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Fronteiras amazônicas: vivências, representações e conhecimentos

Livro de artigo do I Encontro Acre-Rondonia de História

Fronteiras amazônicas: vivências, representações e conhecimentos Francisco Bento da Silva Veronica Aparecida Silveira Aguiar (Organizadores) Campus José Ribeiro Filho BR 364, Km 9,5 - Porto Velho – RO CEP: 78900-000 www.edufro.unir.br edufro.unir@gmail.com Francisco Bento da Silva Veronica Aparecida Silveira Aguiar (ORGANIZADORES) Fronteiras amazônicas: vivências, representações e conhecimentos 1ª Edição EDUFRO Porto Velho-RO 2016 Ficha catalográfica – Biblioteca Central da UNIR Preparo de originais: Veronica Aparecida Silveira Aguiar Revisão Gramatical: Maria Enísia Soares de Souza Revisão de Normas Técnicas: Autor(es) Capa: Pró-reitoria de Extensão da UFAC e Veronica Aparecida Silveira Aguiar Diagramação: EDUFRO Editor: Jairo André Schlindwein Fundação Universidade Federal de Rondônia Maria Berenice Alho da Costa Tourinho Reitora Osmar Siena Pró-Reitor de Planejamento Marcelo Vegotti Vice-Reitor Jorge Luiz Coimbra de Oliveira Pró-Reitora de Graduação Adilson Siqueira de Andrade Chefe de Gabinete Ari Miguel Teixeira Ott Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Ivanda Soares da Silva Pró-Reitor de Administração Rubens Vaz Cavalcante Pró-Reitor de Cultura, Extensão e Assuntos Estudantis Conselho Editorial da EDUFRO: Jairo André Schlindwein (Prof. UNIR), José Lucas Pedreira Bueno (Prof. UNIR), Emanuel Fernando Maia de Souza (Prof. UNIR), Rubiani de Cássia Pagotto (Profa. UNIR), Osmar Siena (Prof. UNIR), Júlio César Barreto Rocha (Prof. UNIR), Marli Lucia Tonatto Zibetti (Profa. UNIR), Sirlaine Galhardo Gomes Costa (Bibliotecaria. UNIR), Cléberson de Freitas Fernandes (EMBRAPA), Dante Ribeiro da Fonseca (ACLER). Depósito legal na Biblioteca Nacional conforme Lei no 10.994, 14 de dezembro de 2004. Campus José Ribeiro Filho BR 364, Km 9,5 - Porto Velho – RO CEP: 78900-000 www.edufro.unir.br edufro.unir@gmail.com SUMÁRIO Apresentação ...............................................................................................................................7 Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia .....9 Américo Alves de Lyra Junior Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no vale do rio acre (1910-1924) .......................................................16 Daniel da Silva Klein O capitalismo na amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre .......................................................................................................................29 Eduardo de Araújo Carneiro A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no Acre ..............43 Emerson Vieira Cavalcante Márcio Roberto Vieira Cavalcante Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo ................................................................54 Francielle Maria Modesto Mendes Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira ..................................68 Francisco Aquinei Timóteo Queirós A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre ...........................................................................................................................75 Francisco Bento da Silva Nova(s) fronteira(s): um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana . ....................................................................................................................................86 Geórgia Pereira Lima Márcio Roberto Vieira Cavalcante As tecnologias de informação e comunicação como aliadas no desenvolvimento econômico do Acre ......................................................................................................................................97 Giuliano Cardoso Feitosa O avanço da fronteira agropecuária no Acre durante o governo Wanderley Dantas .....107 Janaira Fidelis Caetano Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (19041920) .........................................................................................................................................115 Liliane Nogueira Monteiro O homem que vive para sofrer ..............................................................................................124 Márcio Roberto Vieira Cavalcante O Acre como fronteira de desenvolvimento capitalista: o processo de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia contra presença dos “paulistas” nas terras de posseiros, seringueiros e colonos ...........................................................................132 Maria Janete Cesário Braga Márcio José Batista Wilson de Souza Guimarães Jean Mauro de Abreu Morais Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) ...............................................................................................................................139 Marta Valéria de Lima Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O Cruzeiro do Sul”, “O Alto Purus” e “Varadouro” : “O Jornal das Selvas” e a integração de fronteiras de conhecimentos de história, imprensa e outras ciências sociais ......................................154 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque Lauane Laura da Silva O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia ........168 Sidney Barata de Aguiar A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) .......181 Sidney Lobato Fronteiras Amazônicas: vivências, representações e conhecimentos APRESENTAÇÃO Em Fronteiras Amazônicas: vivências, representações e conhecimentos – volume I publicamos textos que fizeram parte dos Simpósios Temáticos e mesas-redondas realizadas no I Encontro Interestadual de História Acre e Rondônia. Este evento ocorreu na Universidade Federal do Acre, entre os dias 15 a 19 de setembro de 2014. A cada dois anos, as Associações estaduais de História, vinculadas à ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (ANPUH-Brasil), realizam os seus encontros regionais, que estão entre os mais importantes eventos da área de História realizados bienalmente nas universidades brasileiras. Suas reuniões bienais atraem grande número de profissionais de História e de outras Ciências Humanas, de alunos de graduação e de pós-graduação de instituições públicas e privadas. Visando aproximar e compartilhar de experiências vivenciadas por pesquisadores, profissionais de ensino e estudantes que atuam na fronteira da Amazônia Sul-Ocidental, as seções regionais das ANPUH’S de Acre e Rondônia, juntamente com os cursos de História das Universidades Federais do Acre e Rondônia resolveram juntar esforços para debater e refletir durante o evento acerca de questões comuns. Esta obra, que ora tornamos pública em virtude do apoio financeiro das ANPUHs e da Editora da Universidade Federal de Rondônia (EDUFRO), por intermédio da professora Veronica Aparecida Silveira Aguiar, docente desta Instituição, divulga uma série de pesquisas que possuem em comum o interesse em investigar as questões ligadas às problemáticas locais de uma região fronteiriça, onde três países (Brasil, Bolívia e Peru) compartilham de vivências e questões semelhantes. Também nesta obra foram abordadas reflexões sobre as fronteiras culturais, étnicas e a dinâmica das fronteiras do conhecimento. Além disso, a parceria tornou-se de singular importância para os Estados do Acre e Rondônia no momento atual, em que a nova legislação de ensino nos orienta a dedicar maior atenção ao aspecto da formação do/a professor/a e ademais com atividades complementares. O resultado do evento foi pensado no sentido de favorecer reflexões, propostas e tomadas de decisões que evidenciem ações na formação dos profissionais de História e outras 7 Francisco Bento da Silva, Veronica Aparecida Silveira Aguiar Ciências para suas atuações nesse espaço amazônico de múltiplas dimensões. Assim, pretendemos com este livro manter a parceria e fluxo de pesquisa entre os estados Acre e Rondônia que já vêm sendo desenvolvidas, incentivar as publicações e garantir subsídios para que alunos e pesquisadores possam dar prosseguimento às suas investigações. Desta forma, os trabalhos compreendidos no presente livro foram elaborados por professores doutores de diferentes instituições públicas e privadas brasileiras, doutorandos, mestrandos e graduandos vinculados a instituições nacionais, a saber, Universidade Federal do Acre (UFAC), Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade de São Paulo (USP) e União Educacional do Norte (UNINORTE), entre outras instituições, com pesquisas nas áreas de História, Letras, Filosofia e Educação. Nosso propósito é que a Universidade Federal do Acre (UFAC) e a Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em conjunto com as ANPUHs Acre e Rondônia deem continuidade ao projeto de serem polos produtores do conhecimento e com esse livro, especificamente, polos de conhecimento na área de História. Porto Velho, abril de 2015 Os organizadores. 8 Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia Américo Alves de Lyra Junior * Introdução O presente ensaio procura discutir a questão das águas da Pan-Amazônia a partir de um momento histórico específico, bem como por meio de uma das áreas de pesquisa historiográfica. O momento histórico diz respeito ao processo de desmoronamento da ordem mundial da Guerra Fria, percebendo como o planeta experimentava uma espécie de multilateralismo e a emergência de novos temas que preocupavam a espécie humana. Em termos de tempo, trata-se do final da década de 1960 até a virada do século XXI. No tocante à historiografia, o texto se inscreve na perspectiva da História das Relações Internacionais. Daí a necessidade de observar as crises que abalaram o sistema mundial e as possibilidades que se descortinavam a partir dessas crises. Nesse sentido, o ensaio se divide em três partes e a conclusão. Na primeira parte, Transcendendo a “Alta e a Baixa Política”, o debate se dá através das crises do sistema internacional e das mudanças na geopolítica global. A partir desse debate, mostram-se como as questões de meio ambiente e a Pan-Amazônia emergem na arena internacional. Na segunda parte, “Novos Temas”: o meio ambiente mercantilizado e a Pan-Amazônia, vislumbra-se o desenvolvimento das questões relativas ao meio ambiente, por meio das Conferências que ocorreram no período estudado e como, a partir delas, o meio ambiente adquiriu “valor de mercado”. Na última parte, a questão das águas da Pan-Amazônia e da bacia amazônica é diretamente tratada através de debates que envolvem o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Transcendendo a “Alta e a Baixa Política”: os “novos temas” * Professor Doutor da Universidade Federal de Roraima (UFRR). 9 Américo Alves de Lyra Junior As crises que emergem no final da década de 1960, as quais encerram no começo dos anos 1990, com a derrocada do socialismo real e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), representam um período significativo na História das Relações Internacionais. Nessa lacuna temporal, acontecem novas correlações de forças na arena global em períodos como os da Détente ao novo acirramento de ânimos entre os contentores da Guerra Fria. Algo que alcança o final dos anos 1980; década de crises e busca de reafirmação da bipolaridade por parte dos dois grandes contentores da Guerra Fria: Estados Unidos (EUA) e URSSS. Nesse contexto, contemplam-se mudanças políticas no interior do sistema internacional, que experimentava um processo de franca desintegração. Observaram-se essas mudanças a partir das novas configurações de força do cenário estudado e da economia associada aos avanços tecnológicos e às novas configurações ocorridas nas últimas décadas do século XX. Nas últimas décadas do século XX, foi processado um conjunto de relações econômicas, culturais, internacionais, políticas e sociais que gestaram um mundo diferente daquele construído após a Segunda Guerra. As pessoas comuns, os homens de Estado e os intelectuais presenciaram novidades no campo das descobertas científicas e das novas tecnologias, as quais estavam presentes no dia a dia dos indivíduos para auxiliá-los ou prejudicá-los econômica e socialmente. Esse período foi denominado de O Desmoronamento por Eric Hobsbawm (2008) e de Pós-Guerra Fria e globalização pelos historiadores Paulo Visentini e Analúcia Pereira (2008). Do Desmoronamento ou Pós-Guerra Fria e/ou globalização foram observados os assuntos relativos à política internacional do período, sem desconsiderar a relevância de temas como a revolução tecnológica que produziu, de acordo com Eric Hobsbawm (2008, p. 261), a miniaturização e portabilidade do mundo, com produtos como calculadoras de bolso e relógios digitais da década de 1970. Ou, ainda, aspectos dessa mesma revolução como o acento na vantagem das “economias de mercado desenvolvidas” sobre as outras formas de economias, pois quanto mais complexa a tecnologia maior era o dispêndio para o seu uso. Além do que, o mundo estava em franca mudança. Na Ásia, tinha-se a divisão da Coreia e a ocupação militar do Japão. Experimentava-se um momento de altercação e ruptura em favor de uma nova perspectiva política internacional. O período que compreende o final da década de 1960 e segue até o início dos anos 1990 foi de desintegração da ordem estabelecida pela Guerra Fria. Essa ruptura se confirmou a partir do desmoronamento da URSS e com a derrota do 10 Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia socialismo real em 1991. De acordo com Paulo Visentini e Analúcia Pereira (2008, p. 177), nesse contexto existia tendência à multipolaridade, com perda relativa de controle de Moscou e Washington sobre os seus aliados. Além do que, teve-se a desaceleração da economia mundial, que indicava o desgaste do modelo fordista, como também o desequilíbrio estratégico desfavorável à Washington, com alterações bruscas de regimes e quatorze revoluções em apenas uma década. Além do que, a Europa se integrava através dos tratados de Roma e, em janeiro de 1973, se compunha a Europa dos Nove. Segundo José Flávio Sombra Saraiva (2001, p. 73), a Europa dos Nove forneceria o núcleo de poder da União Europeia, gestada duas décadas depois. Frisase a assinatura dos Tratados em março de 1957, em Roma, Itália. O primeiro deles instituiu a Comunidade Econômica Europeia, CEE, e o segundo criou a Comunidade Europeia de Energia Atômica que se tornou mais conhecida como Euratom. Os tratados entraram em vigor em 1º de janeiro de 1958. A Europa dos Nove significou a solução do “problema britânico” e o alargamento da CEE. Os britânicos negavam-se a entrar na Comunidade porque defendiam a criação de uma zona de livre câmbio que abolisse os direitos alfandegários internos e preservasse a liberdade de cada país decidir suas fronteiras em relação a outras nações não comunitárias. Eles eram contrários à união aduaneira como preconizada na CEE, pois esta previa a perda de soberania dos Estados para instituições supranacionais europeias em longo prazo. Tinha-se em vista a unidade política da Europa. Salienta-se que, com o Reino Unido, ingressaram na CEE Dinamarca e Irlanda. Esses países somaram com os outros seis fundadores, quais sejam: Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e República Federal Alemã. Nesse contexto de mudanças profundas, a questão de segurança (entendida em termos militares), então baseada em um complexo jogo de geopolítica entre os contentores começa a dividir importância com novos temas (como o meio ambiente) que aparecem na agenda internacional e ocupavam os interesses dos estadistas, que até então os viam como temas secundários. Nessa perspectiva, a Amazônia (ou Amazônias, considerando os países a comungam) ganha em relevância internacional no tocante aos novos temas. Assim discute-se o assunto em pauta, com foco na Amazônia. “Novos Temas”: o meio ambiente mercantilizado e a Pan-Amazônia 11 Américo Alves de Lyra Junior Janaina Rosa Lira (2014, p. 28-33) lista uma série de conferências internacionais das Nações Unidas sobre o meio ambiente ao longo do período estudado. A de Estocolmo (Suécia) ocorreu em 1972. A Declaração dessa Conferência defendeu a construção de um ponto de vista comum para preservar e melhorar o planeta. A do Rio, realizada em 1992 (ECO-92), teve um número maior de participantes, o que indicava o aumento da importância do tema “meio ambiente” na agenda internacional. Além do que, paralelamente, Organizações não-governamentais (ONGs) realizaram um Fórum que aprovou a Carta da Terra. Nesta Carta se atribuía maior responsabilidade à preservação do Planeta aos países ricos. Assinaram-se, igualmente, a Convenção-Quadro Sobre Mudança do Clima (resulta na elaboração do protocolo de Quioto); Convenção sobre a Diversidade Biológica (Agenda 21); Declaração do Rio e Declaração de princípios sobre florestas. A Cúpula de Joanesburgo, setembro de 2002, então convocada pela Resolução 55/199 da Assembleia Geral das Nações Unidas (Revisão decenal do progresso alcançado na implementação dos resultados da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e desenvolvimento). Um dos seus pontos principais, e também seu principal êxito, foi discutir a relação entre pobreza e meio ambiente. Reafirmaram as metas para a erradicação da pobreza, avanços na questão de água e saneamento, saúde, biodiversidade e outros (LIRA, 2014, p. 32). A Rio +20 foi convocada pela Resolução 64/232 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 24 de dezembro de 2009, para discutir sobre o Desenvolvimento Sustentável. A Conferência se centrou em temas como economia ecológica e na erradicação da pobreza no marco institucional do Desenvolvimento Sustentável. O evento foi grande, reunindo mais de 45 mil pessoas e ressaltou o entendimento de que, sem a erradicação da pobreza e a proteção ambiental, não é possível o desenvolvimento sustentável. Em todos esses esforços, a questão de fundo, segundo Becker (2007), foi a preocupação conservacionista da natureza, manifestada pela aliança entre populações locais e redes transnacionais (agências de desenvolvimento, organizações religiosas e ONGs). Buscavam-se geopolíticas para promover o uso consciente dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável. Não se pode deixar de frisar que, nesse ínterim, tem-se a entrada de vultosos investimentos de capital estrangeiro para a causa em questão, bem como para a infraestrutura e produção. Com a virada do milênio, de acordo com Becker (2007), a natureza passa a ser vista pela perspectiva econômica do desenvolvimento sustentável. Está em jogo a possibilidade de codificar a biodiversidade, desvendando novas tecnologias. Considera-se, ainda, o valor 12 Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia agregado às riquezas naturais (capital natural) e o próprio processo de mercantilização da natureza. Neste aspecto, coloca-se a questão das águas. Pan-Amazônia: a questão das águas É ponto pacifico compreender a Pan-Amazônia como um vigésimo da superfície terrestre, dois quintos do território sul-americano, um quinto da disponibilidade de água doce e um terço das florestas mundiais latifoliadas, mas com baixa densidade populacional. O que, em termos de desenvolvimento e segurança representa um grave problema de soberania nacional. Além do que, a Pan-Amazônia é composta por ecossistemas comungados por oito países e uma possessão ultramarina francesa. Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa ramificam esses ecossistemas e, importante frisar, os países mais privilegiados geograficamente, no tocante à disponibilidade de água, são nações com proporções continentais. Reforça-se, igualmente, a bacia amazônica entre lagos e rios que não obedecem às linhas de fronteiras, as quais são artificial e politicamente criadas pelos homens. Para tratar do tema água na Pan-Amazônica, no contexto internacional apresentado, o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) previu a necessidade de ações conjuntas, dos amazônicos, para preservar os recursos naturais locais na década de 1970. No entanto, o próprio TCA revelava limitações internas quanto ao tema em questão. No próprio Tratado, apenas três artigos faziam menção às águas da Pan-Amazônia. Além dessa limitação, Rosa Lira (2014, p.60) comenta que é “(...) essencial que os Estados partes levem em conta o estabelecimento de acordos multilaterais, ou mesmo bilaterais, visando sanar as limitações do Tratando quanto aos referidos temas”. Ou seja, a capacidade de cooperação entre os amazônidas é extremamente baixa, o que corrobora para que a regulação de uso da referida bacia esteja “abandonada à própria sorte”. Para Argemiro Procópio (2011, 19), essa questão pode ser pensada por um subdesenvolvimento sustentável. Condição da Amazônia (na perspectiva desse ensaio, PanAmazônia) acompanhar, de forma dependente, os ciclos econômicos e as condições de exploração capitalista no contexto da globalização. Situação que lança luz à cooperação paralela, qual seja: a dinâmica do crime organizado. Mesmo com a criação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), a capacidade cooperativa dos Estados partes continuou baixa. Verdade que existiu esforço, por 13 Américo Alves de Lyra Junior parte dos membros da OTCA, em alcançar um melhor nível burocrático para melhorar os esforços de cooperação. Criou-se a Secretaria Permanente, com sede em Brasília, para contribuir com o desenvolvimento sustentável pan-amazônico e, na perspectiva do trabalho, dos temas relativos à água. Mas, no entanto, a burocracia da OTCA continua emperrada quando se considera a própria votação das matérias de execução da organização. Toda matéria é apreciada em Reunião de Ministros das Relações Exteriores, então órgão supremo do TCA. Para se ter ideia de como a questão fica emperrada, a Reunião de Ministros acerca da matéria hídrica foi debatida de 1980 até 2011. Em linhas gerais, os temas sobre a matéria hídrica versavam sobre temas diversos. Em 1980, Primeira Reunião de Ministros (Belém, Brasil) discutiu-se acerca da navegação e transporte em geral. Em Santiago de Cali, Colômbia, 1983 (Segunda Reunião de Ministros) o tema navegação dividiu espaço com o de hidroambiência. Na Terceira Reunião, em Quito, Equador, 1989, o tema único foi hidroambiência. Já em 1995, em Lima, Peru (Quinta Reunião de Ministros) foi incluído o tema ambiência e economia. Na Sétima Reunião, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia (2002), debateu-se, pela primeira vez, o gerenciamento da bacia do rio Amazonas. A partir de 2004, a Oitava Reunião de Ministros em Manaus, o tema água prevalece nas discussões. Sendo que, na Nona Reunião de Ministros, no ano de 2005, em Iquitos, Peru, ocorreu a inclusão do tópico Ambiência e Hidroclimático. E na imediatamente posterior, em Lima no ano de 2010, a discussão sobre Ambiência e Saúde. A despeito das discussões e articulações, somente em 2002, tem-se uma iniciativa de fato: o Projeto GEF Amazonas. Este projeto visava entender problemas com poluição e outros impactos negativos nos sistemas hídricos da bacia amazônica. Contudo o projeto ainda deixa a desejar. Conclusão Como visto, as questões ambientais ganham maior relevância em um período especifico da História das Relações Internacionais: o momento de crise da ordem mundial da Guerra Fria. Quando os contentores sentem dificuldades em manter a segurança global em termos de corrida armamentista e alto custo em tecnologia. Além disso, vivem problemas de ordem energética e a possibilidade de destruir, em definitivo, o planeta. 14 Transfronteiras amazônicas e pós guerra fria: a questão das águas na Pan-Amazônia Nesse sentido, a preocupação com a conservação da natureza ganha relevância no cenário internacional. Mas, em paralelo, com as preocupações ambientais tem-se grande avanço da tecnologia, o que permite que a natureza seja percebida como “produto” de valor no mercado. Perde-se, com isso, qualquer visão romântica quanto ao tema. No âmbito dessas discussões, a Pan-Amazônia tornou-se central, como região na perspectiva conservacionista. Além do que, ocorreram articulações que permitiram que populações locais encontrassem parceiros internacionais e, com isso, ganhassem em força política. Mas, a despeito do desenvolvimento acerca das preocupações apresentadas no ensaio, uma das questões centrais ficou sem políticas mais consistentes, as quais pudessem melhorar a vida dos povos e sociedades amazônicas. A água, em especial a regulação do uso da bacia amazônica, ainda espera por respostas mais convincentes e maduras. Referências BERCKER, B. K. Amazônia: Geopolítica na Virada do III Milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1919-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. LIRA, J. R. Águas da Pan-Amazônia: a gestão de recursos hídricos em tempos de escassez (1970-2012). 2014. 77p. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Fronteiras) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2014. LYRA JUNIOR, A. A. “Fronteiras internas da América do Sul”. Reflexões preliminares sobre o Estado Peruano na configuração do imediato pós-Guerra Fria. Textos & Debates, Boa Vista, n. 22, p. 89-104, jul/dez. 2012. PROCÓPIO, A. Subdesenvolvimento sustentável. 5. ed. Curitiba, Juruá, 2011. SARAIVA, J. F. S. Détente, diversidade, intranquilidade e ilusões igualitárias (1969-1979) In Relações Internacionais: dois séculos de História: entre a ordem bipolar e o policentrismo (se 1947 a nossos dias). Brasília: IBRI, 2001, volume II, p. 63-89. VISENTINI, P.G.F; PEREIRA, A. D. História do mundo contemporâneo: da Pax Britânica do século XVIII ao Choque de Civilizações do século XXI. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 2008. 15 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) Daniel da Silva Klein* Introdução Em meio a um estudo do complexo emaranhado produtivo da borracha na Amazônia brasileira no início do século XX, uma problemática apareceu ao longo desta pesquisa1, qual o lugar das mulheres nesse sistema comercial? O texto atual procura destrinchar como funcionava a cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre, enfocando a partir daí dois casos de mulheres que, não satisfeitas com suas condições, procuraram se impor nessa rede eminentemente controlada por grandes proprietários de seringais da região, os seringalistas. Grosso modo, a cadeia de aviamento da borracha consistia em um arranjo que passava pela produção da borracha com os seringueiros, a comercialização desse produto através de casas comerciais locais e regionais até sua chegada no mercado internacional. Nessa cadeia, os seringalistas gerenciavam, muitas vezes, as empresas de produção da borracha, os seringais, e as casas comerciais desses produtos. Assim, o trabalho com a borracha gerou riquezas que fizeram dos seringalistas verdadeiros senhores de suas propriedades, tanto que eram conhecidos como coronéis de barranco. Os poderes dos coronéis tinham ramificações intrincadas que encontravam resistências em um tipo social aparentemente inusitado, as herdeiras dos seringalistas. Essas mulheres contrapuseram-se aos seringalistas que eram irmãos, parentes próximos ou sócios de seus falecidos esposos para conseguirem ao menos uma quantidade mínima de bens que lhes garantissem a subsistência. Vejamos, portanto, os casos, sendo o primeiro deles movido por uma senhora que deixou falas de confronto diretas, que expressam uma resistência mais visível * Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (2013). Docente de História da Universidade Federal do Acre (Desde 2009). 1 A pesquisa deste texto é parte da tese de doutoramento intitulada: KLEIN, Daniel da Silva. A borracha no Acre: economia, política e representações. 2013. 347 p. Tese. Doutorado em História Social. Universidade de São Paulo. 16 Daniel da Silva Klein e outro de uma mulher mais comedida em suas posições, que não deixam de abalar o correto mundo ao seu redor. A luta de uma herdeira O poder que os seringalistas tinham em mãos ultrapassavam as regras contratuais de comércio vigentes no país. Nos processos judiciais antigos do Vale do Rio Acre, há uma série deles em torno de dois seringalistas irmãos que se tornaram famosos no estado, José e Daniel Ferreira Lima, e são exemplos da formação desse poder e do contraponto que as herdeiras tinham nesse meio. A cadeia de aviamento da borracha era fragilizada pela concessão desordenada de créditos, que não seguiam lógicas frias de comércio. Ao longo da década de 1910 os irmãos Ferreira Lima tomavam empréstimos em qualquer estabelecimento comercial onde tinham um contato amistoso com seus proprietários. No chamado 'fio da navalha', pegavam dinheiro emprestado para investir em seus negócios e não pagavam nada aos seus credores. Durante anos agiram dessa forma. A estratégia dos irmãos era tomar a maior quantidade de empréstimos possíveis, deixarem o menor número de registro dessas transações e seguir montando o capital da firma que possuíam com esses recursos. Essa estratégia foi determinante para que seus credores não conseguissem execução desses empréstimos, que jamais foram quitados. O primeiro a perceber que os irmãos adotavam esse tipo de estratégia econômica foi o promotor Francisco de Oliveira Conde. Essa tortuosa estratégia chegou a ser condensada em um parecer que o promotor escreveu para um processo aberto pela viúva de José Ferreira Lima, dona Adelina de Souza. O promotor diz que fez um levantamento apurado do processo de liquidação da firma mantida pelo falecido José Ferreira Lima e seu irmão, Daniel, tanto nos arquivos do Tribunal de Justiça em Rio Branco quanto nos cartórios do Acre ao longo do ano de 1922, buscando dados também em contratos e recolhendo informações com os credores (Processo n. 2303. Março de 1922. Parecer da promotoria pública de fevereiro de 1922). Segundo Oliveira Conde, os irmãos abriram uma empresa no início de suas atividades no Acre, pelos idos dos primeiros anos do século XX. Essa firma não foi formalmente aberta, o que para Conde significava que legalmente ela não existiu. O problema é que se valendo dessa firma fantasma, os irmãos começaram a tomar empréstimos na praça de Rio Branco. O 17 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) promotor diz que os empréstimos eram concedidos por conta da amizade que os comerciantes da região tinham para com José e Daniel (Id, ibid, p. 3). Sem abrir formalmente a firma original, os irmãos a abandonaram e constituíram legalmente outra, a Plácido e Companhia. Esta empresa, segundo os levantamentos do promotor, continuou com os ativos materiais da anterior, como o seringal Bagaço, algumas propriedades em Rio Branco, nos interiores do Vale do Rio Acre e na vila Abunã. A Plácido e Companhia, porém, não teve uma longa duração. Os irmãos continuaram tomando empréstimos e registrando no nome da empresa. Eram empréstimos tomados ao longo da década de 1910, com firmas tanto do Acre quanto de fora do território. No momento em que a Plácido e Companhia se tornou insustentável, os irmãos literalmente a abandonaram e abriram outra, a Ferreira & Irmão. Oliveira Conde diz que essa foi a última empresa dessa galáxia de empreendimentos falidos. O promotor informa que não conseguiu apurar o destino da Plácido e Companhia, mas a Ferreira & Irmão continuou com os pedidos de empréstimos junto a financiadores de diversas localidades. Nos seus argumentos finais, Conde afirma que não era possível dizer com precisão quais foram os primeiros credores dos irmãos, isso porque as provas dessas transações nem existiam mais. Diante dos rastros imprecisos deixados pelos irmãos Ferreira Lima, o parecer sugeria a liquidação imediata da Ferreira & Irmão (Ibidem, p. 3-5). Ao que parece, a estratégia dos irmãos Ferreira Lima deu certo por um momento. O ponto central dessa estratégia era abrir uma empresa, registrá-la legalmente e a partir daí tomar empréstimos junto a fornecedores diversos da cadeia de aviamento. Quando a firma se mostrava insustentável, abandonavam-na e abriam outra. Diante do acúmulo de empréstimos que tinham, como os irmãos Ferreira Lima conseguiram sustentar essa estratégia por tanto tempo? É possível que os financistas regionais da cadeia de aviamento emprestassem dinheiro para esses indivíduos por conta da amizade que tinham, em troca de algum favor ou simplesmente por medo. José e Daniel eram coronéis de barranco capazes de intimidar, espancar e assassinar seus concorrentes. Eles impunham medo inclusive em outros coronéis do Acre. Essas práticas violentas de exercício do poder seringalista foram denunciadas pela viúva de José Ferreira Lima, a senhora Adelina de Souza. Adelina de Souza abriu um processo contra o irmão de seu falecido esposo, Daniel, em 1924. A viúva protestava na justiça contra um roubo cometido por Daniel no quintal de sua 18 Daniel da Silva Klein casa, onde o seringalista teria espancado inclusive um oficial de justiça (Processo n. 2308. Agosto de 1924. Petição inicial). Em agosto de 1924, dona Adelina foi informada de que deveria ir para Rio Branco buscar parte dos bens do espólio de seu falecido esposo, que seriam recolhidos no seringal Catuaba propriedade em que morava. Chegando à capital, a viúva procurou a N & Maia e Companhia para que lhe emprestasse um barco para levar os bens. Ao que tudo indica dona Adelina tinha relações próximas com a N & Maia, uma empresa seringalista de Rio Branco que irá aparecer ao longo do texto em outros casos. Guilhermino Bastos, um dos sócios da N & Maia, mandou o barco com dois carregadores, que seguiam com os bens junto com a viúva e o oficial Francisco de Mello. O oficial deveria acompanhar então a entrega dos bens no seringal. Na petição inicial desse processo, Dona Adelina diz que esperava reconstruir as suas economias com os bens que seriam depositados em sua residência, porque após a morte de seu esposo não tinha mais dinheiro no banco, jóias e trabalhadores no Catuaba, que se encontrava praticamente abandonado e sem produção alguma de borracha. Mas no momento em que os bens eram depositados, Daniel Ferreira Lima apareceu no local, rendeu os empregados da N & Maia e tomou os bens de Francisco de Mello, aplicandolhe socos e pontapés. Em seguida montou tudo em uma tropa de mulas e sumiu na floresta junto com uma turba de homens que o acompanhava (Id, ibid, Carta ao juiz municipal de Rio Branco em 20 de agosto de 1924). Poucos dias depois da denúncia de dona Adelina, o acusado é chamado para depor. Através do depoimento de Daniel Ferreira Lima pode-se acompanhar um flagrante ímpar de como o poder de um coronel da borracha era amplo, quase irrestrito no Acre do início do século XX. Esse depoimento demonstra também que mesmo estando economicamente falido, esse seringalista não tinha perdido esse poder. Comparecendo perante o tribunal, Daniel Ferreira Lima disse ter então cinquenta e cinco anos, nascido no Ceará e ser comerciante estabelecido no Acre há várias décadas. Declarou também que morava no seringal Capatará que, segundo ele, foi lhe concedido pelo herói do Acre, Plácido de Castro, que faleceu em 1908 e a quem considera um verdadeiro amigo. Na sua fala, o depoente reconhece que de fato roubou a viúva de seu irmão na sede do seringal Catuaba, mas negou que tenha espancado o oficial de justiça. Disse também que 19 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) roubou alguns tachos de cobre e outros objetos de pouco valor, que eram seus por direito (Id, ibid, Termo de depoimento de Daniel Ferreira Lima). Daniel Ferreira Lima informou que transportou tudo que pegou em mulas para Rio Branco. Chegando à capital, depositou todos os materiais no porão da sede da Loja Maçônica Igualdade Acreana. Perguntado se sabia das condições de dona Adelina e seus sete sobrinhos, respondeu que tinha consciência do estado de penúria em que viviam, mas acusou a viúva de ardilosamente pegar um burro e um cavalo do espólio de seu irmão e os vender criminosamente para a N & Maia e Companhia. O escrivão que tomou o depoimento disse, antes de fechar os autos, que o depoente afirmou “em tempo” que dona Adelina ainda teve a petulância de vender alguns móveis que constavam no inventário de José para o advogado da N & Maia, Flaviano Flávio Batista (Id, ibid, Adendo ao Termo de depoimento de Daniel Ferreira Lima). É interessante vermos como Daniel Ferreira Lima reconhece seu crime, informa quais eram seus cúmplices e desafetos. Entre seus comparsas estava a Loja Maçônica Igualdade Acreana e os desafetos a N & Maia e Companhia e o advogado dessa firma, o senhor Flaviano Flavio Batista. Mas o fato de reconhecer seus crimes não significava que Daniel Ferreira Lima seria preso por isso. O simples fato de ele próprio reconhecer o crime e apontar seus cúmplices já é um indício de que ele sabia que não seria preso e não sofreria represálias. Dona Adelina solicita, pouco tempo depois do depoimento de Daniel Ferreira Lima, que o caso que abriu fosse arquivado. Ela envia uma petição justificando que sua penúria era tão grande, que não poderia ficar acompanhando a tramitação da peça em Rio Branco, pois não tinha dinheiro nem para pagar o transporte do Catuaba até a capital. Essa petição foi enviada em dezembro de 1924 e diz que: Acontece porém que presentemente a Supllicante se encontra em um estado de penúria tal que lhe faltam até os meios de subsistência para ela e seus sete filhos menores, com quem mora, não podendo portanto prosseguir no inquérito (Id, ibid, Petição de arquivamento em 06 de dezembro de 1924). A petição diz ainda que dona Adelina não tem mais funcionários no Catuaba, que os seringueiros foram embora e que não consegue juntar recursos nem para comprar roupa para ela e seus filhos. A coragem de dona Adelina de Souza Lima em denunciar o poder sanguinário do irmão de seu falecido esposo lhe custou sua própria manutenção. Seu seringal ficou abandonado, ela, por sua vez, despojada de seus bens. 20 Daniel da Silva Klein O que esse caso demonstra é que um seringalista falido economicamente como Daniel Ferreira Lima não tinha perdido um palmo de seu poder de coronel. Na verdade ele pouco se importava com a falência da cadeia de aviamento, visto que sabia que não seria cobrado na justiça pelas dívidas que possuía. A certeza dessa impunidade residia justamente na confiança que tinha dos poderes em suas mãos. É possível que com tantos empréstimos tomados, ele tenha conseguido compor uma poupança e viver de renda, o que somado com suas propriedades lhe forneceria um padrão de vida superior, se comparado com o da maioria dos acrianos no início do século XX. O uso da violência por parte de Daniel Ferreira Lima lhe garantia essa certeza de impunidade. Mediante um comunicado do major da Polícia do Território Federal do Acre, Germano Amorim, somos informados que Daniel e seu irmão José executaram um crime cinematográfico na segunda metade da década de 1910. Procurando novos financiadores, os irmãos Ferreira Lima tomaram empréstimos com alguns comerciantes bolivianos, que moravam próximo da fronteira com o Acre. Acontece que eles nunca pagaram seus débitos e os bolivianos começaram a cobrá-los. Segundo o major, os irmãos montaram uma malta de capangas, ultrapassaram a fronteira, invadiram a Bolívia e lá executaram seus credores e uma série de outras pessoas (Id, ibid, Comunicado da Força Policial ao juiz federal do Acre/Anexo II). José Ferreira Lima morreu antes de ser condenado por esse crime. Seu irmão chegou a ficar certo tempo preso nas carceragens da capital do Acre, Rio Branco, mas na metade de 1922 encontrava-se foragido. O major Amorin informou em juízo que não prenderia novamente Daniel Ferreira Lima, que permaneceu solto (Id, ibid, Comunicado da Força Policial ao juiz federal do Acre/Anexo I). Nesse sentido, as posições tomadas por dona Adelina nos falam de uma resistência forte perante todo esse arcabouço de sustentação de um coronel em seu lugar social. Ao lutar pela defesa de seu meio de subsistência, dona Adelina procurava manter ao menos parte de suas heranças, tendo em vista que ela tinha sete filhos pequenos. 21 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) A lhaneza no trato Nos anos iniciais do século XX, o domínio da cordialidade era uma imposição normal às relações sociais do Acre. Mediadas pela lhaneza do trato, as relações sociais nesse cenário encobriam ao máximo os conflitos advindos de uma época de crise e instabilidade financeira que levou ao fim do ciclo da borracha. Esse modo de construir determinadas relações sociais partia das posições de indivíduos que, em suas intenções2, montavam resistências aos duros tempos em que viviam das mais diversas maneiras. Obviamente que os conflitos afloravam em meio à concorrência dos seringalistas e nas violências que eram capazes de cometer, mas no geral essas instabilidades eram mascaradas, colocadas nas entrelinhas dos gestos e falas. Podemos dizer que o domínio da cordialidade era parte significativa da composição social da cadeia de aviamento. Um exemplo desse domínio aparece em uma fala de dona Adelina de Souza Lima. Em 1921 seu esposo havia falecido há pouco tempo e ela envia uma carta ao seu cunhado, Daniel de Ferreira Lima. Nessa época o inventariante Raimundo Pinto trabalhava no espólio do falecido e requisitou da viúva algumas informações sobre as posses do seringal Catuaba. Cordialmente dona Adelina escreveu ao seu cunhado: Sendo o compadre íntimo de nossa casa, isto é, minha e de seu fallecido irmão José Ferreira Lima, sabendo, portanto, do que nella se continha particularmente meu, rogo responder, ao pé desta, si sabe a quem pertence os bens constantes da relação abaixo (Processo n. 2303. Março de 1922. Anexo do parecer do ex-inventariante de José Ferreira Lima). A missiva de dona Adelina tinha um objetivo, reafirmar sua posição de proprietária da casa em que morava, o barracão sede do seringal Catuaba. Mas como o inventariante havia solicitado informações sobre essa propriedade, ela maliciosamente procura seu cunhado, que naquele momento era o único sócio de seu falecido esposo e poderia requisitar a residência na justiça. A malícia cordial da fala está nos trechos em que sua autora mistura um trato carinhoso para com seu cunhado, identificado como o “compadre íntimo de nossa casa”, e uma imposição de seu ponto de vista, quase ríspido, a respeito da propriedade dessa mesma residência, “isto é 2 Aqui utilizamos deliberadamente os termos da microhistória em sua vertente construtivista, principalmente a defendida por Rosental, em sua obra: ROSENTAL, Paul André. Construir o ‘macro’ pelo ‘micro’: Fredrik Barth e a ‘microhistória’. In: REVEL, Jacques. Jogos de escala: experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998; A esse texto somamos, também, os ensinamentos de E.P. Thompson com relação às resistências sociais: THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 22 Daniel da Silva Klein minha”. A conclusão da carta é aparentemente impositiva e fraternal, “desde já contando com vossa compreensão, sinto-me antecipadamente grata”. Tanto Daniel quanto Adelina lutavam com todas as suas forças naquele momento para se apropriarem do espólio de José Ferreira Lima, mas a carta da viúva é um exemplo de como esse trato cordial mascarava esse conflito até o ponto em que não fosse mais possível esconder a violência. Essa cordialidade marca determinadas relações como essas ao longo da cadeia de aviamento. Essa característica era um tipo de relação própria da formação social brasileira, como bem afirmou Sérgio Buarque de Holanda, uma vez que as máscaras do conflito social tinham esse aspecto cordial de civilidade, boas relações e lhaneza no trato (HOLANDA, 1997, p. 147 e segs). Sérgio Buarque de Holanda pensava que o homem cordial brasileiro havia sido sepultado pela urbanização, mas a partir daquilo que diz Edgard de Decca (2006, p. 439), podemos afirmar que certas características desse tipo social viraram tradição do país, mediando algumas relações sociais no início do século XX, tais como essas da cadeia de aviamento da borracha. Novamente com Decca (Id, ibid), tratamos as posições de alguns agentes dessa cadeia como metáforas, que nos acenam para determinados aspectos dessas identidades amazônidas, que procuram em vários momentos sublimar os conflitos em detrimento da cordialidade. Mas a cordialidade tinha limites, entraves e significados que foram subvertidos por algumas mulheres como dona Adelina e outra mais discretas, dona Maria Studart Maia. A carta testemunhável de Manoel Theophilo Maia Maria Studart Maia era a viúva de Manoel Theophilo Maia, que faleceu em março de 1920 e deixou uma grande herança para sua família e sócios. Dona Maria, porém, foi o pivô de uma tensa negociação envolvendo esse espólio. Theophilo Maia era sócio da N & Maia e Companhia, a maior e mais rica empresa do Acre então. Com o falecimento de um dos seus três sócios, a empresa tinha de lidar com um problema: como lidar com a saída de capitais que esse evento criou, tendo em vista que os herdeiros do falecido levariam consigo reservas em dinheiro e diversas propriedades. Manoel Theophilo Maia faleceu repentinamente em sua residência no Volta da Empresa, um dos bairros de Rio Branco, capital do Acre. Era primo do sócio fundador da firma, Neutel Maia, e casado com sua filha, Maria Studart Maia, com quem tinha dois filhos 23 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) menores, Roberto e Guiomard (Processo n. 1405 de 1921. Maio de 1921. Carta testemunhal de 10 de abril de 1920). Através da Carta Testemunhável assinada entre Maria Studart, Neutel Maia e Guilhermino Bastos podemos saber como a empresa se apresentava economicamente em 1920. A morte do sócio fez com que o capital da empresa guardado em vários bancos fosse divido entre os três. A cada um coube 136 contos de réis, o que perfaz um total de 408 contos de réis como ativos da firma. Para os herdeiros, as dívidas também foram repartidas em partes iguais, ficando cada um com um total de 76 contos de réis. Dos 408 contos de réis que possuía de ativos em contas nos bancos, a empresa contabilizava 228 contos em dívidas oriundas de empréstimos, financiamentos e cobranças de impostos atrasados (Id, ibid). Resumidamente, podemos montar o seguinte quadro para a situação da firma (Ver Tabela 1). Esse quadro demonstra o saldo que coube a cada um dos herdeiros da empresa, que a partir de então continuaria a existir, mas com seus ativos divididos entre Guilhermino Bastos e Neutel Maia. Subtraindo-se as dívidas dos saldos, podemos ver que cada um dos proprietários ficou com 60 mil contos de réis, o que era uma soma considerável para o início da década de 1920. Mas a empresa possuía outras fontes de renda que não apenas o dinheiro guardado em contas bancárias. Não podemos esquecer que o patrimônio total da N & Maia era o maior do Acre então e contabilizava seringais, residências, embarcações, etc. De todo esse quinhão, o que coube aos herdeiros de Theophilo Maia foram as seguintes fatias: a) Em nome de Emília Studart: crédito de 12 contos e dívidas junto ao coronel Antunes Alencar e Edgard Neves de 12 contos; b) Em nome do menor Roberto: crédito de 80 contos e 700 mil réis e dívidas junto a Montenegro Filho e Pedro Remigio, Edgard Neves e para pagamento de pequenas cobranças de 41 contos; c) Em nome da menor Guiomard: crédito de 18 contos de réis e dívidas junto ao coronel Antunes Alencar nesse mesmo valor (cobrados em duas notas promissórias, sendo uma de 10 e outra de 8 contos); 24 Daniel da Silva Klein Tabela 1: Ativos e dívidas da empresa N & Maia e Companhia em maio de 1921, Acre. Sócios Ativos para cada um dos Dívidas para cada um dos sócios (Milhares de sócios (Milhares de réis) réis) Neutel Maia 136.000 76.000 Maia/Maria 136.000 76.000 Manoel Theophilo Studart Maia Guilhermino Teixeira Bastos 136.000 76.000 Totais 408.000 228.000 Fonte: Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 1405 de 1921. Maio de 1921. Carta testemunhal de 10 de abril de 1920. O menor Roberto, único filho varão de Theophilo Maia, ficou com um saldo a seu favor de mais de 39 contos de réis, ao passo que sua mãe e sua irmã não receberam um tostão sequer, pois todo o valor em dinheiro que lhes coube foi destinado para o pagamento de dívidas. Em tese, a partilha deveria ser mais homogênea, mas não foi o que se efetivou nesse caso. Desse quadro de partilha podemos elaborar o seguinte resumo com relação aos totais repartidos a cada um dos herdeiros em dinheiro e dívidas (Tabela 2). A carta testemunhável firmada entre Guilhermino Bastos, Neutel Maia e Emília Studart foi assinada após a morte de Manoel Theophilo Maia e vê-se que os três favoreceram unicamente o herdeiro varão do falecido. Teria dona Emília Studart sido pressionada para assinar a carta nesse sentido? Tabela 2: Recursos em dinheiro repartidos pelos herdeiros de Manoel Theophilo Maia em maio de 1921, Acre. Herdeiros Saldo (Milhares de contos de réis) Dívidas (Milhares de contos de réis) Menor Roberto 80.700 41.000 Menor Guiomard 18.000 18.000 Emília Studart Maia 12.000 12.000 110.700 71.000 Totais Fonte: Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 1405 de 1921. Maio de 1921. Carta testemunhal de 10 de abril de 1920. 25 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) Mas a empresa tinha ainda uma série de propriedades que não estavam contabilizadas em suas contas bancárias. Eram terrenos, casas, pontos comerciais em Rio Branco e diversos seringais pelos interiores do Vale do Rio Acre. Como a empresa tinha uma dívida muito grande e ela poderia colocar sua liquidez em risco, Guilhermino Bastos e Neutel Maia conseguiram que a viúva aceitasse tão somente alguns bens imóveis na cidade de Rio Branco. Eles foram assim distribuídos: uma casa de madeira, modelo challet na Rua Abunã, com todas as suas benfeitorias, móveis e em terreno próprio para Emília Studart, dois terrenos para Guiomard e uma casa para Roberto. A casa destinada a Emília Studart não poderia ser revendida, tendo em vista que lá teria que residir com seus filhos. A casa do menor Roberto, o favorecido, deveria ser alugada e o valor arrecadado devendo ser depositado em conta registrada no seu nome. A conta seria entregue ao menor quanto atingisse a maioridade (Id, ibid). A carta testemunhável traz informações econômicas preponderantes para entendermos como estavam às contas da N & Maia, mas também como se deu o processo de partilha entre os herdeiros do sócio falecido. Ao menor Roberto coube todo o crédito que restou do quinhão de seu pai, recebendo ainda uma casa que seria usada para constituição de uma poupança somente sua. Há nessa partilha uma demonstração muito coerente de como os coronéis de barranco ligados a N & Maia controlavam o mundo ao seu redor, tratando inclusive a vida privada de seus dependentes como sendo parte dos negócios da empresa. Dona Emília Studart, por exemplo, não recebe praticamente nada de seu falecido esposo e aceita somente uma casa que não poderia dispor como bem entendesse. O último bem a ser incluído nessa partilha foi o sítio Rússia, no Caminho da Judia, que ficava nas proximidades do bairro Seis de Agosto na cidade de Rio Branco. O sítio é acrescentado à partilha somente em 1921, após ter passado por um processo de avaliação (Id, ibid, Autos de revisão). Esse bem, acrescentado posteriormente, possuía uma casa de madeira, um terreno de oitenta metros de frente por duzentos de fundo com fruteiras, hortas e criação de pequenos animais. O sítio foi registrado no nome do menor Roberto, mas registra-se que sua mãe elaborou uma petição para que o bem não fosse incluído na parte que fosse para Neutel Maia ou Guilhermino Bastos (Id, ibid, Termo de ajustamento e registro). Nessa tortuosa narrativa que procura demonstrar a dilapidação dos bens que possivelmente caberiam a Maria Studart Maia, podemos ver que ela foi cordial para com seu 26 Daniel da Silva Klein pai, Neutel Maia, mas discretamente manteve firme a defesa dos interesses de seus filhos, principalmente do menor Roberto. Nota-se que sua submissão não foi tão aparente assim, pois quem abriu na justiça a carta testemunhável de seu falecido esposo foi ela e não os sócios dele. Todo o processo na justiça foi pago por ela, o que demonstra também que seu pai e Guilhermino Bastos poderiam estar interessados em manter os assuntos referentes aos bens de Manoel Theophilo em pratos limpos, já que a empresa era da família. Considerações finais Nas relações interpessoais que foram socialmente construindo a cadeia de aviamento da borracha na Amazônia brasileira do início do século XX, os seringalistas foram formidáveis proprietários de terras e negócios comerciais. Em muitas situações ludibriavam seus credores e contornavam as crises agindo a partir das mais variadas decisões comerciais, que iam desde a abertura de firmas fantasmas até a dilapidação dos bens de parentes próximos. Nesse cenário, as falas das donas Adelina Ferreira Lima e Maria Studart Maia são exemplos de que esse controle não era total. O que elas nos mostram são alguns elementos: a) o controle dos seringalistas pretendia-se totalizante, tendo em vista que o tipo de negócios que possuíam exigia uma ação tentacular; b) por conta das suas condições de herdeiras, elas representam um grupo que se opunha aos seringalistas, tendo em vista que seus maridos, quando vivos, faziam parte de grandes conglomerados comerciais, logo suas ações em prol da manutenção de suas propriedades afrontavam a lógica comercial desses senhores. Nos dois casos o que há de comum é que ambas buscaram manter a subsistência de seus filhos, o que levou dona Adelina a uma condição de miséria. Nesse sentido, ambas adotaram estratégias de atuação bastante diferentes, uma mais incisiva e outra discreta em seus anseios. Afirmamos, por último, que neste estudo podemos definir dois grupos antagônicos que surgem às claras no momento em que um sócio (ou proprietário) de alguma empresa seringalista falecia: de um lado as viúvas, e a rodo seus filhos, e do outro os sócios de seus esposos. Fontes: Processos judiciais Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 1405 de 1921. Maio de 1921. 27 Heranças malditas: o confronto entre viúvas e seringalistas pelos espólios da cadeia de aviamento da borracha no Vale do Rio Acre (1910-1924) Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 2303. Março de 1922. Parecer da promotoria pública de fevereiro de 1922. Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 2308. Agosto de 1924. Petição inicial. Referências DECCA, Edgard de. As metáforas da identidade em Raízes do Brasil. Vária História, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 424-442, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: José Olympio, 1997. KLEIN, Daniel da Silva. A borracha no Acre: economia, política e representações. 2013. 347 p. Tese. Doutorado em História Social. Universidade de São Paulo. ROSENTAL, Paul André. Construir o ‘macro’ pelo ‘micro’: Fredrik Barth e a ‘microhistória’. In: REVEL, Jacques. Jogos de escala: experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998. THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 28 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre Eduardo de Araújo Carneiro Este artigo foi concebido com o objetivo de servir como uma alternativa ao discurso epopeico da fundação do Acre. Isso porque a narrativa oficial está tão adulterada pelos abusos que fez da história que decidimos renegá-la ao campo literário. Há vários fatos na formação histórica do Acre que desabonam qualquer representação apoteótica desse período. Os principais serão analisados a fim de mostrar que a tentativa de deificação da fundação do Acre não tem menor fundamento. Sendo ela uma estratégia política até hoje empregada pela elite política regional para criar uma sensação megalomaníaca no povo acriano. Uma representação elegíaca seria mais realista e ela poderia ser concebida pelo mero raciocínio lógico dedutivo. Isso porque é inegável que as sociedades surgidas a partir da expansão do capitalismo sejam socialmente injustas. Elas são marcadas pela exploração do trabalho, desigualdade social, concentração de renda, corrupção, violência e outras “patologias sociais” (FROMM, 1983). E a formação econômico-social do Acre inserida no processo de incorporação da região à cadeia comercial da economia-mundo capitalista. Mas é óbvio que não pautamos nossos argumentos em meras conclusões dedutivas. O Acre, parafraseando o que afirma Darcy Ribeiro (1995, p. 46) com relação ao Brasil, “passou a existir para servir a reclamos alheios” e teve uma formação histórica que mais parecia um “moinho de gastar gentes” (Idem, 1995, p. 106). As primeiras vítimas foram os nativos que milenarmente viviam na região, massacrados com a chegada dos migrantes. Depois, os próprios nordestinos, “gastos” no processo de produção da borracha por meio de um regime de trabalho que beirava a semiescravidão. Com a crise da economia da borracha, foi a vez da maioria dos seringalistas passar pelo “moinho”.  