quadrada, associada com uma exibição aberta de
Claridade, quente
masculino, exterior
parte superior
Exterior
Seco
L
,,.,.,.,,,.,.,;J tempo de trabalho
c::.J tempo de produção
c:::::J tempo de descanso
Parte inferior
feminino, interior
escuridão, frio
Figura 3.2 o calendário anual dos Kabyle segundo Bourdieu (1977).
(Reproduzido com a permissão de Cambridge Un iversity Press.)
200
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
riqueza, com a separação da área da cozinha da casa principal e com outras reorganizações espaciais que assinalam uma mudança nas relações sociais.
A potencialidade desses processos no sentido de serem envoltos no mito e no
ritual diz muito acerca dos dilemas do modernismo e do pós-modernismo. Já
observamos, tanto na Parte I como na introdução à Parte III, que o modernismo
com freqüência flertou com a mitologia. Deparamos aqui com o fato de as próprias
práticas espaciais e temporais poderem parecer o "mito realizado", tornando-se
assim um ingrediente ideológico essencial da reprodução social. A dificuldade
sobre o capitalismo - dada a sua inclinação para a fragmentação e a efemeridade,
em meio aos universais da monetização, do intercâmbio de mercado e da circulação do capital - é encontrar uma mitologia estável que exprima seus valores e
sentidos inerentes. As práticas sociais podem invocar certos mitos e impelir a
determinadas representações espaciais e temporais como parte integrante do seu
impulso de implantar e reforçar o seu controle sobre a sociedade; mas elas o fazem
de maneira tão eclética e efêmera que é difícil falar de "mito realizado" sobre o
capitalismo com a mesma certeza alcançada por Bourdieu quanto aos Kabyle. Isso
não impede a elaboração de mitologias poderosas (como no caso do nazismo ou do
mito da máquina), apresentadas como provocações vigorosas à mudança histórico-geográfica. Além disso, a mitologia é exibida em formas brandas o bastante (a
evocação da tradição, da memória coletiva, da localidade e do lugar, da identidade
cultural) para tornar o processo mais sutil do que as afirmações rouquenhas do
nazismo. Mas é difícil encontrar na sociedade contemporânea exemplos de sua
ação que não evoquem de alguma maneira um sentido muito específico do que
significa um "tempo e um lugar para tudo". Daí a importância das práticas de
espacialização na arquitetura e no projeto urbano, da evocação histórica e das lutas
travadas em torno da definição de quais exatamente são o tempo e o lugar certos
para que aspectos da prática social.
Bachelard (1964), por sua vez, dirige a nossa atenção para o espaço da imaginação - "o espaço poético". Um espaço "que foi apropriado pela imaginação não
pode permanecer como um espaço indiferente, sujeito às medidas e estimativas do
pesquisador", assim como não pode ser representado de modo exclusivo como o
"espaço afetivo" dos psicólogos. "Pensamos que nos conhecemos no tempo", escreve ele, "quando tudo o que conhecemos é uma seqüência de fixações nos espaços
da estabilidade do ser." As lembranças "são imóveis e quanto mais seguramente
fixadas no espaço, tanto mais sólidas são". Os ecos de Heidegger são fortes aqui.
"O espaço contém tempo comprimido. É para isso que serve o espaço." E o espaço
fundamental para a memória é a casa - "uma das maiores forças de integração
dos pensamentos, lembranças e sonhos da humanidade". Porque é dentro desse
espaço que aprendemos a sonhar e a imaginar. Nele,
Ser já é um valor. A vida começa bem, e começa encerrada, protegida, aquecida
no seio da casa ... É esse o ambiente em que vivem os seres protetores .. . Nessa
região remota, a memória e a imaginação se mantêm associadas, cada qual
trabalhando para o seu mútuo aprofundamento ... Por meio dos sonhos, as
várias habitações da nossa vida se co-penetram e retêm os tesouros de dias
passados. E, depois de estarmos na nova casa, quando as memórias de outros
ESPAÇOS E TEMPOS INDIVIDUAIS NA VIDA SOCIAL
201
lugares em que vivemos retornam a nós, viajamos para a terra da Infância
Imóvel, imóvel como o são todas as coisas !memoriais.
O Ser, inundado pela lembrança espacial imemorial, transcende o Vir-a-Ser; ele
encontra todas as memórias nostálgicas de um mundo de infância perdida. Será
esse o fundamento da memória coletiva, de todas as manifestações de nostalgias
dependentes de lugar que infectam as nossas imagens do país e da cidade, de
região, de ambiente e de localidade, de vizinhança e de comunidade? E se é verdade que o tempo sempre é memorizado não como um fluxo, mas como lembranças de lugares e espaços vividos, a história deve realmente ceder lugar à poesia, o
tempo ao espaço, como material fundamental da expressão social. Assim, a imagem espacial (em particular a evidência da fotografia) afirma um importante poder
sobre a história (ver capítulo 18).
Nas práticas espaciais e temporais de toda sociedade são abundantes as sutilezas
e complexidades. Como elas estão estreitamente implicadas em processos de reprodução e de transformação das relações sociais, é preciso encontrar alguma maneira de
descrevê-las e de fazer uma generalização sobre o seu uso. A história da mudança
social é em parte apreendida pela história das concepções de espaço e de tempo, bem
como dos usos ideológicos que podem ser dados a essas concepções. Além disso, todo
projeto de transformação da sociedade deve apreender a complexa estrutura da transformação das concepções e práticas espaciais e temporais.
Tentarei capturar parte dessa complexidade mediante a construção de uma
"grade" de práticas espaciais (tabela 3.1). Do lado esquerdo, relaciono três dimensões identificadas em La production de ['espace, de Lefebvre:
1. As práticas espaciais materiais referem-se aos fluxos, transferências e interações físicos e materiais que ocorrem no e ao longo do espaço de maneira a garantir
a produção e a reprodução social.
2. As representações do espaço compreendem todos os signos e significações,
códigos e conhecimentos que permitem falar sobre essas práticas materiais e
compreendê-las, pouco importa se em termos do senso comum cotidiano ou do
jargão por vezes impenetrável das disciplinas acadêmicas que tratam de práticas
espaciais (a engenharia, a arquitetura, a geografia, o planejamento, a ecologia social
etc.).
3. Os espaços de representação são invenções mentais (códigos, signos, "discursos espaciais", planos utópicos, paisagens imaginárias e até construções materiais como espaços simbólicos, ambientes particulares construídos, pinturas, museus etc.) que imaginam novos sentidos ou possibilidades para práticas espaciais.
Lefebvre caracteriza essas três dimensões como o vivido, o percebido e o imaginado. Ele considera as relações dialéticas entre elas o fulcro de uma tensão dramática por meio da qual pode ser lida a história das práticas espaciais. Os espaços
de representação, portanto, têm o potencial não somente de afetar a representação
do espaço como também de agir como força produtiva material com respeito às
práticas espaciais. Mas afirmar que as relações entre o vivido, o percebido e o
imaginado são dialética e não causalmente determinadas deixa as coisas demasiado vagas. Bourdieu (1977) oferece um esclarecimento. Ele explica que "uma matriz
de percepções, avaliações e ações" pode, a um só tempo, ser posta para trabalhar
202
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
de maneira flexível para "realizar tarefas infinitamente diversificadas" e ser "em
última instância" (na famosa frase de Engels) engendrada a partir da experiência
material de "estruturas objetivas" e, portanto, "a partir da base econômica da
formação social em questão". O vínculo mediador é fornecido pelo conceito de
habitus - um "princípio gerativo duradouramente instalado de improvisações
reguladas", que "produz práticas" tendentes a reproduzir as condições objetivas
responsáveis pela produção do princípio gerativo do habitus. A causação circular
(e até cumulativa?) é óbvia. Mas a conclusão de Bourdieu é uma descrição deveras
significativa das restrições do poder do imaginado sobre o vivido:
Como o habitus é uma capacidade infinita de engendrar produtos - pensamentos, percepções, expressões, ações - cujos limites são fixados pelas condições histórica e socialmente situadas de sua produção, a liberdade condicionante
e condicional que ele garante está tão distante de uma criação da novidade
imprevisível quanto o está de uma reprodução mecânica simples dos condicionamentos iniciais (Bourdieu, 1977, 95).
Essa teorização, se bem que não esteja completa, é de considerável interesse.
Vou retomá-la adiante para examinar as suas implicações na produção cultural.
Ao longo da parte superior da grade (tabela 3.1), relaciono quatro outros aspectos da prática espacial advindo de compreensões mais convencionais:
1. Acessibilidade e distanciamento referem-se ao papel da "fricção da distância" nos assuntos humanos; a distância é tanto uma barreira como uma defesa
contra a interação humana. Ela impõe custos de transação a todo sistema de produção e reprodução (particularmente àqueles baseados em alguma divisão social
elaborada do trabalho, do comércio e da diferenciação social de funções reprodutivas). O distanciamento (cf. Giddens, 1984, 258-259) é apenas uma medida do grau
até o qual a fricção do espaço foi superada para acomodar a interação social.
2. A apropriação do espaço examina a maneira pela qual o espaço é ocupado
por objetos (casas, fábricas, ruas etc.), atividades (usos da terra), indivíduos, classes
ou outros grupos sociais. A apropriação sistematizada e institucionalizada pode
envolver a produção de formas territorialmente determinadas de solidariedade
social.
3. O domínio do espaço reflete o modo como indivíduos ou grupos poderosos dominam a organização e a produção do espaço mediante recursos legais ou
extralegais, a fim de exercerem um maior grau de controle quer sobre a fricção da
distância ou sobre a forma pela qual o espaço é apropriado por eles mesmos ou por
outros.
4. A produção do espaço examina como novos sistemas (reais ou imaginários) de uso da terra, de transporte e comunicação, de organização territorial etc. são
produzidos, e como surgem novas modalidades de representação (por exemplo,
tecnologia da informação, mapeamento computadorizado ou design).
Essas quatro dimensões da prática espacial não independem umas das outras.
A fricção da distância está implícita em toda compreensão do domínio e da apropriação do espaço, enquanto a apropriação persistente de um espaço por um grupo
particular (digamos, a gangue que manda na esquina) equivale a um domínio de
ESPAÇOS E TEMPOS INDIVIDUAIS NA VIDA SOCIAL
203
Tabela 3.1 Uma "grade" de práticas espaciais
Acessibilidade
e
distanciamento
Apropriação e
uso do espaço
Domínio e
controle do
espaço
Produção do
espaço
Práticas
espaciais
materiais (vivido)
Fluxos de bens,
dinheiro,
pessoas, força
de trabalho,
informação etc.;
sistemas de
transporte e
comunicação;
hierarquias
urbanas e de
mercado;
aglomeração
Usos da terra e
ambientes
construídos;
espaços sociais
e outras
designações
espaciais; redes
sociais de
comunicação e
ajuda mútua
Propriedade
privada da terra;
divisões
administrativas e
estatais do
espaço; comunidades e bairros
exclusivos;
zoneamento
excludente e
outras formas de
controle
social (policiamento
e vigilância)
Produção de
infra-estruturas
físicas
(transporte e
comunicações;
ambientes
construídos;
liberação de
terra etc.);
organização
territorial de
infra-estruturas
sociais (formais
e informais)
Representações
do espaço
(percebido)
Medidas sociais,
psicológicas e
físicas da
distância; mapeamento; teorias
da "fricção da
distância" (princípio do menor
esforço, física social,
alcance de um
lugar bom e
central e outras
formas de teoria
da localização)
Espaço pessoal;
mapas mentais
do espaço
ocupado;
hierarquias
espaciais;
representação
simbólica dos
espaços;
"discursos"
espaciais
Espaços
proibidos;
"imperativos
territoriais";
comunidade;
cultura regional;
nacionalismo;
geopolítica;
hierarquias
Novos sistemas
de mapeamento,
de representação
visual. de
comunicação
etc.; novos
"discursos"
artísticos e
arquitetõnicos;
semiótica
espaços de
representação
(imaginado)
atração/repulsão;
distância/desejo;
acesso/negação;
transcendência:
"o meio é a
mensagem"
familiaridade;
aconchego
familiar; locais
abertos; locais
de espetáculo
popular (ruas,
praças,
mercados);
iconografia e
grafite;
publicidade
estranheza;
espaços de
meio; propriedade e posse;
monumentalidade
e espaços construídos de ritual;
barreiras simbólicas e capital simbólico; construção da "tradição";
espaços de
repressão
planos utópicos;
paisagens
imaginárias;
antologias e
espaço de ficção
científica;
esquetes
artísticos;
mitologias de
espaço e lugar;
poética do
espaço; espaços
do desejo
Fonte: parcialmente inspirada por Lefebvre (1974)
204
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
facto desse espaço. A produção do espaço, na medida em que reduz a fricção da
distância (por exemplo, a "aniquilação do espaço por intermédio do tempo" do
capitalismo), altera o distanciamento e as condições de apropriação e domínio.
O meu propósito ao estabelecer essa grade não é tentar fazer nenhuma exploração
sistemática das posições nela contidas, se bem que esse exame teria um considerável
interesse (introduzi umas poucas posições controversas na grade para propósitos de
ilustração, e gostaria de sugerir que os diferentes autores que examinamos até agora
se concentram em diferentes facetas dela). Meu objetivo é encontrar algum ponto de
apoio que permita uma discussão mais aprofundada da experiência cambiante do
espaço na história do modernismo e do pós-modernismo.
Por si mesma, a grade de práticas espaciais nada pode nos dizer de importante.
Supô-lo seria aceitar a idéia da existência de alguma linguagem espacial universal
independente das práticas sociais. As práticas espaciais derivam sua eficácia na
vida social somente da estrutura de relações sociais no âmbito das quais entram em
ação. Sob as relações sociais do capitalismo, por exemplo, as práticas espaciais
retratadas na grade ficam imbuídas de significados de classe. Mas dizer isso não
é alegar que essas práticas espaciais seja geradas pelo capitalismo; elas assumem
seus sentidos sob relações sociais específicas de classe, de gênero, de comunidade,
de etnicidade ou de raça, e são "usadas" e "trabalhadas" no curso da ação social.
Quando elas são postas no contexto dos imperativos e relações sociais capitalistas
(ver capítulo 14 a seguir), a grade ajuda a desvelar parte da complexidade que
prevalece na compreensão da transformação da experiência espacial associada com
a mudança do modo de pensar modernista para o pós-modernista.
Gurvitch (1964) sugere um arcabouço análogo para pensar o sentido do tempo
na vida social. Contudo, ele ataca a questão do conteúdo social das práticas temporais de maneira direta, evitando problemas de materialidade, representação e
imaginação do tipo em que Lefebvre insiste. Sua tese principal é que formações
sociais particulares (relacionadas na coluna da direita da tabela 3.2) estão associadas com um sentido específico de tempo. A partir desse estudo advém uma classificação em oito categorias dos tipos de tempo social que têm existido historicamente. Essa tipologia revela implicações sobremodo interessantes.
Para começar, ela inverte a proposição de que há um tempo para tudo e propõe que pensemos, em vez disso, que cada relação social contém seu próprio
sentido de tempo. É tentador, por exemplo, pensar em 1968 como um tempo "explosivo" (em que comportamentos bem diferentes foram subitamente considerados
aceitáveis) que emergiu do tempo "ilusório" do fordismo-keynesianismo e que
cedeu lugar, no final dos anos 70, ao mundo do "tempo à frente de si mesmo"
povoado por especuladores, empreendedores e capitalistas financeiros insignificantes. Também é possível usar a tipologia para examinar diferentes sentidos de
tempo em ação no mundo contemporâneo, com os acadêmicos e outros profissionais perpetuamente condenados (ao que parece) ao "tempo retardado", talvez com
a missão de evitar os tempos "errático" e "explosivo", devolvendo a nós algum
sentido de tempo "permanente" (um mundo povoado também por ecologistas e
teólogos). As combinações potenciais são excitantes, e voltarei a elas mais tarde,
visto lançarem luz, a meu ver, sobre a confusa transição do sentido de tempo
implícita na mudança de práticas culturais modernistas para as pós-modernistas.
ESPAÇOS E TEMPOS INDIVIDUAIS NA VIDA SOCIAL
205
Tabela 3.2 A tipologia dos tempos sociais de Gurvitch
Tipo
Nível
Forma
Formações sociais
Tempo
permanente
ecológico
tempo contín uo
em que o passado
é projetado no
presente e no
futuro; facil mente
quantificável
parentescos e
agrupamentos por
localidade (particularmente sociedades camponesas
rurais e estruturas
patriarcais)
Tempo ilusório
sociedade
organizada
duração longa e
desacelerada
mascarando crises
e rupturas repentinas e inesperadas
entre o passado e
o presente
grandes cidades e
"públicos"
políticos;
sociedades
carismáticas e
teocráticas
Tempo errático
papéis sociais,
atitudes coletivas
(padrões) e
amálgamas
técnicos
tempo de incerteza
e de contingência
acentuada em que
o presente
prevalece sobre o
passado e o futuro
"públicos" não
políticos (movimentos sociais e
seguidores de
padrões); classes
em processo de
formação
Tempo cíclico
uniões místicas
passado, presente
e futuro projetados
uns nos outros,
acentuando a
continuidade dentro da mudança;
diminuição da
contingência
seguidores da
astrologia;
sociedades
arcaicas em que
prevalecem
crenças
mitológicas,
místicas e mágicas
Tempo retardado
símbolos sociais
o futuro se torna
presente tão tarde
que é superado
assim que se
cristaliza
a comunidade e os
seus símbolos
sociais; guildas,
profissões etc.;
feudalismo
Tempo alternado
regras, sinais,
signos e conduta
coletiva
o passado e o
futuro competem
no presente;
descontinuidade
sem contingência
grupos econômicos dinâmicos;
épocas de transição (capitalismo
incipiente)
206
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Nível
Tipo
Forma
Formações sociais
Tempo à frente de
s i mesmo
(acelerado)
ação e inovação
transformadoras
coletivas
descontinuidade,
contingência:
triunfo da mudança
qualitativa; o futuro
se torna presente
capitalismo
competitivo;
especulação
Tempo explosivo
fermento
revolucionário e
criação coletiva
presente e
passado dissolvidos num futuro
transcendente
revoluções e
transformações
radicais de
estruturas globais
Fonte: Gurvitch (1964)
Se houvesse uma linguagem independente (ou semiótica) do tempo ou do
espaço (ou do tempo-espaço), poderíamos, neste ponto, abandonar sem problemas
as preocupações sociais e investigar de modo mais direto as propriedades das
linguagens de espaço-tempo como meios de comunicação por direito próprio.
Entretanto, como é um axioma fundamental da minha pesquisa a idéia de que o
tempo e o espaço (ou, no tocante a isso, a linguagem) não podem ser compreendidos independentemente da ação social, mudarei agora o meu foco, passando a
considerar o fato de relações de poder sempre estarem implicadas em práticas
temporais e espaciais. Isso vai nos permitir enquadrar essas tipologias e possibilidades bem passivas na estrutura mais dinâmica das concepções materialistas históricas da modernização capitalista.
14
Tempo e espaço
como fontes de poder social
Devemos a idéa de que o domínio do espaço é uma fonte fundamental e
pervasiva de poder social na e sobre a vida cotidiana à voz persistente de Henri
Lefebvre. O modo como essa forma de poder social se articula com o controle do
tempo, bem como com o dinheiro e outras formas de poder social, requer uma
maior elaboração. Vou explorar o argumento geral de que, nas economias monetárias em geral e na sociedade capitalista em particular, a intersecção do domínio
sobre o dinheiro, o tempo e o espaço forma um nexo substancial de poder social
que não podemos nos dar ao luxo de ignorar." A mensuração do tempo", declara
Landes (1983, 12), em seu autorizado estudo sobre o assunto, "foi simultaneamente
um signo da criatividade recém-descoberta e um agente e catalisador do uso do
conhecimento para a obtenção de riqueza e poder." Medidores do tempo e mapas
precisos há muito valem o seu peso em ouro, e o domínio dos espaços e tempos
é um elemento crucial na busca do lucro. Por exemplo, o especulador imobiliário
que tem dinheiro para esperar enquanto controla o desenvolvimento dos espaços
adjacentes está numa situação muito melhor, para obter ganhos pecuniários, do
que alguém que não tenha poder em alguma dessas dimensões. Além disso, o
dinheiro pode ser usado para dominar o tempo (o nosso ou o de outras pessoas)
e o espaço. Inversamente, o domínio do tempo e do espaço pode ser reconvertido
em domínio sobre o dinheiro.
Surgem então duas questões bem gerais. Em primeiro lugar, quem define as
práticas materiais, as formas e os sentidos do dinheiro, do tempo ou do espaço fixa
certas regras básicas do jogo social. Não desejo dizer com isso que quem define as
regras sempre ganhe toda competição que possa se seguir. Há demasiados exemplos de conseqüências involuntárias (nos quais quem tem o poder define regras
que solapam sua própria base de poder) e de grupos de oposição que aprendem
e usam as regras para esmagar aqueles que as conceberam para que essa equação
simples tenha credibilidade.
Contudo, a hegemonia ideológica e política em toda sociedade depende da
capacidade de controlar o contexto material da experiência pessoal e social. Por
essa razão, as materializações e significados atribuídos ao dinheiro, ao tempo e ao
espaço têm uma grande importância no tocante à manutenção do poder político.
O problema imediato, porém, é compreender os processos sociais mediante os
quais suas qualidades objetivas são estabelecidas. Com isso, podemos avaliar melhor
a afirmação de que, a partir dos anos 70, vem ocorrendo algo vital para a nossa
experiência do espaço e do tempo que provocou a virada para o pós-modernismo.
208
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Essa questão geral envolve uma outra: considerar como práticas e "discursos"
temporais e espaciais bem estabelecidos são "usados" e "trabalhados" na ação
social. Como, por exemplo, a grade de práticas espaciais ou a tipologia do tempo
social adquirem um conteúdo de classe, de gênero, ou outro conteúdo social numa
dada situação histórica? As regras do senso comum que definem o "tempo e espaço para tudo" por certo são usadas para conseguir e reproduzir distribuições particulares de poder social (entre classes, entre mulheres e homens etc.). Essa questão, no entanto, não é independente da primeira. Lutas pelo poder frustradas (por
parte das mulheres, dos trabalhadores, dos povos colonizados, das minorias étnicas, dos imigrantes etc.) no âmbito de um conjunto de regras determinado geram
boa parte da energia social necessária à mudança dessas regras. Em suma, as
mudanças nas qualidades objetivas do espaço e do tempo podem ser, e com freqüência são, efetuadas por meio da luta social.
Com base nisso, farei um breve exame (empregando muitos elementos já publicados em Harvey, 1985a, capítulo 2, e 1985b, capítulo 1) das relações entre o
dinheiro, o espaço e o tempo como fontes interligadas de poder social. Começo
com o vínculo mais simples. O dinheiro mede o valor, mas, se começarmos perguntando o que constitui o valor, verificaremos ser impossível definir o valor sem
dizer alguma coisa sobre como é alocado o tempo do trabalho social. "Economia
de tempo:", diz Marx (1973,173), "a isso se resume, em última instância, toda
economia." Inversamente, embora o dinheiro represente tempo de trabalho social,
a ascensão da forma-dinheiro moldou o significado do tempo de maneiras importantes e específicas. Le Goff (1980) assinala, por exemplo, que o alargamento da
esfera monetária da circulação e a organização das redes comerciais no espaço no
início do período medieval forçaram o mercador a construir "uma medida de
tempo mais adequada e previsível para a conduta organizada dos negócios". Mas
observe-se a implicação do espaço nesse argumento. O mercador medieval só
descobriu o conceito fundamental do "preço do tempo" no curso da exploração do
espaço. Como o comércio e troca envolvem movimento espacial, foi o tempo
tomado por esse movimento espacial que ensinou o mercador a vincular os preços,
e, portanto, a própria forma-dinheiro, ao tempo de trabalho (cf. Landes, 1983, 72).
Há duas decorrências gerais. Em primeiro lugar, a progressiva monetização
das relações na vida social transforma as qualidades do tempo e do espaço. A
definição de um "tempo e um lugar para tudo" muda necessariamente, formando
uma nova estrutura de promoção de novos tipos de relações sociais. Os mercadores medievais, por exemplo, ao construírem uma melhor medida do tempo "para
a conduta organizada dos negócios", promoveram uma "modificação fundamental
na medida do tempo que representou, na realidade, uma mudança do próprio
tempo". Simbolizados pelos negócios e sinos que chamavam os trabalhadores para
trabalhar e os mercadores para comerciar, afastados dos ritmos "naturais" da vida
agrária e divorciados das significações religiosas, os mercadores e mestres criaram
uma nova "rede cronológica" em que a vida cotidiana foi aprisionada. A nova
definição do tempo não deixou de ser contestada pela autoridade religiosa nem
pelos trabalhadores convocados a aceitar as novas regras de disciplina temporal.
"Essas estruturas mentais em evolução e sua expressão material", conclui Le Goff,
"estavam profundamente implicadas nos mecanismos da luta de classes." Ironica-
a
TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL
209
mente, as explorações do calendário e da medida do tempo, que tinham sido promovidas pelas ordens monásticas para impor a disciplina religiosa, foram apropriadas pela burguesia nascente como um recurso para organizar e disciplinar as
populações das cidades medievais em termos de uma disciplina de trabalho bem
secular recém-descoberta. "Horas iguais" na cidade, comenta Landes (1983, 78),
"anunciavam a vitória de uma nova ordem cultural e econômica."
Do mesmo modo, o mapeamento do mundo abriu caminho para que se considerasse o espaço algo disponível à apropriação para usos privados. O mapeamento
também se revelou bem pouco neutro ideologicamente. Helgerson (1986), por exemplo, alega que a coleção de Christopher Saxton de mapas rurais da Bretanha,
publicada em 1579, não apenas permitiu que os ingleses, pela primeira vez, tomas-,
sem "uma posse conceitual e visual efetiva do reino físico em que viviam", como
também fortaleceu o sentido de poderes individuais e locais num quadro de lealdades nacionais, tudo "às custas da identidade baseada na lealdade de dinastia".
Mas se os poderes dinásticos consideravam o comércio uma fonte do poder monetário de que precisavam para perseguir seus objetivos políticos e militares (bem
como sua paixão pelo consumo), era-lhes necessário iniciar a representação racional do espaço e do tempo que sustentasse o poder da classe (os mercadores) que
terminaria por suplantá-los. A longo prazo, com efeito, as autoridades estatais
tinham poucas opções. O custo da ignorância cartográfica - tanto em termos
militares como na troca e no comércio - era tão grande que o incentivo da busca
de bons mapas venceu todas as reservas. "Na competição internacional pelo acesso
às riquezas das Índias", observa Landes (1983, 110), "mapas eram dinheiro, e os
agentes secretos de potências desejosas de obtê-los pagavam em ouro por boas
cópias dos padrons portugueses cuidadosamente guardados."
Outra implicação, em certos aspectos mais difícil, é que as modificações das
qualidades do espaço e do tempo podem resultar da perseguição de objetivos
monetários. Se o dinheiro não tem um sentido independente do tempo e do espaço,
sempre é possível buscar o lucro (ou outras formas de vantagem) alterando os
modos de uso e de definição do tempo e do espaço. Essa tese pode ser explorada
de maneira consistente no contexto da busca de lucros que ocorre na forma padrão
de circulação do capital. A troca de mercadorias materiais envolve a mudança de
localização e o movimento espacial. Todo sistema complexo de produção envolve
a organização espacial (mesmo que esta se restrinja à fábrica ou escritório). Vencer
essas barreiras espaciais custa tempo e dinheiro. Por conseguinte, a eficiência na
organização e no movimento espaciais é uma questão importante para todos os
capitalistas. O tempo de produção, associado com o t empo de circulação da troca,
forma o conceito do "tempo de giro do capital". Este também é uma magnitude de
importância extrema. Quanto mais rápida a recuperação do capital posto em circulação, tanto maior o lucro obtido. As definições de "organização espacial eficiente" e de "tempo de giro socialmente necessário" são formas fundamentais que
servem de medida à busca do lucro - e ambas estão sujeitas a mudança.
Consideremos, em primeiro lugar, o tempo de giro do capital. Há um incentivo
onipresente para a aceleração, por parte de capitalistas individuais, do seu tempo
de giro com relação à média social, e para fazê-lo de modo a promover uma
tendência social na direção de tempos médios de giro mais rápidos. O capitalismo,
210
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
como veremos, tem sido caracterizado, devido a isso, por contínuos esforços de
redução dos tempos de giro, acelerando assim processos sociais, ao mesmo tempo
em que diminui os horizontes temporais da tomada de decisões significativa. Há,
contudo, algumas barreiras a essa tendência - na rigidez da produção e das habilidades de trabalho, no capital fixo que deve ser amortizado, nas fricções do
mercado, nas reduções do consumo, nos pontos de estrangulamento de circulação
do dinheiro etc. Há toda uma história de inovações técnicas e organizacionais
aplicadas à redução dessas barreiras- que envolvem tudo, da produção em linha
de montagem (de carros ou de brinquedos a pilha) e da aceleração de processos
físicos (fermentação, engenharia genética) à obsolescência planejada no consumo (a
mobilização da moda e da publicidade para acelerar a mudança), ao sistema
creditício, aos bancos eletrônicos etc. É nesse contexto que a adaptabilidade e flexibilidade dos trabalhadores se tornam vitais para o desenvolvimento capitalista.
Os trabalhadores, em vez de adquirirem uma habilidade para toda a vida, podem
esperar ao menos um surto, senão muitos, de desabilitação e reabilitação no curso
da vida. A destruição e reconstrução acelerada das habilidades dos trabalhadores
foram, como vimos na Parte 11, uma característica central da passagem do fordismo
para os modos flexíveis de acumulação.
O efeito geral é, portanto, colocar no centro da modernidade capitalista a aceleração do ritmo dos processos econômicos e, em conseqüência, da vida social. Mas
essa tendência é descontínua, pontuada por crises periódicas, porque os investimentos fixos em instalações e equipamentos, bem como em formas organizacionais
e habilidades de trabalho, não podem ser modificados com facilidade. A implantação de novos sistemas tem de esperar a passagem do tempo de vida "natural"
da fábrica e do trabalhador, ou empregar o processo de "destruição criativa" que
se baseia na desvalorização ou destruição forçadas de ativos antigos para abrir
caminho aos novos. Como isso implica uma perda de valor mesmo para os capitalistas, poderosas forças sociais se opõem a esse processo.
Quando as condições de acumulação são relativamente fáceis, o incentivo para
a aplicação dessas inovações é um tanto fraco. Mas, em épocas de dificuldades
econômicas e de intensificação da concorrência, capitalistas individuais são obrigados a acelerar o giro do seu capital; quem é mais capaz de intensificar ou acelerar
a produção, a comercialização etc. tem melhores condições de sobrevivência. Portanto, as modernizações que afetam o tempo de giro não são implantadas numa
taxa uniforme. Elas tendem a agrupar-se principalmente em períodos de crise.
Voltarei a explorar (capítulo 17) essa tese no contexto da aceleração como resposta
às crises capitalistas a partir de 1972.
Mas como os "momentos" são "os elementos do lucro" (Marx, 1967, vol. 1,
233), é o domínio do tempo de trabalho dos outros que dá aos capitalistas o poder
inicial de se apropriar dos lucros para si; as lutas entre proprietários do trabalho
e do capital em torno do uso do tempo e da intensidade do trabalho são endêmicas.
Elas remontam, como concordam tanto Le Goff como E. P. Thompson (1967), ao
menos ao período medieval. Marx observa que a luta sobre a duração da jornada
de trabalho começou na Inglaterra elizabetana, quando o Estado legislou um aumento da duração da jornada de trabalho costumeira para trabalhadores recém-expulsos da terra por uma violenta expropriação - e, em conseqüência, que ten-
TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL
211
diam à instabilidade, à indisciplina e à itinerância. O encarceramento dos desempregados ao lado dos loucos (que Marx acentua e Foucault transforma num livro
inteiro) foi apenas um dos muitos meios de controle da força de trabalho. "Novos
hábitos de trabalho foram formados, e uma nova disciplina temporal, imposta",
confirma Thompson, ao longo de várias gerações, tendo sido forjados sob a pressão
de sincronização da divisão social e detalhada do trabalho e de maximização da
extração de tempo de trabalho excendente do trabalhador (a base do lucro).
Isso deu origem à "paisagem familiar do capitalismo industrial, com a folha de
ponto, o relógio, os informantes e as multas". A batalha em tomo de minutos e
segundos, do ritmo e da intensidade das escalas de trabalho, da vida de trabalho
(e dos direitos de aposentadoria), da semana e do dia de trabalho (com direitos a
"tempo livre"), do ano de trabalho (e dos direitos a férias pagas), foi, e continua
a ser, travada com bastante regularidade. Os trabalhadores aprenderam a reagir
dentro dos limites do sentido recém-intemalizado de tempo:
A primeira geração de trabalhadores da fábrica aprendeu com seus mestres a
importância do tempo; a segunda formou seus comitês de redução do tempo
de trabalho no movimento das dez horas; a terceira geração lutou por hoxas
extras pagas com um valor cinqüenta por cento mais alto. Os trabalhadores
tinham aceito as categorias dos seus empregadores e aprendido a reagir no seu
â:::nbito. Eles aprenderam a lição de que tempo é dinheiro bem demais
(Thompson, 1967, 90).
Ainda hoje, as tentativas de acelerar ou intensificar os processos de trabalho
produzem algumas das mais fortes e duras lutas entre os trabalhadores e a administração. Estratagemas como o trabalho por peça ou as bonificações de produção
são considerados pela administração como sucessos parciais, porque os trabalhadores com freqüência estabelecem suas próprias normas de trabalho, que, por sua
vez, regulam o ritmo da produção. Os confrontos diretos em tomo da aceleração
e da intensificação, dos intervalos e escalas, são muitas vezes destrutivos demais
para serem iniciados com facilidade. A velocidade do movimento da linha de
montagem, a robotização e os sistemas de controle automatizados oferecem meios
mais insidiosos de controle indireto, mas raramente podem ser alterados além de
uma margem sem provocar protestos dos trabalhadores. Porém, apesar dessa resistência, a maioria das escalas de trabalho tem uma organização extremamente
rígida, e a intensidade e velocidade da produção têm sido organizadas, em larga
medida, de maneira a favorecer antes o capital do que o trabalho.
Os telefonistas da AT&T assinam um contrato segundo o qual devem atender
um telefonema a cada 28 segundos, os motoristas de caminhão se impõem extremos de resistência e quase morrem tomando pílulas para permanecer acordados,
os controladores de vôo passam por extremos de tensão, os operários da linha de
produção usam drogas e álcool, e isso faz parte de um ritmo diário de trabalho
fixado pela obtenção de lucros, e não pela elaboração de escalas de trabalho humanas. As compensações, como férias pagas, salários mais altos, semanas de trabalho
menores, aposentadoria antecipada, são, com demasiada freqüência, como observou há muito tempo Marx, recuperadas pelo capital na forma de uma intensifica-
212
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
ção e aceleração ainda maiores das tarefas. Mas o equilíbrio das forças de classe
não se mantém com facilidade. Quando a fábrica da General Motors em Lordstown
foi implantada no começo dos anos 70, uma força de trabalho jovem e determinada
combateu com unhas e dentes a aceleração e o controle automatizado. No final da
década, contudo, boa parte da resistência tinha cedido sob as pressões de uma alta
taxa de desemprego local, de temores de fechamento da fábrica e de cooptação
para novos ritmos de trabalho.
Podemos descobrir processos semelhantes e chegar a conclusões similares no
tocante à experiência do espaço. O incentivo à criação do mercado mundial, para
a redução de barreiras espaciais e para a aniquilação do espaço através do tempo,
é onipresente, tal como o é o incentivo para racionalizar a organização espacial em
configurações de produção eficientes (organização serial da divisão detalhada do
trabalho, sistemas de fábrica e de linha de montagem, divisão territorial do trabalho e aglomeração em grandes cidades), redes de circulação (sistemas de transportes e comunicação) e de consumo (formas de uso e de manutenção das residências,
organização comunitária, diferenciação residencial, consumo coletivo nas cidades).
As inovações voltadas para a remoção de barreiras espaciais em todos esses aspectos têm tido imensa significação na história do capitalismo, transformando-a numa
questão deveras geográfica - as estradas de ferro e o telégrafo, o automóvel, o
rádio e o telefone, o avião a jato e a televisão, e a recente revolução das telecomunicações são casos em tela.
Mas também aqui o capitalismo encontra múltiplas contradições. As barreiras
espaciais só podem ser reduzidas por meio da produção de espaços particulares
(estradas de ferro, auto-estradas, aeroportos, centrais telefônicas etc.). Além disso,
uma racionalização espacial da produção, da circulação e do consumo num dado
ponto de tempo pode não ser adequada à acumulação do capital num ponto ulterior do tempo. A produção, a reestruturação e o crescimento da organização espacial são muito problemáticos e caros, sendo prejudicados pela necessidade de vastos investimentos em infra-estruturas físicas que não podem ser levadas para outro
lugar e em infra-estruturas sociais que sempre mudam com lentidão. O contínuo
incentivo para os capitalistas individuais se mudarem para locais de custo mais
baixo ou mais lucrativos também é prejudicado pelos custos da mudança. Em
conseqüência, a intensificação da concorrência e o surgimento de crises tendem a
acelerar o ritmo de reestruturação espacial por intermédio da desvalorização seletiva e localizada de ativos.
Essas tendências e tensões gerais devem ser situadas, no entanto, no âmbito
dos interesses divergéntes e da luta de classes, porque é quase invariável que as
mudanças no tempo ou na organização espacial redistribuam o poder social ao
modificarem as condições do ganho monetário (na forma de salários, lucros, ganhos de capital etc.). O domínio do espaço sempre foi um aspecto vital da luta de
classes (e intraclasse). Em 1815, por exemplo, Nathan Rothschild usou sua rede de
informações sem rival para obter as primeiras notícias da vitória de Wellington
sobre Napoleão em Waterloo, vendeu de imediato suas ações e provocou um pânico
no mercado que lhe permitiu fazer todo tipo de barganhas, ganhando assim "a
mais rápida fortuna não ganha registrada" (Davidson e Rees-Mogg, 1988).
TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL
213
Os capitalistas, além disso, não têm aversão pelo uso de estratégias espaciais
na competição entre si. A luta entre os diversos interesses vinculados às estradas
de ferro no século XIX oferece abundantes exemplos dessa prática; ao mesmo
tempo, Tarbell (1904, 146) descreve Rockefeller "debruçado sobre um mapa e, com
precisão militar, [planejando] a captura de posições estratégicas no mapa das refinarias de petróleo da Costa Leste". O domínio das redes e espaços de mercado
permanece sendo um alvo corporativo fundamental, e muitas batalhas amargas
por uma parcela de mercado são lutadas com a precisão de uma campanha militar
para ocupar território e espaço. A informação geográfica precisa (incluindo a informação privilegiada sobre tudo, do desenvolvimento político à produção agrícola
prevista ou às lutas trabalhistas) se torna uma mercadoria vital nessas batalhas.
Também por essas razões, a capacidade de influenciar a produção de espaço
é um importante meio de aumento do poder social. Em termos materiais, isso significa
que quem pode afetar a distribuição espacial de investimentos em transportes e comunicações e em infra-estruturas físicas e sociais, ou a distribuição territorial de forças
administrativas, políticas e econômicas, pode muitas vezes obter recompensas
materiais. A gama de fenômenos a ser considerada aqui é na verdade bem ampla
- ela varia da ação de um vizinho que incita o outro a ajudar a melhorar o valor
das propriedades locais pintando a cerca ao interesse dos empreiteiros militares na
exacerbação de tensões geopolíticas (como a Guerra Fria) como meio de garantir
contratos de armamentos maiores e melhores, passando por pressões sistemáticas,
feitas por incorporadores de terras e propriedades, no sentido de instalar canalizações de água e esgoto que aumentem o valor das terras que detêm.
A influência sobre os modos de representação do espaço, bem como sobre os
espaços de representação, também pode ter importância. Por exemplo, se os trabalhadores puderem ser persuadidos de que o espaço é um campo aberto de operação para o capital, mas um terreno fechado para eles mesmos, uma vantagem
crucial é conseguida pelos capitalistas. Os trabalhadores, ao concederem ao capital
maiores poderes de mobilidade (ver a Parte II), estariam mais dispostos a negociar
diante de ameaça da fuga de capitais do que o estariam caso estivessem convencidos de que os capitalistas não poderiam sair. Se, para tomar um exemplo do
campo da representação espacial, ameaças geopolíticas puderem ser parcialmente
produzidas com a ajuda dos tipos apropriados de projeção cartográfica (que fundem a imagem de um "império do mal" como a Rússia com uma posição geopolítica
ameaçadora), quem comanda as técnicas de representação obterá um considerável
poder. Se uma imagem ou mapa vale mil palavras, o poder nos reinos da representação pode terminar tendo tanta relevância quanto o poder sobre a materialidade
da própria organização espacial.
Essas considerações há muito foram incorporadas como determinantes vitais
da dinâmica da luta de classes. Creio podermos invocar aqui uma regra simples:
quem domina o espaço sempre pode controlar a política de lugar, mesmo que, e
isso é um corolário crucial, primeiro assuma o controle de algum lugar para controlar o espaço. As forças relativas dos movimentos da classe operária e da burguesia no tocante ao controle do espaço há muito são um importante elemento constituinte das relações de poder entre eles. John Foster, em Class struggle in the industrial revolution, por exemplo, conta vários incidentes nos quais proprietários locais
214
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
de moinhos encontraram dificuldades para controlar sua força de trabalho porque
as forças locais da lei e da ordem eram propensas a simpatizar (mesmo que somente por razões de parentesco) com os militantes, e porque era difícil pedir ajuda
externa com a velocidade necessária.
Por outro lado, na grande greve das estradas de ferro que abalou a Costa Leste
dos Estados Unidos, a história foi diferente. Os proprietários das estradas também
enfrentaram uma milícia local que relutava em agir. Mas o telégrafo não apenas
permitiu pedir assistência federal com grande rapidez, mas também fácilitou a
transmissão de falsas mensagens segundo as quais os trabalhadores tinham voltado ao trabalho em St. Louis ou Baltimore e a greve estava fracassando em diferentes pontos ao longo da linha. Embora a imprensa tenha tido um importante papel
progressista durante esse incidente (sendo bem mais pró-trabalho então do que o
é agora), o poder superior de controle do espaço deu aos capitalistas uma vantagem adicional no que era uma luta pelo poder, desigual mas tensa.
A diferença no poder de mobilidade geográfica entre o capital e o trabalho não
se manteve constante ao longo do tempo, nem tem uma distribuição regular entre
diferentes facções de um e de outro. Quando tanto capitalistas como trabalhadores
têm importantes ativos fixados e imobilizados no espaço, nenhum dos lados tem
boas condições para usar contra o outro forças de mobilidade geográfica. Os habilidosos artesãos da indústria do ferro nos primeiros anos da Revolução Industrial
percorriam bastante a Europa e usavam suas forças superiores de mobilidade
geográfica em sua própria vantagem financeira. Os proprietários de casas de nossos dias, cheios de dívidas, em situações de mercado imobiliário fraco e com fortes
interesses sociais em permanecer num ambiente particular, são muito mais vulneráveis. Embora alguns capitalistas sejam claramente mais móveis do que outros,
todos são forçados em alguma medida a "fincar raízes", e muitos, como resultado
disso, mal podem suportar uma mudança de localização. Há, contudo, várias facetas
da condição dos capitalistas que com freqüência reforçam o seu poder. A acumulação lhes dá meios de expansão, e as opções sempre são expandir in situ ou
instalar uma fábrica subsidiária em outro lugar. O incentivo para mudar aumenta
ao longo do tempo simplesmente em virtude dos custos de congestão associados
com a expansão nos locais originais.
A competição intercapitalista e a fluidez do capital-dinheiro com relação ao
espaço também forçam racionalizações geográficas em termos de localização como
parte da dinâmica da acumulação; esses processos muitas vezes são capturados
pela dinâmica da luta de classes. Gordon (1978) registra, por exemplo, casos de
suburbanização da indústria da Nova Inglaterra no começo do século cujo propósito direto era evitar uma organização mais forte dos trabalhadores nas cidades
maiores. Numa época mais recente, sob condições de competição acirrada, mudança tecnológica e rápida reestruturação, podem ser citados inúmeros casos de decisões de relocalização industrial tomadas com o objetivo de conseguir uma melhor
disciplina do trabalho. Se desejarem evitar a sindicalização nos Estados Unidos,
aconselhou um recente relatório de um consultor, os capitalistas deverão tentar
dividir seus processos de trabalho em componentes que não empreguem mais de
cinqüenta trabalhadores, instalando suas unidades separadas por ao menos trezen-
TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL
215
tos quilômetros. As condições de acumulação flexível aumentam cada vez mais a
possibilidade de exploração dessas opções.
Antes do advento da estrada de ferro e do telégrafo, as forças do capital e do
trabalho em termos de capacidade de domínio do espaço não diferiam de maneira
radical. A burguesia temia de fato a ameaça revolucionária representada por esse
poder. Quando, por exemplo, os ludditas saíram quebrando máquinas em muitos
incidentes isolados, ou quando trabalhadores agrícolas simultaneamente começaram a queimar montes de feno e a usar outras formas de protesto em muitos
lugares diferentes da Inglaterra em 1830, a burguesia ficou disposta demais a aceitar a teoria de que figuras misteriosas como Ned Ludd ou o Capitão Swing estavam percorrendo despercebidos a terra, fomentando o descontentamento e os sentimentos revolucionários por onde passavam. A burguesia logo aprendeu a usar
seus vínculos comerciais e seu controle do espaço superiores como meios de estabelecer o controle social. Em 1848, por exemplo, a burguesia francesa usou seus
vínculos comerciais para mobilizar uma milícia petit bourgeois da França provincial
para esmagar a revolução em Paris (uma tática que seria repetida, com efeitos
ainda mais horrendos, na supressão da Comuna de Paris). O controle seletivo
sobre os meios rápidos de comunicação foi usado com grandes resultados para
combater o movimento cartista na Inglaterra nos anos 1840 e para suprimir a
agitação da classe trabalhadora na França depois do coup d'état de 1851. "A suprema glória de Napoleão III", escreveu Baudelaire, "terá sido provar que qualquer
pessoa pode governar uma grande nação assim que obtém o controle do telégrafo
e da imprensa nacional."
