UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO
OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA:
INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E
PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA
EXPERIÊNCIA HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO
Niterói
2016
JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO
OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA:
INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E
PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA
HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO
Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação
em
História
da
Universidade
Federal
Fluminense como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Doutor. Área de
Concentração: História Social.
Orientador: Prof. Dr. GUILHERME PEREIRA DAS NEVES
Niterói
2016
2
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
E74
Escosteguy Filho, João Carlos.
Olhos na Europa, pés na América : interpretações do presente,
exemplos passados e perspectivas de futuro na construção de uma
experiência histórica no Primeiro Reinado / João Carlos Escosteguy
Filho. – 2016.
338 f.
Orientador: Guilherme Pereira das Neves.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, 2016.
Bibliografia: f. 323-338.
1.Experiência. 2. História. 3. Primeiro Reinado, 1822-1831.
4. Historiografia. 5. Política. I. Neves, Guilherme Pereira das. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia. III. Título.
3
JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO
OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA:
INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E
PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA
HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO
Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação
em
História
da
Universidade
Federal
Fluminense como requisito parcial para a
obtenção do Grau de Doutor. Área de
Concentração: História Social.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. GUILHERME PEREIRA DAS NEVES – Orientador
UFF
Prof. Dr. RICARDO HENRIQUE SALLES
Unirio
Prof. Dr. RODRIGO TURIN
Unirio
Prof. Drª. ANA MARIA MAUAD ESSUS
UFF
Prof. Dr. LEONARDO MARQUES
UFF
Niterói
2016
4
AGRADECIMENTOS
Ao Cnpq, pela bolsa que permitiu a construção da pesquisa.
Ao meu ex-orientador, Théo Lobarinhas Piñeiro (in memoriam), pelo
acompanhamento, pela bravura e pelo esforço mesmo durante a doença. Até o final.
Ao meu orientador, Guilherme Pereira das Neves, que assumiu a difícil
empreitada na reta final e possibilitou a tese a cruzar a linha de chegada. Por toda a
paciência e as lições oferecidas.
Aos professores Ricardo Salles (Unirio), Gladys Sabina Ribeiro (UFF), Alex
Varela (UERJ), Pedro Marinho (Mast) e Vitor Izecksohn (UFRJ) por todos os cursos
que me permitiram assistir como ouvinte, pelos debates, pelas dicas valiosas e pela
construção de um espaço estimulante de troca de ideias, mesmo em tempos de aperto.
Ao professor Ricardo Salles, ainda, por todo o acompanhamento desde a
graduação; por toda a orientação, oficial ou não, desde então; pela força e amizade. Por
ser exemplo de historiador totalizante em um mundo onde eles estão cada vez mais em
falta. Pelas sugestões e críticas no momento da defesa, que estimularam esta tese a ser
apenas mais uma etapa, e não o final do caminho de pesquisa.
Aos professores Valdei Araújo e Ana Maria Mauad, pela composição da banca
de qualificação e pelas valiosas questões que ofereceram, ajudando a tese a chegar ao
formato atual. À Ana, ainda, pela permanência da contribuição na banca final.
Aos professores Rodrigo Turin e Leonardo Marques, pelo aceite na composição
da banca final. Pela paciência e compreensão com meus atrasos e prazos estourados.
Pelo exemplo profissional, como historiadores, que sempre inspiraram. Pelas
colocações na defesa que permitiram ampliar os horizontes da discussão e refinar pontos
ainda não plenamente amadurecidos deste trabalho. Ao Leonardo, ainda, pelas inúmeras
dicas bibliográficas e historiográficas que, mesmo em parte não estando presentes aqui,
me acompanharão academicamente por um longo tempo.
À família, em especial mãe, tia, irmão, avô e amigos, pelo apoio e compreensão
pelas ausências. Por todo o amor e carinho. Pela construção de quem eu fui, de quem eu
sou e de quem eu serei. Aos que se foram, meu pai e minha avó (in memoriam), pela
certeza de que suas memórias e suas presenças continuarão acompanhando minha
jornada até o final.
À família da Quézia, que também me acolheu como sua, por todo o cuidado,
toda a ajuda ao longo dos anos e todo o carinho que tornam a vida mais bonita.
Aos amigos-irmãos de ensino médio e faculdade, pela caminhada que
começamos e continuamos. Pelas viagens, pelas conversas, pela vida que tivemos e que
ainda teremos!
Aos amigos-companheiros de IFRJ e de IECL, pela luta, pelo aprendizado que
me oferecem, pelo cotidiano que tornam maravilhoso e cheio de esperança. Pela
liberdade e democracia que lutam por construir nos espaços mais autoritários e
mesquinhos.
Às alunas e aos alunos, em especial do IFRJ, parte inseparável deste trabalho e
da minha vida. A quem, completando sua jornada no ensino médio, renova em mim a
alegria do “ser professor”. Àquelas e àqueles que, não aceitando as variadas formas de
opressão, machismo, homofobia etc., renovam continuamente nossas esperanças em ver
um mundo melhor nascendo. Àquelas e àqueles que bem compreenderam as melhores
lições que a História pode oferecer: a desnaturalização do que parece ser eterno e a
problematização do senso-comum. Obrigado por me fazerem descobrir, nos últimos
anos, que todo o trabalho só faz sentido se for por vocês e para vocês.
À Quézia. Porque este doutorado é seu também. Porque cada alegria cotidiana
minha tem uma parte sua envolvida. Porque não apenas a vida é muito melhor com
5
você, mas porque você deu um novo sentido à minha própria vida. Pelo amor que
sentimos um pelo outro. Pelo companheirismo que parece não ter fim. Por todas as suas
risadas e todos os seus sorrisos que suavizam até os momentos ásperos da vida. Por
todas as descobertas que fizemos juntos e que continuaremos a fazer. Pela vida que
construímos juntos. Pela família que formamos e pela que ainda formaremos. Por ser o
motivo de eu ter chegado até aqui. Por ser tão especial na minha vida que me faz
lamentar muitíssimo não conseguir escrever nada mais especial que isso. Esta tese é
dedicada a você.
6
RESUMO
Este trabalho trata das formas pelas quais dirigentes do Império do Brasil, no momento
inicial de sua fundação e construção da Independência, lidaram com certa experiência
histórica de interpretação do tempo e ação na realidade. Em outras palavras, esta
pesquisa analisa as maneiras pelas quais políticos do Primeiro Reinado abordavam
temáticas do passado e do presente, tanto do Brasil e da América quanto da Europa,
para a construção de uma narrativa histórica da História das Civilizações que inserisse o
Brasil na mesma lógica das “nações civilizadas”, contribuindo para a construção de uma
identidade nacional que era, ao mesmo tempo, a construção ideológica de um sentido
histórico para os grupos dominantes do Império do Brasil.
Palavras-chave: Experiência Histórica. Primeiro Reinado. História da Historiografia.
Política.
7
ABSTRACT
This paper deals with the ways in which leaders of the Empire of Brazil , at the time of
its foundation , have dealt with some historical experience of interpretation of time and
action in reality. In other words , this research examines the ways in which politicians of
the First Reign addressed themes of past and present , both Brazil and America and
Europe , for the construction of a narrative history of the History of Civilizations that
inserisse Brazil in the same logic of " civilized nations " , contributing to the
construction of a national identity that was at the same time , the ideological
construction of a historical sense to the dominant groups of the Empire of Brazil
Keywords: Historical Experience. First Reign. History of Historiography. Politics.
8
Sumário
Introdução:
I) Delimitação do tema
II) O tema e suas origens
III) Enquadramento da abordagem: uma reflexão de cunho teórico
IV) Fontes e método:
10
10
11
15
24
Parte I: História e Civilização na construção do Estado Independente
29
Capítulo 1: História e Historiadores no Primeiro Reinado
1.1) Autores e presenças
1.2) A História para uso no presente
30
32
59
Capítulo 2: Bases do discurso histórico no momento da Independência
2.1) Modernidade conceitual: história e nação em tempos de crise
2.2) O Reverbero e a história como história da liberdade.
2.3) O Brasil como trajetória portuguesa na América.
2.4) O Brasil como unidade autônoma.
71
72
86
102
114
Capítulo 3: Das possibilidades da civilização na América
3.1) Modernidade política: construção civilizatória sobre colonizados
3.2) De volta ao Reverbero: A América à frente das transformações do tempo.
3.3) Os “bens da liberdade sem as comoções da democracia
e sem as violências da arbitrariedade”.
121
122
127
Parte II: Referências em disputa no Império do Brasil
157
Capítulo 4: Comprimindo interpretações ao redor da Independência
4.1) Incorporando oficialmente a narrativa da Independência:
4.2) O “novo tempo” contra o “velho tempo”
4.3) As heranças do tempo antigo na nova nação
4.4) Os marcos da nação brasileira:
158
158
177
190
201
Capítulo 5: Olhos na Europa: a lógica da civilização
5.1) Antigos e modernos entre as luzes do século e a Turquia
5.2) Inglaterra, França e os exemplos a seguir
218
218
243
Capítulo 6: Pés na América: a outra civilização
6.1) Três momentos da modernidade escravista (séculos XVI-XIX):
6.2) O chão escravista da Constituinte:
6.3) A peculiaridade da civilização brasileira
260
261
270
294
135
Considerações finais
316
Referências Bibliográficas
324
9
Introdução:
I) Delimitação do tema:
Este trabalho tem como objetivo geral analisar as formas pelas quais atores
políticos do momento da Independência e do Primeiro Reinado lidavam com a
experiência histórica em seu cotidiano parlamentar. Para tanto, as fontes serão
especialmente o Reverbero Constitucional Fluminense, para os anos 1821-1822, os
anais da Assembleia Constituinte de 1823 e os da Câmara dos Deputados e do Senado
para o período 1826-1830.
A análise da experiência histórica levará em consideração as formas pelas quais
alguns dos principais dirigentes da política parlamentar imperial naqueles anos
articulavam eventos da história e da contemporaneidade na execução de seus projetos e
na exposição de seus discursos, buscando traçar uma trajetória que associasse certos
eventos à ideia de “civilização” e outros à de “barbárie”. Em outras palavras, serão
considerados os modos pelos quais passado e presente eram entendidos e trazidos à
discussão parlamentar como formas de se construir interpretativamente a civilização no
Brasil e evitar-se a barbárie como destino inevitável para o Império.
Os usos da experiência temporal nas discussões foram analisados a partir dos
exemplos levantados e conectados aos eventos em debate. Foram primordialmente
buscados os exemplos que lidaram com as trajetórias históricas e com os
acontecimentos coevos da Europa e da América, posto que compartilhei do pressuposto
que a construção de determinada experiência nacional no Império do Brasil esteve
umbilicalmente ligada à forma pela qual dirigentes imperiais inseriam o país na
trajetória das civilizações, das quais a Europa fornecia os melhores elementos.
A base conceitual deste trabalho inspira-se fundamentalmente nas reflexões de
Antônio Gramsci, as quais já possibilitaram profícuas análises para diversos aspectos do
século XIX no Brasil 1, bem como nas de Jörn Rüsen, conforme ficará mais claro à
1
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004; SALLES, Ricardo. E o
Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial: a
formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996;
SALLES, Ricardo. Gramsci para historiadores. In: História da historiografia. Número 10, Ouro Preto, p.
211-218, dez-2012; MENDONÇA, Sônia Regina de. Os intelectuais na historiografia brasileira.
Comunicação apresentada no IV Simpósio Nacional Estado e Poder: Intelectuais. São Luís: Universidade
Estadual do Maranhão, 2007; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os simples comissários”: negociantes e
política no Brasil Império. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2002; MARINHO, Pedro . O centauro
imperial e o partido dos engenheiros: A contribuição das concepções gramscianas para a noção de Estado
ampliado no Brasil Império. In: MENDONÇA, Sonia Regina. (Org.). Estado e Historiografia no Brasil.
Niterói: EDUFF/FAPERJ, 2006, p. 55-70; SARAIVA, Luiz Fernando & PIÑEIRO, Théo Lobarinhas.
10
frente. No fundo, o exercício pensará como tais experiências históricas podem fazer
parte de uma “história da historiografia integral” do oitocentos brasileiro, ainda por ser
escrita.
II) O tema e suas origens:
Ilmar Rohloff de Mattos, em sua clássica obra sobre a formação do Estado
Imperial, argumenta que, no momento em que a “moeda colonial começa a completar
uma recunhagem”, simultaneamente à ascensão de Pedro II ao trono, “o Reino cede
lugar às Nações Civilizadas, particularmente as que foram o cenário da „dupla
revolução.‟” 2 Com isso, Mattos explicita o processo de reordenamento das relações
políticas e econômicas entre o Império do Brasil e as nações européias, notadamente
Inglaterra e França, num momento de rearticulação da economia mundial sob expansão
capitalista. Nessa expansão, o Império do Brasil ocuparia um espaço relevante,
integrando-se ao mercado mundial a partir de certo domínio e virtual monopólio da
produção cafeeira, mas também como espaço privilegiado para a introdução de capitais,
especialmente ingleses, a fortalecer suas relações sociais fundamentais nos quadros da
chamada “Segunda Escravidão”3.
Na análise de Ilmar Mattos, esse reordenamento a conectar Brasil e “nações
civilizadas” – conexão, ressalte-se, não apenas política e econômica, mas também, e
essencialmente, ideológica –, afastando o “reino” – Portugal – como referência na
integração à Europa, constitui a trama de interesses entre grupos dominantes da
América e do Velho Mundo, essencial ao fortalecimento do Estado Imperial (mais
ainda: da Coroa) e à construção da direção Saquarema. No delineamento dessas relações
entre América e Europa, um jogo de inversões e hipérboles teria papel central na
definição da posição do Império no conjunto da Civilização, ora aproximando-o em
nome das similitudes (seja por uma auto-visão liberal, constitucional ou pela herança
Compreender o Império: Usos de Gramsci no Brasil no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.
2
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 92. Para a definição
de “moeda colonial” em suas relações com o monopólio, cf. o mesmo livro, p. 30-45.
3
SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MARQUESE,
Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no
século XIX. In: MUAZE, Mariana & SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos
quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015; TOMICH, Dale. Pelo Prisma da
Escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2011; MARQUESE, Rafael & SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico no século
XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
11
lusitana na formação nacional), ora afastando-o em defesa de suas particularidades
(como a permanência da escravidão).
O tecimento das relações ideológicas entre Brasil e Europa, cujo auge Mattos
identifica no momento da Maioridade, foi parte indissociável da própria construção do
Império independente desde o rompimento com Portugal. A construção de
interpretações sobre o desenvolvimento da História Universal, nas quais o Brasil
aparecia encaixado em diferentes posições, significava delinear os próprios caminhos
possíveis ao Império que se buscava construir; aos rumos desejados a percorrer,
simultaneamente àqueles de que se tentava afastar. Ao ineditismo do movimento faziase necessária uma memória de que certos eventos passados sustentavam a trama, de que
outros espaços já haviam transgredido aquelas sendas com segurança, e que o desvio da
rota, no estilo da França revolucionária, ainda que possível, como atestava a História
recente, poderia ser evitado caso se tivesse o necessário exemplo à mão, como uma nau
que desvia das rochas em seus trajetos pelo mar.
O produto dessa conexão teve resultado peculiar. No seio das disputas por
referências nas primeiras décadas de existência do Império do Brasil, os dirigentes
imperiais viram-se frente a uma articulação que produziu uma singularidade. Nas
palavras de Ilmar Mattos, que inspiraram o título deste trabalho,
fundadores e consolidadores do Império do Brasil tinham os olhos na
Europa e os pés na América (...). Os olhos na Europa porque tinham
como ideal erigir um Império soberano, à semelhança dos Estados
nacionais europeus. (...) Os pés na América porque ameaçados pela
„nova metrópole‟. A cada investida da polícia britânica, no sentido de
uma ação geral e comum para a extinção do tráfico negreiro
intercontinental, tornava-se necessário marcar a singularidade deste
Reino americano, enfatizando que „a África civiliza‟ 4.
Esta pesquisa teve como principal objetivo analisar formas pelas quais alguns
sujeitos centrais da construção política do Império do Brasil, em seu alvorecer,
produziram narrativas e interpretações do tempo, dos eventos históricos e do sentido das
transformações do mundo que os cercava, a partir da dupla relação entre “olhos na
Europa” e “pés na América”. Grosso modo, compreendo a centralidade desses agentes a
partir de suas posições em alguns espaços públicos de discussão que surgiam no
desenho inicial e no primeiro momento de conformação do Império do Brasil, na década
4
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 5ª edição. São
Paulo: HUCITEC, 2004, p. 139.
12
que vai do começo ao final dos anos 1820, momento de desenho do Brasil
Independente.
A escolha deste tema tem relação, simultaneamente, com preocupações de um
historiador e de um professor de história.
Primeiro, o historiador. Este, seguindo algumas considerações anteriormente
trabalhadas na dissertação de mestrado5, passou a preocupar-se com as relações entre
certa experiência histórica (entendendo como tal a forma de se relacionar tanto com
eventos do passado quanto com aqueles da contemporaneidade, todos ligados a certa
forma de experimentação do tempo vivido) e a defesa e execução de projetos políticos,
buscando traçar uma trajetória que associasse certos eventos à ideia de “civilização” e
outros à de “barbárie”. Inspirado nas reflexões de Jörn Rüsen sobre as relações entre
consciência histórica e a produção de sentidos para a vida 6, e motivado pela leitura do
trabalho de Valdei Araújo 7, comecei a indagar-me sobre as relações entre política e
história na construção de projetos de nação para o Brasil do século XIX, analisando
como certos usos do passado e do presente, isto é, como certas formas de se interpretar
os tempos passado e presente, poderia contribuir para a construção de certo horizonte de
expectativas para um tempo futuro.8
Como forma de analisar essa relação inicial, o espaço privilegiado escolhido foi
a Assembleia Geral do Império do Brasil, composta pela Câmara dos Deputados e pelo
Senado. Tal escolha não foi fortuita: tratava-se de espaço central na construção de
narrativas políticas naquele momento de delimitação do Estado-nação brasileiro,
apresentando-se deputados e senadores como representantes da nação que,
5
ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império
do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010.
6
A obra de Jörn Rüsen, cada vez mais lida no Brasil, é vasta, compreendendo diversos aspectos da
reflexão histórica sobre pesquisa, escrita, ensino etc. Cf. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da
História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001; RÜSEN,
Jörn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2007; RÜSEN, Jörn. Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva
manera de abordar la historia. Versão espanhola não-publicada do original alemão em: K.
Füssmann, H.T. Grütter and J. Rüsen, eds. (1994). Historische Faszination. Geschichtskultur heute.
Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, pp. 3-26; RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história
(organizadores: Maria Auxiliadora Schmidt et al). Curitiba: Ed. UFPR, 2011; RÜSEN, Jörn. Studies in
metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Counsil, 1993; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado
– Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2007; RÜSEN, Jörn. A História entre a modernidade e a pós-modernidade. História: Questões e Debates.
Curitiba, v. 14, n. 26/27, p. 80-101, 1997.
7
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
8
Aqui fica clara a influência também da obra de Koselleck para a construção da temática de pesquisa Cf.
KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006.
13
simultaneamente, buscavam definir com precisão. Trata-se de espaço central de embates
entre projetos de sociedade que construíram um caminho para o país. Trata-se, por fim,
de lócus indispensável para análise das relações entre história e política, já que seus
componentes eram compostos, em grande parte, por sujeitos que, na lógica do poder
imperial, cumpriam rituais e trajetórias de ascensão que lhes colocavam em posição de
definição para os rumos do Império. Não obstante, outros espaços também foram
pontualmente contemplados nesta análise, especialmente o já mencionado Reverbero
Constitucional Fluminense. As razões para tal escolha serão apontadas no devido
tempo.
Nesse sentido, os usos do passado e do presente, bem como as expectativas de
futuro construídas nas discussões foram analisados a partir dos exemplos levantados e
conectados aos eventos em debate. Foram primordialmente buscados os exemplos que
lidassem com as trajetórias históricas e com os acontecimentos coevos da Europa e da
América, posto que compartilho do pressuposto que a construção de determinada
experiência nacional no Império do Brasil esteve umbilicalmente ligada à forma pela
qual dirigentes imperiais inseriam o país na trajetória das civilizações, das quais a
Europa fornecia os melhores elementos.
Agora, o professor. Nessa segunda dimensão, inseparável da primeira, a plena
consideração das palavras de Francisco Falcon, de que “história e poder são como
irmãos siameses”, a cada dia me afirma mais e mais a necessidade de se ampliar a
perspectiva sobre o “discurso histórico” para além das muralhas da academia ou,
mesmo, da história escolar9. Considerando-se o sucesso que best sellers sobre o passado
têm alcançado nos últimos anos, inclusive moldando percepções públicas sobre a
história, seja do Brasil ou não, estudos sobre produções de interpretações do tempo
histórico fora dos moldes rígidamente “científicos” são não apenas uma necessidade
para os séculos passados, mas para hoje 10 . Superados os questionamentos sobre a
“História e poder são como irmãos siameses – separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a
presença do outro é quase impossível. A história da humanidade deve neste caso ter presentes estas duas
maneiras de ver a questão das relações entre a história e o poder: há um olhar que busca detectar e
analisar as muitas formas que revelam a presença do poder na própria história; mas existe um outro olhar
que indaga dos inúmeros mecanismos e artimanhas através dos quais o poder se manifesta na produção do
conhecimento histórico. Na verdade, porém, a historiografia costuma ser (...) quase sempre imprecisa ou
cega quanto ao segundo.” Cf. FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS,
Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
10
O fato de a maioria desses Best Sellers ter sido escrita por não-historiadores profissionais não é, em si,
um problema significante, considerando-se dois aspectos principais: 1) diversos não-historiadores
profissionais produziram obras de imenso valor para a história “científica”; 2) alguns historiadores
9
14
profissionalização da área e sobre o método que confere ao discurso científico do
historiador um caráter “superior” em relação ao senso comum11, resta analisar as formas
pelas quais o discurso histórico, ontem e hoje, é capaz de alcançar grandes ou pequenos
públicos, ou interferir no encaminhamento de propostas e projetos políticos 12 . Este
trabalho foca no passado sem querer deixar de pensar no presente13.
Entre o historiador pós-mestrado, preocupado com as relações entre consciência
histórica, formação da identidade nacional e política no Brasil Império, e o professor
que vê diariamente discursos históricos produzidos fora da academia ganharem volume
na consolidação de visões sobre o passado, eis que este trabalho ganha sentido. Tal
confluência implicou pensar nas formas pelas quais a história foi produzida no século
XIX fora dos moldes disciplinares que o próprio século XIX desenhava para a área.
III) Enquadramento da abordagem: uma reflexão de cunho teórico.
Já há algum tempo os estudos historiográficos têm se expandido para além dos
marcos clássicos que os definiram no caso particular da História do Brasil. A expansão
cronológica e autoral nos estudos sobre escrita da História no século XIX, em especial,
possibilitou perceber formas de interpretação e consciência histórica para além dos
limites definidos pelo IHGB e por Varnhagen, indo além daquelas obras consideradas
“textos de fundação”, na expressão de Manoel Salgado Guimarães. Com isso, esses
trabalhos têm permitido ampliar as possibilidades de análise das transformações
conceituais sofridas pela escrita da História ao longo do oitocentos14. O próprio Manoel
profissionais, amparando-se nos títulos que a institucionalização do cargo lhes confere, não se furtam a
opinar sobre aspectos fora de sua alçada sem qualquer preocupação metodológica com os resultados.
11
Se não superada conceitualmente, certamente na prática ela se encontra majoritariamente resolvida.
12
Para citar apenas algumas das propostas, dos debates e projetos recentes nos quais o conjunto dos
historiadores profissionais tem tido importância menor do que, por seu ofício, deveria ter: os trabalhos das
comissões da verdade, os debates sobre escravidão e políticas de reparação (como cotas), as intermináveis
discussões sobre relações entre direita e esquerda no espectro político brasileiro contemporâneo e,
finalmente, os também infindáveis debates sobre a natureza do capitalismo histórico, estes francamente
monopolizados por economistas nos espaços públicos de discussão no país.
13
Nesse contexto ganha imensa importância o crescimento entre nós da chamada “história pública”, bem
como de trabalhos acadêmicos na área de ensino de história. Embora ainda não bastante explorada, a
discussão sobre espaços muitas vezes ignorados de produção de sentidos históricos, num espectro que vai
de clássicos como filmes, novelas, literatura etc. até elementos mais contemporâneos, como games, além,
claro, da temática do patrimônio, não apenas amplia o significado social da existência do historiador
profissional, como ainda permite uma melhor percepção sobre como ideias sobre o passado interferem no
presente para além de uma linearidade que enxerga na academia o motor e no binômio escola-livro
didático seus meros redutores/reprodutores. Sobre a questão, cf. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de &
ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (orgs.) Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011,
especialmente os dois primeiros capítulos.
14
A expressão “textos de fundação” refere-se, especificamente, a textos clássicos, produzidos ao longo do
século XIX, que buscaram dar formas à escrita de uma história nacional. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luiz
15
Salgado Guimarães explorou essa possibilidade ao analisar as páginas do jornal O
Patriota, em busca dos significados da palavra “história” ali presentes15. Nos últimos
tempos, o conjunto de trabalhos que ampliam o universo historiográfico do século XIX
só aumentou.
Esta pesquisa propõe uma contribuição a esse conjunto de estudos, analisando as
relações entre experiência histórica – ou, mais amplamente, entre certa experimentação
do tempo, incluindo o passado, presente e futuro – e política no momento de
delineamento do “Brasil Independente”; grosso modo, a conjuntura que resultou no
rompimento político com Portugal e o Primeiro Reinado. O espaço privilegiado de
análise é aquele no interior do que poderíamos considerar o “Estado Imperial”, ainda em
processo de construção no período que analisamos.
A delimitação de nosso espaço de análise implica uma consideração. Embora
não consideremos “Estado” simplesmente o espaço institucional de sua atuação, mas,
também, os elementos de construção ideológica que lhe servem de sustentação e lhe
conferem substância 16 , buscando, assim, seguindo outros autores, evitar a oposição
entre “estado-coisa” (como simples instrumento passível de manipulação por algum
indivíduo ou classe) e “estado-sujeito” (como um ente cuja vontade, própria, se justifica
e realiza por sobre a sociedade) – isto é, evitando uma perspectiva que destaque o
Estado do conjunto de relações sociais que lhe dão sentido; que interprete o Estado
como bloco monolítico sem fissuras ou contradições; que veja o Estado apenas pelo viés
negativo de instância coercitiva, em oposição ao qual estaria a sociedade civil 17 -, não
obstante tudo isso, este trabalho não abordará o “Estado Imperial” em toda sua
Salgado. Apresentação. In: ______ (org.) Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2010, p. 12. Penso que não seria errôneo incluir outros textos nesse conjunto, como, por
exemplo, a obra de Varnhagen.
15
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da História
no Brasil oitocentista. In: ______ (org.). Estudos sobre a escrita da História. Rio de Janeiro: 7Letras,
2006, p. 68-85.
16
É a noção de “Estado ampliado” de Gramsci. Para uma discussão a respeito, cf. COUTINHO, Carlos
Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003; BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil.
2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999; PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. 6ª edição.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
17
Para algumas críticas a essa perspectiva do Estado como ente exterior e/ou todo poderoso, cf.
CORRÊA, Darcísio. Marxismo, Direito e Cidadania. In: A construção da cidadania: reflexões históricopolíticas. 3ª edição. Ijuí, RS: Editora Unijuí, 2002, p. 126-137; MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado,
violência simbólica e metaforização da cidadania. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. vol. 1. 1996,
p. 94-125; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. As Classes Sociais na Construção do Império do Brasil. In:
MENDONÇA, Sônia Regina de (org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EdUFF/FAPERJ,
2006; MENDONÇA, Sônia Regina de. Os intelectuais na historiografia brasileira. Comunicação
apresentada no IV Simpósio Nacional Estado e Poder: Intelectuais. São Luís: Universidade Estadual do
Maranhão, 2007.
16
plenitude. Sem querer adentrar a discussão sobre a densidade da “sociedade civil” no
Império do Brasil, especialmente em sua década inicial, consideraremos que o espaço
do “Estado restrito” – em nosso caso, especialmente o espaço das discussões
parlamentares já mencionado – é central no esforço institucional de produção daquela
“crença mobilizadora” que, segundo Bourdieu, define com precisão um aspecto
essencial do “Estado”. 18 Da mesma maneira, consideraremos que o enfoque sobre o
“Estado restrito” não anula a ampliação das discussões ali produzidas, sendo necessário,
em alguns momentos, articular o discurso que vem de fora desse espaço restrito,
produzido em outras instâncias da discussão política. Aqui entram, por exemplo, os
periódicos que dão sustentação ideológica às interpretações “restritas”.
Daí a importância de se focarem as “discussões miúdas”, os embates cotidianos
travados no interior dos espaços pertencentes à dimensão mais ampla do “Estado
imperial”. Nesses espaços produziram-se políticas e ações para exercício do poder sobre
o território que se pretendia nacional – e imperial –, sobre seus habitantes e sobre as
relações sociais que, não obstante tenham origens fora do eixo de atuação mais direto
desse Estado, eram por ele atravessadas.19 Essas políticas e ações eram embasadas numa
experiência histórica que produziu concepções de mundo mais amplas, difundindo
interpretações sobre o Brasil na medida em que construíam ideologicamente o próprio
sentido de “ser brasileiro”.
A noção de “experiência histórica” se baseia fortemente nas reflexões de Jörn
Rüsen, para quem o ser humano é quase concebido como um “animal histórico” que
busca na história um significado para suas ações no mundo. Segundo o autor alemão,
o homem necessita estabelecer um quadro interpretativo do que
experimenta como mudança de si mesmo e de seu mundo, ao longo do
tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ou seja,
18
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 175. A
discussão sobre a densidade da “sociedade civil” no Império do Brasil é longa e tem produzido boas
discussões, mesmo entre aqueles que não utilizam o arcabouço gramsciano. Dentre estes últimos,
predominam as análises que consideram “sociedade civil” dentro da lógica da “esfera pública” a partir de
Habermas. Para um exemplo, cf. MOREL, Marco & BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e
poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 21-22.
19
Talvez o maior exemplo desta consideração seja o caso da escravidão: longe de as relações escravistas
de dominação serem oriundas exclusivamente o espaço estatal, dependiam deste na medida em que certas
ferramentas de controle – inclusive legais – e o contexto mais amplo de sua reprodução – via comércio
negreiro – estavam diretamente ligadas à forma de atuação desse Estado (ainda que dele nem sempre
dependesse totalmente, como no caso do próprio comércio negreiro, que se fundamentava
internacionalmente).
17
assenhorear-se dele de tal forma que possa realizar as intenções do seu
agir20.
Para Rüsen, os seres humanos buscam apreender o mundo em que vivem, a
partir das necessidades e das angústias de seu presente, por meio de uma determinada
“consciência histórica”, entendida por ele como “a realidade a partir da qual se pode
entender o que a história é, como ciência, e por que ela é necessária” 21. É, para o autor,
o “trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir
conformes com a experiência do tempo”22. A consciência histórica é a forma pela qual a
experiência dos humanos com o tempo torna-se possível e desejável, e é a partir dessa
forma básica que outras formas de organização – científicas – são possíveis23.
Considerarei com maior destaque, porém, neste trabalho, a expressão
“experiência histórica”, por sua maior amplitude, por sair um pouco da racionalidade
mais estrita na produção das visões históricas e por levar em conta, também, elementos
inconscientes na produção das narrativas. Não é objetivo do trabalho esmiuçar quando
começa e quando termina a consciência na produção (se é que tal esforço seria
possível), mas apenas atentar para as diversas camadas que se sobrepõem na construção
de narrativas e perspectivas sobre o passado, o presente e o futuro.
O foco serão as interpretações sobre essa experiência do tempo, desenvolvidas
de forma “não-elaborada”- isto é, sem pretensão científica a princípio ou sem rigor
intelectual mais organizado. Essas interpretações dos dirigentes imperiais, construídas,
como se verá, principalmente sobre aspectos não-científicos da história, buscavam não a
análise ou a compreensão do passado por si só, mas a intervenção no presente. Daí que
o foco nas discussões “não-elaboradas”, mas produzidas de modo fragmentado, possam
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica... op. cit., p.
58.
21
Idem, p. 56. Esse entendimento distingue a abordagem de Rüsen de outros, para quem a “consciência
histórica”, em vez de ser um aspecto antropológico da existência humana, configura-se numa forma
específica de elaboração dessa experiência, referente a um momento específico da trajetória história da
humanidade. Tais seriam os casos de Gadamer e Ariés. Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da
consciência histórica. (organização de Pierre Fruchon). 3ª edição. Rio de Janeiro: editora FGV, 2006;
ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. Para uma comparação da
perspectiva de Rüsen com a desses autores, bem como às perspectivas de Agnes Heller e Raymond Aron,
cf. CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma
discussão contemporânea. Rio de Janeiro: editora FGV, 2011.
22
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica... op. cit., p. 59.
23
Rusen também articula essa “consciência histórica” às noções de “cultura histórica” e “memória
histórica”, ambos caracterizados como formas de uso da história para intervenções no presente;
significados da história balizando atitudes, compreensões e interpretações do presente. Cf. RÜSEN, Jörn.
Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia... op. cit., p. 3-26.
20
18
nos dar melhores pistas sobre como se interpretava o tempo na disputa pela direção
àquele momento de formação do Império.
A abordagem de Rüsen pode ser complementada com as reflexões de Antonio
Gramsci, que oferece uma poderosa abordagem das formas de construção de
concepções de mundo hegemônicas e contra-hegemônicas. Tal abordagem possibilita
um exercício de compreensão da experiência do tempo e da história exatamente como
partes de concepções de mundo mais amplas – ideológicas. Em outras palavras,
Gramsci possibilita a saída do campo da história da historiografia como espaço
despregado da realidade ou restrito ao debate intelectual acerca das ideias em voga para
uma história da historiografia que seja parte de uma totalidade conceitual integrando o
mundo concreto à interpretação sobre ele. Parte, em suma, de um universo conceitual
mais amplo.
Não é outro o sentido das palavras que abrem o parágrafo 12 do caderno 11 da
obra principal do italiano:
É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é
algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de
uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos
profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar
preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os
limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a
“todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria
linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados
e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo;
2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e,
consequentemente, em todo o sistema de crenças (...) que se
manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”. 24
Para Gramsci, a ideia de que todos os homens são filósofos significa,
primordialmente, que todos compartilham de uma filosofia, entendida enquanto
“concepção de mundo” e devendo ser concebida em sua historicidade, sob o risco de
incorrer-se numa metafísica especulativa 25 . Serem todos os homens filósofos não
implica, obviamente, afirmar que todos compartilhem igualmente dessa filosofia, daí
sendo preciso definir os limites e as formas dessa participação – que invariavelmente
estão ligadas à forma como esses sujeitos inserem-se no mundo das relações sociais.
Partir dessa concepção de filosofia implica, em Gramsci, considerá-la não como
um “sistema individual ou de tendência”, mas como “o conjunto de todas as filosofias
24
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia
de Benedetto Croce. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.93.
25
Idem, p. 120.
19
individuais e de tendência, mais as opiniões científicas, mais a religião, mais o senso
comum”26. Em suma, considerar que “a filosofia de uma época histórica, portanto, não é
senão a „história‟ desta mesma época” 27 , e não o desenvolvimento linear das idéias
soltas de intelectuais pontuais.
Gramsci, em sua crítica do conceito de história de Benedetto Croce, questiona se
a mesma não teria uma origem “puramente livresca e erudita”. E afirma que “somente a
identificação entre história e política evita que a história tenha esta característica.” A
continuação dessa citação, quando utilizada para a reflexão sobre os modos de escrita da
história no Brasil oitocentista (como para os modos pelos quais muitas narrativas
históricas são produzidas ainda hoje), oferece uma abordagem mais ampla para a
consideração das relações entre História e Política:
Se o político é um historiador (não apenas no sentido de que faz a
história, mas também no de que, atuando no presente, interpreta o
passado), o historiador é um político; e, nesse sentido (que, de resto,
aparece também em Croce), a história é sempre história contemporânea,
isto é, política. Croce, contudo, não pode chegar a esta conclusão
necessária precisamente porque ela conduz à identificação entre história
e política e, consequentemente, entre ideologia e filosofia.28
A relação íntima entre política e história, posto seja temática bastante discutida e
debatida na historiografia, tradicionalmente tem sido merecedora de uma perspectiva
mais forte da história para a política do que o contrário – isto é, gerado mais análises
sobre como a escrita da história sofre influências das questões políticas do que sobre
como agentes ligados diretamente a questões políticas constroem suas narrativas
históricas. Além disso, quando o segundo caminho é abordado, normalmente o é a partir
de obras pontuais ou paradigmáticas, escritas com o intuito específico de produzir uma
narrativa histórica, como exposto anteriormente.
É preciso considerar-se, porém, que da mesma forma que a consciência histórica
de uma época não é a consciência de intelectuais pontuais, tampouco a experiência
histórica se restringe a uma reflexão escolástica de letrados em discussão com seus
pares. A experiência da história e do tempo só podem ser parte de uma totalidade, de
26
Idem, p. 128.
Idem, p. 326. Cf. também GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 2: Os intelectuais. O
princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 18-23.
28
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1... op. cit., p. 312. Para Croce, “As exigências
práticas que suportam todo julgamento histórico dá a toda história o caráter de „história contemporânea‟,
porque, mesmo que os eventos assim recontados possam parecer remotos no tempo, a história na verdade
refere-se a necessidades presentes e situações presentes, onde aqueles acontecimentos vibram.” In B.
Croce, History as the story of liberty, tradução inglesa de 1941, p. 19, apud CARR, Edward Hallet. que é
história? São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 54.
27
20
uma “história integral” em que realidade e compreensão da realidade se complementem,
obrigando seus intérpretes, a todo momento, a reforçarem os consensos que fortaleçam
ou enfraqueçam determinadas concepções de mundo.
E aqui cabe uma reflexão, pelo viés gramsciano, a respeito do trabalho de J. G.
Pocock, autor de grande influência em alguns trabalhos que, nos últimos anos, têm
ampliado enormemente os estudos sobre história da historiografia no Brasil – uma
crítica que nos coloca em diálogo com os estudos inspirados por aquilo que ficou
conhecido como “escola contextualista”, ou “escola de Cambridge” 29. Em “O Momento
Maquiaveliano” 30 , por exemplo, Pocock buscou a influência de certa tradição
republicana (que envolvia as formas de se conceber a participação do homem no
governo de sua cidade) sobre a tradição política inglesa nos anos até a Independência
dos EUA. Para Pocock, o problema da República em confronto com a sua própria
finitude, devendo permanecer eternamente estável num mundo marcado pela
instabilidade, levou ao desenvolvimento de uma linguagem em que os termos “virtude”,
“fortuna” e “corrupção” marcavam essas lutas entre permanência e transitoriedade, num
turbilhão que arrastou não somente os “grandes” – dos quais Maquiavel, até pelo que o
título do livro indica, seria a grande estrela –, mas também os “menores” atores
políticos a tentar interpretar e resolver esse problema. No decorrer de sua análise,
Pocock percebe que, pouco a pouco, o “momento maquiaveliano” (como aquele período
em que tanto o problema da permanência republicana quanto a questão da participação
dos homens no governo surgiram) vai ganhando, em si, uma continuidade histórica que
marca, também, a trajetória da passagem da consciência européia cristã para uma
consciência histórica secular moderna. Em outras palavras, Pocock não apenas contribui
para a análise das formas de se experimentar o tempo e a História em termos
metodológicos (inserindo atores outros e ampliando o escopo de fontes como forma de
se apreender uma linguagem de maneira mais ampla), mas nos leva a repensar a própria
periodização que Koselleck e Hartog, outras imensas influências nos estudos de História
Para a importância metodológica e historiográfica dos chamados “contextualistas”, cf. POCOCK, J. G.
A. Quentin Skinner: a história da política e a política da história. Topoi, v. 13, n. 25, jul/dez 2012, p. 193206; RICHTER, Melvin. Reconstructing the history of political languages: Pocock, Skinner, and the
geschichtliche grundbegriffe. History and Theory, vol. 29, n. 1, FEB./1990, p. 38-70.
30
POCOCK, J. G .A., The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic
Republican Tradition, Princeton (NJ), Princeton UP, 1975.
29
21
da Historiografia Brasileira31, estabelecem como de formação da consciência histórica
moderna. 32
Não obstante a influência, Pocock, embora estivesse interessado na forma pela
qual as linguagens são apropriadas e combatidas pelos diferentes grupos para além das
intelligentsias, não confere aos grupos populares o mesmo potencial de iniciativa na
criação mais ampla dessas concepções de mundo, como faz Gramsci. 33 Além disso, o
autor, inserindo-se no grupo dos historiadores orientados pelas discussões acerca da
linguagem, apresenta-se como distinto do “marxista inteligente” (os “vulgares” são
desconsiderados) por minimizar a preponderância da relação linguagem-sociedade no
estudo das linguagens políticas, já que considera estas como um fenômeno histórico de
relativa autonomia.34 Nesse sentido, a abordagem gramsciana, por ampliar ainda mais o
escopo de possibilidades, me parece mais rica para a interpretação do período imperial.
Nesse momento, ampliar ainda mais a abordagem normalmente feita sobre o
significado da palavra “historiografia” – palavra, na verdade, já com vários sentidos
possíveis35 – pode nos ajudar a incorporar as considerações de Gramsci às de Rüsen no
31
Analisaremos ambos os autores mais à frente neste trabalho.
E aqui entramos num problema possível aos estudos sobre história da historiografia oitocentista: o risco
da leitura muito direta dos autores estrangeiros. Isto é, transferindo automaticamente seus contextos e
suas questões para outras realidades. As formas anteriores de experiência do tempo e da História não
devem ser generalizadas todas como “antigas”, posto que tal classificação pode levar ao erro de se
considerar todo o seguinte ou como “moderno” – portando dentro de uma lógica progressista que
universaliza um desenvolvimento particular – ou como “permanência do antigo”, como se o velho mundo
se arrastasse e insistisse em oprimir um presente que ruma à liberdade e, se a não alcançou ainda, tratarse-ia apenas de uma questão de tempo. No caso brasileiro, essa perspectiva pode ser ainda mais
problemática. Busca-se uma linearidade para essa modernidade e procura-se a posição do mundo lusobrasileiro nela, ora percebendo-o como atrasado, ora vendo-o em consonância com as transformações
européias. Não se cogita muito buscar o que o mundo luso-brasileiro – e, posteriormente, o Império do
Brasil – teria de próprio. O risco, aqui, é cair, no caso dos estudos sobre história da historiografia, no
mesmo erro de estudos sobre economia e sociedade, que viam na permanência do escravismo, ao longo
do Império do Brasil, um sintoma de atraso, e não uma forma própria de inserção na modernidade
capitalista do sistema atlântico. Essa discussão tem sido empreendida, na historiografia sobre as
sociedades escravistas oitocentistas em geral, e sobre a brasileira em particular, principalmente por
TOMICH, Dale. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy. Rowman &
Littlefield Publishers, Inc., 2004; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008; MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do
mercado mundial de café no século XIX. In: GRINBERG, Keila. & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil
Imperial. Volume II – 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; PARRON, Tâmis. A
política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
33
Cf. POCOCK, J. G. A Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EdUSP, 2003, p. 68.
34
Cf. POCOCK, J. G..Texts as events: reflections on the history of political thought. In: ______Political,
thought and history: essays on theory and method. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 106122, em especial p. 110-111.
35
Para alguns desses sentidos ao longo da História e hoje, cf. MALERBA, Jurandir (org.). A história
escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, introdução; CAIRE-JABINET,
Marie-Paule. Introdução à Historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 11-16; SILVA, Rogério
Forastieri da. História da Historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2001, capítulo 1; LOPES, Marcos Antônio.
32
22
estudo da experiência histórica oitocentista. Em Rüsen, o campo da consciência
histórica é definido por um sistema de operações mentais a que o autor chama
simplesmente “narrativa histórica”, que pode ser de vários tipos – e não apenas da
forma como entendemos majoritariamente “historiografia” modernamente, isto é,
narrativa relacionada a uma “história-ciência”36. Abordar a questão da historiografia no
Império do Brasil, bem como analisar as formas de experiência histórica e do tempo,
pode valer-se muito das relações entre Gramsci e Rüsen para enriquecer-se.
Para tal, é crucial ampliar nossa ideia sobre o que seriam “narrativas
históricas”37 no Brasil oitocentista, flexibilizando a noção de discurso historiográfico –
aqui, não primordialmente preocupado com método ou busca pela veracidade, mas, sim,
interessado em difundir uma determinada interpretação histórica como parte de uma
concepção de mundo, incorporando, portanto, tanto outras formas de escrita e circulação
quanto outros atores do processo político, dos de maior aos de menor expressão. Talvez
pudéssemos dar a essa perspectiva o nome de “historiografia integral”, inspirando-se na
ideia de “história integral” gramsciana, em nome de uma amplitude nas formas de se
analisar as experiências históricas oitocentistas.
Poderíamos tentar ir além das produções pontuais, ou elaboradas/publicadas, de
alguns intelectuais selecionados, para incluir, também, outros tipos de fontes e
produções, como a dos periódicos e dos discursos fragmentados surgidos dos acalorados
debates políticos diários nas assembléias. Isso não bastaria, evidentemente, posto que o
principal aspecto dessa perspectiva – a inclusão de concepções historiográficas contrahegemônicas – não estaria plenamente abarcada. Em outras palavras, a expansão inicial
da noção de historiografia não resolve o problema das concepções históricas das classes
subalternas. Aceitando-se a premissa gramsciana de que “a história dos grupos sociais
subalternos é necessariamente desagregada e episódica” 38 , podemos nos perguntar:
como buscar uma história da historiografia que inclua os discursos não-hegemônicos,
subalternizados, na análise das experiências da História e do tempo do oitocentos no
Idades da História: figuras e ideias do pensamento histórico moderno. Porto Alegre, RS: EDPUCRS,
2009, p. 15-39;
36
RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história... op. cit., p. 95.
37
Para as diversas formas de narrativa histórica e constituição de sentido analisadas por Rüsen, cf.
RÜSEN, Jörn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, capítulo 1. Versão menor da discussão encontra-se em
RÜSEN, Jörn. Studies in metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Counsil, 1993, Chapter 1:
historical narration: foundation, types, reason, p. 3-14.
38
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Vol. 5: O Risorgimento. Notas sobre a História da Itália. 2ª
edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 135.
23
Império do Brasil? Por hora, tal questionamento fica sem resposta. Não é objetivo desta
tese avançar nessa direção. Apenas consideramos o ponto para reforçar uma de nossas
questões centrais: a ansiedade da busca pelo “discurso moderno da historiografia”, pela
“História-Ciência”, ofusca a busca pelas formas como outras narrativas históricas iam
sendo construídas no calor da prática, no fulgor das experiências de luta e conflito. E
que moldaram e moldam, até hoje, nossa totalidade de experimentação do passado.
Esta tese, repetindo, não tem a pretensão de oferecer essa “historiografia
integral”. Ao ampliar o escopo das fontes e incorporar documentação não comumente
utilizada para se pensar a experiência da história, nosso objetivo é apenas somar forças
aos trabalhos que vêm, nos últimos anos, oferecendo inúmeras contribuições à
ampliação das narrativas historiográficas. 39 Se a reflexão para a produção desta tese
levou em consideração os elementos levantados nas páginas anteriores, não foi com
intenção maior do que abrir uma discussão. Apenas futuras pesquisas poderão avaliar se
tal abertura pode ou não ser produtiva.
IV) Fontes e método:
O principal corpus documental trabalhado nesta pesquisa, como já indicado, são
os Anais da Assembleia Constituinte do Império do Brasil, referentes ao ano de 1823, e
os Anais da Câmara dos Deputados e do Senado do Império do Brasil, para os anos
entre 1826 e 1830. Doravante, chamarei esses conjuntos, respectivamente, de AAC,
ACD e AS.40
Os Anais são compilações de discursos, projetos, discussões e decisões das
respectivas Casas, organizadas e publicadas em datas diferentes e sem uma diretriz
única. Os discursos da Câmara dos Deputados, por exemplo, que foram os primeiros
organizados, somente começaram a ser impressos concomitantemente às discussões a
partir de 1857. Até então, os discursos parlamentares eram veiculados por periódicos da
época, os quais serviram de base para a posterior compilação. Os AAC foram
publicados a partir da segunda metade do século XIX, enquanto os AS encontraram
publicação apenas no século XX.
39
Para ficar em alguns exemplos, cf. SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do
futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo:
USP, 2010; FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do
Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015; bem como os trabalhos de João
Paulo Garrido Pimenta e Valdei Araújo.
40
As demais fontes, especialmente o Reverbero, que ocupará boa parte de nossa atenção, serão discutidas
ao longo dos próprios capítulos.
24
Trata-se, portanto, de um conjunto com critérios de organização pouco
homogêneos. A massa de discursos produzidos perpassa os mais amplos e distintos
assuntos, sem que seja possível confiar inteiramente nos índices próprios dos volumes.
A busca por um tema qualquer de pesquisa exige paciência e atenção aos detalhes dos
discursos produzidos, pois um determinado assunto pode surgir repentinamente no meio
de um acalorado debate sem que tal surgimento estivesse antecipadamente sugerido nos
índices das publicações.
As sessões aparecem nos Anais no formato de atas que eram produzidas por
taquígrafos, que acompanhavam as discussões, e posteriormente aprovadas nas sessões
seguintes da respectiva Casa. Como já dito, essas atas encontravam publicidade
anteriormente a 1857 apenas nos periódicos de época, o que já garantia que as
discussões travadas ressoassem, ainda que parcialmente, pelo território do Império.
Cientes da divulgação que alcançariam, os deputados e senadores não costumavam falar
a esmo. Os discursos seguiam certos ritos que iam da memorização prévia de discursos
e preparo de referências até a aprovação ou desaprovação de discursos redigidos nas
atas. Deputados e Senadores poderiam, eventualmente, reclamar dos taquígrafos por
considerar que o material produzido se não coadunava com a “verdade dos fatos” ditos
pelo autor.
Além disso, outros elementos devem ser levados em consideração ao se
trabalhar com os Anais: as atas estão sujeitas a uma série da variáveis que torna o texto
eventualmente bastante fragmentado. Algumas vezes a fala de um senador ou deputado
é substituída pelo registro da interpretação do taquígrafo. Assim, ao invés de um
discurso registrado, temos o resumo produzido pelo taquígrafo sobre o que foi falado.
Da mesma forma, muitas vezes o taquígrafo, por não ouvir ou por qualquer outro
motivo não-declarado, não registra a fala de certos deputados e senadores,
argumentando terem sido proferidos “em voz baixa” ou por outra justificativa.
Como o objetivo central da pesquisa é articular uma certa experiência histórica
oitocentista às questões políticas, a partir dos usos e das interpretações dadas à História
do Brasil e aos exemplos estrangeiros nas falas parlamentares, a fragmentação
discursiva dos Anais permite que tenhamos também em fragmentos essa análise das
formas de consciência histórica presentes. Por serem fragmentárias, podemos, com
algum grau de certeza, conferir aos discursos históricos um caráter de verossimilhança,
ou seja, considerar que os exemplos e as narrativas efetuadas, ainda que não
correspondam necessária e exatamente ao que foi dito por este ou aquele parlamentar,
25
correspondem a referências sustentadas no oitocentos brasileiro, ao menos nos círculos
políticos e de poder em que os parlamentares estão inseridos. Podemos definir os
discursos parlamentares, portanto, como seguros suportes de questões relativas às
formas de experiência histórica veiculadas nas discussões oitocentistas.
Partindo-se dessa definição, a forma de tratamento das fontes foi, basicamente,
destacar as referências e as narrativas usadas em seus contextos, a partir de duas
preocupações centrais: 1) Buscar perceber como exemplos de outros países (europeus e
americanos, em especial), outros tempos históricos (Época Colonial, Antiguidade, Idade
Média, mas também o tempo presente) ou outras referências físicas ou cronológicas
eram levantadas pelos parlamentares e de que forma inseriam seu próprio tempo
histórico e o do Império do Brasil nessas referências; 2) Buscar perceber como
narrativas sobre a trajetória histórica do Brasil eram construídas, utilizando-se desde
elementos internos ao Império até elementos de fora da identidade nacional, a partir,
novamente, da comparação com trajetórias históricas de outras regiões.
É fundamental, na abordagem desse tipo de fontes, entender que o número de
agentes políticos que se envolvem nas discussões é bastante reduzido. Embora não haja
números para uma análise estatística geral, podemos afirmar, com alto grau de
confiabilidade, que não mais do que um punhado de parlamentares participava mais
ativamente de cada discussão, e normalmente eram os mesmos, buscando manter suas
posturas e colidir em suas disputas na tentativa de avançar ou fazer retroceder projetos
que pudessem ameaçar seus objetivos 41 . No caso do Senado, por exemplo, para o
período discutido neste trabalho, quatro senadores respondem por 62% de todas as
intervenções que envolvem a construção de exemplos históricos ou apelos à história.
São eles: José Joaquim Carneiro de Campos, marquês de Caravelas 42, José da Silva
Lisboa, visconde de Cairu, Francisco Carneiro de Campos, irmão de José Joaquim, e
José Ignácio Borges, o único dos quatro não representante da Bahia. É esse o grupo que
concentra a maioria absoluta das intervenções no Senado que fazem, de alguma forma,
41
Esse tipo de análise será sempre aproximativa, dados os limites das fontes disponíveis para pesquisa da
história parlamentar. Jeffrey Needell chegou à mesma interpretação para a Câmara dos Deputados em
período posterior. Cf. NEEDELL, Jeffrey. Party formation and state-making: the Conservative Party and
the reconstruction of the Brazilian State, 1831-1840. Hispanic American Historical Review, Durham, NC,
US, V. 81, N. 2, P. 259-308, may 2001, p. 299-300.
42
Para Caravelas e Cairu, utilizarei sempre o maior título a que chegaram. Assim, embora em algumas
discussões Carneiro de Campos ainda seja referenciado como “visconde” e Silva Lisboa como “barão”,
manterei as denominações “marquês” e “visconde” ao longo do trabalho. Ambos alcançaram tais títulos já
em 1826.
26
referência ao passado ou ao presente de exemplos estrangeiros para formulação de
políticas para o Império do Brasil.
As implicações dessa restrição, bem como as análises qualitativas sobre as
exposições nos debates, serão discutidas ao longo da tese.
***
Chegamos ao final desta longa introdução. Resta apenas indicar como o trabalho
será organizado. A tese será dividida em duas partes, cada uma contendo 3 capítulos.
A primeira parte, intitulada “História e Civilização na construção do Estado
Independente”, tem dois objetivos principais. Em primeiro lugar, analisar as formas
pelas quais o conceito de “História” e o termo “historiadores” foram entendidos pelos
agentes políticos do Primeiro Reinado. Esse objetivo será tratado no Capítulo 1:
História e Historiadores no Primeiro Reinado. Em segundo lugar, temos como
objetivo analisar as formas pelas quais certa narrativa história – que identificamos na
análise dos Anais para 1823-1830 – foi produzida antes disso, já no momento de ruptura
política com Portugal. Em outras palavras, dedicaremos os capítulos 2 e 3 desta tese à
análise de elementos da experiência histórica do Primeiro Reinado naquele momento
que identificamos como de sua gênese: os anos de 1821 e 1822. Focaremos essa análise
no Reverbero Constitucional Fluminense. As razões para tanto e o conteúdo dessa
narrativa histórica serão explicitados no Capítulo 2: Bases do discurso histórico no
momento da Independência e no Capítulo 3: Das possibilidades da civilização na
América. Aquele, focando no delineamento do que chamaremos de “história como
história da liberdade”, identificando-se com uma noção da “história da civilização”.
Este, concentrando-se na maneira como a América – e, portanto, também o Brasil –
podia inserir-se naquela história da civilização.
A segunda parte, intitulada “Referências em disputa no Império do Brasil”, terá
como eixo a articulação de elementos elaborados no biênio 1821-1822 à construção do
Estado Imperial, nas discussões políticas da Constituinte, da Câmara e do Senado, a
partir de 1823. Nesse sentido, nosso foco central será analisar como algumas temáticas
centrais surgidas no momento da Independência – a questão da monarquia
constitucional, o papel de Dom Pedro I na formação de certa memória da
Independência, a questão das datas comemorativas, as influências e os exemplos que a
Europa poderia fornecer ao Brasil, a posição do Brasil frente aos vizinhos americanos,
e, finalmente, a questão da escravidão no processo de construção da civilização na
27
América – desdobram-se ao longo dos anos seguintes. Como ficará claro ao final deste
trabalho, essas questões não se encerram no Primeiro Reinado. Pelo contrário: ganham
vida longa e agregam novos elementos nas décadas seguintes, conforme poderemos
vislumbrar. A análise dessa continuidade e desses novos elementos, porém, ficará para
um outro trabalho.
Assim, nosso Capítulo 4: Comprimindo interpretações ao redor da
Independência, tratará desses temas na passagem da ruptura, em 1822, para o fim da
Constituinte e início da atividade parlamentar corriqueira, a partir de 1826, enquanto os
capítulos seguintes constituem duas partes de uma mesma discussão, que foca nas
relações entre construção do Império e os exemplos da civilização europeia (Capítulo
5: Olhos na Europa: a lógica da civilização) e a construção do Estado-nação no Brasil
e a questão de suas peculiaridades, especialmente a escravidão (Capítulo 6: Pés na
América: a outra face da civilização).
Versões anteriores de partes dos capítulos a seguir foram apresentadas em
eventos pelo Brasil e publicadas em artigo 43, atividades possibilitadas graças a bolsa de
pesquisa concedida pelo CNPq, pela qual sou grato.
43 ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Gramsci, Rüsen e a busca por uma “historiografia integral” do
oitocentos brasileiro. In: Revista de Teoria da História, Universidade Federal de Goiás, v. 11, n. 1, p. 3962, jun. 2014.
28
Parte I:
História e Civilização na construção do Estado Independente
29
Capítulo 1:
História e Historiadores no Primeiro Reinado
A historiografia recente sobre o Primeiro Reinado tem valorizado o período em
suas particularidades, ao invés de considerá-lo mero apêndice no processo de construção
do Estado imperial. Essa valorização considera os anos entre 1822 e 1831 não apenas
como uma disputa entre o “autoritarismo de Dom Pedro” e a “liberdade da nação”, mas,
sim, como um momento ímpar na definição dos rumos da nação, uma vez que as
delimitações a respeito do “ser brasileiro”, da cidadania, das instituições básicas do
Estado e, inclusive, da escrita da história nacional já ali se encontravam expostas 44.
Particularmente em relação a essa última questão, o Primeiro Reinado vem se
mostrando período fértil para análise. Não apenas foi uma década conturbada do ponto
de vista institucional (com os desdobramentos das lutas de Independência dando
sequência ao fechamento da Constituinte, apenas alguns meses após o começo de seus
trabalhos) e social (com a Confederação do Equador, em 1824, sendo apenas uma
dentre diversas manifestações que sacudiram o período), mas, também, foi um momento
de disputas internas pela direção política que o Império deveria tomar45.
Momento marcante na trajetória de formação do Estado-nação brasileiro, o
Primeiro Reinado pode ser considerado como um momento de efervescência do Brasil
em construção – isto é, um momento dotado de temporalidade própria, e não mero
prolongamento do passado, no qual as questões inauguradas pelo processo de
emancipação, conduzindo à ruptura com Portugal, encontraram seu primeiro
acabamento na atuação política dos grupos envolvidos no processo de disputa pela
direção a seguir46. Embora várias dessas questões fossem ter sua resolução somente na
44 Para uma apreciação historiográfica dessa nova forma de ver o Primeiro Reinado, cf. RIBEIRO,
Gladys S. & PEREIRA, Vantuil. "O Primeiro Reinado em revisão". In: GRINBERG, Keila & SALLES,
Ricardo (orgs): O Brasil Imperial, Volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009
pp.137-174, na qual os autores argumentam que muito do construído na primeira década do Império
perdurou Regência adentro. Na mesma linha analítica da construção da cidadania no Primeiro Reinado,
cf. PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado Imperial
Brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010. Para as disputas identitárias no período, cf. RIBEIRO,
Gladys Sabina. A Liberdade em Construção. Rio de Janeiro: Relume Dumará-FAPERJ, 2002.
45
Disputas que envolveram não apenas espaços institucionais, mas, principalmente, as ruas, com
panfletos, periódicos e articulações entre grupos econômicos e políticos distintos, cada um buscando
universalizar sua visão de mundo particular. Para essas disputas políticas entre diferentes tendências e
grupos nos anos críticos da dissolução do Império português e começo da independência, cf. NEVES,
Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (18201822). Rio de Janeiro: Revan: Faperj, 2003.
46
Exemplo desses grupos era o dos negociantes, que, durante todo o Primeiro Reinado, mantiveram
relações nem sempre cordiais com o Imperador. Cf. PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Negociantes,
30
década seguinte, ou mesmo no momento de consolidação do Império do Brasil, algumas
das perspectivas levantadas no Primeiro Reinado foram de fundamental importância
para os rumos seguidos a partir dali47.
Grande exemplo desse ponto pode ser visto exatamente no encaminhamento
dado à busca pela resolução de questões relativas à organização interna do Império e aos
negócios externos.
48
Internamente, com a reorganização da lógica do poder
territorialista, graças à suspensão das sesmarias, em 1822 – que era, também, elemento
central na disputa por referências no momento de emancipação49 –; com a lei de outubro
de 1828, que deu nova forma às Câmaras Municipais e aos Juízes de Paz; com a
promulgação do Código Criminal, em 1830. Externamente, com o encaminhamento da
disputa por soberania na região do Prata, especialmente na Cisplatina; com os tratados
de reconhecimento da Independência junto a Portugal – pelo qual abria mão o Brasil de
independência e o primeiro banco do Brasil: uma trajetória de poder e de grandes negócios. Tempo, Rio
de Janeiro, n. 15, pp. 71-91 (em especial p. 75-78).
47
Para as discussões na década de 1830, cf. BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e construção nacional
na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das et. ali. (orgs). História
e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006, p. 60-93 e
Projetos políticos e nações imaginadas na imprensa da Corte (1831-1837). In: DUTRA, Eliana &
MOLLIER, Jean-Yves (orgs.) Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida
política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 595-620; para o momento da consolidação do Império, cf.
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004. A distinção entre “Brasil
em construção” e “Império em consolidação” busca apenas apontar dois momentos distintos da trajetória
de formação do Estado-nação no Brasil. Não se pretende, com isso, considerar ambos os momentos como
blocos monolíticos, tampouco ignorar as relações e continuidade de um com o outro. A inspiração vem de
trabalhos que apontam a diferenciação entre o momento de fundação e o momento de consolidação do
Império. Cf. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit. e ARAÚJO, Valdei Lopes de. A
experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo:
Aderaldo & Rothschild, 2008. Para uma interpretação distinta, que prioriza as continuidades desde o
periodo colonial, bem como o peso da tradição sobre a formação do Estado imperial, cf. MARTINS,
Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho
de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. Em outra chave interpretativa, trabalhos
recentes que buscaram interpretar a consolidação do Estado imperial a partir de meados do século deram
menos importância ao Primeiro Reinado como um período de influência ou formação, focando sua
abordagem especialmente a partir da Regência, como podemos ver em DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto
Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005 e NEEDELL, Jeffrey. The Party of
Order: the conservatives, the state and slavery in the brazilian monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford
University Press, 2006. No trabalho de Miriam Dolhnikoff, o Primeiro Reinado aparece pontualmente na
contextualização de discussões sobre o federalismo que sirvam de base para o foco a partir da Regência.
Em Needel, o foco anterior à Regência sobre a província do Rio de Janeiro é em termos das relações
sociais e econômicas entre aqueles que constituiriam, mais tarde, o núcleo central do Partido
Conservador.
48
Os exemplos que seguem são baseados em MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a
trama dos interesses na construção da unidade política. almanack braziliense. Nº 1. Maio 2005, p. 8-26,
especialmente p. 23-25.
49
Os encaminhamentos de pedidos de confirmação da posse de sesmarias envolviam, naquele momento,
também a leitura dos lavradores sobre qual instância deteria o poder legítimo de atender aos seus
interesses, peça fundamental na construção da autoridade da Corte no Rio de Janeiro. Cf. MOTTA,
Márcia. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009, p.. 244246. Desnecessário recordar que a questão da terra no Império só será melhor encaminhada em 1850, com
a Lei de Terras.
31
interferir diretamente na independência de Angola, contrariando a proximidade histórica
entre as partes -; com o encaminhamento da solução do tráfico negreiro, pela lei
proibitiva que seguia ao término do prazo conferido pelos acordos com a Inglaterra,
direcionando a continuidade do reabastecimento negreiro a outro patamar nos anos
1830.50 Em todos esses eventos estava em jogo a construção de uma determinada autoimagem do Brasil independente, sua inserção no conjunto das nações civilizadas e,
também, o fortalecimento de uma determinada experiência histórica que implicava
interpretar aquele tempo e situá-lo na trajetória mais ampla da história das civilizações.
Considerando a importância das narrativas históricas para a construção dessa
auto-imagem e dessa inserção, cabe, primeiramente, questionar quais foram os
significados que a palavra “história” teve para os políticos do Primeiro Reinado.
Desenvolver essa questão inicial implica dois exercícios: 1) questionar quais eram as
principais referências historiográficas que embasavam a visão de mundo histórica da
sociedade política naqueles anos (ou seja, quais eram os principais autores presentes nos
discursos políticos entre 1823 e 1829 51 ), a partir de um mapeamento das citações e
análise das formas pelas quais tais autores eram utilizados nas abordagens sobre o
passado; 2) questionar quais eram os sentidos predominantes conferidos ao conceito de
“história” naqueles anos. É disso, em especial, que trataremos nas próximas páginas.
1.1) Autores e presenças
Comecemos pelo mapeamento das principais referências autorais que
embasaram a experiência histórica dos sujeitos envolvidos na construção política do
Império do Brasil. Tal mapeamento levará em conta dois grupos principais de autores:
1) aqueles tratados, ao menos uma vez, por ao menos um agente político, como
historiadores e/ou mencionados explicitamente como autores de obras de
história;
2) aqueles tratados “apenas” como escritores, como inspirações políticas, mas cujas
obras possam ter tido influência também sobre a formação de visões de mundo a
respeito de temas específicos do presente e do passado.
50
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
51
Optamos por encerrar esta análise em 1829 por considerar que, ao menos para as questões discutidas
nesta tese, o ano de 1830 – posto ainda estar no interior do Primeiro Reinado – faz parte de um outro
momento da experiência histórica do Brasil em construção, momento este que adentrará a década de
1830. A análise desse segundo momento do Brasil em construção será deixada para trabalhos futuros.
32
Tal divisão baseia-se numa hierarquia criada a partir dos objetivos deste
trabalho: se o autor em questão foi ao menos uma vez indicado como “historiador” ou
autor de obra histórica, então ele entra no primeiro grupo; se o autor em questão em
nenhum momento foi citado como historiador, mas foi ao menos uma vez utilizado para
fortalecer uma argumentação, entra, então, no grupo 2. Cabe ressaltar, porém, que em
todos os casos os autores foram citados em contextos de construção de interpretações
ligadas à experiência histórica dos parlamentares, fosse para construir interpretações
sobre elementos passados, fosse para construir paralelos com a situação presente, tanto
da realidade social brasileira quanto de realidades sociais estrangeiras, fosse, ainda, para
desenvolver concepções generalistas sobre transformação temporal, mudanças históricas
etc. Em suma, os autores levantados nos gráficos que seguem são aqueles que serviram
de embasamento para a construção das concepções que discutiremos nos capítulos
seguintes – embora, é claro, não necessariamente todas as concepções a serem
trabalhadas tenham sido articuladas a partir da base de algum dos autores apontados
neste capítulo.
Foram excluídos, assim, outros autores citados apenas por retórica, para efeito
discursivo, como ornamento, sem qualquer articulação de ideias ou referência autoral
para fortalecer um argumento, ou sem qualquer referência ao tema em discussão.
Também foram excluídas as referências religiosas que, ao invés de servirem como
partes constituintes à argumentação em questão, tenham sido levantadas apenas para
efeito discursivo. Embora considere que esse tipo de citação pontual também possa ter
tido alguma influência na construção da visão de mundo dos agentes políticos, sua
interferência direta seria secundária frente à predominância dos demais tipos de citação
para a formulação de visões coletivas de mundo no seio da discussão.
O objetivo que orienta a divisão em grupos é duplo. Em primeiro lugar, tentar
verificar quais eram as auto-concepções dos membros da sociedade política do Primeiro
Reinado a respeito do que seria um “historiador” naquele momento, no calor das
discussões. Em segundo lugar, buscar as influências centrais de autores que, mesmo não
tendo sido classificados como “historiadores”, possam ter influenciado visões sobre a
história, nem que fosse pela montagem conceitual de lógicas de abordagem do passado,
do presente e do futuro.
Por fim, cabe uma ressalva. O próprio tipo de documentação trabalhada, como
dito na introdução deste trabalho, possui limitações que interferem diretamente neste
tipo de exercício. Não pretendemos, aqui, considerar que as referências que seguem
33
correspondem à totalidade daquelas proferidas à tribuna. Os limites de nosso alcance
encontram-se nos registros taquigráficos, que, não obstante possam oferecer um
panorama das discussões travadas na Assembleia, deixam a desejar em certas ocasiões.
Dessa forma, mais que o número pontual de citações, é a relação entre os autores que
nos interessa aqui.
Feitas essas considerações, passemos aos dados. Para o período 1823-1829,
temos a seguinte classificação:
Gráfico 2.1: Historiadores e autores de obras de história mencionados
16
14
12
10
8
6
4
2
0
Tácito
Hume
Gibbon
João de
Barros
Southey
Tito Lívio Rocha Pitta Outros
Fontes: AAC (1823), AS (1826-1829), ACD (1826-1829).
34
Gráfico 2.2: Outros autores mencionados
250
200
150
100
50
0
Montesquieu
Bentham
Smith
Benjamim
Constant
Burke
Outros
Fontes: AAC (1823), AS (1826-1829), ACD (1826-1829).
A observação de ambos os gráficos permite, inicialmente, algumas
considerações de ordem geral.
Em primeiro lugar, podemos perceber, relacionando ambos os gráficos, a
disparidade entre referências diretas a autores definidos ou indicados como
“historiadores” ou “escritores de História” e aqueles outros definidos como
“publicistas”, “filósofos” ou mesmo sem uma definição precisa. O somatório dos cinco
principais autores do gráfico 2.2 supera em muito o conjunto de todos os personagens
mencionados no gráfico 2.1. Mais precisamente, um único autor do segundo gráfico,
Montesquieu (38), encontra-se em equivalência junto à totalidade de sujeitos do
primeiro gráfico (39). Se invertermos a individualidade, podemos ver que, com exceção
de Burke, todos os principais autores isolados do gráfico 2.2 superam qualquer nome
solitário do gráfico 2.1, inclusive o principal nome de historiador referenciado, Tácito.
Esses indícios apontam que as principais referências intelectuais na construção da
experiência histórica nas discussões parlamentares não eram aquelas consideradas
“historiadores”, ainda que levemos em conta os critérios dos próprios membros da
sociedade política em discussão para definir o que constituía um “historiador”. Ou, ao
menos, apontam que a principal característica intelectual da maior parte dos autores que
embasavam a constituição da experiência histórica daqueles parlamentares não era a de
ser “historiador”, como, ao contrário, era posto logo em destaque nos momentos em que
os sujeitos do gráfico 2.1 eram referenciados.
35
Essa conclusão é reforçada ainda mais pela pulverização nas referências a
autores no gráfico 2.2, indicada no alto número da categoria “outros”. Essa categoria
corresponde a nada menos do que 128 autores diferentes, aproximadamente 80% dos
quais mencionados apenas uma vez ao longo de todo o período. Esse número pode
significar um duplo movimento no uso de citações: por um lado, a pulverização de
autores indica a variedade de que dispunham alguns deputados e senadores para
fortalecer seus argumentos em determinados momentos de discussões parlamentares;
contudo, por outro lado, a distância entre aqueles nomes com maior presença e o
restante mostra que, não obstante a variedade, os argumentos mais usados
concentravam-se em figuras bem repetitivas.
Em segundo lugar, contrastando os nomes no interior de cada gráfico, podemos
ver diferenças. No 2.1, por exemplo, vemos a presença, para concepções mais amplas de
“história geral”, tanto de autores como Tácito e Tito Lívio até de escritores mais
próximos da contemporaneidade, como Hume ou Gibbon. Para a história do Brasil,
considerada em sua anterioridade como história de Portugal, são indicados desde um
João de Barros ou um Rocha Pitta até, mais recentemente, Southey. No interior da
categoria “outros” do gráfico 2.1, no qual incluímos autores referenciados apenas uma
vez, temos a presença de Josefo e Heródoto, de um lado, e de John Millar, historiador
escocês do século XVIII, do outro. A presença desses autores antigos e modernos, no
conjunto daqueles sujeitos definidos nas discussões como “historiadores”, mostra bem
como os homens que viveram aquelas primeiras décadas do XIX encontravam-se na
fronteira de um regime de historicidade para outro, momento no qual elementos de uma
concepção “antiga” de história articulavam-se com elementos considerados “modernos”
na estruturação dessa área do saber.
A coisa muda quando olhamos o gráfico 2.2. Nele, percebemos uma
predominância completa de autores modernos. Alguns poucos autores de um regime
antigo, como Santo Agostinho, ou ainda mais antigos, como Homero, são tão pontuais
que diluem-se na categoria “outros” – que abarca, também pontualmente, autores
modernos em muito maior quantidade, como Guizot, Rousseau etc. Que esses autores
não sejam claramente identificados como “historiadores” não tira, como dito, sua
influência sobre a construção de interpretações sobre o passado e o presente das
sociedades, inclusive a brasileira. A questão, portanto, é outra: a necessidade política de
compreensão de um mundo em cada vez mais acelerada transformação cada vez deixa
menos espaço para o apelo à tradição clássica e obriga a uma “atualização” das
36
referências junto aos autores que embasam uma perspectiva contemporânea das
transformações. A permanência do topos da historia magistra vitae não impede, sequer
diminui, o ímpeto da necessidade de entender um presente que se amplia e avança sobre
o passado. A ideia crescente de rompimento com o que veio antes, a partir da percepção
de uma “nova época”, uma “época de luzes”, produtora de um novo tempo, como
veremos no capítulo três, sintetiza o tempo passado em interpretações cada vez mais
concisas, criando-se conceitos que dão conta de todas as camadas e nuances do já
acontecido. O tempo presente, porém, complexo demais para abrigar-se sob sínteses
interpretativas, apela a um maior manancial de autores que possam dar conta da
explicação. O passado recente se sobrepõe, dessa forma, ao passado distante, posto que
os fatos recentes explicavam o mundo em que os agentes se encontravam melhor do que
os clássicos do passado. Inverte-se, na política, a lógica que presidia a produção de
narrativas históricas acadêmicas, como no próprio IHGB mais tarde, nas quais a história
recente era desconsiderada em nome da história distante – lógica reforçada pela ideia de
“arca do sigilo”.52 A história na política, diferentemente da lógica da academia que se
consolidaria a partir de meados do século XIX no Brasil, aproximava o presente e o
passado recente da interpretação de mundo. Ao menos naquele momento de
efervescência no Brasil em construção.
Isso fica mais claro quando somamos os dados de ambos os gráficos e
destrinchamos o resultado para perceber como acontece a distribuição em cada espaço
do legislativo no Primeiro Reinado:
52
MALEVAL, Isadora Tavares. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o (não) lugar da história
do presente. In: Ars Historica. v.1, n.2, jul-dez 2010, p. 49-59, especialmente p. 54; GUIMARÃES, Lúcia
Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, v. 156, nº 388, p. 459-613, 1995.
37
Gráfico 2.3: Autores na Assembleia Constituinte
40
35
30
25
20
15
10
5
0
Fonte: AAC, 1823
Gráfico 2.4: Autores no Senado
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Montesquieu
Smith
Tácito
Bentham
Outros
Fonte: AS, 1826-1829
38
Gráfico 2.5: Autores na Câmara dos Deputados
120
100
80
60
40
20
0
Montesquieu
Benjamin
Constant
Bentham
Rousseau
Outros
Fonte: ACD, 1826-1829
Podemos perceber como apenas no Senado do Império a presença de um autor
antigo equipara-se à dos modernos, o que nos leva a pensar que a tensão entre influência
da escrita antiga e da escrita moderna, nas interpretações daquele tempo vivido e
experimentado, talvez não se apresentasse da mesma maneira em todos os ambientes. O
Senado do Império, espaço não apenas mais ligado ao Imperador – afinal, por ele
escolhido a partir de lista tríplice - ,mas, também, cuja auto-imagem o projetava a uma
perspectiva mais conservadora da política – espaço de maior moderação e freio às
disputas passionais da Câmara, segundo se considerava à época 53 – era também onde
mais se arrastava a influência da concepção antiga, mais ligada a uma perspectiva
histórica arrastada que focava não apenas as transformações em velocidade no presente,
mas também a perenidade do tempo e a busca pela sua permanência – em grande parte
devido à atuação de José da Silva Lisboa, como veremos à frente. A Constituinte,
porém, momento de acaloradas discussões a respeito do Brasil que se buscava construir,
e a Câmara dos Deputados, caixa de ressonância mais aberta a críticas sistêmicas à
política Imperial (ainda que dentro de certos marcos para tal crítica), mostravam-se
espaços de maior presença de autores modernos que pudessem oferecer interpretações
viáveis para as transformações da História recente e do presente.
Não podemos, evidentemente, pensar que a influência desses autores se dá por
adesão imediata às suas ideias. Embora construído numa lógica civilizacional que
53
Discuti brevemente a questão na minha dissertação de mestrado. Cf. ESCOSTEGUY FILHO, João
Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de
mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010, p. 80-85.
39
mantinha os olhos na Europa, a incorporação de ideias e influências era constantemente
filtrada pelos pés na América. Sendo assim, mesmo os autores mais referenciados nos
anais não constituem uma aplicação direta de pensamentos à realidade do Império.
Podemos dizer que o movimento de influências forma-se numa dupla dimensão:
por um lado, ideias e linguagens político-historiográficas eram utilizadas para embasar e
fortalecer visões de mundo; por outro lado, as ideologias formuladas eram construídas
também na recusa, refutação, reinterpretação e diálogo com essas linguagens. A
dimensão que buscava conectar o Império à trajetória das “grandes civilizações”
mantinha a proximidade autoral; a dimensão que tratava das particularidades do Império
necessitava de uma formulação de mundo marcada por certa originalidade.
Verifiquemos melhor essa dupla dimensão.
Observando-se os três últimos gráficos, podemos perceber que apenas um
punhado de autores ocupa o topo em volume de referências. São eles: Montesquieu,
Edmund Burke, Adam Smith, Jeremy Bentham, Benjamin Constant, Jean-Jacques
Rousseau e, como outsider no conjunto temporal, Tácito. Boa parte da referência a estes
é pontual. Isto é, aborda-se um autor, ou alguma obra sua, para fortalecer algum ponto
de vista ou opinião. Em diversos outros momentos, porém, os autores são utilizados de
maneira mais aprofundada, partindo-se de algumas ideias-chave para construir uma
interpretação mais ampla do “mundo civilizado” e da relação do Império com este.
Na Constituinte e no Senado, Montesquieu, Smith, Burke e Bentham
constituíram a coluna central dos autores mencionados nos debates parlamentares. À
exceção de Burke, são mencionados, ao menos uma vez, em todos os anos indicados.
Quando mencionados, diversas de suas ideias são debatidas e discutidas. Aparecem
fundamentalmente em debates a respeito da organização administrativa, legal, política e
econômica do Império. São, portanto, as balizas autorais a definir o que era considerado
essencial à construção do Estado imperial independente, em especial os dois
primeiros54.
O autor de Do Espírito das Leis, em particular, foi constantemente trazido à tona
nas discussões como caminho para a construção de interpretações gerais de mundo,
como autor de fórmulas a servirem de guia para a construção do arcabouço político-
54
Bentham foi mais usado para questões pontuais, em especial questões de organização da assembléia,
enquanto Burke é mais citado na Constituinte do que posteriormente. Por outro lado, Smith e
Montesquieu foram envolvidos inclusive em discussões conceituais. Por isso, concentrarei a análise
nesses dois.
40
administrativo no Brasil. O deputado Carneiro 55 , por exemplo, na Assembleia
Constituinte, em discussão sobre a importância da educação, logo após afirmar estar
persuadido de que “o plano da educação [a ser adotado] deve ser também relativo ao
princípio de cada governo e sua constituição política”, não podendo ser a mesma
educação em um “governo livre, ou em um governo absoluto, na pura aristocracia, ou
democracia, ou na monarquia temperada”, indica como gostaria que, “para prosperidade
da geração que se educa e para segurança e permanência do sistema que havemos
proclamado que a mesma constituição, ou um catecismo político, e ainda legal, fizesse
parte da assídua instrução da mocidade”. Afinal, de tal adoção “nasceria uma maior
estabilidade nas nossas instituições, e um maior respeito a certas leis, que por serem
pouco familiares e conhecidas muitas vezes se quebrantam”.56
“Esta doutrina é corrente, e não sei como ela tenha podido parecer estranha”,
afirma. E, então, usa Montesquieu para sustentar sua fala:
Montesquieu diz muito bem que “se um povo em geral tem um
princípio, as partes que o compõem o terão também, e que as leis de
educação serão pois diferentes em cada espécie de governo”. E assim
deve necessariamente ser, porque no mundo físico, como no moral,
todos os entes devem ser ligados por nexos apropriados aos fins do
sistema de que eles fazem parte, [senão] aliás seguir-se-há a dissolução
e a desordem.57
As ideias de Montesquieu aparecem, em certas circunstâncias, como conjunto de
fórmulas a serem aplicadas em determinados momentos, com a expectativa de
possibilitar esperados resultados. A não aplicação das fórmulas poderia trazer desgraças,
nenhuma maior, naquele momento, do que a possibilidade de dissolução do Império e
fortalecimento da “anarquia”. Num momento em aberto, no qual o conteúdo dos
elementos em discussão precisava ser rapidamente definido (por exemplo, o conteúdo
de palavras como “liberdade” – mesmo que num sentido econômico), esse tipo de
fórmula poderia servir como garantia da permanência de experiências consideradas
vitoriosas alhures sobre os riscos do excesso de provisoriedade. Por isso José da Silva
Lisboa remeteria a Montesquieu para lembrar que
Todos os políticos concordam em que o espírito de liberdade extrema é
não menos nocivo que o da restrição extrema; e o escritor do Espírito
Nos anais consta apenas o nome “Carneiro”, não sendo possível identificar se era um dos irmãos
Carneiro de Campos ou se Carneiro da Cunha.
56
AAC, 1823, livro 3, p. 180.
57
Idem.
55
41
das Leis até com razão diz que nem tudo se deve reformar e que devem
ser graduais ainda as reformas justas para serem profícuas e sólidas. 58
Adam Smith, da mesma forma, poderia permitir leituras que generalizassem
casos históricos particulares a ponto de transformarem-se em fórmulas de ampla
aplicabilidade. Como podemos perceber em um exemplo envolvendo Silva Lisboa,
numa discussão sobre a criação de universidades. A discussão versava sobre o melhor
lugar para começar a expansão de elemento tão fundamental para a difusão das luzes
pelo Império: se no interior do Brasil ou se no litoral. Já contendo a carga que,
posteriormente, nos debates não apenas do Brasil, mas da América, desdobrar-se-ia na
questão do litoral x sertão59, afirma o futuro visconde de Cairu: “é bem notado na obra
clássica do já citado mestre da riqueza das nações, que, em todos os países marítimos, a
civilização, ciência e riqueza sempre começaram do litoral para o central: o contrário é
ordem inversa da natureza”60.
É Silva Lisboa, aliás, cuja conexão com a obra de
Smith já foi amplamente discutida pela historiografia61, quem mais se refere ao autor
inglês nos anos mencionados.
A fórmula autoral de Montesquieu e Smith, contudo, não brotava do nada, mas
de análises localizadas histórica e culturalmente que, sendo extrapoladas para outras
situações, poderiam servir de base para a direção política. De uma análise do autor
francês sobre a Turquia, por exemplo, nascem comparações desde sobre produtividade e
eficiência, que é transposta para discussão sobre lei de mineração no Império 62 , até
análise do papel de rebeliões para a destruição de despotismos63, mostrando que pontes
poderiam ser construídas entre diferentes contextos, ou mesmo distintos momentos
históricos.
Não que todos concordassem com a aplicação imediata, ou mesmo com a
infabilidade do autor. Pelo contrário: trazer um nome de peso para sustento de um
posicionamento poderia gerar uma crítica que lembrasse a necessidade de filtragem para
aplicação das ideias no contexto local – o que vimos considerando “pés na América” –
ou mesmo a desqualificação do autor, por ser indicativo de desgraça para o Brasil.
58
AS, 1827, Sessão em 12 de maio 1827, p. 63. Da mesma forma, em outra ocasião Silva Lisboa
lembraria Montesquieu, afirmando que “o genuíno espírito de liberdade não se acorda com o capricho de
uma liberdade extrema.” Cf. AAC, Sessão em 20 de outubro 1823, p. 144.
59
SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e
Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, Introdução e caps. 1 e 2.
60
AAC, 1823, livro 6, p. 206.
61
Em 1827, Cairu declara já conhecer “A Riqueza das Nações” há 40 anos, estando convencido da
verdade da sua doutrina. AS, 1827, 24 de julho, p. 55.
62
AS, 1826, livro 4, p. 50.
63
AS, 1829, Sessão em 09 de maio 1829, p. 102.
42
Bentham, por exemplo, junto com Benjamin Constant, seria alvo da crítica de Silva
Lisboa em discussão sobre lei de liberdade de imprensa, em que afirma:
Eu opino que tais autoridades [Constant e Bentham] nada valem em
objetos sobre que tem havido tanta discórdia de opiniões entre os
publicistas e os governos, ainda de Constituição MonárquicoRepresentativo. (...) Bentham, ainda que jurisconsulto de muito engenho
e saber, é notado pelos sábios de seu país por confuso, singular,
paradoxista, e o respectivo governo não tem adotado as suas opiniões de
ideal perfeição da Sociedade Civil; e é estigmatizado como o Cabeça
dos radicais de Inglaterra. 64
O mesmo Silva Lisboa, que aliás já havia declarado ser Montesquieu o seu
65
farol , aponta também falhas no autor francês, cuja obra teria reprovado moinhos
d´água “segundo o erro popular que as máquinas [é] que abreviam o trabalho e
dispensam braços, tiram emprego e pão ao povo” 66.
Em outra ocasião, numa discussão sobre livre estipulação de juros, Carneiro de
Campos responde a um argumento de Silva Lisboa baseado em Montesquieu e outros
autores. Afirmara Cayru, então, contra o primeiro artigo da lei, que permitia nos
empréstimos qualquer estipulação de juros, que tinha por si, “além dos legisladores dos
mais famosos estados, a Montesquieu, Smith, e o parlamento britânico”. E afirma:
Quando se fez a primeira leitura do projeto, o nobre senador [Carneiro
de Campos] citou a Montesquieu, notando os males que a proibição da
usura causa na Turquia. Porém este escritor só reprova a absoluta
proibição do interesse da moeda, dizendo ser a causa de se estabelecer
horrorosa usura no império romano e nos estados maometanos,
acrescentando a reflexão que a lei extrema no bem faz nascer mal
extremo, e que obriga ao mutuante a exigir maior interesse para se
indenizar do risco de contravenção à lei. 67
Em sua resposta, Carneiro de Campos retoma os pilares apresentados por
Lisboa:
Fundou (...) o ilustre senador a sua oposição nas autoridades de
Montesquieu, Smith, e no exemplo do parlamento de Inglaterra, (...)
Mas que força têm estes argumentos? Todos sabemos que pouco tem a
autoridade de doutores em objetos de puro raciocínio; quando a cousa
64
AS, 1829, Sessão em 09 de maio, p. 101-102. As referências a Bentham e Constant, feitas por
Caravellas e Albuquerque a partir da indicação de Cayru, não foram registradas nos anais, não sendo
possível verificar como os nomes são primeiro trazidos à discussão.
65
“tenho por farol ao escritor do Espírito das Leis, o qual bem adverte aos legisladores de guardarem,
quanto for possível, simplicidade na legislação, porque, multiplicando-se particularidades e exceções, se
destrói a força da regra e, segundo ele diz – uns detalhes trazem outros detalhes.” AAC, 1823, livro 5, p.
260.
66
AS, 1826, 11 de agosto, p. 54.
67
AS, 1826, 01 de julho, p. 4.
43
admite demonstração clara, como no nosso caso, eu quero antes guiarme pela razão que Deus me deu, do que pela dos outros, por mais
celebrados que sejam.68.
E complementaria: “Montesquieu, não obstante ser um grande gênio, era
hóspede na ciência econômica, que não existia no seu tempo”69
Vejamos mais um exemplo, este um pouco distinto. O senador Vergueiro,
durante discussão sobre proibição do estabelecimento de morgados, ao invés de
argumentar contra a competência do autor, faz um questionamento acerca do contexto
histórico de produção das ideias de Montesquieu: “Já se respondeu ao argumento que se
fez com as ideias de Montesquieu; ele escreveu segundo as luzes do seu século; hoje
estão muito mais adiantados, e a sua autoridade, aliás, de grande peso em outros pontos,
neste não nos pode servir”70. A lógica de Vergueiro diz muito a respeito da forma pela
qual deputados e senadores lidavam com temporalidades diversas daquela em que se
consideravam inseridos.
A situação não muda quando passamos à Câmara dos Deputados. Nela, também
Montesquieu, Constant e Bentham aparecem com destaque, e também encontramos a
generalização de análises que, pretendendo ultrapassar os espaços onde foram
produzidas, pretendem abarcar o Império na lógica construída por aqueles autores
citados.
Assim, em discussão sobre projeto de lei para dotação do Imperador, o deputado
pelo Pará, Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, defende um valor para o
projeto que seja compatível com o “decoro e grandeza, que deve rodear a augusta
pessoa do imperador”, e que atenda bem à forma de governo. Nas repúblicas, diz,
“assenta mui bem a simplicidade e frugalidade do chefe da nação”; essa simplicidade,
porém,
seria deslocada, e anômala, em um governo monárquico, cujo princípio,
como diz Montesquieu, é a honra, isto é, o amor das preferências e
distinções, que supõe necessariamente o maior esplendor e aparato em
torno do chefe do estado, como a fonte, donde emanam todas essas
distinções.71
A especificidade do caso brasileiro em discussão é diluída na generalidade de
uma fórmula autoral considerada passível de universal aplicação no discurso do
68
AS, 1826, 01 de julho, p. 9-10.
Idem, p. 10.
70
AS, 1829, 11 de julho, 91.
71
ACD, 1827, 28 de julho, p. 295.
69
44
deputado. Os contextos que levanta para provar o princípio aplicável aos governos
republicanos, mas não aos monárquicos, são tirados da história, mas desprendidos de
historicidade, servindo apenas de enumeração para a afirmação geral.72
Foi o deputado Odorico, em resposta, quem trouxe o exemplo geral à
especificidade, conferindo alguma historicidade (embora ainda dentro de uma lógica de
fórmula autoral aplicável a modelos) à referência a Montesquieu. Lembra Odorico que,
quando Montesquieu diz que o principio de obrar nas monarquias é a
honra, fala das monarquias puras, e nunca teve em vista as monarquias
representativas. Nestas há também o princípio popular; e por tal
princípio o fausto monárquico é temperado com a economia dos
governos democráticos. (...) Demais, esse princípio da honra, de que
trata Montesquieu, além de não tomar este autor a palavra de honra no
seu sentido em que o toma o Sr. arcebispo, tem achado muitos que o
combatam e entre os escritores mais acreditados, como Bentham e
Tracy.73
Na mesma discussão, o deputado Vergueiro reforça a necessidade de
contextualização da obra à realidade e ao tempo, tecendo mais críticas à argumentação
do arcebispo:
argumentou-se com Montesquieu, não sei para que. Pretende-se (e sem
boa aplicação) cobrir um grande erro com um grande nome. A
Montesquieu é desculpável adotar a honra como base das monarquias,
dando a virtude às repúblicas; talvez se ele escrevesse algum tempo
depois, retratasse sua arbitraria opinião. 74
Em outra discussão, o deputado Costa Aguiar restringe a aplicabilidade das
ideias do filósofo francês. Debatendo-se projeto para o fim dos morgadios, e analisando
as relações entre a mesma e a aristocracia, Costa Aguiar diz:
Eu não cansarei esta augusta câmara com a história dos morgados e dos
males que eles têm causado (...). Ela não pode quadrar ao Brasil,
repugna inteiramente com as ideias do tempo, e apenas poderia servir
para plantar entre nós a aristocracia, e com ela os males inseparáveis de
semelhante ordem de coisas. É pois isto o que repugna às luzes do
“Eu gosto de ver um Cincinnato lavrando o seu pequeno campo com as mãos vitoriosas, que tantas
vezes salvaram Roma; não me ofendem os legumes, que Curio estava preparando para sua comida,
quando foi surpreendido pelos embaixadores de Pirro, que lhe traziam ricos presentes; admiro finalmente
um pensionário da Holanda passeando a pé pela Haia apenas com um pajem atrás de si, ao mesmo passo
que humilhava a França, o conciliava o respeito de toda a Europa; esta simplicidade está de acordo com a
natureza e constituição do governo republicano”. In: Idem.
73
Idem, ibidem. Na sequência, o arcebispo retruca dizendo que trouxera Montesquieu com o intuito de
corroborar a ideia de que o fausto e o esplendor são próprios da monarquia, e que não se lembrava da
distinção feita por Odorico entre monarquias puras e representativas, já que “há muito tempo” que não lia
esse escritor.
74
Idem, p. 297.
72
45
século e às ideias atuais. (...) Deixemos para a velha Europa semelhante
instituição; já se passaram esses tempos em que Montesquieu dizia que
a moderação era o princípio e o elemento da aristocracia; melhor julgou
Voltaire quando ao contrário avançou que a aristocracia não era fundada
sobre a moderação e só sim sobre o orgulho, a ambição e desejo de
dominar. (Apoiado.). 75
Seguindo a perspectiva de Costa Aguiar, Montesquieu não estaria errado em
associar aristocracia a moderação. A questão é que essa análise não cabia mais nos
tempos atuais, para os quais outro moderno, Voltaire, ofereceria análise mais
convincente. O deslocamento geográfico também contribuía: não necessariamente uma
instituição europeia faria sucesso caso implementada no Brasil, e era preciso verificar a
precisão da análise dos autores antes de transferir suas ideias de modo automático para
outras realidades. O “apoiado” registrado pelo taquígrafo mostra manifestações de
concordância com a visão de Costa Aguiar.
Mas se a aplicabilidade de instituições modernas era algo a ser discutido, a
autoridade dos modernos sobre o passado mais distante não era um elemento posto à
prova. O deputado Monteiro de Barros, em discussão sobre resolução a respeito das
eleições e sobre o caráter do voto, se público ou secreto, afirma:
A questão versa sobre saber-se qual é mais útil, a votação pública ou a
votação secreta. Cada uma dessas opiniões tem sido sustentada por
autores mui notáveis. Montesquieu tratando do império romano, diz que
um dos princípios da desmoralização daquele povo, se originou das
votações que se faziam secretamente; e por isso se ia votar às vezes em
um homem inteiramente obscuro. Outros autores porém, e de grande
nota seguem o contrário. Entre outros Jeremias Bentham, depois de ter
apresentado de um e de outro lado as razões em que se apóiam os dois
métodos, decide-se pela votação secreta, e diz que ele preferiria a
votação por escrutínio nos lugares onde a oral não estivesse
suficientemente estabelecida. Eu também presentemente me inclino a
segui-lo nesta parte, porque assim o exigem as nossas atuais
circunstâncias.76
Nota-se que, não obstante Montesquieu seja trazido à discussão para corroborar
um exemplo histórico da decadência do mais famoso Império do ocidente, cadinho de
experiências para todos os séculos vindouros, o francês é “derrotado” por Bentham no
argumento de autoridade. O segundo autor apresenta opinião comparável à grandeza do
ACD, 1828, 09 de junho, p. 67. O autor completaria: “Eu não falarei nos tempos mais próximos da
nossa idade; quem tem conhecimento da história moderna, não pode ignorar semelhantes fatos, não
convém portanto ao Brasil semelhante instituição hereditária: o que lhe convém é certamente a
aristocracia não de classe, mas sim a de graduações e interesses, a do merecimento contra a qual não
militam as razões expedidas, porque a qualquer está franca a porta para a obter sem o risco de inimigos”.
76
ACD, 1828, 23 de maio, p. 150.
75
46
primeiro, porém mais aplicável às “nossas atuais circunstâncias”. A autoridade sobre a
história de Roma não é contestada; a aplicabilidade do exemplo, porém, o é. A
modernidade apresentava circunstâncias com as quais a antiguidade não se deparara.
A exceção, na análise da Câmara dos Deputados, fica pela maior presença de
Rousseau. Um dos autores mais referenciados neste espaço é menos presente na
Constituinte e no Senado, mas nem por isso sua figura deixa de passar por um
tensionamento que o coloca entre o papel de arauto da destruição, de um lado, e autor
moderno equiparável aos demais, de outro. Se os autores mencionados até aqui têm em
comum o fato de serem igualmente respeitáveis do ponto de vista das ideias,
restringindo-se as críticas à maior ou menor pertinência de sua aplicabilidade,
Rousseau, por outro lado, ultrapassava o limiar intelectual e adentrava o grupo de
autores perigosos.
Exemplo disso podemos vislumbrar na Constituinte. Ali, em discussão sobre lei
de criação das universidades, Silva Lisboa pronunciou:
Pode algum governo tolerar que em quaisquer aulas se ensinem, por
exemplo, as doutrinas do Contrato Social do Sofista de Genebra, do
Sistema da Natureza e da Filosofia da Natureza dos ímpios escritores,
que têm corrompido a mocidade, que forma a esperança da nação, para
serem seus legisladores, magistrados, mestres e empregados na igreja e
no estado? Nunca, nunca, nunca.77
A composição curricular dos espaços formadores da “esperança da nação” não
deveria, na visão de Silva Lisboa, incluir autores como Rousseau ou o Barão de
Holbach, “ìmpios escritores” que corromperiam a mocidade. A tripla negativa, cuja
ênfase foi registrada pelo itálico presente na letra do taquígrafo, pontuava toda a
negatividade que encobria tais autores.
No Senado, no momento de discussão da lei sobre liberdade de imprensa – um
dos mais longos e proeminentes temas discutidos naquele espaço ao longo do Primeiro
Reinado –, o perigo que tais autores ofereceriam seria analisado pelos senadores.
Carneiro de Campos, por exemplo, assim se pronunciaria:
Tenho sete obras de J. J. Rousseau; isto para mim não é de perigo,
porém, para o homem que o não conhece bem ainda, e cuja opinião é do
livro, que está lendo, não pode ser útil porque o induz a variar de
opinião conforme o que lê. E pergunto eu: esses princípios não podem
77
AAC, 1823, 27 de outubro, p. 207.
47
trazer consigo conseqüências funestas ao sistema constitucional?
Podem, ninguém o negará;78
Carneiro de Campos, futuro Visconde de Caravellas, baseado nessa ideia, ainda
continuaria:
portanto, a minha distinção seria esta: todas as vezes que se tratasse de
obra; por exemplo o livro que tivesse para cima de 100 páginas, este
poderia circular; o Povo não o lê, nem quer que se lhe leia um livro
assim, falando geralmente; lê folhas avulsas, e não livros; mormente se
são dos que exigem mais aturada reflexão; portanto o livro pode muito
bem passar; porque à liberdade de imprensa deve dar-se toda a
extensão; o perigo está em folhas avulsas, e periódicos; estas vão
ensinando, e quando se apresenta já o sintoma, é tarde para se
remediar.79
A crítica recaía sobre folhas curtas (os “papelinhos”) e periódicos, pois estes,
sim, divulgariam ideias perigosas na ótica de Carneiro de Campos. Os livros, porém,
ofereceriam um perigo mais restrito, não sendo lidos por todos. Mesmo nessa ótica,
porém, um segundo filtro seria necessário: aquele que impedisse a indução à mudança
de opinião, filtro que pessoas como Carneiro de Campos teriam, o que lhe permitia ler
Rousseau sem qualquer dano. Filtro que Almeida e Albuquerque definiria melhor em
sua resposta:
a primeira vez que peguei em João Jacques Rousseau, assentei que não
tinha resposta, e depois já conheci o seu erro; e depois um homem de
letras que conhece que a ordem é o maior benefício que pode ter um
Estado, e que ele pode ter, nunca avança a querer destruir, salvo se é
mao ho [sic].80
O mesmo Almeida e Albuquerque que, antes de ser senador, defendia na Câmara
dos Deputados, em discussão sobre a criação de cursos jurídicos, o seguinte:
Eu devo lembrar a esta augusta câmara, que no tempo em que se
ensinava na universidade de Coimbra que o poder dos reis vinha de
Deus, e outras semelhantes tolices, leia-se Mably, Voltaire, Rousseau e
outros muitos escritores, no entanto, que o governo não só mandava que
os estudantes aprendessem pelos tais celebres compêndios, mas até
punha proibição destes livros, que chamava perigosos. 81
A primeira fala do deputado trata Rousseau como um autor que pode oferecer
perigo, posto estar com erro, salvo se lido pelo homem de Estado preocupado com a
78
AS, 1829, 09 de maio, p. 93.
Idem, ibidem.
80
Idem, p. 101.
81
ACD, 1826, 11 de agosto, p. 118.
79
48
ordem como maior benefício. A segunda, proferida três anos antes e em outro espaço,
afirma que Rousseau, como outros autores, eram considerados perigosos por um
governo que, no tempo da escuridão, ensinava que o poder real vinha de Deus – o que,
podemos sugerir, transforma os autores subversivos da ordem em construtores do tempo
moderno, onde se sabe (poderia lembrar o próprio Albuquerque) que o poder dos reis é
sustentado pelo povo. Os “compêndios” criticados na fala acima são sugeridos pelo
projeto em discussão como material básico de estudo, o que provoca a recusa de vários
deputados – dentre os quais Albuquerque, que associa os mesmos à ação do poder
absolutista.
Almeida e Albuquerque não seria o único a considerar mais confortável a defesa
de Rousseau na câmara. Em discussão de projeto vindo do Senado sobre naturalização
de estrangeiros, nas considerações gerais, Bernardo Pereira de Vasconcelos menciona
“João Jaques Rousseau, a quem reputo por infalível em política”82 para construir sua
argumentação. Tal menção elogiosa rende censura do deputado Cruz Ferreira, que
afirma: “não posso, Sr. presidente, consentir na ideia, que aqui se enunciou da
infalibilidade em política de Rousseau: desgraçada a nação que se houvesse de reger
pelas suas teorias, não há escritor que não tenha mostrado os seus paradoxos, e
absurdos.” 83 Lino Coutinho, em discussão sobre resolução a respeito do hospital de
caridade de Desterro, seria outro que recusaria menção a Rousseau na fala de Souza
França (“se quereis fazer cessar os males da mendicidade, acabai com os hospitais”),
retrucando: “o ilustre deputado não deve avançar proposições que cheiram a paradoxos
só por seguir a Rousseau”.84
Podemos, assim, perceber como não havia um consenso no uso dos autores
modernos: tais poderiam ser fortes apoios para a construção de interpretações de
mundo, mas, também, perigosas ameaças de subversão da ordem social. Não obstante,
um fio os une: em nenhum momento a autoridade interpretativa de tais autores sobre
eventos passados ou presentes foi posta em xeque por não serem “historiadores”.
Apenas Rousseau chegava perto disso, e mais pela consideração do perigo de sua
imagem do que pelo conteúdo de suas afirmações. Para as considerações que mais nos
interessam aqui, podemos afirmar que há um claro predomínio do uso dos autores
82
ACD, 1826, 01 de julho, p. 06-07.
83 Idem, p. 07.
84 Para ambas as referências, cf. ACD, 1828, 07 de junho, p. 60.
49
modernos na construção da interpretação do mundo presente e das lógicas passadas no
seio das discussões políticas.
A grande exceção, mencionada anteriormente, é Tácito: único autor antigo
comparável, em referências, aos autores modernos. O que nos leva a tecer algumas
considerações sobre sua presença.