Universidade Federal do Acre, mestre em Linguagem e Identidade (UFAC), doutorando em História Social (USP). 29 Eduardo de Araújo Carneiro Segundo o psicanalista brasileiro Norbert Keppe (1987 e 1990), a sociedade pode ter sua sanidade mental coletiva afetada. As patologias podem ser identificadas a partir da observação da dinâmica social. O suicídio, o alcoolismo e o fanatismo são alguns dos sintomas mais comuns de patologias contemporâneas. Mas a saúde mental coletiva também pode ser verificada a partir de outros fatores como a banalização da violência econômica, política e simbólica, da desonestidade, da avareza, da degradação humana, depredação ambiental, da imoralidade, dentre outros. E é baseado na sociopatologia de Keppe que desenvolveremos o argumento de que a fundação do Acre enquanto território brasileiro está ligada à formação de uma sociedade mentalmente doente, uma vez que foram identificados vários comportamentos coletivos patológicos. Na medicina, o significado de “patologia” tem a ver com o estudo das doenças no organismo. Quando aplicado aos fenômenos sociais, queremos dizer que algum comportamento individual ou coletivo é nocivo à vida em sociedade. E o critério universal para avaliar o estado da saúde mental de uma sociedade é a prática do amor ao próximo. Quanto mais saudável a sociedade for, mais frequentes serão as relações sociais pautadas na bondade, na misericórdia, na honestidade, no perdão e em tantos outros lastreados no amor ao próximo. Ao contrário, quanto mais o egoísmo pautar as relações sociais, mais patológica a sociedade tende a ser. O genocídio indígena, as fraudes do sistema de aviamento, a violência no seringal, a corrupção política e judiciária, a exploração predatória da natureza, a promoção da prostituição feminina e os conflitos armados são os fatos históricos que analisaremos para avaliar a sanidade mental da nascente sociedade acreana. O massacre dos povos indígenas Esse assunto é nevrálgico para a narrativa histórica epopeica da fundação do Acre. A genealogia do Acre começa quando a história de inúmeros povos nativos termina. O contato entre nativos e nordestinos não foi harmônico. Quando os últimos não exploravam a mão-deobra dos primeiros, matavam ou abusavam sexualmente deles. Muito esforço foi feito para inocentar os primeiros acrianos. Primeiro, tentaram mostrar a inexistência dos nativos ou a pouca quantidade numérica deles na região com expressões do tipo “deserto ocidental” ou “terra vazia”. Depois, impossibilitados de negar a 30 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre existência de inúmeras nações, buscaram explicar a redução dramática delas com argumentos alheios à exploração da borracha. Vários argumentos foram usados para explicar a dizimação dos nativos. Dizem que os fatores responsáveis pelo desaparecimento deles foram os assassinatos cometidos por peruanos e bolivianos, conflitos intertribais, doenças, além de outros. Por exemplo, Castelo Branco (1950, p. 12) afirma que “a região quase não tinha índio, sendo pequenas as tribos [...] tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminados as sobras pelos bolivianos [...] além das lutas internas entre as próprias tribos”. Abguar Bastos (1958, p. 13) insistiu em dizer que a terra era vazia “o cearense e o Acre eram dois destinos ainda sem comunicação com a vida: o primeiro à procura duma terra que o recebesse, o segundo em busca de um povo que o tomasse” (grifo nosso). Raramente os “primeiros acrianos” são responsabilizados pelo genocídio. Quando a violência é admitida, eles não figuram como o agressor. Explicam que o uso da força foi em legítima defesa, uma reação à “barbárie” dos nativos. O certo é que a população nativa na região acreana baixou consideravelmente após a migração dos nordestinos. Segundo Calixto (1984, p. 15): “o Acre foi um dos maiores redutos de povos indígenas da Amazônia”. Em menos de meio século estima-se que mais de 50 mil nativos tenham sido vítimas do “contato” com o acriano. Durante o período de 1900 a 1957, nada menos que 36 grupos étnicos foram extintos (Idem, 1984, p. 12). O fraudulento sistema de aviamento da borracha Agora passaremos a analisar o sistema de aviamento da borracha realizado na Amazônia brasileira, em fins do século XIX e início do XX. Ele foi o elo entre o território acriano e o capital estrangeiro oriundo do centro da economia-mundo capitalista. E como em qualquer processo econômico de expansão capitalista a corrupção econômica se faz presente, nos confins da Amazônia não foi diferente. As práticas econômicas fraudulentas foram uma constante na formação histórica do Acre. O sistema de aviamento consistia em uma teia de relações mercantis baseada no crédito. Em resumo, o capital estrangeiro foi quem estimulou o boom da borracha na Amazônia, até que as seringueiras plantadas na Malásia se tornassem mais produtivas e lucrativas. A crise foi uma consequência direta da perda do monopólio da venda da borracha. 31 Eduardo de Araújo Carneiro Enquanto a situação de monopólio vigorasse, havendo demanda, o sistema de aviamento produziria excedente econômico. Devemos levar em consideração o fato de que o sistema de aviamento repartia, de forma desigual, os “despojos” da economia gomífera. Os que estavam diretamente envolvidos na produção da borracha não ganhavam nada (seringueiros) ou ganhavam muito pouco (os seringalistas) - comparado aos ganhos obtidos por aqueles que a comercializavam em âmbito internacional, ou seja, os estrangeiros. Quase sempre analfabeto, o seringueiro se tornava uma presa fácil para os patrões desonestos que, além de pagar baixos preços pela sua produção de borracha, exageravam nos preços das mercadorias. “O seringalista detinha a possibilidade de fazer os números dançarem ao compasso de seus interesses” (SANTOS, 1980, p. 166). Segundo Teixeira (2009, p. 133), “o comércio se constituiu de fato num eficiente mecanismo de coerção”. O endividamento, “antes de ser uma real categoria econômica, funcionava muito mais como um instrumento destinado a preservar vínculos de sujeição” (Idem, 2009, p. 154). Diante de tantas amarguras, o extrator acabava virando um alcoólatra (cf. PRADO JÚNIOR, 1994, p. 238). Era comum que o comerciante adiantasse ao seringueiro recém-chegado ferramentas, víveres e remédios, a preços altamente inflacionados, de modo que aquele já ficava, de saída, endividado com o patrão. De fato, este abuso era de tal modo disseminado, que representava um traço essencial do negócio da borracha [...] o patrão lucrava tanto com a venda de mercadorias, quanto com o próprio negócio da borracha. Além disso, alguns observadores acusavam o patrão de adulterar suas contas para trapacear ainda mais o seringueiro analfabeto (WEINSTEIN, 1993, p. 37). O seringueiro era obrigado a encaminhar para o barracão aquilo que ele produzia. Pois era lá que ele comprava "fiado" as mercadorias que consumia. A maior parte dos “enlatados” adquiridos eram importados da Europa, onde ficavam as matrizes dos principais bancos que concediam créditos para o fomento da produção gomífera. É sabido que boa parte dos alimentos já chegava vencida no seringal, mas mesmo assim era comercializada. E a fraude vai a tal ponto que as casas de importação de conservas têm um empregado denominado caixeiro da solda e cujo mister consiste em furar as latas deformadas pelos gases da putrefação, a fim de dar saída a esses e soldar a abertura feita. Assim conseguem iludir os compradores que bem conhecem os perigos das conservas em caixas deformadas pelos gases da fermentação, devidos ao desenvolvimento sobretudo de bactérias produtores das infecções e intoxicações alimentares. E o seringueiro das regiões afastadas tem que ingerir essas substâncias deterioradas se não quiser morrer à fome (SANTOS, 1980, p. 168). 32 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre Em contrapartida, o seringueiro também enganava o patrão. Ele misturava o látex com outros produtos e inseria metais e outros objetos no interior das pelas de borracha a fim de torná-las mais pesadas, além de negociar a borracha clandestinamente com o regatão, desviando parte da produção. Segundo Weinstein (1993, p. 47), “os seringueiros exerciam pressões, muitas vezes, com êxito, para limitar a exploração que sofriam”. Essa “trapaça” é entendida por muitos como uma prática de resistência à opressão (WEINSTEIN, 1993, p. 36) e não exatamente como um ato de “ilegalidade” como afirma Francisco Costa (2005, p. 83). Mas “a base da antijuridicidade entendida pelos seringalistas era a violação ao regulamento vigente nos seringais” (Idem, 2005, p. 83). No entanto, pesa o fato de os regulamentos serem “arbitrários” (Idem, 2005, p. 89). A arregimentação de mão-de-obra para os seringais aconteceu por meio de engodo. Os nordestinos foram induzidos a acreditar que obteriam riqueza fácil no Acre. Quando lá chegavam, eram mais uma vez enganados, pois os seringalistas usavam de fraudes contábeis e outros artifícios para deixá-los na condição de eternos devedores. De forma que o seringal era “o embrião do calvário a que milhares de trabalhadores nordestinos se submetem, ludibriados com a propaganda do enriquecimento fácil e da liberdade na Amazônia do jugo do latifúndio nordestino” (COSTA, 2005, p. 79) [grifo nosso]. A violência no seringal O seringal abrigava “a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado [sic] egoísmo” (CUNHA, 2000, p. 127). Um "regime predatório da força de trabalho” (SANTOS, 1980, p. 308). Era uma unidade produtiva que apresentava uma “estrutura aberrante” (SOUZA, 1977, p. 100), palco de “grandes monstruosidades” (Idem, 1977, p. 100) e de “uma das formas mais odiosas de exploração do trabalho” (TEIXEIRA, 2009, p. 40). Resumindo: ali era um espaço onde “o regime de vida econômica era dolorosamente destrutivo” (BENCHIMOL, 1977, p. 197). O trabalho livre aqui é péssimo, e é um verdadeiro monopólio dos donos de fábrica de seringa [...] um homem livre vive em verdadeira escravidão, não tendo liberdade de vender, e nem comprar senão ao patrão [...] são cousas sabidas e passadas à vista: há muito espancamento, e ferimentos e tentativas de morte, e não há punição [...] não há tratamento nas doenças, vivem e morrem ao acaso, como as bestas; a humanidade só tem a perder com este andar de cousas; e a sociedade brasileira só tem a perder com estas desordens e tropelias. (LABRE, 1872, p. 45). Uma história de privações e de brutalidade, contra a terra e o homem, contra a selva exuberante e o homem ínfimo, minimizando não pela mata, mas pela exploração violenta que o tornava pouco mais do que um animal de carga. A bestialização das 33 Eduardo de Araújo Carneiro relações de trabalho na sovina economia do seringal repunha tão tardiamente, ainda, as práticas e os débitos acumulados de uma economia predatória e de uma sociedade desumanizada. (MARTINS, José. Prefácio. In: TEIXEIRA, 2009, p. 9) [grifo nosso]. O seringal era uma verdadeira “prisão física” (SANTOS, 1980, p. 114). Os seringueiros eram como uma "máquina de fabricar borracha" (TOCANTINS, 2001, p. 199, Vol. I). Eles “trabalhavam para se escravizar” (CUNHA, 2000: 152), tornando-se uma espécie de “escravo econômico e moral do patrão” (SOUZA, 1977, p. 100). “Perdia quase totalmente a liberdade de usar o que ganhava” (SANTOS, 1980, p. 158). Ali era brasileiro explorando brasileiro. Acriano contra acriano. “Hoje, podemos conhecer partes dos horrores cometidos nos confins dos seringais, consultando os anais do Tribunal de Justiça de Manaus, repletos de processos tardios contra seringalistas bárbaros e criminosos” (SOUZA, 1977, p. 101) [grifo nosso]. Para fixar o seringueiro ao seringal até a completa invalidez (cf. SILVA, 1982, p. 20), valia-se de “abusivos mecanismos de extorsão e manipulação de preços dos produtos de consumo” (TEIXEIRA, 2009, p. 55), além de “castigos corporais [...] e inusitada violência” (TEIXEIRA, 2009, p. 110). A segurança da espoliação era garantida pelo regime policial dos seringais, nos quais sentinelas armadas montavam guarda para impedir a fuga dos seringueiros em débito. Segundo Euclides da Cunha (1922, p. 35), havia um acordo entre os seringalistas de não aceitar seringueiros fugidos de outro seringal por conta da dívida e “havia pesadas multas aos patrões recalcitrantes”. A corrupção política e judiciária A corrupção política em solo hoje considerado acriano se deu antes mesmo de oficializada a anexação. Quando a região passou a ser administrada arbitrariamente pelo governo do Amazonas a partir de 1852, como parte do município de Floriano Peixoto, a população local se tornou refém de uma ordem política autoritária na qual o crime era algo institucionalizado. José Carvalho (2002) retrata a falta de moralidade que reinava no aparelho público na comarca de Floriano Peixoto. Segundo ele, “a grande receita do município, orçada sempre em 600 contos de Réis anuais, desaparecia como por encanto, sem que no lugar ficasse realizado o menor melhoramento” (CARVALHO, 2002, p. 18). Tal situação também foi denunciada pelo ministro boliviano Paravicini: 34 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre Durante la administración brasileña en el territorio del Acre no se creó ni una escuela, no se construyó ningún edificio para el culto y el Estado del Amazonas recibía más de 5 mil contos de impuestos sobre la goma y el Tesoro Federal recibía el doble de esta cantidad, aparte de lo que recibía por los impuestos sobre los derechos de importación de la mercadería que ingresaba al territorio (apud RIBERA, 1997, p. 55). Após a elevação do Acre à categoria de Território Federal do Brasil em 1904, a corrupção se fez presente desde as primeiras administrações. Criado sob a égide da inconstitucionalidade, o Território foi inicialmente dividido em três departamentos (Alto-Juruá, Alto-Purus e Alto-Acre) e administrado por prefeitos. Todos indicados pelo governo federal sem qualquer consulta à população. Tão logo assumiam o poder público, os prefeitos procuravam firmar alianças com os principais “coronéis de barranco” da região, que eram “detentores de influência na política local, na estrutura da polícia, do Poder Judiciário e, principalmente, na economia” (COSTA, 2005, p. 19). Em muitos casos, inclusive, para satisfazer os “coronéis”, o governo federal nomeava “ex-revolucionários” da Questão do Acre. A política no nascente Acre reproduzia o que havia de pior na Primeira República: oligarquia, mandonismo, corrupção, nepotismo, impunidade, desmandos, peculato e pelo atrelamento da polícia e do Poder Judiciário ao Poder Executivo, etc. Uma quadrilha que revestida de autoridade federal, invadiu o Acre desde que este ficou pertencendo ao Brasil. Compunham-na perigosos assassinos de diversas origens, ladrões de todos os matizes, jogadores e libertinos, na sua grande parte oriundos da falange de degradados sociais que o Governo da União exportara para aquela infeliz terra (Acre) [...] Reforçando esse bando de foragidos da justiça de diversos Estados, os Prefeitos nomeados levavam sempre uma carga de parentes e de protegidos com o fim único e louvável de fazerem economias (CASTRO, 2002, p. 34-35). Os prefeitos “enfeixavam em suas mãos poderes ditatoriais” (COSTA, 2005, p. 231). O autoritarismo parecia ser compatível com a árdua missão incumbida a eles: garantir o envio dos 23% de impostos cobrados sobre a exportação da borracha para a capital brasileira. Para tanto, “realizavam aquele tipo monstruoso de governo marcial [...] porfiaram em violência” (COSTA, 2005, p. 234). Em troca dos bons serviços prestados à pátria, eles eram aposentados com soldo dobrado. Às vezes, o povo nem tinha conhecimento quando os mandatários entravam e saiam do cargo e nem sabia da "ladroeira desenfreada que se praticava no Acre" (CASTRO, 2002, p. 39). “A população assistia bestializada à encenação do domínio federal, submetida às baionetas que esteavam o despotismo prefeitural” (Idem, 2002, p. 234). 35 Eduardo de Araújo Carneiro As questões judiciais no território do Acre seguiam o mesmo “ritmo”. As questões eram resolvidas, como afirma Craveiro Costa (2005, p. 309), na base do “rifle”. Nos seringais, o patrão era o juiz de todos os pleitos, era o “déspota [...] para decidir sobre a vida e a morte dos que vivem sob seu jugo” (LIMA, 1998, p. 88). Ele julgava “ao seu livre-arbítrio, o que era justo ou não” (TEIXEIRA, 2009, p. 128). Fora dos seringais, “a magistratura acreana aboletouse comodamente na vitalidade de seus empregos, para fazer a politicagem da terra” (COSTA, 2005, p. 310). Não havia independência entre o Poder Executivo e o Judiciário. Quem perdia com tudo isso era o seringueiro, que ao disputar alguma causa contra o patrão, “judiciariamente, tudo ficava paralisado durante meses e anos” (COSTA, 2005, p. 310). Como exemplo do caos que reinava no Poder Executivo e no Judiciário, basta lembrar que o Cel. Plácido de Castro foi assassinado pelo subdelegado de polícia do Departamento do AltoAcre a mando do então prefeito Gabino Besouro. Pelo critério de alguns prefeitos, os juízes lhes eram inteiramente subordinados. E se juntarmos a tudo isso as ausências constantes e prolongadas dos juízes preparadores e promotores públicos, a incompetência dos substitutos leigos, a corrupção a que raros magistrados escapavam, teremos no quadro as verdadeiras cores. A justiça dada ao Território do Acre era uma completa burla: falha nos seus salutares efeitos, quando não era meio de juízes inescrupulosos amatularem-se com a parte mais dinheirosa [...] a administração era o arbítrio dos prefeitos, a prepotência, o despotismo, ao lado do mais lastimável esquecimento das necessidades locais [...] A justiça era uma vergonha e uma pomposa inutilidade. (COSTA, 2005, p. 244) [grifo nosso]. Não podemos esquecer que a maioria dos primeiros prefeitos indicados para assumir a Prefeitura do Departamento do Alto Acre era ex-combatentes da “Questão do Acre”. Citemos alguns: João de Oliveira Rola (março/1906 – julho/1906), Plácido de Castro (julho/1906 março/1907), Antonio Antunes de Alencar (outubro/1907 – janeiro/1908), Deocleciano Coelho De Souza (dezembro/1909 – junho/1910 e janeiro/1911 – janeiro/1915), Epaminondas Jácome (dezembro/1910 – janeiro de 1911), Joaquim Victor da Silva (janeiro/2015). A exploração predatória da floresta A relação que os migrantes desenvolveram com a natureza amazônica era tão brutal quanto aquela em que eles mantiveram entre si. A maioria não migrou para a região pensando em ficar. Queriam enriquecer e voltar para suas respectivas terras natais. É de se supor, portanto, que o vínculo de pertencimento foi uma construção posterior. Inicialmente, não houve preocupação alguma com a preservação do caucho ou da seringueira. A extração era tão 36 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre predatória que a árvore ficava inutilizada, obrigando o migrante a abandonar a área em busca de outra com maior densidade de caucho ou seringueira explorável. A técnica de extração que prevaleceu nos primeiros anos de produção da borracha foi a do “arrocho”. O seringueiro tentava obter o máximo de “leite” gomífero possível em um menor prazo de tempo. Isso era motivado ora pela pressão do seringalista, ora pela própria vontade de saudar a dívida no “barracão”. Como não possuíam instrumentos de trabalho adequados e nem tinham compromisso ou apego àquele território, eles feriam a árvore até que ela morresse. Não foi à toa que Bastos (1958, p. 14) afirma que nessa época o Acre era “um acampamento”. Na sofreguidão de maior rendimento, os seringueiros empregaram um processo grosseiro que chamavam de arrocho e em apertar com um cipó a árvore, quase ao résdo-chão, de modo que se forme uma orla capaz de dar assento a uma goteira circular de barro, feita ali mesmo pela mão do seringueiro. Debaixo desta goteira colocam uma panela ou outra qualquer vasilha, que possa receber bastante líquido; feito isto golpeiam toda a árvore e por todos os lados, de modo que ela se esgota em um dia (REIS, 1953, p. 57). A ânsia de aumentar a produtividade levava-o, às vezes, a processos destrutivos de extração, como o chamado arrocho, pelo qual a árvore era amarrada por cipós, bem próximo ao chão, e golpeada várias vezes, a fim de que o leite se derramasse em profusão na vasilha receptora (MIRANDA NETO, 1986, p. 36) [grifo nosso]. O livro As heveas ou seringueiras: informações, de João Rodrigues, publicado no Rio de Janeiro em 1900, detalha melhor esse processo. Segundo o autor, a extração predatória foi a causa do fechamento de vários seringais na Amazônia. Apesar de o método ter sido proibido em fins do século XIX, o mesmo continuava a ser praticado livremente, uma vez que a ação judicial não se fazia presente nos seringais. Com o tempo, quando a dificuldade de abrir novos seringais aumentou ao ponto de virar um problema e o reaproveitamento das seringueiras se tornou uma necessidade, os próprios seringalistas facilitaram a normatização do corte da seringueira. Como afirma o próprio Plácido de Castro (1906-7, In: TJAC, 2003, p. 16, Vol. 2), “a exploração bárbara e vampira da seringueira até hoje seguida em toda a Amazônia, exploração revoltante e iniqua que em pouco tempo reduz e transforma ricos seringais em abandonadas florestas”. Carone (1978, p. 66-7) também explica que “a incisão diária da hevea, no ponto mais lato alcançado pelo machado do trabalhador até a parte inferior da árvore, faz com que a seringueira se esgote em três meses e seja necessário que ele mude de estrada”. Isso acontecia por causa da ambição de alguns seringueiros que, para produzirem mais do que o habitual, feriam a árvore com uma frequência tal que não permitia a cicatrização do ferimento. O uso da “machadinha” e da “faca asiática” foi tentativa de preservar a árvore 37 Eduardo de Araújo Carneiro mesmo após incisivos cortes. Mas a utilização ou não desses instrumentos menos agressivos não recebia fiscalização de forma sistemática. Além do mais, a preocupação não era com a árvore em si, mas com o prolongamento da utilização econômica dela. Os machados dos seringueiros amazônicos faziam aqui uma obra vandálica de destruição dilacerando as seringueiras [...] É que no Amazonas continuava a campear a obra degradadora da economia destrutiva, em consequência da qual o homem procurava prover a sua vida à custa da vida da seringueira (LIMA, 1975, p. 78) [grifo nosso]. A ocupação da Amazônia brasileira em fins do século XIX se deu por meio de “métodos predatórios de exploração dos seringais” (SANTOS, 1980, p. 69). A exploração obrigava ao constante deslocamento em busca de áreas mais produtivas. E essa foi uma das causas pelas quais os migrantes invadiram as terras bolivianas. Não fulminante, porque não abate, mas perniciosa, porque danifica, é a intervenção do nordestino nos recessos dos seringais. Não mais a derrubada da árvore prodigiosa do leite áureo, mas o seu trucidamento [...] investem os seringueiros furiosamente contra a hevea brasiliensis. Era a arremetida agressiva contra ela, com golpes de machadinha dilaceradora [...] era, positivamente, obra cega da atividade econômica destrutiva, com que se preparava a depreciação, a decadência, o esgotamento dos seringais (Idem, 1980, p. 74) [grifo nosso]. A banalização da prostituição A outra “patologia” tem a ver com a mercantilização da mulher. Pelo fato de os migrantes nordestinos serem predominantemente homens, a vida sexual do migrante foi prejudicada. Os homens não traziam suas esposas, porque eram iludidos com a ideia de riqueza fácil e rápida. Os agenciadores priorizavam a mão-de-obra masculina, cuja missão era voltada 100% para a extração do látex. Foi somente com a decadência da economia gomífera que a constituição de famílias nos seringais passou a ser correntes. Antes de 1912, ainda eram frequentes a prática do homossexualismo (BENCHIMOL, 1977, p. 189), o estupro de indígenas, a zooerastia (TOCANTINS, 2001, p. 199, Vol. I) e a compra de meretrizes. E a presença de mulher nos seringais, no sistema de exploração sem freios que envolvia todo o negócio da produção da borracha, passou a constituir mais uma página do sistema. Os seringueiros, no seu infortúnio, encomendavam aos patrões e, estes às casas aviadoras, mulheres, como encomendavam gêneros alimentícios, utensílios, roupas, etc. Verdadeiras mercadorias, elas entravam nas contas, escrituradas pelos guarda-livros como quaisquer outros objetos de uso diário. (REIS, 1953, p. 123) [grifo nosso]. 38 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre Em Mulheres da Floresta uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945), Cristina Wolff diz que encontrou inúmeros pedidos de dispensa de proclamas nos processos judiciais que pesquisou. A hipótese levantada foi que o “noivo” havia adquirido a “noiva” por meio do rapto e, por isso, requeria urgência ao oficializar da união. Lacerda (2006, p. 237) confirma isso dizendo que a compra ou o rapto de mulheres no nordeste brasileiro para serem a revendidas nos seringais era comum. Como o deslocamento de mulheres nos seringais não era proibido, a comercialização delas era facilitada. Obviamente, como era um “produto de luxo”, apenas os poucos seringueiros que detinham saldo no barracão eram agraciados com a “mercadoria”. Em alguns casos, como afirma Nascimento (1998, p. 3): “o objetivo do seringalista era fazer com que o seringueiro não perdesse tempo no trato doméstico ou na procura de mulheres em lugares distantes, tendo o mesmo que dedicar-se ao corte da seringa, dando conta da produção”. Em resumo, a sociedade acreana teve como um de seus pilares fundadores a prática da mercantilização feminina e do tráfico de mulheres. Conflitos Armados A Revolução Acreana é motivo de orgulho para a maioria dos acrianos. Esse sentimento é fruto de uma longa exposição às inúmeras práticas simbólicas financiadas pelo Estado que legitima uma versão espetacular do evento. Pois, na verdade, não há nada de admirável em conflitos armados, deveríamos honrar e prestar homenagens àqueles que conseguem solucionar problemas sociais sem o uso da violência. O abuso da história é capaz de transformar a mortandade em cenas de heroísmo, o mórbido em algo louvável e o assassino em alguém digno de veneração cívica. Atribuem uma justificativa nobre, para explicar comportamentos patológicos. Transformam crimes em virtudes. A violência cometida nos campos de batalha aparece ideologizada como algo positivo. Comemorar uma guerra é fazer apologia ao gênio humano aplicado à destruição, pois ela é um desvio patológico nas relações sociais” (MAGNOLI, 2013, p. 16). Todos os líderes da chamada “Revolução Acreana” estavam ligados à economia da borracha, a maioria deles eram grandes seringalistas. Como afirma o economista Roberto Santos (1980, p. 158), os principais comerciantes locais eram aliados aos interesses do mercado externo. A história foi escrita para dissimular a “defesa da propriedade privada dos seringalistas 39 Eduardo de Araújo Carneiro e do monopólio da cobrança de impostos sobre a produção da borracha pelo governo do Amazonas” (CARNEIRO, 2012, p. 64). Em nossa opinião, não houve nada de louvável na ofensiva militar protagonizada pelos migrantes brasileiros em território boliviano. Não há justificativas para que o ato de tirar intencionalmente a vida de outrem vire motivo de aplausos ou comemorações. Devemos parar de apreciar o fenômeno bélico a partir de sua aparente “beleza” epopeica e passar a apontar a essência desventurosa dele. Em uma guerra não há vencedores, pois nela todos se tornam estúpidos. A utilização da arma de fogo com o fim de solucionar conflitos sociais deveria ser denunciada, sem qualquer manifestação de apreço, independente de motivos. É nela em que os instintos mais animalescos e os mais mesquinhos apetites humanos são expostos à consagração da história. A história militar seria, então, a história da barbárie humana em que quase sempre o egoísmo humano é incrivelmente beatificado (CARNEIRO, 2012, p. 57). Conclusão Com tudo que foi dito, ficou claro que o período de formação histórica do Acre está longe da representação “triunfalista” elaborada pela narrativa epopeica. Vários comportamentos patológicos foram identificados. O egoísmo, a desonestidade e ganância foram sentimentos muito mais fortes do que o do amor, honestidade e até mesmo o do patriotismo. Portanto, a narrativa epopeica deve ser estudada no campo literário, visto que, no da história, a realidade foi muito mais cruenta do que se possa imaginar. O fato de essas “patologias” não figurarem na memória coletiva não significa que elas não tenham acontecido. Pelo contrário, só apontam para o fato de que a história epopeica foi um instrumento empregado para silenciá-las. A ideia de epopeia exclui a possibilidade de uma discussão mais honesta dos acontecimentos, pois os “heróis” descritos por ela não estão no campo da história e sim no da literatura. Quando tiramos os personagens do campo literário e trazemos para o da história, os vícios, os interesses e as patologias aparecem, fazendo cair por terra qualquer visão romântica sobre eles. Referências BASTOS, Abguar. A conquista acreana. Rio de Janeiro: SPVEA, 1958. BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Manaus: Editora Umberto Calderato, 1977. 40 O capitalismo na Amazônia em fins do século XIX: as patologias sociais na formação histórica do Acre BRANCO, J. Brandão Castelo. O Gentio Acriano. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 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(Lucia Helena de Oliveira Cunha, Ordens e Desordens Socioambientais: saberes tradicionais em dinâmicas pesqueiras da costa paranaense, 2000). Introdução O marco da emergência, no plano político da questão ecológica no Brasil, é a década de 1970, quando se articula uma série de movimentos sociais, dentre os quais o ecológico. Observa-se, nesse período, uma crescente participação desses movimentos na cena política, sobretudo, criticando as formas vigentes de produção e do modo de vida que incidiam de forma decisiva na degradação ambiental. Seu surgimento, no país, tem um contexto muito específico. O período de ditadura impôs-se de forma intensa sobre os movimentos sociais no país, além da construção de um regime autoritário e desenvolvimentista que foi responsável por um de seus momentos de maior desenvolvimento industrial, à custa de um extremo desrespeito à natureza. É nesse contexto que surge a preocupação ecológica, posteriormente o movimento, que passa a ter projeção internacional e, desta forma, a pressionar diversas instituições financeiras públicas e privadas a colocarem exigências ambientais para realização de investimentos. Esse processo influenciou a criação no país de Diversas instituições para gerir o meio ambiente, a fim de que os ansiados investimentos pudessem aqui aportar. Diga-se de passagem que estas instituições incluem, nos seus quadros, técnicos que se preocupação efetivamente com as  Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Professor da Universidade Federal do Acre (UFAC). 43 Emerson Vieira Cavalcante, Márcio Roberto Vieira Cavalcante condições de vida, porém a lógica destas instituições é determinada pela política global de atração de investimentos e não pelo valor intrínseco da questão ambiental1. O que é interessante pontuar, na fala de Gonçalves, é que nesse momento de emergência da preocupação ecológica vão surgir diferentes lugares sociais, alguns legítimos, outros nem tanto, de onde vão emanar discursos e práticas contraditórias sobre o assunto. Especificamente no que diz respeito à atuação do Estado, devido às novas exigências das instituições financeiras e fomento para o desenvolvimento, passa a adotar medidas de caráter preservacionista no país. Esse entendimento é importantíssimo para pensarmos os usos sociais e oficiais da questão ecológica no cenário político nacional, onde esta aparece, além das reivindicações legítimas de alguns setores da sociedade civil, como moeda de troca nas negociações sobre desenvolvimento nas cúpulas políticas no âmbito do Estado. Em suma, esse processo traduz-se, na Amazônia, em período recente como um processo de “ecologização da política”, ou, em outros termos, “Ambientalização da Geopolítica”, essa é a novidade que pode ser levantada nesse modelo de desenvolvimento para Amazônia, de que falamos anteriormente, e que nasce, em grande medida, da irônica constatação por parte dos movimentos ambientalistas e dos promotores do desenvolvimento no país, e na Amazônia, de que: “Devastamos mais da metade de nosso país pensando que era preciso deixar a natureza para entrar na história; mas eis que esta última com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos agora como passaporte justamente a natureza”2. A inserção da variável meio ambiente, nas propostas de desenvolvimento regional, vem, de certa forma, renovar os discursos e as práticas geopolíticas na Amazônia. Essa nova relação entre geopolítica e meio ambiente, ou de forma mais incisiva, Ambientalização da Geopolítica 3, acontece na medida em que o meio ambiente se converte em um elemento da geopolítica e, desta forma, torna-se uma lente significativa das relações internacionais e ações territoriais na região. Essa progressiva importância do meio ambiente acontece e justifica-se a partir de diferentes motivos: os conhecidos impactos ambientais que as políticas de desenvolvimento para a Amazônia vêm, historicamente, originando, a nobre tentativa de mudar a conflituosa relação entre crescimento econômico e degradação ambiental, a significativa capacidade de mobilização social que os assuntos da ecologia vêm tendo na região e no país, e, sobretudo a 1 GONÇALVES, 1989, p. 15. Eduardo Viveiros de Castro, “Prefácio”, in R, Arnt e S. Schwartzman, 2000. p. 13. 3 O conceito de Ambientalização da Geopolítica é proposta por Joan Nogué Font e Joan Vicente Rufí. Segundo os autores, essa nova relação entre geopolítica e meio ambiente tem que ser analisada e compreendida a partir de aspectos científicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. 2 44 A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no acre significativa importância econômica atribuída aos recursos naturais nesse novo momento de acumulação do capital e de inserção da região na economia-mundo (FONTE & RUFÍ, 2006). Esse processo de ambientalização não se restringiu apenas ao campo de atuação do poder voltado à estruturação do espaço amazônico. Segundo Lopes (2006), é um processo histórico que implica, simultaneamente, em transformações no Estado e no comportamento das pessoas no trabalho, na vida cotidiana e no lazer. O autor afirma que esse processo está relacionado à construção de uma nova questão social, uma nova questão pública, na qual o aspecto ambiental constitui-se como nova fonte de legitimação e de argumentação nas diversas questões. Ou como mostra Gonçalves (2001), a construção e “manifestação no espaço público por direitos daqueles que antes viviam sob a lógica do favor” (GONÇALVES, 2001, p. 128). Por outro lado, os promotores do desenvolvimento na Amazônia, percebendo o campo fértil para formulação de novas estratégias de incorporação econômica da região, passam a atuar em uma outra escala de intervenção. O que percebemos é que a coalizão esdrúxula de que fala Becker (1986), onde se relacionam os interesses legítimos daqueles que antes viviam na lógica do favor, com os interesses geopolíticos de duas frentes complementares, a energética e a biotecnológica, continua em vigência na Amazônia. Ambos os agentes falam em nome da conservação da natureza e do desenvolvimento sustentável, confirmando a tese de Gonçalves (1989), quando afirma que há vários lugares sociais de onde emanam tal discurso, sendo que é materializado por práticas contraditórias e conflituosas. O interessante é perceber que um desses lugares de onde o discurso de desenvolvimento com sustentabilidade emana atualmente na/para a Amazônia é o Estado e setores privados. Essa reflexão possibilita-nos o entendimento de que a questão ambiental, na Amazônia, longe de ser algo definido, é uma noção socialmente construída que vêm servindo para traduzir uma significativa dinâmica social na região, e que é utilizada para mobilização da sociedade, opinião pública e de setores privados em relação às diversas intervenções na região. Gênese das unidades de conservação A proposta de Unidades de Conservação de Uso Direto está vinculada a movimentos de trabalhadores rurais do Estado. Movimento que contrastava com a perspectiva de desenvolvimento para Amazônia, idealizada pelo regime militar em um período conhecido como “milagre econômico” (1967-1973), período marcado de um lado pela prosperidade e desenvolvimento da economia nacional, e de outro pelas transformações, devassamentos e 45 Emerson Vieira Cavalcante, Márcio Roberto Vieira Cavalcante tensões sociais na região amazônica nas décadas posteriores a 1964. Sua característica principal foi a ênfase dada pelo governo brasileiro em ampliar a base do sistema industrial, e consequentemente, aumentar o grau de inserção da economia brasileira no sistema de divisão internacional do trabalho (FURTADO, 1981, p. 69). Na região amazônica a proposta passava pela perspectiva de integrar a região, vista na época como um grande “vazio demográfico“, ao resto da economia nacional. Os governos militares partiam da crença que para modernizar a região era necessário desarticular a economia gomífera e todo o sistema seringal que havia sustentado a região durante décadas. Esse processo passava pela (re) ocupação rápida da região por investidores oriundos de regiões mais desenvolvidas do país e de migrantes nacionais e/ou estrangeiros que tinham a perspectiva, de “ocupar” e “desenvolver” a região, retirando-a do “atraso” que se encontrava. Processo que não levou em consideração um histórico de ocupação ocorrido na região desde início do século XIX, nem muito menos a ocupação que se estabelecera na região por pelo menos algumas centenas de anos. A existência de comunidades de seringueiros e índios que habitam a floresta e que mantinham com ela vínculos profundos, tirando seu sustento e o de suas famílias não foi levada em consideração, enquanto uma forma de ocupação tradicional da região. A atividade econômica proposta para o Acre, como parâmetro de desenvolvimento na década de 1970, foi a agropecuária em substituição à “anacrônica” economia extrativista. Essa é uma característica da proposta de desenvolvimento que mais teve implicações em níveis ambientais, sociais, econômicos, culturais e político. Tudo isso por sua característica de concentração fundiária, degradação ambiental, esvaziamento de territórios e dispensa de mãode-obra. Essa condição socioeconômica instituída na região se reflete, ainda hoje, duramente no meio-físico-natural, pois a devastação ocasionada pela expansão da atividade pecuária no Acre pode ser sentida através da erosão acelerada de solos que passam a não servir nem para pastos, lixiviação, alteração do clima, desaparecimento das espécies da flora e da fauna. Sem falar das implicações culturais a que essa atividade nos remete, tendo em vista que, populações inteiras de índios foram sendo empurradas, cada vez mais, para os “fundos dos seringais” e os seringueiros passaram a sofrer um intenso processo de tentativa de desarticulação total de suas formas de viver e morar, sendo gradativamente expulsas de suas terras e colocações de seringa e obrigadas a se deslocarem para áreas urbanas das cidades mais próximas e, posteriormente, para Rio Branco, a capital do Estado do Acre ou, em alguns casos, para os seringais nativos da Bolívia. 46 A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no acre Frente à proposta de desenvolvimento em curso naquele contexto, em que, a agropecuária implicava em devastar imensas áreas de floresta, que seringueiros e outros trabalhadores rurais se organizaram em movimentos de resistência que articulavam a luta contra as derrubadas da floresta que representava, em primeira e última instância, a tentativa de preservarem seus tradicionais modos de vida, constituídos historicamente em mais de um século de experiências sociais no interior da mesma. Consolidaram-se como movimentos de resistência de âmbito plural e com estratégias que encontravam eco nas questões concretas e coletivas de seus cotidianos. Lutavam “... não só para resistir contra os que matam e desmatam, mas por uma determinada forma de existência, um determinado modo de vida e de produção, por modos diferenciados de sentir, agir e pensar” (GONÇALVES, 2001, p. 130). Movimentos esses que produziram uma nova proposta de uso e posse da terra na Amazônia ocidental brasileira, em sua parte mais meridional, redefinindo, ainda, a injunção cultura-natureza através da proposta de reforma agrária alternativa para a região, onde a dimensão cultural dos habitantes da floresta estava inscrita como fundamento principal. Por isso a recusa à proposta de reforma agrária do INCRA, dos módulos rurais de 50 a 100 hectares, por não levar em consideração que é necessário para condição seringueira uma área de terra de pelos menos de 300 a 500 hectares de floresta como forma de tornar possível sua reprodução material e, sobretudo, cultural. A reforma agrária alternativa, proposta pelos seringueiros acrianos, ganha contornos mais bem definidos nas palavras de Chico Mendes, em 1987, “a reforma agrária que nós defendemos para a região amazônica é a criação da reserva extrativista, uma forma inteligente de garantir a preservação da floresta, de torná-la economicamente viável...” (boletim do Partido Verde – Dezembro de 1987). Em seu discurso, está explícita a proposta de desenvolvimento que estabelecia o equilíbrio e a preservação ambiental com equidade social, pois segundo ele “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”. Segundo outra liderança do movimento dos trabalhadores rurais, Raimundo Barros, essa é a “forma, que nós poderemos evitar a continuidade da vinda do homem da floresta pra dentro das periferias da cidade e garantir também que essa nossa floresta seja preservada, porque a única pessoa que preserva a floresta, que zela pela floresta é o seringueiro”. Clarifica-se em suas falas o que Diegues chama de estratégia para preservação da natureza que passa, fundamentalmente, pela perspectiva de preservação (conservação e permanência) das culturas (sociodiversidade), que se constituíram enquanto habitantes da floresta; e nesse processo estabeleceram vínculos e formas 47 Emerson Vieira Cavalcante, Márcio Roberto Vieira Cavalcante equilibradas de se relacionar com a natureza na qual habitam, culturalizando-a (DIEGUES, 1994). A implementação dessa proposta no Acre pode ser entendida como uma alternativa de desenvolvimento na medida em que promoveria uma valorização da floresta baseada no entendimento de que utilizá-la de forma sustentável poderá significar maior riqueza e bem estar social, do que destruí-la (ALLEGRETTI, 1988) Este modelo de desenvolvimento, preconizado e reivindicado pelos movimentos sociais, se constitui como uma alternativa a proposta de desenvolvimento idealizada pelo regime militar: proposta de (re) ocupação fundamentada na bovinização da região amazônica. É, em oposição à pecuária e às suas desastrosas implicações socioeconômicas e culturais que os habitantes da floresta vão apontar para uma alternativa de desenvolvimento permeada pelo equilíbrio do duo cultura-natureza, constituído, historicamente, no interior da floresta. Esse espaço que foi constituído, fundamentalmente, enquanto negação de um modelo pautado na pecuarização, como modelo de refúgio da afirmação da identidade seringueira vinculada às atividades tradicionais como o extrativismo, ver-se na última década, em uma clara inversão de tendências, sendo ocupado pela pecuária. Percebe-se entre os moradores da Reserva Extrativista Chico Mendes uma ênfase cada vez maior dada a atividade pecuária. A necessidade de sobreviver na floresta e a busca de atividades lucrativas que resolvam essa necessidade fazem com que esses sujeitos contrariem o discurso de Desenvolvimento Sustentável, que elege a unidade de conservação, em questão, como vitrine de sustentabilidade, e optem por uma tendência baseada no abandono de atividades tradicionais como a extração do látex; e a introdução de novas alternativas econômicas, em que ganha destaque a agricultura comercial e a pecuária. Pluralidade jurídica e a questão social No Acre Contemporâneo, as fissuras entre ordenamento estatal e a sociedade são marcantes. A herança de um modo autoritário de governar ainda, em grande parte, rege as relações do Estado com as classes populares. O que ocasiona significativos conflitos entre o direito estatal e extra-estatal. No entanto, percebeu-se, no Estado do Acre, com o advento dos já mencionados processos de resistência, que não existe somente a norma estatal. Evidencia-se com tais movimentos que não é dado ao Estado, unicamente, o poder de criar e sancionar a norma estatal. Percebeu-se com os referidos movimentos que se criou uma 48 A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no acre modalidade alternativa de posse do território que nasce, não do ordenamento jurídico clássico, mas dos conflitos de terra que já foram mencionados. Evidencia-se a partir de uma leitura da História recente do Acre que passa a existir, após a década de 1970, uma significativa pluralidade de ordenamentos jurídicos, dentre as quais a posse alternativa das populações tradicionais no Estado se enquadram perfeitamente. Para além de uma concepção unitária do fenômeno de posse, instituída na legislação brasileira em vigor atualmente, se constrói uma forma alternativa de posse e uso do território. Forma essa, que com alguma demora, vai ser reconhecida e respeitada pelo governo do Estado e que passa a fazer parte da legislação em vigor. O etnocentrismo jurídico, que considera a “cultura jurídica” do governo federal como a medida de todas as coisas perde sua validade aqui no Estado nas últimas décadas do século XX. Evidencia-se a partir desse período que as demandas e prioridades das classes populares vão se efetivar no Estado e se tornar legislação, critério do direito estatal. A noção de Direito Difuso, da qual o processo parte das demandas, prioridades e reivindicações da população e não do Estado se materializa no Estado Acre. O que a História de nosso Estado mostra é que as formas de ser, viver e conviver dos diferentes sujeitos, conhecidos como populações tradicionais, construiu formas de uso e posse do território bem específicas e que a legislação teve que reconhecer e respeitar, tanto que atualmente, tais formas fazem parte dos critérios da legislação vigente em nosso Estado. A posse alternativa das populações tradicionais A proposta de posse, que nasce dos movimentos de resistência da década de 1970, surge para garantir a manutenção dos modos de vida de uma diversidade de sujeitos sociais que habitam a floresta acreana. As diversas unidades de conservação de uso direto do Estado são colocadas como proposta, como alternativa para o processo crescente de diáspora que essas populações eram obrigadas a fazer, tanto para as cidades, quanto para os seringais da Bolívia. Alternativa ao processo de substituição da floresta pela atividade pecuária, entre outras. Fica claro em uma leitura da História acreana que tais Unidades de Conservação vêm para garantir a manutenção dos modos de vida, tem em suma, para além das normas e critérios do ordenamento jurídico clássico, uma função social bem definida. Essa nova modalidade de posse vai trabalhar com critérios bem diferentes daqueles estabelecidos pela legislação vigente anteriormente a tal processo. A Lei que regula os direitos 49 Emerson Vieira Cavalcante, Márcio Roberto Vieira Cavalcante e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola de 1964, uma legislação extremamente antiquada e pouco adequada às demandas sociais, vai ter que se reformular diante das propostas da sociedade que habitava a floresta. Segundo o Estatuto da Terra, uma lei promulgada em 1964, “a Reforma Agrária tinha que ser o conjunto de medidas que visavam a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade” 4. A nova modalidade de posse inaugurada por seringueiros, índios, castanheiros, entre outros, vem para atender tais critérios de justiça social contidos na lei. No entanto, não trabalhavam com a noção de aumento de produtividade, noção que faz parte da realidade de camponeses de outras regiões do país. Mas sim para garantir a manutenção dos modos de vida, só bem recentemente que se tem a preocupação de aumentar a produtividade de tais propriedades, já que a posse já tinha sido garantida, no início a preocupação era em garantir a manutenção do uso, que era centenário, e consequentemente a posse. Entende-se por Política Agrícola o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno emprego, seja no de harmonizá-las com o processo de industrialização do país5. A proposta inaugurada pelas ditas populações tradicionais, que nascem de suas próprias manifestações, tinha como foco principal não as atividades agropecuárias como estavam contidas na lei. Mas, mas fundamentalmente, visavam fomentar uma posse e uso voltadas para atividades extrativistas, um uso sustentável da floresta amazônica. O único artigo do Estatuto da terra que se enquadra perfeitamente às demandas e necessidades da população acreana que vivia nas florestas é o que propõe “assegura a conservação dos recursos naturais”6. Já que tal proposta de uso e posse que nasce no seio dos movimentos de resistência dos povos da floresta tem um enfoque nitidamente ecológico, ambientalmente correto. Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se: I - "Imóvel Rural", o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada; 4 Estatuto da Terra, 1964 – Artigo Primeiro, § 1º. Ver: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/11376835/inciso-i-doartigo-4-da-lei-n-4504-de-30-de-novembro-de-1964. 5 Estatuto da Terra, 1964 –Artigo Primeiro, § 2º. 6 Estatuto da Terra, 1964 –Artigo Dois, § 1º 50 A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no acre II – “Propriedade Familiar”, o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros; III – “Módulo Rural”, a área fixada nos termos do inciso anterior; IV – “Minifúndio”, o imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da propriedade familiar; V – “Latifúndio”, o imóvel rural que:...7 O que é interessante notar é que nas definições de propriedades propostas pela lei, no caso o Estatuto da Terra, não vemos nenhuma adequação ao modelo que vai ser proposto pelos povos da floresta 20 anos depois. As propriedades que vão nascer no seio dos movimentos citados não se enquadram a nenhum tipo de definição contida na lei, ou seja, não chegam a ser imóveis rurais, propriedades familiares, módulos rurais, minifúndios ou latifúndios. No caso das Reservas Extrativistas, especificamente, vão ser propriedades sem título definitivo da terra, são territórios dados pela união, mas como forma de usufruto, sem uma titulação definitiva. São grandes propriedades de terra, em média 10 colocações de seringa, o que contabiliza mais o menos 1000 ha. Uma proposta que se opõe diametralmente a reforma agrária do INCRA na época, de 100 ha mais ou menos. Essa extensão territorial era necessária, já que se tinha em mente era a manutenção cultural desses povos e era necessária tal extensão. Para a posse agrária alternativa dos seringueiros, por exemplo, era a área que ocupavam para exploração do látex e para sua sobrevivência. Uma definição de tal modalidade de posse seria esta, que não estar presente na lei: é uma unidade de produção diversificada na qual se combinam atividades agrícolas, extrativistas, coletoras, com caça, pesca, criação de animais domésticos configurando um espaço cuja lógica não pode ser traduzida em linhas delimitadas rigidamente, portanto, fluida demais para estar presente em uma legislação da década de 1960. Art. 9º Dentre as terras públicas, terão prioridade, subordinando-se aos itens previstos nesta Lei, as seguintes: Citado por 3 I - as de propriedade da União, que não tenham outra destinação específica; Citado por 2 II - as reservadas pelo Poder Público para serviços ou obras de qualquer natureza, ressalvadas as pertinentes à segurança nacional, desde que o órgão competente considere sua utilização econômica compatível com a atividade principal, sob a forma de exploração agrícola; III - as devolutas da União, dos Estados e dos Municípios.8 Tais propriedades que se constituem como propriedade da União não enquadram a nenhum tipo de classificação presente na lei. São territórios de uso coletivo, com sua posse 7 8 Estatuto da Terra, 1964 –Artigo quarto. Estatuto da Terra, 1964 –Artigo Nono. 51 Emerson Vieira Cavalcante, Márcio Roberto Vieira Cavalcante datada, ou seja, um usufruto de 5º anos, que se baseia em uma significativa atividade familiar extremamente diversificada. Território, biodiversidade e saberes de populações tradicionais Na confluência dos reordenamentos jurídicos que vêm ocorrendo no país vemos se desenvolverem bem mais as pesquisas sobre os chamados “povos tradicionais”. Mais recentemente, têm sido valorizados os saberes sobre a natureza de grupos indígenas e comunidades tradicionais, preservação de ecossistemas e biodiversidade. Reconhecem esses saberes e as formas de manejo a eles pertinentes como fundamentais na preservação da biodiversidade. Tornou-se extremamente importante, para intervir na crise ecológica, conhecer práticas e representações de diferentes grupos, pois eles conseguiram, ao longo do tempo, elaborar um profundo conhecimento sobre os ecossistemas, conhecimento que lhes garantiu até hoje a reprodução de seu sistema social e cultural. Tudo isso que foi exposto faz com que a necessidade de formular leis e normas coadunadas com as demandas das sociedades seja grande. Temos um grande exemplo na Amazônia acreana de que as normas e regras previstas na legislação não levavam em conta algumas especificidades. É a partir das reivindicações e protestos da população que nasce uma legislação mais fluida e adequada as demandas do social. Essa nova legislação que nasce tem um papel importante na garantia de sustentabilidade e equilíbrio ecológico. Conclusão A pressão dos conhecidos “Povos da Floresta” pela criação e instituição das unidades de conservação de uso direto desenvolveu-se não apenas na luta pelo prevalecimento, mesmo a margem do direito estatal, da posse agrária ecológica, mas também pela adoção da proposta pelo ordenamento jurídico oficial. Tal fato faz com que surja com tal conquista das referidas populações uma espécie de pluralismo jurídico o que acaba levando ao nascimento de uma significativa forma de posse e uso do território, que teve de ser reconhecida e respeitada pelo Estado, e que hoje faz parte constitutiva do ordenamento territorial vigente. É necessário perceber, no entanto, que na região amazônica não basta fazer a reforma agrária nos moldes oficiais. É de fundamental importância levar em consideração a 52 A posse agrária alternativa e as unidades de conservação de uso direto no acre heterogeneidade da região em termos de fauna, flora, hidrografia, clima e sociodiversidade para que as políticas estatais não sejam equivocadas e errôneas. Referências ALLEGRETTI, MARY Helena. Reservas Extrativistas. Implementação de uma alternativa ao Desmatamento na Amazônia. Trabalho apresentado no Simpósio “Alternativas ao Desmatamento”, Belém-PA, 1988. BANCO MUNDIAL. Causas do Desmatamento da Amazônia Brasileira. 