O movimento operário também acumulou percepções semelhantes. A Primeira
Internacional não somente buscou unir trabalhadores de muitos lugares e indústrias diferentes, que trabalhavam sob relações sociais bem distintas entre si, numa
causa comum, como começou, nos anos 1860, a transferir fundos e ajuda material
de um espaço de luta de classes para outro. Se a burguesia podia dominar o espaço
para os seus próprios interesses de classe, o movimento operário também o podia.
E na medida em que a Primeira Internacional dava a impressão de deter um poder
genuíno, a burguesia tinha todas as razões para temê-la (como de fato ocorreu), tal
como tinha temido as misteriosas ameaças do Capitão Swing décadas antes. A
capacidade de vincular os trabalhadores numa ação unida ao longo do espaço
sempre foi uma importante variável na luta de classes. Marx parecia acreditar em
alguma medida que o amontoamento de trabalhadores nas fábricas e nas cidades
do capitalismo industrial forneceria por si mesmo uma base de poder geopolítico
suficiente para a ação de classe. Mas todo o impulso da geopolítica da Primeira
Internacional foi ampliar essa base do modo mais sistemático possível.
Com efeito, é muito raro que a ação de classe não tenha de se adaptar às suas
restrições geográficas específicas. Por exemplo, na prolongada greve dos mineiros
britânicos de 1984, os chamados "piquetes voadores", que se moviam rapidamente
de um lugar para outro, criaram um agudo problema para os poderes estatais, que
tiveram de conceber táticas igualmente dinâmicas para dar-lhes uma resposta. A
legislação destinada a proibir a ação industrial secundária e os piquetes voadores
pretendia conter o poder da classe trabalhadora no espaço e enfraquecer o potencial de ação de classe coerente ao confiná-la a um local.
216
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
O esmagamento da Comuna de Paris e a greve das estradas de ferro norte-americanas de 1877 logo demonstraram, no entanto, que o domínio superior do
espaço estava de modo geral com a burguesia. Não obstante, o movimento operário persistiu em sua visão internacionalista (se bem que com uma organização real
fraca) até a véspera da Primeira Guerra Mundial, quando a Segunda Internacional
se dividiu essencialmente em torno da questão lealdade à nação (espaço) versus
lealdade aos interesses (históricos) de classe. A vitória da primeira corrente não
apenas levou trabalhadores a combater em ambos os lados daquilo que a maioria
reconhecia ser uma guerra entre capitalistas, como também iniciou uma fase da
história do movimento operário em que os interesses proletários sempre terminavam, apesar da retórica, servindo aos interesses nacionais.
Na verdade, os movimentos da classe trabalhadora costumam ser melhores na
organização e no controle do lugar do que em dominar o espaço. As várias revoluções que eclodiram na Paris do século XIX fracassaram devido à incapacidade de
consolidar o poder nacional por meio de uma estratégia espacial que dominasse o
espaço nacional. Movimentos como a greve geral de Seattle de 1918 (quando os
trabalhadores assumiram de fato o controle da cidade por quase uma semana), o
levante de São Petersburgo de 1905, bem como a longa e detalhada história do
socialismo municipal, da organização comunitária em torno da greve (como a greve
de Flint de 1933) e os levantes urbanos dos Estados Unidos nos anos 60, o ilustram.
Por outro lado, a simultaneidade das ações revolucionárias em diferentes localidades, como em 1848 ou 1968, espalha o medo em toda classe dirigente precisamente
porque seu domínio superior do espaço é ameaçado. São essas as situações em que
o capitalismo internacional desenterra o espectro de uma conspiração internacional
muito danosa para os interesses nacionais, invocando com freqüência o poder
destes últimos para preservar sua capacidade de domínio do espaço.
É ainda mais interessante a resposta política a esse poder latente de mobilização local operária e revolucionária. Uma das principais tarefas do Estado é situar
o poder nos espaços controlados pela burguesia, privando dele os espaços que os
movimentos de oposição têm mais condições de controlar. Esse foi o princípio que
levou a França a negar o autogoverno a Paris até que o total embourgeoisement da
cidade lhe permitiu tornar-se o feudo da política direitista de Chirac. Essa mesma
estratégia esteve presente na abolição promovida por Thatcher de governos metropolitanos como o Grande Conselho de Londres (controlado por uma esquerda
marxista no período 1981-1985). Ela também se manifestou na lenta erosão dos
poderes urbanos e municipais dos Estados Unidos da "era progressista" em que o
socialismo municipal parecia ser uma real possibilidade, tornando a federalização
dos poderes estatais mais aceitável para os capitalistas que produziam em larga
escala. É nesse contexto que a luta de classes também assume seu papel global.
Henri Lefebvre o explica da seguinte maneira:
Hoje, mais do que nunca, a luta de classes se inscreve no espaço. Com efeito,
somente ela evita que o espaço abstrato assuma o controle de todo o planeta
e apague todas as diferenças. Apenas a luta de classes é dotada da capacidade
de diferenciar, de gerar diferenças que não sejam intrínsecas ao crescimento
TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL
217
econômico ... isto é, diferenças que não sejam induzidas por esse crescimento
nem aceitáveis para ele.
Toda a história da organização territorial (ver Sack, 1987), da colonização e do
imperialismo, do desenvolvimento geográfico desigual, das contradições urbano-rurais, assim como do conflito geopolítico, comprova a importância dessas lutas
na história do capitalismo.
Se o espaço deve ser de fato pensado como um sistema de "contêineres" do
poder social (para usar a imagem de Foucault), segue-se que a acumulação do
capital desconstrói perpetuamente esse poder social ao dar nova forma às suas
bases geográficas. Dito de outra maneira, toda luta para reconstituir relações de
poder é uma batalha para reorganizar as bases espaciais destas. É à luz disso que
podemos melhor compreender "por que o capitalismo reterritorializa sem parar
com uma mão o que estava desterritorializando com a outra" (Deleuze e Guattari,
1984).
Movimentos de oposição às destruições do lar, da comunidade, do território e
da nação pelo fluxo incessante do capital são legião. Mas também o são os que se
opõem às rígidas restrições de uma expressão puramente monetária do valor e da
organização sistematizada do espaço e do tempo. E, o que é mais importante, esses
movimentos vão bem além dos domínios da luta de classes em todo sentido estrito.
A disciplina inflexível dos horários de trabalho, dos direitos de propriedade organizados de maneira imutável e de outras formas de determinação espacial gera
amplas resistências por parte de pessoas que querem eximir-se dessas restrições
hegemônicas do mesmo modo como outros recusam a disciplina do dinheiro. E, de
quando em vez, essas resistências individuais podem tornar-se movimentos sociais
que visam liberar o espaço e o tempo de suas materializações vigentes e construir
um tipo alternativo de sociedade em que o valor, o tempo e o dinheiro sejam
compreendidos de novas formas bem distintas.
Movimentos de toda espécie- religiosos, místicos, sociais, comunitários, humanitários etc. - se definem diretamente em termos de um antagonismo ao poder
do dinheiro e das concepções racionalizadas do espaço e do tempo sobre a vida
cotidiana. A história desses movimentos utópicos, religiosos e comunitários atesta
bem o vigor desse antagonismo. De fato, boa parte da cor e do fermento dos
movimentos sociais, da vida e da cultura das ruas e das práticas artísticas e outras
práticas culturais deriva precisamente da infinita variedade da textura de oposições às materializações do dinheiro, do espaço e do tempo em condições de hegemonia capitalista.
Mas todos esses movimentos sociais, por mais bem articulados que sejam seus
objetivos, se chocam com um paradoxo aparentemente irresolvível. Porque não
somente a comunidade do dinheiro, aliado com um espaço e um tempo racionalizados, os define num sentido oposicional, como também os movimentos têm de
enfrentar a questão do valor e de sua expressão, bem como da organização necessária do espaço e do tempo apropriada à sua própria reprodução. Ao fazê-lo, eles
se abrem necessariamente ao poder dissolutivo do dinheiro, assim como às cambiantes definições de espaço e de tempo que surgem por meio da dinâmica da
circulação do capital.
218
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Em suma, o capital continua a dominar, e o faz, em parte, graças ao domínio
superior do espaço e do tempo, mesmo quando os movimentos de oposição obtêm
por algum tempo o controle de um lugar particular. As "alteridades" e "resistências regionais" que a política pós-moderna enfatiza podem florescer num lugar
particular. Mas, com muita freqüência, estão sujeitas ao poder que o capital tem
sobre a coordenação do espaço fragmentado universal e da marcha do tempo
histórico global do capitalismo, que está além do alcance de qualquer delas.
Algumas conclusões gerais podem ser propostas agora. As práticas temporais
e espaciais nunca são neutras nos assuntos sociais; elas sempre exprimem algum
tipo de conteúdo de classe ou outro conteúdo social, sendo muitas vezes o foco de
uma intensa luta social. Isso se torna duplamente óbvio quando consideramos os
modos pelos quais o espaço e o tempo se vinculam com o dinheiro e a maneira
como esse vínculo se organiza de modo ainda mais estreito com o desenvolvimento do capitalismo. Tanto o tempo como o espaço são definidos por intermédio da
organização de práticas sociais fundamentais para a produção de mercadorias.
Mas a força dinâmica da acumulação (e superacumulação) do capital, aliada às
condições da luta social, torna as relações instáveis.
Em conseqüência, ninguém sabe bem quais podem ser "o tempo e o lugar certo
para tudo". Parte da insegurança que assola o capitalismo como formação social
vem dessa instabilidade dos princípios espaciais e temporais em torno dos quais
a vida social poderia ser organizada (quando não ritualizada à feição das sociedades tradicionais). Durante fases de troca máxima, as bases espaciais e temporais de
reprodução da ordem social estão sujeitas à disrupção mais severa. Em capítulos
subseqüentes, demonstrarei ser exatamente nesses momentos que ocorrem as grandes mudanças nos sistemas de representação, nas formas culturais e no sentimento
filosófico.
15
O tempo e o espaço
do projeto do Iluminismo
11
A seguir, vou me referir com freqüência ao conceito de compressão do tempo-espaço". Pretendo indicar com essa expressão processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes
radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos. Uso a
palavra "compreensão" por haver fortes indícios de que a história do capitalismo
tem se caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que
venceu as barreiras espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher
sobre nós. O tempo necessário para cruzar o espaço (ilustração 3.1) e a forma como
costumamos representar esse fato para nós mesmos (ilustração 3.2) são indicadores
úteis do tipo de fenômeno que tenho em mente. À medida que o espaço parece
encolher numa aldeia global" de telecomunicações e numa "espaçonave terra" de
interdependências ecológicas e econômicas - para usar apenas duas imagens
conhecidas e corriqueiras-, e que os horizontes temporais se reduzem a um ponto
em que só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a
lidar com um avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e
temporal.
A experiência da compressão do tempo-espaço é um desafio, um estímulo,
uma tensão e, às vezes, uma profunda perturbação, capaz de provocar, por isso
mesmo, uma diversidade de reações sociais, culturais e políticas. Deve-se compreender "compressão" como um termo que se aplica a todo estado de coisas precedente. A seguir, farei uma consideração histórica do assunto usando o caso europeu (de maneira um tanto etnocêntrica) como exemplo. Neste capítulo, vou examinar brevemente a longa transição que preparou o caminho para o pensamento
iluminista sobre o espaço e o tempo.
Nos mundos (e uso o plural propositalmente) relativamente isolados do feudalismo europeu, o lugar assumiu um sentido legal, político e social definido, indicativo
de uma autonomia relativa das relações sociais e da comunidade dentro de fronteiras territoriais fixadas aproximadamente. No âmbito de cada mundo conhecível,
a organização espacial refletia uma confusa sobreposição de obrigações e direitos
econômicos, políticos e legais. O espaço exterior era mal apreendido e, em geral,
conceituado como uma cosmologia misteriosa povoada por alguma autoridade
externa, hastes celestiais ou figuras mais sinistras do mito e da imaginação. As
qualidades centradas finitas do lugar (um território intricado de interdependência,
obrigação, vigilância e controle) equivaliam a rotinas de vida cotidiana honradas
pelo tempo estabelecidas na infinidade e inapreensibilidade do "tempo permanente" (para usar o termo de Gurvitch). O paroquialismo e a superstição medievais
11
220
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
1500-1 840
ar
.
As locomotivas a vapor ai
em média
100 km/h;
barcos vp r, 57 km/h
nos 1950
"
A,;oo,' pc:\:','~7""40 km'
<!!>
Jatos de passageiros: 800-1100 km/h
Ilustração 3.1 O encolhimento do mapa do mundo graças a inovações nos transportes
que "aniquilam o espaço por meio do tempo".
tinham como paralelo uma abordagem "psicofisiológica fácil e hedonista" da representação espacial. O artista medieval "acreditava poder traduzir convincentemente o que tinha diante dos olhos ao representar as sensações que tinha ao caminhar, experimentado estruturas, quase de maneira tátil, a partir de muitas perspectivas distintas, e não de um ponto de vista geral único" (Edgerton, 1976). É interessante que a arte e a cartografia medievais pareçam corresponder à sensibilidade
retratada nas "histórias espaciais" de de Certeau (ver ilustração 3.3).
Havia, é verdade, forças destrutivas em ação nesse mundo feudal - conflitos
de classe, disputas sobre direitos, instabilidades ecológicas, bem como pressões
populacionais, conflitos doutrinais, invasões sarracenas, cruzadas etc. Sobretudo o
progresso da monetização (com seu efeito perturbador sobre a comunidade tradicional) e da troca de mercadorias- no início entre comunidades mas depois por
meio de formas mais independentes de comércio praticadas pelos mercadores sugeria uma concepção de tempo e espaço (ver acima pp. 208-10) inteiramente
diferente da que dominava a ordem feudal.
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
221
A Renascença, no entanto, testemunhou uma reconstrução radical de visões do
espaço e do tempo no mundo ocidental. De uma perspectiva etnocêntrica, as viagens de descoberta produziram um assombroso fluxo de conhecimento acerca de
um mundo mais amplo que teve de ser, de alguma maneira, absorvido e representado; elas indicavam um globo que era finito e potencialmente apreensível. O saber
geográfico se tornou uma mercadoria valiosa numa sociedade que assumia uma
consciência cada vez maior do lucro. A acumulação de riqueza, de poder e de
capital passou a ter um vínculo com o conhecimento personalizado do espaço e o
domínio individual dele. Do mesmo modo, todos os lugares ficaram vulneráveis à
influência direta do mundo mais amplo graças ao comércio, à competição
intraterritorial, à ação militar, ao influxo de novas mercadorias, ao ouro e à prata
etc. Mas, em virtude do desenvolvimento gradativo dos processos que lhe davam
forma, a revolução das concepções de espaço e de tempo se manifestou lentamente.
Regras fundamentais da perspectiva- regras que romperam de maneira radical com as práticas artísticas e arquitetônicas medievais e que viriam a dominar
até o começo do século XX - foram elaboradas na Florença da metade do século
Este é o ano em que o mundo ficou menor.
A L C. T · E L
Ilustração 3.2 Um anúncio da Alcatel de 1987
enfatiza uma imagem popular do globo encolhendo.
222
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Ilustração 3.3 A tradição da cartografia medieval acentua tipicamente
as qualidades sensuais, e não as racionais e objetivas, da ordem espacial:
(em cima) Plan des dimes de Champeaux do século XV e (embaixo) a Vue
de Cavaillon e adjacências, do século XVII.
XV por Brunelleschi e Alberti. Foi uma realização vital da Renascença que moldou
as formas de ver por quatro séculos. O ponto de vista fixo dos mapas e quadros
com perspectiva "é elevado e distante, completamente fora do alcance plástico ou
sensorial". Ele gera um sentimento de espaço "friamente geométrico" e "sistemático", que mesmo assim produz "uma sensação de harmonia com a lei naturat
acentuando assim a responsabilidade moral do homem no âmbito do universo
geometricamente organizado de Deus" (Edgerton, 1976, 114).
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
223
I
Um conceito de espaço infinito permitia que o globo fosse percebido como
totalidade finita sem se questionar, ao menos em teoria, a sabedoria infinita da
divindade. "O espaço infinito é dotado de qualidade infinita", descreveu Giordano
Bruno no final da Renascença, "e, na qualidade infinita, é saudado o ato infinito da
existência" (citado em Kostof, 1985, 537). O cronômetro, que deu força e medida à
idéia da flecha do tempo, também se tornou teoricamente compatível com a sabedoria infinita de Deus mediante a atribuição ao tempo de qualidade infinitas análogas às vinculadas com o espaço. A vinculação tinha imensa importância; ela
significava que a idéia de tempo como "vir-a-ser" (um sentido de tempo muito
humano que também está contido na idéia da flecha do tempo) estava separada do
sentído analítico e "científico" de tempo, baseado numa concepção de infinito
preferida (embora não pelas autoridades em Roma) principalmente por razões
religiosas. A Renascença separou os sentidos de tempo e espaço científicos e supostamente factuais das concepções mais fluidas que poderiam surgir experiencialmente.
As concepções de Giordano Bruno, que prefiguraram as de Galileu e de Newton,
eram na prática tão panteístas que Roma o queimou na estaca como uma ameaça
à autoridade centralizada e ao dogma. Ao fazê-lo, a Igreja reconhecia o desafio bem
significativo que o tempo e os espaço infinitos representavam para sistemas hierarquicamente concebidos de autoridade e de poder baseados num lugar particular
(Roma).
O perspectivismo concebe o mundo a partir do "olho que vê" do indivíduo.
Ele acentua a ciência da óptica e a capacidade das pessoas de representarem o que
vêem como uma coisa de certo modo "verdadeira", em comparação com verdades
sobrepostas da mitologia ou da religião. A ligação entre o individualismo e o
perspectivismo é relevante; ela forneceu o fundamento material eficaz aos princípios cartesianos de racionalidade que foram integrados ao projeto do Iluminismo.
Ela assinalou uma ruptura na prática artística e arquitetônica, tendo substituído as
tradições artesanais e nacionais pela atividade intelectual e pela "aura" do artista,
do cientista ou do empreendor como indivíduo criativo. Há também algumas
evidências para vincular a formulação de regras perspectivistas com as práticas
racionalizadoras que emergiam no comércio, na atividade bancária, na contabilidade, nas trocas e na produção agrícola sob a gerência centralizada da terra (Kostof,
1985, 403-10).
A história dos mapas renascentistas - que assumiram qualidades inteiramente novas de objetividade, praticidade e funcionalidade - é particularmente
reveladora (ver ilustração 3.4). A objetividade na representação espacial veio a ser
um atributo valorizado porque a precisão da navegação, a determinação dos direitos de propriedade da terra (em oposição ao confuso sistema de direitos e obrigações legais qdue caracterizava o feudalismo), as fr.onteira~ política:, ~s direit~s. de
passagem e e transporte etc. passaram a ser um 1mperahvo econom1co e po 1hco.
Muitas representações ·cartográficas para propósitos especiais, tal como os mapas
com guias dos portos (portolanos) usados pelos navegadores e os mapas territoriais
usados pelos proprietários de terra, já existiam, mas a importação do mapa
ptolemaico de Alexandria para Florença por volta de 1400 parece ter desempenhado um papel crucial na descoberta e no uso do perspectivismo na Renascença:
1
·1
224
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Os portolanos não forneciam uma estrutura geométrica para a compreensão do
mundo inteiro. A grade ptolemaica, por outro lado, propunha uma unidade
matemática imediata. Os locais mais distantes podiam ser precisamente fixados uns com relação aos outros por coordenadas imutáveis, de modo que a sua
distância proporcional, bem como os seus relacionamentos direcionais, ficassem evidentes ... O sistema ptolemaico deu aos florentinos um instrumento
cartográfico perfeito e expandível para o acúmulo, a verificação e a correção de
conhecimento geográfico. E, sobretudo, forneceu à geografia os mesmos princípios estéticos de harmonia geométrica que os florentinos exigiam de toda a
sua arte (Edgerton, 1976).
A ligação com o perspectivismo estava no seguinte: ao projetar a grade na qual
situar lugares, Ptolomeu imaginara como o globo como um todo seria visto por um
olho humano que o visse de fora. Isso tem uma série de implicações. A primeira
é a capacidade de ver o globo como totalidade apreensível. Como disse o próprio
Ptolomeu, o alvo "da corografia é lidar separadamente com uma parte do todo",
ao passo que "a tarefa da geografia é apreender o todo em sua justa proporção".
A geografia, e não a corografia, se tomou uma missão da Renascença. Uma segunda implicação é que os princípios matemáticos podiam ser aplicados, tal como na
óptica, a todo o problema da representação do globo numa superfície plana. Como
Ilustração 3.4 A ordenação racional do espaço nos mapas renascentistas da Inglaterra
teve um importante papel na afirmação da posição dos indivíduos diante do território:
o mapa da Ilha de Wight, 1616, ]ohn Speed.
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
225
resultado, parecia que o espaço, embora infinito, era conquistável e contível para
fins de ocupação e ação humanas. O espaço podia ser apropriado na imaginação
de acordo com princípios matemáticos. E foi exatamente nesse contexto que a
revolução da filosofia natural (tão brilhantemente descrita por Koyré- 1957), que
foi de Copérnico a Galileu, e, em última instância, a Newton, iria ocorrer.
O perspectivismo teve reverberações em todos os aspectos da vida social e em
todos os campos da representação. Na arquitetura, por exemplo, ele permitiu a
substituição de estruturas góticas "geradas a partir de fórmulas geométricas misteriosas guardadas em segredo pelo construtor" por uma edificação concebida e
construída "a partir de um plano unitário desenhado sob medida" (Kostof, 1985,
405). Esse modo de pensar podia ser estendido ao planejamento e construção de
cidades inteiras (como Ferrara) segundo um plano unitário semelhante. O
perspectivismo podia ser elaborado de inúmeras maneiras, como, por exemplo, na
arquitetura barroca setecentista, que exprimia "um fascínio comum pela idéia do
infinito, do movimento e da força, bem como pela unidad.e das coisas, que a tudo
abrangia, mas era expansiva". Embora ainda fosse relígiosa em termos de ambição
e de intenção, essa arquitetura teria sido "impensável nos velhos dias, mais simples, anteriores à geometria projetiva, ao cálculo, aos relógios de precisão e à óptica
newtoniana" (Kostof, 1985, 523).
A arquitetura barroca e as fugas de Bach exprimem os conceitos de espaço e
de tempo infinitos que a ciência pós-renascentista desenvolveu com tanto zelo. A
extraordinária força das imagens espaciais e temporais da literatura inglesa da
Renascença também testemunha o impacto desse novo sentido de espaço e de
tempo sobre as modalidades literárias de representação. A linguagem de
Shakespeare, ou de poetas como John Donne e Andrew Marvell, está repleta dessas
imagens. É curioso observar, além disso, que a imagem do mundo como um teatro
("todo o mundo é um palco" representado num teatro chamado "The Globe" tinha
como contrapartida os títulos dados comumente a atlas e mapas (tais como o
Theatre of the Empire of Great Britain e o atlas francês Théâtre français de 1594). Logo
se seguiu a construção de paisagens (rurais e urbanas) segundo princípios do cenário teatral.
Se as experiências espaciais e temporais são veículos primários da codificação
e reprodução de relações sociais (como sugere Bourdieu), uma mudança no modo
de representação daquelas quase certamente gera algum tipo de modificação nestas. Esse princípio ajuda a explicar o apoio que os mapas da Inglaterra renascentista
deram ao individualismo, ao nacionalísmo e à democracia parlamentar em detrimento dos privilégios dinásticos (ver ilustração 3.5). Mas, como assinala Helgerson,
os mapas podiam funcionar com a mesma facilidade como "um apoio imperturbável de um regime monárquico fortemente centralizado", embora Filipe II da Espanha considerasse seus mapas subversivos o bastante para mantê-los a sete chaves
como segredo de Estado. Os planos de Colbert, de uma integração espacial racional
da nação-Estado francesa (que visavam tanto à melhoria das trocas e do comércio
como à eficiência administrativa), são típicos do uso da "racionalidade fria" dos
mapas para fins instrumentais de apoio ao poder estatal centralízado. Afinal, foi
Colbert, na era do Absolutismo francês, que encorajou a Academia Francesa de
Ciências (estabelecida em 1666) e o primeiro membro da grande família de
226
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Ilustração 3.5 A dinastia versus o mapa: o Retrato da Rainha Elizabeth,
de Ditchley, enfatizando o poder da dinastia sobre o indivíduo e a nação tal como
representados pelo mapa da Renascença.
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
227
cartógrafos, Jean Dominique Cassini, a produzirem um mapa coerente e bem organizado da França.
A revolução renascentista dos conceitos de espaço e de tempo assentou os
alicerces conceituais em muitos aspectos para o projeto do Iluminismo. Aquilo que
muitos encaram hoje como a primeira grande manifestação do pensamento modernista considerava o domínio da natureza uma condição necessária da emancipação
humana. Sendo o espaço um "fato" da natureza, a conquista e organização racional
do espaço se tornou parte integrante do projeto modernizador. A diferença, desta
vez, era que o espaço e o tempo tinham de ser organizados não para refletir a
glória de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertação do "Homem" como indivíduo livre e ativo, dotado de consciência e vontade. Foi a essa imagem que surgiria uma nova paisagem. As perspectivas convolutas e os intensos campos de
força construídos para a glória de Deus na arquitetura barroca tiveram de ceder
lugar às estruturas racionalizadas de um arquiteto como Boulée (cujo projeto de
um cenotáfio para Isaac Newton é uma obra modernista visionária).
Há um fio contínuo de pensamento que vai da preocupação de Voltaire com
o planejamento racional da cidade à visão de Saint-Simon de capitais associadas
unificando a terra por meio de vastos investimentos em transporte e comunicações,
e à invocação heróica de Goethe no Fausto-" que haja espaços abertos para muitos
milhões/habitarem, embora não seguros, mas ativos e livres" -, bem como à
realização desses projetos como parte integrante do processo de modernização
capitalista no século XIX. Os pensadores iluministas também queriam dominar o
futuro por meio de poderes de previsão científica, da engenharia social e do planejamento racional e da institucionalização de sistemas racionais de regulação e
controle social. Eles na verdade se apropriaram das concepções renascentistas de
espaço e de tempo, levando-as ao seu limite, na busca da construção de uma
sociedade nova, mais democrática, mais saudável e mais afluente. Na visão iluminista de como o mundo deveria ser organizado, mapas e cronômetros precisos
constituíram instrumentos essenciais.
Privados de todos os elementos de fantasia e de crença religiosa, bem como de
todos os vestígios das experiências envolvidas em sua proporção, os mapas tinham
se tornado sistemas abstratos e estritamente funcionais para a organização factual
de fenômenos no espaço. A ciência da projeção mapográfica e as técnicasde levantamento cadastral os tornaram descrições matematicamente rigorosas. Eles definiam, com crescente grau de precisão, direitos de propriedade da terra, fronteiras
territoriais, domínios de administração e controle social, rotas de comunicação etc.
Eles também permitiam que toda a população da terra, pela primeira vez na história humana, fosse localizada numa única estrutura espacial (ver ilustração 3.7).
A grade que o sistema ptolemaico tinha fornecido como recurso de absorção do
influxo de informações novas já fora corrigida e preenchida, de modo que uma
longa linha de pensadores, de Montesquieu a Rousseau, pôde começar a especular
acerca dos princípios racionais e materiais passíveis de organizar a distribuição de
populações, modos de vida e sistemas políticos na superfície do globo. Era no
âmbito de uma tal visão totalizante do globo que o determinismo ambiental e uma
certa concepção de "alteridade" poderiam ser admitidos e até florescer.
228
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
A diversidade de povos podia ser apreciada e analisada no seguro saber de
que o seu "lugar" na ordem espacial era conhecido sem ambigüidade. Exatamente
da mesma maneira como os pensadores iluministas acreditavam que a tradução de
uma língua para outra sempre era possível sem destruir a integridade de qualquer
delas, a visão totalizante do mapa permitiu a construção de fortes sentidos de identidades nacionais, locais e pessoais em meio' a diferenças geográficas. Não seriam estas
últimas, afinal, inteiramente compatíveis com a divisão do trabalho, com o comércio
e com outras formas de troca? Não podiam também elas ser explicadas em tem1os de
condições ambientais distintas? Não desejo idealizar as qualidades de pensamento daí
resultantes. As explicações ambientalistas da diferença formuladas por Montesquieu e
Rousseau dificilmente parecem iluminadas, enquanto os fatos sórdidos do comércio
de escravos e da subjugação das mulheres mal provocaram um murmúrio de protesto nos pensadores iluministas. Contudo, desejo insistir em que o problema do
pensamento iluminista não estava na carência de um conceito do "outro", mas no
fato de perceber o "outro" como tendo necessariamente (e às vezes "restringindo-se a") um lugar específico numa ordem espacial concebida, do ponto de vista
etnocêntrico, como tendo qualidades homogêneas e absolutas.
O registro do tempo pelo cronômetro não foi menos totalizante em suas implicações em termos de pensamento e ação. Vista cada vez mais como uma divisão
mecânica fixada pela oscilação do pêndulo, a flecha do tempo foi considerada
linear progressiva e regressivamente. O conceito de passado e futuro como elementos vinculados linearmente pelo tique-taque do relógio permitiu o florescimento de
toda espécie de concepções científicas e históricas. Em semelhante esquema temporal, era possível ver a retrovisão e a previsão como proposições simétricas, assim
Ilustração 3.6 O projeto oitocentista de Boulée para o Cenotáfio de
Newton foi um precursor do sentido de espaço arquitetônico racional e
ordenado mais tarde incorporado pelo modernismo.
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
229
como formular um forte sentido de potencialidade de controle do futuro. E mesmo
que as escalas temporais geológicas e evolutivas tenham levado muitos anos para
ser aceitas, há a sensação de que essas escalas já estavam implícitas na própria
aceitação do cronômetro como modo de registrar o tempo. Talvez ainda mais
importante tenha sido a significação de tal conceito de tempo universal e homogêneo para concepções da taxa de lucro (retorno do estoque de capital no tempo,
disse Adam Smith), da taxa de juro, do salário-hora e de outras magnitudes fundamentais para o processo decisório capitalista. Tudo isso se resume ao fato hoje
aceito de que o pensamento iluminista operou nos limites de uma visão
"newtoniana" bem mecânica do universo, em que os absolutos presumidos do
tempo e do espaço homogêneo formavam continentes limitadores do pensamento
e da ação. O colapso desses conceitos absolutos sob o peso da compressão do
tempo-espaço foi a história central do nascimento das formas de modernismo do
século XIX e do começo do nosso século.
230
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Não obstante, creio ser útil cimentar o caminho que leva à compreensão da
ruptura mediante a qual surgiram maneiras modernistas de ver depois de 1848
com uma consideração das tensões presentes nas concepções iluministas do espaço. Os dilemas teóricos, representacionais e práticos também são instrutivos para
a interpretação da subseqüente passagem para o pós-modernismo.
Consideremos, como ponto de partida, a crítica contemporânea do mapa como
"artefato totalizante" de de Certeau. A aplicação de princípios matemáticos produz
"um conjunto formal de lugares abstratos" e "reúne num mesmo plano lugares
heterogêneos, alguns re'cebidos da tradição e outros produzidos pela observação".
O mapa é, com efeito, uma homogeneização e reificação da rica diversidade de
itinerários e histórias espaciais; ele "elimina pouco a pouco" todos os vestígios das
"práticas que o produzem". Enquanto as qualidades táteis do mapa medieval
preservavam esses vestígios, os mapas matematicamente rigorosos do Iluminismo
exibiam qualidades deveras distintas.
Os argumentos de Bourdieu também se aplicam aqui. Como todo sistema de
representação é em si mesmo uma construção espacial fixa, ele converte automaticamente os espaços e o tempo fluidos, confusos, mas mesmo assim objetivos, do
trabalho e da reprodução social num esquema fixo. "Da mesma maneira como o
mapa substitui o espaço descontinuamente remendado dos caminhos concretos
pelo espaço homogêneo e contínuo da geometria, assim também o calendário substitui por um tempo contínuo, homogêneo e linear o tempo concreto, composto por
incomensuráveis ilhas de duração que têm, cada qual, o seu próprio ritmo."
O analista, continua Bourdieu, pode conseguir "o privilégio da totalização" e assegurar "os meios de apreensão da lógica do sistema que uma visão parcial ou discreta
deixaria passar", mas também há "toda a probabilidade de que ele não perceba a
mudança de condição a que sujeita a prática e o seu produto", e, em conseqüência,
"insista em tentar responder perguntas que não são nem podem ser questões práticas". Tratando como reais certas concepções idealizadas de espaço e tempo, os pensadores iluministas correram o perigo de confinar o livre fluxo da prática e da experiência humanas a configurações racionalizadas. É nesses termos que Foucault detecta a
virada repressiva das práticas iluministas para a vigilância e o controle.
Isso oferece um útil vislumbre da crítica "pós-modernista" das "qualidades
totalizantes" do pensamento iluminista e da "tirania" do perspectivismo, além de
esclarecer um problema repetitivo. Se a vida social deve ser planejada e controlada
de modo racional, a fim de promover a igualdade social e o bem-estar de todos,
como podem a produção, o consumo e a interação social ser planejados e organizados eficientemente a não ser por meio da incorporação das abstrações ideais do
espaço e do tempo fornecidas no mapa, no cronômetro e no calendário? Há um
outro problema; se o perspectivismo, apesar de todo o seu rigor matemático, constrói o mundo a partir de um ponto de vista individual dado, de que perspectiva
deve a paisagem física ser moldada? O arquiteto, o projetista e o planejador não
podiam preservar o sentido tátil das representações medievais. Mesmo quando
não dominado diretamente por interesses de classe, o produtor de espaço só podia
produzir, ao ver dos seus habitantes, uma "arte alheia". Na medida em que o
planejamento social do alto modernismo reincorporou esses elementos em suas
aplicações práticas, também ele viria a ser acusado da "visão totalizante" do espaço
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
231
e do tempo de que o pensamento iluminista foi herdeiro. As unidades matemáticas
dadas pelo perspectivismo renascentista podiam ser consideradas, desse ponto de
vista, tão totalizantes e repressivas quanto os mapas.
Permitam-me seguir essa linha de argumentação um pouco para apreender o
dilema central da definição de um quadro espacial adequado à ação social.
A conquista e o controle do espaço, por exemplo, requerem antes de tudo que
concebamos o espaço como uma coisa usável, maleável e, portanto, capaz de ser
dominada pela ação humana. O perspectivismo e a cartografia matemática fizeram
isso considerando o espaço abstrato, homogêneo e universal em suas qualidades,
um quadro de pensamento e de ação estável e apreensível. A geometria euclidiana
forneceu a linguagem básica do discurso; construtores, engenheiros, arquitetos e
administradores de terra, por sua vez, mostraram como as representações euclidianas
do espaço objetivo podiam ser transformadas numa paisagem física espacialmente
ordenada. Os mercadores e proprietários de terras usaram essas práticas para seus
propósitos de classe, enquanto o Estado absolutista (com a sua preocupação com
a taxação da terra e a definição do seu próprio campo de domínio e de controle
social) também apreciava a capacidade de definir e produzir espaços com coordenadas espaciais fixas. Mas, no mar de atividades sociais, havia ilhas de prática em
que toda espécie de outras concepções do espaço e do tempo - sagradas e profanas, simbólicas, pessoais, animistas - podiam continuar a agir imperturbáveis.
Havia necessidade de algo mais para consolidar o uso real do espaço corno algo
universal, homogêneo, objetivo e abstrato na prática social. Apesar da pletora de
planos utópicos, o "algo mais" que viria a dominar foi a propriedade privada da
terra e a compra e venda do espaço como mercadoria.
Isso nos leva ao centro dos dilemas da política do espaço em todo tipo de
projeto de transformação da sociedade. Lefebvre (1974, 385) observa, por exemplo,
que uma das maneiras pelas quais a homogeneidade do espaço pode ser alcançada
é a sua total "pulverização" e fragmentação em parcelas livremente alienáveis de
propriedade privada que podem ser compradas e comercializadas à vontade no
mercado. Essa foi, de fato, a estratégia que transformou a paisagem britânica por
meio dos movimentos em prol da demarcação de terras do século XVIII e do
começo do XIX, movimentos que exigiam o mapeamento sistemático como uma de
suas reivindicações. Há, sugere Lefebvre, uma tensão permanente entre a livre
apropriação do espaço para propósitos individuais e sociais e o domínio do espaço
por meio da propriedade privada, do Estado e de outras formas de poder de classe
e social. Podemos extrair da proposição de Lefebvre cinco dilemas explícitos:
1 Se é verdade que a única maneira de controlar e organizar o espaço é a sua
"pulverização" e fragmentação, devemos estabelecer os princípios dessa fragmentação. Se o espaço, como diria Foulcault, é sempre um continente de poder sociat
a reorganização do espaço sempre é uma reorga~ização da estrutura mediante a
qual o poder social é expresso. Economistas políticos do período iluminista debateram esse problema de modo deveras claro nas doutrinas opostas do mercantilismo
(em que o Estado era a unidade geográfica relevante em torno da qual a política
espacial deveria ser formulada) e do liberalismo (em que os direitos da propriedade privada individualizada eram o fundamental). Turgot, ministro francês e eminente economista com inclinações fisiocráticas e liberais, promoveu o mapeamento
I
232
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Ilustração 3.8 A Revolução Francesa enfatizou ·as preocupações do Iluminismo tanto
com o mapeamento racional do espaço como com sua divisão racional para propósitos
administrativos: (em cima) um prospecto de 1780 de uma "Nouvelle Topographie"
da França e (embaixo) um mapa de 1789 desenhado pela Assembléia Nacional
para facilitar a representação proporcional.
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
233
acurado de boa parte da França precisamente porque desejava defender as relações
de propriedade privada e a dispersão do poder político e econômico e facilitar a
livre circulação de mercadorias dentro e fora da França. Colbert, por sua vez,
tentara antes organizar o espaço francês para concentrá-lo em Paris, a capital,
graças ao seu interesse em dar apoio ao Estado absoluto e ao poder monárquico.
Os dois procuravam ampliar a base fiscal do poder do Estado, mas recomendavam
políticas espaciais bem distintas como condição necessária para alcançar essa meta,
porque concebiam relações de poder bastante diferentes entre a propriedade privada e o Estado (Dockes, 1969).
2 Os pensadores iluministas começaram a se ver às voltas com todo o problema da "produção do espaço" como fenômeno econômico e político. A produção
de postos de pedágio, canais, sistemas de comunicação e administração, terras
limpas etc. trazia claramente à baila a questão da produção de um espaço de
transporte e comunicações. Toda mudança nas relações espaciais produzida por
esses investimentos afetava, afinal de contas, de modo desigual, a lucratividade da
atividade econômica, levando, por isso mesmo, a uma redistribuição de riqueza e
poder. Toda tentativa de democratizar e dispensar o poder político também envolvia algum gênero de estratégia espacial. Uma das primeiras iniciativas da Revolução Francesa foi conceber um sistema racional de administração por meio de uma
divisão altamente lógica e igualitária do espaço nacional francês em "departamentos" (ver ilustração 3.8). O exemplo mais claro da implementação dessa política
talvez seja o projeto do sistema de cessão e da grade espacial de assentamento nos
Estados Unidos (um produto do pensamento democrático jeffersoniano e do
Iluminismo). A pulverização e fragmentação do espaço nos Estados Unidos segundo essas linhas racionalistas pretendiam envolver (e em alguns aspectos conseguiram fazê-lo) o máximo de liberdade individual de deslocamento e instalação de
uma maneira razoavelmente igualitária, no espírito de uma democracia agrária e
de propriedade privada. A visão jeffersoniana terminou por ser subvertida, mas,
ao menos até a Guerra Civil, havia verdade bastante em seu significado prático
para dar algum crédito à idéia de que os Estados Unidos, precisamente por causa
de sua organização espacial aberta, eram a terra onde poderiam ser concretizadas
as visões utópicas do Iluminismo.
3 Não pode haver uma política do espaço independente das relações sociais.
Estas dão àquela o seu conteúdo e sentido sociais. Esse foi o fundamento dos
inúmeros planos utópicos do Iluminismo. A pulverização do espaço, qu e a política
jeffersoniana da terra supunha que abriria o caminho para uma democracia igualitária, terminou por ser um meio que facilitou a proliferação de relações sociais
capitalistas. Ela forneceu um arcabouço notavelmente aberto no âmbito do qual o
poder do dinheiro podia operar com poucas das restrições encontradas na Europa.
No contexto europeu, foram as idéias de Saint-Simon, com seus capitais associados
conquistando e subjugando o espaço em nome do bem-estar humano, que sofreram uma distorção semelhante. Depois de 1848, banqueiros de crédito como os
irmãos Péreire na França do Segundo Império promoveram um "reparo espacial"
altamente lucrativo, embora especulativo, para os dilemas da superacumulação e
da crise capitalista por meio de uma vasta onda de investimentos em estradas de
ferro, canais e infra-estruturas urbanas.
234
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
4 A homogeneização do espaço traz sérias dificuldades para a concepção de
lugar. Se este último é a sede do Ser (como muitos teóricos mais tarde iriam supor),
o Vir-a-Ser envolve uma política espacial que torna o lugar subserviente a transformações do espaço. O espaço absoluto gera, por assim dizer, o espaço relativo.
É exatamente nesse ponto que a tensão incipiente entre lugar e espaço pode transformar-se num antagonismo absoluto. A reorganização do espaço para fins democráticos pôs em xeque o poder dinástico personificado no lugar. "A derrubada de
portões, o cruzamento de fossos de castelos, o caminhar ao bel-prazer em lugares
onde já fora proibido entrar: a apropriação de um certo espaço, que teve de ser
aberto e invadido, foi o primeiro deleite da Revolução [Francesa]." Além disso,
como "bons filhos do Iluminismo", afirma Ozouf (1988)26-37), os revolucionários
"viram o espaço e o tempo como uma ocasião" para a construção de um espaço
cerimonial que era o equivalente do "tempo da Revolução". Mas a subversão desse
projeto democratizante pelo poder do dinheiro e pelo capital levou à mercadificação
do espaço e à produção de sistemas geográficos novos, mas igualmente opressivos,
para a contenção do poder (como nos Estados Unidos).
5 Isso nos faz retornar ao dilema mais sério: o fato de o espaço só poder ser
conquistado por meio da produção de espaço. Os espaços específicos de transporte
e comunicações, de assentamento e ocupação humanos, todos legitimados sob algum sistema legal de direitos a espaços (do corpo, da terra, do lar etc.) que assegura a garantia de lugar e o acesso a este aos membros da sociedade, formam um
quadro fixo no âmbito do qual a dinâmica de um processo social deve desenrolar-se. No contexto da acumulação de capital, essa fixidez da organização espacial é
levada a uma contradição absoluta. O efeito é o ataque dos poderes de "destruição
criativa" do capitalismo à paisagem geográfica, provocando violentos movimentos
de oposição vindos de todos os quadrantes.
Este último ponto tem importância suficiente para garantir a generalização. É
não apenas necessária a produção de um espaço específico, fixo e imóvel para
promover a "aniquilação do espaço por intermédio do tempo", como também
investimentos de longo prazo, de retorno lento (fábricas automatizadas, robôs etc.),
para acelerar o tempo de giro da massa de capitais. O modo como o capitalismo
enfrenta esse nexo de contradições e sucumbe periodicamente a ele e uma das
principais históricas não contadas da geografia histórica do capitalismo. A compressão do tempo-espaço é um sinal da intensidade de forças que agem no nível
desse nexo de contradições, sendo bem possível que tanto as crises de
superacumulação como as das formas culturais e políticas tenham estreitos vínculos com essas forças.
Os pensadores iluministas procuravam uma sociedade melhor. Ao fazê-lo, tiveram de atentar para a ordenação racional do espaço e do tempo como um requisito da construção de uma sociedade que garantisse liberdades individuais e bem-estar humano. O projeto significava a reconstrução dos espaços de poder em
termos radicalmente novos, mas mostrou-se impossível especificar exatamente quais
deviam ser esses termos. As idéias estatais, comunitárias e individualistas estavam
associadas com diferentes paisagens espaciais, da mesma maneira como o domínio
diferencial sobre o tempo trazia problemas cruciais de relações de classe, de direitos aos frutos do próprio trabalho e de acumulação do capital. Mas todos os pro-
O TEMPO E O ESPAÇO DO PROJETO DO ILUMINISMO
235
jetos iluministas tinham em comum uma concepção, com certo grau de unificação,
da importância do espaço e do tempo e de sua ordenação racional. Essa base
comum dependia em parte da disponibilidade popular de relógios, bem como da
capacidade de difundir o conhecimento cartográfico por intermédio de técnicas de
impressão mais baratas e mais eficientes. Mas também dependia do vínculo entre
o perspectivismo da Renascença e um conceito do indivíduo como fonte e continente últimos do poder social, embora assimilado no interior da nação-Estado
como um sistema coletivo de autoridade.
As condições econômicas do Iluminismo europeu contribuíram em larga medida para o sentido de objetivos comuns. A crescente competição entre Estados e
outras unidades econômicas criou uma pressão de racionalização e coordenação do
espaço e do tempo da atividade econômica, seja no âmbito de um espaço nacional
de transporte e comunicações, de administração e de organização militar, seja nos
espaços mais localizados das propriedades privadas e municipalidades. Todas as
unidades econômicas se viram às voltas com um mundo de competição cada vez
maior em que a aposta era em última instância o sucesso econômico (medido em
termos dos metais tão caros aos mercantilistas ou mediante a acumulação de dinheiro, riqueza e poder indivudalizados tão louvada pelos liberais). A racionalização prática do espaço e do tempo ao longo do século XVIII - um progresso
marcado pela ascenção da Ordnance Survey (Lei Fundiária Municipal) ou do
mapeamento cadastral sistemático na França do final desse mesmo século - formou o contexto em que os pensadores iluministas formularam os seus projetos. E
foi contra essa concepção que a segunda grande virada do modernismo depois de
1848 se insurgiu.
