música
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Tradicional
Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura
europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras
culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira
e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e
com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua,
sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente
presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos
considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira –
instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os
conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido
inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o
início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na
Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a
música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do
cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal
renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá
acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente.
O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música
sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de
dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes
com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas,
quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras).
Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo
surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas,
tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas
classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a
decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no
séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o
Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos.
O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da
telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos
conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a
este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de
qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da
Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da
Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da
promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários.
No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e
educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram
facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de
antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de
bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira
e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares
educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento
das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense.
Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime
A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da
Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as
festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem
Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o
historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das
“representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos
pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13).
Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a
missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g.,
alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de
uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe
dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154155).
Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de
Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira,
salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo
que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc.
XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido
abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33).
A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais
foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as
confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a
“mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se
mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram
ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13).
No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais
com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical
deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de
personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de
Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495),
pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a
uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a
inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas
madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do
1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do
Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte
Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética.
No início do séc. XVI, a música
palaciana continuou a ter um papel
preponderante
no
Funchal,
principalmente pela ação de Simão
Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º
capitão donatário do Funchal, que
governou a partir de 1508. Sendo
músico e detentor de uma fortuna
considerável à época, promoveu uma
capela com cantores e tangedores, da
qual Gaspar Frutuoso diz fazer
“grandes
partidos”
(FRUTUOSO,
2008, II, 106). A qualidade da capela
deveria ser de tal ordem que “competia
com a de el-rei”, tendo como “mestre
da capela Diogo de Cabreira,
castelhano, mui destro na arte de
canto de órgão e tal, que o próprio rei
lho pediu para cantor para sua capela”
(Id., Ibid., 103).
Acompanhando
o
crescimento
económico da Ilha, a situação musical
religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de
diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim,
em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro,
passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”.
Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o
mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para
os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.).
Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no
Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir
dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico.
Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A
substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira)
por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de
10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em
dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.).
Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram
totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses
não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se
proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo
corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI
ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam
“muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado
do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se
que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008,
14).
Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz
popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa
Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de
outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam
“muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras,
frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de
cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que
procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na
vida do povo.
Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira,
onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida
musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical,
tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente
criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar
canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por
carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil
réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL,
Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de
música sacra na Madeira.
No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a
introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindose, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual
Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares
que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33).
Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do
Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado
à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416).
Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes,
conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de
Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira
que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de
vinho.
O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon
de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o
aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes
compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia
em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II.
São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de
que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma
peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de
uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc.
XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais
antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e
contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas)
copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda
que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados;
Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores
portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não
encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51).
Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo.
Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida
(em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón.
Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico
madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na
Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos.
Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um
lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do
Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em
contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na
publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual
ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas
polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha
e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes.
No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística.
Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de
S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na
Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor
anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de
Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da
India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são
narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes
eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias
que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29).
Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças
que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos
à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e
ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair
melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”,
danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais
nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade,
salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta
bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”,
“pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13
moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em
quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que
no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da
altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e
música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29).
O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do
Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741,
publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12
Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com
Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e
constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova
coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII
Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que
agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera
a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao
morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D.
Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789).
As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos
de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em
Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta
de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre
da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma
progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era
constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13
músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas
e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um
francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens
músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse
efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos
músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal.
Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas,
sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter
instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A
Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo
a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal.
Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do
Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 fazse referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor,
de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara,
existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques
que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008,
16).
Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos
de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras
catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de
capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos
realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos
referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1).
Quadro 1
Cargo
Pagamento em
réis
Ordenado Subchantre Sé
10.000
Ordenado Organista Sé
7000
Pagamento em géneros
1 moio e 23 alqueires de trigo e 2 pipas de
vinho
Ordenado Mestre Capela Sé
5000
Ordenado Primeiro Moço
2500
Coro Sé
55 alqueires de trigo e 1,5 pipas de vinho
Cargo
Ordenado Segundo Moço
Pagamento em
réis
Pagamento em géneros
2500
Coro Sé
Ordenado Terceiro Moço
2500
Coro Sé
Ordenado Quarto Moço Coro
2500
Sé
Ordenado Quinto Moço Coro
2500
Sé
Ordenado Sexto Moço Coro
2500
Sé
Fig. 1 – Tabela das despesas com cargos musicais na Sé do Funchal em 1775.
Fonte: ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 393, fls. 30-35.
O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo
acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica,
com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da
Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518,
quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo,
este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel
Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc.
XIX, manuscritos e impressos.
No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as
representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas
atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas
e de conventos.
Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores
na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um
artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima
da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose).
Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia
começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou
para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades
hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia
europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século,
estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de
cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural.