1. ed. 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O objetivo aqui é pontuar questões relevantes sobre a construção do imaginário da Amazônia brasileira, especificamente, no que se refere ao Acre. Constata-se em muitas narrativas literárias, históricas e também nos meios de comunicação a limitação de se pensar a Amazônia unicamente a partir de uma figura essencializada e homogênea, como as imagens dos indígenas ou dos seringueiros, por exemplo. O equívoco se encontra, uma vez que a construção desses atores sociais se vislumbra na relação com o ‘outro’ contrastante e não de forma isolada. Estudos preliminares, que se deram ainda no Mestrado em Letras realizado na Universidade Federal do Acre (UFAC) entre os anos de 2006 e 2008, apontavam que a região amazônica e seus habitantes são observados, na literatura, na história e no jornalismo, sob inúmeros estereótipos imagéticos e discursivos. Usa-se da estratégia da esteriotipização para caracterizar a Amazônia constantemente como exótica e misteriosa homogeneizando-a. Dessa forma, anulam-se as multiplicidades e diferenças individuais em nome de semelhanças de grupos. Segundo Francisco Foot Hardman (2009), a Amazônia é uma construção discursiva e sua representatividade é constituída a partir de um imaginário. Nesse sentido, a região está eivada de lugares-comuns, relatos e ficções, que validam seu topos geográfico como espaço de homogeneização. Ainda de acordo com o pesquisador, isso acontece nos locais onde a “história ainda não conseguiu fixar marcas simbolicamente eficazes, os cenários são descritos como de  Professora do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Acre (UFAC). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (UFAC). 54 Francielle Maria Modesto Mendes geografias selvagens, natureza bruta, populações errantes e dispersas” (HARDMAN, 2001: p. 297). Esses aspectos podem ser percebidos a partir da conformação discursiva presente desde os viajantes conquistadores – que por meio de suas crônicas apresentam um discurso fantasioso e transpõem para a região amazônica todo um imaginário europeu – e também pelos viajantes cientistas, que trazem o discurso da modernidade e instauram a dicotomia civilização versus barbárie. No caso dos escritores-viajantes, eles encontraram na natureza o repositório para suas demandas imaginárias. Neste artigo, aponta-se a relação do homem com a natureza amazônica como um dos aspectos influenciadores para que ele seja interpretado pelos estrangeiros como não civilizado e pitoresco. Os conceitos sobre a Amazônia são categorizados e estruturados a partir do olhar da narrativa e da temporalidade do colonizador. Ressalta-se que os europeus foram os primeiros viajantes a chegarem à região e que grande parte das impressões mantidas até o tempo presente é proveniente dos cronistas de viagens. Essas narrativas revestidas de um imaginário, de uma representação conferem à Amazônia um sentido alheio ao tempo efetivo de suas práticas sociais, ou seja, enxerga-se a região amazônica como uma categoria retórica, uma palavra abstrata que passa a ser categorizada de forma una e homogênea. Terra distante e habitada apenas por índios, ‘selva amedrontadora’, ‘inferno verde’, ‘paraíso tropical’, ‘Eldorado’. Várias são as nomenclaturas referentes à região, o que evidencia a visão limitadora que se tem dessa área e que o norte do Brasil é desconhecido para as demais regiões brasileiras. Não se pode pensar a região amazônica de forma linear, suprimindo-se os tempos diferenciados da floresta e o da cidade, bem como da gente que ali vive. Durante muito tempo, a história tradicional acompanhada do realismo naturalista tentou ‘apagar’ as diferenças de espaço de convivência, perdendo-se parte importante dos processos que compõem a formação social, política, econômica da Amazônia. Constata-se, aqui, a busca de se estabelecer um novo recorte epistemológico, uma reconfiguração sob o imaginário referente à Amazônia brasileira. Não se almeja apagar o campo de observação ou suprimir o já existente sobre essa temática, mas promover novas experiências sobre o narrado e o vivido na região. 55 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo A ideia é caminhar contra a corrente que vê a Amazônia como terra homogênea, sem perder de vista suas diferentes formas de vida, a pluralidade de seus habitantes que se constituem como sujeitos históricos, a partir de suas diversidades. Para tanto, faz-se a análise, no presente artigo, de trechos de matérias jornalísticas publicadas na imprensa acreana, com o objetivo de identificar o imaginário sustentado ao longo dos tempos. Sob o vértice do orientalismo O discurso a respeito da Amazônia, somado ao seu processo de ‘invenção’, é considerado como um recurso de superioridade. A relação de dominância existente a respeito da região amazônica é semelhante à estabelecida entre Ocidente e Oriente, como bem enfatizou Edward Said em seu Orientalismo. “A relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder de dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia” (SAID, 1990, p. 17). O que não era observado nem documentado pela Europa permanecia perdido até que fosse ‘descoberto’ pelos europeus. O mesmo se aplica a região amazônica constantemente fetichizada por não estar no centro dos interesses do Brasil. Se observarmos a Amazônia sob o vértice do conceito de orientalismo, será possível perceber que cabe à região palavras como atraso, degeneração, passividade. Termos estes também atribuídos ao Oriente pelo ocidente. A obra de Said questiona as relações Oriente/Ocidente e, sobretudo, pede um novo olhar para o Oriente sem os antolhos da hostilidade ou da condescendência. Assim sendo, aspectos semelhantes também devem ser pedidos quando se fala a respeito da região amazônica. O Orientalismo, de Said, está preocupado essencialmente com representações do chamado ‘outro’, e na construção das imagens do Oriente no Ocidente. Muitas vezes, estudos sobre histórias de viagens focalizam as maneiras estereotipadas pela qual uma cultura é percebida. A ideia em Orientalismo é romper com as feições que a tradição ocidental deu ao Oriente, tradições que são deformadas pelo medo, o preconceito e o sentimento de superioridade. Para o autor, o ideal seria não reforçar essas imagens e conceitos de que o (s) outro (s) são seres distantes e inferiores. O mesmo sentimento de superioridade é percebido nos relatos que os ‘outros’ têm da Amazônia. Para exemplificar a estranheza e o desconhecimento com o qual a região é percebida pelos estrangeiros, segue uma passagem do livro de Cristina Scheibe em que a pesquisadora comenta suas impressões a respeito de sua viagem ao extremo norte do Brasil: 56 Francielle Maria Modesto Mendes “Foi uma viagem no espaço e no tempo. Saí do Sul do Brasil, para um mundo completamente distante e estranho, muito fora dos padrões de nossa sociedade globalizada, urbanizada e higienizada” (SCHEIBE, 1999, p. 10). O mundo completamente distante, estranho, fora dos padrões globalizados, urbanizados e higienizados, ao qual a autora se refere, é o Acre. Esse tipo de opinião a respeito dos estados da Amazônia (Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Rondônia, Amapá, Tocantins) aparece frequentemente tanto em meios de comunicação quanto em pesquisas acadêmicas como a citada, mas não pode mais ser aceito sem questionamentos. Por isso, cabe ao jornalismo, à história, à literatura e demais áreas de conhecimento narrar múltiplos olhares a respeito desta região e de seu povo para que essa visão esfumaçada seja, de certo modo, suprimida. Quando analisamos as palavras de Said (1990) a respeito da visão europeia sobre o Oriente, é possível enxergar que a mesma visão acompanha a Amazônia desde a chegada dos primeiros viajantes. O autor diz que o Oriente era uma invenção europeia, e desde a Antiguidade era “um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis” (SAID, 1990, p. 13). Pensamento semelhante existe sobre a região amazônica. A Amazônia é, portanto, o ‘Oriente’ brasileiro, o desconhecido. Séculos depois do período de colonização, a Amazônia continua sendo percebida historicamente como área turbulenta, instável e imprevisível, repleta de fantasmas, doenças, misturas, violentas justaposições e “desconhecida pela imensa maioria dos brasileiros”. Pelo menos é o que afirma Milton Hatoum no prefácio do livro Amazônia de Euclides: viagem de volta a um paraíso perdido, escrito pelo jornalista Daniel Piza. A propósito, Piza (2010) inicia seus relatos pelos rios amazônicos afirmando obviedades: “a Amazônia não perdeu o poder de surpreender por seu porte, clima e complexidade” (PIZA, 2010, p. 49). O projeto do jornalista era refazer o percurso de Euclides na Amazônia, realizado no início do século XX, para demarcar fronteiras entre Peru e Brasil. Ao concretizar o seu objetivo de viajar pelos rios amazônicos, suas conclusões são as mesmas do escritor canônico. O autor concorda com Cunha sobre a paisagem monótona e as oscilações entre fascínio e desespero da viagem, afirma que “não há morador da região que não tenha história pessoal para contar sobre onças e cobras” (PIZA, 2010, p. 54) e reitera que o homem do sul se sente deslocado e exilado no norte do país. O jornalista também se equivocou ao fazer afirmações sobre doenças desenvolvidas na região. Por exemplo, ele afirma que a malária foi erradicada no Acre. Segundo o autor, o padre 57 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo Paolino Baltassari sai pelos rios em Sena Madureira “ensinando a evitar dengue e outros males que surgiram mesmo com a erradicação da malária há catorze anos” (PIZA, 2010, p. 68). Apesar da diminuição, a doença ainda faz parte da realidade do acriano: Nos últimos anos, o Acre vem conseguindo resultados satisfatórios nas ações de controle e combate à malária, fruto do trabalho conjunto dos governos federal, estadual, municipal e comunidade. Entre os anos de 2006 e 2007 houve 48% de redução. De 2007 para 2008, 47%. De 2010 para 2011 o número de casos foi 37,9% menor. E se compararmos os anos de 2006 (quando houve o surto de malária) com 2011, a redução dos casos da doença no Acre é de 75,6% (CAMPOS, 2012, Agência de Notícias do Acre). Piza não é o único que interpreta limitadamente a região amazônica. Muitos outros viajantes, pesquisadores, jornalistas e intelectuais percebem o local apenas com restrições e estranhezas. Os discursos repletos de clichês, exaltados e/ou preconceituosos podem ser observados também no caso do escritor e jornalista Joe Jackson, na obra O ladrão do Fim do Mundo, que fez uma visita ao norte do Brasil em 2005. É extremamente fácil se perder para sempre em tais terras, no entanto não se pode negar o fascínio da floresta tropical. Talvez seja a percepção de que, de um segundo para outro, a vida pode mudar de uma beleza espetacular ao doce suspiro da morte e da decomposição. Um exército de pragas bíblicas jaz à espera dos incautos: a disenteria amebiana e bacilar, a febre amarela e a dengue, a malária, a cólera, a febre tifoide, a hepatite e a tuberculose. Há locais na Amazônia que sofrem com a praga dos morcegos-vampiros, onde famílias inteiras contraem a raiva (JACKSON, 2011: p. 21). Na citação anterior, o autor expõe os medos de andar pela floresta e de perder a vida ao contrair alguma doença fatal – medo semelhante teve Euclides prestes a embarcar para a Amazônia em 1903. O escritor imaginou que contrairia malária, beribéri ou elefantíase. Assim como o autor de Os Sertões, Jackson trabalha em seu texto com a dicotomia céu e inferno quando afirma que a vida pode mudar rapidamente de uma beleza espetacular para a morte e a decomposição. Nota-se, então, o quanto as concepções construídas a respeito da Amazônia ainda estão enraizadas no pensamento do outro/estrangeiro, que mesmo in loco não consegue desconstruir algumas imagens pré-concebidas. Menos hiperbólica, porém bastante assustada, a pesquisadora Daniela Marchese (2005) também relata em sua pesquisa desenvolvida no seringal Cachoeira, no município de Xapuri, em 1997, o medo que sentiu ao caminhar pela mata fechada na Amazônia.  Personagem importante na história do Acre. O padre chegou ao estado, vindo da Itália, em 1950 e, desde então, se destaca pelos serviços prestados aos moradores do rio Purus. Padre Paolino costuma fazer casamento, batizados, partos e atendimentos médicos, em que receita ervas da floresta. Também é respeitado por fazer parte de movimentos de preservação da floresta, dos indígenas e dos seringueiros. 58 Francielle Maria Modesto Mendes Ele [um acriano que servia de guia para pesquisadora] se afastou, como já havia feito outras vezes, para fazer as suas necessidades fisiológicas (...) O tempo de espera aumentou ao ponto de me fazer olhar em volta com olhos de quem procura entender a direção a tomar para sair. Tentei recordar-me por onde tínhamos acabado de chegar porque, eventualmente, deveria prosseguir mantendo aquela direção. Me limitei, porém, a dar uma volta em torno de mim mesma sem conseguir reconhecer nada. Fui invadida por uma sensação de insegurança: levantei o olhar para a copa da castanheira, alta mais de quarenta metros, recordando as palavras de alguns entrevistados que me diziam como sob aquela planta se corria o risco de ser atingido ou morto pela queda do ouriço (MARCHESE, 2005, p. 65-66). A partir desses relatos, compreende-se o quanto as definições de Said (1990) sobre o Oriente se aplicam à Amazônia. Fica visível o quanto uma cultura, que se considera dominante, se usurpa da outra para desfigurá-la. Ou, ainda, como o imaginário e o desconhecimento dos ‘estrangeiros’ são aplicados à região norte do Brasil. ‘A demonização do outro desconhecido’, para fazer uso das palavras de Said (2003), geram falsos conceitos de unidade, impõem identidades coletivas e características homogeneizadoras para um grande número de indíviduos bastante diversos. O autor refere seu pensamento ao Oriente, mas a mesma ideia pode ser aplicada à Amazônia brasileira. No caso do Orientalismo, sabe-se que ele é visto como a maneira de os ocidentais pensarem e estudarem o Oriente, como um conjunto de categorias e valores baseados nas necessidades políticas e sociais do Ocidente em detrimento das realidades concretas do Oriente. Fatos assim ajudam a entender a visão escurecida, subalterna que o ‘outro’ constrói da vida no meio da Amazônia brasileira e o quanto é difícil romper com essas impressões sobre o medo, a grandiosidade e o mistério da floresta, sobretudo, quando os próprios moradores e os veículos de comunicação da região já absorveram essas ideias e ajudam a mantê-las frente aos estrangeiros. Realidades e fantasias amazônicas Uma das dificuldades de romper com o imaginário e os conceitos pré-estabelecidos é o fato de que os próprios moradores da região amazônica se ‘amazonizam’, ou seja, se tornam aquilo que os outros pensam que eles são. Eles passam a viver as dicotomias e os atrasos que são atribuídos à região, acrescentando esses elementos às suas constituições identitárias. A Amazônia é uma área cujo traço mais geral foi construído pelo pensamento externo aos que nela vivem. A região tem sido pensada, ao longo dos séculos, através de imagens construídas pelos europeus, sobre o que eles entendem a respeito da região. Por isso, o conceito 59 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo de Amazônia é resultado de uma construção discursiva, como assim afirma Ana Pizarro: “Esta região do imaginário é a história dos discursos que a foram erigindo, em diferentes momentos históricos, dos quais recebemos apenas uma versão parcial, a do dominador” (PIZARRO, 2012, p. 33). A Amazônia e a imagem que manejamos dela estão relacionadas com a construção desses discursos e, principalmente, com a forma como eles expressam a relação do homem com a natureza. Ressalta-se, ao debater a região amazônica, a constante dualidade paraíso/inferno construída, principalmente, devido à presença da selva na vida dos moradores da região. Como exemplificação, tem-se o texto intitulado Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade, publicado em 14 de fevereiro de 2014, no G1/AC. A partir da leitura do título e do lead (primeiro parágrafo), percebe-se que ainda se vive na Amazônia sob a égide da dicotomia inferno/paraíso. ‘Deus me defenda! Como é que eu vou trocar o paraíso pelo inferno?’, diz, quase ofendido, o seringueiro Francisco Lima, de 65 anos, ao ser indagado sobre a possibilidade de viver na 'cidade grande'. O 'paraíso' a que se refere seu Chiquinho Gabarito, como é conhecido na comunidade onde vive, fica no interior do Acre, às margens do igarapé Santo Antônio, afluente do rio Caeté, na Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, no município de Sena Madureira (AC), distante 136 km de Rio Branco (NATANI, 2014, G1/AC). Notícias como a citada anteriormente mantém a região amazônica rodeada pelo encantamento da floresta, uma espécie de magia que sustenta os moradores das comunidades tradicionais, reservas extrativistas, entre outras, afastados das cidades. A definição de Pizarro (2012), que diz ser a selva um centro mítico de construção do imaginário, ajuda-nos a compreender o porquê do jornalista, por vezes, optar por esse enquadramento da notícia. Nesse universo ‘encantado’, existem ainda figuras ligadas à água ou à selva, que se recriam e se transformam permanentemente no imaginário popular, são elas que explicam e dão sentido a sua relação com a natureza e com os demais seres humanos. Exemplos como esses podem ser observados nos relatos publicados em uma revista de circulação regional chamada Amazônia S/A. A fala a seguir é sobre uma viagem feita pela equipe de reportagem ao Parque Nacional da Serra do Divisor, localizado entre as bacias hidrográficas do Vale do Médio Rio Ucayali no Peru e do Alto Juruá no Brasil. Apesar de acreana, a jornalista faz observações repletas de espantos e exageros. O relato é de 2011 e ressalta uma paisagem repleta de animais, que lembram as crônicas do europeu Gaspar de Carvajal, escritas no século XVI: Os dias quase sempre quentes e com sol garantem uma viagem tranquila. A lentidão da embarcação possibilita uma observação de detalhes inesperados como macacos 60 Francielle Maria Modesto Mendes barulhentos fazendo seu habitual arvorismo, pássaros variados e nem sempre de fácil identificação, passagem de sucuris pelas margens e a presença marcante dos piuns (MIRANDA, 2011, p. 32). Essa fusão entre realidade e fantasia atormenta tanto os estrangeiros quanto os autóctones. Chega a ser surpreendente a simplicidade com a qual a repórter trata o fato de encontrar uma sucuri no meio do caminho. O relato deixa transparecer bastante normalidade na relação entre os moradores, a fauna e a flora amazônica. É como se nesta região do Brasil encontrar uma sucuri fosse absolutamente comum e parte do cotidiano de todos os moradores, sem exceção. Mitos e lendas Outros aspectos povoam o imaginário local, é o caso dos mitos e das lendas. Por exemplo, o boto é um ser mitológico que ocupa espaço nas culturas amazônicas mesmo no século XXI. De acordo com as narrativas populares, ele seduz as jovens para engravidá-las e tem o poder de encantar homens, mulheres e crianças. Mesmo com o passar dos séculos, o imaginário permanece impregnado à população amazônida. Ou seja, ainda é possível encontrar pessoas que afirmam ter sido ‘encantadas’ pelo animal. Na passagem a seguir, extraída de um site de notícias acriano, um morador do vale do Juruá diz que começou a passar mal, logo após ter dado um tiro em um boto. O episódio aconteceu enquanto ele pescava na companhia de um primo. Depois de atirar num boto que estava perturbando sua pescaria Valdecir da Costa Souza, 20 anos, passou a apresentar perturbações psicológicas e afirma que os animais estão o atraindo. Além de ouvir vozes ele vê um homem sentado numa pedra no rio tentando levá-lo para a água e o problema está preocupando os familiares (VOZ DO NORTE, 2013). A família do rapaz teme o animal desde que o avô dele sumiu nas águas do rio Juruá, supostamente encantado. Depois disso, o pai, José Alberto de Souza, e o próprio filho, Valdecir da Costa Souza, também ‘sofreram ataques’ e começaram a ver a imagem de um homem em cima de uma pedra, que afirma que eles serão levados pelo boto. O pai pescador, José Alberto de Souza, 62, conta que também já foi vítima de um boto, quando estava com amigos madeireiros nas margens de um igarapé na fronteira com o Peru. Eles jogavam baralho quanto sentiu (sic) algo estranho no corpo e via um homem sobre uma pedra no igarapé que tentava levá-lo para a água. José Alberto afirma que tudo começou depois que seu pai desapareceu nas águas do Rio Juruá, encantado por um boto. “Meu [pai] estava numa canoa que naufragou e vários botos começaram a boiar no local, ele nunca foi encontrado. Depois ele apareceu para minha esposa dizendo que estava em um boto e que eu precisava 61 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo desencantá-lo. Ela me disse antes mesmo dele aparecer três vezes, depois disso nunca mais voltou”, ressaltou (VOZ DO NORTE, 2013). A partir deste relato, vê-se o quanto as representações e os imaginários atravessam os sujeitos sociais, emoldurando os seus modos de construção de vida e marcando traços de sua identidade. Mesmo com o decorrer do tempo, os habitantes da floresta acreditam que ainda podem ser ameaçados pelos mitos e lendas construídos ao longo da história. As histórias relatadas no passado continuam sendo vivenciadas no presente pelos moradores da Amazônia, a população segue ‘amazonizando-se’. Mais um exemplo de imaginário mítico é a lenda das amazonas, narrativa trazida da Europa. Elas estão incorporadas às figuras básicas do imaginário devido aos relatos do frei Gaspar de Carvajal. Na verdade, segundo Pizarro (2012), o cronista dominicano projeta a cidade medieval, o único sistema social que ele conhecia, para Amazônia. Dessa forma, ele constrói a imagem de mulheres medievais habitando um lugar paradisíaco repleto de riquezas naturais. Essas mulheres são descritas como fortes, aterrorizantes, dominadoras e erotizadas. A forma como o perfil delas é composta está relacionada não só com o conhecimento que o cronista já tinha sobre a lenda existente em outras regiões, mas também com a carência sexual vivida pelos viajantes. A expedição era longa e, geralmente, não havia mulheres. Sendo assim, a constituição do imaginário a respeito das amazonas está intimamente ligada com as carências e necessidades físicas dos cronistas que chegavam a passar anos em expedição em meio à floresta. Além do boto e das Amazonas, pode-se citar também o curupira, figura lendária que habita a floresta para protegê-la. Segundo Pizarro (2012), o popular personagem do curupira recebe denominações diferentes e apresenta grande vitalidade no imaginário popular atual. Ele é descrito ora como uma criatura com os pés ao contrário e, em outro momento, aparece apenas com o pé defeituoso. Há indícios na Europa de que lá havia uma criatura semelhante a esta. A pesquisadora afirma ainda que um personagem parecido ao Curupira está documentado no texto do cronista Acunã. Assim como Pizarro, Marcos Frederico Krüger (2011) também acredita que o curupira é mito originário de outra região que não a Amazônia. Para o pesquisador, “pode-se admitir que a transposição do curupira à Amazônia ocorreu pela ação dos missionários, de vez que não encontramos registro dele em livros confiáveis da mitologia regional” (KRÜGER, 2011, p. 198). 62 Francielle Maria Modesto Mendes Existe uma construção de imaginários destes povos que são da cultura essencialmente oral. Nestas construções, a história, os temores e as expectativas das comunidades vão se juntando, num imaginário que incorpora as vidas individuais ao destino do povo. O universo mítico amazônico tem se confrontado com a modernização promovida por diferentes instituições e em diferentes momentos. Porém, esses ‘seres encantados’ seguem ocupando um lugar de destaque na vida das comunidades amazônicas. Em outro trecho da Revista Amazônia S.A, de Junho/Julho de 2011, ainda sobre o Parque Nacional da Serra do Divisor, destaca-se, novamente, a manutenção do imaginário social e a absorção que o morador tem da visão do estrangeiro. Mais uma vez, um veículo de comunicação regional reproduz conceitos e contribui para sustentação de estereótipos a respeito da região amazônica: Uma característica interessante das trilhas é a presença de pedras, em vários tamanhos. Ornando perfeitamente o lugar. Elas também servem de possíveis armadilhas para os desatentos. Medo? (Quase) Não se tem. Os guias conhecem milimetricamente o lugar, mas se divertem contando estórias de onça, sucuri, mãe da mata e mapinguari. E os viajantes sabem que é melhor nem pensar em lendas florestais (MIRANDA, 2001, p. 34). A jornalista relata que os guias da região contam histórias de onça, sucuri e lendas da floresta, (re) criando, dessa forma, representações sobre a região. Assim, permanece a dicotomia paraíso-inferno, além dos conceitos de exotismo, diferença e falta de civilidade, que tanto contribui para a construção de lacunas e incompletudes sobre a Amazônia Sul Ocidental. Imaginário e representações O imaginário está inserido em um campo de representação e, como expressão de pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade. Mas essas imagens e discursos sobre o real não são exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da realidade, como um fiel espelho. Porém, precisam ser resgatadas. De acordo com Sandra Pesavento (1995), o imaginário é sistema produtor de ideias e imagens. A autora diz ainda que o imaginário é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente. 63 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelho onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a reprodução do ser e parecer (PESAVENTO, 1995, p. 24). No livro Olhos de Madeira (2001), Carlo Ginzburg traz um ensaio sobre a origem da palavra representação. A origem do termo remonta ao século XIII, chamando-se représentation aos manequins de cera exibidos junto ao cadáver dos reis franceses e ingleses durante as cerimônias funerárias. Enquanto o soberano era velado, a presença do manequim era um testemunho à transcendência do rei e a sua presença futura do mundo dos mortos. O manequim tinha a função de lembrar aos presentes que o rei havia assumido outra forma e nessa nova forma, o rei continuaria presente para seus súditos. Assim, desde sua origem a palavra representação está associada a uma forma abstrata de descrição do mundo. O uso do manequim como representação do soberano morto é apenas um exemplo do problema mais geral da construção de abstrações que descrevem o mundo. Por outro lado, “a representação faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença” (GINZBURG, 2001, p. 85). A representação envolve uma relação ambígua entre a ‘ausência’ e a ‘presença’. No caso, a representação é a presentificação de um ausente. Um dos sentidos de representar é falar em nome do outro, colocar-se no lugar de outro distante no espaço e no tempo, estabelecendo relações. As representações do mundo social não se medem por critérios de veracidade ou autenticidade, mas sim pela capacidade de mobilização e credibilidade. Nesse contexto, a tarefa do historiador, do literato e do jornalista, bem como dos demais narradores e/ou formadores de opinião, é construir uma representação a partir das que já estão feitas. Dessa forma, as narrativas têm a tarefa de repensar o passado, oferecendo uma nova leitura. A partir disso, o critério da veracidade pode ser substituído pelo da verossimilhança. Porém, os escritores não podem se pautar apenas pelo exagero descritivista de paisagens naturais, pois, dessa forma, somente reafirmam conceitos e valores, por vezes, estereotipados e/ou hiperbólicos a respeito da região. Quando sem exageros e a sua medida, as narrações sobre a relação sujeito-natureza podem significar uma tentativa de aproximação da realidade amazônica com o leitor ‘estrangeiro’. Seria uma forma de fazer com que houvesse um reconhecimento da realidade desconhecida do leitor com as situações vividas nesta localidade. Apesar disso, reconhece-se, que os discursos não nascem no vazio, eles trabalham com informações já existentes, dando-lhes novos contornos e sentidos. Em decorrência disso, a 64 Francielle Maria Modesto Mendes influência dos primeiros viajantes e a dos cronistas estará sempre presente de alguma forma na imaginação literária, histórica e até mesmo jornalística daquele que se lança na pesquisa e, por consequência, nos escritos amazônicos. As várias vozes que discorrem sobre a Amazônia, ao longo dos tempos, ajudaram na composição desse cenário híbrido e multifacetado. Por intermédio desses discursos e imagens conflitantes, elaborados tanto por viajantes quanto por autóctones, formou-se um constructo cultural da região. Considerações Finais Durante muito tempo prevaleceu nos discursos, principalmente, históricos e literários um constante apagamento e/ou estranhamento das populações amazônicas e um enfoque restrito aos aspectos ecológicos da região. E sabe-se que a manutenção deste estereótipo impede a visibilidade e a compreensão das trocas culturais existentes nesta localidade. Por isso, a necessidade de reconstruir e reinterpretar narrativas e representações corrigindo o apagamento dos povos, aprendendo a ver a diferença como valor e a olhar para os aspectos culturais da Amazônia brasileira. Um dos objetivos, neste trabalho, foi mostrar que a Amazônia precisa se distanciar dos processos de homogeneização, dos estereótipos, do conceito de exotismo (diferente) e da dicotomia limitadora inferno verde/paraíso tropical. A ideia é pensar essa porção de terra e sua gente como produtora de cultura, de linguagem, de pensamento. Quem estuda a Amazônia precisa perceber que ela não é só terra distante, desconhecida e inspiração para criação de lendas, contos e romances, mas é, sobretudo, espaço de homens e mulheres trabalhadores, de pluralidades culturais, de formas de resistência, de relações de poder, hibridizações e multiplicidades. Contrariando a opinião de muitos pesquisadores da região amazônica, o convívio com a natureza não faz do morador da região alguém não civilizado e inferior. Em outras palavras, os hábitos em consonância com a natureza do morador da floresta amazônica são, obviamente, diferentes dos hábitos dos moradores dos centros urbanizados, contudo isso não pode situar essa gente à margem dos direitos e deveres sociais. Portanto, na concepção do autóctone, a interação homem/natureza deve ser tranquila e harmonizada, e não de constrangimento e repressão. 65 Amazônia brasileira sob o vértice do orientalismo O presente estudo permite ainda a compreensão de que a vida na Amazônia, cercada pela floresta, não é mais ou menos difícil do que a vida em qualquer outra localidade. Os desafios enfrentados e a capacidade de superação são intrínsecos à existência humana, fazem parte do mover social. Por isso, precisam ser identificados também na região amazônica. Entende-se até o momento, que o discurso tradicional que afirma ser a Amazônia uma região onde impera o atraso, a degeneração e a passividade constroem a noção de que esta terra sempre precisará ser dominada por estrangeiros, pois os autóctones não estão aptos a fazer avanços e progredir sem a intervenção dos ‘de fora’. Por fim, espera-se que este outro modo de pensar a Amazônia e suas problematizações, ouvir as vozes dos sujeitos e observar a construção do imaginário social tenha somado e lançado luzes novas para o debate sobre a região amazônica brasileira, que não pode, em hipótese alguma ser vista apenas como habitat de macacos, pássaros e sucuris. Referências CAMPOS, Tatyana. Acre avança no controle de malária. Disponível em: http://www.agencia.ac.gov.br/index.php/noticias/especiais/18795-acre-avanca-no-controle-damalaria-.html. Acessado em: 10 de abril de 2013. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. HARDMAN, Francisco Foot. Antigos Modernistas. In: A Brasilidade Modernista. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ____________. A invenção da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009. JACKSON, Joe. 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São Paulo: Hucitec, 1999. 67 Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira Francisco Aquinei Timóteo Queirós Na disciplina Linguagem, Sociedade e Diversidade Amazônica, cursada durante o Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade, na Universidade Federal do Acre (UFAC), elaborou-se o presente ensaio com o objetivo de discorrer sobre as pluralidades da região amazônica. Entende-se essa localidade não apenas como uma região una e indivisível, mas sim como detentora de uma miríade de aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais -fatores estes que a moldam e a atravessam. Autores como Stuart Hall, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Francisco Foot Hardman, Edward Said, Benedita Maria Gomes Esteves e Francisco Bento da Silva fazem uma reflexão sobre o tempo, o espaço, o discurso, a representação que nos permitem ponderar sobre as linguagens e as identidades amazônicas. Em Said (2003) - guardadas as devidas proporções - constata-se a impossibilidade de se pensar as Amazônias unicamente a partir de uma figura essencializada, como a imagem do “indígena” ou do “seringueiro”, por exemplo, uma vez que para o autor, nessa relação se vislumbra o “outro” contrastante, que nos observa e conforma, assumindo o “papel constitutivo do observador, o “eu” ou sujeito etnográfico cujo status, campo de atividade e locus móvel tomados em conjunto confinam com exatidão embaraçosa com a própria relação imperial” (SAID, 2003, p. 128). Com base na afirmação acima, verifica-se que a “história” da região amazônica efetivamente começa com a presença do colonizador, porque será a partir do campo semântico e simbólico desse “outro”, que vai se configurar a paisagem-representação-discurso sobre a região. Segundo Hardman (2009), a Amazônia é uma construção discursiva e sua representatividade é constituída a partir do imaginário social que a abarca. Sob essa ótica, a  Mestre em Letras: Linguagem e Identidade pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Professor efetivo do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH). E-mail: aquinei@gmail.com. 68 Francisco Aquinei Timóteo Queirós região está eivada de lugares-comuns, relatos e ficções, que validam seu topos como espaço de homogeneização, passando a configurar uma “geografia” das normas sobre a Amazônia. Esses aspectos podem ser percebidos a partir da conformação discursiva presente nos viajantes conquistadores — que por meio de suas crônicas apresentam um discurso fantasioso e transpõem para a região amazônica todo um imaginário Europeu — e também pelos viajantes científicos, que arquitetam o discurso da modernidade e instauram a dicotomia civilização versus barbárie. Isso pode ser percebido no fragmento abaixo, extraído da tese do professor Francisco Bento da Silva: Essas representações são formatadas através da relação do ser humano com o ambiente natural, se considerarmos que não há natureza em si; mas que ela é culturalmente apreendida e discursivamente descrita e, em torno dela, se constroem determinadas sensibilidades. Amazônia, Acre e floresta estão permeadas de todas essas sensibilidades inscritas em origens muito distantes e difusas (SILVA, 2010, p. 220). Contudo, é por meio da literatura que se institui a Amazônia como representação simbólica, ou seja, a modernidade vem até nós pelo romance. O romance apresenta as cidades amazônicas, os perfis, os sujeitos, as ações, as vestimentas, a compleição e alicerça um imaginário sobre a região. Entre fontes mais antigas, é certo que a literatura de cronistas e viajantes, desde o século XVI, ao erigir o “real maravilhoso” como matéria-prima temática de suas construções sobre a Amazônia, constituiu acervo considerável de elementos passíveis de serem apropriados e retraduzidos, já no século XIX, por toda a literatura ficcional, do romantismo aos vários modernismos, a partir de meados de 1870. Poderíamos lembrar, entre autores-viajantes, na plêiade de exploradores e naturalistas que, entre os Setecentos e os Oitocentos, repercutiram depois em autores brasileiros, de Rodrigues Ferreira, Bates, Wallace, Castelnau, Coudreau, casal Agassiz, Chandless etc. Seria vetada, em princípio, a menção a Humboldt, que foi proibido pelas autoridades coloniais portuguesas de atravessar a bacia do Orenoco, pelo rio Cassiquiare, e adentrar-se na bacia do Amazonas, pelo Rio Negro. Mas o peso do autor-viajante germânico foi decisivo, seja pela forte recepção de sua obra no imaginário e relatos de autores de nossos países vizinhos, seja pelas leituras diretas e indiretas certamente dele feitas no Brasil (HARDMAN, 2009: 26-27). Os conceitos sobre a Amazônia são categorizados e estruturados a partir do olhar, da narrativa e da temporalidade do colonizador. E esta temporalidade é intemporal, conjuga vários tempos, várias narrativas revestidas de um imaginário, de uma representação que, a priori, confere à Amazônia um sentido alheio ao tempo efetivo de suas práticas sociais, ou seja, enxerga-se a região amazônica como uma categoria retórica, uma palavra abstrata que passa a ser caracterizada de forma homogênea e essencial. 69 Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira Para entender de que forma se organizam os “tempos-discursos-espaços”, Said (2003) nos traz um conceito bem caro a Hayden White, que é o de narrativa. Segundo Said (2003), a narrativa é governada por gêneros, que regularam e produziram historiógrafos cuja obra histórica apresentava noções filosóficas apoiadas em fatos empíricos. Sob essa perspectiva, constata-se que “White substituiu a primazia do real e do ideal pela narrativa austera e pelos procedimentos lingüísticos de códigos formais universais” (SAID, 2003, p. 132). Percebe-se sobre a região amazônica que a ideia de representação é estruturada em torno do conceito de narrativa. Só a narrativa tem a capacidade de tornar o tempo humano e essa narrativa insere os códigos e os procedimentos linguísticos sobre a região. O discursonarrativa institui lugares, apaga as diferenças e engendra tempo/espaços naturalizados. A narrativa, o romance e a ficção instauram espaços de visibilidade e dizibilidade sobre a Amazônia. Isso pode ser percebido na obra La vorágine do colombiano José Eustasio Rivera e também nos livros do paraense Inglês de Sousa. Sobre o assunto Hardman (2009) destaca o seguinte: Tal enumeração prossegue com acúmulo crescente de títulos ao longo do século XX. De Euclides da Cunha a Ferreira de Castro e a Márcio de Souza, de Alberto Rangel a Dalcídio Jurandir e a Milton Hatoum, parece que o realismo naturalista predomina como chave estética da representação literária da Amazônia no Brasil. E na literatura hispano-americana, o espectro de La vorágine ganha foros de matriz figuradora de várias novelas amazônicas ulteriores, como Los pasos perdidos (1953), do cubano Alejo Carpentier, La casa verde (1966) e Pantaleón e las visitadoras (1973), do peruano Mario Vargas Llosa, para não falar do ciclo de relatos ficcionais do marinheiro Maqroll, protagonista da lavra do colombiano Álvaro Mutis, entre eles as narrativas de La Nieve del Almirante (1986) e Un bel morir (1989), já que no labirinto humano-geográfico, entre a cordilheira e o mar, há sempre a selva e o rio (HARDMAN, 2009, p. 28). Sob essa perspectiva, vislumbra-se a região amazônica de forma linear. Suprimem-se os tempos da “floresta” e da “cidade”, apagam-se os espaços de convivência e experiência do cotidiano; em favor de uma categorização imanente e, semanticamente, ritualizada sob o signo “Amazônia”. Trabalha-se aqui, os mesmos mecanismos de elaboração cultural, social, política, econômica e artística, que Albuquerque Júnior (2009) apresenta como elementos que servem de base para a conformação imagético-discursiva do Nordeste, mas que afetam diretamente a região amazônica também. É o que se apreende no fragmento a seguir: Se o problema era fundar uma imagem e um texto original para o Nordeste e se o sublunar oferecia uma multiplicidade e uma riqueza em contrastes, o importante era construir uma dada forma de ver e de dizer, era ordenar uma visibilidade e uma 70 Francisco Aquinei Timóteo Queirós dizibilidade que se tornassem códigos fixos de leitura, era ordenar um feixe de olhares que demarcassem contornos, tonalidades e sombreados estáticos (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 80-81). A partir das leituras, constata-se a busca de se estabelecer um novo recorte epistemológico, uma reconfiguração e um novo desenho para a paisagem que o olhar capta. Não se almeja apagar o campo de observação ou suprimir o já existente, mas promover novas experiências sobre o narrado e o vivido nas Amazônias. Trata-se, efetivamente de problematizar os termos canônicos, como “seringueiro”, “Amazônia”, e inseri-los sob a perspectiva do tempo, do espaço, da narrativa, da representação e do discurso. Essas questões ficam patentes no livro de Benedita Maria Gomes Esteves (2010). A obra Do “manso” ao guardião da floresta insere os Estudos Culturais e também a Análise do Discurso para abordar a luta pela floresta, pela linguagem e pela identidade, no Acre, das décadas de 1970 e 1980. Na primeira parte do livro, a autora utiliza elementos já dados, como “nordeste”, “floresta”, “seringueiro”, “seringalista”; mostrando-nos que esses conceitos são estruturados e categorizados sobre o nosso pensamento. Estas palavras escorregadias passam a configurar a imagem, a experiência, o tempo e a narrativa do “seringueiro” e de grande parte da “Amazônia”, porque apagam e ocultam práticas sociais, saberes, sonhos e desejos. Para fugir do enclausuramento semântico, para conferir sentido efetivo e político aos termos já dados, é preciso a intervenção do sujeito/seringueiro no espaço público, é necessário o alarido de vozes, é necessário o grito dissonante, é necessária a linguagem: O “capital simbólico” acumulado ou o reconhecimento do grupo está relacionado ao exercício da fala, própria da alquimia da representação, como enfatiza Bourdieu (1982). Sua autoridade se funda na eficácia performativa do discurso, numa imposição oficial. Produzida perante todos e em nome de todos, a linguagem expressa o consenso sobre o sentido do mundo social em construção (ESTEVES, 2010, p. 141). No comentário acima, percebe-se que a autora executa uma análise digressiva e assimétrica. Promove o deslocamento do seringueiro a partir dos elementos espaciais e sociais, que conformaram a sua representação. Nesse sentindo, além da luta pela linguagem (o que acarreta a reelaboração do ser e sua inserção no mundo), Esteves (2010) confere ao seringueiro uma dimensão política, ou seja, é a intervenção do homem no espaço público. A partir do descentramento e da luta pela linguagem, a autora mostra que os sujeitos/seringueiros produziram sentido à sua existência física. O reconhecimento do outro, como inimigo, “impôs-lhes a criação de uma linguagem comum, através das representações 71 Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira coletivas para a defesa do patrimônio e construção de um projeto de cidadania” (ESTEVES, 2010, p. 125). Essa mudança reflete na organização de um outro tipo de experiência com o lugar. Elementos como a estrada de seringa, os rios, as colocações e os corpos dos homens, tornam-se “lugares” em que a espacialidade se constrói a partir de práticas cotidianas dos sujeitos entre si e com a natureza. Corrobora com essa ideia o pensamento de Michel de Certeau sobre o lugar/espaço: Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidade contratuais (CERTEAU, 1994, p. 201-202). Os autores em estudo permitem a articulação com outras áreas do conhecimento, como história, filosofia e sociologia. Eles captam o sujeito em movimento e dessacralizam conceitos estanques, homogêneos e estandardizados, como “floresta”, “seringueiro”, “Amazônia”; deixando cair sobre estes vocábulos-símbolos, outros elementos dissonantes, outras linguagens, outras paisagens discursivas, outras narrativas. Sob essa perspectiva, verifica-se no estudo sobre a “Amazônia”, a configuração narrativo-simbólica sobre alguns termos canônicos, como “seringueiro”, “índio” e “seringal”, investidos de uma imanência que apaga o tempo da experiência e assim: Todos os conectores específicos estabelecidos pela história podem ser igualmente neutralizados e simplesmente mencionados: não só o tempo do calendário, mas a sequência de gerações, os arquivos, documentos e vestígios. Toda a esfera das ferramentas da relação de representância pode, portanto, ser ficcionalizada e posta na conta do imaginário (RICOEUR, 2010, p. 218). Constata-se a partir do que foi exposto acima que história (como factual) e literatura (como ficcional) articulam uma imagem verbal da realidade, sendo, portanto, indistinguíveis, uma vez que historiadores e romancistas usam as mesmas estratégias e as mesmas modalidades de representação das relações em palavras. Recorrendo a White (1994), apreende-se que a realidade construída pelo romancista pretende corresponder, em seu esquema geral, “a algum domínio da experiência humana que não é menos real do que o referido pelo historiador” (WHITE, 1994, p. 138). 72 Francisco Aquinei Timóteo Queirós Dessa maneira, as narrativas que se estruturam sobre a Amazônia, configuram espaços de linguagem, de práticas sociais e de discursos. A narrativa mostra como se configura a realidade, o discurso social e, também, como se fixam, se isolam e se valorizam determinadas identidades. A estrutura narrativa encarregada de amalgamar os elementos contrastantes da realidade, segundo Hall (2006), é o mito: É, claro, um mito — com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. Os mitos fundadores são, por definição, transitórios: não apenas estão fora da história, mas são fundamentalmente a-históricos. São anacrônicos e têm a estrutura de uma dupla inscrição. Seu poder redentor encontra-se no futuro, que ainda está por vir. Mas funcionam atribuindo o que predizem à sua descrição do que já aconteceu, do que era no princípio (HALL, 2006, p. 29). Percebe-se que a narrativa sobre a Amazônia se configuram a partir de uma poética culturalmente marcada, em que a realidade não é de modo algum legível como uma verdade intrínseca, mas como efeito particular do discurso e de sua organização. A narrativa que articula o discurso sobre a Amazônia busca constituir uma temporalização, ou seja, produzir um efeito de sentido e transformar a organização narrativa em “história”. Como afirma Santos (2002), o discurso ficcional é construído a partir dos recortes do mundo que imitam o efeito de real: O discurso ficcional seria efeitos de sentido resultantes de recortes do mundo, projetados a partir de uma imitação do real, mas que significam enquanto perspectivas de imagens construídas na tentativa de materializar representações mentais idealizadas. Dito de outra forma, são efeitos de sentido provocados por uma conjuntura de enunciados, numa superfície discursiva, que explicitam elementos inerentes ao imaginário consciente e inconsciente de um sujeito autor que se enuncia enquanto sujeito-escritor, transmutando sentidos de ordem lugar-comum para uma amplitude pseudo-realista/naturalista, transcendental, fantástica ou mesmo onírica, por meio de um processo de contradições em que um dito “verdade” se transpõe para um dito “verossímil”, ou ainda, que um dito “interpretação do mundo” se transforma em um dito “re-criação dessa interpretação” (SANTOS, 2002, p. 19). Constata-se nas narrativas sobre o tema ora em estudo que o discurso ficcional engendra efeitos de sentido e que as representações sobre a região aparecem de forma essencializada, homogênea, naturalizada, limitando as interpretações sobre o mosaico discursivo chamado Amazônia. Sabe-se que o presente trabalho não resolve as questões pendentes, mas lança-se novo olhar e novas perspectivas para as diversidades da região e do povo amazônida. 73 Representações narrativas: um estudo sobre a Amazônia Brasileira Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras falas. 4. ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. ESTEVES, Benedita Maria Gomes. Do “manso” ao guardião da floresta. Rio Branco: Edufac, 2010. 212 p. HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Unesp, 2009. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução: Claudia Berliner. 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São Paulo: Edusp, 1994. 74 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre Francisco Bento da Silva Prólogo Neste artigo iremos fazer uma discussão sobre os desdobramentos de duas grandes revoltas gerais que ocorreram nos anos de 1904 e 1910, na então capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. Essas revoltas ficaram conhecidas como Revolta da Vacina (1904) e Revolta da Chibata (1910) e tiveram com foco a luta de segmentos da população e da marinhagem, respectivamente, contra ações das autoridades consideradas autoritárias. A lei da vacinação obrigatória e os castigos corporais na Marinha foram o estopim para a insurgência de parte da população carioca e dos marinheiros. Depois de iniciados, esses movimentos agregaram interesses difusos e de múltiplos significados. Para sufocá-los, o governo federal decretou estado de sítio na capital da República e fez uso da força militar e policial para combater, prender, desterrar e deportar boa parte dos revoltosos. O local escolhido para isolar com o desterro cerca de duas mil pessoas foi a Amazônia, mais especificamente o Território Federal do Acre, região recém-incorporada ao território nacional (1904) após acordo com a Bolívia (SILVA 2013). Havia desde muito tempo uma representação da Amazônia brasileira como um espaço vazio, distante, inculto e apartado de um difuso “espírito de nacionalidade” presente em centros considerados mais desenvolvidos. E o atual estado do Acre, por ter sido incorporado havia pouco tempo, situado nas “bordas” ocidentais da Amazônia brasileira, tem de imediato sua imagem associada ao local adequado para receber os indesejados republicanos desses dois episódios. Charges, crônicas,  Professor Adjunto III da Universidade Federal do Acre – UFAC. Leciona nos cursos de graduação em História e no Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade da referida instituição. Este artigo é resultado de pesquisas vinculadas ao Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq intitulado “Crime e criminalidades: identidade, ordem e disciplina no Acre Federal (1904-1920), processo 472408\2013-5, com validade para o triênio 2013-2016. 75 Francisco Bento da Silva artigos e relatórios oficiais em profusão apontam para essa “Sibéria tropical” como uma espécie de prisão sem grades, de natureza hostil e doenças mortíferas adequada a receber aqueles que ousaram se contrapor à ordem legal. Ou seja, um local inferior e perfeito para receber sujeitos também considerados inferiores. Das distâncias... o longe e o perto A ideia de distância apresenta-se como algo que separa e junta, expande e delimita, hibridiza e “purifica” espaços, culturas e pessoas. O distante é um elemento multifacetado de vivências e abstrações presentes nas percepções humanas sobre “nós” e os “outros”. Portanto, a distância pode ser entendida como algo que vai além da conotação física, situando-se no campo simbólico, ideológico e valorativo. No Brasil, desde o período colonial os portugueses foram lidando com a percepção da imensidão, dos “vazios”, dos “desertos” e dos “sertões” (AMADO, 1995). Algo que continuou presente no período imperial quando o governo monárquico brasileiro e a intelectualidade terão que lidar com aspectos relacionados à construção da identidade nacional e o que é ser brasileiro. Há uma clara preocupação em criar\fundar espaços geográficos e simbólicos ordenados, controlados, administrados e descritos pelas penas de naturalistas, literatos, viajantes diletantes e homens de Estado que irão “redescobrir” e “inventar” o Brasil no século XIX. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, criado em 1838 e mantido sob a batuta do imperador D. Pedro II, foi uma instituição que nasceu com essa prerrogativa de definir e mapear o que era o Brasil e o que era ser brasileiro, em um projeto de nação gestado nos moldes da tradição dos estados nacionais que foram se formando na Europa a partir do XVIII, como bem discute o historiador Eric Hobsbawm (1991). Por isso, essa “identidade” brasileira vai ser reforçada em muito pelas suas características naturais: geografia, clima, paisagens, extensão territorial, modelo econômico marcado pelas atividades agrícolas, agropecuária e de extração dos recursos naturais. Como bem diz Iná Elias de Castro, o “imaginário político, território e natureza encontram-se entrelaçados em situações concretas” (CASTRO, 2012, p. 155). Nessa direção, o trabalho escravo vai em muito ser justificado por boa parte da elite política e senhorial no XIX como uma necessidade de conservar essa “vocação” colonial herdada pelo império assentada na agricultura e exploração dos recursos naturais. Concomitantemente, apontavam para um fim gradual e lento da escravidão que não abalasse as 76 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre estruturas social, econômica e política do país e suas hierarquias complexas alicerçadas em um poderoso sistema legal e ideológico (AZEVEDO, 2004). O negro não aparece neste período como elemento da nacionalidade brasileira, nem do passado, tampouco no presente, menos ainda no futuro. O indígena idealizado pelos românticos do indianismo se presta ao papel de compor o elemento formador da nacionalidade junto ao branco colonizador (ALMEIDA, 1999). Com a república batendo à porta, o fim da escravidão negra é outorgado pelo estado monárquico um ano antes deste chegar ao fim. Para relembrar Joaquim Nabuco, que tão bem percebeu essa particularidade, acaba-se com a escravidão, mas não com a obra da escravidão no Brasil (NABUCO, 2000). O seu legado nefasto alicerçado no preconceito e marginalização negra adentrou no século XX, não ficou restrito somente à última década de XIX. Temos nesses períodos de transições um Brasil multifacetado socialmente, miscigenado culturalmente, desigual e diverso na sua formação histórica nem sempre atrelada aos pressupostos da “história nacional” emanada do centro de poder. Isso se configura em um discurso comparativo poderoso e que até hoje ainda está presente: de regiões “desenvolvidas” e “atrasadas”; pessoas “civilizadas” e “rudes”; vazios demográficos e povoamentos em certas partes do país; povo “culto” e “inculto”; lugares “distantes” e “próximos” (MURARI, 2007; LIMA 1999). Essa geografia, das coisas, dos lugares e das pessoas gera um poderoso imaginário geográfico. Para as questões que iremos tratar neste artigo, o foco será dado como esse conjunto dualista de discursos se projeta sobre a Amazônia e o Acre a partir de dois eventos concretos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro em um intervalo bastante curto de tempo: a Revolta da Vacina (1904) e a Revolta da Chibata (1910). Como já foi discutido em trabalho já publicado por este autor (SILVA, 2013), essas duas revoltas tiveram como consequência desterros forçados para aqueles que foram acusados delas participarem, sendo todos enviados pelos governos da época para internação forçada e sem volta no extremo sul ocidental da Amazônia brasileira: Território Federal do Acre, regiões noroeste no Mato Grosso e sul do Amazonas. Naquele momento muitas vozes (jornalistas, políticos, juristas, advogados, escritores) apoiam as medidas tomadas pelo Estado brasileiro, justificando serem a Amazônia e o Acre, localidades distantes, vazias, incultas, onde a república poderia despejar seus indesejados sociais sem maiores problemas. Portanto, é como se dissessem que os indesejados, muitos deles considerados a “escória” que manchava a urbe civilizada, cidade do bom gosto, já maravilhosa desde 1909, poderiam ser 77 Francisco Bento da Silva despachados para se redimirem ou morreram na “selva” Amazônica, já em muito marcada pela imagem do “inferno verde”, espaço geocultural distante simbólica e fisicamente da capital republicana. Por isso, “a Amazônia é longe daqui” expressa no título do artigo representa essas vozes difusas e múltiplas que muitas vezes olhavam o “outro” de “longe”, como exótico, inferior e até se sentiam confortáveis pelos valores que carregavam e compartilhavam com os “seus”. O desejo emanado dessas vozes é que essas fronteiras continuem ou que sejam rompidas pela incorporação dos outros aos preceitos dominantes e em voga. A inspiração do título do trabalho não é original, foi apropriada de um livro chamado O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem; de Flora Sussenkind (2000). Esta autora, por sua vez, garimpou o seu título a partir de uma antiga canção alemã cantada por migrantes teutônicos que no século XIX entoavam o refrão “O Brasil não é longe daqui”. Ele remetia à esperança dos migrantes que iam ou imaginavam ir para uma nova terra, vendida como lugar de redenção e promissão – pois para eles “os deslocamentos são reais e paisagens imaginárias” (Idem, p. 21). Na proposta de abordagem de Sussekind, ela busca os Brasis dos relatos de viagens reais ou ficcionais. Assim, resolvemos adaptar tal evocação em seu sentido oposto: daqueles que queriam distanciar-se de tudo que confrontava suas imaginações e vivências pautadas no signo do progresso, da belle époque, dos valores burgueses, científicos e eurocêntricos. Havia também um Brasil exótico, distante, vazio, inculto, sem história e bárbaro era narrado e evidenciado como contraponto daquilo que era valorizado por essa elite republicana da virada do século XIX e início do XX. Esse lugar de onde irradiavam com mais vagar tais percepções estava em grande medida presente na capital da república. Nessas terras distantes da Amazônia ou em qualquer ou lugar a atitude do cronista, viajante, literato, cientista que vem de fora é geralmente uma só: ele “não pertence a elas, mas cabe a ele nomear o que vê” (SUSSENKIND, 2000, p.13). Pois é ele quem traduz aos “seus” e inscreve tudo que vê ou imagina que vê por meio do discurso narrativo. Como diz bem Sussenkind (Ibidem), “essas ‘ilhas’ então se abrem ao outro. E são lançadas na “civilização” (p. 13) pelos narradores de fora com seus discursos colonizadores. Mas para esses narradores, muitas vezes ocorre a “experiência do desconcerto”, do desajuste com o lugar (Idem, p. 21). Impactos de maravilhamento e do sublime que se aliam ao edenismo ou sua versão oposta alicerçada nos aspectos infernais, negativos, dos pecados e desregramentos do mais variados dos sujeitos que ali vivem. 