J
16
A compressão do tempo-espaço e a
ascensão do modernismo como força cultural
A depressão que assolou a Inglaterra em 1846-1847 e que engolfou rapidamente tudo o que era então o mundo capitalista pode ser considerada com justiça a
primeira crise patente de superacumulação capitalista. Ela abalou a confiança da
burguesia e afetou de modo profundo o seu sentido de história e geografia. Tinha
havido muitas crises econômicas e políticas antes, mas a maioria podia ser atribuída com razão a calamidades naturais (como problemas de safra), a guerras e a
outros conflitos geopolíticos. Essa, no entanto, era diferente; embora tivesse havido
más colheitas aqui e ali, não era fácil atribuí-la a Deus ou à natureza. Por volta de
1847-1848, o capitalismo havia alcançado um grau suficiente de maturidade, de
modo que mesmo o apologista burguês mais cego podia ver que as condições
financeiras, a especulação incessante e a superprodução tinham algum vínculo com
os eventos. Seja como for, o resultado foi uma repentina paralisia econômica, em
que excedentes de capital e de trabalho ficaram lado a lado sem nenhum meio
aparente de reuni-los num uso lucrativo e socialmente benéfico.
Havia, com efeito, tantas explicações da crise quantas eram as posições de classe
(e muitas mais). Os artesãos de Paris a Viena tendiam a vê-la como o resultado de um
processo de desenvolvimento capitalista violento que estava mudando as condições de
emprego, aumentando a taxa de exploração e destruindo habilidades tradicionais,
enquanto membros progressistas da burguesia podiam vê-la como o produto das
ordens feudais e aristocráticas recalcitrantes que recusavam o curso do progresso.
Estas últimas, por sua vez, podiam atribuir a coisa toda ao solapamento dos valores
e hierarquias sociais tradicionais pelos valores e práticas materialistas tanto dos trabalhadores como de uma agressiva classe de capitalistas e financistas.
Mas a tese que desejo explorar aqui é de que a crise de 1847-1848 criou uma
crise de representação, e que esta proveio de um reajuste radical do sentido de
tempo e espaço na vida econômica, política e cultural. Antes de 1848, os elementos
progressistas da burguesia podiam defender razoavelmente o sentido iluminista de
tempo ("tempo à frente de si mesmo", como diria Gurvitch), reconhecendo que
travavam uma batalha contra o tempo "permanente" e ecológico das sociedades
tradicionais e contra o "tempo retardado" de formas recalcitrantes de organização
social. Depois de 1848, no entanto, esse sentido progressista de tempo foi questionado em muitos aspectos importantes. Demasiadas pessoas na Europa tinham lutado
nas barricadas ou sido colhidas pelo turbilhão de esperanças e temores para não
apreciarem o estímulo que vem da ação participante no "tempo explosivo".
Baudelaíre, por exemplo, nunca pôde esquecer a experiência, tendo voltado a ela
repetidas vezes em suas explorações de uma linguagem modernista.
J
238
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Em retrospecto, ficou mais fácil invocar algum sentido cíclico de tempo (disso
decorrendo o crescente interesse da idéia de ciclos econômicos como componentes
necessários do processo de crescimento capitalista que seriam vinculados a posteriori
com os problemas econômicos de 1837, 1826 e 1817). Ora, se tivessem consciência
bastante das tensões de classe, as pessoas poderiam ter invocado, como fez Marx
em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, um sentido de "tempo alternado" em que
o desfecho de lutas mais amargas sempre deve ser visto como um equilíbrio precário entre forças de classe. Mas creio ser correto dizer que a pergunta "em que
tempo estamos?" surgiu na agenda filosófica, depois de 1848, de modo a desafiar
as pressuposições matemáticas simples do pensamento iluminista. O sentido de
tempo físico e social, tão recentemente formulado no pensamento iluminista, começou outra vez a se desfazer. O artista e o pensador puderam então explorar a
natureza e o significado do tempo de novos pontos de vista.
Os eventos de 1847-1848 também abalaram certezas sobre a natureza do espaço
e o significado do dinheiro. Os acontecimentos provaram que a Europa tinha alcançado um nível de integração espacial em sua vida econômica e financeira que
tornaria todo o continente vulnerável à formação simultânea de crises. As revoluções políticas que tinham irrompido ao mesmo tempo em todo o continente acentuaram as dimensões sincrônicas e diacrônicas do desenvolvimento capitalista. A
certeza do espaço e do lugar absolutos foi substituída pelas inseguranças de um
espaço relativo em mudança, em que os eventos de um lugar podiam ter efeitos
imediatos e ramifícadores sobre vários outros. Se, como sugere Jameson (1988,
349), "a verdade da experiência já não coincide com o lugar em que ela ocorre",
sendo em vez disso disseminada pelos espaços do mundo, surge uma situação "em
que podemos dizer que a experiência individual, se for autêntica, não pode ser
verdadeira; e que, se o modo cognitivo ou científico do mesmo conteúdo é verdadeiro, então escapa à experiência individual". Como a experiência individual sempre forma a matéria-prima das obras de arte, essa condição impunha sérios problemas à produção artística.
Mas essa não era a única arena da confusão. Diversos movimentos locais de
trabalhadores viram-se de repente levados por uma série de eventos e mudança
políticas que não tinham fronteiras evidentes. Trabalhadores nacionalistas podiam
exibir xenofobia em Paris, mas simpatizar com trabalhadores poloneses ou vienenses
que lutavam, como eles, pela emancipação econômica e política em seus espaços
particulares. Foi esse o contexto em que as proposições universalistas do Manifesto
Comunista fizeram muito sentido. Como reconciliar a perspectiva de lugar com as
cambiantes perspectiva do espaço relativo tornou-se uma séria questão a que o
modernismo iria se dedicar com crescente vigor até o choque da Primeira Guerra
Mundial.
O espaço europeu tornava-se cada vez mais unificado precisamente por causa
do internacionalismo do poder do dinheiro. 1847-1848 foi uma crise financeira e
monetária que abalou bastante as idéias adquiridas sobre o sentido e o papel do
dinheiro na vida social. A tensão entre as funções da moeda como medida e representação do valor e como lubrificante da troca e do investimento há muito era
evidente. Naquele momento, contudo, passara a ser um antagonismo direto entre
o sistema financeiro (toda a estrutura do crédito e dos "capitais fictícios") e sua
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
239
base monetária (o ouro e outras mercadorias tangíveis que conferiam um claro
sentido físico à moeda). O dinheiro do crédito na verdade desabou, deixando uma
escassez de "dinheiro real" e em espécie em 1847-1848. Quem controlava o dinheiro em espécie controlava uma fonte vital de poder social; os Rothschilds usaram
esse poder com grande proveito e, graças ao seu domínio superior do espaço,
vieram a dominar as finanças de todo o continente europeu.
Mas a questão da verdadeira natureza e significado do dinheiro não foi resolvida com tanta facilidade. A tensão entre o dinheiro do crédito e o dinheiro em
espécie foi aumentando nos anos subseqüentes, terminando por levar até os
Rothschilds a um mundo bancário em que o sistema de crédito e a "formação de
capital fictício" se tornaram fundamentais. Isso alterou o sentido do tempo (tempos
de investimento, taxa de retorno etc.) e outras magnitudes vitais do modo dominante de realização de negócios do capitalismo. Afinal, foi somente depois de 1850
que os mercados de ações e de capital (mercados de "capital fictício") foram sistematicamente organizados e abertos à participação geral sob regras legais de incorporação e de contratos do mercado.
Todas essas transformações criaram uma crise de representação. Nem a literatura nem a arte podiam evitar a questão do internacionalismo, da sincronia, da
temporalidade insegura e da tensão, no âmbito da medida dominante de valor,
entre o sistema financeiro e sua base monetária ou tangível. "Por volta de 1850",
escreve Barthes (1967,9), "a escritura clássica, por conseguinte, se desintegrou, e a
literatura inteira, de Flaubert aos nossos dias, se tornou a problemática da linguagem." Não é por acaso que o primeiro grande impulso cultural modernista ocorreu
em Paris depois de 1848. As pinceladas de Manet, que começou a decompor o
espaço tradicional da pintura e a alterar seu enquadramento, bem como a explorar
as fragmentações da luz e da cor; os poemas e reflexões de Baudelaire, que buscava
transcender a efemeridade e a estreita política do lugar à procura de significados
eternos; os romances de Flaubert, com suas estruturas narrativas peculiares no
espaço e no tempo, associadas a uma linguagem de frio distanciamento - tudo
sinais de uma radical ruptura do sentimento cultural que refletia um profundo
questionamento do sentido do espaço e do lugar, do presente, do passado e do
futuro, num mundo de insegurança e de horizontes espaciais em rápida expansão.
Flaubert, por exemplo, explora a questão da representação da heterogeneidade
e da diferença, da simultaneidade e da sincronia, num mundo em que tanto o
tempo como o espaço estão sendo absorvidos sob as forças homogeneizantes do
dinheiro e da troca de mercadorias. "Tudo deve soar simultaneamente", escreveu
ele; "deve-se ouvir o mugir do gado, o murmúrio dos amantes e a retórica dos
funcionários ao mesmo tempo." Incapaz de representar essa simultaneidade com
o efeito necessário, Flaubert "dissolve a seqüência ao fazer cortes que avançam e
recuam (a analogia com o cinema é bem deliberada)", e, no crescendo final para
uma cena de Madame Bovary, justapõe duas seqüências, "numa fase única, para
alcançar um efeito unificado" (Bell, 1978, 114).
Frédéric Moreau, o herói de A educação sentimental, de Flaubert, se move de
espaço em espaço em Paris e nos seus subúrbios, reunindo, enquanto o faz, experiências de qualidades bem distintas. O que é especial é a maneira como ele entra
e sai dos espaços diferenciados da cidade com a mesma facilidade com que o
240
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
dinheiro e as mercadorias mudam de mãos. Toda a estrutura narrativa do livro
também se perde em perpétuos adiamentos de decisões precisamente porque
Frédéric herdou dinheiro bastante para se dar ao luxo de não decidir, mesmo em
meio à turbulência revolucionária. A ação se reduz a uma série de caminhos que
podiam ter sido tomados, mas não foram. "A idéia do futuro nos atormenta, e o
passado não nos deixa avançar", escreveu Flaubert (1979,134) mais tarde, acrescentando: "Eis por que o presente foge das nossas mãos". E, no entanto, foi a posse
do dinheiro que permitiu que o presente fugisse das mãos de Frédéric, ao mesmo
tempo em que abria espaços sociais para uma penetração casual. Como é evidente,
o tempo, o espaço e o dinheiro podem ser investidos com significações bem distintas, a depender das condições e possibilidades de troca entre eles. Para falar
dessas probabilidades, Flaubert teve de descobrir uma nova linguagem.
Essas explorações de novas formas culturais ocorreu num contexto econômico
e político que, em muitos aspectos, negava o do colapso econômico e do levante
revolucionário de 1848. Embora, por exemplo, a especulação excessiva na construção de estradas de ferro tenha provocado a primeira crise européia de
superacumulação, a resolução dessa crise depois de 1850 dependeu muito de uma
maior exploração do deslocamento temporal e espacial. Novos sistemas de crédito
e novas formas corporativas de organização e de distribuição (as grandes lojas de
departamentos), associados com inovações técnicas e organizacionais no nível da
produção (por exemplo, a crescente fragmentação, especialização e desabilitação
na divisão do trabalho), ajudaram a acelerar a circulação do capital em mercado de
massa. Mais enfaticamente, o capitalismo entrou numa incrível fase de investimento de longo prazo maciço na conquista do espaço. A expansão da rede de estradas
de ferro, acompanhada do advento do telégrafo, do desenvolvimento da navegação a vapor, da construção do Canal de Suez, dos primórdios da comunicação pelo
rádio e da viagem com bicicletas e automóveis no final do século, mudou o sentido
do tempo e do espaço de maneiras radicais. Esse período viu também a chegada
seqüencial de toda uma série de inovações técnicas. Novos modos de ver o espaço
e o movimento (derivados da fotografia e da exploração dos limites do
perspectivismo) começaram a ser concebidos e aplicados à produção de espaço
urbano (ver Lefaivre, 1986). A viagem em balões e a fotografia aérea mudaram
percepções da superfície da terra, ao mesmo tempo em que novas tecnologias de
impressão e de reprodução mecânica permitiam a disseminação de notícias, informações e artefatos culturais em camadas cada vez mais amplas da população.
A vasta expansão do comércio e do investimento exterior depois de 1850 encaminhou as principais forças capitalistas para a trilha do globalismo, mas o fez
por intermédio da conquista imperial e da rivalidade inter-imperialista, que viriam
a alcançar seu apogeu na Primeira Guerra Mundial - a primeira guerra global. En
route, os espaços do mundo foram desterritorialízados, privados de suas significações precedentes e reterritorialízados segundo a conveniência da administração
colonial e imperial. O espaço relativo foi revolucionado por meio de inovações no
transporte e nas comunicações, tendo havido também uma reorganização fundamental daquilo que continha.
O mapa do domínio dos espaços do mundo sofreu entre 1850 e 1914 uma
transformação qué o deixou irreconhecível. E, no entanto, era possível, dados o
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
241
fluxo de informações e as novas técnicas de representação, ter uma idéia de uma
ampla gama de aventuras e conflitos imperiais simultâneos com uma mera olhada
no jornal da manhã. E, se isso não bastasse, a organização de uma série de Exposições Mundiais, a começar pela do Palácio de Cristal, de 1851, passando por vários
esforços franceses até chegar à grande Exposição Americana de 1893, celebrou o
fato do globalismo, ao mesmo tempo em que fornecia um arcabouço no âmbito do
qual aquilo que Benjamim denomina "a fantasmagoria" do mundo das mercadorias e da competição entre nações-Estado e sistemas territoriais de produção poderia ser entendido.
Foi tão bem-sucedido esse projeto de subjugação do espaço e de retomada do
crescimento capitalista que o economista Alfred Marshall pôde afirmar, confiante,
nos anos 1870, que a influência do tempo é "mais fundamental do que a do espaço"
na vida econômica (consolidando assim o privilégio do tempo sobre o espaço na
teoria social a que já fizemos menção). Essa transformação, no entanto, também
solapou a coerência e o significado da ficção e da pintura realistas. Zola previu o
fim do seu próprio gênero, bem como o de um campesinato francês autocontido,
em La Terre, quando faz o professor articular a idéia de que a importação do trigo
americano barato, que então parecia iminente, estava fadada a enterrar a localidade
(sua política e cultura paroquial) sob uma onda de influências internacionalistas.
Frank Norris, do outro lado do Atlântico, percebeu o mesmo problema em The
octopus - os plantadores de trigo da Califórnia tinham de reconhecer que eram
"meras partes de um todo enorme, uma unidade na vasta aglomeração de terra
que podia ser plantada com trigo no mundo circundante, sentindo os efeitos de
causas a milhares de quilômetros de distância".
Como era possível, usando as estruturas narrativas do realismo, escrever senão
um romance paroquialista e, portanto, em certa medida, "irrealista" diante de toda
essa simultaneidade espacial? Afinal, essas estruturas narrativas supunham que
era possível contar uma história como se esta se desenrolasse coerentemente, evento após evento, no tempo. Essas estruturas eram incompatíveis com uma realidade
em que dois acontecimentos em lugares bem distintos ocorrendo ao mesmo tempo
podiam se inter-relacionar a ponto de modificar o funcionamento do mundo.
Flaubert, o modernista, fora pioneiro de um caminho que Zola, o realista, descobrira ser impossível emular.
Foi em meio a essa rápida fase de compressão do tempo-espaço que a segunda
grande onda de inovação modernista no domínio estético teve início. Até que
ponto, então, pode o modernismo ser interpretado como uma resposta a uma crise
na experiência do espaço e do tempo? O estudo de Kern (1983), The culture of time
and space, 1880-1918, torna essa suposição bem plausível.
Kern aceita que "o telefone, o telégrafo sem fio, o raio X, o cinema, a bicicleta,
o automóvel e o aeroplano estabeleceram o funcionamento material" de novos
modos de pensar sobre o tempo e o espaço e de vivenciá-los. Embora ansioso para
sustentar a independência dos desenvolvimentos culturais, ele alega que "a interpretação de fenômenos como estrutura de classe, diplomacia e tática de guerra em
termos de modalidades de tempo e espaço possibilita a demonstração de sua similaridade essencial com considerações explícitas do tempo e do espaço na literatura,
na filosofia, na ciência e na arte" (pp. 1-5). Carente de uma teoria da inovação
242
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
tecnológica, da dinâmica capitalista no espaço ou da produção cultural, Kern oferece somente "generalizações acerca dos desenvolvimentos culturais essenciais do
período". Mas as suas descrições lançam luz sobre as incríveis confusões e oposições num espectro de possíveis reações ao crescente sentido de crise na experiência
do tempo e do espaço, sentido que vinha aumentando desde 1848 e que parecia ter
chegado ao auge pouco antes da Primeira Guerra. Observo de passagem que 1910-1914 é mais ou menos o período apontado por muitos historiadores do modernismo (a começar por Virgínia Woolf e D. H. Lawrence) como crucial na evolução do
pensamento modernista (ver acima p. 36; Bradbury e McFarlene, 1976, 31). Henri
Lefebvre concorda:
Por volta de 1910, um certo espaço viu-se abalado. Tratava-se do espaço do
senso comum, do conhecimento, da prática social, do poder político, um espaço até então entronizado no discurso cotidiano, bem como no pensamento
abstrato, na qualidade de ambiente e canal da comunicação ... O espaço
euclidiano e perspectivista tinha desaparecido como sistema de referência, ao
lado de outros "lugares comuns" anteriores como cidade, história, paternidade, o sistema tonal na música, a moralidade tradicional e assim por diante.
Esse foi de fato um momento essencial (Lefebvre, 1974).
Consideremos alguns aspectos desse momento crucial situado, significativamente, entre a teoria especial da relatividade (1905) e a teoria geral da relatividade
(1916), de Einstein. Ford, como nos recordamos, instalou sua linha de montagem
em 1913. Ele fragmentou tarefas e as distribuiu no espaço, a fim de maximizar a
eficiência e minimizar a fricção do fluxo produtivo. Com efeito, ele usou certa
forma de organização espacial para acelerar o tempo de giro do capital produtivo.
Assim, ci tempo podia ser acelerado em virtude do controle estabelecido por meio
da organização e fragmentação da ordem espacial da produção. Naquele mesmo
ano, contudo, o primeiro sinal de rádio foi transmitido para o mundo a partir da
Torre Eiffel, acentuando a capacidade de fazer o espaço decair, na simultaneidade
de um instante, no tempo público universal. O poder do sem-fio fora claramente
demonstrado um ano antes com a rápida difusão de notícias acerca do naufrágio
do Titcmic (ele mesmo um símbolo de velocidade e movimento de massa que gerou
pesar, mais ou menos da mesma maneira como o Herald of Free Enterprise iria
lançar-se velozmente ao desastre uns setenta e cinco anos depois).
O tempo público tornava-se cada vez mais homogêneo e universal no espaço.
E isso não se devia apenas ao comércio e às estradas de ferro, visto que a organização de sistemas de comutação em larga escala e todas as outras coordenações
temporais que tornavam suportável a vida metropolitana também dependiam do
estabelecimento de algum sentido de tempo universal e comumente aceito. Os
mais de 38 bilhões de telefonemas feitos nos Estados Unidos em 1914 destacaram
o poder da intervenção do tempo e do espaço públicos na vida cotidiana e privada.
De fato, era somente em termos de tal sentido público de tempo que a referência
ao tempo privado podia fazer sentido. De Chirico celebrou apropriadamente essas
qualidades ao retratar conspicuamente relógios (um gesto incomum na história da
arte) em seus quadros de 1910-1914 (ver ilustração 3.9).
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
243
As reações apontavam para muitas direções. James Joyce, por exemplo, começou sua busca da apreensão do sentido de simultaneidade no espaço e no tempo
durante esse período, insistindo no presente como a única sede real da experiência.
Ele fez a sua ação ocorrer numa pluralidade de espaços, observa Kern (p. 149),
"numa consciência que salta universo afora e intervém aqui e ali, desafiando a
diagramação organizada dos cartógrafos". Proust, por sua vez, tentou recuperar o
Ilustração 3.9 A Conquista do Filósofo (1914), de de Chirico, explora
explicitamente temas modernistas do tempo e do espaço (Instituto de Arte
de Chicago, Coleção ]oseph Winterbotham).
244
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Ilustração 3.10 Torre Eiffel (litogravura, 1926), de Delaunay, exibida
pela primeira vez em 1911, usa uma imagem familiar de construção para
examinar a fragmentação e a ruptura do espaço típicas do cubismo
(Coleção do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Fundo de Compras).
tempo passado e criar um sentido de individualidade e lugar que se baseava numa
concepção da experiência num espaço de tempo. Conceitos pessoais de tempo se
tornaram um assunto de comentários públicos. "Os dois romancistas mais inovadores do período", prossegue Kern, "transformaram o palco da literatura moderna
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
245
de uma série de cenários fixos no espaço homogêneo" (do tipo que nos romancistas
realistas costumavam apresentar) "numa multiplicidade de espaços qualitativamente distintos que variavam com a mudança de humor e de perspectiva da cons·
ciência humana."
Picasso e Braque, por sua vez, seguindo os indícios dados por Cézanne, que
tinha começado a quebrar o espaço da pintura de novas maneiras na década de
1880, fizeram experiência com o cubismo, abandonando assim "o espaço homogêneo da perspectiva linear" qua dominara desde o século XV. A celebrada obra de
1910-1911, de Delaunay, que descrevia a Torre Eiffel (ilustração 3.10), foi talvez o
mais espantoso símbolo público de um movimento que tentava representar o tempo mediante uma fragmentação do espaço; é provável que os protagonistas não
tivessem consciência de que isso era um paralelo com as práticas da linha de
montagem fordista, embora a escolha da Torre Eiffel como símbolo refletisse o fato
de todo o movimento ter uma relação com o industrialismo.
Também em 1912 foi publicada a obra de Durkheim, Formas Elementares da
Vida Religiosa, com seu reconhecimento explícito de que "o fundamento da categoria tempo é o ritmo da vida social", e de que a origem social do espaço também
envolvia necessariamente a existência de múltiplas visões espaciais. Ortega y Gasset,
seguindo a injunção de Nietzsche de que "há apenas uma perspectiva de ver, somente uma perspectiva adequada de saber", formulou em 1910 uma nova versão
da teoria do perspectivismo que insistia que "havia tantos espaços na realidade
quanto perspectivas sobre ela" e que "há tantas realidades quanto pontos de vista".
Isso afixou um prego filosófico no caixão dos ideais racionalistas do espaço homogêneo e absoluto (Kern, 1983, 150-151).
Citei uns poucos incidentes registrados por Kern para dar uma idéia das confusões que dominavam o pensamento social e cultural no período 1910-1914. Mas
creio que as coisas podem ser levadas um pouco mais longe elaborando-se um
argumento a partir de uma idéia que Kern lança, mas aproveita pouco: "Uma das
respostas foi um crescente sentido de unidade entre pessoas antes isoladas pela
distância e pela falta de comunicação. Isso não foi, contudo, uma coisa pacífica,
porque a proximidade também gerou ansiedade - a apreensão de que os vizinhos
se aproximassem demais" (p. 88). Como se exprimia essa "ambivalência"? Podemos identificar duas correntes amplas e bem distintas de pensamento, que enfatizam
a unidade ou a diferença.
Quem enfatizava a unidade entre os povos também aceitava a "irrealidade do
lugar" num espaço relativo fragmentado. Celebrando a aniquilação do espaço por
meio do tempo, a tarefa era relançar o projeto iluminista de emancipação humana
universal num espaço global tornado coeso mediante mecanismos de comunicação
e de intervenção social. Esse projeto implicava, porém, a fragmentação espacial por
intermédio da coordenação planejada. E como seria possível fazê-lo a não ser
"pulverizando" de algum modo os espaços preexistentes?
Ford demonstrara que os processos sociais podiam ser acelerados e as forças
produtivas aumentadas pela espacialização do tempo. O problema era subjugar
essa capacidade à emancipação humana, em vez de a algum conjunto estreito de
interesses como os do capital. Um grupo alemão, por exemplo, propôs em 1911 a
criação de um "escritório mundial" que "unificasse todas as tendências humanitá-
246
.. ,
t
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
rias que seguem direções paralelas, mas descoordenadas, e promovesse uma concentração e um desenvolvimento de todas as atividades criativas" (citado em Tafuri,
1985, 122). Somente nesse contexto de espaço público e externo racionalizado e
totalmente organizado poderiam florescer adequadamente os sentidos de tempo e
espaço interiores e deveras privados. O espaço do corpo, da consciência, d~ psique
- espaços há muito reprimidos, dadas as suposições absolutas do peJ:lsamento
iluminista, mas que então se abriam em conseqüência de descobertas psicológicas
e filosóficas - só podia ser liberado por meio da organização racional do espaço
e do tempo exteriores.
Mas, naquele momento, racionalidade significava mais do que planejar com a
ajuda do mapa e do cronômetro ou sujeitar toda a vida social ao estudo do tempo
e do movimento. Novos sentidos de relativismo e perspectivismo podiam ser inventados e aplicados à produção do espaço e à ordenação do tempo. Esse tipo de
reação, que muitos mais tarde diriam ser exclusivamente modernista, envolvia
tipicamente todo um conjunto de atavios. Desprezando a história, ele buscava
formas culturais inteiramente novas que rompessem com o passado e falassem
apenas a linguagem do povo. Sustentando que a forma seguia a função e que a
racionalidade espacial poderia ser imposta ao mundo exterior para maximizar a
liberdade e o bem-estar individuais, ele tomava a eficiência e a função (e, portanto,
a imagem da metrópole como uma máquina bem azeitada) como seu motivo central. Tinha uma profunda preocupação com a pureza de linguagem, fosse na arquitetura, na música ou na literatura.
E' de admitir que fica por determinar se essa resposta era uma pura submissão
à força da reestruturação espacial e temporal do período (ver acima, pp. 36-39).
Fernand Léger, pintor cubista francês, por certo pensava assim, observando em
1913 que a vida estava "mais fragmentada e movendo-se mais rápido do que em
períodos precendentes" e que era essencial conceber uma arte dinâmica para
descrevê-la (citado em Kern, 1983, 118). E Gertrude Stein sem dúvida interpretava
os eventos culturais, tais como o advento do cubismo, como uma resposta à compressão do tempo-espaço a que todos estavam expostos e sensíveis. Isso de modo
algum depõe contra a importância de lidar com essa experiência no campo da
representação de um modo capaz de promover, sustentar e talvez até dominar os
processos que pareciam estar escapando de todas as formas de controle coletivo (o
que de fato já vinha ocorrendo na Primeira Guerra Mundial). Mas isso, com efeito,
dirige a nossa atenção para os modos práticos pelos quais era possível fazê-lo. Le
Corbusier, na verdade, apenas seguia os princípios jeffersonianos de repartição da
terra quando alegou que o caminho para a liberdade individual estava na construção de um espaço altamente ordenado e racionalizado. Seu projeto era
internacionalista, pondo em relevo o tipo de unidade em que um noção socialmente consciente da diferença individual pudesse ser explorada por inteiro.
O outro tipo de reação congregava uma haste de respostas divergentes na
superfície, mas construídas em torno de um princípio central que mais tarde terei
de citar com freqüência: o princípio de que, quanto mais unificado o espaço, tanto
mais importantes se tornam as qualidades das fragmentações para a identidade e
a ação sociais. O livre fluxo do capital na superfície terrestre, por exemplo, põe
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
247
uma forte ênfase nas qualidades particulares dos espaços para os quais o capital
pode ser atraído. O encolhimento do espaço que faz diversas comunidades do
globo competirem entre si implica estratégias competitivas localizadas e um sentido ampliado de consciência daquilo que torna um lugar especial e lhe dá vantagem competitiva. Essa espécie de reação confia muito mais na identificação do
lugar, na construção e indicação de suas qualidades ímpares num mundo cada vez
mais homogêneo, mas fragmentado (ver acima pp. 87-91).
Podemos identificar esse "outro lado" das explorações do modernismo num
certo número de contextos. A perspicaz observação de Foucault (citada em Crimp,
1983, 47) de que "Flaubert é para a biblioteca o que Manet é para o museu" destaca
como os inovadores do modernismo na literatura e na pintura, embora tivessem,
num certo sentido, rompido com todas as convenções passadas, ainda tinham de
situar-se, em termos históricos e geográficos, em algum lugar. Tanto a biblioteca
como o museu têm o efeito de registrar o passado e descrever a geografia ao
mesmo tempo em que rompem com eles. A redução do passado a uma representação organizada como uma exibição de artefatos (livros, quadros, relíquias etc.) é
tão formalista quanto a redução da geografia a um conjunto de exibições de coisas
de lugares distantes. Os artistas e escritores modernistas pintavam para os museus
ou escreviam para as bibliotecas precisamente porque trabalhar assim lhes perrnitia romper com as restrições do seu próprio lugar e tempo.
Entretanto, o museu, a biblioteca e a exposição costumam aspirar a alguma
sorte de organização coerente. O trabalho ideológico de inventar a tradição assumiu grande importância no final do século XIX exatamente porque essa foi uma
época em que as transformações das práticas espaciais e temporais implicavam
uma perda da identidade com o lugar e repetidas rupturas radicais com todo
sentido de continuidade histórica. A preservação histórica e a cultura do museu
vivenciaram fortes impulsos da vida a partir do final do século passado, enquanto
as exposições internacionais não só celebravam o mundo da mercadificação internacional como exibiam a geografia do mundo como uma série de artefatos que
todos podiam ver. Foi a partir de tal clima que um dos mais sensíveis escritores
modernistas, Simmet pôde escrever de modo tão persuasivo sobre a importância
das ruínas. Elas eram, disse ele, lugares em que "o passado, com seus destinos e
transformações, era apreendido no instante de um presente esteticamente perceptível" (citado em Kern, 1983, 40). As ruínas ajudavam a alicerçar a nossa identidade
abalada num mundo em rápida transformação.
Essa foi também uma época em que os artefatos do passado ou de lugares
longínquos começaram a ser comercializados como valiosas mercadorias. A emergência de um mercado ativo de antigüidade e de artesanato estrangeiro (este último simbolizado pelas gravuras japonesas que Manet inseriu em seu retrato de
Zola, e que até hoje adornam a casa de Monet em Giverny) é indicativa de uma
tendência que também era coerente com a recuperação da tradição artesanal promovida por William Morris na Inglaterra, o movimento dos artesãos de Viena e o
estilo art nouveau que inundou a França nos primeiros anos do século. Arquitetos
como Louis Sullivan em Chicago e Gaudemar em Paris também buscavam estilos
novos e locais que pudessem satisfazer as novas necessidades funcionais, mas
...
248
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
também celebrassem as qualidades distintivas dos lugares que ocupavam. A identidade de lugar foi reafirmada em meio às crescentes abstrações do espaço.
Essa tendência a privilegiar a espacialização do tempo (Ser) em detrimento da
aniquilação do espaço por meio do tempo (Vir-a-Ser) é consistente com boa parte
do que o pós-modernismo hoje articula - com os "determinismos locais" de
Lyotard, as "comunidades interpretativas" de Fish, as "resistências regionais" de
Frampton e as "heterotopias" de Foucault. Ela oferece, como é evidente, múltiplas
possibilidades no âmbito das quais uma "alteridade" espacializada pode florescer.
0 - modernismo, visto como um todo, explorou numa variedade de maneiras a
dialética de lugar versus espaço, presente versus passado. Celebrando a universalidade e a queda de barreiras espaciais, ele também explorou novos sentidos do
espaço e do lugar de formas que reforçavam tacitamente a identidade local.
Promovendo vínculos entre o lugar e o sentido social da identidade pessoal e
comunitária, essa faceta do modernismo estava fadada, em algum grau, envolver
a estetização da política local, regional ou nacional. Nesse caso, as lealdades ao
lugar têm precedência diante das lealdades à classe, espacializando a ação política.
No final do processo estão a restauração da noção hegeliana do Estado e a ressurreição da geopolítica. Marx, com efeito, devolvera a primazia de lugar ao tempo
histórico (e às relações de classe) na teoria social, em parte como uma reação à
concepção espacializada de Hegel do "Estado ético" como ponto culminante de
uma história teleológica. A introdução do Estado- uma espacialização -levanta
intrigantes interrogações para a teoria social, porque, como assinala Lefebvre (1974),
"o Estado esmaga o tempo ao reduzir as diferenças a repetições de circularidades
(apelidadas de 'equiHbrio', 'retroalimentação', 'auto-regulação' etc.)". Se "esse Estado moderno se impõe- definitivamente- como o centro estável de sociedades
e espaços [nacionais]", o argumento geopolítico tem de recorrer, como de fato
sempre o fez, aos valores estéticos em vez de aos sociais, em sua busca de legitimidade.
Por conseguinte, constitui um paradoxo de compreensão imediata o fato de,
numa época em que a aniquilação do espaço por meio do tempo seguia um ritmo
furioso, a geopolítica e a estetização da política passarem por uma forte recuperação.
Nietzsche captou o impulso essencial em termos filosóficos em A vontade de
poder. O niilismo - condição em que "os valores mais elevados se desvalorizam"
- está à nossa porta como "os hóspedes mais sinistros". A cultura européia, afirma ele, "tem se dirigido para uma catástrofe, com uma tensão torturada que aumenta de década para década: incansável, violenta, inexorável, como um rio que
deseja chegar ao fim, que já não reflete, que teme refletir". A dissolução da "propriedade imóvel inalienável, da honra ao antigo (origem da crença nos deuses e
nos heróis como ancestrais)" decorre em parte, sugere ele (prefigurando os exatos
argumentos de Heidegger, ver acima, pp. 192-194), do colapso do espaço: "Jornais
(em lugar de orações diárias), estradas de ferro, telégrafo". A conseqüente "centralização de um número tremendo de interesses diferentes numa única alma" significa que os indivíduos agora devem ser "muito fortes e multiformes". É ilessa
circunstância que a vontade de poder- "uma tentativa de revolução de todos os
valores" - deve afirmar-se como força diretriz na busca de uma nova moralidade:
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
249
E vocês sabem o que "o mundo" é para mim? Devo mostrá-lo a vocês no meu
espelho? Este mundo: um monstro de energia, sem começo, sem fim; ... envolto
pelo "nada" como se por uma fronteira; não uma coisa borrada ou desgastada,
não uma coisa infinitamente estendida, mas situada num espaço definido como
força definida, e não um espaço que pudesse ser "vazio" aqui ou ali, mas sim
como uma força onipresente; como um jogo de forças e ondas de forças, ao
mesmo tempo um e muitos, aumentando aqui e, simultaneamente, diminuindo
ali; um oceano de forças fluindo e arremetendo juntas, em eterna mudança, em
eterno ir e vir, com tremendos anos de recorrência, com uma maré baixa e uma
enchente de suas formas; esforçando-se por chegar, a partir das formas mais
simples, às mais complexas, das mais imóveis, mais rígidas e mais frias às mais
quentes, mais turbulentas e mais autocontraditórias, retornando então ao simples a partir dessa abundância, dessa interação de contradições para o júbilo da
concordância, ainda se afirmando nessa uniformidade dos seus cursos e dos
seus anos, bendizendo a si mesmo como aquilo que deve retornar eternamente,
como um vir-a-ser que não conhece saciedade, desgosto nem exaustão: este,
meu mundo dionisíaco do eternamente autocriado, eternamente autodestruído,
este mundo misterioso do dúplice deleite voluptuoso, meu "além do bem e do
mal", sem alvo, a não ser que o júbilo do círculo seja em si mesmo um alvo;
sem vontade, a não ser que um anel sinta boa vontade para consigo mesmo vocês querem um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus
enigmas? Uma luz para vocês também, homens mais dissimulados, mais fortes,
mais intrépidos, mais sombrios? - este mundo é a vontade de poder - e nada
mais! E vocês mesmos são também esta vontade de poder- e nada mais!
As extraordinárias imagens do espaço e do tempo, de ondas sucessivas de
compressão e implosão, em passagens como essa, sugerem que a forte intervenção
de Nietzsche no debate da modernidade (ver acima, pp. 25-29) tinha uma base
experiencial no mundo da transformação do tempo-espaço do final do século XIX.
A busca dessa nova moralidade do poder e do carisma de indivíduos "muito
fortes e multiformes" estava no cerne da nova ciência da geopolítica. Kern dá
muita atenção à crescente importância dessas teorias na virada do século. Friedrich
Ratzel na Alemanha, Camille Vallaux na França, Halford Mackinder na Inglaterra
e o Almirante Mahan nos Estados Unidos reconheciam a relevância do domínio do
espaço como fonte fundamental de poder político, econômico e militar. Haveria,
perguntaram eles, espaços estratégicos no novo globalismo do comércio e da política cujo domínio daria uma situação privilegiada a povos particulares? Se havia
alguma luta darwiniana pela sobrevivência dos diferentes povos e nações da terra,
que princípios a governavam e qual seria seu provável desfecho? Cada um deles
inclinou sua resposta em favor de um interesse nacional e, ao fazê-lo, concedeu o
direito de um povo particular dominar seu próprio lugar particular e, se a sobrevivência, a necessidade ou as certezas morais o impelissem a tanto, de expandi-lo
em nome do "destino manifesto" (EU A), da "responsabilidade do homem branco"
(Inglaterra), da "mission civilisatrice" (França) ou da necessidade de "Lebensraum"
(Alemanha) . No caso particular de Ratzel, encontramos uma predisposição filosófica para insistir na unidade entre um povo e sua terra como o fundamento da
250
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
sofisticação cultural e do poder político, uma união que só pode ser dissolvida por
meio da violência e da expropriação. Essa união formava o alicerce de uma cultura
nacional e de uma influência civilizatória cujas fontes diferiam de maneira radical
das conferidas pelos universais do pensamento iluminista ou do modernismo confuso mas universalista que formava a outra grande corrente de pensamento do
final do século XIX.
Seria errôneo considerar apartadas essas duas tendências de pensamento - o
universalismo e o particularismo. Devemos encará-las, em vez disso, como duas correntes de sensibilidade paralelas, presentes muitas vezes na mesma pessoa, mesmo
quando uma ou outra se tornava dominante num lugar e num momento espeáficos.
Le Corbusier começou a vida examinando com atenção os estilos vernaculares, mesmo
reconhecendo a importância da racionalização de um espaço homogêneo de acordo
com as propostas de planejadores utópicos. O fasónio dos movimentos culturais de
Viena, em especial antes da Primeira Guerra, deriva, suspeito, precisamente das maneiras confusas pelas quais as duas correntes que identifiquei se fundiram no tempo,
no lugar e na pessoa quase sem freios. A sensualidade incontida de Klimt, o
expressionismo agônico de Egon Schiele, a rigorosa rejeição do ornamento e a moldagem
racional do espaço de Adolf Loos - tudo isso se unindo em meio a uma crise da
cultura burguesa, aprisionada em sua própria rigidez, mas enfrentando vertiginosas
mudanças na experiência do espaços e do tempo.
Embora sempre afirmasse de modo ostensivo os valores do internacionalismo
e do universalismo, o modernismo nunca pôde acertar adequadamente suas contas
com o paroquialismo e o nacionalismo. Ele ou se definia em oposição a essas forças
demasiado familiares (que tinham uma forte identificação, se bem que de modo
algum exclusiva, com as chamadas "classes médias") ou então seguia a estrada
elitista e etnocêntrica, presumindo que Paris, Berlim, Nova Iorque, Londres ou
qualquer outro lugar eram na verdade a fonte intelectual de toda sabedoria estética
e representacíonal. Neste último caso, ele podia ser acusado de imperialismo cultural, mais ou menos do mesmo modo como o expressionismo abstrato se viu
preso a interesses nacionais nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial (ver acima, pp. 42-44). Expostas assim as coisas, estou de certa maneira fugindo da concepção normal do que se supõe ter sido o modernismo. Mas, se não
estivermos preparados para ver mesmo suas aspirações universais como o resultado de um diálogo perpétuo com o localismo e o nacionalismo, perderemos, ao
meu ver, algumas de suas características mais importantes.
Como essa oposição é importante, examinarei um exemplo brilhantemente
explorado em Viena Fin-de-Siecle, de Carl Schorske: o contraste entre as abordagens
de Camillo Sitte e Otto Wagner da produção de espaço urbano. Sitte, fundamentado na tradição artesanal da Viena do final do século XIX, e horrorizado com o
funcionalismo estreito e técnico que parecia se apegar à ambição desenfreada do
lucro comercial, buscava construir espaços que fizessem o povo da cidade se sentir
"seguro e feliz". Isso significava que "a construção da cidade não deve ser uma
mera questão técnica, mas uma questão estética no sentido mais elevado". Portanto, ele se pôs a criar espaços interiores - mercados e praças - que promovessem
a preservação e mesmo a recriação de um sentido de comunidade. Ele pretendi~
"sobrepujar a fragmentação e fornecer uma 'perspectiva de vida comunitária"' ao
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
251
povo como um todo. Esse uso da arte para moldar o espaço a fim de criar um real
sentido de comunidade era, para Sitte, a única resposta possível à modernidade.
Como resume Schorske (p. 72): "Na fria cidade moderna assolada pelo tráfego da
régua de cálculo e dos cortiços, a pitoresca praça reconfortante pode despertar
lembranças do passado burguês desaparecido. Essa lembrança espacialmente dramática vai nos inspirar a criar um futuro melhor, livre de filisteísmo e utilitarismo".
A que valores coerentes poderia Sitte recorrer? Necessitando de um novo ideal, "ao
lado e além do mundo real", Sitte "exaltou Richard Wagner como o gênio que
reconheceu essa obra redentora, orientada para o futuro, como a tarefa especial do
artista. O artista deve criar outra vez o mundo que o defensor sem raízes da ciência
e do comércio destruiu, deixando o Volk sofredor sem um mito vital pelo qual
viver" (p. 69).
As idéias de Sitte (paralelas às de uma antimodernista como Jane Jacobs e bem
populares junto aos planejadores urbanos de hoje) podem ser vistas como uma
reação específica à comercialização, ao racionalismo utilitário e às fragmentações e
inseguranças que surgem tipicamente em condições de compressão do tempoespaço. Essas idéias também tentam definitivamente espacializar o tempo; ao fazê-lo, contudo, não podem deixar de estetizar a política, no caso de Sitte mediante o
apelo ao mito wagneriano e à sua noção de uma comunidade com raízes. Sitte fazia
uma concessão, entretanto, a todo um conjunto de práticas espaciais, culturais e
políticas que visavam reforçar a solidariedade e a tradição da comunidade local
diante do universalismo e do globalismo do poder do dinheiro, da mercadificação
e da circulação do capital. Kern, por exemplo, relata que "os festivais nacionais na
Alemanha desse período eram realizados em espaços que circundavam monumentos nacionais onde massas de pessoas podiam cantar e dançar". Eram esses os tipos
de espaços que Sitte procurou fornecer.
O aterrorizante acerca da história subseqüente dessa espécie de prática espacial
é o modo como muitos artesãos vienenses que Sitte defendeu (ao lado das suas
contrapartes alemãs) mais tarde se aglomeraram nas praças, mercados e espaços
vivos que Sitte quisera criar para exprimir sua virulenta oposição ao internacionalismo, voltando-se para o anti-semitismo (atacando o grupo étnico e religioso mais
representativo do internacionalismo, tanto do capital como do trabalho, em virtude
de sua condição de diáspora) e para os mitos localizados do nazismo, em oposição
ao utilitarismo racional do pensamento iluminista. Os dramáticos espetáculos da
espécie organizada pelos nazistas por certo tornavam o espaço vivo e conseguiam
apelar para uma profunda mitologia de lugar que simbolizava a "comunidade",
mas uma comunidade de tipo bem reacionário.
Em condições de desemprego em massa, queda de barreiras espaciais e subseqüente vulnerabilidade do lugar e da comunidade ao espaço e ao capital, era fácil
demais despertar sentimentos do mais fanático localismo e nacionalismo. Não estou
acusando Sitte nem as suas idéias por essa história, nem mesmo indiretamente.
Mas creio ser importante reconhecer a conexão potencial entre projetos de moldar
o espaço e encorajar práticas espaciais do tipo defendido por Sitte e projetos políticos que podem ter implicações, na melhor das hipóteses, conservadoras e, na
pior, claramente reacionárias. Afinal, esses foram os tipos de sentimentos de lugar,
de Ser e de comunidade que levaram Heidegger a abraçar o nacional-socialismo.
252
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Otto Wagner, contemporâneo de Sitte, aceitou a universalidade com muito
mais élan. Fundamentando suas idéias no mote "a necessidade é a única soberana
da arte", ele se dedicou a impor ordem ao caos, a racionalizar a organização do
movimento com base na "eficiência, na economia e na facilitação da realização dos
negócios". Mas ele também tinha de recorrer a algum tipo de sentimento estético
dominante para sobrepujar a "dolorosa incerteza" que surgia num "mundo de
tempo e movimento vertiginosos" (Schorske, 1981, 85). Essa incerteza só poderia
ser superada por uma clara ruptura com o passado, usando a imagem da máquina
como a forma última da racionalidade eficiente e explorando cada elemento das
técnicas e materiais modernos. Wagner foi, em resumo, um pioneiro do final do
século XIX das formas "heróicas" de modernismo que estavam na moda nos anos
1920 com Le Corbusier, Gropius, Mies van der Rohe etc.
Essas duas linhas- internacionalista e localizada- de resposta ao fenômeno
da compressão do tempo-espaço colidiram violentamente na guerra global de 1914-1918. O fato de essa guerra ter sido na verdade catalisada em vez de contida
interessa precisamente porque ilustra como condições de compressão do tempoespaço, na ausência de um meio adequado para a sua representação, tornam impossível determinar, para não falar de seguir, linhas nacionais de conduta. Os
novos sistemas de transporte e comunicação, observa Kern (1983, 260-1}, "fortaleceram a meada do internacionalismo e facilitaram a cooperação internacional", ao
mesmo tempo em que "dividiram nações quando todas tinham pretensões imperiais e se chocavam numa série de crises". Ele sugere que "uma das grandes ironias
do período foi o fato de uma guerra mundial só se tornar possível depois de o
mundo ter ficado bastante unido". Ainda mais perturbador é o seu relato da crise
de julho que levou à guerra. No verão de 1914, "os homens que estavam no poder
perderam as estribeiras no frenesi ponteado por tempestades de telegramas, conversas telefônicas, memorandos e comunicados à imprensa; políticos seguros entraram em colapso, e experientes negociadores cederam à pressão de tensos confrontos e noites em claro, em agonia diante das prováveis conseqüências desastrosas dos seus julgamentos apressados e ações precipitadas".