A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de
meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical
madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo
inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um
alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem
aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o
camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas
para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel
publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses
“são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se
ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda
assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser
mais frequentes no séc. XIX.
O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro
Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da
Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo
edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em
1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois
do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as
ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente
óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro)
A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos
Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento
incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição
teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros
imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só
esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num
período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com
vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma
periodicidade normal.
Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôsse a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo,
encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das
récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio
para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo
designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs”
(CARITA e MELLO, 1988, 41).
Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a
ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as
primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença
das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de
pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem
músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga
que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários
não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de
ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não
havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificarse o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas.
A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert
Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de
1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é
geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos,
envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008,
33).
O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica
A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no
contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz
religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o
declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra.
Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito
influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa
(extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes
deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da
instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns
músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso
Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser
músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em
igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas
a quatro vozes mistas.
José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do
Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador
João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão
ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo
menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana
Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão,
orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol.
João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o
cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste
período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha
conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191).
Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que
deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de
Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de
música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205).
Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá
chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de
janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente
da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor
na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma
sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a
Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a
existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr.
Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o
P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo
Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35).
Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou,
por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste
período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos
mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a
Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813,
tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828.
O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em
Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo
ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas
com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a
participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade
política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma
sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração,
havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante
mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a
Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no
Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes
do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por
algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um
dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora
organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a
influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses.
O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade
homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente
publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à
organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável
que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto
que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as
suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830).
Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores.
Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-seá prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos
músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos
patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista
Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista
Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39).
Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que
incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que
fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte
Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era
o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo,
embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade
Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que
começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e
cordas” (FREITAS, 2008, 413).
Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o
violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista
funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade
de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal.
A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de
sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica,
uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do
séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta
nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de
entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada.
Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que
organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da
manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um
teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42).
Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar
especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual.
Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes
dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o
séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa
receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução
de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano,
Funchal, 18 out. 1835, 4).
Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da
viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes
instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores
músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond
de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a
sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir
de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo
Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto
principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros
intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e
Manuel Joaquim Monteiro Cabral.
Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo
(1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e
António José Bernes (?-1880).
João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de
salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto
com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido
no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa;
Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na
capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da
Sé e professor no seminário da cidade.
Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no
segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente,
até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em
Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R.
Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas
obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos –
quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra –
Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de
algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia
Armazem de Musica da Casa Real.
O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o
crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda
cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de
salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano.
Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e
maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado
primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em
Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até
certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente
como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas
funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu
repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a
Nice, com um poema sobre os enganos do amor.
Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para
machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais
privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações.
Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes
estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de
uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi
“um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano”
(FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que
demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas
na Madeira.
Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes
causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como
salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos,
os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses
tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores
salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época:
nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever
um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e
Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98).
Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões
nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as
anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de
não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal.
Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum,
no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os
bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou
sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social
de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os
anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também
acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida
social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior
variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus.
Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a
Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido
entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro
Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado
estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros
de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono).
A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que
aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira,
entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os
saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus
talentos musicais em público.
Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O
Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos
deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações
cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições
musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros
revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância
destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua
criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste
modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época
(), a concertos de beneficência no Funchal.
Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas
permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela
ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em
evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de
beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas
iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das
principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de
estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica
algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas.
Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida
em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira.
Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no
Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de
Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se
Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca
Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9).
As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o
desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas
dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas
profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram
os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal
destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final
do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer
Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança.
Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido
um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de
exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como
“violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre
dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim
dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal
Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou
neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na
Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto
realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de
espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada
ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a
atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista
Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista
brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista
Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios
virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações,
temas e variações, concertos ou duetos brilhantes.
Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do
Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos
virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns
concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas
como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o
tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y
Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais
importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá
produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas.
Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste
período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía
atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins
funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu
trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e
músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de
agrupamentos musicais diversos e professores.
A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o
Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a
primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de
filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas
regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre
ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo
Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se
desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850
foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal.
Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro
quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134).
A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do
séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da
Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930.
A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX
Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande
dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por
completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de
1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e
orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns
agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas,
desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que
parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais.
As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas
filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que
favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e
atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O
crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a
consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX.
No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico,
tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal
continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira
vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas,
entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico.
Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a
pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente
a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a
emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora
reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com
a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão
contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores.
A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte
lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881,
estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma
banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de
fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é
fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e
Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede
na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a
Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira
Brava.
As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas
começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o
bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na
Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última
denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”).
Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio
académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas:
1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores
de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de
Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da
Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida
do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense;
1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António;
1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares
Mendes.
Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas,
são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos
corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação
de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se
encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido
o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e
o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o
qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o
Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às
Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por
alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925.
Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e
conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um
prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar
da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da
Madeira.
Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes
de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam
ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929,
3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das
principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas).
No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de
uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de
distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que
tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas,
onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional
madeirense.
Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das
tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as
primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava
relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente,
em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por
Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se
destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em
orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar,
ou de executar, música com traços marcadamente regionais.
Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria
uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de
canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da
tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense.
À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura
inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da
Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba,
bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico.
A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música,
nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez
(1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com
inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e
Alface, de 1917.
Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas.
Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no
Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de
infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de
Rey Colaço.
Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de
espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é
possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva
Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9
fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um
“artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários
números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1);
finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”,
intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3).
Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de
vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente
com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria
cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916,
2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava
também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor
lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo
fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2).
No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no
canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do
Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e
música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN,
Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda
mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou
fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal,
17 set. 1931, 1).
Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo
funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc.
XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira.
Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra,
conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh!
Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado
da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da
autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony
Amaral (1910-1975).
Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na
história do fado português, mais especificamente do fado de
Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua
obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928,
com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos
Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas
gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os
quais Zeca Afonso.
Eng. Luiz Peter Clode_1940
A nível religioso, a execução de música sacra em contexto
popular foi muito frequente nesta época. As celebrações
religiosas solenizadas com música estavam normalmente
associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana
Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos
santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO,
2010, 19).
Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações
vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral
de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das
óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da
música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação
papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época.
Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música
na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de
criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de
promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música
sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma
segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu
Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a
música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um
elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos
mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições,
sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus.
A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às
músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as
diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se
nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de
outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do
seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há
notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente,
a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música
sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento
(1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé,
tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários
folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música
tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua
Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira,
acompanhando-os ao piano ou ao harmónio.
Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de
Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do
séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com
a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua
estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e
tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude
Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira
Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da
Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas.
Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com
o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de
espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880
não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a
partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras
entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas.
Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar
bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que
existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais.
A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores
então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores
de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de
profissionalização para esta classe.
Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes:
enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os
grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais
de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a
partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o
fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906,
Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel BeloMonte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu
Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel
Savoy.
A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido
sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No
período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos
músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes;
1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto
Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão;
1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais
tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916,
Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais
tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel
Savoy.
O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas
profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria
Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal
Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra
da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas
da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia
espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a
primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do
teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados
69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas).
De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado
várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da
inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana
começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de
espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais
famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um
conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício
Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o
tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das
óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a
preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances
(desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de
ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir
de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia.
As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com
frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”,
quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888,
1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol,
Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1).
Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara
(1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o
séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre
da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do
Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar
cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência
por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar.
A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em
salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto
Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números
dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num
espetáculo de beneficência.
Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência
de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A
revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos
militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da
zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste
período.
Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de
revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e
coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de
revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e,
no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a
variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur
Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva.
Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno
Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do
séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar
estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela
Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes,
acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista
Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais.
Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (18691950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um
importante lugar no panorama musicológico madeirense.
As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo
Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças
tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a
telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer
na vida privada, quer na vida social.
A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para
venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir
da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense.
O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo
quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do
animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos
comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro
municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema.
O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e
os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção
desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical
amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de
fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3).
Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser
rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que
“a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo
artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas
décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que
informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a
168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos
de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num
anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu
gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan.
1932, 6).
A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num
texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação
da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e
raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação
era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o
gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1).
A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um
aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em
especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio
de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de
DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”.
Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos
madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas
também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o foxtrot no Funchal.
Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O
pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo
ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo
da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo
Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940).
A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da
primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da
déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque
é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands
começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente
ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa.
Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se
estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”,
acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em
uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no
Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com
acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3).
Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que
tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932),
Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933),
Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz
Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936),
Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a
bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos
continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete.
Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a
obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e
compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no
hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente
junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em
nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril.
Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes
(guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max
(voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições
de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o
célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O
famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o
estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa.
O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais,
normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na
déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística
madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi
sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena
dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e
com um repertório baseado nas danças em voga.
Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos
profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos
quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos
distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência
anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou
contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns
conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone.
Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um
elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração
folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto
Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo
justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6).
O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no
estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que
seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo
da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de
“conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que
seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível
destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc.
de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo
do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo”
(1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra
privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos
Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955),
Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio
Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no
mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo
Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958).
Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em
meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro
do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o
vocalista Max.
A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico
João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros
projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os
Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à
sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos
Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de
Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais
de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de
homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos
modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7).
Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito,
ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto
de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi
influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos
Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma
promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal
continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no
programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo
que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade
ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto
teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de
televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira,
salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o
conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos
dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma
nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo
alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970.
Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação
Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João
Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia,
1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só
(EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia,
1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de
1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João
Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP,
Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia,
1972).
A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um
certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do
Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira,
não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas
madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais
Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo
com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros
conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do
concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado
foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de
dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados
naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que
apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3).
A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da
cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma
reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da
identidade da cultura musical regional.
Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de
valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos
sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades
políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições
regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore,
para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente
Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950.
Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da
afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio
das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13).
No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente
relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo
jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o
Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou
conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até
às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena
dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das
tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses
(1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago
da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e
As Danças e as Músicas Madeirenses (1959).
Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais
sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e
Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O
Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de
uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais
folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos
Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da
Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo
Folclórico do Livramento-Monte.
Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do
turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim,
em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da
Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus
(hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira
Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo).
Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por
Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da
Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos
números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga,
canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da
Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito.
O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de
1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (18861962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais
alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes
ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos
Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945).
O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos
da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma
paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça,
com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor
colaborou mais frequentemente neste âmbito.
A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço
doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de
músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos
familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que
anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais
moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os
jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode.
De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os
irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de
intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três
anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os
irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto
Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe
incutir o gosto pela música que consideravam de valor.
A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma
sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas
de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a
SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser
promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral.
Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da
Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a
assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar
livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da
responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia
e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50.
Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam
o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas
por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as
suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23,
Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas
vozes e órgão.
A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da
música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do
Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a
nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da
Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de
acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes
no mundo ocidental.
Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI
A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense.
Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração
pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou
semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música.
Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no
quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a
Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de
professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural
madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1).
A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo
aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e
Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha,
contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos
meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este
era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN,
Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do
Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal,
dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população
habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6).
Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como
concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de
certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul.
1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção
política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge
Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes.
Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento
organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e
“participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal
género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi
desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante
algum tempo, em comícios de partidos de esquerda.
A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo
os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990,
assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma
redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se
destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes:
Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel);
Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel
Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel
Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel
Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol);
Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz
(hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel).
Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de
promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O
pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua
qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que
dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958),
no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o
Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou
em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos
particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de
jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense,
como Adler Pereira ou Humberto Fournier.
A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto
de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer
integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no
regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional
das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em
Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois
Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional
de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do
número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura
musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto
considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos
qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com
identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais
específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que
toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de
bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre
outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio CamponêsAssociação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de
Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda
Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da
Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do
Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As
diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a
Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das
bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas
Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da
Região Autónoma da Madeira (2005).
A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das
personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX
obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacamse personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador
e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho
Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas
Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o
maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco
Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e
Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano
dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao
nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de
quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes
sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno
Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos
importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da
administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio
Caldeira e Natalina Santos.
Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e
vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos
livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à
música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões
do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a
frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos.
No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do préescolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música.
Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as
competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e
teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem
vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e
instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase
desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os
cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame).
No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais
realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da
RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande
impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico.
Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação
no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino,
bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas
madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi
acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica,
tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações
em congressos e artigos em revistas científicas.
No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante
frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones
tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho
continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de
álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de
repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem
dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de
cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção
foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda.
O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música
do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais
efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à
música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional
Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais
dinamizadores da nova música tradicional madeirense.
Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram
para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da
educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a
Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as
quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical.
No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes
desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e,
possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas
das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio
Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e
Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das
animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade
financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade
de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos
importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional.
No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento
público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação,
através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca
Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir
os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional
dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música
da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira).
Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da
RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em
consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação
de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de
música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos
culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde
a participação de músicos sempre foi uma constante.
Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival
Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine
Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de
Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção
Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival.
Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra
Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais
direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz
mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente,
alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de
músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente
preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido
para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram
responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das
cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM.
Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número
de adeptos deste género musical.
Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis
da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou
renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela
RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória,
participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”.
Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente,
tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente
aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de
músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são
complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor
formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados
a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis,
designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente
dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a
partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko
Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13).
Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de
rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam
habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro,
pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock
pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard
rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam
principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a
Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em
concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes:
Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto
Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs.
Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as
possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes
reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e
tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos
conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários
promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses,
cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os
promotores privados auferiam lucros.
Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como
os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que,
aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de
rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de
empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a
organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveuse à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais,
quer de modalidades amadoras.
Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na
Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de
público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os
Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR,
acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés.
Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão
relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia,
existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à
música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo
de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.
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(acedido a 16 out. 2015).
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Paulo Esteireiro
(atualizado a 01.02.2018)