78 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre Para os que não querem mergulhar nesse mundo distante através da experiência concreta e desconcertante, basta imaginá-lo de longe, com a segurança de que tem as ferramentas racionais e analíticas para construir sentenças valorativas sobre estes outros sujeitos e lugares. Ou como bem diz Flora Sussenkind, “a aproximação quando ocorre é via testemunho alheio. Ou pela crítica severa, distante, opinativa, do calor da hora” (Idem, p. 194). As “margens” da nação então carregam um duplo discurso: em alguns casos é vista como portadora de uma singularidade identitária de nacionalidade, como em autores do porte de Euclides da Cunha, Antônio Cândido e Mário de Andrade – onde a “nacionalidade está nos cafundós”; noutras é tudo aquilo que quer se negar como parte de um projeto de nação civilizada, saneada e uniformizada a partir do centro (o litoral). Nesta direção temos a famosa frase de Afrânio Peixoto, que superlativamente afirmou começarem os sertões do Brasil quando findava a indefectível avenida Central, na capital carioca. O Acre amazônico: arquétipo do “distante e vazio”, uma prisão sem muros Na última década do século XIX e os anos iniciais do século XX foram bastante agitados na região do atual estado do Acre. O território era oficialmente boliviano, mas habitado quase que exclusivamente por brasileiros atraídos notadamente pela abertura de uma nova fronteira econômica e extrativista: a exploração do látex extraído da seringueira e do caucho. Escaramuças, revoltas e confrontos entre autoridades e forças militares bolivianas contra patrões seringalistas e comerciantes locais, que contavam com seringueiros armados, foram situações constantes desde 1898 até meados de 1903, quando é assinado o Tratado de Petrópolis entre Brasil e Bolívia e torna o Acre definitivamente brasileiro. As questões de fronteira com o Peru foram resolvidas um pouco mais tarde, em 1909, como o Tratado do Rio de Janeiro (TOCANTINS, 2000). O fato é que o assunto “Acre” torna-se algo que ninguém se mantém indiferente na virada do XIX para o XX. Principalmente em cidades como Manaus, Belém e Rio de Janeiro. Constroem-se imagens e representações sobre o Acre com Eldorado, terra da borracha, inferno verde, Sibéria tropical, local de aventureiros e espaço de homens tumultuários onde predominava a lei do mais forte. Uma dessas imagens, em seu sentido duplo, material e simbólico, foi publicada em forma de charge na revista humorística O Malho em 1903 (nº 20, p. 03). Com o título O Pandego, temos um macaco intencionando fazer algo desaconselhável na ótica do chargista, com seguinte legenda: “apezar de velho, o macaco que metter a mão em 79 Francisco Bento da Silva cumbuca”. Na cumbuca está escrita a palavra Acre. Ou seja, a incorporação do Acre ao Brasil representava um perigo, algo desaconselhável, que traria problemas a quem quisesse de forma desavisada ali se intrometer. Este macaco parecia, de forma satírica, ser a expressão da nação brasileira: pouco responsável, que não avalia o perigo, arrivista e carente de seriedade nas suas decisões. Figura 1: Charge O pândego, revista O Malho, nº20, p. 03, 1903. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional No Rio de Janeiro a imprensa de uma maneira geral retrata o Acre como um local a ser evitado, servia inclusive como elemento comparativo de escolhas por diversos tipos sociais que compunham a sociedade carioca: entre duas alternativas penosas, quando uma das opções era o Acre a outra era sempre a escolhida. Em outra charge, do mesmo autor anterior, Raul Pederneiras, mostra dois capoeiras travando o seguinte diálogo: “– Você está alistado¿”, pergunta um. O outro responde: “– Nunca! Prefiro me alistar no corpo eleitoral daqui”. Há o retruque: “– Eu voto contigo. Vôte!” (O Malho, 1903, nº 20, p. 05). 80 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre Figura 2: Charge Cabra sarado, revista O Malho, nº 20, p. 05, 1903. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional. Como era ano de campanha presidencial, há esta referência aos capoeiras que trabalhavam para políticos fazendo serviços sujos. O termo alistado tem aí um duplo sentido: alistar-se para ir ao Acre lutar contra os bolivianos e peruanos ou alistar-se a serviço de algum político durante a campanha eleitoral. A última opção como sempre é a preferida. Em outra imagem, no mesmo ano, o ministro barão do Rio Branco oferece um copo no qual está escrito Acre para um doente que representa o Tesouro Nacional. O barão então lhe diz: “prova esta droga, é amarga no começo mas doce no fundo” (O Malho, nº 60, p. 23). Acre, como sabemos, semanticamente tem o significado de algo azedo, de gosto pouco apreciado. Mas Acre é também amargo pelo tenso processo de incorporação ao Brasil e pela carga de simbologias negativas que já carregava desde antes do século XX. 81 Francisco Bento da Silva Figura 3: Charge A grande droga, revista O Malho, nº 60, 23, 1903. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional. É sob o signo desta ótica que o estado nacional passa a administrar o Acre como o primeiro Território Federal brasileiro, enviando homens de confiança – geralmente militares – para governarem como prefeitos departamentais nas incipientes vilas e cidades que começam a surgir. Conflitos entre estes administradores com a elite local tornam-se frequentes no decorrer das duas primeiras décadas do século XX, fazendo com que esses dois grupos mantenham uma relação às vezes de tensão ou complementaridade. Geralmente, estes governantes indicados não desejavam permanecer por muito tempo no Acre. O que de fato ocorreu com a grande maioria. O fato serem militares é sintomático, pois servir no Acre e aceitar a nomeação – além de não poder recusar por questões de hierarquia – poderia mais à frente significar voltar para o Rio de 82 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre Janeiro ou outra cidade importante, ser nomeado para um cargo melhor e mais importante ou ter promoção na carreira militar. O Acre era o contraste com a cidade do Rio de Janeiro para muitos desses homens que chegavam com o parâmetro de “civilidade” e “modernidade” espelhado no que era a capital federal. Logo vão se construindo discursos sobre o que era o Acre, suas gentes e seu espaço geográfico visto como sendo uma imensidão incomensurável que provocava solidão até nos sujeitos mais tenazes. Além disso, o Acre é mostrado como sendo povoado por indígenas bárbaros, seringueiros rudes, criminosos fugidos e local de doenças mortais provocadas pela má alimentação, agentes patogênicos e ares poucos saudáveis. Essas imagens negativas, em parte, explicam por que do governo federal escolher o Acre para enviar os indesejados sociais da capital republicana em 1904 e 1910 (SILVA, 2013). Ao ocorrerem os primeiros distúrbios da chamada Revolta da Vacina (1904), de pronto o governo federal decretou estado de sítio, sufocou os vários focos de revolta e prendeu mais de dois milhares de pessoas. Parte delas foi desterrada para o Acre, Território Federal incorporado formalmente ao Brasil um ano antes e tornado uma espécie de Sibéria tropical para os indesejados da República na primeira década do século XX. Na época, diversos jornais e revistas satíricas da capital federal retrataram esses desterros em textos e em charges. No caso das iconografias, além de remeterem às expulsões elas também trazem um conjunto de representações e estereótipos acerca do Acre. São essas questões que nos interessa reafirmar na sequência, a partir da seleção de algumas dessas imagens da época. Na revista O Malho de 1904, em sua edição de nº 115, p. 04, há uma fotografia destacando um conjunto de prisioneiros arrebatados para a Ilha das Cobras após o governo reprimir os distúrbios populares. Na legenda temos o seguinte texto: “o pessoal da arrelia que andou quebrando lampiões e bondes, gente desmiolada e que vai seguir para o Acre. Está hospedada na Ilha das Cobras a espera de vapor. Que bons ventos os leve e para cá não volte”. É parte de um editorial assinado pelo jornalista Ruy Vaz e mostra como a imprensa – humorística ou não – foi um importante veículo para expressar e fazer circular de maneira duradoura essa ideia de “distanciamento”, de um Acre longe “daqui” e marcadamente carregando o signo da negatividade. 83 Francisco Bento da Silva Figura 4: Fotografia de prisioneiros na Ilha das Cobras (RJ) em processo de embarque compulsório para o Acre. Revista O Malho, nº 115, p. 04. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional. Considerações finais Podemos pensar essa “construção” com algo inserido num processo amplo e difuso. Não é algo estático, mas moldável, localizado, deslocado e utilizado em determinados territórios (político, cultural, econômico, esportivo, social) quando se torna conveniente e útil. Assim, podemos perceber sua possível origem, existência e permanência em duas dimensões: uma externa e outra interna. Ou dizendo de outra forma, como nos vemos e como os outros nos veem. Daí deriva aquilo que podemos chamar de alteridade, onde a maioria dos sujeitos deixase atrair pela ideia de respeito, tolerância e até harmonização com seu semelhante por uma “origem comum” reconhecida, “um lugar” geografado, “uma história” partilhada, “uma cultura” especial. Mas também surgem visões opostas dessa perspectiva ligadas a noções de exótico, do diferente, do estranho e até do inferior, que muitas vezes são vozes vocalizadas pelo narrador que mesmo estando ali, não é “dali”. Contudo se coloca no papel de tradutor dos que os “outros” são. É tanto algo que se expressa em coisas concretas, mas que também se localiza com mais especificidade no campo do imaginário, o que não quer dizer necessariamente o oposto da chamada “realidade”. Tudo isso faz parte dessa realidade nas suas duas dimensões (concreta e imaginária), se constituindo naquilo que o historiador Giovani Levi (2000) vai chamar de 84 A Amazônia é longe daqui: desterros e exílios na República Brasileira (1904-1910) para os sertões do Acre herança imaterial; outros, de representações coletivas. É um conjunto de ideias, imagens, símbolos, mitos, utopias que permitem a conexão social entre os diferentes grupos que compõem uma dada sociedade ou comunidade. Numa relação tensa, hierarquizada, complexa, em que sincronias e diacronias estão em permanentes contatos e reelaborações. O Acre dos primeiros anos do século XX tinha seu nome quando evocado carregado dessas prenoções, que foram deixando marcas duradouras nas décadas seguintes com reflexos até os dias atuais. Referências AMADO, Janaína. “Região, sertão, nação”, pp. 145-151. In Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v l. 08, nº. 15, 1995. ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro: 18571945. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. 2. ed. São Paulo: Anablume, 2004. CASTRO, Iná Elias de. “Imaginário político e território: natureza, regionalismo e representação”, pp. 155- 196. In CASTRO, _________, et alli. Explorações geográficas: percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1870: programa, mito e realidade. Tradução de Maria Célia Pauli e Ana Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 2000. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e a representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ, 1999. MURARI, Luciana. Brasil, ficção geográfica: ciência e nacionalidade no país dos sertões. São Paulo: Anablume, 2004. NABUCO, Joaquim. 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Brasília: Senado Federal, 2000. 85 Nova(s) fronteira(s):um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana Nova(s) fronteira(s): um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana Geórgia Pereira Lima Márcio Roberto Vieira Cavalcante As representações da Amazônia brasileira, bem como, suas relações de integração latino-americanas apresentam uma região de fronteiras múltiplas impactadas, tanto pelo avanço do capital especulativo a partir da década de 1960 como pelas dinâmicas sociais que permitem observar como os discursos regionais e nacionais consolidaram um campo de enfrentamento sob os mais variados signos de significação e ressignificação da Amazônia. Entre outros, a literatura acadêmica sinaliza pensá-la como uma fronteira do expansionismo extrativista (COSTA SOBRINHO, 1992); fronteira agropecuarista (SANT’ ANNA, 1988); fronteira agroindustrial/mineradoras (BECKER, 2001, 2005 e 2006); fronteira capitalista (RÊGO, 2002; Silva 1986). Mais recentemente, a fronteira da biodiversidade (MAIA, 2008; ALBAGLI, 2001) de um ecossistema complexo e, fronteira de potencial hidráulico (CABRAL, 1988). Bem como, espaço de integração regional (MAP/2009; PAULA, 2005); zona de contato e de conflito (LIMA, 2010); integração latino–Amazônica (LIMA, 2012). Neste contexto, pensamos que as leituras e releituras da Amazônia brasileira devem considerar esta como uma das representações mais significativas para o entendimento do conceito de polissêmico de fronteira, entendê-la para além–fronteira jurídica de uma configuração de cercania nacional patronizada por elementos homogêneos que as franjas designadas pela demarcação territorial de Segurança Nacional que exprime uma ordem geopolítica de marcas e cisões da territorialidade extrativista do inicio do século XX para se  Doutoranda em História Social, DINTER UFAC/USP. Docente do Departamento de História Universidade Federal do Acre, Centro de Filosofia e Ciências Humanas.  Docente do Departamento de História Universidade Federal do Acre, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. 86 Geórgia Pereira Lima, Márcio Roberto Vieira Cavalcante constituir um espaço transnacional resultantes de movimentos sociais que relativizaram as fronteiras Norte sob o signo da contextualização dos conflitos agrários brasileiros (ALMEIDA, 1995; LIMA 2000) sobressaindo daí identidades que ficaram conhecidos como Brasivianos, Brazuvelanos, Brajolas e tantas outras, constituídas por trabalhadores despossuídos, expropriados e excluído do modelo agropecuário implantado a partir das décadas de 1970 e 1980. Esses sujeitos descolocados e em marcha, particularmente, pelo capital especulativo assomado aos discursos, tanto do governo federal quanto estaduais, em nome do “progresso e do desenvolvimento”. Assim, permite pensar a Amazônia Sul-Ocidental num contexto de múltiplas temporalidades e de estratégias de integração regional, bi-nacional e tri-nacional, seja através da dinâmica social e, ou, das políticas públicas que legisla sob a intencionalidade de resguardar bens nacionais como patrimônio de barganha do capital. Um desses quadros é passível de analise na política externa do governo Lula em razão da: [...] prioridade estabelecida na política externa do Governo Lula de ênfase na integração continental, leva a uma preocupação maior com a Amazônia sul-americana, tendo a bacia amazônica e o bioma florestal como referências. De outro lado, o PAS quer colocar o debate acerca do desenvolvimento da Amazônia no contexto de desenvolvimento do País, inclusive com a perspectiva de revisão de velhas abordagens que predominaram na interpretação da região (PAS, 2005). A história da região demonstra como seus limites com os diferentes países da América do Sul foram sendo construídos e legitimados por acordados internacionais. A fronteira da Amazônia Ocidental, mais especificamente, a fronteira tri-nacional, entre Brasil-Peru-Bolívia, é resultado de diferentes frentes de expansão econômicas das sociedades nacionais. A referida fronteira está relacionada aos movimentos da economia extrativista da borracha, e também a conflitos internacionais entre os países que a compõem. Na perspectiva da produção do conhecimento acadêmico, em grande parte, essas áreas são definidas como as periferias do Estado Nação. Áreas consideradas economicamente menos importantes em relação aos centros financeiros da economia nacional e que possuem um histórico de descaso governamental. Mas que de tempos em tempos se tornam alvo de políticas de integração regional e desenvolvimento. A atual geopolítica tem transformado essas periferias nacionais em centros da estratégia de integração sul-americana, sob a arquitetura da chamada globalização econômica. O novo cenário político nacional e mundial equaciona, de outra forma, a necessidade de integração regional e o lugar da Amazônia acreana na referida geopolítica, uma que nesta região os 87 Nova(s) fronteira(s):um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana espaços interamericanos e amazônicos dos rios Abunã e Acre, antes das décadas de 1970 se tornaram alvo de uma integração socioeconômica sob a perspectiva da economia extrativista (BUCÃO, 1904) e a partir da década de 1980 com o processo dos conflitos de terra, cerca de 7.500 famílias (CEPAMI, 1992) atravessam os referidos rios e passaram a viver uma experiência de vida, em condições clandestinas, nos seringais pandinos – BO. Diferentemente da geopolítica militarista, presente na Fronteira Clássica onde a integração regional tinha como objetivo a garantia da soberania nacional por meio da manutenção das fronteiras territoriais, hoje se percebe uma ênfase cada vez maior em estabelecer a integração da região e de sua economia ao contexto socioeconômico de outros países da América do Sul por meio da (des)integração das fronteiras jurídicas, sob as intenções de acordos binacionais e transnacionais, que possibilitam pensar o ser produtivo regional, também, como um setor de visibilidade da economia mundo, a exemplo do MERCOSUL. Neste sentido, podemos considerar a proposta de integração que está delineada nos atuais projetos governamentais, a exemplo do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) e, no Plano da Amazônia Sustentável (PAS), como estratégias integração regional e binacional promovida pelo Estado. A atual intervenção governamental visa promover o desenvolvimento da faixa de fronteira por meio de sua estruturação física, social e econômica, com ênfase na ativação das potencialidades locais e na articulação com outros países da América do Sul. Assim, particularizando esta análise as políticas públicas para Amazônia acreana, mostram que essas são formuladas com o objetivo de enfrentar as desigualdades regionais com base em uma proposta de desenvolvimento diferenciada visando pensar a diversidade regional em sua dimensão geográfica, mas principalmente, transnacional. Com esse fim, foram sendo articulados investimentos em infraestrutura econômica, como por exemplo, a recuperação e asfaltamento das rodovias BR 317 e 364, sob a proposta da “Estrada do Pacífico” redesenhando a ideia do potencial da região acreana da década de 1970 sob o slogan de governo “produzir no Acre e exportar pelo pacífico” que naquele período desestruturou a economia extrativista e colocou em perspectiva uma fase do capital especulativo sobre as terras acreanas que manteve o latifúndio da terra, apenas transferido da posse do seringalista para os fazendeiros e, ou, grandes grupos que passaram a atuar no campo acriano.  Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira formulado pelo Ministério da Integração Nacional em 2003. 88 Geórgia Pereira Lima, Márcio Roberto Vieira Cavalcante Frente ao fechamento das terras no Estado do Acre, fator principal para eclosão de luta da/pela terra por comunidades tradições desta região aparece como resultado das políticas públicas de desenvolvimento para a Amazônia. Assim, a partir dos incentivos ficais se configura um processo de desdobramento das situações internas do país com forte conotação para crise social e consequentemente o conflito agrário no campo acriano a partir de 1980. Dessa forma, podemos destacar em relação à Amazônia Sul-Ocidental dois indicadores: a crise agrária e o conflito na/da terra, que não estão presentes no planejamento estratégico do desenvolvimento por meio de incentivos fiscais da SUDAM, isso porque são políticas representantes de uma política agrária conformadora e beneficiadora do “desenvolvimento” do capital em detrimento do trabalhador brasileiro, colono, seringueiro e tantos outros que neste período foram expropriados e expulsos de seus espaços de vida e trabalho. O primeiro, a crise agrária, que se configurou no campo brasileiro, principalmente a partir da década de 1980, é resultado de um processo da reorganização do mercado internacional no qual o Brasil gravitou com o pensamento de tornar-se o “celeiro do mundo”. Nessa perspectiva, a agricultura de exportação se constituiu num processo de mecanização agrícola do centro-sul do país, e suplantou a chamada agricultura de subsistência, desta, a impossibilidade se manter no mercado competitivo nessas regiões o pequeno proprietário rural e/ou colono e sua família foram sendo direcionados para a Amazônia. A reforma agrária pensada estava alicerçada numa preposição equivocada na premissa que a Amazônia representava o slogan “uma terra sem homens para o homem sem terra”. Enquanto o primeiro indicador provoca a transferência de trabalhadores brasileiros expropriado da terra pela dinâmica do “desenvolvimento” da dinâmica do capital, o segundo indicador apresenta uma resposta do chamado posseiro acriano, como ficou conhecido o seringueiro e as chamadas comunidades tradicionais da floresta, frente à omissão do poder público, as formas de expropriação e expulsão do trabalhador na região acreana se dimensionam em busca de direitos humanos e políticos através dos embates. Esta forma de luta empreendida por aqueles sujeitos se traduziu na perspectiva de um projeto de politização dos chamados “povos da floresta” Nesse sentido, se torna importante não esquecer neste atual momento de planejamento das políticas de desenvolvimento regional, a partir da primeira década do século XXI, as memórias empreendidas por sujeitos sociais anônimos que o Estado brasileiro tenta tornar invisível, como se fosse possível traçar os novos paradigmas de crescimento e desenvolvimento regional sem dar crédito às lutas daqueles homens e mulheres. 89 Nova(s) fronteira(s):um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana Assim, inserido nessa perspectiva do planejamento de desenvolvimento regional está o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira que tem como objetivo específico promover o desenvolvimento de uma região altamente complexa em suas relações com os países vizinhos, mas, por um processo histórico de abandono governamental, possui uma extrema carência de infraestrutura. Todas as áreas situadas na fronteira brasileira, especialmente aquelas localizadas na Amazônia, de ocupação econômica recente, como é o caso do Acre, estão sendo priorizadas pela política de desenvolvimento. Sob o signo do Desenvolvimento Sustentável, a faixa de Fronteira vai se constituindo como alvo das políticas de desenvolvimento do governo, que inicia na região um processo de construção de infraestrutura para subsidiar essa proposta de desenvolvimento. A construção das condições favoráveis está prevista nos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento. É a partir dele que nos últimos anos se intensificam investimentos direcionados para a construção e asfaltamento de estradas, construção de barragens, hidrelétricas e hidrovias entre outros empreendimentos direcionados para o desenvolvimento da região amazônica. Vale ressaltar que essa proposta está distribuída em nove Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento: Arco Norte, Madeira-Amazonas, Araguaia-Tocantins, Oeste, Transnordestino, São Francisco, Rede Sudeste, Sudoeste e Sul que apresentam suas particularidades de lutas regionais, bem como, de garantias de direitos ora são atendidos, ora violados os quais conflitam com o interesse do capital que traduzem outras questões socioambientais de forte cunho político silenciador dos movimentos sociais atuais. Contudo, é importante evidenciar que do conjunto de investimentos previstos para os Eixos Arco Norte e Madeira-Amazonas (eixos que compreendem os projetos para a região amazônica), que compreendem os Estados do Amazonas, Acre, Amapá, Roraima e Rondônia, encontram-se implantados ou em implantação: a hidrovia do Rio Madeira; os gasodutos CoariManaus e Urucu-Porto Velho; linhas de transmissão de energia para o Acre e Mato Grosso; o aeroporto internacional de Porto Velho; a pavimentação das rodovias BR 364 e BR 317 nos estados de Mato Grosso e Acre; a pavimentação das rodovias BR 156 e BR 401 ligando o Brasil à Guiana Francesa e à República da Guiana; a ligação rodoviária Manaus -Boa Vista Caracas e a linha de transmissão de energia elétrica Guri - Boa Vista, que faz a integração energética do País com a Venezuela. A pavimentação da rodovia Br 317 entra nesse planejamento como obra concluída e em plena utilização. Todos esses empreendimentos têm como justificativa inicial a necessidade que a região amazônica tem de um crescimento ambientalmente sustentável e redutor de desigualdades 90 Geórgia Pereira Lima, Márcio Roberto Vieira Cavalcante regionais. Essa nova orientação tem como proposta principal modificar a percepção predominante no passado, que entendia o meio ambiente como obstáculo ao crescimento econômico, para inseri-la como variável qualificadora do novo modelo. Fazendo uso do tempo histórico que a intervenção autoritária na Amazônia gerou várias implicações que atualmente legitimam e justificam o tempo presente em que o reordenamento das políticas e da intervenção estatal na Amazônia acontece. Nessa moldagem e/ou remodelagem das relações entre o poder estatal, meio ambiente e a sociedade civil na Amazônia, ganha destaque não só a proposta de integração sul-americana, que nas entrelinhas do novo plano situa a Amazônia no contexto continental. Mas também a acentuada preocupação com uma maior participação da sociedade civil no processo decisório das formulações das políticas públicas na Amazônia. Influenciadas pela proposta da ecologia profunda e pelos princípios da agenda 21 as políticas públicas para a Amazônia estão sendo formuladas levando em consideração o significado e as implicações da presença dominante da floresta na região como resultado do processo de luta que garantisse a continuidade do modo de vida em defesa do homem e da floresta empreendida a partir da década de 1970 e visibilizada na década de 1980 pelo grito dos chamados “povos da floresta”. Além da necessidade de legitimação da chamada decisão compartilhada que só acontece com a participação coletiva, como narra o então governador Jorge Viana, uma entrevista cedida no dia 09 de dezembro de 2004: Significa dizer que nós não podemos permitir que a estrada seja um problema, que venha destruir o meio ambiente. Estrada na Amazônia, se não for feita com responsabilidade, pode trazer problemas e muita destruição. Tem que ter um plano de incorporação das famílias que vivem nas áreas isoladas, um plano de proteção ao meio ambiente, porque senão vem à especulação junto com a estrada, vem a grilagem de terra e vem também a violência, o conflito social. Isso nós não queremos. Nesta narrativa, os jogos de interesse emblemáticos de capital que precisa estar atento aos direitos humanos e ambientais se interligam, o que possibilita perceber as injunções do passado e presente na voz ativa do governador como representante de uma luta social que o seu plano de governo incorporou as demais lutas dos “povos da floresta”, visando justificar e sustentar no presente uma possível ação do capital e do plano “desenvolvimentista” estatal nessa nova fase de reorientação e organização regional acreana competitiva.  Plano Amazônia Sustentável (PAS) formulado por uma ação interministerial entre os ministérios do Meio Ambiente, Relações Exteriores, Planejamento e da Integração Nacional, formulado e lançado em 2005. 91 Nova(s) fronteira(s):um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana Aqui, o sentido do termo “responsabilidade” se efetiva sob duas perspectivas, a primeira, como uma forma de garantir os direitos às comunidades locais pelas ideias “incorporadas” e a segunda, a lógica do desenvolvimento regional a ser empreendido neste processo levar em conta um critério de planejamento que assegure a proteção do meio ambiente e em consequência um maior equilíbrio bioecológico da região para evitar a especulação junto com a estrada, vem a grilagem de terra e vem também a violência, o conflito social. Nesta parte da narrativa, os termos especulação, grilagem de terra, a violência e o conflito social são parte de uma leitura da conjuntura do desenvolvimento pensado para Amazônia a partir da década de 1970, isso implica pensar que o Estado do Acre ainda representa uma área recente para a expansão do capital especulador. Se essa é uma estratégia que o capital em nome do desenvolvimento ainda pode assumir na região como minimizar esse receio do governador Jorge Viana que proclama uma integração econômica das Amazônias na tri–fronteira latina? Há cem anos, o Brasil vivia um conflito com a Bolívia e com Peru para definir onde seria a fronteira. Cem anos depois, a gente sela a paz, tem a união dos nossos povos. Fatos como a reunião dos três presidentes no Acre, que esteve em guerra com essas duas nações, mostram que a união e a integração fazem parte do nosso destino.  A noção de integração Inter-Amazônica do representante político do Estado do Acre, Jorge Viana, se alicerça de um passado histórico conflitante durante a definição da fronteira entre Brasil – Bolívia – Peru. Mas, permite entender que a ideia de promover a “integração” é quase um esquecimento desse passado, uma vez que o presente de união dos nossos povos expressa um pensamento homogeneizador e esta união desejada pelo plano político silencia as diferenças socioculturais que devem ser suplantadas pelo interesse do “desenvolvimento” pelo capital. O pensamento político do governador Jorge Viana embora afirme que a união e a integração fazem parte do nosso destino, evidencia uma estratégia política que redimensionam a participação do Estado do Acre no cenário nacional e internacional de integração latinoamericana, mas também coloca a questão da soberania nacional dos países participantes da fronteira triparte da Amazônia e permite discutir as territorialidades interamericanas da Amazônia compartilhada, apresentando outra configuração da Amazônia Sul-Ocidental para o cenário político internacional da América do Sul.  Entrevista feita em 9 de dezembro de 2004 com o Sr. Jorge Viana. Governador do Estado do Acre. 92 Geórgia Pereira Lima, Márcio Roberto Vieira Cavalcante Assim, embora sejam recentes as discussões políticas para integração das Amazônias, no campo social esta se apresenta especificamente no contexto mais amplo de travessias realizadas por trabalhadores brasileiros bolivianos e peruanos que, ao atravessarem as fronteiras líquidas, representadas pelos rios Abunã e Acre, revelam e estabelecem os mais diversos tipos de contatos nesta fronteira tripartite. Um dos exemplos mais evidentes de trocas de mercadoria; trânsito de pessoas e culturas, nesta região entre Amazônias, são os trabalhadores seringueiros que desde antes de 1970 relativizaram as fronteiras Brasil e Bolívia, ficaram conhecido como brasivianos e, atualmente representam novos espaços de territorialidades identitárias desta zona de contato. Dessa forma, esta região de fronteiras interamericanas e amazônicas antes de ser uma área de integração de intensões políticas nacional e internacional foi resultado de um processo de histórico de integração social resultado da necessidade do trabalhador brasileiro, boliviano e peruano expropriado em migrar de seus locais nacionais e em suas trajetórias mesclarem e atualizarem o sentido de fronteira e território para além das fronteiras clássicas, baseada na ideia de soberania nacional. Nesse sentido, podemos pensar o encontro ocorrido no município de Brasiléia entre os presidentes do Brasil, Peru e Bolívia, no período de janeiro de 2005, este encontro mostra que as tentativas localizadas de ajuda mútua e cooperação de três regiões consideradas periféricas, que têm características comuns, fazem parte de uma proposta mais ampla de integração da parte sul do continente americano. É com base nessa nova forma de pensar o desenvolvimento regional que a atual intervenção estatal no Acre vem direcionando esforços na construção e manutenção de infraestrutura para subsidiar o desenvolvimento sustentável. As obras de asfaltamento e manutenção das rodovias BR 364 e BR 317 se inserem nesse cenário como os motores da proposta de integração e desenvolvimento. As referidas rodovias ligam o Estado do Acre às fronteiras do Brasil com a Bolívia e Peru. A recuperação da “Estrada do Pacífico” (Rodovia BR 317), prevista no planejamento dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento do Governo Federal, é a base da política da integração regional adotada pelo governo do Estado do Acre. Essa rodovia é apresentada nos discursos oficiais como a forma mais viável de garantir o desenvolvimento da região e a superação das desigualdades regionais. É a partir da Rodovia BR 317 que se direcionaria grande parte das exportações da região. A rodovia foi construída na década de 1970 com o 93 Nova(s) fronteira(s):um estudo sobre as políticas de integração regional na Amazônia Acreana objetivo de ligar o território brasileiro aos portos fluviais peruanos, sendo uma saída viável é barata para a economia regional. Além da ênfase na manutenção dos eixos rodoviários do estado ocorre ainda uma intensa atividade diplomática entre os governantes de Madre Del Dios (Departamento de Pando – Bolívia), Puerto Maldonado (Peru) e o Estado do Acre (Brasil). Os representantes dos três países trabalham no sentido de garantir uma maior cooperação e ajuda mútua entre as três regiões. A tentativa de estreitar os laços entre os três países tem sido materializada na construção de pontes que ligam o Brasil a Bolívia, a construção da continuação da Estrada do Pacifico no território boliviano, entre outras. Portanto, transcorrido o passado conflito do processo de anexação das terras acreanas ao estado brasileiro e, a partir deste, a (re)atualização dessas fronteiras continuaram ocorrendo em razão do trânsito de homens, mulheres e famílias, trabalhadores latinos, na maioria das vezes em situação de expropriação e exclusão social, que a integração social também evidencia uma contextualização de conflitos e, resta-nos a preocupação com o como essa “integração” política está ocorrendo e quais suas possíveis implicações para as populações das três regiões. Referências ALBAGLI, Sarita. Amazônia: fronteira geopolítica da biodiversidade. Parcerias Estratégicas – Biodiversidade, pesquisa e desenvolvimento sustentável na Amazônia. Número 12 – Setembro, 2001. BERCKER, Bertha K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários? Parcerias Estratégicas – modelos e cenários para Amazônia: o papel da ciência. Número 12 – Setembro, 2001. _______. 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Para atingir esse objetivo, serão abordados os fatores externos à solução proposta, como a globalização e o atual cenário de negócios no Brasil, além do papel do Estado nesse processo, sem desconsiderar experiências do passado como a reserva de mercado. Nas últimas décadas, as TICs tornaram-se o principal fator tecnológico a moldar a nossa sociedade, causando grande impacto nas relações sociais, empresariais e institucionais, o que tornou este setor o propulsor do desenvolvimento econômico dos EUA, Japão e da Europa Ocidental (PEREIRA e SILVA, 2010, p. 152-155). É devido a este contexto, que as principais empresas em valor de mercado no mundo, segundo o jornal britânico Financial Times (2014) são de TIC, sendo que estas, ao contrário do que acontece em outros setores, surgiram com pouco ou nenhum capital inicial (GONÇALVES, 2003). Geralmente atribui-se esse sucesso à implementação de uma boa ideia, aliada a resiliência, persistência e criatividade de empreendedores visionários, que não se deixaram abater pelas adversidades enfrentadas, sejam estas avindas da competição comum ao livre mercado, de restrições impostas pelo governo, como a burocracia e a regulação, ou ainda originadas de crises econômicas (DRUCKER, 1998, p. 15-18).  Graduando em Sistemas de Informação pela União Educacional do Norte - UNINORTE. 97 Giuliano Cardoso Feitosa Entretanto, ao atribuir as causas do sucesso e fracasso aos indivíduos e desconsiderar aspectos sociais, econômicos e políticos, isto é, problemas estruturais, esta abordagem não explica a contínua tendência de concentração das empresas deste setor em um único país ou região, pelo contrário, apenas evidência que existem outras causas para a imutabilidade desse cenário. O desenvolvimento das TICs se confunde com o processo de globalização, pois, ambos estão relacionados, afinal, a evolução dessas tecnologias que possibilitou a interconexão sem precedentes entre as economias globais, o que posteriormente resultou num aumento acentuado da competitividade. Porém, esta revolução não foi suficiente para debelar a supracitada tendência de concentração das corporações de TICs (LASTRES e ALBAGLI, 1999, p. 13), uma vez que, se esta fosse guiada apenas pela inovação, do ponto de vista de ideias, esta mudança de cenário advinda da globalização, resultaria na dispersão das companhias entre diversos competidores ao redor do globo, fato este que não ocorreu. Diversos estudos sob empreendedorismo demonstraram que não se limita apenas ao indivíduo a responsabilidade no êxito de um empreendimento, pois, como já citado, existem fatores externos a este, como o contexto econômico, tecnológico e social, os quais são influenciados diretamente pelas condições de mercado, regulamentações e pelas políticas governamentais (PIMENTEL, VIOLENTO, et al., 2013, p. 9-10). Diante disso, constata-se que cabe ao Estado a tarefa de criar as condições necessárias para a prosperidade destes empreendimentos. Nesse contexto, levando em consideração o baixo custo, para a criação e desenvolvimento de soluções de TICs, desde que exista força de trabalho capacitada, e a ausência de impactos diretos ao meio ambiente (LUNARDI, ALVES e SALLES, 2012), a criação de uma política pública que vise o desenvolvimento da TIC no Estado Acre, pode ser um aliado ideal para o desenvolvimento econômico regional. A globalização e o papel do estado no desenvolvimento econômico regional Para Sachs (1997), a globalização é usualmente descrita por seus defensores, como um processo irreversível que constituiu uma economia mundial com um único mercado, em que se atingiu a tal ponto que os Estados Nacionais não possuem a capacidade de regular as suas economias, devido ao protagonismo dos Mercados Globais e das Empresas Transnacionais, que 98 As tecnologias de informação e comunicação como aliadas no desenvolvimento econômico do Acre não estariam sujeitos dentro desse contexto à governança pública ativa, e que essa falta de interferência estatal seria benéfica devido a liberdade para a mobilidade de capital, que em teoria, resultaria na transferência maciça de investimentos e empregos dos países avançados para aqueles em desenvolvimento. Todavia, para o autor ocorre efeito oposto, pois a economia global estaria concentrada na Tríade (América do Norte, Europa e Japão), e devido a isto, as principais nações continuariam sendo dominantes, o que demonstra o mito de uma economia genuinamente global (SACHS, 1997). Entretanto, apesar de incidir em anacronismo, é necessário ressaltar que a análise de Sachs (1997) destoa do contexto econômico contemporâneo, pois, ao contrário do esperado pelo autor, posteriormente houve uma mobilidade de investimentos e empregos dos países desenvolvidos para países em desenvolvimento como a China, Índia e Brasil (IPEA, 2011). No caso chinês, podemos destacar a migração maciça de empregos das nações desenvolvidas, em especial da supracitada Tríade, para este país, em função dos baixos custos de produção, que são inferiores ao do Brasil (COURA, 2011, p. 251) e da maior parte dos países do mundo (IPEA, 2011, p. 45). A despeito do baixo custo de produção chinês ter resultado na realocação da cadeia produtiva global, o capital intelectual necessário para o desenvolvimento tecnológico permanece nos países de origens das corporações que investem naquele país (IPEA, 2011, p. 45), isto demonstra que em parte, a análise feita por Sachs (1997) permanece atual, uma vez que persiste a hegemonia dos países desenvolvidos. De acordo com Sachs (1997), as estratégias de desenvolvimento regional não perderam sua relevância com o advento da globalização, uma vez que a ideia de não intervenção do Estado apenas interessa a manutenção do protagonismo dos países desenvolvidos. O pensamento de Sachs é respaldado pelo cenário atual, uma vez que segundo análise do IPEA (2011, p. 45), o estado chinês foi o grande responsável pela concretização da já citada migração de empregos, o que demonstra a eficácia da utilização do Estado como ferramenta de desenvolvimento regional Apesar das ideias de desenvolvimento regional guiado pelo estado de autores como Sachs (1997) terem exemplos exitosos, como o caso chinês, cabe ressaltar que estas medidas nem sempre o são, e tão pouco são implementadas sem custos a sociedade. No caso da China, Coura (2011) que a competividade daquele país é assegurada pelos baixos salários, e de acordo com o IPEA (2011) mesmo com incrementos recentes, estes se 99 Giuliano Cardoso Feitosa encontram abaixo da média internacional, sendo que, aliado a isso, os trabalhadores possuem muito menos direitos trabalhistas do que pode ser observado em outros países. Percebe-se com isto, que esta abordagem desenvolvimentista está atrelada a perda de direitos e um consequente alto custo social, pois, os trabalhadores findam possuindo uma menor qualidade de vida, se comparados com o de outros países de mesmo patamar. A experiência da reserva de mercado de informática no Brasil No Brasil, políticas estatais destinadas ao desenvolvimento regional não são novidade, na história recente podemos destacar a experiência “fracassada” da reserva de mercado, que consistia na imposição governamental de restrições à importação de bens de consumo, visando fomentar a inovação tecnológica, fortalecer a indústria e reduzir ou eliminar a dependência tecnológica, mas, que ao término do programa acumulava mais fracassos do que sucessos (MARQUES, 2000). Para imaginarmos soluções futuras que visem o desenvolvimento regional, sobretudo através da via dos investimentos em tecnologia, devemos primeiramente analisar experiências similares do passado. De acordo com Marques (2000, p. 91), “poucos anos antes da sua condenação, a reserva de mercado aparecia também como um sucesso digno e surpreendente”. Visando corroborar esta afirmação, o autor ressalta que o Brasil foi um dos poucos países que conseguiram efetivamente suprir seu mercado interno de microcomputadores de forma independente, isto é, dependendo apenas da exploração de recursos locais, sendo que, as características técnicas dos produtos brasileiros se aproximavam daqueles existentes no que na época era denominado “mundo desenvolvido”, o que demonstra o nível de qualidade técnica atingida pelas equipes de engenheiros nacionais. Para Marques (MARQUES, 2000, p. 91), como estratégia, a reserva de mercado buscava mais do que desenvolvimento econômico através da tecnologia, visava à autonomia tecnológica do país. O movimento para sua implantação surgiu nos anos 1970, e teve apoio dos profissionais da área de informática da época, que viam nisso uma oportunidade de desenvolver a área no país, e de garantir a sua própria empregabilidade, uma vez que aumentariam as ofertas de trabalho. Concomitantemente, os militares que comandavam o país na época viam nisso uma oportunidade de garantir que teriam o efetivo controle sobre o seu arsenal de guerra, uma vez 100 As tecnologias de informação e comunicação como aliadas no desenvolvimento econômico do Acre que empresas nacionais substituiriam a tecnologia estrangeira pela nacional. Esse consenso inesperado, entre os militares, a academia e a indústria, foi um dos elementos essenciais para a implantação da reserva de mercado (MARQUES, 2000). Na visão de Marques (2000), o colapso não foi causado pelo advento dos microcomputadores pessoais, como o [IBM]-PC, pois, apesar da padronização dessa plataforma ter aumentado o número de fornecedores no mercado externo, e isto ter reduzido a diversidade e o custo desses produtos de maneira substancial, e de simultaneamente isso ter criado uma atmosfera de competição acirrada, o autor atribui o fracasso à inexistência de uma reforma na reserva de mercado, devido ao abandono de uma visão tecnocrática pelo puro autoritarismo. Apesar de ter sido um experimento “fracassado”, é inegável que por um determinado espaço de tempo, a reserva de mercado efetivamente atingiu os objetivos esperados, talvez, como aponta Marques (2000), a reforma da política que geria a atividade tivesse mantido o patamar anterior. Porém, ao fim da reserva de mercado em 1991, os microcomputadores produzidos no Brasil eram caros, defasados, e muitos eram apenas clones de versões estrangeiras (IKEHARA, 1997). Este caso exemplifica os perigos da regulamentação estatal, pois demonstra que uma política mal elaborada ou cristalizada pode resultar em problemas muito maiores do que a sua ausência, uma vez que ao tentar controlar o mercado, o estado obteve resultados diferentes do esperado, além de ter penalizado o consumidor com o encarecimento de produtos (IKEHARA, 1997). Empreendendo no Brasil Nas últimas duas décadas, devido a uma série de fatores, como a estabilização da economia, com o controle inflacionário advindo do Plano Real (LACERDA, BOCCHI, et al., 2010, p. 228), a simplificação tributária para micro e pequenas empresas e o aumento da oferta de crédito advindo da criação do supersimples, ao menos em tese, houve uma melhoria considerável do ambiente para a gestação de novos negócios no Brasil, uma vez que houve uma redução sem precedentes na burocracia estatal, aliado a disponibilização de novas formas de financiamento, que são essenciais a todo e qualquer novo empreendimento (GUERRA, 2007). Entretanto, apesar da remoção desses percalços, com a estabilização das condições externas e a oferta de crédito, cerca de 24,4% das pequenas e micro empresas, constituídas em 2007, cessaram suas atividades antes do segundo ano de existência (SEBRAE, 2013). 101 Giuliano Cardoso Feitosa Isto salienta que ainda persistem desafios consideráveis a serem ultrapassados, sendo que, uma análise acurada, nos permite vislumbrar a necessidade de uma mudança cultural, no que tange a forma de se empreender no País, pois, apesar de ser difícil precisar uma causa específica para a mortalidade das empresas (SEBRAE-SP, 2008), percebe-se que no Brasil persiste uma tendência persistente a informalidade, herança de um passado recente, em que a abertura de uma empresa era algo complexo e de alto custo (CÉSAR, CADE, et al., 2012, p. 6). Esse adiamento da constituição formal da empresa leva a outras práticas perniciosas, observadas inclusive nas empresas já formalizadas que, invariavelmente, levam esses empreendimentos a mortalidade prematura, da qual podemos destacar, conforme levantamento do SEBRAE (2013, p. 12), a falta de planejamento antes da abertura da empresa. Para Golin (2005, p. 9), muitas pessoas desejam se tornar empresários, mas não pretendem ou não são capazes de avaliar “antecipadamente o contexto econômico e situacional do local onde será implantado o novo empreendimento”. Com isso o planejamento, uma etapa essencial, é relegado a segundo plano. As incubadoras como um fator de mudança Como o ambiente de negócios no Brasil encontra-se propício ao desenvolvimento de novas empresas, em função da desburocratização e da oferta de crédito, entretanto, apesar da existência de organizações como o SEBRAE, percebe-se que ainda existe uma carência no auxílio aos novos empreendedores (GOLIN, 2005), por isto, torna-se notório a criação de meios para dirimir este obstáculo persistente, considerando que é papel do estado atuar como responsável no desenvolvimento regional (SACHS, 1997), projetos que visem dirimir as dificuldades relacionados a abertura de novos negócios, deveriam ser considerados para adição aos quadros de políticas públicas. Uma dessas políticas partiria da instituição por parte do Estado de incubadoras, isto é, instituições auxiliem empresas nascentes em uma determinada área de negócio (DORNELAS, 2002), na qual, novas empresas na área de TIC teriam apoio. Para Dornelas (2002), cabe às incubadoras fornecer assessoria na gestão técnica e empresarial de uma organização, além de oferecer possibilidades de serviços compartilhados, que são essenciais a qualquer empresa, como laboratórios, telefone, internet, fotocópias, correio, luz, água, segurança, área física, dentre tantos outros. Essas organizações que podem ser mantidas tanto por entidades governamentais, como universidades tem um papel  O SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), é um serviço social autônomo, que objetiva auxiliar o desenvolvimento de micro e pequenas empresas, estimulando o empreendedorismo no país. 102 As tecnologias de informação e comunicação como aliadas no desenvolvimento econômico do Acre fundamental no desenvolvimento de novos negócios, além de atuarem como agentes essenciais no desenvolvimento econômico regional, porque abrigam empresas emergentes em sua fase inicial, e deste modo catalisarem o processor empreendedor. No Brasil existem diversas incubadoras (INCUBAERO), dentre as quais, podemos destacar a INCAMP, que atualmente faz parte da INOVA (UNICAMP, 2013), um projeto da UNICAMP, similar ao aqui proposto, que tem como foco o desenvolvimento de empresas de base tecnológica. Em seu site consta que teve papel fundamental para a formação de diversas empresas, dos mais diversos setores, desde tecnologias agrícolas a automação industrial. No Estado do Acre, o setor de TICs corresponde a 0,62% da economia, representando um montante de R$ 241 milhões, que emprega 825 pessoas (DATAVIVA, 2012), ou seja, representa uma fatia ínfima, e isto, considerando que estes são os dados totais, dos quais fazem parte atividades tradicionais desse setor como a Transmissão de Programas Televisivos. Diante disso, a criação de incubadoras pelo Estado, que visem suportar o desenvolvimento de novas empresas deste setor, pode ser o fator decisivo para a alteração desse cenário. Considerações finais Em face do neoliberalismo que marcou o Brasil a partir dos anos 1990, muitos enxergam como um anacronismo a defesa da implantação de políticas públicas para o desenvolvimento regional. No entanto, é improvável que agentes externos, como corporações estrangeiras busquem realizar investimentos em capacitação para a produção local, ao analisarem os custos, pela lógica do Laissez-faire esses optarão pela via de importação tecnológica. No cenário atual, manter o destino do desenvolvimento regional sujeito ao livre mercado e a fatores como a globalização, isto é, sem qualquer intervenção do Estado, é uma posição que atende apenas aos interesses das “nações desenvolvidas”, fato este que é corroborado por experiências como a chinesa, pois o crescimento econômico excepcional atingido naquele país foi atingido em função de políticas públicas, estas advindas do Estado e não do livre mercado, mas, através da exploração estatal deste. Por isto, faz-se necessário a intervenção do Estado, para a alteração do cenário atual, não através de criação de estatais ou do favorecimento de setores em detrimentos de outros,  A Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é uma universidade pública brasileira, fundada em 1966. É uma das três universidades estaduais públicas do estado de São Paulo, junto com a Universidade de São Paulo e a Universidade Estadual Paulista. 103 Giuliano Cardoso Feitosa mas, de uma abordagem alternativa, que fora testada e conta com diversos casos de sucesso, isto é, a criação de incubadoras. A adoção dessa política no Acre poderia ser o fator necessário para o desenvolvimento e fortalecimento do setor de TIC, sendo que, a experiência adquirida poderia ser utilizada para expandir o projeto a outros setores. Todavia, apesar da criação de incubadoras ser uma solução de aparente alta viabilidade, esta ação sozinha não teria efeito no fomento ao desenvolvimento regional, afinal, além da disposição política a implantação pelo Estado de uma solução deste porte, existem questões práticas que requerem uma análise adequada, como se há efetivamente a quantidade necessária de profissionais, pois, como supracitado, o sucesso está relacionado ampla disponibilidade destes. Um ambiente em que exista um custo demasiadamente alto para a obtenção de capital humano, inviabilizará o desenvolvimento de novas empresas, pois, imputará em produtos com um custo final superior aos dos concorrentes, além de requerer investimentos que podem ser proibitivos dentro deste contexto. Afinal, pequenas empresas não dispõem do capital financeiro de corporações de médio e grande porte. Por isso, uma eventual implantação desta proposta deve ser precedida de estudos complementares, pois apenas estes podem aferir tanto a eficiência quanto a viabilidade dentro do contexto socioeconômico do Estado do Acre. Referências CÉSAR, N. D. A. et al. O Micro Empreendedor Individual no Município de Iúna-es: Formalidade X Informalidade. Simpósio de Excelência em Gestão e Tecnologia, Iúna-ES, 2012. Disponivel em: <http://www.aedb.br/seget/artigos12/22716474.