Os jornais alimentavam a raiva popular e mobilizações militares eram feitas do
dia para a noite, o que contribuiu para a histeria da atividade diplomática, que veio
abaixo simplesmente porque não era possível tomar decisões bastantes com rapidez suficiente em localidades bastantes para pôr as tensões quase bélicas sob o
controle coletivo. O resultado disso foi a guerra global. Tanto para Gertrude Stein
como para Picasso, ela pareceu uma guerra cubista, tendo sido travada em tantas
frentes e em tantos espaços que essa denotação parece razoável mesmo em escala
global.
É difícil, mesmo em retrospecto; avaliar o impacto desse evento no modo de
pensar o tempo e o espaço (ver acima, pp. 37-39). Deve-se dar algum crédito ao
julgamento de Kern, segundo o qual "em quatro anos, a crença na evolução, no
progresso e na própria história tinha desaparecido", visto que a guerra tinha "rompido o tecido histórico e apartado, súbita e irreparavelmente, todas as pessoas do
passado". O colapso ecoou de maneira quase exata as tensões de 1848 e abalou
percepções do espaço e do tempo. A descrição feita por Taylor (1987, 126) do que
aconteceu com o artista alemão Beckmann é instrutiva aqui:
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
253
Antes da guerra, Beckmann defendera um estilo sensual voltado para a textura, de volumes arredondados e ricas gradações do espaço ... Então, no decorrer
da guerra, seu estilo sofreu uma completa mudança. Bekmann é enviado para
lugares próximos da linha de frente em algumas das batalhas mais ferozes da
guerra, mas continua a desenhar e pintar as aterrorizantes experiências que o
cercavam com um interesse quase compulsivo ... Seu estilo alegórico desaparece ... sendo substituído por um modo de pintar mais oco, estilhaçado e carregado. Ele escreve, no final de 1914, sobre o horror fascinado que estava
desenvolvendo pelo "espaço, distância, infinidade". Em 1915, fala desse " ... espaço infinito cujo primeiro plano deve ser enchido outra vez com alguma
espécie de entulho, para que não se veja sua terrível profundidade .. . cobrindo
assim, até certo ponto, o enorme buraco negro ... " Então, Beckmann sofreu um
choque depois do qual sua arte logo assumiu uma dimensão quase inimaginavelmente estranha ... obras quase místicas de generalidade transcendente que
não correspondiam a eventos reais.
Mas também havia algo muito consistente com o impulso modernista na criação e exploração de tal ruptura radical com o passado. O advento da Revolução
Russa permitiu que ao menos alguns vissem a ruptura como oportunidade de
progresso e nova criação. Por infelicidade, o próprio movimento socialista se dividiu, internalizando a tensão entre objetivos internacionais e nacionais (como o
evidenciam os famosos debates do período entre Lenin, Luxemburgo e muitos
outros sobre a questão nacional e as perspectivas do socialismo num só país). O
próprio surgimento da revolução, no entanto, permitiu que as tendências
avassaladoramente nacionalistas da Segunda Internacional fossem postas em xeque por um novo sentido de vínculo entre os alvos do modernismo e os da revolução socialista e do internacionalismo.
Assim sendo, o modernismo "heróico" pós-1920 pode ser interpretado como
um combate obstinado entre a sensibilidade universalista e a localista na arena da
produção cultural. O "heroísmo" derivava da extraordinária tentativa intelectual e
artística de chegar a um acordo com a crise da experiência do espaço e do tempo
- que surgira antes da Primeira Guerra -, dominando-a, bem como de combater
os sentimentos nacionalistas e geopolíticos expressos pela guerra. Os modernistas
heróicos buscavam mostrar que as acelerações, fragmentações e a centralização
implosiva (em particular na vida urbana) podiam ser representadas e, portanto,
contidas numa imagem singular. Eles queriam mostrar que o localismo e o nacionalismo podiam ser superados e que algum sentido de um projeto global de aperfeiçoamento do bem-estar humano poderia ser restaurado. Isso envolvia uma
mudança definida de perspectiva diante do espaço e do tempo. A modificação
ocorrida entre 1914 e 1930 no estilo de pintura de Kandinsky é ilustrativa. Antes
da guerra, Kandinsky pintava telas extraordinárias em que remoinhos violentos de
cor brilhante parecem implodir simultaneamente na tela e explodir para além das
extremidades de uma moldura que parece impotente para contê-los. Dez anos mais
tarde, vemos Kandinsky no Bauhaus (um dos centros-chave do pensamento e da
prática modernistas) pintando quadros controlados de espaços claramente organizados numa moldura segura, em alguns casos usando de modo evidente a forma
254
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
de plantas de cidades diagramadas vistas de uma perspectiva bem acima da terra
(ver ilustrações 3.11 e 3.12).
Se o modernismo significava, entre outras coisas, a sujeição do espaço a propósitos humanos, a ordenação e o controle racionais do espaço como parte integrante de uma cultura moderna fundada na racionalidade e na técnica, e na supressão de barreiras espaciais e da diferença, tinham de ser fundidos com alguma
espécie de projeto histórico. A evolução de Picasso também é instrutiva. Abandonando o cubismo depois da "guerra cubista", ele se voltou para o classicismo por
um breve período depois de 1919, é provável que por causa de alguma tentativa
de redescoberta de valores humanistas. Pouco depois, porém, ele retoma às suas
explorações dos espaços interiores por meio de sua total pulverização, para recuperar a destruição numa obra-prima criativa, Guernica, em que o estilo modernista
é usado como um "instrumento flexível de conexão de pontos de vista espaciais e
temporais múltiplos no âmbito da imagem retoricamente forte" (Taylor, 1987, 150).
Os pensadores iluministas tinham postulado o bem-estar humano como sua
meta. Esse objetivo nunca esteve longe da superfície da retórica do modernismo do
período entre-guerras. O problema era encontrar circunstâncias práticas e recursos
financeiros para concretizar essas metas. Os russos, obviamente atraídos pela ética
modernista de uma ruptura radical com o p assado por razões ideológicas, fome-
Ilustração 3.11 Os quadros de Kandinsky do período pré-guerra de 1914,
tais como Jugement Dernier, de 1912, exibem um sentido tão explosivo de espaço
que parecem saltar da tela com um dinamismo incontrolável.
A ASCENSÃO DO MODERNISMO COMO FORÇA CULTURAL
255
Ilustração 3.12 Depois do trauma da Primeira Guerra Mundial, Kandinsky
passa a empregar imagens muito mais controladas e racionalizadas de
organização espacial, como em Les Deux, de 1924, que exibe uma semelhança
mais do que causal com um mapa urbano estilizado.
ceram um espaço em que todo um conjunto de experimentos - sendo o formalismo
russo e o construtivismo sem dúvida os mais importantes- podia ser realizado,
espaço do qual surgiram amplas iniciativas em termos de cinema, pintura, literatura e música, bem como de arquitetura. Mas a margem de manobra para essa
experimentação era relativamente pequena, e os recursos dificilmente eram muitos,
mesmo para os mais comprometidos com a causa da revolução. Por outro lado,
esse vínculo entre socialismo e modernismo, mesmo tênue, estendeu uma nuvem
sobre a reputação do modernismo no Ocidente capitalista, onde a virada para o
surrealismo (também com sobretons políticos) não ajudava. Em sociedades em que
a acumulação do capital - a "missão histórica da burguesia", como a chamou
Marx - permanecia como o pivô efetivo da ação, só havia lugar para o modernismo maquinal do tipo feito pelo Bauhaus.
As aflições do modernismo também eram internas. Para começar, ele nunca
pôde escapar ao problema de sua própria estética como uma espécie de espacialização. Por mais flexíveis em sua capacidade de absorver futuros desenvolvimentos e expansões, os planos de Otto Wagner ou deLe Corbusier fixavam o espaço,
necessariamente, em meio a um processo histórico com alto grau de dinamismo.
Não era fácil resolver o problema da contenção de processos fluentes e expansivos num quadro espacial fixo de relações de poder, infra-estruturas etc. O resultado foi um sistema social demasiado propenso a gerar a destruição criativa do
tipo que se manifestou impiedosamente depois do colapso capitalista de 1929. Na
qualidade de espacializações, os artefatos produzidos pelos modernos (é verdade
256
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
que com exceções, como os dadaístas) transmitiam um sentido permanente, senão
monumental, de valores humanos supostamente universais. Mas mesmo Le
Corbusier reconhecia que tal ato tinha de invocar o poder do mito. E aqui começa
a real tragédia do modernismo, porque não foram os mitos preferidos de Le
Corbusier, Otto Wagner ou Walter Gropius que dominaram as coisas. Foram ou o
culto a Mamom ou, pior ainda, os mitos incitados por uma política estetizada que
dava o ritmo. Le Corbusier flertou com Mussolini e se comprometeu com a França
de Pétain, Oscar Niemeyer planejou Brasília para um presidente populista, mas a
construiu para generais implacáveis, as percepções do Bauhaus foram empregadas
no planejamento dos campos de morte e a regra de que a forma segue o lucro e
a função dominou em toda parte.
No final, as estetizações da política e o poder do capital-dinheiro triunfaram
sobre um movimento estético que mostrara como é possível controlar e reagir
racionalmente à compreensão do tempo-espaço. Suas percepções, tragicamente,
foram absorvidas para propósitos que de modo algum eram os seus. O trauma da
Segunda Guerra Mundial mostrou, se há necessidade de provas adicionais para
essa proposição, que era fácil demais para as espacializações de Hegel subverter o
projeto histórico do Iluminismo (e de Marx). As intervenções geopolíticas e estéticas sempre parecem implicar uma política nacionalista e, portanto, inevitavelmente
reacionária.
A oposição entre o Ser e o Vir-a-Ser é central na história do modernismo. É
preciso vê-la em termos políticos como uma tensão entre o sentido do tempo e o
foco do espaço. Depois de 1848, o modernismo como movimento cultural lutou
com essa oposição, muitas vezes de modo criativo. O combate envolveu em todos
os aspectos o avassalador poder do dinheiro, do lucro, da acumulação do capital
e do Estado como quadro de referência no âmbito do qual todas as formas de
prática cultural tinham de se desenrolar. Mesmo em condições de disseminada
revolta de classe, a dialética do Ser e do Vir-a-Ser apresentou problemas aparentemente intratáveis. E, sobretudo, o sentido mutante do espaço e-do tempo, forjado
pelo próprio capitalismo, forçara perpétuas reavaliações das representações do
mundo na vida cultural. Somente numa era de especulação sobre o futuro e sobre
a formação do capital fictício podia o conceito de vanguarda (tanto artística como
política) ter algum significado. A mudança da experiência do espaço e do tempo
teve muito a ver com o nascimento do modernismo e com seus confusos vagares
de um lado para o outro da relação espácio-temporal. Se isso for verdade, vale
muito a pena explorar a proposição de que o pós-modernismo é alguma espécie de
resposta a um novo conjunto de experiências do espaço e do tempo, uma nova
rodada da "compressão do tempo-espaço".
17
A compressão do tempo-espaço e a
condição pós-moderna
Como os usos e significados do espaço e do tempo mudaram com a transição
do fordismo para a acumulação flexível? Desejo sugerir que temos vivido nas duas
últimas décadas uma intensa fase de compressão do tempo-espaço que tem tido
um impacto desorientado e disruptivo sobre as práticas político-econômicas, sobre
o equilíbrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural. Apesar do
eterno perigo das analogias históticas, creio não ser por acaso que a sensibilidade
pós-moderna evidencia fortes simpatias por determinados movimentos políticos,
culturais e filosóficos confusos que ocorreram no começo deste século (em Viena,
por exemplo), quando o sentido da compressão do tempo-espaço também era
peculiarmente forte. Também observo a volta do interesse pela teoria geopolítica
a partir de mais ou menos 1970, o retorno da estética do lugar e uma propensão
revigorada (mesmo na teoria social) a abrir o problema da espacialidade a uma
reconsideração geral (ver, por exemplo, Gregory e Urry, 1985, e Soja, 1988).
A transição para a acumulação flexível foi feita em partes por meio da rápida
implantação de novas formas organizacionais e de novas tecnologias produtivas.
Embora estas últimas possam ter se originado da busca da superioridade militar,
sua aplicação teve muito que ver com a superação da rigidez do fordismo e com
a aceleração do tempo de giro como solução para os graves problemas do fordismo-keynesianismo, que se tornaram uma crise aberta em 1973. A aceleração na produção foi alcançada por mudanças organizacionais na direção da desintegração
vertical - subcontratação, transferência de sede etc. - que reverteram a tendência
fordista de integração vertical e produziram um curso cada vez mais indireto na
produção, mesmo diante da crescente centralização financeira. Outras mudanças
organizacionais - tais como o sistema de entrega "just-in-time", que reduz os
estoques -, quando associadas com novas tecnologias de controle eletrônico, de
produção em pequenos lotes etc., reduziram os tempos de giro em muitos setores
da produção (eletrônica, máquinas-ferramenta, automóveis, construção, vestuário
etc.). Para os trabalhadores, tudo isso implicou uma intensificação dos processos de
trabalho e uma aceleração na desqualificação e requalificação necessárias ao atendimento de novas necessidades de trabalho (ver Parte 11).
A aceleração do tempo de giro na produção envolve acelerações paralelas na troca
e no consumo. Sistemas aperfeiçoados de comunicação e de fluxo de infom1ações,
associados com racionalizações nas técnicas de distribuição (empacotamento, controle
de estoques, conteinerização, retorno do mercado etc.), possibilitaram a circulação de
mercadorias no mercado a uma velocidade maior. Os bancos eletrônicos e o dinheiro
de plástico foram algumas das inovações que aumentaram a rapidez do fluxo de
258
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
dinheiro inverso. Serviços e mercados financeiros (auxiliados pelo comércio computadoiizado) também foram acelerados, de modo a fazer, como diz o ditado, "vinte e
quatro horas ser um tempo bem longo" nos mercados globais de ações.
Denfre os muitos desenvolvimentos da arena do consumo, dois têm particular
importância. A mobilização da moda em mercados de massa (em oposição a mercados de elite) forneceu um meio de acelerar o ritmo do consumo não somente em
termos de roupas, ornamentos e decoração, mas também numa ampla gama de
estilos de vida e atividades de recreação (hábitos de lazer e de esporte, estilos de
música pop, videocassetes e jogos infantis etc.). Uma segunda tendência foi a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços - não apenas serviços
pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e distrações. O "tempo de vida" desses serviços (uma visita a um
museu, ir a um concerto de rock ou ao cinema, assistir a palestras ou freqüentar
clubes), embora difícil de estimar, é bem menor do que o de um automóvel ou de
uma máquina de J.avar. Como há limites para a acumulação e para o giro de bens
físicos (mesmo levando em conta os famosos seiscentos pares de sapatos de Imelda
Marcos), faz sentido que os capitalistas se voltem para o fornecimento de serviços
bastante efêmeros em termos de consumo. Essa busca pode estar na raiz da rápida
penetração capitalista, notada por Mandei e Jameson (ver acima, p. 65), em muitos
setores da produção cultural a partir da metade dos anos 60.
Dentre as inúmeras col;lseqüências dessa aceleração generalizada dos tempos
de giro do capital, destacarei as que têm influência particular nas maneiras pós-modernas de pensar, de sentir e de agir.
A primeira conseqüência importante foi acentuar a volatilidade e efemeridade
de modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas. A sensação de que "tudo o que é sólido se
desmancha no ar" raramente foi mais pervasiva (o que provavelmente explica o
volume de textos sobre esse tema nos últimos anos). O efeito disso nos mercados
e habilidades de trabalho já roi considerado (ver Parte 11). Meu interesse aqui é
examinar os efeitos mais gerais sobre a sociedade como um todo.
No domínio da produção de mercadorias, o efeito primário foi a ênfase nos
valores e virtudes da instantaneidade (alimentos e refeições instantâneos e rápidos
e outras comodidades) e da descartabilidade (xícaras, pratos, talheres, embalagens,
guardanapos, roupas etc.). A dinâmica de uma sociedade "do descarte", como a
apelidaram escritores como Alvin Toffler (1970), começou a ficar evidente durante
os anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um
monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa também ser capaz
de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas,
edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser.
Foram essas as formas imediatas e tangíveis pelas quais o "impulso acelerador
da sociedade mais ampla" golpeou "a experiência cotidiana comum do indíviduo"
(Toffler, p. 40). Por intermédio desses mecanismos (altamente eficazes da perspectiva da aceleração do giro de bens no consumo), as pessoas foram forçadas a lidar
com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea.
"Em comparação com a vida numa sociedade que se transforma com menos rapidez, hoje fluem mais situações em qualquer intervalo de tempo dado - e isso
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
259
implica profundas mudanças na psicologia humana". Essa efemeridade, sugere
Toffler, cria "uma temporariedade na estrutura dos sistemas de valores públicos e
pessoais" que fornece um contexto para a "quebra do consenso" e para a diversificação de valores numa sociedade em vias de fragmentação.
O bombardeio de estímulos, apenas no campo da mercadoria, gera problemas
de sobrecarga sensorial que tornam a dissecção dos problemas da vida urbana
modernista na virada do século, feita por Simmel, insignificante em termos comparativos. Contudo, precisamente por causa das qualidades relativas da mudança,
as respostas psicológicas se enquadram mais ou menos no intervalo identificado
por Simmel- o bloqueio dos estímulos sensoriais, a negação e o cultivo da atitude
blasée, a especialização míope, a reversão a imagens de um passado perdido (daí
decorrendo a importância de memoriais, museus, ruínas) e a excessiva simplificação (na apresentação de si mesmo ou na interpretação dos eventos). Nesse sentido,
é instrutivo ver que Toffler (pp. 326-329), num momento bem ulterior da compressão do tempo-espaço, faz eco ao pensamento de Simmel, cujas idéias foram moldadas num período de trauma semelhante há mais de setenta anos.
Com efeito, a volatilidade torna extremamente difícil qualquer planejamento
de longo prazo. Para falar a verdade, hoje é tão importante aprender a trabalhar
com a volatilidade quanto acelerar o tempo de giro. Isso significa ou uma alta
adaptação e capacidade de se movimentar com rapidez em resposta a mudanças
de mercado, ou o planejamento da volatilidade. A primeira estratégia aponta em
especial para o planejamento de curto prazo, bem como para o cultivo da arte de
obter ganhos imediatos sempre que possível. Essa tem sido uma característica
notória da administração norte-americana nos últimos anos. O mandato médio dos
dirigentes das empresas caiu para cinco anos, e empresas nominalmente envolvidas na produção com freqüência buscam ganhos de curto prazo por meio de fusões, aquisições ou operações em mercados financeiros e de moedas. É considerável a tensão do desempenho gerencial num tal ambiente, gerando todo tipo de
efeito colateral, tal como o chamado "resfriado yuppie" (uma condição de estafa
psicológica que paralisa a ação de pessoas talentosas e produz duradouros sintomas semelhantes aos do resfriado) ou o frenético estilo de vida dos operadores
financeiros, cujo vício de trabalhar, longas horas de trabalho e corrida pelo poder
fazem deles excelentes candidatos para a espécie de mentalidade esquizofrênica
que Jameson descreve.
Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por
outro lado, a manipulação do gosto e da opinião, seja tornando-se um líder da
moda ou saturando o mercado com imagens que adaptem a v.olatilidade a fins
particulares. Isso significa, em ambos os casos, construir novos sistemas de signos
e imagens, o que constitui em si mesmo um aspecto importante da condição pós-moderna, aspecto que precisa ser considerado de vários ângulos distintos. Para
começar, a publicidade e as imagens da mídia (como vimos na Parte I) passaram
a ter um papel muito mais integrador nas práticas culturais, tendo assumido agora
uma importância muito maior na dinâmica de crescimento do capitalismo. Além
disso, a publicidade já não parte da idéia de informar ou promover no sentido
comum, voltando-se cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido (ver
260
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
ilustração 1.10). Se privássemos a propaganda moderna da referência direta ao
dinheiro, ao sexo e ao poder, pouco restaria.
Acresce que as imagens se tornaram, em certo sentido, mercadorias. Esse fenômeno levou Baudrillard (1981) a alegar que a análise marxiana da produção de
mercadorias está ultrapassada, porque o capitalismo agora tem preocupação predominante com a produção de signos, imagens e sistemas de signos, e não com as
próprias mercadorias. A transição que ele indica é importante, se bem que não haja
dificuldades sérias para estender a teoria da produção da mercadoria de Marx ao
seu tratamento. Na realidade, os sistemas de produção e comercialização de imagens (tal como os mercados da terra, dons bens públicos ou da força de trabalho)
de fato exibem algumas características especiais que precisam ser consideradas. O
tempo de giro do consumo de certas imagens com certeza pode bem curto (perto
do ideal do "piscar de olhos" que Marx viu como ótimo da perspectiva da circulação do capital). Do mesmo modo, muitas imagens podem ser vendidas em massa
instantaneamente no espaço. Dadas as pressões de aceleração do tempo de giro (e
de superação das barreiras espaciais), a mercadificação de imagens do tipo mais
efêmero seria uma dádiva divina do ponto de vista da acumulação do capital, em
particular quando outras vias de alívio da superacumulação parecem bloqueadas.
A efemeridade e a comunicabilidade instantânea no espaço tornam-se virtudes a
ser exploradas e apropriadas pelos capitalistas para os seus próprios fins.
Mas as imagens têm de desempenhar outras funções. Tanto as corporações
como os governos e os líderes intelectuais e políticos valorizam uma imagem estável (embora dinâmica) como parte de sua aura de autoridade e poder. A
mediatização da política passou a permear tudo. Ela se tornou, com efeito, o meio
fugidio, superficial e ilusório mediante o qual uma sociedade individualista de
coisas transitórias apresenta sua nostalgia de valores comuns. A produção e venda
dessas imagens de permanência e de poder requerem uma sofisticação considerável, porque é preciso conservar a continuidade e a estabilidade da imagem enquanto se acentuam a adaptabilidade, a flexibilidade e o dinamismo do objeto, material
ou humano, da imagem. Além disso, a imagem se torna importantíssima na concorrência, não somente em torno do reconhecimento da marca, como em termos de
diversas associações com esta - "respeitabilidade", "qualidade", "prestígio", "confiabilidad e" e "inovação" .
A competição no mercado da construção de imagens passa a ser um aspecto
vital da concorrência entre as empresas. O sucesso é tão claramente lucrativo que
o investimento na construção da imagem (patrocínio das artes, exposições, produções televisivas e novos prédios, bem como marketing direto) se torna tão importante quanto o investimento em novas fábricas e maquinário. A imagem serve para
estabelecer uma identidade no mercado, o que se aplica também aos mercados de
trabalho. A aquisição de uma imagem (por meio da compra de um sistema de
signos como roupas de griffe e o carro da moda) se torna um elemento singularmente importante na auto-apresentação nos mercados de trabalho e, por extensão,
passa a ser parte integrante da busca de identidade individual, auto-realização e
significado na vida. Sinais divertidos, mas tristes desse tipo de busca são abundantes. Uma empresa da Califórnia fabrica telefones de carro de imitação, indistinguíveis
dos reais, que vende como pão quente a tanta gente desesperada para adquirir tal
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
261
símbolo de importância. Consultorias de imagem pessoal viraram um grande negócio na cidade de Nova Iorque, segundo matéria do lntemational Herald Tribune,
visto que mais de um milhão de pessoas por ano freqüentam, na região, cursos de
empresas chamadas Image Assemblers [Montadores de Imagem], Image Builders
[Contrutores de Imagem], Image Crafters [Artesãos da Imagem] e Image Creators
[Criadores de Imagem]. "As pessoas formam uma idéia de você, hoje em dia, em
um décimo de segundo", diz um consultor de imagem. "Você deve fingir até
conseguir" - é o lema de outro.
É claro que símbolos de riqueza, de posição, de fama e de poder, assim como
de classe, sempre tiveram importância na sociedade burguesa, mas é provável que
nunca tanta quanto hoje. A crescente afluência material gerada no período de
expansão fordista do pós-guerra levantou o problema de converter rendas em
ascensão numa demanda efetiva que satisfizesse as aspirações em crescimento dos
jovens, das mulheres e da classe trabalhadora. Dada a capacidade de produzir
imagens como mercadorias mais ou menos à vontade, é factível que a acumulação
se processe, ao menos em parte, com base na pura produção e venda da imagem.
A efemeridade dessas imagens pode ser interpretada parcialmente como uma luta
dos grupos oprimidos de qualquer espécie para estabelecer sua própria identidade
(em termos de cultura da rua, estilos musicais, manias e modas criadas para eles
mesmos) e como o esforço para fazer essas inovações criarem vantagens comerciais
(Carnaby Street, no final dos anos 60, foi uma excelente pioneira). O efeito é dar
a impressão de que estamos vivendo num mundo de efêmeras imagens criadas.
Assim sendo, os impactos psicológicos da sobrecarga sensorial do tipo identificado
por Simmel e Toffler se manifestam duplamente.
Os materiais de produção e reprodução dessas imagens, quando estas não
estão disponíveis, tornaram-se eles mesmos o foco da inovação - quanto melhor
a réplica da imagem, tanto maior o mercado de massas da construção da imagem
pode tornar-se. Isso constitui por si só uma questão importante, levando-nos de
modo mais explícito a considerar o papel do "simulacro" no pós-modernismo. Por
"simulacro" designa-se um estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase impossível de ser percebida. Com as
técnicas modernas, a produção de imagens como simulacros é relativamente fácil.
Na medida em que a identidade depende cada vez mais de imagens, as réplicas
seriais e repetitivas de identidade (individuais, corporativas, institucionais e políticas) passam a ser uma possibilidade e um problema bem reais. Por certo podemos vê-las agindo no campo da política, em que os fabricantes de imagens e a
mídia assumem um papel mais poderoso na moldagem de identidades políticas.
Mas há muitos domínios mais tangíveis em que o simulacro tem papel significativo. Com os modernos materiais de construção, é possível reproduzir prédios
antigos com uma exatidão que torna duvidosas a autenticidade ou a origem. A
fabricação de antigüidades e de outros objetos de arte é totalmente possível, tornando a fraude sofisticada um sério problema no negócio das coleções de arte. Por
conseguinte, possuímos não apenas a capacidade de empilhar imagens do passado
ou de outros lugares de modo eclético e simultâneo na tela da televisão, como até
de transformar essas imagens em simulacros materiais na forma de ambientes,
eventos e espetáculos etc. construídos que se tornam, em muitos aspectos,
262
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
indistinguíveis dos originais. O que acontece com as formas culturais quando as
imitações passam a ser reais e o real assume muitas qualidades de uma imitação
é um problema a que vamos voltar.
A organização e as condições de trabalho vigentes naquilo que podemos designar de maneira ampla como "indústria da produção de imagens" também são
deveras especiais. Afinal, uma indústria dessa espécie tem de apoiar-se nos poderes inovadores dos produtores diretos. Estes têm uma existência insegura, mitigada por recompensas muito altas aos bem-sucedidos e por ao menos um domínio
aparente dos seus próprios processos de trabalho e forças criativas. O aumento da
produção cultural foi de fato fenomenal. Taylor (1987, 77) contrasta a condição do
mercado de arte de Nova Iorque em 1945, quando havia um punhado de galerias
e um pequeno número de artistas em exposições regulares, e os cerca de dois mil
artistas que trabalhavam em ou em torno de Paris na metade do século passado
com os 150.000 artistas da região de Nova Iorque que reivindicam condição profissional, expondo numas 680 galerias, produzindo mais de 15 milhões de obras de
arte numa década (em comparação com 200.000 na Paris do final do século XIX. E
isso é somente a ponte de um iceberg de produção cultural que abrange artistas e
projetistas gráficos locais, músicos de rua e de bares, fotógrafos, bem como as
escolas mais estabelecidas e reconhecidas de ensino da arte, da música, do teatro
etc. etc. Supera isso, no entanto, o que Daniel Bell (1978, 20) chama de "a massa
cultural", definida como:
não os criadores da cultura, mas os seus transmissores: os que se ocupam da
educação superior, da atividade editorial, das revistas, da mídia eletrônica, dos
teatros e dos museus, que processam e influenciam a recepção de produtos
culturais sérios. Ela é em si mesma ampla o bastante para ser um mercado para
a cultura, para comprar livros, quadros e gravações de música séria. Ela também é o grupo que, como escritores, editores de revistas, cineastas, músicos e
assim por diante, produz os materiais populares para o público mais amplo da
cultura de massas.
Toda essa indústria se especializa na aceleração do tempo de giro por meio da
produção e venda de imagens. Trata-se de uma indústria em que reputações são
feitas e perdidas da noite para o dia, onde o grande capital fala sem rodeios e onde
há um fermento de criatividade intensa, muitas vezes individualizada, derramado
no vasto recipiente da cultura de massa serializada e repetitiva. É ela que organiza
as manias e modas, e, assim fazendo, produz a própria efemeridade que sempre
foi fundamental para a experiência da modernidade. Ela se torna um meio social
de produção do sentido de horizontes temporais em colapso de que ela mesma,
por sua vez, se alimenta tão avidamente.
A popularidade de uma obra como O choque do futuro, de Alvin Toffler, reside
precisamente em sua presciente apreciação da velocidade com a qual o futuro veio
a ser descontado no presente. Também disso vem uma queda das distinções culturais entre, digamos, "ciência" e ficção "regular" (em obras como as de Thomas
Pynchon e Doris Lessing), bem como a fusão do cinema de distração com o cinema
de universos futurísticos. Podemos vincular a dimensão esquizofrênica da pós-
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
263
-modernidade que Jameson destaca (ver acima pp. 56-58) com acelerações dos
tempos de giro na produção, na troca e no consumo, que produzem, por assim
dizer, a perda de um sentido do futuro, exceto e na medida em que o futuro possa
ser descontado do presente. A volatilidade e a efemeridade também tornam difícil
manter qualquer sentido firme de continuidade. A experiência passada é comprimida em algum presente avassalador. Italo Calvino (1981, 8) relata o efeito disso
em sua própria arte de romancista da seguinte maneira:
os romances longos escritos hoje são talvez uma contradição: a dimensão do
tempo foi abalada, não podemos viver nem pensar exceto em fragmentos de
tempo, cada um dos quais segue sua própria trajetória e desaparece de imediato. Só podemos redescobrir a continuidade do tempo nos romances do período
em que o tempo já não parecia parado e ainda não parecia ter explodido, um
período que não durou mais de cem anos.
Baudrillard (1986), sempre sem medo de exagerar, considera os Estados Unidos uma sociedade tão entregue à velocidade, ao movimento, às imagens cinematográficas e aos reparos tecnológicos que gerou uma crise de lógica explicativa.
Eles representam, ao seu ver, "o triunfo do efeito sobre a causa, da instantaneidade
sobre a profundidade do tempo, o triunfo da superfície e da pura objetificação
sobre a profundidade do desejo". Esse é, com efeito, o tipo de ambiente em que o
desconstrucionismo pode florescer. Se é impossível falar alguma coisa da solidez
e da permanência em meio a este mundo efêmero e fragmentado, por que não
entrar no jogo [de linguagem]? Tudo, da escritura de romances e do filosofar à
experiência de trabalhar ou construir um lar, tem de enfrentar o desafio do tempo
de giro em aceleração e do rápido cancelamento de valores tradicionais e historicamente adquiridos. Nessa circunstância, o contrato temporário inerente a tudo se
torna, como observa Lyotard (ver acima, p. 109), a marca da vida pós-moderna.
Mas, como sucede tantas vezes, o mergulho no turbilhão da efemeridade provocou uma explosão de sentimentos e tendências opostos. Para começar, surge
toda espécie de meio técnico para evitar choques do futuro. As empresas subcontratam ou recorrem a práticas flexíveis de admissão para compensar os custos
potenciais de desemprego provocado por futuras mudanças no mercado. Mercados futuros em tudo, do milho e do bacon a moedas e dívidas governamentais,
associados com a "secularização" de todo tipo de dívida temporária e flutuante,
ilustram técnicas de descontar o futuro do presente. Toda espécie de seguro contra
a futura volatilidade vai ser tornando cada vez mais disponível.
Surgem também questões mais profundas de significado e interpretação. Quanto
maior a efemeridade, tanto maior a necessidade de descobrir ou produzir algum
tipo de verdade eterna que nela possa residir. O revivalismo religioso, que se
tornou muito mais forte a partir do final dos anos 60, e a busca de autenticidade
de autoridade na política (com todos os seus atavios de nacionalismo, localismo e
admiração por indivíduos carismáticos e "multiformes" com sua "vontade de poder"
nietzschiana) são casos pertinentes. O retorno do interesse por instituições básicas
(como a família e a comunidade) e a busca de raízes históricas são indícios da
procura de hábitos mais seguros e valores mais duradouros num mundo cambian-
264
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
te. Rochberg-Halton (1986, 173), num estudo por amostragem de residentes de
North Chicago de 1977, descobriu, por exemplo, que os objetos realmente valorizados na casa não eram os "troféus pecuniários" de uma cultura materialista que
agiam como "índices confiáveis da classe econômica, da idade, do gênero etc.",
mas os artefatos que estavam vinculados "com pessoas amadas e parentes, experiências e atividades valorizadas, e lembranças de eventos da vida e pessoas significativos". Fotografias, objetos específicos (como um piano, um relógio, uma
cadeira) e eventos particulares (uma certa canção tocada ou cantada) se tornam o
foco de uma lembrança contemplativa e, portanto, um gerador de um sentido de
eu que está além da sobrecarga sensorial da cutura e da moda consumista. A casa
se torna um museu privado que protege do furor da compressão do tempo-espaço.
Além disso, ao mesmo tempo em que o pós-modernismo proclama a "morte
do autor" e a ascensão da arte anti-áurica no domínio público, o mercado da arte
se torna cada vez mais consciente do poder monopolista da assinatura do artista
e de questões de autenticidade e fraude (pouco importando que Rauschenberg seja
já uma mera montagem de reproduções). Talvez seja apropriado o fato de o prédio
do desenvolvimentista pós-moderno, sólido como o granito cor-de-rosa do prédio
da AT & T, de Philip Johnson, ser financiado por uma dívida, construído com base
no capital fictício e concebido arquitetonicamente, ao menos no exterior, mais no
espírito da ficção do que na função.
Não foram menos traumáticos os ajustes espaciais. Os sistemas de comunicação por satélite implantados a partir do início da década de 70 tornaram o custo
unitário e o tempo da comunicação invariantes com relação à distância. Custa o
mesmo a comunicação com uma distância de 800 quilômetros e de 8.000 via satélite. As taxas de frete aéreo de mercadorias também caíram dramaticamente, enquanto a conteinerização reduziu o custo do transporte rodoviário e marítimo
pesado. Hoje é possível a uma grande corporação multinacional como Texas
Instruments operar fábricas com decisões simultâneas em termos de custos financeiros, de venda e de insumos, controle de qualidade e condições do processo de
trabalho em mais de cinqüenta localidades diferentes espalhadas pelo globo (Dicken,
1986, 110-113). A televisão de massa associada com a comunicação por satélite
possibilita a experiência de uma enorme gama de imagens vindas de espaços distintos quase simultaneamente, encolhendo os espaços do mundo numa série de
imagens de uma tela de televisão. O mundo inteiro pode assistir aos Jogos Olímpicos, à Copa do Mundo, à queda de um ditador, a uma reunião de cúpula política,
a uma tragédia mortal. .. enquanto o turismo em massa, filmes feitos em locações
espetaculares tornam uma ampla gama de experiências simuladas ou vicárias daquilo que o mundo contém acessível a muitas pessoas. A imagem de lugares e
espaços se torna tão aberta à produção e ao uso efêmero quanto qualquer outra.
Em suma, testemunhamos outra difícil rodada do processo de aniquilação do
espaço por meio do tempo que sempre esteve no centro da dinâmica capitalista (ver
ilustração 3.2). Marshall McLuhan descreveu o modo como via o fato de a "aldeia
global" ter se tornado uma realidade nas comunicações na metade dos anos 60:
Após três mil anos de explosão, por meio de tecnologias fragmentárias e
mecânicas, o Mundo Ocidental está implodindo. No decorrer das eras mecâni-
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNf\
265
cas, estendemos os nossos corpos no espaço. Hoje, passado mais de um século
de tecnologia eletrônica, estendemos o nosso próprio sistema nervoso central
num abraço globat abolindo, no tocante ao nosso planeta, tanto o espaço como
o tempo.
Em anos recentes, inúmeros escritos tomaram essa idéia e tentaram explorar,
como o fez Virilio (1980) em seu Esthétique de la disparition, as conseqüências culturais do suposto desaparecimento do tempo e do espaço como dimensões materializadas e tangíveis da vida social.
Mas a queda de barreiras espaciais não implica o decréscimo da significação do
espaço. Vemos hoje, e não é pela primeira vez na história do capitalismo, evidências que apontam para a tese oposta. O aumento da competição em condições de
crise coagiu os capitalistas a darem muito mais atenção às vantagens localizacionais
relativas, precisamente porque a diminuição de barreiras espaciais dá aos capitalistas o poder de explorar, com bom proveito, minúsculas diferenciações espaciais.
Pequenas diferenças naquilo que o espaço contém em termos de oferta de trabalho,
recursos, infra-estruturas etc. assumem crescente importância. O domínio superior
do espaço é uma arma ainda mais poderosa na luta de classes; ele se torna um dos
meios de aplicação da aceleração e da redefinição de habilidades a forças de trabalho recalcitrantes. A mobilidade geográfica e a descentralização são usadas contra um poder sindical que se concentrava tradicionalmente nas fábricas de produção em massa. A fuga de capitais, a desindustrialização de algumas regiões e a
industrialização de outras e a destruição de comunidades operárias tradicionais
como bases de poder na luta de classes se tornam o pivô na transformação espacial
sob condições de acumulação mais flexíveis (Martin e Rowthorn, 1986; Bluestone
e Harrison, 1982; Harrison e Bluestone, 1988).
Com a redução das barreiras espaciais, aumenta muito mais a nossa sensibilidade ao que os espaços do mundo contêm. A acumulação flexível explora tipicamente uma ampla gama de circunstâncias geográficas aparentemente contingentes,
reconstituindo-as como elementos internos estruturados de sua própria lógica
abrangente. Por exemplo, diferenciações geográficas nas modalidades e condições
de controle do trabalho, ao lado de variações na qualidade e na quantidade da
força de trabalho, assumem uma importância muito maior nas estratégias locacionais
corporativas. Surgem novos conjuntos industriais, por vezes a partir do quase nada
(como os vários vales e planícies do silício), mas com mais freqüência a partir de
alguma mistura preexistente de habilidades e recursos. A "Terceira Itália" (Emilia-Romagna) se baseia numa mistura particular de empreendimentismo cooperativo,
trabalho artesanal e administrações comunistas locais ansiosas por gerar empregos,
e insere seus produtos de vestuário, com incrível sucesso, numa economia mundial
altamente competitiva. Flanders atrai capital externo com base numa oferta de
trabalho dispersa, flexível e razoavelmente habilidosa profundamente hostil ao
sindicalismo e ao socialismo. Los Angeles importa os sistemas patriarcais de trabalho altamente bem-sucedidos do sudeste asiático por meio da imigração em
massa, enquanto o celebrado sistema paternalista de controle do trabalho dos japoneses e de Taiwan é importado pela Califórnia e pelo sul do País de Gales. É
uma história diferente em cada caso, o que dá a impressão de que a peculiaridade
266
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
desta ou daquela circunstância geográfica importa muito mais do que ·antes. Contudo, ironicamente, isso só ocorre por causa da queda de barreiras espaciais.
Embora o controle do trabalho sempre seja central, há muitos outros aspectos
de organização geográfica que assumiram uma nova proeminência sob condições
de acumulação mais flexível. A necessidade de informações precisas e comunicações rápidas enfatizou o papel das chamadas cidades mundiais" no sistema financeiro e corporativo (centros equipados com teleportos, aeroportos, ligações de comunicação fixas, bem como com um amplo conjunto de serviços financeiros, legais,
comerciais e infra-estruturais) . A diminuição de barreiras espaciais resulta na
reafirmação e realinhamento hierárquicos no interior do que é hoje um sistema
urbano global. A disponibilidade local de recursos materiais de qualidades especiais, ou mesmo a custos marginalmente inferiores, começa a assumir crescente
importância, o mesmo ocorrendo com variações locais de gosto do mercado, hoje
exploradas com mais facilidade em condições de produção em pequenos lotes e de
flexibilidade de apresentação. As diferenças locais de capacidade de empreendimento, capital para associações, conhecimento técnico e científico e de atitudes
sociais também contam, enquanto as redes locais de influência e de poder e as
estratégias de acumulação das elites dirigentes locais (em oposição às políticas da
nação-Estado) também se tornam implicadas de maneira mais profunda no regime
de acumulação flexível.
Mas isso levanta outra dimensão do papel mutante da espacialidade na sociedade contemporânea. Se os capitalistas se tornam cada vez mais sensíveis às qualidades espacialmente diferenciadas de que se compõe a geografia do mundo, é
possível que as pessoas e forças que dominam esses espaços os alterem de um
modo que os torne mais atraentes para o capital altamente móvel. As elites dirigentes locais podem, por exemplo, implementar estratégias da controle da mão-de-obra local, de melhoria de habilidades, de fornecimento de infra-estrutura, de
política fiscal, de regulamentação estatal etc., a fim de atrair o desenvolvimento
para o seu espaço particular. Assim, as qualidades do lugar passam a ser enfatizadas
em meio às crescentes abstrações do espaço. A produção ativa de lugares dotados
de qualidades especiais se torna um importante trunfo na competição espacial
entre localidades, cidades, regiões e nações. Formas corporativas de governo podem florescer nesses espaços, assumindo elas mesmas papéis desenvolvimentistas
na produção de climas favoráveis aos negócios e outras qualidades especiais.
E é nesse contexto que podemos melhor situar o esforço das cidades, assina-.
lado na Parte I (pp. 87-92) para forjar uma imagem distintiva e criar uma atmosfera
de lugar e de tradição que aja como um atrativo tanto para o capital como para
pessoas do tipo certo" (isto é, abastadas e influentes). O aumento da competição
entre lugares deveria levar à produção de espaços mais variegados no âmbito da
crescente homogeneidade da troca internacional. No entanto, na medida em que
essa competição abre as cidades a sistemas de acumulação, acaba sendo produzido
o que Boyer (1988) chama de monotonia "serial" e "recursiva", "gerando a partir
de padrões ou moldes já conhecidos lugares quase idênticos em termos de ambiente em diferentes cidades: South Street Seaport, de Nova Iorque; Quincy Market, de
Boston; Harbor Place, de Baltimore".
11
11
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
267
Aproximando-nos assim do paradoxo central: quanto menos importantes as
barreiras espaciais, tanto maior a sensibilidade do capital às variações do lugar
dentro do espaço e tanto maior o incentivo para que os lugares se diferenciem de
maneiras atrativas ao capital. O resultado tem sido a produção da fragmentação,
da insegurança e do desenvolvimento desigual efêmero no interior de uma economia de fluxos de capital de espaço global altamente unificado. A tensão histórica
dentro do capitalismo entre centralização e descentralização tem sido trabalhada
agora de novas maneiras. A extraordinária descentralização e proliferação da produção industrial termina por expor produtos Benetton ou Laura Ashley em quase
todos os shoppings serialmente produzidos do mundo capitalista avançado. Para
resumir, a nova rodada da compressão do tempo-espaço está ponteada de tantos
perigos quantas são as possibilidades oferecidas por ela para a sobrevivência de
lugares particulares ou para uma solução do problema da superacumulação.
A geografia da desvalorização por meio da desindustrialização, do aumento
do desemprego local, da redução fiscal, do cancelamento de ativos locais ou coisa
parecida é de fato um quadro lamentável. Mas podemos ao menos ver a sua lógica
no âmbito da busca de uma solução para o problema da superacumulação mediante o impulso para sistemas flexíveis e mais móveis de acumulação. Há, porém,
razões a priori para suspeitar (bem como algumas provas materiais para sustentar
a idéia) de que regiões de agitação e fragmentação máximas também são regiões
que parecem melhor preparadas para sobreviver aos traumas da desvalorização no
longo prazo. Há mais do que um indício de que uma pequena desvalorização
agora é melhor do que uma desvalorização generalizada mais tarde, no pânico pela
sobrevivência local do mundo de oportunidades severamente restritas de crescimento positivo. Reindustrializar e reestruturar não são viáveis sem que antes haja
desindustrialização e desvalorização.
Nenhuma dessas mudanças na experiência do espaço e do tempo faria o sentido que faz ou teria o impacto que tem sem uma modificação radical da maneira
como o valor é representado como moeda. Embora domine há muito tempo, a
moeda nunca foi uma representação clara ou patente do valor e, em certas ocasiões, se torna tão confusa que vem a constituir ela mesma uma fonte importante
de insegurança e incerteza. Nos termos do acordo do pós-guerra, a questão monetária mundial passou a ter uma base razoavelmente estável. O dólar norte-americano tornou-se o meio do comércio mundial, lastreado em termos técnicos numa
conversibilidade fixa em ouro e, em termos políticos e econômicos, no imenso
poder do aparato produtivo norte-americano. O espaço do sistema produtivo dos
EU A passou a ser, na verdade, a garantia do valor internacional. Mas, como vimos,
um dos indícios do colapso do sistema fordista-keynesiano foi a ruptura do Acordo de Bretton Woods, de conversibilidade de dólares norte-americanos em ouro, e
a passagem para um sistema global de taxas de câmbio flutuantes. Esse colapso
ocorreu em parte por causa das dimensionalidades mutantes do espaço e do tempo
geradas pela acumulação do capital. O crescente endividamento (particularmente
nos Estados Unidos) e uma competição internacional mais violenta, advinda dos
espaços reconstruídos da economia mundial em condições de crescente acumulação, tiveram muito a ver com o solapamento do poder da economia norte-americana de operar como a garantia exclusiva da moeda mundial.