De acordo com Valdei Araújo e Flávia Varella, a linguagem política do
tacitismo teve suas primeiras formulações no século XVI, consolidando-se, nos séculos
seguintes, como ferramenta crítica à concepção autoritária de governo. 85 Dessa forma, o
tacitismo permaneceria como um conjunto de experiências registrado na obra do
historiador latino, que legaria à cultura política europeia a antiga experiência da
tirania.86 No caso das concepções presentes no universo luso-brasileiro do começo do
século XIX, tal linguagem se traduziria na interpretação da decadência das civilizações
como resultado do despotismo, presente, por exemplo, no Correio Braziliense e em
outros periódicos do contexto da Independência, ampliando sua presença mesmo no
decorrer das décadas seguintes, fosse como “leitor da natureza humana, capaz de revelar
o caráter de um personagem pelos pequenos gestos”, fosse, invertendo-se o sentido de
sua obra, como inspiração para atribuição do segredo de Estado (Arcana Imperii) às
discussões e interpretações históricas do presente.
87
A linguagem do tacitismo,
traduzida como História, viria somar-se, assim, aos demais autores que compunham um
panorama do que se compreendia como autor-historiador naquele momento das
discussões políticas.
Vejamos alguns elementos de sua presença, bem como a dos demais autores
definidos como “historiadores”, no Primeiro Reinado. Em discussão sobre naturalização
no Império do Brasil, quando se debatiam os direitos políticos a serem concedidos a
cidadãos naturalizados, Silva Lisboa, sempre ele, apoia-se no “grande historiador do
Império romano, Tácito”, para traçar paralelos entre passado e presente. Diz que Tácito
bem notou o contraste entre a maléfica estatística dos lacedemônios e
atenienses, que consideravam os estrangeiros como inimigos, e a
generosa política do fundador do Império romano, Rômulo, que depois
85 ARAÚJO, Valdei Lopes de; VARELLA, Flávia Florentino. As traduções do tacitismo no Correio
Braziliense (1808-1822): contribuição ao estudo das linguagens historiográficas. In: In: Maria Clara V.
Galery; Elzira Divina Perpétua; Irene Hirsch. (Org.). Tradução, vanguarda e modernismos. São Paulo:
Paz e Terra, 2009, p. 239-259 (241-243).
86
Idem, p. 244.
87
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A época das revoluções no contexto do tacitismo: notas sobre a primeira
tradução portuguesa dos Anais. Estudos Ibero-Americanos (PUCRS. Impresso), v. 36, 2010, p. 343-365,
especialmente p. 351-352.
50
da vitoria, no mesmo dia via, com prazer, acolhidos os adversários
combatentes ao grêmio dos cidadãos. (...) Até depois do rapto das
Sabinas, também admitiram no senado aos padres sabinos. 88
Consideremos dois elementos nessa citação, um de caráter teórico-metodológico
e outro de caráter político.
Em primeiro lugar, nota-se a total despreocupação, na citação, com qualquer
prova, indício ou documento a respeito da informação que se traz do passado. O autor
clássico é referido como “historiador” ainda que a “história”, em questão, tenha ares de
mitologia. As menções a Rômulo e ao rapto das Sabinas, longe de constituírem apenas
efeito discursivo ou ornamental, entrelaçam-se à argumentação a respeito dos
naturalizados do passado e das formas de cidadania e integração então realizadas por
gregos e romanos. Essa despreocupação, aliás, perpassa todas as referências a
historiadores nas discussões políticas. A história, assim usada, dispensa qualquer regime
disciplinar, como conforme, aliás, elementos daquele momento de passagem de um
regime de historicidade a outro.
Em segundo lugar, em relação à política, Tácito é o principal autor “antigo” a
permitir a construção da aproximação entre o Império do Brasil e o Império Romano.
Roma, como modelo praticamente universal para civilizações e revoluções, para
governos e governantes, povos e espaços ocidentais, precisava ser integrada, como
exemplo, à civilização brasílica que se pretendia construir. Tácito permitia essa costura
num regime de historicidade antigo, remetendo-se não apenas ao conteúdo sobre Roma
– o que um autor moderno, como Gibbon, poderia permitir –, mas também na própria
linguagem utilizada. Tácito, como historiador do Império Romano, oferecia a
aproximação necessária ao Império do Brasil – inclusive nas ameaças que, porventura, o
futuro pudesse reservar.
Na discussão já anteriormente mencionada sobre a livre estipulação de juros,
Silva Lisboa voltaria a mencionar Tácito num paralelo com o economista Jean-Baptiste
Say. Este, diz Lisboa, sugere que se deveria forçar um devedor falido ao serviço de seu
credor, “o que era do bárbaro costume dos romanos, depois que, segundo diz Tácito,
pela corrupção dos costumes o interesse particular predominou ao bem público; o que
foi causa de tantas desordens” 89 . Independentemente do que se pretendesse com a
cobrança de juros devidos no Império do Brasil, saber que, num Império distante no
88
89
AS, 1826, 30 de maio, p. 176.
AS, 1826, 01 de julho, p. 04.
51
tempo, um tipo determinado de cobrança havia resultado em desordens, como fruto de
uma corrupção de costumes, ajudaria a, quem sabe?, prevenir o mesmo destino de
ocorrer ao Brasil 90 . Definido como “historiador”, a presença dos escritos de Tácito
serviria a tais propósitos.
Mas Tácito pouco teria a oferecer, em termos de informação, à necessidade de
conhecimento a respeito de um passado mais recente. Essa tarefa ficaria para outros
autores definidos também como “historiadores”, como Hume, João de Barros, Southey
e Rocha Pitta, conforme o gráfico 2.1 anteriormente mostrado.
Assim, Hume é trazido à discussão para demonstrar, “com fatos históricos”,
como o metal levado da América à Europa baixou o valor das mercadorias91, ou mesmo
trazido para corroborar fatos da história da Inglaterra 92 . João de Barros, para Silva
Lisboa o “pai da História Portugueza”93, é trazido à tona, em discussão sobre a obtenção
de cidadania por escravos forros, para mostrar como os portugueses foram os primeiros
autores desse “mal enorme” (o tráfico da escravatura), e como motivações econômicas
sobrepuseram-se ao discurso oficial de resgate do paganismo94. Southey é utilizado para
mostrar a antiguidade da exploração dos rios do Amazonas, essencial informação para
90
A importância e a influência de Roma era tão considerada por diversos políticos que, em discussão a
respeito dos conteúdos a serem ensinados nas universidades a serem criadas, Silva Lisboa diria: “O
famoso Gibbon, na historia da decadência do império romano, faz um admirável summario da legislação
e política do império romano; nem é possível prescindir do estudo das leis de um povo, que durou, em
várias formas de governo, por mais de quatorze séculos, e que ainda depois de destruídos, regerão a tantos
paizes”. AAC, 1823, 28 de agosto, p. 178.
91
“Hume, nos seus ensaios econômicos, demonstrou com fatos históricos que a extraordinária e
progressiva importação dos metais preciosos para a Europa, depois da descoberta da América, só teve o
efeito de triplicar, ou quadruplicar o valor nominal das mercadorias, mas não o de abaixar a quota do
interesse da moeda, antes o de exaltá-la, de sorte que Felipe II foi obrigado a recorrer a empréstimos
usurários, e fazer, por fim, bancarrota”. AS, 1826, 01 de julho, p. 04.
92
“O celebre ministro de estado, o chanceler Bacon, que depois deu tão espiritual sopro aos
conhecimentos humanos, foi condenado no parlamento por venal; mas o historiador Hume diz que os seus
maiores inimigos reconheceram que as suas sentenças eram fundadas na maior equidade”. AS, 1826, 16
de agosto, p. 78.
93
AS, 1829, 14 de julho, 96. João de Barros também é mencionado, pelo mesmo senador, em outra
ocasião, como “o historiador da descoberta do Brasil e da Ásia Oriental”. Cf. AS, 1829, 27 de maio, p.
252.
94
“Os portugueses foram os primeiros autores desse mal enome. Consta da história que, logo que se
descobriu uma das Canarias (...) alguns portugueses roubaram os naturais da terra, trazendo-os a Portugal
cativos; o que tanto indignou ao infante D. Henrique, que os mandou repor vestidos no seu país. Mas este
mesmo príncipe, depois do descobrimento das ilhas de Cabo Verde, admitiu o comércio de escravatura, a
título de resgate do paganismo, para terem o benefício da cristandade; mas realmente para com os
escravos cultivarem a ilha de Madeira, onde se introduziu a cultura das canas de açúcar. O mesmo
comércio se foi introduzido no chamado Senhorio de Guiné e com tanta violência que em toda a costa
vizinha é conhecido o nome de - Apanhia, que designa o furtivo ato de apanhar os naturais da terra, que
aliás, como diz o historiador João de Barros, continham povos criados na inocência de seus padres, e que
facilmente tomaram o jugo da fé católica”. AAC, 1823, 30 de setembro, p. 257 (?), grifos no original.
52
delimitação de fronteiras95. Por fim, Rocha Pitta é usado para mostrar os perigos de uma
política voltada para privilegiar a mineração, a partir do exemplo mostrado do “século
de ouro”96.
Em primeiro lugar, essas referências mostram a autoridade dos autores no trato
com o passado. Para Silva Lisboa (e, pela ausência de contestações, talvez pudéssemos
extrapolar para a Assembleia como um todo), as informações pontuais – digamos,
factuais – transmitidas por esses autores não são alvo de discussão. Não se questiona a
autoridade deles sobre as informações do passado, embora, como já dito, regimes de
historicidade distintos estivessem ali reunidos em torno do epíteto “historiador”. As
informações prestadas por eles não são mero ornamento ao discurso, mas informam
exemplos que devem ou não ser seguidos, de forma semelhante aos autores anteriores
que trabalhamos (Montesquieu e os demais). Como a forma de abordagem desses
autores todos sobre eventos passados não se altera, podemos considerar ambos os
gráficos como parte de um mesmo conjunto, a saber: mesmo que nem todos tenham
sido tratados como historiadores, todos os mencionados autores, quando oferecem
informações sobre o passado, não têm seu regime de veracidade contestado. Inexiste, no
espaço político ali trabalhado, qualquer preocupação com um método do qual se poderia
alcançar o passado – preocupação que, ao menos no Brasil, ficaria para mais tarde.
Cairu: “os projetistas exploradores do Amazonas supõem que este rio, seus ramos, e adjacentes
territórios se acham inexplorados pelos habitantes do império, e que ainda ignoramos o tesouro que ali
possuímos: mas já o escritor inglês da História do Brasil, Roberto Southey [sic], fez justiça aos
brasileiros, segurando-lhes a honra dos essenciais descobrimentos daquele rio até o Orinoco, referindo-se
a monumentos, e ao testemunho do celebrado prussiano viajante Humboldt, de cuja autoridade (diz) não
há apelação”. AS, 1826, 22 de agosto, p. 107. Na mesma discussão, Cairu também usaria Hume para
traçar paralelos entre a situação do Brasil e a da Inglaterra. O exemplo inglês é trazido à discussão por
Cairu para criticar um projeto de um cidadão dos EUA, apresentado, com crítica, pela comissão de
comércio, tencionando delimitar a seu favor a exploração do rio Amazonas. À p. 108, Cairu introduz
assim um argumento: “Permita-se-me aqui recordar o monumento que Hume refere na sua história da
Inglaterra”. Passa, então, a narrar um acontecimento do reinado de Isabel, no qual os “ingleses navegantes
descobriram o Archangel [sic], e o czar João Basilides, então reinante no império da Moscóvia, antes
quase incógnito na Europa, lhes concedeu por isso muitos favores, e privilégios.” Esse fato deu origem,
ainda na narrativa de Cairu, via Hume, a uma abertura do comércio da região do mar Cáspio pelo czar,
mesmo sob protestos de Isabel, que desejava manter o monopólio. Sobre isso, diz Cairu que “o historiador
[Hume] reflete: eis um príncipe bárbaro dando lições de sólida política a uma princesa a mais
esclarecida do século. “ [grifos no original].
96
“O nosso escritor Rocha Pitta, na sua historia da America portuguesa, seguindo o geral entusiasmo,
chamou a esse século a idade de ouro; mas de fato foi a de ferro, porque só atraiu braços e capitais de
beira-mar para o centro, e influiu muito na decadência do Brasil, que depois não pôde concorrer com as
mais colônias ultramarinas.” AS, 1826, 28 de julho, p. 186. No ano seguinte, Lisboa voltaria a tratar do
ponto quase com as mesmas palavras, na continuação da mesma discussão sobre mineração: “O
Historiador d´América Portuguesa, Rocha Pitta, intitulou a essa época a idade de ouro, porém mostrou-se
realmente a idade de ferro. Então, viu-se a mania com que muito povo do litoral correu ao centro:
abandonaram-se muito as lavouras das canas de açúcar, e este precioso ramo da agricultura e o do tabaco
decaiu por extremo. O mal depois se agravou pela concorrência também de outras Nações, que
estabeleceram iguais culturas em suas colônias d´América”. AS, 1827, 10 de maio, p. 46.
95
53
Assim, se, por um lado, a opinião dos autores poderia ser criticada, reavaliada ou
adaptada, as informações pontuais fornecidas não eram alvo de discordância. Refletia-se
sobre as conclusões de acordo com a realidade brasileira, mas não das bases que a ela
levavam.
Em segundo lugar, conforme já pode ter ficado evidente na leitura, o fato de
praticamente todas as referências a historiadores terem partido de Silva Lisboa,
especialmente as de Tácito (apenas uma referência é feita por outro parlamentar:
Borges). Tal preponderância fica clara quando vislumbramos os deputados e senadores
que traziam as referências aos debates, tanto historiadores quanto demais autores:
Gráfico 2.5: Constituintes que fizeram referência
35
30
25
20
15
10
5
0
Silva Lisboa
Carvalho e Mello Andrada Machado
Outros
Fonte: AAC, 1823
Gráfico 2.6: Senadores que fizeram referência
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Cayru
Marquês de
Caravellas
Borges
Carneiro de
Campos
Outros
Fonte: AS, 1826-1829
54
Gráfico 2.7: Deputados que fizeram referência
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Vasconcellos
Arcebispo da
Bahia
(Romualdo
Antônio de
Seixas)
Almeida
Lino Coutinho
Albuquerque
Outros
Fonte: ACD, 1826-1829
Primeiro, duas considerações de ordem geral.
Os gráficos acima mostram a quantidade de referências, nos debates, feitos pelos
respectivos parlamentares em três espaços: a Assembleia Constituinte, o Senado e a
Câmara dos Deputados, entre 1823 e 1829. Não devemos, porém, considerar que os
demais participantes, ou mesmo aqueles pouco numerosos a ponto de estarem na
categoria “outros”, são menos relevantes nas discussões que os mais atuantes. O
exercício aqui proposto não pretende desconsiderar que intervenções poderosas podem
ser estabelecidas na discussão política sem que o argumento de autoridade seja
necessariamente exposto.
Além disso, como veremos nos capítulos seguintes, boa parte dos produtores de
narrativas exemplares sobre os “olhos na Europa” ou os “pés na América” faz parte do
conjunto de agentes políticos mostrados nos gráficos acima. O que nos leva a uma
conexão entre os deputados e senadores que trazem autores à discussão e aqueles que
trazem exemplos estrangeiros, do presente ou do passado, para a construção de uma
narrativa da experiência histórica brasileira.
Dito isso, passemos aos gráficos. Observando os dois primeiros, referentes à
Assembleia Constituinte de 1823 e ao Senado, podemos perceber a notável distância
entre o volume de citações levadas à tribuna por José da Silva Lisboa, Visconde de
Cairu, e o de seus pares. No momento da Constituinte, suas intervenções são
comparáveis à soma de todas as outras colhidas. No Senado, superam em muito a
55
totalidade dos demais. Na Câmara dos Deputados, embora a liderança esteja com
Bernardo Pereira de Vasconcellos, aquele que se notabilizaria como o principal ator da
política liberal e conservadora nas primeiras décadas do Império do Brasil, sendo
seguido, no gráfico, pelo arcebispo da Bahia, o conjunto de intervenções é menos
desequilibrado, sem tantas discrepâncias acentuadas. Além disso, se vamos ao total de
intervenções, percebemos que a soma de todas elas na Câmara dos Deputados não fica
muito acima da soma de todas as efetuadas apenas por Silva Lisboa.
Por que, nos dois primeiros espaços, existe tamanha dominância referencial do
Visconde de Cairu?
A trajetória de Silva Lisboa explica essa disparidade, havendo entrado para a
historiografia como autor mais próximo ao padrão do “homem de letras” do Antigo
Regime do que de um intelectual em moldes mais modernos.97
Cairu era conhecido – e, não raro, criticado – por seu estilo erudito, repleto de
citações em latim e referência a autores clássicos e iluministas. 98 “Sempre orbitando em
torno do núcleo do poder”, nas palavras de Antônio Penalves Rocha, Cairu foi deputado
das Juntas das Cortes, nomeado por Dom João VI, Inspetor Geral dos estabelecimentos
literários, que lhe deu poder de censor, e publicista, publicando periódicos, panfletos e
historiador memorialista oficial do regime joanino no Brasil – cargo que desempenharia
oficialmente depois para o Brasil independente a mando de Dom Pedro I.99 Tal trajetória
punha Cairu em diferenciação em relação a seus contemporâneos, tanto pela maior
proximidade com um regime de historicidade antigo, o que lhe conferia aquela
característica de viver em uma “brecha entre dois tempos distintos” 100 , quanto pelo
maior entrelaçamento entre preocupações do político e preocupações do historiador.
Entrelaçamento este que, aos olhos dos contemporâneos, ao menos oficialmente, era
repudiado.
Nesse sentido, por essa percepção de separação entre o homem de letras e o
homem da tribuna, uma de suas obras historiográficas mais significativas, a primeira
grande tentativa de macronarrativa da História brasileira, foi, já desde meados do século
XIX, relegada a segundo plano, desconsiderada como historiografia. Trata-se da
História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil, cuja “introdução”, de
97
KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um ilustrado
luso-brasileiro. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: PUC-Minas, 2009, p. 13.
98
Idem, p. 206.
99
Idem, p. 207-235 e 267-271; ROCHA, Antonio Penalves (org.). Introdução. In: José da Silva Lisboa,
Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 19.
100
KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa... op. cit., p. 10.
56
1825, poderia ser considerada, segundo Valdei Lopes do Araújo, “uma interpretação
geral da historiografia sobre o Brasil”101, ou ainda um “primeiro esboço de uma História
Geral do Brasil escrita por um brasileiro (...) [e] um momento de inflexão na escrita da
história, que caminha para uma maior autonomia e cientifização”102.
Para Diniz, Cairu escreve sua História com o intuito de “legitimar o projeto de
„Regeneração do Brasil‟ empreendida [sic] por Dom Pedro” 103. A obra acaba saindo
incompleta: dividida originalmente em 10 partes, foram publicadas apenas a introdução
(1825), um volume dedicado à primeira parte (1826) e outros três volumes, nos anos
seguintes, para a décima parte. Nessas frações, porém, nota-se o esforço do autor em dar
à História uma concepção distinta daquela que predominou nas décadas anteriores, e
mesmo na obra anterior do próprio Cairu. Em sua História, Cairu busca no passado
distante um viés explicativo para a afirmação do Império do Brasil, passado este que
remontaria aos Descobrimentos portugueses. Além disso, a concepção de Cairu acerca
da História envolve uma preocupação com a veracidade dos fatos e uma abordagem da
História como processo. Nota-se também, em Cairu, uma preocupação com um
levantamento historiográfico do já produzido a respeito da História do Império, algo
fundamental nos trabalhos acadêmicos atuais.
Em sua Introdução, Cairu reconhece a importância de seu empreendimento e o
lugar que tem a História na formação da identidade nacional. Segundo suas palavras,
A Importância de uma História Geral de qualquer Estado Independente,
é reconhecida em todo o País Culto; e não menos é reconhecida a
dificuldade desta espécie de Composição Literária, que demanda grande
vigor de espírito e corpo, longos anos de trabalho, e muitos subsídios de
Monumentos Públicos. Por isso tem sido raros os Herodotos, e
Livios.104
Para Araújo, essa dificuldade de escrita de uma História Geral, no caso
brasileiro, dizia respeito à ausência de uma liberdade de idéias, fruto do sistema de
colonização aqui implantado. Tal sistema, que para Cairu fundamentava-se nos segredos
de Estado, gerou uma escassez de monumentos que servissem informações a respeito
dos primeiros anos do Brasil. Após a assinatura do Tratado de Utrech, em 1713, que
101
ARAÚJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (18081830). In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das... [et al.]. (orgs.). Estudos de Historiografia
Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 75-92 (p. 78).
102
SILVA, Bruno Diniz. Cayru e o primeiro esboço de uma História Geral do Brasil Independente. In:
História da Historiografia. Número 2. Março, 2009, 260-266 (261).
103
Idem, p. 263.
104
LISBOA, José da Silva. Introdução à História dos principais sucessos do Império do Brasil. In:
História da Historiografia. Número 2. Março, 2009, 267-281 (268).
57
para Cairu estabeleceu em definitivo o “Sistema Colonial”, “foram insuperáveis os
obstáculos da exploração do Brasil pelos Sábios da Europa” 105. Entre idas e vindas,
apenas a chegada da Corte, em 1808, teria sido capaz de romper com esse sistema e
inaugurar uma nova era em termos de escrita da história nacional. Não à toa, parte desse
rompimento deveu-se à assinatura dos tratados comerciais. Liberdade de comércio e de
idéias ligavam-se intimamente na reflexão de Cairu.
Novamente segundo Araújo, “no centro da história de Cairu estava a idéia de
que as sociedades modernas fundavam-se no comércio e na sociabilidade” 106 . Para
Cairu, seguindo a tradição de Bonifácio, o Império do Brasil seria o herdeiro cultural da
civilização representada por Portugal, e a vitória da Independência representava um
projeto de continuidade em relação a 1808, que teria representado o encerramento da
política de segredos de Estado, tão característica do despotismo. A Dom Pedro I caberia
o mérito de manter esse processo sem deixar que o perigo da revolução se aproximasse.
Percebe-se, em Cairu, a associação entre Império, nação, História do Brasil e
civilização. Essa associação seria ainda incorporada por outros intelectuais que
buscavam construir a História nacional ao longo do século XIX.
Cairu, não sem surpresa, foi apontado pela historiografia subsequente não como
autor de uma História nacional, mas como panfletista a serviço da reabilitação de Pedro
I107. Defender Pedro I, naquelas circunstâncias, significava para os coevos partilhar da
concepção de nação centralizada em sua figura. Nos anos derradeiros do Primeiro
Reinado, e principalmente nos anos iniciais da Regência, após a abdicação de Dom
Pedro, a concepção descentralizada, momentaneamente vitoriosa, acaba deixando a obra
de Cairu em segundo plano. Mais à frente, nos moldes da historiografia definida no
IHGB, Cairu continuaria a não ser considerado, especialmente por não atender aos
princípios decididos no Instituto como essenciais ao historiador.
É fundamental percebermos que as partes da História dos principais sucessos
políticos do Império do Brasil foram lançadas numa década de grandes conflitos entre
grupos políticos diversos. A idéia de que atuação política e escrita da História não se
poderiam misturar ganharia cada vez mais força até se fixar como método único
105
Idem, p. 269.
ARAÚJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (18081830)... op. cit., p. 90.
107
Assim tachado, Cairu seria relegado por parte significativa da historiografia, vítima do “desprezo ao
intelectual que põe seus serviços à disposição do Estado”. Cf. ROCHA, Antonio Penalves. A Economia
Política na Sociedade Escravista. São Paulo: Departamento de História – FFLCH – USP/HUCITEC,
1996, introdução.
106
58
legitimado para a análise do passado. Essa fixação, que afastou a obra de Cairu como
uma possibilidade historiográfica real, deu-se principalmente a partir do final da década
de 1830.
A História, tal como era entendida no Primeiro Reinado, porém, guardava certas
particularidades. Vamos discutir algumas delas a seguir.
1.2) A História para uso no presente
Como vimos anteriormente, a forma de tratamento dos autores referenciados no
Primeiro Reinado foi de profunda confiança nas informações deles oriundas. Tal
perspectiva é significativa quando comparamos com a forma pela qual a “história” era
vista. Afinal, tamanha confiança nas informações vindas do passado, mediante ação dos
historiadores ou demais escritores, vistos como autoridade nesse assunto, ligava-se, via
de regra, a uma convicção na força do passado para direcionar a ação política.
Para Costa Aguiar, por exemplo, nos debates da Constituinte a respeito da
concessão ou não de anistia a presos políticos, frutos das perseguições no
encaminhamento do processo de ruptura com Portugal, havia o entendimento de que era
uma
fatalidade humana que nem sempre os homens aprendam da historia a
evitar males a maior parte das vezes originados por medidas
imprudentes, e por um excesso mal entendido de piedade ou
comiseração da pobre humanidade, que quase sempre é o manto escuro
com que se pretendem encobrir vistas sinistras de amizade, ou de uma
proteção decidida para melhor consecução de fins particulares 108.
Num momento de abertura para o novo, de experimentação da construção de
uma direção política, olhar para trás poderia trazer luzes à ação. “História”, aqui, é um
manancial de informações que pode ser interpretada, que pode ser acessível a todos que
se dispuserem a tanto. “Ler” na história era tarefa aberta aos legisladores. A “história”
como livro aberto servia à metonímia presente em diversos discursos. Como em
Andrada Machado, que, na mesma discussão anterior, afirmava:
Por mais que folheio a historia nunca vejo senão dois casos, em que se
tenham concedido anistia; 1º, no fim de uma conquista para conciliar a
vontade do povo subjugado, e imprimir-lhe profundamente a ideia da
bondade do conquistador. É política dar como graça o que se devia de
justiça, pois quem lhe resistiu, tinha direito de o fazer; e ele nenhum de
108
AAC, 1823, 22 de maio, p. 138-139.
59
punir a resistência; 2º, quando desavenças políticas dividem em dois
partidos os membros de uma sociedade109.
E, mais à frente, defendendo o exercício da anistia pelo monarca: “A historia
nos proclama a precisão de um poder conservador; e na monarquia outro qualquer que
não seja o monarca, é inútil”110.
Muitas outras coisas teria a “história” a ensinar. Em discussão sobre tropas, o
mesmo Andrada Machado volta ao passado para marcar um posicionamento: “a historia
mostra que os homens de países quentes são sempre bons soldados nos países frios;
graças ao sol que nos produziu! Seremos tão bons soldados nos desertos da África como
nos gelos da Noruega” 111 . Silva Lisboa, em outra sessão em que se aborda o tema,
também tiraria do exemplo passado uma norma geral: “As tropas (...) farão os esforços
de heroicidade que a historia mostra dos povos valorosos, quando souberem que não
têm esperança de salvação, ainda rendidos” 112. No momento de discussão do projeto de
Constituição, falando-se sobre a questão da forma de governo, se confederado ou não, o
deputado Montezuma vai à história para mostrar que “confederação” e “monarquia” não
são excludentes: “Ninguém ainda o disse, é novo: e a historia de todos os tempos mostra
diametralmente o contrario: - são infinitas as vezes que se têm confederado pequenos
reinos, sustentando todavia as formas e instituições monárquicas” 113.
E mesmo num momento delicado para os deputados (ou especialmente nesse
momento), quando a movimentação das tropas se intensificava e o fechamento da
109
AAC, 1823, 22 de maio, p. 141.
Idem, ibidem. Da mesma maneira, Carneiro da Cunha diria, noutra ocasião: “Li na história que
temendo certo povo um varão distinto pela aura popular, que tinha adquirido por suas brilhantes
qualidades pretenderam abatê-lo, e para o conseguirem deram-lhe um emprego, que eles reputavam vil, o
qual seguramente correspondia ao de almotacel; mas o herói e virtuoso cidadão de tal forma
desempenhou o seu lugar e procedeu com tal atividade, resultando dele tão grande bem à cidade que dali
para diante ficou sendo um emprego nobre”. Cf. AAC, 1823, 21 de junho, p. 128. O mesmo autor, numa
terceira ocasião, sobre a forma de promulgação das leis, discutindo-se o tamanho da influência que se
deveria conceder ao monarca para sancionar a legislação da Assembleia, voltaria à ideia de “leitura na
história”: “Nós sabemos, e todos os que têm lido a historia sabem, as cenas deploráveis que viu a França...
tendo dentro em seu seio elementos opostos, foi-lhe necessário, apesar da propagação das luzes, quando
quis formar as suas novas leis, conceder a sanção ao monarca pelos motivos que mui bem demonstrou o
Sr. Andrada Machado; mas que fizeram com isto? Bem desgraçado dom foi esse que concederão ao
infeliz Luiz XVI! Foi dom que finalmente o levou ao cadafalso”. A história permitia leituras das quais se
tirariam boas lições. Cf. AAC, 1823, 29 de julho, p. 166
111
AAC, 1823, 31 de julho, p. 190.
112
AAC, 1823, 30 de agosto, p. 198.
113
E complementaria: “Se a experiência nos mostra que de reinos unidos, se forma um todo monárquico
federal; se de províncias unidas se forma um todo republicano; porque igualmente de províncias
confederalmente unidas não formaremos um todo monárquico representativo? Onde está o absurdo, pedra
de escândalo, que tanto irritou o delicado sensório do ilustre deputado todo ocupado, e tão ardentemente,
em defender o bem geral?” AAC, 1823, 17 de setembro, p. 154.
110
60
Constituinte já era possibilidade levantada por alguns, Silva Lisboa recorria à história
para entender e, até, tranquilizar a situação:
A tropa é essencialmente uma força armada, estar ou não atualmente
debaixo das armas e com munições de guerra, evidentemente, se mostra
ser medida de precaução para prevenir desordens, pelos boatos que a
malignidade de paixões particulares tem espalhado por ocasião dos
delitos noturnos, sobre que se tem discutido nesta assembléia com
grande agitação (...) Examinar-se com severo escrutínio agora pela
assembléia que corpos militares primeiro se moveram, com ordem, ou
sem ela, de seus aquartelamentos, não pode ter efeito útil. A história
mostra exemplos semelhantes em convulsões dos estados ou dissensões
de autoridades, as irregularidades muitas vezes são momentâneas e sem
conseqüência, quando o governo é respeitado e firme, que põe tudo em
ordem pela disciplina do exército114.
“A lição da história”, segundo Muniz Tavares em discussão sobre o projeto de
Constituição em 1823, “nos ministra bastantes exemplos em confirmação do que acabo
de dizer, e estes exemplos nos devem servir de farol em tão árdua questão” 115. “Não
aprenderemos da lição de História e não nos escarmentaremos do hórrido fato que o
mundo viu no juízo da Assembleia Nacional, quando pôs em processo o infeliz Luiz
XVI?”, questionou Silva Lisboa ao defender a votação no Senado por escrutínio secreto.
“Se a votação da sentença se fizesse por escrutínio, é moralmente impossível que ele
fosse condenado”, completou116. Noutra discussão, após elencar exemplos de situações
políticas que levaram sistemas do passado ao caos momentâneo (Roma, França e
Inglaterra), o Marquês de Caravelas pergunta: “Se acaso, Sr. Presidente, a lição da
História nos apresenta semelhantes exemplos, para que nós queremos expor aos
mesmos perigos? Para que estamos metafisicando [sic] contra a Constituição, quando
tão claramente se patenteia o seu sentido?” 117. A experiência da história (ou da História)
serviria, também, como prática da teoria e contraponto do que se considerava uma
“metafísica”118.
114
AAC, 1823, 11 de novembro, p. 306, grifos no original. Na mesma sessão, sem mencionar a palavra
“história”, o deputado Alencar também buscou num exemplo passado uma lógica que auxiliasse na ação
àquele momento: “estou muito persuadido que da energia à precipitação não vai mais que um passo, e a
precipitação tem sido nas assembleias constituintes a causa da sua queda”. Idem, p. 289.
115
AAC, 1823, 8 de outubro, p. 59. A “árdua questão”, no caso, referia-se à liberdade religiosa. Porém,
diversas outras “árduas questões” poderiam ser aí incluídas e ter sua solução tirada do farol da história.
116
AS, 1827, 10 de julho, p. 394.
117
AS, 1828, 10 de junho, p. 218.
118
O deputado Marianno Cavalcante resumiria bem a questão sobre união de teoria e prática: quando a
experiência as tem mostrado nocivas [as teorias], parece absurdo admittil-as”. AAC, 1823, 21 de junho, p.
126.
61
O mesmo se passava na Câmara dos Deputados. Em discussão de projeto de lei
sobre responsabilidade dos ministros, por exemplo, o deputado Costa Aguiar apelaria à
História para explicar a importância de se acompanhar de perto as práticas
administrativas do governo:
Abramos, senhores, abramos os anais do mundo e veremos com
admiração, que as grandes épocas da história, que as revoluções que as
caracterizam e que até as menores comoções políticas, correspondem
aos vícios da renda pública e da sua administração. Este resultado é o
mesmo por toda a parte, em todos os tempos, em todos os povos e em
todos os governos; e este concurso dos mesmos efeitos reproduzidos
pelas mesmas causas em circunstâncias diversas, mostram melhor do
que razões o que deixo avançado.119
Abrindo-se e verificando-se os “anais do mundo” poderia ver-se a regra geral
que conectava as “grandes épocas”, caracterizadas por revoluções, a práticas similares
àquelas que o projeto de lei acima em discussão procurava resolver, responsabilizandose os ministros pelas suas ações no cargo. A observância da história para prevenção de
males pode ser vista também em discussão de parecer da comissão de comércio,
apresentado em 26 de junho, sobre requerimento para estabelecimento de uma
companhia agronômica na província do Maranhão. A crítica a companhias remetia ao
passado, a ponto de Bernardo Pereira de Vasconcellos afirmar que era “inimigo jurado
de companhias: sou inimigo de companhias, porque a história m´as apresenta muito
prejudiciais. (...) A história mostra os maus efeitos das companhias. (...) A historia o
prova e estes princípios são infalíveis.”120
Não obstante, a questão da aplicabilidade permanecia com força. O próprio
Vasconcellos, em discussão de projeto de lei sobre abolição dos privilégios de foro
pessoal – que tencionava eliminar, nos âmbitos civil e criminal, o privilégio pessoal de
foro dos eclesiásticos, militares, cavaleiros, desembargadores e outros – mostraria isso.
Após uma sequência de intervenções de diversos deputados trazendo elementos
históricos para justificar a posição contrária ao projeto de lei (na qual destacaria-se a
atuação do deputado Marcos Antônio 121 ), afirmaria Vasconcellos, indignado: “Muita
admiração me causa que estejamos aqui a gastar inutilmente o tempo que nos é precioso
119
ACD, 1826, 20 de junho, p. 226.
ACD, 1826, 19 de julho, p. 234-235.
121
Disse o deputado que “a utilidade pública exige que se conserve este foro, e que os eclesiásticos não
compareçam perante juízes temporais; (...) Além disto desde as primeiras eras da igreja católica têm sido
os eclesiásticos julgados por seus pares, consentindo os príncipes cristãos. Ora, sendo este privilégio
estabelecido, e sancionado pela longa duração de 15 séculos, como pretende a assembléia legislativa do
Brasil destruir obra tão antiga?”. ACD, 1826,, 27 de julho, p. 327.
120
62
discutindo pontos da história! Nós não somos historiadores, mas legisladores.”122 A fala
de Vasconcellos mostra o limiar do uso da história tal como defendido por aqueles que
mais a ela apelavam: a diferença entre o acesso ao passado para iluminar e construir
interpretações no presente e o recurso a ele para elencar uma sequência de fatos
pontuais que não mais cabiam como exemplos moralizadores da experiência presente.
No primeiro caso, o apelo ao passado servia para fortalecer posições que os legisladores
construíam a partir do presente: era este quem definiria a aplicabilidade ou não do
evento passado. Tal forma de apelo era aceitável. No segundo caso, porém, o passado
usado como argumento para impor-se ao presente como exemplo moralizador era
enfraquecido. Melhor seria deixar o passado para os historiadores.
A resposta do deputado Seixas a essa fala última de Vasconcellos, bem como
sua tréplica, mostram essa distinção. Após fazer referências à história eclesiástica e
mencionar lei do imperador Honório, no ano 408, afirmaria:
Mas enfim deixemos isto, como alheio da questão, não consentindo
todavia passe a ideia aqui emitida por um nobre deputado
[Vasconcellos], de que se não devem admitir fatos históricos em as
nossas discussões, pois estou convencido de que a história é a
verdadeira escola da legislação, da moral e da política, e oxalá que
todos os legisladores bebessem nesta fonte os princípios que devem
regular a sua marcha.123
Ao que retruca Vasconcellos:
Sr. Presidente, eu agora não tenho que falar sobre a matéria, vou falar
sobre a ordem: julgo que esta casa não é aula de história eclesiástica,
assim não devemos estar aqui expedindo fatos de história para mostrar
erudição. (...) o que são causas eclesiásticas? Para definirmos, não é
preciso o recurso da história, não é necessário citar S. Pedro, S. Paulo, e
os imperadores romanos, isto é perder tempo que se podia aproveitar.
O plenário não era aula de história, fosse eclesiástica ou não; os legisladores não
eram historiadores. Estes, colecionadores de fatos passados, buscariam o passado em si,
nas suas particularidades, no conjunto de acontecimentos pretéritos que formavam toda
a dimensão erudita do saber. Os legisladores, homens de ação, homens de prática,
recorriam ao passado apenas para conferir argumento ao julgamento presente, à
interpretação presente – para isso, claro, precisando dos historiadores. É a separação
entre história como um processo contínuo do qual se podem tirar conhecimentos
pertinentes à vida prática presente e a história como conjunto isolado de acontecimentos
122
123
ACD, 1826, 27 de julho, p. 333.
Idem, p. 356.
63
passados, que faz a vida dos eruditos em seus ofícios, mas que, no calor da construção
política, redundariam apenas em tempo perdido.
Nenhuma discussão na Câmara dos Deputados, porém, é mais significativa
desses conflitos sobre usos da história do que a discussão sobre a criação dos cursos
jurídicos. O projeto de lei, organizado pela comissão de instrução pública e lido pelo
deputado Januário da Cunha Barbosa, em 5 de julho de 1826, estabelecia originalmente
um “curso jurídico ou de ciências sociais por agora no Rio de Janeiro”, o qual teria 8
cadeiras. Dessas oito, metade tinham, no nome, a palavra “história”, a saber: “2.ª –
Direito Pátrio civil e criminal. História de legislação nacional”; “3.ª – Filosofia jurídica,
ou princípios gerais de legislação. História das legislações antigas, e seus efeitos
políticos.”; “4.ª – Instituições canônicas, e história eclesiástica.”; “8.ª – História
filosófica e política das nações, ou discussão histórica dos seus interesses recíprocos e
de suas negociações.”124
Diversas questões são debatidas, como a pertinência da localização, a
capacidade dos professores, a quantidade de cursos etc., em grande parte dando
continuidade a debates a respeito iniciados ainda na Constituinte, em 1823. Porém,
nesse momento, as discussões sobre as cadeiras indicadas no projeto, especialmente as
que tocam a história, são nosso foco.
O busílis estava exatamente na cadeira 2, no que tange à “História de legislação
nacional”. Vasconcellos, lendo em voz alta o projeto, diz que não se pode negar que a
história de qualquer legislação muito favorece a inteligência, e que isso permite maior
conhecimento do “espírito das leis”. Contudo, continua,
como temos de organizar um novo código, e há de finalmente chegar o
tempo de acabar com esta legislação atual, que provisoriamente nos
serve, parecia que por ora se pode muito bem escusar esta cadeira de
história da legislação portuguesa, que nestes últimos 50 anos tem
crescido, e avultado tanto, que o jurisconsulto mal pode ter notícia da
lei, quanto mais da sua história! A nova legislação, deve principiar
quanto antes se possível fosse do ano de 1827 por diante.125
Novamente vemos a relação da história com a ideia de conhecimento prático. Se
antes a discussão era sobre a relevância do conjunto de dados isolados do passado para
o legislador, agora discute-se a pertinência do pleno conhecimento da legislação pátria
passada – e a continuidade nacional entre Portugal e Brasil fica patente no discurso –
124
ACD, 1826, 5 de julho, p. 51. A cadeira número 6 ainda poderia entrar nesse conjunto, já que tratava
do “Direito político, ou análise das constituições dos diversos governos antigos e modernos.”
125
ACD, 1826, 07 de agosto, p. 64.
64
como pré-requisito para formação jurídica. Vasconcellos, percebe-se, não nega a
relevância de tal saber. Mas a história, o conhecimento do “espírito da lei”, o contexto
que a produziu, é hierarquizado e tornado secundário frente à necessidade de se
conhecer a novidade – e aqui é crucial a articulação dessa lógica ao próprio rompimento
com Portugal: a “novidade” era o novo país, o Império; o passado era o passado
português a ser superado.
A lei a ser produzida, a lei a ser criada, sobrepõe-se à lei antiga a ponto de o
conhecimento desta ser passível de exclusão curricular; o presente sobrepunha-se ao
passado. Compreende-se que, não obstante o saber passado possa fornecer melhor
compreensão da lei presente e futura, tal compreensão não é indispensável para a
existência àquela contemporaneidade. O passado não era indispensável à plena
compreensão e vivência prática do presente. O presente e o futuro, em termos legais,
prescindia do passado para lhe dar sentido – afinal, os sentidos presentes e futuros
estavam inscritos numa lógica que o passado não era mais fundamental para sua
realização.
Clemente Pereira discordaria. Para ele, pelo
que respeita a história da legislação nacional, que aqui se disse ser
ociosa, direi que se nós tivéssemos já um código particular, então
devendo a história principiar do dia em que o código aparecesse, com
alguma razão se poderia dispensar, mas como muito tempo se passará
sem que apareça este código, a história da legislação que temos
ensinada pelos jurisconsultos servirá de princípios ao estudo do direito
pátrio (...) pois com estes dados mais habilitado se fica, para bem
entender as leis, o que nunca se poderá bem conseguir sem este estudo
por assim dizer preliminar destas matérias. 126
As condições que Clemente Pereira apontava no Brasil não eram as mesmas de
Vasconcellos. Para este, o futuro era mais fundamental ao legislador do que o passado;
para aquele, o passado ainda se mantinha como sombra sobre o presente, devendo sua
plena compreensão ser indispensável. Para Clemente Pereira, por conseqüência,
o estudo da história é necessário, e deve preceder mesmo a todos os
mais estudos, a lição da história é a lição do passado, que serve de boa
regra para o futuro: o homem que sabe a história bem, que nela é forte,
sabe muita coisa, nela verá os males, e inconvenientes, que têm havido
por falta de boas aplicações e tirará daqui a regra para não cair nos
mesmos inconvenientes e males. Se fosse possível carregar com mais
126
ACD, 1826, 23 de agosto, p. 241.
65
história, votaria que fosse ensinada a história universal, porque serve de
grande base no desempenho dos lugares. 127
Estando o passado ainda com sombras sobre o presente, ao invés do futuro como
referência, a história ainda servia à “boa aplicação” que impediria a queda “nos mesmos
inconvenientes e males”. A história mantinha sua importância porque o passado ainda
se fazia presente. E, generalizando a especificidade do cursos jurídicos, a história
universal ainda servia de “grande base” no “desempenho dos lugares”. “Carregar mais
história” permitiria uma mais destacada atuação no presente.
Outro deputado, Lino Coutinho, não discordaria da importância do estudo da
história da legislação pátria. Pelo contrário: considerava que tal seria muito útil porque,
no presente, ainda vigiam as leis portuguesas, e, no futuro, tal estudo daria as razões
para as mudanças legislativas. Porém, reforçaria o ponto de Vasconcellos, que ouvia ali
dizer
que a história devia sempre preceder a todo e qualquer estudo, mas que
história, Sr. Presidente? Como poderá um estudante sem conhecimentos
ainda nenhuns das matérias de que se vai tratar ligar fatos às vezes
destacados, ou apreciar as suas relações e conseqüências disfarçadas
ordinariamente por tão diversas circunstâncias? A história não serve,
principalmente nas ciências, senão como uma demonstração dos
princípios já estudados, a experiência tem mostrado que só assim pode
ela apresentar-se com toda a sua utilidade, e presentemente nenhum
tratado aparece, qualquer que seja a sua doutrina, que principie pela
história, pois seria perder tempo, e mesmo inutilizar este estudo aliás
proveitoso. Por isso eu acho que a história deve servir de fecho a todos
estes estudos.128
Ou seja, para a história fazer sentido, não se poderia partir cru para o estudo do
passado em si, mas, no lugar disso, era preciso primeiro estudar os princípios para
depois, sim, ir à história em busca da “demonstração” dos mesmos princípios já
estudados. Não se deveria principiar pela história; seria “perda de tempo”. Os estudos
deveriam partir do presente, agindo a história como liga a manter todos unidos e com
sentido. Novamente percebe-se a subordinação.
Custódio Dias também seguiria essa direção, ampliando a questão para a própria
concepção de presente na qual enxergava o Brasil, contrastando-a com um passado
terrível que se havia superado.129 Segundo o deputado,
127
Idem, ibidem.
Idem, p. 242.
129
Voltaremos a essa questão nos próximos capítulos.
128
66
O nosso direito pátrio, Sr. Presidente, é todo contrário a essas pestíferas
máximas do direito português. E será possível que vamos imbuir a
nossa mocidade nessas máximas de legitimidade e escravidão nacional?
No Brasil não é possível. Estamos em outra época, e em outro mundo.
O mundo velho não tem trazido ao mundo novo, senão a escravidão, e
com ela os males de todo o gênero. O nosso direito é todo
constitucional, contra o qual se levantam as testas coroadas da Europa: é
este direito que nos há de salvar das máximas do mundo velho. A
Europa da forma em que se acha, e a que a tem reduzido o célebre
congresso de Laibak, poderá oferecer ótimos princípios de legislação à
Ásia, ou à África; porém à América não. A nossa legislação nós é que
havemos de fazer: por conseqüência a história desta legislação ainda
está nos possíveis. Contudo, eu votarei pela cadeira de história, só com
a condição de servir unicamente para ensinar à mocidade brasileira a
detestar e a ter em horror essas máximas e esses tempos de execranda
memória.130
A história, nessa perspectiva, era um espaço preso ao passado. Um museu de
horrores cujo estudo justificava-se apenas para manter viva a memória da tragédia
pretérita. O Brasil não era uma continuidade da presença portuguesa, tampouco uma
continuidade temporal da época de trevas. O novo tempo, no qual o Império se inseria,
era a ponta de lança da civilização, não tendo Portugal nada a lhe ensinar nesse
particular. A temporalidade da América não era comparável à da África ou da Ásia, que
constituiriam o passado europeu e americano.131 A história ganhava um outro caráter
nesse conjunto.
Baptista Pereira, encerrando a questão, afirmaria que votara contra a aula de
história, supondo que
a história da jurisprudência indispensável ao jurisconsulto de outro
tempo, hoje a considero como uma lição meramente instrutiva e
agradável como a história filosófica e política de todos os
acontecimentos, que têm tido lugar no mundo inteiro. A história era
indispensável ao jurisconsulto, que se propunha a interpretar as leis,
pelos motivos que as fizeram promulgar nessas nações, donde elas
foram adotadas. Porém, bem se vê que os princípios, por que hoje nos
regemos, felizmente não permitem que os negócios do Brasil sejam
julgados pelas leis promulgadas em Roma há dois mil anos, nem pelas
que se fizeram em Portugal há 400 ou 500 anos. Ainda que
desgraçadamente nos servimos do informe código português, todavia
não o havemos de entender pelos princípios que vogavam, mas pelas
luzes do nosso século e pelos axiomas da nossa constituição. Demais,
esta mesma legislação há de terminar e ser substituída por outra (talvez
em menos tempo do que se julga) e então de que servirá essa história?132
130
ACD, 1826, 26 de agosto, p. 267.
Também voltaremos a esse ponto nos próximos capítulos.
132
Idem, ibidem. No final da discussão, não foi aprovada a cadeira de história da legislação pátria.
131
67
De que servirá a história que está prestes a ser plenamente superada? A linha que
separava a história que serve de mero conjunto de curiosidades, devendo, portanto, não
ser aplicável à vida prática, e aquela distinta, que ainda servia à ação presente, era tênue.
Portanto, quando falamos de “história”, de que “história” estamos falando? De
“história”, no singular, ou de “histórias”? De “história” como um “singular coletivo”, à
Koselleck, ou das diversas narrativas e trajetórias passadas, sem um elemento que as
unificasse num único conceito? Em suma, de “História”, com maiúscula, ou com
minúscula?
A maioria absoluta dos casos de apelo à “história” para fortalecer ou justificar
uma posição política vem dessa estrutura: palavra singular com minúscula. As exceções
que confirmam a regra são de dois tipos: o uso da inicial maiúscula para a palavra
(“História”) e o uso de expressões que possam particularizar a narrativa passada de que
se trata (como “história da guerra”, “história eclesiástica” etc.)
“A história proclama”, “a história mostra”, “a história fornece”, “a história
ministra”, “a história prova”, “a história confirma”, “a história certifica”... Muitos são os
usos e os verbos que acompanham a palavra “história”. Todos, de alguma maneira,
tentando pôr a “história” como sujeito de uma ação que possa, por si só, garantir
inteligibilidade àqueles tempos de mudança. Quanto mais se apegasse aos exemplos
passados em casos-limite de dúvidas, mais perto de uma estabilidade se estaria.
Mas qual o significado profundo dessas lições? Qual é o sentido do aprendizado
que se poderia ter a partir da experiência da história? Estaríamos diante de uma
continuidade do topos da historia magistra vitae?
Valdei Araújo analisa a permanência da expressão historia magistra vitae
atentando para a necessidade de se refletir sobre a questão a partir de dois elementos:
seria uma permanência topológica – ou seja, como um locus de onde se construiria um
arcabouço constitutivo da pesquisa – ou mero vício de linguagem, reproduzindo uma
estrutura antiga mais ou menos despojada de sua carga conceitual original?133
Embora careçamos de mais estudos na área, argumenta Valdei que a
permanência da expressão não deve significar atraso ou discrepância do Brasil em
relação ao regime de temporalidade moderno, mas, simplesmente, pode significar a
permanência da noção de que a história ensina, embora sob outras bases e noções do
133
ARAÚJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX
brasileiro. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes de (orgs.).
Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editoria FGV, 2011, p.
131-148.
68
significado de “ensinar”. Não mais seria o livro ou o exemplo puro perfeitamente
aplicável, mas, sim, a compreensão do processo histórico é que poderia servir de guia
para atuação no futuro incerto (característica da modernidade conceitual).
Um dos significados levantados por Valdei no artigo, no esforço de
sistematização da permanência no século XIX brasileiro, é a sua “politização”. Nas
palavras de Valdei:
os usos pragmáticos da escrita da história em contextos de elevado
conflito político-social impunham um tipo de ação direta por parte do
“historiador”, inclusive nas disputas sobre os significados da escrita da
história e da história em si. Esse parece ter sido o caso da França
durante boa parte do século XIX e do Brasil desde a crise aberta em
1808 até os anos finais da Regência (...) Esses momentos de crise deram
novo fôlego aos modelos clássicos de escrita da história, sua função
judicativa e moralizante. 134
Na linha aberta por Valdei, gostaria de abordar a questão do significado da
palavra “história” argumentando que talvez possa ter havido um deslocamento do locus
onde a história poderia cumprir sua função educadora e moralizadora, bem como
exercer seu potencial exemplar, como processo contínuo, do espaço do estudo para o
espaço da política. Ao mesmo tempo em que a história deixava sua inserção acadêmica
à setecentos rumo à cientifização no oitocentos, cada vez mais as exigências da política
pública abertas na Era das Revoluções exigiam dos agentes políticos – intelectuais no
sentido gramsciano – um posicionamento na construção das nações que envolvia, em
variados graus, um apelo à história135. Assim é que, para ficarmos em dois exemplos,
podemos pensar na forma como o apelo a uma Roma clássica influenciou a visão de
mundo dos colonos às vésperas de 1776, construindo-se uma visão na qual a Inglaterra
deixava de ser associada à virtude republicana para ser vista como a degeneração
imperial136, e podemos pensar em como a memória histórica da Revolução Francesa
134
Idem, p. 144
Para a vitória da história científica, cf. BERGER, Stefan. Introduction: towards a global history of
national Historiographies. In: ______ (ed.) Writing the Nation: A Global Perspective. New York:
Palgrave Macmillan, 2007, p. 1-29. , cf. ; para as academias, DIAS, Fabiana. Da Gênese do Campo
Historiográfico: Erudição e Pragmatismo nas Associações Literárias dos Séculos XVIII e XIX. Revista de
Teoria da História. Ano 2, Número 4, dezembro/ 2010; JESUS, Roger Lee Pessoa de. A História da
América Portugueza (1730) de Sebastião da Rocha Pita: o contexto, o autor, a obra. Revista de História
da Sociedade e da Cultura, 11, 2011, p. 141-164; KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia
acadêmica luso-brasileira (1724-1759). São Paulo: HUCITEC; Salvador: Centro de Estudos
Baianos/UFBA, 2004; KARVAT, Erivan Cassiano. Histórias na “História da América Portuguesa”:
concepções de história em torno da obra de Rocha Pita (1730). Anais do XXIII Simpósio Nacional de
História. Anpuh: Londrina, 2005.
136
SHALEV, Eran. Rome Reborn on Western Shores: Historical Imagination and the Creation of the
American Republic. University of Virginia Press, 2009.
135
69
tornou-se arena de combate político entre liberais e conservadores na França do século
XIX, cada qual buscando na história a sustentação para sua visão política137.
Esse deslocamento não significa, contudo, que a expressão magistra vitae tenha
mantido um sentido original moralizante. A questão é outra: tendo de lidar com um
acúmulo de experiências passadas que tomavam como suas, os dirigentes políticos do
Primeiro Reinado precisavam equacionar a tradição em que se viam inseridos com as
tensões que se mostravam à sua frente. Em outras palavras, cientes de que faziam parte
de algo novo na América, não deixavam, contudo, de se apoiar numa tradição que
remontasse à Europa, com todas as conseqüências que isso poderia causar. A história
que interpretavam, a qual liam e na qual buscavam exemplos para auxiliar seu proceder
político continha também os exemplos de desgraça. Assim é que as lições de
experiências parlamentares anteriores, ou situações de tensão social ou divergências
econômicas poderiam ser aproximadas da nova experiência americana. O novo Estado a
ser construído era atravessado pelas heranças a manter e pelas novidades a lidar: do
primeiro conjunto, o nome, o território, a escravidão e a própria história; do segundo
conjunto, as experiências de revoltas e revoluções europeias e americanas, tornadas
próximas pela Confederação do Equador e pela permanente possibilidade de rebelião
escrava, e as limitações causadas pela política inglesa no Atlântico.
Assim, conectar a história do Brasil ao conjunto de experiências europeias
anteriores teria um duplo significado: embora pudesse servir de farol para a política, não
era uma lição 100% aplicável. A noção de que vivia-se na América um outro contexto,
uma outra temporalidade, ainda que conectada à europeia, era forte. E isso exigia a
construção
de
interpretações
sobre
as
transformações
dessa
temporalidade,
especialmente no preciso momento da ruptura política, como veremos no próximo
capítulo.
137
MELLON, Stanley. The Political Uses of History, Stanford University Press, 1958.
70
Capítulo 2:
Bases do discurso histórico na construção do Brasil Independente (1821-1822)
No capítulo anterior, analisamos alguns usos e significados para a palavra
“história” e para definições sobre o que seriam “historiadores”, ou “autores de história”,
nas discussões políticas do Primeiro Reinado. Daqui até o final, trataremos mais dos
conteúdos das narrativas históricas produzidas pelos agentes da política nos primeiros
anos de Brasil independente.
Para tanto, faremos, neste capítulo, um breve recuo. Como pretendemos mostrar,
as principais bases que sustentaram a narrativa histórica nos discursos políticos do
Primeiro Reinado foram formuladas inicialmente, com maior delineamento, no contexto
de Independência (1821-1822). Como muitos dos pontos que serão discutidos nos
capítulos finais encontram naquele momento sua primeira elaboração mais precisa,
acredito ser fundamental analisar como no momento de ruptura uma certa narrativa da
história da civilização, em luta contra a barbárie, foi primeiro construída, bem como o
modo pelo qual o Brasil se inseria nessa narrativa.
O espaço privilegiado de análise será o Reverbero Constitucional Fluminense,
por razões que ficarão claras no item 2.2. Antes, porém, como forma de contextualizar a
discussão, passemos a alguns elementos preliminares.
***
Os anos de 1821 e 1822 foram plenos de disputas políticas, intelectuais e sociais
entre grupos diversos a respeito da direção que a sociedade brasílica deveria seguir.
Tratava-se de momento histórico privilegiado, “em que a linguagem se politizava e
entrava na vida pública, recorrendo a um novo vocabulário político, pautado nas
Luzes”138. Esse curto período testemunhou não apenas uma expansão dos espaços de
discussão pública, com maior publicação de livros, periódicos, panfletos, discursos etc.,
mas, também, vislumbrou as primeiras experiências liberais e constitucionais de mais
ou menos amplo alcance por que passaram frações da sociedade que tencionavam atacar
certas estruturas políticas e identitárias herdadas do Antigo Sistema Colonial 139. Nesse
138
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Liberalismo Político no Brasil: ideias, representações e
práticas (1820-1823). In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal (org.). O liberalismo no Brasil imperial:
origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, p.73-101 (citação à p. 79).
139
Para o contexto político daqueles anos, que resultou na profusão dos chamados “papelinhos” e outros
suportes de ideias políticas radicais, cf. CARVALHO, José Murilo de et alii (orgs.). Às armas, cidadãos!
71
contexto, as transformações nos significados vocabulares, nas interpretações da
experiência histórica e nas formulações de propostas de ação pública atravessaram
muitos dos coevos, especialmente nos maiores centros de efervescência política, como o
Rio de Janeiro.
Foi também a partir daquele biênio que certas formas de interpretação do
mundo, conjugadas aos eventos acelerados que buscavam explicar, começam a tomar o
formato de construção de uma lógica geral para o desenvolvimento universal da história
da civilização, como veremos. A experiência histórica daqueles anos, consubstanciada
nessa lógica geral, promovia o Brasil a potência de primeira ordem ao mesmo tempo em
que desenhava os parâmetros de seu rompimento simbólico com Portugal. Os
intelectuais que disputavam a direção do movimento – que acabou integrado à persona
de Dom Pedro, especialmente após sua atuação nos eventos do Largo do Rocio, em 26
de fevereiro de 1821 140 –, independentemente dos elementos que compunham suas
concepções de Brasil e de império (quando não de república...), compartilharam dessa
experiência histórica, produzindo uma leitura de mundo que, com os olhos na Europa
(mas também em outras partes do mundo) e os pés na América (com toda a herança
colonial), fincaram uma lógica para o desenvolvimento geral daqueles tempos, desde a
antiguidade rumo ao futuro. Essa lógica, como poderá ser observado ao final deste
capítulo, poderia ser sintetizada na fórmula da “história como história da liberdade”,
cujo discurso casava-se com a produção de distâncias entre a ideia de “civilização” e
seu oposto, a de “barbárie”.
A trajetória da produção dessa distância nos obriga à ampliação do contexto dos
anos 1821-1822. Afinal, quando pensamos nos processos que resultaram no
rompimento entre Brasil e Portugal e na construção do Brasil Independente, ao longo da
década de 1820, se torna impossível não relacioná-los a um universo mais amplo que
compreende o alvorecer do próprio longo século XIX. As questões que se apresentavam
àqueles que dirigiram o processo que resultou na Independência e na primeira década de
construção do Estado Nacional brasileiro eram, em grande parte, questões que se
desdobravam na própria lógica de crise e de rupturas que envolviam, em maior ou
menor escala, o mundo atlântico e, em especial, o universo hispano-americano desde o
Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo: Cia das Letras; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012, Introdução.
140
Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831.
São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, cap. 3.
72
último quartel do século anterior
141
. Inserida nesse universo mais amplo, a
Independência do Brasil e a posterior construção do Estado independente, longe de
configurarem fenômenos pontuais localizados no tempo e no espaço, conectam-se a
dimensões mais complexas que produziram um contexto revolucionário em larga escala,
com o qual os dirigentes imperiais, frutos, em grande parte, desse mundo em
transformação, precisavam aprender a lidar.
O conjunto de processos pelos quais os mundos atlântico e europeu passavam
correspondia ao surgimento daquilo que inúmeros autores referenciavam como
“modernidade”. Nesse sentido, a Independência e o processo de construção do Estado
Imperial no Brasil constituiriam um aspecto desse processo de modernização,
superando-se a condição colonial e inserindo-o plenamente no desenvolvimento
capitalista que construiria os pilares de nosso mundo contemporâneo.
“Modernidade”, porém, é um conceito complexo. Não podemos, sob pena de
uma simplificação exagerada, considerá-la como processo de via única, ou
unidimensional, que teria um ritmo unitário a partir do qual as variadas posições de
países, governos e/ou sociedades poderiam ser indicadas, uns à frente, outros mais
atrasados, todos rumo a uma mesma redenção (a qual, sob o signo do “progresso”,
mistura no discurso a análise da modernidade como fenômeno social ao discurso
legitimador e inaugurador do próprio fenômeno em si). Dados os objetivos e o alcance
deste trabalho, não há pretensão aqui em desenvolver qualquer reflexão mais apurada do
conceito, ou que pretenda sintetizar bibliograficamente a discussão. Não podemos,
porém, avançar na análise sem antes tecer algumas considerações sobre alguns aspectos
dessa modernidade, ao menos para situar quais dimensões – ou quais franjas – dessa
modernidade mais peso tiveram no processo de construção do Império do Brasil.
Nesse sentido, podemos remeter a três dimensões da modernidade, ou a três
distintas modernidades, que nos possibilitam compreender não apenas a ruptura política
com Portugal, mas, também, as decorrências que fariam parte do horizonte de
Na formulação de Fernando Novais, “a crise era geral e promanava da própria estrutura e
funcionamento do sistema”. Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema
Colonial. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 300. Para Istvan Jancsó, “Ainda que esta crise não
tenha sido percebida como tal, e nem tenha resultado em discursos teóricos coerentes e perfeitamente
ajustados aos paradigmas ilustrados da época, nota-se que, tendencialmente, os eventos sediciosos [do
final do século XVIII] revelam o esgotamento da eficácia de formas vigentes de ordenamento político da
sociedade e dos padrões que regem sua reiteração, padrões de abrangência variável, a depender de cada
uma das situações concretas consideradas.” Cf. JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e
contestação política no final do século XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida
Privada no Brasil, vol. 1: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras,
1997. p. 387-437 (citação à p. 392).
141
73
expectativas dos brasileiros-por-se-constituir até meados do século XIX. Essas três
dimensões implicam pensar o processo de Independência desde meados do século
XVIII (ou, como veremos, em alguns elementos, desde o século XVI), finalizando tal
narrativa apenas na década de 1840, para ficar num corte mínimo. Se recorremos a essa
interpretação é porque ela nos ajuda a esclarecer, ao menos em parte, o mundo com o
qual construtores e consolidadores do Império do Brasil lidavam, tanto em relação aos
elementos que teimavam em resistir às mudanças quanto em relação àqueles que
aceleravam mais do que o desejado pelos contemporâneos, provocando certa sensação
de vertigem e insegurança que balizava toda a narrativa histórica que pretendiam
produzir.
Essas três dimensões, as quais, para efeito de explicação (já que, na prática,
todas estão entrelaçadas142), podem ser descritas como: a) modernidades políticas; b)
modernidades conceituais; c) modernidades escravistas. Nenhuma dessas dimensões
resume em si o próprio conceito de “modernidade”, mas todas, de um modo ou de
outro, construíram, no alvorecer do longo século XIX, o mundo com o qual os
dirigentes imperiais lidavam 143 . Vislumbrar essas dimensões é, também, tocar nas
franjas concretas de diversos aspectos dentro de um mundo que se convencionou
compreender como “moderno”.
Cada uma dessas dimensões será tratada separadamente. Neste capítulo,
abordaremos a primeira delas, em conjunção com o que pretendemos discutir – a saber,
a produção das bases de uma narrativa histórica no contexto de construção do Brasil
Independente. As duas dimensões seguintes serão tratadas em capítulos futuros, como
partes constitutivas dos demais elementos da narrativa histórica que predominou nos
discursos dos contemporâneos.
2.1) Modernidade conceitual: história e nação em tempos de crise
Foi especialmente no contexto revolucionário aberto entre os séculos XVIII e
XIX – o qual exigia redefinições nos termos utilizados pelos coevos para dar conta das
novas experiências históricas – que correram eventos puxando o gatilho de uma série de
Por “entrelaçadas” quero dizer que é impossível pensar isoladamente qualquer uma dessas dimensões,
já que, num jogo de influências recíprocas, cada uma só se desenvolve em conjunto também com as
outras duas, como ficará claro no texto.
143
Da mesma forma, essas três modernidades não esgotam todas as modernidades ali presentes no
momento de construção do Império do Brasil – como ignorar, para ficar num exemplo, certos elementos
de uma modernidade religiosa? Podemos considerá-las, porém, as mais essenciais para os objetivos deste
trabalho.
142
74
transformações, influenciando substancialmente a história do mundo atlântico e, em
especial, a do mundo luso-brasileiro. Momento fundamental que provocava cada vez
mais a fragmentação das antigas concepções de mundo e a busca por novas ferramentas
conceituais que dessem conta da interpretação dessas novas experiências e auxiliassem
a construção de uma nova trajetória. Em outras palavras, o contexto aberto pelas
transformações da “Era das Revoluções”, provocando uma profunda sensação de crise
no mundo luso-brasileiro, demandava um esforço conflitivo na disputa por novas
direções políticas, morais e sociais.
Dentro do contexto mais geral de crise aberta a partir do século XVIII, fosse a
crise revolucionária, fosse a crise que implicou numa trajetória reformista, as próprias
formas de percepção do tempo pelos contemporâneos se alteraram significativamente,
como produto indissociável das mudanças sociais então em curso. A mudança nessas
percepções conceituais configura um aspecto daquilo que o historiador alemão Reinhart
Koselleck chamou “modernidade”. Nesse conjunto de transformações, dois elementos
são centrais para o que discutiremos neste trabalho: as mudanças nos conceitos de
“história” e de “nação”.
Koselleck, já em seu primeiro trabalho publicado no Brasil, traduzido sob o
título de “Crítica e Crise”, buscava as relações entre o que percebia como uma crise de
sua época (escrevia em 1954), cujas origens remontariam ao século XVIII, e a
elaboração de filosofias utópicas da história com a “função histórica” de dissimular o
caráter político da crise144. Nessa dissimulação, ou encobrimento, o futuro passaria a ser
o espaço onde a razão poderia exercer-se plenamente, afastando-se da política e
esvaziando o presente.
Desenvolvendo essa compreensão, Koselleck afirma que, entre os séculos XVIII
e XIX, as formas de se lidar com o tempo mudaram sensivelmente para os europeus,
com o passado cada vez mais se tornando incapaz de apontar seguramente os rumos do
futuro145. Pelo contrário: mais e mais se perceberia o tempo como acelerado, fugindo ao
controle daqueles que buscassem entendê-lo. “Não apenas o fosso entre passado e
futuro aumenta; a diferença entre experiência e expectativa é sempre superada, e de
forma cada vez mais rápida, para que possa continuar viva e atuante”146.
144
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 151.
145
KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, p. 318-319.
146
Idem, p. 322.
75
O distanciamento entre experiência e expectativa teria alterado, para o autor, a
própria concepção sobre o conceito de “história”, que teria perdido, pouco a pouco, seu
caráter de magistra vitae para tornar-se um singular coletivo irrepetível. “Se a história
se torna um evento único e singular da educação do gênero humano, então cada
exemplo particular, advindo do passado, perderá força, necessariamente”
147
. A
aplicação moral imediata de eventos históricos perderia consistência. O próprio conceito
de progresso serviria para dar conta dessa nova forma de se lidar com o tempo e a
realidade. Trata-se, para Koselleck, de fator central ao começo da modernidade148.
De forma quase complementar à abordagem de Koselleck, François Hartog
propôs a expressão “regimes de historicidade”, buscando dar conta dessas modificações
em relação à experiência do tempo. “Regime de historicidade” seriam construções com
o intuito de dar conta das diversas formas com que os seres humanos lidam com as
diversas temporalidades, especialmente passado, presente e futuro. “Regime de
historicidade”, em suma,
podia ser compreendido de dois modos. Em uma acepção restrita,
como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em uma
acepção mais ampla, regime de historicidade serviria para designar „a
modalidade de consciência de si de uma comunidade humana‟. (...)
Mais precisamente, a noção devia poder fornecer um instrumento para
comparar tipos de história diferentes, mas também e mesmo
primeiramente, eu acrescentaria agora, para colocar em foco modos de
relação com o tempo: formas da experiência do tempo, aqui e lá, hoje
e ontem. Maneiras de ser no tempo.149
Indissociável dessas transformações em torno do conceito de “história” foram as
produções ideológicas de novas formas de identidade política e social, notadamente a
147
Idem, p. 55
Sobre a questão, conferir, também, o artigo em KOSELLECK et al, O Conceito de História. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 119-184. Esse livro, aliás, é ótimo panorama para se acompanhar
as transformações no significado da palavra “História” a partir de uma perspectiva da História dos
Conceitos. Sobre a perspectiva histórica de Koselleck, cf. ainda JASMIN, Marcelo Gantus & FERES
JÚNIOR, João. História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro Ed. PUC-Rio/Edições
Loyola/IUPERJ, 2006, em especial p. 77-82. O recorte cronológico de Koselleck para a aceleração dessas
transformações no conceito de História foi, porém, posto em evidência por outros estudos, que sugeriram
transformações mais lentas e cumulativas que teriam se iniciado ainda antes – o que esticaria, para esses
autores, o advento da modernidade para mais fundo no passado. Para essas críticas, cf. PALTI, Elías José.
Koselleck y la idea de Sattelzeit. Un debate sobre modernidad y temporalidad. In: Ayer, nº. 53, Historia
de los conceptos (2004), pp. 63-74.
149
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013, p. 28-29. Cf. também: HARTOG, François. Tempos do mundo, história, escrita
da história. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2006, p. 15-25; e HARTOG, François, “Regime de Historicidade”. In: Time, History and
the writing of History: the order of time, KVHAA Konferenser 37: 95-113 Stockholm 1996. Disponível
em: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html. Último acesso em 02/10/2011.
148
76
nacional. Em que medida a história, tal como se construíam consensos conceituais,
servia à construção das identidades nacionais? Em que medida eventos do passado eram
mobilizados para justificar intervenções políticas no presente? E de que forma essa
experiência pode ser analisada no caso do século XIX brasileiro?
A trajetória de busca por uma história nacional que desse sentido à existência
política de comunidades humanas no longo século XIX foi algo comum a todos os
Estados nascidos da Era da Revoluções, que cada vez mais eram pensados em termos
nacionais, vendo na história uma poderosa ferramenta de construção de novos vínculos
identitários coletivos e no fortalecimento dos já existentes 150 . Sendo as nações, na
clássica formulação de Benedict Anderson, “comunidades imaginadas” 151 , e sendo
preciso atentar para “uma perspectiva que visa despojar o conceito de nação e de
nacionalidade de seu suposto caráter natural (...) para fixar-se no critério de sua
artificialidade, ou seja, de ser efeito de uma construção histórica, ou „invenção‟” 152 ,
precisamos compreender de que forma a escrita de histórias nacionais contribuiu como
poderosa arma de construção de um passado comum, servindo de elo entre os habitantes
pela sensação de pertencimento a uma mesma origem – o que acabava por diluir, de
certa maneira, os conflitos internos e de classe153. As histórias nacionais, elaboradas ao
longo dos processos de construção das identidades nacionais, buscaram em passados
remotos os “germes” da nação, cada uma valendo-se de particularidades regionais,
lingüísticas, artísticas etc. para realizar seu objetivo. São dignas de nota, nesse aspecto,
as palavras de Antonio Gramsci, que, criticando certas interpretações a respeito do
Risorgimento e da história da Itália que remontavam o sentimento nacional aos
romanos, escreveu:
O problema de buscar as origens históricas de um evento concreto e
circunstanciado, a formação do Estado moderno italiano no século XIX,
150
Entendo aqui, como Hobsbawm, a nação moderna como historicamente construída, constituindo
“entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o „Estadonação‟”. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2004, p. 19.
151
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
152
CHIARAMONTE, José Carlos. Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII.
In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: HUCITEC, 2003, p. 63.
153
Para uma discussão historiográfica acerca dessa passagem do mito da nação como entidade
“naturalizada” para uma perspectiva que busque problematizá-la, cf. PALTI, Elías. La nación como
problema: los historiadores y la “cuestión nacional”. Buenos Aires: Fonde de Cultura Económica, 2003.
Para o caso latino-americano, em especial a região do Prata, ao longo do proceso de construção dos
Estados nacionais, cf. PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e Nação no fim dos Impérios Ibéricos no
Prata. São Paulo: HUCITEC; FAPESP, 2002. Afirmar esse papel à escrita das histórias nacionais não
implica ignorar o caminho oposto – isto é, como as histórias nacionais foram produto, e não meramente
produtores, dos elos que aproximavam sujeitos em termos de identidade comum.
77
é transformado no problema de ver esse Estado, como Unidade, como
Nação ou genericamente como Itália, em toda a história anterior, assim
como o pinto deve existir no ovo fecundado.154
A elaboração de historiografias para cada país foi capaz de ajudar a promover as
ligações culturais necessárias para que a identidade nacional superasse – ou, ao menos,
subordinasse – as demais formas de identidade a que os seres humanos estão sujeitos
(étnicas, regionais, de classe etc.), via fortalecimento de um discurso comum que
remetesse ao processo temporal como sedimentação de sentimentos naturais do passado,
produzindo a necessária teleologia que conectou o resultado final ao ovo fecundado155.
E isso num momento que, segundo definiu Phillipe Ariés, marcava o nascimento
definitivo da consciência histórica moderna 156.
As escritas de histórias nacionais ajudaram, assim, na produção de conexões
entre passado, presente e futuro que, num momento de aceleração na percepção do
tempo, organizava experiências e expectativas a partir de um eixo mais sólido. A nação
enraizada no passado que se dissolvia permitia a manutenção de vínculos que as
revoluções ameaçavam fragmentar. A nação tornava-se porto seguro para ancoragem da
trajetória do passado ao futuro, e a história, incapaz de manter a segurança que, como
mestra da vida, oferecia, agora era utilizada como fiadora da continuidade num
momento de novidades aceleradas. Tomando como exemplo o caso da Revolução
Francesa, podemos perceber como os historiadores franceses do século XIX a
vislumbraram: incapazes de negarem-na (os que a recusavam) ou revivê-la (os que a
admiravam), transformaram-na em ponto fundamental na produção da nação francesa:
os que a negavam, a viam como desvio, fortalecendo o passado pré-revolucionário
154
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 5: o Risorgimento. Notas sobre a História da Itália.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 34. Para a afirmação da História como “biografia da
nação”, de inspiração gramsciana, cf também SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e Nativismo: a
História como “biografia da nação”. São Paulo: HUCITEC, 1997, Introdução.
155
Embora nem sempre as historiografias ditas “acadêmicas” aparecessem como as mais significativas
desse processo para a formulação de identidades sociais, digamos, “de massa”: “One just has to think of
the diverse ways in which national days of remembrance and festivals were celebrated across Europe, or
of the institutionalisation of national holidays, monuments and symbols, or the popularity of historical
novels, or the increasing influence of the mass media (newspapers, radio and television) throughout the
nineteenth and twentieth centuries. Whilst the writing and reading of academic history books has
remained to a very large extent the pastime of elites, the political mobilisation of the masses has by and
large relied on different means to achieve their integration into nation-states.” Cf. BERGER, Stefan et
Alii. Apologias for the nation-state in Western Europe since 1800. In: BERGER, Stefan et alii (ed.).
Writing National Histories. Western Europe Since 1800. London; New York: Routledge, 1999, p. 4.
156
Observando principalmente o caso francês, afirma o autor: “Depois das convulsões da revolução e do
império, o século XIX marcou a etapa definitiva do nascimento da consciência histórica moderna. Se, no
século XVIII, tínhamos reecontrado o sentido do contínuo, o século XIX descobriu as diferenças da cor
humana através dos tempos.” Cf. ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1989, p. 148.
78
como caldo primordial da nação; os que a admiravam, como síntese necessária do
desenvolvimento histórico anterior da nação francesa157.
As narrativas nacionais inventaram a ideia de nação 158 ? O debate sobre essa
questão atravessou o campo historiográfico desde o próprio surgimento da historiografia
moderna 159 . Não cabe, nos limites deste trabalho, aprofundar a discussão. Interessa,
porém, compreender que as nações modernas, não obstante suas origens seculares e sua
polissemia histórica, ganharam significados na viragem dos séculos XVIII-XIX que não
se assemelham às definições anteriores. A discussão sobre o quanto desses novos
significados foi produto das revoluções, ou o quanto as revoluções foram sínteses
processuais de movimentos anteriores, não muda o fato de que os coevos construíram
sentidos específicos para a ideia de identidades nacionais (bem como para a ideia de
uma história nacional) como forma de lidar com a própria vertigem pós-revolucionária
da modernidade160.
Vertigem que, no contexto luso-americano, tornava as identidades provisórias,
especialmente a partir do período compreendido entre a transferência da Corte e o
desencadeamento do movimento constitucionalista – grosso modo, entre 1808 e 182021. Tanto no mundo luso-brasileiro quanto nos contextos abordados por Koselleck, a
Revolução Francesa ocupou lugar destacado nas transformações conceituais por que
passaram os que viveram aquele período. Nada mais indicativo dessas ligações, para
ficar em um exemplo, do que a tese de que a vinda da Corte, em 1808, representara um
novo momento de experiência do tempo, cada vez mais visto como acelerado e com o
157
É claro que a própria Revolução era vista de formas distintas. De 1789 ao Terror, dos jacobinos a
Napoleão, a Revolução continha, na verdade, muitas revoluções. Sobre a questão, cf. MELLON, Stanley.
The Political Uses of History, Stanford University Press, 1958; e GÉRARD, Alice. A Revolução
Francesa. 2ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.
158
“Invenção”, como expressão que “remete a uma temporalização dos eventos, dos objetos e dos
sujeitos, podendo se referir tanto à busca de um dado momento de fundação ou de origem, como a um
momento de emergência, fabricação ou instituição de algo que surge como novo. O termo invenção,
portanto, também remete a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma
prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum evento humano.” Cf. ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 19-20.
159
Para essa discussão, cf. PALTI, Elías. La nación como problema… e SMITH, Anthony D. O
nacionalismo e os historiadores. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 185-208.
160
Para uma visão sobre a nação como “evolução” conceitual culminando na ideia revolucionária, cf.
GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ,
István (org.) Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Editora HUCITEC, 2003, p. 33-60.
Para uma ideia mais próxima da nação como produto inventado, para o caso brasileiro, cf. SANTOS,
Afonso Carlos Marques dos. A Invenção do Brasil: ensaios de história e cultura. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2007, capítulo 3. A questão das representações que produzem a nação é ainda trabalhada por
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª edição, Rio de Janeiro; DP&A Editora,
2002, p. 50-57.
79
futuro valorizando-se frente ao passado, como pudemos analisar em relação às visões
sobre a história e sobre historiadores no capítulo anterior. Outra forma de afirmar essas
mudanças seria ver a primeira metade do século XIX, no Brasil, como de passagem de
um regime de historicidade a outro, com alguns autores representando, cada qual ao seu
modo, essa passagem, num processo que abarca simultaneamente tanto a construção do
Estado Nacional no Brasil quanto as interpretações conceituais que lhe dão sustentação
(e que são, também, fruto dessa construção) 161.
Valdei Araújo, por exemplo, argumenta que da geração pré-Independência à
geração que consolidou o Império houve uma significativa descontinuidade conceitual e
discursiva, fruto de uma percepção crescente do tempo como aceleração e de uma
contínua historicização da realidade162. Para Araújo, o universo semântico em que a
primeira geração se inseria diferenciava-se significativamente daquele segundo
momento, marcado não apenas por movimentos como o romantismo, mas,
principalmente, pelo evento-Independência e demais acontecimentos a ele relacionados,
responsáveis, em grande parte, pela fragmentação do mundo herdado do século XVIII.
A partir de então, argumenta Valdei Araújo, essa herança setecentista, apesar de esticarse ao máximo, alcançando seus limites, não mais seria capaz de dar conta das novidades
do século163.
O que seria visualizar essa herança setecentista como limitada? Seria a
consideração de que, a partir de então, o significado conceitual de “história” foi
deixando seu caráter sagrado e revestindo-se do sentido profano, a partir de uma espécie
de “laicização das narrativas”, ou seja, a passagem de um discurso religioso sobre a
161
Para uma análise que conjuga a historiografia francesa à brasileira na representação dessa mudança
nos regimes de historicidade a partir da escrita da história de Alphonse de Beauchamp, cf. MEDEIROS,
Bruno Franco. Plagiário, à maneira de todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da
história na França nas primeiras décadas do século XIX. Dissertação de mestrado. São Paulo, SP:
PPGHS/USP, 2011. O autor escolhido é significativo de um momento em que as concepções de escrita da
história sofriam tanta variação interpretativa que possibilitava, inclusive, que o “estilo antigo” de
Beauchamp fosse associado, cada vez mais, a uma noção de “plágio” que se construía ligada à
necessidade da citação, da nota de rodapé e da evidência documental para firmar-se num mundo em que a
História cada vez mais se tornava “ciência”. Beauchamp, escrevendo num “estilo antigo”, à maneira dos
mestres da Antiguidade, transbordava uma história que, progressivamente, passava a limitar-se aos
cânones da erudição crescentemente universitária. Isso não impediu que Beauchamp fosse lido e utilizado
no Brasil por diversos autores, até que as condições de método postas em evidência pelo IHGB e,
principalmente, por Varnhagen relegassem essa influência ao limbo da mera “cópia”
162
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
163
Para uma análise da escrita da História nessa herança setecentista, atrelada à gênese das Academias, cf.
KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-brasileira (1724-1759). São
Paulo: HUCITEC; Salvador: Centro de Estudos Baianos / UFBA, 2004; DIAS, Fabiana. Da Gênese do
Campo Historiográfico: Edurição e Pragmatismo nas Associações Lietrárias dos Séculos XVIII e XIX.
Revista de Teoria da História. Ano 2, número 4, dezembro/2010.
80
história para um discurso laico (inclusive progressivamente ocupando o espaço deixado
pela religião como explicação do estar-no-mundo) 164 . Isso significa dizer que,
gradualmente, a história deixa de ser uma narrativa marcada pelo sentido religioso e
passa a ser uma história circunscrita às ações humanas165.
Definindo melhor essa primeira mudança de sentido, podemos dizer que o
significado da palavra vai deixando de lado a clássica diferenciação entre história
sagrada e história profana, na qual esta era submetida àquela, e seu sentido vai
tornando-se, cada vez mais, o de uma narrativa racional sobre o passado que abarca a
humanidade numa lógica discursiva das transformações na sociedade civil, entendida
como reino da liberdade em luta contra a tirania. O contexto de crise aberta pela Era das
Revoluções contribui para a percepção, pelos contemporâneos, de que a história, não
obstante possua uma lógica naturalizada, é produto também das realizações humanas,
dependendo dessa ação o resultado, fosse positivo ou negativo, das disputas sociais. Daí
também a percepção de que o tempo histórico poderia acelerar-se em determinadas
circunstâncias, comprimindo distâncias e implementando uma carga maior de
transformações.
Além disso, uma outra mudança que tem a ver com um deslocamento de escala:
no contexto do Império português, inicia-se uma transformação na qual as várias
“histórias” ligadas a lugares territoriais específicos, cujos sentidos assemelham-se aos
das crônicas, dão espaço, no último quartel do século XVIII, a um esboço de unificação
em que “História” passará a designar um “campo de experiência comum”166. Em outras
palavras, as narrativas localizadas, restritas a espaços de atuação regionais, vão dando
lugar ao uso da palavra “história” para circunscrever uma realidade aumentada – já aqui,
para voltarmos a Benedict Anderson, a uma realidade imaginada.
O grande exemplo da passagem entre esses dois sentidos é a diferença entre a
obra do pernambucano Loreto Couto (Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco),
de 1757, que, como o nome diz, enfatizava os acontecimentos daquela província e
criticava outras “histórias” ligadas a realidades locais distintas, e os poemas dos autores
164
PIMENTA, João Paulo G. & ARAÚJO, Valdei Lopes de. História. In: FERES JÚNIOR, João. Léxico
da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 119-140. Para uma
discussão dessa passagem no contexto da modernidade, cf. NEVES, Guilherme Pereira da. História,
teoria e variações. Rio de Janeiro: Contra Capa; Companhia das Índias, 2011, p. 106-107.
165
Cabe destacar que, progressivamente, a história passa a ocupar o lugar da própria religião como
“referencial decisivo para cada um encontrar, ou não, a posição que lhe cabia.” Cf. NEVES, Guilherme
Pereira das. História, teoria e variações... p. 107
166
PIMENTA PIMENTA, João Paulo G. & ARAÚJO, Valdei Lopes de. História. In: FERES JÚNIOR,
João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil... p. 124.
81
brasílicos Basílio da Gama (O Uraguay), de 1769, e Cláudio Manoel da Costa (Vila
Rica), de 1773, cujas idéias centrais de “história” são indicativas de uma referência mais
abrangente, que não se limita à localidade, mas que busca, pela referência a tradições,
livros, documentos escritos e testemunhos orais, indicar uma “história” una, válida para
diferentes experiências regionais.
Isso ganha novas cores no século XIX brasileiro. Uma das principais
contribuições do trabalho de Araújo está em ampliar a perspectiva das bases da
produção historiográfica nacional para incluir, aí, a própria dimensão da experiência
temporal como fundamento de constituição não apenas do próprio pensamento
historiográfico, mas, também, da formação identitária dos coevos (e aí se incluem outras
identidades possíveis para além da nacional). Ao analisar as formas pelas quais
realidade e consciência da realidade se relacionam, Valdei permite que sigamos as
tentativas das gerações sucessivas da primeira metade do século XIX em compreender
um mundo para o qual o passado não mais parecia oferecer segurança. Um mundo em
crise, repleto de novidades, mas para o qual a experiência prévia e o universo semântico
anterior não se mostravam eficientes. Daí o caráter híbrido das concepções de história, a
ponto de abordagens antigas e modernas disputarem a primazia na construção das
concepções de mundo167.
Essa disputa ficaria mais evidente no primeiro grande processo de aceleração
que produziu algo próximo de uma ruptura conceitual no discurso dos sujeitos que
buscavam dirigir o processo de transformações políticas no mundo luso-americano: o
contexto da Independência do Brasil, especialmente a partir de 1821. É voltando a esse
contexto, agora inserido na dinâmica mais ampla da era revolucionária, que podemos
analisar como alguns contemporâneos lidavam com a sensação de crise que obrigava a
novas concepções explicativas para o que identificavam como inevitável mudança
temporal.
Conforme é corrente na historiografia, foram os eventos revolucionários
europeus que, forçando a Corte a uma transferência crucial para sua colônia americana,
causaram grande impacto na concepção imperial lusitana, sendo, portanto, um marco da
modernidade política no interior do Império português. A partir desse marco, as tensões
entre as percepções, pelos intelectuais da época, das diferenças entre identidades
Na acepção de Gramsci, para um outro contexto crítico, “A crise consiste justamente no fato de que o
velho morre e o novo não pode nascer; neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais
variados.” Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 3: Maquiavel; notas sobre o Estado e a
Política. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 184.
167
82
“americanas” e “portuguesas” ultrapassarão os elementos fragmentários e o unitarismo
reformista e se acirrarão, colocando a própria concepção imperial em risco – em nome
de uma nova. O resultado final será a ruptura em 1822, após dois anos de aceleração do
sentimento de “provisoriedade política” presente havia uma década ao menos de
aprendizado político, coroando a busca por novas formas de articulação com o passado
que dessem conta das angústias que as transformações causavam nos coevos 168.
A vinda da Corte e a presença do regente, futuro Dom João VI, transformaram o
Rio de Janeiro e o alçaram à condição de “cabeça” do Império, substituindo Lisboa
nesse papel. À medida que os anos avançavam, contudo, mais e mais ficava claro que
crescia uma diferenciação entre os habitantes do reino – reinóis – e os da nova Corte.
Novos termos surgiram ou ganharam novos significados para dar conta dessas
diferenças – o “ser português” tornava-se distinto do “ser brasileiro”, ou “brasiliense”,
ou “brasílico” etc. Segundo Jancsó e Pimenta,
a instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência, no
interior do que fora anteriormente a América portuguesa, de múltiplas
identidades políticas, cada qual expressando trajetórias coletivas que,
reconhecendo-se particulares, balizam alternativas de seu futuro. Essa
identidades políticas coletivas sintetizavam, cada qual à sua maneira, o
passado, o presente e o futuro das comunidades humanas em cujo
interior eram engendradas, cujas organicidades expressavam e cujos
futuros projetavam. Nesse sentido, cada qual referia-se a alguma
realidade e a algum projeto de tipo nacional.169
Essas identidades, naquele contexto de crise, combinavam-se e digladiavam-se,
misturavam-se e atacavam-se, num processo que transformou os antigos genéricos de
diferentes bases em um único contorno nacional que acabou naquilo a que hoje
chamamos Brasil170. A identidade portuguesa preconizada por Dom Rodrigo de Sousa
“Percebe-se na documentação [do período joanino] (...) que havia um sentimento de grande
provisoriedade no que diz respeito às alternativas políticas em curso, além de visíveis transformações no
nível das sociabilidades, fenômenos que ainda mal se evidenciavam durante os primeiros momentos apís
a instalação da família real no Rio de Janeiro, e que ganharam nitidez sobretudo após a convocação das
Cortes Constituintes em Lisboa e seus desdobramentos americanos”. Cf. SLEMIAN, Andréa. Vida
política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006, p. 197. Para os
esforços da monarquia para dar conta daquele sentimento de fragmentação, bem como seus limites, cf.
SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro,
1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, capítulo 6.
169
JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo
da emergência da identidade nacional brasileira). MOTA, Carlos G. (org.). Viagem incompleta: a
experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000, p. 127-175 (citação às páginas 131132).
170
A ideia de “genéricos de diferentes bases” é inspirada em István Jancsó. Para ele, na passagem do
século XVIII para o XIX a multiplicidade de identidades possíveis produziu identidades políticas que
oscilavam, na América portuguesa como na espanhola, entre o “genérico de base imperial (identidades
espanhola ou portuguesa), o genérico que fundia as anteriores com outra de base territorial ainda geral
168
83
Coutinho no século XVIII, que já devia se relacionar com outras bases identitárias mais
ou menos genéricas, passava também a confrontar-se com uma nova identidade
brasiliense em crescimento, que já não se resumia àquela unidade americana oriunda do
olhar metropolitano, mas que precisava ser recriada no contexto revolucionário 171. Se o
contorno foi melhor definido, dentro dos padrões hoje consensuais, apenas ao longo dos
dois séculos seguintes, é seguro afirmar que um primeiro esboço mais firme nesse
sentido foi desenhado ali entre os anos 1821-1822, ainda que restrito inicialmente a
alguns poucos grupos no interior da antiga sociedade colonial.
Esse confronto entre identidades – uma ainda nos moldes do Império português
e da nação portuguesa, outra que aspirava a uma nova condição nacional – foi uma das
formas pelas quais os coevos experimentaram um tempo histórico de crescente
incerteza. Para dar conta dessas incertezas, o tempo histórico do “presente” e o evento
da transferência da Corte passavam a ser considerados contendo funções de “fundação
mítica”; espaços de transição para um futuro a ser prognosticado, antevisto, no limite
até controlado. Cada vez mais o futuro era alçado a referência para a busca pela
compreensão do passado. O futuro a ser projetado tornava-se eixo articulador da
experiência histórica daqueles tempos.
Entre 1821 e 1822, essas distintas expectativas de futuro entraram em conflito
nos espaços públicos de discussão do Reino do Brasil, notadamente ao redor da Corte,
buscando articular suas ideias à direção política para o Império – primeiro, como dito,
português; depois da ruptura, do Brasil. Conceitos até então pouco ou nada usuais
invadiram esses discursos como forma de entendimento daqueles tempos. Liberdade e
despotismo, luzes e trevas, constituição e arbitrariedade etc. forjavam sensações e
conferiam materialidade à ação política dos agentes. Outros conceitos como revolução,
regeneração e restauração produziam sínteses daquela e de outras épocas, buscando
aproximar a lógica das transformações europeias à lógica das mudanças americanas,
(identidades espanhola ou portuguesa americanas), ou o genérico que incorporava o universo da prática
política possível, imediata (identidades espanhola ou portuguesa americanas da Bahia, de São Paulo, de
Quito ou do Paraguay etc.)”. Cf. JANCSÓ, István. A construção dos estados nacionais na América Latina
– apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: SZMRECSÁNYI, Tamás & LAPA, José
Roberto do Amaral. História Econômica da Independência e do Império. 2ª ed. revista. São Paulo:
HUCITEC/ABPHE/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 3-26 (citação à p. 10).
171
A partir dos anos de aceleração que resultaram na ruptura (1821-1822), mais e mais essa unidade
precisava ser recriada. Afinal, a própria ideia de “Império do Brasil” não pode ser tomada como uma
inevitabilidade – concepção, porém, hegemônica na historiografia sobre o período, que vê, para ficar num
exemplo, os movimentos “locais” como “separatistas”, pressupondo, de antemão, a unidade como
fundamento. Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Transmigrar – nove notas a propósito do Império do Brasil.
In: PAMPLONA, Marco Antônio e STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e nação no Brasil e no Chile ao
longo do século XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 97-124.
84
delineando uma única direção para todos os acontecimentos de modo a inserir, nessa
linha, os vários espaços que tencionavam fazer parte do concerto das nações
civilizadas.172 Civilização, aliás, era o grande conceito em formação a costurar as tramas
interpretativas daquela época.173
Os conceitos, evidentemente, não pairam no ar, mas atendem aos interesses de
grupos em conflito na disputa pela construção da direção. E a historiografia sobre o
período é profícua na análise desses grupos e na identificação de seus membros,
especialmente aqueles estudos que opõem dois grupos principais: um forjado numa
espécie de perspectiva americana e outro construído a partir de uma perspectiva
europeia. As distinções pouco têm a ver com a opção imediata pela unidade ou pela
separação: via de regra, não há consenso pelo separatismo senão avançado o ano de
1822. Essa diferenciação mais tem a ver com certa formação intelectual/institucional e
posicionamento a respeito do balanço/equilíbrio da unidade imperial portuguesa. Assim,
na terminologia mais usual, opõem-se aqueles “radicais” àqueles “luso-brasileiros”,
aqueles mais familiarizados com a ideologia das revoluções americana e francesa
àqueles mais próximos da experiência do reformismo português174.
É essa segunda perspectiva que pautará a análise que faremos a partir de agora:
como os “radicais”, os “brasilienses”, enxergavam as transformações por que passavam
o mundo e o Brasil naqueles dias?
172
Para os novos conceitos em disputa naqueles anos, cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das.
Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro:
Revan/FAPERJ, 2003, capítulos 5 e 6; CARVALHO, José Murilo de et alii (orgs.). Às armas, cidadãos!
Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo: Cia das Letras; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012, introdução; LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários:
pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; LUSTOSA,
Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na independência (1821-1823). São Paulo: Cia das
Letras, 2000; Izabel Marson e Cecília Oliveira trabalharam com a ideia de “tangibilidade da nação” para
se referir aos elementos comuns que produziam nos contemporâneos uma certeza acerca da realidade
concreta da nação. Cf. MARSON, Izabel Andrade & OLIVEIRA, Cecília H. L. de Salles (orgs.).
Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2013, introdução.
173
Segundo João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá, o conceito de “civilização” não existia no
mundo luso-americano até o século XIX, embora seu conteúdo “contraconceitual” – construído pela
oposição a termos como selvageria, irreligiosidade, barbárie etc. É na passagem dos séculos XVIII ao
XIX que os vocábulos de raiz “civil” vão ganhando a densidade conceitual que resultará no conceito de
“civilização”, tal como conhecemos ainda hoje. Cf. FERES JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de.
Civilização. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil.2ª
edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 209-231.
174
A terminologia é inspirada em BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852).
Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 76-78. Lúcia Neves inspira-se em Barman para separar os
grupos em “brasilienses” e “coimbrãos”. Cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e
Constitucionais..., p. 48-53.
85
2.2) O Reverbero e a história como história da liberdade.
Para responder a essa pergunta, abordaremos as perspectivas de interpretação
histórica que pautavam o principal veículo de produção de ideias de dois dos nomes
mais representativos daquele grupo: o Reverbero Constitucional Fluminense, periódico
fundado em 1821 por Januário da Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo. Sua existência,
segundo Cecília Salles de Oliveira, foi um desdobramento das lutas políticas que os
liberais do Recôncavo da Guanabara e de Campos dos Goitacazes empreenderam no
contexto da Independência.175
Publicado ao longo de 14 meses (setembro de 1821 a outubro de 1822),
resultando em 48 edições ordinárias e 3 extraordinárias, o Reverbero juntou-se a um
grupo crescente de periódicos que, naquele curto espaço de tempo, no começo dos anos
1820, multiplicou a exposição de posicionamentos políticos na América Portuguesa,
especialmente na Corte. Composto por seções diversas, nas quais expunha os
pensamentos de seus redatores (notadamente na seção “reflexões”) ou pensamentos de
pretensos leitores (especialmente na seção “correspondência”), o Reverbero notabilizouse, desde o começo, pela defesa da manutenção da unidade imperial portuguesa, ao
mesmo tempo em que defendia a valorização da porção americana em pé de igualdade
frente ao velho Reino. Com o passar dos meses, justificando-se a partir de uma
intransigência das Cortes, o Reverbero mudaria a postura para a defesa do rompimento
com Portugal, pregando a aproximação das vontades coletivas no espaço americano em
torno da figura de Dom Pedro como única forma de garantir a continuidade do
desenvolvimento de certa ideia de liberdade – conforme veremos – e de melhoria no
Brasil
176
. Por conta dessa expressão de moderação política, bem como pela
representatividade frente aos grupos econômicos centrais em disputa no Rio de Janeiro
naquele momento, além de pela trajetória que seus fundadores teriam nos quadros
políticos do Império177, o Reverbero constitui um dos principais espaços de discussão
175
OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal..., p. 148-149.
Sobre o Reverbero, cf. SILVA, Virgínia Rodrigues da. O Reverbero Constitucional Fluminense,
constitucionalismo e imprensa no Rio de Janeiro da Independência. Dissertação de mestrado. Niterói,
UFF: 2010, capítulos II e III, e OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal... op. cit.
Isabel Lustosa afirma que o Reverbero foi a primeira publicação de jornal que “não passava pelo crivo do
censor”. Também afirma que era o primeiro espaço onde se defendiam por escrito “as ideias preconizadas
na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade”. Como veremos à frente, isso não significava
uma ausência de posicionamento crítico em relação à Revolução. Cf. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da
imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003 [coleção Descobrindo o Brasil], p. 23
177
Tanto Ledo quanto Barbosa seriam eleitos deputados posteriormente; o segundo ainda seria um dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
176
86
pré-Independência a oferecer uma perspectiva sobre as formas de interpretação do
tempo em produção naquele momento.
A historiografia já há bastante tempo tem abordado o periódico como fonte
privilegiada para análise das transformações em curso nos anos 1821-22, já que tanto o
espaço quanto seus redatores foram personagens centrais dos processos que então se
desenrolavam na Corte, defendendo não apenas um posicionamento do Brasil no
conjunto do Império português, inicialmente, mas, também, passando depois à
separação com vistas a um determinado modelo de Império independente.
Na defesa de seus posicionamentos, em diversos momentos o periódico apelou à
história e a eventos contemporâneos como forma de embasar argumentos e solidificar
posturas distintas em momentos que exigiam certa maleabilidade conceitual, haja vista a
rapidez das transformações a exigir constantes reposicionamentos políticos. Nesses
apelos à história emerge não apenas uma interpretação geral da história do Brasil até ali
(inicialmente como parte da trajetória portuguesa, mas progressivamente ganhando
autonomia numa trajetória própria), mas, também, uma interpretação geral da História
como o desenvolvimento da liberdade em disputa contra o despotismo e a escravidão.
178
Os motores que provocam as mudanças e os eventos marcantes desse
desenvolvimento são também distinguidos pelo periódico como forma de se pensar a
inserção do Brasil nesse quadro mais geral de desenvolvimento. As ideias de progresso
e aperfeiçoamento são centrais aqui.
A edição de número 13 do periódico é exemplar dessa forma de analisar as
transformações históricas daquele tempo. Nesta edição, os editores apresentam uma
tradução de De Pradt, em uma dentre várias vezes que mencionaram o autor ao longo
das edições. O texto, intitulado “A Europa, e América depois da paz de Aix-laChapelle”179, começa com uma citação: “O gênero humano está em marcha; nada o fará
retrogradar” 180. E tal serve para De Pradt expor sua interpretação daquela marcha:
São estas as palavras, de que há anos, e por muitas vezes me tenho
servido: acolhidas a princípio por facções diversas; uns afetados por
esta marcha progressiva e irresistível, outros ou interessados em distrair
a atenção deste grande movimento, e de suas consequências, ou muito
fora da esfera de capacidade necessária para a contemplação de um
igual espetáculo, ao qual tão pouco convém a frivolidade como a
178
Não se trata, como a historiografia a respeito já deixou claro, de uma crítica à escravidão como forma
de exploração da força de trabalho, mas, sim, de uma recusa da “escravidão civil” de base liberal.
179
Reverbero Constitucional Fluminense (doravante, RCF), Número 13, 05 de fevereiro de 1822, Tomo I,
p. 149.
180
Idem, p. 149
87
distração, desde então cada dia, e quase que a cada hora, tem-lhes dado
um eminente grau de confirmação, por uma série sempre aumentativa
de acontecimentos, que rapidamente renovam a face do mundo, e que
na sua continuada progressão reduzem qualquer gênero de oposição a
„inutilidade ou ridículo‟181.
Nestas poucas palavras podem ser percebidas algumas das características que
dão o tom não apenas do Reverbero, mas de diversos contemporâneos a respeito das
mudanças que vislumbravam. Em primeiro lugar, a ideia, presente tanto na citação
quanto na introdução da transcrição, de que uma marcha está em curso e que a ela se
não pode resistir. A marcha não é deste ou daquele grupo, mas do gênero humano; a
totalidade da humanidade aparece contemplada num movimento inescapável e que se
não pode barrar, tampouco desviar ou fazer retroagir. A marcha tem direção e apanha os
distraídos a reboque, sendo a oposição a ela atitude inútil ou ridícula.
Em segundo lugar, essa marcha pode ser percebida pelos que não se distraem,
pelos que têm a capacidade para observá-la. Afinal, a marcha da humanidade oferece, a
“cada dia, e quase que a cada hora”, com acompanhamento quase em tempo real,
simultâneo, um “eminente grau de confirmação, por uma série sempre aumentativa de
acontecimentos, que rapidamente renovam a face do mundo”. O mundo já não é mais o
mesmo e continuará em franca transformação: a marcha é de mudança, de inovação; é
progressiva e dilui as certezas.
A marcha é progressiva: tendência de aceleração continuada. Afinal, deixa claro
De Pradt, “do 1° de janeiro de 1820 ao 1° de setembro do mesmo ano (...) ganhou-se
mais caminho do que nos últimos 800 anos” 182. As transformações do tempo histórico
comprimiam-se em velocidade. A longa estabilidade da História dava lugar a um
processo cujo dinamismo causava estranheza aos contemporâneos. Mas de que serviria
irritar-se ou não querer ver o que existe? Como se o desvio de olhar pudesse fazer a
trama teatral desaparecer, aponta De Pradt. A distração e a cólera seriam apenas jogo de
crianças, incapazes de perceber as coisas como elas estão:
tal é hoje o estado do mundo: (...) porque é o mundo mesmo que nesta
grande efervescência se apresenta a todo o instante, e todo inteiro,
ocupado de um mesmo e único objeto, e ressentindo no seu todo a
vibração de cada um dos movimentos que afeta cada uma das suas
partes. Era verdade em 1789, não deixou de o ser até agora, ainda hoje o
é, e com maior evidência – que não há mais que um negócio no mundo,
o da Revolução – Não de outra sorte o cristianismo ocupou o mundo
181
182
Idem, p. 149-150.
Idem, p. 150.
88
por muitos séculos, e a Reforma por muitos lustros. Na nossa idade já
não há movimentos, nem atos parciais, não há interesses isolados, tudo
se refere à harmonia geral do grande movimento que se opera; a
tendência é declive e uniforme; o fim é comum; todos são co-obrigados
– in solidum – por todos (...) 183 .