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2014. COURA, B. D. C. O capitalismo contemporâneo e suas transformações: o impacto da terceirização trabalhista. Revista do tribunal regional do trabalho. 3ª Região, Belo Horizonte, n. 1, p. 241-267, 2011. Disponível em: <http://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_83/revista_83.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2014. DORNELAS, J. Planejando incubadoras de empresas. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002. DRUCKER, P. F. A profissão de administrador. 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Nesse sentido, é definido um conjunto de políticas e estratégias de desenvolvimento, dentre as quais estão: a “Política de Ocupação da Amazônia”, com a intenção de ocupar os espaços vazios; e a “Operação Amazônia”, que visava a atração de investidores e a efetivação do projeto desenvolvimentista. Inicialmente, buscou-se identificar o conceito de fronteira mais adequado para compreender a introdução da agropecuária no Acre, a partir do entendimento de José de Souza Martins a esse respeito. Em seguida, contextualizamos como se deu a definição das políticas desenvolvimentistas para a Amazônia e seus objetivos. Na segunda parte do artigo, apresentamos o avanço da fronteira agropecuária propriamente: a compra das terras acreanas por empresários do centro-sul; a realização da “limpeza da área”; e os conflitos pela posse da terra. Estas ações foram de fundamental importância para a introdução da pecuária na economia do estado. Finalizando, procuramos fazer uma breve análise da implantação da agropecuária no Acre, orientando-se pelas seguintes questões: os propósitos do governo militar brasileiro, em relação a sua política desenvolvimentista para a Amazônia, foram, realmente, alcançados? Quais as consequências dessa política para as populações acreanas? Que crescimento econômico é possível ser visualizado?  Graduada em História e aluna do Mestrado em Desenvolvimento Regional (MDR) da Universidade Federal do Acre (UFAC).  O processo de retirada dos tradicionais ocupantes (seringueiros) de suas antigas colocações de seringa para a constituição de pastagens para a criação de gado. 107 Janaira Fidelis Caetano Políticas desenvolvimentistas para Amazônia Foi durante a década de 1970 que a fronteira agropecuária avança em direção à Amazônia, atingindo o Estado do Acre, que nos primeiros anos desta década era governado pelo governador Wanderley Dantas, que teve participação decisiva nesse processo. O conceito de fronteira foi explorado por vários estudiosos que o definiram de acordo com suas concepções, por isso vamos ter várias definições de fronteira e vários tipos de fronteira. Um dos principais teóricos da fronteira foi Frederick Jackson Turner, que ao escrever sobre a História dos Estados Unidos, definiu Fronteira como o ponto de encontro entre a barbárie e a civilização (KNAUSS, 2004:24). De acordo com José de Souza Martins, estudioso desse tema, o que há de mais relevante para definir fronteira, no caso do Brasil, é a situação de conflito social. Segundo este autor: […] a fronteira é essencialmente o lugar de alteridade [...]. É o lugar de encontro e desencontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro (MARTINS, 1997:150). É esta perspectiva que nos orientará na elaboração deste texto, buscando compreender como se deu o avanço da fronteira agropecuária no estado do Acre. Quais os encontros e desencontros desse processo? Quais os sujeitos envolvidos? Quais os interesses desses sujeitos envolvidos? Além das diversas definições, o termo fronteira possui várias dimensões: fronteira política, econômica, natural, artificial, lineares, zonais, convencionais, etc. A fronteira agropecuária, a qual se vai analisar, pode ser entendida como uma fronteira econômica e ao mesmo tempo política, tendo em vista que se caracteriza por uma frente de expansão econômica voltada para a atividade agropecuária. E política porque faz parte de uma estratégia do poder político do país. A partir da década de 1960 tem-se início a um processo de desenvolvimento econômico do Brasil, que se intensifica com governo militar em 1964. Nesse período são criados vários projetos de desenvolvimento para as diversas regiões do país com o objetivo de promover a integração nacional. Dentre as primeiras ações de integração podemos citar: a criação da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, que visava promover o crescimento da região periférica; a criação de rodovias de integração de regiões como a 108 O avanço da fronteira agropecuária no acre durante o governo Wanderley Dantas Amazônia, como as rodovias Belém-Brasília e a São Paulo-Cuiabá-Acre. Mas tais medidas não foram suficientes para promover o crescimento e desenvolvimento das regiões consideradas periféricas do país, como o nordeste e a Amazônia, o centro do país representado principalmente pelo estado de São Paulo continuou a crescer em disparada, em detrimento dos demais estados, sobretudo os da região nordeste e norte (BECKER, 1982). Com a implantação da ditadura militar no Brasil a partir de 1964 é definido um novo projeto de desenvolvimento para o país, visando o crescimento acelerado através da modernização da agricultura e fortalecimento da indústria. Segundo Otavio Ianni, esse projeto desenvolvimentista estava atrelado a uma política internacional de expansão do capital, que passa a adentrar mais fortemente as fronteiras do país, a partir desse momento (IANNI, 1981). Foram implantadas novas estratégias de integração da Amazônia, através da ocupação dos espaços vazios, e inserção na economia nacional, assim foram criados o Banco da Amazônia (BASA), a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), a Zona Franca de Manaus com sua Superintendência (SUFRAMA), além disso, foram dados vários incentivos fiscais para investimentos na região (COSTA SOBRINHO, 2011). A implantação dessas estratégias de crescimento para a Amazônia representava tanto uma preocupação com o crescimento econômico da região, favorecendo a integração econômica com o restante do país, como fazia parte de um plano de segurança, tendo em vista a ameaça comunista representada pelos países vizinhos à região. Assim, baseados na doutrina da geopolítica e da segurança nacional, desenvolve-se a política de ocupação da Amazônia que visava a ocupação dos espaços vazios da região (DUARTE, 1987). Nesse mesmo propósito é colocada em ação a chamada “Operação Amazônica”, lançada após “Reunião de Investidores da Amazônia” em um cruzeiro a bordo do navio Rosa da Fonseca, onde foram definidos os interesses dos empresários do Centro-Sul em investir na Amazônia e os objetivos desse investimento (OLIVEIRA, 1991). De acordo com Berta Becker (1982) tais investimentos e preocupações com a Amazônia se deram porque esta passa a ser vista como uma região de imensas possibilidades, como verdadeira fronteira de recursos, ou seja, o desenvolvimento econômico da Amazônia representaria um crescimento do Brasil como um todo, além disso, ela se localiza em um ponto estratégico da América Latina, podendo estabelecer conexões com vários países e impulsionar o crescimento econômico de toda Amazônia Latino Americana. 109 Janaira Fidelis Caetano Avanço da Fronteira Agropecuária no Acre Com a definição das políticas desenvolvimentistas para a Amazônia, logo nos primeiros anos da década de 1970 tem-se início a implantação do Projeto Agropecuário no Estado do Acre, que visava aquecer a economia do Estado a partir da implantação da pecuária. Nesta época, o estado do Acre vivia uma crise econômica oriunda da falência da produção de látex, principal atividade econômica desenvolvida pelo Estado até então. Com o enfraquecimento da exploração da seringueira, intensificou-se o extrativismo de outros produtos florestais como a castanha, mas que não agregava valor à economia como a borracha. Isso facilitou o processo de introdução da pecuária. A falência dos seringais, a crise econômica do Estado, aliada às políticas e projetos de desenvolvimento do governo federal, juntamente com os incentivos fiscais, propagandas para atração de investimentos, aceleraram o avanço da frente agropecuária em direção ao Acre. Muitos empresários foram atraídos para comprarem terras e investirem na região, o que deu início a uma corrida pela compra de terras no Estado. O movimento migratório em direção ao Acre mobilizou grandes, médios e até pequenos proprietários do centro-sul. Os pequenos e médios proprietários foram atraídos pela possibilidade de se tornarem fazendeiros prósperos e bem-sucedidos no novo eldorado, pois a venda de suas propriedades de dimensões menores no lugar de origem permitiu a aquisição de glebas de terras que variavam de 100 a até 1.000 hectares. Os grandes empresários, por sua vez, não vieram tão-somente interessados na implantação de grandes projetos para explorar a pecuária extensiva de corte motivados pelos incentivos fiscais e crédito barato e fácil, mas para utilizar a terra como “reserva de valor” com fins meramente especulativos. Dessa maneira entraram em cena e integraram-se à verde paisagem acriana novos personagens, que passaram a ser identificados pela população local de um modo genérico com o nome de “paulistas” (COSTA SOBRINHO, 2011, p. 27). Muitos proprietários de terras e empresários foram atraídos para o Acre, a sua maioria com o objetivo do enriquecimento rápido. Os incentivos fiscais e as propagandas facilitaram o acesso as terras acreanas, e tanto o governo federal como o governo local incentivaram esse processo. O governador do Acre Wanderley Dantas (1971-1975), nomeado pelo governo militar e adepto a política de modernização autoritária, tinha como orientação fundamental de sua gestão a implantação de grandes fazendas de gado, objetivando o abastecimento interno (brasileiro) com carnes e laticínios, como também exportar este produto através do Peru e da Bolívia, inspirando-se no famoso slogan “investir no Acre, produzir no Acre e exportar para o 110 O avanço da fronteira agropecuária no acre durante o governo Wanderley Dantas Pacífico”. Por isso Dantas “abre as portas do Acre” para o investimento externo através dos incentivos fiscais e promove campanha publicitária para atrair os investidores. No início de seu mandato, o governador Wanderley Dantas (1971-1975) desenvolveu intensa campanha publicitária sobre as terras acreanas, visando atrair investidores do Centro-Sul para o estado. Um dos slogans da campanha diz: “Acre, a nova Canaã. / Um Nordeste sem seca, / Um Sul sem geadas. / Invista no Acre e exporte pelo pacífico” (SANTANA, 1988, p. 150). Diante dos incentivos fiscais, das campanhas publicitárias, os empresários do centro-sul do país começam a comprar as terras acreanas, na sua maioria, antigos seringais falidos. Mas muitos desses seringais foram abandonados por seus donos permanecendo no local somente os seringueiros que trabalhavam no corte da seringueira, que com a crise da produção extrativista começaram a praticar a agricultura de subsistência e criação de pequenos rebanhos, passando a ser posseiros daquelas terras. Ao comprarem as terras, muitos dos empresários do centro-sul visavam implantar a pecuária, e não precisavam do trabalho dos seringueiros. Esses seringueiros eram expulsos para dar espaço ao gado, efetuava-se assim uma limpeza das terras, que significa desmatar, queimar e expulsar o seringueiro. Para expulsarem os seringueiros os empresários do centro-sul utilizavam-se das mais variadas formas. No afã de desimpedir suas terras da incômoda presença de seringueiros, os compradores não hesitaram em utilizar os mais variados expedientes para expulsá-los das terras. Os métodos mais utilizados foram a indenização, normalmente irrisória, obstrução de estradas e varadouros, proibição de plantar, não fornecimento de mercadorias e até ameaças […] Mais recentemente, o método utilizado está sendo o desmatamento até bem próximo da casa do posseiro, deixando-o sem espaço para plantar (SILVA, 1982, p. 52). Com a expulsão dos seringueiros de suas posses teve início a uma série de conflitos pela posse da terra em todo o estado. Ao ser expulsos, a maioria desses seringueiros acabava migrando para a cidade em busca de sobrevivência, formando a periferia de Rio Branco e de outras cidades acreanas, outros acabavam migrando para os países vizinhos: Bolívia e Peru. Os conflitos pela posse da terra se espalharam por todo estado, à medida que os seringueiros começaram a resistir às ameaças dos proprietários de terras, e se mantiveram nas terras onde viviam. No decorrer dos conflitos, os seringueiros conseguiram se organizar para lutarem pela terra, com a criação de sindicatos e com o auxílio de algumas instituições como a Igreja Católica e a CONTAG. 111 Janaira Fidelis Caetano Apesar da resistência e organização dos seringueiros, as ameaças continuaram e muitos seringueiros, sindicalistas, foram ameaçados, feridos e mortos, como muitos jagunços também morreram em conflitos. A introdução da pecuária no Acre, como já citado, foi parte do projeto de desenvolvimento do governo militar brasileiro, e um dos objetivos era proporcionar o crescimento econômico do país através da integração e desenvolvimento de regiões como a Amazônia e Nordeste. Mas o processo de introdução da pecuária no Acre, iniciado com incentivos e campanhas para atração de investidores à região e pela venda de terras a empresários do centrosul, não gerou o crescimento esperado, divulgado pelos políticos proponentes do desenvolvimento. A maioria das terras vendidas aos empresários serviu apenas como reserva de valor, algumas localidades continuaram inutilizadas e outras assim se tornaram. O que predominou foi a pura e simples especulação fundiária, como afirma o autor Adalberto Ferreira da Silva: Intimamente relacionado com o preço irrisório da terra, pode-se identificar um outro fator que marcou profundamente a corrida pelas terras do Acre: a especulação fundiária. Esta foi a mola propulsora do interesse da maioria dos compradores do Centro-Sul pelas terras do Acre, onde a tônica era adquirir tudo o que fosse possível e garantir a posse à espera de “valorização fundiária” e, posteriormente, revendê-la com ganhos extraordinários (SILVA, 1982, p. 45). Além da especulação fundiária, a venda das terras acreanas agravou ainda mais o problema da sua concentração nas mãos de poucos e transformou as formas de uso da terra, trazendo uma série de outros problemas como a degradação da natureza, através do desmatamento, queimadas, contaminação de rios e igarapés, etc. Considerações Finais As análises aqui realizadas permitem perceber que as políticas desenvolvimentistas implantadas pelo governo militar brasileiro para a Amazônia/Acre tiverem consequências catastróficas. A Região continuou, nas décadas seguintes, isolada do resto do país, visto que a construção das rodovias não foi efetivada plenamente, algumas foram iniciadas e em seguida abandonadas, outras concluídas, não demoraram a serem deterioradas. Economicamente, a introdução da pecuária não conseguiu alcançar o mesmo êxito da produção extrativista da borracha. A compra das terras por empresários do centro-sul não 112 O avanço da fronteira agropecuária no acre durante o governo Wanderley Dantas significou que estes iriam realmente investir na pecuária ou em outra atividade econômica. A maioria dos compradores acabou utilizando as terras apenas como reserva de valor, somente para especulação fundiária. Os problemas de ordem social se agravaram com a expulsão dos seringueiros/trabalhadores rurais das terras que ocupavam. A migração destes para as cidades formaram as periferias, e com elas, surge a criminalidade (assaltos, assassinatos, uso e tráfico de drogas); a prostituição; a proliferação de doenças, etc. Mesmo reconhecendo que após três décadas passadas vários desses problemas já tenham sido superados, muitos permanecem e outros surgiram ao longo desses anos. Atualmente, o estado do Acre ainda não possui uma economia consolidada, mantém-se com os repasses do governo federal, possui uma população de 733.559 habitantes (senso 2010), com aproximadamente 74 mil famílias assistidas pelo programa bolsa família e o PIB de 0,2%. De acordo com o IBGE, menos de 40% da população tem acesso à água tratada, apenas 34,8% tem acesso à rede de esgoto, a taxa de analfabetismo é de 15,4% e a taxa de mortalidade infantil é de aproximadamente 28,9 óbitos a cada mil nascidos vivos, refletida na expectativa de vida do acriano, que é de 71 anos. Tudo isso se reflete na média do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que, atualmente é de 0, 751. Referências BECKER, Berta. Geopolítica da Amazônia: a nova fronteira de recursos. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. BECKER, Berta. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. CALIXTO, Valdir de Oliveira; SOUZA, Josué Fernandes de; SOUZA, José Dourado de. Acre: uma história em construção. Rio Branco: Fundação Cultural do Acre, 1985. COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. Comunicação alternativa e movimentos sociais na Amazônia Ocidental. João Pessoa: Editora Universitária, 2001. DUARTE, Élio Garcia. Conflitos pela terra no Acre: a resistência dos seringueiros de Xapuri. Rio Branco: Casa da Amazônia, 1987. IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 113 Janaira Fidelis Caetano KNAUSS, Paulo (Org). Oeste Americano: quatro ensaios dos Estados Unidos da América de Frederick Jackson Turner. Niterói: EDUFF, 2004. CLEMENTI, Hebe, J.F. Turner, Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1992. MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para não entregar: políticas públicas e Amazônia. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1991. SANTANA, Marcílio Ribeiro. Os imperadores do Acre: uma análise de recente expansão capitalista na Amazônia. Brasília: UNB, dissertação de mestrado, 1988. SILVA, Adalberto Ferreira da. Raízes da ocupação recente das terras do Acre: movimento de capitais, especulação fundiária e disputa pela terra. Belo Horizonte: UFMG, 1982. 114 Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) Liliane Nogueira Monteiro Introdução O território acriano no momento que foi incorporado pelo Brasil passou a ser administrado diretamente pela União através dos chamados prefeitos departamentais. O regime departamental vigorou entre 1904 e 1920, com três departamentos inicialmente: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá (em 1912 é criado o Departamento do Alto Tarauacá, desmembrado do Alto Juruá). Quando ocorre esta organização administrativa, por meio do Decreto Lei 5.188, assinado pelo presidente Rodrigues Alves em 1904, foram estabelecidos os principais órgãos do poder executivo no Acre Federal. Este poder prefeitural procura outorgar, através de Decretos exarados pelos chefes executivos locais, formas de controle expressas em medidas normativas e restritivas aos comportamentos e modos de vidas vistos como inadequados aos espaços públicos das incipientes cidades que começavam a surgir. Havia no Brasil de então uma espécie de crença inabalável por parte das autoridades administrativas que pode ser resumida em alguns poucos aspectos: cumpriam o que acreditavam ser “uma missão pública e civilizatória, alicerçada em conhecimentos do campo da medicina (o combate das epidemias), do saber jurídico (na criação de leis reguladoras dos bons costumes) e do saber dos engenheiros remodeladores (obras que expressavam bom gosto e funcionalidade da cidade)”. (SILVA, 2013, p. 81). No caso do Acre, este tipo de pensamento de alguma forma se explicita em medidas e argumentos usados pelas autoridades locais quando tentam organizar administrativamente e socialmente o Acre Federal a partir de 1904. É nesta direção que o crime e a criminalidade se tornaram de antemão preocupações para as autoridades locais. Partindo desses conceitos, nos  Graduada em História pela Universidade Federal do Acre – UFAC. 115 Liliane Nogueira Monteiro apoiamos em Boris Fausto, (2001, p.19) para tentar explicitar as diferenças entre os dois termos. Ele considera o crime como um fenômeno social pensado na sua dimensão ampla e de cunho jurídico. Ou seja, aquilo que é definido pelos órgãos de poder em determinado espaço e tempo como sendo proibido e ilícito do ponto de vista legal. Contudo, o crime ainda pode ser visto com um ato de ocorrência isolada, quando um determinado indivíduo rompe com o chamado pacto social. Já a criminalidade é algo que se insere em um aspecto de natureza mais sociológica, expresso nas taxas de ocorrência de determinados tipos de crime em um dado espaço social e temporal (Idem, p.19). Do ponto de vista metodológico, o campo historiográfico há algumas décadas passou a utilizar a documentação jurídico-criminal como importante fonte para trazer à tona aspectos sociais e comportamentais de sujeitos e grupos coletivos envolvidos com a justiça em determinados momentos de suas vidas. São documentos produzidos com outras finalidades primárias, mas que nas mãos de pesquisadores tem demonstrado uma riqueza impar como fonte histórica. Contudo, estes documentos trazem as marcas da seletividade das falas, das testemunhas, do lícito e do ilícito em uma determinada sociedade. Certos crimes e faltas podem ser punidos com rigor, de forma mais leve, serem objetos de reformulações ao longo do tempo. Ou seja, tem aspectos diacrônicos e sincrônicos. As vozes auscultadas na documentação criminal, notadamente inquéritos e processos, são atravessadas por mediações explicitadas nos resumos das falas postas no papel pela autoridade do escrivão, juiz e promotor. Contudo, “é a partir de parcelas desse discurso, desses fragmentos de vida, que se torna possível reconstruir os modos de racionalidade que regulam práticas, ações, os códigos que regem as relações sociais” (BOUTIER & JULIA, 1998, p. 49). O nosso objetivo é analisar como esses crimes ocorriam e como a polícia, mesmo com o efetivo reduzido, procurava reprimir de acordo com a lei os desordeiros que causavam “transtornos” a moral e aos bons costumes da época. Na pesquisa, encontramos muitos casos, porém optamos por analisar apenas dois desses Inquéritos Policiais, procurando mostrar as formas de controle sociais existentes e discutir como os crimes contra a moral e “bem viver” eram combatidos e punidos pela força policial e judicial, apontando questões de identidades e lugares sociais dos envolvidos (réus, vítimas, testemunhas, autoridades policiais) e com isso podendo observar como esses sujeitos se relacionavam com a ordem legal existente. 116 Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) Antônio Rodrigues Martins: tentativa de suicídio Nos três Departamentos criados pelo governo federal (Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá) passa a existir uma realidade que era semelhante a todos eles: o fato de ser o “Prefeito do Departamento uma espécie de regulador de todas as questões, o supremo arbítrio das questões que aqui se agitam, para prevenir abusos por parte dos indivíduos de má índole, acostumados a longanimidá-lo das autoridades outrora constituídas, quiçá á cumplicidade das mesmas, tendo os forçado a assinar termo de bem viver, e aos recalcitrantes castigados com o vigor que era facultado por lei” (MARIANO, 1906, p. 05). Podemos observar em um dos casos pesquisados, o do Antônio Rodrigues Martins, que no dia “16 de Dezembro de 1907, por volta da oito horas da manhã, na residência de João Tertulo da Silva, no lugar denominado Trez Unidos do seringal Valparaiso Departamento do Alto Juruá, foi levado à presença do inspector do quarteirão Dionizio Jacobino Cavalcante”. O indivíduo Antônio Rodrigues Martins (por alcunha Antônio Jorge) tentara suicidar-se, disparando em si mesmo um tiro de rifle. Capa do processo de Antônio Rodrigues Martins  Art. 299. Induzir, ou ajudar alguem a suicidar-se, ou para esse fim fornecer-lhe meios, com conhecimento de causa: Pena - de prisão cellular por dous a quatro annos. Código Penal de 1890. 117 Liliane Nogueira Monteiro Antônio Rodrigues Martins tinha 27 anos, solteiro, seringueiro e morador do lugar chamado Juazeiro do seringal Valparaiso, natural de Baturite estado do Ceará e filho de Jorge Martins. Ao ser questionado sobre quem lhe teria feito o ferimento, respondeu que tinha sido ele próprio que havia atirando com um rifle a fim de “exterminar a sua própria existência; accrescentando em seguida que não culpassem a pessoa alguma que o único auctor do ferimento em seu corpo era elle que o tinha feito com as próprias mãos”. Foi questionado sobre o motivo que o influenciou a fazer isto consigo mesmo e respondeu que tentou contra a própria vida por desgostos que sentia. Segundo a testemunha João Tertulo da Silva de 27 anos de idade, seringueiro, casado, morador do referido lugar, natural do estado do Ceará e aos costumes disse que: tendo hoje muito sedo ido a estrada de seringueiras afim de cortar a mesma estrada, como é de costume, não deixara na sua casa o paciente tendo ao voltar o encontrado com um ferimento do lado esquerdo do ventre produzido por uma arma de fogo e que perguntando ao paciente elle testemunha, o que era aquillo, respondeu esse que tinha sido elle próprio com suas mãos, que devido a desgosto de sentia tentara acabar com a existência. E que nada mais sabia com relação ao facto. O outro depoente foi o seringueiro chamado “Josimo Francisco de Lima de 30 anos, seringueiro, casado e morador do lugar denominado “Trez Unidos” do seringal Valparaizo da décima quarta circunscrição de paz do Alto Môa, natural do estado do Ceará disse que: tendo chegado a sua estrada de seringueiras ouviu a detonação de uma arma de fogo e após um gritos de uma pessoa que sofria isto, para la da casa de seu vizinho João Tertulo,e que desejando saber o que era dirigira-se para o local onde havia se dado a detonação e ali chegando avista o seringueiro Antonio Rodrigues Martins (vulgo Antonio Jorge) prostado na pachiuba com um ferimento do lado esquerdo do ventre e que perguntado o que tinha havido, este respondera que tinha sido elle próprio com suas mãos que atirara-se com o fim de exterminar a existência. E perguntando ellea testemunha a Jorge qual a razão da tal realização, respondeu este que por motivos de desgostos que sentia. O Inspetor do quarteirão Dionizio Jacobino Cavalcante solicitou que fosse feito exame de corpo de delito na pessoa de Antônio Rodrigues Martins para que pudesse ser apurado os meios e a arma que ocasionaram o ferimento. Após o exame ser realizado foi constado como já havia sido mencionado tanto pelas testemunhas quanto pelo próprio Antônio Rodrigues que o ferimento era de arma de fogo e que foi ocasionado por ele mesmo. Por conta do ferimento foi constatado que Antônio Rodrigues ficaria impossibilitado do serviço ativo por mais de 30 dias. No entanto, por não haver base para procedimento oficial o Juiz José do Nascimento Lebre solicitou o arquivamento do processo no dia 22 de Dezembro de 1907. 118 Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) A população da cidade, naquela época, era basicamente seringueiros vindos do Nordeste. O provimento dos seringais era dos mais sérios problemas da região, de execução exclusiva dos seringalistas. Anualmente, tornava-se necessário o preenchimento dos claros resultantes do abandono dos extratores do látex. Havia dias que saíam desapercebidamente 5 a 10 trabalhadores. Eram quatro ou oito ou mais contos de reis definitivamente perdidos. Abriam-se lacunas que urgiam serem preenchidas, para que não caísse a produção do seringal. Os fugitivos procuravam as cidades, entregando-se a diferentes misteres e alguns, para melhor se garantirem, verificavam praças nas Companhias Regionais. O proprietário buscava ansioso, auxilio junto às autoridades, para que os fizessem retornar ao trabalho, como devedores relapsos. Essas, porém, não tinham meios legais para compeli-los a regressar aos seringais. Com a aproximação do início das safras, imperioso e tornava o recompletamento dos claros. Prepostos eram enviados aos estados do Nordeste, desde o Maranhão a Sergipe. Cada ano mais difícil se tornava esse recrutamento. Geralmente, a mão-de-obra não especializada se opunha a abandonar o torrão de natal. A extração do látex já não atraía a migração para a Amazônia. (BARROS, 1910, p. 141). É possível perceber que essas pessoas vinham para a região trabalhar e chegavam endividados, pois o proprietário só fornecia utensílios e alimentação por um determinado período, e com isso as despesas só iam aumentando. O Engenheiro Alberto Masô certa vez declarou: “O seringueiro é quase sempre um escravo das suas dívidas”, muitas vezes os preços absurdos eram majorados na contabilidade dos seringueiros, pois precisavam compensar os desfalques decorrentes da evasão de alguns outros seringueiros (BARROS, 1910, p. 142). Outro aspecto que poderia ser a causa da tentativa de suicídio do Antônio Rodrigues Martins seria essa questão de largar a sua família e o seu estado para vir para o seringal no Acre e com isso acabavam ficando sem a assistência afetiva, o incentivo o qual poderia sim desencadear um desespero a ponto de querer tirar a própria vida. Outra questão era o fato de o policiamento ser bem reduzido. Isso aumentava ainda mais os incidentes sejam de homicídio ou suicídios na região, pois como o destacamento era bem pequeno ficava complicado manter a ordem na zona urbana e quase impossível qualquer ação preventiva e até mesmo de diligências nos vastos e distantes seringais onde vivia boa parte da população do Acre.  Art. 294. Matar alguém: § 1º Si o crime for perpetrado com qualquer das circunstâncias agravantes mencionadas nos §§ 2º, 3º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º, 18º e 19º do art. 39 e § 2º do art. 41: Pena - de prisão celular por doze a trinta anos.§ 2º Si o homicídio não tiver sido agravado pelas referidas circunstâncias: Pena - de prisão celular por seis a vinte e quatro anos. Código Penal, op. cit. 119 Liliane Nogueira Monteiro Nos processos e inquéritos pesquisados neste período encontramos alguns que chamaram bastante atenção, como no caso envolvendo José Evangelista Correia que foi acusado de dirigir insultos a alguns comerciantes do mercado público de Cruzeiro do Sul, sede administrativa do Alto Juruá. Capa do processo de José Evangelista Correia Pedro Américo Benevides de trinta e dois anos de idade, casado, natural do estado do Ceará, comerciante e residente na cidade de Cruzeiro de Sul, depõe no dia 27 de Abril de 1920 e diz que José Evangelista Correia, que também era comerciante no mercado público, constantemente dirigia provocações ao demais trabalhadores, concorrentes e empregados do mercado público. Por conta disso, acaba causando a indignação da maioria que ali tinha o seu negócio e esse procedimento do José Evangelista acabava, segundo o depoente, acentuando-se mais quando ele estava alcoolizado. 120 Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) Consta nos autos que neste dia 27 de Abril estava Luiz Gurgel a assobiar uma música qualquer e José Evangelista dirigiu-se a ele e falou: “aquele que assobiava dava o cu, ou era fresco” e diante de tal insulto Luiz Gurgel pediu para que José Evangelista que não o maltratasse daquela forma com insultos tão baixos, pois sempre o havia tratado com respeito; José Evangelista não atendeu as ponderações de Gurgel, continuou maltratando-o e com mais veemência dos insultos anteriores e sendo Pedro Américo Cunhado de Gurgel sentiu-se chocado com as ofensas e “aconselhou Gurgel a reagir”. Com isso Gurgel atracou-se com José Evangelista e chegaram a deitar-se no chão, mais logo o largando. No entanto, José Evangelista após ser largado por Gurgel tomou posse de uma faca desafio os comerciantes para se aproximarem dele e continuou com a proferir palavras ofensivas a moral, tais como: “venha filho da puta, filho de uma égua”. Neste momento a polícia interveio e efetuou a prisão de José Evangelista. Ao chegar à delegacia, José Evangelista que tinha cinquenta e três anos de idade, natural do estado do Ceará, casado, comerciante e residente na cidade de Cruzeiro do Sul foi questionado por qual motivo tinha se dado o ocorrido, falou que é de longa data que o Pedro Américo Benevides, que é açougueiro do mercado público alimenta em seu desfavor certa antipatia, o que não inibia de ter como amigo Luiz Gurgel, a quem sempre tratou bem procurando ate auxiliá-lo na vida, incumbindo-lhe muitas vezes alguns serviços mediante pequenos pagamentos e dada esta natureza de relação entre ele e Gurgel, sempre o tratou com familiaridade e dirigindo brincadeiras entre as quais, e que era muito comum entre as pessoas, os menos cultos poderiam ouvi-los como injuriosos e que já era um hábito seu chamá-lo em tom de brincadeira Luiz Gurgel de filho da puta, fresco, etc. No entanto, José Evangelista supõe que Pedro Américo, que já tinha uma certa antipatia por ele, pediu para que Gurgel tomasse uma providência sobre os insultos que estavam sendo proferidos a ele. Gurgel insultado pelo seu cunhado partiu para cima de José Evangelista e os dois caíram no chão de terra, e no momento que Gurgel avançou em José Evangelista, foi Pedro Américo quem o empurrou e que ainda o ajudou no espancamento feito a ele, e no momento que estavam “brigando” chegou a patrulha do mercado que lhe deu voz de prisão, levando-o a cadeia pública e deixando em paz seus agressores. O delegado pediu exame de corpo para José Evangelista Correia, porém os peritos constataram que não havia vestígio algum de lesão corporal. Luiz de Freitas Gurgel de vinte três anos de idade, solteiro, natural do estado do Ceará, Jornaleiro residente na cidade de Cruzeiro do Sul, sabia ler e escrever também deu sua versão 121 Liliane Nogueira Monteiro do ocorrido: No dia 27 de Abril de 1920, por volta da 11h00 min mais ou menos, ficou no mercado substituindo Antônio Costa da Silva no seu negócio, enquanto ele ia ao cartório. Quando seu cunhado Pedro Américo perguntou se ele já sabia assobiar certa valsa e começou a cantar enquanto Gurgel acompanhava assobiando e nisso José Evangelista se encontrava na outra extremidade do mercado e ao ouvir seu assobio falou em voz alta: “quem assobia é fresco”, neste momento Luiz Gurgel se sentiu magoado e dirigiu-se até José Evangelista pedindo-lhe que pelo amor de Deus que não o chamasse de fresco. José Evangelista insistiu no insulto e disse que ele era “fresco e meio”, então seu cunhado Pedro Américo lhe aconselhou a reagir ao insulto, o que de fato o fez, dando um empurrão em José Evangelista que o fez cair no chão do mercado. Tiveram uma “luta” corporal e José Evangelista ao se desvencilhar de Luiz Gurgel tomou posse de uma faca de talho que era de Pedro Américo e com ela o desafiou e chamou-lhe de “corno e filho de uma égua”. Pedro Américo tentou ainda rebater os insultos, porém a patrulha do mercado interveio e recolheu José Evangelista a prisão e assim terminando o incidente. No entanto, Luiz Gurgel ressaltou que “José Evangelista as raras vezes que não se acha puchando, é um excellente homem, mas habitualmente ébrio ou em estado de embriaguez como vive, é um indivíduo intolerável, constituindo objecto de frenquentes discórdia no mercado público, onde elle desempenha o cargo de magarefe”. De acordo com as declarações de Luiz Gurgel o Delegado Odilon Augusto de Moura pode verificar que José Evangelista foi aquele que com o auxílio de Pedro Américo, que foi o instigador do crime derrubado no chão e esmurrando por várias vezes. Assim foram incriminados Luiz Gurgel e Pedro Américo, o primeiro como mandatário e o segundo como mandante de acordo com o Artigo 303 do código penal no dia 05 de maio de 1920. Considerações Finais No entanto é possível perceber que por diversos motivos poderiam acontecer crimes relacionados a suicídio e embriaguez como estes relatados no artigo. Entre 1904 e 1920, vários  Art. 396. Embriagar- se por hábito, ou apresentar- se em público em estado de embriaguez manifesta: Pena - de prisão celular de quinze a trinta dias. Código Penal, op. cit.  Açougueiro classificador (exclusive comércio), Arrancador em matadouro, Arreador em matadouro, Auxiliar de magarefe, Cangoteiro em matadouro, Classificador de carnes, Classificador de carnes em matadouro, Coxãozeiro em matadouro, Despansador em matadouro, Lombador em matadouro, Pescoceiro em matadouro, Quarteador em matadouro.  Art. 303. Offender physicamente alguem, produzindo-lhe dôr ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue: Pena - de prisão cellular por tres mezes a um anno. Código Penal, op. cit. 122 Crimes contra a ordem e o “bem viver” no Departamento do Alto Juruá, Acre (1904-1920) crimes se encaixavam nesse padrão, como embriaguez, vadiagem entre outros. O Código Penal de 1890 ao mesmo tempo em que trazia mecanismos de controle sociais mais adequados à nova sociedade republicana, trazia também avanços ao estabelecer clara ruptura em relação às concepções e práticas penais da sociedade. A lei procurava punir aqueles que tinham um comportamento indevido perante a sociedade, com isso procurava diminuir o índice de crimes. Neste artigo, há muitas questões longe de serem conclusivas, buscamos apontar alguns interesses que pretendemos analisar historicamente perante as práticas penais da época. Referências Antônio Rodrigues Martins. Réu: Inquérito Policial. 14ª Circunscrição de Paz do Alto Juruá Território do Acre, 1907, 23 p. CDH/TJAC. BARROS, Glimedes Rego. 1910 – Nos confins do extremo oeste. Rio De Janeiro: Biblioteca do Exército, 1993. 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Toda a semana santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúria, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora (CUNHA, 2003, p. 117). Segundo Cunha (2003), os habitantes dos rincões das florestas acrianas, seja urbano ou rural, viviam em uma “interminável sexta-feira da paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora (Idem). Essas gentes sofridas viviam num silêncio misterioso sobre as cidades. Nos “sertões profundos onde as gentes entristecidas se associavam a magoa prodigiosa de Deus” (Ibidem), constroem uma existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar “acabrunhadoramente” na via dolorosa inalterável. Essas gentes viviam em um círculo fechado das estradas de seringa. Apesar desta situação “não se rebelam, ou blasfemam. “O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios” (Ibidem). Essas gentes são mais fortes, mais dignas. Resignam-se a “desdita” e não murmuram, não rezam. Seguem impassíveis e mudos, no grande isolamento da sua desventura. Nesta interminável penitência o Homem vive  Nas narrativas literárias o sertanejo, o “brabo”, tem uma fisionomia de homem triste e solitário. Seja pelos anos de labuta das matas e varadouros ou por um cotidiano de isolamento e solidão no centro do seringal. Seja como for, o homem amazônico aparece nos textos literários como esse ser desencontrado de si mesmo, que vaga nas matas, nesses outros sertões amazônicos.  Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas e Professor da Universidade Federal do Acre. 124 Márcio Roberto Vieira Cavalcante e sobrevive. “O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua (Ibidem). E o seringueiro abalança-se a esse prodigioso de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da ferragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma existência invariável e quieta (CUNHA, 2003, p. 120). Essas gentes simples que descontam suas frustrações e desventuras no Judas na sextafeira da paixão esculpem o boneco de palha sua imagem e semelhança. “Vinga-se de si mesmo: pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais ou plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu... (Idem). Esse povo que sofre de uma fraqueza moral significativa e sobrevive em meio a uma vida decaída, vive e sobrevive em meio ao ciclo vital de uma terra sem história, onde a volubilidade do rio contagia o homem. O cenário infernal abriga um homem errante “assaltando-o por vezes, quase sempre o afugentando e espavorindo-o” (CUNHA, 2003, p. 29). Segundo Cunha (2003), a adaptação nestes rincões da floresta exercita-se pelo nomadismo. “Daí em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, há três séculos, numa agitação tumultuária e estéril” (Idem). Nesta trilha, é possível escrever maravilhosamente uma página inédita do Gênese. No entanto, é necessário que se saiba que naquela sociedade principiante, os vícios e os desmandos imanentes dos grandes deslocamentos sociais são uma constante. O rude seringueiro é duramente explorado, vivendo despeado do pedaço de terra em que pisa longos anos – e exigindo, pela sua situação precária e instável, urgentes providências legislativas que lhe garantam melhores resultados a tão grandes esforços (CUNHA, 2003, p.30).  Em sua obra instigante e misteriosa Euclides da Cunha, que aqui em nosso trabalho aparece como texto literário por excelência, mostra um pouco do cotidiano do homem das matas acrianas. Este vinga-se de si mesmo e de outrem em uma data especial para ele. Na sexta-feira da paixão constroem um sinistro ritual, montam um boneco de palha, a sua imagem e semelhança, e o soltam no rio em cima de uma tosca jangada. Este boneco é fuzilado pelos seringueiros nas diversas colocações por que passa como uma forma de se vingar de uma vida sofrida, de um cotidiano de tédio e repetição.  Aqui Euclides da Cunha ratifica a proposta de pensar que a ausência de escrita, de material grafado, implica na ausência de história. Uma noção que parte do entendimento que para que haja história é necessário registro escrito. Além disso, a ausência quase generalizada de serviços públicos, do estado em linhas gerais, faz desses homens e mulheres deserdados da república que tinha acabado de ser proclamada. A ausência da república fazia desses homens sujeitos sem história. 125 O homem que vive para sofrer Enquanto essas providências legislativas não chegam aos rincões da floresta acriana os seus habitantes continuam entregues a um afastamento, agravados pela carência de comunicação. “A justiça é naturalmente serôdia e nula. Mas todos esses males, que fora longo miudear, e que não velamos, provém, acima de tudo, do fato meramente físico da distância” (Idem). O homem ali é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem... Os mesmos rios ainda não se firmaram nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio derivando, divagantes, em meandros instáveis, contorcidos em sacados, cujos istmos a revezes se rompem e se soldam... (CUNHA, 2003, p. 34). Nos rios, barrancos e periferias da cidade na floresta acriana os rios são estradas naturais dessas paragens verdes. “São taperas de paxeúba, suspensas por estacas de itaúba ou maçaranduba, madeiras de lei fortes para resistir à umidade. São cobertas com palha de ouricuri, jacy ou jarina, palmeiras abundantes nesta região”. (CUNHA, 2003, p. 34). Nessas “habitações vivia o nordestino, triste, que espiava com os olhos compridos o estirão que se encompridava atrás da chata e às frentes de sua visão” (MAIA, 1978). Esses salpicos de civilização mostram a presença obstinada do homem na selva, em sua grande maioria nordestina, que para cá vieram e vêm em busca de riqueza que solucione, de uma vez por todas, sua miserável e instável vida no sertão seco das caatingas. Com sua coragem indômita, plantaram-se à beira destes rios e daí para dentro da selva. Buscando as terras firmes, foram formando os seringais, povoando esse outro sertão, bem diferente, porque é verde e molhado (MAIA, 1978, p. 25). Esse outro sertão projeta os acontecimentos por aqueles lugares e como os homens como principal protagonista naquele cenário verde e úmido se inter-relacionavam, viviam, amavam e morriam. “Como era limitado e ocioso o tempo aproveitado pelo homem que leva a sua vida internado no mato ‘cortando seringa’ (MAIA, 1978, p. 35). E naqueles dias de degredo, daquelas sombras humanas (MAIA, 1978) que se passam no seio da floresta o homem acriano se perdia na inércia, na apatia, na indolência. O médico autor mostra que no côncavo dos barrancos e no regaço dos rios que correm caudalosamente e dormentes como grandes artérias da natureza tropical desses brasis o Homem se constrói cotidianamente e sofre em sua interminável sexta-feira da paixão.  Essa proposta de Mário Maia em sua instigante obra, “Rio e barrancos do Acre”, nasce da constatação de que esses seres que aqui viviam tinham saído de um ambiente árido e seco, o nordeste brasileiro – comumente chamado sertão. Estiveram a partir de então de se deparar com um clima quente e úmido das florestas tropicais, se depararam com animais ferozes e com índios arredios. Do sertão nordestino, para os sertões amazônicos, esse povo teve que se ambientar e se adaptar para poder construir sua própria sobrevivência nas matas acrianas. 126 Márcio Roberto Vieira Cavalcante Ao contrário do que se pode pensar, que o tempo do Homem acriano era destinado em sua grande parte a inatividade. O médico autor mostra que Pelo contrário, esse precioso tempo era consumido, ativa e febrilmente, em viagens e visitas a outros companheiros de isolamento selvático, na fuga impulsiva do animal gregário que é o homem, da solidão segregadora, para o convívio com outros seres da mesma espécie. Atingindo em sua mente por uma verdadeira neurose de solidão, o homem extrativista da floresta fala sozinho ou com frequência passa a conversar com o gato, ou com o cão que costuma possuir como companheiro, únicos seres que parecem compreender o seu drama e entendê-lo em sua magnitude (MAIA, 1978, p. 37). Esses pequenos refúgios, pequenas fugas “em verdade são um atendimento incoercível ao instinto associativo da natureza humana (MAIA, 1978, p. 38). Este homem enclausurado nas lianas da densa floresta de repente vê-se assaltado por uma força incognoscível que lhe excita o desejo de dirigir-se a alguém para ver e falar-lhe. Tantas Marias e Antônios dos Santos, Fermiros e Mercês que transitavam pelos varadouros do seringal e vielas do bairro Papouco. Uns que dedicavam seus dias angustiosamente a extrair o tão precioso látex, outros se deitando na cama e despindo-se para estranhos. Maria das Mercês é um exemplo disso, saído dos vazadouros extenuantes do seringal diretamente para as vielas escuras do bairro Papouco. “No começo, era-lhe constrangedor, porém logo acostumou-se a receber dinheiro em troca de deitar na cama e despir-se para aqueles estranhos” (MAIA, 1978, p. 57). Apesar disso, Maria das Mercês, apesar de rapariga do Papouco, mantinha a linha necessária para não ser considerada uma qualquer. “Era reservada e tinha um sorriso triste. “Não gostava de escândalos nem bebedeiras e muito raramente ia a ‘bagunça’ da Amália” (MAIA, 1978, p. 61). Maria das Mercês é um estereotipo de homens e mulheres que travavam suas vivências nos rios e barrancos das pequenas cidades acreanas. “É bem certo que conduzimos aí ao longo da vida muitos cadáveres de nós próprios” (CASTRO, 1972, p. 13). Esses Homens não são hoje o total que foram ontem, nem serão amanhã. Esta Amazônia longínqua e enigmática. (CASTRO, 1972). Esta selva indômita, este exílio permanente e fraterno, “esses rios de lendárias fortunas, onde os homens se enclausuravam do mundo, numa labuta de martírio para a conquista do oiro negro – e até onde os ecos da civilização só chegavam mui” (CASTRO, 1972, p.23).  Os nomes citados fazem parte do enredo da maravilha e esfuziante obra de Mario Maia, neste texto, “Rios e Barrancos do Acre”, o autor mostra um pouco do cotidiano dos seringueiros nos centros da mata virgem. O autor é um dos primeiros a perceber o processo de emancipação dos seringueiros em relação à ordem e a disciplina dos patrões. Mostra o processo de saída dos seringais acrianos e a ida para as periferias das pequenas cidades. Mostra as desventuras de um povo enraizado que se ver diante de um novo cenário, o da “cidade grande”. 127 O homem que vive para sofrer Dum dia para o outro, o seringueiro de “saldo”, que levara uma dezena de anos na selva, em luta com a natureza implacável, para adquirir os dinheiros necessários ao regresso, via-se sem nada - e sem saber até como o haviam despojados. De novo pobre, com a família e a terra, preocupação constante do seu exílio, a atraírem-no de longe, ele sufocava, uma vez mais, as saudades, a dor do tempo perdido, e regressava ao seringal, tão miserável como no primeiro dia em que lá aportara (CASTRO, 1972, p. 25). Desta imobilidade do viver seringueiro, garantida por uma dívida permanente, nasce uma saudade, uma dor perdida dos bons dias no nordeste distante e inalcançável. Dramas anônimos construídos por homens e mulheres exiladas nos seringais e pequenas cidades acrianas. Essa “gente rude que ia desbravando, com desconhecido heroísmo, a selva densa e feroz” (CASTRO, 1972, p. 24) têm como paga as desventuras e tristezas de uma vida simples nos rios e barracos do Acre antigo. Os algozes dessas gentes, que acendiam charutos com notas de cem, embriagados com a súbita abastança não formavam sociedade. A vida decorria nos botequins, nos encontros fortuitos dos que não têm famílias nem raízes agrilhoadas. E com os mestres em expedientes, buscando lucro fácil, vinham também, atraídos pelo fanal doirado, mulheres de todas as esquinas do mundo (CASTRO, 1972, p. 24). E neste meretrício cosmopolita que se desenrolavam as tramas e dramas dessas gentes simples que só queria viver em um lugar tão inóspito para a presença humana. Nos muitos “Justos Chermont” da vida alheia homens e mulheres construíam suas vidas. Às vezes na escuridão dos seringais, noutras nas vielas escuras do bairro Papouco. Mas sempre a estirar-se em uma interminável sofreguidão permanente. Homens e mulheres tristes construíam inconscientemente um Acre antigo com seus sentimentos e sensibilidade a flor da pele. Naquele mundo embrionário, que séculos depois ainda amedrontava e espantava. “A selva virgem parecia querer assim castigar aquele que ousava violar o seu mistério” (CASTRO, 1972, p. 56). Naquelas solidões imensuráveis a exploração sedia lugar ao trabalho organizado. “A chegada de “brabos”, de novos legionários que o Ceará e o Maranhão enviavam à selva, era sempre motivo de galhofa para aqueles que já tinham amestrado na vida da terra insubmissa e de costumes singulares” (CASTRO, 1972, p. 61). No entanto, ruíra o sonho que os trouxera até ali. Já que “a goma-elástica, em sucessivas desvalorizações, mal dava agora para a farinha de mandioca e o quilo de jabá que  Justos Chermont é a embarcação que leva Alberto para o centro do seringal paraíso, nas proximidades do Rio Madeira. Para viver sob a autoridade do Coronel Juca Tristão. Nesta obra, a Selva de Ferreira de Castro, os seringueiros se mostram completamente submissos aos mandos do seringalista, sendo que a disciplina e as normas são transgredidas cotidianamente. 128 Márcio Roberto Vieira Cavalcante eles adquiriam aos domingos, quando vinham ‘aviar-se’ ao barracão da margem” (CASTRO, 1972, P. 63). Muitos Albertos, Donas Yáyás, Guerreiros, Jucas Tristãos, Balbinos, Firminos, Agostinhos Caetanos e Tiagos viam seus sonhos derramados, tal como o leite do ouro negro, pelo desafortúnio dos movimentos da economia internacional. A selva, como um jogo fantasmático e espetaculoso de sombras e claridades, abrigava agora milhares de dezenas de homens e mulheres que viam seus sonhos derramados, tal o leite precioso. Tudo neste grande cenário de luz e sombra acaba como um grande incêndio, para que os pecados de uns e de outros possam ser perdoados e para que haja a remissão total e irrestrita. Referências BARROS, Glimedes Rego. Nos Confins do extremo Oeste. 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O acre como fronteira de desenvolvimento capitalista: o processo de fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia contra presença dos “paulistas” nas terras de posseiros, seringueiros e colonos Maria Janete Cesário Braga* Márcio José Batista** Wilson de Souza Guimarães** Jean Mauro de Abreu Morais*** Introdução Durante um longo período da história a Amazônia tinha como e unicamente sua principal atividade econômica ligada ao extrativismo florestal, praticado por um seringueiro que nela chegou já sendo escravizado. Segundo Euclides da Cunha, que destaca a condição de sofrimento e escravidão do seringueiro, o qual era enganado e atraído para a Amazônia onde se sentia abandonado por Deus, “[...] o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se[...]”