268
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Foram inúmeros os efeitos disso. A questão de saber como o valor deve ser
representado agora, que forma a moeda deve assumir e que sentido pode ser
atribuído às várias formas de meios de pagamento disponíveis nunca esteve longe
da superfície de preocupações recentes. A partir de 1973, a moeda se "desmaterializou", isto é, ela já não tem um vínculo formal ou tangível com metais preciosos
(embora estes tenham continuado a desempenhar um papel de forma potencial de
dinheiro entre muitas outras) ou, quanto a isso, com qualquer outra mercadoria
tangível. Do mesmo modo, ela não se apóia exclusivamente na atividade produtiva
dentro de um espaço particular. Pela primeira vez na história, o mundo passou a
se apoiar em formas imateriais de dinheiro- isto é, dinheiro registrado avaliado
quantitativamente em números de alguma unidade monetária designada (dólares,
ienes, marcos alemães, libras esterlinas etc.).
As taxas de câmbio entre as diferentes unidades monetárias do mundo também têm sido extremamente voláteis. Fortunas podem ser perdidas ou feitas apenas por se ter a unidade monetária correta nas fases certas. A questão de qual
moeda mantenho comigo tem uma ligação direta com o lugar em que confio. Isso
pode ter alguma relação com a posição econômica competitiva e o poder de diferentes sistemas nacionais. Esse poder, levando-se em conta a flexibilidade da acumulação no espaço, é ele mesmo uma magnitude passível de mudar rapidamente.
O efeito disso é tornar os espaços que fundamentam a determinação do valor tão
instáveis quanto o próprio valor. Esse problema é agravado pelo modo como as
mutações especulativas ultrapassam o poder e o desempenho econômicos reais,
produzindo expectativas auto-realizadas. A desvinculação entre o sistema financeiro e a produção ativa e a base monetária material põe em questão a confiabilidade
do mecanismo básico mediante o qual se supõe que o valor seja representado.
Essas dificuldades têm estado presentes de maneira mais forte no processo de
desvalorização da moeda, a medida do valor, devido à inflação. As taxas de inflação equilibradas da era fordista-keynesiana (em geral na faixa de 3% e raramente
acima de 5) foram perturbadas a partir de 1969, acelerando-se em todos os grandes
países capitalistas no decorrer dos anos 70, onde alcançaram números de dois
dígitos (ver figura 2.8). Pior ainda, a inflação se tornou altamente instável, tanto
entre os países como dentro deles, deixando todos em dúvida quanto ao que seria
o verdadeiro valor (o poder de compra) de uma moeda particular no futuro próximo. Em conseqüência, o dinheiro se tornou inútil como meio de armazenamento
de valor por qualquer período de tempo (a taxa real de juros, medida como a taxa
monetária de juros menos a taxa de inflação, foi negativa por vários anos na década de 70, privando os poupadores do valor que pretendiam preservar).
Era necessário descobrir meios alternativos para proteger o valor de maneira
eficaz. Assim, começou a vasta inflação de certos tipos de ativos reais - contas a
receber, objetos de arte, antigüidades, imóveis etc. Comprar um Degas ou um Van
Gogh em 1973 por certo superaria quase todo outro tipo de investimento em termos de ganho de capital. Na realidade, pode-se alegar que o crescimento do mercado de arte (com sua preocupação com a assinatura do autor) e a forte comercialização da produção cultural a partir de mais ou menos 1970 têm tido muito que
ver com a busca de ·meios alternativos de armazenar valor em condições em que
as formas monetárias comuns são deficientes. A inflação em termos de mercado-
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
269
rias e dos preços em geral, embora controlada em alguma medida nos países capitalistas avançados durante os anos 80, de maneira alguma se reduziu como problema. Ela é renitente em países como o México, a Argentina, o Brasil e Israel
(todos com taxas recentes de centenas por cento), e a perspectiva de inflação generalizada espreita nos países capitalistas avançados, onde é de qualquer modo
possível afirmar que a inflação dos preços dos ativos (imóveis, obras de arte, antigüidades etc.) começou no ponto em que a inflação de mercadorias e do mercado de
trabalho parou no início dos anos 80.
O colapso do dinheiro como meio seguro de representação do valor criou por
si só uma crise de representação no capitalismo avançado. Ele também foi reforçado, ao mesmo tempo em que lhes acrescentou seu peso considerável, pelos problemas de compressão do espaço-tempo antes identificados. A rapidez com que os
mercados de moedas flutuam nos espaços do mundo, o extraordinário poder do
fluxo de capital-dinheiro no que é agora um mercado financeiro e de ações global
e a volatilidade daquilo que o poder de compra do dinheiro poderia representar
definem, por assim dizer, um ponto alto da intersecção extremamente problemática do dinheiro, do tempo e do espaço como elementos entrelaçados de poder
social na economia política da pós-modernidade.
· Além disso, não é difícil perceber que tudo isso pode criar uma crise mais geral
de representação. O sistema central de valor, a que o capitalismo sempre recorreu
para validar e avaliar suas ações, está desmaterializado e inconstante, e os horizontes temporais estão ruindo, sendo difícil dizer exatamente em que espaço nos
encontramos quando se trata de avaliar causas e efeitos, significados ou valores. A
intrigante exibição do Centro Pompidou, em 1985, sobre "O Imaterial" (uma exposição em que ninguém menos que Lyotard agiu como um dos consultores), foi
talvez uma imagem especular da dissolução das representações materiais do valor
em condições de acumulação mais flexível, bem como das confusões relativas ao
que poderia significar dizer, com Paul Virilio, que o tempo e o espaço desapareceram como dimensões significativas do pensamento e da ação humanos.
Há, admito, formas mais tangíveis e materiais do que essa para avaliar a significação do espaço e do tempo para a condição da pós-modernidade. Por exemplo, seria possível considerar de que modo a experiência em mutação do espaço,
do tempo e do dinheiro compôs uma base material distinta para a ascensão de
sistemas distintos de interpretação e de representação, assim como abriu um caminho mediante o qual a estetização da política poderia reafirmar-se uma vez mais.
Se vemos a cultura como um complexo de signos e significações (incluindo a linguagem) que origina códigos de transmissão de valores e significados sociais,
podemos ao menos iniciar a tarefa de desvelar suas complexidades nas condições
atuais mediante o reconhecimento de que o dinheiro e as mercadorias são eles
mesmos os portadores primários de códigos culturais. Como o dinheiro e as mercadorias dependem inteiramente da circulação do capital, segue-se que as formas
culturais têm firmes raízes no processo diário de circulação do capital. Por conseguinte, devemos começar pela experiência cotidiana da moeda e da mercadoria,
mesmo que mercadorias especiais ou mesmo sistemas de signos completos possam
ser retirados da vala comum e transformados no fundamento da "alta" cultura ou
da "imaginação" especializada que já tivemos a oportunidade de comentar.
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270
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A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
A aniquilação do espaço por meio do tempo modificou de modo radical o
conjunto de mercadorias que entra na reprodução diária. Inúmeros sistemas locais
de alimentação foram reorganizados por intermédio de sua incorporação à troca
global de mercadorias. Os queijos franceses, por exemplo, virtualmente impossíveis de encontrar nos anos 70, exceto em algumas lojas especiais nas grandes cidades, hoje são vendidos à vontade em todos os Estados Unidos. E, se se considerar
isso um exemplo um tanto elitista, o caso do consumo de cerveja sugere que a
internacionalização de um produto - que a teoria tradicional da localização sempre ensinou que deveria ser altamente orientada pelo mercado - agora está completa. Baltimore era essencialmente uma cidade de uma única cerveja (produzida
no local) em 1970; então, primeiro as cervejas regionais - de lugares como
Milwaukee e Denver - e depois canadenses, mexicanas, européias, australianas,
chinesas, polonesas etc. se tornaram mais baratas. Comidas antes exóticas se tornaram comuns, enquanto iguarias locais populares (no caso de Baltimore, caranguejos azuis e ostras), antes relativamente baratas, tiveram saltos nos preços ao se
integrarem ao comércio a longa distância.
O mercado sempre foi um "empório de estilos" (para citar a expressão de
Raban), mas o mercado de alimentos, para ficar num exemplo, hoje parece bem
diferente do que era há vinte anos. Feijões do Quênia, aipos e abacates da Califórnia,
batatas do norte da África, maçãs canadenses e uvas chilenas estão uns ao lado dos
outros num supermecado inglês. Essa variedade também permite uma proliferação
de estilos culinários, mesmo entre os relativamente pobres. Esses estilos, é verdade,
sempre migraram, em geral seguindo correntes migratórias de diferentes grupos,
antes de se difundirem lentamente pelas culturas urbanas. As novas ondas de
imigrantes (como os vietnamitas, coreanos, filipinos, centro-americanos etc. que se
somaram aos grupos mais antigos de japoneses, chineses, chicanas e todos os grupos étnicos europeus que também descobriram que a sua herança culinária podia
ser revivida para fins de diversão e lucro) tornam uma cidade norte-americana
típica como Nova Iorque, Los Angeles ou São Francisco (onde o último censo
mostrou que a maioria da população era composta de minorias) tanto um empório
de estilos culinários como um empório de mercadorias do mundo. Mas, aqui também, tem havido uma aceleração, porque os estilos culinários caminharam mais
rápido do que as ondas migratórias. Não f necessária uma grande imigração francesa para os Estados Unidos para que o croissant se dissemine na América e desafie produtos tradicionais, nem é preciso uma grande imigração americana para
a Europa para que os hambúrgueres cheguem a quase todas as cidades européias
médias. Restaurantes chineses, cantinas italianas (dirigidas por uma cadeia norte-americana), restaurantes do Meio Leste, casas japonesas de sushi. .. a lista é hoje
interminável no mundo ocidental.
A cozinha do mundo inteiro está presente atualmente num único lugar de
maneira quase exatamente igual à da redução da complexidade geográfica do mundo
a uma série de imagens numa estática tela de televisão. Esse mesmo fenômeno é
explorado em palácios da diversão como Epcott e Disneyworld; torna-se possível,
como dizem os comerciais americanos, "viver o Velho Mundo por um dia sem ter
de estar lá de fato". A implicação geral é de que, por meio da experiência de tudo
- comida, hábitos culinários, música, televisão, espetáculos e cinema - , hoje é
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
271
possível vivenciar a geografia do mundo vicariamente, como um simulacro. O
entrelaçamento de simulacros da vida diária reúne no mesmo espaço e no mesmo
tempo diferentes mundos (de mercadorias). Mas ele o faz de tal modo que oculta
de maneira quase perfeita quaisquer vestígios de origem, dos processos de trabalhos que os produziram ou das relações sociais implicadas em sua produção.
O simulacro, por sua vez, pode tornar-se a realidade. Baudrillard (1986) vai
ainda mais longe em América, um tanto exageradamente ao meu ver, sugerindo
que a realidade norte-americana é hoje construída como uma tela gigantesca: "O
cinema está em toda parte, principalmente na cidade, filme e cenário incessantes
e maravilhosos". Lugares retratados de certa maneira, em particular se têm a capacidade de atrair turistas, podem começar a "se vestir" segundo as prescrições
das imagens-fantasia. Castelos medievais oferecem fins de semana medievais (comida e roupas, mas não, é claro, os sistemas primitivos de aquecimento). A participação vicária nesses vários mundos tem efeitos reais nos modos como eles são
ordenados. Jencks (1984, 127) propõe que o arquiteto seja um participante ativo
nisso:
Qualquer cidadão urbano de classe média, morador de qualquer cidade grande, de Teerã a Tóquio, está fadado a ter um "banco de imagens" bem sortido,
na verdade, saturado, que é continuamente enchido por viagens e revistas. Seu
musée imaginaire pode espelhar a mixórdia dos produtores mas é, mesmo assim, natural para o seu modo de vida. Barrando algum tipo de redução totalitária na heterogeneidade da produção e do consumo, parece desejável que os
arquitetos aprendam a usar essa heterogeneidade inevitável de linguagens.
Além disso, é bastante divertido. Por que, se é possível viver em épocas e
culturas diferentes, restringir-se ao presente, ao local? O ecletismo é a evolução
natural de uma cultura com escolha.
Pode-se dizer mais ou menos o mesmo dos estilos de música popular. Comentando o recente domínio da colagem e do ecletismo, Chambers (1987) mostra como
músicas oposicionais e subculturais como o reggae, a música afro-americana e a
música afro-hispânica assumiram seu lugar "no museu de estruturas simbólicas
fixas" para formar uma colagem flexível do "já visto, já gasto, já tocado, já ouvido".
Ele sugere que um forte sentido do "Outro" é substituído por um fraco sentido dos
"outros". A débil coesão de culturas de rua divergentes nos espaços fragmentados
da cidade contemporânea reenfatiza os aspectos contingentes e acidentais dessa
"alteridade" na vida cotidiana. Essa mesma sensibilidade está presente na ficção
pós-moderna. Ela se preocupa, diz McHale (1987), com "antologias", com uma
pluralidade potencial e real de universos, formando uma eclética e "anárquica
paisagem de mundos no plural". Personagens confusas e distraídas vagueiam por
esses mundos sem um claro sentido de localização, imaginando: "Em que mundo
estou e qual das minhas personalidades exibo?" A nossa paisagem ontológica pós-moderna, sugere McHale, "não tem precedentes na história humana- ao menos
no grau de seu pluralismo". Espaços de universos bem diferentes parecem decair
uns nos outros, mais ou menos da mesma forma como as mercadorias do mundo
são agregadas no supermercado e como toda espécie de subcultura se justapõe na
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272
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
cidade contemporânea. A espacialidade disruptiva triunfa sobre a coerência da perspectiva e da narrativa na ficção pós-moderna, exatamente da mesma forma como
cervejas importadas coexistem com as locais, o emprego local vem abaixo sob o peso
da competição estrangeira e todos os espaços divergentes do mundo são montados
toda noite como uma colagem de imagens na tela da televisão.
Parece haver dois efeitos sociológicos divergentes disso tudo no pensamento e
na ação diários. O primeiro sugere que se tire vantagem de todas as possibilidades
divergentes, mais ou menos como Jencks recomenda, cultivando-se toda uma série
de simulacros como espaços de escape, de fantasia e de distração:
Em toda parte - na publicidade, nas prateleiras, nas capas de disco, nas telas
de televisão -, essas fantasias escapistas miniatura se apresentam. Ao que
parece, estamos destinados a viver assim, como personalidades cindidas em
que a vida privada é perturbada pela promessa de rotas de escape para outra
realidade (Cohen e Taylor, 1978, citado em McHale, 1987, 38).
Desse ponto de vista, creio que devemos aceitar o argumento de McHale de
que a ficção pós-moderna mimetiza alguma coisa, mais ou menos como aleguei que
a ênfase na efemeridade, na colagem, na fragmentação e na dispersão no pensamento filosófico e social mimetiza as condições da acumulação flexível. E não seria
surpresa ver que tudo isso é compatível com a emergência, a partir de 1970, de
uma política fragmentada de grupos de interesse regionais e especiais divergentes.
Mas é exatamente nesse ponto que encontramos a reação oposta, que pode ser
melhor resumida como a busca de uma identidade coletiva ou pessoal, a procura
d e comportamentos seguros num mundo cambiante. A identidade de lugar se
torna uma questão importante nessa colagem de imagens espaciais superpostas
que implodem em nós, porque cada um ocupa um espaço de individuação (um
corpo, um quarto, uma casa, uma comunidade plasmadora, uma nação) e porque
o modo como nos individuamos molda a identidade. Além disso, se ninguém
"conhece o seu lugar" nesse mutante mundo-colagem, como é possível elaborar e
sustentar uma ordem social segura?
Esse problema comporta dois elementos que merecem atenta consideração. Em
primeiro lugar, a capacidade da maioria dos movimentos sociais de dominar melhor
o lugar do que o espaço dá um forte relevo ao vínculo potencial entre lugar e
identidade social. Isso é patente na ação política. O caráter defensivo do socialismo
municipal, a insistência na comunidade operária, a natureza localizada da luta
contra o capital tornam-se características centrais da luta da classe trabalhadora no
âmbito de um padrão geral de desenvolvimento geográfico desigual. Os conseqüentes dilemas dos movimentos socialistas ou operários diante de um capitalismo
universalizante são compartilhados por outros grupos de oposição - minorias
raciais, povos colonizados, mulheres etc. -, que são relativamente fortes em termos de organização no lugar, mas frágeis no tocante à organização no espaço. Ao
se apegarem, muitas vezes por necessidade, a uma identidade dependente de lugar, esses movimentos de oposição, contudo, se tornam parte da própria fragmentação que um capitalismo móvel e uma acumulação flexível podem alimentar. "As
resistências regionais", a luta pela autonomia local, pela organização vinculada
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
273
com o lugar podem ser excelentes bases para a ação política, mas não podem
suportar sozinhas a carga da mudança histórica radical. "Pense globalmente e aja
localmente" foi o slogan revolucionário dos anos 60. Podemos repeti-lo.
A afirmação de qualquer identidade dependente de lugar tem de apoiar-se em
algum ponto no poder motívacional da tradição. É, porém, difícil manter qualquer
sentido de continuidade histórica diante de todo o fluxo e efemeridade da acumulação flexível. A ironia é que a tradição é agora preservada com freqüência ao ser
mercadíficada e comercializada como tal. A busca de raízes termina, na pior das
hipóteses, sendo produzida e vendida como imagem, como um simulacro ou
pastiche (comunidades de imitação construídas para evocar imagens de algum
passado agradável, o tecido de comunidades operárias tradicionais apropriado por
uma pequena nobreza urbana). A fotografia, o documento, a vista e a reprodução
se tornam história exatamente devido à sua presença avassaladora. O problema,
com efeito, é que nenhuma dessas coisas está imune à distorção ou à falsificação
pura e simples para propósitos presentes. Na melhor das hipóteses, a tradição
histórica é reorganizada como uma cultura de museu, não necessariamente de alta
arte modernista, mas de história local, de produção local, do modo como as coisas
um dia foram feitas, vendidas, consumidas e integradas numa vida cotidiana há
muito perdida e com freqüência romantizada (vida de que todos os vestígios de
relações sociais opressivas podem ser expurgados). Por meio da apresentação de
um passado parcialmente ilusório, torna-se possível dar alguma significação à
identidade local, talvez com algum lucro.
A segunda reação ao ínternacionalismo do modernismo está no esforço de
construção qualitativa do lugar e dos seus significados. A hegemonia capitalista no
espaço relega a estética do lugar quase para a última posição da pauta. Mas isso,
como vimos, é por demais compatível com a idéia de diferenciações espaciais como
atrativos para um capital peripatético que atribuí um enorme valor à opção de
mobilidade. Não é este lugar melhor do que aquele, não somente para as operações
do capital como também para viver, consumir bem e sentir-se seguro num mundo
em mutação? A construção desses lugares, a promoção de alguma imagem estética
localizada, permite a construção de algum sentido limitado e limitador de identidade no turbilhão de uma colagem de espacialidades implosivas.
A tensão presente nessas oposições é bem clara, mas é difícil apreciar suas
ramificações intelectuais e políticas. Eis, por exemplo, Foucault (1984, 253) tratando
da questão de sua própria perspectiva:
O espaço é fundamental em toda forma de vida comunitária; o espaço é fundamental em todo exercício de poder ... Lembro-me de ter sido convidado em
1966, por um grupo de arquitetos, para fazer um estudo do espaço, de algo que
chamei, na época, de "heterotopías", espaços singulares presentes em alguns
espaços sociais dados cujas funções são diferentes ou mesmo opostas às de
outros. Os arquitetos trabalharam com isso e, no final do estudo, uma pessoa
- um psicólogo sartriano - falou, deixando-me paralisado; ele disse que o
espaço é reacionário e capitalista, mas a história e o vir-a-ser são revolucionários.
Esse discurso absurdo nada tinha de incomum na época. Hoje, qualquer pessoa teria risos convulsos diante de tal pronunciamento, mas não então.
274
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
A proposição que o crítico sartriano faz, embora grosseira e oposional, não é
tão risível quanto Foucault assevera. Por outro lado, o sentimento pós-modernista
se inclina definitivamente para a posição de Foucault. Enquanto o modernismo
olhava os espaços da cidade, por exemplo, como "um epifenômeno das funções
sociais", o pós-modernismo "tende a retirar o espaço urbano de sua dependência
das funções e a vê-lo como um sistema formal autônomo" que incorpora "estratégias artísticas e retóricas que independem de qualquer determinismo histórico simples" (Colquhoun, 1985). É exatamente essa retirada que permite a Foucault o uso
tão amplo de metáforas espaciais em seus estudos do poder. As imagens espaciais,
liberadas de suas raízes em qualquer determinação social, tomam-se um meio de
descrever as forças da determinação social. Entretanto, basta um curto passo para
transpor a distância entre as metáforas de Foucault e o reforço de uma ideologia
política que vê o lugar e o Ser, com todas as suas qualidades estéticas associadas,
como base adequada da ação social. A geopolítica e a armadilha heideggeriana
vêm pouco depois. Jameson (1988, 351), por sua vez, vê as
peculiaridades espaciais do pós-modernismo como sintomas e expressões de
um dilema novo e historicamente original, dilema que envolve a nossa inserção como sujeitos individuais num conjunto multidimensional de realidades
radicalmente descontínuas, cujas estruturas vão dos espaços ainda sobreviventes da vida privada burguesa ao descentramento inimaginável do próprio capitalismo global, incluindo tudo que há entre eles. Nem mesmo a relatividade
einsteiniana nem os múltiplos mundos subjetivos dos modernistas mais antigos conseguem dar qualquer configuração adequada a esse processo, que, na
experiência vivida, se faz sentir pela chamada morte do sujeito ou, mais exatamente, pelo descentramento e dispersão esquizofrênicos e fragmentados deste
último ... E, embora vocês possam não ter percebido, estou falando de política
prática: desde a crise do intemacionalismo socialista, e as enormes dificuldades
táticas e estratégias de coordenação de ações políticas locais, rurais ou vicinais
com ações políticas nacionais ou internacionais, esses dilemas políticos urgentes são, todos eles, funções imediatas do espaço internacional novo, extremamente complexo, que tenho em mente.
Jameson exagera um pouco no tocante ao caráter ímpar e novo dessa experiência. Por mais desgastante que a atual condição indubitavelmente seja, ela é semelhante, em termos qualitativos, à que levou à Renascença e a várias reconceitualizações modernistas do espaço e do tempo. Contudo, os dilemas descritos por
Jameson são exatos e captam a oscilação da sensibilidade pós-moderna no tocante
ao significado do espaço na vida cultural e política, bem como econômica, contemporânea. Se, no entanto, perdemos a fé modernista no vir-a-ser, como o crítico
sartriano de Foucault alegou, haverá alguma saída afora a política reacionária de
uma espacialidade estetizada? Estaremos tristemente fadados a terminar na trilha
que Sitte iniciou, em sua virada para a mitologia wagneriana como apoio para a
sua asserção da primazia do lugar e da comunidade num mundo de espaços
mutantes? Pior ainda, se a produção estética se tornou hoje completamente
mercadificada, sendo por isso efetivamente submetida a uma economia política de
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
275
produção cultural, que possibilidades temos de impedir que esse círculo se feche
numa estetização produzida, e, portanto, manipulada com demasiada facilidade,
de uma política globalmente mediatizada?
Isso deveria alertar-nos para os graves perigos geopolíticos associados nos
últimos anos com a rapidez da compressão do tempo-espaço. A transição do
fordismo para a acumulação flexível, tal como tem sido realizada, deveria implicar
uma transição dos nossos mapas mentais e das nossas atitudes e instituições políticas. O pensamento político, contudo, não passa necessariamente por essas transformações fáceis, estando de qualquer modo sujeito às pressões contraditórias que
advêm da integração e da diferenciação espaciais. Há um risco onipresente de que
os nossos mapas mentais não correspondam às realidades correntes. A séria redução do poder das nações-Estado individuais sobre as políticas fiscal e monetária,
por exemplo, não foi acompanhada por nenhuma mudança paralela rumo a uma
internacionalização da política. Com efeito, há sinais abundantes de que o localismo
e o nacionalismo se tornaram mais fortes justamente por causa da busca da segurança que o lugar sempre oferece em meio a todas as transformações que a acumulação flexível implica. A ressurreição da geopolítica e da fé na política carismática
(a Guerra das Falklands/Malvinas, de Thatcher; de Granada, de Reagan) se enquadra demasiadamente bem num mundo que é nutrido cada vez mais, em termos
intelectuais e políticos, por um vasto fluxo de imagens efêmeras.
A compressão do tempo-espaço sempre cobra o seu preço da nossa capacidade
de lidar com as realidades que se revelam à nossa volta. Por exemplo, sob pressão,
fica cada vez mais difícil reagir de maneira exata aos eventos. A identificação
errônea de um jumbo iraniano, que passava por um corredor de vôos comerciais
estabelecido, como um bombardeiro que tinha como alvo um vaso de guerra norte-americano - um incidente que provocou a morte de muitos civis - é típico do
modo como a realidade é antes criada do que interpretada em condições de tensão
e de compressão do tempo-espaço. A semelhança com o relato de Kern da eclosão
da Primeira Guerra Mundial (citado acima, p. 252) é instrutiva. Se "experientes
negociadores cederam sob a pressão de tensos confrontos e noites em claro, em
agonia diante das prováveis conseqüências desastrosas dos seus julgamentos apressados e ações precipitadas", quão mais difícil dever ser agora tomar decisões? A
diferença, desta vez, é que sequer há tempo para ficar em agonia. E os problemas
não se restringem aos domínios da decisão militar e política, porque os mercados
financeiros mundiais se encontram numa situação que torna um julgamento apressado aqui, uma palavra impensada ali e uma reação instintiva acolá a gota d'água
que pode fazer vir abaixo toda a estrutura da formação do capital fictício e da
interdependência.
As condições da compressão pós-moderna do tempo-espaço exageram em
muitos aspectos os dilemas que, de quando em vez, assolaram os procedimentos
capitalistas de modernização (1848 e a fase imediatamente anterior à Primeira Guerra
nos vêm imediatamente à lembrança). Embora as respostas econômicas, culturais
e políticas possam não ser exatamente novas, o seu âmbito difere, em certos sentidos importantes, das que foram dadas antes. A intensidade da compressão do
tempo-espaço no capitalismo ocidental a partir dos anos 60, com todos os seus
elementos congruentes de efemeridade e fragmentação excessivas no domínio
276
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
político e privado, bem como social, parece de fato indicar um contexto experiencial
que confere à condição da pós-modernidade o caráter de algo um tanto especial.
Contudo, situando essa condição em seu contexto histórico, como parte de uma
história de ondas sucessivas de compressão do tempo-espaço geradas pelas pressões da acumulação do capital - com seus perpétuos esforços de aniquilação do
espaço por meio do tempo e de redução do tempo de giro -, podemos ao menos
levá-la para o âmbito de condição acessível à análise e interpretação materialista
histórica. Como interpretar e reagir a isso são tarefas da Parte IV.
18
O tempo e o espaço no cinema pós-moderno
Os artefatos culturais pós-modernos são, em virtude do ecletismo de sua concepção e da anarquia do seu assunto, imensamente variados. Considero útil, entretanto, ilustrar como os temas da compressão do tempo-espaço, que têm sido elaborados aqui, são representados em obras pós-modernas. Preferi, para esse propósito, examinar o cinema, em parte por tratar-se de uma forma de arte que (ao lado
da fotografia) surgiu no contexto do primeiro grande impulso do modernismo
cultural, mas também porque, dentre todas as formas artísticas, ele tem talvez a
capacidade mais robusta de tratar de maneira instrutiva de temas entrelaçados do
espaço e do tempo. O uso serial de imagens, bem como a capacidade de fazer
cortes no tempo e no espaço em qualquer direção, liberta-o das muitas restrições
normais, embora ele seja, em última análise, um espetáculo projetado num espaço
fechado numa tela sem profundidade.
Os dois filmes que vou considerar são Blade Runner e Himmel über Berlin (chamado em inglês Wings of Desire [Asas do Desejo]). Blade Runner, de Ridley Scott,
é um filme popular de ficção científica, considerado por muitos um excelente exemplo do seu gênero, um filme que ainda circula nos cinemas que ficam abertos a
noite toda nas grandes áreas metropolitanas. Trata-se de um exemplar de arte
popular que mesmo assim explora temas importantes. Contraí uma dívida particular com a perceptiva análise de sua estética pós-moderna feita por Giuliano
Bruno. Asas do Desejo, de Wim Wenders, por outro lado, é um exemplar de cinema
"intelectual", muito bem recebido pelos críticos (uma "obra-prima agridoce", escreveu um deles), mas difícil de apreender à primeira vista. E o tipo de filme que
tem de ser trabalhado para ser compreendido e apreciado. Contudo, explora temas
semelhantes aos apresentados em Blade Runner, se bem que de uma perspectiva
bem distinta e num estilo bem diferente. Ambos os filmes exemplificam muitas das
características do pós-modernismo, além de darem uma atenção particular à
conceituação e aos significados do tempo e do espaço.
***
A história de Blade Runner se refere a um pequeno grupo de seres humanos
geneticamente produzidos, chamados "replicantes", que voltam para enfrentar seus
criadores. O filme é situado na Los Angeles do ano 2019 e gira em torno da investigação do "e,specialista" Deckard, destinada a descobrir a presença dos replicantes
e eliminá-los ou "retirá-los de circulação" (como diz o filme) como um sério perigo
para a ordem social. Os replicantes foram criados com o propósito específico de
trabalhar em tarefas altamente especializadas em ambientes particularmente difíceis nas fronteiras da exploração espacial. Eles são dotados de forças, de inteligência e de poderes que estão no limite, ou até além deles, dos seres humanos comuns.
Também têm sentimentos; somente assim, ao que parece, podem adaptar-se à di-
278
:(
,
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A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
ficuldade de, em suas tarefas, fazer julgamentos que correspondam aos requisitos
humanos. Porém, temendo que eles possam em algum momento representar uma
ameaça à ordem estabelecida, seus fabricantes lhes deram um tempo de vida de
apenas quatro anos; quando escapam ao controle durante esses quatro anos, é
preciso "retirá-los". Mas fazer isso é tão perigoso quanto difícil, justamente por
causa de sua capacidade superior.
Deve-se observar que os replicantes não são meras imitações, mas reproduções
totalmente autênticas, indistinguíveis em quase todos os aspectos dos seres humanos. São antes simulacros do que robôs. Foram projetados como a forma última de
força de trabalho de curto prazo, de alta capacidade produtiva e grande flexibilidade (um exemplo perfeito de um trabalhador que possua todas as qualidades
necessárias à adaptação a condições de acumulação flexível). Mas, como todos os
trabalhadores diante da ameaça de uma vida de trabalho encurtada, os replicantes
não aceitam felizes as restrições do seu curto tempo de vida. Seu propósito ao
procurar os fabricantes é tentar encontrar meios de prolongar sua vida, infiltrandose no coração do aparelho produtivo que os fez e, ali, persuadindo ou forçando
seus criadores a reprogramarem sua estrutura genética. Seu projetista, Tyrell (chefe
de um vasto império corporativo com esse mesmo nome), diz a Roy, o líder dos
replicantes, que termina por penetrar no centro de tudo, que os replicantes têm
uma recompensa mais do que adequada para a brevidade de sua vida- afinal,
vivem com a mais incrível intensidade. "Aproveite", diz Tyrell, "uma chama que
queima com dupla intensidade vive a metade do tempo." Os replicantes existem,
em resumo, na corrida esquizofrênica do tempo que Jameson, Deleuze e Guattari
e outros vêem como algo tão central na vida pós-moderna. Eles também se movem
num espaço com uma fluidez que lhes dá um imenso arcabouço de experiência.
Sua persona equivale em muitos aspectos ao tempo e ao espaço das comunicações
globais instantâneas.
Revoltados com suas condições de "trabalho escravo" (como Roy, o líder, o
denomina) e buscando prolongar seu tempo de vida, quatro replicantes chegam a
Los Angeles, lutando e matando, cidade em que o "blade runner" Deckard, um
especialista em métodos de detecção e retirada de replicantes que escapam, é convocado a tratar deles. Embora cansado de toda a matança e violência, Deckard é
obrigado a deixar o repouso da aposentadoria, pois as autoridades só lhe dão duas
opções: aceitar a tarefa ou sofrer sua redução a "pessoa inferior". Portanto, tanto
ele como os replicantes têm com o poder social dominante na sociedade uma
relação semelhante; essa relação define um vínculo oculto de simpatia e de compreensão entre os caçados e o caçador. Durante o filme, a vida de Deckard é salva
duas vezes por um replicante, enquanto ele salva a vida de um quinto, uma
replicante recém-criada e ainda mais sofisticada chamada Rachei, por quem Deckard
eventualmente se apaixona.
A Los Angeles a que os replicantes retornam dificilmente é uma utopia. A
flexibilidade da capacidade dos replicantes de trabalhar no espaço exterior tem
como contraparte em Los Angeles, como recentemente passamos a esperar, uma
paisagem decrépita de desindustrialização e decadência pós-industrial. Armazéns
vazios e instalações industriais abandonadas são destruídos por uma chuva ácida.
A névoa toma conta de tudo, o lixo se empilha por toda parte, as infra-estruturas
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
279
estão num estado de desintegração que toma suaves os caldeirões e as pontes
destroçadas da Nova Iorque contemporânea. Punks e catadores de lixo brigam no
meio do lixo, roubando o que podem. J. F. Sebastian, um dos projetistas genéticos
que termina por facilitar o acesso dos replicantes a Tyrell (e que sofre de uma
doença de envelhecimento prematuro chamada "decrepitude acelerada"), vive sozinho num espaço vazio desses (na verdade, uma versão abandonada do prédio
Bradbury construído em Los Angeles em 1893), cercado por um fantástico conjunto
de brinquedos e bonecos mecânicos e falantes que lhe fazem companhia.
Mas, acima das cenas de caos e decadência interiores e no nível da rua, há um
mundo de alta tecnologia de velozes transportadores, de publicidade ("uma oportunidade de comprar outra vez numa terra dourada", proclama um anúncio que
circula no céu enevoado e chuvoso), de imagens familiares do poder corporativo
(a Pan Am, surpreendentemente ainda funcionando em 2019, a Coca-Cola, a
Budweiser etc.), e o imenso prédio piramidal da Tyrell Corporation, que domina
uma parte da cidade. A Tyrell Corporation é especializada em engenharia genética.
"O comércio", diz Tyrell, "mais humano do que humano é o nosso negócio."
Opondo-se a essas imagens de poder corporativo avassalador, há no entanto outra
cena no nível da rua de fervilhante produção em pequena escala. As ruas das
cidade estão cheias de todo tipo de pessoas - os chineses e asiáticos parecem
predominantes, e é o rosto sorridente de uma japonesa que anuncia a Coca-Cola.
Surgiu uma língua, o "cidadês", um híbrido de japonês, alemão, espanhol, inglês
etc. Não somente o "terceiro mundo" chegou a Los Angeles ainda mais do que
agora, como sinais de sistemas de organização do trabalho e de práticas de trabalho informais do terceiro mundo estão por toda parte. As escamas de uma cobra
geneticamente produzida são feitas numa pequena oficina, e olhos humanos são
produzidos em outra (ambas dirigidas por orientais), o que indica intrincadas relações de subcontratação entre empresas altamente desagregadas e com a própria
Tyrell Corporation.
O sentido da cidade no nível da rua é caótico em todos os aspectos. Os projetos
arquitetônicos são uma mixórdia pós-moderna- a Tyrell Corporation está abrigada
em algo que parece uma réplica de uma pirâmide egípcia, colunas gregas e romanas se misturam nas ruas com referências à arquitetura maia, chinesa, oriental,
vitoriana e contemporânea (dos shoppings). Os simulacros são legião. Corujas
geneticamente reproduzidas voam, e cobras escorregam pelos ombros de Zhora,
uma replicante geneticamente reproduzida, enquanto esta se apresenta num cabaré
que parece uma imitação perfeita dos da década de 20.
O caos de signos, de mensagens e significações concorrentes, sugere, no nível
da rua, uma condição de fragmentação e incerteza que acentua muitas das facetas
da estética pós-moderna descritas na Parte I. A estética de Blade Runner, diz Bruno,
é o resultado "da reciclagem, da fusão de níveis, dos significantes descontínuos, da
explosão de fronteiras e da erosão". No entanto, há também um forte sentido de
algum poder organizador oculto- a Tyrell Corporation, as autoridades que encarregam Deckard de sua tarefa sem lhe dar escolha, a rápida descida das forças da
lei e da ordem quando é necessário estabelecer o controle da rua. O caos é tolerado,
justamente porque parece pouco ameaçador para o controle geral.
Há por toda parte imagens de destruição criativa. Elas estão mais fortemente
280
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
presentes, com efeito, na figura dos próprios replicantes, criados com poderes
maravilhosos só para serem destruídos prematuramente e com certeza "retirados"
caso se envolvam de fato com seus próprios sentimentos e tentem desenvolver
suas próprias capacidades à sua maneira. As imagens de decadência que permeiam
tudo o que há na paisagem reforçam exatamente essa estrutura de sentimento. O
sentido de abalo e de fragmentação da vida social é acentuado numa incrível
seqüência em que Deckard persegue uma das replicantes, Zhora, pelos espaços
apinhados, incoerentes e labirínticos da cidade. Encontrando-a finalmente numa
arcada cheia de lojas exibindo suas mercadorias, ele lhe dá um tiro nas costas, e ela
vai caindo e quebrando camadas e mais camadas de portas e janelas de vidro,
morrendo enquanto faz pedaços de vidro voarem em mil e uma direções no seu
salto final por uma enorme janela.
Procurar replicantes depende de certa técnica de interrogatório, que se baseia
no fato de eles não terem uma história real; afinat eles foram criados geneticamente como adultos crescidos, faltando-lhes a experiência de socialização humana (um
fato que também os faz potencialmente perigosos caso fujam ao controle). A questão-chave que expõe um dos replicantes, Leon, é: "Fale-me de seus sentimentos
com relação a sua mãe". Ele responde: "Deixe-me falar sobre a minha mãe" e atira
em quem faz a pergunta. Rachet a mais sofisticada replicante, tenta convencer
Deckard de sua autenticidade como pessoa (depois de suspeitar que Deckard percebera seus outros artifícios) produzindo a fotografia de uma mãe e uma garotinha
que diz ser ela. A questão aqui, na perceptiva observação de Bruno, é que as
fotografias são feitas agora como provas de uma história reat pouco importando
qual possa ter sido a verdade dessa história. A imagem é, em resumo, prova da
realidade, e as imagens podem ser criadas e manipuladas. Deckard descobre grande número de fotografias nas mãos de Leon, presumivelmente destinadas a documentar que ele também tem uma história. E Rachet vendo as fotografias familiares
de Deckard (e é interessante que o único sentido da história que temos de Deckard
seja fornecido por suas fotografias), tenta adequar-se a elas. Ela passa a usar o
cabelo no estilo das fotografias, toca piano como se estivesse num quadro e age
como se soubesse o que significa um lar. É essa vontade de buscar a identidade,
o lar e a história (a semelhança com as idéias de Bachelard sobre a poética do
espaço é quase perfeita aqui) que termina por levar à suspensão temporária de sua
"retirada" . Deckard por certo se comove com isso. Mas ela só pode reentrar no
reino simbólico de uma sociedade verdadeiramente humana reconhecendo o poder
irresistível da figura edipiana, o pai. Esse é o único caminho que ela pode tomar
para ser capaz de responder à pergunta "Fale-me sobre a sua mãe" . Ao sujeitar-se
a Deckard (confiando nele, condescendendo com ele e, em última análise,
submentendo-se a ele fisicamente), ela aprende o sentido do amor humano e a
essência da sociabilidade comum. Ao matar o replicante Leon quando este está
prestes a matar Deckard, ela fornece a prova última da capacidade de agir como
mulher de Deckard. Ela escapa ao mundo esquizóide do tempo e da intensidade
replicantes para entrar no mundo simbólico de Freud.
Mas não creio que Bruno esteja certo quando contrasta o destino de Roy e de
Rachei com base na disposição de Rachei de submeter-se à ordem simbólica e na
recusa de Roy a fazê-lo. Roy está programado para morrer logo, e nenhum adia-
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
281
menta ou salvação são possíveis. Sua exigência de superar todo o desperdício de
sua própria condição simplesmente não pode ser atendida. Sua raiva, bem como
a dos outros replicantes, é fenomenal. Chegando a Tyrell, Roy primeiro o beija
antes de arrancar-lhe os olhos, matando seu criador. Bruno interpreta isso, com
razão, como uma reversão do mito de Édipo e como um claro indício de que os
replicantes não vivem no quadro de uma ordem simbólica freudiana. Isso não
significa, todavia, que os replicantes não tenham sentimentos humanos. Já vimos
algo da capacidade de sentir de Roy em sua resposta comovente e muito afetuosa
à morte da replicante Pris, morta por Deckard em meio às réplicas de J. F. Sebastian.
A subseqüente perseguição de Roy por Deckard, que cedo se transforma na caça
perseguindo o caçador, culmina com Roy evitando, no último momento, que
Deckard caia de um alto prédio na rua. E é quase exatamente nesse momento que
Roy chega ao seu fim programado.
Mas, antes de morrer, Roy conta parte dos prodigiosos eventos de que participou e das coisas que viu. Ele verbaliza sua raiva por sua condição de cativeiro
e a perda que permite que toda a sua incrível intensidade de experiência seja
"levada pelo tempo como lágrimas na chuva". Deckard reconhece o poder dessas
aspirações; os replicantes, reflete ele, são bem iguais à maioria de nós. Eles querem
simplesmente saber "de onde vêm, para onde vão e quanto tempo têm". E é com
Rachei, que não foi programada para morrer em quatro anos, que Deckard foge,
depois que os outros quatro replicantes estão mortos, para uma paisagem natural
de florestas e montanhas em que o sol, nunca visto em Los Angeles, brilha. A
replicante se tornou um simulacro de tamanha perfeição que ela e o ser humano
podem se lançar aos seus próprios futuros, embora ambos fiquem "imaginando
quanto tempo temos".
Blade Rzmner é uma parábola de ficção científica em que temas pós-modernos,
situados num contexto de acumulação flexível e de compressão do tempo-espaço,
são explorados com todo o poder de imaginação que o cinema pode mobilizar. O
conflito ocorre entre pessoas que vivem em escalas de tempo distintas e que, como
resultado, vêem e vivem o mundo de maneira bem diferente. Os replicantes não
têm história real, mas talvez possam fabricar uma; a história foi, para todos, reduzida à prova da fotografia. Embora a socialização ainda seja importante para a
história pessoal, também ela pode, como mostra Rachei, ser replicada. O lado
depressivo do filme é justamente que, no final, a diferença entre o replicante e o
ser humano fica tão irreconhecível que eles podem até se apaixonar um pelo outro
(uma vez que ambos entrem na mesma escala temporal). O poder do simulacro
está em toda parte. O mais forte vínculo social entre Deckard e os replicantes
revoltados - o fato de um e outros serem controlados e escravizados por um
poder corporativo dominante - nunca fornece o menor indício de que uma coalizão dos oprimidos possa ser f01jada entre eles. Embora os olhos de Tyrell sejam
arrancados durante sua morte, trata-se de um ato de raiva pessoal, e não de classe.
O final do filme é uma cena de puro escapismo (tolerada, deve-se notar, pelas
autoridades) que deixa como estão tanto o problema dos replicantes como as péssimas condições da frenética massa humana que habita as ruas criminosas de um
mundo pós-moderno decrépito, desindustrializado e decadente.
***
282
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
Em Asas do Desejo também encontramos dois grupos de atores que vivem em
diferentes escalas temporais. Os anjos vivem no tempo duradouro e eterno, e os
seres humanos, em seu próprio tempo social - e, com efeito, cada grupo vê o
mundo de uma maneira bem distinta. O filme articula o mesmo sentido de fragmentação que permeia Blade Runner, embora a questão das relações entre o tempo,
o espaço, a história e o lugar seja evocada direta, e não indiretamente. O problema
da imagem, em particular da implicada pela fotografia, versus a narração de uma
história em tempo real, é central para a construção do filme.
O filme começa com uma narração semelhante a um conto de fadas sobre
como era o tempo em que as crianças eram crianças. Era uma época, dizem-nos,
em que as crianças pensavam que tudo era cheio de vida e que a vida era uma só,
em que não tinham opinião sobre nada (incluindo, ao que parece, sobre ter opiniões, o que seria totalmente aceitável para um filósofo pós-moderno como Rorty)
e em que não sequer eram perturbadas por fotografias. Contudo, as crianças fazem
perguntas importantes como: "Por que sou eu e não você?" "Por que estou aqui e
não ali?" e "Quando o tempo começou e onde termina o espaço?" Essas questões
são repetidas em vários pontos-chave do filme e enquadram o material temático.
As crianças, em vários momentos, olham para cima ou ao redor de si como se
tivessem uma consciência parcial da presença dos anjos, enquanto os adultos, preocupados e auto-referenciais, parecem incapazes de tê-la. As perguntas feitas por
elas são de fato questões fundamentais de identidade, e o filme explora dois caminhos paralelos de definição de respostas.
O lugar é Berlim. Num certo sentido, é uma pena que Berlim desapareça do
título em português, porque o filme é uma forte e sensível evocação do sentido
desse lugar. Mas logo chegamos a entender que Berlim é uma cidade entre muitas
num espaço interativo global. Peter Falk, um astro da mídia internacional
intantaneamente identificável (muitos o reconhecem como o detetive Columbo numa
série de televisão com esse mesmo nome, havendo várias referências diretas a esse
papel), voa pelo ar. Seus pensamentos são "Tóquio, Quioto, Paris, Londres, Trieste, ...
Berlim!", à medida que ele localiza o lugar para o qual deve ir. Em vários pontoschave do filme há aviões levantando vôo ou pousando. As pessoas pensam em
alemão, francês e inglês, usando-se às vezes outras línguas (a linguagem ainda não
degenerou para a condição do "cidadês" de Blade Runner). Referências ao espaço
internacional da mídia estão por toda parte. Berlim é com certeza apenas um lugar
entre muitos, e existe num mundo cosmopolita de internacionalismo. Mas Berlim
ainda é o lugar distintivo a ser explorado. Um momento antes de ouvirmos os
pensamentos de Falk, ouvimos uma garotinha pensando em como desenhar o
espaço da casa. A relação entre espaço e lugar cedo é posta diretamente na pauta.