O movimento é revolucionário, a vibração das partes afeta o todo. Há uma ideia
comum de humanidade e uma experiência comum revolucionária que percebe no
conjunto as transformações das partes, e os eventos inaugurados em 1789, nesse
sentido, são centrais. 184 Nisso distingue-se a época das anteriores e a Revolução de
movimentos amplos como o cristianismo e a Reforma, que não alcançaram a totalidade
que estes tempos apresentavam aos contemporâneos. A concepção planetária permitia a
formulação sem precedentes de uma escala a incluir toda a humanidade na mesma
trajetória, sempre ligada a transformações temporais, sim, mas com ritmos distintos. “A
propriedade destes grandes movimentos afeta o corpo das Sociedades; deles por longo
tempo data a humanidade; formam épocas, que são como os marcos, pelos quais a
espécie humana reconhece as suas diferentes idades, e os seus diversos modos de
existência” 185 , afirma o francês. Cada época, como os marcos da espécie humana,
produz a síntese das transformações e hierarquiza as idades da humanidade. E, nessa
hierarquização, nenhuma época anterior se compara àquela, diz De Pradt:
Nós somos evidentemente no [sic] centro de um desses formidáveis e
extraordinários sucessos que abraçam vastíssima extensão do tempo, do
espaço e de interesses, e que imprimem nova direção a uma
considerável porção da humanidade; é uma das maiores épocas da
História do mundo. Iede [sic], e marcai algum outro, que seja
comparável ao movimento atual, que abraça a Europa e América, que
apenas até aqui existira para o resto do mundo, e que vale mais que todo
ele; (...) equilibrai esta com a mudança, que fizeram os Impérios de
Alexandre, e Roma; apenas somos na aurora deste renovamento [sic];
porém marcai, se podeis, o espaço que ele abraça. 186
Mudança incomparável e inobservável nos exemplos antigos, não obstante toda
a grandeza produzida pelas civilizações grega e romana. “Nós”, a humanidade, “todos
somos passageiros no mesmo Navio; o mundo tornou-se a Pátria de quantos existimos;
e a comunidade de interesses nos fez verdadeiros Cosmopolitas. Cessarão os interesses
parciais e isolados; é uma e a mesma a cadeia que nos prende, e reúne a um centro
183
Idem, ibidem.
Sobre a questão, cf. PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências: a inserção
do Brasil no mundo ocidental (c.1780 - c.1830). Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2012, capítulos
1 e 2.
185
RCF, número 13, 05 de fevereiro de 1822, Tomo I, p. 149
186
Idem, p. 151
184
89
comum”187. A humanidade toda no mesmo barco, concebida a partir do olhar europeu
de De Pradt, avança num ritmo no qual cada elo da cadeia afeta a cadeia inteira. O
centro comum – a Europa e a América – formam a fonte que dita o avanço desse navio.
As transformações (revolucionárias) produzem a incerteza. A Europa que produz essa
renovação é ainda uma Europa provisória, diz De Pradt: a “Europa definitiva pertencerá
a outros tempos” 188 . A certeza fica para o futuro; a imprevisibilidade é a marca do
presente, imprevisibilidade que produz uma construção189.
A perspectiva de De Pradt daria o tom da interpretação daquele momento
histórico presente no Reverbero190. Assim como o abade Raynal, De Pradt foi um dos
principais intérpretes dos acontecimentos americanos a ser manejado discursivamente
por todos aqueles envolvidos na disputa ideológica sobre os rumos que a América em
geral, e o Brasil de maneira específica, deveriam tomar 191 . Os prognósticos que
destacavam a inevitabilidade da emancipação das colônias americanas, tomando-se por
exemplo os acontecimentos das 13 colônias inglesas, do Haiti e, posteriormente, das
demais regiões coloniais, fortaleciam uma concepção progressista e a leitura da história
recente como produção de um conjunto unitário a abarcar toda a humanidade num ritmo
acelerado de transformações. Tal definia as fronteiras a separar o conjunto que “vale
mais” do restante do mundo; o conjunto que daria a direção daqueles que apenas
seguiriam o ritmo. No Brasil, dessa forma, as palavras de De Pradt provocavam a
necessidade de inclusão: qual a posição da América lusa naquele contexto? De onde
partia e até onde chegaria a civilização brasílica? Como se relacionaria a esse conjunto
de transformações?
A tônica geral da inevitabilidade da emancipação fazia parte de um quadro geral
que entendia a história como “história da liberdade”, sempre em alerta contra os riscos
187
Idem, p. 152
Idem, p. 151
189
Para a imprevisibilidade como marca do período, cf. SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de
crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006.
190
Assim como em outros periódicos do período. Cf. SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos.
Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. Dissertação
de mestrado. São Paulo: USP, 2010, p. 131; FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no
processo de Independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015, p.
117-118; PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências... op. cit.; PIMENTA,
João Paulo Garrido. O Brasil e a América Espanhola (1808-1822). Tese de doutorado. São Paulo: USP,
2003, p. 70.
191
MOREL, Marco. Independência no papel: a imprensa periódica. In: p. JANCSÓ, István (org.).
Independência: história e historiografia. São Paulo: HUCITEC, 2005, p. 617-638; PIMENTA, João Paulo
Garrido. De Raynal a De Pradt: apontamentos para um estudo da ideia de emancipação da América e sua
leitura no Brasil. Almanack Braziliense, n. 11, São Paulo, maio de 2010, p. 88-99.
188
90
do “Despotismo” e da “escravidão” 192 . É um tom marcado por uma interpretação
histórica fortemente política, na qual o resultado dos embates depende fortemente do
movimento das ideias e da ação dos governos. No contexto luso-brasileiro, foi a
Revolução do Porto, na visão do Reverbero, que serviu de acontecimento central para
sua interpretação daqueles tempos e para inserção do mundo português, bem como do
Brasil, na “marcha da humanidade”. A data de 24 de agosto, começo da Revolução do
Porto, é tido como o dia em que “ressurgiu a antiga glória com a antiga Liberdade” 193,
momento de reconexão do presente com o passado, na trajetória desejada pelo
desenvolvimento dos tempos. A liberdade é a luz; o despotismo são as trevas. A
imagem é a do espetáculo da Liberdade que planta seu estandarte no Brasil, que sofria
há três séculos o jugo dos “vergonhosos ferros” da escravidão194, momento produzido
pelo “clarão brilhantíssimo da Regeneração Civil”, que “marcou para sempre nas
páginas da nossa História o célebre dia 24 de Agosto do ano de 1820”. Aí é que se
afirmou “nossa glória, a nossa honra, o nosso caráter”, “nossa tão desejada
prosperidade”195.
A imagem do “clarão” que ilumina as trevas do despotismo é significativa:
remete a um rompimento, mais do que acúmulo progressista. O clarão ilumina os
“vergonhosos ferros” que escravizam o Brasil há três séculos, mas que, pela dominância
da escuridão, não eram vistos como tal. O clarão que irrompe, portanto, permite a
visualização da própria condição colonial, que, então, será posta em perspectiva numa
nova dinâmica (a “marcha da humanidade” produz uma nova época). A liberdade que
planta seu estandarte no Brasil é fruto dessa irrupção. E, considerando-se o sentido
moral do verbo “plantar”, pode-se considerar que é o movimento do Porto que
possibilita o próprio exercício das novas doutrinas das luzes; sem o movimento que
rompe a dinâmica do Antigo Regime, o Brasil não poderia absorver as necessárias luzes
para vislumbrar sua própria condição de escravidão 196. É assim que o movimento do
Porto é considerado o evento inaugural da interpretação do passado brasileiro que ficará
Para o significado de “escravidão” nesse contexto, ver nota 38 acima.
RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 02.
194
Idem, p. 03
195
Idem, p. 07
196
Em Bluteau, “plantar, no sentido moral, vale o mesmo que fundar, estabelecer ensinando, pregando,
&c.”. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. volume 6. Lisboa: Oficina de Pascoal
da Sylva, 1720, p. 545. Em Moraes e Silva, “Plantar” pode também ser usada no sentido de “plantar
virtudes, costumes; introduzir no ânimo”. Também “plantar doutrina”, “plantar as letras, as ciências”.Cf.
MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos até o
presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Segundo. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda,
1823, p. 418-419.
192
193
91
sintetizado, como já analisado em outros trabalhos, na fórmula dos “três séculos de
opressão”197.
O movimento do Porto, dessa maneira, ao ser interpretado como inauguração do
processo de aceleração da transformação do despotismo em liberdade no Império
Português, previne o encaminhamento dessa passagem por vias que possam fugir ao
controle dos envolvidos. Essa é uma questão central para os coevos, pois, se a liberdade
é necessária, é preciso que seu proceder seja controlado. A luta do homem contra a
escravidão, afinal, é percebida como entalhada na própria condição humana; a opressão
é vista como um “estado contrafeito para o homem”, chegando ao ponto de o avisar,
“pelas dores, a que procure a natural posição, em que só pode viver e prosperar 198. A
resistência ao despotismo é inevitável, e
isto, que a cada momento observamos no homem físico, a história nos
aponta também no homem moral, e quando não é o efeito de uma
exasperação terrível, é o resultado de uma acumulação de luzes
científicas, que adoçando os meios, com que procura o seu
melhoramento, não macula a sua honra, não ensangüenta os seus
planos, porque os escolhe com prudência, e os dirige com firmeza e
com desinteresse pessoal. 199
A liberdade é uma inevitabilidade da condição humana: ou se a buscará por um
rompimento enfurecido, ou por um caminho abrandado e adoçado pelas luzes
científicas. O movimento português, encaixado no segundo exemplo, permitira uma
transição segura ao estado natural do homem, desviado pela opressão despótica. A
Providência Celeste, como autora do movimento, garantiria também a tranqüilidade 200.
E o apelo à lembrança de um outro passado de luta contra a opressão serviria para
garantir uma segurança no presente:
Este dia avivando a lembrança daquele outro, que no ano de 1640
recomendou a nossa honra ao pasmo de todas as Nações civilizadas,
marca nos Anais da monarquia duas épocas, que eternizam a nossa
glória. Mas se então os portugueses deram provas decisivas, de que não
era do seu caráter brioso o arrastar cadeias, que lhes lançara uma mão
estranha, hoje com verdadeiro heroísmo mostram, que também se
197
SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro... op. cit.; FANNI, Rafael.
Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do Brasil... op. cit.
198
RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 08.
199
Idem, p. 08.
200
Idem, p. 09. Para a permanência da “providência” nas linguagens historiográficas oitocentistas, cf.
ROSA, Giorgio de Lacerda. A Suprema Causa Motora: o providencialismo e a escrita da história no
Brasil (1808-1825). Dissertação de mestrado. Mariana, MG: ICHS/UFOP, 2011, cap. 3.
92
envergonhavam da opressão caseira, emanada dos que, ao invés de
promoverem o bem de todos, abusavam da bondade do Soberano. 201
O apelo a 1640 não serve, aqui, apenas para traçar paralelo a uma situação tida
como semelhante, mas para mostrar a naturalização da condição do “ser português” que
atravessava os séculos. A luta contra a opressão é alçada a luta histórica da condição
humana, e 1640 contextualiza a condição na existência portuguesa. Já tendo antes dado
provas de não se curvar frente à opressão, agora 1820 pode reativar aqueles brios e
tornar ao caminho de onde nunca Portugal se devia ter desviado: a liberdade que produz
a necessária prosperidade.
A necessidade de controle do movimento de transformação, naquele momento,
podia ser satisfeita pelo brio português em si, pelo histórico que mostrava sucesso em
outros eventos considerados análogos e pela presença do rei, que deveria ser preservada.
Afinal, se, por um lado, o conteúdo da crítica à opressão ainda não atingia diretamente
Dom João VI, por outro lado revivia-se a velha fórmula dos aduladores que desviam o
soberano de sua verdadeira essência. Longe de ser tratado como um déspota, Dom João
VI é equiparado a outros monarcas históricos de Portugal, como o “grande Afonso” e o
“invicto João I”202. Mas, cercado por maus conselheiros, qualquer crítica que se fizesse
ao encobrimento dos ministros logo produziria, da parte destes, apelos a tragédias da
História recente, com gritos de “Revolução, Jacobinismo”.203 Se a lógica da história da
liberdade era uma inevitabilidade da condição humana, e se Portugal dava mostras, com
os eventos do Porto, de integrar-se a essa trajetória universal da humanidade, então era
preciso superar, inclusive, os riscos passados em nome de uma transição tranqüila. Tal
não se daria reprimindo os movimentos transformadores sob a desculpa da caça aos
jacobinos revolucionários. Pelo contrário: a transição se daria pela completa “fortaleza
da alma”, possível apenas em Estados livres, e não em Absolutos, que consistia na
possibilidade de mostrar a verdade aos reis a partir do sacrifício do interesse à virtude,
pela elevação à honra e à fortuna. Apenas Estados livres onde a imprensa “é a
salvaguarda da Nação”. Apenas Estados livres o suficiente para cumprir a lógica da
liberdade.
O caminho, indicava o Reverbero, não era apenas rumo ao futuro, mas também
um olhar ao passado. Considerando-se que a história da liberdade era uma constante
201
RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 09.
RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 13.
203
Idem, p. 15
202
93
humana, e considerando-se a trajetória de glórias de Portugal 204, lembra o periódico que,
no passado, os portugueses já haviam tido esse tipo de situação, na qual o rei não era
conduzido a considerar-se absoluto, dono de tudo, mas respeitava uma constituição que
mantinha a justiça:
Vós tivestes destes homens ó portugueses, nos dias doirados da vossa
liberdade, quando a vossa Constituição seguida à risca fulminava, e
reduzia a opróbrio aqueles que não falassem verdade aos Reis; então é
que o escrivão que lavrava o testamento de João II recusou escrever
para seu Sucessor o nome do Príncipe D. Jorge, que o rei nomeou com
prejuízo ao Duque de Béja, em que por justiça devera recair; então é
que na tomada de Safim não quis outro lançar as ordens para uma
contribuição extraordinária, bem que precisa, dizendo ao Rei, (que o
tentou até com a prisão) – Vossa Alteza não pode lançar tributos sem
convocação e aprovação de Cortes – Ah! Que diferença! Até agora só
lhe diriam: as leis casuísticas da equidade não são para um grande
Potentado: quanto o estado tem é patrimônio dos reis, e até o mesmo ar,
que respiram os Vassalos é um favor do Soberano, que é o representante
de Deus – O Cortesão com grandeza d´alma e elevação dos sentimentos
é um fenômeno: a natureza leva séculos para produzir um Sully, e o
Conselheiro de Afonso IV, não acha modelos na história dos Povos
escravos.205
Nesse sentido, as referências a reis do começo da monarquia – João II, Manoel I
(menção na tomada de Safim) e Afonso IV – trazem à imagem do leitor um momento
do passado no qual as leis existiam, eram cumpridas e garantiam a liberdade, e reforça a
ideia da Revolução como Regeneração, ou da Revolução no sentido à inglesa do
termo206. O grande culpado, nas páginas do periódico, são os aduladores, a Corte, os
ministros “indignamente complacentes”, “ávidos de distinções e honras”. Tal
movimento não era exclusivamente português: os riscos do decaimento da monarquia
graças aos corruptores era uma constante na História.
204
Para a percepção de passado de glória e atualidade de decadência de Portugal na obra de José
Bonifácio, cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação
nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, cap. 1.
205
RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 15-16.
206
O conceito de Revolução vivia sob tensão naquele momento, tensão esta que ultrapassa inclusive a
temporalidade deste trabalho. Para as disputas em torno do termo naquele momento, e para outros usos do
passado glorioso português naquele contexto, cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Revolução: em
busca do conceito no império luso-brasileiro [1789-1822]. In: JÚNIOR, João Feres & JARDIM, Marcelo
(orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Ed. Loyola:
IUPERJ, 2007, p. 129-140, especialmente 137-138; PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do
Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da historiografia. Ouro
Preto, número 03, setembro 2009, p. 53-82. Para o conceito “à inglesa” do termo e sua influência sobre a
Revolução Americana, cf. GUSDORF, Georges. As revoluções da França e da América: a violência e a
sabedoria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. Para uma discussão clássica e muito influente sobre as
diferenças entre o conceito para os casos americano e francês, bem como para as diferenças entre o
conceito de revolução ao longo do tempo, cf. ARENDT, Hanna. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das
Letras, 2011, p. 57-91.
94
Consultemos a história, Astiages deu a comer a Harpago a carne de seu
próprio filho, e perguntando-lhe que tal a achava, respondeu o Cortesão
– Excelente: à mesa do Rei tudo é saboroso – Camises [sic] para
mostrar a sua destreza em atirar atravessou o coração de um menino aos
olhos de seu pai, e este exclamou – Nem Apolo atiraria melhor.207
Trata-se, segundo o periódico, de exemplos que provam até onde o homem pode
envilecer-se e degradar-se. E que, não fosse isso, o encaminhamento feito por Portugal e
congêneres teria muito a ensinar àquelas regiões que ainda não sincronizavam suas
temporalidades antigas, de opressão, ao novo momento:
E porque [sic] fatalidade não tem a massa geral dos homens seguido os
exemplos da Inglaterra, Espanha, e Portugal? (...) Porque [sic] os reis do
mundo não se dão pressa a marchar pela estrada há pouco trilhada pelo
Magnânimo, pelo Grande e Imortal João VI? É porque os princípios da
moral são ignorados pela maior parte dos homens, que infelizmente os
consideram pelo microscópio enganador de prejuízos destruidores. 208
Restava lamentar a sorte da humanidade e esperar que essa verdade, como em
Portugal e no Brasil, alcançasse toda a família humana.
A questão é interessante: Portugal, de país atrasado na Europa, da percepção de
um afastamento gradual em relação aos seus pares, de espaço periférico tanto em
relação a uma certa concepção de modernidade escravista (expresso na superação do
“sistema atlântico ibérico” pelo “sistema atlântico do noroeste europeu”, com Inglaterra
e França 209 ) quanto da modernidade política (que fazia urgir toda a lógica do
reformismo210) agora aparecia como vanguarda daquela “marcha da humanidade” de
que falava De Pradt, promovendo uma conexão com o passado (tanto 1640 quanto os
primórdios da monarquia) em nome da superação do despotismo que, sempre à espreita,
nas atitudes dos que cercam o soberano, tencionava atingir o estado natural do homem:
a liberdade. A construção de uma lógica histórica associada à eterna luta da liberdade
contra a opressão, isto que estamos chamando de “história como história da liberdade”,
permitia um livre deslocamento temporal para qualquer momento do passado em nome
207
RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 17. Tratam-se de figuras do antigo Império Medo.
“Camises” pode se referir a “Cambises”, filho de Ciro.
208
Idem, p. 18-19.
209
BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba,
1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010. Voltaremos à questão da modernidade escravista no
último capítulo.
210
Esse esforço, inclusive, produziu uma primeira ideia de “Brasil” como unidade no conjunto imperial: a
busca pela superação do atraso significava um maior destacamento à posição da América Portuguesa no
conjunto imperial, segundo a ótica metropolitana. Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação:
intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime português (1750-1822). São
Paulo: HUCITEC: FAPESP, 2006, capítulos 1 e 2 e conclusão.
95
do presente, e tal servia plenamente à leitura do porvir. A luta pela liberdade, sendo
eterna à condição humana, encontrava seus altos e baixos na história, construindo uma
lógica inescapável. O momento atual era de renovação, é certo, mas, não obstante todo o
sentimento de provisoriedade e fragmentação, a interpretação dos fatos presentes à luz
dessa lógica e da compreensão do passado possibilitava um seguro encaminhamento
para afastar os riscos mais danosos.
Um esforço de permanência da historia magistra vitae nos novos tempos,
contradizendo sua dissolução característica da modernidade conceitual à Koselleck?211
Nos novos tempos, deveriam desaparecer “todas as velhas, decrépitas, e desusadas
ideias opostas às luzes do século, ao progresso do entendimento humano, à civilização
da Europa, e a aquelas reformas que têm introduzido nos Governos as ideias liberais”.
Um novo tempo se construía, inspirando terror àqueles “que se não podem persuadir
que é chegado o tempo de se governarem os Povos por uma maneira diferente daquela
porque foram governados há cem anos”.212 A forma de lidar com essa diferença era, de
certa forma, apegar-se a uma lógica que se aproximasse do imutável.
A luta pela liberdade na Europa, que teria inclusive vencido Napoleão, “o maior
inimigos das ideias liberais”, era travada naquele alvorecer da década de 1820. Não se
tratava, na percepção dos redatores, de guerra vencida. Pelo contrário: Portugal, sendo
cabeça das transformações, bem como a Espanha, ainda eram “considerados pedras de
escândalo”, “aborrecidas e anatematizadas” pelo odioso vocabulário dos antigos
governos, parto do feudalismo e da escravidão, em que “desgraçadamente
gemíamos”213. O presente oferecia resistências ao avanço da liberdade. Era importante,
portanto, ampliar a perspectiva e jogar a origem da batalha pela liberdade para o
passado distante, para sustentar a noção de que havia suficiente consistência na história
portuguesa para alimentar os espíritos com a possibilidade de renovada vitória na
contemporaneidade. Assim como 1640 fornecia a Portugal uma justificativa para
fortalecer o fundo da luta contemporânea, outro “fato histórico” era lembrado às folhas
européias identificadas ao despotismo “que assaz favorece a nossa causa”. Segundo o
texto apontava,
Andre II, no ano de 1204, publicou a favor dos Hungaros um Decreto,
no qual se declarou o seguinte: - Se eu, ou qualquer dos meus
211
KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, cap. 2.
212
RCF, Número 7, 15 de dezembro de 1821, Tomo I, p. 79.
213
Idem, p. 80
96
sucessores, quiser em algum tempo anular os vossos privilégios, servoshá permitido a vós, e a vossos descendentes, por esta minha declaração,
defender-vos com armas, sem que sejais por isto tratados de rebeldes. –
Maria Thereza, em tempos mais próximos de nós, ratificou esta
declaração: assim o manifestam os Anais da Hungria, e Alemanha:
assim está escrito na vida de José II, impressa em Madrid, no Reinado
de Carlos IV, Tomo I, p. 20. – Nem André, nem Maria Theresa
receberam do Céu os direitos, com que reinaram, porque se assim fosse
não teriam tão solenemente pronunciado o direito de resistência dos
Povos, para conservação dos seus foros214
O poder não descia dos céus, mas vinha de baixo; o decreto real, já no começo
do século XIII, reforçaria a lógica natural da história ao proclamar o direito de
resistência contra qualquer opressão. O caminho do rei húngaro somava-se aos
servidores de João II e Afonso IV, a 1640 e também ao movimento das Cortes em 1820
como sucessivas atualizações de uma mesma lógica histórica que ampliava, seguindo a
interpretação de De Pradt, a marcha da liberdade até o alcance de toda a humanidade.
Os intervalos de opressão eram suprimidos; os grandes homens de cada momento, como
guardiões da liberdade, garantiam a continuidade e a existência histórica concreta do
natural desejo do ser humano.
O processo de exercício da liberdade, porém, como já vimos, comportava riscos.
Especialmente nos momentos de ruptura mais acentuada, quando a tensão entre
opressão e liberdade aumentava a ponto de a segunda, no limiar da explosão, arriscar-se
fazer de tudo para garantir a própria existência, o retorno ao passado com intuito de
produzir uma conexão com a eterna luta pela liberdade aparecia como caminho para
suavizar a violência do processo. Afinal, a liberdade, não obstante fosse definida como
natural ao homem e aparecesse como auto-evidente, junto aos demais direitos naturais,
precisava ser qualificada, gerando, por um lado, uma aparente contradição 215, porém,
por outro, marcando os limites do entendimento. Num século herdeiro de revoluções
que, em nome da liberdade, produziram caminhos tão distintos, o adversário comum –
identificado ao despotismo – não era suficiente para que todos os lados se unissem
numa só direção.
Isso justifica, por exemplo, a preocupação com a associação vista pelos
redatores, em Portugal, entre os termos “independência” e “jacobinismo”: “hoje o termo
– independência – substitui o de - jacobinismo - há bem pouco usado em Portugal para
denegrir a honra de cidadãos beneméritos, talvez para vinganças particulares, e quase
214
Idem, p. 80
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Cia das Letras, 2009,
introdução.
215
97
sempre o menor fundamento para tão hórridas calúnias?”216. As páginas da história já se
achavam carregadas de episódios perigosos em nome da liberdade, e, no contexto dos
anos 1820, manter-se na defensiva sobre as reais intenções era quase uma
inevitabilidade:
Temeremos dizer que as páginas da moderna história da França,
manchadas com todos os horrores da Anarquia e de um Despotismo
ainda mais cruel, do que aquele, de que se diziam livres, assusta e
desengana os que poderiam ter ideias de uma independência
Republicana? (...) Que outra independência podemos nós desejar do que
aquela que nos afiança uma sábia e bem proporcionada Constituição?
217
A luta pela liberdade era uma luta arriscada para quem a defendia contra o
despotismo. Afinal, onde acabava esta batalha e começava uma outra, daqueles que
desejassem esticar até o limite o conceito, a exemplo da França jacobina? Era preciso
manter o distanciamento, e se, por um lado, defender os revolucionários da pecha de
“revolucionários” era parte do processo218, por outro havia constantemente a lembrança
dos riscos que se escondiam sob a luta pela liberdade.219
A solução, sugeria um correspondente ao Reverbero, não se alcançaria por leis e
cárceres, mas passava pela instrução. Afinal, o
único método de prevenir os crimes, e fazer o Governo durável, é
difundir luzes e ciências pelo Estado, como sementes fecundas de todas
as virtudes. Na verdade conhecemos, de onde começa a História, ainda
com o socorro da Fábula, até os nossos dias; que um Povo por virtuoso
216
RCF, Número 8, 01 de janeiro de 1822, Tomo I, p. 86
Idem, p. 87. Diria ainda em outro número: “A Liberdade (dizia aos Polacos o Cidadão de Genebra
[Rousseau]) é como os alimentos fortes, que só se digerem por estômagos vigorosos. A liberdade sem
virtude, degenera em licença, e cedo ou tarde, em Anarquia, pior que o despotismo.” RCF, Número 7, 15
de dezembro de 1821, Tomo I, p. 77.
218
Extrato do Morning Chronicle publicado pelo Reverbero em novembro de 1821, por exemplo,
lembrando o papel de Portugal e Espanha para livrar a Inglaterra de seus males “quando Bonaparte
mandava toda a Costa desde o Neva até a Grécia”, critica os que, naquele começo dos anos 1820,
consideravam os países “revolucionários”, dizendo que os que assim os chamam hoje até pouco tempo os
chamavam de “Protetores da Liberdade da Europa contra Bonaparte. Mudaram os tempos; mas os
Espanhóis são ainda os mesmos”. Lembra, ainda, que seis mil soldados franceses puderam desembarcar
na Irlanda, e “poderiam cem mil ter feito outro tanto na Inglaterra, se não fossem os Democráticos, e os
Revolucionários Espanhóis, e Portugueses, que amam a sua Honra, e Dignidade, assim como amam os
seus Reis.” RCF, Número 5, 15 de novembro de 1821, p. 59-60
219
Outro extrato do mesmo jornal, num Reverbero de janeiro de 1822, transcrevendo o “Memorial que os
membros do club patriótico de Valhadolid apresentaram a Fernando VII” afirmaria: Diz temer uma nova
revolução, “que será horrível e ensangüentada, porque os liberais de 1821 não são os de 1814”, e que “As
revoluções, bem como as tempestades descarregam a sua principal fúria sobre os pontos mais elevados.”
RCF, Número 10, 15 de janeiro de 1822, p. 124.
217
98
que seja, sem luzes se corrompe; e que um Povo corrupto pode fazer-se
virtuoso pela instrução. 220
Assim é que “só uma instrução sólida, que vivifique a razão, demarca os limites,
dos quais nem parem aquém, nem transcendam as pertenções [sic]” 221. Sem ela, podiase chegar ao abismo. O exemplo vem da França em contraste com as 13 colônias:
A Revolução Francesa, Livro Mestre a todas as Nações do Mundo,
abortou, porque luzes verdadeiras, e princípios razoáveis, não fizeram
em todos uma só vontade, e um só modo de atuar. Perto estiveram os
Anglo-Americanos, não cessando a Revolução, ainda depois da paz
1789 [sic], de se despenharem no mesmo precipício. 222
Os grandes impérios têm caminhado do Oriente para o Ocidente, continua a
edição. Se novos terremotos e convulsões agitarem o Antigo Mundo, o Novo será o
asilo das ciências e das virtudes 223 . O mundo que se descortinava colocava as
transformações em curso no mundo atlântico numa retórica valorativa que fazia o futuro
nascer do modo pelo qual conduzia-se a revolução. Com um pé no passado e outro
firme no presente, o futuro não pareceria tão assustador:
A instrução não só regula a conduta presente, senão ainda previne, e
providencia a marcha do futuro. O presente está prenhe do porvir, diz
Leibnitz, e pode-se conhecer a conexão por observadores atentos e
profundos. As medidas e providências dos homens são proporcionais às
suas vistas. O que é cego do futuro tropeçará em mil obstáculos no
caminho da vida.224
A instrução permitiria a difusão das luzes e a certeza do caminho seguro a ser
seguido. A contração do futuro e do passado na fórmula de Leibnitz – que também era
utilizada por outros à época, como Silvestre Ferreira, com a ideia da existência de uma
“unidade ontológica visível a partir de uma perspectiva superior” – oferecia uma visão
otimista aos contemporâneos da Independência, pela ideia de que “observadores atentos
e profundos” poderiam conhecer a conexão temporal que produzia essa unidade 225. Tal
220
RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 209-210. A questão da instrução como elemento
de garantia de saída do barbarismo seria uma constante na produção intelectual do Império – e também
em outras partes da América. Para o caso específico da obra do Visconde de Uruguai, inclusive com
influência da produção francesa sobre educação, cf. SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e
Barbárie... op. cit., em especial o capítulo 3.
221
RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 212
222
Idem, p. 212
223
Essa perspectiva já motivava os escritos de José Bonifácio. Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A
experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo:
Aderaldo & Rothschild, 2008, cap. 1 e 2.
224
RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 212, grifos meus.
225
Para a “unidade ontológica” da fórmula em Silvestre Ferreira, cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A
experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo:
99
conhecimento, aplicado a uma ação, garantiria a continuidade da História da Liberdade
sem os percalços que a eterna e necessária luta poderia atravessar. Os “mil obstáculos
no caminho da vida” apareceriam não como inevitabilidade, mas como resultado da
condução da luta pelo “cego do futuro”, que não conseguiria ler no tempo presente os
fios que constroem o tempo futuro.
O aprendizado, como visto, era garantia de fortalecimento da compreensão
desses fios. Dentre os elementos do aprendizado, a matemática se sobressai, pois seus
princípios “são a base eterna, a Metafísica primordial, o Genesis da exatidão em todos
os conhecimentos humanos”. Estes princípios
são para o espírito, poderoso incitante, familiarizando-o e habituando-o
a proceder com ordem, e sistema, e à prática de uma Lógica inacessível
a sofismas, e paralogismos. É admirável que entre milhares de pessoas,
que perderam o juízo na Revolução Francesa, o principal clinico dos
Maníacos, não visse entre eles um só Geometra. Tanto é o vigor a
firmeza [sic] que dão estes princípios ao Entendimento humano! 226
E conclama: “Avante, avante, e progressivamente à perfeição; de forma que
essas maravilhas Políticas, objetos da admiração da História, despojadas do esplendor,
vão, com que se tem revestido, nada mais pareçam aos nossos vindouros, do que brincos
frívolos, e muitas vezes funestos, da infância do gênero humano. Avante nas luzes,
avante no melhoramento”.227 O aperfeiçoamento progressivo garantiria a boa definição
de liberdade.
Não que o Brasil já não estivesse em um nível adequado de instrução para sua
liberdade, pelo contrário. Na verdade, no momento em que as distâncias entre as Cortes
e os grupos que disputam a direção no Rio de Janeiro chega ao auge, em meados de
1822, qualquer preocupação com os níveis de instrução necessários ao rompimento
submetem-se ao sabor das circunstâncias. Afinal, se o rompimento se afigurava
inevitável, não sendo vislumbrada outra opção, qualquer alternativa que duvidasse da
capacidade do Brasil em exercer sua autonomia política, ingressando no circuito da
lógica liberdade x despotismo sem o braço português, levaria ao fracasso. Assim é que,
Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 95-96. Uma década depois do contexto do rompimento, José Bonifácio,
afastado da vida política e tendo fracassado em seu projeto restauracionista na América Portuguesa,
utilizaria a mesma fórmula de Leibnitz com pessimismo. Em Bonifácio, a frase ganha ares de apego a um
universo conceitual passado para compreensão de um provir que não mais se apresenta a ele como
passível de leitura clara. Tal se explicitava no uso do verbo “esperar”: “comentando com o amigo
Meneses a morte da Imperatriz, [Bonifácio] escreveu: „Esperemos: que o presente está prenhe de futuro”.
Cf. Idem, p. 96.
226
Idem, p. 215
227
Idem, p. 216
100
comparado a outros povos que, no passado, exerceram seu direito à libertação, o Brasil
não poderia levar desvantagem. Os brasílicos poderiam se regozijar, respondendo
àqueles que os considerassem fracos em luzes:
Mas concedamos por cinco minutos o paradoxo da nossa falta de
conhecimentos. Por ventura os Germanos quando fizeram a sua
formidável Dieta para dividirem o gigantesco Colosso do Império
Romano, quando organizaram essa Constituição, que os fez
Independentes no meio de todas as comoções dos Senhores do mundo,
tinham grandes conhecimentos políticos? Os Povos da Suécia, cuja
Constituição primordial é ainda hoje contemplada como um grande
modelo; os Franceses no tempo de Henrique IV, à frente do Congresso
de Roma estariam mais adiantados do que nós? Amigos, é no berço das
indignações que nascem os Aristides, os Alcebíades e os Thesmitocles
[sic]228
Se a história da liberdade produzida era capaz de comprimir as distâncias entre
tempos passados e o tempo presente, então uma escala única poderia dar conta de medir
todos os elementos necessários à plena realização da liberdade, sem qualquer
necessidade de consideração contextual. Sim: faltava instrução, e ela era fundamental à
libertação sem os desvios do sangue ou da anarquia, mas já o Brasil encontrava-se
suficientemente adiantado, quando comparado a outros momentos de vitória da
liberdade, para fazer nascer os seus Aristides, Alcebíades e Temístocles. Afinal,
as ideias da liberdade da prosperidade da segurança Individual são
ideias inatas em todas as Nações: o fio de Ariadne nunca falta àqueles
que fazem esforços por saírem dos labirintos: um Povo que se propõe
organizar o plano de seu melhoramento acha em si um gênio particular
que o ilumina. Os Brasileiros não podem ver sem lágrimas, que os seus
irmãos caminhem passo a passo após dos vestígios das três Assembleias
Constituintes de França; cotejando as folhas dos debates
revolucionários com os Diários das Cortes acham até as mesmas
expressões de que alguns Deputados se servem, e desconhão[sic], ou
melhor já lastimam o infeliz resultado por um princípio teórica e
praticamente conhecido nos melhores Publicistas, que não se pode
transportar o plano de Legislação de uma por outra nação sem mil
inconvenientes e obstáculos indestrutivos, e que infalivelmente devem
comprometer a sorte das Monarquias se à força tentarem esta
classificação.229
Quando se rompe a unidade conceitual do Império luso-brasileiro, mudam-se
também alguns detalhes da interpretação. A instrução continuava fundamental, mas
agora destacava-se que, na ausência dela, “um gênio particular” iria iluminar aqueles
que, por esforço, buscassem sair do labirinto e dar vazão às ideias de liberdade e
228
229
RCF, Tomo Segundo, Número 02, 04 de junho de 1822, p. 13-14.
Idem, p. 14.
101
prosperidade que, inatas, alimentam o coração de todas as nações (inclusive das
novas...). A conexão com o passado, que até então unia os destinos de Brasil e Portugal
às vitórias da liberdade em tempos antigos, agora separava os dois lados do Atlântico,
jogando a face europeia não ás vitórias, mas à cola da derrota francesa: as Cortes
seguiam o mesmo fracassado caminho que arriscara a França à ruína, apenas por não
atentar às particularidades que destacavam cada povo no conjunto das nações 230 . A
unidade que, até então, dava o tom na interpretação da lógica histórica da luta da
liberdade cedia espaço, agora, à cor local. A ausência desse atendimento, a ausência da
“liberalização”, faria o Povo voltar-se contra seus próprios representantes, liberando, no
lugar, o germe das facções, envenenando as medidas mais ajustadas:
Eis as causas porque raras vezes as Assembleias gerais deixam
de abortar tornando-se mais perigosas do que úteis: eis o motivo
porque a França nos últimos dias de Luiz XVI, viu mudado o
teatro de sua regeneração em um tempo de euriçaria [sic], e
surgir debaixo das ruínas do trono dos Reis um monstro
infinitamente mais feroz do que o Despotismo, que se procurava
suplantar.231
Se a liberdade era inevitável, posto que contida no coração do homem, o
caminho de seu alcance era repleto de riscos. A liberdade pela qual se lutava, assim,
embora moderna, apresentava-se como pautada por uma eterna luta partida da condição
humana. Não para fracionar ou dividir, pelo contrário: os que procuram cismas não são
amigos da liberdade, afirmava o Reverbero. A luta, afinal, era pela renovação: “a
Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o amor da Pátria não pode
separar-se do amor da Nação; e o que dizemos em favor do Brasil, redunda em
Em longa citação, a edição afirmaria: “O legislador que não atende para os sentimentos dos Povos,
para os primitivos elementos de sua educação, para a influência daqueles costumes que com o tempo se
incorporam no Código da Legislação Nacional, o legislador que pretende fazer de um Romano um
Ateniense, que pretende dar às Repúblicas, ou Monarquias modernas, a têmpera das antigas, em lugar de
um Código de Legislação oferecerão aos Povos a sentença de sua desgraça e da completa raiva. Os
ingleses tinham uma tendência natural para o seu sistema de Governo, e por isso o célebre Eduardo,
depois de haver apresentado a Carta, não pôde obrigá-los a retrocederem. Os franceses tinham uma
impossibilidade moral para o estabelecimento da Democracia, puseram em movimento todas as molas
que forjou o delírio, e depois de se estrangularem, voltaram a um estado pior, ao do Despotismo
Monárquico Militar, e hoje debaixo da antiga Dinastia vivem em convulsões por não conhecerem os
limites da grande Carta. O estado atual das nações indica suficientemente que todas esperam uma
legislação liberal, destruidora dos abusos introduzidos pelas brechas nas antigas Constituições, a grande
arte dos novos organizadores deste plano se manifestará se eles acertarem com o encadeamento deste nó
górdio; porém deixarão tudo em pior estado se o cortarem à espada.” Idem, p. 14.
231
Idem, p. 15.
230
102
benefício de Portugal”. Desse modo, “somos livres, abraçamos a Causa que se
identificou com o nosso mesmo sangue”232.
2.3) O Brasil como trajetória portuguesa na América.
Dentro desse contexto de interpretação da história geral, cabe uma pergunta
fundamental: o que era o Brasil aos olhos do Reverbero? Podemos dizer que a definição
sofreu algumas alterações no breve período de duração do periódico.
A concepção inicial presente nos discursos dentro do Reverbero apresentava o
Brasil como um espaço
escondido por muitos séculos às vistas dos Geógrafos, [que] encerrava
no seu seio todas as preciosidades da natureza; era um grande tesouro,
mas só possuído pelos indígenas, nações bárbaras, destituídas de
conhecimentos polidos, e de toda a comunicação com o resto do mundo,
que nem supunham existir fora do círculo das suas vistas, necessitando
por isto mesmo de quem as tirasse do esquecimento para encaminhá-las
à glória, de que os homens são suscetíveis.233
O delineamento de uma unidade, no discurso, produzia uma articulação entre
natureza e território que já poderia vislumbrar em potencial um governo – antes
inexistente, mas cuja trajetória viria a constituir-se. Geógrafos, afinal, eram os
responsáveis pela “descrição das terras e mares”, mas também, politicamente, por darem
“razão das divisões dos estados, formas de governo” etc. 234 À unidade territorial faltava
uma unidade política capaz de elevar ao máximo a potencialidade do espaço. A
destituição dos conhecimentos polidos (associados, à época, também à urbanização no
contraste litoral x interior) e da comunicação com o resto do mundo (fundamentalmente
a comercial) próprios das “nações bárbaras” que habitavam o Brasil atirava o destino da
unidade ao esquecimento, numa lógica de apagamento da história que se coadunava
com a posição de Januário da Cunha Barbosa e do IHGB duas décadas depois. 235 A
polidez, filha da urbanização, e a comunicação, fruto das trocas comerciais, produziam a
232
RCF, Número 8, 01 de janeiro de 1822, Tomo I, p. 88.
RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33.
234
MORAES E SILVA, p. 682.
235
No conhecido discurso de fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa justifica a criação da “nossa
associação” por ser ela “encarregada, como em outras nações, de eternizar pela história os fatos
memoráveis da pátria, salvando-os da voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens que
não poucas vezes lhes aglomeram a parcialidade, o espírito de partido, e até mesmo a ignorância”. No
caso brasileiro, “um grande número de feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade, sem proveito
das gerações subseqüentes”. Os instituto, assim, cumpria sua função: “nós vamos salvar da indigna
obscuridade, em que jaziam até hoje, muitas memórias da pátria, e os nomes de seus melhores filhos”. Cf.
RIHGB nº „1, p. 9-17 (referências, respectivamente, às páginas 9, 16 e 10).
233
103
possibilidade de fuga do esquecimento – a entrada na História. A História do Brasil,
como narrativa na visão do Reverbero, nascia fundamental e paradoxalmente a partir de
uma impossibilidade de conhecimento histórico: o começo, fadado ao esquecimento,
não seria acessível; tratar-se-ia de uma não-história que continuaria a trazer
questionamentos profundos aos historiadores acadêmicos de meados do século (e,
diríamos, até os dias de hoje em salas de aula pelo Brasil). 236
A entrada dos bárbaros na glória seria fruto essencialmente dos “bravos
argonautas portugueses no ano de 1500”, os quais,
conduzidos ao berço da Aurora por Pedro Álvares Cabral, e desviados
na sua derrota por temporais, em que se ocultava a mão da Providência,
descobriram esta grande porção do globo, estabelecendo nela cordial
amizade, estendendo aqui a glória do nome do Senhor D. Manoel,
plantando a Religião, e em conseqüência disto ensinamento as Leis, os
sábios costumes, a Agricultura, o Comércio, a Navegação, fontes
principais da prosperidade dos Povos.237
A história do Brasil sai da obscuridade com os portugueses, auxiliados pela mão
da Providência, que reservava àquela unidade um destino glorioso que catapultasse o
potencial de sua natureza ao máximo238. A troca cordial, e não a guerra, marcava no
discurso a inauguração da presença portuguesa no Brasil. A religião, a agricultura, o
comércio e a navegação felicitavam nações bárbaras inocentes, coletoras, sem trocas,
sem riquezas. A Providência aparece como elo a unir os distintos povos em prol da
mesma direção comum. Davam-se “as mãos mutuamente por aqueles princípios, e pelos
sagrados vínculos de parentesco, que tão rápida e progressivamente produziram o
enlace, que hoje vemos generalizado em todas as Províncias do Brasil”. A presença
portuguesa criava a família; a mistura de raças produzia a união. Esses preciosos
vínculos “forma[m] a base da sua perfeita harmonia, jurando-se mutuamente uma
perpétua e necessária união.”, fruto da “Magnânima Nação Portuguesa”, unificando na
Europa, na América e no restante “do seu todo” uma só família.239
Em suma, a civilização, fruto de doação magnânima de Portugal, coroava o
processo de desenvolvimento sintetizando tempos imemoriais (até o ano de 1500) numa
não-história e concentrando em três séculos (daquele momento da chegada portuguesa
até o “hoje vemos generalizado”) o processo de produção de uma unidade civilizada,
236
TURIN, 2013; VALDEI, 2008.
RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33.
238
Cf. nota 60 acima.
239
RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33.
237
104
dentro da história e progressivamente desenvolvendo seu potencial, fruto da união entre
natureza e controle sobre a mesma (comércio, navegação, agricultura etc.) sob
encaminhamento pacífico e amigável. A narrativa sobre a História do Brasil tornava
esta tributária de Portugal em sentido amplo: Portugal inseria-se na lógica da história da
liberdade, e o Brasil dela fazia parte pelo braço português.
Essa conexão tornava ambos os passados comuns marcados por uma série de
coincidências. Esses pontos em comum seguiam a já vista lógica da história da
liberdade, em eterna luta contra o despotismo. Assim, comparando-se Portugal ao
Brasil, ficava exposto que
Se Portugal geme o Brasil também geme; a opressão dos Holandeses
não foi menor que a dos Felipes, nem maior a energia com que na
Europa se quebraram os ferros da Espanha, do que aquele com que no
Brasil se triunfara da Nação Batava, ligando-nos sempre em um centro
Nacional, donde resultava o mais encendrado [sic] patriotismo. 240
A primeira visão presente no Reverbero a respeito de narrativas sobre o Brasil
associava, portanto, a luta portuguesa à brasileira como uma unidade marcada por uma
diversidade. Os problemas da invasão holandesa e da União Ibérica, partes de um
mesmo momento da história dessa unidade portuguesa, manifestava-se de modo
semelhante, mas em duas unidades distintas (Portugal e Brasil). O “centro nacional”
produtor de um “patriotismo”, entendido como sentimento do conjunto do Império
Português, era o elo entre a luta pela liberdade na Europa e na América. Esse centro,
não territorializado, não se identificava com Lisboa, mas com um sentimento difuso.
Não era o rei, a Corte ou a institucionalização da colonização que unia Brasil a Portugal.
Era algo a ultrapassar essa concretude e fixar-se no âmbito mais geral da história da
liberdade.
E era assim que o movimento do Porto, promovendo o “Sábio e Magnânimo
Congresso Nacional”, reunido em Lisboa “como os bravos e prudentes de Ourique na
célebre Cidade de Lamego” o fizeram, coroava o “mesmo heroísmo” da ”Regeneração
da Monarquia” que marcara a sua fundação, atualizando a liberdade para ambos os
lados do Atlântico. “Eles restituem o caráter nacional ao seu primitivo esplendor,
dissipando as trevas, que o sepultavam no mais vergonhoso esquecimento”, abrindo-se
para as ciências e as artes em uma nação livre 241.
240
241
RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33-34.
Idem, p. 34.
105
O texto inclui o Brasil na narrativa. Diz que o Brasil também sofria “o peso
daqueles ferros, que lhe lançara a mais revoltante ingratidão, vendo declarados inimigos
aqueles que generosamente abrigara, (...) e o Brasil persistiria escravo, enquanto os seus
irmãos europeus se aclamavam libertos”. 242 Dessa maneira, tendo sido aberto o
caminho com a Regeneração, abria-se também o caminho do retorno à glória dos
antepassados. Cessando a opressão, “cessa por isso mesmo o motivo de nos separarmos
daqueles a quem devemos a nossa existência Religiosa, Literária, e Civil” 243. E quem
pensasse diferente estaria insistindo em intrigas, haja vista que “ainda nos devemos
considerar na infância da Liberdade, e é melhor sem dúvida termos mentores aqueles de
quem temos o sangue, a educação e os brios, do que qualquer das nações estrangeiras,
que nos venderão muito cara a sua proteção”244. O Brasil já começara a sentir os frutos
de um bom sistema constitucional. Mas valeria mais a pena pertencer a uma monarquia
constitucional em que há centro e limites aos diversos poderes a
abandonarmo-nos aos delírios de uma democracia absoluta, que não
pode permanecer por muitos anos em um país extensíssimo como é o
Brasil, nem pode assegurar as suas diversas e remotas províncias da
separação mútua, a que podem ter direito nesse caso, e que sem dúvida
servirá para sua ruína, por guerras civis, ou por fraqueza, que delas se
siga, que as entregue à primeira Nação, que tente empolgá-las, ou ao
mais astuto a afortunado general, que se converta em seu opressor. 245
A memória de Napoleão ronda a narrativa presente no Reverbero. E misturavase também às recentes memórias da América Espanhola, com seus conflitos militares e
riscos de “separação mútua” das “remotas províncias”. A unidade, mantida nos últimos
séculos pelos laços criados, porém sob risco pela opressão – que não tem ainda uma
origem espacial ou temporal definida fora da secular e universal crítica ao “ministério
despótico” –, iria renovar-se graças à Constituição e ao movimento regenerador. A
história futura do Brasil seria, assim, o prolongamento da história passada na qual a
união com Portugal tantos frutos produzira. A narrativa sobre as origens e o futuro do
Brasil insere-se nos limites da história portuguesa, sendo as Cortes uma atualização e
síntese dos movimentos anteriores pela liberdade (Lamego, separação da Espanha,
invasão holandesa etc.).
242
Idem, p. 35
Idem, ibidem.
244
Idem, p. 35-36.
245
Idem, p. 36.
243
106
O número seguinte, que não é correspondência ao periódico, como a anterior,
mas trecho tirado do “Campeão Português”, número 27, complementa a montagem da
narrativa.
Comparando-se a situação da América Espanhola à Portuguesa, no que tange às
relações com a Europa, explica-se uma diferença fundamental que coroa a narrativa
histórica vista até aqui sobre o Brasil no Reverbero. Segundo o periódico, na América
Espanhola haveria “um grande número de indígenas civilizados, e de outro igual ou
maior de europeus, ou seus descendentes”. O Brasil, por outro lado, “pode dizer-se
completamente habitado só por portugueses, quer aí nascidos, quer na Europa, porque
os indígenas do Brasil ou vivem no interior sem fazer corpo de Nação civilizada, ou em
mui pequeno número vivem conosco sem nenhuma influência civil ou política.” 246 E
conclui:
Assim é claro que se nas América Espanholas pode haver um motivo
plausível de antipatia e desunião entre Americanos e Europeus; não
existe, nem deve racionalmente existir entre portugueses europeus ou
brasileiros, porque todos eles formam a mesma família, e são
exclusivamente dependentes do mesmo tronco Europeu. 247
A não-história dos indígenas anteriormente à presença portuguesa traduziu-se
numa continuidade da não-história dessa população até aqueles anos. Não mais
espalhada por todo o território, mas confinada cada vez mais ao interior, sem “corpo de
nação civilizada”, ou como resquício no interior da civilização, “sem nenhuma
influência civil ou política”. A história do Brasil tirada do esquecimento, assim, é a
história da nação portuguesa, a qual, ocupando o território e fundando ali os marcos
civilizatórios, foi capaz de produzir a história local, do Brasil, sem descolar-se na
trajetória mais ampla de Portugal. Diferentemente do acontecido na América Espanhola,
onde, segundo o autor do trecho, o número de indígenas civilizados mantinha uma
tensão permanente entre uma narrativa local própria e a outra, europeia. A lógica que
produz o Povo Brasileiro, nesse sentido, é europeia-portuguesa, diferentemente da
espanhola, onde a presença indígena civilizada produz uma alteridade em relação à
civilização europeia, portanto desunião e instabilidade. A ordem no Brasil é produzida
pela homogeneidade europeia.
E os negros? Continua o trecho: “Não falamos na povoação preta, ou de cor,
porque sendo a primeira quase toda de escravos, são estes como estranhos no País sem
246
247
RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 37.
Idem, p. 38.
107
direitos políticos, e sendo a segunda uma mistura de portugueses com pretos, ou índios,
entram eles na classe de portugueses”.248 Ou o preto é escravo e estranho, portanto fora
da narrativa histórica, ou a miscigenação produzira um amálgama onde prevalecia o
tronco europeu civilizatório. “Logo é evidente que entre Portugueses europeus e
portugueses brasileiros há mais ligação natural que, por exemplo, há entre espanhóis
europeus e americanos”.249 A grande família lusitana tinha uma única História.
Após o encerramento das referências, os comentários dos editores do Reverbero
finalizam a questão. Mencionando Bentham e Milton, afirmam: “Nunca pode haver
reconciliação sincera onde as feridas de um ódio mortal estão profundamente gravadas.
Felizmente entre nós existiu a mais cordial aliança, que nos reúne há três séculos em
corpo de Monarquia, aliança ainda mais apertada desde o político Decreto de 15 de
dezembro de 1815.”250 Dizem, por fim, que “uma mãe nunca procura a infelicidade dos
seus filhos; antes alegra-se pela sua grandeza (...). A liberdade é franca e generosa, e a
Sabedoria bebe as suas leis na Justiça, e na Igualdade”, ambas reunidas no Soberano
Congresso.”251 Ou seja, os tempos passos eram de cordialidade e o presente mostrava-se
pleno de novidades impossíveis de se retrogradar. A liberdade, ocupando o lugar da
opressão, e a igualdade, o espaço da desigualdade, eram características do mundo
português, não uma fratura entre os dois lados do Atlântico. Sob as bênçãos das “luzes
do século”, os gemidos de luta e sofrimento que atingiam ambas as partes do Império
igualmente haviam ficado em definitivo para trás, posto que a atualização da luta da
liberdade rompia com círculos anteriores, abrindo a prosperidade de forma inexorável.
Dali para a frente a vitória seria o único caminho.
A narrativa, portanto, produz uma síntese de três séculos de cordialidade, aliança
e magnanimidade; três séculos que encerraram um tempo a-histórico suspenso e fadado
ao esquecimento, introduzindo a unidade territorial à civilização e produzindo uma
aproximação familiar, com um centro nacional e uma força moral que distinguia aquele
espaço da trajetória da América Espanhola. Apontava-se o coroamento da explanação
no decreto de dezembro de 1815, que elevava o Brasil à categoria de Reino, marco após
o qual qualquer “retrogradação” do tempo mostrava-se impossível. Daí em diante o
tempo apenas poderia correr para frente, rumo ao aperfeiçoamento e ao progresso,
jamais para trás.
248
Idem, Ibidem.
Idem, Ibidem.
250
RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 42.
251
Idem, p. 43.
249
108
A visão idílica da narrativa histórica da presença portuguesa no Brasil conviveu,
porém, desde seu início, com seu oposto, explicitado na fórmula dos “três séculos de
opressão”.252 Em pelo menos cinco edições do periódico podemos ver tal formulação. A
começar pela própria edição anteriormente mencionada, de 01 de novembro, num texto
publicado logo após o discurso sobre a cordialidade das relações. A correspondência
seguinte, dirigida aos senhores redatores, falando as exportações da Ásia à Europa de
chá, pimenta, canela, cânfora etc., fala de uma plantação de árvores destes produtos na
Lagoa. Pergunta-se o autor por que aquelas plantas se conservariam ali guardadas:
“Acodiram de chofre à minha imaginação muitas reflexões, e não pude eximir-me de
censurar e mal dizer o sistema do antigo Governo, que por três séculos nos oprimira.
Que miséria tem sido a nossa? Que desenido, que desprezo para com o Brasil?”253
Interessante que, enquanto o artigo anterior, na mesma edição, fala
positivamente da união de três séculos, a partir dos laços firmes que se formaram, a
correspondência pensa pela ótica da opressão. Mas a contradição é apenas aparente. Os
laços cordiais que uniam o Brasil a Portugal naquela conjuntura específica de finais de
1821 baseavam-se na ideia de civilização, que fora construída pelos lusitanos na
América dos bárbaros indígenas e que produzira o território que, via Portugal, ansiava
inserir-se na lógica europeia (inclusive saindo do esquecimento e ingressando na
História). A crítica da correspondência aos séculos de opressão, contudo, é estritamente
econômica. Usa exemplos de práticas econômicas francesas e inglesas na página
seguinte, apenas para depois dizer: “Só nós ainda não ousamos deixar o mísero estado
de rotineiros, só nós seremos sempre cegos, e no meio de riquezas imensas seremos
sempre Tantalos?”254 Fala da agricultura como “fonte mais rica da nossa prosperidade.”,
e que “o Café há 50 anos era no Brasil uma Planta exótica, e hoje forma a parte mais
considerável da nossa Agricultura e da nossa riqueza” 255 . A “opressão portuguesa”
constituía o conjunto de entraves que impedia a plena expansão dessas questões
econômicas pelo território, sendo, portanto, de fundamental importância uma
transformação nessa relação.
252
Para a expressão, cf. FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de
Independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015; SANTOS,
Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de
Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010.
253
RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 44.
254
Idem, p. 45.
255
Idem, p. 46.
109
Com o passar das edições, a união civilizatória não impediu que a crítica
econômica transbordasse para o terreno da política e produzisse metáforas e termos que
dessem concretude à narrativa daquela relação. Assim é que a imagem da escravidão,
bem como seus termos associados256, e a conceituação de um “Sistema Colonial” 257
ganharam, naquele momento, força explicativa para identificar a situação do Brasil
frente a Portugal. Inclusive abarcando os anos posteriores à vinda da Corte ao Brasil258.
Não é sem cuidado que essas associações espalham-se nas páginas do periódico.
O jogo de associação e críticas entre Brasil e Portugal era complexo demais para
reduzir-se ao dualismo “colônia” x “metrópole”. Era preciso manter os ganhos e
considerar os marcos tanto da colonização portuguesa, como já indicado no processo de
civilização, como dos tempos joaninos, que se não deveria misturar nem às críticas mais
genéricas, feitas a Portugal, nem às específicas, dirigidas ás Cortes.
Esses marcos, exemplificados fundamentalmente nos anos de 1808, 1821 e
1822, ganham sentidos distintos nas páginas do Reverbero e se relacionam a narrativas
de avanços e retrocessos por que passava o Brasil naquelas interpretações. O primeiro
desses sentidos procura ver os ganhos que Portugal poderia auferir do desenvolvimento
da grandeza do Brasil. Em reflexão sobre uma passagem do “Semanário Cívico da
Bahia”, número 35, os redatores do Reverbero afirmam que os “detratores do Brasil”,
nas palavras do Semanário, se refugiam no tamanho do país, comparando o Brasil a
256
Um discurso pronunciado no ato da eleição paroquial de Santa Rita, no Domingo 21 de julho de 1821,
e oferecido à Sereníssima Senhora Infanta D. Januária, por seu autor o Padre Januário da Cunha Barbosa,
fala que o presente ato vai “principiar a prosperidade da nossa Pátria”. Diz que, até pouco tempo, os
cidadãos não sabiam o que era este edifício, “cujo plano encantava as vistas de um Povo, que via
quebrados os ferros, que arrochavam os seus pulsos por mais de três séculos”. Cf. RCF, Tomo Segundo,
Número 10, 30 de julho de 1822, p. 114.
257
Carta aos senhores redatores começa por afirmar: “O Sistema Colonial, com que Europa escravizava a
América, parecia afugentar do Brasil as Ciências e as Artes; não porque faltasse a alguns dos seus
habitantes o talento necessário, esse dom admirável, com que a pródiga Natureza mimosea aos seus
escolhidos em todas as partes do Mundo; mas porque a nossa Metrópole, assim como era ciosa dos
homens ricos, também era dos Sábios.” Cf. RCF, Tomo Segundo, Número 05, 25 de junho de 1822, p. 49.
Na recusa da existência colonial, cujo sentido recente, distinto do antigo (associado ao povoamento),
denotava profunda sensação de exploração, afirmaria ainda o Revérbero, em resposta à ideia, transcrita
em manifesto português, de que “ideia do estado de Colonia a que Portugal em realidade se achava
reduzido afligia sobremaneira todos os Cidadãos que ainda conservavam e presavam o sentimento da
dignidade Nacional.”: “sendo odioso a Portugal o estado de Colonia, pode por ventura ser agradável ao
Brasil?”. Cf. RCF, 08 de janeiro de 1822, p. 97.
258
“Nós tínhamos abertas profundas chagas, gemíamos debaixo de uma dívida horrorosa, sofríamos todos
os males provindos da escravidão de 300 anos, e da ruinosa administração que se lhe seguiu nos quatorze
últimos, e nós não vimos uma só providência, uma só lei que nos respeitasse diretamente, e nos
produzisse o menor gênero de alívio, ou de esperança.”. O discurso ainda completa: “ Cf. RCF, Número
26, 7 de maio de 1822, p. 311. O discurso de Januário, mencionado na nota 19 acima, ainda indicaria que
a situação recente, longe de ser louvada como libertação, como no começo do periódico, seria, na
verdade, de reafirmação da escravidão: “a liberdade, que para nós voara das margens do Tejo, ocultava
debaixo das suas roupas novos e mais pesados ferros, que a vista do sagaz brasileiro lobrigou muito a
tempo”. Cf. RCF, Tomo Segundo, Número 10, 30 de julho de 1822, p. 114.
110
Portugal e contrastando os tamanhos populacionais, o que conferia maior poderio a este
em relação àquele. “Mas não se recordam que Portugal tem chegado à sua madureza, e
já não pode crescer; que o Brasil situado na mais feliz posição, enriquecendo de todos
os dons da Natureza, começa agora a desenvolver-se; e quem sabe a que ponto de
grandeza chegará?” 259 Não era uma simples questão de comparação direta: os tempos de
Portugal e Brasil eram distintos: o primeiro caminhava rumo a uma estagnação e
possível degradação; o segundo, no esplendor da idade, abria seu potencial ao futuro de
grandeza. O Brasil, tendo muito a crescer, aparece com mais brilho que Portugal, velho
e incapaz de novos progressos no novo tempo.
Continuam os redatores afirmando que
a grandeza da Nação exige, para conservar-se e crescer, que, ou a Sede
do Governo seja no Brasil, gozando Portugal das vantagens, que
mencionávamos (...), ou que o Brasil tenha um Governo central seu
subordinado e sancionado por aquele, e apertado com todos os laços do
Comércio, uniformidade de Rito e de Língua, e com todas as prisões de
parentesco; não haverá castigos, que não mereça o homem, que
abandonar uma ocasião tão útil e preciosa para estabelecer a nossa
união debaixo destes princípios, e de maneira que ela dure eternamente,
e que nossos filhos gozem em paz os bens que lhes deixamos. 260
Lamentam os redatores que o Brasil não tenha ainda colhido todos os frutos da
“nossa feliz Regeneração”, que parecem ainda estar ao alcance, e elegem a Constituição
do Estado – que deve ser uma só – como a “grande força, que deve atrair e ligar os dois
centros”. 261 A conexão entre grandeza e Constituição desemboca na defesa da
Regeneração como perspectiva de síntese das duas realidades – americana e europeia –,
capaz de, desenvolvendo as potencialidades do Brasil, possa igualmente elevar Portugal
a um estado de sublime desenvolvimento.
Qualquer outro caminho, nesse momento, era visto como fruto dos inimigos da
liberdade. Afinal, “a Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o amor
da Pátria não pode separar-se do amor da Nação; e o que dizemos em favor do Brasil,
redunda em benefício de Portugal” 262 . A realidade local – Pátria – entrelaça-se à
unidade mais ampla – Nação, ainda portuguesa –, o que produzia um duplo caminhar. E
o engrandecimento passava, necessariamente, pela plena abertura ao “sistema liberal” –
tanto num sentido político quanto econômico –, que, contrastando as conclusões
259
RCF, 01 de dezembro de 1821, p. 67.
Idem, p. 70.
261
Idem, Ibidem.
262
RCF, 01 de janeiro de 1822, p. 88.
260
111
oriundas da observação da História passada, poderiam produzir expectativas futuras que
invertessem a relação até então percebida como predominante. Afinal, perguntavam-se
os redatores, “que grandes coisas tem obrado, em que tem prosperado Portugal com o
comércio exclusivo do Brasil, durante mais de dois séculos e meio?” O Brasil, por outro
lado, “com a adoção de um sistema liberal, que lhe dê todo o desenvolvimento de que é
suscetível, não só proverá por outros muitos meios à conservação de Portugal, mas darlhe-a a preponderância política de que gozam as principais Potências da Europa.” 263 Isso
significaria, inclusive, a superação da histórica condição subalterna de Portugal frente
aos seus concorrentes europeus.264
A interpretação combatia e invertia a proposição que se tornava dominante no
Velho Reino: a de que a “inversão colonial” produzira a decadência de Portugal. Para o
Reverbero, atribuir a decadência das fábricas e manufaturas portuguesas à franqueza dos
portos do Brasil era um erro:
Se a indústria daquele reino estivesse mais adiantada, se pudessem as
suas manufaturas concorrer no mercado com as dos estrangeiros, teriam
segura a preferência, por mais ilimitada que fosse a franqueza dos
portos. Ora, se as manufaturas estrangeiras, de que o Brasil necessita,
deverem ser proibidas para terem extração as de Portugal, que
esperanças podem conceber os Brasileiros de um dia estabelecerem as
suas?265
É a própria temática da “inversão colonial” que produzirá a tensão que muda a
postura do Reverbero. Se no começo de 1822 ainda era possível afirmar a unidade de
interesses entre Brasil e Portugal, na qual a prosperidade de um produziria a
prosperidade do outro, as discordâncias em relação ao caráter exploratório da
colonização levariam à clivagem266.
Toda a narrativa direcionava-se à avaliação sobre o estado de adiantamento do
Brasil em suas relações com o Império Português, num nível, e com as luzes do século,
em outro, ambos projetando-se para o futuro. Conhecendo bem seus direitos, afirmam
263
Idem, p. 93-94.
“Desenganem-se os falsos zelosos de Portugal, o crescimento do [105] Brasil fará a Grandeza e a
Felicidade de Portugal, e a sua escravidão não lhe produzirá vantagem alguma real: sirva-lhes de prova os
300 anos passados: o Brasil era avarentemente guardado, e Portugal nunca deixou de ser considerado na
Europa como Potência de segunda Classe: extraiu das suas minas por um cálculo aproximado do ano de
1700 a 1821, 45 U288 arrobas de ouro além dos diamantes, e do monopólio do Pau Brasil, e Portugal foi
sempre pobre. Tristíssima ideia! Política erradíssima! Querer engrandecer-se uma parte da Nação à custa
da decadência da parte maior dela!!” (104-105). RCF, 08 de janeiro de 1822.
265
RCF, 01 de janeiro de 1822, p. 94.
266
Para o conceito de “recolonização” naquele momento, cf. ROCHA, Antonio Penalves, A
recolonização do Brasil pelas Cortes. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
264
112
os redatores do Reverbero, o Brasil não cairia em ilusões advindas somente do título de
“Reino” se, na prática, se visse reduzido de fato “ao estado de colônia”. 267 Ninguém
poderia negar a qualquer nação o direito de ser feliz; tampouco poderia a Europa negar
ao Brasil suas luzes e socorros para o mesmo fim. “Não se achando o Brasil no estado
de prosperidade de que é suscetível, vendo com mágoa sua o retrocesso de que está
ameaçado na carreira do seu adiantamento (...) é o sentimento profundo da desgraça
eminente e o desejo de remediá-la” que o vai conduzindo em seus patrióticos
movimentos.268 Havendo a Natureza depositado no Brasil tudo de que precisaria para
ser feliz, restaria a Portugal a aceitação daquele estado, uma vez que os impulsos que
motivavam o Brasil em seu caminho rumo à felicidade eram os mesmos que
catapultaram Portugal à sua Regeneração. E tal não se deveria confundir com apelo à
desordem:
Sou português, amo a união fraternal do Brasil com Portugal, e odeio a
democracia; o que eu não quero é a degradação, a vileza, a escravidão
do meu País: o que eu não quero é que se lhe tolhe a carreira da sua
prosperidade: é natural o desejo do crescimento e da felicidade; e é
violenta a retrogradação na marcha dela. 269
Pregava-se a continuidade da união fraternal que produzira a civilização na
América, mas condicionava-se a manutenção dos laços à permanência e ao
desenvolvimento da prosperidade no Brasil. Ao passar dos meses, porém, ao
acirramento das disputas e ao fortalecimento da leitura dos acontecimentos que
aumentava a distância entre o que se percebia como “recolonização”270 e o desejo de
união fraternal, a manutenção da prosperidade suplantou o desejo de manutenção dos
laços, e os benefícios advindos do adiantamento do Brasil, antes favoráveis tanto ao
Velho Reino quanto ao Novo, agora seriam direcionados exclusivamente ao segundo.
267
RCF. 08 de janeiro de 1822, p. 97.
Idem, p. 99.
269
Idem, p. 106.
270
Para Antonio Penalves Rocha, “a recolonização, como está presente na memória nacional brasileira e
portuguesa, foi uma invenção historiográfica.” Isso significa que, embora nunca tenha havido uma
tentativa efetiva de recolonização do Brasil pelas Cortes – isto é, o retorno a um sistema de exclusivismo
colonial – “a noção de recolonização serviu inicialmente para expressar um sentimento criado pela
mentalidade reinol de um grupo de brasileiros.” Cf. ROCHA, Antonio Penalves, A recolonização do
Brasil pelas Cortes. São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 117. Não obstante, é preciso ressaltar que o vocábulo
“recolonização”, posto indicasse uma acusação de dominação econômica, se coadunava perfeitamente
com interpretações que consideravam igualmente perniciosa a opressão política de Portugal sobre o
Brasil, buscando aquele o retorno deste ao estatuto colonial pela revogação da condição de Reino e pelo
desmantelamento do aparato institucional instalado no Rio de Janeiro desde a vinda da Corte.
268
113
2.4) O Brasil como unidade autônoma.
É a partir da edição de 12 de maio de 1822, edição extraordinária, que podemos
observar a transformação com mais clareza. O Reverbero publica então extratos do
Correio Brasiliense que indicam essa mudança de postura. Diz que, até ali, tinham
olhado para a questão da união entre Portugal e Brasil como algo útil para ambos os
países, considerando que os desejosos de uma separação eram “pessoas inconsideradas
no Brasil, que desejavam a separação dos dois países, antes que ela devesse ter lugar
pela ordem ordinária das coisas.” 271 Diz que não pensavam haver em Portugal
partidários da desunião, já que a união seria benéfica especialmente para o país europeu.
Mas dizem que se enganaram. E que, sendo assim, melhor seria se Portugal já
declarasse o Brasil independente de uma vez, ao invés de se fomentarem ali partidos,
“que produzirão a guerra civil, degolando-se os povos uns aos outros”. “declare-se que
Portugal não precisa do Brasil, e previnam-se assim os males da guerra; a qual quando
começar, não pode deixar de ter o mesmo êxito da que houve na América
Espanhola.”272 Diz que não se pode aceitar o “retrogradar o Brasil de sua dignidade de
Reino, que tinha na aparência”273; “retrogradar o Brasil de sua dignidade de Reino e
reduzi-lo a seu antigo estado de dependência de Portugal; o que não é união mas
sujeição; e o que se devia fazer era a união, que recomendamos, dos dois Reinos.”274
Aparentemente, era tarde demais para uma união. O retorno ao recurso de De
Pradt dava um sentido profundo ao movimento dos tempos:
Dissemos, em o n. 13 do nosso periódico, com as palavras do imortal
De Pradt, a quem todos os Americanos devem o mais profundo respeito
e amizade: o gênero humano está em marcha, nada o fará retrogradar;
e para clareza deste pensamento só desprezado por aqueles, que
acompanham esta marcha com dois ou mais séculos de atrasamento,
cumpre fazermos algumas reflexões, sempre com o nosso fito na Santa
Causa do Brasil, que nos propusemos sustentar, e acostados à Opinião
Pública, visto ser o verdadeiro termômetro de um bom governo liberal,
como o em que ora somos.275
A marcha do gênero humano era a marcha inevitável da liberdade x despotismo
que marcava a lógica histórica do Reverbero, como visto anteriormente. O Brasil
inseria-se agora plenamente nessa marcha, não mais como parte da unidade portuguesa,
mas como singularidade que se desenhava junto às irmãs da América. Capitaneadas
271
RCF, Número 01, 12 de maio de 1822, p. 02.
Idem, p. 03.
273
Idem, p. 04.
274
Idem, p. 05.
275
RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 65-66.
272
114
pelos Estados Unidos e inseridas no caldeirão das ex-colônias espanholas, o Brasil
deixava de produzir o caminhar junto a Portugal para traçar sua direção de forma
autônoma. A separação, antes da ruptura político-institucional, se dava, segundo o
Reverbero, na interpretação da trajetória territorial no tempo. E a “opinião pública” se
encarregaria de dar sustentação a essa interpretação.276
As transformações aceleravam-se e a narrativa seguia essa sensação. Reflexões
dos redatores do Reverbero em janeiro de 1822 já indicavam a sensação de vertigem
acelerada, misturando elementos políticos e físicos para dar conta do significado
daqueles tempos:
O espírito de ordem constitucional é hoje o móbil, ou o objeto da ação
principal do Mundo. Que extensão prodigiosa não tem ganhado nestes
dois últimos anos o Sistema Representativo? Tornado como que uma
nova potência agregada às potências da alma, vê se o Mundo em uma
dessas épocas de fermentação em que ele por vezes se tem visto, e de
que tem rebentado consideráveis mudanças na ordem moral e política.
Com tudo, se atentamente lançarmos os olhos pelo Mundo, veremos
que a América apresentou um desenvolvimento muito mais rápido, e
entrou em uma esfera de atividade muito mais enérgica que a Europa:
mas o Brasil requintou sobre a América. Mais veloz, que o fluido
elétrico o Calor de Liberdade atravessou o espaço imenso do Amazonas
ao Prata; e as diferenças de cores, e de condições opôs-lhe menores
obstáculos, do que a Superstição, e o Despotismo, em todos os
estabelecimentos Europeus sociais, e religiosos.277
Trecho curto, mas com muitas considerações importantes. Em primeiro lugar,
coloca o “espírito constitucional” como o grande produtor da ação social naqueles
tempos, especialmente nos dois anos anteriores, que vinham produzindo um panorama
intenso de transformações na ordem moral e política 278 . Essa “nova potência” que
constituía o Sistema Representativo vinha somar-se às outras épocas de fermentação
que transformavam consideravelmente o mundo, a partir de uma lógica histórica que,
longe de seguir avanços serenos, constantes e cumulativos, “rebentavam” (isto é,
Para uma discussão sobre o conceito de “opinião pública”, cf. MOREL, Marco & BARROS, Mariana
Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003, cap. 1..
277
RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 131.
278
As mesmas reflexões, algumas páginas antes, falando da “Revolução de Portugal”, indicava, meio
entre sustentação, meio entre crítica à própria linguagem empregada: “se é que assim se deve chamar a
luta da Justiça contra o Despotismo”. Embora fosse apropriada ao sentimento do momento, o conceito de
Revolução ainda guardava muitos riscos oriundos da experiência histórica recente. Cf. RCF, 15 de janeiro
de 1822, p. 129.
276
115
rompiam, quebravam com estrondo, saíam com ímpeto 279 ) as mudanças em escala
global.
Essa mudança acelerada, porém, não acontecia de modo homogêneo, mas
ganhava ritmos distintos de acordo com o espaço onde eram produzidas. Assim, na
América as mudanças eram mais intensas que na Europa, cumprindo largas distâncias
entre um passado distante e um futuro próximo de maneira mais veloz do que no Velho
Mundo. E, no interior do Novo, o Brasil era palco de um ritmo ainda mais puxado, ao
qual nem o “fluído elétrico” poderia comparar-se. O imenso território do Amazonas ao
Prata foi abrasado pelas ideias do século, encontrando muito menos resistência naquele
contexto do que no outro a erguer barreiras na Europa.
Duas inversões produzidas discursivamente contavam fundamentalmente para
essa sensação pronunciada de aceleração, no Brasil, do espraiamento do “Calor da
Liberdade”.
Em primeiro lugar, uma inversão quanto ao estado de virilidade do Brasil. Se,
por um lado, a importância da lógica histórica à De Pradt, que tornava inevitável a
emancipação americana, era certa, por outro a própria acusação de “imaturidade” em si
não constituiria um mal insuperável para o jovem Brasil. Pelo contrário: poderia ser
uma vantagem comparativa. Em edição de abril de 1822, após criticar os “falsos
Amigos” e os “senhores deputados” do Augusto Congresso que, “com os olhos e o
coração na Europa, consideram este Reino só próprio a ser eterno patrimônio de meia
dúzia de Monopolistas.”, e após afirmar que, a não conhecer as suas “sórdidas vistas de
lucro, e de injusta recolonização em tantos procedimentos”, diriam que eles “lembram
ou apressam a Independência do Brasil, (que cedo ou tarde se efetuará, visto que o
Brasil já entrou no período da sua virilidade, já não precisa de tutela, que a emancipação
das Colônias segue uma marcha natural, irresistível, que jamais forças humanas podem
fazer retrogradar.)”280, o Reverbero questiona os que dizem que o Brasil está na “sua
primeira infância a respeito de conhecimentos”, e que, por isso, “nem sabe o que é
Constituição”. Pergunta: por acaso os autores escrevem só para Portugal? Então,
valoriza a ideia de o Brasil estar na infância:
A infância em que agora nos julgam os que não querem conhecer-nos,
longe de prestar um motivo para estarmos por injustiças, é o maior
estímulo, que favorece a nossa prezada Liberdade; é um dos argumentos
mais sólidos para nos decidirmos por ela, porque nenhum homem, que
279
280
MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza... op. cit., vol. 1, p. 117.
RCF, Número 23, 16 de abril de 1822, p. 274-275.
116
provou, ainda por uma só vez, o néctar da Liberdade, pode sofrer que o
chamem escravo, ou que o tratem como tal. A mocidade, no sentir de
um grande Político, é para as Nações assim como para os Indivíduos o
momento de tomarem boas inclinações; as que se originam do
Liberalismo, e se adiantam pelo conhecimento dos verdadeiros direitos
do homem, não podem deixar de produzir bons efeitos, e em muito
breve tempo. Consultemos a História; é sempre na infância dos Povos
livres, que se executaram as suas maiores empresas. O que era Roma
em seus princípios; e quando assustou mais o mundo? O que era
Portugal e quando fez ele calar o Leão da Espanha, e minguarem-se as
Luas Ágarenas? O que era a Holanda? Um Povo, que fugindo da
Tirania, refugiou-se no seio das águas; pequenas Províncias, mais
inundadas do que regadas por grandes Rios, muitas vezes submergidas
pelo Oceano, a penas contidas por diques, e sem outras riquezas, que o
produto de pastagens, que pareciam roubar aos Mares e aos Rios; e
quando fez ela tremer os Generais e os Exércitos do maior dos
Soberanos da Europa? Não é a nossa falsamente apregoada infância,
repetimos nós, o motivo, que nos chama à grande União com Portugal;
o Brasil tem sentimentos muito generosos; mas apesar disso, ele nunca
sofrerá que o tratem com injustiça, nem que lhe míngüem a sua
Representação Política. 281
A mocidade brasileira, longe de ser fator de pesar, poderia ser uma oportunidade
para a produção de uma novidade histórica filtrada dos vícios e do acúmulo de
progressivas corrupções morais.282 O apelo aos exemplos da História dava sustentação
ao argumento: Roma, o próprio Portugal e a Holanda surgiam como exemplos de
sucesso e grandeza ainda no despertar de sua infância. O Brasil seguiria trajetória
semelhante nessa lógica, especialmente por sua condição especial produzida pela
natureza e pela posição americana. O Novo Mundo surgia como asilo das Ciências e das
Virtudes expulsas do Velho por terremotos e convulsões 283. E, ao traçar um panorama
dos 322 anos desde a chegada de Cabral, arremata: “Que grandes coisas temos feito (...)
em espaço de tempo tão breve, comparativamente ao que tem absorvido a civilização
Europeia?”284
281
Idem, p. 276-277.
Como defendia, por exemplo, José Bonifácio. Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do
tempo... op. cit., cap. 1 e 2.
283
RCF, 12 de março de 1822, p. 212. Afirma, ainda, que os grandes Impérios têm caminhado do Oriente
para o Ocidente.
284
Idem, p. 213. A inversão promovia, ainda, a ideia de que o Novo Mundo salvara a Europa do caos, ao
invés de a Europa haver cedido as luzes ao Novo Mundo: “Esqueceram-se os Senhores do Congresso de
que a mudança do Trono foi a salvação da Monarquia, quer na Europa, quer no Brasil; esqueceram-se,
que as cenas de 1807, podem reproduzir-se, e mui facilmente; esqueceram-se de que foi o título de Reino,
dado ao Brasil, quem deu assento aos nossos Embaixadores no Congresso de Viena, entre os
Embaixadores das grandes Potências; de nada lhes aproveitou a experiência do presente, em que os
sucessos mais pasmosos sucedem-se tão rapidamente que não dão tempo a prevenirem-se; só se
lembraram de punir a este Paiz pela decidida superioridade que a Natureza lhes dera sobre essa já cansada
ourela [sic] de uma parte da Europa.” (227)” - 19 de março de 1822
282
117
Em segundo lugar, conforme indicação do próprio trecho anteriormente
destacado, as condições heterogêneas, fruto da colonização portuguesa na América, e a
“mistura de cores”, evidenciando a inexistência de uma sociedade unitária, nem de
longe poderiam equiparar-se às classes que, infestando a Europa, travavam a batalha de
sua existência despótica e supersticiosa contra a enxurrada das luzes do século. As
condições brasílicas, na verdade, ao não impor entraves àquele espalhar de ideias,
acabavam por justificar uma maior fertilidade do território luso-americano à inovação,
invertendo qualquer hierarquia que colocasse a Europa como espaço único e/ou
privilegiado da liberdade. Pelo contrário: não foi na América que primeiro se
vislumbrou o grito de liberdade nas 13 colônias? Como seria reafirmado noutra ocasião
pelos redatores do Reverbero,
os obstáculos, que se fazem nascer da mistura de cores, ou não devem
assustar-nos, ou assustam menos do que aqueles que na Europa
resultam das grandes Classes da Nobreza, e Clero, que o Brasil
felizmente não conhece. Não ignoramos os males horrorosos, que tem
rebentado desses dois Vesuvios (principalmente na Espanha) contra o
sábio sistema Representativo; mas os sustos, que nestes princípios da
nossa Política Liberdade tem enlutado e afligido os nossos corações,
vêm mais de brancos Europeus, que de Pretos, ou Mulatos da África, ou
do Brasil.285
Invertendo temores que pudessem apelar à existência da escravidão e dos
contingentes de origem africana como impedimentos para a existência das luzes no
continente, o Reverbero aponta a persistência dos grupos identificados à mentalidade
medieval como os grandes e verdadeiros entraves ao pleno ingresso nas luzes do século,
sendo a herança despótica e/ou supersticiosa inimigo mais poderoso que qualquer
produto da condição colonial poderia ser. Além disso, continua o trecho,
o Batalhão de Henriques da Bahia, sem desmerecer a glória daquele,
que lhe dera o nome na luta com os Holandeses, defendeu o Estado,
quando as Falanges Provisórias regaram de sangue as ruas dessa infeliz
e briosa Cidade. Os Henriques, e o Batalhão dos Pardos do Rio de
Janeiro, punindo pela glória, e pelo decoro de um Povo livre, de um
Povo generoso, apresentaram-se com denodo, com bizarria, e unânime
voluntariedade ao lado da Tropa da I Linha, para obrigarem aos seus
deveres esses Militares arrogantes, que davam vivas à Constituição, e
morte aos Constitucionais. 286
285
286
RCF, Número 23, 16 de abril de 1822, p. 277-278.
Idem, p. 278.
118
Não era o risco da “multidão de pretos e mulatos”, para remeter a uma fórmula
de perigo presente às autoridades desde o setecentos287, que mais travava a liberdade no
discurso do Reverbero, mas os próprios brancos europeus apegados a certo passado.
Afinal, como justificar a capacidade plena de realização da liberdade sem essa inversão?
O contraste entre a multidão de pretos e pardos e os brancos europeus apareceria em
outra edição do Reverbero, já em 10 de setembro de 1822, após, portanto, a datasímbolo que representava o horizonte de eventos da ruptura política. Usando reflexões
do Correio Brasiliense frente a diálogo com o Campeão Português, após discorrer sobre
o “espírito de arbitrariedade, que apareceu em Portugal, sendo tão contrário às ideias do
nosso século”, e que “tem-se feito ainda mais terrível no Brasil; porque ali se tem
sentido seus efeitos com maior veemência, pela espada férrea, e não de manteiga” 288, o
periódico critica a postura do Campeão de “descansar as esperanças do seu partido de
sujeitar o Brasil, nos dois estratagemas de opor as mesmas províncias do Brasil umas às
outras, e de sujeitar uma revolução dos Negros naquele país”289. A essa postura sobre os
negros, respondem os redatores do Reverbero com uma nota de pé de página:
É seguramente bem estolida esta ameaça contínua de Sublevação de
Escravos. Como não veem estas toupeiras, que a sublevação dos
Escravos em que tanto falam lhes há de ser mais fatal que a nós? Que
desorientamento [sic] de ideias! Como se persuadem, que os Escravos
se levantarão contra os Senhores Brasileiros, sempre mais brandos, e
sofrerão os Senhores de Portugal sempre mais cruéis? Não há uma
lógica mais esfarrapada! Era melhor que cuidassem dos seus Frades, e
dos seus privilegiados: que tivessem sempre diante dos olhos, que
aqueles saem na Espanha a combater cantando o Terço. Saibam mais
que os pardos, e os pretos no Brasil dividem-se em suas Classes –
forros, e cativos – Dos primeiros tem bastante que temer os autômatos
fardados de Portugal; dos segundos nada receiam os Brasileiros. [grifos
meus]290
Nobres e frades são o contraponto discursivo do Reverbero para justificar as
condições possíveis da realização das luzes no Brasil. A revolução a evitar-se, pois que
arrastava consigo características não previstas inicialmente, esticando os limites da
mudança para além dos controles vistos como necessários, não nascia das condições da
escravidão. Ao contrário: “Se a opressão dos povos tem dado nascimento às revoluções
do mundo, como é fácil de provar-se, crede, que aqueles que promovem a opressão, não
287
Para os usos políticos da expressão no Brasil setecentista, cf. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos
Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007, cap. 3.
288
RCF, Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 197.
289
Idem, p. 198.
290
Idem, p. 197-198.
119
querendo limites à autoridade, promovem por isso mesmo as revoluções.” 291 E quem
seriam estes promotores da opressão? A continuação desse trecho citado deixa a
indicação: “Nem temos fidalgos, que tanto mal causaram na França, nem devemos
temer os Frades, que tantas desordens ainda fazem na Espanha, atribuindo-as com tudo
aos verdadeiros Liberais por eles provocados, com as suas costumadas intrigas.”292
A dupla inversão (mocidade, ao invés de maturidade; condição oriunda da
colonial, ao invés da trajetória europeia) produzia discursivamente as condições para a
justificativa do rompimento sem a perda da matriz civilizatória necessária ao ingresso
do Brasil no rol das nações (que, como vimos, era condição para ingresso e permanência
também na própria História). Daí que, paralelamente a essa inversão, o olhar europeu
deslocava-se para a América como símbolo da trajetória a ser seguida e como exemplos
a adotar e evitar.
291
292
RCF, Tomo Segundo, Número 14, 27 de agosto de 1822, p. 176.
Idem, ibidem.
120
Capítulo 3:
Das possibilidades da civilização na América
O jogo de forças aberto ao longo do processo de ruptura política com Portugal
não se restringiu ao modo de se proceder junto às Cortes. Pelo contrário: tal constituía
um primeiro passo, mas estava longe de esgotar as possibilidades. Criado certo
consenso ao redor da ideia de emancipação e separação política, o passo seguinte
consistiria na produção do novo Estado Nacional, incluindo seu arcabouço simbólico.
Na produção desse simbolismo, os acontecimentos no restante da América
permitem articular um “espaço de experiência revolucionário moderno”, a incluir a
América Portuguesa, nas palavras de João Paulo Pimenta. Isso quer dizer que, para o
autor, a experiência hispano-americana, pela sua relevância, em termos de efeitos, para
a configuração do “processo político do qual resultou a independência da América
portuguesa e a subseqüente formação do Estado nacional brasileiro”, tinha um
significado especial em relação aos acontecimentos passados “que ainda se faziam
„presentes‟ no mundo português”. Nessa lógica, haveria se formado um espaço de
experiência, no sentido de Koselleck, que indicava uma manifestação singular no
conjunto de uma realidade comum que abarcava os séculos XVIII e XIX. 293
Nesse conjunto, cabe a questão: como os agentes da construção narrativa do
período da Independência enxergavam as relações da América portuguesa com o
restante do continente em transformação? Como relacionavam o conjunto da América à
Europa e ao restante do mundo? Como encaixavam tanto a América quanto o Brasil na
narrativa de história da liberdade que vimos discutindo no capítulo anterior?
Esta e outras questões orientarão a discussão deste capítulo. Se no anterior
analisamos a base discursiva que alimentou, ao longo do Primeiro Reinado, a
interpretação da narrativa da história da civilização, como veremos no próximo capítulo,
neste analisaremos as bases de inserção da América e do Brasil nessa narrativa. Em
outras palavras, os elementos que, no momento da Independência, buscavam garantir
discursivamente as possibilidades da existência da Civilização na América, e que
sustentaram, em grande parte, a interpretação dos contemporâneos sobre sua própria
trajetória nacional.
293
PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências: a inserção do Brasil no mundo
ocidental (c.1780-c.1830). Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2012, p. 57.
121
Antes, porém, será preciso contextualizar a trajetória da América portuguesa
frente ao restante do continente, tema já imensamente abordado pela historiografia.
Com o intuito de situar alguns elementos da modernidade política que marcaram a
construção das singularidades luso-americanas, vamos traçar um breve panorama das
transformações desde o século XVIII que desembocaram na ruptura da Independência.
Com isso, tencionamos, também, complementar o percurso historiográfico que
iniciamos na discussão da modernidade conceitual, no capítulo anterior.
3.1) Modernidade política: construção civilizatória sobre colonizados 294
No século XVIII, os impérios ibéricos depararam-se com uma crescente
sensação de atraso em relação a outras potências europeias em ascensão, notadamente
Inglaterra e França. A crise econômica buscava ações políticas que, afinadas com as
“ideias do século”, pudessem encaminhar uma solução para certa percepção de grandeza
perdida. E isso implicava esforços para um melhor conhecimento das partes que
compunham o império, bem como um direcionamento reformista à política lusitana.
Esse contexto, cujos marcos temporais são o início do reinado de D. José I em
Portugal e a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, é marcado por uma
transformação nas relações entre metrópole portuguesa e colônia brasílica. A segunda
metade do século XVIII assiste ao crescimento da importância do Brasil no conjunto do
Império colonial português. Esse crescimento de importância traduz-se na imensa
dependência que Portugal passa a ter dos rendimentos coloniais.
Esse crescimento da importância do Brasil significou um novo momento nas
relações entre metrópole e colônia. Vários intelectuais luso-brasileiros procuraram
desenvolver novas idéias e concepções a respeito do Império colonial, que resultaram
no chamado reformismo ilustrado. Ou seja, a aplicação de alguns princípios iluministas
em busca de uma melhor organização do Império, tanto política quanto
economicamente. Essa foi a época do marquês de Pombal, cujas principais inovações na
estrutura administrativa portuguesa não se alteraram significativamente após sua saída
do governo. Com o objetivo de recuperar a economia do Império português, foram
estimulados produtos como linho, anil, arroz e algodão – este último especialmente
valorizado, na conjuntura aberta pela Guerra de Independência nos EUA e pelas
294
Avanço aqui em algumas considerações tecidas primeiro em meu trabalho de mestrado. Cf.
ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do
Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010, cap. 1.
122
possibilidades geradas pelo início da Revolução Industrial –, sempre com vistas a
recuperar a economia do Império295.
De acordo com tais princípios do reformismo ilustrado, era fundamental agir no
sentido de melhorar a aplicação de recursos e a coleta de riquezas. A associação entre
conhecimento e poder era crucial naquele momento. Para melhor conhecer o Império,
uma série de “memórias” foram escritas na segunda metade do século XVIII, sempre
com o objetivo de tornar a dominação colonial cada vez mais eficaz. Essas memórias
buscavam “olhar” o Império. Eram escritas por intelectuais, viajantes, pesquisadores e
cientistas, formados nos princípios da Ilustração portuguesa, e eram dirigidas aos
administradores coloniais como ferramenta para informar a sua ação. Devemos ter em
mente que o Império português abarcava um conjunto muito variado de posses e
relações culturais, indo de territórios no Oriente (Macau, Índia, Japão etc.) até a
América, passando pela África (Congo, Angola, Moçambique etc.). “Olhar”, conhecer e
interpretar o Império era de suma importância para descobrir suas diferenças, suas
particularidades e, com isso, fortalecer o sentimento em comum e o papel metropolitano
como cabeça coordenadora de todas as relações, lógica semelhante a um contexto mais
amplo de cientifização e racionalização do “olhar” sobre o mundo extra-europeu que se
traduziu numa lógica de categorização das diferentes zonas de contato a partir de uma
consciência planetária eurocêntrica296. Esse esforço, inclusive, produziu uma primeira
ideia de “Brasil” como unidade no conjunto imperial: a busca pela superação do atraso
significava um maior destacamento à posição da América Portuguesa no conjunto
imperial, segundo a ótica metropolitana297.
De todos os administradores imperiais, as principais idéias nessa época vieram
de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, que, entre 1798 e 1803, iria propor a transferência
da capital do Império português para o Brasil, como parte de um amplo programa de
295
Para um panorama das transformações, cf. WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José C. M..
Formação do Brasil Colonial. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 336.
Segundo Novais, “para os estadistas do final do século XVIII português, a crise apresenta-se
primariamente como um conjunto de problemas que a monarquia absolutista tinha de enfrentar e resolver,
alguns mais antigos que se agravavam na nova conjuntura, outros novos que emergem em face das
recentes condições internacionais.” Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo
Sistema Colonial... op. cit., p. 117.
296
Cf. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP:
EDUSC, 1999, em especial o capítulo 2.
297
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros
na crise do Antigo Regime português (1750-1822). São Paulo: HUCITEC: FAPESP, 2006, capítulos 1 e 2
e conclusão.
123
reformas com vistas à revitalização da administração dos domínios coloniais 298. Para
Dom Rodrigo, reformar o Império era indispensável para evitar a influência,
considerada perniciosa, das circunstâncias européias no interior do mundo português.
Dom Rodrigo tinha em vista reorganizar as partes do Império de forma a mostrálas como complementares, e não em relações de subordinação direta, de forma a
consolidar uma “identidade nacional imperial” que causasse a cada colonizador ou
colono, nascido em qualquer canto do mundo, a idêntica sensação de ver-se português.
Era, concomitantemente, uma forma de reintegrar as diversas partes do império
português sob um só manto e uma maneira de afastar as crescentes rebeliões
desagregadoras – que, se não ofereciam um amplo projeto nacional em contraposição ao
português, por outro lado ameaçavam a unidade do Império, em especial naquelas onde
as perigosas idéias francesas encontravam eco.
Nota-se, nesse contexto, que as idéias de Dom Rodrigo estão ligadas a uma
associação entre “nação” e “Império”. Ou seja, não se trata, aqui, do sentimento
nacional predominante no século seguinte, ligado a um Estado nacional e circunscrito a
um território limitado por fronteiras bem definidas. No caso de Dom Rodrigo, sua
preocupação era criar laços ligados à monarquia portuguesa, à dinastia lusitana, à
metrópole ibérica. Todas as diferenças e particularidades regionais deveriam ser
subordinadas a essa presença européia.
Os planos de Souza Coutinho não se realizariam no momento inicialmente
planejado, mas numa conjuntura de guerras européias que tornava a transferência da
Corte a única solução vislumbrada para manter coesos os domínios atlânticos e contínua
a monarquia. A vinda da Corte expandiu todo o processo de modernização política por
que passava o Reino, projetando-o, agora, sobre a colônia americana.
A vinda da Corte alterou significativamente o panorama da região de agricultura
mercantil-escravista a partir de 1808, ao associar às transformações que já se produziam
no centro-sul do Brasil desde a segunda metade do século XVIII as mudanças de
natureza política que a presença da “metrópole interiorizada” possibilitou a partir de
então299. A política de integração inaugurada por Dom João, fosse para o abastecimento
298
LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A Utopia do Poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da
política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, 61-83. Cf., ainda, MAXWELL, Kenneth. A
geração de 1790 a idéia do império luso-brasileiro. In: Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo:
Paz e Terra, 1999, p. 184-187.
299
O conceito de região de agricultura mercantil-escravista, bem como boa parte da interpretação sobre as
transformações a partir de 1808, é inspirado em MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São
Paulo: HUCITEC, 2004, cap. 2, especialmente p. 56-69. Para as transformações em curso desde meados
124
da Corte, fosse para a construção social de sua sustentação política, implicou todo um
direcionamento da concessão de sesmarias, títulos, articulação de interesses e
aproximações do novo centro decisório do Império Português frente aos poderes
coloniais300. Nas palavras de István Jancsó,
Na Corte do Rio de Janeiro realizou-se a síntese que anteriormente
cabia a Lisboa evitar, estabelecendo a aproximação entre os diversos
segmentos das elites das regiões que formavam o Reino do Brasil
(1816), intercambiando experiências, confrontando interesses,
construindo as bases subjetivas para a construção de uma identidade
política comum. O Brasil, ainda que diverso, afigurava-se no seu todo
como o espaço de afirmação e expansão de uma hegemonia de classe,
na medida em que os interesses comuns eram reconhecidos como de
maior monta que os divergentes.301
Nesse processo, ainda segundo o autor, a escravidão ocupava um lugar central,
posto que a reprodução local da hegemonia dos poderes locais passava pela reprodução
mais ampla do escravismo. O papel dos negociantes na nova configuração imperial era
notável, “ocupando postos de grande destaque, a partir dos quais podia[m] consolidar
seu prestígio entre a alta burocracia e alcançar privilégios tais como arrematações de
impostos e sesmarias”302. Diversificando as direções de seus investimentos, dominavam
diversas áreas fundamentais para além do tráfico, como, por exemplo, o comércio e a
produção de abastecimento, ligados fundamentalmente à própria
plantation,
monopolizando, um mesmo negociante, vários segmentos do mercado 303. Entrelaçando
interesses políticos e econômicos, a Corte e sua base escravista de apoio produziram
uma atualização das relações de dominação na América Portuguesa que, parte dessa
modernidade política que avançava, produzia também uma articulação a uma
modernidade escravista, de que trataremos melhor no capítulo final, construindo, nessa
do século XVIII no centro-sul da América Portuguesa, cf. FRAGOSO, João. Homens de Grossa
Aventura. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
300
LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil
– 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979, especialmente capítulo II; MATTOS, Ilmar. O Tempo
Saquarema....; SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no
Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, especialmente cap. 5;
SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC,
2006, cap. 1.
301
JANCSÓ, István. A construção dos estados nacionais na América Latina – apontamentos para o estudo
do Império como projeto. In: SZMRECSÁNYI, Tamás & LAPA, José Roberto do Amaral. História
Econômica
da
Independência
e
do
Império.
2ª
ed.
revista.
São
Paulo:
HUCITEC/ABPHE/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 3-26, citação às páginas 23-24.
302
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 205
303
FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura..., p. 180-181; 321. Sobre as relações entre política e
negócios nesse contexto, cf., ainda, PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os simples comissários”: negociantes
e política no Brasil Império. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2002.
125
íntima relação, um conceito de civilização que não deixava de produzir outros espaços
colonizados como marca dos espólios do processo civilizatório304.
Percebe-se, assim, que a aceleração da produção da modernização política, no
contexto brasílico, passa longe de um simples desenvolvimento linear de ideias e
sociabilidades, que transformam atitudes e percepções de mundo como fruto direto das
luzes de uma época 305 . Os conflitos que surgiam como resultado do processo
civilizatório desencadeado pela presença da Corte inaugurou um novo tempo que
reconstruía laços entre grupos dominantes, que disputavam a direção real como forma
de ampliação dos seus espaços de atuação, buscando ampliar as condições objetivas e
subjetivas que possibilitavam sua expansão como frações de classe.
As novas condições inauguradas pela presença da Corte, assim, possibilitando
um alargamento das formas de exercício da política, promoveu também uma crescente
tensão entre o Brasil da civilização e o Brasil colonizado. As tensões acompanhariam as
disputas entre grupos econômicos aproximados e afastados pela ação da Corte, como
aqueles que envolviam os donos de engenhos, proprietários e comerciantes do
Recôncavo da Guanabara e de Campos dos Goitacazes; as disputas entre aqueles que
recebiam isenções (como os proprietários de Serra Acima) e os que viam as cobranças
de impostos avolumarem-se (açúcar, tabaco, algodão); entre os naturais do Reino e os
naturais da América etc.306 As tensões estariam presentes nos movimentos de rua que,
após a deflagração da Revolução do Porto, em 1820, forçariam o juramento das bases da
Constituição por Dom João VI e pressionariam as disputas entre identidades, projetos
políticos e sustentação de fundamentos do poder entre 1821 e 1822 no Rio de Janeiro.
Do conjunto dessas disputas emergiram concepções de mundo que buscariam,
todas elas, afastar os elementos mais radicais de tensionamento da política (a massa de
colonizados) em nome de uma perspectiva que estruturasse o Império, fosse o
304
Para uma análise das relações entre espaços civilizatórios e espaços colonizados, com foco sobre a
Corte, cf. BARRA, Sérgio. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro no tempo do rei (1808-1821). Rio
de Janeiro: José Olympio, 2008. O termo “colonizado” é usado no sentido conferido por Ilmar Mattos, em
O Tempo Saquarema.
305
Para uma leitura da modernização política nesse feitio, cf. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e
independências: ensayos sobre las revoluciones hispânicas. 3ª Ed. México: FCE, MAPFRE, 2000.
Segundo o autor, para o contexto hispânico, paralelamente ao avanço da modernidade política do
absolutismo surgiu uma “modernidade alternativa” centrada na “invenção” do indivíduo e que, a partir da
produção de “novas formas de sociabilidade” e da difusão das luzes, foi se impondo na nova sociedade.
Se essa dimensão é inseparável do processo de modernização política, ela, porém, não esgota a totalidade
desse processo. Para uma análise da modernização política na Corte que se baseia em Guerra, cf.
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na
cidade imperial (1820-1840). São Paulo: HUCITEC, 2005.
306
OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal: relações de mercado e projetos políticos
no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista, SP: EDUSF & ÍCONE, 1999, p. 81-106.
126
português, fosse o do Brasil, sobre bases sólidas. O desenho de determinada concepção
de “povo” e de “nação”, a constituição de uma visão homogeneizadora sobre o “ser
brasileiro” e a produção de uma certa concepção de história que integrasse o Brasil
numa trajetória sem conflitos fariam parte das preocupações dessas concepções de
mundo.
Fundamental, assim, no tecimento de uma retórica para a construção de uma
visão homogeneizadora do “ser brasileiro” foi a elaboração de bases sobre as quais
pudessem apoiar-se as interpretações passadas e presentes daquele momento de
formação do Brasil, na primeira década de 1820. O fundamento dessas bases, produzido
com mais vigor no momento do rompimento, entre 1821 e 1822, lançou mão de alguns
elementos essenciais que pudesse tanto promover uma posição relevante para a
América, de forma geral, e para a América portuguesa, em particular, na narrativa geral
da história da liberdade, que discutimos no último capítulo, quanto destacar os atributos
cruciais das transformações da época no espaço americano que pudessem promover o
máximo alcance da liberdade – condição natural e inescapável do ser humano – sem cair
nos riscos da anarquia. Em outras palavras, o momento do rompimento produziu uma
narrativa que inseriu a América no conjunto de transformações históricas da civilização,
conferindo a ela tanto papel de destaque quanto apresentando os atributos que fariam
daquele espaço o melhor dos mundos para o entrelaçamento necessário entre liberdade e
segurança.
Tratemos, então, desses dois aspectos a seguir.
3.2) De volta ao Reverbero: A América à frente das transformações do tempo.
Como vimos no capítulo anterior, a produção narrativa do Reverbero, tratando
da trajetória histórica da civilização, em geral, e da Europa, em particular, produziu uma
interpretação da História como história da liberdade em constante luta contra o
despotismo. Essa interpretação selecionou fatos múltiplos do passado para embasar sua
argumentação, com a construção de uma concepção de tempo que se transformava
naqueles curtos anos: de uma concepção voltada à perenidade, na qual cada novo evento
da liberdade contra a opressão era apresentada como reiteração de um desenvolvimento
inerente, inevitável, natural da humanidade, cada vez mais o Reverbero incluía na
narrativa acontecimentos marcados pela novidade e rompimento com o passado. Ao
mesmo tempo em que se justificava uma narrativa de continuidade, produzia-se uma
interpretação que apresentava aqueles anos como novidade na história civilizacional.
127
Como entrava, para os editores do Reverbero, a América nessa narrativa? E em
que medida a situação da América Espanhola poderia ser comparável à da Portuguesa?
Em que medida a América Inglesa poderia constituir referência para os luso-brasileiros?
O quão ampla era a lógica a conduzir os destinos americanos em torno de uma só
direção, um só rumo, que pudesse encaixar-se na totalidade da luta pela liberdade que
marcara a história dos povos na interpretação predominante do periódico?