. O autor chega a fazer uma denúncia social contra as condições de vida dos emigrantes nordestinos nos seringais, produzidos pelo cruel sistema de aviamento os quais eram submetidos quando ali chegavam. Eram enviados para o meio da selva para viverem uma escravidão solitária e um endividamento quase que impagável com o seringalista (patrão), o que Euclides chamou de expatriados dentro da própria pátria, “encarcerados numa prisão sem muros”. Ao longo de muitos anos e muitas lutas e sofrimento pela sobrevivência esse seringueiro a muito custo consegue sua tão sonhada “liberdade”, chega então um novo “patrão” o chamado “paulista” para tomar-lhe o que conseguiu com seu tão sofrido labor. O presente artigo tem por finalidade apresentar um estudo bibliográfico feito a partir do processo de formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia- STRB, Mestranda em Letras – Linguagem e Identidade – na Universidade Federal do Acre (UFAC). ** Graduada em História - na Universidade Federal do Acre (UFAC. *** Mestranda em Educação – Linguagem e Identidade – na Universidade Federal do Acre (UFAC) * 132 Maria Janete Cesário Braga, Márcio José Batista, Wilson de Souza Guimarães, Jean Mauro de Abreu Morais analisando no processo de luta dos trabalhadores rurais (seringueiros, colonos e posseiros) pela posse da terra e contra a penetração do capital agropecuário na região. Neste sentido, explicaremos a resistência desses trabalhadores rurais através de “empates” organizados a partir de seu sindicato o qual era estruturado como forma de resistência desses trabalhadores. Buscou-se alinhar a pesquisa para produzir o conhecimento a partir da história social, que de forma objetiva é assim exemplificada: Não há como negar, foi a partir de suas concepções e perspectivas (as da história social) que os chamados temas malditos, ou seja, quase todos que tratam dos excluídos sociais, sejam pobres, vagabundos, prostitutas, negros, mulheres, índios, etc. Encontraram guarida na historiografia (FENELON, 1993, p. 76). A começar pela prática da história social, passou-se a trabalhar categorias sociais antes excluídas pelo economicismo então em vigor na historiografia brasileira. Antes da fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia – STRB em dezembro de 1975, lutas importantes tiveram lugar com a chegada da frente de expansão agropecuária ao município de Brasiléia. Essas lutas pela posse da terra na região envolviam seringueiros, colonos e fazendeiros e tem início a partir da chegada dos proprietáriosfazendeiros dos seringais do município os quais tentam impor um novo modo de vida nas áreas adquiridas, como trocar o homem pelo boi, ou seja, derrubar a floresta para plantar pasto, substituindo o secular extrativismo pela recente agropecuária. Isto gerou conflitos de classes de posseiros contra fazendeiros e vice-versa. É nesse processo que os trabalhadores rurais de Brasiléia vão tecer resistência, em que o STRB torna-se importante como entidade política nessa luta, que mesmo antes de sua existência, seringueiros e colonos já haviam iniciado práticas de resistências a seus inimigos de classes, os fazendeiros. Os anos 1970 marcaram uma nova fase na economia acreana. Após o Golpe Militar de 1964 tem início uma nova política para a ocupação das terras amazônicas, com os incentivos fiscais do governo federal e com isso chegam à região grandes grupos econômicos nacionais e até mesmo internacionais com a finalidade de ocupar e desenvolver a Amazônia, criando com isso, uma verdadeira corrida às suas terras, em grande disponibilidade. Tinha início então os grandes projetos agropecuários de ocupação das terras dos seringueiros: Em geral, foram os projetos agropecuários que absorveram as maiores extensões de terras. Seja pelas terras realmente destinadas às pastagens naturais e artificiais, seja pelas terras deixadas virgens para as reservas de matas, ou futuras pastagens, as empresas que trataram de implantar projetos agropecuários absorveram, de longe, as 133 O acre como fronteira de desenvolvimento capitalista: o processo de fundação do Sindicato ... maiores extensões das terras da região. Sem esquecer a prática muito corrente na Amazônia, por parte de grileiros, latifundiários, fazendeiros e empresários, de comprar terras para utilizá-las como “reserva de valor”, contra a depreciação da moeda para futuras atividades econômicas ou especulações. As grandes facilidades fiscais e creditícias, além do apoio político, também ostensivo, o grande capital nacional e estrangeiro, propiciaram uma intensa e generalizada corrida a terra, por parte de nacionais e estrangeiros. Daí a recriação do latifúndio, sob novas modalidades, ao lado da criação e expansão de empresas de extrativismo, agropecuária, agroindústria ou indústria. Mas foram os projetos agropecuários, que receberam elevados incentivos fiscais e creditícios governamentais, que provocaram uma intensa e generalizada transformação das terras tribais, devolutas ou ocupadas em terras de grileiros, latifundiários, fazendeiros ou empresários (IANNI, 1979, p. 79). Dessa forma, a Amazônia acreana é transformada numa “fronteira" de desenvolvimento capitalista. No estado do Acre, a procura pelas terras começa no governo de Francisco Wanderley Dantas (1971-1975) que procurará de todas as maneiras atrair investidores para o estado. No entanto, a ocupação das terras acreanas já vinha sendo articulados bem antes do governo de Dantas. Tal ocupação das terras, por esse modelo se dará não por pequenos trabalhadores ou agricultores e sim por grandes empresários, grileiros e especuladores interessados apenas em beneficiar-se dos incentivos fiscais com a finalidade especulativa. No governo de Dantas, a agropecuária é adotada como atividade econômica a ser desenvolvida em substituição ao extrativismo vegetal. Com a fundação do STR de Brasiléia, em dezembro de 1975, a direção do Sindicato inicia um trabalho de organização de base através da criação das delegacias sindicais. As quais cumpriam importante papel de representação do sindicato nos seringais, pois dada a extensão dos mesmos a própria distância entre as colocações que muitas vezes eram grandes, ficava muito difícil o acompanhamento constante dos diretores nos mais diversos pontos de conflito de terra. Assim, dependendo do número de colocações e o núcleo populacional, eram criadas uma ou mais delegacias sindicais, cujos delegados eram escolhidos pela comunidade para representá-la nas reuniões da sede do sindicato, localizado na cidade. Este método de organização permitiu uma ligação maior entre as bases e a direção, tornando mais forte a mobilização contra a presença dos “paulistas” na região de Brasiléia. A ação de impedimento dos desmatamentos ficou conhecida como “empate” que eram as ações coletivas de seringueiros, colonos e posseiros que tinham como objetivo impedir os desmatamentos e a tomada de suas terras pelos “paulistas, o “empate”, então, tornou-se uma das formas de luta usada com mais frequência como forma de resistência à expropriação das terras. [...] “empate vem do termo empatar, que quer dizer impedir a continuidade de 134 Maria Janete Cesário Braga, Márcio José Batista, Wilson de Souza Guimarães, Jean Mauro de Abreu Morais desmatamento no interior das colocações de seringa, iniciados por fazendeiros durante a implantação da pecuária[...]. (CAVALCANTE, 2002, p. 92). No início de 1976, o STRB começa a desenvolver juntamente com os seringueiros várias ações de enfrentamento aos fazendeiros. O primeiro “empate” foi realizado em março de 1976, no Seringal Carmem, município de Brasiléia. A iniciativa de “empatar” o desmatamento partiu dos “posseiros” dessa área e contou com o apoio da direção do recém-fundado Sindicato dos Trabalhadores Rurais - STR, daquele município. Armados com suas espingardas de caça, aproximadamente sessenta homens cercaram o acampamento dos “peões” contratados pelo fazendeiro para realizar a derrubada da mata (PAULA, 2004, p. 90). Com a consolidação do STRB, a luta de classes na região intensifica-se e cada vez mais avança. Francisco Alves Mendes Filho conhecido por Chico Mendes, secretário geral do STRB desde a sua fundação, afasta-se da diretoria e se desloca para o município de Xapuri com o propósito de fundar o sindicato naquela região. É durante a sua gestão que se dá a instrumentalização do sindicato, é comprada a sede do sindicato, montado o escritório e ampliado o número de delegacias sindicais. Havia se destacado também na luta pela posse da terra um amazonense chamado Wilson Pinheiro, que substituiria Elias Rozendo na presidência do STRB em setembro de 1977. De acordo com Elder Andrade de Paula: Wilson Pinheiros era amazonense, da região do Careiro em Manaus e já havia participado de sindicatos urbanos. Ele não tinha origem de seringueiro, começou a vida na cidade e vivia numa condição social precária em Manaus. Por isso resolveu arranjar outros meios para sobreviver, descolocou-se para a região do garimpo em Porto Velho e depois para o Acre onde entrou para o seringal e começou a cortar seringa. Casou-se na região de Brasiléia e instalou-se na região do Sacado. Quando os pecuaristas começaram o processo de expulsão, Wilson Pinheiro estava nesse seringal. Esta foi uma área de muitos conflitos e ele participou das primeiras reuniões da CONTAG no Km 80 da estrada de Assis Brasil (PAULA, 1991, p. 118). No período que Wilson Pinheiro esteve à frente do STRB, a entidade confirmara a sua condição de principal polo de resistência à expropriação no estado do Acre, inclusive filiando seringueiros de outras localidades, como é o caso de Sena Madureira, onde apesar de haver um sindicato instalado os trabalhadores rurais procuravam filiar-se ao STRB. “Com Wilson Pinheiro na presidência do sindicato, os seringueiros e posseiros passaram a depositar mais confiança na entidade. Com isso houve um fortalecimento na luta de resistência e alguns acordos com fazendeiros” (PAULA, 1991, p. 121). 135 O acre como fronteira de desenvolvimento capitalista: o processo de fundação do Sindicato ... Na gestão de Wilson Pinheiro, os conflitos surgidos eram resolvidos baseados numa determinação do sindicato: era exigida uma indenização justa, que deveria ser paga em dinheiro ou lote de terra. O sindicato aconselhava sempre a segunda opção, delimitando uma área mínima de 50 a 100 hectares. Com o fortalecimento das delegacias sindicais, o STRB passa a avançar cada vez mais no sentido de barrar a presença dos “paulistas”, o que agravava ainda mais a luta de classes na região, transformando-a num dos principais focos de resistência à expropriação da terra no país. O ano de 1979 foi marcado por uma grande ofensiva do STRB contra os fazendeiros da região. No mês de junho daquele ano, aproximadamente 85 seringueiros impediram na região de Assis Brasil, na fronteira com Brasiléia, o desmatamento de um seringal com um número considerável de posseiros. A participação maciça de trabalhadores rurais deu a esse “empate”, repercussão na grande imprensa nacional. A ação dos STRs do Acre ultrapassou as fronteiras do estado, e no mês de setembro, mais 100 trabalhadores rurais representando os sindicatos de Rio Branco, Sena Madureira, Feijó, Tarauacá, Cruzeiro do Sul, Xapuri e Brasiléia deslocaram-se até o município de Boca do Acre, localizado no Amazonas na fronteira com o Acre a fim de impedir um desmatamento que atingia as erras de 36 famílias de posseiros. Segundo Elder Andrade, ... todos os meios legais haviam sido acionados pela CONTAG e o sindicato de Boca do Acre para resolver a situação das 36 famílias de posseiros. Relatórios com denúncias foram encaminhados ao INCRA, ao governo do estado do Amazonas, ao 4º batalhão especial de Fronteiras- BEF. Na justiça, os ‘posseiros’ ganharam com a revogação de uma ação de despejo. Os desmatamentos contavam com o “apoio” de jagunços, que armados ameaçavam as famílias que se recusavam a desocupar as áreas desmatadas. Com a chegada do exército, os jagunços fugiam, abandonando arma e munições, que foram apreendidos e entregues ao comando do batalhão em Rio Branco. Em novembro de 1980, ocorreu um “empate” no seringal Guanabara em Assis Brasil que foi denominado de “Operação Pega Fazendeiro”. Os seringueiros avisaram o sindicato e foram à 4º Companhia de, em Assis Brasil. Falou claro ‘estão invadindo nossa terra e fazendo derriba’, a 4ª Companhia deu autorização e ordem para trazer os responsáveis. Não era para fazer cerimônia (...). Partiram os seringueiros de Assis Brasil para o seringal Guanabara, no caminho foram ‘arrebanhado’ mais gente e ao final eram 104 homens aramados, entre os quais três delegados sindicais (...). Assim foi, enquanto quatro homens foram falar com chico Vieira, os 100 ficaram a distância(...). O fazendeiro parece que não estava muito desposto a um acordo, ‘que negócio é esse de ir a 4ª companhia?’ Mas o quando soube que por perto estava uma centena e homens armados(...) mudou de ideia e se dirigiu para a 4ª Companhia, (...) na reunião na 4ª companhia ficou decidido que os 136 Maria Janete Cesário Braga, Márcio José Batista, Wilson de Souza Guimarães, Jean Mauro de Abreu Morais fazendeiros iriam respeitar as “colocações” dos seringueiros (PAULA, 1991, p. 123124). Devido aos constantes “empates” promovidos pelo STRB, este passa a ser um instrumento de lutas políticas muito importantes na região de Brasiléia. Wilson Pinheiro, presidente do STRB, passa a ser o inimigo número um dos fazendeiros “paulistas” do Acre, chegando algumas ações do STRB a ganhar destaque nos grandes jornais do Brasil. O clima no município de Brasiléia estava bastante tenso, devido aos sucessivos “empates” que o sindicato daquela localidade havia realizado. Em julho de 1980, os conflitos de terra em Brasiléia atingem seu clímax: na noite do dia 21 o presidente do STRB, Wilson de Souza Pinheiro é assassinado com três tiros, na sede do sindicato. Wilson Pinheiro por sua defesa coerente dos seringueiros e colonos contra os “paulistas” era “jurado” de morte por parte dos últimos, no entanto, “Wilsão”, como era conhecido, não temia as ameaças e continuava seu trabalho à frente do sindicato dos trabalhadores rurais de Brasiléia, lutando e defendendo um povo excluído. Os posseiros em sua quase totalidade eram analfabetos e desconheciam seus direitos e não restando outra coisa a fazer, abandonavam suas posses amedrontadas pelas armas, tanto dos “paulistas” quanto da polícia. Para os posseiros, os fazendeiros eram os reais proprietários da terra, uma vez que possuíam os documentos das mesmas. Na maioria dos casos, havia poucas possibilidades de se resolver o impasse, restando praticamente uma alternativa aos trabalhadores: resistir. Os “paulistas” ao comprarem as terras, visitavam as “colocações de seringa” ameaçando os seringueiros, afirmando-se os legítimos proprietários e dando prazo para que desocupassem a área. Outro caminho proposto pelos “paulistas” consistia em indenizar os “posseiros”, com quantias incompatíveis com o real valor da terra e suas benfeitorias. Além do valor de venda das terras, havia também uma representação de valores e significados de anos e anos de trabalho. Considerações finais Todo esse abuso de poder contra os seringueiros repercutiu na mídia local e até nacional e mostrou a importância da situação fundiária no Acre. A intervenção por parte do estado, feita através da desapropriação de terras e assentamento de colonos, contribuiu bastante para que os conflitos praticamente cessassem naquela região de Brasiléia, ficando o sindicato dos 137 O acre como fronteira de desenvolvimento capitalista: o processo de fundação do Sindicato ... trabalhadores rurais daquele município à frente de lutas contra madeireiros e tentando viabilizar condições para que os trabalhadores rurais permanecessem em suas terras. Porém o que se retrata é uma “guerra”, verdadeiros conflitos os quais se desdobraram em um contexto de inquietude social e político. Os conflitos pela da terra não cessarão jamais principalmente para os seringueiros que têm uma história de luta, de protesto contra a política para a borracha nativa, contra a devastação da floresta amazônica. Os trabalhadores dos seringais foram responsáveis por muitas manifestações políticas em vários municípios do Acre. Eles queriam conseguir do governo federal não apenas o reconhecimento oficial das reservas extrativas, mas também que as condições para execução desse trabalho fossem definidas e caracterizadas. Os seringueiros e suas entidades de apoio utilizam o termo “empate”, como símbolo de suas resistências, de suas lutas e de suas reivindicações. Referências CAVALCANTE, Ormifran Pessoa. Carmem: era uma vez um seringal. Recife: UFPE, 2002. (Dissertação de Mestrado em História do Brasil) COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. Capital e trabalho na Amazônia Ocidental: contribuição à história social e das lutas sindicais no Acre. São Paulo: Cortez, 1992. CUNHA, Euclides. À margem da história. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12105/8767. Acesso em: 20 jul. 2014. IANNI, Octavio. Ditadura e agricultura: o desenvolvimento do capitalismo na Amazônia: 1964-1978. 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Acesso em: 22 jul. 2014. 138 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) Marta Valéria de Lima* Tambor de Mina é o nome que na região amazônica é dado a práticas religiosas de origem africana e na qual se mesclam elementos do catolicismo popular (rezas, ladainhas e procissões dedicadas a santos) com práticas rituais indígenas amazônicas (curas com ervas e com outros elementos da natureza, bem como a incorporação de adeptos com seres chamados de encantados) e práticas africanas de origem jeje e yorubana, comumente denominadas minanagô, as quais incluem diversos rituais dessas e de outras origens étnicas onde se destacam a devoção aos voduns (divindades jejes) e orixás (divindades iorubanas). Outro aspecto característico do Tambor de Mina é o modelo iniciático, o qual não requer ritos de imolação ou outras formas mais complexas de ingresso no sistema de culto. Não há rituais rígidos de aprendizado para que alguém se torne um adepto. A este respeito se explica que o ensino das práticas religiosas é “dom” dado pelos deuses e que o saber adquirido e manifestado não depende dos desejos e vontades humanas, por isso não carece de certos rituais preparatórios, como os que são realizados na Umbanda e no Candomblé. Acredita-se que este é um traço cultural adquirido a partir do sincretismo das culturas africanas com as culturas indígenas locais. No entanto, este é um tema que tem suscitado muitas discussões e não há consenso em torno do mesmo. Essa forma de expressão religiosa chegou a Rondônia no início do Século XX. Ela foi trazida por migrantes amazônicos oriundos principalmente dos Estados do Maranhão, Pará e Amazonas. A primeira instituição religiosa de Rondônia a adotar as práticas do Tambor de Mina se chamou Recreio de Yemanjá, o qual surgiu por volta do ano de 1917, tendo sido constituído por uma família de afrodescendentes procedentes de Codó (Maranhão). Os fundadores do Recreio de Yemanjá, Esperança Rita da Silva e Irineu dos Santos, são apontados * Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutora em História pela Universidad Pablo de Olavid (Espanha). 139 Marta Valéria de Lima pela memória oral como os primeiros sacerdotes deste modelo religioso em Rondônia. Além deles, são considerados pela memória coletiva como os seus principais expoentes os seguintes sacerdotes: Cecy Lopes Bittencourt, que ficou conhecida pelo codinome Chica Macacheira e Albertino dos Santos Toríbio, conhecido como Pai Albertino. A ramificação do Tambor de Mina em Rondônia aconteceu a partir da década de 1940, com a fundação de novos espaços de culto (terreiros, searas e bancas de cura), por membros e ex-membros associados ao Recreio de Yemanjá. Inicialmente o processo de difusão ocorreu em Porto Velho e foi nessa cidade que ao decorrer do Século XX apareceram as instituições religiosas mais expressivas dedicadas à devoção dos voduns, orixás e encantados. Algumas, hoje desaparecidas, permaneceram na memória popular, dentre eles: o Terreiro de Samburucú (também conhecido como Terreiro de São Benedito), o Terreiro de Santa Bárbara e Santo Antônio de Lisboa, da falecida Maria Estrela (Maria Pereira Pinto). Outras, como o secular Barracão de Santa Bárbara (antigo Recreio de Yemanjá), embora com dificuldades, continua funcionando e procura manter o legado cultural de origem. Até a década de 1960, o Tambor de Mina foi o modelo religioso afro-brasileiro predominante no território de Rondônia. Após esse período ocorreu o ingresso de novos modelos e sacerdotes, e surgiram formas de expressões religiosas afro-brasileiras distintas e contrastivas ao mesmo: a Umbanda e o Candomblé. Estes entraram em concorrência com aquele. Sacerdotes recém ingressos no campo religioso local cresceram em importância e arregimentaram noviços para estas religiões, inclusive entre os adeptos do Tambor de Mina. Em pouco tempo (1970/1980), os novos modelos religiosos conquistaram visibilidade e cresceram em importância social. Durante a nova fase de expansão das religiões afro-brasileiras (1970/1990), a Umbanda assumiu a dianteira no ranking de popularidade. Ela galgou espaço na sociedade local e se legitimou. Atualmente é a forma de expressão religiosa afro-brasileira adotada pela maioria das casas que compõem o referido campo religioso. A ela sucede-se o Candomblé, que na década  Uma Seara se diferencia de uma Banca de Cura porque nela o seu proprietário ou proprietária realiza ritos iniciáticos. Portanto, ele ou ela possui filhos-de-santo. Em tal espaço são realizadas danças com incorporação, podendo ou não haver toque de tambores. Porém, o espaço não se configura como terreiro, por ser menor do que este. No passado, uma seara também se diferenciava de um terreiro porque o canto era acompanhado por toque de palmas e não de tambores.  Banca é o altar pessoal do médium, também conhecida em Rondônia pelo nome de mesinha. Uma banca ou mesinha se transforma em banca de cura quando o médium passa a atender pessoas necessitadas dos seus conhecimentos e habilidades espirituais e a prestar serviços mágico-religiosos.  Uma das características do campo religioso afro-brasileiro de Rondônia é que na capital deste Estado, Porto Velho, os rituais costumam ser realizados no interior da residência dos sacerdotes ou em espaços contíguos à mesma. Poucos são os sacerdotes que possuem um sítio, ou um grande terreno, ou um quintal no qual os templos estejam erguidos e que os caracterizem, de fato, como terreiros. Deste modo, este é o termo que melhor se aplica 140 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) de 1990 atraiu um grande número de seguidores. No mesmo período, o Tambor de Mina entrou em declínio. Ao constatar este processo histórico de inserção e de difusão das religiões afrobrasileiras surgiu a seguinte questão: Quais foram as razões que levaram ao declínio do Tambor de Mina? Esta é a questão central deste trabalho. Para elucidá-la levantamos duas hipóteses principais. A primeira, a modernização da Amazônia foi fundamental no processo de transformação e de complexificação do campo religioso afro brasileiro de Rondônia. A segunda, o aparecimento da Federação Espírita e Umbandista de Rondônia – FEUR foi determinante neste processo. Discorreremos sobre estas duas hipóteses nos próximos itens. O declínio do tambor de mina em Rondônia e o ingresso de novas modalidades religiosas afro-brasileiras Ao estudar o fenômeno de retração do Tambor de Mina no campo religioso da região amazônica fizemos a seguinte constatação: A literatura científica sobre a presença da Umbanda e do Candomblé na Amazônia arroga que, após a década de 1960, as migrações para a região foram o fator desencadeador do declínio das religiões afro-amazônicas (no qual se inclui o Tambor de Mina) e da ascensão dos novos modelos religiosos afro-brasileiros nas suas principais capitais – Belém, Manaus, Porto Velho - a partir das quais elas se expandiram, chegando ao interior dos seus respectivos Estados (GABRIEL, 1980; FURUYA, 1994). Esta hipótese está fundamentada nas teorias que veem as migrações rurais e urbanas em direção aos grandes centros industriais, ou em fase de industrialização, como promotor do movimento de expansão e crescimento das religiões afro-brasileiras no país (BASTIDE, 1989; RENATO ORTIZ, 1978; BROWN, 1985; e outros). Dessa forma, essas religiões arribaram junto com os migrantes que afluíram à região amazônica durante o período de modernização da mesma. O argumento que justifica tal proposição está assentado, principalmente, sobre os pilares das políticas desenvolvimentistas e que foram implantadas durante o governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1960) e continuadas pelo Regime Militar (1964-1985) na Amazônia. atualmente (e que tem sido bastante utilizado ultimamente pelos adeptos) para se referir aos locais de culto. O fato dos rituais serem realizados no interior do mesmo edifício onde fica situada a moradia do sacerdote não significa que os rituais praticados sejam distintos daqueles que são realizados em locais mais espaçosos, ou com mais elementos da natureza. Seria mais fácil entender que a classificação reproduz um elemento da transição do mundo rural para o mundo urbano, onde os ambientes são mais comprimidos e também mais adaptados à distribuição e usos dos espaços. 141 Marta Valéria de Lima Na década de 1950, a elaboração dos Planos de Desenvolvimento Nacional (PNDs) levou os técnicos do Governo Central a perceber a Amazônia como uma vastidão inexplorada e despovoada, cujo vazio demográfico era necessário preencher a bem da defesa das fronteiras brasileiras contra a ameaça de invasão por povos de outras nações. Além do mais, esta era uma região economicamente inexpressiva para a balança comercial do país, carecendo de ser inserida na sua política de desenvolvimento econômico. Assim, com o lançamento do Plano de Metas e do Programa de Integração Nacional – PIN, a Amazônia passou a ter maior interesse para o governo (IANNE, 1979; BASSEGIO E PERDIGÃO, 1992; SERÁFICO, J. E SERÁFICO, M., 2005; AMARAL, 2007). Esta política de modernização forçada promoveu a alteração do tecido social da região amazônica, onde se inclui Rondônia, e provocou rupturas fundamentais nas suas estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais. Por causa desta política, na década de 1960, foi feita a abertura da rodovia BR-364 (1961) ligando Rondônia ao Centro-Oeste do Brasil. Com a construção desta rodovia, o Governo Central abriu uma importante frente de expansão colonizadora em direção a esse território. Isto gerou um grande volume de migrantes que para aí se deslocaram. Especialmente durante o processo de colonização patrocinado pelo Estado brasileiro, por intermédio do primeiro e segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1972-1974 e II PND, 19751979, respectivamente). Foi através dos empreendimentos de colonização do seu espaço físico, com a execução de tais planos, que os técnicos do Governo Federal e os migrantes de todo o país, sobretudo os nordestinos e sulistas, começaram a vislumbrá-la na geografia nacional. A partir de então Rondônia conheceu um extraordinário crescimento urbano e demográfico e também uma incrível ampliação e diversificação das suas atividades econômicas. Por sua vez, estas modificações redundaram na sua integração ao mercado econômico nacional e internacional, alterando radicalmente as suas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais (SANTANA, 1979; PERDIGÃO E BASSEGIO, 1992). Nesse processo, como disse João Jesus de Paes Loureiro (1995), “[...] índios, negros e caboclos tornaram-se invisíveis no conjunto das políticas públicas”. Com a execução dos planos de desenvolvimento econômico, o homem amazônico foi, conforme o seu narrar: [...] bruscamente ‘desalojado do seu presente cultural’ ainda fundado nas relações de um mundo que é seu, que de repente passa a parecer-lhe fictício, enquanto se lhes impõem uma espécie de outro mundo real e que ainda não é o seu. Mundo no qual todas as qualidades que constituem a sua mundivivência – fruição, tranquilidade, devaneio, disponibilidade de tempo, o carpe diem de um viver cada momento, são considerados ingenuidade, incompetência, atraso e primitivismo. Passa a habitar um espaço fraturado, num tempo deslocado. E esse desalojamento de seu presente pela 142 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) compulsão de um outro agora considerado moderno, torna-se o desalojamento de si mesmo e da cultura (LOUREIRO, 1995, p. 413-414). A Umbanda, e também o Candomblé, emerge no cenário social amazônico, e mais especificamente em Rondônia, exatamente durante esse período (1960/80). Ou seja, quando a intervenção nas sociedades e economia regional prepara a Amazônia para grandes mudanças nos seus sistemas de produtividade e impõe à região um novo modelo econômico de base industrial e assalariada. Este processo alterou as regras de mercado e mudou o eixo econômico dessa região, deslocando-o do norte (Belém e Manaus) para o sul do país (Rio de Janeiro e São Paulo), de onde provieram alguns dos novos modelos religiosos que se estabeleceram localmente. Considerando os efeitos das mudanças provocadas por uma modernização acelerada das sociedades amazônicas após a década de 1960 e dos novos processos migratórios dela decorrente, a partir da década seguinte houve a elaboração de novas estruturas religiosas, as quais foram se enraizando no interior do campo religioso afro-brasileiro local, dando forma à sua atual constelação. Essa constatação leva à formulação de algumas indagações, dentre as quais: Como foi que ocorreu o processo de elaboração dessas novas estruturas religiosas e de que maneira elas se consolidaram? Uma das premissas desta pesquisa é que, como o volume de migrantes superou em quantidade o de habitantes locais, o segmento caboclo da população rondoniense deixou de ser hegemônico e majoritário, conforme apontam os dados estatísticos fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Logo, pressupomos que as chances de resistência desse segmento social às novas ideologias e modelos de representação simbólica se tornaram ínfimas, pois como afirma Roger Chartier (1998): confrontações e enfrentamentos sociais têm como armas e como centro de disputa os sistemas de representação, os quais dependem da autoridade ou da força social de um grupo para se impor (CHARTIER, 1998, p. 9). Acontece que os grupos sociais rondonienses se enfraqueceram e foram enfraquecidos socialmente durante o processo de colonização recente (1970-1990). Logo, eles não tiveram forças para lutar e defender as suas “tradições”. Nesse sentido, é importante ressaltar que as representações hegemônicas da superioridade das novas religiões afro-brasileiras que ingressaram em Rondônia nas décadas de 1960-1980, com destaque para o Candomblé, traçaram a trajetória de inferiorizarão do Tambor de Mina local, cujos sacerdotes e adeptos foram considerados carentes de “fundamentos” e destituídos de práticas religiosas instituídas na “tradição” dos povos africanos. E logo, nas 143 Marta Valéria de Lima tradições dos “guardiões” da sua ancestralidade no Brasil (entenda-se dos adeptos do Candomblé e, também, da Umbanda). O historiador Marco Antônio Domingos Teixeira (1994) apontou para situações discriminatórias no interior do campo religioso afro-brasileiro local após o ingresso do Candomblé, indicando que tais situações provocaram mudanças de identidades religiosas, ao afirmar: Surgiram no meio da “macumba” [] em Porto Velho categorias de estratificações, dos feitos e dos não feitos, dos borizados, dos raspado, etc. A posição sempre almejada é a de raspado. Todos desejam a feitura de santo, que legitima a sua pureza e afirma o individuo dentro de uma identidade africanizada e portanto desligada das sincretizações, o que por sua vez elimina a pecha de macumbeiros. [...] O termo macumbeiro passa a ser então utilizado para o outro, aquele que não tem pureza doutrinaria [...] (TEIXEIRA, 1994, p. 69). Portanto, ele imputa essa situação específica de desqualificação do outro à disseminação da ideologia da pureza africana (ou seja, relacionada a religiões consideradas mais próximas às tradições étnicas originárias) atribuída pelos adeptos do Candomblé à sua religião e que os levavam a representá-las como superior às demais. Essa postura era respaldada pela produção científica e artística da época (BASTIDE, 1989; VERGER, 1996; Jorge Amado, Dorival Caymmi, Clara Nunes, Vinícius de Moraes, e vários outros), a qual não somente lhe dava legitimidade social, mas também a reforçava. A informação citada acima indica a presença de tensões no campo religioso local. Na década de 1970, com o movimento de busca das “raízes” (origens), conforme constatou Marco Antônio Domingues Teixeira (1984), ocorreu uma verdadeira revolução dos cultos afro-brasileiros. O peso desse discurso foi enorme. E não somente em Rondônia, mas em toda Amazônia. A mesma situação foi observada por pesquisadores de outras áreas da região amazônica no mesmo contexto e período de transição das mesmas para a modernidade (VERGOLINO, 1976; GABRIEL, 1980; FURUYA, 1984; CAMPELO, 2007). O tal fenômeno Yoshiaki Furuya denominou Candomblecização. É interessante observar que no Estado nordestino do Maranhão, uma área geográfica que é culturalmente integrada à região  Macumba: Termo genérico que até os anos 1990 era muito utilizado pela população de Rondônia para se referir às religiões afro-brasileiras. Olga Gudolle Caciattore (1988, p. 166) explica que este termo designava um antigo instrumento musical de origem africana que no passado era usado nos terreiros. Mas que ele também é: “Termo genérico para os cultos afro-brasileiros derivados do nagô, mas que foram modificados por influencias angolacongo e ameríndias, católicas, espíritas e ocultistas que se desenvolveram primeiro no Rio de Janeiro e talvez em Minas Gerais.” Ela também esclarece que este termo é usado pelos leigos para designar cultos de feitiçaria e de ‘despacho’ nas ruas, sendo denominado por eles de ‘Quimbanda’. 144 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) amazônica, tal processo não passou despercebido, afetando-o igualmente. A este respeito, Sérgio Ferretti (s/d) comentou: No Maranhão e no Pará, a religião dos voduns, ou Tambor de Mina se aproxima da Umbanda e também do Candomblé, religiões afro-brasileiras que se expandiram no país ao longo do século XX. No Maranhão, em decorrência de contatos com o Centro Sul, muitos terreiros se dizem de Umbanda porém se diferenciam pouco do Tambor de Mina, exceto pelo predomínio de cânticos em português. Na segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos de 1970, o Candomblé se difundiu também no Maranhão, no Pará e na Amazônia, pela presença de contatos com a Bahia e com outras regiões do país, como Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. O Candomblé passou a gozar de grande prestígio cultural sendo considerada como religião mais bem estruturada do que o Tambor de Mina, destacando-se a presença de vestimentas rituais específicos como paramento dos orixás, de cânticos em língua nagô, tradução de mitos africanos especialmente nagôs. Com a difusão do Candomblé nota-se a valorização de uma ideologia de dessincretização e de africanização, destacando-se a presença de mitos, cânticos, rituais, divindades e vestimentas de inspiração africana, que são considerados como sendo mais puros do que os rituais com entidades caboclas, comuns no Tambor de Mina. Esta valorização tem ocorrido sobretudo em grupos de culto que contam com a presença de pessoas mais jovens (FERRETTI, s/d, p. 5) [Grifo nosso]. A nosso modo de ver, tal fenômeno indica que houve uma crise de representação dos modelos religiosos afro-brasileiros tradicionais. Os sintomas desta crise de representações das identidades sociais no campo das religiões afro-brasileiras de Rondônia podem ser constatados por meio da adesão de lideranças religiosas locais aos novos modelos de culto. Bem como na fundação de uma instituição burocrática que tinha a finalidade de organizar e gerenciar as práticas sociais dos adeptos das religiões afro-brasileiras deste território, alinhando-as em conformidade aos modelos aprovados socialmente pelas classes dominantes (Federação Espírita e Umbandista de Rondônia - FEUR), e reforçando a hegemonia das mesmas ao difundir as suas ideologias e reproduzir os seus modelos de representações culturais. Modelos que se apresentaram contrastivos e concorrentes aos padrões habituais dessa região. Fundada no ano de 1977, a Federação Umbandista de Rondônia desenvolveu diversas ações que colaboraram no processo de expropriação dos hábitos culturais rondonienses, conforme iremos esclarecer a seguir. FEUR e “domesticação” das práticas religiosas afro-brasileiras de Rondônia Os líderes umbandistas da classe média local “domesticavam” as práticas religiosas dos associados à Federação Umbandista de Rondônia - FEUR por meio da utilização de “cartilhas de Umbanda” (apostilas), iniciações e outros ritos que moldavam o perfil dos adeptos 145 Marta Valéria de Lima ao sistema de acordo com diretrizes “nacionais” aprovadas nos encontros das lideranças e nos congressos religiosos (LIMA, 2014). Essa política agia como solvente sobre a cultura local, fazendo-a desaparecer durante o processo de execução ao submeter os associados aos seus códigos. Ao desconfigurar as tradições culturais rondonienses as elites religiosas as transformavam para torná-las equivalentes às práticas religiosas de outras regiões brasileiras situadas mais ao “Sul” da linha do Equador. Por outro lado, as lideranças políticas do campo religioso afro-brasileiro disputavam hegemonia entre os seus pares. Isto os motivava a fortalecerem o modelo religioso professado através de atos públicos de poder (festas e festivais religiosos, por exemplo). O movimento federativo cumpria a função de controle burocrático dos grupos de culto, enquanto as grandes reuniões públicas (dentre as quais os Congressos de Umbanda e os Encontros de Orixás) tinham a finalidade de demonstração de força. Vale lembrar que no ano de 1977, Carlos Alberto dos Santos, fundador e presidente da FEUR, e os demais membros do Comitê Executivo desta federação estiveram em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde participaram de reuniões e atividades promovidas por líderes religiosos interessados em unificar nacionalmente a Umbanda. A participação da Diretoria da FEUR nessas reuniões resultou em uma vantajosa parceria entre a Umbanda sulista e a Umbanda do extremo norte do Brasil. Durante as mesmas Carlos Alberto dos Santos estreitou relações com o líder umbandista paulista, Jamil Rachid, que participou de diversos eventos festivos e ritualísticos promovidos pela FEUR entre as décadas de 1970 e 1990. Nesse sentido, é importante ressaltar que as ações sociais e políticas da FEUR tiveram uma função homogeneizante da ideologia nacionalista no campo religioso local ao atuar para efetivar o projeto de unificação das religiões de matriz africana em nível local e difundir o projeto político ideológico de integração das mesmas em nível nacional. De muitas maneiras a entidade colaborou para a invisibilização das práticas religiosas dos associados ao atribuir o nome de “Umbanda” às mesmas. Este foi um primeiro passo. Em seguida, elas contribuíram na formação das representações sociais sobre os cultos afro-brasileiros “umbandizando-os”. Os atos de eliminação da cultura religiosa afro-brasileira local avançaram com as atividades de “educação mediúnica” e com os rituais de “batismo” e de “consagração” na Umbanda às quais os dirigentes de culto se submetiam, já que para funcionar os terreiros tinham que obter autorização do Estado. E para isso eles recorriam aos serviços burocráticos prestados pela federação, a qual os submetia a “exames” e “testes de Umbanda” antes de lhes conceder o Diploma de associados e lhes assegurar a obtenção do Alvará de funcionamento dos 146 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) seus espaços de culto. Era a conversão mediada pela coerção burocrática. É neste sentido que entendemos que a instituição federativa se associou ao Estado como órgão paralelo de execução de seus ditames, o qual por sua vez foi colocado a serviço dos interesses de alguns indivíduos e grupos de poder no interior do campo religioso. Portanto, ao efetuar alterações na forma, no conteúdo, e na maneira como os conhecimentos religiosos eram transmitidos e assimilados a FEUR promoveu mudanças relevantes no universo cultural da sociedade rondoniense. Tal fato corrobora com a hipótese de que ela foi agente de modificações significativas nas rotinas dos espaços de culto de Rondônia. E muito mais nas dos grupos religiosos de Porto Velho, onde o controle e a fiscalização dos mesmos eram mais intensos, por ser esta a cidade na qual a instituição ficava situada. Ao término da pesquisa de campo que efetuamos sobre o declínio do Tambor de Mina em Rondônia chegamos à conclusão de que a FEUR é símbolo de modernização na história das religiões afro-brasileiras nessa área do país. Porém, isto não teria sido possível sem a adesão de lideranças religiosas locais, como foi o caso dos dirigentes do Terreiro de São Sebastião, ao qual se somou setores da classe média urbana e das suas elites intelectuais e burocráticas (incluindo pessoas do alto escalão da administração pública do Estado), conforme discutiremos a seguir. As elites intelectuais e burocráticas e a umbandização de Rondônia Analisando as fontes escritas, constatamos que a primeira classificação das religiões afro-brasileiras de Rondônia foi feita por escritores e jornalistas locais e que ela é da década de 1960. Essa primeira classificação foi disseminada na mídia escrita com o texto A Umbanda em Porto Velho, de Ari Pinheiro Penna Tupinambá. Posteriormente o termo Umbanda foi difundido em crônicas pelos escritores regionais. Ela também foi disseminada por trabalhos acadêmicos, a exemplo das primeiras obras científicas de Nilza Menezes (1998a; 1998b) e de Dante Ribeiro da Fonseca (1998), onde eles registraram que o Barracão de Santa Bárbara é genericamente denominado “Tenda de Umbanda”. Portanto, as elites intelectuais de Rondônia colaboraram para o processo de umbandização das religiões afro-brasileiras ao nominá-las de forma generalizada com essa identidade nos seus artigos e textos escritos. Igualmente foi apurado que o Governo do Estado cumpriu um papel relevante no processo de umbandização da região ao publicar através de seus órgãos de apoio textos de divulgação da “Umbanda”, a exemplo do Calendário Cultural de 147 Marta Valéria de Lima Rondônia (1981/1985) e do artigo de Ary Tupinambá Penna Pinheiro, A Umbanda em Porto Velho, que foi publicado pela União Brasileira de Escritores de Rondônia e pela Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Turismo. Assim sendo, o mesmo era oficialmente legitimado pelos órgãos de poder do Estado e como tal configurava a sua ideologia. Ou seja, as instituições de produção e difusão do conhecimento o receberam e o disseminaram. O conteúdo deste artigo foi reproduzido nos jornais e nas escolas, onde essa produção literária foi distribuída pelos órgãos do governo e circulou nos lares e nos terreiros de Rondônia, de modo que o povo de santo e a sociedade em geral podem ter acesso ao sistema de classificação douto. Isso certamente foi relevante no processo de construção do discurso das identidades sociais atribuídas aos adeptos dos cultos afro-brasileiros de Rondônia e aos processos de redefinição das categorias autoidentitárias dos próprios adeptos. Ressaltamos que a FEUR teve uma enorme visibilidade social nas décadas de 1970 e 1980 e que o projeto mais bem sucedido que ela realizou foi o evento que se tornou conhecido pelo nome de Festa dos Orixás, o qual foi decisivo no processo de definição e de redefinição das identidades religiosas afro-brasileiras de Rondônia, conforme esclarecemos a seguir. É importante dizer que a FEUR contou com o apoio do Governo do Estado e com da participação dos dirigentes dos seus órgãos burocráticos na realização deste e de outros projetos sociais que foram desenvolvidos pela entidade. A Festa dos Orixás e a “construção” da identidade “umbandista” A Festa dos Orixás foi o espaço da confraternização da totalidade dos diferentes segmentos que compunham o campo das religiões afro-brasileiras, não somente de Rondônia, mas do Brasil, pois nela tomou parte sacerdotes, sacerdotisas e adeptos de diversas modalidades religiosas que anualmente se reuniam nesse território para cultuar os deuses e divindades afro-brasileiras e discutir politicamente os problemas relacionados às suas práticas religiosas. Após analisá-la chegamos à conclusão de que ela era também, e principalmente, o lugar da construção simbólica do povo de santo de Rondônia como “umbandistas”. Durante a realização desse festival era reforçada a percepção coletiva de que os adeptos dos cultos afrobrasileiros que nela tomavam parte pertenciam a esta modalidade religiosa. Destarte, considerando os critérios apontados por Eric Hobsbawn (2008, p. 9-23, 271316) ao discutir a função social das tradições, pode-se afirmar que a identidade religiosa umbandista de Rondônia foi “inventada” ou “construída”. Essa “invenção” teve nos festivais 148 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) religiosos promovidos pela FEUR o local de fundação de uma “comunidade imaginária” que era representada como “umbandista” e que ao fim e ao cabo terminou por assim se autorepresentar. Mesmo quando os associados não haviam efetuado os rituais iniciáticos que eram próprios à Umbanda. Desta forma, avaliamos que os festejos dedicados aos “orixás” foi um instrumento político que permitiu a afirmação de um campo religioso em Rondônia mais do que de um modelo religioso (a Umbanda) no interior do campo. Através dos “discursos da Umbanda”, propagados nos meios de comunicação de massa e nos festivais públicos criava-se a “realidade social” umbandista. A Festa dos Orixás era um “espetáculo” que reproduzia a ideia de existência de unidade e de identidade a um tipo específico de prática religiosa (umbandista). Apesar dessa ritualização, tal discurso foi sistematicamente negado na vivência dos fiéis no interior dos terreiros. Foi no centro dos novos sistemas religiosos que a “resistência” se apresentou. Ela era reconhecível em modos de agir que se configuravam como tal (manutenção de velhos ritos, incorporação de entidades tipicamente amazônicas, entre outros elementos). Em vistas disto, os sacerdotes que não adotavam as normas “institucionalizadas” pela FEUR foram frequentemente acusados de praticar “mistificações” (ideias e práticas inverossímeis), sendo os mesmos denunciados desde “dentro” do próprio campo religioso como “falsos”, “aproveitadores”, “exploradores” e outros adjetivos. Os adeptos tanto da “Umbanda” quanto do Candomblé filiados à FEUR se tornaram a “polícia” do sistema, vigiando e controlando os grupos de culto (Alto Madeira, 1983:3). Foi assim até a ruptura da suposta “unidade” religiosa, quando o Candomblé se fortaleceu e as lideranças melhor posicionadas socialmente reivindicaram o reconhecimento de sua especificidade, ressaltando diferenças em relação às demais práticas religiosas afro-brasileiras. Considerações finais Ao término da pesquisa que resultou neste trabalho verificamos que desde o início da década de 1970 o Tambor de Mina e as pajelanças indígenas passaram por processos de profundo embotamento de suas práticas. Inicialmente o Tambor de Mina perdeu a posição destacada da qual usufruía como modelo religioso hegemônico no campo das religiões afrobrasileiras de Rondônia. Ele passou a fazer parte de um campo religioso alargado e competitivo, formado pelas diversas variantes religiosas da Umbanda e do Candomblé e por outros sistemas religiosos, vindo posteriormente a ocupar uma posição secundária no campo 149 Marta Valéria de Lima religioso local, até praticamente desaparecer ao se diluir no interior desses novos modelos. As mudanças socioculturais levaram à falência deste sistema religioso em sua forma de manifestação tradicional e reorientaram os seus ritos e cultos em direção à Umbanda, e desta ao Candomblé. Quanto às ações concretas de desarticulação cultural, vale lembrar que catorze anos depois do I Encontro dos Orixás (1977), todos os grandes cortejos religiosos que caracterizavam as manifestações públicas dos cultos afro-brasileiros local haviam desaparecido ou tinham se invisibilizado diante da totalidade da sociedade ampliada, a qual deixou de tomar parte nos mesmos, pois afinal, a sociedade já não era a mesma de antes. E os grupos de culto também já não eram mais os mesmos. Muitos tinham desaparecido ou haviam-se dispersado com o crescimento urbano, ou teriam passado por transformações. Quaisquer que fossem os motivos, o fato é que o contingente de adeptos dos cultos afro-brasileiros típicos da região diminuiu após o ingresso dos novos migrantes. O efeito disto foi que grandes cortejos comunitários típicos da região desapareceram ou ficaram reduzidos. Dentre eles as procissões de São Sebastião, São Benedito, São José e Santa Bárbara, todas realizadas por adeptos ou exadeptos do Tambor de Mina. O próprio Encontro dos Orixás desapareceu. No lugar destas celebrações surgiram outros eventos festivos, os quais eram mais representativos dos interesses dos novos grupos sociais, tais como: os carnavais “fora de época” e as “cavalgadas”. Estas são celebrações festivas da vitória da cultura dos “de fora” e da sua hegemonia sobre a sociedade local após a década de 1990. Não obstante, não são as únicas, pois há outras. Por fim, é nosso entendimento que a Festa dos Orixás foi um ritual que simbolizou a vitória do colonizador sobre o colonizado, definindo-se por suas propriedades intrínsecas, pois ela expressou a ideologia política dos grupos religiosos hegemônicos no interior do campo, os quais trabalharam para determinar alterações nos antigos rituais dos grupos religiosos afrobrasileiros locais e para subverter a sua significação. Neste sentido, recorrer à mesma foi um modo de fazer a “remodelagem” da cultura religiosa local de acordo com as formas de expressões culturais dos grupos e lideranças dominantes. Portanto, sob o impacto das frentes de colonização (1970/1980) e das novas formas de organização das instituições de poder (1980/1990), a sociedade e cultura rondonienses se modificaram e com elas as práticas religiosas afro-brasileiras. O que não mudou foi a expropriação do saber das classes subalternas e dos subalternizados pelos detentores do poder. 150 Políticas desenvolvimentistas na Amazônia e declínio do tambor de mina em Rondônia (1960-1990) Referências AMARAL, José Januário de Oliveira. Os latifúndios do INCRA. Porto Velho: EDUFRO, 2007. BASSEGIO, Luiz; PERDIGÃO, Francinete. Migrantes amazônicos: Rondônia, a trajetória da ilusão. São Paulo: Loyola, 1992. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 3. ed. Trad. Maria Eloisa Capellato e Olívia Krähenbühl. São Paulo: Pioneira, 1989. BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. In: Umbanda e Política. Rio de Janeiro: Editora Marcos Zero, 1985. (Cadernos do ISER, n.18) CAMPELO, Marilu Márcia. As duas africanidades no Pará. IN: BELLOTTI, Karina K.; VALÉRIO, Mairon Escosi (Org.) Revista Aulas. São Paulo: UNICAMP, n. 4, abr. 2007/jul. 2007, p.1-27. (Dossiê Religião) CHARTIER, Roger. La História entre relato y conocimiento. In: CHARTIER, Roger. 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Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O Cruzeiro do Sul”, “O Alto Purus” e “Varadouro”: “O Jornal das Selvas” e a integração de fronteiras de conhecimentos de história, imprensa e outras ciências sociais Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque* Lauane Laura da Silva O texto que ora se expõe é resultante do desenvolvimento de duas pesquisas, ainda inconclusas, que utilizam a imprensa escrita acriana como fonte. Nessas, a partir de estudos acerca da “Questão do Acre” e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) analisam-se periódicos, cujas produções e circulações ocorreram no Acre, nos períodos de 1904-1914 e 1977-1981. No estudo a respeito da “Questão do Acre” e a sua construção enquanto terras brasileiras estão sendo feitas análise de jornais acrianos que foram publicados nos primeiros anos do Território Federal, dando especial atenção aos textos que abordaram o Bolivian Syndicate e seus desdobramentos. Já na segunda pesquisa, o intuito é tratar da CPT e sua atuação em defesa das populações tradicionais, face à substituição do extrativismo vegetal pela pecuária no Acre, tendo como referencial a imprensa alternativa acriana. Assim, neste escrito que ora se expõe, dialogamos sobre nossas reflexões a respeito do desenrolar das duas investigações, apontando os obstáculos comuns a ambas, suas intersecções relativas aos trabalhos com as fontes primárias, acrescidos das formas de apresentação e interpretação do Acre como terras brasileiras. Desta feita, no intuito de pensar sobre o Acre como ente territorial, político e social do Brasil foram utilizados os periódicos O Cruzeiro do Sul, Alto Purus e o Varadouro como fontes primárias. Sendo que dentre estes, o último foi uma publicação privada sediada em Rio Branco, capital do Estado do Acre, que circulou entre 1977 a 1981. Enquanto que O Cruzeiro do Sul e * Doutoranda em História Social no Programa de DINTER USP/UFAC, professora do Centro de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Acre.  Graduanda no curso de Bacharelado em História na Universidade Federal do Acre. 154 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva Alto Purus eram órgãos da imprensa oficial, que circularam nas décadas de 1900 a 1910 e são disponibilizados para consulta na Hemeroteca Digital da Fundação da Biblioteca Nacional. Em caráter secundário, aos estudarmos o Acre nestes dois contextos históricos, utilizamos as obras atinentes à historiografia do Acre e Brasil, bem como títulos de distintas áreas a fim de buscarmos a integração de fronteiras do conhecimento entre História, Economia, Imprensa e demais Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Para tanto, os adotamos a metodologia de trabalho da transdisciplinaridade proposta por Edgar Morin. Dentro deste corpus documental além da temática pesquisada, vários elementos conectivos afloram, tanto a respeito dos lugares de produção, quanto acerca dos seus leitores. Neste conjunto de elos de conexão entre pesquisas, o primeiro a ser destacado é a superação do fustigar da imprensa escrita como fonte histórica. Ao que se aduzem as indagações tangentes à caracterização destes jornais e seus os destinatários, já que dentro de nossa baliza cronológica a maior parte da população acreana não possuía instrução formal da leitura e escrita. E a isso se acrescentam as problemáticas próprias de identificarmos a composição do corpo técnico-redacional dos periódicos consultados, bem como do lugar de produção donde se elaboravam as falas publicadas nestes veículos de comunicação. No entanto, paulatinamente foram acontecendo às transposições desses obstáculos às pesquisas, à medida que fluíam as relações entre imprensa e a construção de memórias. Neste sentido, com a maturação das fontes primárias e secundárias os receios acerca do emprego da hemerografia foram superados, posto que nos últimos anos em nosso país: Os estudos sobre imprensa desenvolvem-se em diversas direções, desde os trabalhos voltados para a realização de uma história da imprensa, os estudos sobre a linguagem e a técnica do fazer jornalístico, destacando as mudanças nos meios e alterações na linguagem jornalística; passando pelos inúmeros trabalhos historiográficos que utilizam a imprensa como fonte de informação, [...], até trabalhos recentes que abordam a imprensa periódica na perspectiva da História Social como uma prática social que constitui memórias e viveres urbanos (MACIEL, 2008). Então, tomando por base o pressuposto da “História Social como uma prática social” elaboradora de vivências, experiências e memórias, trespassamos o horizonte dos jornais enquanto “monumentos” com a confrontação das fontes, nos permitindo a conferência das informações obtidas, nos conduzindo ao melhor entendimento acerca dos seus produtores, receptores e da sociedade que os cercava. O que corroborou ao esmorecimento das desconfianças acerca dos periódicos no papel de fontes históricas, não obstante as necessidades de cuidados com os métodos interpretativos dos materiais coletados. De tal maneira que com a 155 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... dessacralização do “documento monumento” (LE GOFF, 1990) torna-se cada vez mais pertinente à pluralidade dos temas para a labuta do historiador, posto que: Nestas últimas décadas perdemos definitivamente a inocência e incorporamos a perspectiva de que todo documento, e não só a imprensa, é também monumento, remetendo ao campo de subjetividade e da intencionalidade com o qual devemos lidar (CRUZ e PEIXOTO, 2007, p. 254). Ante a multiplicidade de temáticas, emerge também a variedade de novas fontes. Ou mesmo, a retomada de fontes já empregadas pelas pesquisas dos historiadores, mas sendo permeadas de novos sentidos em conformidade com a proposição de “História Social como uma prática social” e da “historicidade da Imprensa”, pois: Pensar a imprensa com esta perspectiva implica, em primeiro lugar, tomá-la como uma força ativa da história do capitalismo e não como mero depositário de acontecimentos nos diversos processos e conjunturas. Como indica Darton, é preciso pensar sua inserção histórica enquanto força ativa da vida moderna, muito mais ingrediente do processo do que registro dos acontecimentos, atuando na constituição de nossos modos de vida, perspectivas e consciência histórica (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 257). Dessa feita, entendendo a imprensa como “força ativa da história do capitalismo” que ultrapassa as fronteiras da sacralização documental das fontes hemerográficas e do “conhecimento parcelário e estanque” (MORIN, 2005), coadunando-se com os apontamentos da metodologia transdisciplinar, cuja aplicabilidade nestes trabalhos se concretizou com os estudos coligados e concomitantes dentro da História, Economia, Imprensa e Literatura. Mas, mesmo superada a polêmica do trato com os jornais enquanto fontes, desconfortos advinham ao considerarmos o elevado número de analfabetos no Acre tanto no começo do século XX, quanto após a instauração do regime de exceção em 1964. Isso porque o grande quantitativo de despossuídos da escolaridade formal, e por consequente, sem domínio da leitura e da escrita, trazia consigo a indagação quanto a ser possível ou não interpretar os textos jornalísticos como indicativos do contexto social, político e econômico daqueles períodos. No entanto, várias respostas a este questionamento foram encontradas em leituras de textos que analisaram a história da imprensa no Brasil. Dentre as fontes secundárias que abordaram as folhas impressas no alvorecer do século passado e mesmo no pós 1964 encontramos indicativos de subterfúgios criados para suplantar o analfabetismo, a exemplo das leituras coletivas em espaços públicos, que iam das portas das gazetas, até as praças, parques, salões paroquiais e mesmo nos locais de trabalho (BARBOSA, 2010, p. 217). 