A primeira parte do filme examina Berlim através dos olhos monocromáticos de
um par de anjos. Estando fora do tempo humano do vir-a-ser, eles existem no domínio
do puro espírito, no tempo infinito e eterno. Eles também podem mover-se, sem
esforço e de modo instantâneo, no espaço. Para eles, o tempo e o espaço apenas
existem, um presente infinito num espaço infinito que reduz o mundo inteiro a um
estado monocromático. Tudo parece flutuar no mesmo presente indiferenciado, mais
ou menos corno a vida social contemporânea flutua na indiferenciada e
homogeneizadora corrente do dinheiro internacional Os anjos, contudo, não podem
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
283
imiscuir-se no problema das decisões humanas. Vivendo num mundo de "sempre" e
"para sempre", o "aqui" e o "agora" não fazem sentido para eles.
O quadro de Berlim que emerge de sua perspectiva é uma extraordinária
paisagem de espaços fragmentados e incidentes efêmeros sem lógica coesiva. As
imagens de abertura nos levam do alto para os pátios internos e espaços divididos
das casas dos trabalhadores do século XIX. Passamos então por espaços interiores
semelhantes a labirintos, ouvindo com os anjos os pensamentos íntimos das pessoas. Espaços isolados, pensamentos isolados, indivíduos isolados - isso é tudo o
que podemos ver. Um jovem num quarto pensa em suicídio por causa de um amor
perdido, enquanto o pai e a mãe têm pensamentos bem diferentes a seu respeito.
No subterrâneo, num ônibus, em carros, numa ambulância que corre com uma
grávida, na rua, numa bicicleta, tudo parece fragmentado e efêmero, sendo cada
incidente registrado no mesmo monotom e monocromo. Encontrando-se fora do
espaço e do tempo humanos, tudo o que os anjos podem fazer é oferecer algum
conforto espiritual, tentar curar os fragmentados e muitas vezes abalados sentimentos dos indivíduos cujos pensamentos monitoram. Eles às vezes têm sucesso
e, com a mesma freqüência, fracassam (o jovem comete suicídio, e a secundarista
levada à prostituição fica inconsolável com a perda do namorado). Como anjos,
queixa-se um deles, nunca podemos participar de fato, só fingir.
Essa fantástica evocação de uma paisagem urbana, de pessoas alienadas em
espaços fragmentados aprisionados numa efemeridade de incidentes sem padrão,
tem um forte efeito estético. As imagens são brutais, frias, mas dotadas de toda a
beleza de um instantâneo no velho estilo, embora posto em movimento pelas lentes
da câmera. O que vemos é uma paisagem seletiva. Os fatos da produção, e as
necessárias relações de classe a eles vinculadas, são notados pela sua ausência. É-nos mostrado um quadro do urbano que é, seguindo o costume da sociologia pós-moderna, inteiramente déclassé, muito mais próximo de Simmel (em seu ensaio
"Metropolis and Mental Life" do que de Marx. A morte, o nascimento, a ansiedade, o prazer, a solidão são estetizados no mesmo plano, faltos de sentido de luta
de classes e sem comentários morais ou éticos.
A identidade desse lugar chamado Berlim é constituída por essas imagens
estranhas, mas bastante belas. A organização distintiva do espaço e do tempo é,
além disso, vista como a estrutura no âmbito da qual são forjadas identidades
individuais. A imagem de espaços divididos é particularmente forte, sendo eles
superpostos entre si à feição de uma montagem e colagem. O Muro de Berlim é
uma dessas divisões, sendo evocado repetidas vezes como símbolo de uma divisão
que a tudo perpassa. Será ele o ponto em que o espaço agora termina? "É impossível ficar perdido em Berlim", diz alguém, "porque você sempre pode encontrar
o muro." Mas existem divisões mais refinadas. A Alemanha, reflete o motorista de
um carro ao passar por cenas de rua que lembram imagens da destruição da época
da guerra, fragmentou-se a tal ponto que toda pessoa constitui um mini-estado e
cada rua tem suas barreiras cercadas por uma terra-de-ninguém que só se pode
cruzar quando se tem a senha correta. Até o acesso de um indivíduo a outro exige
o pagamento de uma taxa. Não somente se pode considerar essa condição extrema
de individualismo alienado e isolado (do tipo descrito por Simmel) uma boa coisa
(em comparação com a vida coletiva do nazismo que veio antes), como as pessoas
284
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
podem procurá-la. "Consiga uma boa roupa, isso é meia batalha ganha", diz Falk,
pensando no papel que vai desempenhar, e, numa cena prodigiosamente divertida,
experimenta chapéu após chapéu a fim de, diz ele, ser capaz de passar incógnito
pela multidão e conseguir o anonimato que deseja. Os chapéus que ele põe se
transformam em virtuais máscaras de personagens, mais ou menos da mesma
maneira como as fotografias de Cindy Sherman mascaram a pessoa. Um deles o
torna parecido com Humphrey Bogart, outro é para ir às corridas, aquele ali para
ir à ópera e aquele outro para se casar. O ato de mascaramento e disfarce tem
conexões com a fragmentação espacial e com o individualismo alienado.
Essa paisagem tem todas as marcas da alta arte pós-moderna descrita recentemente, por exemplo, por Pfeil (1988, 384). "Temos diante de nós não um texto
unificado e muito menos a presença de uma personalidade e sensibilidade distintas, mas um terreno descontínuo de discursos heterogêneos enunciados por línguas anônimas e não-localizáveis, um caos diferente daquele presente nos textos
clássicos do alto modernismo justamente na medida em que não é recontido nem
recuperado num arcabouço mítico abrangente." A qualidade da enunciação é "apagada, indiferente, despersonalizada, emaciada", de modo a impedir a possibilidade
da participação tradicional do público". Só os anjos têm uma visão geral e, quando
estão empoleirados no alto, ouvem apenas uma algaravia de vozes e sussurros
entrelaçados, não vendo senão um mundo monocromático.
Como pode algum sentido de identidade ser moldado e sustentado num mundo
assim? Quanto a isso, dois espaços assumem uma significação peculiar. A biblioteca - um repositório de conhecimento histórico e memória coletiva - é um
espaço para o qual muitos são evidentemente atraídos (mesmo os anjos parecem
descansar lá). Um velho entra na biblioteca; ele vai desempenhar um papel de
extrema importância, embora ambíguo. Ele vê a si mesmo como o contador de
histórias, a musa, o guardião potencial da memória coletiva e da história, o representante do "homem comum". Mas ele é perturbado pelo pensamento de que o
unico círculo de ouvintes que costumava se formar ao seu redor se rompeu e se
dispersou, e os seus membros, que ele não sabe para onde foram, se tornaram
leitores que não se comunicam uns com os outros. O velho se queixa de que até
a linguagem e os significados das palavras e frases parecem ter desaparecido,
tornando-se incoerentes. Forçado agora a viver "o imediato", ele usa a biblioteca
para tentar resgatar um sentido próprio da história do lugar específico chamado
Berlim. Ele deseja fazê-lo não da perspectiva dos líderes e reis, mas como um hino
de paz. Os livros e fotografias, contudo, evocam imagens da morte e da destruição
ocorridas na Segunda Guerra, um trauma a que o filme faz repetidas referências,
como se tivesse sido de fato o momento em que esta época começou e em que os
espaços da cidade foram abalados.
O velho, cercado por globos terrestres na biblioteca, gira um deles, pensando
que o mundo inteiro está virando pó. Ele sai da biblioteca e caminha na direção da
Postdamer Platz (um dos espaços urbanos que Sitte certamente admiraria), o coração da velha Berlim, com seu Café Josti, onde ele costumava tomar café, fumar um
charuto e observar a multidão. Caminhando ao longo do Muro de Berlim, tudo o
que ele consegue encontrar é um terreno vazio tomado pelo mato. Atônito, ele cai
numa poltrona abandonada, insistindo que a sua busca não é vã nem irrelevante.
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
285
Embora se sinta como um poeta ignorado e ridicularizado no limite da terra-de-ninguém, ele não pode desistir porque, como diz, se a humanidade perder o seu
contador de histórias, terá perdido a sua infância. Embora possa em certos momentos ser feia - e ele se lembra como ao pensar numa ocasião em que apareceram
bandeiras na Potsdamer Platz, a multidão ficou indócil e a polícia, brutal - , a
história tem de ser contada. Além disso, ele se sente pessoalmente protegido, salvo,
como diz, "de problemas presentes e futuros pela narrativa". Seu esforço por reconstruir e transmitir essa narrativa de salvação e de proteção é uma sutil subtrama
durante todo o filme, só assumindo sua importância bem no final.
Mas há um segundo lugar em que prevalece um frágil sentido de identidade.
O circo, um espetáculo realizado no espaço fechado de uma tenda, oferece um
lugar de interação especial no âmbito do qual pode ocorrer algum tipo de relação
humana. É nesse espaço que a trapezista, Marion, adquire algum sentido de si
mesma, uma possibilidade de realizar-se e de pertencer a alguma coisa. Mas a
notícia de que o circo está sem dinheiro e tem de fechar mostra imediatamente
quão efêmera e contingente é essa identidade. Também aqui prevalece o contrato
de curto prazo. Marion, porém, embora bastante triste com essa notícia, insiste que
tem uma história e que vai criar uma, se bem que não no circo. Ela até se imagina
indo a uma cabine automática de fotografias e saindo com uma nova identidade
(mais uma vez, o poder da imagem fotográfica), conseguindo um emprego como
garçonete ou qualquer outra coisa. Sua própria história - como somos lembrados
enquanto um dos anjos a observa em seu trailer - pode de qualquer modo ser
reduzida (tal como a de Deckard) a fotografias de família pregadas na parede;
assim, por que não construir uma nova história com a ajuda de fotografias? Essas
fantasias, no entanto, estão plenas de uma poderosa aura de desejo de vir a ser
uma pessoa inteira, em vez de fragmentada e alienada. Ela anseia por ser completa,
mas reconhece que isso só pode ocorrer por meio de uma relação com outra pessoa. Depois que o circo desaparece, ela fica de pé, sozinha, no lugar vazio, sentindo-se uma pessoa sem raízes, sem história, sem país. Mas esse mesmo vazio parece
conter a possibilidade de alguma transformação radical. "Eu posso me tornar o
mundo", diz ela enquanto observa um avião a jato cruzar o céu.
Um dos anjos, Damiel, já saturado de sua impotência de sintonizar com o aqui
e o agora, é atraído pela energia e beleza de Marion, particularmente na realização
do seu ato no trapézio. Ele se torna presa dos anseios interiores dela no sentido de
antes tornar-se do que apenas ser. Pela primeira vez, ele vislumbra como o mundo
seria em cores e vai gostando cada vez mais da idéia de entrar no fluxo do tempo
humano, abandonando o tempo do espírito e da eternidade. Dois momentos
catalíticos precipitam sua decisão. Marion sonha com ele como o "outro"
resplendente, e ele se vê refletido no sonho dela. Ainda invisível, ele a segue até
uma boate e, enquanto ela dança, ausente, sozinha, toca os seus pensamentos. Ela
reage com uma sensação de bem-estar enlevado, como se, diz ela, uma mão estivesse se fechando suavemente dentro do seu corpo. O segundo momento catalítico
tem como centro Peter Falk - que, como transpira mais tarde, é um anjo que veio
para a terra há algum tempo. Enquanto toma café numa barraca da rua, e ele sente
a presença do invisível Damiel. "Não posso vê-lo, mas sei que você está aí", diz ele
ao surpreso Damiel, passando então a falar, com ardor e bom-humor, de quão
286
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
agradável é viver no fluxo do tempo humano, sentir os eventos materiais e perceber de maneira tangível toda a gama de sensações humanas.
A decisão de Damiel de entrar nisso é tomada na terra-de-ninguém, entre duas
faixas do Muro de Berlim, patrulhada por soldados. Felizmente, seu companheiro
anjo tem o poder de levá-lo para o lado ocidental. Ali, Damiel acorda para um
mundo de cores ricas e vibrantes. Ele tem de percorrer a cidade em termos físicos
reais e, ao fazê-lo, vivenda o júbilo que vem da criação de uma história espacial
(à maneira de de Certeau) pelo mero ato de atravessar a cidade, que já não parece
fragmentada, assumindo uma estrutura mais coerente. Esse sentido humano de
espaço e movimento contrasta com o espaço dos anjos, antes descrito como um
hiper-espaço de acelerados lampejos, sendo cada imagem semelhante a um quadro
cubista, o que sugere uma modalidade de experiência espacial totalmente distinta.
Ao entrar no fluxo do tempo, Damiel passa de um plano para o outro. Mas agora
ele precisa de dinheiro para sobreviver. Ele consegue com um passante o suficiente
para tomar uma xícara de café, vende uma armadura antiga (que mais tarde vamos
saber que é o dote inicial de todos os anjos que vêm para a terra) e sai da loja com
um colorido guarda-roupa e com um relógio que ele inspeciona com o maior
interesse. Damiel vai parar no estúdio onde Peter Falk está filmando, sofrendo ali
um grande choque, porque o guarda não o deixa passar. Almadiçoando o guarda,
ele tem de gritar para Falk através da cerca. Falk, que adivinha imediatamente
quem ele é, pergunta: "Há quanto tempo?" Damiel responde: "Minutos, horas,
dias, semanas ... Tempo!" Falk replica com um humor delicado: "Bem, deixe-me
dar-lhe alguns dólares!" A entrada de Damiel neste mundo humano agora está
firmemente situada nas coordenadas do espaço social, do tempo social e do poder
social do dinheiro.
A reunião de Damiel e Marion pretende claramente ser o ponto culminante do
filme. Os dois giram em torno um do outro na mesma boate em que ela estivera
antes, observados pelo antigo companheiro-anjo de Damiel, que tem um ar cansado, antes de irem juntos para o bar próximo. Ali, eles se conhecem de maneira
quase ritualística; ela, pronta e determinada a fazer sua história, a superar o ser
com o vir-a-ser; ele, decidido a aprender o significado do fluxo da experiência
humana no espaço e no tempo. No longo monólogo que se segue, ela insiste na
seriedade do seu projeto comum, embora a própria época possa não ser séria. Ela
insiste em se livrar da coincidência e da contingência. Os contratos temporários se
acabaram. Marion tenta definir uma maneira de união que tenha um sentido universal para além dessa época e desse lugar particulares. Pode não haver destino,
diz ela, mas há por certo decisão. E trata-se de uma decisão de que todas as pessoas
da cidade, e até do mundo, podem participar. Ela imagina uma praça cheia de
gente e que ela e Damiel estão tão plenos desse lugar que podem tomar uma
decisão por todos. É uma decisão de estabelecer um vínculo entre um homem e
uma mulher em torno de um projeto comum de vir-a-ser, vínculo no qual a mulher
pode dizer: "Meu homem", de maneira a abrir todo um universo a uma percepção
e interpretação novas. Ela significa entrar no labirinto de felicidade mediante a
transformação do desejo em amor, para que Marion possa por fim ficar v~rdadei
ramente sozinha consigo mesma- porque ficar verdadeiramente sozinho pressupõe uma integralidade que pode vir apenas de uma relação não-contingente com
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
287
outra pessoa. Parece que agora ela tem respostas para as constrangedoras questões:
"Por que sou eu e não você?" "Por que estou aqui e não ali?" e "Onde começou
o tempo e onde termina o espaço?" O que nasce de sua união -reflete Damiel
enquanto a ajuda a praticar seu ato no trapézio depois de sua primeira noite juntos
- não é um filho, mas uma imagem imortal de que todos podem partilhar e que
todos podem tornar o centro de sua vida.
É difícil evitar que esse final resvale na banalidade (pressagiada pela seqüência
onírica kitsch em que o anjo surge diante de Marion numa resplendente roupa
prateada). Devemos concluir, afinal, que é somente o amor romântico que faz o
mundo girar? Uma leitura caridosa poderia ser que não deveríamos deixar a nossa
experiência gasta do kitsch e do pastiche ficar no caminho da libertação do desejo
romântico e da assunção de grandes projetos. Mas as seqüências finais são de fato
um portento. O filme retoma à monocromia do tempo permanente. O velho, com
quem perdemos todo contato durante as seqüências coloridas do filme, se arrasta
na direção do Muro de Berlim, dizendo: "Quem vai procurar por mim, seu contador de histórias? Eles precisam de mim mais do que nunca." A câmera passa de
súbito por ele e focaliza as nuvens, como se levantasse vôo. "Estamos no nosso
caminho", diz Marion. Vem mais por aí- garante-nos o crédito final.
Vejo essa segunda parte do filme como uma tentativa de ressuscitar algo do
espírito modernista de comunicação humana, de união e de vir-a-ser das cinzas de
uma paisagem pós-moderna monocromática e amorfa de sentimento. Wenders
mobiliza claramente todas as suas forças artísticas e criadoras num projeto de
redenção. Ele propõe, com efeito, um mito romântico que possa nos redimir "do
universo informe da contingência" (ver acima, p. 191). O fato de muitos anjos,
segundo Falk, terem preferido vir para a terra sugere que sempre é melhor estar
dentro do fluxo do tempo humano, que vir a ser sempre tem o potencial de romper
a estase do ser. O espaço e o tempo são constituídos de maneiras radicalmente diferentes nas duas partes do filme, e a presença da cor, da criatividade e, não devemos
nos esquecer, do dinheiro como forma de vínculo social fornece o quadro necessário no âmbito do qual é possível encontrar algum sentido de propósito comum.
Mas há sérios dilemas a resolver. Damiel não tem história, e Marion está separada de suas raízes, reduzindo-se a sua história a um conjunto de fotografias e a
alguns outros "objetos de memória" do tipo que hoje constitui o sentido da história
tanto na casa (ver acima, p. 263) como no museu (ver acima, p. 64). Será possível
pôr em prática o projeto de vir a ser a-historicamente? A voz persistente do velho
parece questionar a viabilidade disso. O romantismo rasgado do final, ele parece
dizer, tem de ser complementado por um real sentido de história. Na verdade, a
imagem de Marion de toda uma "Platz" cheia de pessoas participando de sua
decisão evoca o espectro do momento em que a Potsdamer Platz ficou feia quando
cheia de bandeiras. Dizendo de maneira formal, há no filme uma tensão entre a
força das imagens espaciais (fotografias, o próprio filme, a luta de Damiel e Marion,
no final, para formar uma imagem pela qual o mundo possa viver) e o poder da
narrativa. O velho (descrito como Homero, o contador de histórias, nos créditos)
é em muitos aspectos marginalizado no filme, queixando-se explicitamente disso.
Segundo ele, vir-a-ser tem de ser mais do que criar mais um conjunto de imagens
sem profundidade; tem de ser situado e compreendido historicamente. Mas isso
288
A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO E DO TEMPO
pressupõe que a história possa ser captada sem o uso de imagens. O velho folheia
um livro de fotografia, anda a esmo na Potsdamer Platz, tentando reconstituir de
memória seu sentido de lugar, e se lembra de quando ela ficou feia, sem levar à
epopéia de paz que ele busca.
Esse diálogo entre imagem e narrativa cria uma tensão dramática subjacente
no filme. Imagens fortes (do tipo que Wenders e seu brilhante câmera, Henri Alekan,
sabem produzir muito bem) podem tanto iluminar como obscurecer narrativas. No
filme, elas superam as mensagens verbais que o velho tenta transmitir. É quase
como se o filme ficasse preso na circularidade (conhecida no léxico pós-moderno
como "intertextualidade") de suas próprias imagens. Há dentro dessa tensão toda
a questão de como tratar as qualidades estéticas do espaço e do tempo num mundo
pós-moderno de fragmentação e efemeridade monocromáticas. "Talvez", diz Marion,
"o próprio tempo seja a doença", deixando-nos a imaginar, tal como na seqüência
final de Blade Runner, "quanto tempo temos". Mas, seja lá o que isso signifique
para os participantes, a paisagem monocromática do tempo eterno e do espaço
infinito, mas fragmentado por certo não vai ser suficiente.
***
É por demais sugestivo como interessante que dois filmes sob outros aspectos
tão diferentes descrevam condições tão semelhantes. Não creio que a similaridade
seja acidental ou contingente. Ela sustenta a idéia de que a experiência recente de
compressão do tempo-espaço, sob as pressões da passagem para modos mais flexíveis de acumulação, gerou uma crise de representação nas formas culturais e que
isso é um tópico de intensa preocupação estética, no todo (como penso ser o caso
de Asas do Desejo) ou em parte (como seria o caso de tudo, de Blade Runner às
fotografias de Cindy Sherman e aos romanes de ltalo Calvino ou Pynchon). Essas
práticas culturais são importantes. Se há uma crise de representação do espaço e
do tempo, têm de ser criadas novas maneiras de pensar e de sentir. Parte de toda
trajetória para sair da condição da pós-modernidade tem de abarcar exatamente
esse processo.
O lado histe de ambos os filmes, apesar do otimismo aberto do final de Wenders,
é a incapacidade de ir além do romantismo (individualizado e fortemente estetizado)
como solução para as condições que os dois cineastas retratam de modo tão brilhante. Parece que eles são incapazes de se libertar do poder das imagens por eles
mesmos criadas. Marion e Damiel procuram uma imagem para substituir imagens,
parecendo ver isso como uma concepção adequada de como mudar o mundo.
Dessa perspectiva, a virada para o romantismo, nos dois casos, é perigosa justamente porque pressagia a continuação de uma condição em que a estética tem
predomínio sobre a ética. As qualidades do romantismo oferecido, deve-se reconhecer, variam. O machismo cansado de Deckard e a submissão de Rachei são
totalmente diferentes do encontro de mentes e almas no caso de Marion e Damiel
(que estão dispostos a aprender um com o outro). E, no entanto, mesmo nesse
ponto há um sentido em que Blade Runner fala com uma voz bem mais autêntica
(embora não necessariamente digna de louvor) porque ao menos se preocupa com
a natureza da ordem simbólica em que poderíamos estar (uma questão de que
Wenders foge). Wenders também foge por inteiro da questão das relações e da
consciência de classe ao reduzir o problema social ao relacionamento imediato
O TEMPO E O ESPAÇO NO CINEMA PÓS-MODERNO
289
entre indivíduos e a coletividade (o Estado). Embora sejam abundantes em Blade
Runner os indícios de relações de classe objetivas, os participantes da ação evidentemente não vêem propósito em se relacionar com eles, mesmo que estejam, corno
Deckard, vagamente conscientes de sua existência.
Por mais que esses dois filmes sejam retratos brilhantes das condições da pós-modernidade, e em particular da conflituosa e confusa experiência do espaço e do
tempo, nenhum deles tem o poder de derrubar modos estabelecidos de ver nem de
transcender as condições antagônicas do momento. Isso deve ser atribuído em
parte às contradições inerentes à própria forma cinematográfica. Afinal, o cinema
é o fabricante e rnanipulador supremo de imagens para fins comerciais, e o próprio
ato de usá-lo bem implica sempre a redução das complexas histórias da vida cotidiana a uma seqüência de imagens projetadas numa tela privada de profundidade. A idéia de um cinema revolucionário sempre afundou ao bater nas rochas
dessa dificuldade. Não obstante, o malaise é mais profundo do que isso. As formas
artísticas e artefatos culturais pós-modernos, pela sua própria natureza, têm de
encarar autoconscientemente o problema da criação de imagens e, corno resultado,
devem se voltar necessariamente para si mesmos. Em conseqüência, torna-se difícil
escapar a ser o que está sendo retratado na própria forma de arte. Wenders, creio
eu, efetivamente luta com esse problema, e o fato de ele no final não ter sucesso
é talvez assinalado mais claramente no aviso de que "vem mais por aí" . Contudo,
dentro desses limites, as qualidades rnirnéticas do cinema desse tipo são extraordinariamente reveladoras. Tanto Asas do Desejo como Blade Runner nos mostram,
como num espelho, muitas das características essenciais da condição da pós-modernidade.
A condiç·ão
pós-moderna
O novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a
própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido.
Jürgen Habermas
O Iluminismo está morto, o Marxismo está morto, o movimento
da classe trabalhadora está morto... e o autor também não se
sente muito bem .
Neil Smith
19
A pós-modernidade como condição histórica
As práticas estéticas e culturais têm particular suscetibilidade à experiência
cambiante do espaço e do tempo exatamente por envolverem a construção de
representações e artefatos espaciais a partir do fluxo da experiência humana. Elas
sempre servem de intermediário entre o Ser e o Vir-a-Ser.
É possível escrever a geografia histórica da experiência do espaço e do tempo
na vida social, assim como compreender as transformações por que ambos têm
passado, tendo por referência condições sociais e materiais. A Parte III propôs um
esboço histórico de como isso poderia ser feito com relação ao mundo ocidental
pós-Renascença. Aí, as dimensões do espaço e do tempo têm sido sujeitas à persistente pressão da circulação e da acumulação do capital, culminando (em especial
durante as crises periódicas de superacumulação que passaram a surgir a partir da
metade do século passado) em surtos desconcertantes e destruidores de compressão do tempo-espaço.
As respostas estéticas a condições de compressão do tempo-espaço são importantes, e assim têm sido desde que a separação, ocorrida no século XVIII, entre
conhecimento científico e julgamento moral criou para elas um papel distintivo. A
confiança de uma época pode ser avaliada pela largura do fosso entre o raciocínio
científico e a razão moral. Em períodos de confusão e incerteza, a virada para a
estética (de qualquer espécie) fica mais pronunciada. Como fases de compressão
do tempo-espaço são disruptivas, podemos esperar que a virada para a estética e
para forças da cultura, tanto como explicações quanto como Zoei de luta ativa, seja
particularmente aguda nesses momentos. Sendo típico das crises de superacumulação catalisar a busca de soluções temporais e espaciais que criam, por sua vez,
um sentido avassalador de compressão do tempo-espaço, também podemos esperar que as crises de superacumulação sejam seguidas por fortes movimentos estéticos.
A crise de superacumulação iniciada no final dos anos 60, e que chegou ao
auge em 1973, gerou exatamente esse resultado. A experiência do tempo e do
espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais
ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação
assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as
explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e
passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas.
O esboço histórico que propus aqui sugere, no entanto, que mudanças dessa
espécie de modo algum são novas, e que a sua versão mais recente por certo está
ao alcance da pesquisa materialista-histórica, podendo até ser teorizada com base
na metanarrativa do desenvolvimento capitalista que Marx formulou.
294
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Em resumo, o pós-modernismo pode ser considerado uma condição histórico-geográfica de uma certa espécie. Mas que espécie de condição é ele e como deveríamos compreendê-la? É ele patológico ou o presságio de uma revolução dos
eventos humanos mais profunda e até mais ampla do que as já ocorridas na geografia histórica do capitalismo? Nesta conclusão, esboço algumas respostas possíveis para essas perguntas.
20
Economia com espelhos
"Economia vodu" e "economia com espelhos", disseram George Bush e John
Anderson, respectivamente, comentando o programa econômico de Ronald Reagan
voltado para recuperar uma economia frágil, durante as campanhas das primárias
e da eleição presidencial de 1980. Um esboço feito num guardanapo por um economista pouco conhecido chamado Laffer pretendia mostrar que cortes de impostos eram capazes de aumentar a receita fiscal (ao menos até um certo ponto),
porque estimulavam o crescimento e, por conseguinte, a base sobre a qual os
impostos eram cobrados. Assim seria justificada a política econômica dos anos
Reagan, uma política que de fato produziu maravilhas com espelhos, embora tenha
levado os Estados Unidos a ficarem vários passos mais perto da falência internacional e da ruína fiscal (ver figuras 2.13 e 2.14). O estranho e curioso é que essa
idéia simplista tenha podido obter a aceitação que obteve e tenha parecido funcionar tão bem politicamente por tanto tempo. Mais estranho do que isso é Reagan ter
sido reeleito mesmo quando todas as pesquisas mostravam que a maioria do eleitorado americano (para não falar dos eleitores possíveis que não votam) discordava fundamentalmente dele em quase todas as principais questões políticas, sociais
e até de política externa. O mais estranho de tudo é que tal presidente possa ter
deixado o cargo com tamanho grau de aceitação pública, muito embora mais de
dez membros importantes de sua administração tenham sido acusados ou declarados culpados de sérias violações da lei e de uma evidente desconsideração dos
princípios éticos. O triunfo da estética sobre a ética não podia ser mais evidente.
A construção de imagem na política nada tem de novidade. O espetáculo, a
pompa e circunstância, o comportamento, o carisma, o paternalismo e a, retórica há
muito são parte da aura do poder político. E também o grau até o qual isso pode
ser comprado, produzido ou adquirido de outra maneira há muito é importante
para a manutenção desse poder. Contudo, houve aí, em tempos recentes, a mudança qualitativa de alguma coisa. A mediatização da política recebeu uma nova direção no debate televisivo Kennedy-Nixon, em que a perda por este último de uma
eleição presidencial foi atribuída por muitos à sua aparência não confiável. O uso
ativo de firmas de relações públicas para moldar e vender uma imagem política
cedo se seguiu (a cuidadosa formação de imagem do thatcherismo pela empresa
hoje poderosa Saatchi and Saatchi é um exemplo recente, ilustrando quão americanizada está se tornando, nesse sentido, a política européia).
A eleição de um ex-ator de cinema, Ronald Reagan, para um dos cargos mais
poderosos do mundo dá uma nova dimensão às possibilidades de uma política
mediatizada moldada apenas por imagens. Sua imagem, cultivada ao longo de
muitos anos de prática política, e depois cuidadosamente montada, burilada e
orquestrada com todos os artifícios que a produção contemporânea de imagens
296
.•
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
pode empregar, de pessoa dura mas calorosa, avuncular e bem-intencionada, com
uma fé inabalável na grandeza e perfeição da América, construiu uma aura de
política carismática. Carey McWilliams, experiente comentarista político e há muito
tempo editor da Nation, a descreveu como "a face amigável do fascismo". O "presidente de teflon", como ele veio a ser conhecido (simplesmente porque nenhuma
acusação lançada contra ele, por mais verdadeira, parecia colar), podia cometer
erro após erro, mas nunca ser chamado a prestar contas. Sua imagem podia ser
usada, infalível e instantaneamente, para demolir qualquer narrativa de crítica que
alguém se desse ao trabalho de elaborar. Essa imagem, no entanto, ocultava uma
política coerente. Em primeiro lugar, exorcizar o demônio da derrota no Vietnã
empreendendo uma ação afirmativa em apoio a qualquer luta nominalmente
anticomunista em qualquer lugar do mundo (Nicarágua, Granada, Angola,
Moçambique, Afeganistão etc.). E, em segundo, expandir o déficit orçamentário
por meio de gastos com defesa e forçar um Congresso (e uma nação) recalcitrante
a cortar cada vez mais os programas sociais que a redescoberta da pobreza e da
desigualdade racial nos Estados Unidos, nos anos 60, tinha produzido.
Esse programa aberto de engrandecimento de classe foi parcialmente bem-sucedido. Ataques ao poder sindical (liderados pela violenta reação de Reagan aos
controladores do tráfego aéreo), os efeitos da desindustrialização e das mudanças
regionais (encorajadas por reduções de impostos), bem como do alto desemprego
(legitimado como remédio adequado na luta contra a inflação), e todos os impactos
acumulados da redução do emprego na manufatura e do seu aumento no setor de
serviços enfraqueceram as instituições tradicionais da classe operária num grau
suficiente para tornar vulnerável boa parte da população. Uma maré montante de
desigualdade social engolfou os Estados Unidos nos anos Reagan, alcançando em
1986 o ponto mais alto do período de pós-guerra (ver figura 2.15); na época, os 5%
mais pobres da população, que tinham melhorado gradualmente sua parcela da
renda nacional para uma proporção de quase 7% no início dos anos 70, viram-se
com somente 4,6% . Entre 1979 e 1986, o número de famílias pobres com filhos
aumentou 35% e, em algumas grandes áreas metropolitanas, como Nova Iorque,
Chicago, Baltimore e Nova Orleans, mais da metade das crianças vivia em famílias
com renda abaixo da linha de pobreza. Apesar do grande aumento do desemprego
(que chegou ao auge de mais de 10%, segundo dados oficiais, em 1982), a porcentagem de desempregados que recebiam ajuda federal caiu para meros 32%, o nível
mais baixo na história da seguridade social desde a sua implantação no New Deal
(ver figura 2.9).
Um aumento do número de pessoas sem moradia marcou um estado geral de
deslocamento social caracterizado por confrontos (muitos deles com laivos racistas
ou étnicos). Os doentes mentais foram devolvidos aos cuidados de suas comunidades, consistindo esse cuidado, em larga medida, em rejeição e violência, a ponta
do iceberg de negligência que deixou quase 40 milhões de cidadãos de uma das
mais ricas nações do mundo sem nenhuma cobertura médica. Embora tenham sido
de fato criados empregos durante os anos Reagan, a maioria consistia em trabalhos
malpagos e inseguros, dificilmente suficientes para compensar o declínio de 10%
do salário real entre 1972 e 1986. O aumento da renda familiar significou apenas
" Alguns dias
eu especulo
Outros dias,
apenas
acumulo."
u§om.edays
I speculateo
Otherdays
I just 1
accum.u1ate?
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Ilustração 4.1 Este anúncio do Lloyds Ba11k sobre acumulação-especulação promove a aceitação do mundo da
formação de capital fictício e da economia vodu como base normal da vida diária.
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298
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
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1970
ECONOMIA COM ESPELHOS
299
a entrada de um número cada vez maior de mulheres na força de trabalho (ver
figuras 2.2 e 2.9).
Contudo, para os jovens e os ricos, para os educados e privilegiados, as coisas
não podiam ter sido melhores. O mundo dos imóveis, das finanças e dos serviços
cresceu, bem como a "massa cultural" dedicada à produção de imagens, de conhecimento e de formas estéticas e culturais (ver acima, p. 262). A base político-econômica e, com ela, toda a cultura das cidades foram transformadas. Nova Iorque
perdeu seu comércio tradicional de roupas e se dedicou, em vez disso, à produção
de dívidas e de capital fictício. "Nos últimos sete anos", dizia um relatório de
Scardino (1987) no New Iorque Times.
Nova Iorque construiu 75 novas fábricas para abrigar a máquina de produção
e distribuição de dívidas. Essas torres de granito e de vidro brilham noite afora
enquanto alguns dos mais talentosos profissionais desta geração inventam novos
instrumentos de dívida que atendem a qualquer necessidade imaginável: Títulos Perpétuos de Taxa Flutuante, Títulos de Curva de Produção e Títulos de
Unidade Monetária Dual, para ficar em alguns, agora negociados com tanta
naturalidade quanto o foram um dia as ações da Standard Oil.
Esse comércio é tão vigoroso quanto o que um dia dominou o porto. Mas
"hoje, as linhas telefônicas despacham o dinheiro do mundo para ser processado
como numa fábrica, armazenado em diferentes contêineres, empacotado e embarcado de volta". A maior exportação física da cidade de Nova Iorque é hoje papel
usado. A economia da cidade se apóia de fato na produção de capital fictício para
emprestar aos agentes imobiliários que fazem negócios para os profissionais muito
bem pagos que fabricam capital fictício. Do mesmo modo, quando a máquina de
produção de imagens de Los Angeles sofreu um grande choque durante a greve
do Sindicato dos Escritores, as pessoas perceberam de súbito "o quanto sua estrutura econômica se baseia no fato de um escritor contar uma história a um produtor
e que afinal é a tecedura dessa história (em imagens) que paga o salário do homem
que dirige o caminhão que entrega comida que é consumida no restaurante que
alimenta a família que toma as decisões que mantêm a economia funcionando"
. (reportagem de Scott Meek no The Independent, 14 de julho de 1988).
Figura 4.1 O mundo especulativo da economia vodu 1960-1987:
(a) pagamentos de juros nominais e corporações não financeiras norte-americanas (Fonte:
Departamento de Comércio)
(b) pagamentos de juros nominais como porcentagem dos lucros antes dos impostos nos
Estados Unidos (Fonte: Departamento de Comércio)
(c) capital total das empresas na Bolsa de Nova Iorque (Fonte: New York Times)
(d) volume diário de negociação da Bolsa de Nova Iorque (Fonte: New York Times)
(e) índice da produção industrial norte-americana (segundo Harrison e Bluestone, 1988)
(f) índice do volume de negócios do mercado futuro em Nova Iorque (segundo Harrison
e Bluestone, 1988)
300
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
A emergência dessa economia de cassino, com toda a sua especulação financeira e sua formação de capital fictício (boa parte dele sem o lastro de qualquer
crescimento da produção real), proporcionou abundantes oportunidades de engrandecimento pessoal (ilustração 4.1 e figura 4.1). O capitalismo de cassino chegou à cidade, e muitos grandes centros urbanos viram de repente que controlavam
um novo e poderoso negócio. Nas costas dessa expansão dos negócios e dos serviços financeiros, formou-se toda uma nova cultura yuppie, com seus atavios de
pequena nobreza, estreita atenção ao capital simbólico, à moda e ao design e de
qualidade de vida urbana.
O outro lado dessa afluência foi a praga da falta de moradia, da perda de
poder e do empobrecimento que tomou conta de muitas cidades centrais. A.
"alteridade" foi produzida com uma vingança e um ressentimento sem paralelos
no período de pós-guerra. As vozes esquecidas e os sonhos inesquecíveis dos sem-teto de Nova Iorque foram registrados da seguinte maneira (Coalition For the
Homeless, 1987):
Tenho 37 anos. Pareço ter 52. Algumas pessoas dizem que a vida nas ruas é
livre e fácil. .. Ela não é livre nem fácil. Não se recebe dinheiro nenhum. O
pagamento é a sua saúde e a sua estabilidade mental.
O nome do meu país é apatia. Minha terra está coberta de vergonha. O meu
olhar vê as hordas sem teto passando pela chama túrgida do serviço de bem-estar social. Ele procura quartos e calor, alguns cabides em lugar protegido,
uma gaveta; um lugar quente para tomar sopa - para isso serve a liberdade.
Pouco antes do Natal de 1987, o governo dos Estados Unidos cortou 35 milhões de dólares do orçamento de ajuda de emergência aos sem-teto. Enquanto
isso, o endividamento pessoal continou a se acelerar, e os candidatos à presidência
começaram a brigar para ver quem conseguiria enunciar os votos de lealdade no
tom mais convincente. As vozes dos sem-teto caíram tristemente no vazio num
mundo "abarrotado de ilusão, de fantasia e de fingimento".
21
O pós-modernismo
como o espelho dos espelhos
Uma das condições principais da pós-modernidade é o fato de ninguém poder
ou dever discuti-la como condição histórico-geográfica. Com efeito, nunca é fácil
elaborar uma avaliação crítica de uma situação avassaladoramente presente. Os
termos do debate, da descrição e da representação são com freqüência tão circunscritos que parece não haver como escapar de interpretações que não sejam auto-referenciais. É convencional nestes dias, por exemplo, descartar toda sugestão de
que a "economia" (como quer que se entenda essa palavra vaga) possa ser determinante da vida cultural, mesmo (como Engels e Althusser sugeriram) "em última
instância". O estranho na produção .cultural pós-moderna é o ponto até o qual a
mera procura de lucros é determinante em primeira instância.
O pós-modernismo surgiu em meio a este clima de economia vodu, de construção e exibição de imagens políticas e de uma nova formação de classe social. A
existência de algum vínculo entre essa eclosão pós-moderna, a construção de imagem de Ronald Reagan, a tentativa de desconstruir instituições tradicionais do
poder da classe trabalhadora (os sindicatos e os partidos de esquerda) e o mascaramento dos efeitos sociais da política econômica de privilégios deveria ser bastante evidente. Uma retórica que justifica a falta de moradias, o desemprego, o empobrecimento crescente, a perda de poder etc. apelando a valores supostamente tradicionais de autoconfiança e capacidade de empreender também vai saudar com a
mesma liberdade a passagem da ética para a estética como sistema de valores
dominante.
As cenas de rua de empobrecimento, perda de poder, grafitagem e decadência
se tornam trigo para o moinho dos produtores culturais, não, como Deutsche e
· Ryan (1984) assinalam, no estilo reformista reivindicatório do final do século XIX,
mas como uma cortina fantástica e turbilhonante (como em Blade Runner) que não
admite nenhum comentário social. "Uma vez que os pobres ficam estetizados, a
própria pobreza sai do nosso campo de visão social", exceto enquanto descrição
passiva da alteridade, da alienação e da contingência no âmbito da condição humana. Quando "a pobreza e a falta de moradia são servidas para o prazer estético",
a ética é de fato dominada pela estética, convidando, por conseguinte, a amarga
colheita da política carismática e do extremismo ideológico.
Se houver uma metateoria com a qual possamos abarcar todas essas reviravoltas do pensamento e da produção cultural pós-modernos, por que não deveremos
recorrer a ela?
22
Modernismo fordista versus
pós-modernismo flexível, ou a
interpretação de tendências opostas no
capitalismo como um todo
A colagem, embora tenha tido os modernistas como pioneiros, é uma técnica
que o pós-modernismo tornou sua em larga medida. A justaposição de elementos
distintos e aparentemente incongruentes pode ser divertida e, às vezes, instrutiva .
Com esse espírito, tomei as oposições fornecidas por Ihab Hassan (tabela 1.1) e por
Halal, Lash e Urry e Swyngedouw (tabelas 2.6, 2.7 e 2.8) e reuni os seus termos
(acrescentando alguns meus para ajeitar as coisas) a fim de produzir uma colagem
que está na tabela 4.1.
Do lado esquerdo, estão alguns termos vinculados entre si que descrevem a
condição da "modernidade fordista", enquanto a coluna da direita representa "o
pós-modernismo flexível". A tabela sugere associações engraçadas. Mas também
indica como dois regimes de acumulação bem diferentes, e seus modos associados
de regulação (incluindo as materializações de hábitos, motivações e estilos de representação culturais), podem conviver, cada qual como um tipo distinto e relativamente coerente de formação social. Duas reservas a essa idéia vêm de imediato
à mente. Em primeiro lugar, as oposições, postas em destaque para propósitos
didáticos, nunca são tão claras, e a "estrutura de sentimento" de toda sociedade é
sempre um momento sintético em algum lugar entre os dois extremos. Em segundo, associações não são prova de causação histórica ou mesmo de relações necessárias ou integrais. Mesmo que as associações pareçam plausíveis - e isso ocorre
com muitas delas-, é preciso encontrar alguma outra maneira para estabelecer
que elas formam uma configuração significativa.
As oposições no interior de cada perfil são dignas de nota. A modernidade
fordista está longe de ser homogênea. Há muito nela que se vincula com uma
fixidez e uma permanência relativas- capital fixo na produção em massa, mercados estáveis, padronizados e homogêneos, uma configuração fixa de influência
e poder político-econômicos, uma autoridade e metateorias facilmente identificáveis,
um sólido alicerce na materialidade e na racionalidade técnico-científica e outras
coisas dessa espécie. Mas tudo isso gira em torno de um projeto social e econômico
de Vir-a-Ser, de desenvolvimento e transformação das relações sociais, de arte
áurica e de originalidade, de renovação e vanguardismo. A flexibilidade pós-modernista, por seu turno, é dominada pela ficção, pela fantasia, pelo imaterial (particularmente do dinheiro), pelo capital fictício, pelas imagens, pela efemeridade,
pelo acaso e pela flexibilidade em técnicas de produção, mercados de trabalho e
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304
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Tabela 4.1 Modernidade fordista versus pós-modernidade flexível, ou a interpretação de
tendências opostas na sociedade capitalista como um todo
Modernidade fordista
Pós-modernidade flexível
economias de escala/código mestre/hierarquia
homogeneidade/divisão detalhada do
trabalho
economias de escopo/idioleto/anarquia
diversidade/divisão social do trabalho
paranóia/alienação/sintoma
habitação pública/capital monopolista
esquizofrenia/desce ntração/desejo
desabrigados/empreendimentismo
propósito/projeto/domínio/determinação
capital produtivo/universalismo
jogo/acaso/exaustão/indeterminação
capital fictício/localismo
poder do Estado/sindicatos
Estado do bem-estar social/metrópole
poder financeiro/individualismo
neoconservadorismo/contra-urbanização
ética/mercadoria-dinheiro
Deus Pai/materialidade
estética/dinheiro contábil
O Espírito Santo/imaterialidade
produção/originalidade/autoridade
operário/vanguardismo
política de grupo de interesse/semântica
reprodução/pastiche/ecletismo
administrador/comercialismo
política carismática/retórica
centraI ização/tota Iização
síntese/negociação coletiva
desce ntra Iização/descon strução
antítese/contratos locais
administração operacional/código mestre
fá lico/tarefa única/origem
administração estratégica/idioleto
andrógino/tarefas múltiplas/vestígio
metateoria/narrativa/profundeza
produção em massa/política de classe
racionalidade técnico-científica
jogos de linguagem/imagem/superfície
produção em pequenos lotes/social
movimentos/alteridade pluralista
utopia/arte redentora/concentração
trabal ho especializado/consumo coletivo
heterotopias/espetáculo/dispersão
trabalhador flexível/capital simbólico
função/representação/significado
indústria/ética protestante do trabalho
reprodução mecânica
ficção/auto-referência/significante
serviços/contrato temporário
reprodução eletrôn ica
vir-a-ser/epistemologia/regulação
renovação urbana/espaço relativo
ser/ontologia/desregulação
revitalização urbana/lugar
intervencionismo estatal/industrialização
internacionalismo/permanência/tempo
laíssez-faíre/desindustrialização
geopolítica/efemeridade/espaço
MODERNISMO FORDISTA/ PÓS-MODERNISMO FLEXÍVEL
305
nichos de consumo; no entanto, ela também personifica fortes compromissos com
o Ser e com o lugar, uma inclinação para a política carismática, preocupações com
a ontologia e instituições estáveis favorecidas pelo neoconservadorismo. O julgamento de Habermas segundo o qual o valor conferido ao transitório e ao efêmero
"revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido" está em
evidência em toda parte. Parece que a flexibilidade pós-moderna apenas reverte a
ordem dominante existente na modernidade fordista. Esta última alcançou uma
relativa estabilidade em seu aparelho político-econômico para produzir profundas
mudanças materiais e sociais, enquanto aquela foi prejudicada por uma instabilidade disruptiva do seu aparelho político-econômico, mas buscou compensação em
lugares estáveis do ser e na geopolítica carismática.