Nas discussões transparece a interpretação de que o destino da América
Portuguesa entrelaçava-se, ao menos até certo ponto, àquele das demais partes do
continente. Em edição de 15 de novembro de 1821, após indicar promessa de
transcrever em suas folhas discursos feitos pelos deputados da América nas Cortes
espanholas de junho último, afirma o periódico que “ele nos pareceu muito interessante,
aplicável às circunstâncias do Brasil, e próprio para nele se prevenirem os males, que há
onze anos oprimem as Américas Hespanholas”307. A aproximação das circunstâncias é
corrente no Reverbero, especialmente no tocante aos riscos pelos quais passava a
monarquia portuguesa em suas conexões com os domínios americanos. Em edição de 01
de dezembro daquele ano, uma nova transcrição das sessões espanholas, ao analisar os
riscos a que estavam submetidas as províncias na América, expõe a conclusão que
parecia inevitável: “nas presentes circunstâncias, as partes da monarquia tendem a uma
mútua separação; as Américas no pé em que estão não podem subsistir em paz,
caminham portanto velozmente para a sua ruína, apesar das luzes do século”308. Ruína e
progresso do espírito humano não necessariamente caminhariam juntos. Era preciso
uma boa política oriunda dos peninsulares, uma mudança de atitude para com a
América. Era um dever dos agentes do presente. “Não somos nós responsáveis às
gerações futuras e presentes pelo sangue dos nossos Irmãos, pela separação dos Povos,
pela secção da Monarquia?”, questiona o periódico 309 . Os destinos de Portugal e
Espanha caminhavam juntos.
Mas não caminhavam na mesma temporalidade. A observação pormenorizada
dos destinos da América Espanhola, segundo o Reverbero, poderia ser a salvação da
Portuguesa. Era como se os acontecimentos espanhóis, ainda que inseridos no mesmo
conjunto de transformações daqueles anos, produzissem um ritmo que não alcançaria as
províncias portuguesas senão no futuro. Identificava-se uma mesma dimensão da crise –
307
RCF, 15 de novembro de 1821, p. 54.
RCF, 01 de dezembro de 1821, p. 64.
309
Idem, p. 65.
308
128
o descaso metropolitano levaria à ruína da união na América –, mas não se considerava
que o destino brasílico já ultrapassara o horizonte de eventos após o qual qualquer ação
seria inútil. Pelo contrário: o papel do periódico e das narrativas dos acontecimentos
consistia, precisamente, em apontar os futuros possíveis: o trágico e o sucesso, a fim de
alimentar as escolhas que produziriam cada um dos caminhos.
Não é outro o sentido das várias transcrições de acontecimentos na América
Espanhola e na Espanha que perpassam as edições do Reverbero. Os acontecimentos da
América Espanhola “tocam muitas das nossas circunstâncias”, afirma 310. Periódicos que
negassem a “congruência e identidade de circunstâncias entre o Brasil e a América
Espanhola”, como o Semanário Cívico da Bahia, segundo a interpretação do Reverbero,
mereceriam críticas. A identidade de circunstâncias existiria, “com a diferença, como já
dissemos, que aqui é preciso prevenir males, e ali remediá-los”311. A distinção entre
aqui prevenir os males e ali remediá-los talvez indique um deslocamento da noção
temporal, sendo a América Espanhola um futuro possível para a América Portuguesa:
destino que se pode enxergar, mas alterar, de acordo com a ação e a direção a ser dada.
Observar a América Espanhola não era apenas observar o presente, mas, também,
observar um futuro possível. Aquele a ser evitado. Se, como já vimos, o Brasil ainda
tinha um destino brilhante de crescimento no futuro, a ponto de, em breve, superar
Portugal (que já chegara ao seu limite), o cuidado seria, então, para que o crescimento
não redundasse em tragédia. “Aproveitemos o presente para nos servir de guia no
futuro: não desprezemos a filosofia da experiência.”, conclamaria o periódico. Era
preciso lembrar que “o saber do homem de Estado consiste em fixar o verdadeiro ponto
da felicidade e Liberdade”, e que “merecerão as recompensas de todas as idades os
homens, que acharem o modo de um Governo próprio, para produzir a maior soma de
felicidade individual com o menor grau de sacrifícios”. A observação do presente e
passado imediatos da América constituiria caminho seguro para a plena execução desse
equilíbrio entre felicidade e sacrifícios tão própria do homem de Estado.312
Serviria aos homens de Estado no Novo e no Velho mundos. Afinal, como já
vimos no capítulo passado, a marcha da História era inexorável, e
todos os esforços das Metrópoles para contrariar esta marcha [de
emancipação das colônias] são perdidos; a sua arte deve consistir em
observar o desenvolvimento das suas Colônias, seguir os seus
310
Idem, p. 66.
Idem, ibidem.
312
Idem, p. 72.
311
129
progressos, regular-se por eles, para evitar de travar-se com elas por
extemporâneas restrições, ou pertenções; ceder quando é razoável;
conceder mesmo antes que requeiram; substituir os laços da amizade, e
os do reconhecimento às leis imperiosas da autoridade, que o tempo tem
enfraquecido. O esquecimento destes princípios custou à Inglaterra a
feliz perda dos Estados Unidos; custa neste momento à Espanha a de
suas Colônias; que ela ainda procura reter, sem saber porque, nem
como...313
Mas se a situação na América Espanhola era algo a ser observado com cautela e
preocupação, pois continha um futuro possível (e trágico) para a América Portuguesa, a
observação da América Inglesa fornecia uma alternativa não apenas respeitável, mas
exemplar de sucesso para o caminho da emancipação que se desenhava nas páginas do
periódico. A América Inglesa, ainda que fosse, em diversos aspectos, distinta da
Portuguesa, a começar pela República, fornecia o melhor exemplo que, naqueles anos,
embasava a ação por autonomia e prometia sucesso na arriscada empreitada da ruptura
com a metrópole.
Reflexões expostas na edição de 15 de janeiro de 1822 já indicavam essa ideia.
O texto explicava aos leitores a situação após o 9 de janeiro. Alertava para os que
tentavam estabelecer a separação entre as províncias, roubando-nos “o nosso centro de
União para deixar-nos entregues à desordem e à luta de opostas forças”314. Indicava que
não era difícil adivinhar por qual princípio tal tentativa de fragmentação seria alcançada.
Afinal, a “Revolução de Portugal” oferecia duas combinações possíveis a seguir: “ou o
rei se conservava no Brasil ou voltava para Portugal”. Ambas as alternativas, segundo o
“apóstolo da América” – De Pradt, provavelmente – davam por final resultado o
estabelecimento do sistema representativo na América. Afinal,
Se ficava preferindo um mundo na América a uma província na Europa,
era impossível que o Brasil situado no centro das Constituições
Americanas, comunicando diariamente com povos constituídos, e
contratando com homens constitucionais, tendo por estrela polar os
Estados Unidos, que muito alto colocaram o farol para escapar às vistas
dos povos vizinhos, se pudesse subtrair a este vórtice de influências. Se
voltava era incompatível que na mesma monarquia existisse a Luz e a
Treva, a Justiça e a arbitrariedade (...) 315
313
RCF, 08 de janeiro de 1822, p. 109-110. Havendo o esquecimento desses princípios, melhor seria,
seguindo análise transcrita do Correio Brasiliense, se Portugal já declarasse o Brasil independente de uma
vez, ao invés de se fomentarem ali partidos, “que produzirão a guerra civil, degolando-se os povos uns
aos outros”. “declare-se que Portugal não precisa do Brasil, e previnam-se assim os males da guerra; a
qual quando começar, não pode deixar de ter o mesmo êxito da que houve na América Espanhola.” Cf.
RCF, Número 01, 12 de maio de 1822 – EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA, p. 03.
314
RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 129.
315
Idem, p. 129-130.
130
Em outras palavras, na lógica apresentada no periódico, a manutenção do
monarca em terras americanas não bastaria, por si só, para garantia de manutenção do
Reino Unido. Afinal, a presença dos Estados Unidos, como “estrela polar” cujo farol
encontrava-se muito alto, constituiria irresistível vórtice de influências. Comparando-se
o trecho acima com o destacado anteriormente, que destacava como o “esquecimento”
de certo trato com as colônias causara lição na Inglaterra da perda dos Estados Unidos,
podemos vislumbrar como a sombra dos americanos do norte derramava-se pelo sul
como inspiração – ou, ao menos, ameaça de inspiração – para os caminhos a serem
seguidos. Se os conflitos na América Espanhola em processo de emancipação eram
manejados para assustar e afastar o risco separatista no Brasil (embora, como visto,
pudessem ser manejados também como exemplo de práticas a se apreender para evitar),
o contra-exemplo de sucesso das 13 colônias balanceava a equação e oferecia
perspectivas positivas àqueles que desejavam uma maior autonomia em relação à mãepátria.
A mesma edição, após chamar os EUA de “sede da filosofia e da liberdade” 316,
ainda mira-se no exemplo das 13 colônias para proceder a questões mais, digamos,
concretas a respeito da emancipação, como um possível conflito armado contra
Portugal. Questiona quem pode desejar um conflito desses e afirma que a paz é o
melhor proceder, pois “só à sombra dela pode [o Brasil] florescer a sua agricultura,
manancial ixaurível [sic] de suas riquezas, e de sua prosperidade”. Questiona quem
pode querer uma guerra tão arriscada: quem “lucrará em acabar de inanir-se de homens,
e dinheiro, e indústria, e comércio?” E indica: “leiam a História dos Estados Unidos;
consultem os fastos da América do Sul, e desenganar-se-hão de tão quiméricos
projetos”.
317
A vitória dos irmãos americanos em guerras passadas servia
discursivamente para garantir a vitória na guerra aos portugueses da América.
Os EUA constituíam, assim como a América Espanhola, um passado como fonte
para a interpretação do futuro da América Portuguesa. Apresentavam um resultado
positivo e uma possibilidade de realização sem danos da emancipação. Possibilitavam
uma atitude passada que servia para embasar atitudes presentes frente ao
comportamento metropolitano perante o Brasil. No momento em que a Corte aprova o
envio de tropas à América, o Reverbero questiona se o Brasil já não dera mostras
suficientes de querer a união com Portugal, uma vez que já pedira a Constituição
316
317
Idem, p. 131.
Idem, p. 132.
131
Portuguesa e mandara seus representantes ao soberano congresso. Questiona, então, o
porquê das tropas. Critica a atuação de Luiz do Rego (“bravo general”, mas “muito mau
governador”). Compara seu modo de tratar o “povo pacífico” ao dos “presos em um
navio, à maneira da escravatura da Costa da Mina”318. E afirma que, para os deputados
que apóiam tal arbitrariedade, o “sistema constitucional não se arreigará no Brasil sem
que seja escoltado de baionetas europeias”. Tal postura, contudo,
não pode deixar de produzir males de uma natureza assustadora.
Quando a América Inglesa, depois das suas primórdias contestações
com a Metrópole, jurou à face do Céu, e da Terra adesão à sua Causa,
os primeiros choques que produziram a desunião foram nascidos da
introdução das Tropas Inglesas, que imediatamente deram a conhecer os
intentos de apoiar as pertenções tirânicas da Mãe Pátria. Então sobre os
Manes sagrados das vítimas sacrificadas pelos Ingleses, eles juraram
não depender, que de si mesmos, e de só à as vontade confiarem os seus
futuros destinos.319
Não era uma questão menor. Noutra edição, reflexões lembravam que
a Independência da América (dizia em 1777 o Apóstodo [sic], que a
pregava com a palavra, enquanto Washington a firmava com vitórias)
deve datar do instante, em que sobre ela se disparar o primeiro tiro de
espingarda. Boston apresentou então as cenas de horror, que agora se
apresentam na Bahia. Realizou-se ali a profecia, e o soberbo Colosso da
Europa, que Franklin com a mão, que pôde arrancar o raio das nuvens,
pôde arrancar-lhe o cetro, com que jurara esmagar os Americanos.
Debalde a fúria dos partidos os ameaçava (como agora nos acontece)
com a mui diminuta população, com a falta da sua precisa Marinha, e
com o peso de uma grande dívida; debalde se lhes opunham as riquezas,
o capricho, e a força da sua preponderância rival: o mundo estupefato
viu prontamente sair dos Lagos, e das Matas de S. Lourenço, e
Mississipi, a obra mais completa que tem visto os homens, e que fará
por longa extensão de séculos a felicidade de uma Nação generosa, e
que obrigou a Inglaterra a confessar pelo seu mesmo silêncio, que
cometera um gravíssimo erro em Política, aplicando-se os seus ombros
para fazer retrogradar uma Obra, que seguia o impulso necessário da
irresistível Natureza. 320
O primeiro tiro disparado havia posto tudo a perder. Haveria escolha para
portugueses de ambos os mundos? Continuaria o Reverbero:
Portugueses de um e de outro hemisfério, atendei às vozes da verdade,
para que se apague o fogo de partidos, que podem sim derramar muito
sangue, mas que não poderão conseguir fins contrários à marcha da
civilização do nosso presente século. As Nações todas têm épocas de
contato entre si; as cenas da América do Norte são as Cenas do Brasil,
318
RCF, 19 de fevereiro de 1822, p. 174.
Idem, p. 175.
320
RCF, Número 22, 9 de abril de 1822, p. 265
319
132
mas as circunstâncias do Brasil são muito mais felizes, tanto porque
temos um centro de união em um Regente Amante da Constituição,
como porque a Sabedoria do Soberano Congresso, tendo em vista
aquele exemplo dos Americanos, procederá com Prudência a nosso
respeito, e não com caprichos loucos; porque é tempo de saber-se
geralmente, que a Liberdade é franca e voluntária; que quando se
apresenta, ou com disfarce, ou com armas, em vez de Irmãos dispéria
[sic] inimigos, que cedo ou tarde se debatem, com horror da
humanidade civilizada. 321
A América inglesa juntava-se ao conjunto de eventos passados que serviam de
referência para a construção de propostas futuras e interpretações presentes. Se antes o
Reverbero buscava os pontos de contato entre Brasil e Portugal no mesmo universo
histórico, juntando ambos os lados do Atlântico na mesma lógica histórica, agora o
deslocamento provocado pela perspectiva de ruptura com a metrópole aproximava os
pontos de contato entre Brasil e demais regiões da América – no caso, especialmente a
inglesa. Os eventos mais próximos da contemporaneidade eram usados para essa
aproximação, haja vista que não eram aspectos de uma colonização comum que os
conectava, mas, sim, elementos da ruptura, da libertação, da luta contra a opressão. De
certa maneira, era também a produção de uma síntese a unir as diversas colonizações
num mesmo processo, que, na lógica da história como história da liberdade, significava,
fundamentalmente, que toda colonização era opressiva, despótica, e o exercício da
natural liberdade presente no coração dos homens, neste particular, era a luta que unia
todas as regiões coloniais da América contra a dominação da Europa.
A leitura dos acontecimentos ali permitia que se pudesse proceder com cautela.
Afinal, as cenas da América do Norte eram as cenas do Brasil, apenas deslocadas no
tempo. E se é certo que as condições específicas da América Portuguesa permitiam
maior esperança frente àqueles que ainda sonhavam com a união dos dois reinos, é fato
que tal só seria possível se aqueles com o poder para produzir o futuro mantivessem-se
ligados ao passado para compreender os fios que juntavam causas a conseqüências. Se o
Soberano Congresso esquecesse tal leitura e continuasse a promover as “inventivas e as
chufas”, insultando os brasileiros “com os nomes de Tupinambás, de Botocudos, e de
macacos”, então estes
escolherão vingadores para conseguirem o triunfo da sua causa, e tão
enérgico como foram aqueles que na América do Norte formaram essa
Constituição, eterno penhor da fortuna, da riqueza e do respeito desse
Povo que se levantou do estado de sua opressão quando seus Irmãos da
321
Idem, p. 266-267, grifos meus.
133
Europa julgavam que eles não tinham outro remédio senão beijar suas
cadeias pela falta de recursos necessários para as quebrar. Se este Povo
tivesse a fortuna que nós temos possuindo um Príncipe de tanta energia
pelo bem geral, não seria tão custoso aos Franklins repelir os obstáculos
que retardaram a vitória. 322
“O gênero humano está em marcha, nada o fará retrogradar”. Aquelas palavras
de De Pradt ecoavam em inúmeros posicionamentos do Revérbero. Aliada à retórica
que buscava fincar uma bandeira política na disputa pela construção futura do Império,
a interpretação dada àqueles tempos precisava levar em conta os passados das demais
regiões da América na inserção do Brasil na lógica das civilizações. E se a aproximação
com os eventos americanos, naquela lógica, era fundamental à ruptura, não esquecer a
herança europeia era também indispensável para a manutenção dos aspectos
civilizatórios das novas nações libertas. Apareciam, assim, lado a lado os eventos da
América e os da Europa, agora numa experimentação um pouco mais radical:
A Revolução da França, que em parte pode ser considerada um efeito da
civilização dos Povos, deu impulso tão forte aos espíritos na Europa,
como a dos Estados Unidos deu também na América. Tocada a
principal mola do coração do homem, pela solene declaração dos seus
inalienáveis direitos, sabiamente deduzidos da sua invariável natureza,
era impossível que o Liberalismo assim proclamado retrocedesse ao seu
primeiro caos. Houve sim uma força na Europa, que aproveitando com
dexteridade a luta entre os liberais e os servis, pareceu reprimi-lo por
alguns anos, deixando-o em antro profundo, cavado pelo terrorismo o
mais inaudito. (...) A América toda naturalmente desejosa da Liberdade,
como um filho, que anhela [sic] emancipar-se para gozar por si mesmo:
mas cuidadosamente vigiada pelas suas metrópoles, que nada menos
queriam do que possuir com exclusão, e desfrutar sem partilha, a
América, digo, sentiu o impulso das províncias do norte, e espreitava o
momento de aproveitar-se do seu exemplo, para dar expansão à chama
sagrada, escondida nos corações de todos os seus filhos. A da Espanha
era bem como um navio preso às praias de Cádis por um cabo já muito
enfraquecido; Napoleão cortou este cabo invadindo a Espanha; o Navio
vogou em alto mar, e a pesar de grandes tempestades e da inexperiência
de alguns seus pilotos, ele chegou ao Porto desejado, porque assim
devia acontecer.323
Revoluções na Europa, revoluções na América; despertada a chama natural da
busca pela liberdade no coração dos homens, a história seguia seu curso rompendo as
forças que oprimiam e prendiam essa potencialidade. Se a história era a história da
liberdade versus a tirania, então o aprisionamento da primeira pela segunda não poderia
conseguir resultados senão momentâneos e à custa de um esforço cada vez mais
322
323
RCF, Tomo Segundo, Número 02, 04 de junho de 1822, p. 17.
RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 66.
134
ineficaz. Nada faria retrogradar a marcha do gênero humano. Mas, evidentemente, a
destruição das correntes liberaria forças que, por descuidos, desvios ou não preparo de
seus dirigentes, poderiam resultar em destruição, caos, infelicidade. “Ó França, acaso se
vão reproduzir em Portugal os horrores da tua Revolução!”, lamentariam os editores do
Reverbero em edição de setembro de 1822, logo após afirmarem aos “brasileiros
generosos” que “a sorte está lançada”.324 Observar o passado da América Inglesa e da
América Espanhola oferecia condições para medir a posição do Brasil naquele
gradiente, buscando armas ideológicas para suavizar a inexorabilidade da marcha do
tempo (afinal, não poderia manter-se a liberdade prisioneira da tirania) a partir da
construção interpretativa da singularidade brasileira naquele conjunto. Afinal, o Brasil,
diferentemente de suas irmãs americanas, e mesmo de seus espelhos europeus, reunia
condições únicas para atender àquela marcha sem passar pelas mesmas inseguranças: a
presença do Príncipe Dom Pedro.
3.3) Os “bens da liberdade sem as comoções da democracia e sem as violências da
arbitrariedade”.
A posição a favor de Dom Pedro começa a se estabelecer com mais firmeza em
reflexões de janeiro de 1822. Após apontar a situação revolucionária em Portugal e na
América, destacando como as ideias constitucionais encontraram terreno fértil para
acelerar as transformações neste espaço, destaca a situação privilegiada do Brasil
naquele contexto, afirmando o Reverbero que “o Brasil adotando o príncipe, adotou o
partido mais seguro; vai gozar dos bens da Liberdade sem as comoções da Democracia,
e sem as violências da Arbitrariedade.” 325 Era possível, portanto, superar a transição
revolucionária sem os riscos a que estavam sujeitos nos processos. Afinal, se a vitória
da liberdade era uma inevitabilidade, inscrita na lógica do desenvolvimento histórico
dos povos, a possibilidade de realização dessa lógica histórica sem desvios que
causassem adversidades era própria apenas para aqueles povos que houvessem reunido
as necessárias condições.
O Brasil era desses. O Brasil, que já vinha com destaque pelas benesses da
Providência, que derramara uma natureza magnífica e um potencial inexaurível, que já
324
RCF, Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 201. À exposição da situação do
momento, no qual a sorte estava lançada, conclamavam os editores: “Cumpre agora corrigir as passadas
faltas pela nossa atividade, patriotismo, e mais do que nunca necessário entusiasmo. Acaso os Brasileiros
são menos homens do que todos os seus Irmãos Americanos? Acaso a Natureza tão pródiga em o nosso
solo, seria para conosco mesquinha na doação de qualidades morais?”
325
RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 131.
135
se situava numa vantajosa posição no Globo, abrangendo as mais férteis e abundantes
zonas, com todas as matérias primas e com todas as artes, a este Brasil, já destacado no
conjunto colonial, “só lhe faltava a Liberdade, e a Liberdade veio coroar os seus votos”,
possibilitando a transição pacífica326. Para tal seria de imensa importância a conservação
do Príncipe em seu seio, “necessário centro da sua reunião, princípio da sua
tranqüilidade, que o livrará das comoções da Democracia, e dos vórtices horrorosos da
Anarquia, pondo freio ao mesmo tempo ao astuto maquiavelismo, que parecia desunilo, intrigá-lo, e enfraquecê-lo”327.
A condição única do Brasil não era considerada nem mesmo produto da
colonização europeia, criticada dentro da lógica dos 300 anos de opressão – agora sem o
balanceamento da “harmonia” como possibilidade que teria pautado as relações entre
Portugal e Brasil nas primeiras edições do Reverbero. Afinal, “o tesouro que possuímos
no Príncipe, o devemos à Providência, e não à generosidade dos nossos Irmãos de
Portugal”328. Fosse para a independência, fosse para a manutenção das duas Coroas, a
chave era o Príncipe Regente, a grande “égide da nossa Liberdade; (...) [e] o esteio da
Constituição no Brasil; é o instrumento da nossa tranqüilidade; é o centro da nossa
liberal Reunião com Portugal; é a fonte da nossa ventura; é o amigo dos Portugueses,
porque só deseja a sua maior glória e só promove o seu maior bem.”329
Enquanto a Europa dilacerava-se em conflitos entre a reação e os liberais;
enquanto a América Espanhola fragmentava-se em disputas entre grupos rivais;
enquanto a liberdade rompia com a opressão em todo lugar à custa de muito sofrimento
e destruição, “feliz então o Brasil, porque já tem abraçado a [sic] Sistema
Representativo, o primor, a maravilha da Arte de governar Povos, evitando assim as
delongas, que hão de sofrer outros países.” 330 Feliz o Brasil, que, recusando o
despotismo, possibilitava “uma indisputável estabilidade, uma prosperidade superior à
das outras nações, [que] há de ser a sua infalível, e gloriosa pertença.” 331. O caminho
final haveria de ser este, de uma forma ou outra, pois reunia em sua organização política
todas as necessárias condições para a máxima prosperidade dos povos. E se assim não
era no presente, tudo se resumia a uma questão de tempo:
326
RCF, 05 de fevereiro de 1822, p. 157.
Idem, ibidem.
328
RCF, 19 de fevereiro de 1822, p. 180.
329
RCF, 19 de março de 1822, p. 230.
330
RCF, Número 24, 23 de abril de 1822, p. 291.
331
Idem, ibidem.
327
136
Se a América do Norte, e do Sul restabeleceram Repúblicas, é porque
ainda contam dez habitantes por légua quadrada; quando porém cem ou
duzentos ocuparem o mesmo espaço de terreno; quando cidades
magníficas, e florescentes substituírem as florestas virgens, que hora
cobrem as margens dos seus Rios; quando a Indústria se abraçar com a
natureza; quando a Arte tirar vantagens dos soberbos portos, que
bordam as suas Costas, e um Comércio bem dirigido levar a vida, a
força, a riqueza, e a abundância a todas as Artérias do Estado; quando
finalmente as Artes do velho Mundo se aclimatarem neste país
abençoado, que a Natureza por tantos séculos ocultara no túmulo do
Sol, receosa de que a cega Idolatria da Europa lhe não desse o grau de
apreço, que lhe convinha de justiça, então a América toda procurará na
Monarquia Constitucional um refúgio contra a sua própria grandeza, e
contra o seu colossal engrandecimento.332
Abraçar a Monarquia Constitucional, no caso do Brasil, era, portanto, assumir a
figura de futuro da América. Se a observação das tragédias recentes americanas era uma
forma de se prevenirem os males no Brasil, uma vez que, como vimos anteriormente, o
passado próximo da América era entendido como futuro à espreita do Brasil, então
antecipar-se aos destinos trágicos de guerra e destruição, pela adoção da forma
monárquica constitucional de governo, era não apenas governar a própria história,
conduzindo o próprio destino, mas, também, tornar-se o próprio Brasil novo exemplo
para o restante do continente – e, por que não?, do mundo. A retórica que interpretava a
linha de desenvolvimento da história dos países americanos achava um lugar de gala
para o Brasil no conjunto das sociedades.
Assim é que o Brasil poderia cumprir seu destino da Natureza de ser grande e
glorioso, caso sua população estivesse unida como os átomos na matéria. A questão da
união era central. As facções poderiam tudo pôr a perder. Se, por um lado,
a espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas luzes, que
não pode mais conter-se na concentração dos poucos conhecimentos
dos séculos passados; quer[endo] reintegrar-se dos seus naturais, e
inauferíveis direitos de propor novo pacto social em Liberdade, por
união voluntária, e acordo mútuo333,
por outro “os Filósofos do século 18 abstraídos em especulações metafísicas se
exaltaram na ideia da perfectibilidade da natureza humana, e conceberam, da mesma
forma que o ponto geométrico, a existência da liberdade, e igualdade absoluta entre os
homens, quimera a mais perigosa de todas na sociedade”334. Se a união que produzia o
332
Idem, p. 290.
RCF, Tomo Segundo, Número 11, 06 de agosto de 1822, p. 127-128.
334
, p. 128.
333
137
pacto era decorrência esperada da produção da liberdade, a igualdade absoluta, como
quimera perigosa, produzira apenas tragédias. Os homens
quiseram benevolência fraternal, e se tornaram malévolos; quiseram ser
livres, e foram licenciosos; quiseram tolerância, e se fizeram
intolerantes; quiseram paz perpétua, e acenderam guerra inextinguível.
Quiseram enfim consolidar uma república eterna, e se reduziram à
desenfreada anarquia, da qual evadiram para o despotismo militar, e
felizmente voltaram para o mesmo ponto, donde haviam partido nos
desvarios, e aberrações, porque divagaram. 335
Melhor seria viver em Constantinopla – a “Turquia” que, como poderemos ver
no capítulo cinco, constituía a imagem sintética do extremo oposto da civilização – do
que em Paris no auge da Revolução provocada por esses inocentes ou malévolos
propugnadores do mal336. Quase como uma tendência natural, a produção de demagogos
levaria a democracia à aristocracia; esta, à tirania, “como se tem observado em todas as
idades do mundo”, resultando na concentração da autoridade em menos e menos mãos,
até que uma a usurpe e transforme em governanças “inconstitucionais, arbitrárias,
absolutas, e militares”337. A partir de Montesquieu, aponta uma distinção fundamental
entre o passado e o presente para justificar a inoperância das repúblicas. Antes, “na
austeridade dos costumes”, quando se desprezavam o ouro oferecido e os cidadãos, para
salvação da pátria, se “devotavam à morte”, “as repúblicas antigas apresentavam ao
universo modelos de patriotismo”. No século presente, porém,
em que a dissipação, o espírito mercantil, o luxo, a corrupção moral, e o
egoísmo se tem desenvolvido geralmente, pretender firmeza nas
Repúblicas fundadas sobre tais alicerces, é transtornar a ordem as
coisas, conciliar ideias contraditórias, e conceber absurdos, como
simultaneamente querer e não querer virtudes. 338
A isso somava-se a imensidão do território do Brasil tornando qualquer forma
republicana inadmissível. E voltam os EUA como exemplo. Mesmo os EUA, o “farol
da liberdade”, que para o rompimento era exemplo pleno a ser vislumbrado, no
momento da construção posterior deveria ser visto com mais cuidado. Afinal, ainda não
haviam alcançado o acabamento final que apenas a monarquia constitucional
335
Idem, p. 129.
“Manes Idem de Voltaire, de Rousseau, d´Alembert, e de quantos preparastes a Revolução Francesa,
de Mirabeu, de Condorcet, de Brissot, e de quantos a executastes, vós nos gritais aos ouvidos da razão,
que antes viver em Constantinopla ou Ispahan [sic] do que em Paris na época desastrosa de sua
Liberdade, e igualdade absoluta.” In Idem, p. 129.
337
Idem, ibidem.
338
Idem, p. 129-130.
336
138
possibilitaria: “Não se me argumente com os Estados Unidos do Norte, os quais daqui a
alguns anos, se a sua opulência for sempre crescente, comprovarão as minhas
asserções.”
339
A partir de Benjamin Constant, mostrava-se que a Monarquia
Representativa Constitucional, esta, sim, era a melhor forma de governo, já que “o
soberano é interessado em causa própria a neutralizar-se e a manter o equilíbrio de todos
os poderes entre si” 340 . A consulta à História disponibilizaria diversos exemplos
passados, se a lógica interpretativa do presente não bastasse para tal conclusão:
Os maiores e mais florescentes Impérios têm sido monarquias. Se a
república de Roma, má aristocracia, e péssima democracia, devendo a
sua conservação à política guerreira, com que entretinha ao longe em
hostilidades incessantes os cidadãos fascinados com os pomposos
títulos de liberdade, glória e dignidade do Povo romano, agitado sempre
em casa por dissensões entre a Plebe e o Senado; se a república romana,
dizia eu, pôde subsistir em grande por sete séculos, não o deveu ao
recurso da criação dos ditadores nas ocasiões apertadas, em cujas mãos,
como nas de um monarca, depositava em parte o poder legislativo, e
plenamente o executivo?341
A durabilidade da Roma Republicana, sua perenidade, fora possível apenas
porque sustentada, nessa interpretação, pelos momentos ditatoriais que garantiam
eficácia análoga à da monarquia. Eficácia observável no passado. A História o
mostrava. No Brasil via-se exemplo sem par na História, a todos os reis da Terra. Dom
Pedro possibilitava a síntese que outros espaços e tempos não puderam ser. Prega que
seja ele o centro “do qual emane o impulso das leis, que com ele instituirmos ao nosso
corpo político”, “que anime as faculdades da nossa pátria há três séculos entorpecidas,
para nos elevarmos à categoria e grandeza a que, desde a criação, nos destinou a
providência”342. Dom Pedro permitiria, afinal, a realização de todo o potencial cravado
no Brasil desde a Criação. E, entre exemplos passados e o destaque presente, encerrava
assim o texto:
Brasileiros. Estes documentos, e outros muitos nos fornece a História,
são lições instrutivas para nós. Eia, vamos, unamo-nos a S. A. R.; cuja
felicidade e a nossa são recíprocas. Resumbre ela das nossas Cortes para
nós, e para as gerações que nos hão de suceder! (...) É a favor das marés
(diz Marmotel) que se trabalha nos diques. Aproveitemo-nos da
oportunidade do tempo.343
339
Idem, p. 130.
Idem, ibidem.
341
Idem, p. 130-131.
342
Idem, p. 135.
343
Idem, p. 136.
340
139
A marcha do gênero humano não poderia retrogradar. O Brasil oferecia, porém,
um “espetáculo novo no Teatro do Mundo civilizado” 344 . Sua emancipação, já
desenhada, vinha de um complexo de circunstâncias que
encurtou a nosso respeito a cadeia dos tempos, aproximou-nos da
Liberdade, erguendo a nossa Represenação Política por um modo, que
evitou as delongas experimentadas pelas Províncias da América
Espanhola, e que experimentaram ainda as que não forem no nosso
caso. Napoleão acometendo o Reino de Portugal quebrou também os
laços, que o ligavam ao Brasil em antigo sistema; mas não foi do
primeiro golpe, como na Espanha. Apareceu um novo Reino em tríplice
união; apareceu um Monarca na América, convertendo uma Colônia em
Metrópole; tudo isto era novo, mas os destinos do Brasil aguardavam
novos, e bem próximos desenvolvimentos para completar-se a sua
glória de um modo em tudo admirável. 345
O tempo no Brasil foi encurtado por essa síntese produzida pela presença do
Príncipe e pelo espírito da Monarquia Constitucional. Se a marcha humana não poderia
ser evitada, seu ritmo poderia ser transformado. O encurtamento do tempo era a redução
da distância entre o grito e o rompimento final dos grilhões pela liberdade. Era nessa
distância que se produziam as paixões que transtornavam o caminhar e desviavam a
direção. O Brasil aparecia potencialmente incólume a essas desgraças, pois o Príncipe
sintetizaria a necessária aceleração do tempo que resultaria na final transformação. Essa
presença do Príncipe, “penhor da nossa tranqüilidade e centro de um grande Império”,
“evitando os escolhos da democracia pura, e os ferros do aborrecido despotismo, deve
conduzir-nos livres e felizes ao termo dos nossos prudentes e honrosos desejos.”346 E
assim o calendário das transformações ganhava suas datas e retoques finais:
Se são célebres nas páginas da nossa História os dias 7 de março de
1808, e 26 de fevereiro de 1821, não são menos gloriosos os dias 9 de
janeiro, e 3 de junho deste ano de 1822, porque são conseqüências
infalíveis daqueles primeiros sucessos, e adiantamento necessário da
marcha da nossa civilização, suspendida sim por 25 anos, mas nunca de
todo corrompida, porque a natureza não perde os seus foros, nem a
razão renuncia princípios abraçados pela convicção de evidência. 347
Os marcos de 1822 como “conseqüências infalíveis” de 1808 e 1821 projetavam
o Príncipe como agente do passo seguinte na marcha da liberdade. O Brasil cumpria a
lógica histórica desencadeada pela presença portuguesa, mas marcada pelo
344
RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 67.
Idem, ibidem, grifos meus
346
Idem, p. 67.
347
Idem, p.67-68.
345
140
aprisionamento da liberdade, que, agora, emancipava-se. Os desvios, estes seriam
evitados pela aceleração-síntese produzida pelo herdeiro da Coroa. Daí a importância de
seu atendimento ao chamado que, de acordo com o Reverbero, lhe fazia toda a nação:
Príncipe, em vossas ações, ainda mais do que em vossas palavras
brilham os liberais sentimentos, que reúnem em torno da vossa Pessoa
quatro milhões de habitantes que a intriga, e a desconfiança trabalharão
por desunir, com prejuízo da nossa grandeza; não somos lisonjeiros,
porque dizemos menos do que os Brasileiros sabem de vós, e no fundo
dos nossos corações sacrificados todos aos interesses da nossa Pátria,
fazemos incessantes votos para que penas mais dignas recomendem à
posteridade, e à admiração do mundo os testemunhos da vossa
prudência, da vossa glória, e do vosso decidido Liberalismo. 348
E finaliza: “ou se atenda ao grau de civilização de nosso século, ou a colocação
deste grande e florente reino, no meio de povos livres, já reconhecidos por nós e por
uma grande nação, e que se não fundaram monarquias representativas, foi por não terem
príncipes, que lhes servissem de centro e de apoio.”
349
Felizmente, o Brasil não
apresentava esse problema. Para tal, era de fundamental importância o fortalecimento da
persona de Dom Pedro.350
A síntese dessa interpretação, que encaixava o Brasil na lógica histórica do
desenvolvimento das nações a partir de sua peculiaridade que lhe permitia uma síntese
superior ao de outras situações, encontra acabamento em dois discursos do próprio
Januário da Cunha Barbosa, transcritos em edições de 30 de julho e 20 de agosto de
1822, ambos pronunciados durante missas. Embora sejam ocasiões distintas (o primeiro
348
Idem, p. 68.
Idem, p. 70. Noutro momento, comparando-se, a partir de um discurso apresentado no periódico como
sendo de um estrangeiro, os esforços dos brasilienses “para recuperar a liberdade” com o de outros povos
em outros momentos, o autor analisa: “Atenas, fundada num território ingrato, chegou ao cúmulo da
glória, deu à luz ao eloqüente Demóstenes, ao invencível Temístocles, ao legislador Sólon, foi o oráculo
da Grécia, e fez tremer a Ásia; Roma, fundada por uma tropa de facinorosos vagabundos, e circundada de
inimigos, viu nascer no seu seio Cícero, César, Trajano, e domou o universo; a França, centro da
civilidade, das ciências e das artes, deve a sua origem a bárbaros que saíram do fundo do Norte; os
ingleses, que possuem hoje o império de Netuno, não eram se não miseráveis pescadores: - passando ao
novo hemisfério - : os Americanos, quebrando as cadeias de ferro, que lhe faziam carregar os soberbos
insulares, não somente triunfaram, mas obrigaram seus inimigos a uma paz indecorosa; a cidade de
Buenos Aires, expulsou de seu seio o arrogante castelhano, e zomba de um império que teve por muitos
séculos o Portugal no aumero [sic] de sua províncias. E vós brasileiros que tendes recursos infinitos, vós
para quem a natureza tem sido tão pródiga? Vós que possuis este metal ídolo de todas as nações? Vós que
tendes por égide um magnânimo, e intrépido herói, que não espera se não o sinal para conduzir-vos à
vitória? Vós que tendes por mentor, um sábio cuja fama faz retenir a Europa, duvidais, flutuais entre o
medo e a esperança? (...) Brasileiros, é tempo de surgir do letardo em que estais sepultados, e de mostrar
ao universo atento, que os habitantes do Brasil são homens. (...) E tu, jovem príncipe! Tu, cujo nome será
sempre gravado no templo da memória! Tu, cujas ideias são tão nobres como o nascimento! Zomba dos
fulminantes oráculos da Sibyla Lusitana, e aceita os títulos e o poder que te oferece o teu povo brasileiro.”
In: RCF, Tomo Segundo, Número 09, 23 de julho de 1822, p. 111-112.
350
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São
Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, cap. 3 e 4.
349
141
referia-se à eleição paroquial de Santa Rita, o segundo à Missa do Espírito Santo da
Real Capela), uma unidade marca ambas as falas.
Após retomar a fórmula dos “três séculos de opressão” na exposição da trajetória
histórica do Brasil até ali, Januário da Cunha Barbosa apresenta o que esperar do
presente e do tempo futuro que se avizinha. Nessa relação presente-futuro, Januário
conclama seus ouvintes-leitores (“concidadãos”) a uma observação, que conduz a uma
conclusão sobre a posição do Brasil naquela lógica histórica. O espetáculo oferecido
pelo Brasil, naquele momento, era “muito mais interessante” do que qualquer um
anterior, incluindo aquele em que “surgira dos mares” para pôr na História o nome do
“afortunado Cabral”. O momento presente, superior a qualquer um passado, produzia
nos liberais uma inveja da “nossa sorte”. Afinal,
Pelo nosso abraçado sistema de monarquia representativa, nós
saboreamos todos os frutos da liberdade, sem nos expormos aos seus
excessos. A paz, de que hoje gessam, foi precedida de longos trabalhos,
porque a hidra da sangrenta anarquia por muitas vezes reproduziu as
suas decepadas cabeças no meio dos que se diziam irmãos. A nossa paz
será fruto da nossa prudência, da nossa bem entendida reunião com o
grande e liberal príncipe, que jurara defender o Brasil e a liberdade; que
dado pela providência como centro próprio e necessário das operações
de tão vastas províncias, como as do nosso reino, quer, que façamos
pelos nossos representantes as leis por onde seremos regidos em corpo
majestoso e respeitável. 351
A possibilidade de rompimento com as decorrências passadas, na América ou
alhures, oriundas da necessária e inevitável vitória da liberdade sobre a opressão
constituía, no Brasil, um diferencial em relação a qualquer outra emancipação nacional
já vista nos faustos da História. A presença do príncipe garantia não apenas uma
continuidade, mas uma inédita situação. A novidade, na fala de Januário, era a
possibilidade de síntese do que os melhores mundos haviam produzido, sem os temores
dos riscos que o desenvolvimento da civilização carregava consigo. A monarquia
constitucional, consubstanciada em Dom Pedro, seria a garantia desse sucesso. E “a
América já desembaraçada de suas cadeias, e o Mundo oprimido, talvez [estivessem]
ansioso[s] por seguir a nossa marcha.”352
O ponto central, é claro, é a respeito da possibilidade de o Brasil ingressar, ou
não, no rol das nações civilizadas. Nesse sentido, a narrativa que o colocaria parelho às
melhores nações do mundo já se definia como auto-imagem invertida da colonização:
351
352
RCF, Tomo Segundo, Número 10, 30 de julho de 1822, p. 115-116.
Idem, p.116.
142
“E surgiria do esquecimento do Mundo este grande Reino, quando voluntário abraçou a
Cruz, e as Quinas apresentadas por Cabral, para ser agora considerado indigno dos bens
de uma justa, e liberal confraternidade?”353, pergunta Januário em seu discurso. Afinal,
Os brasileiros querem ser felizes por um código, que cortando
perniciosos abusos, combine a sabedoria do século com a experiência
do passado, e com as circunstâncias da nossa localidade. O príncipe
deseja súditos, e não escravos, quer amigos, e não vassalos, quer bem
assinalados os poderes, que sustentam, como principais colunas, o
majestoso edifício de uma monarquia constitucional, para que se não
reproduzam no Brasil as cenas terríveis, que se viram na França, que
ainda se observam na Espanha, e talvez agora entristeçam Portugal. O
Mundo espera ver o Brasil entrando na grande família das nações cultas,
e prosperando à sombra de uma legislação, que nem seja indigna da
América, nem contrária às circunstâncias favoráveis em que fomos
constituídos quase milagrosamente. 354
A concretude do discurso de Januário da Cunha Barbosa, ao defender uma
generalidade (“a sabedoria do século” e “a experiência do passado”) mesclada a uma
especificidade (“circunstâncias da nossa localidade”), indica não apenas as benesses que
as luzes do século provocariam ao derramar-se sobre o Brasil, mas também o que o
Brasil teria a acrescentar a essas luzes, a essas mudanças, ao mostrar ao mundo a
possibilidade de se construir um majestoso edifício que, de maneira inevitável, pudesse
não reproduzir as cenas de terror da França, da Espanha e, potencialmente, de Portugal
(e poderia acrescentar as da América). A luta da liberdade contra a opressão não repetia
o passado, mas, sim, criava um novo futuro potencial, graças à presença do príncipe e a
articulação nação-Coroa que permitia a monarquia constitucional.
Mas se a ação era concreta, vinda do príncipe e da população, também era
divina, e o analista da história Januário misturava-se ao padre em missa ao lançar as
origens dessa possibilidade de sucesso futuro para o Império:
Eterno Deus! Desça sobre nós a vossa graça; um instante da vossa
ilustração, vale mais, do que séculos de experiência e de estudo. Este
povo, que se acolheu à sombra da vossa cruz, não quer outra redenção
que não venha por ela, tocai os seus corações, para que ponderando
sisudamente os interesses da pátria, possam concluir uma escolha, que
seja digna de vós, do Brasil, e do Augusto Príncipe Constitucional, que
nos rege, e nos defende.355
353
RCF, Tomo Segundo, Número 13, 20 de agosto de 1822, p. 152.
Idem, p. 153.
355
Idem, p. 154. Outra seção da mesma edição tocaria no assunto: “Os direitos dos povos são de
instituição divina, e os dos governos são de instituição humana; restitui a aqueles, o que Deus lhes doou
354
143
A monarquia constitucional permitiria saltar sobre as tragédias que seguem os
momentos revolucionários; a presença divina, ilustrando um povo, valeria mais do que
séculos acumulados de História. A narrativa que une ambos na produção da
individualidade do Império do Brasil permitiria que ação divina e ação humana
produzissem a singularidade que marcaria a peculiar inserção do Brasil na lógica
civilizatória da história universal. 356 Sempre de olho dos vizinhos americanos para
traçar paralelos.
E é assim, com esses paralelos, que o Reverbero encerra sua trajetória naqueles
velozes anos de rompimento com a Metrópole. As últimas edições do periódico trazem
a tradução de trechos da “Solução da Questão de Direito sobre a emancipação da
América”, de autoria de Joaquin Infante, “natural de Cuba”.357 Joaquin Infante, nascido
por volta de 1780, advogado de formação, participou de uma conspiração política
sufocada em Cuba, em 1811, sendo um de seus únicos sobreviventes. Em 1812,
enquanto na Espanha era feita a Constituição de Cádiz, Infante publicava na Venezuela
uma constituição para Cuba. Quando publicou a “Solução da Questão de Direito”,
encontrava-se exilado na Espanha, em 1820. O texto foi impresso também em Caracas,
México e Buenos Aires. 358
Segundo João Paulo Pimenta, para Infante, “era chegada a hora da América se
emancipar de sua “mãe”, a Espanha, e viver livremente.”359 Para tanto, apresenta o autor
cubano duas ordens de razões. As primeiras, as “razões filosóficas”, giram em torno da
consideração das diferenças físico-territoriais, populacionais e de recursos econômicos,
que apontavam para uma “artificialidade de uniões políticas”. As “razões políticas”, por
outro lado, significavam, para Infante, o “esgarçamento irremediável das relações de
complementaridade entre Espanha e América”, resultando da decadência da primeira a
como um bem inalienável, a fim de que o seu livre e espontâneo consenso, e a religião do juramento,
imprimam no vosso poder legítimo um caráter inviolável e sagrado.”. Página 154.
356
“Províncias do Brasil, é chegada a época da nossa glória; a nossa Revolução é única nos fastos do
Universo. É um príncipe, que precede os votos do seu Povo; [e um pai, que diz aos seus filhos – chegou o
tempo da vossa emancipação – é um sábio, que marca os direitos da sua Nação, e circunscreve o poder do
seu trono; nós podemos verdadeiramente exclamar: spectaculum facti sumus Deo et hominibus.” In: RCF,
Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 206.
357
O texto foi publicado nas edições 17 a 20 do tomo segundo, de 17 de setembro a 08 de outubro de
1822 (última edição do Reverbero).
358
Os dados biográficos do autor encontram-se em PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços
das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (c.1780-c.1830). Tese de livre docência.
São Paulo: USP, 2012, p. 105. A tese também faz uma análise do documento nas páginas seguintes, que
servirá, também, de base para nossa análise.
359
Idem, p. 107.
144
exploração da segunda em nome de uns poucos monopolistas. 360 A partir dessa
perspectiva, o Reverbero reproduz partes do texto e inicia uma longa sequência de
comentários em notas de rodapé – 29 no total, 22 das quais, ao menos, fazem
referências ao passado do Brasil ou outros elementos da história para afirmação de
pontos de vista do periódico. Assim, essas notas mostram um rico diálogo entre as
perspectivas que vimos aqui discutindo e aquelas que, voltadas para a América como
um todo, aproximavam o Brasil do destino inevitável oferecido pela História.
Produzem, assim, um único texto, um único corpo que buscava interpretar a lógica dos
eventos recentes para abarcar toda a América no conjunto da civilização.361
Assim é que, iniciando a explicação de suas “razões filosóficas” para a
emancipação, Infante explica que a natureza
constituiu as Nações, traçando-lhes um círculo em que se encerrem, e
separando-as por barreiras, cuja violação é sempre funesta. A sua
tendência ao círculo primitivo é constantemente visível. Daqui vem a
analogia de fisionomias, caracteres, opiniões, e costumes. Assim vemos
na Europa, por exemplo, a diferença da Espanha à França pelos
Pirineus; desta com a Itália pelos Alpes: a Inglaterra com as Nações
Setentrionais do Continente pelo mar que as separa. Aplicando esta
evidência ao Novo Mundo, relativamente ao Velho, pode haver um
limite mais assinalado, que o da duplicidade de dois hemisférios? E
quanto à Espanha, pode haver maior separação que a de um mar de
1500 léguas na parte mais contigua, que é o Golfo do México? É por
tanto claro, é evidente, que a sujeição de uns a outros é em tal caso
violenta, e precária, e que enfim a demarcação política há de regula-se
pela demarcação física.362
O Reverbero não apenas concorda, como reforça o ponto na nota 4:
Não sei como podem os emperrados persistir na louca pretensão de
domínio, e direito de Portugal sobre o Brasil. As razões desenvolvidas
neste excelente capítulo, são para a América Espanhola, como para o
Brasil. Se eles argumentassem com a razão, e fossem de boa fé,
deveriam ceder à força delas; mas só argumentam com etiquetas,
direitos obsoletos, rançosas precedências, e outras parvoíces indignas
do presente século.363
360
Idem, p. 108-109.
A título de exemplo: Infante inicia seu texto afirmando que “a questão de direito sobre a emancipação
da América é urgentíssima: [e] a sua pronta decisão segundo os princípios da Justiça Universal poria
termo à questão de fato nos países que ainda a defendem com as armas.” Ao que o Reverbero completa:
“Todas as razões que se dão sobre a Independência da América são aplicáveis, quer ao Meio-Dia, quer ao
Norte dela: assim o que se diz nas Tribunas de Madrid, Londres, ou Washington sobre a liberdade, é
aplicável a todo o Mundo.” O que valia para uma parte da América aplicava-se ao mundo.
362
RCF, Tomo Segundo, Número 17, 17 de setembro de 1822, p. 210-211.
363
Idem, Ibidem.
361
145
A natureza já impunha barreiras que indicavam a necessária separação entre os
espaços. Os “emperrados”, porém, na sua “louca pretensão de domínio”, não utilizam a
razão para justificar uma união a que se impõem barreiras naturais; em seu lugar, os
argumentos giram em torno do apelo a justificativas históricas “indignas do presente
século”, que fortalecem uma tradição que é de opressão, e não de liberdade.
E, se assim agem, é porque a liberdade apenas fortaleceria o argumento natural,
ao invés de contradizê-lo. Afinal, como afirma Infante, é impossível que
haja união moral entre os dois países [Espanha e Novo Mundo]: porque
se as instituições são liberais, nos pontos extremos hão de facilitar
insensivelmente a separação natural, que existe; e se opressivas,
produzindo uma explosão mais pronta, hão de causar a seu tempo o
mesmo efeito.364
Apenas a opressão poderia tentar contrariar a natureza – e, mesmo assim, a outra
natureza, a do coração dos homens, a liberdade, faria tal mecanismo despótico explodir.
Como comenta o Reverbero, na nota 5 a essa passagem acima,
este argumento não tem volta; a emancipação das colônias está baseada
na Natureza, é uma progressão do desenvolvimento das suas forças. A
Ave ainda implume ensaia-se para voar, parecendo tardar-lhe o
momento de fugir da dependência. A sujeição é um ato de coação, é um
estado de violência, tanto no físico como na moral. 365
Nada poderia o Velho Mundo fazer; o resultado afigurava-se inevitável. Chegara
o momento do definitivo rompimento. Se ao longo de todo o Reverbero a colonização
europeia na América produzira uma tensão entre a perspectiva dos “três séculos de
opressão” e a da chegada da civilização, agora a primeira superava em definitivo a
segunda, inclusive expondo os resultados que a modernidade política havia imposto
sobre a massa de colonizados, de que tratamos no começo desde capítulo.
Para Infante, ao não se adotarem as razões filosóficas que explicava, vários
resultados podiam ser observados na relação Europa-América, dos quais os dois
primeiros tocavam mais diretamente na produção da massa de colonizados:
1º que a Conquista daqueles países [América], sob capa de Religião,
produzisse o extermínio de vinte milhões de almas, segundo a relação
do Venerável – Las Casas, - que ainda quando fosse exagerada, dá
contudo ideia de haver sido o maior, que a História de todos os séculos
apresenta, e de que o absoluto desaparecimento dos Indígenas nas
Antilhas todavia convence. 2º Que o resto desses miseráveis fossem
364
365
Idem, p. 212.
Idem, Ibidem.
146
condenados à mais dura escravidão, sem que bastassem as repetidas
ordens dos Reis Católicos, os esforços pessoais do mencionado Bispo, e
o arbítrio de substituir os negros d´África, o que foi querer remediar um
com outro mal igual, ou pior por suas circunstâncias, ficando em pé a
essência, como bem se convencerá todo o que for ao Continente
Americano ver o tratamento, que se dá aos Indígenas.
Para o Reverbero, na nota 07 ao trecho acima, cabiam as palavras de Eneias ao
narrar a morte de Laocoonte, na Eneida, de Virgílio: Horresco referens!, “Horrorizo-me
a narrar!”. A referência antiga, cujo uso retórico comum aproximava-se de um efeito
satírico, abria uma interpretação crítica da presença europeia na América, incluindo o
Brasil no quadro descrito por Infante:
Horresco referens! A humanidade estremece à vista do quadro infernal
de atrocidades cometidas na América! O sangue inocente clama
vingança diante do trono do pai universal dos homens!.. “A América há
de ser livre” Tal é o decreto da providência, em cujo nome se
cometeram monstruosos atentados. “O Brasil há de ser livre” os que
teimam em lançar-lhe os ferros, contem governar sobre montões de
ruínas, se contra todos os humanos cálculos, conseguirem oprimir a
nossa com a sua força. Que arranquem, se podem, do nosso seio o
sagrado penhor da nossa Liberdade! Que nos despojem do heróico
desejo, e da nobre determinação de sermos livres, apesar dos maiores
sacrifícios! Em sua raiva eles se assemelham ás ondas enfurecidas, que
se encapelam arrogantes contra a grande Pedra, que marca aos
navegantes a nossa barra, e ao Mundo todo a nossa firmeza. 366
A Europa estacionara a América, na lógica de Infante. A América havia
“deixado de progredir na nova ordem de coisas, que adquiriam depois do descobrimento
e possessão pelos espanhóis”, enquanto “os pontos abandonados, por menos estéreis”
haviam “florescido incomparavelmente em mãos de estrangeiros, pela doçura da
Administração, ou por sua oportuna emancipação.” 367 “E que dirá a isto o Brasil?”,
questionaria o Reverbero. Para o periódico, o quadro pintado por Infante era ainda pior
para a ex-colônia portuguesa, uma vez que ela encontrava-se
no centro do Globo; em frente da Europa e da África; no caminho da
Ásia; possuindo os melhores Portos; cortado dos maiores Rios; coberto
das mais preciosas Florestas; poderoso com opulentas Minas; sem par
pela fertilidade do seu solo; apreciável pela salubridade e doçura do seu
Clima... E [estava] acanhado e envenenado nas fontes da sua própria
grandeza, pelo terrível governo que o oprimiu há três séculos!!! E
ousam lançar-nos em rosto o nosso estado? E dele se prevalecem para
argumentarem a favor de um novo e mais terrível despotismo? Que
366
367
Idem, p. 213.
Idem, p. 213-214.
147
maldade! Mas nós podemos responder-lhes com o Poeta de Augusto. –
„Libertas, quae será tamen respecti inertem. 368
A situação precária do controle metropolitano, impedindo o pleno exercício de
todas as potencialidades americanas, somada às razões naturais, produziam os
elementos da emancipação. E isso não era daquele momento; não era produto do calor
dos acontecimentos recentes (lembrando que escreveu Infante em 1820). Tal situação já
vinha de muito tempo, e o autor cubano recua mais de um século para dizer que já na
Guerra de Sucessão espanhola, no começo do setecentos, se apresentara ocasião para
“sacudir o jugo” metropolitano, e que se nela a América
foi simples expectadora da contenda, e sujeitou-se ao vencedor, [foi]
porque estava ainda impúbere, isto é, não tinha todo o vigor, ilustração,
e peso necessário para a sua emancipação; porém, ao invadirem os
franceses a Península, quase todas as províncias da América, sem
poderem pôr-se de acordo, em razão das distâncias, deram um mesmo e
simultâneo grito, por haverem já saído da infância, ou o que vale o
mesmo, por terem já luzes, madureza, e consistência, que produzem
inevitavelmente a emancipação
O contexto da Guerra de Sucessão não era favorável; o mesmo não ocorrera com
a invasão napoleônica. A diferença, porém, era simplesmente de acumulação temporal,
de desenvolvimento das forças internas associadas ao desenvolvimento natural da
História. Quando as condições apresentaram-se próprias, o movimento natural da
liberdade contra o despotismo produziu seu grito e rompeu em definitivo os grilhões.
O mesmo valia para o Brasil, segundo o Reverbero, cujos editores foram buscar
seu exemplo de possibilidade anterior noutra guerra de sucessão, esta ainda anterior:
1640. Se, como vimos no capítulo anterior, o periódico já recorrera a esse exemplo para
conectar o movimento do Porto, tratando ambos como instantes de exercício da
liberdade contra a opressão, nos quadros de uma narrativa da história que misturava a
trajetória brasílica à portuguesa, agora o mesmo acontecimento era referido
exclusivamente ao Brasil:
O Brasil também suportou o jugo do domínio espanhol, e as vicissitudes
da guerra, que à Espanha fazia a Holanda (tendo arvorado o estandarte
da sua Liberdade,) porque o seu estado de luzes e de vigor, que andava
na proporção do ciúme das Metrópoles para com as Colônias, não lhe
franqueava a precisa energia para então soltar o grito da Independência;
e se o não soltou quando a América Espanhola declarou, que era
chegada a hora da sua virilidade, foi porque então viu o mundo um
espetáculo novo; isto é a passagem do rei para o Brasil, passagem que
368
Idem, p. 214, nota 09.
148
mudou inteiramente o regime Colonial, que quebrou os ferros da
opressão de três séculos, e fez partir do trono aquela obra, que sem isso
partiria da Revolução. Mas para evidenciar-se que a Independência da
América é um efeito necessário da sua atual civilização, bem que ainda
inferior à da Europa, atendam-se às circunstâncias do Brasil, o Rei que
saindo de Portugal sustou a Revolução do Brasil com a sua chegada a
ele, voltando a Portugal, apressou a Revolução do Brasil, apesar das
promessas lisonjeiras dos Deputados Europeus no Congresso de Lisboa.
Este sucesso, favorecido grandemente pelo partido de certos homens,
que se fizeram Oráculos naquele Congresso, nasce principalmente da
irresistível tendência de todas as Colônias para a sua liberdade. Ferve já
a impaciência nos corações Brasileiros, e ferve estimulada pela injustiça
com que são tratados pelos que se apregoaram seus Irmãos.... Tardalhes o momento de verem instalada a sua Grande Assembleia, para
firme segurança de seus foros, como Cidadãos de um poderoso
Império!... Não nos esqueça porém que o Rei deixando nosso legítimo
herdeiro do trono português, para reger esta parte tão considerável da
Monarquia, deixou-nos por isso mesmo uma certeza de que prezava o
amor dos Brasileiros para com a Augusta Cada de Bragança. Se hoje
sem vontade, e quase mesmo que sem aquela Liberdade, que em
Portugal se concede a todos, ele não pode dizer-nos: „Brasileiros,
obedecei a meu Filho, segurai com ele a integridade da Monarquia, que
certos homens têm determinado aniquilar‟, nós o presumimos por tantas
ações do congresso, e dando vivas ao Príncipe, damos por isto mesmo
ao Rei, à sua Augusta Dinastia, e ao Reino do Brasil, que salvará pela
sua próxima Constituição, a honra e a glória da nação Portuguesa. Os
que aclamaram o Sr. D. João 6º, aclamarão também o Sr. D. Pedro, e só
por este ato, se decidirá onde deve se a sede da monarquia, que o
Congresso de Lisboa legislou sem audiência dos nossos deputados. 369
Na longa referência, podemos perceber quatro momentos distintos que apontam
para instantes de luta do Brasil pela sua liberdade. O primeiro, já referido, é 1640,
ocasião na qual a distância entre o Brasil e sua independência era marcada pela
impossibilidade, haja vista a ausência das necessárias energias (“estado de luzes e de
vigor”) para efetuar o rompimento. Já ali, porém, admite-se uma autonomização para a
trajetória brasílica – o que não existia nas narrativas iniciais do Reverbero, que, como
dito, tratavam esse momento como a luta portuguesa pela sua liberdade. O segundo
momento é aquele no qual encontrava-se também a América Espanhola, conforme
analisado por Infante: o contexto das invasões napoleônicas, momento no qual a
América já estava madura o bastante para o grito de liberdade, que foi sustado no Brasil,
porém, devido ao “espetáculo novo” da vinda da Corte, quebrando os ferros da opressão
e possibilitando as transformações desejadas a partir do trono, evitando que se partisse
da Revolução. Nota-se, novamente, a possibilidade aberta das vantagens da liberdade
sem os riscos revolucionários, entendendo-se, também, que a Revolução posto fosse
369
Idem, p. 214-215, nota 10.
149
direito da liberdade quando sufocada, não era o caminho mais desejado, se fosse
possível alcançar os resultados de outras maneiras. O terceiro momento encontrava-se
no retorno do Rei a Portugal, que, invertendo a lógica transformista-reformista,
interrompeu momentaneamente o “espetáculo novo”, apressando – acelerando – a
“Revolução do Brasil”. A ideia de velocidade é interessante: o fantasma revolucionário
estava sempre à espreita e faminto; o esforço para contê-lo era uma constante
necessária, sua suspensão podendo acarretar não apenas a volta do perigo da Revolução,
mas, acima disso, a volta acelerada, buscando recuperar o tempo perdido e conferindo
ainda mais insegurança ao rumo dos acontecimentos. Por fim, o último momento,
aquele em que escreviam, apontava o futuro: a integração à persona de Dom Pedro
assumiria o barco e evitaria os riscos futuros. A continuidade interpretativa projetava
para o futuro a grandiosidade das transformações que se narrava sobre o passado.370
A prudência era necessária. Infante, em seu texto, apontava para o fato de que o
descrito sobre a América Espanhola espalharia-se por todo o continente em questão de
tempo, “pela lei imperiosa do exemplo e imitação, e porque este acontecimento está na
ordem necessária dos acontecimentos humanos”. 371 Portugal não fora prudente. Já a
Inglaterra, segundo os editores do Reverbero, não seguiria o mesmo caminho, abstendose de tratar com brutalidade a inevitável emancipação dos demais povos seus na
América. “Podem os Ingleses cercar com os seus muros de pau o Canadá e a Nova
Holanda; poderão eles mudar as Leis da Natureza?”, questiona o Reverbero na nota 11.
Claro que não. Pelo contrário: “a Inglaterra hoje muito mais prudente, não tentará
Na nota 12, na mesma edição, o Reverbero afirma: “Eis aqui uma grande vantagem da Monarquia
Constitucional no Brasil, e é, que este sistema há de consolidar-se mais facilmente por isso que a
passagem para ele é menos violenta, do que para a Liberdade absoluta, e principalmente deixando-nos a
Providência em nossos braços o Herdeiro do trono Português, o Príncipe, que tão digno se tem mostrado
do nosso amor e dos nossos sacrifícios. Com este Penhor Respeitável por tantos títulos, não importa que
as Províncias do Maranhão e do Pará ainda se não coligassem; elas virão de certo. A suíça viu no fim de
duzentos anos aliarem-se os seus últimos dois Cantões. Dado um centro no Brasil, é de absoluta
necessidade que as suas partes gravitem para ele. Que importa que os Monstros raivem na Bahia, e que
imorais, mentirosos, estúpidos redatores, com discursos de Cabo de esquadra, e com argumentos de
Taberna, ali os açulem a derramar sangue brasileiro? Cada tiro que disparam é um cravo de diamante com
que mais seguram em nossos corações a Liberdade, a Independência, e o Amor ao Grande Pedro. Que
importa, que víboras disfarçadas, semeiem entre nós a intriga, a desconfiança e a calúnia, conversando e
comendo conosco, e ao mesmo tempo vendendo-nos para Portugal, com informes atraiçoados [217], e
com relações de partidos, que ou não aparecem, ou são desprezados, por isso mesmo que são pouco
temíveis? O Sol nunca fulge tão radioso, se não depois que rasga espessas aglomeradas nuvens, que por
algum tempo ousam roubar-lhe a sua primeira luz. Brasileiros? Nada temamos, a Causa da Liberdade é
Causa do Céu, os que a defendem triunfam sempre: e a dificuldade dos triunfos não realça
consideravelmente a glória de quem os consegue?...”
371
RCF, Tomo Segundo, Número 17, 17 de setembro de 1822, p. 215.
370
150
repetir as cenas de Boston, lembrando-se que as ocasiões oportunas fazem sempre
aparecer Franklins, Penns, e Washingtons”.372
A bola estava com a América no jogo de forças, segundo a interpretação do
Reverbero. Mas por que a Europa insistia tanto em negar isso? Ora, a América não
poderia aparecer como um cão implorando atenção de seu ex-dono. O nãoreconhecimento da América não era fator decisivo na retórica do Reverbero; era simples
aceitação da ordem das coisas. Afinal, questionam os redatores, “pode a Europa impedir
que a América exista?” E continua:
Que lhe pode dar? Que lhe pode tirar? Quem duvidará de fornecer à
América, o que ela pedir, ou carecer? Se a América insiste pelo seu
reconhecimento, não é por interesse próprio, porque nenhum daí lhe
vem: é só para sistematizar uma ordem de relações, que não podem
persistir equívocas entre dois Mundos. O comércio da Europa vai correr
para a América: inumeráveis relações, vão formar-se entre os dois
continentes. A América tem o direito de dizer – Antes de pisar este solo,
declarai-vos seu protetor, eu reconheço vossos direitos, reconhecei vós
os meus, ou sai. – E se a América, como já disse um de seus enviados
em uma sua nota, não reconhecer também os Estados da Europa, que
lhe recusarem o seu reconhecimento! ... Veremos uma parte do Mundo
desconhecer a outra... Que extravagante espetáculo! Que desordem sob
o pretexto de procurar-se ordem!373
Ao não aceitar a ordem das coisas, a Europa produzia um “extravagante
espetáculo” que poderia gerar ainda mais desordem. E o grande motivo para isto “é o
hábito das ideias de domínio que ela teve na América: custa-lhe a largar a supremacia
que teve empolgada, que foi fruto dos tempos, e da irreflexão. Quem dominou retém
sempre saudades do domínio.”374 Isso apenas invertia a nova relação entre as partes do
mundo. Recuperando o exemplo dos EUA, afirmaria o periódico:
Os Governos Europeus abundam de obstáculos, que os Estados Unidos
têm a ventura de nem suspeitar que existem. Eles não conhecem nem
santa aliança, nem corte, nem antigos colonos, nem famílias
privilegiadas, nem classes preponderantes, nem proselitismo religioso,
nem uma só parte das formalidades Europeias: quando tem que tomar
alguma resolução não consultam o protocolo das etiquetas, consultam
somente seu interesse, sua natureza, e sua moral. Ora sobre uma estrada
tão plana, tão bem nivelada por força que se há de marchar segura e
rapidamente. Com grossas bagagens diplomáticas leva-se um século
para dar um passo.375
372
Idem, p. 216.
RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 245-246.
374
Idem, p. 246.
375
Idem, ibidem.
373
151
As vantagens americanas sobre a podridão e tradicionalismo europeus eram
evidentes; as amarras europeias travariam seu progresso na mesma ordem de velocidade
que poderia derramar-se sobre a América. O exemplo dos Estados Unidos saída do
acontecimento da emancipação e entrava na questão social. E, assim, generalizando-se
para toda a América, tal vantagem social oferecia uma maior condição de forças à
América. Não apenas a civilização poderia existir nesta, como, àquele momento,
passava-se a imagem de que ela poderia desenvolver-se mais na América. O Novo
Mundo tinha a vantagem.
Na posição vantajosa em que se acha, a América não pode deixar de
saber que ela é a Senhora da decisão, e que ela é que deve impor a lei.
Há oito anos, que São Domingos disse à França – Reconhece a minha
independência, e o teu pavilhão será depois recebido nos meus
portos.376
Trazer o exemplo de São Domingos para reconhecer uma vitória e uma
superioridade americanas à Europa poderia aparecer, inicialmente, como um risco.
Afinal, simbolizava uma ruptura da contra-modernidade que ia diretamente contra todo
o esforço argumentativo do Reverbero.377 Mas o risco era apenas aparente. A questão
escrava era silenciada no exemplo, aparecendo o Haiti apenas como o espaço que
venceu a França. Não à toa, o momento da resistência era travado em 1814, e não para o
turbilhão revolucionário – a invasão de Leclerc é de 1801.
Expliquemos melhor essa questão. O próprio Infante, também usando o Haiti
para argumentar contra a postura espanhola, afirmou:
A Espanha por fim se arruinará inutilmente com semelhante empenho
de reconquistar a América, bastante para convencer-se desta verdade o
caso recente da França com a parte da Ilha de S. Domingos, que foi sua,
e teve de ceder à gente de cor que a defendia depois de perder cem mil
homens pouco mais ou menos, e gastar imensas somas estabelecendo
por fim com aqueles habitantes, relações mercantis úteis a ambos os
povos.378
Ainda que houvesse acrescentado o “gente de cor”, nenhuma palavra sobre
escravidão e sua relação com a revolução em São Domingos aparece no trecho acima,
nem em outro trecho qualquer do documento. A questão haitiana é restringida na ideia
de colônia x metrópole, fundamentando-se a argumentação na ideia de que uma parte da
ilha, pertencente à França, houvera-se levantado contra a opressão e vencido tentativas
376
Idem, p. 248.
Discutiremos melhor essa questão no capítulo final desta tese.
378
Idem, p. 248-249.
377
152
de recolonização. O comércio, restituído depois, é sobreposto a qualquer conflito racial
ou ligado à escravidão; o Haiti aparece como mais um espaço da luta colônia x
metrópole, sustentando, por aproximação, o risco a que estavam sujeitos os europeus
caso não aceitassem a inevitabilidade da emancipação. A lógica dessa liberdade contra a
opressão metropolitana subordinava a opressão oriunda do mundo da escravidão, e a
massa de colonizados que promovera a revolução era reduzida à percepção de colonos
em luta contra os opressores europeus. 379 Ficava subentendida, portanto, a questão
escravista – muito mais significativa, aliás, para os senhores da América do que para
qualquer força europeia. Ao silenciar sobre a escravidão, o Haiti aparecia como mais
um espaço em luta pela liberdade entendida como emancipação colonial. Ameaçava-se
a Europa com um exemplo assustador para os senhores; tranqüilizava-se os senhores
com o abafamento das razões escravistas.
Assim é que a nota 25 dos redatores do Reverbero, ao trecho mencionado acima
de Infante, afirma que
Também entre o Brasil e o Portugal está feita a separação. A
Independência do Brasil é um desses acontecimentos necessários, que
nenhuma força humana pode obstar. Debalde diga o Deputado Girão,
energúmeno, ou doido, que se o Brasil se declarar independente, ou a
mãe pátria usará de seus direitos, ou nações ambiciosas irão colonizar
as suas províncias, ou os escravos renovarão as horrorosas cenas de S.
Domingos. Esteja descansado o Sr. Girão, que apesar dos seus
vaticínios, e dos seus gritos, não lhe havemos dar o gosto de ser
testemunha do nosso opróbrio nem da nossa obediência a ele, e aos
cem lobos do deu partido. Três vezes tem as forças européias já sido
repelidas do Brasil: os povos que se propõem a defender a sua liberdade
são invencíveis:380
Antônio Teixeira Girão, deputado português das Cortes, membro do grupo dos
“integracionistas”381, como tantos outros deputados portugueses, apelava, em Portugal,
à ameaça do Haiti para reforçar o sentimento anti-Independência do Brasil. 382 A
emancipação, para Girão, segundo acusam os articulistas do Reverbero, reproduziriam
Para a distinção entre “colonos” e “colonizados”, novamente remeto a MATTOS, Ilmar. O Tempo
Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 33-40.
380
RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p.250, grifos meus.
381
Ou seja, aqueles deputados portugueses nas Cortes que desejavam a manutenção da união portuguesa
em torno de uma concepção de nação única, que não se restringia ao território de Portugal, mas o
ultrapassava, aproximando-se da concepção imperial. Cf. BERBEL, Márcia Regina. A nação como
artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822. São Paulo: HUCITEC, FAPESP, 1999,
p. 94-95; RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de
cor” na Independência do Brasil. In: Caderno Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, dezembro de 2002, p. 25.
382
Para o uso do Haiti como argumento, cf. BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON,
Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, p. 158-159.
Voltaremos à questão no último capítulo.
379
153
no Brasil as “horrorosas cenas de S. Domingos”. Era um nível de ameaça muito acima
dos riscos de anarquia produzidos na América Espanhola, e cujos exemplos, como
vimos, serviam retoricamente de guia para a sua prevenção futura no Brasil. Neste caso,
o único exemplo concreto de “horrorosas cenas” tais como as do Haiti era... o próprio
Haiti. Contudo, diferentemente da América Espanhola, que era discutida abertamente
como passado-futuro brasileiro, a Revolução Haitiana era alvo da produção de uma
filtragem que buscava tanto reduzi-la em sua densidade – o próprio termo “revolução”
era evitado para a ela se referir – quanto no seu impacto – desviando-se a discussão
sobre ela para aspectos não diretamente relacionados à violência contra os senhores. 383
Assim, a ameaça produzida discursivamente nas Cortes, atrelando a Independência do
Brasil ao risco de um levante tal como o de S. Domingos, era algo a ser combatido
intensamente.
Tendo isso em vista, a continuação do trecho destacado do Reverbero continua a
comentar a fala de Girão, indicando outros elementos:
Toquemos porém de passagem nas duas outras razões do Sr. Girão:
Qual será a nação que fará a conquista do Brasil, dizemos mal, que
empreenda a invasão do Brasil? A única pela sua poderosa Marinha
seria a Inglaterra: mas esta sabe melhor que ninguém que uma
semelhante empresa era contrária aos seus interesses: conhecer que o
comércio com o Brasil lhe produz maiores vantagens do que produziria
a sua conquista. O povo inglês e o seu Governo tem íntimos e
grandiosos sentimentos de justiça para tentar uma ação que o cobriria de
vergonha, e destruiria, sem utilidades, nem garantias equivalentes uma
das mais ricas fontes do seu comércio. Todas as outras nações só metem
medo aos Srs. Girões. Continuam a falar de escravos. Cumpre dizer aos
Srs. Das Cortes o que eles talvez não saibam: os Escravos têm
repartido o nosso ódio para com elas: escusam portanto de nos estar
ameaçando com este mal, nem mesmo de estar formando planos a esse
respeito: temam que o feitiço se não volte contra o feiticeiro.384
Analisando a passagem grifada no trecho acima, Gladys Ribeiro afirma que tal
indicava o quanto os articulistas do Reverbero “reconhecia[m] que os escravos não eram
passivos diante dos últimos acontecimentos, sabiam o que estava em jogo naqueles
dias”. Tal percepção abarcava, ainda segundo a autora, um universo de referências que
ia das disputas no mercado de trabalho em formação na cidade do Rio de Janeiro, via
383
Nas transcrições do Correio Braziliense dos debates ocorridos nas seções das Cortes a respeito de São
Domingos, por exemplo, segundo, o termo “revolução” não era usado na descrição, preferindo-se
“sublevação”, “insurreição” etc. Cf. FREITAS, Soraya Matos de. Nas entrelinhas da revolução: o dito e o
não-dito nas páginas do Correio Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro sobre a Revolução Haitiana
(1808-1817). Dissertação de mestrado. São Gonçalo, RJ: UERJ, 2010, p. 25.
384
RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 250-251, grifos meus.
154
competição entre portugueses imigrantes pobres e forros e/ou escravos de ganho, até a
formação de batalhões de pardos para defesa da Independência política. 385 Não
tencionamos, aqui, contrariar o apontamento. A participação de escravizados e libertos
no processo de emancipação política do Brasil já foi analisado em diversos trabalhos. 386
O ponto, aqui, é outro: ao afirmar que “os escravos têm repartido o nosso ódio para com
elas”, as Cortes, os redatores produzem uma aproximação que, diluindo, ou dissolvendo
as tensões inerentes ao escravismo e ao conflito classista entre colonizadores e colonos,
prioriza uma espécie de identidade a unir ambos os grupos em torno do mesmo
objetivo: a independência nacional, que acabava unindo as modernidades conceitual e
política da ideia de “nação” à reafirmação da subordinação de todos, escravos e
senhores, à monarquia constitucional que nascia. Em outras palavras, na análise que
vimos empreendendo até aqui, a narrativa da Independência chegava ao seu ápice, no
momento em que, invertendo os termos dos riscos a que estavam submetidos os
senhores desde, ao menos, o Haiti – entendido tal risco como uma imensa Revolução
escrava –, o Reverbero aproxima cativos e senhores no mesmo lado da moeda contra o
colonizador português, identificado com as Cortes. Essa aproximação, tendo em vista a
importância atribuída, nos discursos até aqui analisados, à monarquia constitucional
como elemento indissociável da ruptura, reafirmava o sentimento nacional de todos
contra os portugueses, ainda que, para a massa de escravizados, o que restaria, ao fim,
seria apenas a não-identificação com o “ser brasileiro”, conforme analisaremos
futuramente.
Mas, para o momento, a aproximação serviria bem aos anseios do periódico.
Portugal estava encurralado. Seu principal argumento esvaía-se. Só restaria ao
Reverbero lamentar: “De nada lhe servirão as lições da História? De nada a experiência
dos males alheios?”387 A independência apresentava-se como consumada. Sua narrativa
também. O Reverbero cumprira seu papel, finalizando suas análises a 8 de outubro de
1822, um mês após o “Sete de Setembro”, cuja construção simbólica não ajudaria a
consolidar, ficando para um momento futuro.
A visão presente no Reverbero – e em outros periódicos semelhantes à época –
moldou
uma
perspectiva
que,
posteriormente,
seria
abordada, à
época
e
RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor”
na Independência do Brasil... op. cit., p. 36-38.
386
Dos quais o de maior destaque talvez seja o de REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o
“Partido Negro” na independência da Bahia. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e
Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 79-98.
387
RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 249.
385
155
historiograficamente, como simbólica do “liberalismo moderado”. Não obstante
estivesse longe de ser a única presente, predominou nas discussões abertas na virada do
começo dos anos 1820, no momento de rompimento político com Portugal. Seria uma
narrativa incorporada o discurso político oficial e talhada para tornar-se referência
central nas discussões ao longo da década seguinte. Isso especialmente entre o
rompimento definitivo e a consolidação do Primeiro Reinado, como veremos no
próximo capítulo.
156
Parte II:
Referências em disputa no Império do Brasil
157
Capítulo 4:
Comprimindo interpretações ao redor da Independência
No capítulos dois, analisamos como a narrativa da história da civilização, como
história da liberdade em luta contra o despotismo, encontrou seus fundamentos no
momento da Independência; da mesma maneira, no capítulo 3, refletimos sobre como a
América, em geral, e o Brasil, em particular, encaixavam nessa trajetória.
A interpretação da ruptura veiculada em periódicos como o Reverbero
fundamentou as discussões ao longo de toda a década de 1820, especialmente nos
debates parlamentares. Como já tivemos a oportunidade de analisar no capítulo um,
deputados e senadores traziam a História à discussão em seus discursos, bem como
debatiam sobre o valor dos eventos passados para criticar ou reforçar pontos de vista a
respeito de projetos políticos a implementar.
Neste capítulo, vamos analisar como se dá essa passagem, ou seja, a
incorporação do discurso do momento de ruptura às discussões parlamentares. O
Reverbero foi escolhido para análise por seu caráter representativo de certo liberalismo
que se construía, conforme a historiografia do período não cessa de apontar. Aqui,
iremos além do periódico para analisar os primeiros espaços mais institucionais do
discurso político na Independência, tanto em torno da figura de Dom Pedro quanto ao
redor da Assembleia Constituinte de 1823, bem como o início da experiência
parlamentar corriqueira, em 1826.
4.1) Incorporando oficialmente a narrativa da Independência:
O processo de Independência do Brasil, inserido na lógica mais ampla da Crise
do Antigo Sistema Colonial e da Era das Revoluções, conforme visto anteriormente, fez
parte daquilo que David Armitage chamou “epidemia de soberania”, que teria sido, na
visão do historiador, desencadeada especialmente após a Revolução Americana, em
1776. Nessa lógica, a proliferação de Estados nascidos dos antigos Impérios significava
a transição da sujeição para a independência, havendo surgido, também, uma
multiplicidade de declarações de independência que, no modelo da americana, seriam
simultaneamente sintomas e diagnósticos dessa epidemia nos dois séculos seguintes à
independência das 13 colônias388.
388
ARMITAGE, David. Declaração de Independência: Uma História Global. São Paulo: Cia das Letras,
2011, p. 89-90.
158
O texto original de Armitage, ao final, traz anexos alguns exemplos de
declarações, como a própria original de Thomas Jefferson. A edição brasileira da obra
inseriu um apêndice contendo o que seriam documentos equivalentes às declarações
para o caso brasileiro. Havendo o Brasil realizado um “processo sui generis, movimento
de forças locais em torno do filho do soberano metropolitano”, a Independência aqui
“não tem um único documento simbólico, mas uma série de atos normativos, que
refletem o processo de emancipação gradual, e um marco simbólico, o Sete de
Setembro, só posteriormente erigido pela memória oficial ao Dia da Independência” 389.
A ausência de declaração oficial justificaria, assim, a escolha por alguns seus
equivalentes. Na lógica apresentada por Armitage, seriam sintomas e diagnósticos de
nosso processo.
Quais diagnósticos aparecem nos documentos escolhidos? A própria seleção já
mostraria uma linha narrativa: convocação da Assembleia Constituinte, em 1823,
comunicação pessoal de Dom Pedro a seu pai, Dom João VI, aclamação do Imperador,
em outubro, e o reconhecimento, por Portugal, da Independência, em 1825390.
Nessa linha narrativa, a Independência aparecia como fruto inicialmente da ação
de Dom Pedro, atendendo, à vontade do povo, tendo em vista a “mantença da
integridade da monarquia portuguesa”, na direção da convocação da “Assembleia LusoBrasiliense”. Esta seria investida da porção de soberania que residia no povo “deste
grande, e riquíssimo continente”, a fim de construir a sua independência, “que a
Natureza marcara, e de que já estava em posse, e a sua união com todas as outras partes
integrantes da Grande Família Portuguesa, que cordialmente deseja” 391. Em seguida à
convocação, o segundo documento, a carta a Dom João VI, explicaria as razões pelas
quais o passo seguinte rumo ao rompimento havia sido dado: a ação das Cortes e os
“infames deputados europeus e brasileiros do partido dessas despóticas cortes
executivas, legislativas e judiciárias”, além de manterem o próprio Dom João VI sob
coação, cujo estado fazia o rei “obrar bem contrariamente ao seu liberal gênio”, também
tencionavam travar a “santa causa [que] não retrogradará”, levando os brasileiros à
situação de fazerem triunfar a Independência ou morrer no caminho. Afinal, “Se o povo
de Portugal teve direito de se constituir revolucionariamente, está claro que o povo do
389
Idem, p. 201.
Os documentos respectivos são: Decreto de 3 de junho de 1822, Carta de d. Pedro I a d. João VI,
Império do Brasil. Ata da aclamação do senhor D. Pedro imperador constitucional do Brasil, e seu
perpétuo defensor, em 12 de outubro de 1822, e Tratado do Rio de Janeiro (1825).
391
Decreto de 3 de junho de 1822. In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p.
202.
390
159
Brasil o tem dobrado, porque se vai constituindo, respeitando-me a mim e às
autoridades estabelecidas.”392 O direito do Brasil em constituir-se nação independente,
tal como antes inscrito na natureza, agora mostrava-se fortalecido pelo respeito do povo
brasileiro à ordem estabelecida, sem o rompimento revolucionário pelo qual outras
nações haviam passado. “Jazemos por muito tempo nas trevas, hoje vemos a luz”,
afirmaria Dom Pedro.393 E a aclamação, em 12 de outubro, apenas confirmaria que o
caminho para a luz, segundo declararia o próprio governante a respeito da vontade da
população, passava pela sua titulação. Apenas assim, como desejaria o artigo 4° do
tratado de reconhecimento, seria possível o “total esquecimento das desavenças
passadas” rumo à paz, aliança e amizade dali por diante entre os dois povos 394 .
Completar-se-ia, assim, a Independência do Brasil.
A linha narrativa exposta na seleção de documentos presente na obra de
Armitage não é fortuita. Como podemos perceber, seu delineamento refere-se a uma
construção específica presente naqueles velozes anos entre 1821 e 1822: uma
construção específica que parte da defesa da manutenção do Império Português e chega
no rompimento, culpando as Cortes por sua atuação despótica, produzindo
simultaneamente a persona de Dom Pedro à frente do processo de separação, apoiado
no povo brasileiro, cujo brio coloca em evidência as duas alternativas possíveis:
independência ou morte, no cumprimento daquilo que jazia inscrito na própria natureza
do território (e que encontrava-se escondido sob as trevas do passado) dentro de uma
lógica de marcha para o progresso. Essa linha narrativa era a presente no Reverbero,
bem como em outros periódicos e folhetos da época, e seria a linha central de
interpretação seguida por aqueles que se aproximaram de Dom Pedro ao longo dos
acontecimentos.
Mas a própria linha narrativa construída ao redor de Dom Pedro I não nasceu
pronta. Ao contrário: a leitura das várias proclamações produzidas pelo então Príncipe
Regente e dirigidas a diversos públicos ao longo de 1822 mostra as mudanças pelas
quais as percepções dos acontecimentos passavam.
A distância entre aquela linha narrativa e a proclamação de 12 de janeiro de
1822, por exemplo, é patente. Nesta, Dom Pedro dirige-se aos habitantes do Rio de
392
Carta de d. Pedro I a d. João VI. In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p.
204-205. Embora não houvesse sido aclamado à época de escrita da carta, é com o título que a mesma é
nomeada no livro.
393
Idem, p. 205.
394
Tratado do Rio de Janeiro (1825). In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p.
212.
160
Janeiro a fim de comunicar que a representação por eles levada à Real Presença, a
representação que resultou no Fico, “está longe de ser um princípio de separação, que
ela vai unir com laços indissolúveis o Brasil a Portugal.” 395 Ao contrário: deixa claro o
Príncipe Regente, aos brasilienses, que “não penseis em separação, nem levemente; se
isso fizerdes, não conteis com a Minha Pessoa; porque ela não autorizará senão
ações,que sejam baseadas sobre a honra da Nação em geral, e sua em particular.” 396
União, tranqüilidade e honra: eis as palavras que presidem o posicionamento
institucional naquele momento, somando-se à postura dos periódicos e panfletos que, a
exemplo do Reverbero, já visto, defendiam a união entre as partes, com igualdade de
direitos, como o caminho a seguir para conduzir o Brasil na marcha de seu
desenvolvimento. Em discursos de 9 e 17 de abril, dirigidos aos mineiros, Dom Pedro
ressaltaria esse posicionamento, declarando que “os ferros do despotismo começados a
quebrar no dia 24 de agosto no Porto”, que àquele momento rebentavam em Minas
Gerais, traziam a necessidade de que os mineiros unissem-se com o Príncipe, confiando
e não se deixando “iludir por essas cabeças que só buscam a ruína da vossa província e
da Nação em geral”397. Os destinos das localidades eram os destinos de todo o conjunto
do Império Português. Interpretações distintas daquele tempo não teriam lugar. Como
afirmaria Dom Pedro,
As convulsões políticas, que ameaçavam esta província fizeram uma
impressão em meu coração, que ama verdadeiramente ao Brasil, que me
obrigaram a vir entre vós fazer-vos conhecer qual era a liberdade de que
éreis senhores, e quem eram aqueles que a proclamavam a seu modo,
para extorquirem de vós riquezas e vidas, não lembrados, que vós não
serieis por muito tempo sofredores de semelhantes despotismos. Raiou
enfim a liberdade, conservai-a.398
Qualquer alternativa àquele preciso entendimento sobre a liberdade que se
derramava sobre o Brasil naquele momento era perniciosa.
Se entre vós alguns quiserem (...) empreender novas coisas, que sejam
contra o sistema da união brasílica, reputai-os imediatamente terríveis
inimigos, amaldiçoai-os e acusai-os perante a Justiça, que será pronta a
descarregar tremendo golpe sobre monstros, que horrorizam aos
mesmos monstros. Vós sois constitucionais e amigos do Brasil. Eu não
Proclamação – de 12 de janeiro de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 119.
Idem, ibidem.
397
Falla – de 9 de abril de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 122.
398
Proclamação – de 17 de abril de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 122-123.
395
396
161
menos. (...) Uni-vos comigo, e desta união vireis a conhecer os bens,
que resultam ao Brasil399
O decorrer dos acontecimentos, porém, como nos jornais, transformaria os
posicionamentos oficiais. Fissuras começariam a aparecer no discurso, ameaçando o
tom de união e exigindo maior destaque para a necessidade de moderação. E já em
primeiro de junho, em proclamação aos brasileiros, tal apareceria no discurso do
Regente:
A nossa pátria está ameaçada por facções: preparam-se ao longe ferros
para lhe serem suas mãos agrilhoadas (e no tempo da Liberdade!! Que
desgraça!). (..._ Quem diz – brasileiro – diz – português – e prouvera a
Deus que quem dissesse – português – dissera brasileiro. Firmeza,
constância e intrepidez na Grande Obra começada. Contai com o vosso
defensor perpétuo, que há de em desempenho da sua palavra, honra e
amor do Brasil, dar a sua vida, para que o Brasil nunca mais torne a ser
nem colônia, nem escravo, e nele exista um sistema liberal ditado pela
prudência, que tanto caracteriza nossa amável pátria. 400
A caracterização do Brasil como moderado (mostrada também na expressão
“Independência moderada”, que pauta a defesa da autonomia no Brasil), a insistência na
prudência como caminho a seguir, a delimitação dos inimigos como sendo aqueles que
buscam romper essa harmonia e o destaque dado àquilo que se tornaria inaceitável: a
retrogradação ao estado de colônia e de escravidão. A viragem do discurso, da junção
das partes para a separação, começava a tomar forma, uma vez que se projetava o futuro
mais para a consolidação do sistema liberal no Brasil do que para a construção mais
ampla da mesma na dimensão do Império Português. Ao fim do discurso, um “viva” a
Dom João VI, à união “luso-brasileira” e à “assembléia geral brasiliense” (e não, como
no decreto que a cria, a “assembléia luso-brasiliense”).
A Assembleia, aliás, ganharia outra denominação na proclamação de 17 de
junho aos baianos. Nela, após pedir ânimo à Bahia para que resistisse aos invasores do
“infame Madeira”, fazendo aparecer “o valor, e intrepidez dos invictos, e imortais
Camerões”, encerra-se o discurso afirmando que os “honrados brasileiros preferem a
morte à escravidão”, devendo, portanto, os baianos fazer vivas à “independência
moderada do Brasil”, a Dom João VI, e à “nossa Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Reino do Brasil”401. No espaço de menos de 2 meses, a Assembleia passa
de luso-brasiliense para constituinte e legislativa do Reino do Brasil.
399
Idem, p. 123.
Proclamação – do 1° de junho de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 123-124.
401
Proclamação – de 17 de Juno de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 125.
400
162
O caminho percorrido pela convocação da Assembleia seguia de perto as vias
percorridas pelo Reverbero, que discutimos anteriormente. Não era à toa: a conectar as
pontas, a influência de Joaquim Gonçalves Ledo, redator do periódico e membro do
Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil402, marcando, nas palavras de
Roderick Barman, “a admissão dos radicais às câmaras do poder”.403
Não que tal admissão se desse sem conflitos. Voltemos, para melhor analisar a
questão, à sessão do Conselho de Procuradores no contexto de convocação da
Assembleia, a três de junho. Nele, a retórica faz urgir a Dom Pedro que convoque uma
Assembleia Geral dos representantes das províncias do Brasil, considerando-se que “o
Brasil quer ser feliz”, e que
este desejo que é o princípio de toda a sociabilidade é bebido na
natureza, e na Razão, que são imutáveis: para preenchê-lo, é-lhe
indispensável um governo, que dando a necessária expansão às
grandíssimas proporções, que ele possui, o eleve àquele grau de
prosperidade e grandeza, para que fora destinado nos Planos da
Providência. Foi este desejo, que há longos tempos o devorava, e que
bem prova a sua dignidade, que o fascinou no momento em que ouviu
repercutido nas suas praias o eco da liberdade, que soou no Douro, e no
Tejo (...).404
O desejo de felicidade da nação, sendo o princípio de qualquer construção
social, remetendo à necessidade de busca da felicidade presente na Declaração de
Independência dos Estados Unidos, cuja fonte é a natureza e a razão, é imutável; parte
própria da constituição nacional. O desejo, sendo imutável, precisa de um governo que
lhe dê as necessárias condições pra alcance do máximo de grandeza e prosperidade – e,
dentro da lógica já construída desde o Reverbero, tal só poderia ser realizada
plenamente no Brasil pelo fortalecimento da monarquia constitucional e da presença de
Dom Pedro, como elemento a conectar o futuro do Brasil ao destino traçado pela
Providência. O desejo de felicidade, que fascinou o país quando da instauração das
402
Gonçalves Ledo representava o Rio de Janeiro, tendo sido convocado pelo decreto de 01 de junho de
1822. Cf. ATAS DO CONSELHO DE PROCURADORES-GERAIS DAS PROVÍNCIAS DO BRASIL.
1822–1823 (ACPG), SESSÃO N. 1 – A DOIS DE JUNHO DE 1822. In:
http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS1Conselho_dos_Procuradores_Gerais_das_Provincias_do_Brasil_1822-1823.pdf , p. 44
403
BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University
Press, 1988, p. 93. Para o autor, os radicais já vinham tendo preponderância no processo desde, ao menos,
os eventos de maio, com o oferecimento do título de Defensor Perpétuo a Dom Pedro e a petição pedindo
a convocação de uma Assembleia separada no Brasil. Petição, aliás, redigida pelos próprios Januário da
Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo – da lavra deste sendo ainda, o decreto de convocação da constituinte.
Cf. LIMA, Oliveira. O Movimento da Independência, 1821-1822. 6ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks,
1997, p. 302; 309.
404
ACPG, Sessão n. 2 – a três de junho de 1822, p. 45. A representação é apresentada a Dom Pedro pelos
procuradores, sem distinção de nomes.
163
Cortes, logo ameaçado pelo “orgulho Europeu”, pelo “maquiavelismo”, pela
“recolonização”, embora tenha se enchido de indignação causada pela perfídia de seus
irmãos, logo rompia “os vínculos morais de rito, sangue, e costumes, quebrava de uma
vez a integridade da Nação”405. Tal resultava que
O Brasil já não pode, já não deve esperar que de alheias mãos provenha
a sua felicidade. (...) O congresso de Lisboa, que perdeu o norte, que o
devia guiar, isto é, a felicidade da maior parte sem atenção a velhas
etiquetas já agora é capaz de tentar todos os tramas e de propagar a
anarquia para arruinar o que não pode dominar.
Tal situação levava a um momento-chave da trajetória histórica do Brasil, como
continua a própria representação a indicar:
É este, Senhor, o grande momento da felicidade, ou da ruína do Brasil.
Ele adora a Vossa Alteza Real, mas existe em uma oscilação de
sentimentos movida pelo receio de seus antigos males, pelo temor de
Despotismo, que as facções secretas muito fazem valer, e muito
forcejam para aproveitar. A âncora, que pode segurar a nau do Estado, a
cadeia que pode ligar as províncias do Brasil ao trono de Vossa Alteza é
a convocação de Cortes, que em nome daqueles que representamos
instantaneamente requeremos a Vossa Alteza Real. (...)406
O trecho expõe os elementos centrais que atravessavam a interpretação daqueles
tempos na ótica dos que construíam a narrativa oficial. As Cortes, em Portugal, sendo
um rompimento com as trevas do passado e inauguração do novo tempo, em
consonância com as luzes do século, haviam decepcionado os brasileiros, que, desejosos
da felicidade, precisavam de outra referência. Ruína ou felicidade: a primeira, com a
manutenção dos laços com as Cortes, que, longe de produzirem as luzes para o Brasil,
ameaçavam com antigos males; a segunda, com a única âncora capaz de segurar a “nau
do Estado”: a convocação de Cortes próprias ao Brasil, que poderia unir as províncias
em torno de Dom Pedro. O processo de autonomização do Brasil descolava-se das
Cortes para produzir seu próprio rompimento com o despotismo e a inauguração de suas
próprias luzes.
A marca do descolamento era a consideração, somada a uma percepção anterior
de que “as leis, as constituições, todas as instituições humanas são feitas para os povos,
e não os povos para elas”, de que Europa e América já não caminhavam no mesmo
ritmo de transformações. Enquanto, como visto anteriormente, crescia a percepção da
diferença entre América e Europa no discurso do Reverbero, oficialmente se
405
406
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
164
apresentava ao Príncipe Regente a ideia de que se devia partir de um “princípio
indubitável”:
as leis formadas na Europa podem fazer a felicidade da Europa, mas
não a da América. O sistema Europeu não pode pela eterna razão das
coisas ser o sistema Americano, e sempre que o tentarem será um
estado de coação, e violência, que necessariamente produzirá uma
reação terrível. 407
Não era o rompimento político ou institucional: era um rompimento na
interpretação do tempo, que não mais considerava em consonância as duas partes do
Reino, como elementos do mesmo conjunto de transformações na época histórica. A
narrativa da história da nação portuguesa, que vinha se desenvolvendo numa linha reta,
sofrera uma bifurcação: o não atendimento das necessidades próprias do “sistema
Americano”, mais que despotismo ou opressão, era a consideração de que a narrativa do
futuro deveria ser produzida pelos próprios americanos, não mais pelos europeus. A
união de ambas as partes deveria ser mantida, seguia o discurso, mas já agora a
compreendendo não como duas metades do mesmo mundo, mas como dois mundos que
orbitavam uma mesma estrela.
O decreto de convocação que segue a representação, já discutido acima,
provoca, na descrição da ata, uma “efusão de júbilo”, graças à “heróica resolução de
Sua Alteza Real, que vai marcar a época a mais faustosa do Brasil”. Os entraves que
prendiam o desenvolvimento da prosperidade no lado americano do atlântico
dissolviam-se. E o discurso do procurador da província Cisplatina, Lucas José Obes,
expõe bem essa sensação:
Senhor. De ontem para hoje que distância! De ontem para hoje quantos
sucessos! De ontem para hoje, que glória para Vossa Alteza Real! Que
venturas para todos nós! Ontem não tínhamos Pátria, ontem não
tínhamos Leis, ontem não tínhamos um Soberano... Hoje temos tudo, e
temos mais que tudo, porque temos a Vossa Alteza Real. (...) Luz que
dissipou as trevas, e por quem esta porção encantadora da América
Meridional conseguira manter a sua integridade, e por si mesma
derribar os calabouços em que gemeram por três séculos os nossas [sic]
pais e pereceram (desgraçadamente miserandas!) milhares de gerações
que não têm conta. Está vencido o grande passo, o que resta será obra
do tempo.408
Em um dia percorrera-se imensa distância, assim como em 14 anos, vimos
anteriormente no Reverbero, se avançara mais do que séculos inteiros. O tempo
407
408
Idem, p. 45-46.
Idem, p. 46.
165
histórico comprimido pela ação de Dom Pedro permitia a equiparação às nações mais
avançadas do tempo. A saída do esquecimento, produzida, no discurso do Revérbero,
pela colonização portuguesa ganhava nova dimensão com a ação do herdeiro da Coroa:
agora há Pátria, Leis e Soberano. Os elementos da civilização preponderam: as trevas
foram dissipadas e os três séculos de opressão deixados para trás. Os limites possíveis à
ação humana, atendendo às necessidades do tempo, foram transpostos pelo Regente: o
futuro, deixado à ação do tempo, completaria o que restasse.
Tudo seria devido a Dom Pedro, o “fundador da liberdade brasiliana”, o “amigo
da nação”, o “digno sucessor daquele monarca benfazejo, que primeiro doou à Plaga
Brasílica o esplendor da Majestade, e o gérmen de uma santa independência!”. A
continuidade entre Dom João VI e Dom Pedro ia além da filiação: era a continuação de
um processo que se entendia como interrompido pela ação das Cortes. A narrativa da
independência do Brasil, antes mesmo que oficialmente ela acontecesse, lançava no
passado os fundamentos do futuro, e na presença joanina os alicerces do processo em
que começavam “os séculos do Brasil”409.
E onde entra Ledo nesse processo? Como secretário, assina a ata. Como um dos
articuladores do processo de convocação da Assembleia, junta suas vozes às dos demais
participantes que, naquele momento, submetem suas diferenças ideológicas à mais
ampla interpretação do descolamento de Portugal.
Mas já na sessão seguinte as diferenças voltariam à tona. À discussão sobre
como nomear os deputados da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil,
José Bonifácio, como Ministro dos Negócios do Brasil, propõe eleições indiretas. Ledo,
opondo-se, propõe eleições diretas. Apesar de argumentar a respeito da necessidade de
se fazer prevalecer a vontade da maioria, e de que se não pode limitar o exercício do
poder constituinte, perde a votação em favor da proposta de Bonifácio 410. Em sessão de
16 de junho, discussão sobre punir ou não o autor do Correio do Rio de Janeiro a
propõsito de “doutrinas criminosas que [o periódico] continha”, Ledo coloca-se
contrário a qualquer punição, defendendo a necessidade de liberdade de imprensa. Com
o apoio do procurador da Cisplatina, não perdeu, mas ficou sob sua responsabilidade o
encaminhamento de regulamentação para fiscalizar e julgar os abusos da liberdade de
imprensa411 . E, na mesma sessão em que o procurador da Cisplatina apresenta uma
409
As últimas referências são todas de Idem, p. 46.
ACPG, Sessão n. 3 – a 10 de junho de 1822, p. 47.
411
ACPG, Sessão n. 6 – a 16 de junho de 1822, p. 48.
410
166
proposta questionando por que não imitamos a Grã-Bretanha, única exceção, entre todas
as nações, que não foi vitimada pelos inimigos externos e internos que causam “males
espantosos” devido à sua riqueza412, o ministro da Fazenda, Caetano Pinto Montenegro,
analisa as transformações vivenciadas pelo Brasil recentemente com cuidado.
Afirmando que “a passagem do despotismo para a liberdade é tempestuosa: ferveram as
paixões, agitaram-se os partidos”, acaba destacando, apesar das críticas, que “a salvação
pública, torno a dizer, é a suprema lei”413. E é sob os auspícios dessa lógica que, em 15
de outubro, Ledo assina pela última vez a ata como secretário, antes da bonifácia
avançar sobre os “radicais” e desmembrar o grupo temporariamente, atingindo não
apenas o próprio Ledo, como José Clemente Pereira, Luis Pereira de Nóbrega e João
Soares Lisboa. Os atritos entre o “grupo de Bonifácio” e o “grupo de Ledo” atingiam
seu auge.
Antes, porém, ambos compõem separadamente as duas manifestações de agosto
que também poderiam ser incluídas no rol de documentos análogos a “declarações de
independência” – embora, aqui como alhures, mantenha-se um esforço retórico para
salvar a ideia de unidade luso-brasileira em ambas as falas. O primeiro manifesto, de 01
de agosto, produzido por Ledo, é dirigido aos “brasileiros”; o segundo, de 06 do mesmo
mês, é dirigido às “nações amigas” 414 . Em conjunto, sintetizam as interpretações
daquele tempo produzidas com vistas à hegemonia até ali.
Os manifestos cumprem, cada um a seu modo, papel análogo àquele que a
Declaração de Independência cumprira no caso americano. Como declarações 415 , os
manifestos inseriam-se na tradição, criada desde 1776, de produzirem pronunciamentos
internacionais por meio de um órgão oficial (no caso do de 6 de agosto), enumerando as
razões para uma atitude de rompimento (mais presente na de 01 de agosto) 416 .
Dirigindo-se tanto “para dentro” quanto “para fora”, os dois manifestos justificam o
posicionamento de reconfiguração não apenas da política nacional – e, com isso,
contribuem para reconfigurar inclusive o significado do conceito de “nação”, da
“que o diga a França perdida, na opinião de Necker, pela desordem de suas finanças; que o diga a
Espanha sem colônias, sem comércio, sem esquadras, pela pobreza do seu Erário; e talvez nós mesmos
poderemos também dizer brevemente”. Idem, p. 58-59.
413
Idem, p. 49-50.
414
COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7ª edição. São Paulo:
Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 52-53.
415
Embora não se intitulassem “declarações”, sua definição dicionarizada era semelhante. “Manifesto”,
no Morais e Silva, significava, dentre outras coisas, “escrito, em que os Soberanos, e os Estados dão razão
de moverem guerra, expõe os seus direitos, ou o motivo de alguma ação”. Vol. II, p. 57. Já “declaração”
consistia em “ato de dar ao manifesto”; “ato de declarar”; “explicação, ou exposição”. Vol. I, p. 388.
416
ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., cap. 01.