156 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva Assim, ao considerarmos que apenas trinta por cento da população brasileira fosse alfabetizada no período na passagem do XIX ao XX (DEL PRIORE, 2013, p. 167), é possível verificar entre vários autores o consenso de que “os excluídos também eram leitores” (BARBOSA, 2010, p. 217) e que em meio aos embates pelas terras acreanas, ainda que por diferentes práticas e estratagemas os seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, posseiros e indígenas também tinham acesso as suas causas em páginas jornalísticas. Aliás, artifícios que não foram exclusivos dos brasileiros, pois também se detectaram estas interações na Inglaterra do século XIX, conforme afirma Raymond Williams que: Desde o início do século [...] os jornais dominicais tinham circulação muito acima dos diários – um fator constante de expansão da imprensa até os nossos dias atuais. Seu público leitor era também mais amplo, em termos sociais, do que a imprensa diária. Eles eram comprados e trazidos não somente para clubes e cafeterias, mas também para barbearias, onde a visita dominical do trabalhador poderia significar sua única oportunidade de ler um jornal, ou ouvi-lo sendo lido (WILLIAMS, 2007, p. 23). E não obstante a distância temporal de mais de meio século entre os períodos pesquisados na imprensa escrita acriana; as astúcias para superação do acesso às leituras e socialização dos conteúdos de jornais ocorreram tanto no Acre Território Federal quanto no Acre Estado pós 1964. E inserido neste universo, o Varadouro nos fornece subsídios para estudarmos o contexto das alterações socioeconômicas impostas ao Acre pelo Estado Brasileiro Ditatorial, visto que: O jornal Varadouro, editado em Rio Branco, no período de 1977 a 1981, escrito por intelectuais acrianos e de outros Estados, denominado de O Jornal das Selvas, assumindo de forma precisa a defesa dos direitos dos trabalhadores rurais acrianos à posse de suas terras, denunciando as formas violentas pelas quais os fazendeiros atentavam contra o modo de vida dos seringueiros do Acre, constitui-se numa fonte histórica imprescindível para quem estuda as transformações sociais na região, sob o ponto de vista de uma história comprometida com uma cultura de trabalhadores e suas formas de resistir à penetração do capital em suas terras. Evidencia, de forma intensa, a realização de Empates promovidos por seringueiros e colonos (posseiros), em vários seringais [...] (SOUZA, 1998, p. 222-223). Embora fosse um jornal escrito por intelectuais do Acre e de outros Estados, tal qual afirmou Souza (1998) em conformidade às páginas do Varadouro em sua primeira edição datada de maio de 1977, apresentava como temas centrais preocupações acerca da condição do indígena, dos sindicatos de trabalhadores rurais, “do consumidor acriano e da inflação 157 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... galopante” e declarava no seu editorial inaugural que pretendia “contar o momento histórico atual do Acre e de sua gente”, corroborando a observação de que: O jornal alternativo o Varadouro – um jornal das selvas, entre maio de 1977 e dezembro de 1981, em 24 edições, buscou outras formas de relação com os movimentos sociais legitimados por grupos que se apresentavam como ‘povos tradicionais’, especialmente aqueles que definiam como pobres do Acre: seringueiros, índios e colonos (PORTELA, 2008, p. 1). E se maior aproximação de tempo ou por maior quantitativo de discussões em torno do Varadouro como fonte histórica favorecem na caracterização do seu lugar de produção, para traçarmos tais perfis de O Cruzeiro do Sul e O Alto Juruá, tivemos de recorrer a outros artifícios com fito de identificar de que tipo eram estes jornais, quem eram os jornalistas, os destinatários e donos dessa imprensa escrita. Assim, partimos da contextualização feita acerca dos periódicos em circulação no Rio de Janeiro, Belém e Manaus na virada do XIX ao XX, no sentido de por analogia compreendermos os publicados no Acre. Em que pesem as peculiaridades acrianas, algumas características nos jornais daquelas capitais se repetiram nos acrianos, isto porque, naquele período a imprensa escrita brasileira passava por modificações relativas ao seu teor, aos seus equipamentos e, consequentemente, às formas de apresentação visual (de suas colunas e ilustrações, inclusive com a introdução da fotografia), bem como a inserção de materiais adquiridos das agências de notícias ou obtidos por meio dos telégrafos. Além destas alterações nos formatos e conteúdos, também ocorriam mudanças administrativas em âmbito privado (com a transformação dos jornais em empresas de grande porte) ou em caráter público com os diários oficiais, que repercutiam no contato com o público e a quantidade de edições publicadas diariamente: A passagem do século assinala, no Brasil, a transição da pequena à grande imprensa. Os pequenos jornais, de estrutura simples, às folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalísticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao exercício de sua função. Se é assim afetado o plano da produção, o da circulação e também o é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a política, com os leitores. Essa transição começara antes do fim do século, naturalmente, quando se esboçara, mas fica bem marcada quando se abre a nova centúria. Está naturalmente ligada às transformações do país, em seu conjunto, e, nele, à ascensão burguesa, ao avanço das relações capitalistas; a transformação da imprensa é um dos aspectos desse avanço; o jornal será daí por diante, empresa capitalista, de maior ou menor porte. O jornal como empreendimento individual, como aventura isolada, desaparece, nas grandes cidades. Será relegado ao interior, onde sobreviverá,  Varadouro: o jornal das selvas, nº 01, ano I, maio de 1977. 158 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva como tal, até os nossos dias. Uma das consequências imediatas dessa transição é a redução no número de periódicos (SODRE, 1966, p. 315). Neste sentido, no Rio de Janeiro publicações como o Jornal do Brasil e O Paiz; A Província do Pará e Folha do Norte em Belém e o Commércio do Amazonas em Manaus são suscetíveis a esta conjuntura dos jornais que mesmo vinculados aos interesses de segmentos políticos e suas lideranças, passaram a atuar como empresas, nas quais o telégrafo e as agências de notícias estimularam o tratamento das notícias como mercadorias a serem consumidas “em série e em ritmo industrial” (MACIEL, 2005, p. 22) E dentro desta ótica, o Acre era comercializado nos diários brasileiros, antes mesmo de sua anexação. Tratava-se do Acre como local de idas e vindas de gentes e cargas; enquanto referencial geográfico para tornar pública a demarcação de seringais; bem como cerne de disputas territoriais e fronteiriças entre Brasil, Bolívia e Peru. Entretanto, há distinções de abordagens em decorrência da proximidade espacial e dos interesses dos dirigentes das praças em que eram editados os periódicos. Na capital federal, o Jornal do Brasil e O Paiz deram atenção para o extremo oeste do país em função dos conflitos entre seringalistas e seringueiros brasileiros contrários as ordens das forças administrativas e militares bolivianas. O Paiz e Jornal do Brasil revezaram este foco, com as falas acerca da peleja de discursos e artigos apresentados por militares, geógrafos, políticos, advogados e intelectuais. Ao passo que nas folhas belenenses, em conformidade com os interesses dos políticos e comerciantes locais, alternaram-se relatos de conferências proferidas sobre as lindes entre Brasil e Bolívia; desenvolvimento dos trabalhos das comissões mistas de demarcação; denúncias sobre o arrendamento do Acre a sindicato de investidores estrangeiros; anúncios de viagens em que constavam datas do recebimento de pessoas e cargas para rios e terras acrianas; reclames de medicamentos no combate às sezões adquiridas em viagens àquelas plagas; acrescido de notícias de chegadas de personalidades ilustres e carregamentos de produtos oriundos da região. Em meio a estas notícias, inseriam-se textos ora favoráveis ora contrários a propriedade boliviana sobre o Acre. Por sua vez, nas páginas da imprensa manauara, para além do teor exposto nos jornais de Belém, também se tratava o Acre como extensão territorial do Amazonas. Já que o rio Acre servia como marco para lotes de terras adquiridos em municípios amazonenses. Nestes jornais também se vendiam seringais as margens daquelas águas, a exemplo do que se lia no Commércio do Amazonas, em sua edição nº 368, de 8 de janeiro de 1899: 159 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... Bom emprego de capital S. F. Mello & C.ª estão autorizados a vender diversos seringaes nos rios, Japurá, Jutahy, Purus e Acre, todos bem conservados e em condições lisongeiras para quem desejarem empregar vantajosamente o seu Capital. Quem pretender poderá dirigir-se ao escriptorio dos mesmos srs. à rua dos Bares nº 6 onde terá todos as informações necessarias. E embora se observe que o Acre foi pautado nas gazetas brasileiras antes de sua compra pelo Brasil, não se deve interpretar isso como demonstrativo da inexistência de imprensa escrita em terras acrianas antecedendo ao Tratado de Petrópolis. Existiram periódicos acrianos em datas antecipadas a “17 de novembro de 1903”, todavia as pesquisas que fundamentam este texto são os jornais criados no Acre após sua ligação oficial ao Brasil. Posteriormente à oficialização do Acre como terras pertencentes aos brasileiros, por meio do Decreto Legislativo de nº 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, criou-se novo ente administrativo, o Território Federal, que até então era inexistente na Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Desta feita, o Acre, teve sua administração vinculada à Presidência da República e foi dividido nos Departamentos do Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. Dentro dessas divisas administrativas coube ao Departamento do Alto Juruá metade das terras acrianas, tendo como sede a cidade de Cruzeiro do Sul, que foi fundada em 1904, pelo General Gregório Thaumaturgo de Azevedo. Pouco menos de dois anos depois da criação de Cruzeiro do Sul foi constituída a imprensa oficial, com o jornal O Cruzeiro do Sul, cujo primeiro exemplar circulou em maio de 1906. E não obstante que Sena Madureira, capital do Departamento do Alto Purus, tenha sido constituída também em 1904, somente em fevereiro de 1908 é que O Alto Purus passou a ser impresso, tendo idêntica função de dar publicidade aos atos administrativos departamentais. Semelhanças entre O Cruzeiro do Sul e O Alto Purus se encontravam no subtítulo de ambos, pelos quais se classificavam como “Orgam Official”. Igual era o valor da assinatura anual de 30$000 réis dentro e fora de seus departamentos. Afinidade entre O Cruzeiro do Sul e O Alto Purus se dava ao não restringirem a publicar exclusivamente os atos oficiais, mas em seus espaços trazerem notícias sobre a vida naquelas áreas, acrescidas de reclames, folhetins e “a pedidos”. Em O Cruzeiro do Sul e O Alto Purus inexistiam informações sobre caixa postal, telefone, endereço telegráfico ou nome do logradouro em que se situavam, apesar de podermos ler em diferentes exemplares dos dois jornais que eram aceitos materiais para publicação nas respectivas redações (o que nos faz crer que eram locais de notoriedade). Mas, de modo similar 160 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva nem em um ou noutro se expunha os nomes das equipes técnicas e redacionais responsáveis por sua rodagem. Todavia, diferenciavam-se quanto ao informe acerca da periodicidade de publicações, visto que em O Cruzeiro do Sul isso era omitido, ao passo que O Alto Purús estampava em seu cabeçalho tratar-se de um periódico dominical. Distinguiam-se em seus editoriais inaugurais, posto que O Alto Purús se posicionava como “elemento de progresso e ordem”, enquanto O Cruzeiro do Sul definia o seu papel de orientador e difusor de “boas novas”. Isto porque, conforme se lia na coluna inicial de O Cruzeiro do Sul, logo abaixo do expediente, sob o título de “Ao nascer”, que tal qual a da escola e a eletricidade, o jornal seria um dos “marcos inapagáveis” da cidade “como instrumentos inestimaveis de approximação e de riqueza, de cultura e pacificação, de tolerância e de solidariedade”.  Em termos de apresentação, O Cruzeiro do Sul, possuía em média quatro folhas, divididas em espaços de duas a seis colunas, nas quais uma parcela chamada de “Parte Official” se destinava a publicar os atos departamentais, e no restante do espaço seguiam-se os artigos de fundo (conhecidos hoje como editoriais), poesias, cartas, avisos e reclames comerciais (atualmente denominados de classificados). Nota-se que inicialmente inexistiam os telegramas, pois em 1904 não havia sistema de telégrafos no Juruá. E a partir de 1906 se estampavam fotografias em suas páginas. Dentro dos textos de O Cruzeiro do Sul disponibilizados na Hemeroteca Digital encontram-se edições referentes aos anos de 1906 a 1909, no total de 103 números, não obstante a incompletude da coleção em comento. Neste conjunto, ao observar as formas de exposição e análise do Acre como território brasileiro, se verificou quanto ao processo de anexação acriana poucos foram os textos com menções ao Bolivian Syndicate, Tratado de Petrópolis, Questão do Acre e a Luiz Galvez. Todavia, com a leitura destes escritos, torna-se possível identificar que a construção e a interpretação do Acre como “terra brasilis” é um processo longevo e contínuo. E que mesmo após a assinatura do documento legal entre Brasil e Bolívia, esta identidade brasileira do Acre foi alimentada e articulada em folhas de jornais, assim como em lacunas sobre aspectos mais pragmáticos quanto aos rendimentos oriundos das árvores acrianas. Dessa feita, em O Cruzeiro do Sul a elaboração e a explanação do Acre como território brasileiro se davam num primeiro momento por meio de escritos a respeito da “Questão do  O Cruzeiro do Sul, órgão do Departamento do Alto Juruá, número 1, anno I, Cruzeiro do Sul, 03 de maio de 1906. p. 01. 161 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... Acre” referenciando à disputa entre Brasil e Bolívia solucionada com o Tratado de Petrópolis, e, posteriormente, relacionando a Revolta Autonomista e os conflitos em torno da emancipação político administrativa. O fomento a identificação do Acre ao Brasil continuava em O Cruzeiro do Sul nos seus silêncios e encadeamentos quanto ao Bolivian Syndicate, a exemplo dos artigos de 26 de maio de 1912 e 08 de março de 1914. O primeiro por ocasião do óbito do Barão do Rio Branco, no qual o Bolivian Syndicate era acessório a ato cívico de homenagem a defunto ilustre. Isso porque o texto era crônica social daquele evento póstumo, descrevendo a comoção e a participação das figuras políticas do Departamento do Alto Juruá, incluindo a transcrição do discurso de Craveiro Costa relativa às ações do Barão do Rio Branco para a anexação do Acre ao Brasil. Dessa forma, naquele periódico, após oito anos da resolução das escaramuças entre Brasil e Bolívia é que se citava o Bolivian Syndicate como arrendatário das terras acrianas, por meio de um “contrato perigosíssimo”, pelo qual o “imperialismo yankee” incomodaria a “ordem política de todo o continente”. Preocupação que reaparecia na edição nº 331 de O Cruzeiro do Sul, datada de 08 de março de 1914, na qual se lia a segunda parte do relatório apresentado pelo Capitão Francisco Siqueira do Rego Barros (Prefeito do Departamento do Alto Juruá) ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, referente ao segundo semestre de 1913. No texto em comento, o sindicato é empregado como advertência tanto a região, quanto ao país em virtude da concentração fundiária sobre o domínio de casas aviadoras, que então controlavam metade das terras do Departamento do Alto Juruá e poderiam em função de seus interesses: [...] transferir seus immensos domínios a syndicatos estrangeiros de nações poderosas, e reviverão a situação que o Bolivian Syndicate pretendeu crear no coração da Amazônia, ameaçando a ordem política do continente, situação de que nos livraram o genio de Rio Branco e a bravura de Plácido de Castro. Um grande mal, porque o commercio se restringindo quase que exclusivamente a essas poucas firmas, o seu domínio fatalmente irá embaraçar a vida civil e administrativa que aqui for organisada de futuro, impondo o seu poder, quase que soberano, pela posse e exploração de tão considerável e quão rica extensão de terras. Tendo em mente que se tratava da cópia do relato feito pelo gestor do Departamento do Alto Juruá ao seu superior, é interessante notar que aprofundamento do Bolivian Syndicate para a geopolítica da América do Sul, e em especial para o Brasil, tardou uma década para ser  O Cruzeiro do Sul, Órgão do Departamento do Alto Juruá, número 331, anno X, Cruzeiro do Sul. 08 de março de 1914, p. 01. 162 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva publicada na imprensa oficial do Juruá. Em segundo plano, fica evidente que embora o Bolivian Syndicate tivesse sido destituído, ainda restava o temor de que outros empreendimentos daquele formato surgissem, pois se constatava não haver impedimentos à criação destes. E a inexistência de óbice a outras Chartered Companies (TOCANTINS, 2001, p. 2 vol. 47-59) demonstrava a carência de mecanismos para barrar a formação de latifúndios, devido ao monopólio constituído na economia local e que levava ao receio de suas influências sobre a ordenação administrativa e da “vida civil” na região. Na citação de O Cruzeiro do Sul acima exposta, percebe-se a ênfase ao papel de Rio Branco e Plácido de Castro para a não concretização do arrendamento do Acre ao consórcio de investidores reunidos no Bolivian Syndicate, o que reflete o projeto vigente de construção das memórias em torno da chamada Questão Acriana. No rastro deste panorama, a vinculação e exaltação de personalidades brasileiras referendava a elaboração das recordações políticas oficiais, a exemplo da valoração dos feitos de Rio Branco e Plácido de Castro face aos atos de Galvez, que via de regra eram associados a uma “persona” de herói romântico com caráter duvidoso. Comparando O Cruzeiro do Sul com O Alto Purus as perspectivas de discussão em torno das formas de apresentação e interpretação do Acre como terras brasileiras pouco se diferem, salvo as peculiaridades atinentes a cada área departamental, como a especificidade da Revolta Autonomista. De forma semelhante, a O Cruzeiro do Sul, encontra-se em O Alto Purus o Acre brasileiro constituído dentro de um tracejado comum aos espaços da imprensa oficial, a partir de um referencial de silêncios intencionais, nacionalismo e valoração de ícones. Também em O Alto Purus se delinearam os padrões de uma leitura oficializada, de modo que se estimulava a identificação do Acre com a elaboração e o culto a “heróis” brasileiros, tal qual na edição nº 194, datada de 14 de abril de 1912, em que se lia a cópia de publicação do Jornal do Commercio, da cidade do Rio de Janeiro, sobre o Barão do Rio Branco e seu empenho para “affastar o Bolivian Syndicate” no momento em que “o Acre estava em plena Revolução”. Alterações na edificação do Acre brasileiro ocorreram no transcurso do século XX, todavia, a partir de sua segunda metade, com a ascensão de um Regime Ditatorial ao Palácio da Alvorada, as páginas dos jornais acrianos são tomadas de novas evidências acerca das formas de elaboração e explanação do extremo oeste do Brasil. De tal forma que, se no início do XX tratava-se de consolidar a aquisição das terras acrianas com o extrativismo vegetal, no último quarto do século a pauta era vinculada a manutenção do controle sob o Acre dentro de uma  O Alto Purús, Orgam Official, Prefeitura do Alto Purus, anno IV, edição nº 194, 14/04/1912, p. 03. 163 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... nova perspectiva geopolítica sob a ótica Programa Nacional de Integração (PIN) e do I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). E dentro deste contexto que se constituiu o Varadouro como um “dever de consciência de quem acredita no papel de jornalista”, pois no primeiro editorial seus periodistas afirmavam que o produziam porque acreditavam que “o homem acriano e da Amazônia em geral” eram merecedores de “muito mais do que simplesmente ‘o berro do boi’ ”. Daí utilizarem boa parte da folha quatro daquela edição, a fim de tentarem estimular a divulgação de anúncios sobre a seguinte assertiva: Nós pretendemos fazer um jornal que registre o momento histórico do Acre e restabeleça a ligação com o seu passado Anunciando nele você estará facilitando essa tarefa (9 firmas fizeram isso no primeiro número). E neste mesmo exemplar além da linha editorial, em face às exigências do período de Ditadura Militar e Civil se identificavam toda ficha técnica em que se continham os nomes do diretor responsável, editor, redatores, diretor financeiro, bem como da fotografia e arquivo, aduzido do endereço do jornal, seu telefone e oficina em que era produzido. Em formato de tablóide, mas sem “ranço da linguagem doutrinária dos alternativos nacionais” (KUCINSKI, 1991), o Varadouro tinha quantitativo de laudas variável em conformidade com as suas edições, indo respectivamente de onze a quinze folhas na primeira e vigésima edição, com conteúdos distribuídos entre uma a quatro colunas por página. Também na edição inaugural do Varadouro – o jornal das selvas se auto determinava como uma folha quinzenal que “já nasceu acreditada por importantes firmas comerciais que compuseram um saudável e indispensável pacote publicitário”. Aliás, bastante curioso o conjunto dos classificados, tanto por seu caráter de anunciar coisas, produtos e serviços públicos e privados, quanto pelo teor destes, perpassando de vestuário, a representantes comercias que vendiam grupos geradores de motosserras e empresas estatais como a Colonacre. Ainda que sob as pressões vinculadas a circulação de um jornal alternativo (FERREIRA, 2003, p. 08), o Varadouro expunha nos editoriais suas perspectivas de constituição e apresentação do Acre enquanto terras brasileiras. Se ao poder executivo nacional  Criado com a Lei nº 5.727, de 04 de novembro de 1971, tendo por base dotar o Brasil de Infraestrutura necessária ao crescimento do país. Neste sentido, a ideia era enfatizar ações nos setores de transportes e telecomunicações, com destaque para as grandes obras da Usina Hidrelétrica de Itaipu e a rodovia Transamazônica.  Varadouro: o jornal das selvas, ano I, número 1, maio de 1977, edição quinzenal. p.02.  Varadouro: o jornal das selvas, ano I, número 1, maio de 1977, edição quinzenal. p.02. 164 Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque, Lauane Laura da Silva tocava o “integrar para não entregar” e neste rastro seguia-se a ocupação da Amazônia como fronteira agropecuária e de extrativismo mineral, na elaboração dos textos da equipe do Varadouro – o jornal das selvas o debate girava em torno dos rumos dados as populações tradicionais fossem em espaços de mata ou nas cidades. Assim, negava-se o discurso oficial trazendo à cena do diálogo jornalístico local e nacional as demandas dessas gentes, que se contrapunham a versão estatal de vazio demográfico. Contudo, os enfrentamentos do jornal das selvas eram custeados com os anúncios emblemáticos, em que se vendiam de equipamentos para derrubada da mata a edificações de espaços urbanos. Esta diversidade de reclames e temas trouxe consequências quanto a sua longevidade, pois: Ao tentar encaixar-se na prática de um jornalismo crítico e pluralista, o Varadouro logrou sucesso editorial, [...], mas não obteve o sucesso correspondente em termos financeiros, fechando quatro anos depois do início do projeto. O jornal [...] ganhou importância e espaço no mercado do campo jornalístico acriano e brasileiro por ter se voltado para um jornalismo de forte apelo social, preenchendo uma lacuna que os jornais diários ou da grande imprensa foram perdendo no decorrer dos últimos anos, diante da exigência de um enfoque macroeconômico ou de interesse político e econômico dominante. (PORTELA, 2008, p. 1) Assim, o Varadouro - jornal das selvas teve suas atividades encerradas com sua vigésima quarta edição, em 1981. Mas deixou valioso legado para os pesquisadores sobre o contexto político, social e econômico do Acre no período final da Ditadura. Dessa forma, o que aqui se expôs foram apontamentos, dentro da metodologia transdisciplinar, sobre as análises dos jornais acrianos O Cruzeiro do Sul e O Alto Purus, acrescido do Varadouro, observando os entrelaces de conteúdos e seus lugares de produção, com o intuito de pensarmos como estes periódicos elaboravam e expunha o Acre enquanto ente brasileiro. Neste sentido, tanto na imprensa oficial acriana constituída após anexação ao Brasil, quanto na imprensa alternativa questionadora das reorientações socioeconômicas advindas do regime instituído a partir de 1964, se constatou que o cerne da preocupação do Estado Brasileiro nos dois períodos era assegurar o domínio sobre o Acre mediante a exploração dos recursos naturais. 165 Transdiciplinariedade na construção do Acre Brasileiro em notícias de “O cruzeiro do sul”, ... Referências BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. Commércio do Amazonas, anno XXIX, nº 368, de 8 de janeiro de 1899. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=301337&pasta=ano189&pesq=acre>. Acesso em: 3 set. 2013. CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre História e Imprensa. Projeto História: História e Imprensa, São Paulo, v. 35, ago./dez. 2007. 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No dia 07 de dezembro de 1941, a marinha imperial japonesa disparou toneladas de munição sobre a desavisada e sonolenta frota americana ancorada na base naval de Pearl Harbor, no arquipélago do Havaí, durante uma manhã de domingo. Este ataque mudou radicalmente a opinião de Franklin Delano Roosevelt, então presidente dos Estados Unidos da América, que até aquele momento, vinha defendendo uma política de neutralidade e não intervenção contra as hostilidades que se desenrolavam na Europa durante a Segunda Grande Guerra (1939-1945). O Japão tomara posse do Sudeste Asiático e mais uma peça no teatro de guerra mundial foi movimentada. Desta forma, as forças armadas nipônicas controlaram mais de 90% das áreas produtoras de goma elástica no Pacífico (NETO, 2000, p. 33), além das plantações de arroz e zonas de mineração de estanho. Esta tomada de posição estratégica colaborou com o ressurgimento ou reaquecimento * Este trabalho faz parte da dissertação Arigós, Jabá e o Caso da Carne Verde: Vivências populares na cidade de Manaus (1939-1949) defendida no âmbito do PPGH (Programa de Pós-Graduação em História) da Universidade federal do Amazonas (UFAM) em 2012 e orientada pelo Prof. Dr. Marcos César Borges da Silveira. ** Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor das redes públicas do Estado do Amazonas (SEDUC) e do município de Manaus (SEMED). E-mail: aguiar_sidney@yahoo.com.br  Trecho do poema Crônica Romântica de Adeus ao Roadway do bardo L. Ruas in Manaus, meu sonho. / Organização: José Joaquim Marinho Marques. – Manaus: editora Valer, Prefeitura de Manaus, ManausCult, 2010, pp. 53-57. 168 Sidney Barata de Aguiar da borracha silvestre na economia do Amazonas. Os países aliados (Estados Unidos, Inglaterra, França e URSS) necessitavam de enormes quantidades de látex da Hevea brasiliensis (Seringueira) para a indústria bélica (MENDES, 1942) para o enfrentamento armado contra as forças do Terceiro Reich. Nesse contexto, foram celebrados os “Acordos de Washington” que objetivava o “soerguimento da economia gomífera na Região Amazônica, haja vista que grande parte dos antigos seringais da região já haviam sido abandonados” (NETO, 2000, p. 35). Segundo Luiz de Miranda Corrêa (1965), a contenda internacional aqueceria a comercialização, as exportações da borracha e a montagem de uma infraestrutura com diversas empresas brasileiras, estadunidenses ou mistas, todas dedicadas a responder ao “esforço de guerra” em menor tempo possível. Em relação à obtenção de mão-de-obra, empreenderam o “alistamento” de centenas de nordestinos, oriundos de regiões castigadas pelos fenômenos da seca. A procura da quimera do El Dorado na planície amazônica iniciava nos barracões do SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia), que seria substituída pela CAETA (Comissão Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia) (SECRETO, 2007a, p. 90) no Nordeste brasileiro, locais onde recebiam sandálias alparcatas, roupas, canecas, pratos e talheres, mochila, chapéu, cigarros e uma rede que seriam enviados para Belém e dali “subirem” o rio Amazonas para então, serem distribuídos pelos seringais nativos dos Estados do Pará, Rondônia, Acre e Amazonas, escrevendo mais um capítulo da saga da chamada “Batalha da Borracha”. Começava assim, uma longa peregrinação, que passava pelo perigo do torpedeamento dos navios disparados pelos submarinos alemães, submersos no litoral brasileiro, falta de assistência médica, má alimentação, solidão na selva e até doenças de clima tropical como malária, febre amarela, beribéri e icterícia. Os “pousos” eram locais onde o SEMTA reunia os trabalhadores sertanejos que eram depois transportados para a Hospedaria de Tapanã em Belém e distribuídos nos seringais amazônicos. Havia “pousos” nas cidades cearenses de Fortaleza, Sobral, Iguatu, Tianguá, em São Luiz, Coroatá, Caxias, no Maranhão, em Teresina, capital do Piauí e Bragança, no Estado do Pará. A partir do momento em que eram acolhidos nos “pousos” do Nordeste, eram fornecidas aos trabalhadores no mínimo três refeições diárias: café da manhã, almoço e jantar.  Relatório da Comissão Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (CAETA), dezembro de 1945. 169 O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia Apesar da iniciativa de diversificar o cardápio destes migrantes para combater a má alimentação e um grande número de enfermidades que acometiam homens, mulheres e crianças, houve uma grande resistência ao consumo de legumes e verduras, já que o hábito de preferir comer charque e farinha estava bastante arraigado e isto explicava a oposição de cunho alimentar. Antônio Luiz Macêdo Silva Filho (2008) afirma que na frente europeia, os riscos de doenças como a pneumonia, a inanição e as armas do inimigo estavam sempre presentes. Enquanto na frente amazônica além das enfermidades já citadas, também foram registrados a subnutrição e um pesado regime de trabalho. Os “pracinhas”, soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), foram recebidos como heróis nacionais ao término do embate contra o nazi-fascismo. Em Manaus, as festividades iniciaram com a chegada do Navio Cambridge ao Roadway, saindo em marcha pela Avenida Eduardo Ribeiro até a Catedral de Nossa Senhora da Conceição – Padroeira do Amazonas - e depois seguiram para o quartel do 27° Batalhão de Caçadores. Ao passo que, os “soldados da borracha”, frequentemente “anônimos, desprovidos de patente e condecoração, trouxeram em seus corpos as marcas das penosas lidas, testemunhas do estreito convívio entre látex e sangue” (FILHO, 2008, p. 26). Navegando pelos cursos d’água dentro de “gaiolas” do SNAPP (Serviço de Navegação da Amazônia e Portos do Pará), os sertanejos se embrenhavam na floresta dos mais distantes pontos da Amazônia em busca do trabalho extrativista e da produção das “pélas” de borracha nas suas respectivas “colocações”. Abaixo, demonstramos a identidade para embarque e colocação do seringueiro João Batista de Aguiar, natural de Crateús no Estado do Ceará, 55 anos de idade, agricultor. Além de trazer a informação do trajeto percorrido pelo trabalhador que ficou hospedado em Fortaleza e seguiu para o “pouso” de Tapanã na cidade de Belém. Quanto ao seu destino e colocação a indicação é a direção do Estado do Amazonas no Vapor Pará State, mais especificamente no Rio Invira e seu local de trabalho seria um seringal homônimo. Com o intuito de tornar oficial a condição militar destes “soldados da borracha”, o  Relatório da CAETA, dezembro de 1945. O JORNAL, 14 de novembro de 1945, quarta-feira, ano XV.  Assim eram conhecidas as embarcações fluviais que serviam como meio de transporte para os migrantes e da população do interior.  Bolas de borracha em estado bruto.  Seringais para onde eram encaminhados os “Soldados da Borracha” e em muitos casos acompanhados de seus dependentes.  170 Sidney Barata de Aguiar governo de Vargas criou, através do Decreto-lei n.º 5.225, de 1° de setembro de 1943, o chamado “Batalhão da Borracha” (MATIAS, 1997, p. 86). Este “soldado da borracha” veio em companhia de esposa Maria Silveira, 42 anos e seis filhos menores de idade (Vicente, Manoel, Francisca, Ana, Raimundo e Francisco) em busca de um futuro mais promissor na cognominada “Terra da Fartura”. Figura 01: Identidade de embarque e colocação de seringueiros (Frente). Fonte: Arquivo particular de Sidney Barata de Aguiar. Figura 02: Identidade de embarque e colocação de seringueiros (Verso). Fonte: Arquivo particular de Sidney Barata de Aguiar. Os discursos de Getúlio Vargas, que capitaneava o Estado Novo (1937-1945) em vigor, fomentavam, significativamente, a ideia de integrar a região Norte ao restante do país e também o desenvolvimento da Amazônia como área estratégica do Brasil (SECRETO, 2007b). A reativação da economia amazônica, sob o aspecto extrativo da borracha e dentro do contexto do chamado “Esforço de Guerra”, é destacada por Carlos Mendonça (2002) que considerava tal 171 O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia feito como uma das mais importantes ações realizadas do governo brasileiro. Mendonça reproduz a fala de Donald Nelson, Diretor Geral da indústria bélica americana em reunião com alguns líderes na Casa Branca (Washington D.C.) exclamara com convicção: “Sem borracha talvez ganhemos a guerra; com a borracha ganhá-la-emos seguramente” (MENDONÇA, op. cit., p. 37). Carlos Mendonça que esteve em Manaus para acompanhar a chegada de levas migratórias de nordestinos para o Lago do Aleixo, onde o Interventor Federal Álvaro Maia havia inaugurado um “pouso” para os viajantes, não deixou passar despercebida, a situação deplorável desses brasileiros e brasileiras. Assim ele descreveu: Os velhos chegam taciturnos e sombrios, relembrados da terra sertaneja, que não verão jamais. Os jovens espalham-se pela praça, admirados de encontrar no seio escuro da Selva tantas casas novas, amplas, confortáveis. Mulheres gritam e gesticulam á procura das bagagens, com os filhos agarrados ao colo. As fisionomias são profundamente abatidas, todas. Roupas sórdidas. Descalços (Op. cit., p. 06). Apesar das instalações apresentarem boa qualidade havia sempre o problema de adaptação. E ainda compara: Não são tropas de invasão; não são prisioneiros de guerra. São os prisioneiros da fome – os nordestinos – libertados do círculo de chamas dos sertões requeimados. Cerca de 2 mil pessôas – homens, creanças, mulheres – desembarcam dos caminhões. Com a mais variada bagagem. Caixas, malas, sacos, violões, armónicas, bacias, fogareiros, baús de sóla, pacotes, embrulho – toda a fardagem e uma grande massa em retirada (...) (2002, p. 05). A alegria da saída de Fortaleza em direção às regiões de extração, rapidamente era substituída pelos percalços de uma longa e cansativa jornada. Esses trabalhadores enfrentariam o calor amazônico, suas peculiaridades naturais e não conseguiriam alcançar o objetivo de aumentar a produção da borracha, como determinava os governos brasileiro e americano. O jornalista Edgar Morel, percorrendo a região amazônica, também deixou registradas suas impressões sobre as péssimas condições de saúde e total abandono deste verdadeiro “Exército da Borracha”. Segundo suas linhas, o observador deparou-se em Manaus e na cidade de Belém com: (...) apenas molambos de gente atirados no fundo das hospedarias, todos impaludados, famintos e sem um nickel no bolso, esperando que o governo conceda a passagem de regresso. (...) Ei-los famintos e rôtos implorando a caridade publica nas cidades da  Álvaro Botelho Maia nasceu em 19 de fevereiro de 1893 na cidade de Humaitá (AM) e comandou o Amazonas durante três períodos (1930 – 1931 / 1935 -1945 / 1951 – 1954). 172 Sidney Barata de Aguiar Amazonia. Outros, mais desgraçados, levados pela fome, cumprem pena nas cadeias, por crime de roubo e furto. Centenas de “Soldados da Borracha” abandonados, desassistidos e sem condições mínimas de sobrevivência ficaram impossibilitados de retornar aos seus torrões de origem, assim fixando residências ao longo das calhas dos rios ou caminhando famélicos em direção às principais cidades da Região Norte. Transformavam-se nos verdadeiros deserdados do látex. Muitos nordestinos não foram avisados do término da refrega na Europa e continuaram trabalhando pesado nos seringais. Como pagamento pelos serviços patrióticos receberam o descaso do governo, a saúde debilitada e a extrema pobreza. Samuel Benchimol (1992) foi testemunha ocular da falta de ajuda financeira para estes trabalhadores que o autor chama de “filhos pródigos da borracha e da fortuna”. Segundo ele, esses pobres “(...) abandonavam os seringais endividados e rumavam para as cidades de Rio Branco, Porto Velho, Manaus, Santarém, Belém, onde se afavelavam, ou para os pequenos vilarejos e cidades do interior para recomeçarem a luta da vida” (1992, p. 228). Nesta peregrinação jornalística, Morel teve a oportunidade de entrevistar o Sr. Auton Furtado, então presidente da Associação dos Seringalistas do Amazonas. Nas palavras do leader, o repórter teve contato com “apenas alguns casos esporádicos” e que os “bons trabalhadores” continuavam dispostos para o trabalho árduo de extração do látex. O seringalista ressaltou que estes trabalhadores estavam sempre “ombro a ombro com seus chefes”. Observem que estes seringueiros que não se adaptavam ao serviço ou por discordarem de algum ponto desta relação trabalhista não escapavam da pecha de preguiçoso, indolente e mau trabalhador.10 Alguns migrantes, já no ano de 1943, ouvindo as notícias das péssimas condições de vida e trabalho nos seringais desistiam de continuar o trajeto e preferiam ficar nas cidades, criando de certa forma, um novo estereotipo de imigrante facilmente reconhecido ao desembarcar nas principais cidades do Norte, principalmente pela: “(...) maneira desajeitada, “quando pelas ruas caminhava”. A vivência da floresta, o fez habituado a andar, sempre um atrás do outro, ou seja, “em fila”. Essa prática de caminhar em filas, mesmo quando se encontrava na cidade, era motivo de chacotas” (MEDEIROS, 2004, p. 103). Apesar da zombaria estes “arigós” comumente eram vistos trajando roupas de fazenda barata, típico destes “Soldados da Borracha” e sempre portando a “peixeira” ao lado, como símbolo da valentia nordestina. Vestiam-se com:  O JORNAL, 27 de setembro de 1949, terça-feira, ano XVIII. O JORNAL, 27 de setembro de 1949, terça-feira, ano XVIII. 10 173 O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia (...) calça frouxa de mescla, chapéu de palha virado, blusa larga de algodão, mochila às costas, alpercata de rabicho, barba grande, a “peixeira” à ilharga. Andavam aos bandos à procura de emprego, de estância para morar, da petisqueira e da birosca para comer a sua “gororoba”, do boteco para beber a “maldita” e esquecer os mal-ditos, e das festas e dos “arrasta-pés” dos bairros pobres, onde iam à procura de diversão; não raro, transformavam-nas em cenas de bebedeiras, de valentias e de “pega-prá-capar” (BENCHIMOL, 1992, p. 229). Charles Wagley (1998) ressalta que todos os investimentos monetários não foram suficientes para evitar o fracasso do programa de desenvolvimento da borracha, segundo o autor, “a produção da borracha da Amazônia brasileira que era de cerca de 19.000 toneladas em 1940, em 1944 havia aumentado para apenas cerca de 25.000 toneladas”.11 Havia também, os aspectos geográficos, sociológicos e culturais, detectados pelo pesquisador americano que apontou algumas causas, como a indústria de borracha bruta depender das árvores de seringa e estas ficarem distantes uma das outras, responsáveis pela exaustão do trabalhador empregado no fatigante exercício de coleta do látex. Igualmente, no processo de abertura de novas estradas ou da reabertura das antigas é necessário um mínimo de conhecimento da topografia do terreno, desta forma, os “arigós brabos” desconheciam tais técnicas dificultando sobremaneira a produção. Aqui, o termo “arigó brabo” refere-se aos imigrantes nordestinos que ainda não haviam se acostumado com o viver na floresta e apresentavam uma produção muito pequena, nos primeiros anos de atividade e, claro, por outro lado, o “arigó manso” era aquele sujeito que já tinha se ambientado com as peculiaridades da Amazônia12. Além do mais, ainda no rastro deixado por Charles Wagley: O tempo era escasso e os técnicos e administradores do Sul do Brasil e do estrangeiro não compreendiam a sociedade amazônica. Desconheciam os incentivos próprios a estimular a população rural do Amazonas a despender maiores esforços e não compreenderam a força tradicional do sistema comercial da Amazônia, que consideravam muito diferente e explorador e, portanto, uma barreira à grande produção da borracha (Op. cit., p. 74). Estes interesses representados por programas diferenciados também são demonstrados por Cosme Ferreira Filho (1965), segundo ele: 11 Reforçando este raciocínio temos os dados disponibilizados por Samuel Benchimol em seu Romanceiro da Batalha da Borracha (Op. Cit.) que tratam da exportação de borracha silvestre para o exterior, temos os seguintes números em toneladas no quinquênio 1940-1945 respectivamente: 11.835, 10.734, 12.204, 14.575, 21.192 e 18.887. Verificar tabela encontrada na página 118 desta obra. Demonstrando que as expectativas foram ainda menores para o que era proposto e pretendido. 12 Uma discussão sobre as várias versões do termo “arigó” está em BENCHIMOL. Op. Cit., pp. 236-254. 174 Sidney Barata de Aguiar O que, no entanto, não nos parece possível é satisfazer aos dois programas que se distanciam por sua natureza através dos mesmos processos de planificação e de realização. O programa brasileiro requer prudência, estudo, demorada imobilização das capitais, objetivando extensa e profunda transformação do sistema econômico em que se baseia a nossa produção gomífera. O outro – americano – implica rapidez de ação, aproveitamento e ampliação imediata de todos os recursos existentes, intensidade de trabalho e ritmo crescente, sob fórmulas que não se afastam muito do habitual desenvolvimento das operações de natureza militar, cujos frutos devem ser abundantes e prontos. O que ambiciona o govêrno brasileiro é, sem desestimar os lucros imediatos que a maior exportação da borracha proporciona ao país, a organização, em bases científicas, da nossa produção gomífera, como viga-mestra da economia amazônica. O que pretende o governo americano é, pura e simplesmente, conseguir, dentro do mais breve espaço de tempo, o mais alto volume de borracha que se possa alcançar (1965, p.128-129). Barbara Weinstein (1993) debatendo a relação entre seringueiros e comerciantes no período que compreende a expansão e a decadência da borracha na Amazônia (1850 – 1920), relata que o sistema de comercialização prevalecente era conhecido como aviamento. O aviamento era um sistema baseado em uma rede de créditos e endividamento que iniciava com o seringueiro, passava pela figura do patrão, passava pela casa aviadora e esta pelas casas exportadoras que estavam ligadas as companhias compradoras de Nova York, Liverpool ou Londres.13 Este sistema de trabalho mostrou-se “extremamente rígido e desumano” (PINHEIRO, 2011, p. 08). Neste incomum complexo de comércio que permaneceu vivo nos seringais da década de 1940, é evidente que os trabalhadores nesta posição mais baixa desse “mastro totêmico” são os que mais sofriam todo tipo de agruras (WEINSTEIN, Op. Cit., 1993). A alimentação e outros produtos eram comprados no barracão ou direto das mãos dos regatões,14 prendendo o trabalhador a dívidas exorbitantes. As caçadas, segundo os seringalistas,15 retiravam o tempo de trabalho na borracha, desta forma não estaria correspondendo ao apelo da pátria de maior produção. A relação patrão-cliente estabelecida, impedia que o seringueiro rompesse com este tipo de mecanismo de dívidas pesadas e intermináveis16 no “barracão”17, representadas pelas anotações no “borrador”.18 13 Sem citar os importadores e os banqueiros. Comerciantes que utilizavam de barcos regionais para comercializar todo tipo de mercadorias nos rios da Amazônia. Na maioria das trocava os produtos industrializados por produtos da floresta e revendiam em nas cidades. 15 Proprietários dos seringais. 16 Para mais informações indico o trabalho de TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009. 17 Sede administrativa do seringal e onde os seringueiros adquiriam víveres e suprimentos. 18 O livro onde eram anotados os débitos e o quase impossível saldo do seringueiro. 14 175 O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia Com o término do combate na Europa, essa massa de migrantes, acometida por doenças da região, desamparada e descrente de um futuro melhor nos seringais acabava seguindo o destino das cidades de Belém, Porto Velho, Rio Branco e Manaus como alternativa de salvação, de sobrevivência e, como consequência, “muitos se marginalizavam logo, outros desafogavam o desespero no crime, na valentia e na cachaça; as crônicas policiais da época registravam essas ocorrências nos jornais da cidade” (BENCHIMOL, 1992, p. 228). A entrada destes “arigós” irá marcar um novo crescimento demográfico da cidade de Manaus decorrente do arrefecimento da extração da borracha. A repercussão deste processo migratório ensejou um amplo debate, no que consiste principalmente, o retorno dos seringueiros para suas localidades de origem. O articulista Carlos de Avelar assina um artigo intitulado Festa Acabada, na qual deixa claro, sua indignação a cerca do valor de mercado pago pela goma elástica. Observem: Borracha a um preço ridículo como este (12 centavos por libra) e os gêneros de primeira necessidade ultrapassando em preços as alturas dos picos andinos será um “verdadeiro maná de miséria para nós”... Mas a verdade é que a festa terminou... Nós fomos, apenas, os músicos... e a festa acabou. “Festa acabada, músicos a ponta pés...” 19 Outra discussão, bastante acalorada, orbitava sobre o destino deste verdadeiro exército de “soldados da borracha” abandonados à própria sorte e na “mais sórdida estagnação” econômica. Por isso, comumente ouvia-se brados no sentido de apontar soluções e alternativas políticas para o retorno a suas terras natais, como assina Kideniro Teixeira: (...) Fazer regressar aqueles que aqui chegaram iludidos e aloujados como reses, no sonho luminoso de que encontrariam o El-Dorado da lenda secular (...) mas, regressem os miseráveis “soldados da borracha”, aqueles que não tiveram festejos, clarins, bandeirinhas, discursos, passeatas e nem as solicitudaes hospitalares a se refletir numa dose de quinino! Os “soldados da borracha”, país da saudosa e gorda SAVA - ninho de milhafre-mor do Amazonas, vindos aqui mais por um dever patriótico que pela fome, que voltem aos seus pagos esses miseráveis, senhores líderes nordestinos! 20 Essas vozes faziam coro a um discurso muito duro sobre esses “miseráveis”, discussão que ecoava na capital do país, naquele momento, o Rio de Janeiro. Na verdade ninguém mais se responsabilizava em pagar a conta do transporte desses homens e mulheres de regresso para seus locais de origem. Assim temos que: 19 20 O JORNAL, 26 de março de 1946, terça-feira, n° 6.553, ano XVI. O JORNAL, 26 de março de 1946, terça-feira, n° 6.553, ano XVI. 176 Sidney Barata de Aguiar Notícias chegam do país sobre os homens do norte. Fala-se nos seringueiros sofredores, habitantes deste vale malsinado, que vieram para os prélios da campanha da borracha (...) Há quem diga também que esse seringueiro tristonho, triste pária nordestino que aportou por aqui, veio sonhando com a visão mirifica do “El Dorado”, que as lábias instruídas de algum corredor de gado humano souberam plantar nos seus espíritos (...) O sol causticante e as águas avassaladoras não tiveram piedade dessa gente para balsamizar-lhe as dôres (...).21 Esse processo de esquecimento e abandono dos “Soldados da Borracha” terá um ponto final da responsabilidade dos norte-americanos em 30 de julho 1947. A parca literatura e os inéditos esforços acadêmicos, que insistem em priorizar esta temática, mostram-nos que, infelizmente, nem a força da natureza amazônica, nem a ganância humana tiveram piedade destes tristes párias nordestinos e brasileiros. Considerações Finais Com o fim do conflito armado mundial e a assinatura do armistício entre americanos e japoneses em 1945 foi gradativo e inevitável o enfraquecimento e posteriormente, a total extinção dos “Acordos de Washington”. A vitória dos países aliados trouxe a recuperação e o domínio das áreas coloniais do Sudeste Asiático. E esta região prontamente, retorna ao posto de grande produtora mundial do “leite da seringueira”. A Rússia depois de adentrar as portas de Berlim na Alemanha também investe pesado na recuperação de sua indústria e a borracha sintética tem um papel imensurável para a reconstrução de sua economia. Quanto ao caso brasileiro e especificamente a Amazônia, há sinais de crescimento de excedentes do látex durante alguns anos. No entanto, não havendo uma absorção da borracha pelo mercado consumidor interno e o cerceamento de créditos para a produção nos seringais foi gradativo o estrangulamento de uma economia, que já apresentava fragilidades. Os dirigentes norte-americanos fecharam definitivamente “as torneiras” de investimentos na Amazônia em 30 de julho de 1947, inaugurando mais um capítulo cinzento da história em terras amazonenses. A látex da borracha que novamente escorrega por nossos dedos, deixa para traz um rastro de estagnação econômica e letargia social. O Estado do Amazonas e a cidade de Manaus retornam ao estágio de esquecimento que já viveram no início do século XX. Passando a 21 O JORNAL, 21 de junho de 1946, sexta-feira, n° 6.624, ano XVI. 177 O amargo adeus às armas: a trágica saga dos soldados da borracha na Amazônia sobrevive, com o pescado e a extração da Castanha do Brasil, Juta, madeiras, especiarias, e outros produtos extrativistas oriundos da floresta. O colapso econômico foi tão brutal, que a economia do Estado do Amazonas, só retornou a ter um verdadeiro fôlego com a implantação da Zona Franca e o Polo Industrial de Manaus no final da década de 1960. Trazendo consigo as invasões e os problemas característicos sentidos pela Metrópole dos Manaós nos dias atuais. Quanto aos “Soldados da Borracha” e suas famílias, somente na elaboração da Constituição Brasileira de 1988 e com a Emenda Constitucional 78 promulgada no ano de 2014, foram, parcialmente, reconhecidos pelos seus esforços e garantido o direito a receber uma modesta aposentadoria de dois salários mínimos e uma indenização pecuniária. Pior que sobreviver com esta injusta situação financeira, é ter que continuar o combate, desta vez, no front do esquecimento da História da Amazônia e do Brasil. Referências BENCHIMOL, Samuel. Romanceiro da Batalha da Borracha. Manaus: Imprensa Oficial, 1982. CORRÊA, Luiz de Miranda. A Borracha do Amazonas e a Segunda Guerra Mundial. Manaus: Edições Governo do Estado, 1965. FERREIRA FILHO, Cosme (1952). “A Borracha na Economia Amazonense”. In: Porque perdemos a batalha da Borracha. Manaus: Edições Gov. do Amazonas, série FERRO, Marc. História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX; Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FILHO, Antônio Luiz Macêdo e Silva. Estilhaços de uma Guerra. In: Mais Borracha para a Vitória/Adelaide Gonçalves, Pedro Eymar Barbosa Costa (organizadores). Fortaleza: MAUC / NUDOC; Brasília: Ideal Gráfica, 2008. MARINHO, José Joaquim Marques. Manaus, meu sonho. / Organizador José Joaquim Marques Marinho. 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Esta aceleração gerou em muitos a sensação de que nosso país estava por um triz de se tornar uma nação plenamente moderna. Tal entusiasmo foi alentado pela pregação nacionalista do governo federal e pela cascata de bens de consumo que se insinuavam através do rádio, do cinema, das revistas, dos jornais impressos, das prateleiras e vitrines das lojas. Com o realinhamento das forças internacionais no início da Guerra Fria, a França — e, sobretudo, Paris — deixara de representar o mais elevado grau de civilização, para ceder lugar ao American way of life. 22 As cada vez mais dramáticas tensões em torno da concentração fundiária no Nordeste e alhures favoreceram a formação de um grande movimento migratório rumo aos centros urbanos, onde novas oportunidades de trabalho surgiam. Numericamente, a população urbana deu um salto. A taxa anual de crescimento das cidades brasileiras chegou a 6,31% na década de 1950, caindo nas décadas seguintes. Cresciam também os contrastes da vida urbana. E o principal contraste é aquele entre moradores pobres e ricos. As comodidades da vida urbana, em grande medida, eram privilégios destes últimos. No pós-guerra, surgiram na cidade de São Paulo loteamentos periféricos desprovidos da mínima infraestrutura urbana. Aí também se formaram as primeiras favelas em terrenos públicos localizados próximo do centro.23 Na capital do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro, entre o final da década de 1930 e o início da seguinte, a industrialização, a ampliação do emprego * Este texto é uma parte da tese de doutorado A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá (1944-1964), elaborada sob a orientação da Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias e defendida, em 2013, no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP). ** Professor da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e membro da Diretoria da Seção Amapá da Associação Nacional de História (ANPUH-AP). 22 João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais afirmam que “entre 1945 e 1964, vivemos os momentos decisivos do processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados, que exigiam investimento de grande porte; as migrações internas e a urbanização ganham um ritmo acelerado” (MELLO, João Manuel Cardoso de e NOVAIS, Fernando A. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 560-561). Ver também: TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 23 ROLIM, Rivail Carvalho. Culpabilização da pobreza no pensamento jurídico-penal brasileiro em meados do século XX. In: KOERNER, Andrei (org.). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCRIM, 2006, p. 182. 