Mas e se a tabela como um todo constituísse em si uma descrição estrutural da
totalidade das relações político-econômicas e cultural-ideológicas do capitalismo?
Concebê-la assim requer que vejamos as oposições intra e entre perfis como relações interiores no interior de um todo estruturado. Essa idéia, inaceitável pelos
próprios padrões do pós-modernismo (porque ressuscita o fantasma de pensadores marxistas como Lukács e recorre a uma teoria das relações interiores da espécie
proposta por Bertell Ollman), faz muito sentido. Ela ajuda a explicar como O Capital de Marx é tão rico em percepções daquilo que constitui o foco do pensamento
atual. Ela também auxilia a compreensão das razões por que as forças culturais que
atuavam, por exemplo, na Vienafin-de-siecle constituíram uma mistura tão complexa que é quase impossível dizer onde começa ou termina o impulso modernista.
Com a sua ajuda, podemos dissolver as categorias do modernismo e do pós-modernismo num complexo de oposições que exprime as contradições culturais do
capitalismo. Assim, vemos as categorias do modernismo e do pós-modernismo
como reificações estáticas impostas à interpenetração fluida de oposições dinâmicas. No âmbito dessa matriz de relações interiores, jamais há uma configuração
fixa, havendo antes uma oscilação permanente entre centralização e descentralização, entre autoridade e desconstrução, entre hierarquia e anarquia, entre permanência e flexibilidade, entre a divisão detalhada do trabalho e a divisão social do
trabalho (para relacionar algumas das muitas oposições que podem ser identificadas).
Nesse caso, a rígida distinção categórica entre modernismo e pós-modernismo
de..saparece, sendo substituída por uma análise do fluxo de relações interiores no
capitalismo como um todo.
Mas por que o fluxo? Isso nos faz voltar ao problema da causação e da trajetória histórica.
23
A lógica transformativa
e especulativa do capital
O capital é um processo, e não uma coisa. É um processo de reprodução da
vida social por meio da produção de mercadorias em que todas as pessoas do
mundo capitalista avançado estão profundamente implicadas. Suas regras intemalizadas de operação são concebidas de maneira a garantir que ele seja um modo
dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incansável e incessantemente a sociedade em que está inserido. O processo mascara e fetichiza, alcança crescimento mediante a destruição criativa, cria novos desejos e necessidades, explora a capacidade do trabalho e do desejo humanos, transforma espaços e
acelera o ritmo da vida. Ele gera problemas de superacumulação para os quais há
apenas um número limitado de soluções possíveis.
Por intermédio desses mecanismos, o capitalismo cria sua própria geografia
histórica distintiva. Sua trajetória de desenvolvimento não é previsível em nenhum
sentido comum exatamente porque sempre se baseou na especulação - em novos
produtos, novas tecnologias, novos espaços e localizações, novos processos de trabalho (trabalho familiar, sistemas fabris, círculos de qualidade, participação do
trabalhador) etc. Há muitas maneiras de obter lucros. As racionalizações post hoc
da atividade especulativa dependem de uma resposta positiva à pergunta: "Foi
lucrativo?" Diferentes empreendedores, espaços inteiros da economia mundial,
geram diferentes soluções para essa questão, e as novas respostas derrubam as
antigas à medida que uma onda especulativa vai engolfando a outra.
Agem no capitalismo leis de processos capazes de gerar uma gama aparentemente infinita de resultados a partir da mais diminuta variação das condições
iniciais ou da atividade e imaginação humanas. Da mesma maneira como as leis
da dinâmica dos fluidos são invariantes em todo rio do mundo, assim também as
leis da circulação do capital não variam de supermercado para supermercado, de
um mercado de trabalho para outro, de um sistema de produção de mercadorias
para outro, de país para país, nem de uma casa para outra. No entanto, Nova
Iorque e Londres são tão diferentes entre si quanto o Hudson do Tâmisa.
Costuma-se considerar a vida cultural um plano exterior a essa lógica capitalista. Diz-se que as pessoas fazem sua própria história nesses domínios de maneiras bem específicas e bastante imprevisíveis, a depender de seus valores e aspirações, de suas tradições e normas. A determinação econômica é irrelevante, mesmo
na famosa última instância. Considero esse argumento errôneo em dois sentidos.
Em primeiro lugar, não vejo diferença, em princípio, entre a ampla gama de atividades especulativas e igualmente imprevisíveis realizadas por empreendedores
(novos produtos, novos estratagemas de marketing, novas tecnologias, novas loca-
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308
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
lizações etc.) e o desenvolvimento igualmente especulativo de valores e instituições
culturais, políticos, legais e ideológicos sob o capitalismo. Em segundo lugar, embora
seja de fato possível que o desenvolvimento especulativo nesses últimos domínios
não sejam reforçados nem descartados de acordo com as racionalizações post hoc da
obtenção de lucros, a lucratividade (seja no sentido mais estrito ou no sentido mais
amplo de gerar e obter novas riquezas) há muito está implicada nessas atividades
e, com a passagem do tempo, a força dessa ligação antes aumentou do que diminuiu. Precisamente porque o capitalismo é expansionista e imperialista, a vida
cultural, num número cada vez maior de áreas, vai ficando ao alcance do nexo do
dinheiro e da lógica da circulação do capital. Na verdade, isso provocou reações
que vão da raiva e da resistência à tolerância e à apreciação (e também nesse
aspecto nada há de previsível). Mas o alargamento e aprofundamento das relações
sociais capitalistas com o tempo são sem dúvida um dos fatos mais singulares e
indiscutíveis da geografia histórica recente.
As relações de oposição descritas na tabela 4.1 sempre estão sujeitas à incansável atividade transformativa da acumulação do capital e da mudança especulativa. Não é possível prever configurações exatas, muito embora se possa fazê-lo
com o comportamento semelhante a uma lei da força transformativa. Em termos
mais concretos, o grau de fordismo e modernismo, ou de flexibilidade e pós-modernismo, varia de época para época e de lugar para lugar, a depender de qual
configuração é lucrativa e qual não o é. Podemos discernir, por trás do fermento
da modernidade e da pós-modernidade, alguns princípios gerativos simples que
moldam uma imensa diversidade de desfechos. Esses princípios, no entanto, fracassam flagrantemente (como no caso das renovações do centro das cidades
serialmente produzidas) em termos da criação da novidade imprevisível, apesar de
a capacidade aparentemente infinita de engendrar produtos alimentar todas as
ilusões de liberdade e de caminhos abertos para a realização pessoal. Para onde
quer que vá o capitalismo, seu aparato ilusório, seus fetichismos e o seu sistema de
espelhos não demoram a acompanhá-lo.
É esse o ponto em que podemos voltar a invocar a tese de Bourdieu (acima, p.
202) segundo a qual cada um de nós possui poderes de improvisação regulada,
moldada pela experiência, que nos permite ter "uma capacidade interminável de
engendrar produtos- pensamentos, percepções, expressões, ações- cujos limites
são fixados pelas condições historicamente situadas" de sua produção; a "liberdade condicional e condicionada" que isso assegura "está tão distante da criação da
novidade imprevisível quanto o está da simples reprodução mecânica dos condicionamentos iniciais". É, sugere Bourdieu, por meio de mecanismos desse tipo que
toda ordem estabelecida tende a produzir "a naturalização de sua própria arbitrariedade", expressa no "sentido de limites" e no "sentido de realidade", que formam, por sua vez, a base de uma "adesão inerradicável à ordem estabelecida". A
reprodução da ordem simbólica e social mediante a exploração da diferença e da
"alteridade" é demasiado evidente no clima do pós-modernismo.
Assim sendo, de onde pode vir a mudança real? Para começar, as experiências
contraditórias adquiridas sob o capitalismo - muitas das quais estão na tabela 4.1
- tornam a novidade um pouco menos previsível por inteiro do que no caso do
encontro de Bourdieu com os Kabyles. A reprodução mecânica de sistemas de
A LÓGICA DO CAPITAL
309
valores, crenças, preferências culturais e coisas semelhantes é impossível, não apesar, mas justamente por causa do fundamento especulativo da lógica interna do
capitalismo. A exploração de contradições sempre está no cerne do pensamento
original. Mas também é evidente que a expressão dessas contradições na forma de
crises objetivas e materializadas desempenha um papel-chave no rompimento do
forte vínculo "entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas", assentando
assim os alicerces para uma crítica que "ponha em discussão o não-discutido e em
formulação o não-formulado". Embora crises na experiência do espaço e do tempo,
no sistema financeiro ou na economia mais ampla possam constituir uma condição
necessária das mudanças políticas e culturais, as condições suficientes residem
num plano mais profundo, inseridas na dialética internalizada do pensamento e da
produção de conhecimento. Pois sempre é verdade que, como disse Marx (1967,
178), "erigimos nossa estrutura na imaginação antes de a erigirmos na realidade".
24
A obra de arte na era da reprodução
eletrônica e dos bancos de imagem
"Em princípio, uma obra de arte sempre foi reprodutível", escreveu Walter
Benjamin, mas a reprodução mecânica "representa uma coisa nova". Ela tornou
concreta a previsão do poeta Paul Valéry: "Do mesmo modo como a água, o gás
e a eletricidade chegam até as nossas casas, vindos de longe, para satisfazer as
nossas necessidades de seguir o princípio do mínimo esforço, assim também seremos supridos de imagens visuais ou atividades que vão aparecer e desaparecer a
um simples movimento da mão." As conseqüências que Benjamim anteviu foram
acentuadas múltiplas vezes pelos avanços da reprodução eletrônica e da capacidade de armazenar imagens, retiradas de seus contextos reais no espaço e no tempo,
para uso e recuperação instantâneos numa base de massa.
O papel aumentado das massas na vida cultural teve conseqüências tanto
positivas como negativas. Benjamim temia seu desejo de juntar as coisas espacial
e humanamente porque ele levava inevitavelmente à transitoriedade e à
reprodutibilidade como marcos de um sistema de produção cultural que até então
explorara a singularidade e a permanência. A facilidade com que o fascismo podia
empregar isso foi um alerta de que a democratização da cultura da classe trabalhadora não fora necessariamente uma bênção absoluta.
O que de fato está em jogo aqui, contudo, é uma análise da produção cultural
e da formação de juízos estéticos mediante um sistema organizado de produção e
de consumo mediado por divisões do trabalho, exercícios promocionais e arranjos
de marketing sofisticados. E, em nossos dias, o sistema inteiro é dominado pela
circulação do capital (com freqüência multinacional).
Na qualidade de sis,tema de produção, de marketing e de consumo, ele exibe
muitas peculiaridades na forma assumida pelo seu processo de trabalho e na maneira
como estão conectados a produção e o consumo. O que não se pode dizer é que
a circulação do capital esteja ausente dele e que os praticantes e agentes que nele
atuam desconheçam as leis e regras de acumulação do capital. E ele por certo não
é organizado e controlado de maneira democrática, apesar do alto grau de dispersão dos consumidores e da influência destes naquilo que é produzido e nos valores
estéticos que devem ser transmitidos.
Não cabe empreender aqui uma discussão ampla nos vários modos de organização desse setor da atividade econômica, nem das formas pelas quais tendências estéticas e culturais são incorporadas ao tecido da vida diária. Esses tópicos foram investigados exaustivamente por outros autores (e Raymond Williams forneceu muitas
idéias de peso). Mas duas questões importantes se destacam pela sua relevância direta
para a compreensão da condição da pós-modernidade como um todo.
312
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Em primeiro lugar, as relações de classe vigentes nesse sistema de produção e
de consumo são de um tipo peculiar. Sobressai aqui antes o puro poder do dinheiro como meio de domínio do que o controle direto dos meios de produção e do
trabalho assalariado no sentido clássico. Um efeito colateral tem sido reavivar o
interesse teórico pela natureza do poder do dinheiro (em oposição ao de classe) e
pelas assimetrias passíveis de daí advirem (cf. o extraordinário tratado de Simmel
sobre The philosophy of money). As estrelas da mídia, por exemplo, podem receber
altos salários, mas ser espantosamente exploradas pelos seus agentes, gravadoras,
magnatas da mídia etc. Tal sistema de relações monetárias assimétricas vincula-se
à necessidade de mobilizar a criatividade cultural e a inventividade estética não
somente na produção de um artefato cultural, mas também em sua promoção,
embalagem e transformação em algum tipo de espetáculo de sucesso. Mas o poder
monetário assimétrico não promove necessariamente a consciência de classe. Ele
leva a exigências de liberdade individual e de livre iniciativa. As condições que
prevalecem no âmbito do que Daniel Bell denomina "a massa cultural" de produtores e consumidores de artefatos culturais moldam atitudes diferentes das que
surgem de condições de trabalho assalariado. Essa massa cultural acrescenta mais
uma camada à formação amorfa conhecida como "classe média".
A identidade política desse estrato social sempre foi notoriamente frágil, variando dos funcionários que formaram a medula do nazismo alemão (ver Speier,
1986) aos que tiveram um papel muito importante na reformulação da vida política
e cultural da Paris do final do século XIX. Embora seja perigoso formular regras
gerais a esse respeito, esses estratos tendem a carecer do "apoio tranqüilizador de
uma tradição moral que possam chamar de sua" (Speier). Eles ou se tornam "parasitas dos valores" - extraindo sua consciência da associação com uma ou outra
classe dominante da sociedade- ou cultivam todo tipo de marcas fictícias de sua
própria identidade. É nesses estratos que a busca do capital simbólico é mais
marcada. E é para eles que movimentos de moda, de localismo, de nacionalismo,
de língua e mesmo de religião e de mito podem ter a maior importância. Proponho
aqui o exame cuidadoso do tipo de circularidade presente na massa cultural que
une produtores em ávida busca do puro poder do dinheiro, de um lado, e consumidores relativamente afluentes, eles mesmos parte da massa cultural, que buscam
um certo tipo de produto cultural como marca clara de sua própria identidade
social, de outro. Assim como as novas camadas sociais forneceram a audiência de
massa a que os impressionistas franceses - eles mesmos parte dessa formação
social - podiam interessar, assim também as novas camadas sociais que passaram
a existir com a formação da massa cultural e com a emergência de novas ocupações
médias nas finanças, no setor imobiliário, no direito, na educação, na ciência e nos
serviços forneceram uma poderosa fonte de demanda de novas formas culturais
baseadas na moda, na nostalgia, no pastiche e no kitsch - em suma, tudo o que
podemos associar com o pós-modernismo.
A polít,ica da massa cultural é, contudo, importante, visto estar ela no negócio
da definição da ordem simbólica por meio da produção de imagens para todos.
Quanto mais essa massa se volta para si mesma ou se alia a esta ou àquela classe
dominante da sociedade, tanto mais tende a mudar o sentido vigente da ordem
moral e simbólica. Creio ser justo dizer que a massa cultural muito se apoiou no
A OBRA DE ARTE NA ERA PÓS-MODERNA
313
movimento operário para obter sua identidade cultural no decorrer da década de
60, mas que o ataque a este último e o seu declínio a partir do início dos anos 70
deixaram a massa cultural perdida, e esta moldou sua própria identidade em tomo
de suas próprias preocupações com o poder do dinheiro, com o individualismo,
com o empreendimento etc. (a política mutável de um jornal como Libération na
França, que começou como um órgão iconoclasta, mas de esquerda nos anos 60 e
que hoje representa um empreendimentismo cultural igualmente iconoplasta, é um
exemplo perfeito). A criação de imagem da política pelas agências de relações
públicas correspondeu de muitas maneiras à política da criação de imagem.
Em segundo lugar, o desenvolvimento de uma produção e de um marketing
culturais numa escala global também foi um agente primordial de compressão do
tempo-espaço, em parte porque projetou um musée imaginaire, um clube de jazz ou
uma sala de concerto na sala de estar de todos, mas também por várias outras
razões que Benjamin considerou:
As nossas tavernas e as nossas ruas metropolitanas, os nossos escritórios e
salas mobiliadas, as nossas estações ferroviárias e as nossas fábricas pareciam
ter nos aprisionado irremediavelmente. Surgiu então o filme e explodiu esse
mundo-prisão com a dinamite de um milésimo de segundo, de modo que
agora, em meio às suas ruínas e detritos espalhados, seguimos calma e audaciosamente. Com o close-up, o espaço se expande; com a câmara lenta, o movimento é estendido ... Evidentemente, abre-se para a câmera uma natureza distinta da que se abre para o olho nu - no mínimo porque um espaço inconscientemente penetrado é substituído por um espaço conscientemente explorado (Benjamin, 1969, 236).
25
Respostas à compressão do tempo-espaço
Tem havido várias respostas à ação da compressão do tempo-espaço. A primeira linha de defesa é a fuga para um tipo de silêncio exaurido, blasé ou
encouraçado, e inclinar-se diante do sentido avassalador de quão vasto, intratável
e fora do controle individual ou mesmo coletivo tudo é. A informação excessiva,
afirma-se, é uma das melhores induções ao esquecimento. As qualidades da ficção
pós-moderna - "as personagens mais planas possíveis na paisagem mais plana
possível descritas com o tom mais plano possível" (acima, p. 60)- sugerem exatamente essa reação. O mundo pessoal que Wenders descreve em Paris, Texas faz
o mesmo. Asas do Desejo, embora mais otimista, ainda responde na afirmativa a
outra pergunta que Newman faz: "Terá a velocidade da mudança recente sido tão
grande que não saibamos como traçar suas linhas de força, que nenhuma sensibilidade, muito menos a narrativa, tenha sido capaz de articulá-las?"
Esse aspecto do pós-modernismo foi reforçado pelas atividades dos
desconstrucionistas. Em sua suspeita de toda narrativa que aspire a ter coerência,
e em seu açodamento de desconstruir qualquer coisa que ao menos pareça uma
metateoria, eles solaparam todas as proposições básicas. Na medida em que todos
os relatos da narrativa oferecidos continham pressuposições e simplificações ocultas, havia necessidade de um escrutínio crítico, mesmo que este terminasse por
fortalecê-la. Mas, ao desafiar todos os padrões consensuais de verdade e de justiça,
de ética e de significado, e ao procurar dissolver todas as narrativas e metateorias
num universo difuso de jogos de linguagem, o desconstrucionismo terminou, apesar das melhores intenções dos seus praticantes mais radicais, por reduzir o conhecimento e o significado a um monte desordenado de significantes. Assim fazendo,
produziu uma condição de niilismo que preparou o terreno para o ressurgimento
de uma política carismática e de proposições ainda mais simplistas do que as que
tinham sido desconstruídas.
A segunda reação equivale a uma negação voluntariosa da complexidade do
mundo, e a uma inclinação a representar essa complexidade em termos de proposições retóricas com alto grau de simplificação. São abundantes os slogans, da
direita até a esquerda do espectro político, sendo apresentadas imagens sem profundidade para captar sentidos complexos. Supõe-se que as viagens, mesmo imaginárias e vicárias, ampliam a mente, mas, com a mesma freqüência, elas terminam
por confirmar preconceitos.
A terceira resposta tem sido encontrar um nicho intermediário para a vida
intelectual e política que recusa a grande narrativa, mas nem por isso deixa de
cultivar a possibilidade de uma ação limitada. Trata-se do ângulo progressista do
pós-modernismo, que acentua a comunidade e a localidade, as resistências locais
e regionais, os movimentos sociais, o respeito pela alteridade etc. (acima, p. 109).
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316
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
Trata-se de uma tentativa de extrair ao menos um mundo apreensível da infinidade de mundos possíveis que nos são mostrados diariamente na tela da televisão.
Em sua melhor versão, ela produz vigorosas imagens de possíveis outros mundos,
começando até a moldar o mundo real. Mas é difícil parar o deslizamento para o
paroquialismo, a miopia e a auto-referencialidade diante da força universalizadora
da circulação do capital. Em sua pior versão, ela nos faz voltar à política estreita
e sectária em que o respeito pelos outros é queimado na fogueira da competição
entre os fragmentos. E não se deve esquecer ter sido esse o caminho que permitiu
que Heidegger chegasse à sua acomodação com o nazismo e que ainda hoje dá
forma à retórica do fascismo (como o testemunha a retórica de um líder fascista
contemporâneo como Le Pen).
A quarta resposta tem sido tentar montar no tigre da compressão do tempo-espaço mediante a construção de uma linguagem e de imagens capazes de espelhá-la e, quem sabe, dominá-la. Eu ponho os escritos frenéticos de Baudríllard e Virílío
nessa categoria, porque eles parecem diabolicamente inclinados a fundir-se com a
compressão do tempo-espaço e a reproduzi-la em sua própria retórica extravagan- .
te. Já vimos esse tipo de resposta antes, mais especificamente nas extraordinárias
evocações feitas por Nietzsche em A Vontade de Poder. Em comparação com isso, no
entanto, parece que Baudrillard reduz o sentido trágico de Nietzsche a farsa(o pós-modernismo sempre tem problemas para se levar a sério). Jameson, apesar do seu
brilho, também perde o domínio da realidade que busca representar e da linguagem que poderia ser usada adequadamente para representá-la em seus escritos
mais multiformes.
Com efeito, a hiper-retórica dessa ala da reação pós-moderna pode decair na mais
alarmante irresponsabilidade. Lendo o relato que Jameson faz da esquizofrenia, por
exemplo, é difícil não imputar qualidades eufóricas ao impulso alucinógeno da experiência intoxicante por trás da aparência da ansiedade e da neurose. Mas, como Taylor
(1987, 67) destaca, as citações seletivas de Jameson da autobiografia de uma garota
esquizofrênica eliminam o terror vinculado aos estados de irrealidade da garota, fazendo tudo parecer uma bem controlada viagem de LSD, em vez de uma sucessão de
estados de culpa, letargia e impotência associados com um deslocamento angustiado
e, por vezes, tempestuoso. Deleuze e Guattari, aplaudidos por Foucault, também recomendam que aceitemos o fato de que "em toda parte, o capitalismo põe em movimento esquizofluxos que animam 'nossas' artes e 'nossas' ciências, da mesma maneira
como coagulam na produção dos 'nossos' doentes, os esquizofrênicos". Os revolucionários, aconselham eles, "devem levar a efeito seus empreendimentos seguindo as
linhas do esquizoprocesso", porque o esquizofrênico "foi aprisionado num fluxo de
desejo que ameaça a ordem social". Se assim for realmente, só me resta considerar o
seguinte relato da Associated Press, de 27 de dezembro de 1987, como um possível
epitáfio da "nossa" civilização:
O Senhor Dobben fora diagnosticado como esquizofrênico ... No dia de Ação
de Graças, segundo a polícia, o senhor Dobben levou seus dois filhos, Bartley
Joel, de 2 anos, e Peter David, de 15 meses, à fundição da Cannon-Muskegon
Corporation, onde trabalhava, e os colocou num recipiente usado para carregar
metal derretido. Então, aqueceu o recipiente a mais de 700 graus, enquanto sua
RESPOSTAS À COMPRESSÃO DO TEMPO-ESPAÇO
317
esposa, sem nada saber, esperava no carro. Agora, Bartley James Dobben, 26,
é mantido sob vigilância para não se suicidar.
Caso isso seja considerado um exemplo extremo, cito também Kenny Scharf
(uma pintora "apocalíptica" do East Village), cuja seqüência de pinturas de Estelle
escapando da compressão do tempo-espaço com uma passagem de ida para o
espaço exterior faz sua personagem, no quadro finat "apenas se divertir sozinha,
flutuando e vendo o mundo explodir" (Taylor, 1987, 123). E, se se julgar isso irreal,
cito então Alan Sugar, presidente da Amstrad Corporation: "Se houvesse um
mercado de armas nucleares portáteis produzidas em massa, nós também as venderíamos".
26
A crise do materialismo histórico
O estranho é quão radicais algumas dessas respostas deram a impressão de ser
e quão difícil foi para a esquerda, em oposição à direita, lidar com elas. Depois de
refletirmos, a estranheza desaparece com bastante facilidade. Um modo de pensamento anti-autoritário e iconoclasta, que insiste na autenticidade de outras vozes,
que celebra a diferença, a descentralização e a democratização do gosto, bem como
o poder da imaginação sobre a materialidade, tem de ser radical mesmo quando
usado indiscriminadamente. Nas mãos dos seus praticantes mais responsáveis,
toda a bagagem de idéias associadas com o pós-modernismo podia ser empregada
para fins radicais, sendo vista, por conseguinte, como parte de um impulso fundamental para uma política mais liberatória, exatamente da mesma maneira como a
passagem para processos de trabalho mais flexíveis podia ser considerada uma
abertura para uma nova era de relações de trabalho e empreendimentos cooperativos democráticos e altamente descentralizados.
Da perspectiva da direita tradicionalista, os excessos dos anos 60 e a violência
de 1968 pareciam subversivos ao extremo. Talvez por isso a descrição de Daniel
Bell em The cultural contradictions of capitalism, embora partindo inteiramente de um
ponto de vista direitista que visava à restauração do respeito pela autoridade,
tenha sido mais precisa que muitas tentativas esquerdistas de perceber o que estava acontecendo. Outros autores, como Toffler e até McLuhan, viram a significação da compressão do tempo-espaço e das confusões por ela geradas de modo que
a esquerda não podia ver, justamente por estar tão profundamente envolvida em
criar a confusão. Só há pouco a esquerda chegou a um acordo com algumas dessas
questões, e creio ser relevante o fato de o livro de Berman, publicado em 1982, só
recuperar alguns desses temas tratando Marx como o primeiro grande escritor
modernista, e não como um marxista capaz de ver o que era o modernismo.
A nova esquerda preocupava-se com uma luta para libertar-se das algemas
duais da política da velha esquerda, particularmente em sua representação por
partidos comunistas tradicionais e pelo marxismo "ortodoxo", e dos poderes repressivos do capital corporativo e das instituições burocratizadas (o Estado, as
universidades, os sindicatos etc.). Ela via a si mesma, desde o começo, como uma
força cultural e político-econômica, tendo ajudado a produzir a virada para a estética que o pós-modernismo representava.
Essa linha de ação, no entanto, teve conseqüências não pretendidas. A entrada
na política cultural era mais compatível com o anarquismo e com o liberalismo do
que com o marxismo tradicional, levando a nova esquerda a se opor a atitudes e
instituições tradicionais da classe trabalhadora. Ela abraçou novos movimentos
sociais que eram eles mesmos agentes de fragmentação da política da velha esquerda. Na medida em que esta última era, na melhor das hipóteses, passiva, e, na pior,
320
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
reacionária (no tratamento das questões de raça e de gênero, da diferença, e de
problemas dos povos colonizados e das minorias reprimidas e das questões ecológicas e estéticas), algum tipo de mudança política da espécie proposta pela nova
esquerda por certo se justificava. Mas, ao fazer esse movimento, a nova esquerda
tendia a abandonar a sua fé tanto no proletariado como instrumento de mudança
progTessista como no materialismo histórico enquanto modo de análise. André Gorz
deu adeus à classe operária e Aronowitz anunciou a crise do materialismo histórico.
Assim, a nova esquerda perdeu sua capacidade de ter uma perspectiva crítica
sobre si mesma e sobre os processos sociais de transformação que estiveram na
base da emergência de modos pós-modernos de pensamento. Insistindo que eram
a cultura e a política que importavam, e que não era razoável nem adequado
invocar a determinação econômica mesmo em última instância (para não falar de
invocar teorias da circulação e da acumulação do capital ou de relações de classe
necessárias na produção), ela foi incapaz de conter sua própria queda em posições
ideológicas que eram fracas no confronto com a força recém-encontrada dos neoconservadores, e que a forçavam a competir no mesmo terreno da produção de
imagens, da estética e do poder ideológico quando os meios de comunicação esta- ·
vam nas mãos dos seus oponentes. Por exemplo, num simpósito de 1983, Marxismo
e Interpretação da Cultura, a maioria dos autores deu muito mais atenção a Foucault
e Derrida do que a Marx (Nelson e Grossberg, 1988). Ironicamente, foi uma figura
da velha esquerda (perceptivelmente ausente daquele simpósio), Raymond Williams,
um estudioso de longa data das formas e valores culturais da classe operária, que
cruzou as trilhas da nova esquerda e tentou restabelecer as bases materiais daquilo
que as práticas culturais poderiam ser. Williams não somente rejeitou o modernismo como categoria válida, mas, por extensão, viu o pós-modernismo como uma
máscara das transformações mais profundas da cultura do capitalismo que ele
procurava identificar.
A interrogação das formulações marxianas ortodoxas" (por escritores da tradição de Fanon ou Simone de Beauvoir, bem como pelos desconstrucionistas) foi
tanto necessária como positiva em suas implicações. Com efeito, importantes transições já vinham ocorrendo na economia política, na natureza das funções do Estado, nas práticas culturais e na dimensão do tempo-espaço em que as relações
sociais tinham de ser avaliadas (a relação entre, digamos, o apartheid na África do
Sul e os movimentos operários na Europa ou América do Norte tornou-se ainda
mais significativa como questão política do que fora no ponto alto do imperialismo
direto). Foi necessária uma concepção propriamente dinâmica, em vez de estática,
da teoria e do materialismo histórico para apreender a significação dessas mudanças. Dentre as áreas de maior desenvolvimento, eu relacionaria quatro:
1 O tratamento da diferença e da alteridade" não como uma coisa a ser
acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças produtivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda
tentativa de apreensão da dialética da mudança social. A importância da recuperação de aspectos da organização social como raça, gênero, religião, no âmbito do
quadro geral da investigação materialista histórica (com a sua ênfase no poder do
dinheiro e na circulação do capital) e da política de classe (com sua ênfase na
unidade da luta emancipatória) não pode ser superestimada.
11
11
A CRISE DO MATERIALISMO HISTÓRICO
321
2 Um reconhecimento de que a produção de imagens e de discursos é uma
faceta importante de atividade que tem de ser analisada como parte integrante da
reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção.
3 Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são relevantes, e de que há geografias reais de ação social, territórios e espaços de poder
reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras na geopolítica
do capitalismo, ao mesmo tempo em que são sede de inúmeras diferenças e
alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas como no âmbito da
lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente
começa a levar a sério a sua geografia.
4 O materialismo histórico-geográfico é um modo de pesquisa aberto e dialético, em vez de um corpo fixo e fechado de compreensões. A metateoria não é
uma afirmação de verdade total, e sim uma tentativa de chegar a um acordo com
as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo, tanto em geral
como em sua fase presente.
27
Rachaduras nos espelhos,
fusões nas extremidades
"Sentimos que o pós-modernismo acabou", disse um grande desenvolvimentista
norte-americano ao arquiteto Moshe Safdie (New Iorque Times, 29 de maio de 1988).
"Para projetos que vão ficar prontos em cinco anos, estamos considerando agora
novas opções arquitetônicas." Ele disse isso, narrou Safdie, "com a naturalidade de
um fabricante de roupas que diz que não quer empatar a linha de produção com
capotes azuis porque o vermelho está na moda". Talvez por essa mesma razão,
Philip Johnson colocou seu peso considerável em favor do novo movimento do
"desconstrutivismo", com todo o seu apelo intelectual à teoria. Se é esse o rumo
que os desenvolvimentistas estão seguindo, podem os filósofos e teóricos literários
estar bem distantes deles?
Em 19 de outubro de 1987, alguém olhou atrás do espelho da política econômica norte-americana e, assustado com o que viu ali, levou os mercados de ações
mundiais a uma queda tão perigosa que cerca de um terço do valor nominal dos
ativos do mundo se perdeu nuns poucos dias (ver tabela 2.10). Esse evento trouxe
tristes lembranças de 1929, levou a maioria das casas financeiras a implantar economias draconianas e outras casas a apressadas fusões. Fortunas feitas da noite
para o dia pelos jovens, agressivos e implacáveis operadores no hiperespaço das
operações financeiras instantâneas se perderam com muito maior velocidade do
que foram adquiridas. A economia da cidade de Nova Iorque e de outros importantes centros financeiros foi ameaçada pela rápida queda do volume negociado.
Mas o resto do mundo permaneceu estranhamente imóvel. "Mundos diferentes",
foi a manchete do Wall Street ]oumal, ao comparar a visão "misteriosamente distante" de Main Street, EUA, com a de Wall Street. "O resultado da queda é uma
história de duas culturas- que processam informações diferentes, que operam em
horizontes temporais distintos, que sonham sonhos divergentes ... A comunidade
financeira - que vive minuto a minuto e negocia pelo computador - opera com
um conjunto de valores", enquanto "o resto da América"- que vive em termos
de década, que compra e conserva- tem um código diferente", que poderia ser
chamado de "a ética de quem tem a mão na massa".
Main Street pode sentir-se justificada em sua indiferença porque as sombrias
previsões feitas depois da crise ainda não se materializaram. Mas os espelhos do
endividamento acelerado (pessoal, corporativo, governamental) continuam a fazer
horas extras (ver figura 2.13). A influência do capital fictício é ainda mais hegemônica; ele cria seu próprio mundo fantástico de riqueza e ativos nominais enormes.
A inflação de ativos começa onde a inflação de mercadorias dos anos 70 parou até
que a massa de fundos lançada nos mercados para compensar a crise de outubro
324
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
de 1987 percorre a economia para produzir, dois anos mais tarde, o retorno da
inflação de salários e de mercadorias. As dívidas são reescalonadas e roladas com
rapidez ainda maior, com o efeito agregado de reescalonar as tendências de crise
do capitalismo para o século XXI. Mas as rachaduras nos espelhos refletores do
desempenho econômico são abundantes. Os bancos norte-americanos eliminam
bilhões de dólares de dívidas incobráveis, governos ficam inadimplentes, mercados internacionais de divisas se mantêm numa perpétua confusão.
Na frente filosófica, o desconstrucionismo foi posto na defensiva pelas controvérsias relativas às simpatias nazistas de Heidegger e Paul de Man. O fato de
Heidegger, a inspiração da desconstrução, ter tido um vínculo impenitente com o
nazismo, e de Paul de Man, um dos praticantes mais perfeitos do desconstrucionismo, ter tido um sombrio passado de escritos anti-semitas representou um grande embaraço. A acusação de que a desconstrução é neofascista não é interessante
em si mesma, mas o modo como se fez a defesa o é.
Hillis Miller (1988), por exemplo, apela para os "fatos" (um argumento positivista), para princípios de lealdade e racionalidade (argumento humanista liberal)
e para o contexto histórico (um argumento materialista histórico) em sua defesa ·
das "pavorosas" intervenções de de Man. A ironia, com efeito, é que essas formas
de argumentação foram destroçadas por Hillis Miller na obra de outros. Rorty, por
outro lado, leva sua posição à conclusão lógica, declarando que as opiniões políticas de um grande filósofo não têm de ser levadas mais a sério do que a própria
filosofia (que dificilmente o é) e que todo relacionamento entre as idéias e a realidade, entre as posições morais e os escritos filosóficos, é uma mera contingência.
A flagrante irresponsabilidade dessa posição é quase tão embaraçosa quanto as
transgressões que provocaram todo o debate.
As rachaduras num edifício intelectual que abre o caminho para fortalecer a
estética em detrimento da ética são importantes. O desconstrucionismo, como
qualquer sistema de pensamento e qualquer definição de uma ordem simbólica
avassaladora, internaliza certas contradições que, em certo momento, vão ficando
cada vez mais auto-evidentes. Quando, por exemplo, busca manter suas esperanças radicais vivas recorrendo a algum conceito prístino e imaculado de justiça,
Lyotard propõe uma afirmação de verdade que está acima da mescla de grupos de
interesse e de sua cacofonia de jogos de linguagem. Quando é forçado a empregar
valores liberais e positivistas para defender seu mentor Paul de Man do que considera a calúnia de falsas acusações, Hillis Miller também invoca universais.
E, nas extremidades dessas tendências, há em progresso toda espécie de fusões
dos fragmentos. Jesse Jackson emprega a política carismática numa campanha
política que, não obstante, começa a fundir entre si alguns movimentos sociais
norte-americanos que há muito estavam apáticos. A própria possibilidade de uma
genuína frente ampla define uma política unificada que fala inevitavelmente a
linguagem tácita de classe, por ser justamente isso que define a experiência comum
em meio às diferenças. Os líderes sindicais dos Estados Unidos por fim começam
a se preocupar com a possibilidade de que o seu apoio a ditadores estrangeiros em
nome do anticomunismo a partir de 1950 tenha promovido as práticas de trabalho
desleais e os baixos salários em muitos países que hoje competem por empregos e
investimentos. E quando operários da Ford britânica fazem greve e param a produ-
RACHADURAS NOS ESPELHOS, FUSÕES NAS EXTREMIDADES
325
ção de automóveis na Bélgica e na Alemanha Ocidental, vem-lhes de repente a percepção de que a dispersão espacial na divisão do trabalho não favorece somente os
capitalistas e de que estratégias internacionais são tanto viáveis como desejáveis. Sinais
de um novo intemacionalismo na esfera ecológica (imposto pelos fatos à burguesia,
promovido ativamente por muitos grupos ecológicos) e na luta contra o racismo, o
apartheid, a fome mundial, o desenvolvimento geográfico desigual estão por toda parte,
mesmo que muitos deles ainda estejam antes no domínio da pura criação de imagem
(como Band Aid) do que na organização política. A tensão geopolítica entre Leste e
Oeste também passa por uma notável melhoria (mais uma vez, não graças às classes
dirigentes do Oeste, mas mais por causa de uma evolução no Leste).
As rachaduras nos espelhos podem não ser muito grandes e as fusões nas
extremidades podem não ser muito marcantes, mas o fato de todas elas existirem
sugere que a condição da pós-modernidade passa por uma súbita evolução, talvez
alcançando um ponto de autodissolução em alguma coisa diferente. Mas o quê?
Não é possível dar resposta fazendo abstração das forças político-econômicas
que ora transformam o mundo do trabalho, das finanças, do desenvolvimento
geográfico desigual etc. As linhas de tensão são bem claras. A geopolítica e o
nacionalismo econômico, o localismo e a política de lugar estão combatendo um
novo internacionalismo da maneira mais contraditória. A fusão da Comunidade
Econômica Européia como bloco econômico vai ocorrer em 1992; manias de fusões
e absorções vão varrer o continente; contudo, o thatcherismo ainda se proclama um
projeto nacional distintivo que repousa nas peculiaridades dos britânicos (uma
proposição que tanto a política da esquerda como a da direita tendem a aceitar).
O controle internacional do capital financeiro se afigura inevitável, mas parece
impossível chegar a isso através da coletividade de interesses nacionais. Nas esferas intelectual e cultural podem ser identificadas oposições semelhantes.
Wenders parece propor um novo romantismo, a exploração de sentidos globais e das perspectivas do Vir-a-Ser por meio da liberação do desejo romântico da
estase do Ser. Há perigos em liberar um poder estético desconhecido e talvez
incontrolável numa situação instável. Brandon Taylor favorece um retorno ao realismo como forma de devolver as práticas culturais a um domínio em que possa
ser expresso algum tipo de conteúdo ético explícito. Até alguns dos desconstrucionistas parecem estar voltando à ética.
Além disso, há uma renovação do materialismo histórico e do projeto do
Iluminismo. Por meio do primeiro, podemos começar a compreender a pós-modernidade como condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível
lançar um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e
de um projeto de Vir-a-Ser em vez de Ser, buscando a unidade no interior da
diferença, embora um contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da compressão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da
alteridade sejam claramente entendidos. Uma renovação do materialismo histórico-geográfico pode na verdade promover a adesão a uma nova versão do projeto
do Iluminismo. Poggioli (1968, 73) captura a diferença da seguinte maneira:
Na consciência da época clássica, não é o presente que leva o passado ao ponto
culminante, mas o passado que culmina no presente, e o presente é, por sua
326
A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA
vez, entendido como um novo triunfo dos valores antigos e eternos, como um
retorno ao princípio do verdadeiro e do justo, como uma restauração ou renascimento desses princípios. Para os modernos, contudo, o presente só é válido
em virtude das potencialidades do futuro, como a matriz do futuro, na medida
em que ele é a forja da história em contínua metamorfose, vista como uma
revolução espiritual permanente.
Há alguns que desejam que retornemos ao classicismo e outros que buscam
que trilhemos o caminho dos modernos. Do ponto de vista destes últimos, toda
época tem julgada a realização da "plenitude do seu tempo, não pelo ser, mas pelo
vir-a-ser". Minha concordância não poderia ser maior.