412
167
“portuguesa” à “brasileira” –, mas, também, de realinhamento da interpretação sobre o
passado distante e recente da formação do Brasil. É o momento-chave em que a
interpretação corrente, que se pretendia hegemônica, finca-se em definitivo no coração
do poder, com a plena assunção da separação narrativa entre Europa e América. A
lógica presente no Revérbero em particular, e nos periódicos em geral, entrelaçava-se à
perspectiva institucional oficial.
Vejamos como. O primeiro manifesto já começa dirigindo-se aos brasileiros e
lembrando que “está acabado o tempo de enganar os homens.” Afinal,
Os governos, que ainda querem fundar o seu poder sobre a pretendida
ignorância dos Povos, ou sobre antigos erros, e abusos, têm de ver o
colosso da sua grandeza tombar da frágil base, sobre que se erguera
outrora. Foi por assim o não pensarem que as Cortes de Lisboa
forçaram as Províncias do Sul do Brasil a sacudir o jugo, que lhes
preparavam: (...)417
A separação indicada logo no começo afasta o tempo passado do tempo presente
num caminho sem volta. O passado, referenciado a partir de uma ótica política, pela
fundamentação do poder, é sintetizado novamente como o tempo da ignorância e das
trevas. Os tempos mudaram e, com isso, a fundação do poder dos governos deveria
mudar junto. As Cortes, por ignorarem a sincronia com o tempo histórico atual,
pagavam o preço de sua desconsideração: a partir do Sul o Brasil sacudia o jugo que
contra ele era lançado. O Sul, considerado parte desse conjunto americano mais amplo,
ganha destaque no contexto, destacando, também, os grupos que dali sustentavam o
poder do Imperador, que assumiria o papel de reunir o Brasil em torno de si,
assegurando a “defesa de seus Direitos, e a mantença da sua Liberdade, e
Independência.”418
Os motivos estavam expostos. Portugal, destruindo as formas estabelecidas da
Monarquia, e mudando suas antigas e respeitáveis instituições, corria “a esponja de
ludibrioso esquecimento por todas as suas relações”, reconstituindo-lhas novamente.
Não era uma simples continuidade de opressão que perdurasse por todo o sempre. Era
um novo tipo de dominação que corrompia o que de respeitável havia na tradição do
Reino, o que justificava a mudança de postura sobre as relações Brasil-Portugal sem que
se entrasse em contradição sobre o apoio até há pouco conferido a elas. As Cortes
provocaram, não o Brasil. Aquela não poderia obrigar este a
Manifesto – do 1º de agosto de 1822. Esclarece os Povos do Brazil das causas da guerra travada contra
o Governo de Portugal. In: CLIB. 1822. Parte II. p. 125.
418
Idem.
417
168
aceitar um sistema desonroso, e aviltador sem atentar contra aqueles
mesmos principios, em que fundara a sua revolução, e o direito de
mudar as suas instituições políticas, sem destruir essas bases, que
estabeleceram seus novos direitos, nos direitos inalienáveis dos Povos,
sem atropelas a marcha da razão, e da justiça, que derivam suas leis da
mesma natureza das coisas, e nunca dos caprichos particulares dos
homens.419
O trecho é rico em interpretações. Em primeiro lugar, e retomando o
afastamento da contradição exposto anteriormente, fica claro, no complemento, que a
contradição estava em Portugal, e não no Brasil. Atentar contra os direitos desta parte
do Império era atentar contra os próprios direitos nos quais as Cortes se baseavam para
fundar sua “revolução”420. Se o Brasil produzira a riqueza portuguesa, e se o progresso
do Brasil era o progresso de Portugal, como visto nos capítulos anteriores, também as
fundações que valiam para a Europa valiam para a América.
Em segundo lugar, o trecho também indica que a institucionalização do discurso
do Reverbero era, também, a oficialização da influência de De Pradt na produção da
interpretação daquele tempo. A proximidade do trecho com a fundamentação lockeana
dos “direitos inalienáveis”, nisso aproximando-se da justificativa da Declaração
americana – embora o termo “Povos”, no plural, possa remeter a uma lógica de Antigo
Regime – não deixa de provocar abertura à lógica pradtiana que fortalecia a
interpretação daquele tempo: na Revolução Americana, a perspectiva de produção do
novo em nome de direitos inerentes à condição civil; na revolução brasílica, o
atendimento à marcha inevitável da razão e da justiça, que atualizaria a realização das
expectativas de “tão rica e grande porção do nosso globo”, com “talentos dos seus
habitantes, e os recursos imensos do seu solo”, que, antes lamentando a marcha
“desorientada e tirânica”, agora voltava aos trilhos da verdade sob comando do
Príncipe421. Nessa condução segura da marcha, os fiéis súditos,
sopeando talvez desejos, e propensões republicanas, desprezaram
exemplos fascinantes de alguns Povos vizinhos, e depositaram em Mim
todas as suas esperanças, salvando deste modo a Realeza, neste grande
continente Americano, e os reconhecidos direitos da Augusta Casa de
Bragança.422
419
Idem, p. 125-126.
Nisso, como visto, existe uma aproximação com a tônica do Reverbero.
421
Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 126.
422
Idem, p. 126. Mais à frente, falando da Assembleia Constituinte e lembrando a importância de manear
o “leme da razão, e prudência”, declararia a importância de “evitar os escolhos, que nos mares das
revoluções apresentam desgraçadamente França, Espanha, e o mesmo Portugal; para que marque com
420
169
A Independência era, simultaneamente, a salvação do Brasil e a salvação da
monarquia. A Casa de Bragança, já ameaçada, como vimos na carta de Dom Pedro a seu
pai, pelo “aprisionamento” de Dom João VI pelas Cortes (temática que retomaria nos
manifestos), via sua renovação no Brasil, assim como o Brasil era visto como renovação
do próprio Portugal423. Para o cumprimento da dupla salvação, desprezar os “exemplos
fascinantes” das Repúblicas Americanas vizinhas era fundamental 424 . Não fosse o
Príncipe, explica o próprio, “quem poderia sobrestar os males da anarquia, a
desmembração das suas Províncias, e os furores da Democracia?” 425 Mas não seria
apenas como mantenedor da ordem centralizada que o Príncipe deveria agir. Mais do
que coerção, também a produção da direção e do consenso seria tarefa assumida por
Dom Pedro naquele contexto:
Quem acalmaria tantos partidos dissidentes, quem civilizaria a nossa
Povoação disseminada, e partida por tantos rios, que são mares? Quem
iria procurar os nossos Índios no centro de suas matas impenetráveis
através de montanhas altíssimas, e inacessíveis? De certo, Brasileiros,
lacerava-se o Brasil (...) e as vistas benfazejas da Providência se
destruíam, ou, pelo menos, se retardavam por longos anos. 426
A ação de Dom Pedro evitaria o retardo que atravancaria o progresso do Brasil.
A ação do herdeiro dos Bragança seria o gatilho a comandar a “expansão para dentro”
que caracterizaria a formação do Estado nacional no Brasil427. Embora reforçasse, no
parágrafo seguinte, a ideia de manutenção dos vínculos com Portugal, estes apenas
sustentariam uma boa relação entre ambas as partes, visto que todo o processo seguinte
de desenvolvimento do Brasil seria, agora, conduzido de dentro.
A parte seguinte do manifesto é aquela dedicada à exposição dos fatos que
justificavam o comportamento. A interpretação é dada de antemão: a história das ações
das Cortes sobre o Brasil é uma “história de enfiadas injustiças”, cujos fins eram
“paralisar a prosperidade do Brasil, consumir toda a sua vitalidade, e reduzi-lo a tal
mão segura e sábia, a partilha dos Poderes, e firme o Código da vossa Legislação na sã Filosofia, e o
aplique às vossas circunstâncias peculiares.”. In: Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 129.
423
Valdei Araújo, 2008.
424
Fascinar”, no Morais e Silva, tem como significado “enganar, alucinar”. Volume 1, página 624. Já no
Bluteau, p. 55, volume 4, tem a ideia de “olhar com aspecto melancólico, turvo e carrancudo, e
juntamente com inveja, ou ódio, ou ira, ou outra paixão violenta, misturando os espíritos venenosos das
ditas paixões com os espíritos e humores do corpo, e juntamente alterando-os, destemperando-os, e
corrompendo-os de sorte que o corpo cai, e mostra o mal que recebeu”.
425
Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 127.
426
Idem.
427
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit.; IDEM. Construtores e herdeiros: a trama dos
interesses na construção da unidade política. almanack braziliense. Nº 1. Maio 2005, p. 8-26..
170
inanição, e fraqueza, que tornasse infalível a sua ruína, e escravidão” 428. As metáforas
relacionadas a crescimento e vida consolidavam a ideia de que o Brasil apresentava-se
como o jovem em pleno arranque de aprimoramento, enquanto Portugal, velho,
decrépito, descia a ladeira num esplendor passado que se tornava apenas vislumbre
distante rumo a um péssimo futuro429. Incapaz de mudar seu quadro, Portugal sugava do
Brasil a vida que não conseguiria mais ter para si – ainda que, para isso, ousassem,
inclusive, ameaçar “com libertar a escravatura, e armar seus braços contra seus próprios
Senhores”430. Portugal, na sua gana de destruição, ultrapassava limites cujas convenções
seculares, turbinadas por tragédias de revoluções escravas recentes, não deveriam ser
transpostas nem nas mais tensas situações de conflito entre pares.
No fim, palavras de esperança àqueles a quem se dirigia o manifesto: “Encarai,
habitantes do Brasil, encarai a perspectiva de Glória, e de Grandeza, que se vos antolha,
não vos assustem os atrasos da vossa situação atual; o fluxo da civilização começa a
correr já impetuoso desde os desertos da Califórnia até ao estreito de Magalhães.” O
novo tempo pertencia à América. A civilização unia mesmo as partes cuja distância
procurava-se manter – por republicanas. Algo superior se impunha: a plenitude da
realização da liberdade em luta contra o despotismo – e que buscava evitar a anarquia.
E é exatamente a caracterização desse despotismo que move fundamentalmente
o segundo manifesto, de 06 de agosto. A colonização portuguesa na América é
duramente retratada, o que mostra de forma mais contrastante as transformações
naqueles anos, já que a autoria do manifesto é de José Bonifácio. Nesse sentido, uma
breve contextualização é necessária, já que em seus escritos notam-se duas fases
marcantes de preocupação com o papel da História, além de uma preocupação com a
questão da identidade nacional que também perpassa sua obra431.
Em relação à História, a primeira fase relaciona-se à trajetória de Bonifácio na
burocracia imperial portuguesa. A idéia central em seus escritos sobre a História de
Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 127.
Mais à frente, retomaria a questão declarando que o Brasil já era “Povo Soberano”, já entrado na
grande sociedade das nações independentes, a que tinha todo direitos. Afinal, “a honra e dignidade
nacional, os desejos de ser venturosos, a voz da mesma naduteza mandam que as colônias deixem de ser
Colonias, quando chegam à sua virilidade, e ainda que tratados como colônias não o éreis realmente, e até
por fim éreis um Reino. Demais: o mesmo direito que teve Portugal para destruir as suas instituições
antigas, e constituir-se, com mais razão o tendes vós, que habitais um vasto, e grandiosos País, com uma
povoação (bem que disseminada) já maior que a de Portugal, e que irá crescendo com a rapidez com que
caem pelo espaço os corpos graves.”. Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 129.
430
Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 128.
431
A construção da interpretação sobre o período é fortemente baseada em ARAÚJO, Valdei Lopes de. A
experiência do tempo... op. ct., cap. 1, e SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Construção da nação e escravidão
no pensamento de José Bonifácio.Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, especialmente cap. 2 e 3.
428
429
171
Portugal, nesse momento, é a de “restauração”, que busca no passado português as
glórias perdidas e, aproximando o passado do presente, tem por objetivo “atualizar” essa
Era de Ouro passada. A idéia é resistir à ação do tempo, que cada vez mais afasta
Portugal dos centros civilizacionais europeus. Bonifácio enxerga no Brasil colonial uma
oportunidade para essa restauração do tempo perdido, que não é mera repetição do
passado, mas uma nova chance de ligação desse passado ao presente, e até ao futuro, do
Império. Note-se que, nessa abordagem, a identidade a que Bonifácio liga sua noção de
História é a do Império português. É o sentimento que predomina até princípios da
década de 1820.
A idéia de restauração criava uma continuidade entre a experiência passada de
Portugal e a realidade presente do Império português. Essa continuidade teórica, porém,
foi posta à prova a partir dos eventos que desencadearam o processo de separação
política.
O desenrolar dos acontecimentos que culminaram na independência, em 1822,
transformaram a perspectiva de Bonifácio. A idéia de “restauração”, como ligação do
passado de Portugal a um presente de incertezas, cedeu lugar à idéia de “regeneração”,
que implicava mais que uma simples ligação. Regenerar, na concepção de História de
Bonifácio, significava uma “refundação do pacto social em bases compatíveis com o
espírito do século” 432 . Essa refundação teria no Brasil seu porto seguro, e, frente à
impossibilidade de manutenção dos vínculos a partir de 1822, o Brasil surgirá como
país novo, porém tributário da herança histórica portuguesa. O Portugal do passado, que
não pôde ser restaurado, teria de ser refundado (isto é, regenerado) num espaço novo,
inexistente antes: o Império do Brasil. O sentimento imperial português dá lugar à
necessidade de construção de uma identidade nacional brasileira.
Nesse sentido, a consolidação de um duro discurso sobre a colonização
portuguesa supera qualquer perspectiva de fortalecimento do Império Atlântico. Afinal,
contra os direitos que os brasileiros desejavam conservar “Portugal sempre atentou, e
agora mais que nunca, depois da decantada Regeneração política da Monarquia pelas
Cortes de Lisboa” 433. Radicaliza-se a perspectiva do despotismo como algo que sempre
foi a tônica nas relações entre Europa e América, e não simplesmente uma ação pontual
das Cortes sobre o Brasil. A exploração estava presente desde o surgimento do Brasil:
432
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. cit., p. 58.
Manifesto – de 6 de agosto de 1822. Sobre as relações políticas e comerciais com os governos, e
nações amigas. In: CLIB, 1822, vol. II, p. 132.
433
172
Quando por um acaso se apresentara pela vez primeira esta rica e vasta
região Brasílica aos olhos do venturoso Cabral, logo a avareza e o
proselitismo religioso, móveis dos descobrimentos e Colônias
modernas, se apoderaram dela por meio de conquista; e leis de sangue,
ditadas por paixões, e sórdidos interesses, firmaram a tirania
Portuguesa.434
Ora, comparemos o trecho acima àquele discutido anteriormente do Reverbero,
no qual a chegada de Cabral ao Brasil representara a saída do território do esquecimento
e seu ingresso na História, com a realização da civilização graças à presença portuguesa,
e que aspirava, num primeiro momento, a ser a interpretação central das relações entre
ambos os continentes, marcando o tom das transformações constitucionais pelas quais
passava o Império. Agora, consolidava-se a visão dos “três séculos de opressão”,
ampliando-se, porém, seu escopo: não se tratava simplesmente de uma opressão
comercial ou política, mas, mesmo, de um despotismo presente nos próprios
instrumentos civilizatórios – as “leis de sangue” substituíam as leis da civilização; o
“proselitismo religioso” ocupava o espaço da catequização que tirava da barbárie os
nativos; a avareza era alçada a um dos motores da “colonização moderna” – inclusive,
distinguindo-se das formas antigas de colonização435. Não que a visão fosse nova: a
crítica à colonização com essa radicalidade – que, como dito, ultrapassa inclusive os
limites presentes na concepção de “três séculos de opressão” – já se encontrava
inclusive no Reverbero
436
. Mas, agora, a radicalidade chegava ao discurso
institucionalizado.
434
Idem, p. 132.
Para uma análise do manifesto de 6 de agosto que analisa os dois conceitos de “colônia” – antigo e
moderno – presentes em Bonifácio, cf. ARAÚJO, Valdei. A experiência do tempo... op. cit., p. 63-66.
436
Reflexões presentes na edição de 9 de abril de 1822, do Reverbero já criticavam “aquelas cenas
Inquisitoriais, que mancham a História, desde o século XIV, até o XVI”, presentes desde o “instante em
que os bárbaros Espanhóis fundamentaram a escravidão da América, [e que] as Virgens do Sol, foram
profanadas; eram de diferente rito, dirá alguém, e a superstição marcha com os Soldados conquistadores”.
Cf. RCF, n. 22, 9 de abril de 1822, p. 266. Noutro momento, comentando famosa publicação de autor
cubano, os editores do periódico lembram que “os espanhóis e os portugueses são bárbaros na guerra: a
América, e a Índia o sabe [sic]”. Cf. RCF, tomo segundo, n. 20, 08 de outubro de 1822, p. 251. Esses
comentários, aliás, presentes na reta final do Reverbero, quando já se consumava a Independência
política, oferecem outros pontos de análise do passado que se aproximam daquele de Bonifácio. Nessa
lógica, os portugueses e espanhóis se tornam os bárbaros, pois os primeiros “mataram milhares de
inocentes vítimas, e pagaram com ferros a hospitalidade generosa, que haviam recebido”, enquanto os
segundos “sob capa de Religião, produzisse o extermínio de vinte milhões de almas, segundo a relação do
Venerável – Las Casas, - que ainda quando fosse exagerada, dá contudo ideia de haver sido o maior, que
a História de todos os séculos apresenta, e de que o absoluto desaparecimento dos Indígenas nas Antilhas
todavia convence”, enquanto “o resto desses miseráveis fossem condenados à mais dura escravidão, sem
que bastassem as repetidas ordens dos Reis Católicos, os esforços pessoais do mencionado Bispo, e o
arbítrio de substituir os negros d´África, o que foi querer remediar um com outro mal igual, ou pior por
suas circunstâncias, ficando em pé a essência, como bem se convencerá todo o que for ao Continente
Americano ver o tratamento, que se dá aos Indígenas”. P. 212-213.
435
173
A “estrada da miséria e escravidão”, oferecida pelos portugueses, unia o “colono
europeu” e o “indígena bravio”, ambos obrigados a trilhar o mesmo caminho de
extração de riquezas, leis absurdas e impostos sofríveis. O que a “benigna Natureza”
oferecia em termos de tesouros, o Estado português, com “sôfrega ambição”, devorava.
“Queriam que os Brasileiros pagassem até o ar que respiravam, e a terra que pisavam”,
lamentava. Qualquer tentativa de inovação feita na colônia era tolhida pelos
portugueses. “Sempre quiseram os Europeus conservar este rico país na mais dura e
triste dependência da Metrópole, porque julgavam ser-lhes necessário estancar, ou pelo
menos empobrecer a fonte perene de suas riquezas”437. Aqui sequer é mencionada a
perspectiva antes existente de que tal se devia à miopia lusitana, posto que o
desenvolvimento da riqueza da colônia seria o desenvolvimento da riqueza da
metrópole. Aqui, o que sobra é apenas a intencionalidade da destruição e da exploração
que oprimiram, por séculos, um território naturalmente destinado ao sucesso e repleto
de iniciativas que poderiam desenvolver o que já nascera possuindo.
Tal fora a sorte do Brasil por quase 3 séculos. E não deixaria Dom
Pedro/Bonifácio de apelar àquela categoria que, como vimos no caso do Revérbero, e
como continuaria a ser ao longo do Primeiro Reinado, sintetizava, dentro da lógica
histórica da luta da liberdade contra o despotismo, o reino da barbárie e do extremo
oposto às luzes: a “Turquia”. Explicando como a sede de ouro e ambição do poder são
inesgotáveis, lembraria que
não se esqueceu Portugal de mandar continuamente Bachás
desapiedados (...) que no delírio de suas paixões e avareza
despedaçavam os laços da moral assim pública, como doméstica (...)
para que reduzidos à última desesperação seus povos [do Brasil], quais
submissos Muçulmanos, fossem em romarias à nova Meca comprar
com ricos dons e oferendas uma vida, bem que obscura e lânguida, ao
menos mais suportável e folgada. 438
A explicação dirigida às nações amigas apela a um exemplo do presente – o
mundo muçulmano, cujo principal exemplo mencionado continuamente era o Império
Otomano, ou a “Turquia”, para apontar o passado. Conforme teremos oportunidade de
desenvolver no próximo capítulo, a Turquia presente era o passado do mundo ocidental
na lógica histórica que presidia a interpretação daqueles tempos. Os Bachás substituíam
com precisão os absolutistas; os “submissos muçulmanos” formavam perfeita analogia
437
438
Manifesto – de 6 de agosto de 1822... p. 132.
Idem, p. 133.
174
do outro oprimido pela escuridão; o trânsito à Lisboa, eivado de humilhações àqueles
americanos que apenas buscavam desenvolver seu potencial, assemelhava-se à travessia
a Meca, cuja obrigatoriedade impedia a plenitude da liberdade àquele século como nos
passados. Se o Brasil resistira a tamanha opressão, tal apenas fora possível devido à
força que a Natureza conferira a seus filhos, talhando-os para gigantes, como boa mãe
que lhes dava sempre remanescentes forças para desprezarem os obstáculos físicos e
morais, “que seus ingratos pais e irmãos opunham acintemente ao seu crescimento e
prosperidade”. Portugal tornara-se pai-irmão que castigo e zombaria oferecia; a própria
natureza brasílica era alçada á condição de mãe, moldando com carinho e ternura o
brioso povo brasileiro439.
Assim tratado, o povo brasileiro assistira candidamente às outras ações que
Portugal dirigia, desde sua Regeneração, para restabelecer astutamente o “velho sistema
colonial, sem o qual creu sempre Portugal, e ainda hoje o crê, não pode existir rico e
poderoso”440. Nessa concepção das Cortes, “o Brasil não devia mais ser Reino; devia
descer do trono da sua categoria; despojar-se do manto Real de Sua Majestade; depor a
Coroa e o Cetro, e retroceder na Ordem política do Universo, para receber novos ferros,
e humilhar-se como escravo perante Portugal.”441 Deveria o Brasil, na explicação do
manifesto, retroceder na marcha que seguia, significando um retorno ao passado de
opressão e a anulação das conquistas até ali garantidas. A ação, similar à dos “selvagens
da Louisiana”, desejava somente colher os frutos da conquista, ainda que às custas da
desgraça do Brasil. A única alternativa para, nessas condições, garantir o “rápido
desenvolvimento de suas forças e futura prosperidade”, seria para o Brasil “um governo
forte e constitucional”, que pudesse “desempeçar o caminho para o aumento da
civilização e riqueza progressiva do Brasil”442. Nenhuma nação civilizada deixaria de
compreender essa necessidade, haja vista que o contrário arriscava a própria sociedade
brasileira:
À vista de tudo isto, já não é possível que o Brasil lance um véu de
eterno esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades; nem é
igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas Cortes de
Lisboa, vendo-se a cada passo ludibriado, já dilacerado por uma guerra
Idem, p. 133. Povo brioso, povo hospitaleiro, o qual abraçou, com “inexplicável júbilo”, a Família
Real. Idem.
440
Idem, 134.
441
Idem, p. 135.
442
Idem, p. 136.
439
175
civil começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas
horrorosas de Haiti, que nossos furiosos inimigos desejam reviver. 443
Se o primeiro manifesto mostrava a tragédia que consistia em ultrapassar os
limites do não-dito, ao trazer à cena o risco de ameaça à escravidão, o segundo
manifesto ultrapassava o contexto local escravista para trazer ao presente uma dimensão
do passado que deveria ser mantida no esquecimento. Não era possível mais lançar o
véu de esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades, diz o trecho, especialmente
considerando-se que aquela atrocidade que mais mereceria o véu do esquecimento era
justamente a que os adversários insistiam em desvendar. As cenas do Haiti, passado
ainda presente, fortaleciam o argumento não apenas aos brasileiros, mas, como o
manifesto intentava, às nações amigas (dentre as quais incluía-se aquela que primeiro
reconheceria a Independência, os EUA), para as quais o Haiti constituía um problema
semelhante àquele que provocava no Brasil. Se o manifesto de 01 de agosto, dirigido
aos brasileiros, podia prescindir dessa referência, apelando à generalidade da ameaça à
situação escravista, o manifesto seguinte centralizava a contextualização, provocando
uma maior aproximação da tragédia do passado com riscos de novas repetições trágicas
no presente.444
E isso não era tudo. Como pudemos trabalhar no capítulo anterior, analisando os
comentários dos redatores do Reverbero ao trecho traduzido de Joaquin Infante,
publicado no periódico, nos quais faziam-se acusações ao deputado Girão, um dos
argumentos contrários às Cortes veiculados pelos redatores era quanto às falas que
apontavam a Independência como caminho para a transformação do Brasil em Haiti.
Segundo Girão, pelos olhos do Reverbero, iriam repetir-se no Brasil as “horrorosas
cenas” de São Domingos, caso continuassem os apologistas da separação a agir. No
manifesto de agosto, porém, publicado antes da crítica do Reverbero (que foi de
outubro), o argumento mostrava-se invertido: não era a separação que ameaçava o
Brasil com as cenas do Haiti, mas, sim, a ação portuguesa de guerra e “atrocidades”;
443
Idem, p. 138.
Digno de nota é que o reconhecimento da Independência do Brasil pelos EUA, em maio de 1824,
seguiu-se aos esforços de José Silvestre Rebello, representante brasileiro, junto ao secretário John Quincy
Adams. Em abril do mesmo ano, Rebello enviou a Adams um documento no qual expunha uma
interpretação dos eventos ocorridos entre 1808 e 1822, incluindo, dentre os documentos, o manifesto de 6
de agosto. Embora não se possa afirmar que a narrativa tenha tido um papel fundamental no
reconhecimento, a consideração de trazer à cena a ameaça de o Brasil repetir um Haiti pode somar-se aos
apelos passados que construíram a interpretação voltada a justificar o rompimento perante nações que,
assemelhadas ao Brasil em certas condições (no caso, a escravidão), muito teriam a perder se o passado
atravessasse o futuro. Cf. ACCIOLY, Hildebrando. O reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos da
América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 115-116. (Brasiliana).
444
176
mas, sim, as tentativas dos próprios portugueses em fazer as terríveis cenas reviverem
no Brasil. O espectro de São Domingos continuava um poderoso fator de aglutinação
discursiva a unir os poderes escravistas em torno da persona de Dom Pedro,
justificando, assim, a separação: quanto mais os portugueses insistissem na manutenção
da opressão recolonizadora, mais próxima da tragédia ficaria a escravista nação
brasileira.
Tudo justificava o rompimento e a centralidade do Brasil na sincronia do
território com o novo tempo. A Portugal, com “essa mínima parte do território
português, e sua povoação estacionária e acanhada”, sendo exemplo desses povos
“envelhecidos e defecados”, cujos “belos dias” já “estão passados”, não convinha mais
ser o centro político e comercial da Nação inteira. Só do Brasil poderia a pequena
porção a monarquia recuperar sua virilidade antiga 445. E só a Dom Pedro competiria
conduzir o processo e realizá-lo plenamente, sem riscos.
Se era verdade, conforme expresso na proclamação de 21 de outubro, sobre o
reconhecimento da Independência, que “toda a força é suficiente contra a vontade de um
Povo que não quer viver escravo”, e se “a História do Mundo confirma esta verdade”,
então apenas Dom Pedro poderia estabelecer a separação que, fosse feita antes, “o
Brasil teria avultado em prosperidade há mais tempo”446. Sendo proclamado como não
mais parte da antiga monarquia portuguesa desde o dia 12 de outubro, com o agora
Imperador à frente e com uma interpretação consolidada institucionalmente sobre os
eventos recentes e o peso dos acontecimentos passados para compreensão daquele
tempo, poderia abrir-se o Brasil ao desenvolvimento que justificava todas as ações até
ali empreendidas, ingressando no conjunto das nações civilizadas.
4.2) O “novo tempo” contra o “velho tempo”:
Não obstante a distância que separou, nas disputas políticas, o “grupo de Ledo”
do “grupo de Bonifácio”, inclusive a exclusão e perseguição da “bonifácia”, ambos
pautaram-se, naquele momento de produção dos manifestos, por um mesmo consenso
interpretativo no que tange à formação do Brasil e sua inserção na lógica do
desenvolvimento histórico das nações. Podemos considerar, assim, a tônica de
Manifesto – de 6 de agosto de 1822... p. 140.
Manifesto – de 21 de outubro de 1822. Sobre o reconhecimento da Independência do Brasil pelo
Governo de Portugal. In: CLIB, 1822, vol. II, p. 143-144.
445
446
177
Bonifácio em conjunto com a perspectiva do Reverbero que tratamos nos capítulos
anteriores.
Com uma diferença. O encaminhamento das disputas políticas a partir de 1823,
na Constituinte, implicou a maximização de certos elementos discursivos e a
minimização de outros; o enfoque maior em certos aspectos e o silenciamento de outros.
Se o discurso historiográfico produzido pelo Reverbero ainda se dava nos quadros de
uma experimentação – o que explica a aproximação feita com as demais realidades
americanas –, a de Bonifácio/Ledo posterior produz um afunilamento – o que implica o
afastamento das realidades desvinculadas diretamente da monarquia constitucional
unitária e centrada na figura do Imperador. O segundo projeto, vitorioso nos embates
em 1822, é aquele que começa o tom na Constituinte – não sem enfrentar resistências.
Assim, a trajetória da Assembleia Constituinte em 1823 representava não apenas
a concretização do projeto de ruptura política com a dinâmica das Cortes, mas também a
história da disputa entre um determinado tipo de expressão político-institucional para o
nascente país, bem como a narrativa histórica que o acompanhava – como vimos aqui
tratando –, e outras formas narrativas que buscavam construir consensos nos debates
políticos da Câmara em torno das transformações recentes do Brasil, agora considerado
Império independente. Essas disputas, em certos aspectos, se prolongariam ao longo de
todo o Primeiro Reinado, culminando numa certa visão sobre a formação do Brasil.
Por ora, focaremos em alguns elementos centrais daquelas disputas em 1823: a
percepção de uma lógica do surgimento de um “novo tempo” contra um “velho tempo”
(ressignificando, em alguns aspectos, a análise que o Reverbero havia feito em 18211822) e os conflitos interpretativos em torno dos principais motores das mudanças
históricas na História do Brasil. Aqui, neste último aspecto, é onde as faíscas em torno
da persona de Dom Pedro vão ser expostas com mais clareza. O fechamento da
Constituinte, em 1823, apenas suspenderia momentaneamente esse conflito.
Afinal, na interpretação que o Reverbero ajudara a consolidar em sua reta final, e
que foi, ao longo de 1822, incorporada institucionalmente pela narrativa oficial que se
desenhava, como vimos, a monarquia constitucional, encarnada na figura de Dom Pedro
I, coroado Imperador em dezembro de 1822, buscava também marcar os limites do
possível para aqueles que se reuniam na Corte imperial em 1823. A vitória da
monarquia constitucional encaixava a narrativa histórica produzida desde o Reverbero
num modelo indissociável do poder centralizado como formato para plena inserção do
178
Brasil na lógica histórica das civilizações. E, como vimos, sem que houvesse riscos de
cair na anarquia destrutiva.
É nessa situação que a Constituinte se reúne em 1823447. E logo na abertura dos
trabalhos na Assembleia, Dom Pedro I, em discurso, afirmaria:
É hoje o dia maior, que o Brasil tem tido, dia em que ele pela primeira
vez começa a mostrar ao mundo, que é império, e império livre. (...) O
Brasil, que por espaço de trezentos e tantos anos sofreu o indigno nome
de colônia, e igualmente todos os males provenientes do sistema
destruidor então adotado, logo que o Sr. D. João VI rei de Portugal e
Algarves, meu augusto pai, o elevou a categoria de reino (...) exultou de
prazer; Portugal braniu de raiva, tremeu de medo.448
A narrativa estava desenhada e pronta para ser apresentada à Assembleia: a
formação do Brasil era vista como fruto de trezentos anos de jugo sob o sistema
colonial, instaurado por Portugal, cujo fio de dominação era fundamentalmente políticoeconômico, havendo a primeira quebra com a elevação da ex-colônia a Reino Unido e a
segunda com a Independência. Em ambas, o comando político passa de pai para filho,
de Dom João VI a Dom Pedro I, ambos considerados elementos indispensáveis à
transformação do Brasil.
A fala de Pedro I se coaduna com a do deputado Ferreira Araújo, que, meses
depois, já em data próxima ao fechamento da constituinte pelo mesmo Dom Pedro,
retomaria a formulação em indicação objetivando transformar o doze de outubro, data
da aclamação do Imperador, em dia de festa nacional. Afirmou, nesse contexto, Araújo:
Não há dia mais plausível para uma nação do que aquele em que
começa a datar a época da sua grandeza. O Brasil, mais de três séculos
agrilhoado sob o bárbaro sistema colonial, ressurgiu uma vez do seu
abatimento e elevou-se à categoria de império; e este gigante, ainda no
seu berço, fez alarde da sua força. A voz unânime dos povos levantou
um novo trono, onde colocou uma dinastia, ilustre por suas virtudes,
famosa por suas façanhas. Um príncipe, delícias dos brasileiros e tanto
tempo ensaiado em promover a sua prosperidade, mereceu todos os
votos que solenemente o proclamarão no sempre memorável dia 12 de
Outubro.449
447
Sobre a Constituinte, cf. os trabalhos de RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de
1823. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1974; RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias
políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2003; SLEMIAN, Andrea & PIMENTA,
João Paulo Garrido. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825).
Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 96-106.
448
AAC, 1823, Volume 1, p. 38.
449
AAC, 1823, vol. 6, p. 54
179
O que os trechos têm em comum, para além do apelo ao topos dos três séculos
de opressão, que sintetizavam uma interpretação a respeito de uma trajetória histórica,
são as referências ao modo pelo qual o Brasil teria rompido esse círculo de dominação:
à fraqueza e ao sofrimento daqueles séculos de sufocamento seguir-se-ia um despertar,
um “ressurgimento”, ou renascimento, que indicava um novo tempo de felicidade,
“delícias” e exultação de prazer. À dor dos trezentos anos abrir-se-ia um caminho de
maravilhas para o gigante que fazia sentir sua força ainda do berço. E, como diria o
deputado Gomide num outro momento, em discussão sobre ofício informando da
chegada de embarcação portuguesa à Bahia, no contexto dos conflitos pela
Independência na província, provocando debate sobre as relações entre Portugal e
Brasil,
pudesse Portugal agitar as ondas, e submergir-nos; abalar e revolver as
nossas montanhas, e sepultar-nos nas ruínas; chover sobre nós o fogo
electro; e abrir debaixo dos nossos pés a explosão do inferno; nenhum
brasileiro retrogradaria da heróica resolução que tem tomado (Apoiado.)
Anátema e maldição para sempre ao fraco e perjuro, se o houvesse, que
se quer vacilasse, se quer estremecesse na adesão com seus irmãos na
santa causa da nossa liberdade. Não somente nos braços, está gravado
em todos os corações independência ou morte; ninguém poderá
compelir a reassumir grilhões que quebramos para nunca mais se
soldarem. (Apoiados.) (...). Eia, Sr. Presidente. Marchemos avante!
Nem ao pensamento se tolere a mais leve ideia de retrogradação. 450
As marcas dessa interpretação do passado colonial brasileiro se fariam sentir nas
discussões entre deputados, especialmente em relação aos debates que mexiam, fosse
para conservar, fosse para reformar, na herança político-administrativa deixado pela
colonização. A lógica dos “três séculos de opressão”, produzida e consolidada no
processo de rompimento com a metrópole a partir de 1821, primeiramente difundida
pelos periódicos, como o Reverbero, além de panfletos e folhetos que veiculavam
interpretações sobre os tempos presente e passado, com vistas ao futuro, e que chegara
ao discurso institucional oficial nas proclamações de 1822 de Dom Pedro, como vimos,
agora era posto no centro da discussão política por aqueles que se apresentavam como
os únicos e legítimos “representantes da nação”. Ao redor dessa síntese dos três séculos
anteriores giraram projetos e disputas políticas a partir de 1823. Carneiro da Cunha, por
exemplo, em indicação propondo ao governo que expedisse logo as sentenças dos
presos da ilha das Cobras, que aguardavam sua sentença, aprisionados por mais tempo
450
AAC, 1823, vol. 5, p. 63, grifos no original.
180
do que o considerado justo451, afirmaria: “Bem tristes provas nós temos na opressão dos
povos do Brasil, que por três séculos sofreram toda a espécie de violências e
despotismos da parte dos magistrados sempre prontos a sacrificar a justiça a seus
sórdidos interesses e paixões”452. Ou, ainda, em discussão sobre parecer a respeito das
tropas portuguesas no Brasil, o deputado Silva Lisboa afirmaria que, qualquer que fosse
o vencedor dessa disputa, “o governo português há de sempre querer dominar, e
monopolizar o Brasil: como fez há três séculos.”453. Ou, por fim, a discussão de projeto
de Rocha Franco sobre a alternativa eclesiástica nas contas dos testamentos, quando
Carneiro da Cunha fica a favor da urgência: “Sr. Presidente, os povos do Brasil há 300
anos que sofrem gravíssimos males pelos defeitos da legislação, e atualmente pedem e
clamam por algum alívio a esses males.”454
Mas talvez o exemplo mais bem acabado dessa concepção dos três séculos de
opressão na Assembleia seja o vindo da discussão a respeito de projeto de naturalização
proposto por Muniz Tavares em 22 de maio. Segundo esse projeto, em seu artigo
primeiro, “aqueles portugueses que presentemente residem no Brasil com intenção de
permanecerem, e que têm dado provas não equívocas de adesão à sagrada causa da
independência, e à augusta pessoa de S.M. Imperial são declarados cidadãos
brasileiros”. Os demais, considerados suspeitos, seriam retirados do país pelo
governo. 455 Tal projeto gerou reação de vários deputados, de uma forma ou outra
remetendo ao passado brasileiro para justificar sua posição.
Para o deputado Alencar, por exemplo,
o terem nascido em Portugal não lhes deve servir para terem menos
direitos do que nós; é o merecimento e não o lugar do nascimento quem
distingue o cidadão brasileiro. (...) Não caiamos finalmente no mesmo
erro, em que caiam os portugueses no tempo do governo velho, isto é,
de olharem para nós com desprezo, e reputarem-nos menos dignos do
que eles, isto muito nos desgostava, e excitava nossa indignação; o
mesmo sucederia com eles, se nós usássemos da mesma injustiça que
eles conosco praticavam.456
451
Trata-se do caso de quatro oficiais portugueses aprisionados na Colônia de Sacramento pelo Barão de
Laguna e enviados para a Corte, sendo aprisionados na Ilha das Cobras. Os oficiais eram José de
Vasconcellos, Bandeira de Lemos, José Felipe Jácome de Sousa Pereira e Vasconcellos e Domingos
Manuel Pereira de Barros.
452
AAC, 1823, vol. 3, p. 15.
453
AAC, 1823, vol. 4, p. 201.
454
AAC, 1823, vol. 2, p.181.
455
AAC, 1823, vol. 1, p. 133.
456
AAC, 1823, vol. 2, p.105.
181
O exemplo de atitude de Portugal não poderia ser reproduzido pelo Império
nascente, que deveria abrir-se de maneira pacífica e condizente com os tempos liberais.
Assim pensava também o deputado Cruz Gouvêa, ainda que discordasse do projeto,
incapaz de deixar para lá um passado cuja lembrança ainda o atormentava:
Confesso, Sr. Presidente, que não posso beijar a mão que, por mais de
300 anos lançou ferros à minha pátria. Odeio, e odiarei sempre as
crueldades que enlutarão Olinda, Pernambuco, Paraíba; e olho com
horror para as que ainda sofre a desgraçada Bahia; mas não posso odiar
nossos irmãos europeus que, à maneira das vestais, guardaram nos seus
corações conosco a centelha da liberdade; ao contrário cordialmente os
amo; e mui respeitosamente o nosso Washington da America
Meridional, o imortal D. Pedro I, nosso augusto imperador
constitucional, que para mais nos obrigar aceitou o titulo de nosso
perpetuo defensor.457
Portugal, como fator de escravidão e despotismo, não deveria confundir-se com
os portugueses que se desviassem do teor da mãe-pátria, adorando e adotando a
perspectiva brasileira. Era o caso, afinal, de Pedro I.
Mas Cruz Gouvêa sentia não conseguir “beijar a mão” que lhe havia oprimido.
O que dizer, então, dos povos do Brasil? Como estes se sentiriam após a superação dos
300 anos de opressão? Qual seria, exatamente, o conteúdo específico sobre cada
“tempo”? Ou seja, quais os conteúdos específicos do “tempo antigo”, superado, e o
“tempo novo”, que abriu o Brasil dos grilhões para a felicidade? A discussão do
deputado Andrada Machado sobre a abolição das juntas de governo pode nos dar
algumas pistas para essas e outras questões.
O objetivo do projeto, apresentado na sessão em nove de maio, era, como
declarado eu seu artigo primeiro, abolir as juntas provisórias de governo, “estabelecidas
nas províncias do Império do Brasil, por decreto das cortes de Lisboa em setembro de
1821”. Seria confiado o governo das províncias a um presidente e a um conselho, o
primeiro de nomeação do imperador, sendo executor e administrador geral da província,
o segundo formado por quatro ou seis membros, a depender do tamanho da província,
com o magistrado mais condecorado e a maior patente das ordenanças da capital
fazendo parte de forma nata e os restantes dois ou quatro sendo eletivos, com eleição à
mesma maneira como se elegiam deputados à assembléia. Os conselhos se reuniriam
duas vezes por ano, em janeiro e julho, salvo urgências, e este, junto ao presidente, se
responsabilizaria por questões de fomento à agricultura, comércio e indústria; educação
457
AAC, 1823, vol. 2, p. 149.
182
da mocidade; vigília sobre estabelecimentos de caridade; exame de contas e despesas do
próprio conselho; conflitos de jurisdição e suspensão de magistrados. Tratava-se de
proposta para organização do poder local.458
O projeto entrou em discussão em 26 de maio. Carneiro de Campos, em sua fala,
afirmou estar persuadido que
os maiores males que têm afligido as províncias não procedem tanto da
forma que se deu às juntas provisórias, como da mudança súbita do
governo arbitrário para o livre; o povo que de repente passa da
escravidão à liberdade, não sabe tomar esta palavra no seu verdadeiro
sentido. (...) Disse-se que o povo era soberano, e disto entendeu-se que
cada cidade ou vila podia exercitar atribuições da soberania. Por esta
inteligência vimos com escândalo pretender-se, nesta cidade, obrigar ao
Sr. D. João VI a assinar a constituição de Espanha, sem se consultar se
era este o voto geral da nação.459
O “novo tempo”, diferentemente do “tempo antigo”, era de liberdade, não de
escravidão; era de luzes, não de despotismo. Assim considerando-se, a passagem do
antigo ao novo tempo produzia uma clivagem entre aqueles antenados às novidades do
século e aqueles ainda presos à concepção antiga, que resultava em uma clivagem entre
“ilustrados” e “povo” – não o “povo qualificado” de que fala Ilmar, duas décadas à
frente, mas um povo fundamentalmente entendido como massa da nação, porém carente
de luzes.460
A saída dos grilhões do império português seria a maior causa dos problemas nas
províncias, Uma vez que tenha se espalhado a concepção de que “estava chegada a
época da nossa regeneração”, havia-se julgado
que isso queria dizer que tudo devia ir abaixo, as leis não terem vigor,
nem os magistrados autoridade; em qualquer parte se ouvia dizer – que
me importa com o Sr. Juiz de fora; o tempo da sujeição já acabou; agora
temos constituição que quer dizer – liberdade - ; e liberdade é cada um
fazer o que bem lhe parece. Além disto, os mesmos membros das
juntas, pela maior parte, assentam que são representantes do povo, e que
podem como tais exercitar a soberania. 461
O mau entendimento da ideia de liberdade, esperado de um povo acostumado à
escravidão, provocava os problemas centrais naquele momento de ruptura. Os
conceitos, também em formulação acelerada e em rápida transformação, fugiam àqueles
458
AAC, 1823, vol. 1, p. 69-70. Para o contexto de discussão do projeto, cf. SLEMIAN, Andréa. Sob o
Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo:
Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, cap. 2.
459
AAC, 1823, vol.1, p. 167.
460
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 138.
461
AAC, 1823, vol.1, p. 167.
183
congelamentos conceituais tão necessários à fixação do governo e ao estabelecimento
de direções políticas. A disputa pela soberania apenas começava – e a Assembleia, que
buscava concentrar em si esse papel, algo deveria fazer para exercê-la em nome do
Povo 462 (disputa maior que apenas Assembleia x Imperador – outras instâncias de
exercício da soberania aparecem sugeridas na fala de Carneiro de Campos).
A regeneração, cuja realização Carneiro de Campos reafirma, não teria sido bem
compreendida, posto que, ao invés de assegurar a passagem segura do antigo sistema ao
novo, transformava-se em fator de instabilidade e insegurança; à chegada da época da
“regeneração”, julgava-se que isso significaria pôr abaixo todo o edifício – isto é,
ignorar a tradição, a experiência, enfim, a continuidade histórica em nome da novidade.
Confundia-se o conteúdo preciso da “regeneração” com o conteúdo da palavra
“revolução” – a qual não aparecia na fala, mas assombrava por comportar a
possibilidade de um significado mais próximo da ruptura. E vem a conclusão: “Destes e
outros absurdos é que eu assento que nascem todos os males que se tem sofrido nas
províncias; porque o povo, que é sempre falto de luzes, vai na boa fé do que lhe pregão
os mal intencionados que o desencaminha para seus fins particulares” 463 . A direção
disputada nas províncias causava caminhos não apenas errados, mas, no limite,
potencialmente destruidores.
A Assembleia, para Campos, estaria em situação delicada, graças à existência de
três partidos nas províncias, dois dos quais poderiam acusar o terceiro de despótico caso
a Assembleia agisse erroneamente 464. Assim, finaliza dizendo achar melhor deixar a
462
O limite dessa acepção seria exposto por Cruz Gouvea, que, ao rebater a fala de Carneiro de Campos
sobre a aclamação no Rio de Janeiro. diz: “quando vejo culpar o povo por aquele acontecimento que
produziu a desordem da praça do comércio, e dizer-se que assim obrara por se arrogar o exercício da
soberania, admira-me vê-lo elogiada até com o titulo de imaculado, por ter aclamado, o Sr. D. Pedro I,
pois neste ato fez também o que só a nação podia fazer como soberana”. Ou seja, a fragmentada
legitimidade do povo seria bem aceita quando fosse para conferir substância à persona de Dom Pedro I;
noutro, porém, seria recusada como referência para a política para além da Assembleia. AAC, 1823, p.
169.
463
AAC, 1823, vol. 1, p. 167. Essa seria a tônica da fala de Carneiro em outros momentos. Na sessão de
16 de junho, por exemplo, afirmando não estar convencido de que os males das províncias viriam da
forma dada à juntas de governo, diria que “a mudança repentina da escravidão para a liberdade, e a
inteligência errada da expressão soberania do povo, e do mesmo termo liberdade, espalhada por
indivíduos de tenções sinistras entre os povos, ou dada por estes mesmos, como noviços em doutrinas
constitucionais, têm sido, no meu entender, as causas principais das desordens que têm desassossegado as
províncias.” (Vol. 2, p. 77-78)
464
“[há] o partido europeu que não aprova a nossa independência, e que se não sobressai é porque não
pode; há o partido democrático, e há o da monarquia constitucional, que é o nosso.” AAC, 1823, vol. 1, p.
167.
184
reforma “para o tempo em que os povos estejam mais acostumados às novas
instituições, e esta assembleia tenha adquirido mais força moral”465.
Para o deputado Rodrigues de Carvalho, porém, foram as determinações de
Portugal que haviam provocado essa visão de soberania nas províncias. E usaria
exatamente o termo que esticava o potencial interpretativo das ações no período:
“revolução”. Para ele, “o tempo era de revolução, em que todos querem tudo a um
tempo”466. E mais: “Os escritores que deviam conduzir a opinião publica, explicando
qual era a essência da soberania da nação e a sua indivisibilidade, entrarão a lisonjear o
povo e em breve tempo foram tantas as soberanias quantas as províncias” 467 . Na
interpretação de Rodrigues de Carvalho, havia um claro problema de direção política:
em tempos fugidios, com significados reinterpretados e disputa entre concepções de
mundo, caberia àqueles intelectuais – os “escritores” – conduzir a “opinião pública” nos
termos de um consenso que incorporasse, sob os auspícios da Assembleia, da
monarquia constitucional e da definição de “nação” e “novo tempo” que ali se
desenhava, todas as demais interpretações produzidas na sociedade imperial à que se
fortalecia a partir da Corte468.
Para tanto, conclamava o mesmo deputado: “emendemos esta forma de governo,
que foi feita no fogo da revolução, que longe de produzir bens, tem causado males, e
que o governo de Portugal aprovou, e cuidou em conservar (...). Finalmente deixando
teorias, sigamos a pratica, a mestra dos governos; que mostra ela?” 469 O “novo tempo”
não deveria fazer tabula rasa do passado, da experiência; a dialética entre conservação e
novidade deveria ditar o ritmo das transformações apropriadas ao Império que nascia.
Tratava-se, no fundo, de analisar as causas de uma situação que, todos
concordavam, apresentava-se instável. Se era verdade, como queria o deputado Costa
Aguiar, que “em todas as revoluções (...) há causas que preparam e antecedem as
mesmas revoluções, e causas e efeitos que as acompanham, e se lhes seguem”, então
poder-se-ia afirmar, no caso do Brasil, que aquelas causas “já existiam, quero dizer o
Idem, 167. Carneiro de Campos voltaria ao assunto em outra sessão: “A mudança repentina da
escravidão para a liberdade, e a inteligência errada da expressão soberania do povo, e do mesmo termo
liberdade, espalhada por indivíduos de tenções sinistras entre os povos, ou dada por estes mesmos, como
noviços em doutrinas constitucionais, têm sido, no meu entender, as causas principais das desordens que
têm desassossegado as províncias.” AAC, 1823, vol. 2, sessão em 16 de junho, p. 77-78.
466
AAC, 1823, vol. 1, p. 177.
467
Idem, p. 177.
468
É nesse sentido que posse ser compreendida a fala de Andrada Machado, em outra ocasião: “É mister
que nos persuadamos que os governos não podem ser opostos às opiniões dos governados; governo que se
opõe à opinião conhecida do povo deixa de ser governo em breve tempo.” (Vol. 2, p. 85)
469
AAC, 1823, vol. 1, p. 177.
465
185
despotismo do governo e dos seus agentes; a corrupção geral dos costumes e mesmo
certo progresso de luzes, que de tempos a esta parte felizmente se tem difundido e
derramado com mais velocidade pelas diversas partes do Brasil.” 470 O tempo antigo se
dissolvia por um misto de arbitrariedade dos que nele dominavam (“mais desumanos,
alguns deles, que os próprios pachás da Turquia nas malfadadas províncias da
Grécia”471) e pela “corrupção geral dos costumes”; associada a essa decadência, as luzes
se difundiam “com mais velocidade” pelo Brasil, permitindo uma resposta à situação
precária; forma-se a mistura revolucionária que, inevitavelmente, traria males, cabendo
aos sujeitos conduzir as práticas de forma a minorar a situação. A sensação de
velocidade que o espraiamento das luzes sugeria, se não bem controlada, corria o risco
de exagerar-se e produzir males tão ruins quanto, ou até piores (pois corria-se o risco de
anomia social) do que aqueles que se buscava combater.
O fiel dessa balança era o “povo”, ainda não completamente banhado pelas
luzes, posto que a passagem do “tempo velho” ao “novo tempo” não se dava em
uníssono. O deputado Xavier de Carvalho, por exemplo, também criticaria o projeto de
Andrada Machado, considerando não ser ainda hora de uma lei assim. Para ele,
“Quando o povo estiver ilustrado pelo andamento dos negócios políticos, quando ele vir
todos os seus direitos garantidos na constituição, por que suspira, então será o momento
oportuno de estabelecer a forma duradoura dos governos das províncias.”472 O deputado
Alencar, também contra o projeto, afirmaria que
não são estes [do projeto] os meios de se desvanecerem as
desconfianças; só a constituição pode dissipá-las. Sem a constituição,
essa obra do nosso assíduo trabalho, da nossa boa fé, e do profundo
conhecimento que nós temos do espírito e ideias do povo e das
circunstâncias do nosso país; essa obra, digo, que sairá (como eu
espero) adaptada e amoldada aos nossos constituintes, é a primeira que
lhes devemos mandar, e é a única que desviará suas desconfianças. É
com ela que lhes mostraremos a firmeza do nosso caráter e o desvelo
que temos por não enganarmos a confiança que de nós fizeram a
principio; é finalmente só ela que fará a estabilidade de todas as cousas
brasileiras, e firmará as opiniões de todos. 473
A noção de experiência e circunstâncias é fundamental para o bom entendimento
da política. A trajetória histórica que levou a esta, e não àquela situação precisa ser bem
compreendida por aqueles que tencionam governar, ou o caminho a ser seguido traria
470
AAC, 1823, vol. 1, p. 177.
Idem, 178.
472
AAC, 1823, vol. 2, p. 71.
473
Idem, p. 75.
471
186
frutos desastrosos 474 . Tal seria a lição da História para o bom governo, tendo a
Constituição de atender a essa necessidade. É esse o conteúdo da fala do deputado
Andrade Lima, outro contrário a elementos do projeto, ao afirmar que
é uma máxima bem conhecida em política que nem sempre a melhor
instituição considerada em abstrato, é a melhor na prática. Uma lei que
fizesse a felicidade de um povo dado, faria igualmente a desgraça
daquele, cujo estado mental, e prevenções recebidas estivessem em
manifesta oposição com o espírito, e disposição da dita lei. 475
“Ser-nos-á lícito, a nós procuradores da nação, impor à mesma nação uma lei
contraria ao seu sentimento e vontade soberana?”, questionaria o deputado. 476 Seu
colega Henriques de Rezende entendia isso. Na discussão do artigo 3º 477, que definia o
presidente das províncias como executor e administrador geral da mesma, sendo de
nomeação direta do imperador e amovível ad nutum, o deputado propõe o seguinte:
“Será da nomeação do imperador, mas tirado de entre as pessoas da mesma província”.
Considera que, assim, evitaria o fato de que “os povos (...) pensariam que era um
homem de feição, mandado para torcer a opinião publica e forçá-los a receber o
despotismo que eles entendem que do Rio de Janeiro pretende estender-se a todo o
império”478 A sombra passada do despotismo assombrava as circunstâncias do tempo
presente, exigindo dos deputados capacidade para inserir elementos da nova
temporalidade num povo ainda sujeito às heranças da temporalidade antiga. Os
deputados enxergavam o fosso aberto entre si, antenados à modernidade civilizatória e
entendidos das novidades que os tempos coevos ofereciam, e “os povos do vasto
império”, ainda presos às conseqüências da nefasta herança do barbarismo resultante
Cavalcanti de Lacerda, noutra discussão sobre o mesmo projeto, não querendo entrar na “difícil e
importante questão, de qual seja a forma das administrações provinciais mais adaptável às circunstancias
peculiares do Brasil”, pois julga tal ponto superior às suas forças. (volume 1, 27 de maio, p. 180), diria
que o receito de “acertarmos com o verdadeiro remédio de tais males” não deve ser desculpa para não
agir, pois “o mesmo inconveniente existirá a todo o tempo e nós jamais saberemos quais são os governos
que mais convém ao Brasil: a experiência somente e não as teorias é que nos hão de servir de farol na
indagação desta verdade” (180-181). Sujeitos banhados pelas luzes, atentos ao farol da experiência
histórica, seriam os únicos capazes de garantir a realização do “novo tempo”, em superação ao “velho
tempo”, sem o risco de desagregação social. Igualmente, na mesma sessão, Alencar diria que “as teorias
nem sempre são praticáveis; é necessário às vezes modificá-las; e esta modificação depende sempre da
índole, localidades, e mais circunstâncias dos povos” (181).
475
AAC, 1823, vol. 2, p. 83. Continua dizendo que olha somente os povos. “Os povos deste vasto
império, Sr. Presidente, há longo tempo calcados pelo despotismo dos delegados dos monarcas, olham
com horror para tudo quanto é fabricado no segredo dos gabinetes.” Diz que essa organização de governo
seria boa “se eles [os povos] em fim não estivessem, como aqui se tem dito, tão exaltados, e em uma
desconfiança quase completa de tudo o que se faz no Rio de Janeiro.” (p. 83)
476
Idem, p. 83.
477
Artigo terceiro, que dizia: “O presidente será o executor e administrador geral da província; será da
nomeação do imperador”.
478
AAC, 1823, vol. 2, p. 84.
474
187
dos três séculos de colonização – cuja referência arriscava deslizar-se de Lisboa para o
Rio de Janeiro, que poderia ser considerado um novo lócus de produção do despotismo.
A solução? Propõe o mesmo Henrique de Resende: “É necessário, Sr. Presidente,
acostumar os povos a ver nas autoridades publicas a lei, e não os homens; obedeça-se a
lei, e não importa o individuo que a executa.”479
Carneiro de Campos sabia dessa necessidade. Para ele,
os povos conservam mui viva a lembrança do jugo pesado que
suportaram; estão ressentidos do despotismo mas não se pode negar que
alguns o foram, e tanto basta para os flagelos que destes sofreram os
fazerem minimamente desconfiados e cautelosos. Não só os nomes e
títulos, também as analogias têm uma força mágica 480
Analogias entre presente e passado poderiam ser mais fortes do que os
conteúdos específicos de cada um. Ou seja, ainda que o projeto do presente seja de outra
ordem, de outra origem, banhado pelas “luzes do século” e dos “ilustres deputados mui
liberais”, ainda assim o passado exerceria toda sua força e pressão, sob forma de
analogias de formato, que esmagariam os conteúdos específicos e poderiam estimular
revoltas. Assim, Campos reforça que a lembrança do despotismo atingirá esses povos
inevitavelmente, até porque “eles não têm as suficientes luzes para distinguir estes [os
presidentes] daqueles [os governadores] (...)” 481. A ausência das luzes impediria uma
diferenciação histórica precisa, engolindo, assim, os particularismos e esticando a
presença do passado despótico em dias entendidos como não-despóticos. Os “princípios
do século” encontravam, aí, uma barreira alterando o ritmo de seu avanço.
Noutra dimensão, porém ainda dentro dessa lógica, os “princípios do século”, ou
“do tempo”, elevavam-se à categoria de tribunal da política. Teorias, decisões, debates,
argumentos, tudo passa a submeter-se ao império das circunstâncias. Para os
constituintes, definir a vontade da nação seria atender, simultaneamente, às
circunstâncias do tempo histórico. A justificativa usada por Henriques de Rezende, na
discussão anteriormente citada do artigo 3, sobre a nomeação dos presidentes de
província pelo Imperador, era “propor alguma emenda que conciliasse o sistema atual e
os direitos do imperador com as circunstâncias do tempo, que são a maior autoridade do
mundo.”482 Sua intervenção nessa discussão – propondo que o escolhido pelo imperador
479
Idem, p. 84.
Idem, p. 87.
481
Idem, ibidem..
482
AAC, 1823, vol. 2, p. 83-84.
480
188
fosse tirado dos membros da província em questão - se pautava pela ideia de “conciliar
este decreto com as desconfianças em que estão os povos”, pois tratava-se de
uma medida que requerem as imperiosas circunstâncias do tempo:
máxime quando pelas leis antigas, segundo a minha ideia, nenhuma
pessoa de fora (ao menos para Pernambuco) podia ocupar os empregos
municipais e outros; e todavia não houve por isso rivalidades, porque as
circunstâncias do tempo assim o exigiram. 483
Henriques de Rezende, como outros, estava convencido de que “as
circunstancias do tempo têm muito império sobre nossas particulares ações e sobre a
organização das leis.” 484 Esse entendimento, que parte de uma concepção de mundo
geral, quando aplicada àquele tempo específico ganhava coloração própria. Afinal,
ainda segundo o mesmo deputado, “Não há cousa mais fácil do que confundir; e cada
um quer que as cousas sejam dirigidas segundo as teorias e imaginações que têm na
ideia”. E faz um apelo:
Senhores, metafísicas não regem o mundo: a época presente é
verdadeiramente revolucionária, e nas revoluções os princípios todos
são atropelados: o governo no estado presente é obrigado a ir levando a
barca como quer o ímpeto da corrente, apenas dirigindo o leme em
ordem a se não quebrar em algum cachopo. É necessário que o rigor dos
princípios ceda às circunstâncias: é o que temos feito, e é o que somos
obrigados a ir fazendo ainda. 485
Falava o experiente revolucionário de 1817. E diria mais. Afirma não ser de
opinião que os governos das províncias tenham tanto poder, “mas que se há de fazer?”,
pergunta. Afinal, “a época é crítica: é preciso ceder um pouco do rigor dos princípios,
por duas razões: para que o governo faça e não o povo; e para que o governo faça por
lei, e não por arbítrio, e por circunstâncias.” 486 A integração plena presente no discurso
incorporado ao oficialismo em 1822 cedia lugar, agora, a uma distinção entre “povo” e
“representantes da nação” que deveria ser resolvida em favor dos últimos, já que deixar
às mãos daqueles a condução do processo, considerando-se a época crítica, significaria
um risco de “quebrar em algum cachopo”. Se a época presente, “verdadeiramente
revolucionária”, atropelava todos os princípios metafísicos, era preciso inverter a
483
Idem, p. 86.
AAC, 1823, vol. 2, p. 119.
485
AAC, 1823, vol. 2, p. 140.
486
AAC, 1823, vol. 2, p. 141. Carneiro de Campos também cederia a essas necessidades. Diz que, a
princípio caberia ao povo a suspensão, demissão ou destituição dos membros do conselho provincial.
“Porém em política não basta atender a direitos abstratamente, muitas considerações devem entrar em
linha de conta quando se trata do seu exercício.” (p. 142)
484
189
interpretação social e partir do contexto histórico específico para a produção da direção.
O “ímpeto da corrente” determinava o posicionamento e justificava qualquer política.
Essa lógica seria fundamental para a construção futura de posicionamentos que apenas
aparentemente apareciam em contradição com o discurso, como no caso da
escravidão.487 O deputado Ribeiro de Andrada sintetizaria essa sensação, defendendo-se
de acusações lançadas por um jornal, desta forma: “eu sei que estamos na época
desgraçada das paixões, e que nesta se transforma em crime a virtude, e a virtude em
crime”488
A época crítica pautava a direção política; as necessidades do “novo tempo”
ditavam as decisões dos homens do “velho tempo” que precisavam, agora, conduzir a
barca no ritmo da corrente, torcendo para não encontrar o cachopo que destruiria toda a
embarcação. Esses homens do “velho tempo”, frente à exigência de agirem no “tempo
novo”, banhados pelas luzes do século, tornavam-se os propugnadores da construção do
novo Império na América ao mesmo tempo em que conferiam um sentido e um
significado para seu passado, seu presente e seu futuro. Isso pode ser mostrado na forma
pela qual os debates levaram em consideração a simples questão: se a passagem do
“tempo velho” ao “tempo novo” foi fundamental para sincronizar o Brasil com os
“países cultos” europeus, afastando-o dos espaços despóticos e dos anos de opressão e
escravidão, então quem, de fato, foi responsável por essa passagem? Quem tecia os fios
da mudança do tempo, que também eram os fios da elaboração de uma consciência
nacional e de um Estado territorial que se pretendia autoridade central sobre os
múltiplos espaços herdados da colonização?
4.3) As heranças do tempo antigo na nova nação
Nesse ponto, os debates em 1823 seguiram a tendência entre apoiadores e
opositores do Imperador e da Assembleia no que se refere à questão da
representatividade e da soberania nacionais. Para Andréa Slemian, em relação à
Constituinte,
duas posições distintas saltavam aos olhos: a dos que valorizavam o
papel dos representantes e da Assembleia (Legislativo) na elaboração
do pacto, pois não o consideravam ainda constituído; e a dos que
487
488
Conforme veremos no capítulo 5.
AAC, 1823, vol. 5, p.30.
190
reconheciam a autoridade do imperador de antemão, pois que assim já
teria sido reconhecido pela “nação” (...).489
A disputa por saber se a nação depositara sua vontade na Assembleia ou se no
Imperador, ou se haveria um equilíbrio marcado por maior protagonismo deste ou
daquela, seria uma das tônicas da discussão na Constituinte ao longo daqueles meses de
1823, envolvendo, inclusive, a disputa narrativa pelas transformações recentes por que
passava o Brasil. Aqueles que defendiam a persona de Dom Pedro como condutor do
processo de Independência e aqueles que depositavam na Assembleia esse caminho
confrontaram-se durante todo o ano legislativo, resultando os conflitos no fechamento
da Constituinte pelo próprio Imperador em novembro.
Como vimos, a tendência a se concentrar na persona de Dom Pedro a síntese da
vontade nacional tornava o Imperador protagonista das transformações temporais e,
portanto, principal agente da direção sobre os rumos que o Brasil deveria seguir para
continuar no caminho de sua prosperidade. Tal perspectiva, construída e fortalecida
desde as disputas de 1821-1822, chegava agora à Assembleia na fala de José Bonifácio,
no discurso ao Imperador por ocasião da abertura dos trabalhos:
Senhor! Estava reservado a Vossa Majestade Imperial reunir debaixo de
um centro de unidade, e de força o desmembrado e nutante reino do
Brasil. Estava reservado à sabedoria, e ao heroísmo de Vossa Majestade
destruir as intrigas, e perfídias dos nossos encarniçados inimigos tanto
internos como externos; e criar com a palavra – Eu fico – um novo
império; tirar as luzes das trevas, a ordem do caos, e a força e a energia,
da irresolução, e do egoísmo individual.490
A tônica do ano anterior, destacando Dom Pedro como a síntese de um
movimento nacional que se reuniria ao redor dele – ou seja, a figura de Dom Pedro
como um “organizador” da direção nacional – ganhava novos realces. O agora
Imperador não era apenas expressão da “vontade nacional”, mas o ator central/produtor
dessa própria vontade. O “desmembrado e nutante reino do Brasil”, sem a sabedoria e o
489
SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil
(1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, p. 92. Segundo Barman, seguindo
interpretação do enviado austríaco Von Mareschal, haviam emergido na Constituinte, a partir de maio,
três blocos, ou partidos: um do Ministério, ligado aos Andradas, buscando um “modelo inglês” de
Constituição, um partido médio, oposição ao Ministério por oposição aos Andrada e mirando a França
como ideal, e um “partido democrático”, composto por menos de uma dúzia de membros barulhentos, que
permaneciam como uma minoria até então. Para Barman, os últimos haviam preenchido o vazio deixado
pelos “radicais” desde a bonifácia, simpatizando, no limite, com o republicanismo. Cf. BARMAN,
BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University Press,
1988, p. 110-111. No centro desses debates, a questão do Imperador e da Assembleia ocupava posição
central.
490
AAC, 1823, vol. 1, p. 36-37.
191
heroísmo de Dom Pedro, incapaz seria de romper as trevas, o caos, a irresolução e o
individualismo egoísta que até então o caracterizavam. A força dos laços a construir a
identidade nacional dependia, na fala de Bonifácio, diretamente do Imperador. A
passagem do “tempo antigo” ao “tempo novo”, de luzes, ordem, energia e força,
aparecia como possível pela ação firme de Dom Pedro I, cuja manifestação concreta
afirmava-se no Fico como marcação daquela passagem. Recuava-se mais ainda o
começo do Império do Brasil, minimizando-se as tensões que levaram à convocação da
Constituinte (no lugar do Conselho de Procuradores) e, posteriormente, à “bonifácia”.
Recuava-se a marcação do novo império, do “tempo novo”, para um momento então
totalmente identificado com o apelo pleno a Dom Pedro, aquele último no qual sua
figura destacara-se com força mais completa, sem divisões de protagonismo 491.
Mais: continua Bonifácio afirmando que
nós, os legítimos representantes da nação brasileira, livre e
independente, havemos de ter sempre ante os olhos, na gloriosa carreira
que começamos; o bem duradouro da nossa pátria comum, das nossas
províncias, das nossas famílias, e de cada cidadão em particular: certo,
não nos podemos esquecer jamais que a Vossa Majestade devemos a
brilhante carreira, já tão gloriosamente encetada, na qual sem dúvida
espero que marcharemos com prudência, sabedoria e firmeza, para
felicidade da pátria, honra do trono, imortalidade no nome brasileiro, e
admiração das outras nações civilizadas, que nos observam e
contemplam492
Além da já contumaz preocupação demonstrada com a necessidade de marcharse com prudência, seguindo firme o caminho dos que marcharam antes, e da expectativa
de inserção do Império no rol das “nações civilizadas”, a partir da perspectiva de uma
admiração a ser despertada pela observação atenta entre “iguais” (na lógica daquela
inversão caracterizada por Ilmar Mattos como máscara de uma dependência que se
afirmaria com mais força décadas à frente, no momento em que a Inglaterra assumiria a
antiga face metropolitana da “moeda colonial” 493 ), podemos perceber na fala de
Bonifácio um escalonamento que associa ações dos “legítimos representantes na nação
O imperador, em resposta, após afirmar que a seguir-se o rumo de Portugal, “se converteria para nós
em escravidão”, indica que o que quebrou isso foram os “heroicos esforços que por meio de representação
fizeram primeiro que todos, a junta de governo de S. Paulo, depois a câmara desta capital, e após destas,
todas as mais juntas de governos e camaras, implorando a minha ficada.” (Sessão de 3 de maio, p. 38). Os
destinos da nação, conduzidos pela ação heróica de Dom Pedro, são também produto do esforço da
própria nação em fortalecer a condução do imperador. O povo, representado pelas juntas e câmaras,
articula-se a Dom Pedro num momento ainda em que a representação da soberania é um campo aberto a
interpretações variadas.
492
AAC, 1823, vol. 1, p. 37.
493
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 21-29.
491
192
brasileira” a uma sequência que vai da “pátria comum” a “cada cidadão em particular”,
passando pelas “nossas províncias” e “nossas famílias”; nação imaginada que coordena
todos os elos espalhados pelo território do Império à mesma marcha histórica conduzida
pelo Imperador. Em outras palavras, a conexão indicada submete todos os elementos do
Império brasileiro ao ritmo do desenvolvimento histórico identificado a partir do olhar
do velho estadista do império luso-brasileiro (desenvolvimento que, de novo, dá lugar
essencial à figura de Dom Pedro). Uma releitura de suas bases para a delegação paulista
que se dirigiu ao Congresso de Lisboa, quando a preocupação central era com a relação
hierárquica entre nação portuguesa e província, passando pelo reino do Brasil,
destacando-se, como conexão entre essas realidades, o espaço do governo. 494
É essa específica relação dialética entre nação e governo que confere ao
nascimento do Império do Brasil ares tão destacados. A interpretação na resposta à Fala
do Trono, por exemplo, feita pelo presidente da Assembleia, retoma a questão da
peculiaridade do Brasil, destacando que “a novidade deste mesmo espetáculo soberano,
e majestoso, pela primeira vez ostentado no Brasil, e raras vezes visto no resto do
mundo”, era possível não pela pompa, nem pelo “entusiasmo patriótico de uma nação
inteira, que despertando da miséria e do opróbrio, em que a tinham agrilhoado, grita
pela liberdade, reclama os seus direitos, e exige um governo justo, e digno de
homens.” 495 Pompa e entusiasmo no levante de uma nação oprimida não eram
acontecimentos inéditos em momentos assim. Afinal, diria, “não há uma nação que não
possa apontar alguns destes acontecimentos, como épocas notáveis da sua historia, e
que são realmente o resultado, e o desenvolvimento das paixões humanas no estado
social, efeitos espontâneos da natureza moral do homem.” Como visto anteriormente, na
lógica da história como história da liberdade, fortemente presente aqui, os levantes
como o despotismo eram decorrências naturais da opressão sobre o estado natural da
humanidade.
A questão era outra. E continua o presidente: normalmente esses acontecimentos
andam separados, raras vezes se ajustando para se combinarem e “produzirem um só
fenômeno, que identifique a grandeza, e a gloria de um príncipe com a justa liberdade;
Nas “Lembranças e Apontamentos”, de autoria de Bonifácio, as recomendações começam pelo que diz
respeito à “organização de todo o Império Lusitano”, passando depois ao que se refere ao “Reino do
Brasil” e acabando “pelos que tocam a esta Província em particular [São Paulo]”. Cf. BONIFÁCIO, José.
Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São
Paulo. Rio de Janeiro: Typhographia Nacional, 1821, p. 5
495
AAC, 1823, vol. 1, p. 42.
494
193
com a segurança e felicidade de um povo.” 496 O Brasil não apenas atravessava os
processos históricos de modo semelhante a outras nações e épocas, mas produzia uma
novidade, aos olhos do Presidente, que consistia exatamente na fórmula que
encontramos anteriormente no Reverbero e, anos depois, ainda marcaria o movimento
do Regresso: “a maior soma de liberdade com maior e mais perfeita segurança” 497. Essa
combinação, tônica saquarema no momento de exercício de sua direção, tornava-se
meta a ser alcançada no momento mesmo de fundação do Império, quando a
combinação entre potência nacional e ação governativa poderiam manter um equilíbrio
que aparecia aos contemporâneos como um “fenômeno”. Fenômeno que produzia, nas
palavras de Andrada Machado, não uma “liberdade espúria, ou antes licença, que
marcha sempre ataviada com as roupas ensanguentadas da discórdia”, mas, sim, uma
verdadeira liberdade, filha de uma regeneração, que pesa com prudência
o bem, e o mal das inovações políticas, que não sacrifica a geração
presente à futura e menos abandona o interesse real do individuo, que
sente ao presumpto [sic] de coleções metafísicas, que estão fora da
esfera das sensações. 498
O que antes aparecia como prescrição no Reverbero e na interpretação até 1822
ganha agora ares de realização histórica. A presença de Dom Pedro possibilitara ao
Brasil superar os desvios da trajetória e escapar dos futuros que se apresentavam no
momento em que, dentro da lógica da história da liberdade, o levante inexorável
avançara sobre a opressão portuguesa. O Brasil escapara do pior. Um “grande fenômeno
político” que, voltando às palavras do Presidente,
nunca se pode realizar na infância dos povos bárbaros, nem na
decadência dos povos corrompidos, e desmoralizados; este fenômeno
raro só o tem podido apresentar à contemplação do mundo aquelas
nações ditosas, que se tem perfeitamente constituído, e civilizado; e é
este o mesmo grande fenômeno, que agora temos diante dos olhos. 499
O Brasil realizara algo inédito, e esse ineditismo fora possível apenas porque o
país encontrava-se na perfeita constituição nacional e civilizacional. A descrição do
fenômeno recente passado projetava as intenções do futuro. O presente era assegurado
discursivamente pela ordenação inevitável ao país que combinava ação do Imperador
496
Idem, p. 42.
MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit., p. 160.
498
AAC, 1823, vol. 1, p. 68.
499
AAC, 1823, vol. 1, p. 42. E completaria: “Oxalá que nas revoluções dos anos, e dos séculos sempre cá
nos traga um aumento progressivo da gloria, e das prosperidades que esperamos” (p. 42). Afinal, este
seria um dia a ser abençoado pela mais “remota posteridade” (p. 43).
497
194
com condições objetivas necessárias. Superado o “velho Portugal” – este, sim,
interpretado como corrompido – e compreendido o Brasil como superação da barbárie,
o futuro se abria para a construção do Império que faria inveja às demais nações do
mundo civilizado.
Agora se tem o “mesmo espírito, respirando uma só vontade e formando um só
corpo vivo e vigoroso”. O Brasil, no auge de seu desenvolvimento histórico, na
maturidade de sua formação, rompendo os grilhões e apresentando-se pleno de vigor ao
mundo, encontrava-se na época exata para realizar plenamente seu potencial.
Interpretação que pode ser vista na discussão do já mencionado projeto sobre
naturalização proposto originalmente por Muniz Tavares em sessão de 22 de maio. Nas
palavras do deputado Alencar,
O que éramos nós ainda no principio do ano passado? Todos
formávamos uma sociedade, a que se chamava nação portuguesa: todos
éramos membros dessa família, todos gozávamos dos direitos de
cidadão português. Que sucedeu depois? Os membros dessa mesma
família, que habitavam esta parte da nação, chamada Brasil, usando dos
direitos inalienáveis e imprescritíveis que têm os povos de se
declararem independentes, quando chegam ao estado de virilidade,
conhecendo ter chegado a época dessa virilidade, e que já não
precisavam de tutor; reconhecendo os recursos extraordinários que
tinham dentro de si para sustentar a sua independência, e agravados
finalmente das Cortes de Portugal, que nada menos queriam do que
escravizá-los, romperão os laços sociais que os união a Portugal,
proclamarão sua independência, e formarão um novo pacto, uma nova
sociedade e uma nova família, a que chamarão nação brasileira; (...). 500
O Brasil, como parcela original de uma família única que envolvia várias partes
do mundo – a nação portuguesa –, desenvolvendo-se ao longo dos séculos de
colonização, atingira a maturidade e, seguindo o destino dos povos que assim
caminham, uma vez alcançada a “época da virilidade”, passou a dispensar tutoria e,
graças ao gatilho das Cortes opressivas, rompera os laços que o ligavam a Portugal e
fundara um novo pacto: a nação brasileira. A mutação nas formas de identidade
nacional, constante nos movimentos americanos da passagem do setecentos para o
oitocentos, era um dos motes a exigir uma interpretação histórica para aqueles anos de
transição501. Assim diria Carneiro de Campos na mesma discussão, afirmando que
500
AAC, 1823, vol. 2, p. 103-104. Rodrigues de Carvalho concorda mais à frente: A nação até então [a
independência] compunha-se do reino do Brasil, e dos da Europa, era uma só; separou-se em duas e cada
um seguiu a sorte daquela parte a que se uniu.” (p. 109-110).
501
Cf. a discussão já feita a partir de JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico
(ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). MOTA, Carlos G.
195
O Brasil era um reino que formava uma parte integrante da nação
portuguesa. Todos os indivíduos que compunham aquela nação eram
cidadãos portugueses, embora fossem nascidos em Portugal, suas ilhas
adjacentes, ou em as suas possessões da África e Ásia, ou neste nosso
vasto e rico país. O nome que então tínhamos de brasileiros não
significava como hoje uma qualidade na ordem política, indicava
somente o lugar do nascimento; assim se chamam beirões,
transmontanos, algarvios etc., os nascidos nas províncias da Beira, Trasos-Montes ou reino do Algarve, sendo aliás todos estes, como nós
éramos, cidadãos portuguezes.502
O “ser brasileiro” passa de status geográfico para identitário com o processo de
independência, na lógica apresentada pelo deputado. Dessa forma, diria ele,
Deixamos de ser portugueses e passamos a ser brasileiros, desde que
pela insurreição do Brasil se dissolveu o antigo pacto social que nos
ligava à monarquia portuguesa, e proclamamos a nossa independência,
constituindo-nos em uma nova nação, distinta e separada absolutamente
da portuguesa por um novo pacto social.503
A insurreição, processo considerado natural no desenvolvimento das nações,
provocara a dissolução dos velhos pactos e o estabelecimento de um novo. “Nesta
associação política não entrarão só os que nascerão no Brasil; ela compreendeu todos os
que eram membros da antiga nação, residentes neste país, ou fossem nele nascidos ou na
Europa”. Era mais do que uma questão geográfica: era uma questão de adesão racional
ao novo pacto, ou uma perspectiva liberal do conceito de nação.504
Esse novo pacto pressupunha relacionar-se com a herança da antiga nação
portuguesa – o que implicaria também relacionar-se com as heranças do “velho tempo”.
Aqui a questão se complexificava: por um lado, a lembrança do despotismo assombrava
os adeptos das luzes do século, cuja expansão necessariamente significava a dissolução
das velhas estruturas; por outro lado, a herança portuguesa era garantia de inserção no
clube das “nações cultas”, nivelando o Império ao corte das nações tidas por civilizadas.
Um projeto do deputado Pereira da Cunha, apresentado na sessão de 5 de maio,
vai nessa direção. Considerando que a nação brasileira se achava “felizmente
representada nesta soberana assembléia para organizar uma constituição”, com vistas a
se obter “o desejado fim da nossa independência”, Cunha apontava similitudes entre o
processo brasileiro e outros: “separados nós da monarquia a que pertencíamos, nos
(org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000, p. 127175.
502
AAC, 1823, vol. 2, p. 121.
503
Idem.
504
HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004,
cap. 1.
196
ficou, com os costumes e com a linguagem, a mesma legislação: igual sorte aconteceu a
Portugal quando se desmembrou da Espanha no século undécimo.” 505 Nessa ocasião
mencionada, sobrepuseram-se leis e se acumularam legislações produzidas a partir de
então. “Por isso, limito-me a lembrar que as diversas épocas pelas quais temos passado,
variando em suas circunstâncias, exigem imperiosamente alguma medida que regule a
legislação, enquanto se não conclui a nossa constituição, e se não forma um código civil
de que tanto necessitamos.”506
Da mesma maneira, o desmembramento do Brasil de Portugal, situado a 12 de
outubro na fala do deputado, quando da aclamação de Pedro I, foi marcado pela
sobreposição de leis vindas de diversas fontes de autoridade, fosse Dom João VI,
fossem as Cortes portuguesas, fosse a legislação prévia portuguesa. Como forma de
resolver essa questão, Cunha propunha lei que previa o cumprimento da legislação
prévia, desde que chancelada pelo Imperador.507
Cunha argumentava que,
assumindo a nação brasileira sua soberania, ficou conservando as
mesmas leis políticas e civis que a governavam, até que se
consumassem nossos trabalhos, aos quais nos prestamos com o fervor e
assiduidade que exige nossa obrigação, e patriotismo; mas esse
consentimento tácito da nação, devia ser explicitamente declarado por
esta augusta assembleia, a quem está cometido o alto exercício de
legislar. Esta tem sido a pratica das nações; que mudando de forma de
governo, ou de dinastia, têm autorizado a legislação anterior, em quanto
novas leis adaptadas ás suas circunstancias, não formão o complexo da
jurisprudência pátria.508
A herança portuguesa aparecia como necessidade para o “bom legislar”, visto
que se não pretendia inaugurar uma nação do nada, tampouco romper definitivamente
ou abruptamente com o passado – ainda que esse passado pudesse ser qualificado, na
retórica interpretativa mais geral, na síntese dos “três séculos de opressão”. O Brasil que
não rompia plenamente com seu passado era uma nação filha desse passado, nele se
ancorando para mostrar que, apesar de ainda ser nova, não se deveria apresentar como
nada menos do que inserida na tradição, garantia de ser civilizada.
Esta era a preocupação de Maciel da Costa quando, pedindo a palavra, expõe na
Constituinte aquilo que sobressaltou o seu coração “logo que tive ainda na Europa a
notícia da instalação desta assembléia”. De acordo com o deputado, havia “o receio de
505
AAC, 1823, vol. 1, p. 46.
Idem, ibidem.
507
Idem, p. 47.
508
AAC, 1823, vol. 1, p.63.
506
197
que ela, não traçando a esfera dentro da qual fossem irremissivelmente circunscritos
seus trabalhos, caísse nos tropeços e embaraços em que caíram as cortes de Portugal, e
foram a causa original de sua perda.” Para ele, tais tropeços e embaraços referiam-se a
um “furor de legislar [que] arrastou-as a mexer em todas as instituições”. O resultado
disso “foi o que se devia esperar: em pouco tempo, ninguém se entendia; não
apareceram os frutos ansiosamente desejados pela nação, o descontentamento foi geral,
e o edifício foi à terra.”509 O “furor legislativo” da Constituinte apagava a tradição de
certas instituições que, não obstante o pacto nacional da Independência, não deveriam
ser mexidas. Esse furor poderia avançar sobre elementos que deveriam ser mantidos
inalterados, haja vista que já constituíam parte significativa do edifício da nação. A
saída para a manutenção sadia desse edifício, evitando sua ruína, seria a percepção de
que nem tudo poderia ser alvo da política da Assembleia, não obstante alguns
defendessem que a ela caberia a plena representação da nação.510
O discurso o faria ser acusado pelo deputado Montezuma, de acordo com
registro do taquígrafo, de avançar “proposições anárquicas e subversivas”. Responde
afirmando que “se minha proposição é anárquica, protesto que é por erro de
entendimento e não da vontade: sou incapaz de professar e menos de proclamar, com
conhecimento de causa, princípios anárquica”. E arremata com outro discurso,
reafirmando
nós não somos uma nação que se constitui a primeira vez; éramos já um
povo com leis e governo; nada mais fizemos do que declarar que nos
separávamos do reino de Portugal, e elevar ao trono particular do Brasil
o herdeiro de toda a monarquia. Nesta elevação ficou Sua Majestade
investido do poder soberano para governar-nos como nos governava até
então, salvo a sujeitar-se às mudanças que o povo mostrou que desejara,
mudanças que se marcariam na constituição política que seus
representantes irão fazer. Não fez pois o povo brasileiro o que fizeram
os jacobinos em Portugal, que declararão o Sr. D. João VI despojado da
realeza para legislarem e governarem eles sós, e quando se virão
embaraçados com a sua inopinada presença naquele reino, apenas
(porque não podiam mais) o constituirão executor espúrio das suas
ordens, sem nenhum arbítrio no andamento do governo, o que foi em
grande parte causa das desordens que recrescerão e excitarão um
descontentamento geral. Felizmente não procedeu assim o povo
brasileiro, e Sua Majestade Imperial tem governado e continua a
governar no mesmo pé em que se achava até que a assembleia marque
509
AAC, 1823, vol. 4, p. 54.
A crítica que Maciel da Costa faz ao “furor legislativo” a favor da manutenção de certas instituições se
coadunará perfeitamente com sua postura a respeito do tráfico negreiro e da escravidão, como veremos no
último capítulo.
510
198
por leis fundamentais as regras de conduta que os monarcas brasileiros
devem seguir. Não vejo onde está aqui anarquia. 511
Não havia qualquer indício de anarquia em reafirmar que o Brasil não se
fundava do nada, mas a partir de uma herança que deveria ser filtrada, não anulada.
Novamente, a garantia de civilização ao Brasil recém-nascido como Estado
independente era a pregação da continuidade histórica com o Brasil português. A síntese
despótica dos “três séculos de opressão”, valiosa como articuladora de uma experiência
histórica negativa que justificava a separação em 1821-1822, agora começava a perder
sua força em nome da busca por outra articulação dessa experiência temporal com o
passado português: a valorização dos instrumentos de manutenção do vínculo
civilizatório, único relevante após o término dos vínculos econômico e político. Era
uma questão relativa às heranças do Império, que se relacionava também a uma
perspectiva de governabilidade. Assim é que, por exemplo, a proposta do deputado
Maia, em 5 de maio, trazendo à discussão alguns apontamentos para uma proclamação
da Assembleia aos povos do Brasil, toca na questão. 512 E, mais à frente, na sessão de 11
de agosto, Pereira da Cunha, ao pedir licença ao presidente para ler um projeto de
proclamação aos povos elaborado pela comissão de constituição, faz uma narrativa
sobre os eventos recentes do Brasil conectando-os à trajetória histórica de Portugal.513
Começa falando da resolução dos portugueses de dar nova forma à monarquia, com
constituição sábia e liberal. Narra, em seguida, os acontecimentos que levaram à
independência, dando um sentido à história recente brasileira.
Nessa narrativa, Portugal surge como promotor de ações contra o Brasil eivadas
de “orgulho e perversidade”. Este, por sua vez, surge como entidade já existente desde a
descoberta, devendo responder ao mal tratamento de Lisboa com uma decisão: se queria
511
AAC, 1823, vol. 4, p. 55.
A proclamação, pedida por alguns deputados como uma espécie de prestação de contas de seus
trabalhos aos cidadãos, narrava os eventos recentes desde junho do ano anterior, quando o Brasil, desde a
convocação da Constituinte, mudara “desde os fundamentos até a perspectiva” e passara a decorar o seu
frontispício com o “duradouro rótulo da independência”, surgindo desligado dos laços que, “debaixo do
falaz verniz de uma fraternal amizade, de uma reciprocidade, e igualdade perfeita de interesses,
encobriam o peso da opressão e violência”. Ao invés do despotismo, surgia o Brasil nos apontamentos
como revestido de “uma mui diferente muito mais sublimada categoria (...) pela voz uníssona do povo”:
uma nação “grande, livre e independente”. Reafirmado o argumento que se desenvolvia desde 1822,
como visto, passavam os apontamentos à parte seguinte, na qual mostrava que, “enquanto não pode
concluir-se a importante obra da nossa constituição política; enquanto a assembléia legislativa não pode
aperfeiçoas um código; nem ainda avulsamente promulgar todas as leis, que são indispensáveis para o
bem regulado regime da pública administração nos seus diversos ramos, declara em seu inteiro vigor
todas as leis atualmente existentes, ou sejam as do Sr. D. João VI, e seus augustos antecessores, ou sejam
as das cortes de Portugal, que mereceram a sanção de Sua Majestade Imperial (...)”. Cf. AAC, 1823, vol.
1, p. 43
513
AAC, 1823, vol. 4, p. 58-61.
512
199
continuar Reino, ou passar novamente a Colônia; se ser livre e comandar-se a si próprio,
ou receber as leis de “mão inimiga”. Podemos observar como a Assembleia,
incorporando as narrativas presentes desde 1822 em periódicos como o Reverbero,
acabar por dar acabamento à versão definitiva da narrativa das causas que levaram à
Independência.
O ponto de partida da emancipação, por sua vez, é indicado já no 9 de janeiro de
1822, com o Fico; “dia para sempre fausto e memorável que fixa o momento feliz da
fundação deste império, e que será abençoado pelos nossos vindouros como a pedra
angular do majestoso edifício da nossa independência.” 514 Nesse sentido, o papel de
Pedro I é destacado: expulsou tropas, defendeu o país, convocou, sob pedidos dos
povos, a constituinte e foi, assim, agraciado com o “glorioso titulo de vosso defensor
perpetuo”. Assim,
reconheceu a nação brasileira, que reassumindo seus mais caros e
imprescritíveis direitos podia praticar os mesmos atos de soberania
como os velhos portugueses tinham feito quando em 1139 aclamaram
rei de Portugal a D. Afonso Henriques, e quando em 1385 elevarão a D.
João I ao trono lusitano e em 1640 a D. João IV quebrados os ferros da
tirania espanhola. 515
Assim como no Reverbero, novamente podemos observar datas consideradas
marcantes do passado português sendo trazidas para fortalecer a lógica da eterna luta da
liberdade contra a opressão. 1640, em especial, marca presença mais uma vez para
fortalecer o paralelo com uma situação tida como semelhante e para justificar razões de
rompimento: Portugal já o fizera, e era de seu direito fazê-lo; o Brasil assumia o seu
próprio destino como terra destinada também a ser livre. A ideia de que esses direitos
imprescritíveis foram reassumidos é, portanto, fundamental. Não era criação do novo,
era conexão com o passado.
E é Dom Pedro quem é alçado a motor central para essas transformações, já que
se dedicara a sacrifícios para “preservar o belo país que habitamos dos estragos e
desolação de que o ameaçavam os bárbaros da Lusitânia”, sendo justamente
reconhecido em sua bravura pelo povo do Brasil, que lhe concedera, por “uníssona
aclamação”, a coroa do Império. 516 A construção da narrativa da Independência, agora
proclamada pela Assembleia de representantes das províncias do Brasil, atrelava em
514
Idem, p. 59.
Idem, ibidem.
516
Idem, ibidem.
515
200
definitivo a imagem do Império à imagem de Dom Pedro. 517 O mesmo tipo de
argumentação valeria para quaisquer projetos que não se coadunassem com a fórmula
da monarquia constitucional centralizada – que também se atrelava à narrativa da
Independência na fórmula que, como vimos, atribuía a ela a possibilidade de alcance da
liberdade e da civilização sem os riscos da anarquia.
4.4) Os marcos da nação brasileira:
Toda essa discussão passava também pela disputa e definição dos marcos que
pudessem servir de suporte para lembranças e celebrações dos momentos de passagem.
A questão das datas comemorativas, que atravessaria o Império ao longo do século
XIX518, aparecia com força em 1823 tanto por se relacionar com os agentes centrais do
processo de ruptura – deslocando a ênfase, de acordo com o dia a ser celebrado, de Dom
Pedro à Assembleia –, quanto por se referir com precisão ao momento exato em que o
Brasil deixara de ser porção do Império Português para tornar-se unidade autônoma.
Tratava-se, em suma, de indicar o real nascimento do Brasil Independente e pôr em
destaque o seu verdadeiro parteiro. No momento em questão, de início da construção de
interpretações para o tempo que se inaugurava, esse elemento tornava-se essencial. Era
necessário marcar não apenas os “dias distintos” que celebravam o presente, mas
também as marcas do passado recente e distante.
Tomemos, por exemplo, a escolha do dia 3 de maio para início dos trabalhos
legislativos, por já ser considerado “dia distinto – considerava-se tal data como a do
descobrimento do Brasil 519 . Em sessão de 9 de junho, em deputação enviada ao
517
Sobre esse ponto, é interessante notar o contraste com posicionamentos a respeito da fala do trono do
Imperador, que prometera jurar a constituição se fosse digna dele próprio e do país. Alguns deputados se
colocaram contrários a essa fala, afirmando, inclusive, que, desejasse Dom Pedro, poderia abrir mão de
participação no pacto caso não concordasse com a Carta a ser produzida pelos deputados. Sobre a
questão, cf. também a análise de SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade
nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, p. 87100.
518
A esse respeito, cf. KRAAY, Hendrik. A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831. In: Almanack
Braziliense. São Paulo. n. 11, mai/2000, p. 53-61; BASILE, Marcelo. Festas cívicas na Corte regencial.
In: Vária História. vol. 22, n. 36. Belo Horizonte, jul/dez 2006, p. 494-516; KRAAY, Hendrik. “Sejamos
brasileiros no dia da nossa nacionalidade”: comemorações da Independência no Rio de Janeiro, 18401864. In: Topoi. v. 8. n. 14. jan/jun 2007, p. 9-36; LYRA, Maria de Lourdes Viana. Memória da
Independência: marcos e representações simbólicas. In: Revista Brasileira de História. v. 15, n. 29. São
Paulo, 1995, p. 174-206; OLIVEIRA, Cecília Salles. O espetáculo do Ipiranga: reflexões preliminares
sobre o imaginário da Independência. In: Anais do Museu Paulista. v. 3. São Paulo, jan/dez 1995, p. 195208.
519
A questão do 3 de maio perduraria século XIX adentro, embora Varnhagen, na sua obra, afirme o dia
22 de abril como aquele em que, “quando se achava com mais de quarenta dias de viagem”, avistou a
201
Imperador para felicitações pelo 3 de junho, discurso lido pelo capelão-mor, membro da
deputação, afirma que
Se a instalação da primeira assemblea geral constituinte e legislativa do
Brasil é o sucesso mais glorioso da nossa história não é muito menos
relevante aquele primitivo ato soberano e generoso, que convocou esta
mesma assembléia dos legítimos representantes do povo brasileiro; e se
o dia 3 de maio do presente ano há de fazer uma época assinada nos
fastos do Brasil, também nunca passará sem louvor, e sem aplauso o dia
3 de junho do ano pretérito, que viu aparecer o decreto, que imortalizou
a V. M. Imperial, e que nos deu a todos as mais doces esperanças da
tranqüilidade, e da união entre as províncias, da maior força, e
prosperidade para todo o Império.520
O discurso, não obstante dirija-se a Dom Pedro em felicitações pela
proclamação do decreto de convocação da Constituinte, reproduz a tensão interpretativa
entre os agentes do processo de ruptura e inauguração do Brasil independente. Embora
aproxime o 3 de maio do 3 de junho, considera-se aquele o “sucesso mais glorioso da
nossa história”, enquanto o segundo apenas “não é muito menos relevante” – “muito
menos”, e não “menos”. O 3 de maio “há de fazer uma época” nos “fastos do Brasil”: é
data inaugural e resplandecerá no futuro dos cronistas e historiadores. O 3 de junho,
contudo, “nunca passará sem louvor”, com uma lembrança, com uma boa memória, não
“sem aplauso”. As felicitações produzem uma hierarquia: o 3 de junho é louvável
porque levou ao 3 de maio, e não por ser, simplesmente, uma data da Independência. O
3 de junho, de certa forma, subordina-se ao maior esplendor do 3 de maio, a reunião dos
“legítimos representantes do povo brasileiro” sendo o verdadeiro ato inaugural dos
fastos do Brasil futuro, enquanto o 3 de junho, de iniciativa do Imperador, garantia seu
brilho como parte integrante da data maior.
“O celestial decreto de 3 de junho de 1822”, continua o discurso,
foi como a aurora meiga e risonha, que despontou sobre nossos
horizontes melancólicos e abafados, e afugentou as trevas, as incertezas
e as ansiedades de um futuro que nos ameaçava medonho, e
sanguinolento: foi como o astro sereno, que depois de longa, escura
tempestade resplandece nos espaços celestes, e aponta o rumo, e dá os
elementos do cálculo, que pode levar a salvamento a nau do Estado por
entre o furor das paixões e través da confusão das opiniões contrárias. 521
“terra desconhecida”. Cf.História Geral do Brasil, tomo.1, 1 edição, Madrid, 1854. p. 13. Ainda segundo
o autor, aos 3 de maio Cabral já havia se feito “de vela para o Oriente” (p.18).
520
AAC, 1823, vol. 2, p. 35-36.
521
Idem, p. 36.
202
A convocação da Constituinte rompia com as incertezas dos rápidos anos 18211822, dando um direcionamento às angústias que dominavam os intérpretes daquele
momento. Novamente percebemos a conexão entre a formação da monarquia
constitucional e a boa condução da trajetória futura, afastando-se o “futuro que nos
ameaçava medonho e sanguinolento”, permitindo superar-se o “furor das paixões” e
guiar seguramente a nau do Estado após a “longa escura tempestade”. Conectando-se o
segundo trecho ao primeiro, podemos acrescentar, então, mais um elemento: a
monarquia constitucional aparecia como redentora do futuro na medida em que permitia
também o avanço da representação legislativa. Dom Pedro aparecia mais como um
canal ao futuro do que como o futuro em si.
O discurso continuava considerando o 3 de junho como “primeiro movimento
para a sua própria existência”, lançando-se a “primeira semente para a regeneração
política dos povos”, que agora conferiam à Assembleia autorização para empreender os
trabalhos de sua alçada e do seu desenho. E encerra fazendo a outra conexão: graças a
tal ato, o Brasil “não tornaria a ser jamais colônia de uns, nem escravo de outros”,
reassumindo (novamente o “re”) “a natural dignidade da sua soberania, e da sua
independência, como todos os povos livres”. A linha de interpretação daqueles anos
colocava cada esfera que se considerava representativa da nação em seu lugar.522
A questão das datas também dizia respeito ao momento exato de surgimento do
Brasil independente. Ou seja, o momento em que a identidade portuguesa teria cedido
lugar, na interpretação dos coevos, à identidade autônoma do Brasil. Voltando, por
exemplo, à discussão sobre os prisioneiros da Ilha das Cobras, já abordada
anteriormente, na sessão de 2 de julho entra em discussão um parecer da comissão de
marinha e guerra sobre o caso. O deputado Alencar, em discurso, afirma que não
poderia considerar esses homens nem como prisioneiros de guerra, nem como espiões:
“eu os considero unicamente como indivíduos que não quiseram aderir à causa do
Brasil.” E continua:
Esses homens, Sr. Presidente, foram presos em 2 de Outubro; nessa
época dávamos nós os primeiros passos para a nossa independência mas
não estava ainda absolutamente proclamada; reconhecíamos o mesmo
chefe, e formávamos com Portugal uma só nação. É verdade que no
522
Idem, ibidem. Em sua resposta ao discurso, Dom Pedro afirma que, na assinatura do decreto de 3 de
junho, procurou “desempenhar o honroso título de defensor perpétuo do Brasil, com que tinha sido
mimoseado pelos generosos brasileiros (...), mostrando quanto podia os meus puros, sinceros e cordiais
sentimentos monárquico-constitucionais”. A lembrança do título de defensor, não referido no discurso
original, reforçava como Dom Pedro se apresentava naquela relação. AAC, 1823, vol. 2, p. 36.
203
decreto de 18 de Setembro de algum modo se indicava a independência;
mas essa mesma indireta declaração seguramente não tinha chegado à
colônia do Sacramento. Em tais termos não os contemplo prisioneiros
de guerra, porque o Brasil, não era então uma nação separada e diversa
daquela a que fomos unidos, e a que eles pertencem. 523
O deputado França, complementando a fala de Alencar, afirma que, segundo o
que examinou, esses homens “foram presos em 2 de Outubro, isto é, 10 dias antes da
proclamação da nossa independência, que foi no dia 12 do mesmo mês. Antes daquele
dia estávamos sujeitos à Portugal: com ele fazíamos uma só nação.”524 Dias seria outro
a concordar: “sempre considero que quando foram presos não estávamos legitimamente
separados de Portugal, nem a nossa independência bem proclamada.”525 E, por fim, o
deputado Araújo Lima completa a sequência: “na verdade a esse tempo [da prisão] não
havia propriamente separação, haviam antecedências, achávamo-nos na lide, mas não se
podia dizer de que lado estava a razão, nem que éramos nação independente.” 526
O que os fragmentos acima mostram é uma certa concordância, ainda que
retórica – afinal, estavam discutindo a soltura de prisioneiros, servindo o argumento a
ser usado ao objetivo, moldando-se, portanto, a ele –, entre os deputados a respeito do
dia 12 de outubro, aclamação de Dom Pedro I como Imperador, como a data de
inauguração do Brasil Independente. Até então, o Brasil ainda seria parte de Portugal.
Dom Pedro aparecia, nessa lógica, como o elemento central da passagem de um estágio
a outro.527
O 12 de outubro também apareceria nas discussões a respeito de um projeto
sobre a aplicabilidade no Brasil, ou não, de legislação elaborada pelas Cortes. Araújo
Lima, já mencionado acima em defesa do 12 de outubro, posiciona-se a respeito
afirmando que tinha ali uma lei que considerava boa – não indica qual – e que, na
ausência de lei no Brasil a respeito da matéria – ele também não diz qual –, questiona a
possibilidade de adoção da mesma, embora tenha sido publicada em 14 de outubro –
523
AAC, 1823, vol. 3, p. 10.
Idem, p. 11.
525
Idem, p. 13.
526
Idem, p. 13-14.
527
A voz discordante, naquela discussão específica, seria de Andrada Machado, para quem “ainda que
nesse tempo estava [estivesse] inteira a grande monarquia portuguesa, nós já fazíamos um partido
diferente do que seguiam os portugueses europeus.” Assim, embora o rompimento não estivesse ainda
efetuado, já se identificava um elemento de distinção entre os hemisférios que se aproximava da
identidade nacional brasileira. AAC, 1823, vol. 3, p. 11.
524
204
ainda que houvesse saído das cortes no dia 11 anterior.528 O deputado França, sobre essa
questão, posiciona-se da seguinte maneira: diz que a lei
Tem a data de 11 [de outubro]; logo, foi anterior à época da nossa
separação e está na razão das outras [leis] anteriores. Além de que, nem
todas as outras províncias proclamaram simultaneamente com o Rio de
Janeiro a sua independência no dia 12 de Outubro e isso basta para o
caso. A primeira que o proclamou foi o Rio de Janeiro, logo, como se
trata das outras províncias que ainda o não tinham feito? Como é que as
vamos privar do direito que elas têm a essa lei?529
França não apenas reforça o 12 de outubro como data da independência, como,
também, insere um dado novo: a ruptura foi feita por partes, não pela unidade inteira do
Brasil-nação. Ora, se é verdade que a percepção das demoras nas comunicações era um
constante do discurso do período, considerando-se a vastidão territorial do Brasil, isso
não diminui a importância desse elemento novo na fala de França. Afinal, a articulação
do dia 12 como inaugurador da Independência repousava sobre o fato da aclamação de
Dom Pedro, e tal ato inaugural, nos discursos defensores da monarquia constitucional
centralizada, era tratado como de simultânea entrega, a Dom Pedro, daquela parcela da
representação nacional que lhe era devida. Daí que a instauração de distintos ritmos para
a separação poderia representar uma leitura alternativa da aclamação de Dom Pedro.
Afinal, se ele não foi aclamado simultaneamente por toda a nação, como justificar a
predominância que se dava à monarquia constitucional como inerente ao pacto político?
Daí que o deslocamento da data inaugural da Independência fosse importante. O
deputado Souza e Mello, por exemplo, respondendo a França, afirmou que “o Brasil
renunciou ao direito que tinha às legislaturas de Portugal, não em 12 de Outubro
daquele ano, como diz o Sr. França, mas em 3 de Junho, em que se decretou a existência
de uma assembléia legislativa no Brasil.” 530
A questão tornaria ao debate na sessão de 7 de outubro, a partir de uma
indicação que Ferreira Araújo pede licença para apresentar. Nessa indicação faz uma
narrativa dos fatos recentes, afirmando que “não há dia mais plausível para uma nação
do que aquele em que começa a datar a época da sua grandeza.”531 Essa nação, o Brasil,
528
AAC, 1823, vol. 5, p. 198.