181 Sidney Lobato público e dos benefícios sociais do Estado ensejaram o início do período de crescimento mais acelerado de sua história contemporânea.24 Os contrastes sociais desta cidade não eram menos alarmantes do que os de São Paulo: dos 94 mil prédios construídos na capital da República entre 1940 e 1949, 24 mil eram barracos. Percorrendo as ruas desta cidade, dois jornalistas da revista Manchete registraram que “a trinta metros da Praça Mauá nos sentimos tão distantes da Cidade Maravilhosa como se nos encontrássemos nas lonjuras do Amazonas”.25 Em meado do século passado, a Amazônia despontava no imaginário e no discurso autorizado de intelectuais e políticos dos centros hegemônicos do Brasil como um lugar distante não só no espaço. Segundo esta percepção, este naco do território nacional e sua população estavam muito aquém na escala que historicamente media o grau de civilização dos povos. Talvez o primeiro impacto que este estudo cause no seu leitor seja o de demonstrar que na foz do rio Amazonas, entre 1940 e 1964, vivia-se dramas relativos à urbanização parecidos em muitos aspectos com aqueles experimentados no Sudeste. A “sociedade em movimento” de meado do século XX — as volumosas ondas migratórias que saíram principalmente Nordeste — não dirigiu seu fluxo apenas para as áreas onde a industrialização era mais pulsante. E devemos lembrar que, nos últimos duzentos anos, o comércio e a indústria não foram os únicos indutores de processos de urbanização. Nas franjas do mundo modernizado, em diferentes momentos históricos, o Estado tem aparecido como o principal indutor destes processos. Isto permite entender o aparecimento de Brasília. Ajuda também a explicar as transformações urbanas ocorridas em Macapá entre 1944 e 1964, que objetivamos analisar neste texto. Estudos sobre os processos de urbanização ocorridos na região amazônica durante o século XX afirmam que o êxodo dos seringais provocou um notável crescimento populacional em Belém e Manaus. Estas cidades concentravam mais do que 50% dos habitantes dos Estados do Pará e do Amazonas em 1960. A débâcle da economia da borracha trouxe grandes alterações demográficas para a planície amazônica. Lobato Correa afirma que, nos anos que seguiram esta crise, ocorreu uma diminuição absoluta da população das pequenas cidades e “mesmo mais tarde, no período de 1940-1950, pequenas cidades criadas [...] apresentavam um crescimento demográfico inferior ao vegetativo de sua população”.26 Sem esquecer a experiência de Fordlândia27, vários pesquisadores apontam que foi a partir da década de 1960 que se intensificou a instalação de company towns na Amazônia.28 Foi quando se adquiriu um maior conhecimento sobre os recursos economicamente exploráveis desta região e foi também quando — segundo Bertha Becker — ela ganhou uma feição original, de fronteira (da expansão capitalista) contemporânea que “já nasce urbana, tem um ritmo de urbanização mais rápido que o resto do Brasil”.29 24 FISCHER, Brodwyn. Direitos por lei ou leis por direito? Pobreza e ambiguidade legal no Estado Novo. In: LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 432-433. 25 ROLIM, Rivail Carvalho. Op. Cit. P. 183. 26 CORREA, R. L. Lobato. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, Ano 49, nº 3, 1987, p. 54. Ver também: VICENTINI, Yara. Cidade e história na Amazônia. Curitiba: UFPR, 2004, P. 149150. 27 A respeito desta experiência, destacamos os seguintes estudos: GRANDIN, Greg. Fordlandia: the rise and fall of Henry Ford’s forgotten jungle city. New York: Metropolitan Books, 2009; e LOURENÇO, Elaine. Americanos e caboclos: encontros e desencontros em Fordlândia e Belterra-PA. Dissertação de mestrado em Geografia Humana defendida na USP, 1999. 28 TRINDADE JÚNIOR, Saint-Clair e ROCHA, Gilberto de Miranda (orgs.). Cidade e empresa na Amazônia: gestão do território e desenvolvimento local. Belém: Paka-Tatu, 2002. 29 BECKER, Bertha. Amazônia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1994, p. 44. 182 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) Contudo, Márcio Douglas Brito Amaral destacou que a longa depressão do “pós-borracha” não deve ser aplicada absolutamente a toda a Amazônia. Isto porque alguns lugares experimentaram notáveis expansões urbanas neste período: Marabá tornou-se o segundo município do Pará graças à rentável exploração da castanha; e as cidades elevadas à condição de capitais dos territórios federais cresceram rapidamente, devido a suas novas funções políticoadministrativas.30 Tal constatação revela que a urbanização na Amazônia não pode ser explicada por somente uma força motora (como o fator econômico). Esta região está repleta de espaços “superurbanizados”, “uma condição em que a taxa de crescimento urbano excede o nível local de desenvolvimento econômico-industrial e [a] mudança tecnológica suficiente para torna-lo viável”, afirmam John Browder e Brian Godfrey. Estes autores ressaltam que, em grande medida, a urbanização da fronteira amazônica está desarticulada do seu próprio desenvolvimento econômico regional e resulta da intervenção geopolítica de um Estado centralizador e modernizador.31 A planificação das ações ligadas ao incremento populacional e à valorização econômica dos sertões estava inserida num processo mais amplo de modernização do Estado brasileiro. Uma crescente racionalização do Estado teve início em 1930. Nas palavras dos representantes do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP): “impunha-se, em última análise, racionalizar os serviços públicos, mas racionalizá-los no mais amplo sentido, desde a aplicação de normas e métodos científicos, na sua organização, até o amparo social aos servidores”.32 A criação de secretarias, departamentos e autarquias governamentais prefiguravam a expansão da ação estatal sobre diversos setores da sociedade brasileira. A montagem tecnoestrutura burocrática para intervir nestes setores indicava o abandono do modelo liberal de Estado. Este modelo parecia representar a errônea opção por “paliativos de efeitos protelatórios”. A atuação das agências estatais implicava na planificação dos passos a serem dados.33 Em meado do século XX, agências do Estado planejavam mudar o histórico perfil de ocupação do território brasileiro através do controle do fluxo populacional.34 Os planejadores objetivavam mudar o histórico perfil de ocupação do território brasileiro. O direcionamento das correntes migratórias pelo governo corrigiria os problemas que o povoamento espontâneo havia criado. Problemas como a grande concentração populacional na faixa litorânea, que contrastava com a população rarefeita dos imensos sertões. Áreas de fronteira contestadas durante longo tempo preocupavam ainda mais o governo federal. Era o caso do Território Federal do Amapá, cujas terras foram disputadas (diplomática e militarmente) por franceses e brasileiros no curso de décadas e décadas. Para o governo, a definitiva incorporação nacional de áreas como o Amapá seria resultado do trabalho de fazer coincidir a fronteira econômica com a fronteira política.35 30 AMARAL, Márcio Douglas Brito. Dinâmicas econômicas e transformações espaciais: a metrópole de Belém e as cidades médias da Amazônia Oriental — Marabá e Macapá. Tese de Doutorado em Geografia. São Paulo: USP, 2010, p. 98-99. 31 BROWDER, John O.; GODFREY, Brian J. Cidades da floresta: urbanização, desenvolvimento e globalização na Amazônia brasileira. Manaus: UFAM, 2006, p. 32. Ver também: CASTRO, Edna. Urbanização, pluralidade e singularidades das cidades amazônicas. In: Idem (org.). Cidades na floresta. São Paulo: Annablume, 2008, p. 13-39. 32 SCHWARTZMAN, Simon (org.). Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília: UNB, s/d, p. 46-47. 33 Nas palavras de Maria Celina D’Araújo: “na prática, no Brasil e no mundo ocidental em geral, a necessidade do planejamento econômico impôs-se de forma drástica como contrapeso para as distorções do laissez-faire, particularmente a partir de 1929” (D’ARAÚJO, Maria Celina. Amazônia e desenvolvimento à luz das políticas governamentais: a experiência dos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais. N. 19, jun. de 1992, p. 43). 34 CABREIRA, Márcia Maria. Vargas e o rearranjo espacial do Brasil: a Amazônia brasileira — um estudo de caso. Dissertação de Mestrado em Geografia Humana, defendida na USP, 1996. 35 Nas palavras de Getúlio Vargas: “o imperialismo do Brasil consiste em ampliar as suas fronteiras econômicas e integrar um sistema coerente, em que a circulação de riquezas e utilidades se faça livre e rapidamente, baseada em meios de transporte eficientes, que aniquilarão 183 Sidney Lobato Macapá, no início de 1944, ganhou o status de capital (em detrimento da escolha inicial, que recaíra sobre o município de Amapá). Neste momento, no entanto, Macapá era uma vila de algumas centenas de habitantes, abalada pela crise da borracha amazônica do início do século XX.36 As construções realizadas pelo governo territorial trouxeram novo fôlego para a combalida economia macapaense. Arthur Miranda Bastos, que, como já ressaltamos, fora Diretor da Divisão de Produção, no livro Uma excursão ao Amapá, de 1947, afirmou que o governo do Amapá tentou, logo que instalado, remover os sinais de decadência de Macapá, “construindo prédios novos para abrigar os funcionários da nova administração, limpando o mato das ruas e praças, comprando toneladas e mais toneladas de cimento, tijolos, telhas, madeiras, ferramentas, máquinas e tudo mais que seria preciso para transformar numa capital apresentável uma velha e atrasada cidade”.37 A construção desta “Macapá Moderna” era apresentada como símbolo máximo da vitória do homem sobre a natureza aparentemente indomável. Segundo as prédicas do governo territorial, a ordem humana teria sobrepujado a natural e o homem, até então submisso aos humores da floresta, teria finalmente imposto a sua marca nestas paragens. Macapá, a cidade dos migrantes A cidade de Macapá passou por profundas metamorfoses em meados do século XX. Como antes destacamos, as mudanças começaram a ser experimentadas a partir da criação do Território Federal do Amapá (pelo Decreto-Lei n. 5.8120, de 13 de setembro de 1943) e, mais concretamente, a partir da instalação do primeiro governo territorial, em 25 de janeiro de 1944. Quando foi criado o Território Federal do Amapá, o mundo vivia as tensões geradas pela Segunda Guerra Mundial. Então, foram assinados vários termos de cooperação entre Brasil e EUA, denominados de Acordos de Washington.38 Por meio daqueles Acordos, o governo brasileiro conseguiria realizar o reequipamento de suas forças militares e os EUA garantiam o fornecimento de produtos estratégicos e a instalação de bases militares no Nordeste e no Norte do Brasil. Em Natal (capital Estado do Rio Grande do Norte), os estadunidenses construíram a maior base aérea de fora do seu país. No município de Amapá, foi construída outra base aérea (distante 12 km da sede municipal). Para a montagem da estrutura desta base foram arregimentados cerca de 6 mil homens — muitos deles eram imigrantes nordestinos. Novos bairros surgiram naquele lugar: Igarapé Carrapeta, Janga, Santo Antonio, Meruoca e outros. Quando terminou a Guerra e os estadunidenses voltaram para o seu país, os imigrantes perceberam que não havia mais ali oportunidades de trabalho, e muitos deles rumaram para Macapá, onde esperavam conseguir emprego.39 Foi em torno da questão do fornecimento da borracha para os EUA que se formou a maior onda migratória para a Amazônia, em meado do século XX. Entre 1941 e 1945, 55.339 nordestinos deslocaram-se para a Amazônia (36.280 “soldados da borracha” e 19.059 dependentes).40 A presença de aviões e de caça-submarinos no porto da cidade de Fortaleza, não permitia aos as forças desintegradoras da nacionalidade. O sertão, o isolamento, a falta de contacto são os únicos inimigos temíveis para a integridade do país” (VARGAS, Getúlio. Problemas e realizações do Estado Novo. In: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, s/d, Vol. V, p. 163). 36 LOMBAERDE, Padre Júlio Maria. Macapá: sua história desde a fundação até hoje. (Mimeo), Macapá, 1987, p. 8. 37 BASTOS, A. de Miranda. Uma excursão ao Amapá. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947, 6-7. 38 GARFIELD, Seth. A Amazônia no imaginário americano em tempo de guerra. Revista Brasileira de História. Vol. 29, nº 57, junho de 2009, p. 35-46. 39 BARRETO, Cassilda. Pássaros máquinas no céu do Amapá. Brasília: Da autora, 2000, p. 38, 162. 40 MARTINELLO, Pedro. A “Batalha da Borracha” na Segunda Guerra Mundial e suas consequências para o Vale Amazônico. Tese de doutorado em História Econômica, USP, 1985, p. 364. 184 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) emigrantes cearenses esquecerem que estavam vivendo tempos de guerra. O próprio nome da empreitada de elevação da produção gomífera, Batalha da Borracha, indicava que o vale amazônico agora estava conectado aos dilemas das forças aliadas e ao movimento transnacional (de: pessoas, matérias-primas, aeronaves, navios, submarinos, alimentos...) gerado pela Guerra. Ao mesmo tempo, o governo varguista apresentava esta empreitada como uma estratégia para solucionar “problemas nacionais”: a ocupação e colonização de “espaços vazios”.41 Ao enfatizar a ideia de que cada um tinha o seu lugar, a propaganda mobilizadora ensejava a imaginação de diferentes campos de batalha e reforçava a retórica da importância para o Estado Novo tanto do trabalhador dos sertões quando do das cidades.42 Cartazes com frases como “Rumo à Amazônia” sugeriam com suas imagens que o migrante deixaria a sequidade e a pobreza do Nordeste para se deleitar uberdade e na fartura da Amazônia. Porém, não foram poucas as agruras que os nordestinos enfrentaram no vale amazônico — começando pelo “pânico da água” (a aversão ao que muitos consideravam “uma terra feia e encharcada”).43 Violentas críticas às condições de vida e de trabalho dos “soldados da borracha” começaram a aparecer na imprensa após o fim da Guerra, do Estado Novo e, consequentemente, da censura. Era o momento em que o interesse estadunidense pela Amazônia sofria um refluxo e em que uma caravana de estudantes cearenses constatava in loco o desaparecimento de 23 mil nordestinos “tragados pela ‘batalha da borracha’”.44 Alcino de Mello pôde afirmar de forma categórica: “não é segrêdo para ninguém ter sido um fracasso a tentativa de incremento da colonização do Vale Amazônico, levada a efeito nos últimos anos da II Guerra Mundial, com o objetivo de acelerar a produção de borracha [...]”. E, adiante, ele ressalta: “se debaixo de cada dormente da Estrada de Ferro Madeira Mamoré há, como se afirma, um trabalhador enterrado, sem grande exagero poder-se-ia dizer que em cada quilômetro de estrada de seringueiras na Amazônia há uma cruz de nordestinos”.45 O fracasso da tentativa de alavancar a produção gomífera nesta região tem diversas causas. A pressão das oligarquias da Amazônia fez com que a maioria dos termos dos Acordos de Washington não fosse cumprida.46 Diversos migrantes foram absorvidos por atividades econômicas que os afastavam dos seringais. Atividades desenvolvidas em: usinas de açúcar, fazendas de gado, áreas de 41 Ao lado do nacionalismo, a crescente influência dos militares na cúpula governamental federal fortalecia o projeto de consolidação nacional por meio da integração econômica e favorecia a aceleração da efetivação de medidas ligadas à segurança nacional, como a criação dos novos territórios federais. Os temores gerados pela Segunda Guerra Mundial igualmente favoreceram a aceitação destas medidas. Comentando um discurso de saudação proferido por Getúlio Vargas aos novos aspirantes a oficial da Reserva do Exército, o professor da Escola Militar Idelfonso Escobar ressaltou que “na hipótese de um bloqueio naval de nosso litoral, os Estados do extremo norte do país — Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas — encontrar-se-iam em precária situação estratégica, isolados e privados de receber recursos militares, pela supressão da única via de comunicações existente entre êles e os Estados do sul” (ESCOBAR, Idelfonso. A marcha para o Oeste: Couto de Magalhães e Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: A Noite, 1941, p. 64-65). 42 SECRETO, Maria Verónica. Soldados da borracha: trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 73-75. 43 Ibidem, p. 80. Alcino Teixeira de Mello, comentando o estado do brabo (imigrante nordestino recém chegado na Amazônia), afirma: “mal se instala no seringal, sofre grande desilusão. A barraca, insulada no meio da floresta, longe dezenas de quilômetros da margem dos rios principais, é um tormento para sua vida de sertanejo acostumado a cruzar campos e a galgar colinas [...]” (MELLO, Alcino Teixeira de. Op. Cit. P. 13). Sobre a propaganda para mobilizar, no Nordeste, os “soldados da borracha” ver: NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a seca: políticas emergenciais na era Vargas. Revista Brasileira de História. Vol. 21, nº 40, 2000, p. 120. 44 MARTINELLO, Pedro. Op. Cit. P. 365. 45 Ibidem, p.. 89, 94. 46 Por exemplo: o salário dos seringueiros não ficou em 60% da borracha coletada; as famílias dos imigrantes ficaram desamparadas no Nordeste; e o atendimento médico ficava restrito aos grandes centros urbanos (OLIVEIRA, Nilda Nazaré Pereira. A economia da borracha na Amazônia sob o impacto dos acordos de Washington e da criação do Banco de Crédito da Borracha (1942-1950). Dissertação de mestrado em História Econômica, USP, 2001, p. 94). 185 Sidney Lobato garimpo, seringais e cidades.47 Em 1951, Arthur de Miranda Bastos, afirmou que não houve hecatombe nenhuma entre os homens que, na época da Guerra, vieram explorar os seringais amazônicos e que tais comentários eram obra de “alguns jornalistas pouco informados” — o que, pelo exposto acima, é improcedente. Miranda Bastos ressaltou que muitos imigrantes chegavam empolgados com as exageradas grandezas apregoadas pelos propagandistas e, desiludidos, cedo abandonavam os seringais. Em seguida destacou: “de 1944 a fins de 1945 era este repórter um dos secretários do Govêrno do Amapá, e nesse caráter teve no seu serviço e viu nos demais, centenas de ‘arigós’ que haviam descido no Pará como soldados da borracha, mas, que haviam entendido mais lucrativo ser carpinteiros ou pedreiros nas grandes obras que ali iniciava o governador Janary Gentil Nunes”.48 Assim, as construções urbanas ocorridas em Macapá ofereciam alternativas àqueles que fugiam das adversidades da vida nos seringais. O afluxo de migrantes para a capital amapaense foi motivado principalmente pela busca de trabalhos remunerados.49 Entre 1944 e 1964, uma grande parcela dos homens que chegaram a Macapá foi absorvida pelo crescente setor da construção civil. Não seria um exagero dizer que esta cidade era nestes anos um grande canteiro de obras.50 De um lado, construções do governo, do outro, o levantamento de casas particulares para os que chegavam. O clero também colaborou neste processo, promovendo a construção de igrejas e demais prédios para a estruturação da diocese. Já as mulheres estavam mais presentes no setor de serviços. Segundo o censo de 1950, das 1.013 pessoas que no Amapá trabalhavam na “prestação de serviço”, 598 eram mulheres.51 Em 1960, trabalhavam neste setor 1.209 homens e 1066 mulheres.52 Grande foi o número de mulheres migrantes que se empregaram como domésticas. Muitas outras passaram a ajudar no sustento da família através da lavagem de roupas para outrem. 53 Outra importante causa da forte migração para a capital do Amapá foi a procura por serviços de saúde, educação, assistência social e outros. A concentração de serviços em Macapá fazia desta cidade um polo de atração de migrantes. O gráfico abaixo nos possibilita perceber a distribuição desigual de alguns dos serviços entre os municípios amapaenses no ano de 1960. 47LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. 2 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1986, p. 60-61. 48 BASTOS, A. de Miranda. As perdas exatas na ‘Batalha da Borracha’. Amapá. Nº 319, de 21 de abril de 1951, p. 3. Na década de 1940, tornou-se comum utilizar o termo pejorativo ‘arigó’ para designar os imigrantes nordestinos (principalmente cearenses) que iam para os seringais da Amazônia. 49 A respeito deste movimento migratório o Atlas do Amapá ressaltou: "o crescimento da população se faz, preferencialmente, em benefício de outros setores de atividades que não a agricultura. O contingente vindo de fora, especialmente das ilhas paraenses, de um modo geral é constituído por pessoas que procuram a oportunidade de abandonar um gênero de vida eclético de beira-rio e que procuram melhores horizontes de vida aproveitando-se das oportunidades que o Território oferece. Assim, muitos transferem-se para outros setores de atividade, transferência que também procuram concretizar habitantes de outras regiões amapaenses que se mudam para a área de Macapá" (IBGE. Brasil Atlas do Amapá. Op. Cit., p. 34). 50 Amiraldo Bezerra, referindo-se às décadas de 1940 e 1950, relembra: “ouvia-se barulho dos serrotes e dos martelos que ecoavam contrastando com o silêncio e a calmaria de uma cidade que surgia no meio da selva amazônica” (BEZERRA, Amiraldo. A margem esquerda do Amazonas. Fortaleza: Premius, 2008, p. 21). 51 IBGE. Brasil. Território do Amapá. Rio de Janeiro: Ibge, 1955, p. 13. 52 IBGE. Brasil. Recenciamento geral de 1960: Rondônia — Roraima — Amapá. Rio de Janeiro: Ibge, 1968, p. 172. 53 Segundo o Ibge, em 1960, no Território Federal do Amapá, 635 mulheres (e apenas 70 homens) trabalhavam no ramo do serviço doméstico remunerado e 395 mulheres (e nenhum homem) trabalhavam como lavadeiras e engomadeiras (ibidem, p. 159, 170). 186 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) Gráfico no 1: Distribuição de serviços nos municípios do T.O. do Amapá (1960) Fonte: jornal Amapá. Gráfico no 1: Distribuição de serviços nos municípios do T.O. do Amapá (1960) A comparação entre os números de unidades prestadoras de serviços e estabelecimentos industriais das municipalidades nos permite perceber que aí a capital amapaense se destacava em quantidade e qualidade. Primeiramente, ela concentrava um número significativamente maior de unidades, o que em parte pode se justificar por sua população numericamente muito superior. Por outro lado, alguns serviços eram exclusivamente oferecidos nela: tratamentos de saúde de média complexidade (hospitalar) e ensino secundário (havia apenas uma escola técnica no município de Amapá). Além de atender à população do Território Federal do Amapá, as unidades macapaenses muito frequentemente atendiam os moradores das ilhas da foz do Amazonas. Em artigo de abril de 1951, o jornal Amapá destacou que as populações das ilhas de Caviana, Mexiana, Gurupá, do Pará, dos Porcos e outras, apesar de não mais pertencerem a área do município de Macapá (como antes de 1943), ainda sofriam "a influência econômica do Amapá, mas também os benefícios da educação e da assistência médica".54 Em 15 de janeiro de 1964, aquele mesmo periódico noticiou a visita do prefeito da ilha e município de Afuá (Jofre Seixas) ao governador Terêncio Porto (ocorrida 5 dias antes), ocasião em que "foram abordados relevantes assuntos de interesse da região, notadamente ao que se refere aos problemas de educação e saúde".55 Por meio do oferecimento de serviços públicos a uma região que abrangia, além dos municípios amapaenses, as ilhas paraenses próximas, Macapá ampliava e consolidava sua área de influência. O geógrafo Antônio Teixeira Guerra comentou: “observamos que a cidade de Macapá é a que maior atração exerce sôbre as populações rurais e mesmo sôbre os outros centros urbanos que lhe estão próximos”. E complementou: “a cidade de Belém e outros centros nordestinos também têm sofrido os efeitos dessa atração 54 Serviço de Geografia e Estatística. Amapá. Nº 317, de 07 de abril de 1951, p. 4. Prefeito da cidade de Afuá recebido em audiência pelo governador do Território. Amapá. Nº 1254, de 15 de janeiro de 1964, p. 6. 55 187 Sidney Lobato realizada por Macapá”.56 Nas áreas amazônicas atingidas por esta atração — especialmente na zona rural da Amazônia Oriental — havia uma forte tradição de mobilidade populacional. Comumente, o ribeirinho exercia duas ou três atividades econômicas durante o ano — conforme a estação climática. Os lavradores, na época da entressafra, se dedicavam também à caça de animais silvestres, à pesca, à coleta de sementes oleaginosas e à extração de látex. No sul do Amapá, no período de intensas chuvas, os extrativistas moravam próximo dos castanhais (nos altos e médios cursos dos rios) e durante os meses do verão (de agosto até novembro) se instalavam próximo dos seringais, nos baixos cursos. 57 Os faiscadores constituíam uma “população flutuante”.58 Uma vez descoberto um novo veio de ouro — ou de outro mineral valioso — grandes agrupamentos humanos rapidamente eram formados em torno dele.59 A faiscação era um sistema de trabalho individual e livre, que não necessitava de aparelhagem cara e pesada — o que dava ao trabalhador extrema mobilidade.60 O regime de trabalho das populações rurais amazônicas ensejava um modo de vida provisório. A relação interina com os recursos e com os lugares diz respeito a um modus vivendi muito antigo.61 Tornar moderna a vida nos sertões do Brasil assumia, nos anos 40 do século XX, o sentido de fazer do “caboclo” um sedentário. Na perspectiva governamental era imprescindível fixar o homem, ou seja, através do emprego de modernas técnicas, liberá-lo do influxo das cambiantes forças naturais e torná-lo sedentário. Por outro lado, a cidade era apresentada como forma definitiva de povoamento e como símbolo da total regulação do tempo e do espaço pelo homem. Anos 50: novas frentes de trabalho Oferecendo oportunidades aos nordestinos desiludidos com as mentirosas promessas de prosperidade nos seringais e exercendo seu magnetismo sobre uma população amazônica bastante móvel, Macapá experimentou na segunda metade da década de 1940 um abrupto crescimento demográfico. Na década de 1950, novos fatores iriam dar mais fôlego a este processo. A exploração pela Indústria e Comércio de Minérios S. A. (Icomi) — uma modesta firma constituída em Belo Horizonte, no ano de 1942 — das imensas jazidas de manganês do Amapá criou uma 56 GUERRA, Antônio Teixeira. Estudo geográfico do Território do Amapá. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, p. 182-183. Este estudo foi resultado de uma excursão que o autor realizou entre abril e maio de 1950, a convite do governador Janary Nunes, juntamente com os pesquisadores Lúcio de Castro Soares, Speridião Faissol, Claude P. Courbet, Alceo Magnanini e Fernando Flávio Marques de Almeida. 57 Ibidem, p. 194, 226-227. A comercialização da castanha aí coletada sofreu um forte impacto durante a Segunda Guerra Mundial, seja pela proibição de compra imposta pelos Estados Unidos, seja pela falta de transportes. As safras de 1943 e 1944 foram totalmente perdidas (NUNES, Janary. Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 146). 58 SOUSA, Henrique Cáper Alves de. O ouro e a vida nalgumas regiões do Brasil. Revista Brasileira de Geografia. Ano II, nº 1, janeiro de 1940, p. 19. 59 Contrariando a ideia corrente na documentação de que as áreas de garimpo são intrinsecamente marcadas por uma completa anomia social, um articulista da Revista Brasileira de Geografia afirmou: “a vida nos garimpos é regulada por um código não escrito, mas conhecido e por todos respeitado” Garimpeiros [seção: Tipos e aspectos do Brasil]. Revista Brasileira de Geografia. Ano IV, nº 4, outubro-dezembro de 1942, p. 873. 60 Comercialmente, os faiscadores eram assistidos por regatões e utilizavam como moeda as pepitas e as aluviões auríferas (GUERRA, Antônio Teixeira. Op. Cit. P. 191-192). 61 MARTINS, José de Souza. Vida privada nas áreas de expansão da sociedade brasileira. In: SCHWARCZ, Lilia M. (org.). História da vida privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 664. 188 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) grande onda migratória para a capital amapaense.62 Minério aplicado na siderurgia, o manganês é utilizado principalmente na fabricação de diversos tipos de aço, funcionando como desoxidante e removedor de impurezas. Em meado do século XX, a indústria siderúrgica gradualmente aumentou a produção do aço, o que fez crescer rapidamente a procura pelo manganês.63 No contexto da Guerra Fria, a Rússia (maior produtora mundial deste minério) tornou-se cada vez menos disposta a continuar vendendo boa parte de sua produção manganífera para importadores estadunidenses. Assim, as jazidas do Amapá (que, em 1957, fizeram do Brasil o 4º maior exportador mundial de manganês) transformaram-se num elemento importante nas negociações comerciais (e políticas) com os EUA.64 Em fins de 1946, a área destas jazidas foi transformada em reserva nacional. No ano seguinte, a Icomi ganhou a concessão para fazer a prospecção. Quase quatro anos depois, esta empresa, associada à empresa estadunidense Bethlehem Steel, apresentou o relatório final dos estudos preliminares.65 Entre 1951 e 1953, a Icomi realizou uma série de esforços no sentido de se capitalizar para dar início a sua grande empreitada no Amapá.66 E para dirigir todo o trabalho de construção do parque industrial foi contratada, em janeiro de 1954 (na cidade de Nova York), a Foley Brothers.67 A Icomi precisava de uma ampla infraestrutura para tornar possível a exploração e escoamento da produção manganífera amapaense.68 Esta infraestrutura foi dividida em três seções: a) área de mineração (vila de Serra do Navio e área de extração); b) a ferrovia (que transportava o minério); c) e o Porto de Santana (distrito da capital, distante dela cerca de 20 km), onde terminava a ferrovia e de onde o minério saía, em navios, para o exterior.69 Abria-se, assim, no Amapá, uma ampla e diversificada frente de trabalho, justamente no momento em o governo territorial encontrava sérias dificuldades financeiras para manter o ritmo de suas construções. Café Filho (líder do PSP, que assumiu a presidência da República após a morte de Vargas) instituiu uma política econômica com drásticos cortes, cujo objetivo era conter a pressão orçamentária sobre os cofres da União.70 Isto foi um entrave para a continuidade dos 62 Janary Nunes, desde o início do seu governo, demonstrou interesse em fazer dos minerais existentes em abundância no Amapá uma das bases do crescimento econômico deste Território. Em 1945, ele tomou uma série de providências para possibilitar o aproveitamento dos veios ferríferos descobertos no rio Vila Nova. Sob o ataque de críticos nacionalistas, a empresa estadunidense Hanna Exploration Company ganhou a concessão para realizar a extração e a comercialização deste minério. Para a frustração do otimismo governamental, esta empresa cedo desistiu de tal exploração, por considerar que ela não apresentava grandes perspectivas de lucro (PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração industrial amazônica (1943-1964) Dissertação de mestrado em História, UNICAMP, 2011, p. 16). 63 ICOMI. O manganês do Amapá. Rio de Janeiro: Indústria e Comércio de Minérios S. A. (mimeografado), 1971, p. 2930. 64 Enquanto não há decisão sobre o Brasil a Rússia recusa o manganês aos EE.UU. Amapá. Nº 205, de 12 de fevereiro de 1949, p. 4. Consultamos também: Cresce de importância o manganês do Amapá. Amapá. Nº 204, de 05 de fevereiro de 1949, p. 5. 65 ICOMI. História do aproveitamento das jazidas de manganês da Serra do Navio. Rio de Janeiro: Indústria e Comércio de Minérios S. A. (mimeografado), 1983, vol. 1, p. 23. 66 Para construir suas instalações, a ICOMI emprestou US$ 67, 5 milhões a juros de 4 a ½%. Deste total, a empresa gastou efetivamente 55 milhões. 67 Ibidem, p. 71. 68 Os afloramentos de manganês distavam mais de 200 quilômetros da cidade de Macapá, e o acesso somente era possível através do seguinte trajeto: pela estrada até Porto Grande, daí de canoa pelo rio Araguari até a embocadura do rio Amapari, em cujo leito se prosseguia até a área das minas. 69 DRUMMOND, José Augusto e PEREIRA, Mariângela de Araújo Póvoas. O Amapá nos tempos do manganês: um estudo sobre o desenvolvimento de um estado amazônico — 1943-200. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2007, p. 148. 70 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964). 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 201-202. 189 Sidney Lobato investimentos do governo territorial nos diversos setores da administração pública. Foi neste quadro recessivo que o então assessor técnico do Gabinete do governo territorial, Amaury Farias, informou aos amapaenses das dificuldades financeiras que levaram Janary Nunes a dispensar vários trabalhadores, sobretudo da categoria “braçais” (que executavam diversos tipos de trabalhos manuais). No texto “Informações ao público”, publicado no jornal Amapá de 05 de março de 1955, Amaury Farias afirmava: “a ICOMI S.A. em colaboração mútua e expontânea [sic.] com o Govêrno do Território, atendendo ao pedido do Excelentíssimo Senhor Governador, já empregou 83 braçais, 42 carpinteiros, 3 pintores, 3 motoristas e 1 encanador”.71 Portanto, vários trabalhadores deixaram a cidade de Macapá e foram trabalhar nas obras da Icomi.72 Muitos trabalhadores dos interiores do Território também largaram outras atividades econômicas em busca de novas oportunidades nestas obras. Enquanto a quase totalidade dos técnicos contratados pela Icomi saíram dos EUA e do Sudeste brasileiro, os operários eram, maciçamente, oriundos do Nordeste, do Pará e dos interiores do Amapá.73 Em seu relato sobre o Amapá do início dos anos 50, Antônio Teixeira Guerra destacou: “o recrutamento de mão-de-obra está ocasionando a existência de uma corrente de população que deixa o baixo curso da Região dos Lagos e do Araguari para subir em direção a Serra do Navio”. E adiante: “esse êxodo ocasiona o abandono da coleta das sementes oleaginosas, da extração do látex e também das fazendas de gado das áreas referidas”.74 Aquela empresa precisava dos conhecimentos que os trabalhadores locais tinham acumulado ao longo dos anos. A este respeito, um exemplo: o do garimpeiro Josino Paixão Maciel, atuante no Araguari — rio que, portanto, conhecia muito bem. Josino foi contratado pela Icomi em 1950 como proeiro de ubá.75 Aliás, como lembrou o articulista da revista ICOMI notícias em 1965, “construir uma ubá ou montaria é trabalho para muita perícia”, começando pela escolha da madeira (as mais duráveis, as que não desfibram facilmente e são mais suscetíveis às machadadas do carpinteiro naval). Ainda segundo este articulista: “é no aproveitamento de uma tradição que remonta aos primeiros dias da história da Amazônia que o homem do Amapá se apóia para fazer suas andanças na água”.76 Apesar da exploração e escoamento de manganês ter aberto no Amapá um novo epicentro de geração de oportunidades de trabalho e, consequentemente, de atração populacional, a cidade de Macapá manteve sua linha demográfica ascendente.77 Isto ocorreu, entre outras coisas, porque muitos dos migrantes que tentavam (numerosas vezes sem sucesso) conseguir emprego na Icomi 71 FARIAS, Amaury. Informações ao público. Amapá. N. 631, de 05 de maio 1955, p. 4. Um deles foi Jofre Antunes Ribeiro. Filho de lavradores da localidade de Matapi, Jofre, em 1952, foi para Macapá, para trabalhar nas obras do governo. No início de 1964, ele ingressou como braçal nas obras da ICOMI (Em destaque. ICOMI notícias. Ano I, nº 10, outubro de 1964, p. 7). 73 ICOMI. História do aproveitamento das jazidas de manganês da Serra do Navio. Rio de Janeiro: Indústria e Comércio de Minérios S. A. (mimeografado), 1983, vol. 2, p. 141. Como já ressaltamos, nos primeiros anos da ICOMI no Amapá, o acesso a região das jazidas de manganês ocorria através dos rios Araguari e Amapari. A revista ICOMI notícias destacou: “era a época do predomínio das ‘ubás’ e seus motores de popa” (O rio foi a estrada, e a vida se instalou em suas margens. ICOMI notícias. Ano I, nº 5, de maio de 1964, p. 1a). 74 GUERRA, Antônio Teixeira. Op. Cit. P. 297. 75 Em destaque. ICOMI notícias. Ano I, nº 1, de janeiro de 1964, p. 7. Os experientes marítimos também tiveram seus saberes e habilidades reconhecidos. Encarregado do Serviço de Transporte Fluvial de Serra do Navio, Barnabé Bahia (nascido do rio Jarupucu, no município de Breves, uma ilha do Pará) era “um homem dos rios”, um marítimo para quem, segundo a revista ICOMI notícias, os rios Araguari e Amapari não tinham segredos: “mesmo à noite, quando não há lua e a navegação se torna perigosa, nas águas baixas, Barnabé Bahia conduz com segurança o seu barco” (Em destaque. ICOMI notícias. Ano I, nº 12, de dezembro de 1964, p. 7). 76 Rio abaixo rio acima. ICOMI notícias. Ano II, nº 22, de outubro de 1965, p. 13-17. 77 De acordo com a Enciclopédia dos municípios brasileiros (IBGE): “[...] em 1950, pelo VI Recenseamento, viviam aí [na cidade de Macapá] 9.248 indivíduos que, em 1953, passavam a ser 13.929. A série continua, apontando em 1955, 17.830 habitantes que seriam 19.450 em 1956. Para o corrente ano de 1957 espera-se que a população de Macapá se situe na faixa dos 21.000 moradores” (IBGE. Brasil. Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1957, p. 30). 72 190 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) se estabeleciam nesta capital, e não raramente nela ficavam em caráter definitivo. Se em 1950 a população urbana do Território Federal do Amapá era da ordem de 14 mil habitantes (de um total de 37 mil), em 1960 esta população somava algo perto de 35 mil (de um total de 68 mil). O Censo Escolar de 1964 indicou que de um total de 79 mil habitantes do Território, 44 mil eram urbanos. Como os demais núcleos urbanos tiveram pequeno aumento neste período, podemos inferir que a cidade de Macapá foi a principal responsável por tal crescimento. É importante ressaltar que a população das vilas da Icomi era legalmente considerada rural — e assim era contabilizada nos recenseamentos.78 Na segunda metade da década de 1950, quando o principal empregador do Amapá Território (o governo) passou a enfrentar sérias dificuldades financeiras, a conquista de uma fonte de renda na capital tornou-se mais difícil. No ano de 1966, um relatório do Instituto Regional de Desenvolvimento do Amapá (o Irda, da Icomi) argumentou que o contraste entre falta de dinamismo econômico e acelerado ritmo de crescimento demográfico tornou mais agudas as desigualdades sociais na cidade de Macapá. Nas palavras do articulista da revista ICOMI notícias: os amapaenses, nascidos no chão do Território ou trazidos até êle pelas correntes migratórias, vêm crescendo aceleradamente, num ritmo que os técnicos consideram perigosamente superior à capacidade de absorção por parte da economia local. Daí estarem surgindo, com maior ênfase em torno da cidade de Macapá, as favelas onde o subemprêgo se mostra na sua forma mais dolorosa e desafiadora. A população cresce — e, o que é pior, cresce reunindo-se em tôrno da cidade de Macapá, fazendo com que se exerça uma pressão social passivamente violenta sôbre a comunidade. O analista, lidando com papéis num gabinete, não encontra dificuldade em apontar remédios, os primeiros dos quais são o de criar condições de vida e trabalho nos campos e o de orientar o crescimento demográfico no sentido da ocupação de áreas com baixo índice de aproveitamento econômico. Tudo muito simples. Entretanto, o Amapá, apesar das suas potencialidades, não está preparado para uma ocupação demográfica racional, principalmente por suas deficiências quase totais de comunicação e transporte. Daí o registro contraditório de ser êle, a um só tempo, uma região de baixo índice demográfico (0,5 habitante por km²) e apresentar problemas de população excessiva em determinadas áreas.79 Este fragmento nos permite perceber que no âmbito territorial reproduziram-se os problemas que a criação dos territórios federais deveria ajudar a resolver: o êxodo das populações rurais para os núcleos urbanos. Percebemos, também, que o fracasso da política de colonização ensaiada pelo governo territorial não precisou esperar os historiadores do início do século XXI para ser diagnosticado e estandardizado. Faissol viu no desequilíbrio populacional do Amapá “um grave problema que se agrava dia a dia”. A atração exercida pelo eixo ferroviário da produção manganífera — que também contribuiu para o crescimento de áreas próximas, como a cidade Macapá — acentuou esta tendência.80 Enquanto os demais municípios perdiam povoadores ou estabilizavam-se, o de Macapá (que, além da sede municipal, incluía o distrito de Ferreira Gomes, o arquipélago do Bailique e as vilas Serra do Navio e Amazonas) tinha a cada ano um acréscimo populacional de grandes proporções. Para tentar atenuar estes contrastes e aumentar a produção agrícola, o governo territorial, no final da década de 1940, iniciou uma política de colonização. Por 78 O que fazer para os nascem no Território. ICOMI notícias. Ano III, nº 32, de outubro-novembro de 1966, p. 8. Ibidem, p. 8 (grifos do original). 80 Além das duas company towns (Serra do Navio e Amazonas), em alguns pontos da Estrada de Ferro do Amapá formaram-se novas comunidades rurais, que passaram a usar o trem como transporte e meio de escoar e comercializar sua produção: Cupixi, Cachorrinho, Pedra Branca e, acima de Serra do Navio, Água Branca. 79 191 Sidney Lobato meio de tal política, núcleos de povoamento com pequenos agricultores foram implantados em pontos regularmente distribuídos do Território. 81 Em 1955, membros subcomissão de Produção da Spvea divulgaram dados relativos à colonização no Amapá. Conforme estes dados, aí já estavam instaladas (em fase de franca produção) as colônias de Matapi e de Mazagão, e as colônias de Oiapoque, Ferreira Gomes, Calçoene, Cassiporé, Santo Antonio da Pedreira, Jari e Macacoari estavam em vias de instalação (loteamentos, aberturas de estradas, construção de residências, de galpões e de dependências de uso comum). No entanto, após visita feita às terras amapaenses, no final daquele mesmo ano, os agrônomos do Inic Alarico José da Cunha Júnior e Fernando Antônio Genschow desmentiram parte destas afirmações. Na colônia de Mazagão, segundo eles, havia só um colono! E se os primeiros passos eram dados em Oiapoque, Ferreira Gomes, Calçoene e Cassiporé, o mesmo não ocorria alhures. Baseados em “informações idôneas colhidas em Macapá” — da boca do administrador geral das colônias, Philippe Gillet — os técnicos do Inic afirmaram que as colônias de Santo Antonio da Pedreira, Jari e Macacoari não passavam, até então, de “meros projetos”.82 Dentro deste quadro pouco empolgante, Matapi era a maior e mais populosa colônia agrícola do Amapá, na década de 1950. A colônia de Matapi foi criada em 1949. Nos seus primeiro meses contava apenas com 5 colonos. Em 1950 já possuía 100 pessoas, e em 1955 atingia um total de 696. Destes quase setecentos colonos, 60% eram de origem nordestina e 40% compreendiam japoneses83 e alguns poucos nortistas. Os esforços dos colonos eram empregados no cultivo de seringueiras e de gêneros alimentícios (cana, batata doce, milho, arroz, feijão e, principalmente, mandioca).84 O plantio da seringueira era visto pela administração territorial como um importante meio de soerguimento da economia amapaense. Nas palavras de um articulista do jornal Amapá: “ativando seus braços neste largo plantio, o caboclo amapaense também se convenceu de que ‘Esse é o caminho da fortuna’ tal como dissera o governador”.85 O cultivo da seringueira tinha como objetivo garantir o atendimento da crescente demanda nacional de borracha. Na década de 1950, a aceleração da industrialização no Brasil aumentou o déficit desta matéria prima.86 Em 1952, o governo federal promulgou o Decreto nº 30.694, estabelecendo que as empresas produtoras de artefatos de borracha deveriam empregar 81 FAISSOL, Speridião. Op. Cit. P. 22. CUNHA JÚNIOR, Alarico José da; e GENSCHOW, Fernando A. Amapá: um estudo para a colonização. Rio de Janeiro: INIC, 1958, p. 25. 83 Considerados bons agricultores, muitos imigrantes japoneses foram encaminhados para a Amazônia e formaram no Estado do Pará a segunda maior colônia nipônica do Brasil. A imigração japonesa para a Amazônia iniciou em meado da década de 1920, quando o Japão ingressava numa grande transformação estrutural que envolvia uma acelerada industrialização e uma dramática crise no campo — sentida principalmente pelos pequenos produtores rurais. Neste período, segundo Alfredo Homma, “os produtores rurais foram ativamente encorajados, pelo governo japonês, a emigrar para as possessões de além-mar, a fim de aliviar a zona rural da superpopulação [...]”. Outra alternativa era migrar para regiões como a Amazônia, considerada atraente por causa da abundância de terras. Apesar da querela política acerca da aceitação da entrada de grandes levas de japoneses no Brasil, as estatísticas demonstram que, exceto no período da Segunda Guerra Mundial, este fluxo manteve-se regular (HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. A imigração japonesa na Amazônia: sua contribuição ao desenvolvimento agrícola. Belém: EMBRAPA, 2007, p. 21, 41). 84 NUNES, Janary Gentil. Todos os agricultores do Amapá deverão plantar a seringueira. Amapá. N. 407, 03 jan. 1953, p. 1 e 6. 85 Comentário da Semana: o caminho da fortuna. Amapá. N. 453, 09 de julho de 1953, p. 4. 86 Atentos ao problema, os governos do Amapá, de São Paulo e da Bahia criaram programas de incentivo à heveicultura (PINTO, Nelson Prado Alves. Política da Borracha no Brasil: a falência da borracha vegetal. São Paulo: Hucitec, 1984, p. 113-114). 82 192 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) 20% de seus lucros líquidos anuais no plantio de héveas.87 Porém, a produção subsidiada por tais empresas nunca ocorreu em escala apreciável88 No governo de Juscelino Kubitschek, o Brasil aderiu à tendência internacional de investimento na produção e consumo da borracha sintética — o que significou a progressiva falência da heveicultura. A terra que os colonos deveriam amar era, na verdade, o seu maior problema.89 A este respeito Teixeira Guerra foi categórico: “não queremos desencorajar os animadores propósitos da colonização na zona das cabeceiras do [rio] Matapi, porém, acreditamos que ela está fadada ao malogro, em parte por causa dos métodos rotineiros e também tendo em vista a pouca riqueza do solo em bases trocáveis e o adiantado processo de laterização das terras aí existentes”.90 Para enfrentar tal adversidade, os colonos adotaram uma solução já secular: o cultivo itinerante do solo que, indo muito além de seus lotes originais, deixava atrás de si um rastro de “ghost landscapes”.91 Ademais, as colônias do norte do Amapá foram colocadas em pontos distantes dos núcleos urbanos e de difícil comunicação. Portanto, ficaram muito isoladas e 87 Por outro lado, o Primeiro Plano Quinquenal da Spvea continha o chamado Projeto Borracha. Mas, os recursos da Spvea possibilitavam apenas um “programa modesto”. 88 O Decreto nº 35.371, de 12 de abril de 1954, definia empresas produtoras de artefatos de borracha aquelas que tivessem um consumo anual mínimo de 120 toneladas. Assim, a responsabilidade pelo abastecimento interno de borracha recaía sobre os grandes fabricantes de pneumáticos (multinacionais instaladas no Brasil). Em 1953, técnicos da Goodyear visitaram o Amapá — e incluíram em seu roteiro a colônia de Matapi — com o objetivo de estudar a possibilidade de investir na ampliação do cultivo de seringueiras neste Território (Visando o plantio de seringueiras na ilha Maracá: técnicos da Goodyear em estudos no Território. Amapá. N. 488, 26 nov. 1953, p. 1). A Goodyear acabou investindo no Estado do Pará, na Granja Marathon, adquirida em 1954. Para se ajustarem à legislação, as empresas de pneumáticos fizeram investimentos sistemáticos na heveicultura: Pirelli (no Pará); Dunlop (na Bahia); Pneus General (Bahia); Goodyear (Pará); e Firestone (Bahia). 89 No relativo às qualidades dos solos do Amapá havia grande polêmica entre os especialistas. O que dificultava qualquer tipo de planejamento tecnicamente seguro. Neste atinente, Alarico Júnior e Fernando Genschow destacaram que “talvez em nenhuma área da região amazônica o problema ‘solos’ tenha levantado tanta celeuma, nos meios técnicos e até mesmo político-administrativos, quanto no Amapá” (CUNHA JÚNIOR, Alarico José da; GENSCHOW, Fernando A. Op. Cit. P. 39). No livro Os solos do Território Federal do Amapá, lançado em 1955, Luis Carneiro Rainho da Silva identificou dois grandes tipos de solo no losango amapaense: o laterítico e o que evolve para este estado (SILVA, Luis Carneiro Rainho da. Os solos do Território Federal do Amapá (contribuição para o seu estudo). Belém: SPVEA, 1955, p. 105). Os solos lateríticos são ácidos e faltos dos nutrientes que os vegetais carecem. Por isto, Teixeira Guerra via as características pedológicas do Amapá com certo pessimismo. Alceo Magnanini afirmava que neste Território “desnudar o solo e forçar o estabelecimento de culturas não florestadas é praticar um verdadeiro atentado pedológico”. “A única via racional”, segundo Magnanini, era explorar economicamente todos os produtos do extrativismo florestal (MAGNANINI, Alceo. As regiões naturais do Amapá. Revista Brasileira de Geografia. Vol. 14, nº 3, 1952, 273-261). Diferentemente, Rainho da Silva considerou os solos do Amapá agricultáveis, desde que o calcário moído fosse neles aplicado como corretivo (SILVA, Luis Carneiro Rainho da. Op. Cit. P. 101). A posição de Cunha Júnior e Genschow era semelhante à deste pesquisador: “não iremos, com infundado eufemismo e leviandade técnica, dizer que os solos das regiões do Amapá por nós percorridas, são férteis, pois não o são. Apenas são, de modo geral, aproveitáveis. A agricultura aí desenvolvida terá ou não vida efêmera, dependendo dos métodos de amanho da terra a serem empregados” (CUNHA JÚNIOR, Alarico José da; GENSCHOW, Fernando A. Op. Cit. P. 49). Baseados em estudos mais recentes, José Drummond e Mariângela Pereira afirmaram recentemente: “[...] cerca de 91% do estado [do Amapá] estão cobertos por solos que apresentam limitações que vão de moderadas a irreversíveis ao seu aproveitamento agrícola moderno”. E adiante: “assim, no Amapá, as perspectivas de sucesso para projetos tradicionais de colonização agrícola, intensivos de mão-de-obra, são bem limitadas em pelo menos 89% dos seus solos [...]. Somente proprietários rurais capitalizados, capazes de adquirir e aplicar regularmente fertilizantes, corretivos de solos, pesticidas e toda a maquinaria e insumos correlatos, têm conseguido manter fazendas de uma forma durável nestes tipos de solos, e mesmo assim à custa da adoção de cultivos adequados e do abandono da monocultura” (DRUMMOND, José Augusto e PEREIRA, Mariângela de Araújo Póvoas. Op. Cit. P. 54-55). 90 GUERRA, Antonio Teixeira. Op. Cit. P. 218. Cunha Júnior e Genschow não esconderam seu desapontamento em relação às condições pedológicas das colônias do Amapá: “tanto a Colônia Agrícola do Matapi como a de Ferreira Gomes e também a de Mazagão, apresentam características pedológicas ou topográficas que se não podem considerar aconselháveis a essa espécie de trabalho de colonização, sem correr o perigo de um rápido empobrecimento dos solos e do homem, a menos que outras fossem as limitações da região” (CUNHA JÚNIOR, Alarico José da; GENSCHOW, Fernando A. Op. Cit. P. 56). 91 No Amapá, e em toda a Amazônia, formou-se um saber local constituído por populações que estiveram durante séculos em íntimo contato com a natureza (povos indígenas e famílias ribeirinhas). A prática dos cultivos provisórios e itinerantes é, entre outras coisas, um modo que os roceiros amazônicos encontraram de compensar o rápido desgaste da fertilidade dos solos. 193 Sidney Lobato cedo definharam. A política de colonização — planejada com grande euforia e levada a cabo com a firme fé no poder da racionalidade técnica — descambou numa experiência cheia de precariedades, longe do controle e da previsibilidade. Em seu balanço geral sobre esta política, Faissol apontou que do ponto de vista do povoamento e do estímulo à produção agrícola ela fracassou.92 Alarico da Cunha Júnior e Fernando A. Genschow destacaram que várias famílias instaladas em Matapi abandonaram a colônia: “nesses últimos 4 anos, 121 famílias de colonos foram encaminhadas ou chegaram espontâneamente ao núcleo, sendo que 15 delas de lá se retiraram, pelo menos por quatro motivos apurados: falta de efetivo auxílio do governo (e nós diríamos orientação econômica); falta de crédito para operações; doenças várias; inadaptabilidade por motivos não explicados”.93 Os autores ressaltam que estas famílias foram para o núcleo urbano de Macapá. O chamado desequilíbrio demográfico continuou, assim, se acentuando nos anos 50 e no início dos anos 60 do século passado. Não obstante a desaceleração do ritmo de crescimento populacional, podemos afirmar, considerando as taxas nacionais, que o número de habitantes de Macapá crescia ainda rapidamente na década de 1960. 94 Neste ano, a população urbana dos demais municípios amapaenses teve um crescimento insignificante e a rural teve um pequeno decréscimo — entre 0,8 e 12,1%.95 Palavras finais Na década de 1940, o migrante era visto como a solução para “o problema do vazio populacional” no Amapá. Por exemplo, quando criou os territórios federais, Getúlio Vargas sintetizou os objetivos que por meio deles visava alcançar no slogan: “povoar, educar e sanear”. Contudo, o rápido crescimento da população de Macapá ensejou o aparecimento de um discurso oficial que apresentava esta cidade como um aglomerado desequilibrado em termos da relação entre o tamanho da população e a capacidade do governo local de responder às demandas aí geradas. No bojo deste discurso, o migrante passou a ser percebido como um problema e a migração como um fenômeno que deveria ser freado. Outra faceta importante do “problema migratório” era a estagnação (e em alguns momentos a redução) da população rural dos municípios amapaenses. Este fenômeno, segundo a perspectiva governamental, comprometia capacidade de produção dos gêneros necessários ao abastecimento dos núcleos urbanos. Mormente no final da década de 1940 e início da seguinte (portanto antes do início da volumosa e rendosa exportação do manganês), ensaiou-se tornar a balança comercial territorial menos deficitária por meio do apoio à formação de colônias agrícolas. O fracasso deste projeto do governo territorial só não foi absoluto porque as colônias próximas da capital (o principal mercado consumidor), Matapi e Ferreira Gomes, conseguiram, apesar das dificuldades existentes, alavancar algumas de suas produções. Por outro lado, o problema do abastecimento reforçava a representação de Macapá como uma cidade desequilibrada, ao mesmo tempo em que 92 FAISSOL, Speridião. Op. Cit. P. 22. CUNHA JÚNIOR, Alarico José da; GENSCHOW, Fernando A. Op. Cit. P. 76-77. O Primeiro Plano Quinquenal da Spvea previa uma ajuda (crédito) de Cr$ 1.000,00 por família nos dez primeiros meses. Alarico da Cunha Júnior e Fernando A. Genschow, no entanto, afirmaram que este período de auxílio era muito curto se comparado com o tempo que o agricultor deveria esperar para realizar as primeiras colheitas. Estes técnicos sugeriram que o auxílio perdurasse por dois anos. Em 1955, 50 colonos tinham obtido créditos (48 pelo Banco do Brasil e 2 pelo Banco de Crédito da Amazônia). Sem qualquer assistência técnica relativa ao investimento do dinheiro recebido, muitos destes colonos não conseguiam saldar seus débitos (ibidem, p. 34, 115). 94 Na década de 1950, enquanto a taxa anual de crescimento demográfico do Brasil foi de 2,3, a da cidade de Macapá foi de 9,6. Na década de 1960, as taxas foram respectivamente de 7,1 e 2,9. 95 FAISSOL, Speridião. Op. Cit. P. 26. 93 194 A cidade dos migrantes: migração e urbanização na foz do Amazonas (1944-1964) fornecia novos argumentos ao discurso de que era preciso frear a migração — principalmente o êxodo rural. Mas, o fracasso da política de colonização também atestava o protagonismo dos trabalhadores no processo de reconfiguração ocupacional da Amazônia. Nesse processo percebemos que o movimento dos migrantes no interior desta região frequentemente frustrava os planos governamentais. Sem nunca ter pisado na capital amapaense, muitos migrantes sonhavam com este lugar, imaginando encontrar muitas oportunidades para melhorar a sua vida. Colonos, seringueiros, roceiros, castanheiros, garimpeiros, marítimos, carpinteiros, braçais, e outros que vieram para Macapá passaram a viver nas fímbrias da cidade e a reinventar a vida cotidiana. Fontes Artigos de jornal AMAPÁ. Enquanto não há decisão sobre o Brasil a Rússia recusa o manganês aos EE.UU. Nº 205, de 12 de fevereiro de 1949, p. 4. AMAPÁ. Cresce de importância o manganês do Amapá. Nº 204, de 05 de fevereiro de 1949b, p. 5. AMAPÁ. BASTOS, A. de Miranda. As perdas exatas na ‘Batalha da Borracha’. Nº 319, de 21 de abril de 1951, p. 3. AMAPÁ. Retrato do Brasil: Macapá. Nº 305, de 13 de janeiro de 1951b, p. 1. AMAPÁ. FARIAS, Amaury. Informações ao público. N. 631, de 05 de maio 1955, p. 4. Artigos de revista ICOMI NOTÍCIAS. Em destaque. Ano I, nº 10, outubro de 1964, p. 7. ICOMI NOTÍCIAS. 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