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,
Indice de N ornes
~ Adorno,
T. 23, 330
Aglietta, M 327
...Agostinho, 47
Alberti, L. I 222
Alekan, H. 288
•Althusser, L. 111, 301
Aragon, L. 30,37,41,327
Anderson, J. 295
Anderson, P. 111
Armstrong, P. 131, 137, 327
Arnold, M. 36
Aronowitz, S. 52, 320, 333
Babbage, C. 121
Bach, J. 225
Bachelard, G. 196, 200, 280, 327
'" Bacon, F. 24
Banham, R. 32, 327
Barthes, R. 18, 58, 64, 65, 239, 329
Bartok, B. 36
~Baudelaire, C. 21, 22, 25, 26, 29, 35, 36,
38, 39, 44,83, 97,123,191,193,215,242,
246, 333
Baudrillard, J. 99, 260, 264, 271, 317, 319,
328
Beckmann, M. 252, 253
Bell, D. 29, 53, 62, 109, 131, 187, 312, 319
Bellamy, E. 35, 123
•Benjamin, W. 21, 31, 55, 111, 311, 313
Bentham, J. 36
Berg, A. 36
Bergson, H 187, 191
Berman, M. 21, 22, 26, 97, 187, 319, 327
Bernstein, R. 24, 25, 46, 327, 332
Biely, A. 21
Blitz, M. 192, 193, 327
Bluestone, B. 180, 265, 299, 327, 330
Bonaparte, L. 104, 105, 238, 331
Borges, J. L. 46, 58, 327
Boulée, E. L. 227, 228
• Bourdieu, P. 80, 81, 191, 196, 198, 199,
200, 201, 202, 225, 230, 308, 327
Bove, P. 52, 327
Boyer, C. 266
Boyer, R. 117, 130, 327
Bradbury, M. 25, 29, 32, 33, 34, 36, 242,
279,327
Brancusi, C. 36
Braque, G. 36, 245
Braverman, H. 129, 327
Brunelleschi, J. 222
-Bruno, Giordano 223,277, 279
Bruno, Giuliano 280, 281
Burawoy, M. 128, 327
Bi.irger, P. 22, 328
Burke, E. 25
Burnham, D. 34, 35, 46, 331
Bush, G. 295
Buttiglione, R. 47
Byron, Lorde 29
Calvino, I. 263, 288, 328
Caro, R. 72, 123, 328
Cassini, J. D. 227
Cassirer, E. 23, 328
Cézanne, P. 245
Chambers, I. 63, 271, 328
Charles, Príncipe 46, 70, 111
Clark, T. 34, 58, 328
Cohen-Solal, A. 192, 328
Colbert, J. B. 225, 233
Coleman, A. 111
Colquhoun, A. 274, 328
Comte, A. 36
Condorcet, M. J. 23, 25, 29, 36
Cook, D. 47, 330
Crimp, D. 58, 64, 110, 247, 328
Dahrendorf, R. 181, 328
D'Alembert, J. L. 36
336
ÍNDICE DE NOMES
Daniels, P. 149, 328
Davidson, J. 212, 328
de Beauvoir, S. 320
de Benedetti, C. 154
de Certeau, M. 34, 196, 197, 198, 220,
230, 286, 328
de Chirico, G. 36, 39, 242, 243
de la Blache, Vidal 84
de Man, P. 324
de Sade, Marquês 25
Delaunay, R. 244, 245
Deleuze, G. 57, 217, 278, 316, 328
Derrida, J. 53, 55, 57, 112, 193, 320
Descartes, R. 28, 55
Dewey, T. 55
Dicken, P. 11, 264,328
Dickens, C. 10, 101
Diderot, D. 36
Dilthey, W. 189
Dockes, P. 233, 328
Donne, J. 225
Dos Passos, J. 39
Dostoiévski, F. 21
Duchamp, M. 36
Durkheim, E. 189, 245, 328
Eagleton, T. 19, 57, 112, 194,328
Eco, U. 85
Edgerton, S. 220, 222, 224, 328
Edwards, R. 123, 328
Einstein, A. 36, 242
Eliot, T. S. 11, 30, 41, 43, 191
Engels, F. 37, 97, 202, 301, 331
Fanon, F. 320
Faulkner, W. 43
Fayol, H. 123, 329
Feyerabend, P. 19, 329
Filipe II 225
Firey, S. 81
Fish, S. 52, 248, 329
Fishman, R. 32, 329
Flaubert, G. 36, 239, 240, 241, 247, 329
Ford, H. 36, 57, 121, 122, 123, 129, 242,
245,324
Foster, J. 55, 62, 213, 329
Foucault, M. 49, 50, 51, 52, 58, 100, 190,
196, 197, 211, 217, 230, 247, 248, 273,
274, 316, 320, 329
Frampton, K 38, 42, 248, 329
Freud, S. 37, 50, 99, 111, 280
Frisby, D . 21, 22, 34, 329
Galileu 223, 225
Gaudemar, A. 247
Geddes, P. 123
Giddens, A. 100, 202, 329
Giedion, S. 43, 329
Gilbreth, F. 121
Gilligan, C. 52, 329
Glyn, A. 126, 137, 327
Goethe, W. 21, 26, 227, 331
Goldthorpe, J. 128, 329
Gordon, D. 178, 184, 214, 329
Gorz, A. 320
Gottlieb, A. 43
Gramsci, A. 121, 122, 128, 130, 329
Gregory, D . 257, 329, 330
Gropius, W. 31,252,256
Guattari, F. 57, 217, 278, 316
Guilbaut, S. 33, 43, 44, 329
Gurvitch, G. 204, 205, 206, 219, 237, 329
Habermas, J. 23, 24, 56, 291, 305, 327,
329, 332
Hagerstrand, T. 195,196,197,329
Halal, W . 163, 164, 303, 329
Hall, E. 91, 198, 329
Hareven, T. 188, 329
Harries, K. 191, 329
Harrington, M. 132, 329
Harrison, B. 126,137,180,265,299,327, 330
Hartsock, N . 52, 330
Harvey, D. 92, 164, 171, 208, 330
Hassan, I. 47, 48, 49, 55, 56, 57, 65, 303,
330
Haussmann, G. 26, 27, 34, 190
Heath, T. 157
Hegel, G. 248, 256
Heidegger, M. 29, 41, 53, 192, 193, 200,
ÍNDICE DE NOMES
248, 251, 316, 324, 327, 329, 330
Helgerson, R. 209, 225, 330
Hemingway, E. 39
Hewison, R. 64, 85, 86, 330
Hitler, A. 24, 40, 110, 193, 332
Horkheimer, M. 23, 330
Howard, E. 34, 71, 73, 123
Hume, E. 36
Huyssens, A. 38, 44, 45, 52, 59, 109, 330
Isaacs, W. 159
Jackson,J. 324
Jacobs, J. 15,46, 73, 74, 77, 78, 83,133,251
Jager, M. 81
Jameson, F. 187, 238, 258, 259, 263, 274,
278, 316, 330
Jefferson, T. 233, 246
Jencks, C. 18, 45, 77, 78, 83, 86, 95, 110,
111, 271, 272, 330
Jessop, B. 159, 330
João Paulo II, Papa 47
Johnson, P. 73, 76, 109, 110, 264, 323
Joyce, J. 30, 36, 38, 43, 187, 243
Kandinsky, W. 36,253,25~255
Kant, I. 28, 192
Kennedy, J. 295
Kern, S. 241, 242, 243,244, 245,246,247,
249,251,252,275,330
Keynes, J. 124
King,M.L. 87,89
Klee, P. 22, 36
Klimt, G. 37, 250
Klotz, H. 11, 83, 92, 95, 330
Kostof, S. 223, 225, 330
Koyré, S. 225, 330
Kracauer, S. 21
Krier, L. 70, 78, 81, 82, 83, 95, 330
Kroker, A. 47, 330
Kropotkin, Príncipe 123
Kuhn, T. 19, 330
Lacan, J. 56
Laffer, T. 295
337
Landes, D. 207,208,209, 330
Lane, B. 40, 331
Lash, S. 130, 150, 163, 165, 166, 303, 331
Lawrence, D. H. 36, 43, 242
Le Corbusier 11, 16, 18, 30, 31, 32, 34, 38,
39, 41, 42, 43, 45, 71, 72, 73, 110, 111, 123,
124, 190,246, 250,252,255, 256, 331
Le Goff, J. 208, 210, 331
Lee, D. 10, 46, 331
Lefaivre, M. 240, 331
Lefebvre, H . 201, 203, 204,207,216, 231,
242, 248, 331
Léger, F. 37,246
Lenin, I. 253
Lessing, D. 262
Lipietz, A. 117, 146, 331
Loos, A. 250
Lukács, G. 26, 305, 331
Lunn, E. 30, 331
Luxemburgo, R. 253
Lyotard, J. 49, 50, 51, 53, 56, 86, 109, 112,
194,248,263,26~324,331,332
McCarthy, J. 43
McFarlane, J. 25, 29, 32, 33, 34, 36
McHale, T. 46, 52, 58, 191,271,272, 331
McLuhan, M . 264, 319, 331
McWilliams, C. 296
Mach, E. 38
Mackinder, H . 249
Malthus, T. 25
Mandei, E. 65,258, 331
Manet, E. 30, 34, 35, 36,58, 59,60, 67,239,
247,328
Mann, T. 36
Mao Tse Tung 26
Marshall, A. 131, 190, 241
Martin, R. 265, 331
Marvell, A. 225
Marx, K. 21, 24, 37, 41, 50, 55, 57, 97, 98,
99,101,102,103,104,105,106,107,110,
111, 121, 164, 169, 174, 175, 176, 178,
190, 208, 210, 211, 215, 238, 248, 255,
256, 260, 283, 293, 305, 309, 319, 320,
331
338
ÍNDICE DE NOMES
Matisse, H. 36
Mill, J. 36
Miller, J. H. 324
Monet 247
Montesquieu, C. L. 227, 228
Moore, C. 11, 92, 93, 94, 95, 199, 331
Morris, W. 32,247
Moses, R. 26, 72, 328
Murray, F. 177, 331
Mussolini, B. 39, 40, 121, 123, 256
Napoleão I 212
Napoleão III 215
Newman, C. 47, 60, 64, 315, 331
Newton, I. 223, 225, 227, 228
Niemeyer, O. 256
Nietzsche, F. 25, 27, 29, 37, 47, 49, 55,
193, 245, 248, 249, 316, 331
Nixon, R. 157, 295
Noble, D. 151, 331
Norris, F. 241
Noyelle, T. 149, 331
O'Connor, J. 132, 331
Offe, C. 150, 332
· ·onman, B. 55, 305, 332
Ortega y Gasset, J. 245
Ozouf, M. 88, 234, 332
Pater, W. 191
Péreire, E. 233
Pétain, M. 256
Pfeil, F. 284
Picasso, P. 26, 27, 36, 37, 41, 55, 245,252,
254, 332, 333
Piore,M. 177,332
Pissarro, C. 30
Poe, E. A. 35
Poggioli, R. 22, 29, 31, 325, 332
Pollert, A. 178, 332
Pollock, J. 30, 43
Pope, A. 23
Pound, E. 29, 36, 38, 39
Proudhon, P. J. 177, 332
Proust, M. 30, 36, 43, 187, 243
Pynchon, T. 262,288
Raban, J. 15, 17, 18, 20, 22, 35, 59, 60, 69,
83, 95, 270, 332
Raphael, M. 29, 41, 106, 332
Ratzel, F. 249
Rauschenberg, R. 11, 58, 67, 264
Reagan, R. 157, 159, 188, 275, 295, 296,
301
Rees-Mogg, W. 212, 328
Reich, R. 150, 154, 332
Relph, T. 32, 332
Rivera, D. 39
Rochberg-Halton 264, 332
Rockefeller, J. 73, 74,213
Roderick, J. 150
Rohatyn, F. 155, 332
Roosevelt, F. 122, 124
Rorty, R. 19, 55, 58,282, 324, 332
Rossi, A. 46, 83, 84, 85, 86, 95, 332
Roszak 15
Rothko, M. 43
Rothschild, N. 212, 239
Rousseau, J. J. 24, 28, 227, 228
Rowe, c. 78, 332
Rowthorn, R. 265, 331
Rubens, P. 58, 61
Sabe!, C. 177, 332
Sack, R. 217, 332
Safdie, M. 9, 323
Saint-Simon, H. 29, 36, 37, 227, 233
Salle, D. 53, 54, 65, 66, 67
Sartre, J. P. 192
Saussure, f. 36
Saxton, C. 209
Sayer, A. 178, 332
Scharf, K. 317
Schiele, E. 250
Schoenberg, E. 9, 36
Schorske, E. 22, 34, 250, 251, 252, 332
Schumpeter, J. 26, 27, 39, 102, 124, 163,
332
Scott, A. 331, 332
Scott, R. 277
ÍNDICE DE NOMES
Shakespeare, VV. 225
Shelley,P.B. 29
Sherman, C. 18, 20, 59, 62, 98, 284, 288
Simmel, G. 21, 34, 35, 81, 161, 247, 259,
261, 283, 312, 332
Sitte, C. 34, 250, 251, 252, 274, 284, 328
Smíth, A. 24, 36, 37, 118,179, 190,229
Soja, E. 257, 332
Sorel, G. 41, 105, 332
Speed, J. 224
Speer, A. 40, 110
Stalin, J. 24
Stanback, T. 149, 331
Stein, G. 26, 27, 246, 252, 333
Stravinsky, I. 36
Sugar, A. 317
Sullivan, L. 35, 247
Swyngedouw, E. 10, 163, 164, 166, 169,
303, 333
Tarbell, I. 213, 333
Taylor, B. 38, 53, 55, 123, 252, 254, 262,
272, 316, 317, 333
Taylor, F. 36, 63, 85, 121, 333
Thatcher, M . 157, 159, 216, 275
Therborn, G. 158, 333
Thompson, E. 111, 210, 211, 333
Tichi, C. 32, 35, 39, 333
Ticiano 58, 59, 60, 67
Toffler, A. 258,259,261, 262, 319, 333
Tomlins, C. 128, 333
Touraine, A. 53
T1illing, L. 21, 333
339
Turgot, A. R. 231
Ure, A. 121
Urry, J. 130, 150, 163, 165, 166, 257, 303,
329,330,331
Valéry, P. 311
Vallaux, C. 249
van der Rohe, M. 30, 32, 39, 42, 47, 71, 72,
89, 109,252
V elázquez 58
Venturi, R. 45, 62, 70, 82, 333
Virilio, P. 265, 269, 316, 333
Voltaire, F. 36,227
VVagner, O 34,250, 252, 255, 256
VVagner, R. 251
VValker, R. 9, 149, 333
VValton, J. 160, 333
VVeber, M. 13, 25, 50, 190
VVelles, O. 44
VVenders,VV. 277,287,288, 289,315,325
VVilliams, R. 311, 320
VVilliams, VV. 39
VVilson, VV. 156, 181, 333
VVittngenstein, L. 51
VVoolf, V. 36, 242
VVright, F. 28, 34, 71; 72, 122
Yeats, VV. B. 22
Zola, E. 241, 247
Zukin, S. 82, 333
,
Indice de Assuntos
aceleração 133, 135, 148, 171, 172, 173,
193, 209, 210, 211, 212, 219, 257, 258,
260, 262, 263, 265, 270
acumulação do capital 7, 73, 100, 104,
119, 136, 166, 173, 175, 184, 187, 188,
212, 217, 234, 255, 256, 260, 267, 276,
293, 308, 311, 320
acumulação flexível 135, 140, 141, 143,
146, 148, 150, 151, 155, 159, 161, 163,
164, 166, 171, 174, 175, 176, 177, 179,
184, 215, 257, 265, 266, 272, 273, 275,
278, 281
alteridade 52, 53, 100, 101, 109, 112, 218,
227, 248, 271, 300, 301, 304, 308, 315,
320, 321, 325
arquitetura 17, 18, 19, 30, 38, 39, 42, 43,
45, 47, 52, 55, 58, 60, 62, 66, 69, 70, 77,
78, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 89, 91, 92, 93,
94, 95, 96, 104, 110, 191, 192, 193, 200,
201, 225, 241, 246, 247, 262, 270, 303
arte 17, 21, 23, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 36,
37, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 46, 47, 56, 58,
59, 62, 63, 64, 65, 82, 83, 96, 106, 191,
192, 220, 224, 230, 238, 239, 241, 242,
246, 251, 252, 253, 259, 262, 263, 264,
269, 273, 277, 284, 291, 305, 311, 313
artista 18, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 37,
41, 42, 43, 44, 58, 63, 64, 105, 191, 220,
223, 238, 247, 251, 252, 262, 264
caos 19, 22, 27, 29,· 30, 49, 75, 85, 96,
103, 170, 188, 252, 279, 284
capital 47, 55, 64, 73, 80, 82, 87, 92, 101,
102, 103, 104, 105, 106, 125, 129, 131,
133, 135, 136, 137, 140, 145, 146, 151,
152, 154, 155, 156, 160, 161, 165, 166,
170, 171, 172, 173, 174, 177, 178, 181,
203, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215,
217, 218, 221, 229, 233, 234, 237, 239,
242, 245, 246, 247, 251, 256, 258, 262,
265, 266, 267, 268, 269, 272, 273, 299,
303, 304, 307, 309, 319, 325
capital fictício 103, 104, 171, 172, 173,
181, 239, 256, 264, 275, 297, 299, 300,
303, 304, 323 ver também crédito e
dívida
capital simbólico 81, 82, 300, 312
capitalismo 7, 9, 27, 29, 36, 37, 44, 47,
50, 51, 55, 57, 63, 64, 65, 97, 99, 100,
101, 102, 103, 105, 106, 107, 111, 115,
117, 118, 122, 123, 124, 125, 126, 128,
129, 130, 131, 135, 150, 155, 156, 160,
162, 163, 164, 165, 166, 169, 170, 172,
174, 175, 176, 177, 178, 181, 184, 189,
194, 198, 200, 204, 205, 206, 209, 211,
212, 215, 216, 217, 218, 219, 234, 237,
239, 240, 256, 259, 260, 265, 267, 269J
272, 274, 275, 294, 300, 303, 305, 307,
308, 309, 316, 320, 321, 324
centralização 71, 129, 150, 151, 165, 168,
248, 253, 257, 267, 304, 305
cidade 15, 17, 18, 29, 33, 34, 35, 38, 39,
41, 42, 44, 49, 51, 63, 69, 70, 71, 72, 73,
74, 75, 76, 77, 81, 84, 87, 88, 89, 90,91,
92, 93, 95, 109, 110, 112, 132, 133, 137,
145, 166, 195, 197, 201, 209, 212, 214,
215, 216, 225, 227, 239, 242, 250, 251,
254, 261, 266, 270, 271, 274, 278, 279,
280, 282, 284, 286, 299, 300, 308, 323
ciência 19, 23, 24, 25, 27, 29, 39, 47, 49,
51, 90, 102, 103, 106, 192, 223, 225,
227, 241, 249, 251, 262, 312, 316
cinema 44, 53, 62, 63, 192, 239, 241, 255,
258, 262, 270, 271, 277, 279, 281, 289,
295
circulação do capital 102, 103, 104, 200,
209, 217, 240, 251, 260, 269, 307, 308,
311, 316, 320
classe 15, 21, 25, 31, 33, 35, 37, 40, 41,
42, 50, 52, 62, 64, 73, 79, 82, 100, 101
342
ÍNDICE DE ASSUNTOS
102, 104, 109, 110, 123, 124, 128, 129,
130, 132, 135, 145, 163, 165, 166, 170,
172, 189, 193, 202, 204, 205, 208, 209,
212, 213, 215, 216, 217, 218, 220, 230,
231, 234, 237, 238, 241, 248, 250, 256,
257, 261, 264, 265, 271, 281, 283, 288,
289, 296, 301, 304, 312, 320, 324, 325
classe operária 63, 213, 296, 320
classe trabalhadora 25, 42, 52, 101, 104,
105, 109, 110, 129, 135, 145, 163, 170,
174, 175, 178, 179, 215, 216, 261, 272,
291, 301, 311, 319
colagem 30, 46, 53, 55, 61, 63, 67, 69, 83,
90, 96, 271, 272, 273, 283, 303
comercialismo 63, 95, 109, 304
competição 31, 92, 101, 102, 105, 122,
129, 135, 137, 143, 147, 148, 150, 158,
160, 161, 168, 171, 172, 174, 175, 179,
207, 209, 213, 214, 221, 235, 241, 260,
265, 266, 267, 272, 316
compressão do tempo-espaço 7, 219,
229, 234, 237, 241, 246, 251, 252, 256,
257, 259, 264, 267, 275, 276, 277, 281,
288, 293, 313, 315, 316, 319, 325
comunicação 18, 35, 53, 56, 62, 69, 77,
78, 95, 109, 140, 156, 202, 203, 212,
215, 227, 233, 240, 242, 245, 252, 257,
264, 266, 287 ver também transporte e
comunicações
comunidade 15, 24, 33, 41, 47, 52, 56,
70, 78, 82, 83, 89, 98, 104, 122, 147,
190, 201, 203, 204, 205, 217, 219, 220,
247, 248, 250, 251, 263, 265, 272, 273,
274, 296, 315, 323
conhecimento 13, 19, 23, 24, 25, 28, 29,
36, 42, 50, 51, 52, 53, 58, 86, 102, 112,
119, 151, 152, 188, 189, 192, 193, 201,
207, 221, 224, 235, 242, 266, 284, 293,
299, 309, 315
construtivismo 40, 43, 62, 255
consumo 32, 44, 55, 63, 64, 65, 80, 92,
103, 107, 117, 118, 119, 122, 124, 129,
132, 133, 134, 135, 140, 148, 149, 151,
155, 169, 171, 181, 184, 189, 209, 210,
212, 230, 257, 258, 260, 263, 270, 271,
304, 305, 311, 312
consumo de massa 15, 65, 121, 129, 131,
132, 133, 169, 173
contracultura 44, 65, 78, 89, 133
contradições 24, 31, 67, 97, 135, 174,
177, 212, 217, 234, 249, 289, 305, 309,
324
controle do trabalho 119, 125, 132, 137,
140, 145, 148, 161, 166, 169, 170, 175,
178, 179, 181, 184, 265, 266
controle social 88, 119, 197, 203, 215,
227, 231
crédito 60, 85, 99, 103, 104, 135, 152,
156, 171, 172, 184, 233, 238, 239, 240,
252, 287 ver também dívida e capital
fictício
crise 34, 38, 47, 85, 102, 104, 106, 107,
109, 111, 123, 124, 125, 136, 137, 155,
157, 158, 159, 166, 169, 170, 171, 173,
174, 177, 179, 181, 183, 184, 187, 205,
210, 212, 233, 234, 237, 238, 239, 240,
241, 242, 250, 252, 253, 257, 263, 265,
269, 274, 288, 293, 309, 320, 323, 324
cronômetro 223, 227, 228, 229, 230, 246
cubismo 31, 37, 244, 245, 246, 254
cultura 13, 18, 22, 24, 32, 33, 37, 41, 43,
44, 45, 53, 55, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 81,
82, 86, 99, 112, 131, 161, 163, 169, 187,
198, 203, 217, 241, 247, 248, 250, 254,
261, 262, 264, 269, 271, 273, 293, 299,
300, 311, 320
cultura popular 31, 62, 152
Dada 31, 47, 48, 62, 191, 256
demanda efetiva 122, 124, 125, 127, 129,
131, 135, 181, 261
desabilitação 121, 210, 240
descentralização 118, 150, 152, 168, 265,
267, 304, 305, 319
desconstrução 48, 95, 112, 304, 305, 324
desejo 26, 49, 64, 65, 69, 78, 82, 98, 99,
100, 103, 105, 107, 118, 259, 263, 285,
286, 287, 307, 316, 325
desemprego 71, 141, 142, 161, 170, 179,
212, 251, 263, 267, 296, 301
desenvolvimento desigual 131, 140, 267
desindustrialização 92, 146, 165, 174,
ÍNDICE DE ASSUNTOS
179, 265, 267, 278, 296, 304
destruição criativa 26, 27, 31, 39, 43,
102, 107, 210, 234, 255, 279, 307
desvalorização 135, 138, 170, 172, 173,
174, 179, 181, 182, 183, 210, 212, 267,
268
dinheiro 99, 100, 101, 102, 103, 104, 112,
118, 122, 152, 154, 170, 171, 172, 174,
181, 203, 207, 208, 209, 210, 211, 214,
217, 218, 233, 234, 235, 238, 239, 240,
251, 256, 257, 258, 260, 268, 269, 282,
285, 286, 287, 299, 300, 303, 304, 308,
312, 313, 320
discurso 9, 15, 19, 50, 51, 52, 55, 56, 65,
69, 83, 86, 95, 184, 191, 201, 203, 208,
231, 242, 273, 284, 321
dívida 139, 152, 155, 158, 159, 161, 173,
174, 182, 183, 184, 214, 263, 264, 277,
299, 324 ver também crédito e capital
fictício
divisão do trabalho 100, 101, 106, 121,
198, 228, 240, 325
domínio da natureza 227
domínio do espaço 202, 207, 212, 215,
216, 231, 249
ecologia 70, 84, 166, 188, 201, 205, 219,
220, 237, 320, 325
efemeridade 21, 22, 27, 29, 49, 60, 91,
96, 104, 107, 111, 113, 148, 199, 200,
239, 258, 259, 260, 261, 262, 263, 272,
273, 275, 283, 288, 293, 303
empreendimentismo 15, 92, 100, 149,
154, 161, 163, 179, 265, 304, 313
espaço 7, 9, 21, 22, 23, 26, 30, 34, 36, 40,
41, 45, 46, 52, 53, 63, 69, 70, 72, 77, 79,
82, 87, 89, 91, 92, 95, 96, 103, 107, 109,
111, 140, 154, 155, 168, 172, 175, 178,
184, 185, 187, 188, 189, 190, 191, 192,
193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200,
201, 202, 203, 204, 206, 207, 208, 209,
212, 213, 215, 216, 217, 218, 219, 220,
221, 222, 223, 224, 225, 227, 228, 229,
230, 231, 232, 233, 234, 235, 238, 239,
240, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247,
248, 249, 250, 251, 252, 253, 254, 255,
343
256, 257, 259, 260, 264, 265, 266, 267,
268, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 275,
276, 277, 278, 279, 280, 282, 283, 284,
285, 286, 287, 288, 289, 293, 304, 307,
309, 311, 313, 317, 321, 325
especulação 32, 84, 100, 103, 104, 206,
237, 240, 256, 297, 300, 307
espetáculo 45, 57, 58, 61, 62, 69, 87, 88,
89, 90, 91, 92, 95, 148, 149, 169, 203,
251, 258, 285, 295, 304, 312
esquizofrenia 48, 56, 57, 58, 83, 304, 316
Estado de bem-estar social 71
estética 15, 19, 21, 27, 28, 29, 31, 32, 33,
38, 43, 44, 57, 64, 65, 67, 69, 80, 83, 87,
99, 101, 112, 117, 118, 123, 132, 136,
150, 151, 190, 191, 192, 194, 250, 255,
256, 257, 273, 274, 277, 279, 288, 293,
295, 299, 301, 304, 311, 313, 321, 323,
324, 325, 328
estetização da política 42, 104, 125, 143,
151, 194, 248, 269
ética 19, 29, 99, 109, 112, 119, 131, 254,
288, 293, 295, 301, 304, 315, 323, 324,
325
etnicidade 21, 90, 101, 204
excedente 124, 131, 135, 136, 137, 143,
154, 156, 170, 171, 172, 173, 175, 237
exploração 27, 28, 37, 42, 51, 98, 101,
102, 107, 145, 146, 147, 148, 166, 170,
171, 172, 175, 188, 192, 204, 208, 215,
237, 240, 253, 277, 308, 309, 325
expressionismo 31, 43, 44, 62, 250
fascismo 40, 41, 43, 50, 105, 296, 311,
316
feminismo 50, 52, 67, 132
fetichismo 80, 98, 99, 101, 106, 112, 308
feudalismo 205, 219, 223
ficção 46, 52, 58, 95, 96, 99, 104, 109,
110, 188, 203, 241, 262, 264, 271, 272,
277, 281, 303, 304, 315
filme 32, 53, 62, 85, 86, 192, 264, 271,
277, 278, 281, 282, 284, 285, 286, 287,
288, 289, 313
filosofi a 19, 39, 46, 47, 49, 55, 58, 96,
175, 192, 193, 225, 241, 324
I
I
I
I
I
1
I
~
I
I
l
344
ÍNDICE DE ASSUNTOS
finança 137, 147, 149, 152, 154, 239, 299,
312, 325
flexibilidade 51, 135, 140, 143, 144, 148,
168, 175, 177, 178, 179, 181, 210, 260,
266, 268, 278, 303, 305, 308
fordismo 119, 121, 122, 123, 124, 125,
128, 130, 131, 132, 133, 135, 140, 144,
146, 148, 151, 155, 156, 161, 163, 166,
172, 173, 174, 179, 181, 184, 187, 204,
210, 257, 275, 308
fotografia 10, 11, 18, 20, 32, 59, 62, 98,
191, 201, 240, 264, 273, 277, 280, 281,
282, 284, 285, 287, 288
fragmentação 19, 21, 22, 27, 29, 43, 49,
53, 56, 57, 60, 64, 77, 83, 95, 96, 100,
102, 103, 106, 107, 109, 111, 112, 113,
161, 164, 165, 199, 200, 231, 233, 240,
242, 244, 245, 246, 250, 251, 253, 259,
267, 272, 275, 279, 280, 282, 284, 288,
293, 319
fusões 121, 137, 150, 152, 154, 160, 259,
323, 324, 325
futurismo 39, 191
gênero 48, 49, 109, 132, 179, 198, 204,
208, 233, 241, 264, 277, 320 ver também mulheres
geografia temporal 195
geografia 9, 21, 33, 35, 63, 87, 88, 103,
109, 117, 119, 125, 137, 140, 149, 150,
1~1~1~1~1~1n1~1~
181, 184, 189, 194, 195, 201, 212, 213,
214, 215, 217, 221, 224, 228, 231, 234,
237, 247, 265, 266, 267, 270, 272, 293,
294, 301, 307, 308, 321, 325
geopolítica 117, 132, 133, 134, 166, 168,
174, 192, 193, 194, 203, 213, 215, 217,
237, 248, 249, 253, 256, 257, 274, 275,
304, 305, 321, 325
gosto 17, 42, 62, 63, 78, 80, 81, 82, 83,
87, 95, 103, 151, 152, 175, 259, 266,
319
greve 135, 214, 215, 216, 299, 324
hábito 44, 65, 117, 119, 161, 187, 190,
211, 258, 263, 270, 303
história 15, 19, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28,
29, 31, 35, 41, 43, 44, 47, 50, 55, 56, 57,
58, 63, 64, 65, 67, 69, 73, 78, 82, 85, 86,
92, 94, 95, 103, 105, 106, 107, 111, 112,
119, 121, 122, 123, 125, 172, 175, 176,
181, 183, 189, 190, 192, 193, 194, 197,
201, 204, 210, 212, 214, 216, 217, 219,
220, 223, 227, 229, 230, 237, 241, 242,
246, 248, 251, 252, 256, 265, 268, 271,
273, 276, 277, 280, 281, 282, 284, 285,
286, 287, 288, 289, 296, 299, 307, 323,
326
identidade 17, 18, 41, 56, 57, 63, 82, 85,
90, 94, 95, 118, 119, 165, 193, 200,209,
228, 246, 247, 248, 260, 261, 272, 273,
280, 282, 283, 284, 285, 312, 313
ideologia 15, 21, 44, 83, 119, 166, 169,
179, 258, 274
iluminismo 23, 24, 25, 35, 38, 46, 56, 71,
197, 198, 219, 223, 227, 230, 232, 233,
234, 235, 256, 291, 325
imagens 15, 17, 20, 24, 25, 26, 30, 32, 38,
41, 42, 52, 55, 57, 58, 59, 61, 62, 63, 65,
67, 84, 85, 86, 87, 91, 92, 95, 99, 110,
152, 158, 188, 201, 213, 217, 219, 221,
225, 227, 244, 246, 249, 252, 253, 254,
259, 260, 261, 262, 263, 264, 266, 269,
270, 271, 272, 273, 274, 275, 277, 279,
280, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 288,
289, 293, 295, 296, 299, 301, 303, 304,
311, 312, 313, 315, 316, 320, 321, 325
imperialismo 17, 44, 52, 194, 217, 320
imperialismo cultural 44, 250
impressionismo 31, 312
individualismo 15, 17, 24, 29, 31, 34,
43, 44, 45, 100, 104, 107, 109, 147, 161,
223, 225, 234, 260, 283, 284, 304, 313
indústria 42, 62, 73, 85, 97, 102, 105,
121, 122, 123, 124, 125, 128, 130, -148,
149, 151, 156, 165, 166, 169, 174, 178,
192, 214, 215, 262, 304
indústria da herança 64, 85, 86
inflação 64, 135, 136, 140, 141, 161, 174,
268, 269, 296, 323, 324
informação 53, 86, 123, 131, 148, 150,
ÍNDICE DE ASSUNTOS
151, 152, 178, 195, 202, 203, 212, 213,
227, 240, 241, 257, 266, 315, 323
inovação 22, 26, 30, 35, 37, 65, 85, 100,
102, 107, 121, 140, 148, 151, 152, 161,
163, 169, 175, 179, 184, 206, 210, 212,
220, 240, 241, 257, 260, 261
internacionalismo 33, 40, 43, 77, 87, 97,
131, 193, 238, 239, 250, 251, 252, 253,
273, 274, 282, 304, 325
jouissance 58, 59, 60, 91, 95, 111
keynesianismo 125, 135, 156, 163, 181,
204, 257
liberdade 17, 23, 25, 39, 43, 78, 100, 107,
196, 202, 234, 246, 300, 301, 308
liberdade individual 34, 47, 100, 233,
246, 312
língua 83, 112, 228, 279, 282, 284, 312
linguagem 19, 30, 36, 37, 38, 39, 44, 50,
51, 53, 54, 56, 57, 70, 78, 83, 93, 100,
105, 112, 117, 164, 191, 199, 204, 206,
225, 231, 237, 239, 240, 246, 263, 269,
282, 284, 304, 315, 316, 324
localidade 50, 112, 174, 200, 201, 205,
216, 241, 252, 264, 266, 315
lucro 73, 97, 101, 103, 117, 118, 129,
134, 137, 143, 145, 150, 151, 154, 164,
166, 169, 171, 174, 179, 207, 209, 210,
211, 212, 221, 229, 250, 256, 270, 273,
299, 301, 307, 308
lugar 17, 20, 21, 31, 33, 42, 50, 51, 52,
71, 74, 77, 81, 86, 87, 91, 92, 94, 95,
103, 109, 112, 118, 119, 145, 157, 190,
191, 193, 194, 195, 197, 198, 200, 201,
203, 208, 212, 213, 214, 215, 216, 218,
219, 221, 223, 224, 227, 228, 230, 234,
238, 239, 241, 242, 244, 245, 247, 248,
249, 250, 251, 253, 255, 257, 258, 261,
264, 266, 267, 268, 270, 271, 272, 273,
274, 275, 282, 283, 284, 285, 286, 288,
296, 300, 303, 304, 305, 308, 325
luta de classe 37, 102, 145, 166, 169,
173, 174, 194, 208, 212, 213, 214, 215,
216, 217, 265, 283
345
mais-valia 174, 175
mais-valia absoluta 174
mais-valia relativa 174
mapa 17, 33, 188, 191, 203, 207, 209,
213, 220, 222, 223, 224, 225, 226, 227,
228, 229, 230, 231, 232, 240, 246, 255,
275
máquina 32, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 43,
45, 65, 102, 103, 148, 150, 192, 193,
200, 215, 246, 252, 257, 258, 299
massa cultural 62, 181, 262, 299, 312,
313
matemática 15, 19, 36, 224, 231, 238
materialismo histórico 319, 320, 321, 325
materialismo histórico-geográfico 321,
325
meios de comunicação 62, 119, 206, 320
memória coletiva 83, 84, 200, 201, 284
m ercado 24, 31, 32, 37, 47, 55, 62, 64,
65, 75, 78, 79, 82, 98, 99, 100, 101, 102,
103, 104, 106, 112, 118, 119, 122, 123,
127, 131, 132, 135, 136, 137, 138, 139,
140, 143, 144, 146, 147, 148, 149, 151,
152, 153, 154, 156, 159, 160, 161, 164,
165, 168, 169, 175, 179, 181, 182, 183,
184, 198, 200, 203, 210, 212, 213, 214,
231, 239, 240, 250, 251, 257, 258, 259,
260, 261, 262, 263, 264, 266, 269, 270,
275, 299, 303, 317, 323
mercado de arte 18, 19, 262, 268
mercado mundial 97, 106, 125, 152, 183,
212
mercadoria 19, 32, 64, 65, 98, 99, 100,
101, 104, 119, 131, 151, 152, 156, 170,
171, 209, 213, 218, 220, 221, 231, 233,
239, 240, 241, 247, 257, 258, 259, 260,
261, 264, 268, 269, 270, 271, 280, 304,
307, 323, 324
mercados de trabalho 85, 125, 132, 140,
143, 144, 145, 146, 150, 161, 168, 169,
178, 179, 181, 260, 269, 303, 307
metateoria 49, 98, 109, 112, 301, 303,
304, 315, 321
militarismo 23, 39, 124, 133
minoria 52, 78, 87, 101, 112, 133, 145,
189, 208, 270, 272, 320
- - - - - -- - -- - ------346
ÍNDICE DE ASSUNTOS
mito 17, 23, 26, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44,
57, 84, 85,105,106,188,193, 194,198,
200, 219, 251, 256, 281, 287, 312
mobilidade do capital 178
moda 17, 18, 19, 31, 32, 34, 62, 63, 64,
65, 73, 82, 83, 148, 151, 210, 252, 258,
259, 260, 261, 262, 264, 300, 312, 323
ver também gosto
modernidade 19, 21, 22, 23, 25, 26, 27,
3~3~3~4~4~5~5~5~6~8~9~
97, 103, 104, 105, 107, 113, 123, 187,
190, 193, 194, 197, 210, 249, 251, 262,
303, 304, 305, 308
modernismo 19, 21, 22, 27, 29, 30, 31,
32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41,
42, 43, 44, 45, 47, 48, 49, 53, 57, 62, 64,
65, 69, 70, 76, 79, 85, 89, 91, 95, 97,
106, 109, 110, 111, 131, 133, 148, 166,
169, 187, 191, 192, 193, 199, 200, 204,
228, 229, 230, 235, 237, 238, 241, 242,
247, 248, 250, 252, 253, 254, 255, 256,
273, 274, 277, 284, 303, 305, 308, 319,
320
modernização 35, 42, 97, 98, 99, 100,
103, 106, 107, 111, 124, 133, 190, 199,
206, 227, 275
moeda 63, 80, 97, 98, 99, 104, 131, 135,
136, 138, 152, 154, 155, 156, 159, 183,
191, 238, 239, 259, 263, 267, 268, 269
monopólio 31, 104, 118, 147, 150, 165,
173
monumento 73, 84, 251
moralidade 23, 25, 29, 242, 248, 249
movimento revolucionário 88 .
movimentos sociais 17, 50, 52, 132, 158,
161, 217, 272, 315, 319, 324
mulheres 18, 21, 47, 52, 67, 101, 102,
112, 118, 132, 133, 145, 146, 189, 208,
228, 261, 272, 280, 286, 299 ver também gênero
multinacional 135, 146, 150, 154, 177,
264, 311
museu 58, 64, 83, 85, 201, 244, 247, 258,
259, 262, 264, 271, 273, 287
música 36, 44, 73, 192, 242, 246, 255,
258, 262, 270, 271
m~
~1~1~1~1~1~1~
159, 160, 165, 174, 178, 193, 215, 216,
217, 225, 235, 241, 249, 252, 266, 272,
275, 296
nacionalismo 33, 40, 41, 43, 124, 192,
203, 225, 250, 251, 253, 263, 275, 312,
325
nazismo 41, 42, 193, 194, 200, 251, 283,
312, 316, 324
necessidades 26, 37, 43, 46, 64, 65, 69,
78, 83, 92, 99, 103, 105, 106, 107, 118,
122, 132, 133, 143, 148, 151, 168, 171,
247, 257, 307, 311
New Deal 122, 124, 296
organização do trabalho 123, 126, 177,
178, 279
organização índushial 140, 145, 164, 177
patriarca 145, 146, 147, 150, 179, 205,
265
perspectivísmo 37, 38, 44, 46, 223, 224,
225, 230, 231, 235, 240, 245, 246
planejamento 15, 19, 42, 43, 46, 70, 71,
72, 73, 75, 78, 83, 167, 173, 179, 190,
201, 225, 227, 230, 256, 259
poder 21, 23, 24, 25, 29, 30, 32, 33, 37,
38, 39, 40, 41, 42, 43, 47, 50, 51, 53, 55,
59, 64, 72, 73, 75, 78, 98, 99, 100, 101,
102, 103, 104, 105, 106, 109, 110, 112,
113, 118, 119, 123, 125, 127, 128, 129,
131, 132, 135, 136, 137, 141, 143, 145,
147, 150, 152, 155, 156, 157, 158, 159,
160, 161, 163, 165, 170, 171, 172, 173,
175, 179, 181, 193, 197, 199, 201, 202,
206, 207, 208, 209, 210, 212, 213, 214,
215, 216, 217, 218, 220, 221, 223, 225,
226, 231, 233, 234, 235, 238, 239, 242,
248, 249, 250, 251, 252, 255, 256, 257,
259, 260, 261, 263, 264, 265, 266, 267,
268, 269, 273, 274, 275, 278, 279, 280,
281, 285, 286, 287, 288, 289, 295, 296,
300, 301, 303, 304, 312, 313, 316, 319,
320, 321, 325
poder corporativo 44, 51, 73, 122, 129,
150, 161, 165, 279, 281
ÍNDICE DE ASSUNTOS
poder do Estado 41, 105, 133, 197, 233,
304
política 9, 19, 24, 27, 29, 31, 33, 34, 37,
38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 47, 49, 51, 52,
. 53, 55, 62, 64, 71, 73, 78, 88, 100, 104,
105, 109, 110, 112, 117, 118, 121, 122,
123, 124, 128, 129, 131, 132, 133, 134,
135, 136, 140, 141, 145, 147, 151, 152,
154, 155, 156, 157, 158, 160, 161, 163,
164, 165, 166, 168, 169, 170, 171, 174,
178, 179, 184, 188, 190, 192, 194, 195,
207, 213, 216, 218, 219, 223, 231, 233,
234, 237, 238, 239, 241, 248, 249, 251,
256, 260, 261, 263, 264, 266, 269, 272,
273, 274, 275, 293, 295, 296, 301, 304,
305, 309, 312, 313, 315, 316, 319, 320,
323, 324, 325
pós-estruturalismo 9
pós-modernismo 9, 15, 18, 19, 44, 45,
4~4~4~5~5~5~5~5~6~6~6~
6~6~6~6~6~7~7~8~8~9~9~
99, 107, 109, 110, 111, 112, 119, 166,
169, 187, 194, 200, 204, 207, 230, 248,
256, 261, 264, 274, 277, 294, 301, 303,
305, 308, 312, 315, 319, 320, 323
pragmatismo 19, 46, 55
processo de trabalho 102, 103, 117, 119,
121, 123, 140, 145, 147, 151, 163, 211,
214, 257, 258, 262, 264, 271, 307, 311,
319
produção 15, 18, 19, 31, 32, 33, 36, 39,
42, 51, 53, 55, 57, 61, 64, 65, 71, 80, 81,
82, 84, 85, 95, 97, 98, 99, 100, 101, 102,
103, 104, 105, 106, 107, 111, 117, 118,
119, 121, 123, 124, 125, 127, 128, 129,
132, 134, 136, 140, 145, 146, 147, 148,
149, 151, 152, 154, 155, 156, 161, 164,
165, 166, 167, 169, 170, 171, 172, 173,
174, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 184,
189, 190, 191, 195, 199, 201, 202, 203,
209, 210, 211, 212, 213, 218, 223, 230,
233, 234, 238, 240, 257, 258, 259, 260,
261, 262, 263, 264, 266, 267, 268, 271,
273, 274, 279, 283, 295, 299, 300, 303,
304, 307, 308, 309, 311, 312, 313, 316,
320, 321, 323, 324
347
produção cultural 9, 37, 59, 61, 62, 64,
65, 202, 242, 253, 258, 262, 268, 275,
301, 311
produção de espaço 202, 203, 204, 212,
213, 233, 234, 240, 246, 250, 266
produção em massa 72, 77, 121, 122,
124, 128, 129, 131, 132, 135, 146, 265,
303, 304
progresso 19, 23, 26, 37, 42, 58, 131,
163, 164, 169, 187, 188, 189, 190, 194,
220, 235, 237, 252, 253, 324
projeto urbano 69, 70, 77, 78, 80, 91, 92,
95, 96, 200
propriedade privada 118, 203, 231, 233
publicidade 32, 42, 73, 78, 159, 163, 203,
210, 259, 272, 279
raça 101, 109, 132, 193, 204, 320
racionalidade 15, 24, 25, 27, 34, 38, 40,
41, 42, 44, 50, 129, 131, 133, 147, 165,
170, 193, 223, 225, 246, 252, 254, 303,
304, 324
razão 19, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 30, 31,
37, 38, 41, 43, 46, 47, 51, 52, 56, 57, 69,
72, 82, 98, 119, 164, 171, 174, 184, 188,
191, 194, 198, 207, 213, 214, 215, 223,
237, 254, 267, 281, 293, 305, 313, 323
realismo 30, 40, 41, 43, 94, 241, 325
regime de acumulação 117, 119, 122,
125, 134, 140, 162, 163, 164, 177, 184,
266
regulação 104,173,183,227,248,303,304
relações sociais 97, 98, 100, 110, 121,
145, 163, 195, 200, 201, 204, 208, 215,
219, 225, 233, 271, 273, 303, 308, 320
religião 21, 23, 161, 223, 312, 320
Renascença 221, 222, 223, 224, 225, 226,
235, 274, 293
renovação urbana 34, 42, 46, 72, 88, 89,
91, 304
representação 15, 25, 30, 35, 36, 53, 55,
65, 86, 98, 100, 104, 169, 190, 191, 196,
198, 201, 202, 203, 204, 209, 213, 218,
220, 223, 224, 225, 230, 232, 237, 238,
239, 241, 246, 247, 252, 267, 269, 288,
301, 303, 304, 319
348
ÍNDICE DE ASSUNTOS
romantismo 45, 48, 287, 288, 325
salário 104, 118, 122, 127, 128, 129, 130,
132, 133, 141, 157, 158, 160, 166, 167,
174, 175, 180, 211, 212, 229, 296, 299,
312, 324
Ser 192, 193, 200, 201, 234, 248, 251,
274, 293, 305, 325
setor de serviços 140, 148, 181, 296
signos 15, 41, 83, 84, 99, 201, 259, 260,
269, 279
símbolo 34, 42, 73, 81, 83, 85, 89, 99,
111, 191, 205, 242, 245, 261, 283
simulacro 65, 84, 261, 271, 272, 273, 278,
279, 281
sindicato 44, 123, 127, 128, 129, 131,
132, 133, 145, 299, 301, 304, 319
socialismo 106, 123, 164, 216, 251, 253,
255, 265, 272
subcontratação 132, 143, 144, 145, 146,
148, 149, 150, 166, 167, 178, 179, 257,
279
suburbanização 71, 122, 125, 173, 178,
214
superacumulação 170, 171, 172, 173,
174, 194, 218, 233, 234, 237, 240, 260,
267, 293, 307
superfície 17, 18, 25, 33, 47, 48, 58, 59,
60, 63, 69, 76, 87, 92, 95, 135, 164, 190,
224, 227, 229, 240, 246, 254, 263, 268,
304
surrealismo 31, 40, 43, 55, 62, 255
110, 113, 117, 121, 122, 123, 124, 126,
128, 137, 140, 143, 144, 146, 148, 149,
151, 152, 154, 155, 160, 161, 163, 164,
167, 170, 171, 172, 175, 179, 184, 185,
187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194,
195, 196, 198, 199, 200, 201, 204, 205,
206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213,
214, 217, 218, 219, 220, 221, 223, 225,
227, 228, 229, 230, 231, 234, 235, 237,
238, 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245,
246, 247, 248, 249, 250, 251, 252, 253,
256, 257, 258, 263, 264, 265, 267, 268,
269, 270, 271, 274, 275, 276, 277, 278,
280, 281, 282, 283, 285, 286, 287, 288,
289, 293, 295, 296, 304, 308, 309, 311,
320, 321, 326
tempo de giro 140, 148, 149, 171, 172,
174, 209, 210, 234, 242, 259, 260, 262,
263, 276
teoria social 96, 190, 192, 241, 248, 257
terra 27, 40, 41, 73, 75, 78, 79, 99, 102,
106, 107, 122, 135, 172, 175, 193, 201,
202, 203, 210, 213, 215, 219, 223, 227,
231, 233, 234, 240, 241, 246, 249, 254,
260, 279, 283, 285, 286, 287, 300
texto 10, 18, 36, 48, 49, 52, 53, 54, 55, 58,
59, 67, 95, 111, 123, 190, 199, 284
totalidade 19, 49, 55, 70, 169, 223, 224,
305
trabalho 9, 34, 50, 51, 52, 55, 63, 87, 98,
99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 107, 109,
112, 118, 119, 121, 122, 123, 125, 128,
1~1~1~1~1~1~1~1~
taxas de câmbio 105, 135, 138, 151, 159,
267, 268
taylorismo 121, 123
tecnologia 36, 38, 47, 53, 61, 62, 70, 72, 77,
83, 106, 119, 121, 123, 125, 132, 148, 151,
1~1n1~1n1~1~1~1~
202, 240, 257, 264, 265, 279, 307
telecomunicação 152, 212, 219
televisão 32, 62, 63, 65, 85, 86, 212, 261,
264, 270, 272, 282, 316
tempo 7, 9, 10, 21, 23, 25, 30, 31, 34, 36,
37, 41, 42, 47, 57, 58, 59, 63, 70, 77, 78,
84, 87, 94, 95, 100, 103, 104, 105, 107,
141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 149,
1~1~1~1~1~1~1~1~
l~Imlnlnl~l~l~1n
178, 179, 181, 184, 187, 188, 193, 202,
203, 208, 209, 210, 211, 212, 214, 215,
217, 230, 234, 237, 240, 247, 251, 257,
258, 259, 260, 262, 265, 278, 279, 296,
299, 304, 305, 307, 311, 319, 324, 325
trabalho assalariado 100, 101, 119, 199,
312
trabalho em tempo parcial 143, 144
transporte e comunicações 125, 203, 227,
233, 234, 235
ÍNDICE DE ASSUNTOS
troca 64, 98, 99, 100, 101, 106, 127, 128,
129, 131, 133, 147, 158, 208, 209, 218,
220, 223, 225, 228, 238, 239, 240, 257,
263, 266, 270
universalidade 248, 252
urbanização 32, 34, 73, 304
utopismo 24, 32, 35, 50, 62, 122, 123,
201, 203, 217, 231, 233, 250, 278,
304
valor 41, 55, 56, 64, 98, 99, 101,
104, 109, 118, 150, 161, 170, 171,
181, 182, 183, 187, 193, 199, 200,
210, 211, 213, 217, 238, 239, 267,
269, 273, 291, 305, 323
103,
174,
208,
268,
349
valor de troca 98
valor de uso 98
valores 15, 18, 26, 43, 44, 47, 55, 58, 70,
83, 109, 152, 162, 164, 166, 191, 193,
200, 237, 248, 250, 251, 254, 256, 258,
259, 260, 263, 269, 301, 307, 308, 309,
311, 312, 320, 323, 324, 326
vanguarda 22, 29, 31, 33, 35, 37, 41, 42,
44, 105, 256
verdades eternas 26, 30, 39, 44, 49, 191,
263, 293
vida urbana 15, 17, 18, 22, 34, 60, 65,
70, 73, 81, 82, 111, 253, 259, 300
Vir-a-Ser 26, 190, 191, 192, 197, 201, 223,
234, 248, 249, 256, 273, 274, 282, 286,
287, 293, 303, 304, 325, 326