Idem, ibidem.
530
Idem, ibidem. Não obstante, em outra ocasião defendeu o 12 de outubro como “dia memorável que
fará época nos fatos do Brasil, e nos corações brasileiros”, por ser aquele “o dia que trará todos os anos à
memória, a aclamação do imperador constitucional; com a qual se consolidou a ereção e independência
deste Império, e o fausto nascimento do jovem herói para ele chamado pelo voto geral da nação
brasileira.” AAC, 1823, vol. 5, p. 241.
531
AAC, 1823, vol. 6, p. 54.
529
205
mais de três séculos agrilhoado sob o bárbaro sistema colonial,
ressurgiu uma vez do seu abatimento e elevou-se à categoria de
Império; e este gigante, ainda no seu berço, fez alardo da sua força. A
voz unânime dos povos levantou um novo trono, onde colocou uma
dinastia, ilustre por suas virtudes, famosa por suas façanhas. Um
príncipe, delícias [sic] dos brasileiros e tanto tempo ensaiado em
promover a sua prosperidade, mereceu todos os votos que solenemente
o proclamaram no sempre memorável 12 de Outubro. 532
E arremeta: “poderá esta augusta assembleia, intérprete dos sentimentos da
nação, deixar em silêncio tão plausível dia?” A conexão entre Independência e
aclamação mostra-se novamente com força, superando, na fala de Ferreira Araújo, o 3
de junho e, até, o 7 de setembro, cuja construção demandou mais tempo para ser
consolidada.533 Para Ferreira Araújo,
se o dia 7 de Setembro, em que nas margens do Ipiranga retumbou o
grito da independência, mereceu deste soberano congresso a honra de
ser declarado de festa nacional, o de 12 de Outubro, em que o Brasil não
só fez estalar os ferros do seu antigo cativeiro, mas levantou um solo,
que as ideias não abalaram, será guardado em perpétuo silêncio? (...)
Este dia deve ser marcado com caracteres de ouro nos fastos do nosso
Império e nenhum brasileiro se negará a concorrer para o seu aplauso.534
O 7 de setembro, nessa interpretação, era entendido como o espaço do grito de
liberdade, como o momento de declaração máxima da separação. O 12 de outubro,
porém, era compreendido como a efetivação do grito em concreta ruptura e construção
da independência. E uma construção que criava uma sólida base inabalável a
estremecimentos arriscados. Não apenas era a realização das vontades expressas no 7 de
setembro, mas, também, a garantia das formas corretas de execução dessa vontade. Faz,
então, Ferreira Araújo sua indicação, para a declaração do 12 de outubro como de festa
nacional, que é aprovada e, em 9 de outubro, aparece como resolução a ser comunicada
ao Imperador. Ambas as datas, favoráveis a Dom Pedro, aparecem como de festa
nacional.535
532
Idem, ibidem.
Seguimos aqui também as considerações de Kraay, para quem o 7 de setembro, não obstante fosse
igualmente considerado dia de festividade nacional já desde 1823, permaneceu subordinado ao 12 de
outubro até, ao menos, 1825. Cf. KRAAY, Hendrik. A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831... op.
cit., p. 55. O deputado Costa Barros já havia pedido a declaração do 7 de setembro como de festividade
nacional em 5 do mesmo mês. Em seu pedido, solicita à Assembléia que “declare o dia 7 do corrente,
aniversário da independência brasileira, dia de festa nacional; e que nomeie uma deputação composta de
tantos membros quantas são as províncias que se acham representadas, um de cada província, afim de
cumprimentar a S.M. Imperial, e agradecer-lhe em nome do império o primeiro grito da sua
independência, solto por ele nas margens do Ipiranga.”
534
AAC, 1823, vol. 6, p. 54.
535
AAC, 1823, vol. 6, p. 84.
533
206
Na sessão de 13 de outubro, dia seguinte à celebração, é Ferreira Araújo quem,
retornando à ribalta, profere o discurso de homenagem ao Imperador. Esperando que
“os gloriosos fastos da heróica nação brasileira transmitirão com reverente aplauso às
idades futuras a solenidade deste grande dia”, consolida-se, naquele momento, uma
memória dos últimos acontecimentos que produz uma interpretação histórica que se
coadunava plenamente com o resultado das disputas pela direção na Constituinte.
Essa memória lembrava que “nas margens do Ipiranga trovejara o brado da
independência”, estalando “os pesados ferros da escravidão colonial”, e que fizeram
vingar sobre aquele afortunado terreno os “direitos do homem, até então sopeados, mas
nunca destruídos.” 536 A história como história da liberdade encontrava um acabamento
final para sua aterrissagem no Brasil, fazendo se erguer um “novo império, fundado
sobre os firmes alicerces da justiça, na malfadada América, que três séculos antes vira
com horror afogar-se um antigo império no sangue de seus pacíficos cidadãos,
sacrificados à mais nefanda ambição, mascarada em fanatismo.”537 A data não apenas
conectava o Brasil com as nações civilizadas, mas, também, conectava o Brasil à
América, restaurando uma tradição imperial perdida pela “mais nefanda ambição”.
Essa memória lembrava que o príncipe, descendente de uma “dinastia respeitada
pelos séculos” – o tempo, esse juiz de profundo renome – , havia com habilidade
“meneado as rédeas do governo, franqueando-nos os doces frutos da bem entendida
liberdade, ainda antes que esta lançassem profundas raízes.” Reaparece a perspectiva da
superação da opressão sem os riscos da anarquia.
Essa memória lembrava como a “augusta presença” do monarca “afugentara
para longe do Brasil as sanguinolentas cenas que enlutaram as outras partes da América
Meridional, e com a velocidade do raio dissipara as negras nuvens da discórdia e da
intriga”.538 A energia, a metáfora natural do raio iluminador, a extinguir as trevas do
passado, permitia destacar novamente o Brasil do conjunto da América que decaía em
conflitos internos a lhe causar horror. A virtude do príncipe, que assumira essa heróica
tarefa, o inseria numa especial tradição: aquela que não empunhava o “férreo cetro do
bárbaro despotismo, só válido dos Tibérios e dos Neros, mas imitando os Marcos
Aurélios e Antoninos, tendo por farol as luzes do século e por alvo a prosperidade do
536
AAC, 1823, vol. 6, p. 103.
Idem, ibidem.
538
Idem, ibidem.
537
207
grande povo, de que se constituía pai, e de que já era perpétuo defensor.” 539 Se o
Império refletia Roma, como tantas outras tradições da política antes dele, não se referia
a qualquer Roma, mas aquela bem entendida como auge da civilização. As luzes do
século garantiriam, nessa perspectiva, a Roma “correta”.
Por fim, essa memória, agora indicada na resposta de Dom Pedro à fala de
Ferreira de Araújo, consolidava não apenas a interpretação daquela ruptura, mas,
também, delimitava os sujeitos que deveriam entendê-la da maneira como era descrita.
Ao declarar o “mui especial agrado” com que recebia as felicitações, Dom Pedro
indicava que a elevação do Brasil a Império, como conseqüência de sua aclamação,
“não pode deixar de ser festejada em separado por todo o bom brasileiro amante da bem
entendida liberdade”. 540 Qualquer outra interpretação para a inauguração do Império
não seria produto do cidadão brasileiro que o Império procurava criar.
Exatamente um mês depois, a Constituinte seria fechada e a questão das disputas
entre partidários de Dom Pedro e outras forças políticas entraria em um novo patamar.
Mas a questão das definições sobre datas continuaria a ser uma discussão importante,
especialmente no Senado.
Em sessão de 20 de junho de 1826, fez-se, nesse espaço, a primeira discussão de
projeto de lei sobre os dias de festividade nacional, de autoria do Visconde de Nazaré,
Clemente Ferreira França – que participara das discussões na Constituinte, como vimos
acima. O senador justifica seu projeto afirmando que “todas as nações recomendaram
sempre à posteridade os dias notáveis de suas instituições, aqueles em que se praticaram
certos fatos de grandeza, e heroísmo, que as tornaram célebres à face do mundo”, e que,
daí, “vem a divisão, que se faz de épocas gerais, e épocas particulares”.541
Sobre essa distinção entre épocas, explica o senador:
As épocas gerais são aquelas, que marcam geralmente fatos da história
do mundo, como por exemplo, a da criação do mundo, a da lei escrita, a
era de Cristo, etc. Épocas particulares são aquelas que marcam fatos
particulares de uma nação, como são, por exemplo, a fundação da
monarquia portuguesa, a aclamação do Sr. João I, e do Sr. D. João IV,
acabado o cativeiro dos portugueses, o descobrimento da Índia, o do
Brasil, a independência dos Estados Unidos, etc. 542
539
Idem, ibidem.
AAC, 1823, vol. 6, p. 104.
541
AS, 1826, vol. 2, p. 100.
542
Idem, ibidem.
540
208
Nas palavras de França, as “épocas particulares” inseriam-se nas “épocas
gerais”, o que era uma forma de distinguir a “história nacional” da “história geral”. A
narrativa da história geral, porém, articulava história sagrada e história profana, ao
misturar elementos religiosos com seculares, enquanto a história nacional girava tanto
ao redor de feitos de “grandes indivíduos” – aclamação de reis, por exemplo – quanto
transformações mais amplas que se ligavam à fundação de nações. Neste último caso, a
marcação dos dias de festividade nacional simbolizariam o público regozijo que
marcaria a identificação de um povo com a nação, inserindo as trajetórias particulares
na lógica geral de desenvolvimento da história mundial.
Aponta, em seguida, em longa citação,os marcos do seu projeto para o Brasil:
o dia 9 de Janeiro, aquele, em que Sua Majestade o Imperador declarou
ficar no Brasil, para o engrandecer, regenerar, e tornar uma nação
independente: o dia 22 de Janeiro, que já é de grande gala por ser o
aniversário de Sua Majestade a Imperatriz. (...) Segue-se o dia 23 de
Março, em que Sua Majestade o Imperador mandou jurar o projeto de
constituição, que sendo por ele oferecido a todo o povo brasileiro, a
todas as províncias, elas não só o aceitaram, mas pediram que fosse
jurado para servir como constituição do Império. Este dia é notável por
ser nele que se firmou o nosso pacto social, a nossa lei fundamental do
Império. Temos o dia 13 de Maio, um dos mais célebres, por ser o em
que o mesmo senhor se declarou defensor perpétuo do Brasil (...). O dia
7 de Setembro é outro igualmente célebre por dois motivos: primeiro,
porque nele se proclamou a independência do Brasil; segundo, porque
nele se declarou o reconhecimento do Império. Temos o dia 12 de
outubro, glorioso para toda a nação brasileira, dia solene, e já marcado
nos fastos do Brasil, por ser o do seu descobrimento, dia do nascimento,
e da aclamação do grande Pedro I, Imperador do Brasil; dia em que
nasceu para felicitar esta nação nova, para constituir um novo império,
que só uma mão poderosa, e filha da providência podia erigir. Segue-se
o dia 1º de Dezembro, o da sua coroação: é igualmente memorável por
ser o da sua sagrada unção; bem como o dia, em que nasceu o príncipe
imperial, futuro sucessor, e legítimo herdeiro do trono, e virtudes de seu
augusto pai.543
As justificativas para as datas apontadas são variáveis, envolvendo elementos
distintos para sustentação dos marcos na construção da memória do Brasil
independente. Mas um fio perpassa todas elas: a conexão profunda entre os destinos do
país e os da família real, incluindo-se a data de aniversário da Imperatriz e a de
nascimento de Pedro de Alcântara – embora se trocasse o dois de dezembro pelo dia
primeiro. O “Fico” se torna a data de decisão de Dom Pedro para promoção da
Independência, sendo seguido, nessa linha, pelo 7 de setembro, quando se proclama a
543
Idem, p. 100-101.
209
ruptura, e 12 de outubro, data de constituição do “novo império”. O Brasil nascia a
partir dessas três etapas principais, e em todas o Imperador aparecia à frente.
O projeto de Nazaré sintetizava essa conexão íntima entre Imperador e Brasil, e
nenhum argumento no Senado iria contrariar essa ligação. A longa discussão que segue
ao projeto é de outra dimensão, e iria produzir duas oposições principais, a partir de
duas discussões: na primeira, ficariam, de um lado, os defensores da marcação de várias
datas para celebração da festividade nacional relacionadas à Independência; de outro,
aqueles que defendiam que se concentrasse a festividade nacional em apenas uma data.
Em segundo lugar, a segunda oposição era entre os defensores do 12 de outubro como
data central para marcação dos acontecimentos e, de outro, dos defensores de outros
momentos, como 9 de janeiro ou 7 de setembro, para o destaque na memória nacional.
Comecemos pela primeira oposição, aquela entre os defensores de várias datas
(fundamentalmente o autor do projeto) e os da síntese em apenas uma.
Em resposta a Nazaré, o Visconde de Barbacena, após considerar que, não
obstante todos os dias fossem notáveis, criava-se o inconveniente de “em pouco tempo,
metade do ano ser todo de festas”, caso se celebrassem todas as datas. Afirma, então,
que
nós temos uma feliz casualidade entre nós, que vem a ser, que a
fundação do império, como o dia do nascimento do fundador dele, e
todos os outros, de que se faz menção, à exceção de 22 de Janeiro, são
todos de um só homem, e então era melhor que reuníssemos todos em
um só, que é o dia 12 de Outubro, que deu ao mundo o Imperador, que
declarou a independência, e efetuou a fundação do império.544
Assim, defende que se reduzam todas as datas unicamente ao dia 12 de outubro,
que se torna síntese da produção do Império como nascimento simultaneamente do
Brasil independente e de Dom Pedro I.
Na segunda discussão do projeto, em sessão de 01 de julho, Nazaré volta a
reafirmar as datas por ele escolhidas, justificando uma a uma tal como indicado acima.
Barbacena, da mesma forma, reafirma sua posição de escolha apenas pelo 12 de
outubro, por ser de síntese de todos os demais. Dessa vez, porém, seu voto é
acompanhado pelo do então Barão de Cairu, Silva Lisboa. E, na defesa do dia 12 como
de síntese, faz um acréscimo:
544
Idem, p. 101.
210
O dia 12 de Outubro deve ser permanente, considerado como o grande
dia do Império do Brasil, por ser o aniversário do natalício, e da
aclamação do nosso augusto Imperador: e também porque, por
maravilhosa coincidência, é o dia do aniversário do descobrimento da
América. (...) A este dia, pois, são subordinados, e nele compreendidos
todas as outras épocas; nele é que o Brasil deve celebrar com a maior
solenidade e pompa a grande era nacional: nele também em
conseqüência deve cessar o trabalho público, e particular, para só se
manifestar o júbilo universal. 545
Ao entrelaçar os destinos do Brasil e de Dom Pedro à América como um todo,
Cairu confere ainda mais densidade ao dia 12 de Outubro, a ser considerado, então,
único grande dia de festividade nacional. E assim, passando-se à primeira votação,
venceu a síntese em 12 de outubro.
Não sem lamento do autor da lei. Nazaré, em sessão de 17 de julho, voltando ao
assunto, questiona:
o historiador do Brasil, quando memorar estes dias, tratará de todos
debaixo de um só? Falará somente do dia 12 de Outubro? Não fará
menção dos outros igualmente gloriosos, bem como de todas as
circunstâncias, e fatos neles acontecidos? Logo, como se poderão reunir
tantos fatos notáveis em um só dia?546
Lamentava Nazaré ver seu desfile de marcos celebratórios a Dom Pedro I,
articulado ao Brasil, ficar reduzido a apenas um dia, ainda que pudesse ser considerado
de síntese dos eventos marcantes. Contra a lógica da memória pontual, fincava Nazaré a
necessidade do seqüenciamento, da insistência em um calendário anual de celebrações e
reforço da lembrança. E, para justificar tal postura, recua à lógica de rememoração dos
portugueses:
Os portugueses, de quem nós fazíamos parte, até memoravam os dias
que tinham ganhado batalhas (...) celebravam o dia 12 de maio,
memorável por muitos fatos, quais o de haver sido coroada nele a
senhora rainha D. Maria I; o de ser o do nascimento do Sr. D. João VI,
de gloriosa memória (...) por ser, finalmente, o dia em que Barreto se
coroou de glória na Ásia; e nós então havemos de reunir tantos dias
célebres e notáveis em um só? Tantos gloriosos acontecimentos em um
somente? Tantas coisas singulares em só uma? Não Srs., nós não
devemos reunir todos esses dias em um só, porque o historiador há de
fazer de cada um deles particular menção. 547
A projeção do papel futuro do historiador como memorialista causava, segundo
Nazaré, a necessidade de multiplicação dos momentos marcantes para que cada um
545
AS, 1826, vol. 3, p. 16.
AS, 1826, vol. 3, p. 123.
547
Idem, ibidem.
546
211
pudesse receber tratamento específico. Ancorando-se na prática dos portugueses, da
antiga nação a que todos pertenciam, defendia a necessidade de diversas âncoras para a
memória, de modo a manter ativa a chama da celebração permanente. Num país novo,
não deixava de ser uma necessidade para garantir a plena hegemonia da concepção
monarquia constitucional, garantia da civilização.
Tal ficava claro na parte final de seu discurso. Para Nazaré, a multiplicidade de
dias festivos, ao invés de obscurecer a glória daquele “grande dia” que era o 12 de
outubro, servia para que
nossos filhos, e netos, e geralmente falando, as futuras gerações,
ouvindo as salvas, vendo embandeiramentos, e mais demonstrações de
regozijo próprias de semelhantes dias, se lembrem dos gloriosos fatos,
que neles se passaram, e digam: este é o dia em que o grande Imperador
Pedro I, nasceu; é o dia em que nasceu o imortal fundador do Império, e
em que foi aclamado; este é o dia em que pronunciou que ficava no
Brasil: este é o dia em que ele declarou ser nosso defensor perpétuo:
este o em que se coroou, e sagrou: este o mesmo em que proclamou a
nossa independência, etc.
E finaliza: “poderão escapar à gratidão brasileira dias de tão gloriosas
recordações?” 548 O perpétuo festejar dessas datas, sempre ao redor da majestade de
Dom Pedro I, servia para a reprodução, nos moldes do Antigo Regime, de um culto à
figura do rei como símbolo da nação. A figura de Dom Pedro se eternizaria na narrativa
da Independência, país e nação atreladas ao Imperador numa lógica de dependência que
garantia a posição central do monarca na distribuição das agências da Independência na
memória que se desenhava.
Foi o senador Fernandes Pinheiro que, concordando com a necessidade de várias
datas, lançou outra luz sobre a questão ao lembrar a mortalidade de Dom Pedro I.
Defendendo os dias 9 de janeiro e 7 de setembro como centrais, em complementação ao
12 de outubro, afirma: “quando ele [Dom Pedro] volver à terra (e tarde seja!) porque é
mortal, no vindouro a festividade da aclamação nos trará apenas uma ideia isolada, toda
independente de atos anteriores.” Defende, assim, o nove de janeiro como um
“vislumbre de razão, um choque elétrico [que] tocou a mente de todos, [e] quebrou-se o
encanto das cortes de Lisboa”. Seguindo-se, assim, o sete de setembro, “o dia em que
nascemos, e nos tornamos em nação; e enquanto durar o Império, o primeiro será nos
fastos do Brasil.” Por fim, o 12 de outubro, dia no qual, “como no batismo, tomamos
um nome, adotamos o sistema de monarquia constitucional” e, ainda que isso “já
548
Idem, p. 124.
212
existisse no coração de todos os bons brasileiros, não se achava ainda pronunciado”,
podendo-se duvidar, portanto, se o título dado em 13 de maio – Defensor Perpétuo – era
“de um defensor do reino, como D. João I em Portugal, ou protetor de uma república,
como Cromwell, em Inglaterra, ou de um stadhouder, como os príncipes de Orange na
Holanda.” 549 Nessa narrativa, a conexão entre as datas sai da figura direta de Dom
Pedro, embora ainda fosse esta proeminente, para a criação da nação como ato de
continuidade de um povo: primeiro o choque que gerou o rompimento com Portugal e a
percepção da diferença, depois o nascimento que faz passar a diferença a nação
independente, por fim a delimitação do conteúdo dessa nação, a monarquia
constitucional pronunciando-se, como algo já existente no coração dos bons brasileiros,
a estrutura oficial do Brasil nascido. Até então, os caminhos não estavam plenamente
definidos. Até a república volta a surgir como possibilidade retórica.
E Nazaré insistia mais uma vez. Diz que não se poderia deixar em silêncio os
demais dias que indicava. E justificava tal pela instabilidade do Império recém-nascido:
Se nós já estivéssemos há séculos constituídos, não pugnaria tanto: mas
nós principalmente agora, tratamos de uma monarquia nova, de um
novo império: é agora que nos constituímos, e é impossível que as
gerações futuras não nos cunhem de ingratos, que não digam: o Brasil
assim pagou aquele grande imperador, cujos dias foram uma sucessiva
série de fatos tão memoráveis?550
Era o pouco tempo de existência do Império que justificava a necessidade de
fundar uma memória mais ampla ligada ao Imperador. Nazaré indicava o risco, caso sua
proposta não se cumprisse integralmente, de se perder a necessária conexão entre os
destinos do Império e o papel de Dom Pedro I. Após a institucionalização da narrativa
da Independência, como discutimos acima neste capítulo, era chegado o momento de
garantir a lembrança permanente daqueles dias.
Cairu responderia novamente voltando-se para o 12 de outubro, argumentando
que a “majestosa simplicidade de uma única festa nacional” é o melhor caminho para
“concentrar a atenção de todo o cidadão brasileiro para o geral júbilo, pela recordação
dos reunidos sucessos da aclamação”. Além disso, voltando à conexão do 12 de outubro
com o descobrimento da América e nascimento de Dom Pedro, apresenta a lógica
histórica que deveria conduzir aquela votação: “A história não tem fato paralelo;
549
550
Idem.p. 124-125.
Idem, p. 125.
213
verossimilmente, este exemplo será profícuo aos mais estados americanos, além de que
o ato da aclamação tem o caráter da vontade do povo.”551
Não havia fatos paralelos na História, o que destacava ainda mais o 12 de
outubro como uma data única, especial, digna de eterna rememoração. A providência,
nas palavras de Cairu, garantira a ligação entre a apresentação do continente ao mundo e
a apresentação do herói brasileiro ao povo. A aclamação, data de amálgama do povo
brasileiro com o fundador de seu Império, casava perfeitamente para a marcação da
passagem do tempo velho ao novo. Quanto às demais datas deixadas de lado, “a história
fará a devida comemoração” no futuro.552
Caravelas, em resposta a Cairu e em defesa de várias datas, discordaria da
argumentação:
disse o ilustre senador que a história fará a devida comemoração deles
[dos dias]; mas eu pergunto se pela história se faz que, quando chegar o
aniversário de um destes dias, a nação se sensibilize, e entusiasme,
como sendo de festividade? De certo que não, porque não há um objeto
que lhe desperte a memória deste dia, nem dos fatos nele acontecidos. 553
A necessidade de fixação política dos dias marcantes era fundamental, para
Caravelas, de modo a servir de suporte à história/memória. Ainda mais, continua o
senador, considerando a questão: “a nação toda compõe-se de homens que têm a
história?” E responde: “Não: a maior parte da nação consta de homens, que não
folheiam livros, uns porque lhes falta o tempo, outros porque não sabem ler.”
Comparando o Império com outros espaços e temporalidades, afirma que “os antigos,
para eternizarem estes dias, levantavam monumentos, e até os gravavam em bronze,
para não se esquecerem: nós não fazemos o mesmo tão freqüentes vezes, porque temos
a imprensa, com que suprimos esses monumentos, e esses bronzes.” A imprensa surgia
como suporte de memória a garantir a eternização da lembrança que a política buscava
definir como correta. “É necessário que haja a festividade nacional, porque o povo, em
geral, não lê a história, como já disse, mas vê a festividade, e então pergunta ao
instruído na história o motivo dela, e este lho explica.”554
551
Idem, ibidem. Grifo no original.
Idem, p. 126.
553
Idem, ibidem.
554
Idem, p. 126. E completa novamente com o uso de um exemplo do tempo antigo: “os portugueses que
não liam a história, sabiam que o dia da aclamação d´El Rei D. João IV era para eles de grande glória, por
ser aquele em que se resgataram do cativeiro de Espanha”. Daí insiste para a manutenção, no projeto, dos
dias 9 de janeiro, 23 de março, 13 de maio, 7 de setembro e 12 de outubro. Quanto à questão da falta de
552
214
A história, como produto, nesse discurso, do estudo, da ação intelectual, estando
em falta no Brasil, necessitava dos marcos da memória para se difundir pela população.
A questão central, como já indicada, era a discordância a respeito da extensão dessas
celebrações. A narrativa histórica-memorialista da Independência iria fundar-se no
seqüenciamento de datas ou na síntese de apenas uma?
A segunda grande discussão a opor senadores dizia respeito a qual data melhor
representava a passagem do tempo antigo ao tempo novo. Como visto acima, alguns
senadores, como Fernandes Pinheiro, ao defender a variedade de datas, produziam
também um escalonamento sobre os marcos temporais. Na fala de Pinheiro, por
exemplo, como já analisado, o 9 de janeiro seria o momento do “choque” e da
percepção da distinção em relação a Lisboa; o 7 de setembro seria o rompimento, o grito
da separação; o 12 de outubro seria a consolidação da forma monárquico-constitucional
de governo. As três etapas, complementando-se, marcariam em definitivo a passagem
do velho ao novo tempo, cada data marcando, respectivamente, o despertar, a separação
e a escolha do novo caminho a seguir.
Já antes, na primeira discussão de 20 de julho, o Visconde de Inhambupe, em
resposta à proposta de Barbacena para sintetizar as celebrações no 12 de outubro,
marcava a necessidade de distinção das etapas. Concordando com a síntese no dia 12,
pedia, porém, para que se mantivesse o “Fico”, já que simbolizava a permanência do
príncipe entre nós, devendo o dia ser memorável. Afinal, “se acaso ele se retirasse, em
que estado ficaríamos? (...) Uma horrorosa anarquia nos ameaçava, despedaçar-nosíamos uns aos outros (...).”555 A presença do príncipe, como fiador da estabilidade, dava
ao dia 9 de janeiro não apenas o significado de percepção da “brasilidade”, mas,
também, de garantia de que essa distinta percepção no interior da nação portuguesa não
resultaria na fragmentação dos portugueses da América ainda antes de sua formalização
como sociedade distinta.
Para o Visconde de Inhambupe, o dia 9 de janeiro representava mais. Era o
“fundamento de todos os bens, que nos têm resultado: todos os outros dias são
conseqüência deste” – sem que isso significasse, lembrava, diminuir o esplendor do 12
leitura da história pelo povo, Cairu depois responderia afirmando que a Constituição, por destinar
instrução pública a todo o povo, garantiria, via cartilhas, a chegada da história a todos. Cf. Idem, p. 127.
555
AS, 1826, vol. 2, p. 101.
215
de outubro.556 Acontece que o destaque ao 9 de janeiro justificava-se por ele representar
o dia que
verdadeiramente deu toda a grandeza ao Brasil, quando o soberano,
então príncipe regente, disse – Fico. – Este dia é todo do doberano,
bem como o dia 7 de Setembro; o 12 de Outubro é do povo: e havemos
de escurecer aqueles dois dias, e só fazer memorável o terceiro? 557
Os primeiros, dias do soberano; o terceiro, do povo. A ideia da aclamação como
resultado da manifestação popular indicava ser a monarquia constitucional fruto da
vontade popular, e não iniciativa vinda de cima. Sendo o dia 12 de outubro aquele do
encontro do Brasil com sua forma de governo, e considerando-se tal como de festa do
povo, e não ação soberana, consolidava-se a imagem da monarquia como resultado do
desejo dos brasileiros, e não solução oferecida pelos dirigentes. Simultaneamente, o
heroísmo de Dom Pedro I ficava mais direcionado à luta contra as Cortes – numa
narrativa que ressuscitava a do Reverbero, como vimos anteriormente: a ruptura era
graças a Dom Pedro I; a monarquia constitucional, vontade popular.558
Seria o Visconde de Barbacena quem encerraria a discussão. Para ele, a “opinião
mais seguida” seria de “assentar as festas nacionais nos dias 9 de Janeiro, 7 de
Setembro, e 12 de Outubro.” E confere novamente o significado para cada uma das
datas:
O dia 9 de Janeiro, merece atenção, por ser aquele em que Sua
Majestade Imperial ficou no Brasil, pois se Sua Majestade Imperial não
houvesse tomado essa deliberação, nada haveria acontecido; (...) O dia 7
de Setembro é, sem dúvida, notável por ser o da nossa independência;
porém essa independência podia subsistir debaixo de outra qualquer
forma, debaixo da forma de um governo despótico: assim, a nossa
grande fortuna consiste em ela ser debaixo de um governo
556
Idem, p. 126.
Idem, ibidem.
558
O senador Borges produziria argumentação semelhante, mas agora quanto ao 7 de setembro.
Destacando a superioridade desta data em relação ao 9 de janeiro, afirmava que, embora a decisão do
Imperador de ficar no Brasil fosse fundamental para o que veio posteriormente, foi no 7 de setembro que
houve a “declaração manifesta da nossa emancipação e independência, enunciada nas margens do
Ipiranga por aquele mesmo príncipe, que tomava o oneroso encargo de criar uma nação; que se
comprometia aos perigos, de que depois nos vimos ameaçados; e em uma palavra, é o dia em que aquele
grito da independência, sendo ouvido desde o Prata até o Amazonas, foi repetido por todos os brasileiros,
com exceção de um ou outro degenerado.” E comparou com os Estados Unidos: “um americano do norte ,
em qualquer parte que esteja, bebe no dia 4 de Julho um copo de vinho ao jantar para aplaudir o
aniversário da declaração de sua independência.” Todos os demais dias decorriam do 7 de setembro, que
deveria constituir o marco central dos processos recentes da passagem do velho ao novo tempo. Estava ali
a origem da nação brasileira. Idem, p. 128.
557
216
constitucional, o qual se fundamentou no dia 12 de Outubro. Este é,
pois, o dia em que se deve fazer a nossa grande festa nacional (...). 559
No final, ficou aprovado que, além do 12 de outubro, fossem declarados dias de
festa nacional em todo o Império os dias 9 de janeiro, 7 de setembro e 25 de março.560 A
memória de 1822, porém, já se encontrava definida, a inserção do Brasil na história da
liberdade já tinha sua narrativa e os aspectos centrais de aproximação com a civilização
europeia e construção da civilização no Novo Mundo já estavam delineados. A partir de
então, outros elementos viriam somar-se e eles, produzindo os alicerces centrais, no
Primeiro Reinado, que sustentavam os Olhos na Europa e os Pés na América.
559
Idem, p. 128-129.
A questão apareceria nos anos seguintes apenas em homenagens. Em discurso lido ao Imperador,
reproduzida no Senado na sessão de 13 de outubro de 1827, o deputado Nabuco faz uma homenagem pelo
12 de outubro. Na fala, a data aparece como aquela que ofereceu ao Brasil “ mais poderosa garantia de
felicidade e elevação categórica”, por conta de todas as qualidades e recursos dos quais havia sido privado
por “quase três séculos”. AS, 1827, vol. 2, p. 164. No ano seguinte, em sessão de 9 de setembro, o
Marquês de Caravelas apresenta discurso lido em homenagem ao dia 7 do mesmo mês, no qual afirma
que “na série dos acontecimentos que influem nos felizes destinos das Nações nenhum se apresenta tão
brilhante como o da Independência do Brasil” (da qual o 7 de setembro seria dia “para sempre
memorável”), já que, graças à identificação entre monarca heróico e briosos brasileiros, “o Céu ouviu e
sancionou o generoso brado, e o Brasil foi independente.” AS, 1828, vol. 2, p. 220. Independentemente
do foco futuro no dia 12 de outubro ou no dia 7 de setembro, a lógica a entrelaçar Brasil e imperador, com
as etapas da ruptura e da construção da monarquia constitucional, sendo Dom Pedro I a conexão entre
ambas as partes, perduraria como interpretação dos eventos de passagem do velho ao novo tempo.
560
217
Capítulo 5:
Olhos na Europa: a lógica da civilização
5.1) Antigos e modernos entre as luzes do século e a Turquia
Como vimos nos capítulos anteriores, a interpretação, na longa duração, da
história como história de lutas da liberdade contra a opressão era elemento fundamental
da construção de uma narrativa histórica que buscasse dar sentido às transformações do
tempo, tais como apareciam nos discursos no Reverbero. Essa narrativa aparecia aos
olhos dos coevos marcada por uma divisão que teria continuidade ao longo de todo o
Primeiro Reinado: a distinção entre, de um lado, a síntese do atraso despótico em plena
era das luzes, simbolizada na “barbárie”, e, de outro, a liberdade que, pulsante, resistia a
essa opressão em nome dos pilares da “civilização”. Tal era a tônica de uma
interpretação do tempo presente que se tornou predominante nos debates parlamentares
entre 1823 e 1830 no Império do Brasil, e que dava uma nova dimensão à perspectiva
da história como história da liberdade: a interpretação do tempo como disputa entre
civilização e barbárie.
Os estudos sobre as relações entre os polos opostos desse par não são
novidade561. Aqui, buscarei analisar as formas pelas quais a polarização era interpretada
em espaços de atuação política no Primeiro Reinado, tentando articular essas formas às
interpretações sobre o devir histórico para os coevos, especialmente na tônica da
história como história da liberdade tratada anteriormente.
Os “olhos na Europa” presidiram essa interpretação, considerando, como já
exaustivamente tratado pela historiografia, o que o continente representava para a nação
em construção. A inspiração nos exemplos das consideradas “nações civilizadas” –
assim como seus semelhantes: “nações cultas”, “nações ilustradas”, “nações adiantadas”
etc. – perpassou praticamente todo o conjunto de discussões parlamentares, das questões
econômicas às políticas, das formas de relacionamento entre os poderes aos modos de
561
Para exemplo desses estudos, cf. os já citados: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e
Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História
Nacional. In: Estudos Históricos. Nº 1. Rio de Janeiro: FGV, 1988, p. 5-27;
SÁ, Maria Elisa Noronha
de. Civilização e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond,
2012; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004; PRATT, Mary
Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999; FERES
JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da
História dos conceitos políticos do Brasil.2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2014, p. 209-231.
218
etiqueta e organização legislativa562. Afinal, como definiria um senador, “sempre que
nós seguirmos as nações civilizadas em seus usos e costumes (...) não poderemos ser
censurados: a civilizada, a polidez [sic] não é filha do Brasil, veio, e vem da Europa”. 563
“Polidez”, segundo o Moraes e Silva, era sinônimo de “polícia”, que, por sua
vez, referia-se ao “governo, e administração interna da República, principalmente no
que respeita às comodidades, i. é, limpeza, asseio, fartura de viveres, e vestiária; e à
segurança do cidadão”. Também referia-se a “tratamento decente; cultura, adorno,
urbanidade dos cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira. “Polido”, por sua vez,
referia-se a homens “não rudes, mais que civilizados, e urbanos”.564 “Civilidade”, por
sua vez, no mesmo dicionário, “hoje significa, cortesia, urbanidade, opp. a rusticidade,
grosseria.” ”Civil” envolvia a “sociedade de homens que vivem debaixo de certas leis”,
suplantando o sentido antigo, mas ainda presente no dicionário, de “mecânicos, que
moravam em cidades cercadas, e não nos campos, em castelos como a gente nobre, e
guerreira”.565 Esses sentidos já estavam presentes na edição de 1813, não se alterando
frente a de 1823.566 A civilidade e polidez, nascidas na Europa e vindas para o Brasil,
justificavam um movimento da história que se ligava à luta pela liberdade: se esta estava
presente no coração de todos os homens, como vimos, e se sua potência de guerra
contra o despotismo e a opressão era uma inevitabilidade, posto que elemento da própria
condição humana, então a forma de travar essa luta, de modo a controlar bem seus
caminhos e suas conseqüências, dependeria diretamente dos exemplos europeus, da
“polidez” nascida na Europa. E tal polidez envolvia simultaneamente elementos
culturais (a “urbanidade” que se opunha à “grosseria”) e políticos (o domínio das leis
sobre a comunidade), ambos numa nova dimensão temporal, e não identificados
essencialmente com a nobreza cortesã.
Exemplos dessa preocupação com associação entre práticas no Brasil e práticas nas “nações
civilizadas” não faltam, indo desde discussões a respeito da presença ou não de ministros junto ao
Imperador, na abertura dos trabalhos, até questões sobre leis pontuais. A título de exemplo, cf. AAC,
1823, volume 1, p. 27-29; AAC, 1823, volume 3, p. 113; AAC, 1823, volume 5, p. 57; AS, 1827, volume
3, p. 239; AS, 1828, volume 1, p. 245; AS, 1829, volume 1, p. 13; p. 343; ACD, 1826, 30 de abril, p. 07;
ACD, 1826, 2 de maio, p. 14; ACD, 1826, 30 de maio, p. 181-183; ACD, 1826, 8 de agosto, p. 66; ACD,
1827, 5 de julho, p. 55; ACD, 1827, 26 de julho, p. 288; ACD, 1829, 22 de maio, p. 123; ACD, 1829, 17
de julho, p. 142.
563
A fala é do Visconde de Barbacena. AS, 1826, volume 2, p. 28.
564
MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos
até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Segundo. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda,
1823, Vol. 2, 425.
565
Idem, vol. 1, p. 418.
566
Cf. vol. 1, p. 401-402, e vol. 2, p. 464 da edição de 1813.
562
219
Este era o caminho para ingresso do Brasil no clube das nações civilizadas.
Afinal, bem proceder era uma forma de também ser bem visto por essas nações. Os
olhos na Europa importavam-se sobremaneira com os olhos da Europa567.
Essa Europa, como símbolo do conjunto das nações civilizadas, sintetizava a
ponta de lança dos tempos mais modernos. Ao século XIX cronológico correspondia um
momento ímpar na história do desenvolvimento humano, cujas principais características
deveriam ser bem seguidas por todos aqueles que desejassem ingressar no concerto das
nações568. À geração que fundava o Império do Brasil, essas características deveriam ir
muito além da organização parlamentar.
A “nação civilizada” deveria representar a superação da barbárie em todas as
suas formas. Em discussão de 1823, sobre projeto de Rodrigues de Carvalho propondo
revogação do alvará de 30 de março de 1818, o qual punia as sociedades secretas com o
crime de lesa-majestade, Muniz Tavares defendeu o projeto dizendo que
custa a crer, Sr. Presidente, que no século XIX aparecesse um tão
extravagante alvará. Custa mesmo a conceber que houvesse homens tão
degenerados que o aconselhassem! Os bárbaros do norte da Europa não
legislaram de semelhante maneira. Impor penas e penas atrocíssimas a
homens só por que se reúnem em segredo, é até onde pode chegar o
excesso da tirania!569
Isso não seria tudo. Disse Tavares que não era a favor das sociedades secretas.
Apenas “tendo a ventura de viver presentemente em um país livre; eu falo somente
contra a desproporção das penas impostas no precitado alvará, falo contra essa
barbaridade que a legislação filosófica tanto condena, e, com razão” 570 . Andrada
Machado, tomando a palavra a respeito do alvará, não teria dúvidas de “ver nele [no
alvará] os últimos arrancos do assustado despotismo, que certo de largar para sempre o
ensanguentado assento, que para desgraça do Brasil tanto tempo ocupara, queria ao
567
Em discussão sobre escrutínio secreto para votações, Muniz Tavares questionaria "o que diriam as
nações cultas da Europa" se passasse esse método de votação? Costa Aguiar também foi outro a perguntar
o que diriam os homens sensatos e as nações cultas se a câmara aprovasse o voto secreto. AAC, 1823,
volume 1, p. 27-29.
568
Num mundo em que o nascente e crescente “princípio de nacionalidade” deveria, cada vez mais,
apresentar-se como viável, tal aproximação ao ideário constituinte de uma “nação civilizada” seria
poderosa justificativa para angariar apoio. Cf. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780.
4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 42-50.
569
AAC, 1823, volume 1, p. 98. O deputado Accioli depois reafirmaria a ideia de ser o alvará “injusto e
indigno de aparecer em um século de luzes” (p.104). O mesmo diria Carneiro de Campos em outra
sessão: “Sr. presidente, penas bárbaras e tão sanguinárias como as do alvará de 30 de Março de 1818, não
são para homens livres e são incompatíveis com o século em que vivemos”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p.
110.
570
AAC, 1823, volume 1, p. 98.
220
menos na sua queda rodear-se de cadáveres e de sangue” 571. A nação civilizada não
poderia punir barbaramente; superar o barbarismo significaria trocar as normas
punitivas.
Superar o barbarismo significaria, por um lado, superar o passado. Ainda nessa
discussão do alvará de 1818, Carneiro de Campos falaria sobre a necessidade urgente de
reparar perante o mundo ilustrado a honra nacional, maculada
por uma lei bárbara, monstruosa e tão deslocada do século em
que vivemos. Parece incrível, senhores, que no século XIX,
depositário de tantas luzes, neste século em que se acham tão
difundidos os luminosos princípios do direito criminal, e em
que são tão vulgares as preciosas obras de Beccaria, Filangieri,
Brissot, Pastoret, e tantos outros valentes defensores dos
direitos da humanidade, se desse tão pouco apreço ao sangue e à
vida do homem que tivesse lugar e aparecesse para desdouro
nosso, publicado no Brasil o alvará de 30 de março de 1818,
como apoteose da crassa ignorância do século X! Fenômeno tão
extraordinário só pode ser conciliado com a natureza do
governo absoluto, arbitrário e despótico, faltando-lhe as bases
solidas das instituições liberais, e o apoio da razão é por sua
natureza fraco e receoso. 572
Portanto, se alguns ainda poderiam justificar o alvará de 1818 num tempo de
despotismo, num tempo em que as ideias liberais ainda não encontrassem terreno fértil
para espalhar-se, agora, em pleno século das luzes, em pleno século XIX, tal seria
injustificável573. O discurso dos atores políticos, naquele início de fundação do Império
do Brasil, marcava um imediato distanciamento em relação ao passado, a partir de uma
perspectiva de dupla dimensão: por um lado, o governo liberal superava o horror do
despotismo; por outro lado, o governo liberal permitiria o ingresso conceitual do Brasil
no século XIX. O alvará de 1818, posto pertencesse ao oitocentos em termos
cronológicos, era afastado do real significado do século devido a uma intervenção
política (“despótica”) clara; existia como sobrevivência de um passado distante a
E completaria: E fala mais: “Mas se não há legislação alguma, se não há poder que queira se lhe
impute a bárbara precisão de vingança, é porém certo que todo o poder quer a segurança, e é isto o que
constitui a eficácia material das penas. Este varia segundo os diversos estados da sociedade, seus grãos de
civilização, ideias dos povos e situação do poder.”. Idem, p. 98-99.
572
Idem, p. 101.
573
Segundo o deputado Dias, se “é necessário que durem [as sociedades secretas] enquanto dura a
oposição do poder absoluto”, agora, “caindo e morrendo o despotismo pelo espírito do século e pelo
império da razão já não são úteis, antes prejudiciais, as sociedades secretas”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p.
191.
571
221
superar. Para Carneiro de Campos, um passado remetendo ao século X 574. Para outro
deputado, um passado remetendo à crise da República romana575.
A ideia de que a um passado de barbarismo ascendia um presente de luzes
pautou diversas outras discussões na década. Tal noção conjugava-se a uma
interpretação do tempo como acúmulo, como progressão, a qual, longe de esgotar-se
naquele momento presente, continuaria sua trajetória rumo ao futuro. Para continuarmos
na discussão sobre sociedades secretas, por exemplo, o deputado Gomide insistiria, em
sessão de 7 de junho de 1823, na crítica à pena de morte, defendendo que as penas
devem ser sempre remissíveis ou revogáveis, dada a falibilidade dos juízes. Diz que as
opiniões flutuam e que “amanhã, Sr. presidente, se nos arguirá, como nós arguimos hoje
os autores dessas proscrições inquisitoriais, monumentos eternos dos delírios e das
imperfeições do espírito humano”576. Assim se entendia a astúcia da posteridade, que
remeteria ao futuro como juiz dos acontecimentos presentes, dando aos coevos a
dimensão de fragmentação narrativa de seu próprio tempo 577 – o que, nas questões
legislativas e políticas, implicava a consideração de provisoriedade das decisões
tomadas. Afinal, os olhos do futuro, postos sobre os atores do presente, eram assim
capacitados a entender aqueles tempos a partir de certo distanciamento, tal como os do
próprio presente sentiam-se em relação aos do passado, inclusive lamentando as
decisões tomadas:
Quantas vezes se arrependeu Grécia da precipitação, com que propinou
a cicuta? Quantas vezes lamentou Roma a inconsideração, com que
arrastou cidadãos inocentes ao precipício da Rocha Tarpeia? Não, não
vamos longe. Se a pena de morte se distribuísse com o rigor das nossas
leis, se todas as vítimas a ela designadas fossem sacrificadas; este
augusto congresso, Sr. Presidente, estaria hoje privado de luzes, que o
ornamentam.578
574
O mesmo poderia ser dito da pena de morte, para ficar em outro exemplo. O deputado Gomide
afirmaria que “em tese, Sr. presidente, a pena de morte deve ser banida do código de uma nação civilizada
e polida”. Pereira da Cunha, na mesma discussão, vai além, dizendo que “tendo os soberanos de algumas
nações civilizadas da Europa exterminado de seus códigos criminais a pena de morte natural, eles se virão
em breve tempo na dura necessidade de reformarem essa legislação com aquelas modificações, que
extinguindo a severidade de Draco, se acomodasse à doçura dos costumes, e à filosofia de nossos dias”.
Cf. AAC, 1823, volume 2, respectivamente p. 23 e 25.
575
Para Rodrigues de Carvalho, o alvará “fulminou contra as sociedades secretas penas dignas do tempo
de Scylla”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p. 63-64.
576
AAC, 1823, volume 2, p. 24. E diria Cairu noutra ocasião: “Se desprezarmos em tudo a sabedoria dos
nossos maiores, também os nossos vindouros desprezarão a nossa”. AS, 1827, volume 1, p. 408-409.
577
Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op.cit., p. 46.
578
Idem, ibidem. Ao mesmo tempo, a construção legislativa se não deveria fazer às pressas. Em debate
sobre lei de marinhagem, Visconde de Nazareth lembraria que “Roma não se fez num dia, como
vulgarmente se diz; é necessário marcharmos com passos vagarosos para serem seguros. Se em um dia
222
Seria a mesma lógica empregada por Henriques de Rezende quando da discussão
do regimento interno da Constituinte, respondendo a propostas que, em sua concepção,
dificultariam reformas futuras nas regras parlamentares:
Os tempos mudam-se, e nós e as circunstâncias com eles; seriamos uns
loucos, Sr. presidente, se tivéssemos a presunção de querer legislar
expressamente para toda a eternidade; por mais que queiramos dar às
nossas instituições o ar de duradouras compete fazer nelas as alterações
que as circunstâncias exigirem. A nossa constituição há de sofrer
alterações de tempos a tempos pela forma que nela mesmo se há de
estipular: e se isto tem de acontecer em leis, que são fundamentais,
como é possível pôr o cunho de eternas às do nosso regulamento
interno? É um direito que compete às gerações futuras o fazer as
derrogações, mudanças, interpretações necessárias nas leis, que lhes
transmitirmos. Nós podemos destruir o antigo sistema que tantos
séculos nossos predecessores julgaram que era mal mudar; com o
mesmo direito as futuras legislaturas, os nossos vindouros, se tão tristes
conjunturas ocorrerem podem mudar todas as instituições, quanto mais
meros regulamentos da assembleia? Com que direito queremos nós
privar a posteridade da inviolável liberdade, que lhe toca.579
Não se poderia tirar do futuro a liberdade de, seguindo as transformações
inerentes ao tempo, alterar a própria legislação. Não legislar para a eternidade era
admitir um princípio de melhoramento possível nas leis, já que o contrário disso seria,
para a vida política, aceitar a degeneração social 580 . E esse não era um princípio
aplicável apenas ao Brasil. Pelo contrário: para Vergueiro, como “o legislador não olha
só para o que está, olha também para os séculos futuros”, “se as Nações Europeias no
seu princípio tivessem acautelado isso, não sofreriam os males que agora sentem.” 581
Tal perspectiva calcava-se, como dito, numa noção de acumulação progressiva
da civilização que afastava o presente (e, por conseguinte, o futuro) de tempos passados
nós quisermos constituir uma nação, como a inglesa, de certo tornaríamos para trás, em vez de progredir:
deixemos que, com o tempo, venha o mais”. AS, 1826, volume 3, p. 194.
579
AAC, 1823, volume 2, p. 189. O mesmo diria Andrada Machado, ao criticar “o argumento que parece
de mais peso [,que] é o que se funda na obrigação de darmos à constituição a maior perfeição possível;
mas não sei como não se repara que as constituições recebem essa perfeição do decurso dos tempos e da
experiência, como tem acontecido às que conhecemos, sem excetuar a da Inglaterra, feita, por assim
dizer, de pedaços, à medida que se foram reconhecendo as alterações de que precisava”. AAC, 1823,
volume 5, p. 98.
580
O deputado Carneiro conectaria a noção de mudança futura com a de mudança passada: “nem nas
cousas humanas há perfeição absoluta; também imperfeitos seriam sem duvida os primeiros fundadores
da liberdade inglesa, atento o atrasamento do século em que viveram (...). Eu sei que as constituições não
são eternas, porque tudo se altera e perece com o andar do tempo; mas deixemos ao tempo o que é obra
dele; e então a nossa prosperidade cuidará também em apropriar novos planos de educação a essas novas
mudanças”. Cf. AAC, 1823, volume 3, p. 181.
581
AS, 1829, volume 1, p. 259. Os males a que se refere Vergueiro são da acumulação de capitais em
poucas mãos. Continuaria o senador: “Portanto, nós é que estamos em tempo de pôr as cautelas, e por que
desprezá-las? Vendo nós os males, não havemos providencias para que não aconteça, não digo daqui a 10,
mas a 100, e 500 anos?”
223
de barbárie. “O progresso da civilização tende a diminuir os mais penosos trabalhos da
Sociedade, e a fazer que a indústria seja dirigida para os ramos mais reais da vida”,
afirmou Cairu, destacando os benefícios oriundos de tal progressão 582 . Para tanto,
porém, seria preciso superar o barbarismo do passado. À ideia de progressão e acúmulo
somava-se à do necessário distanciamento desse passado como trilha a se caminhar na
construção do Brasil considerado “civilizado”. Esse passado do qual deveria o Brasil
afastar-se não eram somente os “três séculos de despotismo” legados pela colonização
portuguesa na América, segundo fórmula presente na interpretação da época colonial.
Esse passado também integrava a trajetória brasileira à dos Impérios passados, à das
nações civilizadas, à da Europa. Integrava a perspectiva de superação do barbarismo e
do aperfeiçoamento constante da civilização à história da liberdade em luta contra o
despotismo.
Por isso era preciso distanciar-se dos despotismos de Roma e dos Dracos, dos
Scyllas e dos Catilinas, dos Carlos 2º e dos Jaimes 2º, dos tempos de Inquisição e dos
tempos feudais583. O passado europeu não interessava senão na medida em que marcava
a vitória das luzes do século, e o passado a ser afastado poderia servir de memória a
marcar os limites, no presente, das políticas a seguir, dos eventos a se tolerar. Havia a
clara percepção de que regras que valiam para situações passadas não mais se
aplicavam. Assim é que, em 1823, notícias sobre manifestações de apoio à
independência, à constituição e a Dom Pedro I, todos vindos de Rio Grande de São
Pedro, defendendo, inclusive, o poder de veto total do imperador às determinações da
Constituinte (ou seja, manifestações integradas mais à persona de Dom Pedro do que à
Assembleia) são recebidas pelo deputado Gomide nestes termos:
[são] perversos que procuram arruinar a pátria. Não vemos um Catilina,
esse furioso tirano que quis largar fogo à sua própria pátria, mas temos
na minha opinião, um inimigo mais perigoso que dando vivas ao
monarca quer perturbar a ordem, procurando subornar ânimos com
insinuações cavilosas. Sr. Presidente: Anibal está às portas de Roma; é
necessário vigilância; embaracemos que entre na cidade tão terrível
inimigo.584
AS, 1827, volume 1, p. 64. Para o autor, também, seria “de esperar que, no progresso da civilização do
Brasil, sejam sempre dominantes o amor ao Imperador, e aos agentes dos poderes políticos”. AS, 1829,
volume 1, p. 187.
583
Para exemplos do passado europeu a se superar, cf. AS, 1828, volume 1, p. 218; AS, 1829, volume 2,
p. 06-07; p. 72-74; p. 90-91; p. 94.
584
AAC, 1823, volume 3, p. 124-125. Andrada Machado completaria: “Sr. Presidente: diz-se que Annibal
está às portas de Roma, e eu digo também que os Lentulos e os Catilinas se acham entre nós”.
582
224
A tensão entre o potencial oferecido pelo progresso da sociedade e das luzes e a
intervenção despótica que poderia tudo fazer retrogradar é uma constante. O progresso
da civilização, posto que fosse uma constante na história ocidental, já que atrelado à luta
pela liberdade, não era uniforme, nem homogêneo. Alguns espaços ou unidades
poderiam progredir mais do que outros. Diferentes momentos da história humana
poderiam tanto oferecer avanços quanto riscos a esse processo de progressão. E o Brasil
independente poderia caminhar para qualquer direção, inclusive consideradas piores,
caso falhassem as luzes que o deveriam conduzir.
A alguns elementos se poderia atribuir a permanência das luzes na trajetória
europeia ao longo os séculos. As universidades e a manutenção das pandectas, por
exemplo, constituíam, na perspectiva discursiva, baluartes de resistência civilizacional
às invasões bárbaras585. Para Gomide, “deve-se às ordens religiosas a salvação das letras
na inundação do barbarismo gótico; a elas se deverá a conservação e progresso, entre
nós no século XIX, principalmente em um governo constitucional”586. O cristianismo
como um todo, aliás, é outro elemento considerado essencial na manutenção desse
progresso, inclusive na transposição de regiões bárbaras para o ingresso na civilização.
Para Cairu, a doutrina cristã,
havendo por isso feito época nos anais da sociedade, que ainda ora se
intitula a era cristã; tendo civilizado a tantas nações, que, antes de
receberem a sua doutrina, eram bárbaras e selvagens; continuando a ser
tais, ou cheias de desordens civis e políticas, todas aquelas que ou não a
têm abraçado, ou só recebido com cismas e divisões arbitrárias,
apartando-se do centro da união, isto é, do cabeça visível da igreja
universal, o sumo pontífice de Roma,587
deveria ser a oficial do Império, contrapondo-se a outros deputados, como Dias,
para quem “todas as sociedades têm reconhecido que a tolerância é uma virtude
preciosa e indispensável, e até a tolerância religiosa se estabelece hoje por lei nas
nações civilizadas”588, ou a Muniz Tavares, para quem alguns deputados querem “que
585
É o argumento de Cairu em AAC, 1823, volume 4, p. 172 e 177.
AAC, 1823, volume 5, p. 53. Em outra ocasião, já senador, diria Gomide: “os frades fizeram ainda
outros benefícios à civilização: quando a Europa estava barbarizada, nos claustros se asilou a instrução, e
dali saiu como uma luz para dissipar as trevas da ignorância, terminar a noite dos erros, em que os povos
dormiam.” Cf. AS, 1829, volume 2, p. 138.
587
AAC, 1823, volume 6, p. 60. O papel do cristianismo, aliás, é um argumento central na interpretação
da escravidão e nas justificativas para o tráfico desde os tempos coloniais, mantendo-se ativo no começo
do século XIX.
588
AAC, 1823, volume 2, p. 147.
586
225
se restabeleça esse hórrido tribunal, chamado por insolência o Santo Ofício”, e outros
absurdos típicos do “barbarismo”589.
Daí a necessidade de distinção entre a religião, como elemento de manutenção
cultural da civilização, e qualquer política clerical que pusesse barreiras ao
desenvolvimento da liberdade. O conceito de “civilização”, em construção naquele
momento590, ganhava dimensões culturais que a distinguiam da simples ação política
direta – embora esta fosse uma dimensão constitutiva daquela. Assim é que, em
discussão sobre o orçamento para 1828 na Câmara dos Deputados, o financiamento do
corpo diplomático brasileiro pelo mundo ganha cores distintas no trato com a Europa,
berço da civilização, em relação a outras partes do mundo. O deputado Vasconcellos,
por exemplo, criticou duramente o governo por, ao invés de enviar “diplomatas para
aquelas cortes, em que podiam ser úteis, pelo contrário disseminou-os por nações com
as quais nada tínhamos a tratar”. E questiona:
E que temos nós, Sr. Presidente, com Mackdembourg [sic], com
Frackfort [sic], com esse desgraçado reino de Nápoles, com as
apostólicas cortes de Viena e de Paris? O que temos nós com a velha
Europa? A América é da América, seja a Europa da Europa, e tudo irá o
melhor possível (Apoiado geralmente)591
Consideremos a expressão “velha Europa”. Posto a Europa constituísse espaço
destacado da civilização, continente central das “nações cultas”, das “nações
adiantadas”, a fala de Vasconcellos, como a de outros deputados e senadores, possibilita
uma percepção daquela distinção apontada acima entre “civilização”, como cultura, e
“ação política”. A primeira, cumulativa, progressiva, nascida na Europa, fazia parte da
trajetória das “nações ilustradas” e delas não poderia ser apartada. Na lógica da história
como história da liberdade, a conexão entre o sentimento da alma humana e sua
realização civilizatória era plena naquele espaço. Isso não se negava.
A ação política, contudo, poderia desviar a rota. A “Velha Europa”, na fala de
Vasconcellos, não é a Europa decrépita e decadente que se apresentava na fala de alguns
589
AAC, 1823, volume 6, p. 57-58.
João Feres Júnior argumenta que o conceito de civilização não tinha uma dependência direta do
conceito de cultura nos séculos XVIII e XIX, relacionando-se mais a aspectos materiais, políticos e
morais dos povos. Argumenta-se, aqui, que essa dependência da cultura é um elemento que começa sua
construção exatamente naquele momento, talvez as disputas políticas antecedendo as definições
dicionarizadas e articuladas por intelectuais em obras sobre a temática. Cf. FERES JÚNIOR, João. O
conceito de civilização: uma análise transversal. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos
conceitos políticos do Brasil. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 423454.
591
ACD, 1827, 20 de agosto, p. 169. Grifos meus.
590
226
intelectuais das primeiras décadas do século XIX, como José Bonifácio. Este, refletindo
sobre Portugal, aponta critérios de “torpor mental” que teriam “minado a vitalidade do
corpo moral do Império” português, associado a um declínio nas artes e na ciência. 592 A
“Velha Europa”, em Vasconcellos, não se liga diretamente ao esgotamento no
desenvolvimento do corpo social, mas a uma ação política incisiva de velhas forças que
buscavam, como soldados do despotismo e do “velho tempo”, travar as conquistas da
liberdade e da civilização. Assim é que, na sua concepção, “o governo tem procedido
muito mal, metendo-se com a política da santa aliança que hoje felizmente jaz no
mesmo túmulo, em que derrubou o imperador Alexandre.”593
Para Vasconcellos, a Europa da Santa Aliança, a Europa da restauração, era a
“Velha Europa” que não poderia ser interlocutora do Império do Brasil. Posicionava-se,
assim, junto a forças de desenvolvimento da modernidade que associavam o progresso
das luzes ao avanço da civilização, aspirando às “duas nações grandes e livres
conjuntamente poderosas, justas e amantes da humanidade, [que] tinham em voz alta
proclamado já à face dos céus e da terra que nunca consentiriam que força estrangeira
viesse da Europa destruir as instituições americanas.” As forças da reação,
exemplificadas na Santa Aliança, eram as forças que, travando o progresso das luzes,
impediam o pleno desenvolvimento da América, e essas “duas nações grandes e livres”
– Inglaterra e Estados Unidos – constituíam, na fala do deputado, as novas forças desse
mundo novo.
Vasconcellos assim conclui seu posicionamento a respeito dessa questão:
Eu sou declarado inimigo de toda essa política Européia que se não
funda nas luzes do nosso século, e tende a fazer retrogradar o espírito
humano da marcha brilhante que segue para as trevas desses tempos, em
que só a força constituía direito. Nada, nada de Europa (apoiados
gerais), seja ela muito embora feliz debaixo da junta apostólica que a
domina, ou para melhor dizer, que a anarquiza, não quer fazer mais do
que uma única exceção que não será muito do agrado dos ministros que
promoveram os tratados; esta exceção é em favor da grande Albion;
nação benfeitora do gênero humano, que tem procurado plantar a
liberdade em todo o mundo, contra a qual lutam, mas debalde, todas as
juntas apostólicas, barreira firme contra o restabelecimento da tirania
que aquelas juntas tentam propagar pelo mundo todo.
Nada de Europa – ou nada da “Velha Europa”. A percepção da história do
desenvolvimento da civilização que vimos discutindo admitia que, embora fosse berço
592
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. cit., p. 34.
ACD, 1827, 20 de agosto, p. 169. Esse Alexandre refere-se, provavelmente, a Alexandre I, czar da
Rússia e um dos artífices da Santa Aliança.
593
227
dessa civilização, a Europa poderia ruir por uma ação política reacionária que voltasse o
mundo ao tempo de trevas em que “só a força constituía direito” 594 . A exceção, a
Inglaterra (“grande Albion”), como benfeitora do gênero humano, seguia firme na
marcha do progresso, plantando a liberdade pelo mundo. E isso num momento em que,
nas disputas políticas na Câmara dos Deputados, a Inglaterra mais e mais era associada
à grande força contrária ao comércio negreiro.595
A liberdade de ideias era outro elemento de manutenção da civilização contra o
barbarismo. Em discussão sobre projeto de lei a respeito da liberdade de imprensa, tema
sensível e de grande discussão no parlamento, proposto por Gonçalves Ledo em 10 de
junho de 1826 (e justificada pelo mesmo deputado sob o argumento de estar adotando
no projeto as “ideias luminosas do século”), o deputado Baptista Pereira defende o
projeto afirmando que o direito de comunicar a palavra por qualquer cidadão, presente
no artigo 1º da lei, é desconhecido “tão somente naqueles governos que se firmam na
arbitrariedade e na escravidão dos povos.” 596 Cruz Ferreira, dando continuidade à
defesa, afirma que
a invenção da imprensa foi um dos maiores bens para a humanidade:
não é preciso demonstrar esta verdade; mas convém saber que desde o
seu nascimento até 1501 foi livre em toda a parte. (...) O primeiro
homem, que estabeleceu restrições à imprensa, foi o papa Alexandre
VIII, cujo nome é infame na história. Isto aconteceu em 1501 e daí por
diante começarão as censuras que tantos males têm feito à humanidade,
que tantos obstáculos tem posto ao progresso das luzes na Europa. 597
Se a religião católica era garantia de manutenção da civilização, a atuação da
Igreja poderia contribuir para seu enfraquecimento, mergulhando o mundo no
obscurantismo598. Bernardo Pereira de Vasconcellos seria outro a trabalhar essa relação.
594
Em discussão de projeto na Câmara dos Deputados sobre a extinção da Intendência Geral de Polícia,
associada aos tempos do despotismo, Custódio Dias afirma: “parece-me que nada temos a invejar desses
homens do tempo do despotismo (...); nada temos a invejar desses tempos saudosos do despotismo.
Prouvera a Deus que pudéssemos acabar com alguns publicistas velhos, cujas ideias não estão em
harmonia com as do século. Eles são homens de outro século, que querem ensinar com os seus escritos as
suas ciências, mas não permita Deus tal; nós temos homens de outra parte, que nos esclarecem melhor do
que estes antigos; os homens são esclarecidos com as luzes do século, sabem quais são os nossos direitos,
sabem que não se deve ter obediência cega quando não são escravos senão da lei.” Cf. ACD, 1828, 10 de
junho, p. 77.
595
Voltaremos a essas discussões sobre a Inglaterra mais à frente.
596
ACD, 1826, 06 de julho, p. 55.
597
Idem, p. 58.
598
Afirmaria, no mesmo debate, Souza França a esse respeito: “Os crimes do santo ofício não eram outros
senão os do pensamento. Todo o mundo o sabe. Não se assava um homem pelo amor de Deus, depois de
ser privado ele e todos os seus herdeiros dos bens que possuía em proveito do mesmo santo ofício, só por
que ele pensava de um modo diferente daquele que interessava à cúria de Roma, ou aos chefes da
tirania?” Idem, p. 59-60. Noutro momento, em discussão de projeto sobre frades no Brasil, o deputado
228
Ao pedir a palavra para fazer uma indicação contra os jesuítas, afirma ser notório que o
gabinete romano, o papado, trabalhava no restabelecimento da monarquia universal dos
papas, pregando as duas espadas, material e espiritual:
Tão criminoso projeto não pode realizar-se, sem que volvam as trevas
em que pela primeira vez foi concebido e executado; maquina-se pois a
ruína da civilização e do saber. Escritores venais e os janizaros de
Loyola, renovam seus ataques contra os tronos e contra a liberdade dos
povos.599
Os entraves à difusão das ideias eram restrições ao espalhamento das luzes. “A
liberdade de pensar é essencial ao homem; mas também a liberdade de comunicar os
seus pensamentos é essencial à natureza humana e tão essencial como a primeira”,
defendeu o deputado Almeida Albuquerque na mesma discussão. “Se Roma não tivesse
perdido a liberdade de pensar, não teria chegado a ser o ludibrio das nações. Por que
razão no tempo do despotismo se mandava ensinar nas escolas só por certos livros, e se
vedavam todos quantos não fossem da mesma doutrina?” 600 , questiona. O entrave à
livre difusão de ideias aparecia como elemento de decadência da civilização romana e
como marco característico dos tempos do despotismo – por contraposição, o momento
presente deveria conectar-se a características que ressaltassem sua condição de
superioridade sobre os tempos passados, já que acumulara mais civilização na lógica
progressista do desenvolvimento. Almeida Albuquerque compreenderia isso na defesa
de projeto de liberdade de imprensa, ao afirmar:
nós vivemos no século das luzes, no século da liberdade; não devemos
ser menos liberais que outros povos incomparavelmente menos
adiantados que nós em civilização e conhecimentos, e que aliás tanto
Paula Souza, crítico do mesmo, alertaria para o perigo de um “espírito teocrático” ameaçar o Brasil, e
lembra: “Nós sabemos bem de mais a mais, que o século XIX não é o século XII”. Cf. ACD, 1828, 19 de
maio, p. 112. Nem todos aceitariam plenamente essa perspectiva conta a Igreja. Na discussão do artigo
sobre blasfêmia contra Deus ou contra a religião do Império, Cruz Ferreira afirmaria: Ora, a religião pode
ser caluniada; escritores ímpios têm contra ela dirigido os mais fortes ataques, uns atribuindo-lhe o
derramamento de sangue, que por outros motivos tem havido, outros tachando-a de inimiga das luzes,
destruidora das sociedades, e pretendendo que a decadência de Roma date da introdução do cristianismo,
e até seja por ele introduzida; e não será isto calúnia? Estará mal empregado este termo? Não vejo outro
que seja mais próprio.” Cf. ACD, 1827, 01 de junho, p. 09.
599
ACD, 1827, 09 de novembro, p. 187. O deputado Arcebispo da Bahia afirmaria, sobre os jesuítas,
noutra discussão: “Foi menos nos confessionários que nas escolas e nos livros que os jesuítas propagaram
e transmitiram a infernal máxima do regicídio proclamada e seguida pelos filósofos revolucionários da
Inglaterra e da França quando condenaram à morte os infelizes Carlos I e Luiz XVI, mas que é o que
tememos Sr. Presidente? O jesuitismo no Brasil e na América! O jesuitismo, planta exótica, e por ventura
a única que jamais pegará em o nosso solo! O jesuitismo que debaixo de qualquer forma, e com quaisquer
vestes que se apresente, há de sempre encontrar uma força repulsiva que o há de afugentar para além dos
mares!”. Cf. ACD, 1828, 10 de junho, p. 81.
600
ACD, 1826, 06 de julho, p. 59.
229
respeitaram a liberdade de pensar e de comunicar os pensamentos; falo
dos romanos antes do século, em que principiou a sua literatura. 601
Mas, como vimos no capítulo anterior, a defesa da liberdade descaracterizada
significaria para os coevos o risco da degeneração em anarquia. O projeto de liberdade
de imprensa avançava nas discussões com uma série de medidas e atuações para
qualificar a liberdade e desenhar seus limites. Isso provocou a crítica do deputado
Soledade, para quem a câmara ia fazendo “uma lei de escravidão em lugar de uma lei de
liberdade de imprensa.” A isso respondeu Lino Coutinho, um dos defensores da
liberdade qualificada:
É com efeito, Sr. Presidente, de lamentar que se chame a esta lei, lei de
escravidão em lugar de lei da liberdade de imprensa. Será liberdade
deixar ao arbítrio do homem malvado atacar o sistema constitucional?
Não, senhor presidente, isto não é conforme a lei, esta seria a liberdade
absoluta, o estado do homem selvagem incompatível com as leis da
sociedade, ou então é a liberdade dos falsos, dos maldizentes e dos
inimigos do sistema constitucional. Há de chamar-se lei de escravidão,
porque se querem coarctar abusos? Então não haja leis e a licença
tornará os homens tão livres que daqui virá a anarquia. 602
A verdadeira liberdade, atrelada ao princípio da civilização, que significava a
plena realização da história humana – aquela encravada no coração dos homens,
conforme interpretava o Reverbero alguns anos antes – era a liberdade que distinguia o
estado de selvageria daquela sob as leis da sociedade – definição dicionarizada de
polidez, como já vimos.
Luzes, ideias liberais e ilustradas, cristianismo: estes foram alguns dos fatores
mantenedores do progresso civilizacional na Europa603. A manutenção da civilização no
Brasil dependeria, portanto, nessa interpretação, da forma pela qual os fatores de vitória
sobre a barbárie no passado poderiam ser reproduzidos, em maior ou menor escala, no
combate aos fatores de barbarismo do presente.
A ação desses fatores ao longo dos séculos, como já dito, não se deu de modo
homogêneo. Há uma clara noção, para os dirigentes imperiais do Primeiro Reinado, que
o século XIX, posto fosse “das luzes”, não constituía uma unidade ilustrada. Existia
uma percepção da coexistência de diversas temporalidades, concepção dentro do
processo de surgimento da modernidade que Koselleck tão bem destacou. Para o autor
601
ACD, 1826, 07 de julho, p. 77.
ACD, 1826, 08 de julho, p. 89.
603
Poderíamos, ainda, acrescentar outros, como a agricultura, o crescimento populacional e o comércio.
Cf. AAC, 1823, volume 5, p. 110-111; AS, 1826, volume 2, p. 114-115; AS, 1826, volume 3, p. 172.
602
230
alemão, um dos modos de experiência histórica formalizados na passagem à
modernidade é a “simultaneidade da não-simultaneidade”. Isto é,
Dada uma mesma cronologia do tempo natural, pode-se falar de
diferentes níveis de transcursos históricos. Nessa fissura temporal
podem estar contidas diferentes camadas de tempo, as quais,
dependendo do agente histórico ou das situações investigadas, são
dotadas de diferentes períodos de duração e poderiam ser medidas umas
em relação às outras. 604
A construção de uma lógica da história como história da liberdade, atrelada ao
desenvolvimento da história da civilização, produziu uma percepção coeva de
sobreposição de camadas temporais naquela contemporaneidade. O século XIX era
entendido como próprio das luzes; a época era compreendida dentro da concepção de
novidade que rompia com as trevas do passado e inaugurava um novo tempo, referente
a um momento de progressão do desenvolvimento da humanidade como um todo. Não
obstante, percebia-se essa temporalidade como atravessada por distintos momentos, que
resultavam na coexistência da época das luzes com a época das trevas. Já vimos um
aspecto dessa percepção na crítica anterior de Vasconcellos à Santa Aliança. Aquela
crítica, porém, era voltada especificamente para uma ação que pretendia frear o
desenvolvimento da civilização; para um agente entendido como deslocado no tempo,
preso ao passado, fora de época – posto que exercendo sua ação sobre um espaço onde
as luzes já se haviam espalhado. Não era este, porém, o único caso de percepção do
deslocamento temporal. A percepção daquela coexistência entre luzes e trevas traduziuse na necessidade de um segundo distanciamento, não mais temporal em relação ao
passado cronológico – aquele que contrastava o passado de trevas ao presente de luzes,
ambos como unidades temporais autônomas –, mas, sim, num deslocamento temporal
em relação a um “passado geográfico”.
Afirmar a necessidade, para os atores políticos da época, de afastar-se de uma
“temporalidade geográfica” implica considerar que, para eles, o século XIX ainda era o
da barbárie e o do despotismo. Se a Europa era ponta de lança do processo de
acumulação das luzes e do progresso da humanidade, noutra ponta o barbarismo
mantinha firme a escravidão e opressão sobre o atraso. A síntese da outra ponta poderia
ser simbolizada na figura da “Turquia”, uma generalidade que abraçava o antigo
Império Otomano, em particular, visto como a contraparte não apenas da Europa física,
604
KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, p. 121.
231
mas, também, da cristandade, das luzes, das ideias liberais e de todos os elementos que
sustentavam o progresso da civilização no século XIX; mas definição que podia,
também, aplicar-se, de modo mais genérico, ao “oriente”. Era, portanto, um dos espaços
discursivos privilegiados para a “barbárie”.
Podemos perceber a seguir algumas dimensões desse deslocamento que produzia
essa distinção. Para tanto, voltemos momentaneamente ao Reverbero Constitucional
Fluminense. Não é outro o sentido das notícias estrangeiras, veiculadas pelo Reverbero,
extraídas do Constitucional de Paris, que, descrevendo os acontecimentos ligados à
Guerra de Independência da Grécia contra os Otomanos, afirma que “a sorte dos gregos
interessa a todos os amigos da humanidade”, frente às “crueldades há muito tempo
inauditas” praticadas pelos dominadores. 605 Noutra edição, de modo mais incisivo,
enxerto extraído da Gazeta da França e reproduzida no periódico lançava a pergunta
logo de cara: “Sois Grego, ou sois Turco?” 606. A questão, reproduzida pelo Reverbero
no Brasil, ardia em algumas discussões na Europa. Tratava-se, no jornal francês, de
refletir sobre se deveria ou não a França, à semelhança da Inglaterra, se meter na
disputa. E, para tanto, questões sagradas e civilizacionais se misturavam na reflexão:
A Fé Cristã, a civilização estão por acaso ameaçadas? A velha Europa
deve acaso levantar-se para ir combater um novo Gêngis Kan? (...)
nossos pais combateram os inimigos da Fé; é a favor deles que
deveríamos hoje marchar. Os cavaleiros da Corte de Luiz XIV correram
a Hungria para defender contra o Turco a civilização ameaçada; seria
agora preciso que nós corrêssemos a Trácia para ali defendermos a
Barbaria vacilante?607
A luta civilizacional no século XIX, da qual todos os elementos de resistência ao
despotismo faziam parte (a marcha, afinal, era expressa como de toda a humanidade),
juntava num mesmo caldeirão interpretativo contextos e momentos históricos distintos.
O conceito de “civilização”, que se fortalecia cada vez mais como viés explicativo 608,
abraçava todo esse caldeirão, a ponto de conflitar, ao menos retoricamente, qualquer
interesse econômico: à acusação do jornal francês de que a Inglaterra desejaria que a
França, envolvendo-se na guerra, derramasse seu sangue sem nada em troca (“Só ela [a
França] há 30 anos não tem visto crescer suas possessões (...) Bem pelo contrário ela é a
única, que tem visto diminuir seu território”, afirma o periódico europeu), somava-se
605
RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 36.
RCF, Número 6, 01 de dezembro de 1821, P. 81.
607
Idem, p. 82.
608
FERES JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização... op. cit, p. 210.
606
232
uma ironia que sugeria a grandeza francesa em colocar-se como escudo da civilização
ao invés de pensar apenas nos próprios interesses mesquinhos: “A espada de Bayard, e a
de Turenne ainda existem em França, será preciso desembainhá-las porque os
mercadores de Londres têm medo?...”609
A lógica interpretativa correria a década seguinte em todos os espaços de
discussão política aqui analisados. Em sessão de 26 de maio de 1823, na Constituinte,
discutindo-se os perigos que poderiam advir do exercício do poder pelo povo, Carneiro
da Cunha lembraria os deputados sobre os opositores que havia nas províncias,
afirmando que
em todas as nações em semelhantes tempos sempre há um partido de
oposição e divergência; mesmo em Constantinopla há muita gente, que
não se pode acomodar com a escravidão, apesar do terrorismo, que
infunde aquele despótico governo, de sorte, que se aparecesse uma
ocasião favorável, lançariam mão dela para o derrubar. 610
A combinação de despotismo e escravidão resultava na forma tirânica de
governo que, sendo contemporâneo cronologicamente, mais parecia resultado de tempos
tenebrosos já superados pela civilização. Não era o caso, como na fala anteriormente
destacada de Vasconcellos, de uma estrutura institucional deslocada no tempo, pois
buscando exercer a força sobre uma realidade já transformada (caso da Santa Aliança).
Era, no caso da “Turquia”, uma dominação político-institucional que se mantinha
plenamente integrada a uma sociedade e a uma realidade ainda condizentes com seu
exercício de força. A Turquia, nesse sentido específico, era a Europa antes do advento
das luzes e da civilização. Era seu passado, interpretado pelo mesmo universo
conceitual que “lia” a história europeia – e, por que não?, mundial – naquele momento.
Não obstante, como a citação acima deixa claro, o espírito de liberdade que era
inseparável do coração dos homens não se apagaria por completo mesmo nas situações
de plena dominação pelo despotismo: “mesmo em Constantinopla” a chama dessa
liberdade resistia à plena escravidão.
Assim, os limites a serem traçados pela civilização encontrariam na Turquia seu
mais bem acabado símbolo do que se não deveria transpor, passando esse limite a servir
609
Idem, ibidem. A espada de Bayard talvez se refira ao cavaleiro Pierre Terrail, senhor de Bayard, cujo
ardil teria levado a França à vitória sobre Caros I da Espanha na Guerra Italiana (1521-1526) durante o
cerco de Mezieres. Turenne talvez se refira ao Marechal Turenne, líder militar francês durante a Guerra
Franco-Holandesa (1672-1678). Em ambos os casos, o apelo a glórias militares do passado serviam de
reforço para a imagem defensora da civilização contra a barbárie.
610
AAC, 1823, volume 1, p. 168.
233
de exemplo e referência para a comparação de situações consideradas análogas na
Europa ou na América. Em discussão na Constituinte, em 1823, sobre os governos
provinciais, por exemplo, o deputado Costa Aguiar, falando dos males e das
arbitrariedades praticadas pelos antigos governadores e capitães-generais na colônia, os
classificaria como “mais desumanos, alguns deles, que os próprios pachás da Turquia
nas malfadadas províncias da Grecia” 611 . Noutra ocasião, na mesma Câmara, em
discussão sobre projeto de naturalização, Alencar criticaria autorização dada ao governo
“para mandar sair para fora do Brasil os cidadãos brasileiros só por suspeitos, isto por
terem nascido em Portugal! Será uma desgraça então para o cidadão brasileiro o ter
nascido no velho mundo! Onde já se viu semelhante cousa! Isto nem em Argel” 612. E
num debate a respeito de projeto sobre juízes de paz, também na Constituinte, Cairu
utilizaria os seguintes termos para criticar uma emenda da qual não gostara: “Esta
emenda é horrível, tal emenda não se proporia em Constantinopla”.
Os exemplos multiplicam-se. Em discussão, na Câmara dos Deputados, em
1826, sobre a lei de responsabilidade dos ministros, o deputado Costa Aguiar faz uma
longa exposição sobre como o poder corrompe. Diz, em defesa da lei, que a
consideração da possibilidade de ser denunciado pelo abuso desse poder pode influir no
ânimo de quem só pensa em seu interesse pessoal, abandonando o geral.
Essa
influência acabaria excluindo do poder o sujeito ambicioso que, por ser “tão
insuportável mandão, (...) só poderia ser hábil para mandarim na China, ou Bachá na
Turquia.”613 Não serviria à temporalidade brasileira. O mesmo Costa Aguiar, tecendo
uma contundente crítica a uma questão pontual sobre a atuação do governo da província
do Ceará, cujo parecer da comissão de constituição acusara de ser responsável pela alta
mortandade de um agrupamento de recrutas remetidos da província para a Corte,
afirmaria:
Talvez nem entre esses Turcos, que hoje com tanto horror e escândalo
da humanidade assolam os campos da Grécia, e seus míseros habitantes,
deixados a si mesmos, talvez que nem entre esses bárbaros se faça
embarcar tão grande número de desgraçados [recrutas], sem meios, e
sem socorros!! (Apoiados.). Só entre os Árabes do deserto
encontraremos exemplo entre esses bárbaros, que (...) fazem correr os
Idem, p. 178. Em outra sessão, Teixeira de Gouvêa diria ser “mister que diminuamos esta desconfiança
[dos presidentes de província]; e que os povos de uma vez se convençam que os presidentes de províncias
que criamos, não são os antigos pachás, e que eles hão de ser restritamente responsáveis pelo abuso de
poder, é necessário que pela experiência se desenganem que nós não pretendemos restabelecer, debaixo
de outro nome; o antigo governo de capitães-generais”. Cf. AAC, 1823, volume 3, p. 30.
612
AAC, 1823, volume 2, p. 104-105.
613
ACD, 1826, 26 de junho, p. 292.
611
234
malfadados escravos que apresaram, debaixo de amiudados golpes do
açoite, e do sabre, alimentando-os apenas no decurso do dia com
algumas poucas gotas de leite azedo de camelo!!! (Apoiados.).614
A comparação da atuação governamental no Ceará com a Turquia – ou com o
trato dos árabes sobre seus escravos – era a comparação temporal da civilização com a
barbárie. O deslocamento geográfico obedecia a critérios de deslocamento cronológico.
Certos elementos do país que se considerava parte da civilização, das luzes do século,
não poderia admitir certas questões. O deputado Cunha Mattos deixaria isso claro em
discussão sobre parecer da comissão de constituição da Câmara dos Deputados, em 7 de
maio de 1827. Esse parecer fora feito devido a requerimento do cidadão Estevão Maria
Ferrão Castello Branco, feitor do pátio e ponte da alfândega, que se queixava da
injustiça pela qual fora demitido de seu cargo pelo antigo ministro da Fazenda, visconde
de Barbacena, que teria abusado de poder discricionário.615 O parecer concede que a
reclamação se baseava em um pedido justo, apoiando o requerimento. O que alguns
deputados contestam, alegando diversos motivos para justificar a ação do ex-ministro.
Nesse sentido, tomado por uma sensação de indignação quanto às críticas de
seus colegas deputados, Cunha Mattos proclama:
Se eu tivesse nascido e estado em Constantinopla, em Tunes, Argel, e
Marrocos, e se eu tivesse estado na Pérsia, não me admiraria de ouvir
doutrinas tais quais se emitiram nesta augusta câmara, não me admiraria
que os ministros praticassem tais atos, e que assim fossem louvados,
mas no Rio de Janeiro, sr. Presidente, e nesta casa dizer-se que qualquer
ministro de estado pode dar um pontapé em um empregado público, e
pode atirar com ele para o inferno, é coisa que nunca me passou pela
ideia. Daqui à entronização do despotismo vai meia polegada
(apoiados). (...) Nada de despotismo, sr. Presidente, isto é coisa que já
passou no Brasil.616
O despotismo já passara; os argumentos que alegava ouvir encontravam-se
deslocados no tempo para Cunha Mattos. Fariam sentido, sim, naqueles espaços do
ACD, 1826, 10 de agosto, p. 102. Teixeira de Gouvea, falando em seguida, complementaria: “É
realmente incrível que no século 19, quando dizem que temos um sistema constitucional, que nos rege,
nós estejamos todos os dias a ver repetidos estes quadros de horror, que estejamos a ver gemer a
humanidade impunemente!”. Idem, p. 103.
615
O Parlamento no Império recebeu inúmeros requerimentos de cidadãos, que enxergavam naquele
espaço, em especial a Câmara dos Deputados, uma instância de referência para exercício de direitos e
para interferir nos rumos da política. O mesmo valia para câmaras municipais, que remetiam pedidos à
Corte. Cf. PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado
Imperial Brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010.
616
ACD, 1827, 07 de maio, p. 35.
614
235
presente que ainda estavam no passado. Não ali no Brasil. Aquele momento, naquele
espaço geográfico, já passara, segundo o deputado.617
O uso da “Turquia” como parâmetro para exemplos que se não coadunavam com
o Brasil era um recurso à disposição dos coevos. Na discussão sobre orçamento para
1828, na Câmara dos Deputados, o Arcebispo da Bahia, deputado, faz uma longa
intervenção, criticando aqueles colegas que insistiam, segundo sua perspectiva, em
defender políticas de governo semelhantes à da China ou do Japão, em particular no
tocante ao que considerava um “isolamento diplomático” – e a crítica, aqui, recaía a
deputados como Vasconcellos, que, como visto anteriormente, defendeu para este
orçamento específico o corte de embaixadas na Europa, sob argumento de que se
deixasse a Europa à Europa, e a América à América, com a crítica à Santa Aliança. A
tais posturas, responde o Arcebispo:
Este é o meu modo de pensar, não podendo jamais admitir a ideia, que
aqui tem por vezes aparecido, de nos reduzirmos no estado da China ou
do Japão. Como é que o Brasil tão avançado já na carreira da ilustração
poderá retrogradar, segregar-se no mundo civilizado, e invejar a sorte de
um país que se acha no mais baixo degrau da escada da civilização.
Sabe-se quanto o povo chinês é supersticiosamente ligado às mais
ridículas e pueris minúcias dos seus ritos cerimoniais, e costumes: que
toda a sua ciência está circunscrita no estreito círculo de uma moral
especulativa, e do longo e penoso estudo dos caracteres do seu alfabeto;
que privado de todo o comércio e comunicação externa que é o veículo
das luzes e das boas instituições, eles sabem hoje tanto quanto sabiam
há dois mil anos, e que por isso mesmo são inimigos, e incapazes de
toda a inovação, e será possível que no seio de uma câmara onde brilha
eminentemente o espírito de melhoramento, e de reformar saudáveis se
façam votos para que imitemos um povo inimigo e incapaz de toda a
reforma? É seguramente uma lembrança inadmissível; devemos
conservar nossas relações diplomáticas com a Europa, e voto pelo
orçamento da comissão.618
A China e o Japão, que em diversos momentos dos debates parlamentares
apareciam associados à “Turquia”, constituíam um péssimo exemplo não apenas por
suas características próprias, mas por sua recusa ao “melhoramento” que seria tão
617
O mesmo Cunha Mattos, em discussão sobre lei a respeito de pensões para viúvas e órfãs militares,
defendendo a manutenção do benefício, responderia, dirigindo-se àqueles colegas que traziam exemplos
europeus, especialmente da Inglaterra, para justificar a manutenção das pensões: “Não é só no Brasil que
há socorros, ou pensões militares: há na Inglaterra, na França, na Áustria, e também na Turquia.” Cf.
ACD, 1827, 15 de maio, p. 89.
618
ACD, 1827, 23 de agosto, p. 206. Mais à frente, complementaria o mesmo deputado: Quanto à China
não confundi a sua legislação com o sistema de fechar-se, e segregar-se do resto dos povos; mas quis
mostrar que essa legislação é o fruto desse sistema, ou dogma político, porque desde o momento em que
ela abrisse os portos aos estrangeiros, sentiria as necessidades da civilização, e abandonaria os seus
costumes e rotina. Nada portanto de imitar a China.” Cf. idem, p. 208.
236
característico do Brasil. A recusa à mudança, que se consubstanciava num fechamento
tendendo à imobilidade (“sabem hoje tanto quanto sabiam há dois mil anos”), tornavaos “incapazes de toda inovação”, portanto aprisionados no “mais baixo degrau da
escada da civilização”. Manter relações com esses espaços significaria travar o
desenvolvimento do Brasil. Seria retrogradar. Era preciso manter os olhos voltados para
a Europa. Para o bem do próprio Império.
Mas a comparação com a Turquia podia igualmente servir de parâmetro para a
caracterização dos países europeus sobre os quais postavam-se os olhos do Império.
Para o bem e para o mal.
Se o cristianismo salvara a civilização europeia da barbárie, como visto
anteriormente na interpretação dos coevos, Silva Lisboa, no Senado, lembraria que
também a Áustria fora alvo da salvação, tornando-se, “com a firmeza do catolicismo”,
“o mais tranqüilo, seguro e poderoso da Europa, sendo o baluarte contra o turco, que
por vezes tem tentado a destruição da cristandade”619. Se as conquistas liberais incluíam
o direito à propriedade, parte indissociável da noção de direitos predominante nas
conformações estatais nascidas da Era das Revoluções, Carneiro de Campos lembraria
que “só no Governo do Turco é que há isso de ninguém ter propriedade, e que tudo é do
Grão Senhor; nos Governos da Europa ainda ninguém disse tal cousa”620. Se o direito à
resistência contra o despotismo e à liberdade era outra parte indissociável da noção de
civilização que se construía na fórmula “luzes do século”, tal deveria ser balanceada,
com a lembrança de Borges de que nem toda revolução destrói o despotismo, às vezes
apenas atacando o déspota, e que nem sempre a resistência é resultado direto da dureza
de um governo, ou “os Governos despóticos, como por exemplo o da Turquia e
Barbária, são os mais justos, visto que os respectivos Estados deram por séculos sem
revoluções contra a sua Constituição”621.
Mas também a abordagem inversa poderia ser verdadeira. Em discussão sobre o
voto de graças, em resposta à Fala do Trono de 1828, na Câmara dos Deputados,
debatia-se trecho do discurso do Imperador em que, falando sobre as relações do
Império com as potências europeias, indicavam-se as novas potências que haviam
reconhecido o Brasil independente (Rússia e Saxônia) e, em seguida, lamentava Dom
619
AAC, 1823, volume 6, p. 75.
AS, 1829, volume 1, p. 72.
621
AS, 1829, volume 1, p. 102-103.
620
237
Pedro I que não acontecesse o mesmo “da parte da corte de Madrid, que é o único
governo da Europa que falta a praticar esse ato.”622
Tal não agradara aos deputados. Clemente Pereira criticaria Fernando VII,
chamando-lhe de ingrato que fora libertado por seu povo e que pagava com cadeia e
morte.623 Para o Arcebispo da Bahia, o principal motivo da “obstinação da Espanha em
não reconhecer a nossa independência provém do ódio e do rancor que ela professa à
liberdade americana”, temerosa de que “o majestoso exemplo do Brasil contribua para
fortificar suas antigas colônias no amor da independência, e reanimar a sua coragem,
para se não tornarem a curvar a um jugo proscrito pela razão e pela política.” 624
Gonçalves Ledo faz um pedido:
Abra-se a história; a cada página aparecem os documentos de seus erros
e de seu despotismo [da Espanha]. Onde a hidra ministerial tem
desenvolvido maior prepotência? Qual a nação que mais largas deu à
inquisição? Qual a que fez pagar com sangue as lágrimas que a
compaixão arrancara a um de seus reis, quando ouvia os gritos e sentia
o cheiro das vítimas que se queimavam nesse tribunal do inferno? Qual
a que lançou corpos de americanos para sustentar a fome de animais
ferozes, que estimulava contra os miseráveis senhores de um terreno
que ela invadia? Qual a que tem acumulado mais perjúrios, e ensinado
ao mundo que o juramento é ato de interesse, e não penhor de religião e
verdade? E deve sentir o Brasil que este governo, enquanto assim
continua a obrar, não reconheça a sua liberdade e regeneração? 625
Expunham-se aí, em sequência, todos os elementos característicos da barbárie
que teria caracterizado há tempos a Espanha. A abertura da História propiciaria o pleno
reconhecimento de onde a intolerância e o absolutismo foram mais fortes; onde os
aspectos mais caracteristicamente contrários às “luzes do século” mais encontravam
raízes. A manutenção da barbárie nesse espaço espanhol era afirmativa compartilhada
por Paula Souza, para quem “quando a Espanha deixar de ser escrava dos frades,
quando reconhecer que a inquisição é incompatível com as luzes do século XIX, então
reconhecerá a nossa independência, então procurará a estrada de que se tem desviado, e
fará o que deve para conosco.”626 O caminho da Espanha estava distorcido: não obstante
622
ACD, 1828, 03 de maio, p. 11.
ACD, 1828, 12 de maio, p. 51.
624
Idem, ibidem.
625
Idem, p. 53. E completaria: “Sr. Presidente, impolítico fora não desaprovar no meio da América a
conduta do governo espanhol: esta desaprovação formal, forte e Enérgica nasce da natureza da nossa
revolução, altamente criminada pela conduta desse gabinete; é até um tributo de gratidão para com os
governos da Europa que já cumprirão esse ato de justiça.”
626
Idem, p. 54. Para Lino Coutinho, “na Espanha, senhores, há guerra ou uma luta do rei com o povo;
quer este mudar de sistema; aquele não se quer amoldar às luzes do século”. Idem, p. 55.
623
238
pudesse alcançar o Brasil, os desvios provocados pelos elementos de entraves às luzes
do século atrasavam seu desenvolvimento.
A Espanha, em síntese, encontrava-se, naquelas falas, deslocada temporalmente
das luzes do século. O que permitira comparações com aqueles outros espaços que, no
XIX, também se encontravam fora das luzes.
Costa Aguiar, após questionar se “haverá um só brasileiro que não deseje àquele
país e a todo o mundo, uma liberdade bem entendida e um governo adequado ás luzes
do século?”, sendo apoiado pelos colegas, faz uma dura crítica:
Comparou-se o governo da Espanha com o da Turquia. Tal é porém, Sr.
Presidente, o estado da Espanha, que nem esta comparação pode
quadrar-lhe: na Turquia ao menos há governo, porque existe ainda um
dos fundamentos de um governo, a força: ali o déspota é obedecido e se
assim não fosse, outra teria sido a sorte dos míseros gregos há muito
tempo.627
Tamanha era a dimensão da crítica à Espanha que um elemento positivo se
buscava na Turquia para produzir-se uma comparação favorável a esta. 628 Lino
Coutinho iria além. Afirmaria que o Brasil não se deveria humilhar e pedir o
reconhecimento da independência a esse “gabinete despótico e tirano”, inclusive
comparando a situação do Império à do... Haiti:
S. Domingos, uma república de homens de cor, soube sustentar o seu
caráter, e não andou pedindo como por esmola que a França o
reconhecesse como o vasto, rico e poderoso império do Brasil, que
neste fato mostrou-se muito pobre, muito mesquinho e muito sem
vergonha, não por culpa dos seus cidadãos, mas por culpa de um
governo fraco (apoiado), que parecia desmaiar com falsos receios de
que a nossa independência não fosse reconhecida. 629
Naquele momento, na retórica crítica de Lino Coutinho ao governo, o Brasil
apresentava-se como mais “pobre e mesquinho” do que São Domingos. A dignidade da
nação que mirava a Europa rebaixava-se à da “república de homens de cor”. Pergunta:
que honra poderá resultar ao Brasil o reconhecimento de um déspota, como pelo “Grão
Senhor de Constantinopla ou pelo rei de Argel”? “Nenhuma certamente. Logo, não nos
interessaria, ou não deveria interessar, que Fernando VII reconhecesse a nossa
independência, bastando que o fizesse quando reconhecesse o sistema errado em que
627
Idem, p. 52.
Nem todos concordariam. Paula Souza, por exemplo, afirmaria: “embora se diga que a Espanha está
próxima à sua dissolução: ainda figura como nação europeia. Não tem semelhança com a Turquia, porque
esta não se contempla como nação europeia”. Idem, p. 60.
629
Idem, p. 54.
628
239
andava, mudando seu curso. Apelar ao reconhecimento de espaços tão marcados pela
barbárie quanto Turquia ou Espanha, naquele contexto, era reduzir-se a outro tipo de
barbárie, rebaixando-se ao Haiti.630
Mas não acabaria aí. Lino Coutinho também insistiria na teimosia espanhola,
rebaixando também a nação europeia ao nível de barbárie oriundo da dimensão africana
da constituição da modernidade, tal como o exemplo de São Domingos:
Não teima o governo de Espanha por capricho? Por ventura não
sabe ele que não pode ser absoluto no tempo presente? Que as
luzes têm chegado a ponto que os governos absolutos hão de por
força baquear? Elas caminham para diante com mais velocidade
do que o erro, e eu espero que até entre os selvagens da costa
d´África há de haver liberdade, eles ainda hão de ser homens
livres.631
Continuaria o nobre deputado: “o tempo de meninice do governo humano
passou; é chegado o tempo da virilidade; este é o tempo das luzes, não há forças que lhe
resistam; hão de sucumbir os déspotas absolutos; (muitos apoiados), há de triunfar a
liberdade.” Quem não compreendesse essa regra, que sintetizada a história da liberdade,
não alcançaria plenamente aquela modernidade política que tanto definiria a civilização
no século XIX, na época das luzes. Restaria contentar-se com a comparação
subordinada aos resquícios da modernidade escravista, que tornava o Brasil inferior à
dimensão moral do Haiti e tornava a Espanha atrasada na corrida em relação aos
“selvagens da Costa d´Africa”, que alcançariam a liberdade ainda antes do país europeu.
Restava à Espanha essa comparação, bem como com aquela da Turquia.632
***
O “governo turco”, assim, aparecia como limite da civilização no século XIX,
um resquício de passado na contemporaneidade, que talvez nenhum dos fatores de
manutenção da civilização que tenham dado certo na Europa poderia alterar. Afinal,
O deputado Gama discordaria: “não se deve dizer que por ter um governo o sistema absoluto não
devemos tratar com ele. Temos o exemplo de Bonaparte, usurpador do trono francês, e com o qual
trataram todas as nações da Europa. E o que fez ele depois de reconhecido? O seu primeiro cuidado foi
derrubar a constituição, e o monarca inglês apesar de tudo não deixou de conservar relações com a
França.” Idem, p. 56.
631
Idem, p. 61.
632
Que era questionada pelo mesmo Lino Coutinho: “Talvez que o governo da Turquia seja melhor do
que o da Espanha; ao menos Mahmoud procura civilizar os turcos, e acha-se com forças de fazer frente a
três poderosíssimas nações. Estará a Espanha nas mesmas circunstâncias?” Idem, p. 61.
630
240
como diria o Marquês de Caravelas, “o Grão Turco só poderia acolher e elogiar uma
Constituição que escravizasse os povos” 633. Em nada parecido com a figura de Pedro I,
que acolhera e consolidara o sistema constitucional no Brasil.
E este é o último elemento a se tratar aqui. Se as pontas do espectro das
civilizações são Europa e Turquia (sincronicamente) e as “luzes do século” e as trevas
do passado (diacronicamente), e se os elementos acima analisados funcionam como
fatores de manutenção da civilização, então que outros elementos poderiam romper a
acumulação temporal e introduzir novos aspectos de mudança?
A revolução, uma vez rompida, poderia instaurar uma situação em que “nada
valem ordens, leis, nem cadafalsos contra a opinião geral”, como diria Rodrigues de
Carvalho em relação à revolução em Portugal 634. Diria ainda que as determinações de
Portugal fizeram o povo de cada província julgar-se “soberano”: “o tempo era de
revolução, em que todos querem tudo a um tempo”. E mais: “os escritores que deviam
conduzir a opinião publica, explicando qual era a essência da soberania da nação e a sua
indivisibilidade, entrarão a lisonjear o povo e em breve tempo foram tantas as
soberanias quantas as províncias”635.
A revolução quebrava definições, introduzia o imponderável. Para Costa Aguiar,
incluía “alguns transtornos, que desgraçadamente se tem sentido, próprios das mesmas
revoluções”. Dentre esses produtos ruins das revoluções estão o mal entendimento da
palavra liberdade, a “esperança de bens imaginários, e do belo ideal” e o “choque das
paixões e de interesses desencontrados”636. Para Henriques de Rezende, “não há cousa
mais fácil do que confundir; e cada um quer que as cousas sejam dirigidas segundo as
teorias e imaginações que têm na ideia”. Assim, sendo esta época presente
“verdadeiramente revolucionária” e considerando que “nas revoluções os princípios
633
AS, 1827, volume 1, p. 40. A relação entre cristianismo como baluarte da civilização e a sua ausência,
na Turquia, fica explícita na fala de Lino Coutinho em discussão sobre projeto de lei que proibia a
admissão de frades estrangeiros no Império. Pergunta-se o deputado sobre o tipo de frades que podem vir
ao Brasil, se em busca de asilo ou se para pregar a palavra de Cristo. “Ora, Sr. Presidente, de duas uma; se
esses frades vêm procurar asilo, nós não queremos frades criminosos, porque frade que foge de seu país,
não nos serve; se vêm pregar a fé de Cristo, eu digo que nós não precisamos de frades estrangeiros para
este ministério; e não é isto uma desonra para o Brasil? O Brasil não tem apóstolos de Jesus Cristo que
ensinem a sua doutrina? Precisamos destes frades que vêm aqui com uma linguagem bárbara ensinar a
doutrina cristã? O Brasil não é a costa da África; nós temos muitos padres, muitos frades que nos pregam
a fé de Cristo; e por isso não temos necessidade de barbadinhos, de congregados, nem de outros frades. E
de mais, senhores, se eles abrasados nesse amor de Deus, querem pregar a fé de Cristo, porque não vão
para a Turquia? E vêm então para o Brasil, onde todos são católicos romanos e muito católicos
romanos!....” E ainda repetiria, mais à frente: “se pois querem pregar a fé de Cristo, podem ir para a
Turquia. (Apoiados.)” ACD, 1828, 11 de junho, p. 89-90.
634
AAC, 1823, volume 1, p. 97.
635
AAC, 1823, volume 1, p. 177.
636
AAC, 1823, volume 1, p. 178.
241
todos são atropelados”, “o governo no estado presente é obrigado a ir levando a barca
como quer o ímpeto da corrente, apenas dirigindo o leme em ordem a se não quebrar em
algum cachopo. É necessário que o rigor dos princípios ceda às circunstâncias: é o que
temos feito, e é o que somos obrigados a ir fazendo ainda” 637. A época revolucionária
abria um conjunto de possibilidades inatendíveis enquanto a própria revolução não
arrefecesse, posto que, subjugando-se a ordem às paixões, a própria civilização, tal
como era entendida, via sua garantia de existência ameaçada. As circunstâncias
passavam a imperar sobre as vontades.
Não seria à toa que a busca pela prevenção de revoluções ocuparia as
preocupações dos dirigentes. Não seria à toa que o exemplo francês, como veremos na
seção seguinte, seria tão relevante para os dirigentes imperiais no Primeiro Reinado.
Não seria à toa, finalmente, que, à fala de Andrada Machado (“Acabou a nossa
revolução? Nem ainda começou; a inteligência descortina-lhe ao longe a medonha
catadura, e o coração se encolhe de susto ao imaginá-la; não apareceu ainda, mas
aparecerá por desgraça nossa”638), responderia Muniz Tavares com consternação:
Ah! Sr. Presidente? (sic) Causa-me horror só o ouvir falar em
revolução; exprimo-me francamente como um celebre político dos
nossos tempos – Les revolutions me sont odieuses parce que la libertem
est chere - , odeio cordialmente as revoluções, e odeio-as porque amo
em extremo a liberdade; o fruto ordinário das revoluções é sempre, ou
uma devastadora anarquia, ou um despotismo militar crudelíssimo; a
revolução sempre é um mal, e só a desesperação faz lançar mão dela,
quando os males são extremos. 639
A disputa entre civilização e barbárie poderia estar por um fio caso a
“devastadora anarquia” ou o “despotismo militar” triunfassem. Por isso observar com
atenção os faróis europeus poderia ser um excelente remédio contra as perspectivas da
desgraça.
5.2) Inglaterra, França e os exemplos a seguir.
Em discussão sobre a lei de responsabilidade dos ministros, no Senado,
proclamou o José da Silva Lisboa, então Barão de Cairu: “Jamais me envergonharei de
me conformar às regras da legislação dos dois povos, que por suas grandes luzes são
637
AAC, 1823, volume 2, p. 140.
AAC, 1823, volume 1, p. 127.
639
AAC, 1823, volume 1, p. 130.
638
242
chamados os olhos da Europa”640. Cita, então, exemplos de práticas nos tribunais da
Inglaterra e da França, com o intuito de restringir o número de senadores “recusáveis“
pelo ministro acusado do crime.641 Segundo Cairu, “Na câmara dos lords em Inglaterra
não se dão recusações, e na dos pares em França só se admitem com as causas que a lei
enumera.”642 Noutra sessão, ainda sobre essa discussão, repetiria o senador: “As minhas
opiniões no senado são meras razões de duvidar; se aparecem outras que as vençam, e
me convençam, cordialmente me submeto à decisão. Impugnei as recusações sem causa,
pelo exemplo da Inglaterra e França, que se reputam os olhos da Europa” 643. E repete os
mesmos exemplos já dados.
Ambas as falas são simbólicas. Sendo verdade para os contemporâneos que a
Europa era “foco das luzes e da civilização, escola das artes e das ciências, senhora das
riquezas do mundo pela sua aperfeiçoada indústria e comércio”, locus onde o “espírito
geral é constitucional, os ânimos de todos se dirigem a reformar as velhas instituições,
que por arbitrárias e injustas são incompatíveis com a sua atual civilização”, numa
síntese de Carneiro de Campos em 1823644, então mais verdadeira é a lógica que associa
o “espírito europeu” a duas potências do período: Inglaterra e França.
Inglaterra e França constituem os exemplos de onde a maioria esmagadora de
referências ao passado e ao presente se reúnem. Quando se pensa em desenvolvimento e
progresso das luzes, pensa-se, fundamentalmente, em Inglaterra e França. A primeira,
tida como “país clássico da liberdade”, em expressão pronunciada por diversos atores ao
longo da década, é também percebida como símbolo da vitória da moderação sobre a
anarquia, das luzes sobre as trevas – embora tal vitória, como temos visto e ainda
poderemos vislumbrar, jamais pudesse ser tratada como permanente. A segunda,
reputada por suas luzes, carregava consigo, porém, uma tensão permanente: sendo terra
da civilização, foi também onde a barbárie atingiu maiores níveis no tempo das luzes,
com a Revolução de finais do século XVIII.
Podemos perceber a importância que Inglaterra e França carregam com um
exercício de percepção da quantidade de “referências exemplares” presentes nos
640
AS, 1826, volume 4, p. 146, grifos no original.
Pela lei de responsabilidade de ministros, o Senado convertia-se em Tribunal de Justiça para
julgamento dos acusados – sendo “todos os senadores” considerados “juízes competentes”. As exceções a
esse “todos” pautavam a discussão, buscando definir quais e quantos senadores poderiam ser recusados
pela parte acusada, justificando-se tal medida para garantir a imparcialidade do processo. A lei está na
CLIB, 1827, parte 1, p. 59-60.
642
AS, 1826, volume 4, p. 146.
643
AS, 1826, volume 4, p. 188.
644
AAC, 1823, volume 6, p. 24-25.
641
243
discursos da Câmara dos Deputados e do Senado. Chamei de “referências exemplares”
toda referência, seja ao passado ou ao presente, nas quais um país, região ou qualquer
outro espaço delimitado estrangeiro aparecesse como exemplo a ser seguido ou
recusado na afirmação de determinada política para o Brasil. Em seguida, contabilizei
todas as “situações de referência” em que essas referências exemplares apareciam – isto
é, cada discurso em que a referência exemplar era trazida à discussão. Uma “situação de
referência”, portanto, é o discurso em que aparece a referência exemplar (cada situação
de referência pode comportar inúmeras referências exemplares ao mesmo espaço, mas
ignorei a repetição delas num mesmo discurso).645
A pesquisa nos anais parlamentares para o Senado e para a Câmara dos
Deputados nos permitiu chegar aos seguintes dados:
Gráfico 4.1: percentual de referências no Senado
Holanda
3%
Espanha
3%
Grécia Antiga
3%
EUA
7%
Outros
9%
Roma
9%
Inglaterra
38%
França
28%
Fonte: AS, 1826-1829. Total de 810 referências.
645
Pela própria natureza das fontes utilizadas, esta análise não pretende ser mais do que um exercício. É
claro que nem todas as referências exemplares necessariamente fazem menção direta ao espaço onde
busca a inspiração; tal pode ser feita indiretamente. Da mesma maneira, as ausências na documentação,
fruto de resumos ou fatiamentos dos taquígrafos, podem distorcer os dados gerais. O mais importante aqui
é atentar para as diferenças percentuais, mais do que para os números absolutos ou as frações individuais.
244
Gráfico 4.2: percentual de referências na Câmara dos Deputados
Alemanha
2%
Holanda
2%
Roma Antiga
6%
Outros
14%
Espanha
5%
Grécia Antiga
2%
Inglaterra
34%
EUA
10%
França
25%
Fonte: ACD, 1826-1829. Total de 1550 referências.
De 2360 referências exemplares presentes em discursos colhidos no Senado e na
Câmara dos Deputados, a soma de Inglaterra e França aparece, respectivamente, com
um total de 66 e 59% em cada um dos espaços. Em contrapartida, duas referências
clássicas da política parlamentar no ocidente, Roma e Grécia, somam, respectivamente,
12 e 8% das referências.
Não é de se estranhar essa distribuição, em especial no que se refere à presença
maciça dos dois países que foram espaços da “dupla revolução”.646 Tidos por exemplos
maiores das “nações cultas”, é à sua situação que os dirigentes imperiais aspiravam por
excelência. Simultaneamente, a partir do que percebiam como risco de anarquia após os
eventos revolucionários do final do século XVIII, é a elas que apelavam para buscar a
necessária experiência sobre como agir para evitar, no Brasil, a repetição de eventos que
consideravam tão funestos, modificando, inclusive, a lógica que discutimos
anteriormente no caso do Reverbero. No momento da Independência, como vimos, os
exemplos sul-americanos foram cruciais para a percepção dos caminhos a se seguir na
construção do Império independente. Ao longo das discussões parlamentares no
Primeiro Reinado, porém, as referências às repúblicas vizinhas mínguam frente às dos
“polos da civilização”.647
646
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
A exceção na América republicana são os Estados Unidos, que foram de referências exemplares em 7
e 10% do total de referências no Senado e na Câmara dos Deputados, respectivamente, alcançando, assim,
o terceiro lugar geral e superando os demais países europeus. Discutiremos alguns elementos da
aproximação do Brasil com os EUA no capítulo 6.
647
245
Vejamos como foram construídas visões sobre Inglaterra e França e como tais
visões articulavam-se à interpretação acerca da trajetória histórica da liberdade e da
civilização, que vimos discutindo até aqui.
A Inglaterra, desde o começo da trajetória do Brasil independente, foi vista
como referência a ser levada em consideração. Sendo considerada o “país clássico da
liberdade” – expressão corrente em todo o período analisado – forneceria diversos
exemplos que, segundo senadores e deputados, deveriam ser seguidos pelo Brasil648.
Para Carneiro de Campos, por exemplo, a liberdade, sendo constitutiva do povo inglês,
se estamparia na sua própria cultura:
os ingleses [são] tão zelosos da sua liberdade, que em todas as suas
ações ostentam um caráter nobre e altivo, não se reputam abatidos pelas
homenagens que prestam ao seu rei, porque consideram o esplendor do
trono, como uma imagem ou reflexo da dignidade nacional, e querem
pelos respeitosos atos que praticam para com o chefe da sua união
política, granjear-lhe a mais alta consideração das nações estranhas. 649
País símbolo da liberdade, a Inglaterra seria também considerada exemplar em
todas as demais áreas associadas à civilização. Em discussão sobre a fundação de
universidades, Silva Lisboa recorre à fundação de Oxford, “a mais antiga universidade
da Europa”, “pelo grande rei da Inglaterra Alfredo”, a apenas duas léguas de Londres,
que também foi depois a sede de grandes estabelecimentos literários”. Tal exemplo
justificaria a fundação de uma universidade na capital do Império - proposta que
acabaria vencedora – , e não alhures, como defendiam outros. Afinal, desse primeiro
passo, dado pelos ingleses, a consequência foi que
hoje tanto sobressaem [os ingleses] nas ciências, se prezam de ainda
serem mais eminentes nas artes, regozijando-se de serem todos eles os
mais instruídos práticos, talvez hoje excedendo aos franceses, que até
Juvenal disse terem sido os seus mestres na eloquência: Gallia
causídicos docuit facunda britannos.650
Os ingleses são admirados pela potência marítima e comercial, fruto de
regulamentação “pela experiência dos séculos, e cabedal de meios, que nós não
temos”651 , fruto também de seu ato de navegação, a quem “deve a Inglaterra o seu
grande comércio marítimo, e o auge da força em que ora se acha; e se nós a não
648
Para ficar apenas em um exemplo, cf. a fala de Carneiro de Campos sobre as forças armadas em países
civilizados, considerando que a Inglaterra oferece o melhor exemplo de organização exatamente por ser
“país clássico da liberdade”. AAC, 1823, volume 3, p. 134.
649
Idem, p. 161.
650
AAC, 1823, volume 4, p. 171-173.
651
Fala de Borges. AS, 1826, volume 3, p. 98.
246
imitarmos igualmente nisto, animando e favorecendo a nossa navegação, vê-la-emos
acabar sufocada pela das outras nações”, como aconteceu com Portugal 652. Além disso,
são também admirados por terem, no passado, passado por despotismos, mas
conseguido encaminhar bem sua trajetória 653 . Diferentemente da França, que muitas
vezes aparecia oferecendo o “outro lado”. Ou seja, oferecia o exemplo dos riscos que se
corria caso o caminho para a civilização não fosse bem traçado.
Na construção do arcabouço político-administrativo brasileiro, por exemplo, em
diversos momentos surgiam discussões que tocavam na questão dos direitos do povo
brasileiro e nos limites dos poderes instituídos. A linha a ser cruzada era por demais
tênue para ser ignorada. Era, precisamente, a fronteira que separava a “mestra das
civilizações” (Inglaterra) dos “horrores” (França).
Na discussão sobre a lei de responsabilidade dos ministros, por exemplo, as duas
dimensões da civilização europeia se cruzam em alguns momentos. Casos que
envolviam julgamentos costumavam ser ótimas oportunidades para sincronizar as
disposições do Império àquelas dos centros da civilização europeia, assim como ótimas
oportunidades para lembrar os limites da adoção de certas medidas. Uma palavra mal
interpretada poderia causar muitos danos.
Logo na discussão do artigo primeiro, sobre a responsabilidade dos ministros em
casos de traição, o senador Carneiro de Campos, após dizer que participaria do debate
mesmo sendo ministro, compara as possibilidades de crime por traição previstas para o
Brasil com aquelas da Inglaterra. Diz ele que os ingleses
“reduziram a responsabilidade dos ministros a três casos, que vem a ser,
na expedição de ordens; abuso de leis, e dissipação dos bens nacionais;
porém a nossa constituição foi muito mais exuberante nesta parte, e
entre esses casos incluiu mesmo alguns que parecem mais próprios do
individuo do que do ministro.”654
A Constituição, em seu artigo 133, previa os ministros responsáveis por seis
atos, a saber: traição; peita, suborno ou concussão; abuso do poder; falta de observância
da lei; pelo que obrarem contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos e,
finalmente, por qualquer dissipação dos bens públicos 655 . Para Caravelas, além de
exagerar
quantitativamente,
dobrando
o
número
de
possibilidades
para
a
652
Fala do Visconde de Paranaguá. Idem, p. 99.
Ver, por exemplo, a interpretação dos governos de Carlos II e Jaime II como sendo despóticos em AS,
1828, volume 2, p. 218.
654
AS, 1826, volume 4, p. 69.
655
Constituição Política do Império do Brasil, 1824, art. 133.
653
247
responsabilidade em relação à Inglaterra, a Constituição (da qual ele fora um dos
redatores, diga-se de passagem) ainda havia exagerado qualitativamente. Para o
senador, “convém agora definir bem o que se entende por traição, do contrário,
deixando-se esta palavra, com certa amplitude, de qualquer cousa se fará um crime,
como a experiência infelizmente tem mostrado.”656
Caravelas remete à experiência com o exemplo dos romanos, os quais, “desde
Sylla entraram e aumentaram a lista dos crimes de lesa-majestade, de maneira que, no
tempo de Augusto, trazer um anel com o busto do soberano e entrar com ele em casa de
uma prostituta era um desses crimes”657. Como mirava o presente, e não o passado, já
superado, Caravelas preferia o exemplo inglês, mais adiantado, e a limitação do termo
“traição”.
Igualmente considerava Silva Lisboa, na mesma discussão, em discurso em
resposta ao Visconde de Barbacena, que tentara incluir no rol de traições a prática de se
atentar contra a religião católica romana. Para tal, apelara ao exemplo de Jorge III, o
qual, segundo Barbacena, teria deixado de aprovar três leis em seu reinado, “sendo uma
da admissão dos católicos, visto que havia jurado manter a religião do estado” 658 .
Observar o ocorrido no passado inglês e aplicá-lo ao Brasil era uma forma de garantir os
mesmos resultados. Cairu não discordava da necessidade de, seguindo o exemplo
inglês, garantir-se a religião oficial do Império. Pelo contrário: atentar contra ela poderia
provocar uma situação em que “só Deus sabe onde iria parar tal liberdade mantida com
o poder do governo”. Seguir o exemplo inglês na manutenção da religião do Estado era
novamente a chance de garantir a segurança do Império contra riscos de desagregação
social. E, para tal, apelava ao mesmo exemplo de Barbacena659. Silva Lisboa, porém,
achava um exagero considerar tal atentado uma “traição”. Tal como Caravelas, nesse
caso, uma definição imprecisa do termo poderia causar problemas. “Se houver um
ministro que abuse do poder, merece de certo pena, e convenho eu vá a qualificação
debaixo do artigo de abuso de poder, mas traição, não”660.
656
AS, 1826, volume 4, p. 69.
Idem, Ibidem.
658
AS, 1826, vol.4, p. 73.
659
“Em Inglaterra, em que a religião anglicana faz parte da constituição do país, não obstante aí haver na
prática a mais extensa liberdade de cultos, todavia, quando o ministro Pitt se comprometeu a obter de ElRei Jorge III a emancipação dos católicos, que, pelas antigas leis são inabilitados dos maiores empregos
honoríficos, e úteis do estado, aquele monarca político, ainda que de mui liberais ideias, não assentiu,
dizendo que ele dera o juramento de manter a religião, a constituição da Grã-Bretanha, e por isso nada a
esse respeito podia inovar, mas que sustentaria o seu princípio de governo que, desde o seu Ascenso ao
trono, declarara: no meu reinado não há perseguição.” AS, 1826, vol.4, p.74.
660
Idem, p. 73.
657
248
A questão não era simples. Tampouco menor no conjunto dos debates. Definir
com clareza os termos pelos quais se acusariam ministros de Estado era crucial. O
exemplo inglês não deveria ser usado para reforçar essa indefinição (tal como propunha
Barbacena), mas, sim, para resolvê-la. O exagero da condenação poderia ser tão terrível
quanto a ausência desta. Em outro momento no debate do mesmo projeto de lei,
Carneiro de Campos voltar-se-ia a um outro exemplo inglês como modelo das “luzes do
século”. Agora, para defender a presunção de inocência no momento de definição sobre
as formas de se julgarem os ministros. Aqui, Caravelas diz compreender “quanto
interessa ao bem da sociedade que se castigue o culpado”; porém, simultaneamente,
afirma: “mas eu me inclinarei sempre a que se facilitem todos os meios de não padecer
o inocente. Esta matéria é tão delicada que entre os ingleses basta um só voto para não
ser condenado o réu”661.
Finaliza seu exemplo com um caso da experiência. É um exemplo longo, mas
bem mostra o que o senador considerava como arriscado na ausência de definições
precisas:
Aconteceu haver um assassínio, e foi acusado um homem de o haver
perpetrado. Todos os indícios os mais decisivos culpavam este
miserável. Foi visto vir do lugar onde existia o cadáver, os seus
vestidos, e o seu cajado que deixou no luar, e foi reconhecido, estavam
ensangüentados: que maiores provas se podiam desejar para fulminar
contra ele a terrível sentença? Entretanto, um dos jurados se obstinou
em que não eram suficientes e o homem foi absolvido; e, com efeito,
soube-se depois que esse juiz é que tinha sido o matador, e que o
acusado se tinha ensangüentado a lutar com o moribundo para ver se lhe
prestava algum socorro (...). E à vista deste fato, que não será,
certamente único, não havemos de dar ao réu toda a possível segurança?
Talvez se estas suspeições fossem admitidas em França no tempo do
seu delírio, não padecessem tantas vítimas inocentes, não se
derramasse tanto sangue.662
. Novamente o passado francês surge como lembrança de um horror a ser
evitado. O risco a que incorrera a França em seu “delírio” não poderia ser repetido pelo
Brasil. As causas do derramamento de sangue francês eram relacionadas, na fala de
Caravelas, à pouca preocupação conferida a direitos considerados fundamentais no novo
tempo das luzes. Abrir mão dessa linha básica de definição da civilização, em conjunto
com a moderação, era abrir espaço para atos que poderiam facilmente desembocar no
horror.
661
662
AS, 1826, volume 4, p. 142.
Idem, Ibidem. Grifos meus.
249
Horror, aliás, nascido no interior da fina flor da civilização europeia, portanto
um risco ainda mais possível a uma nação jovem como a brasileira. O exemplo inglês,
banhado na moderação, prudência e defesa das liberdades, era a salvaguarda da
sociedade, que se não deveria decair como a francesa – evitar-se-ia, assim, o “delírio”.
Volta o exemplo francês a fortalecer a discussão da lei quando se atinge seu
artigo 25, o qual previa que o ministro acusado comparecesse perante o Senado, o qual,
segundo a Constituição, era o espaço destinado a “conhecer dos delitos individuais (...)
Ministros de Estado” 663 . O artigo gerou várias discussões: se deveria haver votação
secreta nesses casos, se os votos deveriam ser por maioria absoluta etc.
Para Cairu, a adesão cega ao artigo 25 significaria arriscar-se, sem recurso nem
reparação, a honra e a vida “dos maiores empregadores do Estado”. A história, continua
o senador, tem mostrado frequentemente a realidade de tais sucessos, tornando
ministros alvos de “malignidade de ambiciosos, e das fúrias da populaça”. “Oprimidos
pelo ódio público”, o horror da imagem remeteria novamente ao passado francês,
incluindo aí mais um momento, com Napoleão, e remetendo também aos EUA e à
Inglaterra:
Ainda está vivo na memória de todos o assassinato jurídico, com
aparência de formas de juízo, e com olho nacional, que a assembléia de
França, intitulada a Convenção, fez ao seu bom e infeliz monarca Luiz
XVI, que foi condenado à morte só pela maioridade de cinco votos,
sendo o corpo de mais de seiscentos. Pela regra da maioria absoluta
também neste século viu-se o espantoso fenômeno político da
declaração de guerra que o congresso dos Estados Unidos, também só
pela maioridade absoluta de quatro votos, fez ao governo britânico,
contratando aliança com o déspota militar da França, e constituindo-se
inimigo do rei, e povo da Grã-Bretanha, que aliás defendiam a si, e as
liberdades do mundo, contra a ímpia usurpação daquele tirano. Eis as
monstruosidades que resultam da regra férrea da maioridade absoluta. 664
De forma clara, cá estão mais uma vez as comparações entre Inglaterra e França,
a primeira como guardiã das luzes e das liberdades do século e a segunda como
exemplo de monstruosidade possível do rompimento daquelas luzes. Instituições firmes
que pudessem resguardar o Brasil dos problemas desse rompimento eram necessárias;
definições precisas sobre os termos e conceitos a serem adotados eram fundamentais.
Despotismo ou luzes: luzes precisas, porém, ou riscos crescentes de revolução; eis a
tônica presente nessas discussões.
663
664
Constituição Política do Império do Brasil, artigo 47, inciso I.
AS, 1826, vol.4, p. 186. Grifo no original.
250
Mas qual era o conteúdo exato da Revolução Francesa para os atores políticos
daquele momento? Podemos buscar uma compreensão a partir de algumas
considerações que já traçamos anteriormente, em relação ao entendimento acerca do
conceito de revolução – basicamente em sua dimensão rompedora da tradição, da
ordem, em nome do imponderável.
Considerando-se a novidade que representava, em terras brasileiras, a reunião de
uma Assembleia Constituinte em 1823, e considerando-se que essa reunião inseria-se
num acúmulo crescente de experiências que, desde o fim do setecentos, consolidava-se
na tradição ocidental, não causa surpresa que a fala do trono já buscasse destacar uma
diferença em relação aos eventos considerados mais drásticos no interior dessa
trajetória.
Dom Pedro, retomando a questão de esperar uma Constituição digna do Brasil e
de si, diz esperar também que a Carta seja “justa, adequada e executável, ditada pela
razão, e não pelo capricho”, e que “tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos
séculos tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos
povos, e toda a força necessária ao poder executivo”. Quer, afinal,
uma constituição, que pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer
real, quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia, e planta
a arvore daquela liberdade, a cuja sombra deva crescer a união,
tranquilidade, e independência deste império, que será o assombro do
mundo novo e velho 665.
Numa tacada busca traçar a rota que fortaleceria sua própria persona na balança
de distribuição dos poderes, conferindo interpretação específica ao significado tanto de
“despotismo” quanto de “liberdade”.
Mas não seria tudo. Continua ele:
Todas as constituições, que à maneira das de 1791 e 92, têm
estabelecido suas bases, e se têm querido organizar, a experiência nos
tem mostrado que tão totalmente teoréticas e metafísicas e por isso
inexequíveis; assim o prova a França, Espanha, e ultimamente Portugal.
Elas não têm sido feitas como deviam, a felicidade geral; mas sim,
depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em uns países já
apareceu, e em outros ainda não tarda a aparecer o despotismo em um,
depois de ter sido exercitado por muitos, como consequência necessária,
ficarem os povos reduzidos à triste situação de presenciarem, e sofrerem
todos os horrores da anarquia666.
665
666
AAC, 1823, volume 1, p. 41-42.
Idem, p. 42.
251
“Longe de nós tão melancólicas recordações”, continua ele. Diz que os
verdadeiros princípios constitucionais têm sido sancionados pela experiência, e tal
conhecimento caracteriza os deputados. Diz esperar que a constituição, a receber sua
imperial aprovação, “seja tão sábia, e tão justa, quanto apropriada à localidade, e
civilização do povo brasileiro” Diz, finalmente, esperar que outras nações, até os
inimigos, se inspirem e imitem-na667.
A concepção de que a Revolução constituiu a busca pela execução de uma teoria
– ou metafísica –, contrariando-se a densidade da experiência histórica em nome do
futuro, constitui a base própria do pensamento conservador crescente. Mais interessante,
no caso das referências acima, é notar que à base da experiência passada se deveria
somar um filtro que pudesse apropriar-se à “localidade e civilização do povo brasileiro”.
O nascente futuro Império constitucional, carecendo de base experimental firme sobre a
qual pudesse sustentar-se, deveria apoiar-se, ainda que a contragosto, em filtros que
permitissem sua existência local. E tais filtros, posto que teoréticos, poderiam abrir
espaços para o exagero. A ambigüidade presente, nesse momento, no conceito de
revolução – afinal, realizava-se uma revolução no Brasil, mas não a revolução à
francesa – introduzia um elemento de instabilidade na organização e na vida política do
país.668 Embora fundamental para o progresso da civilização, conforme vimos, as luzes
poderiam trazer, também, a revolução compreendida num sentido perigoso – a
marcação precisa da palavra “liberdade”, portanto, seria de crucial importância para
evitar esse processo. E, ainda mais fundamental, a ausência de uma tradição própria que
pudesse integrar-se à experiência dos séculos brasílicos deveria ser ocupada pela
tradição estrangeira – no caso, a francesa.
Mesmo administrativamente as inovações francesas poderiam constituir grave
perigo. Em discussão sobre projeto a respeito dos governos provinciais, Andrada
Machado reclamaria de proposta para se organizar a administração local a partir de
juntas, ao invés de concentrar as decisões num único centro provincial, representado na
presidência. E o exemplo francês daria a tônica do absurdo:
667
Idem, ibidem.
Sobre o conceito de revolução, cf., novamente, ARENDT, Hanna. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia
das Letras, 2011. Marco Morel, analisando dados da livraria Plancher, no Rio de Janeiro, afirma que 59%
das obras de História e Política ali listadas tratavam de Revoluções, sendo que, destar, a Revolução
Francesa ocupava 72%. Isso dá uma noção de como a temática estava presente na Corte imperial nos anos
1820. Cf. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e
sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: HUCITEC, 2005, cap. 1.
668
252
Sr presidente, entregar a muitas cabeças a administração é lembrança
que só veio à razão em delírio dos franceses; antes dos infelizes anos de
1789 e 90, nação alguma tinha caído em tal absurdo. Todas acreditavam
que administrar é próprio de um só homem, como o deliberar de muitas;
(...) Todas não concebiam como na multiplicidade de administradores se
podia obter a unidade de vistas tão precisa em um bom sistema
administrativo. Estava reservada aos franceses uma inovação tão
perigosa. Mas eles mesmos bem depressa destruirão os altares que
tinham erguido, e reduzirão a administração de cada departamento à
unidade, reservando para a pluralidade só o que demandava exame e
juízo.669
O fracasso da Revolução para a organização administrativa das nações seria uma
fonte a que poderiam recorrer os atores políticos para sustentar suas posições. Mas o
contrário também seria possível: utilizar-se da Revolução como forma de se extremar
um posicionamento. Afinal, a Revolução oferecia uma imagem perfeita do caos e da
perdição total; se nem ela tivesse ousado romper certos limites, então ninguém mais
poderia rompê-los. Em discussão de lei sobre mineração, por exemplo, defendendo-se
de argumentos que tirariam da nação a propriedade total sobre as terras e as minas, João
Evangelista lembraria
que esta chamada ronha é o Direito Público ainda hoje de todas as
Nações, mesmo das mais cultas, como Inglaterra e França; que ainda
nos tempos da Revolução de França, quando o frenesi da liberdade mal
entendida o quis derrogar com esta novidade, mesmo um Mirabeau a
soube respeitar e defender.670
Se mesmo no acontecimento-limite do rompimento da ordem poderia haver
quem garantisse o respeito a certos direitos, como, então, atacá-los sem mostrar-se até
mais radicalizado do que a própria Revolução? O uso retórico do exemplo francês
possibilitava um limite para o debate que não deveria ser transposto. Mas era uma
retórica perigosa. Carneiro de Campos, por exemplo, afirmaria que
a matéria é plana, de simples e pura razão, e não de autoridades, sem
poesia, a que em tais casos não costumo jamais recorrer; para que se
vão portanto buscar exagerações, despertar ideias ominosas da ruína da
França em sua desgraçada Revolução? Se a França sofreu com a
supressão repentina de estancos que lhe rendiam grandes e avultadas
669
Andrada Machado ainda completaria: A nação hespanhola que copiou tão absurdamente muitos erros
dos francezes, guardou-se bem de os imitar a este respeito, e collocou à testa da administração das
províncias administradores únicos com o nome de chefes políticos. AAC, 1823, volume 1, p. 162.
670
AS, 1827, volume 1, p. 76. O Marquês de Caravelas usaria o mesmo argumento à p. 77: “Aos mesmos
princípios recorreram o citado Regnand e Mirabeau, na Assembleia Constituinte de França, quando esta,
movida dos poderosos argumentos de tão ilustres oradores, consagrou e declarou inviolável o direito de
propriedade, que tinha a Nação sobre as minas.”
253
somas, não é isso aplicável ao estanco do ouro, que nada produz para a
Fazenda.671
Por que apelos à imagem da Revolução seriam tão perigosos? Exatamente por
seu caráter “desgraçado”. A Revolução era vista como brutal; seus articuladores eram
vistos como sanguinários. Ela relativizaria valores. Para Andrada Machado, por
exemplo, “a salvação do povo é a suprema lei; porém também sei que foi debaixo desta
máxima, que Robespierre e seus colegas na França perseguiram a quase 200.000
cidadãos”672. Robespierre, aliás, um “monstro dos nossos dias” para o mesmo Andrada
Machado 673 e um “sanguinário” marcado pelo “rigorismo”, segundo Pereira da
Cunha 674 ; produto odioso da Revolução, tal qual Napoleão 675 , responsável pela
“comissão de salvação pública” tão funesta à França 676 e um dos símbolos dos males
que vitimaram o “infeliz Luiz XVI”. Na consolidação das imagens sobre a Revolução, o
esperado despotismo absolutista dá lugar ao despotismo democrático; o esperado
déspota dá lugar a um pobre infeliz vitimado677.
Luiz XVI escaparia do destino memorialístico conferido aos déspotas do
passado. Sobre ele, diria Carneiro da Cunha: um “desgraçado” “bom rei, que os
satélites do despotismo e maus conselheiros levaram ao cadafalso” 678, cujo governo,
para Borges, fora “foi um dos mais justos e moderados da França” 679. Um “piedoso”
para Silva Lisboa680; “infeliz monarca “que foi condenado à morte só pela maioridade
de cinco votos, sendo o corpo de mais de seiscentos”, graças ao “ódio público” presente
no “assassinato jurídico” que fez a Convenção – o que, aliás, ensejaria crítica
contundente à “regra férrea da maioridade absoluta” nas votações.681
Um monarca destroçado por uma Revolução; uma monarquia assassinada de
cujo sepulcro sairia, segundo leitura de Burke por Cairu, “um vasto, informe e tremendo
671
AS, 1827, volume 1, p. 90.
Mas deixaria a ressalva: “Longe de mim a ideia de querer comparar o nosso ministério com o cruel
Robespierre, e é por isso que eu quero, mesmo de comum acordo com ele, visto, que alguns de seus
membros estão conosco identificados, remediar os males sucedidos”. AAC, 1823, volume 1, p. 74.
673
AAC, 1823, volume 1, p. 127
674
Em contraposição a Luiz XVIII, a quem “os franceses têm respeitado por suas reconhecidas virtudes”.
Idem, p. 137.
675
Um “aborto militar da Revolução Francesa” para Cairu, ainda que dono de uma genial cabeça política.
AAC, 1823, volume 6, p. 157.
676
De acordo com Carneiro da Cunha. AAC, 1823, volume 2, p. 34.
677
AAC, 1823, volume 3, p. 166.
678
AAC, 1823, volume 6, p. 154.
679
AS, 1829, volume 1, p. 102.
680
AAC, 1823, volume 6, p. 244.
681
AS, 1826, volume 4, p. 187.
672
254
espectro de um corpo único legislativo, que subjugou a fortaleza do homem e causou
hórridos males”682. Um destino a evitar-se repetir no Brasil.
Mas como evitar? Saber o que causou os males na França seria um bom passo.
Buscar as razões para o estouro da Revolução poderia permitir a antecipação política a
fim de prevenir os males. E, nesse ponto, a discussão sobre liberdade de imprensa pode
nos fornecer valiosas pistas.
Em discussão de 7 de maio de 1829, Cairu, prevenindo o potencial nefasto
decorrente da ausência de qualquer regulamentação sobre escritos incendiários, diria:
o abuso nas palavras é a maior arma dos demagogos, ímpios, libertinos
e traidores em suas particulares ou públicas falas. (...) eu ora os
considero mais incendiários que o inextinguível fogo grego. A hórrida
prova se viu nos paroxismos da Revolução da França, não tanto pela
devassidão dos impressos malignos, e disseminadores dos princípios
anárquicos, como pela verbal propagação de doutrinas subversivas de
todo o Governo regular em clubes públicos, corpos de guarda,
sociedades de imensas filiações, e, até, pelas inflamatórias pregações de
saltimbancos, que nas ruas arengavam à plebe, e a precipitavam aos
desatinos que todos sabem.683
As doutrinas subversivas, devidamente espalhadas por um tecido social,
provocariam efeitos mais devastadores que armas de guerra antigas. O caos social daí
decorrente levaria países à ruína. E diria mais: nem as mais ordenadas e moderadas
nações estariam seguras caso o turbilhão se espalhasse:
Até a Inglaterra correu o risco de se precipitar no caos dos turbilhões
franceses com a sua intitulada – Sociedade Correspondente – que
publicamente abriu comunicação com os facciosos da França. O Povo
daquele País passaria por iguais calamidades se o Governo não
providenciasse logo com energia contra as abusivas liberdades de
comunicas pensamentos por palavras, escritos e impressos. 684
Mesmo no interior de tão bem estruturado sistema como o inglês haveria espaço
para o brotamento de facciosos que, deixados à plena vontade, acelerariam o processo
de destruição social caso o governo não interviesse com energia. Com, especialmente
para Cairu, o que em Londres se passasse aqui ressoaria, o alerta seria necessário:
682
AS, 1827, volume 2, p. 141.
AS, 1829, volume 1, p. 65.
684
Idem, Ibidem. Em outra sessão, Cairu tornaria ao mesmo alerta: “O Ministro Pitt durante o mais
furioso período da Revolução Francesa, em que, segundo diz o escritor da História da Decadência do
Império Romano, Gibbon, também a Inglaterra correu o risco de comer o venenoso pomo da falsa
igualdade, a Liberdade Gálica, propôs no Parlamento um bill para serem punidos os que por impressos
procurassem fazer desprezíveis os Membros do Governo”. AS, 1829, volume 1, p. 98.
683
255
Guardemo-nos dos horrores dos que na França, com gritarias,
apelidando – Aristocratas – açulavam o povo a enforcar nas lanternas
das ruas as pessoas mais distintas por seus títulos e serviços à Nação?
Sr. Presidente. Para que nos fazemos ilusão; este mal está entre nós e
sobre nós (...).Não nos instruirá e escarmentará a lição da história? Sr.
Presidente: digo com candura: estamos ameaçados de iguais desordens
que aceleraram a ruína do Império Romano na época do Imperador
Justiniano.685
A conjugação do exemplo francês e do risco inglês como parâmetros
contemporâneos a servir de lição recente sobre o potencial destrutivo presente mesmo
em nações civilizadas se somaria ao à lembrança romano-bizantina de que a degradação
poderia ameaçar igualmente Impérios consolidados pelos séculos. Se mesmo nações
adiantadas em civilização estavam sob risco, e se mesmo Impérios estabelecidos
poderiam ruir, o que dizer de uma nação nova que apenas completava seu primeiro ciclo
de consolidação, com seu imperador, no final dos anos 1820, sofrendo diversos
bombardeios oposicionistas e, por fim, tão ainda afastada dos centros civilizacionais?
Nem todos concordariam com o alerta de Cairu. Borges, por exemplo, criticaria
a referência à Revolução Francesa, questionando: “Será o mesmo entre nós, uma Nação
pacífica, que uma Nação revoltosa, que não conhece Lei, e só o impulso do seu delírio
em fermentação? Não tem paridade o exemplo”
686
. Além disso, diria que,
independentemente dos esforços,
que efeito teria uma Lei muito boa no estado de revolução, como foi o
da França? De certo nenhum. Quem a faria executar? Ninguém. Porque
em uma Revolução, tal como foi a da França, vão todas as Leis pelos
ares. A Nação quando meio da Revolução se constitui é ao través [sic]
de todos esses males que são excedentes à pena, ao cálculo, não tem
linha de demarcação, não se pode que não se atropelam Leis, Direitos,
tudo.687
Retomando a concepção de que o estado revolucionário era o da ausência total
de previsibilidade, o espaço do imponderável, afastava-se em definitivo a situação
francesa da brasileira. Diferentemente de 1823, quando a perspectiva de que o Brasil
ainda vivia uma revolução seria possível, agora o exemplo deveria ser afastado. A
revolução, no país, seria uma exceção, um desvio, não mais a trajetória fundadora da
Independência. Nisso Carneiro de Campos concordaria, embora não com o mesmo
otimismo de Borges:
685
Idem, p. 65-66.
Idem, p. 67.
687
Idem, Ibidem.
686
256
nosso estado é muito mais feliz que o da França, é inegável; mas
pergunto: não temos ouvido dizer que ainda agora há bem pouco tempo
em Pernambuco pegaram em armas, e que houve uma espécie de
sublevação, ou sedição; é fato que eu não necessito aqui bem classificar,
porém não pode dizer-se que não há precisão de apagar-se alguma
centelha, a tranqüilidade não é tão absoluta, que possa dizer que
devemos dormir a sono solto.688
Havendo o risco, a solução parecia clara a muitos: sufocar o espalhamento de
tais ideias perigosas. Para Cairu, o mais atuante senador nessa direção,
A Humanidade lamenta o haver ela [França] produzido escritores que
tendo abalado os fundamentos da Sociedade com os seus livros cheios
de impiedade, infidelidade e imoralidade, precipitaram o Povo Frances
a tão bárbara Revolução, e que havendo proclamado a sua Constituição
dos Direitos do Homem, e para sempre, depois dos maiores abusos da
liberdade da imprensa, e das maiores maldades contra o seu Soberano,
(...). Os que mais imediatamente aceleraram a Revolução, usaram do
preparatório de ridicularizar a Censura prévia de qualquer escritas. Fez
para isso a mais violenta impressão no Povo Francês a bem conhecida
comédia de Beaumarchal, intitulada – Le Mariage de Figaro (...) O Rei
tolerou estes e outros escritos sem censura, e a França foi inundada de
escritos incendiários, que até se liam nos corpos da Guarda; donde
resultou levantar-se a Tropa contra o seu Soberano, e executar-se uma
Revolução, qual nunca se viu em Pais civilizado.689
A mistura entre a produção e o espalhamento dos escritos incendiários e a
tolerância do governo para com eles produziu uma cena inédita na história da
humanidade: a Revolução, o rompimento que levava caos à ordem.
Podemos notar que, nessa lógica, as causas da Revolução são consideradas
bastante próximas às causas da Civilização: o desenvolvimento das ideias de liberdade.
Se o processo histórico que leva à Civilização resulta desse espalhamento de ideias, o
processo histórico que leva à Revolução encontra-se nele inserido, seja como
deturpação das verdadeiras ideias, seja pelos abusos que se poderiam cometer a partir do
uso da própria liberdade. A Revolução na França é vista como decorrência de um mal
entendimento sobre a “verdadeira liberdade” somado à inoperância do governo,
paralisado, em sua benignidade, pela própria moderação e piedade que lhe constituía. A
Revolução, nesse contexto, talvez, de fato, fosse inevitável: semente plantada
necessariamente no coração da Civilização, apenas poderia ser controlada ou prevenida
688
Idem, p. 68-69.
AS, 1829, volume 1, p. 102. O topo das desgraças seria encabeçado por Rousseau, segundo a ótica de
Cairu: “Sabe o Mundo que a obra do Contrato Social, de Rousseau, foi, e ainda é, a Caixa de Pandora das
Revoluções Democráticas: os escritores de folhas e fohetos sectários de suas doutrinas, não são mais que
plagiárica. Pode-se dizer que do sepulcro desse assassino das Monarquias é que saíram os pavorosos
espectros que aterraram a Humanidade, e destruíram tantos Povos e Estados, que antes mais ou menos
bem viviam em seus Governos.” AS, 1829, volume 1, p. 108.
689
257
a partir de um alerta permanente que apelasse às lições da história – especialmente da
história recente – para um movimento constante de dissolução – nunca eliminação total.
Do outro lado, afinal, havia o despotismo à espreita, o qual, assumido, causaria males
tão graves quanto o democratismo. Uma equação difícil de balancear, cuja solução, em
meados do século, passaria pela assunção de certo “liberalismo autoritário”.
O contraponto a essa interpretação, naquele momento inicial do Império, seria a
compreensão de que as causas da Revolução estariam muito além da simples questão
das ideias. Vergueiro, no mesmo conjunto de debates acerca da liberdade de imprensa,
afirmaria:
Caminhando pelo meio entre os extremos, eu rejeito igualmente a
opinião (...) que parece atribuir à imprensa todos os males da Sociedade,
inculcando, que a revolução de França fora produzida por um folheto de
que não me lembra o título. Quando ouço assim discorrer sempre me
ocorre em contraposição o grande princípio de Leibnitz: “o presente
está prenhe do futuro. O mais pequeno fenômeno tem por causa o
Universo e a sua razão é o estado precedente do mesmo Universo”.
Acanhado modo de discorrer é o atribuir um grande fenômeno a uma só
e pequena causa, quando os mais pequenos são o resultado de muitas e
algumas desconhecidas. A revolução de França, e todas as revoluções
que têm havido no mundo, não foram, nem poderiam ser produzidas por
miseráveis folhas de papel; foram, sim, o necessário efeito de uma
multidão de causas espalhadas por longo curso de anos anteriores, e,
talvez, por séculos. Não nos aterremos com a Imprensa, não lhe
concedamos esse poder (...) mágico de pôr e dispor dos Impérios. Se a
Imprensa tem concorrido para as revoluções é só patenteando as causas
existentes, que devem produzi-las, não se confunda pois a publicação
das causas com as mesmas causas; estas têm o seu assento ou na má
organização do corpo social, ou nos erros da sua administração, ou no
andamento progressivo ou retrogrado da civilização. 690
Vergueiro retoma uma fórmula já antes utilizada para dar conta das grandes
transformações sociais que poderiam ser vislumbradas na História: “o presente está
prenhe do futuro” 691 . No Reverbero, como já discutimos, a frase tinha um sentido
otimista que vislumbrava no porvir uma lógica mais ampla que conduzia os destinos dos
povos dentro de uma interpretação da história como história da liberdade. Aqui, porém,
a fórmula, apontando para a multiplicidade de causas que poderiam levar à revolução,
deixa o futuro mais em aberto: se as revoluções têm algumas causas que remetem a
séculos anteriores, então o que poderia impedir que já estivessem fecundando aquelas
que produziriam males futuros no Brasil? Tal formulação inseria as causas das
690
AS, 1829, volume 1, p. 96-97.
A fórmula já fora utilizada antes por Silvestre Pinheiro Ferreira e José Bonifácio. Cf. ARAÚJO,
Valdei. A experiência do tempo... op. cit., p. 96-97. Tratamos da questão no Reverbero, no capítulo 2.
691
258
transformações futuras no próprio conjunto de possibilidades oferecido pelo presente. A
Revolução Francesa, longe de ser entendida como resultado de ideias incendiárias
espalhadas sem controle, teria sido resultado da conjunção de fenômenos de diversas
escalas: desde a concepção de erros na administração ou na má organização da
sociedade (que poderíamos associar a esferas conjunturais) até a uma noção que
remeteria à possibilidade de avanços progressivos ou retrógrados à civilização (fatores
estruturais). E o Brasil não estaria imune a isso.
A inserção dessa concepção de Vergueiro amplia o universo a se observar para a
prevenção, no Brasil, de fenômenos semelhantes ao francês. Se a visão de Cairu
permitiria uma ação pontual do governo para dirigir o avanço da civilização, posto que
as causas de ruptura estariam presentes no desenvolvimento, mas poderiam ser
controladas se bem aprendidas as lições da história, em Vergueiro era necessário buscar
elementos internos, e não apenas lições externas: as causas de uma revolução futura
brasileira poderiam estar “espalhadas por longo curso de anos anteriores, e, talvez, por
séculos”. Uma interpretação do passado brasileiro era fundamental para se observar em
que medida os exemplos europeus – notadamente os ingleses e franceses – poderiam ser
aplicados à realidade americana.
Dirigentes no Primeiro Reinado, porém, não obstante mantivessem seus olhos na
Europa, tinham já firmes, também, os pés na América. É disso que trataremos no último
capítulo desta tese.
259
Capítulo 6:
Pés na América: a outra face da civilização
Comecemos retomando alguns pontos: a narrativa histórica construída desde o
processo de ruptura do Brasil com Portugal entendia a história como a história da
liberdade em luta contra a opressão. E, nessa interpretação, a definição de uma
perspectiva sobre o significado da “civilização” – bem como de seu oposto, a “barbárie”
– teve papel fundamental na compreensão de como o Brasil se inseria dentro daquela
lógica histórica.
Vimos, até aqui, como os “Olhos na Europa” produziram referências,
especialmente com relação à Inglaterra e à França, a respeito de exemplos a serem
seguidos e adotados no Império, como forma de ingresso no círculo das nações
civilizadas. Mas vimos, também, como alguns desses exemplos exigiam, aos olhos dos
coevos, filtragens para sua plena aplicação, considerando-se as peculiaridades
americanas. No fundo, a sensação dos “Pés na América” obrigava os dirigentes do
Império a dialogar com sua realidade, com as circunstâncias que os cercavam, na busca
pela construção do país independente.
A maior “peculiaridade americana” no Império foi, sem dúvida, a questão da
escravidão. Diferentemente da monarquia constitucional, que era entendida, como
vimos, como uma superação da condição americana – superior, portanto, às formas
republicanas –, a escravidão foi encarada, ao longo do século XIX, de maneira bem
mais tensa. Especialmente no que dizia respeito às suas relações com o par
civilização/barbárie.
Considerando-se essa peculiaridade e essa tensão, não é de se estranhar que se
produzisse, a partir daí, uma outra forma de aproximação que não com as nações
europeias, mas com a própria América, especialmente aquele espaço que, sendo também
um país independente, mais e mais se aproximava de uma “irmandade escravista” em
relação ao Brasil: os Estados Unidos. Dessa aproximação, um tipo específico de leitura
da civilização poderia emergir, como trataremos neste capítulo.
Antes, porém, e encerrando o quadro das franjas da modernidade que vimos
tratando desde o começo deste trabalho, consideramos necessário contextualizar a
formação escravista no Brasil e sua “peculiaridade” no século XIX. Intentamos, assim,
melhor compreender o mundo que estava em construção no momento mesmo em que os
260
dirigentes produziam sua interpretação do tempo naquele momento-chave de formação
do Império do Brasil.
6.1) Três momentos da modernidade escravista (séculos XVI-XIX):
Retomemos novamente algumas questões já levantadas. Em que pesem as
diferenças interpretativas entre seus autores, inúmeros historiadores, como vimos, já há
algumas décadas, têm utilizado o conceito de “crise” para referir-se à conjuntura
atlântica entre os séculos XVIII e XIX. Mesmo se considerarmos a crítica de Bayly de
que talvez os historiadores usem demais a palavra “crise”, supondo-se que relações
sociais e políticas são “normais” na maior parte do tempo e que, de repente, tornam-se
críticas, ao invés de considerá-las como pautadas permanentemente pelo conflito, é um
consenso historiográfico considerar os anos entre meados do setecentos e meados do
oitocentos como dignos dessa classificação692.
Quando pensamos em “sistema atlântico” e utilizamos a ideia de “crise” para dar
conta das transformações na passagem de um século a outro, devemos também
entrelaçar dois aspectos dessas transformações. Em primeiro lugar, a passagem do
predomínio de um determinado sistema escravista, base da colonização aberta após o
alvorecer da expansão marítimo-comercial do século XV, para outro, mais consolidado,
e finalmente para um terceiro, já nos quadros de desenvolvimento dos Estados
Nacionais na América. Em segundo lugar, e entrelaçando-se a este primeiro aspecto, a
própria transformação revolucionária, em maior ou menos escala, que leva à destruição
dos impérios coloniais e ao duplo processo de destruição do Antigo Regime (na Europa)
e dos sistemas coloniais (na América).
No tocante ao primeiro elemento, às modificações nos sistemas escravistas, é de
fundamental importância destacar a diferenciação, no interior do sistema atlântico, de
distintas temporalidades para a escravidão 693. O chamado “sistema atlântico ibérico”,
inaugurador da montagem dos sistemas escravistas coloniais nas possessões portuguesas
e espanholas, alimentado por e integrado ao “primeiro ciclo sistêmico de acumulação”,
genovês, deu lugar, a partir do século XVII, ao predomínio do chamado “sistema
atlântico do noroeste europeu”, integrado ao “segundo ciclo sistêmico de acumulação”,
692
O próprio autor aponta como legítima tal categorização para os anos entre 1780 e 1820, por exemplo.
Cf. BAYLY, C.A. The Birth of the Modern World. Blackwell Publishing, 2004, p. 88.
693
A explanação dessas diferenças é baseada em BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON,
Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, p. 21-116.
261
holandês694, e tendo Inglaterra e França à frente do processo. Essa passagem não apenas
provocou mudanças significativas no que tange aos elementos justificadores
ideologicamente e controladores administrativamente da escravidão no Novo Mundo,
mas, também, significou um deslocamento de eixo de um padrão inaugurado ainda com
uma forte herança da Reconquista e da mentalidade medieval para um sistema
inaugurador de uma forte expansão econômica em um novo quadro dos sistemas
escravistas no Atlântico 695.
Esse descompasso entre as temporalidades escravistas no Atlântico não passou
despercebido pelos contemporâneos, inserindo a diferenciação dentro de uma lógica
arcaico-moderno a partir do século XVII. Se a “prática da comparação entre os poderes
europeus foi parte indissociável da montagem e do funcionamento de seus impérios
ultramarinos”, como argumentam Berbel, Marquese e Parron, então
emular os sucessos dos rivais, evitar seus fracassos e justificar os
procedimentos de conquista ou ocupação dos territórios coloniais
exigiam o cotejamento com as experiências alheias. Como em
qualquer outra comparação, o exercício produzia, ainda, uma
hierarquização de experiências que variava conforme a posição
ocupada pelo sujeito discursivo que a promovia.696
Mapear as distâncias e buscar os exemplos estrangeiros, portanto, foi parte
inseparável do processo de transformação sistêmica nas temporalidades escravistas da
colonização americana. Dentro dos contextos de expansão dos impérios europeus pela
era colonial, a escravidão constitui coluna vertebral de um primeiro processo de
modernização, cuja marca perdurará, com transformações, contemporaneidade adentro,
dando o tom de distanciamento entre aqueles que ficariam relegados a potências de
segunda classe nas disputas interestatais européias, não obstante o pioneirismo nas
primeiras expansões marítimas, e aqueles que assumiriam o protagonismo das
dinâmicas continentais nos séculos seguintes.
694
ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP,
1996, p. 111-148. Para uma melhor conexão do sistema atlântico ibérico ao ciclo genovês de acumulação
e do sistema atlântico do noroeste europeu ao ciclo holandês, cf. BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e
Política... p. 33-34 e 44-46, respectivamente.
695
“O escravismo do sistema atlântico ibérico pode ser lido como uma projeção ampliada e modificada –
portanto moderna – de práticas de escravização seculares correntes na bacia do Mediterrâneo. Ora, o
descompasso de tempo entre a montagem do sistema atlântico ibérico e a do sistema atlântico do noroeste
europeu cindiu essa experiência. (...) no momento em que, a partir das décadas finais do século XVII, a
escravidão negra deslanchou na América inglesa e francesa, construiu-se aí um quadro societário inédito.”
In: BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 47-48.
696
Idem, p. 54-55.
262
A “decolagem” da Jamaica e de São Domingos, nesse contexto, fortaleceu ainda
mais a percepção de distância. Na primeira metade do século XVIII, a introdução
maciça de africanos escravizados e o avanço das plantations açucareiras geraram
conflitos que, uma vez debelados, nas primeiras décadas do setecentos, expandiram a
produção num ritmo acelerado. Por volta de 1740, as colônias do Caribe francês e
britânico chegaram a fornecer 70% de todo o açúcar do Atlântico Norte – volume que
chegaria a 80% meio século depois697. E, nesse universo, nenhuma região destacou-se
mais do que a ilha de Saint-Domingue.
O crescimento da “pérola das Antilhas” francesa é digno de nota. Entre 1730 e
1740 sua produção açucareira deu um salto de 10 para 40 mil toneladas anuais. Entre
1763 e 1790, a produção de café passou de 7 para 28 mil toneladas anuais. E,
logicamente, nos quadros do sistema atlântico escravista do noroeste europeu, o número
de escravos cresceu significativamente, com o desembarque de mais de 480 mil cativos
entre 1761 e 1790, metade deles apenas nos anos 1780 (década em que o açúcar da ilha
abastecia mais da metade dos mercados continentais europeus698.
É este o ponto em que podemos entrelaçar a passagem de um sistema atlântico a
outro às transformações revolucionárias que acometeram não apenas a Europa, mas,
também, o mundo atlântico na segunda metade do século XVIII.
Enquanto a pujança econômica de Saint-Domingue brilhava aos olhos dos
colonizadores, um conjunto de mudanças demográficas, sociais, políticas, ideológicas
etc. desenvolvia-se em paralelo, acirrando tanto as tensões internas às sociedades
imperiais quanto as disputas interestatais, especialmente entre Inglaterra e França. Nesse
contexto, a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) encerrou e abriu novos fragmentos dessa
disputa, ao obrigar vencedores e vencidos a dar prioridade a reformismos que
reequilibrassem suas finanças. Daí uma série de confrontos e revoluções marca as
décadas seguintes, com especial destaque para a Guerra de Independência dos Estados
Unidos (1776-1783), a Revolução Francesa e as guerras revolucionárias dela
decorrentes (1789-1815), a Revolução de Saint-Domingue (1791-1804) e os próprios
processos de independência da América Ibérica699. Conjunto que podemos abarcar sob a
ainda poderosa fórmula da “Era das Revoluções” – embora uma consideração do
697
BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p.
489.
698
BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 67-68.
699
PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 17871846. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2015, p. 17.
263
período que remeta ao clássico trabalho de Eric Hobsbawm deva ser ampliada para
incluir, ao menos, uma perspectiva atlântica700.
Nesse sentido, os movimentos revolucionários devem ser vistos não
isoladamente, mas em conjunto, “cada um ajudando a radicalizar o seguinte”, nas
palavras de Robin Blackburn701. Em especial no caso da Revolução de Saint-Domingue,
podemos apontar o seu impacto imenso não apenas nos destinos do Brasil e do Sul dos
Estados Unidos, mas na própria conformação do mundo pós-revolucionário, chegando a
representar, na interpretação de Eduardo Grüner
702
, um exemplo de “contra-
modernidade” que nos leva a questionar o próprio sentido disto que chamamos
“modernidade”703. Isso porque a Revolução de Saint-Domingue, não pressionou apenas
a radicalidade da própria Revolução Francesa 704 . Ela pressionou, devido às suas
conseqüências, o próprio futuro do sistema atlântico, especialmente pela resistência
tanto às tentativas de conquista pelos ingleses quanto à tentativa de recolonização por
Napoleão, frustrando os planos caribenhos do imperador. Como narra Tâmis Parron,
A expressão “Era das Revoluções”, em que pesem algumas críticas, tornou-se paradigmática na
historiografia sobre o período. Cf. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 3ª edição. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981. Aqui, contudo, entendo a Era das Revoluções para além da “dupla revolução” de
Hobsbawm, incluindo o mundo atlântico e seus desdobramentos – EUA, Haiti, América Espanhola etc.. A
esse respeito, conferir os trabalhos de GENOVESE, Eugene. Da Rebelião à Revolução. São Paulo:
Global, 1983; BLACKBURN, Robin. A queda do Escravismo Colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro:
Record, 2002, e também ARMITAGE, David & SUBRAHMANYAM, Sanjay (ed.). The Age of
Revolutions in Global Context, c. 1760-1840. NY: Palgrave Macmillan, 2010, Introduction, xii-xxxii.
Bayly, na obra anteriormente citada, seguindo tradição da História Global, amplia a era de transformações
para incluir outras regiões do planeta. Não cabe, porém, nos limites deste trabalho, estender a formulação
para além do espaço atlântico. Cf. BAYLY, C.A., The birth of the modern word… p. 100-106.
701
BLACKBURN, Robin. Haiti, Slavery and the Age of the Democratic Revolution. In: The Willian and
Mary Quaterly. Third Series, Vol. 63, Nº 4, Oct. 2006, p. 643-674. Para um debate acerca do impacto do
da Revolução Haitiana na aceleração ou retardamento das emancipações escravas nas Américas, cf.
BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 91-93.
702
GRÜNER, Eduardo. La oscuridad y las luces. Buenos Aires: Edhasa, 2010, p. 525. Cabe recordar o
argumento de Susan Buck-Morss, aliás usado por Grüner, para indicar a experiência haitiana como
central na “dialética do senhor e do escravo” hegeliana. Cf. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos
estudos CEBRAP. nº 90, 2011, n.90, p. 131-171.
703
Reflexão tributária de Walter Benjamin, especialmente de suas teses “Sobre o Conceito de História”.
Cf. BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012 (para as teses em
si, cf. p. 9-20). Especialmente no tocante à tese IX, segundo Löwy, “A atitude de Benjamin consiste
exatamente em inverter essa visão [progressista-hegeliana] da história, desmistificando o progresso e
fixando um olhar marcado por uma dor profunda e inconsolável – mas também por uma profunda revolta
moral – nas ruínas que ele produz. Estas não são mais, como em Hegel, provas da „decadência dos
impérios‟ (...), mas são sobreturo, uma alusão aos grandes massacres da história (...) e às cidades
destruídas pelas guerras.” Cf. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo:
Boitempo, 2005, p. 92. Para uma outra interpretação da mesma tese, também crítica da perspectiva
“história-progresso”, cf. NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações. Rio de Janeiro:
Contracapa; Companhia das Índias, 2011, p. 103-123.
704
Não obstante a postura anti-tráfico (não necessariamente antiescravista) de vários jacobinos, inclusive
Robespierre, “o problema da abolição da escravatura havia sido descartado [na Constituinte]: foi a grande
insurreição dos escravos negros de Santo Domingo em agosto de 1791 e seus desdobramentos que o
impuseram novamente”. Cf. VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa, 1789-1799. São Paulo: Editora
Unesp, 2012, p. 159.
700
264
a cadeia de eventos é simples. Assim que o Haiti esfacelou o
projeto do império atlântico francês, Napoleão elegeu a Europa
como o cenário exclusivo de sua edificação imperial e
empreendeu uma série de conquistas militares terrestres que
culminou no Bloqueio Continental de 21 de novembro de 1806
(no fundo concebível apenas porque não tinha mais um tesouro
caribenho a virar presa dos britânicos e porque sua frota fora
dizimada na Batalha de Trafalgar).705
O abandono do projeto americano pela França suscitou, ainda, a venda da
Louisiana para os EUA, que abriu um “imenso continente” para “aventuras
empresariais” e transformou o baixo Vale do Mississipi na próxima fronteira de
expansão escravista706. Em outras palavras, é a partir da crise do sistema atlântico do
noroeste europeu, com a Revolução Haitiana à frente, que a modernidade escravista
ganharia um novo capítulo de sua expansão – uma modernidade tensionada pelo
potencial crítico da contra-modernidade. 707
Essa crise aparecia não como resultado direto de um declínio econômico
objetivo, mas de processos revolucionários que acometiam Europa e América num
movimento amplo e integrado. A Revolução Americana inaugura a era das
emancipações na América; a Revolução Francesa produzia a crise derradeira do Antigo
Regime; a Revolução Haitiana esticava ao máximo os limites das novas realidades que
se constituiriam ao produzir impactos objetivos e subjetivos nas sociedades escravistas
do século XIX708.
O impacto da Era das Revoluções e a crise dos dois sistemas atlânticos (ibérico e
noroeste europeu), contudo, não deram lugar automaticamente a uma era de plena
liberdade. Pelo contrário: o advento do liberalismo, nos quadros do pensamento
iluminista, e o impacto da Revolução Industrial condicionaram outra faceta àquela
modernidade escravista que impactava os sistemas atlânticos. Nesse sentido, se a
“modernidade escravista” da passagem de um sistema atlântico ao outro promove uma
primeira franja dessa multiplicidade de “modernidades” presentes no contexto colonial,
a Era das Revoluções, especialmente a Revolução Haitiana, como extremo de uma
potência de “contra-modernidade”, ao mesmo tempo que produz a negação daquela
705
PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade..., p. 155.
BAPTIST, Edward E. A Segunda Escravidão e a Primeira República Americana. In: Almanack. n. 05.
Guarulhos: UNIFESP, 2013, p. 5-41, referências à p. 17.
707
“O aprofundamento da crise no sistema atlântico do noroeste europeu nas décadas de 1790 e 1800
produziu o quadro que a traria também para o sistema atlântico ibérico”. Cf. BERBEL, Márcia et alii.
Escravidão e Política... p. 86.
708
Impacto de escala variável: mais em Cuba do que no Brasil, por exemplo. Cf. BERBEL, Márcia et alii.
Escravidão e Política... p. 108.
706
265
primeira franja, possibilita sua expansão a um outro nível, abrindo conseqüências
diretas para um terceiro momento da modernidade escravista.
Se a Revolução Haitiana aparece como decorrência direta, embora não
unicamente, dessas transformações, outras regiões escravistas atravessaram o impacto
daquelas décadas não apenas sobrevivendo, mas renascendo sob novas condições que
expandiram fortemente não apenas a escravidão, mas todo o complexo social, político,
ideológico e econômico que se estruturava ao redor dela. Assim, se os princípios
liberais, os movimentos revolucionários e a Revolução Industrial inglesa, na virada dos
séculos XVIII e XIX, causaram a implosão de diversos sistemas escravistas do Novo
Mundo, outras regiões não apenas expandiram seus plantéis escravistas ao longo da
primeira metade do século XIX e reforçaram os grilhões em seus territórios como
também o fizeram a partir das novas condições mundiais inauguradas pelo capitalismo
em ascensão. Em Cuba, no sul dos EUA e no Brasil (respectivamente, produtores de
açúcar, algodão e café), a escravidão atrelou-se a um incremento do processo produtivo
e à introdução de máquinas-símbolos da Revolução Industrial, como o descaroçador de
algodão, nos EUA, e a ferrovia, em Cuba e no Brasil. Nessas regiões, a tecnologia e a
expansão do mercado mundial, longe de atacarem a escravidão, serviram para dar-lhe
novo fôlego e para se recompor segundo novas justificativas, intenções e formas de
dominação. Nessas áreas, a produção expandiu-se a tal ponto que elas se tornaram
líderes em seus segmentos de mercado, respondendo por um virtual monopólio em suas
áreas de atuação. Os maiores compradores de suas produções eram exatamente os
mercados capitalistas em expansão, notadamente Inglaterra e norte dos EUA.
Esse terceiro momento da modernidade escravista, a “Segunda Escravidão” 709,
pode ser entendido, então, como a recomposição do escravismo em novas áreas (ainda
que dentro de antigas colônias), atrelado a um novo sistema-mundo capitalista,
impulsionado por inovações técnicas e justificado sob princípios liberais e cada vez
mais relacionada a uma faceta moderna. Desenvolvimento do capital e aprofundamento
do escravismo, nesse sentido, longe de constituírem oposições, entrelaçaram-se na
construção dessa modernidade.
A Segunda Escravidão ocorreu num período de mudanças aceleradas e seu
alcance não chegou perto dos quase três séculos de escravidão colonial – sem falar que
709
A discussão sobre a Segunda Escravidão baseia-se prioritariamente em TOMICH, Dale. Pelo Prisma
da Escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2011, especialmente o capítulo intitulado, não à toa, “A „Segunda Escravidão‟”.
266
ela conviveu permanentemente com uma tensão antiescravista. Contudo, sua
intensidade foi maior. Podemos acompanhar essa intensidade a partir da tabela abaixo,
contendo algumas estimativas de desembarques de escravos africanos em algumas das
principais regiões escravistas das Américas.
Tabela 6.1: Estimativas de desembarques de escravos, séculos XVI-XIX.
Brasil
Caribe
América do
América
Caribe
Britânico
Norte
Espanhola
Francês
1501-1600
29.275
-
-
169.370
-
1601-1700
784.457
310.477
15.147
225.504
38.685
1701-1800
1.989.017
1.813.323
295.482
145.533
995.133
1801-1866
2.061.625
194.452
78.117
752.505
86.397
Fonte: www.slavevoyages.com
Duas situações podem ser lidas a partir dessa tabela:
1) Nota-se que, enquanto em algumas tradicionais regiões do escravismo
colonial diminuíram os números de escravos desembarcados, em outras, esses números
subiram. Os números indicam simultaneamente o declínio do segundo momento da
modernidade escravista (Caribes britânico e francês) e o advento das novas regiões da
Segunda Escravidão, em especial, Cuba, Brasil e EUA. Neste último, em especial na
região do baixo Vale do Mississipi, grande região de produção algodoeira, após a
proibição do tráfico negreiro, em 1807, o número de cativos aumentou, conforme
podemos observar na tabela seguinte:
Tabela 6.2: Estimativas de população escrava no baixo vale do Mississipi (EUA)
Ano
1720
1750
1770
População
1.385
4.730
7.100
1790
1810
1820
1840
1860
18.700 51.748 145.394 637.130 1.497,118
escrava
Fonte: BERLIN, IRA. Gerações de Cativeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 322-323
Tais números demonstram que, naquela região, os plantéis escravistas
estabilizaram-se ao longo do século XIX e reproduziram-se internamente até às portas
da Guerra de Secessão, durante a qual a escravidão encontrou um fim nos EUA.
2) A segunda situação, que pode ser lida a partir da tabela 6.1, envolve os
destinos das duas regiões que tiveram seus plantéis aumentados via desembarque de
267
escravos ao longo do século XIX: Cuba, que concentrou a maior parte dos
desembarques da América Espanhola, e Brasil. Ambas as regiões conviveram de modo
diferente com esse aumento de desembarques: na primeira, o tráfico manteve-se legal
por mais tempo do que na segunda, onde foi proibido por lei já em 1831 – o que
implicou na reprodução via tráfico com imenso acobertamento e estímulo de frações dos
dirigentes imperiais, como indicam os estudos de Tâmis Parrón710. Contudo, apesar de
diferentes formas de convivência em ambos os casos, o aumento nos desembarques
levou a uma situação similar: o aumento dos plantéis escravistas em novas regiões de
produção voltadas para o mercado internacional (produção de açúcar, em Cuba, e café,
no Brasil).
Podemos perceber como escravidão, tráfico e produção, para o mercado
internacional, conviveram intimamente a partir da tabela 6.3.
Tabela 6.3: Volume de produção de açúcar e café em Cuba e no Brasil:
Cuba
Brasil
1821-25
63.2
12.5
1826-30
84.2
25.7
1831-35
101.3
52.9
1836-40
129.8
72.2
1841-45
170.3
91.2
1846-50
253.5
129.3
1851-55
389.5
155.3
1856-60
435.3
172.8
1861-65
501.4
139.7
Obs.: valores em milhares de toneladas métricas.
Fonte: ELTIS, David. Economic Growth and the ending of the transatlantic slave trade. New
York/Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 284 e 286.
Com as três tabelas juntas, percebemos toda a movimentação das relações entre
Segunda Escravidão, mercado internacional e reorganização das sociedades em Cuba,
nos EUA e no Brasil. O aumento nos plantéis escravistas (via tráfico, em Cuba e no
Brasil, e reprodução interna, nos EUA) levou a um aumento nas respectivas produções
internas. Deve-se ressaltar que esse aumento se dá numa conjuntura de queda nos preços
710
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, especialmente capítulo 2.
268
dos produtos, o que reforça como a expansão dos volumes, feita num contexto
desfavorável, teve de contar com o fácil acesso a vastas fontes de mão-de-obra.711 Devese ressaltar, ainda, que essa expansão da escravidão e da produção contou com as
amplas vantagens proporcionadas pela Revolução Industrial em andamento. Segundo
nos diz Dale Tomich, em Cuba foram construídas ferrovias (grande símbolo da
Revolução Industrial) com a missão específica de escoar a produção açucareira, o que
otimizou o tempo e permitiu a penetração dos engenhos e dos canaviais mais para o
interior da ilha. No Brasil, na segunda metade do século XIX, as primeiras ferrovias
construídas também tinham por objetivo primordial escoar a produção açucareira, desde
o vale do Paraíba até os portos. Em ambos os casos, os capitais oriundos dos senhores
de escravos e produtores das plantations foram fundamentais para a acumulação
necessária à construção desses símbolos do nascente capitalismo industrial.
Ao advento da Segunda Escravidão corresponderia, ainda, a construção na maior
parte da América dos novos Estados Nacionais saídos da crise colonial 712. Vale dizer: à
crise da escravidão colonial seguia-se a Segunda Escravidão; à crise do sistema colonial
seguiam-se os Estado de base nacional. Significa afirmar, portanto, que a escravidão
tornava-se, cada vez mais, uma questão nacional nos novos Estados territoriais em
criação 713 (mesmo em Cuba, que ainda era colônia da Espanha, a questão ganhou
dimensões mais amplas – imperiais – e não meramente locais).
Eis o mundo em plena transformação com que dirigentes do Império do Brasil
precisavam lidar. Para além das mudanças conceituais e políticas que discutimos nos
capítulos anteriores, que transformaram conceitos, práticas e interpretações desde o
momento de ruptura, ainda havia o mundo da Segunda Escravidão a delimitar os
espaços possíveis de ação para aqueles que tencionavam erguer um poderoso Império na
América. Sendo esse Império escravista, também a experiência histórica que seus
agentes manifestavam no processo de interpretação do mundo precisava lidar com a
questão da escravidão.
711
Para o contexto de expansão econômica do Vale do Paraíba, atrelado às transformações no mercado
mundial, cf. MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do
mercado mundial do café no século XIX. In: MUAZE, Mariana & SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba
e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 21-56.
712
Luiz Felipe de Alencastro já apontara, ao analisar a obra de Dale Tomich, como a desconsideração
pelos processos de construção dos Estados nos EUA e no Brasil faria o conceito de “segunda escravidão”
perder muito da sua força. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Brazil in the South Atlantic (1550-1850).
Meditations. 23.1 (Fall, 2007), p. 125-174 (especialmente p. 170, n. 84).
713
Para a noção de “escravidão nacional”, cf. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
269
6.2) O chão escravista da Constituinte:
No mundo da Segunda Escravidão em construção, não surpreende que o “chão
escravista do Império do Brasil” condicionasse as discussões que envolvessem o
tema714. Dessa forma, as relações que discutimos nos capítulos anteriores a respeito da
interpretação da História como história da liberdade em luta contra a opressão, assim
como as relações entre a construção de uma perspectiva sobre a civilização em oposição
à barbárie, e sobre a forma pela qual o Brasil inseria-se dentro dessa lógica mais ampla,
atravessando as transformações sem riscos de anarquia e fragmentação, tudo isso
dialogava, também, com os modos pelos quais eram tratadas as relações entre
escravidão, nação, civilização e História.
Podemos perceber essas relações desde a Constituinte, com a discussão a
respeito do famoso artigo 5 do projeto de Constituição, apresentado à Assembleia em 01
de setembro.715 Nele, declarava-se: “São brasileiros”:
I. Todos os homens livres habitantes no Brasil, e nele nascidos.
II. Todos os portugueses residentes no Brasil antes de 12 de
Outubro de 1822.
III. Os filhos de pais brasileiros nascidos em países estrangeiros,
que vierem estabelecer domicílio no império.
IV. Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro
em serviço da nação, embora não viessem estabelecer domicílio no
império.
V. Os filhos ilegítimos de mãe brasileira, que, tendo nascido em
país estrangeiro, vierem estabelecer domicílio no império.
VI. Os escravos que obtiverem carta de alforria.
VII. Os filhos de estrangeiros nascidos no império, contanto que
seus pais não estejam em serviço de suas respectivas nações.
VIII. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua
religião.716
De todas as definições ali traçadas, duas, em especial, nos interessam. Em
primeiro lugar, aparece já o 12 de Outubro como clivagem, antes mesmo das discussões
que, como vimos no capítulo anterior, sintetizaram na data o momento central de
714
A expressão refere-se especialmente às discussões sobre cidadania e escravidão na Constituinte de
1823, e está em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão,
cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro
(1821-1824). In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças & SILVEIRA, Marco Antonio. Território, conflito
e identidade. Belo Horizonte, MG: Argumentum; Brasília, DF: CAPES, 2007, p. 75, e BERBEL, Márcia;
MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo:
Editora HUCITEC, 2010, p. 163-175. Dialogaremos com ambos os trabalhos na discussão sobre a
questão na Constituinte.
715
AAC, tomo 5, p. 7.
716
Idem, ibidem.
270
construção do Império, após as etapas anteriores de 9 de janeiro e 7 de setembro. Até
então, como visto, o 12 de Outubro marcava especialmente a passagem do “velho
tempo” ao “tempo novo”, do “ser português” ao “ser brasileiro”, da experiência antiga à
nova. Em segundo lugar, e que constitui foco central de nossa discussão agora, a
possibilidade de os escravos alforriados constituírem parte desse “ser brasileiro”,
alcançando não apenas uma definição de cidadania, mas também o ingresso na
comunidade que se pretendia aproximar da definição de civilização que marcava as
luzes do século. O “ser brasileiro”, como vimos nos capítulos anteriores, referia-se não
apenas a um acesso aos direitos de cidadania, mas, essencialmente, a ser parte do
conjunto que rompia com o passado de opressão e ingressava no par liberdadecivilização. O “ser brasileiro” era o agente do grito de liberdade que não aceitava a
dominação; era o sujeito, na narrativa histórica que se construía, que, assim como seus
pares da história da humanidade, estava, naquele momento, cumprindo o destino
inevitável de abrir mão da opressão para exercer a natureza – presente no coração de
todos os homens, é bom lembrar – que o tornava inviável para os grilhões. Admitir o
ingresso do ex-escravo nessa narrativa do “ser brasileiro” era, discursivamente ao
menos, admitir que também no coração do escravizado jazia a necessidade humana de
liberdade que jamais poderia ser apagada, apenas oprimida – pelos mesmos grilhões que
oprimiam os brasileiros sob o jugo português. Nessa leitura, o parágrafo VI do artigo 5
era não apenas uma questão de extensão da cidadania, mas, também, um pontapé inicial
para uma gradual abolição da própria escravidão.717
Essa potencialidade emancipacionista inscrita no “ser brasileiro” foi percebida e
gerou discussões na própria Assembleia, gerando dois problemas centrais nas
discussões a se resolver.
O primeiro dizia respeito às relações entre “ser brasileiro” e “ser brasileiro
membro da sociedade civil” – ou, nas palavras usadas, “ser cidadão brasileiro”. Nessa
primeira discussão, a posição de cativos, ex-cativos e indígenas precisava ser definida
para se delimitar os significados de brasilidade que se admitiriam como válidos para
todos. Poderiam esses grupos ser equiparados pela Constituição? Se não, quais
deveriam ser as categorias de cada um? Eis o primeiro problema.
717
Num tom provavelmente dado por José Bonifácio, membro da comissão de elaboração do projeto de
Constituição. A hipótese da abolição está em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A
ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia
Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)... op. cit., p. 78.
271
O segundo problema, e ralacionado ao primeiro, dizia respeito ao papel que a
escravidão teria na jovem nação que se constituía. Tal papel demandava uma disputa
narrativa pela memória dessa escravidão e do tráfico que a alimentara, que acabava
incluída no rol das disputas pelo passado que vimos discutindo nos capítulos anteriores,
além de demandar, também, uma disputa pelas perspectivas futuras que a instituição
teria no Império do Brasil.
Vejamos cada problema separadamente.
O primeiro problema, o das relações entre “ser brasileiro” e “ser cidadão
brasileiro”, se coloca mesmo antes do debate a respeito do artigo 5 em especial. A
própria epígrafe do capítulo I do projeto – que definia os “membros da sociedade do
Império do Brasil”, seria alvo de uma proposta de emenda, não apoiada, vinda do
deputado Vergueiro. Ele propunha que se dissesse “cidadãos”, no lugar de “membros da
sociedade”. Assim, produzia uma aproximação entre a qualidade da cidadania e o
pertencimento do Brasil: quem fosse parte da sociedade do Império do Brasil seria,
necessariamente, cidadão brasileiro.
Não obstante não fosse apoiada, a emenda foi defendida pelo deputado
Montesuma. Na sua defesa, diz que gostaria que se adotasse a emenda “para desvanecer
a ideia de que se há de fazer diferença entre brasileiros, e cidadãos brasileiros”. Para
Montesuma, “ser brasileiro é ser membro da sociedade brasílica; portanto todo o
brasileiro é cidadão brasileiro”. Destacava, assim, que o que convinha era “dar [a] uns
mais direitos, e mais deveres do que a outros; e eis aqui cidadãos ativos e passivos.”
Mas tal não excluía os passivos do pertencimento àquela sociedade. 718 Montesuma,
assimo, não admite a possibilidade, na sua fala, de alguém “ser brasileiro” sem ser
membro da sociedade brasílica e, portanto, cidadão. Ao pensarmos no “ser brasileiro”
como motor de luta contra a opressão portuguesa e na construção do Império, todos
deveriam ser incluídos como membros da sociedade civil.
É o deputado França quem critica primeiro a fala de Montesuma, defendendo
que se não poderia deixar de fazer uma diferença, ou divisão, entre “brasileiros” e
“cidadãos brasileiros”. Afinal,
segundo a qualidade da nossa população, os filhos dos negros,
crioulos cativos, são nascidos no território do Brasil, mas todavia
não são cidadãos brasileiros. Devemos fazer esta diferença:
brasileiro é o que nasce no Brasil, e cidadão brasileiro é aquele
718
AAC, 1823, vol. 5, p. 166. Os grifos estão no original.
272
que tem direitos cívicos. Os índios que vivem nos bosques são
brasileiros, e contudo não são cidadãos brasileiros, enquanto não
abraçam a nossa civilização. Convém por conseqüência fazer esta
diferença por ser heterogênea a nossa população.719
A clivagem da civilização definia o pertencimento à “sociedade brasílica” –
aquela que, na narrativa que se construía, havia exercido seu direito à liberdade,
presente na história como um todo, e se separado de Portugal. Ao definir-se essa
clivagem, ia-se além da discussão sobre direitos de cidadania: se definia mesmo o
pertencimento à história da humanidade, já que esta era apanágio apenas daqueles que
estivesse plenamente inseridos na lógica da civilização. Assim como os indígenas – que,
cabe lembrar, já nessa narrativa eram tratados, desde o Reverbero, dentro da lógica da
não-história –, aos escravos nascidos no Brasil estaria interditada a presença na História.
A “heterogeneidade” da população brasileira impedia a plena historicização de todos os
habitantes do Brasil. Em outras palavras, o “ser brasileiro” era pertencente a todos que
nascessem no Brasil, incluindo os crioulos cativos e indígenas, mas o “ser membro da
sociedade civil brasileira”, e portanto ator das transformações recentes por que havia
passado o Brasil, era restrito a quem não fosse parte dos grupos anteriores.
Montesuma, respondendo a França, afirma não desejar nada de diferente de seu
crítico, mas vai além. Afirma que ali na Assembleia, não tratavam “senão dos que
fazem a sociedade brasileira”, dos “súditos do Império do Brasil, únicos que gozam dos
cômodos de nossa sociedade”. Os índios, nesse sentido, estariam “fora do grêmio da
nossa sociedade”, por não serem súditos do Império e o não reconhecerem, “nem por
conseqüências duas autoridades desde a primeira até a última, vivem em guerra aberta
conosco”. Estariam, assim, fora da lógica da “sociedade brasílica”, embora devessem,
sim, ser alvo de uma legislação civilizatória que os chamasse ao ingresso na civilização.
Da mesma maneira, os “crioulos cativos” também não eram membros da sociedade, não
obstante Montesuma dissesse esperar que “quanto antes purifiquemos de uma tão negra
mancha [d]as nossas instituições políticas”. A crítica à escravidão não rompia a
clivagem que França definira e que Montesuma ampliara: dos três grupos a habitar o
território do Brasil, apenas um teria o pleno direito à História por já estar na
civilização720, sendo aos outros dois vedado o acesso à sociedade civil, caso de França,
ou à sociedade brasílica como um todo, caso de Montesuma. França, aliás, respondendo
719
720
Idem, ibidem.
Idem ibidem.
273
mais à frente ao deputado Maia, que defendera a aproximação entre o “ser brasileiro” e
o “ser cidadão brasileiro”, a exemplo de Montesuma, indagaria:
Todos os homens livres, diz [Maia], habitantes do Brasil, nele
nascidos, são cidadãos brasileiros. Agora pergunto eu, um Tapuia
é habitante do Brasil? É. Um Tapuia é nascido no Brasil? É. Um
Tapuia é livre? É. Logo é cidadão brasileiro? Não, posto que aliás
se possa chamar brasileiro pois os índios no seu estado selvagem
não são, nem se podem considerar como parte da grande família
brasileira; e são todavia livres, nascidos no Brasil, e nele
habitantes.
Nessa lógica, antes que abracem “nossos costumes e civilização”, os indígenas
“estão fora da nossa sociedade”.721 Assim, essa perspectiva admitiria, no máximo, um
ingresso subordinado na História: os escravizados e os indígenas seriam, sim, parte da
sociedade brasileira, mas não a parte civil – origem da civilização – a quem se dirigia a
ação na lógica da história como história da liberdade. Seriam objeto, não sujeito.
França retomaria a questão a partir da sessão de 24 de setembro, quando entra
em discussão o artigo 5 propriamente dito. A discussão começa a partir de emenda sua
que, retomando a questão proposta por Vergueiro, mas não apoiada, defende a
substituição do “são brasileiros” do artigo 5 pela expressão “são cidadãos brasileiros”.
Para tanto, novamente argumenta que o termo “cidadãos” “é o característico que torna o
indivíduo acondicionado de certos direitos políticos que não são comuns a outros
quaisquer indivíduos, posto que brasileiros sejam”. E dá como exemplo dos outros
quaisquer indivíduos os
crioulos, ou filhos dos escravos que nascem no nosso continente [que]
são sem dúvida brasileiros, porque o Brasil é o seu país natal; mas são
eles porventura ou podem considerar-se como membros civis da
sociedade brasileira, isto é, acondicionados dos direitos políticos do
cidadão brasileiro? Não certamente. 722
A chave interpretativa é, novamente, o ingresso na sociedade civil. Assim
como nos dicionários 723 , também as narrativas que vimos analisando admitiam as
721
Idem, p. 167.
AAC, 1823, vol. 5, p. 179.
723
No Moraes e Silva, lembremos, “história” tem o significado de “narração de sucessos civis, militares,
ou políticos.” Da mesma maneira, “historiar” seria “escrever algum sucesso civil, militar ou político, a
vida de alguém, a fundação de alguma Cidade etc. segundo as leis da história.” Tal seria, também, o
característico de “histórico”. Cf. MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza
recopilado de todos os impressos até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Primeiro. Lisboa:
Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, p. 682. Cabe indicar que, no Silva Pinto, o termo “História”
722
274
transformações históricas como resultado da ação de sujeitos ingressantes no âmbito
civil da sociedade. Esse ingresso, saindo da natureza, era a marcação do começo da
História. O oposto era a não-história. Era o esquecimento.
Outro deputado, Francisco Carneiro, defendendo a emenda, interroga os colegas:
“Ora, por exemplo, os escravos e os estrangeiros também se poderão entender membros
no sentido deste capítulo? Não, por certo: entram na sociedade de homens, mas não na
sociedade de homens que gozam dos direitos de cidade conforme a constituição.” Os
escravos, os indígenas etc. “não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade
civil, mas rigorosamente não são partes integrantes delas, e os indígenas dos bosques,
nem nela vivem, para assim dizer.” Não obstante, estes não seriam seres sem quaisquer
direitos, mas manteriam, além dos de “mera proteção”, a “geral relação de
humanidade”. Fariam genericamente parte dela, mas não comporiam o corpo nacional
de brasileiros que acabara de ingressar na história da liberdade com o brado que os
tirara da opressão de Portugal.724
Vergueiro, como não poderia deixar de ser, já que era autor da proposta original
rejeitada, seria outro a defender a proposta de França. Para ele, a epígrafe “dá a entender
que brasileiro quer dizer membro da sociedade do Império do Brasil: o que não é exato;
porque há escravos e indígenas, que sendo brasileiros não são membros da nossa
sociedade.”725 Mesmas questões postas: escravos e indígenas eram as referências para se
bem delinear os cidadãos do Império do Brasil, e, portanto, era preciso cuidar de tratar
apenas dos membros da sociedade civil.
Seria o deputado Almeida e Albuquerque, para quem a questão era de suma
importância, e não apenas de nomenclatura, quem ofereceria uma explicação mais
prática para a clivagem que a emenda de França oferecia. Para tanto, primeiro retoma
historicamente a questão de quem compõe a “família social”. Tratava-se, argumenta o
deputado, “dos indivíduos que compõe a grande família brasileira”, e todos sabiam que
aparece apenas como “narração de sucessos”, estando ausentes os adjetivos. Cf. SILVA PINTO, Luiz
Maria da. Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832, p.583.
724
AAC, 1823, vol. 5, p. 180. Na sessão seguinte, em 25 de setembro, voltando a discussão, seria
Carvalho e Mello um deputado a discordar dessa interpretação. Reputando “cidadãos brasileiros todos os
que nasceram no território deste império, ou que se tornaram tais por força e determinações da lei”, indica
que tem sido entendido ao longo dos séculos que todos que fazem parte da cidade ou sociedade são
admitidos como cidadãos. A distinção que priva alguns dos direitos políticos, argumenta, existem porque
“assim o pede e exige o bem da ordem social”, mas tal não deve bastar para que se os privem do
“honorífico título” de cidadão, que é adquirido simplesmente “pelo seu nascimento, pelas determinações
legais, e porque abraçaram o nosso novo pacto social.” 724 A admissão de que todos abraçaram o pacto,
sendo, portanto, cidadãos, contrapõe-se à fala anterior de Francisco Carneiro, que restringiu os
ingressantes do pacto
725
Idem, p. 183.
275
família compõe-se de “pais, filhos e domésticos (...) esta é a mais natural e a mais antiga
de todas as sociedades.” Isso não significaria ausência de distinções entre os que a
compõem: todos seriam membros da sociedade, mas nem todos gozariam das mesmas
prerrogativas. Nem todos seriam cidadãos.
Seria bom, continua, se assim não fosse; se as coisas no Brasil fossem diferentes.
Mas “em um país, onde há escravos, onde uma multidão de negros arrancados da costa
d´África e de outros lugares, entram no número de domésticos, e formam parte das
famílias, como é possível que não haja essa divisão?” E segue com exemplos do
passado para confirmar sua argumentação: “Na Grécia os libertos não eram cidadãos,
nem ainda seus filhos, posto que gregos fossem: não bastava mesmo ser filho de pai
ingênuo, ou que nunca tivesse sido escravo: era preciso ser filho de dois naturais
gregos.” Do mesmo modo, em Roma, também a “qualidade de cidadão era apreciada”,
sendo alvo de inúmeras regulamentações. E se houve tempo, nessa sociedade, “em que
bastava ter nascido em Roma, e ter nascido livre para ser cidadão”, isso teve como
resultado “uma multidão de filhos de libertos, e de estrangeiros [que] inundou a cidade”,
tornando-se eles “bem depressa senhores das deliberações pelo seu grande número de
votos”, sendo necessária uma intervenção para que se restituísse a “superioridade de
votos aos verdadeiros romanos”. Eis o exemplo “que nos conta a história. Ora não será
isto um exemplo para não prodigalizarmos inconsideradamente o foro de cidadão
brasileiro? Não devemos ter em vista melhorar, e não abastardar as gerações
futuras?”726 O apelo ao passado romano como forma de produzir o medo senhorial de
uma legião de descendentes de escravizados ditando o ritmo das políticas para o
Império buscava manter as clivagens necessárias à ordem escravista na delimitação da
posição de cada um na “grande família” que constituía a nação brasileira. Como se
precisasse, insiste na argumentação deixando claro o foco da produção desse medo:
Oxalá que todos os que habitam o Brasil fossem cidadãos
brasileiros; mas é isto possível? Indivíduos que não têm certa
aptidão para o bem geral da sociedade, e que não têm qualidades
morais devem gozar das mesmas prerrogativas que aqueles em
que elas concorrem? O escravo africano, por exemplo, que
chegou a libertar-se, mas que não tem adquirido os nossos
costumes, e que não tem alcançado algum grau de civilização,
pode dizer-se cidadão brasileiro?727
726
727
Idem, p. 184.
Idem, ibidem.
276
Novamente o ingresso na civilização aparecia como limite para a plena inserção
na sociedade. No final, passa, na votação, a emenda de França. Mas não se encerraria a
discussão. Afinal, uma vez definida a clivagem, alguns dos itens do artigo 5 poderiam
causar perturbações. Como fica claro já no primeiro deles, o I, que define, como
cidadãos brasileiros, “Todos os homens livres habitantes no Brasil, e nele nascidos.”
Considerando a exclusão óbvia dos escravizados no trecho, a crítica se volta
plenamente para os demais indivíduos livres que se não deveriam incluir na cidadania:
indígenas e libertos de origem africana. O deputado Arouche Rendon lembra à Câmara
que qualquer um com algumas luzes de jurisprudência “conhece bem a diferença que há
entre brasileiro simplesmente e cidadão brasileiro”. Assim, levando-se em conta que a
emenda de França foi aprovada e fez o artigo passar como “cidadãos brasileiros”, e não
simplesmente “brasileiros”, seria preciso mudar o item I, já que, por exemplo, “o
botocudo nasceu no Brasil, nele habita, é livre, e contudo nunca direi que é brasileiro
cidadão”. Da mesma maneira, e já considerando o item VI, que definia como brasileiros
“os escravos que obtiverem carta de alforria”, afirma o deputado que estes não podem
ser cidadãos, “pois se um africano logo que chega for liberto, o mais que pode ficar
sendo é um estrangeiro, e não um brasileiro cidadão.”728
Em sessão de 30 de setembro, se discute, afinal, com mais intensidade o
parágrafo VI, referente aos escravos que obtivessem alforria. É o momento-chave não
apenas da discussão sobre as relações entre o “ser brasileiro” e a questão da escravidão,
mas, também, para a conexão entre o passado recente brasileiro a as expectativas futuras
que se produziam a respeito do Império.
Nessa discussão em particular, surge o segundo problema, a que nos referimos
acima. Afinal, qual deveria ser o papel da escravidão para o Império que nascia? No
mundo da Segunda Escravidão que começava a desenhar-se com mais clareza, mas no
qual o Império ainda não plenamente ingressara, essa seria uma questão de fundamental
importância frente à ordem legal que se pretendia construir. E dois debatedores
marcariam com mais profundidade suas posições frente a essa questão: José da Silva
Lisboa, seguindo os passos de Muniz Tavares, e Maciel da Costa, seguindo os passos de
França.
Idem, p. 185. Montesuma pensa de modo semelhante. Para ele, “os índios não são brasileiros no
sentido político em que aqui se toma; eles não entram conosco na família que constitui o Império”. Até
poderiam entrar, afirma, desde que queiram, havendo os meios de “os chamar, e convidar ao nosso
grêmio; mas chamar os índios brasileiros no sentido deste artigo, ou querer já compreende-los como
cidadãos brasileiros não é conforme aos princípios políticos, que devemos professar.” Idem, p. 186
728
277
Muniz Tavares, abrindo com seu discurso a ordem do dia, diz que se levanta não
tanto para falar sobre a matéria, a discussão do parágrafo VI, mas, sim, “como que para
se conservar a ordem.” Explicando que julgava conveniente que o artigo passasse sem
discussão, lembrava que
Alguns discursos de célebres oradores da assembléia constituinte
de França produziram os desgraçados sucessos da Ilha de S.
Domingos, como afirmam alguns escritores que imparcialmente
falaram da revolução francesa; e talvez entre nós alguns Srs.
Deputados arrastados de excessivo zelo a favor da humanidade,
expusessem ideias (que antes convirá abafar), com o intuito de
excitar a compaixão da assembléia sobre essa pobre raça de
homens, que tão infelizes são só porque a natureza os criou
tostados.729
Muniz Tavares, que, como visto nos capítulos anteriores, já demonstrara seu
imenso horror apenas à audição da palavra “revolução”, conclamava os colegas a passar
a questão sem exaltações trazendo do passado recente o espectro do Haiti – que, como
vimos, já fora utilizado, tanto pelos portugueses quanto pelos brasílicos, para direcionar
certos debates e questões que consideravam não merecer muita atenção, graças aos
riscos que levantava. Embora o próprio taquígrafo não registrasse o final do discurso de
Tavares, sob argumento de que se o não ouviu, ficaria registrado o único ponto que o
deputado afirmou querer destacar: “direi somente que no antigo sistema apenas um
escravo alcançava a sua carta de alforria, podia subir aos postos militares nos seus
corpos, e tinha ingresso no sagrado ministério sacerdotal, sem que se indagasse se era
ou não nascido no Brasil.”730 Considerando-se a posição manifesta em outras ocasiões
pelo deputado, discutidas no capítulo anterior, a respeito da defesa das “luzes do século”
contra a opressão dos tempos passados, sugere-se que sua fala era um ataque a uma
proposição indicada na sessão anterior, de 27 de setembro, pelo deputado França,
declarando que o artigo VI “poderia passar se os nossos escravos fossem todos nascidos
no Brasil”. Não o sendo, sendo estrangeiros, a emenda que França oferecia era para que
se restringisse a cidadania aos libertos que fossem oriundos do Brasil. 731 Assim,
podemos levantar a hipótese de que Muniz Tavares considerava desnecessária ou
exagerada a restrição na emenda indicada por França, sugerindo-se, portanto, que os
riscos de se reproduzirem no Brasil as cenas de S. Domingos teriam mais a ver com
729
AAC, 1823, vol. 5, p. 203-204.
Idem, p. 204.
731
Idem, p. 201.
730
278
esforços de restrição para ascensão social de ex-escravos do que pela discussão em si da
questão. Daí a defesa de que se passasse o parágrafo VI tal como redigido.732
Outros deputados concordariam com a posição de Muniz Tavares a respeito do
artigo, embora com ressalvas. Era o caso do deputado Alencar, para quem as emendas
oferecidas por outros deputados ao artigo lhe pareciam “injustas, contraditórias, e
impolíticas.” – e que o artigo original estaria, sim, conforme os princípios de justiça
universal. Contudo, continua, essa “justiça universal” do artigo deveria subordinar-se a
um princípio mais amplo, a um pragmatismo que hierarquiza a lógica social no Império
do Brasil: o princípio da salvação da ordem.733 Atacando ainda as emendas de França e
de Costa Barros, oferecida na sessão anterior734, afirmava que, fossem tais condições
atendidas, os forros que não alcançassem a condição de cidadania ficariam sem um
lugar na sociedade.
o que serão esses que pelas emendas ficam excluídos?
Estrangeiros certamente não, porque não pertencem a sociedade
alguma, nem tem outra pátria que não seja a nossa, nem outra
religião senão a que professamos, e portanto segundo o projeto
não sei o que hão de ser.735
E questiona a distinção entre o tratamento dado a indígenas e aos cativos nessa
questão: o índio,
logo que entra para a nossa sociedade, selvagem como é, não
deixa de ser cidadão (...), mas os escravos, que eu não julgo em
piores circunstâncias, entende-se que não devem ser admitidos
apesar de que pelo lado dos costumes estejam muito mais
732
França, respondendo a Muniz Tavares, argumenta que não oferecera sua emenda restringindo a
cidadania aos libertos oriundos do Brasil por “menos filantropia” do que os autores do projeto original. E
indica que as circunstâncias do Brasil são distintas daquelas das Cortes de Portugal, onde se discutia a
cidadania para os africanos – possivelmente uma resposta motivada por algum argumento não registrado
na fala de Muniz Tavares.
733
Tal princípio deveria o pleno ingresso dos escravos no mundo da cidadania, pois, além de os cativos
“serem propriedade de outros, e de se ofender por isso este direito se os tirássemos do patrimônio dos
indivíduos a que pertencem”, ainda restaria o imenso inconveniente de amortecer, com isso, “a
agricultura, um dos primeiros mananciais da riqueza da nação”, abrindo-se um “foco de desordens na
sociedade introduzindo nela de repente um bando de homens, que saídos do cativeiro, mal poderiam
guiar-se por princípios de bem entendida liberdade.” Idem, p. 204.
734
A emenda de Costa Barros recusava a oferta de cidadania brasileira imediatamente ao escravo que
alcançasse carta de alforria, tornando necessário, para tal, que os libertos tivessem emprego ou ofício para
que se tornassem úteis à sociedade, e não “servir de peso”. Idem, p. 201.
735
Idem, p. 204. Para Marquese e Berbel, a fala de Alencar considerava a África “tábula rasa”, por conta
da associação dos escravos à ideia de não-pertencimento a sociedade alguma. MARQUESE, Rafael &
BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes
de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)... op. cit., p. 77.
279
chegados aos nossos, porque tomam os de seus senhores no
tempo do cativeiro.736
A reafirmação da escravização como um processo civilizatório, visto que
aproximava o cativo, originalmente não pertencente a sociedade alguma, das benesses
da civilização a que pertenciam seus senhores, é trazida à discussão como uma maneira
de justificar o ingresso subordinado do ex-cativo na sociedade brasílica – e, não fosse a
salvação do estado, justificaria também o ingresso do próprio cativo. 737
Em suma, na linha aberta por Muniz Tavares, o artigo VI deveria passar tal
como redigido – Seriam cidadãos simplesmente todos os escravos que obtivessem carta
de alforria –, lamentando discursivamente Alencar que a salvação do estado impedisse
que se fosse além disso. Nesse sentido, posicionam-se contra as emendas oferecidas por
França e Costa Barros, que, respectivamente, defendiam que a cidadania fosse
concedida apenas aos libertos nascidos no Brasil e que cumprissem certas condições de
emprego e utilidade à sociedade. Falar demais sobre o artigo, impondo a ele emendas
desse tipo, na perspectiva de Muniz Tavares além de se arriscar a repetição das cenas do
Haiti – tal como, analisava, acontecera na Assembleia Francesa –, ainda apresentava
outro problema, este de moralidade, para o Império que se erguia na América: até no
“velho tempo”, no “antigo sistema”, como afirmara, um ex-escravo podia ascender
socialmente a postos militares e sacerdotais, sem que se perguntasse se era oriundo ou
não do Brasil. Iria querer o Império liberal travar tal ascensão?738
736
AAC, 1823, vol. 5, p. 204.
Para Carneiro da Cunha, que discursa depois de Alencar, inclusive, a simples obtenção de alforria já
garantia sobre o ex-cativo a presunção de bom comportamento e atividade, de cumprimento das
obrigações, não vendo o deputado sentido em diferenciar, nesse particular, os africanos dos nascidos no
Brasil, já que aquele necessitaria mais de amparo que este, visto que o africano não teria quem o
protegesse, enquanto “o nascido no seio de uma família goza de algumas comodidades e tem, de ordinário
mais estimação.” Idem, p. 204-205. Costa Barros discordaria da fala sobre a carta de alforria, afirmando
que estas “são quase sempre passadas por amor, e a maior parte a escravos mal criados.” Idem, p. 205.
738
Esse ponto da discussão, sobre as diferenças entre ascensão de libertos no novo e no velho tempo,
marcariam alguns outros debates ao longo da década de 1820. Em discussão sobre projeto de lei a
respeito das municipalidades, por exemplo, em 1828, na Câmara dos Deputados, no que tangia à
definição de cargos municipais e sobre quem poderia a ele ascender, alguns deputados, como Castro e
Silva defendem que aos libertos seja restrita a ascensão às câmaras municipais, devido à sua condição.
Costa Aguiar, então, critica o que enxerga como um processo de “aristocratização” do Brasil que deseja
excluir das câmaras os libertos “só porque são libertos.” E completa: “A aristocracia que pode convir ao
Brasil é a do merecimento, o qual pode existir em todas as classes, e o estado e a qualidade de liberto só
por si não pode servir do motivo justificado para semelhante exclusão”, dizendo reconhecer apenas o
mérito, não importa se branco ou preto, e se este saiu de um estado no qual teve o azar de nascer, então
não haveria razão para criar mais barreiras à ascensão. Da mesma maneira, o deputado Augusto Xavier
declara que “é necessário que as virtudes e o merecimento tenham lugar entre nós, embora preceda nesses
desgraçados o nome de que haviam sido escravos; esse deve ser nivelado quando tenha merecimento.” E,
finalmente, o melhor discurso em defesa da ascensão social dos libertos é de Cunha Mattos, personagem
de que trataremos melhor na parte final deste capítulo. Mattos, em sua fala, afirma que “a ideia da
737
280
Silva Lisboa fala mais à frente. Também afirma ser o artigo VI, no seu
entendimento, “justo e político”, não admitindo as restrições postas pelas emendas.
Declara, assim, ser conveniente fazer o artigo mais simples ou amplo, para excluir toda
a dúvida, “declarando-se ser cidadão brasileiro, não só o escravo que obteve de seu
senhor a carta de alforria, mas também o que adquiriu a liberdade por qualquer título
legítimo”. Traz à discussão Madame de Stael, “que atribui a uma semelhante discussão
na assembléia da França a catástrofe da sua melhor colônia na América.” 739 Para
Lisboa, porém, diferentemente de Muniz Tavares, “não há risco em se deixar a verdade
combater com a falsidade e aquela prevalecerá, sendo o duelo sem padrinhos”. E
complementa:
Quem perdeu a rainha das Antilhas foi, além dos erros do governo
despótico, a fúria de Robespierre, o qual bradou na assembléia –
pereçam as nossas colônias, antes que pereçam os nossos
princípios. – Ele com os colegas anarquistas proclamaram súbita e
geral liberdade aos escravos; o que era impossível e iniquissimo,
além de ser contra a lei suprema da salvação do povo. Onde o
cancro do cativeiro está entranhado nas pares vitais do corpo civil,
só mui paulatinamente se pode ir desarraigando. 740
Ao inverter a lógica da discussão sobre a temática da escravidão ao acusar não
os discursos em si, mas a defesa de um abolicionismo repentino como causa da
Revolução Haitiana, Silva Lisboa pode propor um abolicionismo gradual que dilui o
perigo da presença da escravidão a partir de leitura particular da Constituição. Segundo
ele, ao se combinarem os artigos 254 e 255 do projeto de Constituição ao artigo em
questão741, dissolvem-se as objeções levantadas a ele e fica claro que se propõe a sua
exclusão dos libertos é uma injúria que se faz ao exército; no exército e na armada existem muitos oficiais
que podem chegar aos maiores postos; a cor nada significa, nós o que queremos são virtudes, e eu não
terei desprezo de ficar à esquerda de um general que tivesse sido escravo, uma vez que ele tenha méritos:
passando esta ideia, nós fazemos um grande mal ao nosso exército, porque nele há muitos homens
distintos que foram escravos, não digo só no dia de hoje, mas em outros tempos, como Henrique Dias!
Esse homem defensor de Pernambuco foi escravo, e arrostrou-se [sic] contra os melhores generais
holandeses, e andou a par de todos os chefes portugueses e brasileiros. Ele fez grandes serviços à nação, e
seus descendentes foram considerados como homens mui dignos de recompensa! Portanto não deve entrar
em dúvida a admissão de libertos aos empregos mais consideráveis do estado.” Cf. ACD, 1828, sessão em
18 de junho, p. 148-149.
739
Presumivelmente, a autora a que Muniz Tavares se referia em sua fala.
740
Idem,p. 206.
741
O artigo 254 afirmava que a assembléia terá cuidado de “criar estabelecimentos para a catequese e
civilização dos índios, emancipação lenta dos negros e sua educação religiosa e industrial; o 255, da
construção de casas de trabalho para os que não acham emprego, bem como casas de correção e trabalho
para os “vadios e dissolutos de um e outro sexo e para os criminosos condenados.” AAC, 1823, vol. 5, p.
16. Na transcrição da fala, ao invés do artigo 254, aparece o número 245, que trata 245 do modo de
recrutamento da força armada. É mais provável, dado o contexto, tratar-se de erro de transcrição. O
mesmo aparece em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão,
281
“lenta emancipação e moral instrução.”742 E questiona: “em tempo de liberalismo será a
legislatura menos equitativa que no tempo do despotismo?” 743 Não poderia deixar o
novo tempo de legislar sobre a escravidão herdada do tempo velho. No mundo da
Segunda Escravidão que se construía, não obstante a crítica genérica do escravismo
acompanhasse a expansão dos plantéis, como vimos, gerando uma tensão, era
necessário não precipitar-se no emancipacionismo e incorporar os cativos à civilização
que se construía. Para Cairu, tais práticas, “mitigando o rigor do sistema de escravidão”,
sempre produziram bons efeitos.
Era um avanço em relação à proposição de Muniz Tavares. Não apenas Cairu
ampliava o escopo dos ex-escravos que teriam acesso à cidadania, contrariando a
emenda de Costa Barros ao declarar que quaisquer meios legítimos serviriam, ainda
acenava o deputado com um abolicionismo gradual e controlado de cima, tendo em
vista a construção de um projeto de sociedade que se aproximava daquele que
Bonifácio, por exemplo, defenderia em seu famoso escrito de 1823.
Para que olharemos com tanto desprezo para os africanos?”, questiona Silva
Lisboa. Mas, para ele, havia mais um elemento para além da busca por “mitigar o rigor
da escravidão.” Tratava-se, mesmo, de superar mais uma característica da sociedade
brasileira entendida como herança da colonização portuguesa, como marca do “velho
tempo”. “Mal hajam os que introduziram o tráfico da escravatura para os irem arrancar
de seu solo e fazerem da América uma Etiópia!”, complementa. Segue, então, uma
narrativa sobre a fundação do tráfico africano para o Brasil.
Afirma que foram os portugueses os primeiros autores desse mal enorme.
“Consta de história que, logo que se descobriu uma das Canárias (...) alguns portugueses
roubaram os naturais da terra, trazendo-os a Portugal cativos”, o que tanto teria
indignado D. Henrique que este os teria mandado repor vestidos no seu país. D.
cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro
(1821-1824)... op. cit., p. 79. Cf., ainda, BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis.
Escravidão e Política... op. cit., p. 168-169.
742
Idem, p. 206.
743
Novamente surge, portanto, a questão do “velho tempo” e do “novo tempo”. Henriques de Resende
seria outro a posicionar-se nessa direção. Após afirmar ter lido a “história geral de Inglaterra” e visto o
“prospecto histórico do governo do parlamento inglês por João Miller”, tendo achado nela nos “princípios
da Inglaterra o sinal característico de cidadão, que podia aparecer nas assembleias, ou parlamentos, era o
ser soldado, e combater em defesa da pátria”, lembra o deputado que “os escravos, desde que forravam,
sentavam praça no corpo combatente, e ocupavam postos militares”. Ainda segundo Resende, o ocupar
postos “não dá direitos de cidadãos; mas supõem-nos. Como pois queremos nós agora tirar aos libertos
direitos de que eles sempre gozaram no tempo do despotismo mesmo? Pois então porque estão em um
sistema de governo liberal, hão de os libertos ficar de pior condição do que estavam no tempo do governo
despótico?” AAC, 1823, vol. 5, p. 208.
282
Henrique, não obstante, na narrativa de Lisboa, teria admitido o comércio da
escravatura “a título de resgate do paganismo, para terem o benefício da cristandade;
mas realmente para com os escravos cultivarem a Ilha da Madeira, onde se introduziu a
cultura das canas de açúcar.”744 Escravidão, tráfico e sistema colonial surgem na fala de
Lisboa como elementos integrados a uma mesma lógica e culpados pela situação que
vislumbrava para o Brasil.
Mas isso não seria tudo. A situação trágica produzida pelo tráfico não causava
problemas apenas no Brasil. Segundo Lisboa,
o infernal tráfico de sangue humano foi o que multiplicou as suas
guerras [dos “etíopes”] para fazerem escravos: e esta foi a
principal causa que impossibilitou a sua civilização e fez que nem
onde primordialmente se fundou o Castelo de Ajudá, se pudesse
formar uma só vila.745
Em outras palavras, não apenas Lisboa conectava o tráfico e a escravidão ao
sistema colonial, culpando os portugueses pelo seu alvorecer, mas, também, imputava
ao comércio negreiro a ausência de civilização aos “Etíopes”. A impossibilidade de
fundação sequer de uma vila no coração do tráfico negreiro na costa do Benim mostrava
os entraves produzidos pelo infame comércio sobre o continente, considerando-se a
íntima relação, que já discutimos anteriormente, entre urbanidade, civilização e cidades.
É aí que se inicia a discussão mais aprofundada com Maciel da Costa,
representante maior do “outro lado”, crítico às ideias de Tavares, Alencar e,
principalmente, Lisboa, e retomando o fio da construção que, desde França, Costa
Barros e Almeida Albuquerque defendia outra concepção das relações entre escravidão,
civilização e Império do Brasil.746
Maciel da Costa começa afirmando que, ao ouvir a emenda proposta por França
na sessão anterior, havia se lisonjeado e esperado que se pusesse termo a uma
“discussão desagradável e que Deus queira não tenha tristes conseqüências”. Tratava-se,
744
AAC, 1823, vol. 5, p. 206.
Idem, ibidem.
746
Almeida Albuquerque, tendendo à concordância com França, questiona, em momento anterior da
discussão, como se poderia defender que uma simples carta de alforria gerasse o direito à cidadania. E
pergunta: “Se os europeus, nascidos em países civilizados, tendo costumes, boa educação, e virtudes, não
podem sem obter carta de naturalização, entrar no gozo dos direitos de cidadão brasileiro (...), como o
escravo africano destituído de todas as qualidade pode ser de melhor condição?” Novamente a ausência
de civilização restringia o acesso à cidadania. Considerando-se que, segundo o mesmo deputado, os
escravos que obtenham carta de alforria pertençam à “família brasileira”, a ausência de cidadania os
introduzia na comunidade brasílica via uma subordinação que arrastaria sua condição não-histórica
mesmo após o cativeiro. Idem, p.205
745
283
afinal, “do destino que se deve dar aos libertos: matéria espinhosa, em que têm vacilado
nações alumiadas e humanas, que, como nós, os têm em seu seio”. Para tanto, era
necessário, segundo o deputado, recorrer a certos princípios.747
E um princípio central para tratamento da questão dizia respeito ao modo de a
nação lidar com os estrangeiros. Maciel da Costa afirma que a concessão de
naturalização “é uma espécie de favor e este favor é sempre regulado por motivos de
interesse nacional”, como aumento da população, por exemplo. E essas motivações para
a naturalização são sempre subordinadas àquele princípio primário, que reaparece em
sua fala: aquele “que absorve, para assim me explicar, todos os outros, o qual é a
segurança pública, esta primeira lei dos estados a qual é a tudo superior.” 748 A
segurança pública, presente aqui como em outros discursos de que já tratamos, deveria
subordinar inclusive princípios filantrópicos, numa associação análoga à que já
discutimos, em capítulos anteriores, a respeito das relações entre “metafísicas” e ideias
gerais e a experiência que deveria sempre servir de guia para um proceder com cautela e
que fortalecesse a manutenção social. Ideias belas no papel sempre precisariam
submeter-se aos testes da experiências e às situações concretas de cada sociedade. Os
olhos que miravam exemplos metafísicos deveriam sempre submeter-se aos pés que
pisavam o chão escravista.
A Inglaterra, continua o deputado, “que nos pode ser mestra em política (...) e a
quem a liberdade tem custado mais caro que a nenhuma outra das que conheço, [a]
Inglaterra tem sido mais acautelada neste ponto”, já que não concedia plenitude de
direitos aos seus naturalizados. E se nem Inglaterra nem qualquer outra nação deveria
lidar diferentemente com relação à concessão de naturalização, continua Maciel da
Costa, causava espanto que o africano pudesse passar para o “grêmio da família
brasileira, para nosso irmão” simplesmente obtendo a carta de alforria.
747
Importante destacar que Maciel da Costa fora autor de um panfleto pró-escravista alguns anos antes,
em 1820, no qual defendia a abolição do tráfico negreiro num prazo a perder-se de vista (20 anos),
obedecendo a uma “realpolitik escravista”, segundo Marquese, que não fazia qualquer previsão de
término da escravidão. Muitos argumentos levantados em sua participação na Constituinte retomam o
panfleto. Cf. MACIEL DA COSTA, João Severiano. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução
dos escravos africanos no Brasil, sobre os modos e condições com que esta abolição se deve fazer e sobre
os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar. In: SALGADO. Graça (org.) Memórias
sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988, p. 9-59. Para uma breve análise da memória,
cf. MARQUESE, Rafael. Escravismo e Independência: a ideologia da escravidão no Brasil, em Cuba e
nos Estados Unidos nas décadas de 1810 e 1820. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e
historiografia. São Paulo: HUCITEC, 2005, p. 809-828, em especial páginas 821-825. A citação à
realpolitik escravista” está à p. 824. Cf. também RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: propostas e
experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2000, cap. 2.
748
AAC, 1823, vol. 5, p. 207.
284
Continua Maciel da Costa indicando que deixaria à consideração da Assembleia
para decidir se os africanos eram tais que sua admissão livre e franca ao “grêmio da
nossa família” nada tenha que se temer; em suma,
se podemos arrazoadamente esperar deles que sejam afeitos ao
nosso país, onde viveram escravos, e aos nossos irmãos que sobre
eles exercitaram o império dominical; se sabendo eles que nos são
equiparados, apenas forros, não aspirarão a avançar mais adiante
na escala dos direitos sociais; se a sua superioridade numérica e a
consciência da sua força... Senhores, não avançarei daqui nem só
um passo.749
O discurso de produção do medo produzia também a solidariedade senhorial. No
momento em que se consolidava discursivamente a narrativa da ruptura como produção
do grito de liberdade contra a opressão, fazendo o Brasil ingressar na história da
civilização, tornando a monarquia constitucional a melhor maneira de garantir a
liberdade sem os riscos da anarquia, nesse momento de construção do Brasil
independente, o discurso de Maciel da Costa fortalece as relações entre “grêmio da
família brasileira” e a irmandade que, exercitando o “império dominical” sobre os
cativos, precisava, defensivamente, garantir sua sobrevivência restringindo a si o acesso
às benesses do ingresso civilizacional permitido pela Independência. O discurso que
construía o “ser brasileiro” como agente da liberdade fortalecia seu caráter exclusivista.
Não ao estrangeiro simplesmente, de forma geral, mas, especialmente, ao africano. E
isto ainda seria em benefício deles próprios, uma vez que, mesmo considerados
estrangeiros no Império, ainda estariam “por certo muito melhor que na África, onde
vivem sem leis, sem asilo seguro, com elevação pouco sensível acima dos irracionais,
vítimas do capricho de seus déspotas a quem pagam com a vida as mais ligeiras
faltas.”750 Em uma frase, sem civilização.
A comparação com os Estados Unidos serve de contraponto à questão. Na
aproximação que coloca lado a lado dois dos únicos centros escravistas ainda restantes
com força no XIX, Maciel da Costa conclama aos deputados que “não queiramos ser
mais filantrópicos que os americanos do norte com os africanos: eles procuram, como
sabemos, acabar com a escravidão, mas não querem nada deles para os negócios da
sociedade americana, antes desejam desembaraçar-se deles, e nisso trabalham.” Nessa
repugnância com que encaram a questão dos africanos, os Estados Unidos chegam ao
749
750
Idem, ibidem.
Idem, p. 208.
285
ponto “de nem admitirem os homens de cor livres à participação dos direitos políticos
nem de empregos, coisa em que são sem dúvida desarrozados, e nisso lhes levamos
vantagem.” Conclui afirmando que
Servirá esta observação para desenganar alguns miseráveis
embaidos por ignorância com a grande liberalidade do governo
americano, assentando que só ali há liberdade, e que é a melhor
organização política imaginável. Lembro-me que os estados onde
se faz aquela ignominiosa distinção de cores, são La Delaware,
Carolina, Kentucky etc.751
E encerra com a proposta de emenda que define como cidadãos brasileiros os
“libertos nascidos no Brasil, e os que não tendo nascido no Brasil casarem com
brasileira e exercitarem algum gênero de indústria.” Mais do que a escravidão em si, o
grande risco era o africano. A barbárie vinda de fora ameaçava a civilização que se
pretendia erigir – ainda que essa civilização fosse erguida sobre os ombros dos filhos
dessa “barbárie”.
Maciel da Costa voltaria à questão mais à frente, focando na questão da barbárie.
Estabelecendo distinções entre africanos e outros estrangeiros, afirma: “Os estrangeiros
das outras nações vêm para este país arrastados pela necessidade de fazer fortuna, os
africanos vêm porque seus bárbaros compatriotas os vendem; e o Brasil não é mais
pátria natural de uns que de outros” Ou seja, modifica-se o argumento de Silva Lisboa,
que imputava aos portugueses a produção do infame comércio: agora a culpa recaía
sobre os africanos, o que servia para minimizar o acesso destes à plena cidadania.
Nós não somos hoje culpados dessa introdução do comércio de
homens; recebemos os escravos que pagamos, tiramos deles o
trabalho que dos homens livres também tiramos, e damos-lhes o
sustento e a proteção compatível com o seu estado; está fechado o
contrato. Que eles não são bárbaros, porque segundo relações
históricas, há entre eles já sociedades regulares, como diz o meu
ilustre amigo, apelo para o testemunho e experiência dos que os
recebem aqui dos navios que os transportam.752
751
Idem, ibidem.
Idem, p. 209. Para Marquese e Berbel, o “ilustre amigo” referenciado no discurso de Maciel da Costa é
Silva Lisboa, dado o contraste entre sua fala e a do futuro Visconde de Cairu. Porém, é mais provável que
a fala se refira a uma ausência dos anais, uma vez que não há qualquer menção no discurso de Lisboa, já
analisado, a respeito de “sociedades regulares” na África – pelo contrário: como vimos, Lisboa imputa ao
comércio de almas o travamento da civilização na África –, e, também, uma vez que Maciel da Costa
inicia sua fala afirmando que “não é fácil empresa lutar em discussão com o meu ilustre amigo o Sr.
Andrada Machado”. A fala de Machado, embora ausente do registro, pela resposta de Maciel da Costa,
752
286
Tudo no discurso de Maciel da Costa reforça a ausência de civilização nos
africanos – apelando, inclusive, para o testemunho e experiência pessoais, que servem
para confirmação da narrativa que também se pretende histórica, já que se refere a
sociedades anteriores no interior do continente africano. Além disso, distintamente de
Silva Lisboa, corta as relações do Brasil com o tráfico por considerar o Império apenas
receptáculo, não produtor do infame comércio. Na fala de Lisboa, Portugal, aparecendo
como introdutor do comércio de almas, havia produzido uma tragédia que ficara como
herança para o Brasil – assim como outras heranças da colonização portuguesa. Como
uma herança negativa, precisava ser extirpada, ainda que não repentinamente. Na
interpretação de Maciel da Costa, porém, a imputação aos africanos da responsabilidade
pelo tráfico negreiro rompia a herança da tragédia para o Brasil, minimizando a
escravização e aproximando a questão dos africanos de uma relação de trabalho
corriqueira – e qualquer dureza ou excesso dentro da relação escravista poderia
encaixar-se no argumento de que a proteção e o sustento que os africanos recebiam
estava dentro do “compatível com seu estado”.
E na retórica que presidia a forma de articular olhos na Europa e pés na
América, tratando-se, também, das relações entre ideias e práticas, metafísica e
experiência, completa Maciel da Costa afirmando que
segurança política e não filantropias deve ser a base de nossas
decisões nesta matéria. A filantropia deitou já a perder
florentíssimas colônias francesas. Logo que ali soou a declaração
dos chamados direitos do homem, os espíritos aqueceram, e os
africanos serviram de instrumento aos maiores horrores que pode
conceber a imaginação. Prefiro e preferirei sempre o fanal da
experiência a doces teorias filantrópicas.753
E mais uma vez apela à comparação com os Estados Unidos, que encontrava-se
embaraçada com a questão do destino a se dar aos libertos. Ali, segundo o deputado, a
maior parte dos estados onde há escravos,
temendo os perigos a que o crescimento da população de libertos
exporia a sociedade, resolveram fazer lei contra as alforrias, como
tudo atesta Warren na estatística dos Estados Unidos tomo 5°
parece contradizer a lógica da “tábula rasa” no que se refere aos africanos, afirmando a existência de
sociedades anteriores regulares no continente.
753
Idem, p. 209.
287
páginas 21 e 22. Vejo isto, e não hei de temer por nós e pela nossa
pátria?754
A precisão na citação pode indicar um cuidado de pesquisa para mostra de dados
que pudessem embasar e fortalecer a argumentação. O deputado não brincava em
serviço. Se, no passado, a comparação com outras repúblicas americanas servia para
alertar quanto aos riscos da anarquia e da fragmentação territorial, agora os Estados
Unidos apareciam também como futuro do Brasil, mas especificamente na questão dos
libertos. Se antes o Brasil aparecia, no discurso do Reverbero, já analisado, como um
exemplo aos EUA – uma vez que a monarquia constitucional era entendida como
inevitável superioridade em relação à forma republicana, sendo apenas questão de
tempo até os EUA perceberem, com o próprio crescimento, esse fato tão claro, agora os
EUA é que apareciam de alerta para o bem proceder no Brasil, já que, perdidos quanto
aos destinos a dar aos libertos, começavam a restringir as alforrias para evitar qualquer
aumento das tensões sociais e riscos para a própria existência. O que em breve poderia
acontecer com o próprio Império do Brasil.
“Diminuis gradualmente o tráfico de comprar homens e entretanto tratar com
humanidade os que são escravos, eis aqui, senhores, tudo quanto lhes devemos”,
termina Maciel da Costa. “A admissão deles para a família brasileira deve ser pesada
mais prudentemente.”
Silva Lisboa discursa novamente, respondendo a Maciel da Costa. Após lembrar
o quanto respeita seu interlocutor e referenciar a tripla influência estrangeira presente na
fala de Maciel da Costa, 755continua afirmando que, para seu adversário na discussão,
os africanos deviam ser considerados como estrangeiros, para se
lhes não dar o foro de cidadão, ainda que libertos. Ele os
considera como bárbaros, que foram sujeitos no seu país a guerras
de extermínio e ao hórrido despotismo dos seus governos,
figurando pavorosos futuros, a não viverem sempre no Brasil no
cativeiro, ou, ao menos, sem o grau de cidadão, posto que forros.
(...) [Contudo] o susto não é o meu elemento de vida; o ser justo a
todos os homens e principalmente àqueles que mais têm sofrido
pelas injustiças dos mais fortes, é um dever ainda maior dos que
desejam a melhora do gênero humano. Que comparação podem
754
Idem, p. 209.
Diz que ele fundou-se na “polícia do sábio governo inglês, que é mui restrito em naturalização de
estrangeiros”, e “na experiência da nação francesa, sobre os males que sofreu dos entusiastas de
filantropia das suas colônias”, e, também, “na prática de alguns estados dos americanos do norte, que até
restringem indiretamente o arbítrio dos senhores em darem alforrias, obrigando-os a prover à subsistência
dos seus libertos, para não serem a cargo do público e até formando projetos de remeter para a África
colônias de negros forros, para se livrarem dos perigos que resultariam de sua presença.” Idem, p. 210.
755
288
ter africanos acarretados com tantas forças e más artes de seu país
e impossibilitados de tornarem a ele, com os estrangeiros livres
das mais nações, principalmente da Europa, que vêm ao Brasil
quase todos com ânimo e tendo sempre os meios fáceis de
voltarem para as suas pátrias, que sempre consideram como
superiores em civilização?756
Tratava-se de um dos maiores articuladores dos “olhos na Europa”, como vimos
no capítulo passado, defendendo que, não obstante os “pés na América” exigissem
ações particulares para contenção dos riscos e salvação da ordem, era necessário
também promover meios para o aumento da civilização dos africanos, não os deixando à
mercê do destino de eterna escravidão ou inexistência civil, quando forros. A inserção
subordinada dos africanos à civilização brasílica era um caminho necessário para que a
escravidão pudesse manter-se sem grandes riscos de abalo, ainda que, discursivamente,
Silva Lisboa acenasse com o seu fim num futuro indefinido. O “temor justo”, continua,
que “deve ser o de perpetuarmos a irritação dos africanos e de seus oriundos,
manifestando desprezo e ódio, com sistema fixo de nunca melhorar-se a sua condição”,
devendo-se, ao contrário, com a “proposta liberalidade constitucional”, devendo-se
“inspirar-lhes gratidão e emulação, para serem obedientes e industriosos, tendo futuros
prospectos de adiantamentos próprios e de seus filhos.” 757 Nesse sentido, a Constituinte
abre a possibilidade de um encaminhamento para a questão da escravidão que a fala de
Maciel da Costa embarrera.
Diz que o exemplo inglês trazido por Maciel da Costa não procede, pois as
restrições à naturalização referiam-se mais aos franceses, povo com quem os ingleses
haviam criado muitas rixas. E questiona por que, se o caso era o de admirar o modelo
inglês, não ter por modelo o governo inglês na questão da importação de africanos e
proteção dos escravos contra o abuso dos senhores.758
Silva Lisboa também voltaria a questionar as causas da Revolução Haitiana,
dessa vez voltando-se para o exemplo francês trazido por Maciel da Costa. Sobre isso,
afirmaria:
Permita-se-me tornar a repetir, que os males que sofreram as colônias
francesas procederam dos extremos opostos, tanto dos anarquistas e
arquitetos de ruínas, que pretenderam dar repentina e geral liberdade
aos escravos, como da desumanidade de seus senhores, que não
756
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
758
Como no caso que menciona do “célebre Wilberforce”, que perseverou na “proposta da abolição do
tráfico de sangue humano”. Idem, p. 210.
757
289
quiseram admitir nenhuma modificação do seu terrível Código Negro.
Então o conflito de partidos, tão excessivos e desesperados, produziu os
horríveis males que todos sabem. O mesmo bom rei Luiz XVI, muito
havia antes concorrido indiretamente, ainda que sem intenção, para o
transtorno que sobreveio; porque, ouvindo maus conselhos, especiosos
na aparência, facilitou e animou o tráfico da escravatura dos africanos
não só não impondo direitos à importação, mas até dando gratificações
aos importadores; do que resultou exorbitante acumulação de cafraria e
o incêndio de paixões, vinganças e resistências, que terminaram no
estado que ora vemos a ilha de S. Domingos. 759
Não era a política emancipacionista a causa dos males que rompiam
abruptamente as sociedades escravistas, mas a má política emancipacionista – e,
também, uma não-política emancipacionista. Em sua fala, são igualmente terríveis os
“arquitetos de ruínas” que romperam com a escravidão de modo imediato, sem o
necessário preparo e controle sobre o processo, e os “desumanos senhores” que,
incapazes de admitir qualquer modificação nas relações sociais escravistas, acabaram
alimentando ainda mais o incêndio de paixões, vinganças e resistências. Mesmo o “bom
rei” Luiz XVI, ainda que sem intenção, havia contribuído para a exacerbação dos
ânimos, ao estimular, ao invés de restringir, o tráfico da escravatura. Tal repetição da
História não desejava Silva Lisboa para o Brasil.
Dentro de uma lógica do conservadorismo como elemento do progresso, e não
simplesmente dos entraves, Silva Lisboa critica uma perspectiva que, incapaz de olhar a
África de outro modo se não como espaço a ser repelido por quem desejasse ingressar
na plena civilização, Silva Lisboa buscava contemporizar e trazer o continente africano
para a narrativa da História da Civilização. Pedia, assim, aos colegas:
Deixemos, senhores, de olhar para África com maus olhos.
Lembremo-nos que Moisés foi africano, criado, como se diz nos
atos dos apóstolos, na sabedoria do Egito e foi casado com uma
mulher etiópica. A igreja africana foi famosa nos primeiros
séculos do cristianismo: ela produziu os Ciprianos e Agostinhos.
Todas as nações que ora são mais civilizadas, foram antigamente
bárbaras.760
Os exemplos religiosos conectam-se a um dos elementos de manutenção da
civilização, como já vimos nos capítulos anteriores, aproximando África dos destinos
Europeus. Além disso, como fica exposto no trecho acima, a condição africana estava
longe de ser eterna. Todas as nações atualmente bárbaras podem, no futuro, se tornarem
759
760
Idem, p. 210.
Idem, ibidem.
290
civilizadas, poderia complementar Silva Lisboa, articulando sua lógica à lógica do
Imperialismo que, em pouco tempo, iria conectar a ideologia do progresso à luta pela
extinção da escravidão na África, com a posterior transição para a mão de obra livre sob
tutela europeia – especialmente inglesa. 761 E o exemplo dessa transição, no trecho
seguinte, volta-se para a Europa civilizada:
Os russos, que há pouco mais de um século apenas eram
conhecidos na Europa, e que Bonaparte chamava bárbaros do
Tánais, já foram duas vezes dar a lei em Paris. E bem que ainda
na Rússia haja muitos escravos domésticos e províncias de servos
da gleba, que o seu imperador Alexandre, tendo, ou afetando
filantropia, tem mostrado desejo de emancipar (reconhecendo
todavia não o poder fazer de repente) assusta a Europa pela sua
imensidade territorial e progresso de civilização. 762
A Rússia tinha escravos; a Rússia buscava lidar com seus escravos a partir de
uma lógica de emancipação gradual – e o reconhecimento da impossibilidade de se o
fazer de imediato é fundamental –; a Rússia era conhecida na Europa há menos de um
século e há bem pouco considerada bárbara por Napoleão; a Rússia era civilizada. Essa
conexão, voltada para a África, conjugava elementos até então díspares, como
escravidão, civilização e história, para a promoção de uma nação grandiosa. Desde,
claro, que se adotasse uma política gradual de controle sobre esse processo, com a
emancipação dos cativos bem conduzida pela monarquia constitucional.
Seria um absurdo considerar a África incapaz de civilização. E, para comprovar
seu ponto, Silva Lisboa traz novamente o exemplo dos ingleses:
Tem-se dito, que os africanos são incapazes de civilização e de
regular indústria, como tendo sempre vivido em imemorial
barbaridade e cujas vidas sempre estiveram à mercê de seus
déspotas na África: porém os ingleses têm calculado que neste
país há, pelo menos, cem milhões de habitantes, que de certo não
vivem do maná do céu, mas do fruto da terra; o que supõe, além
de sua fertilidade, não pequena indústria e alguma justiça regular
de seus governos. O tráfico de sangue humano que os europeus
tanto têm promovido, tem sido a causa de se perpetuar a fereza e
tirania, que ali se vê.763
761
Cf. COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In: COOPER, Frederick; HOLT, Thomas
C.; SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades
pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 201-279, p. 211-217
762
AAC, 1823, vol. 5, p. 210-211.
763
Idem, p. 211.
291
Novamente os europeus aparecem como os grandes promotores da ausência de
desenvolvimento da civilização na África. O ponto é importante: considerando-se,
repito, que se tratava de um dos principais nomes articuladores dos “olhos na Europa”,
como vimos, a imputação de culpa aos europeus pelo desastre na África conectava os
rumos da civilização à produção da barbárie, ainda que não fosse a intenção se Silva
Lisboa.
E se valiam testemunhos, na fala de Maciel da Costa, a respeito da incivilidade
dos africanos, igualmente valiam testemunhos contrários. No caso do próprio Lisboa,
que dá um exemplo pessoal, testemunho, da “vista da indústria de um africano forro de
um boticário na Bahia”, que trabalhava com a mulher e alguns filhos menores na
produção da terra e criação de galinhas. Não era a cor ou a origem um problema. Os
próprios franceses, quando invadiram o Egito, tornaram-se “meio negros, quando dele
saíram”. Um escritor ingês, chamado Jarrold, sustentava “que a raça primitiva do
homem foi preta.” O mestre de hebraico de Silva Lisboa, declara, “era de opinião, que a
raça primitiva foi a de cor de barro”. O “doutor Botado”, que “em Lisboa clérigo e
letrado negro”, para Silva Lisboa “valia por cem brancos.” E, por fim, não se deveria
esquecer os ”corpos militares de libertos, em que ao par estavam crioulos e africanos, [e
que] têm muito contribuído para o estabelecimento do Império do Brasil”. Finaliza,
assim, mostrando que “boas instituições, com a reta educação, são as que formam os
homens para terem a dignidade da sua espécie, sejam quaisquer que sejam as suas
cores.” 764 Não havia desculpa possível para evitar-se a aproximação das ideias de
África, civilização e escravidão, desde que num processo controlado de emancipação.
E é assim que Lisboa trata o caso dos Estados Unidos, também trazido à
discussão por Maciel da Costa para fortalecer seu argumento. Maciel da Costa havia
levantado o caso de políticas dos estados escravistas para conter as práticas de
manumissão, considerando-as prejudicial à ordem social. Silva Lisboa, porém,
questiona:
E por que se alega a polícia de alguns estados da América do
Norte, em que existe o sistema do cativeiro e onde aliás não
transborda a sabedoria, antes se nota a crueldade com os escravos,
como na Virgínia, Carolina etc., sendo por isso comparativamente
menos civilizados e ricos a respeito dos outros estados livres; e
não se louvou a sabedoria do Congresso, que já proibiu
764
Todas as referências são idem, p. 211.
292
absolutamente o tráfico da escravatura africana e até já se marcou
a época, em que deve cessar o sistema de cativeiro?765
Em outras palavras, se a fala de Maciel da Costa aproximava os destinos do
Império dos estados escravistas, como a Virgínia, a fala de Silva Lisboa afasta os
destinos e aproxima o Brasil dos estados livres, mais civilizados. Inverte-se, assim, uma
associação que teria continuidade no Império décadas à frente, no momento de maior
organização da “política da escravidão”. 766 A fala de Maciel da Costa estava mais
antenada com os processos que produziam o mundo da Segunda Escravidão, enquanto a
fala de Silva Lisboa oferecia uma alternativa que, não obstante acabasse vitoriosa nos
embates da Constituinte, acabaria derrotada nas décadas seguintes do Império do Brasil.
Assim, embora, ao final da discussão, passasse a emenda de Silva Lisboa, ficando as
demais prejudicadas, a posição de Maciel da Costa “foi a vitoriosa nos bastidores.”767
Após a Constituinte oferecer um esticamento máximo à questão das relações
entre emancipacionismo, história, escravidão e emancipação, o desenho que se seguiria
tomaria outros rumos. Especialmente no momento em que a “salvação da ordem” se
veria novamente ameaçada, segundo alguns, pela política britânica contra o comércio
negreiro.
765
Idem, p. 210
Cabe comparar a fala Silva Lisboa e a de Maciel da Costa à de Varnhagen, que, mais de três décadas
depois, ao tratar da escravidão e dos modos de tratamento dos escravos no Brasil e nos EUA, escreveu
que “neste ponto, como em muitos outros, a nossa monarquia [é] mais tolerante e livre que essa arrogante
república, que tanto blasona de suas instituições libérrimas, e cujo aristocrático cidadão não admite a seu
lado, nas reuniões políticas, nem nas civis e sociais, o pardo mais claro, por maiores que sejam seus
talentos e virtudes”. Cf. VARNHAGEN. Francisco Adolpho. Historia Geral do Brazil..., 1854, p. 183.
Essa perspectiva de defesa do modo como o Brasil lidava com a escravidão complementava a defesa da
instituição como atributo da civilização, como no famoso discurso de Bernardo Pereira de Vasconcelos no
Senado, ao qual retornaremos na conclusão do capítulo, no qual, em resposta a Holanda Cavalcanti, pede
que “veja o nobre senador os grandes homens da América do Norte, os mais eminentes onde têm nascido;
vejo os outros todos que devem sua existência, o seu aperfeiçoamento aos países que têm procurado em
parte africanizar-se”. Cf. AS, 1843, vol. IV, p. 346. Sobre a questão, cf, ainda, PARRON, Tâmis Peixoto.
A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP,
2009, em especial capítulos II e III; ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção
saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 2010; MATTOS,
Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC,
2004, p. 139
767
MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça... op. cit., p. 81. Segundo os
autores, após a dissolução da Constituinte, Maciel da Costa fez parte da comissão que elaborou o texto
final de 1824, que integrava os libertos crioulos, mas não os africanos, no mundo da cidadania, ao mesmo
tempo em que se riscou o artigo 254 do projeto de 1823, que tratava da questão da emancipação. Para
além disso, ideologicamente falando, as proposições de Maciel da Costa teriam vida muito mais longa no
Império do que as de Silva Lisboa.
766
293
6.3) A peculiaridade da civilização brasileira
Entre 1826 e 1830, a temática da escravidão e do tráfico negreiro apareceu
pontualmente em algumas discussões na Câmara e no Senado. Nenhuma, porém, é mais
simbólica e poderosa em seus argumentos e efeitos do que a que acometeu a Câmara a
partir da sessão de 16 de junho de 1827.
Nessa sessão, fez-se a leitura de parecer da comissão de diplomacia e
eclesiástica sobre a Convenção para o fim do comércio de escravos, acordada entre os
governos brasileiro e britânico. A Convenção estava inserida na lógica de pressões
britânicas pela abolição do tráfico que acompanharam a trajetória de formação do Brasil
desde os tempos joaninos, culminando nos acordos que envolveram o processo de
reconhecimento da Independência por Portugal, em 1825, intermediado pela Inglaterra.
Após o reconhecimento, que atrelava tal ao compromisso brasileiro pelo fim do tráfico,
foi assinado o tratado anglo-brasileiro de novembro de 1826, que previa o fim do tráfico
para 3 anos após sua ratificação, que se deu em 13 de março de 1827 pela Coroa
Britânica.768 A partir daí, o parecer da câmara faz uma leitura da mesma, afirmando que,
embora a convenção fosse privar braços para a agricultura, as luzes do século não
permitiam a conservação de “semelhante comércio”, ao mesmo tempo em que “da nossa
parte havia a promessa de o abolir quando formávamos uma só nação com Portugal”.
Assim, o parecer da comissão dá uma resposta protocolar, apenas fazendo a ressalva de
considerar a pena de pirataria prevista dura demais, por não ser de acordo com as leis do
Império.769
Foi o deputado Cunha Mattos quem faz a famosa declaração de voto em
separado, que tanta discussão produziu na historiografia sobre o período. 770 Nossa
intenção, aqui, é focar nesse debate exemplar como forma de analisar as relações que
vimos discutindo entre história, civilização e escravidão, especialmente considerando a
relevância de Cunha Mattos nos três eixos, já que, além de deputado e autor do parecer
768
Para a trajetória das pressões inglesas sobre o Brasil desde os tempos joaninos e as circunstâncias de
assinatura do tratado anglo britânico, cf. BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis.
Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, cap. 2 e 3;
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p. 43-80; RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: propostas e experiências no final
do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, p. 97-107;
BETHEL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do
comércio de escravos (1807-1869). Brasília: Senado Federal, 2002, cap. I, II e III; COSTA, Emília Viotti
da. Da Senzala à Colônia. 4ª edição. São Paulo: Editora da Unesp, 1998, p. 74-76.
769
ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80.
770
Cf. nota acima. O trabalho de PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op.
cit., em especial, será foco de nosso diálogo a partir daqui.
294
contra a convenção sobre o fim do tráfico, foi, ainda, autor de obras de História e cofundador do IHGB, junto a Januário da Cunha Barbosa.
Talvez o mais conhecido texto de Cunha Mattos seja a “Dissertação acerca do
sistema de escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil”771, publicado na
revista do IHGB em 1863, mas produzido ainda em 1838, no seio das discussões acerca
da melhor maneira de se interpretar a História do Brasil. Segundo Valdei Araújo, um
dos principais objetivos de sua produção histórica era “provar a antiguidade do Novo
Mundo”, resultando disso uma interpretação do tempo lentíssima, voltada para
transformações vagarosas que atravessariam os séculos e para mudanças que não
poderiam ser feitas no curto ou médio prazo, como a questão da civilização de indígenas
e negros. 772 Embora estes não sejam objeto da Dissertação, a forma como trata os
indígenas os considera parte da história brasileira, uma vez que estão dentro das “três
épocas da nossa história”, segundo o autor:
na 1ª trate-se dos aborígenes ou autóctones: em a 2ª
compreendam-se as eras do descobrimento pelos portugueses, e
da administração colonial; e na 3ª abranjam-se todos os
acontecimentos nacionais desde o dia em que o povo brasileiro se
constituiu soberano e independente, e abraçou um sistema de
governo imperial, hereditário, constitucional e representativo. 773
As três épocas, no texto de 1838-39, promovem uma concepção distinta daquela
que predominava nas narrativas que vimos discutindo. Em primeiro lugar, considera-se
como uma “época da nossa história” aquela dos “aborígenes ou autóctones” – isto é, os
indígenas. Já aí se encontra uma discussão a respeito do papel indígena que não é nosso
foco nesta tese, mas que se aproximará da leitura romântica e daquela própria a alguns
membros do IHGB sobre se estes constituiriam ou não os antecessores dos
brasileiros.774 Em segundo lugar, a síntese da colonização portuguesa sobre a América,
771
Cf. a versão reproduzida em GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia
brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010, p. 116-154. Sobre a Dissertação, em particular, e sobre a
trajetória de Cunha Mattos, em geral, cf., ainda, QUEIROZ, Bianca Martins de. Raimundo José da Cunha
Mattos (1776-1839): “a pena e a espada a serviço da pátria”. Dissertação de mestrado. Juiz de Fora, MG:
UFJF, 2009, em especial p. 99-105.
772
ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional
brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 163-164.
773
Dissertação..., p. 126.
774
Importante destacar que visões que colocavam os indígenas como os antecessores naturais do Brasil,
ou “verdadeiros donos” da terra estiveram presentes em algumas discussões políticas da Câmara e do
Senado. Num debate sobre a questão do monopólio de pau-brasil, por exemplo, em 1827, o deputado
Lino Coutinho, respondendo a uma declaração de Vergueiro de que o comércio de pau-brasil fora
instituído desde sempre pelos portugueses, o que até se podia ver no nome do país – Brasil – sendo,
portanto, propriedade da nação, afirma que “todos sabem ou devem saber que este país existiu muito
295
antes, como vimos, sintetizada na fórmula dos “três séculos de opressão”, que
encontravam em 1808 seu rompimento inicial, agora se estendiam até a terceira época,
que abrangia os acontecimentos nacionais desde que o povo brasileiro “abraçou o
sistema de governo imperial, hereditário, constitucional e representativo.” Embora as
datas pudessem variar, todas giram em torno do período entre 1822 e 1823, jogando os
anos joaninos para a administração portuguesa colonial.
Cunha Mattos defende a impossibilidade, àquela altura das discussões, de se
escrever uma “história geral do império do Brasil que seja digna dele”, em parte devido
à necessidade de, antes, levar-se ao “cadinho da censura mais severa o imenso fardel de
escritos inexatos, insultos, indigestos, absurdos e fabulosos anteriores ao ano de 1822”,
em que apenas se imprimia em Portugal. “Como será possível escrever a história
filosófica do Brasil tomando por farol os livros estrangeiros impressos antes da
declaração de independência do Império?”, questiona.775 Exceção feita a Southey, esses
escritos são considerados “invectivas, insultos, calúnias, impropérios, falsidades em
desabono do povo do Brasil!”776 Mas mesmo o inglês não escapa plenamente, já que o
tempo todo nos qualifica de “idólatras, fanáticos, supersticiosos e de perpetradores de
toda espécie de maldade, por acreditarmos que a confissão e absolvição purifica-nos
perante Deus e os homens!” E complementa: “Quantas reflexões poderemos nós fazer a
respeito da crença e da moral desses estrangeiros que não tem a confissão nem
absolvição supersticiosa dos brasileiros, e apesar disso cometem crimes de natureza tão
atroz como os que se praticam em todos os lugares do universo!” 777 De cara, uma
abordagem que vê a concepção estrangeira sobre o Brasil com imensa desconfiança,
oferecendo no lugar a necessidade de se produzir internamente um contraponto que seja
realmente digno do Brasil, inclusive pela revisão crítica de todos os escritos produzidos
sobre o Brasil, desde a Carta de Caminha. Uma desconfiança das intenções morais
estrangeiras. Uma defesa, em primeiro lugar, da dignidade da nação brasileira. Temas
tempo conhecido debaixo do nome da terra da Santa Cruz, e seu primitivo nome foi este, e não Brasil;
logo houve um tempo em que este pau Brasil não tinha apreço, e por isso os portugueses que se
apossaram do terreno, que fizeram guerra aos donos verdadeiros deste país, isto é aos índios, tiveram
todos terras concedidas sem a cláusula de que o pau-brasil era propriedade da nação e só ele se tornou
assim muito ao depois por um ato de arbitrariedade.” Cf. ACD, 1827, sessão em 9 de julho, p. 90-91. Da
mesma maneira, no ano anterior, em algumas discussões deputados fizeram uma leitura crítica da
colonização europeia, em sua relação com os indígenas. Cf. discursos de Seixas, em ACD, 1826, sessão
em 27 de maio, p. 153; de Bráulio e de Teixeira de Gouvea em ACD, 1826, sessão em 15 de julho, p. 189
e 191; de Baptista Pereira, em ACD, 1826, sessão em 18 de julho, p. 226-227.
775
Dissertação..., p. 120.
776
Idem, p. 121.
777
Idem, p. 122.
296
que influenciam sua produção histórica no final dos anos 30; temas que aparecem em
seu posicionamento sobre a questão do tráfico e da Convenção em 1827. 778
Voltando à sessão de 16 de junho de 1827, na leitura de sua declaração de voto
em separado, Cunha Mattos deixa clara sua posição, cujos argumentos podemos dividir
em 3 grupos. 779 O primeiro diz respeito à integridade da organização política do
Império. O segundo se refere à integridade da economia. O terceiro se liga à sua
integridade social.
No primeiro grupo, a preocupação de Cunha Mattos dizia respeito aos limites de
ação do executivo e ao papel do legislativo na condução política do país. Ao explicar
que a convenção atacava “a lei fundamental do Império”, se referia à atribuição, pelo
governo, a si próprio, do direito de legislar, “direito que só pode ser exercido pela
assembléia geral com a sanção do imperador” 780 . Continuariam intensas as disputas
entre legislativo e executivo, vindo a questão do tráfico unir-se a outras também
delicadas, como a Guerra da Cisplatina e a questão sucessória em Portugal, no rol de
eventos que contribuíram para o desgaste da imagem do primeiro Imperador e que o
levaram à abdicação. Além disso, considerava Cunha Mattos a convenção
“extemporânea”, por ser ratificada num momento em que a Câmara dos Deputados
preparava-se para encaminhar um projeto “para diminuir gradualmente a importação de
escravos para o Brasil.” Novamente notamos a crítica ao “atropelo” que fazia o
executivo da ação do legislativo, principalmente por ser o tráfico objeto de tão especial
atenção. Novamente, considerando-se o tráfico de escravos um vetor fundamental para a
manutenção social do Império, percebe-se que, no discurso, seu destino deveria ser
julgado e conduzido pela verdadeira referência nacional: a Câmara.
No segundo grupo, ligado à integridade econômica, nenhuma surpresa havia
quanto à argumentação. Sem o tráfico, segundo Cunha Mattos, estaria em maus lençóis
Não se pretende, obviamente, incorrer aqui na “ilusão biográfica”, segundo crítica de Bourdieu a
estudos que pretendem considerar todos os elementos da vida de alguém como etapas que levarão,
necessariamente, a um ponto de chegada já definido. Pretende-se, aqui, tão somente verificar como as
reflexões mais elaboradas de Cunha Mattos sobre o conceito de história e a História do Brasil em 1838-39
se podem coadunar com a narrativa que ele produz no momento de crítica à Convenção sobre o tráfico
negreiro, em 1827. Cf. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. &
AMADO, Janaína (orgs.) Usos e abusos da história oral. 8ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006,
p.183-191. Tal conexão entre o Cunha Mattos de 1838-39 e o de 1827, contudo, demandaria um trabalho
específico – que, embora com uma abordagem distinta, foi exercitado em QUEIROZ, Bianca Martins de.
Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839)... op. cit.
779
Retomo, nas próximas três páginas, o panorama que discuti em ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos.
Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado.
Niterói, RJ: UFF, 2010, p. 88-92.
780
ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80.
778
297
o comércio nacional, já bastante reduzido “em razão da abertura dos portos do império a
todas as nações do universo, e em conseqüência do tratado de 1810 feito com a
Inglaterra”781. A Inglaterra aparece duplamente como culpada pelo estado das finanças:
pressionando o livre cambismo e aniquilando o mais importante comércio nacional.
Sem o tráfico, estaria em ruínas a navegação, pois a mais “substancial e considerável”
parte desta era a que “direta ou indiretamente se aplica ao resgate ou comércio de
escravos”; além disso, sem o tráfico seria prejudicado “o grande consumo [que têm na
África] as nossas aguardentes, e tabacos (únicos gêneros em que [os ingleses] não
podem competir conosco.”782 Sem o tráfico, diminuiriam as rendas do Estado, visto que
sem os “20$000 réis de direitos de entrada de cada escravo”, e outras quantias, iria
extinguir-se “esse grande manancial de sustentação dos empregados públicos”, e
ficariam “muito desfalcados os meios de fazer frente às indispensáveis despesas, e
infalível desempenho dos cofres públicos”783. Sem o tráfico, a tarefa de construção de
um “aparato burocrático” para administração pública seria esmagada. Por fim, sem o
tráfico ficaria em ruínas a agricultura, que sofreria por serem necessários amplos
contingentes de trabalhadores que a sustentassem – trabalhadores estes que só poderiam
ser “os pretos e pardos”, visto que “uma constante experiência” indica serem eles os
únicos capazes de “viver impunemente” em certos “imensos lugares”
784
. Tal
“experiência”, portanto, tornava o país dependente do comércio negreiro, visto que “a
mortalidade dos escravos [era] igual, ou mais numerosa, do que o nascimento dos
mesmos”785.
Esse último ponto faz um paralelo com o terceiro grupo, ligado à integridade
social do Império. Nota-se já aqui uma noção de continuidade na argumentação de
Cunha Mattos: os escravos africanos (“pretos”) deixariam como descendentes os únicos
trabalhadores que, além dos próprios africanos, poderiam cultivar essas terras (os
“pardos”) e sustentar a agricultura do Império do Brasil. 786 Nesse sentido, Cunha
Mattos expõe sua visão sobre a relação tráfico-escravidão-sociedade imperial. Diz ele:
781
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
783
Idem, ibidem.
784
Idem, ibidem.
785
Idem, ibidem.
786
Cabendo ressaltar, seguindo Hebe Mattos, o quanto a categoria “pardo” produziria lingüística e
socialmente uma continuidade da escravidão. Cf. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Escravidão e
cidadania no Brasil monárquico. Jorge Zahar Editor [coleção Descobrindo o Brasil]. p. 17.
782
298
É prematura [a convenção] por não termos por ora no império do Brasil
uma massa de população tão forte que nos induza a rejeitar um imenso
recrutamento de gente preta, que pelo decurso do tempo e pela mistura
de outras castas, chegará ao estado de nos dar cidadãos ativos e
intrépidos defensores da nossa pátria. 787
Ora, temos aqui uma argumentação que difere substancialmente não apenas da
perspectiva clássica de Bonifácio a respeito, mas também se afasta da concepção
vitoriosa nos embates parlamentares de 1823, presente em Silva Lisboa. Se, para estes, a
escravidão e o tráfico constituíam elementos desagregadores, símbolos de atraso e
ignorância dos quais deveria o Brasil em formação se livrar, Cunha Mattos, por outro
lado, associa diretamente o tráfico – e, por extensão, a escravidão – à vinda do negro
que, no decurso dos anos, gerará “cidadãos ativos e intrépidos defensores da pátria.”
Cunha Mattos defendia ser “prematuro” rejeitar o contingente de “gente preta” gerado
pelo tráfico: não se trata de atrair o negro como colono, mas como escravo: o risco do
fim desse “recrutamento” existe porque ele é forçado. Tire-lhe o caráter compulsório e
ele não existirá. Além disso, temos que a “mistura de outras castas” é, junto ao “decurso
do tempo”, o eixo que transforma escravos em “cidadãos ativos e intrépidos defensores
da nossa pátria.” Nota-se o eco das argumentações em disputa na Constituinte de 1823,
mas com outro significado: se lá a busca, em Silva Lisboa, pelo ingresso do escravizado
liberto na cidadania era uma forma de mitigar a dureza da escravidão, minimizando os
riscos de rebelião escrava que pudessem remeter ao Haiti – sendo, portanto, uma
concepção defensiva, voltada para o esticamento ao máximo das relações escravistas,
porém com certa moderação conservadora que pudesse esvaziar focos de revolução –,
em Cunha Mattos o argumento tem um caráter mais profundo, mais propositivo e mais
positivo: o estímulo à entrada dos africanos escravizados encorpava a população
brasileira, fortalecia suas bases, sua força de trabalho, desenvolvia a nação. Em Silva
Lisboa, era um caminho, ao menos retoricamente, para ir, aos poucos, recuando no
escravismo e minimizando a necessidade da escravização; em Cunha Mattos, tratava-se
de um elemento componente da formação brasileira, que acabaria servindo de base para
os argumentos pró-escravistas a partir dos anos 1830. 788 Em outras palavras, Cunha
Mattos, dando um aspecto positivo à escravidão e ao tráfico, não circunscreve sua
defesa apenas como fundamental à manutenção da estrutura de produção herdada da
época colonial, mas vai além e confere à escravidão papel verdadeiramente formador da
787
ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80.
Cf. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, cap. 2 e 3.
788
299
sociedade brasileira. Nos marcos de formação da Segunda Escravidão, seu
posicionamento constituiria uma espécie de transição entre a abertura a propostas
emancipadoras – ainda que graduais – em 1823 e a defesa aberta e profunda do tráfico e
da escravidão a partir dos anos 1830.
Cunha Mattos apelaria, ainda, a exemplos estrangeiros na construção dos seus
argumentos. Afirma que os exemplos de quem declarou pirataria o comércio de
escravos não podem servir ao Império do Brasil, pois “cada um governa sua casa como
lhe parece.” As colônias inglesas da América, por exemplo, “regurgitam de população, e
a Grã Bretanha não duvida (...) sacrificar os seus estabelecimentos ocidentais, às suas
vastíssimas aquisições do Oriente.” 789 Por outro lado, os Estados Unidos, “que tem
desfrutado um crescimento de população superior a tudo, quanto há na história antiga e
moderna, acha-se em circunstâncias mui diversas do Brasil.” Afirma que se a imigração
para este guardasse proporções com a que vai para aquele, “se o Brasil já tivesse
chegado ao grau de indústria e civilização em que se achavam os americanos quando
publicaram o seu ato de pirataria”, aí, sim, “também nós deveríamos imitá-los.”790
A situação pedia mais do que a retórica que invertia as perspectivas, presente
desde o Reverbero, e que afirmava com convicção ter o Brasil muito a ensinar aos
Estados Unidos, já que a monarquia constitucional constituiria melhor forma possível
de governo para o acúmulo de progresso e desenvolvimento. A realidade das tensões
produzidas pelo risco de diminuição da escravidão obrigava a olhar o exemplo norte
americano da mesma maneira como se olhava a Inglaterra: como etapa superior em
civilização que permitia certas políticas ainda vedadas a países na situação do Brasil.
O parecer, bem como o voto em separado de Cunha Mattos, entram em
discussão na sessão de 2 de julho. Cunha Mattos começa discursando novamente, para
sustentar seu voto. Diz que, em primeiro lugar, de modo algum iria se propor a defender
a justiça e eterna conveniência do comércio de escravos para o Brasil:
eu não cairia no indesculpável absurdo de sustentar no dia de hoje e no
meio dos sábios da primeira ordem da nação brasileira, uma doutrina
que repugna às luzes do século, e que se acha em contradição com os
princípios de filantropia geralmente abraçados: o que me proponho é
mostrar que ainda não chegou o momento de abandonarmos a
importação dos escravos, pois que não obstante ser um mal, é um mal
menor do que não os recebermos (...).791
789
ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80.
Idem, p. 80-81.
791
ACD, 1827, sessão em 02 de julho, p. 12.
790
300
Dessa forma, novamente, a disputa entre “experiência” e “metafísica” – ou, para
ficar nos termos do debate em 1823, a “salvação da ordem” e a “filantropia” – aparecia
como essência da discussão política. Era preciso, portanto, voltar às questões práticas e
concretas da discussão.
Seu argumento prático passa pela defesa de que as obrigações contraídas por D.
João VI não valem. Afinal, “a nação de escrava que era, passou a tomar o lugar que lhe
competia, passou a ser livre”. Os brasileiros, junto ao príncipe regente, “trouxeram
consigo uma revolução” em resposta aos desmandos de Lisboa, “e o mesmo Brasil
rompeu todos os laços que o uniam a Portugal.” Com isso, todos os pactos e ajustes a
respeito da antiga monarquia celebrados com nações estrangeiras cessavam, numa
argumentação que contrariava as discussões anteriores, em 1823, a respeito da aceitação
ou não de leis anteriores à Independência do Brasil. Para Cunha Mattos, nessa passagem
da “escravidão à liberdade”, os brasileiros teriam imitado
os godos [que] em circunstâncias iguais puseram na execução a
respeito do príncipe Pelagio – os portugueses a respeito do Sr.
Mestre de Aviz, e do duque de Bragança – os suecos a respeito de
Gustavo Wasa e Carlos XIV – os ingleses a respeito de Carlos II e
do rei Guilherme – e os franceses a respeito de Luiz XVIII. Todos
esses príncipes tinham direito aos respectivos tronos em que
foram colocados; e tanto os europeus como os brasileiros
mostraram o reconhecimento que deviam àqueles que souberam
promover a sua independência e propugnar pela sua glória.792
Os exemplos estrangeiros de mudanças que iniciavam novos períodos históricos
jogavam o Brasil no rol de países que haviam passado por transformações
significativas; disso já tratamos anteriormente. A questão central agora era a respeito de
uma convenção que remetia a um tratado que se referia ao futuro não mais de Portugal,
mas da nova nação. E, aqui, um novo exemplo histórico poderia ser vislumbrado:
considerando-se que a convenção fora arrancada, pela Inglaterra, do Brasil à força,
então ela estaria, pelas regras do direito, nula. E haveria o exemplo do próprio Dom
João VI, que “pelo manifesto de 1 de maio de 1808, declarou nulos todos os tratados a
que fora obrigado a subscrever pelo imperador Napoleão Bonaparte.” O passado recente
do Brasil entendido na figura do príncipe regente português, era contrastado com o
presente: Napoleão, cuja figura, como já vimos, sintetizava a de um déspota, era
comparado à Inglaterra, país de cuja liberalidade ninguém duvidava – nem Cunha
792
Idem, p. 13.
301
Mattos – para remeter-se ao autoritarismo com o qual o governo inglês impunha seu
projeto abolicionista.
Mas, para Cunha Mattos, a convenção também era nula porque dela resultava
grave lesão aos povos do Brasil, tanto na sua agricultura e comércio quanto pela
diminuição das rendas nacionais. Assim, outro exemplo histórico viria ao socorro
daqueles que a ela quisessem apelar:
Se o Brasil reclamar contra este tratado, tem o exemplo na súplica
que no ano de 1506 os estados gerais da França reunidos em
Tours levaram ao trono de Luiz XII para anular o tratado de lesão
enorme feito com o imperador Maximiliano e o arquiduque Felipe
seu filho e sucessor na monarquia espanhola!793
Não se entrava em detalhes desse exemplo histórico: bastava um paralelo com
uma situação estrangeira considerada igualmente de opressão para que se fortalecesse o
argumento. O argumento calcado nos estados gerais – forma de representatividade do
Antigo Regime francês – tirava historicidade do caso: o ponto central aqui era a ideia de
povo lesado que apela ao monarca para que se restituam seus direitos econômicos.
Afinal, “filantropias, economias políticas, teorias inglesas e francesas, e outra imensa
série de coisas boas para ler e muito más em prática, deram com os nossos comerciantes
em vasa-barris!!”794
Daí passa Cunha Mattos a um argumento externo, e um dos mais importantes na
discussão. Considerando-se que o argumento, digamos, filantrópico central contrário ao
tráfico de escravos era a o horror da prática, o deputado afirma:
Tenho lido em muitos escritores modernos e em alguns antigos,
que o comércio dos escravos é odioso, e como tal deve ser
abandonado. Eu convenho em que seja odioso; e para o ser basta
abusar-se da liberdade dos homens! Entretanto, Sr. Presidente, a
experiência de muitos anos que residi na costa d´África, sem ser
negociante de escravos, fez-me persuadir que o tal comércio é
menos odioso do que comumente se supõe! São por ventura
criminosos os negociantes que traficam em escravos, e as
equipagens dos navios que os transportam para a América? Os
filantropistas modernos, os sectários da associação africana, ou os
discípulos da sociedade dos amigos dos negros, a cuja testa se
acham membros mui conspícuos da revolução francesa dizem que
são criminosos, cúmplices e co-reus daquelas barbaridades; mas o
homem que tem estudado os costumes antigos e modernos dos
793
794
Idem, ibidem.
Idem, p. 14.
302
africanos, não infama tão levemente aqueles que negociam em
escravos nos portos da Costa d´África! É entre os pretos e com os
olhos filosóficos que se estudam as regras da moral aplicada aos
africanos, é necessário conhecer as suas instituições, os seus usos,
os seus costumes, e o seu modo de pensar.795
Além de minimizar a brutalidade do comércio negreiro pela equiparação de seus
horrores específicos a uma fórmula geral da história da liberdade – afinal, odioso não
era o tráfico em si, mas qualquer experiência que abusasse da “liberdade dos homens” –,
Cunha Mattos ainda desqualificava os críticos do tráfico, os “filantropistas modernos”,
remetendo às relações conspícuas de alguns com a Revolução Francesa – fortemente
presente no imaginário dos agentes políticos daqueles anos, como vimos, como exemplo
maior de caos, anarquia e horrores produzidos por “ideias metafísicas”, sem base na
experiência ou na concretude, tal como Cunha Mattos indicava serem as críticas ao
tráfico negreiro.
Não apenas isso. A partir de uma perspectiva, digamos, antropológica de
abordagem do fenômeno do tráfico negreiro e da escravidão, Cunha Mattos inverte
completamente o argumento que Silva Lisboa usara para sua defesa do processo
emancipatório (que pedia para que se olhasse a África com outros olhos, e não
considerando-a bárbara em si) e afirma que a
África meridional (...) é no dia de hoje, e há de continuar a ser
por milhares de séculos o mesmo que tem sido desde o tempo dos
fenícios, cartaginenses e romanos. Tão bárbaros são no dia de
hoje como eram no tempo em que se escreveu o Périplo de
Hanon! Guerra, caça, pesca, danças, cânticos e pouca agricultura;
eis a vida do selvagem ao sul do deserto.
E poderia ainda piorar, já que o “maometismo”, em expansão “nessas ardentes
regiões”, parece que “ainda mais aumenta a ferocidade dos seus habitadores!”. 796 As
guerras na África, continua, “fazem-se por ofício, por inclinação ou necessidade”, e
“antes de haver comércio de escravos havia guerras contínuas”. Depois do
estabelecimento do tráfico as guerras continuaram, e quando o comércio negreiro
acabasse as guerras ainda iriam continuar. Mesmo nos países “mais civilizados da
África”, como a “Abissinia”, havia guerras contínuas e os mais terríveis estragos,
795
796
Idem, ibidem.
Idem, p. 14.
303
cometidos por “diferentes chefes” que aspiravam independência. Nos países menos
cultos que a Abissinia, diversas leis e punições reduziam criminosos ao cativeiro. 797
Nota-se como a argumentação em defesa da continuidade do tráfico, em Cunha
Mattos, projeta não apenas a barbárie sobre a África, contrariando a argumentação
vencedora de Silva Lisboa na constituinte, mas, também, fortalece uma concepção de
estado estacionário quase eterno para a história da África 798 . Se em Silva Lisboa a
civilização era apenas uma questão de tempo para o continente africano, já que todas as
atuais civilizações também haviam sido bárbaras no passado, em Cunha Mattos a
barbárie é eternizada como condição própria do continente africano, que sempre vivera
na selvageria e continuaria por muitos séculos a assim continuar. A concepção lenta do
tempo em Cunha Mattos, aplicável em seus escritos históricos ao passado do Brasil,
como vimos acima, projetava-se desde antes sobre a África. Nessa perspectiva, a brecha
argumentativa pró-tráfico era previsível:
Se não houvesse quem comprasse os pretos sentenciados à
escravidão, eram mortos infalivelmente logo que fossem colhidos
(...). E não será melhor que os infelizes tomados em guerra sejam
conduzidos para fora da África do que serem assassinados por um
braço sempre armado?799
Recusa, assim, a pretensa “filantropia inglesa”; a desconfiança do estrangeiro, no
caso, do inglês, que desejaria apenas maldizer o Brasil: “os ingleses querem fazer-se
senhores da África, como já estão da Ásia, Deus os ajude.” Eles que não viessem nos
“iludir com filantropias imaginárias.” 800 No Brasil, por outro lado, “os pretos e os
pardos em todos os tempos prestaram relevantes serviços”, como, novamente, no
exemplo de Henrique Dias. 801 “Venham para cá pretos, logo teremos pardos, e
Idem, ibidem.. E complementa mais à frente:“Como estranhamos pois que os africanos sigam no dia de
hoje o mesmo sistema que seguiam os seus avós antes da descoberta da costa da África pelos
portugueses?” Idem, p. 15.
798
Nas palavras de Tâmis Parrón, Cunha Mattos “simplesmente retirou o continente negro da história,
privando-o de mudanças no passado e no futuro.” Cf. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no
Império do Brasil... op. cit., p. 69.
799
ACD, 1827, sessão em 02 de julho, p. 14. E argumentaria, mais à frente: “É melhor que os pretos
escravos sejam sacrificados na África, do que serem conduzidos para o Brasil, onde podem vir a ser muito
menos desgraçados?” Idem, p. 15.
800
Idem, p. 15. Noutro momento, criticando certa “seletividade” dos ingleses, que, segundo ele, atacam o
comércio cativo na África, mas não usam “de tanta filantropia” com os católicos da Irlanda, com o
combate a piratas do Mediterrâneo, com a Índia, coma escravidão dos gregos etc., Cunha Mattos
questiona se “muitos desses que se chamam filantropos, [não] são mais políticos do que amigos da
humanidade, ou da proteção dos pretos africanos”. E completa: “Ah! Tanta caridade a favor dos pretos, e
tanta indiferença a respeito dos brancos!”. Idem, p. 17.
801
“Os holandeses sabem quanto sofreram dos pretos de Henrique Dias.” Idem, p. 15. O exemplo de
ascensão de pretos e pardos no Brasil também serviria para atacar a Inglaterra. “os ingleses não podem ser
797
304
finalmente brancos, todos descendentes do mesmo Adão, de um mesmo pai!” Os
africanos, destinados à morte ou ao barbarismo inevitável na África, na interminável
sequência de guerras e selvageria, tinham não apenas uma chance de melhorar no
Brasil, graças ao tráfico e à escravidão, como, ainda, ofereciam uma chance de melhor à
população brasileira.802
A recusa à Inglaterra traz de volta, no discurso, José Bonifácio, mencionado por
Cunha Mattos. Não o Bonifácio do projeto de emancipação – isso, claro, apenas
contaria contra o deputado. O Bonifácio que é trazido é o dos embates parlamentares
que defendia que
é com as nações americanas, que nós devemos ter íntimas
relações diplomáticas, tanto por serem nossas vizinhas, como para
fazer barreira contra as desordenadas pretensões da velha Europa.
Na América figuramos como potência da 1ª ordem, ao mesmo
passo, que no antigo mundo nos classificam a par do rei de
Sardenha. Todas as convenções e tratados, que celebramos com
os potentados da Europa serão tratados de lobos, ou leões com
cordeiros! Onde há suma desigualdade não existe, nem pode
existir perfeita reciprocidade; o maior há de suplantar o menor; e
o mais fraco é quem há de pagar as custas do tratado.803
A “Velha Europa” aparecia novamente com sentido negativo, em contraste com
os potenciais do Novo Mundo. Aproximar-se das nações americanas para fazer barreira
a essas pretensões não deixava de forjar uma solidariedade escravista entre, por
exemplo, Brasil e Estados Unidos, ambos entrelaçados no mesmo destino que acabaria
futuramente com a escravidão. E, se era verdade que “todas as nações civilizadas do
Universo têm abjurado o bárbaro tráfico de escravos”, era também verdadeiro que
“nenhuma delas foi a isso obrigada”. A aproximação com a América permitiria o
mestres de filantropia dos brasileiros; a sua filantropia data de ontem, e a nossa é muito velha, tem mais
de três séculos”, afirma. Afinal, “não temos mós tido bispos, cônegos, vigarios, teólogos, canonistas,
historiadores, e artistas sublimes pretos e pardos? Não mandou o Sr. rei D. João II, no século XV,
estabelecer um colégio para pretos no mosteiro de Santo Eloy de Lisboa? Não mandou o rei Filipe IV da
Espanha criar um colégio para pretos na Universidade de Coimbra (...)? Não mandou o Sr. rei D. João II e
D. Manoel embaixadores, e não recebeu outros dessas regiões (que os ingleses agora reputam encantadas)
no interior da África, com vistas de aumento de comércio e civilização dos naturais? Não foram as cortes
do Congo, e a do Monomotapa mui brilhantes e civilizadas?” A filantropia da tradição brasílica, voltando
ao começo da colonização, tencionava mostrar que o verdadeiro esforço civilizatório no continente
africano havia sido feito por Portugal com sua prática colonial e catequizadora, e não pela filantropia
inglesa metafísica. “Como pois nos vêm agora os ingleses dar lições de filantropia”, questiona. “a quem
apresentam eles como provas dos seus desvelos?” Idem, p. 17.
802
Idem, p. 15. E complementaria, mais à frente: “o que seria hoje o Brasil no caso de se seguirem as
antigas leis de ciúme e desconfiança de Portugal, e de não entrarem pretos para este continente? Não
estaria ainda hoje povoado de indígenas, vivendo no meio de barbaridade?” Idem, p. 17.
803
Idem, p. 16.
305
fortalecimento de uma iniciativa própria para condução dos próprios destinos das
sociedades escravistas.
Por fim, Cunha Mattos lança, ainda, um último, mas também importante,
argumento. Afirma ter ouvido dizer “que a escravatura traz consigo a imoralidade.”
Afirma conceder em parte, “mas não no todo; a imoralidade não procede de haver
escravatura, mas sim da natureza dos governos.” Nessa lógica, “se os soberanos são
imorais, os povos quer tenham ou não tenham escravos, também são imorais; e se os
soberanos são exemplares de virtude, os povos também são virtuosos.” 804
Para fortalecer sua argumentação, Cunha Mattos apela a exemplos da
antiguidade. Fala dos “gregos no tempo dos Sólons, dos Licurgos, dos Aristides, dos
Temístocles, dos Epaminondas, e dos Sócrates”, que “tinham imensos escravos, e eram
exemplos e espelhos da moralidade”. Da mesma forma, os romanos “no tempo de
Romulo, Numa, Servio, Anco Márcio, Bruto e Populicola” também “tinham muitos
escravos, e eram bem morigerados”.Os mesmos gregos e romanos, contudo, nos tempos
dos “Filipes, dos Demóstenes, dos Marios, dos Neros, dos Calígulas, dos Heliogabalos”,
foram o máximo das abominações. Espanhóis e portugueses, idem: “sempre tiveram
escravos, e nunca ninguém deixou de confessar que a modéstia, a fidelidade, a
intrepidez e a bizarria foram qualidades que adornavam constantemente aqueles povos!”
Por fim, “dizer que no Brasil não há moral, é um ataque à justiça e um insulto à
razão!”805
Tâmis Parron aponta como, nessa direção interpretativa, a defesa da monarquia
constitucional chancelava o futuro da instituição escravista no Brasil, já que se elevava
acima do despotismo por suas virtudes. 806 Se lembrarmos a forma pela qual a imagem
da monarquia constitucional foi construída, como elemento indissociável do progresso
das luzes e da plena inserção do Brasil no mundo das nações civilizadas sem os riscos
da desordem, então podemos perceber, na argumentação de Cunha Mattos, uma
associação que dá um passo adiante nessa percepção: a monarquia constitucional
garantiria a moralidade da sociedade escravista, uma vez que, por ser a melhor forma de
governo possível para o país, naquele contexto de passagem do “velho tempo” ao “novo
tempo”; simultaneamente, a sociedade escravista garantiria a continuidade e o progresso
da monarquia constitucional, não apenas pela melhora da civilização brasileira, como
804
Idem, p. 17.
Idem, ibidem.
806
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p. 70.
805
306
pela manutenção de sua economia e de sua integridade física. No caso específico da
questão do tráfico, a crítica à convenção anglo-brasileira significaria, ainda o
fortalecimento político da monarquia frente às potências estrangeiras.
A fala de Cunha Mattos começa a receber respostas na sessão seguinte. 807 O
primeiro a falar é o Bispo da Bahia, afirmando que “todas as nações são obrigadas sem
dúvida a procurar o meio da sua conservação e bem ser; e evitar a sua destruição; mas é
preciso que estes meios não sejam injustos, nem reprovados, e proscritos pelo direito
natural.” E haveria quem dissesse que os meios do comércio de escravos não se encaixa
nisso, sendo “somente próprio para retardar progressos da civilização da espécie
humana? (Apoiados.)”808
Sobre a narrativa da barbárie africana que Cunha Mattos pintara, o Bispo da
Bahia retrucara dizendo que
nem um desses africanos agradeceria ao ilustre deputado este ato de
compaixão e humanidade, que os arrebata da companhia de suas
mulheres, de seus filhos e de sua pátria, para os vir entregar com a mais
horrível degradação e zombaria ao açoite de um senhor implacável. 809
Por fim, ainda culpa pelas guerras, hostilidades, efusão de sangue e “tantos
horrores” não os africanos em si, mas os “armadores ou antes os governos que os
consentem, e autorizam”, inclusive apelando às “leis da humanidade”, como no passado
se invocara “sacrilegamente o sagrado nome da religião com o pretexto de converter os
africanos”. E, por fim, derruba o argumento sobre o tratado ser nulo, conforme
argumentado por Cunha Mattos. Para o Bispo, o tratado tornou-se brasileiro quando a
Assembleia de 1823 autorizou o executivo a tratar da questão. E mesmo o argumento de
quebra da economia não poderia ser válido:
Desenganemo-nos, se no tratado estipulasse a continuação daquele
tráfico ainda por mais 20 anos, ao finalizar esta época renasceriam as
mesmas queixas, e se julgaria que o Brasil precisava outro tanto tempo
desta execrável importação. Foi assim que quando as colônias ingleses
sacudiram o jugo da metrópole, muita gente na Inglaterra, até mui
hábeis economistas, assentaram que ficava perdida, que decairia
necessariamente a sua marinha, o seu comércio, e o seu poder naval:
mas bem depressa se reconheceu que isto era um terror pânico, e nunca
a Inglaterra prosperou mais em população, em capitais, e
preponderância marítima, do que depois da emancipação das colônias.
O mesmo há de acontecer ao Brasil, quando a falta de braços africanos
807
ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 21.
Idem, ibidem.
809
Idem, ibidem.
808
307
o obrigar a lançar mão de medidas mais sólidas, e perduráveis, que até
agora se têm desprezado.810
O argumento demolia a justificativa de Cunha Mattos para o fracasso da
agricultura, ao remeter, pelo exemplo inglês, inclusive ao que se dizia a respeito da
Independência do Brasil alguns anos antes. Ou Portugal não produzira, ele próprio,
discursos baseados no medo, na previsão de destruição e degradação, caso houvesse a
ruptura política? O discurso do medo, poderosa ferramenta de aglutinação dos interesses
senhoriais, que projetava para o futuro a tragédia anunciada, era diluído pela lembrança
do passado recente.
Seria, porém, de Lino Coutinho a crítica mais contundente a um dos aspectos
centrais da fala de Cunha Mattos a respeito da escravidão: a das suas relações com a
moralidade. Lino Coutinho, após criticar a posição de Cunha Mattos afirmando que a
escravidão se opõe “aos progressos da indústria”, “desmoraliza os homens” e “espanca
as virtudes”, entra no terreno da questão moral:
Mas dir-se-há: os gregos e os romanos tiveram escravos; os primeiros
criaram as artes, as ciências e mesmo a moral; e os segundos, posto que
inferiores nas artes e ciências, não eram contudo nas virtudes
domésticas e públicas eles eram livres, e para serem livres tinham
precisão de haverem escravos. Assim é, ou ordinariamente se pensa;
porém se compararmos o passado com o presente, veremos que basta só
a Inglaterra para deitar a barra adiante dessas famigeradas repúblicas da
antiguidade, cujo renome é mais devido à saída que elas faziam entre as
várias nações bárbaras que as rodeavam do que às suas próprias
instituições.811
Coutinho não apenas minimiza o destaque de Roma e da Grécia no conjunto
civilizacional, contextualizando de uma forma que mais faz suas inovações brilharem
pela concorrência ao redor do que por méritos próprios, como, ainda, confere clara
preponderância à modernidade em comparação com os antigos. Bastaria a Inglaterra
para mostrar, por contraste, a distância entre as “repúblicas da antiguidade” e a
civilização presente. O argumento remete à ideia de que o progresso nos tempos
contemporâneos era não apenas mais acelerado do que no passado, mas, também,
qualitativamente melhor, mostrando-se o tempo presente com posição de superioridade
em relação aos tempos antigos.
Mais: o caso de Grécia e de Roma não apenas era fraco em termos de
moralidade, como ainda oferecia boas lições para o presente do Brasil:
810
811
Idem, p. 22.
Idem, p. 26.
308
E quem não sabe que a Grécia e mesmo Roma sucumbiram debaixo dos
Felipes de Macedônia e dos Césares, quando o número dos seus
escravos chegou a ser excessivo, quando Atenas tendo 50.000 cidadãos
contava 500.000 escravos; quando em Roma aparecia um Cresso com 2
mil captivos? Que segurança interna pode ter uma nação, cujo número
dos escravos é excessivo em relação àquele dos indivíduos livres? Nós
sabemos o que se fazia em Lacedemonia aos míseros hilotes; nós
conhecemos a lei romana que mandava matar a todos os escravos da
casa onde havia sido morto o senhor, quando não aparecia o assassino, e
acontecendo em Roma um fato destes, quatrocentos escravos foram
levados ao patíbulo, e aí mortos.812
Tãmis Parron, a partir desse exemplo, afirma que o deputado baiano, província
então afetada continuamente por rebeliões escravas, evitara falar da revolução haitiana
ou do Brasil para voltar-se à Antiguidade, embora não estivesse “exatamente
preocupado com o Mundo Antigo.” 813 Contudo, é preciso considerar o peso do apelo à
Antiguidade na produção de referências históricas, ainda mais considerando-se que o
foco dessa discussão em particular era a questão da moralidade. Ao repetir os exemplos
grego e romano levantados por Cunha Mattos, Lino Coutinho buscava relativizar a
pretensa moralidade, questionando se a busca pela sua existência justificaria um estado
de insegurança permanente.
Moralidade essa que, no mais, não era tanta quanto se supunha. Para piorar a
situação, argumenta Lino Coutinho, se algum proveito
tiraram os povos da antiguidade com os seus escravos brancos, (...) não
esperemos achar o mesmo entre os escravos africanos e pretos; porque
estes são diferentes dos brancos pela organização física do seu cérebro,
e inferiores pelo fraco desenvolvimento dos seus órgãos intelectuais. 814
O argumento racialista somava-se ao da imoralidade para produzir uma
aproximação entre a lógica da barbárie africana e a crítica ao tráfico negreiro. Percebase que não há críticas à perspectiva de Cunha Mattos no estilo daquelas de Silva Lisboa
a Maciel da Costa. Pelo contrário: a defesa do fim do tráfico serviria também para
mostrar ao Brasil as vantagens da abolição desse comércio:
Concluo pois, meus senhores, que o Brasil, em vez de perder com a
abolição do tráfico de escravatura, há de pelo contrário muito ganhar
com ela; porque, o que temos nós visto nos Estados Unidos da
América? Eles têm melhorado muito a sua agricultura, a sua indústria e
812
Idem, ibidem.
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p. 44.
814
ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 27.
813
309
o seu comércio, acabando com a escravatura, e admitindo colonos. E
seremos nós só os exceptuados deste resultado geral? 815
Diz que desculpa os ingleses por terem se metido nesse negócio, já que toda
nação deveria usar suas forças para atos dessa natureza. “Os ingleses nessa parte são
dignos de louvor, porque usam de sua influência, para que se reconheça a dignidade do
homem, e se acabe com o vil comércio de escravos.” Assim como Vasconcellos, que,
falando em seguida, também apela à imitação e ao exemplo inglês:
O procedimento do gabinete inglês, longe de excitar queixumes,
reclama agradecimentos da nossa parte. Para que pois acusar de
interessado o governo inglês? Como se pode avançar, que ele se propõe
não o bem da humanidade, mas o nosso prejuízo de que espera lucrar?
Como se afirma neste templo da justiça, que eles não têm beneficiado
os africanos? O estabelecimento de serra Leôa, que se produziu, prova o
contrário. (...) Estes africanos têm adotado todos os costumes e hábitos
dos povos civilizados, por exemplo, a instituição dos jurados que ali
floresce, e da qual muita gente julga incapazes os brasileiros.
Mesmo Vasconcelos, futuro campeão do Regresso e do contrabando negreiro 816,
posicionava-se, naquele momento, contra a continuidade do tráfico de escravos. A
mudança é notória: quinze anos antes da famosa defesa, no Senado, em 1843, de que a
África civiliza a América, Vasconcelos conecta a civilização da África à ação inglesa: a
presença da civilização romperia qualquer pretenso estado estacionário africano e
permitiria seu pleno desenvolvimento. Não era, aqui, a escravidão a moralizar e
desenvolver a civilização num país escravista: era a liberdade a desenvolver a
civilização na terra originária dos escravizados.
O que explica a mudança no comportamento de Vasconcelos? Esta não é uma
questão para ser tratada aqui. Porém, é preciso considerar que o Vasconcelos de 1827
está, ainda mais ligado às questões que presidem a construção do Brasil Independente
do que àquelas que se colocam para a consolidação do Estado Imperial no Brasil, pósRegresso. Não à toa, na construção de sua defesa da ação inglesa, Vasconcelos, a
exemplo do que discutimos nos capítulos anteriores, defende que “sejamos também
gratos à nação inglesa; lembremo-nos que eles têm defendido a liberdade do gênero
humano, e que às suas terminantes declarações à santa aliança se deve a tranquila
emancipação da América.” Em outras palavras, antes das preocupações pós-Regresso
com a construção da ordem no Brasil, envolvendo, aí, manter plenamente a inserção do
815
816
Idem, p. 27.
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p 71-72.
310
Império nos quadros da Segunda Escravidão, num momento de expansão plena da
cafeicultura e da Bacia do Paraíba, Vasconcelos ainda operava numa lógica da
Independência da América como resposta do Novo Mundo às pretensões da “Velha
Europa”, que ainda lutava contra os riscos de regredir na sua civilização – exceção feita
à Inglaterra –, e num contexto retórico no qual o Brasil, monarquia constitucional, teria
grande exemplo a dar ao mundo.
Vasconcelos ainda ataca com ironia o argumento de Cunha Mattos de que os
escravos fruto do tráfico seriam mortos caso não fossem comprados, mostrando como a
lógica da história como história da liberdade presidia seu discurso naquele momento:
“Que grande humanidade! Degradar o homem de sua natural dignidade, reduzi-lo à condição de
animal, dar-lhe uma morte mais lenta e mais dolorosa, pode em qualquer conjuntura considerarse benefício?”817 A “natural dignidade” da condição humana – que, como vimos, era base
de sustentação da lógica da história como história da liberdade – era projetada por
Vasconcelos também sobre os africanos. E tal lógica não se poderia reduzir seque à
questão da utilidade do tráfico para a formação do Brasil. Afinal, para Vasconcelos, “o
útil e o justo devem ser sempre inseparáveis.”
A interpretação da questão do tráfico e da escravidão dentro da lógica da história
da liberdade levava a uma interpretação sobre a posição do Brasil no mundo, no que
tange a esse ponto, e sobre as relações do Império com seus vizinhos:
Ah! Senhores, imitemos os estados americanos; o Brasil é hoje o único
país do globo, que ainda prossegue nesse comércio: mudemos de
conduta a respeito dos africanos em tudo nossos semelhantes, como
provam os haitianos. A Inglaterra que não só é livre, mas que quer que
todos o sejam deu o exemplo, abolindo este tráfico nas suas colônias, e
hoje intervem para que também ele cesse no Brasil. Quem pudera
disputar-lhe este direito? Todas as nações têm rigorosa obrigação de
socorrer a humanidade oprimida. Oh! Intervenham todas assim nos
negócios alheios!! Portugal, quando ainda lhe estava unido o Brasil,
tinha resolvido cooperar com S. M. Britânica para a completa abolição
deste tráfico, que pelos tratados existentes só aos portugueses é
permitido. 818
O Brasil já se apresentava como isolado; imitar os estados americanos era
fundamental.819 Que a causa que a Inglaterra professava se tornasse, então, uma causa
817
ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 28.
Idem, p. 28.
819
Costa Aguiar discordaria dessa proposição, por considerar, como outros, a diferença de situações entre
Brasil e Estados Unidos: “O que se diz dos Estados Unidos da América serve para agravar ainda mais a
nossa desgraça. (...) Argumenta-se com aquela nação a semelhante respeito! Ah! Senhores, que
diversidade de circunstancias, que diferença de proceder!! Amanhã se não me engano fazem precisamente
818
311
mundial da civilização, da qual aspirava a fazer parte o Brasil. Sendo parte desse
conjunto civilizacional, tornava-se obrigação de todos intervir em nome da
“humanidade oprimida” – da qual fazia parte, portanto, também a África. E a
aproximação do Brasil com o Haiti, num exemplo de valorização que, como vimos,
aparecera apenas pontualmente em outros momentos, conectava-se à ideia de América
contra a Velha Europa, destacando, provavelmente, a capacidade dos haitianos em gerir
um auto-governo, à semelhança das nações saídas da Independência.820
Cunha Mattos ainda buscaria responder às críticas que recebera. Desafia os “srs.
eclesiásticos” que afrimam ser o tráfico vergonhoso e oposto ao “espírito do
cristianismo” a libertarem seus escravos, para que “não se sirvam com cativos”, dandonos “exemplos de moralidade”, não ficando “esta moralidade em simples palavras, que
são levadas pelo vento.” “Confessa” que ele próprio não se acha disposto a libertar os
seus escravos – coisa de “30 ou 40” – pois custaram muito dinheiro (busca, contudo,
tratá-los bem) – lembrando que, “sr. Presidente, tudo são teorias, modas do tempo e que
com o tempo hão de acabar!” 821 À enxurrada de filantropias criticando o tráfico, Cunha
Mattos apela à rigidez do tempo e da experiência que poderia diferenciar ideias da moda
das teorias consagradas e consolidadas pela tradição.
Diz que os nobres deputados “ignoram os costumes da costa da África”, e que,
embora não duvide “que a compra dos pretos tenha desafiado mais a ambição dos reis
da África”, mesmo assim,
nós todos sabemos que, antes da descoberta de Guiné pelos
portugueses, as guerras eram mui freqüentes e que para Marrocos,
Tunes e Tripoli iam imensos escravos d´Africa meridional. Eu já ontem
disse que o estado da guerra é o estado da natureza dos africanos
brancos e pretos; e agora acrescento que sempre foi o estado da natureza
822
dos antigos europeus, tanto do sul como do norte.
Curiosamente, ao admitir, agora, que a guerra foi também o estado da natureza
dos antigos europeus, Cunha Mattos abria a possibilidade de mudança. Indício de que
sua argumentação original se fragilizara, e que apostar todas as fichas na questão da
“salvação da ordem” parecia mais promissor. Não à toa, ao tratar das nações que
51 anos que os Estados Unidos da América proclamaram a sua independência: quando porém ali foi
abolida a importação dos escravos? Eu referirei muito em resumo o que a este respeito diz Adam Seyhert
nos seus anais estatísticos dos Estados Unidos, e compararei o estado da população naquele país em
diversas épocas e tempos, desde a sua independência até nossos dias, para de tudo isto poder melhor
deduzir a verdade do que deixo expendido quanto à diversidade de nossas circunstâncias.” Idem, p. 29-30.
820
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p 72.
821
ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 31-32.
822
Idem, p. 32.
312
declararam o fim do tráfico no Congresso de Viena, arrola exemplos (Áustria, Rússia,
Prússia) que diferenciam-se do Brasil, uma vez que “nenhum destes soberanos têm
colônias”, e “os franceses não fazem grande caso de Caiena”, portanto estando em
condições bem distintas para lidar com a questão.
Bem, bem! Insistem alguns srs. deputados em que a abolição do
comércio não trará consigo a decadência do Brasil! Eu ontem provei o
contrário; e como nós não havemos de morrer todos antes de chegar
essa época fatal, então se verá qual é o aumento que os nossos
agricultores e proprietários hão de experimentar. 823
O historiador do “tempo lento”, das transformações longas e seculares, advogava
a crise e a decadência do Brasil para um futuro próximo, a que todos assistiriam como
testemunhas. E não haveria solução capaz de resolver esse problema a curto ou médio
prazo: o comércio negreiro era alçado a condição de elemento indispensável da
manutenção do Império do Brasil. Sem ele,
os escravos em vez de aumentarem, hão de diminuir, e os comerciantes
hão de perder grandes capitais no último ano do tráfico. Apresentam-se
brilhantes teorias para encher com índios selvagens o vácuo que ficará
pela falta de escravos! Há 300 anos estão se catequizando os índios, e, à
exceção dos aldeados pelos jesuítas, todos os mais têm sido menos úteis
do que desinteressantes ao estado.824
Volta a falar das relações entre escravatura e moralidade. Afirma que “já ontem”
havia demonstrado
que pode haver escravatura e haver moralidade. Muitos países da
Europa em que não existe nem existiu escravatura em tempo algum são
povoados de gente muito mais imoral do que os brasileiros. A
moralidade do povo siciliano, a dos lazarões de Napoles e dos Estados
Pontificios, a dos corsos pode comparar-se com a dos brasileiros? Não;
825
entre nós não há os vícios infames da Italia meridional.
E se a criminalidade aumentara recentemente no Rio de Janeiro, continua, isso
se deu por conta dos “suíços tirados dos cárceres de Friburgo e os alemães varridos das
cadeias das cidades hanseáticas.” Diz que o número de criminosos no Brasil, comparado
com a Inglaterra, proporcionalmente, é quase insignificante. Nada justificaria uma
correlação direta entre a presença da escravidão e a imoralidade da sociedade.
823
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
825
Idem, p. 34.
824
313
O que faz chegar ao argumento final. Àqueles deputados que traziam exemplos
ingleses para corroborar a defesa da humanidade contra o tráfico, destacando-se as
“grandes instituições da Inglaterra”, Cunha Mattos rebate: “Que temos nós com essas
instituições! Quando o Brasil tiver tantos anos de existência política no meio da
liberdade quantos tem a Inglaterra, nós também apresentaremos coisas semelhantes às
que eles agora nos estão mostrando.” E finaliza: “A Inglaterra data as suas grandes
instituições desde o reinado de Alfredo em 800 e o Brasil principiou no ano de 1822.” 826
Dessa forma,
Em Inglaterra há jurados, nós teremos a lei dos jurados; em Inglaterra
há liberdade de imprensa, nós teremos liberdade de imprensa; em
Inglaterra há muitas academias e universidades, nós havemos de ter
universidades e academias; em conclusão quando nós formos tão
antigos quanto os ingleses, quando tivermos uma população igual à
deles, quando as nossas rendas públicas montarem a 800 milhões de
cruzados, então teremos instituições iguais às da Inglaterra; as
faculdades intelectuais dos ingleses não são maiores do que as nossas,
no Brasil desenvolvem-se os gênios mais facilmente, aqui não temos
nevoeiros contínuos, não respiramos a fumaça do carvão de pedra, e não
conhecemos outras inconstâncias da atmosfera que são ordinárias na
Inglaterra (Apoiado.)
O ponto central para onde se desloca o argumento de Cunha Mattos é,
finalmente, a questão das distintas temporalidades nas quais se encontravam Brasil e
Inglaterra. Se os argumentos anteriores falharam em defesa do tráfico, que se
destacasse, então, o fato de que o Brasil de hoje era a Inglaterra de ontem, e em algum
momento chegaria lá. Quando chegasse, quando se equiparassem em termos de
economia, política, justiça e liberdade, aí, sim, o espelho inglês poderia ser plenamente
aplicado ao Brasil. E tal discrepância nas temporalidades era, ainda, minimizada pela
velocidade das transformações: a Inglaterra, existente desde 800, e o Brasil, desde 1822,
não levariam o mesmo tempo para chegar lá, já que o segundo se encontrava em
condições melhores que os ingleses. Ironicamente, a modernidade capitalista que se
processava na Inglaterra era criticada por seus efeitos sobre as cidades e a população. A
ausência desses problemas tornaria o Brasil uma Inglaterra de maneira mais acelerada
que a própria Inglaterra... Até lá, valeria a peculiaridade brasileira no desenvolvimento
de sua civilização.827
826
Idem, p. 34.
Outro que defenderia a particularidade das condições brasileiras para tratamento da questão seria
Clemente Pereira. Criticando as teorias abstratas e princípios filosóficos gerais que não se aplicam à
realidade brasileira, diz que é preciso observar a questão sobre fatos “existentes passados às nossas vistas,
827
314
****
A partir dos anos 1830, especialmente após o Regresso, a defesa dessa
particularidade definiria não apenas um projeto para a construção do Partido
Conservador que se entrelaçaria aos rumos do próprio Império, como, ainda, se
articularia a uma concepção de História que cada vez mais fortaleceu determinada
concepção de mundo senhorial-escravista sem, contudo, demonstrar diretamente tal
conexão. À medida que se considerava progressivamente um saber à parte, descolado
das disputas políticas, mais e mais essa visão de História contribuía para a consolidação
de certa concepção de mundo que afastava possibilidades alternativas. À hegemonia
historiográfica do IHGB correspondia uma hegemonia ideológica da classe senhorial –
esta última também se ancorando em visões do passado, ainda que, ao menos para a
temporalidade tratada, processavam-se de forma um tanto quanto independente dessas
discussões no interior da “academia”; do “conjunto de letrados”. Essa articulação,
dentro dos quadros da Segunda Escravidão, entrelaçaria ainda mais os destinos futuros
da nação à manutenção da instituição escravista.
A história dessas conexões, porém, ficará para trabalhos futuros.
e não sobre teorias abstratas, que se acham nos escritos dos filósofos que nunca vieram ao Brasil, nem
sabem como as coisas por cá vão.” Diz que é preciso ver as circunstâncias particulares de cada nação, e
não partir de teorias de sistemas gerais feitos para todas as nações, que não servem para nenhuma delas. E
afirma que, atentando à situação do Brasil, é preciso cautela, pois “o erro de uma experiência pode fazer a
desgraça e os atrasos de uma nação, de que muitos exemplos fornece a história!” E conclui: perguntarei a
estes senhores [que defendem o fim do tráfico], por que razão queremos imitar as nações clássicas da
liberdade na plantação de suas instituições liberais e não as havemos imitar na lenta madureza com que
elas as estabeleceram entre si? Nós que nascemos ontem, já queremos hoje saber como elas, que são
práticas e têm mais juízo, por isso que são mais velhas?” Idem, p. 42-43.
315
Considerações finais
Chegamos ao final desta tese com algumas questões em aberto e tantas outras
para o futuro.
Primeiro, uma consideração. Em que pesem os avanços da historiografia recente
que ampliou os limites dos estudos para além do IHGB, o tipo de fonte muitas vezes
utilizado não permitiu expandir ainda mais o leque de possibilidades. A despeito das
distinções entre cada trabalho, o foco continua a ser o conjunto de “intelectuais
oitocentistas” – muitas vezes sem uma maior reflexão sobre o significado da palavra
“intelectual”, não raro assemelhado ao “letrado”, ou membro da “república das letras”.
O deslocamento do IHGB para outros temas passa a ser apenas cronológico (no caso
dos estudos anteriores a 1838) ou pela desvinculação institucional desses intelectuais
(no lugar da categoria “membros”, inerente aos estudos sobre sócios do IHGB).
Permanece, porém, a figura do sujeito da “elite” – nesse caso, uma elite intelectual –
escrevendo uma obra delimitada, a partir de certas condições de produção.
Os limites desse tipo de abordagem ficam visíveis quando se incorpora a
interpretação coeva e se a generaliza para toda uma época, um período ou uma
sociedade. O intelectual/letrado passa a soar quase como representativo do “espírito de
época”, sua visão sobre a sociedade passa a ser “a” visão. E, no caso particular das
discussões sobre história e experiência do tempo, suas próprias experiências podem
passar a ser admitidas pelo historiador como se fossem o único percurso possível de
desenvolvimento do conceito ou das formas de se experimentar. As alternativas, as
opções “fracassadas”, as demais visões contra-hegemônicas não são, muitas vezes,
levadas em conta. E há mais: os conflitos sociais não são, muitas vezes, levados em
conta como fator de mudança, parecendo que transformações conceituais decorrem de
um mundo de idéias, palavras e leituras apenas, como se à semântica bastassem as
definições de dicionários ou escritos, ao invés de tratar-se o significado como produto
de lutas sociais. Em suma, o historiador se torna prisioneiro de um desenvolvimento
linear, inexorável e etapista, no qual os conflitos e contradições ficam restritos, muitas
vezes, a diálogos internos entre os intelectuais escolhidos.
A intenção, aqui, foi analisar algumas formas pelas quais agentes políticos do
Império do Brasil usavam a História e certa experiência histórica para defender pontos
de vista, argumentos, políticas, direções para o Império em construção. Com isso,
316
buscamos ampliar os “regimes de autonomia”828 da produção de narrativas históricas no
oitocentos, compreendendo outros sujeitos, outras formas não acadêmicas e buscando
como determinadas concepções narrativas sobre o passado influenciaram discussões
políticas na primeira década de construção do Brasil Independente.
Para tanto, inicialmente, analisamos as formas pelas quais as palavras “história”
e “historiadores” eram compreendidas na discussão. Como pudemos perceber, há uma
grande predominância de “autores não-historiadores” dentre os mencionados para
corroborar ou atacar pontos de vista sobre o passado. Apesar da continuidade de
autorias clássicas, especialmente Tácito, nas discussões do Primeiro Reinado, em
grande parte graças à atuação de senadores como José da Silva Lisboa, Visconde de
Cairu, pudemos perceber um predomínio de autores “recentes”, “modernos”, como
Adam Smith, Burke, Benjamin Constant e, principalmente, Montesquieu. Esses
elementos geraram uma dupla situação no que tange às formas de entendimento do que
constituía a História: de um lado, em espaços como o Senado, uma concepção “antiga”
de História se arrastava, associada a figuras como o já mencionado Silva Lisboa; de
outro lado, em momentos de efervescência e maior discussão, autores mais modernos
começavam a surgir como intérpretes da História. O passado aproximava-se do
presente, já que tais autores se referiam não apenas a acontecimentos distantes no tempo
– dentro de uma chave acadêmica “antiga” que considerava ser a distância temporal
fundamental para um juízo adequado dos acontecimentos – mas, pelo contrário,
aproximavam-se de considerações sobre a contemporaneidade e sobre o passado
recente. O mundo criado pela Era das Revoluções demandava um conhecimento dessas
transformações para a boa ação política no presente. A ausência de parâmetros
acadêmicos “modernos” para delimitação do que significava, de fato, a ciência da
História contribuiu para que se alargasse o conceito e a experiência histórica fosse,
também, uma experiência política, voltada, também, para aprendizado e uso nas ações
do presente.
Essa concepção se diferenciava de uma perspectiva que predominaria, por
exemplo, no IHGB décadas mais tarde. Do século XVIII a Varnhagen, do Império
português ao Império do Brasil, em meio às disputas e mudanças nas concepções
828
Para os distintos regimes de autonomia da produção historiográfica no Brasil oitocentista, cf.
ARAÚJO, Valdei. Historiografia, nação e os regimes de autonomia na vida letrada no Império do Brasil.
In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 31, n. 56, maio/agosto 2015, p. 365-400. Considero que,
ampliando o escopo para além da vida intelectual mais restrita, podemos perceber outras formas
narrativas da experiência histórica nas discussões políticas do Império.
317
predominantes a respeito da História e da Nação, podemos perceber um progressivo
afastamento entre História e cotidiano, a partir do afastamento entre “homens de letras”
e „homens da tribuna”, que resultou na concepção de que à História deveriam escapar os
eventos contemporâneos, restringindo-se aquele campo do saber aos eventos já
considerados “do passado” e isolados de permanências coevas 829. Assim, a concepção
predominante no complexo IHGB-Varnhagen afastou os eventos contemporâneos do
olhar do historiador, ao mesmo tempo em que, noutros espaços, como a Câmara, o
Senado e os periódicos, essa relação história-cotidiano não desapareceu. Em outras
palavras, não obstante, ao longo da primeira metade do século XX, no Império, o
discurso histórico moderno tenha se autonomizando em relação à atuação no presente,
as relações entre história e cotidiano, contudo, não desapareceram, mas, sim, foram
deslocados à esfera do político, que fortaleceu-se como produtor de uma história recente
ao menos a partir do Primeiro Reinado. Articulada a esse afastamento e deslocamento
está a cientifização do conhecimento histórico, resultando numa concepção
predominante de “discurso autorizado” sobre o passado conectada ao IHGB e a certos
intelectuais, cada vez mais associados aos únicos possíveis produtores do saber sobre
eventos transcorridos. A forma como essa relação se estabeleceu com a política após a
década de 1820 fica como hipótese para trabalhos futuros.
Em relação ao conteúdo prático dessa história voltada para a atuação política,
podemos tecer algumas considerações a partir do que vimos trabalhando até aqui.
Em primeiro lugar, a partir dos anos 1821-1822, delineia-se com mais precisão
uma concepção de história, presente em periódicos como Reverbero Constitucional
Fluminense, que a enxergava como a história da liberdade em luta contra a opressão.
Essa concepção, que entendia o processo histórico como um movimento permanente de
conflito entre as forças da liberdade e da escravidão, buscava interpretar os
acontecimentos recentes, em especial aqueles que caracterizavam a Era das Revoluções,
como processos inseridos nessa lógica mais ampla, embora não abrissem mão de buscar
compreender toda a novidade daquele “novo tempo”. Assim, as narrativas que
buscavam compreender as transformações e as novidades abertas desde o século XVIII,
ao menos, posicionavam-se no meio de uma tensão entre a abertura a um novo mundo
que se apresentava e os riscos contidos no processo de mudanças aceleradas, que
poderiam facilmente degenerar as sociedades em anarquia, fragmentação, destruição. A
829
Sobre a questão, cf. MALEVAL, Isadora Tavares. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
(não) lugar da história do presente. In: Ars Historica. v.1, n.2, jul-dez 2010, p. 49-59.
318
América, que se pretendia inserir nesse processo, aproximando os efeitos
revolucionários europeus do Novo Mundo, oferecia, nessa concepção, uma dupla
possibilidade: de um lado, o grito de liberdade que conectava seus destinos aos do
restante do mundo, aproximando-se do cumprimento do destino que se encontrava
presente no coração de todos os homens: a resistência ao despotismo; do outro lado, os
riscos nos caminhos distintos que o continente percorria para cumprir seu intento: o lado
republicano arriscava-se por veredas conflituosas; a parte monárquico-constitucional
oferecia, noutra direção, as vantagens de incorporar todas as mudanças positivas sem
qualquer risco de destruição.
É assim que podemos considerar a perspectiva de ser o passado da América
entendido como o futuro do Brasil, caso falhassem os esforços pela construção da
monarquia constitucional em torno de Dom Pedro I. O Brasil apresentava-se como
melhor posicionado para executar a transição do velho ao novo tempo exatamente
porque, nessa interpretação, aprendera com os erros alheios, observara seus vizinhos,
compreendia como eles haviam chegado ao lugar indesejado, embora, na origem, todos
quisessem a mesma coisa: a liberdade. E essas lições do passado recente serviriam para
a construção de um discurso sobre o medo que fortaleceria retoricamente a sustentação
da monarquia ao redor de Dom Pedro.
Ao mesmo tempo, em segundo lugar, simultaneamente à narrativa da história da
liberdade se constrói uma certa concepção de história da civilização que buscava
produzir uma interpretação geral da História que desse conta de todas as transformações
passadas, presentes e futuras amparadas numa certa ideia de progresso. E, nessa
concepção de história da civilização, o mundo se apresentava nas suas múltiplas
temporalidades, as distâncias geográficas misturando-se às distâncias temporais que
marcavam, para cada região, sua posição na transição do “velho tempo” ao “novo
tempo”. As “luzes do século”, posto fossem, como o nome indica, próprias do XIX, não
se derramavam simultaneamente sobre todos os locais. Dessa forma, era possível, no
XIX, observar-se a distância sobre os séculos passados a partir das distâncias temporais:
cada vez mais associava-se a civilização à Europa contemporânea – que superara uma
Europa antiga marcada pelo domínio da barbárie, ligada ao despotismo –, enquanto sua
antítese, a barbárie, cada vez mais era jogada para cantos distantes do Ocidente,
sintetizando-se o longínquo na figura da “Turquia”. A civilização caminhava do Oriente
para o Ocidente, entendia-se. O Brasil recém surgido do rompimento com Portugal
buscava-se inserir na continuidade civilizacional ocidental.
319
Os “olhos na Europa” buscaram os exemplos das “nações civilizadas” como
forma de compreender os caminhos a serem seguidos tanto para se alcançar o patamar
dessas nações – em especial a Inglaterra, que ocupa posição central nessa narrativa –,
quanto para se entender por que mesmo no coração da civilização poderia a qualquer
momento a tragédia irromper, como no caso da França. Em outras palavras, os “olhos
na Europa” não apenas constroem aquela narrativa civilizacional e a distância temporalgeográfica da Europa em relação tanto ao seu próprio passado quanto a outras regiões
do mundo, como, também, produz uma retórica de aproximação e alerta, a partir de
exemplos positivos e negativos, que também informou a experiência histórica dos
sujeitos que disputavam a direção política no Primeiro Reinado acerca do que poderia
ou não ser aplicável ao Brasil; de como se poderia ou não garantir a plena inserção sem
sustos ou desvios do Império na civilização.
Tal inserção na civilização, via de regra o “caminho brasileiro” para a
modernidade, com suas três franjas principais, não se deu sem a produção de uma
massa de colonizados que, prostrados no chão frente ao “cortejo triunfal” da história da
civilização, tal como construída interpretativamente, dela não participariam senão como
subalternizados. Assim, e retornando a Walter Benjamin, entender a construção do
Império como parte constituinte de um processo de modernização implica considerar, de
todas as possibilidades que se apresentavam, as razões pelas quais uma específica,
impondo-se e apresentando-se como a única modernidade possível, varre os escombros
sobre os quais se ergue e produz esquecimento daqueles que dela não fizeram parte
senão como subalternos e fruto de exploração830.
Esta tese, contudo, não buscou a “História a contrapelo”, tarefa que superaria em
muito nossos objetivos, mas, sim, alguns dos tecimentos pelos quais dirigentes
imperiais lidaram com aqueles aspectos das múltiplas franjas da modernidade e
construíram discursos capazes de produzir uma interpretação histórica que, encaixando
o Brasil na trajetória das demais “nações civilizadas”, pautou também os modos de
interpretação de si e dos outros, da América e da Europa, que davam sustentação àquele
encaixe.831
830
Cf. as Teses Sobre o Conceito de História, em BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012, bem como a análise delas feita por LÖWY, Michael. Walter
Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
831
Saímos dessa armadilha? A pertinência de algumas críticas a interpretações não apenas vigentes, mas
canônicas de nossa origem nacional sugere que não. Cf., por exemplo, as críticas, por exemplo, à
perspectiva de CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem/ Teatro de Sombras. 4ª edição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, presentes em PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain;
320
É neste ponto que chegamos à questão das relações entre história, civilização e
escravidão, bem como a inserção dos indígenas nesse processo.
Isso envolveu, por exemplo, as discussões sobre as relações entre cidadania e
escravidão no Brasil. Nos debates de 1823 a respeito, duas questões centrais foram
postas. A primeira interrogava a respeito das diferenças entre “ser brasileiro” e “ser
membro da sociedade civil brasílica”, ou “ser cidadão brasileiro”. Não era apenas uma
questão retórica ou ligada à discussão sobre direitos. Envolvia, para os fins que nos
interessam, saber, também, quem havia feito parte do conjunto em luta contra a
opressão metropolitana na formação do Brasil. Envolvia aspirar à produção de uma
sociedade única, que abarcasse todos os nascidos no território em torno da
“brasilidade”, ou construir uma sociedade que se mantivesse “heterogênea”, com grupos
nascidos no Império, mas sem serem parte da civitas.
Contudo, se a Constituinte de 1823 oferecia uma possibilidade de esticamento da
crítica à escravidão, inclusive na proposta vitoriosa de Silva Lisboa a respeito do
encaminhamento da questão dos libertos à cidadania, o começo da experiência
parlamentar mais corriqueira no Império, a partir de 1826, alterou significativamente
esse quadro, como ficou evidenciado na crítica de Cunha Mattos à ratificação da
convenção anglo-brasileira que previa o fim do comércio negreiro para dali a três anos.
Embora quase isolado em seu posicionamento e derrotado na discussão final, Cunha
Mattos lançou bases de articulação entre história, civilização e escravidão que
consolidaram, especialmente na década seguinte, uma interpretação da formação do
Brasil condicionada pela lógica da “salvação do estado” superando a interpretação mais
aberta e teórico-filosófica da “história como história da liberdade”.
A história dessa substituição conhecemos bem. Retornando a Walter Benjamin,
podemos lembrar que a construção da ordem, no Brasil, nas décadas seguintes, foi parte
parte constituinte de um processo de modernização que implica considerar, de todas as
possibilidades que se apresentavam, as razões pelas quais uma específica, impondo-se e
apresentando-se como a única modernidade possível, varre os escombros sobre os quais
se ergue e produz esquecimento daqueles que dela não fizeram parte senão como
subalternos e fruto de exploração832. Essa “única modernidade possível” encontra seu
acabamento no período de consolidação do Império, entre 1838 e 1850, não à toa
ESTEFANES, Bruno. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política
nacional no Império do Brasil. Almanack. Guarulhos, n° 07, 1° semestre de 2014, p. 137-159, crítica à
pag. 142.
832
BENJAMIN, Walter. O anjo da história... op. cit.
321
periodização também que praticamente abarca os dois elementos centrais da escrita da
História no Brasil oitocentista, tais como tradicionalmente são considerados: o IHGB e
Varnhagen.
Esta tese não buscou a “História a contrapelo”, tarefa que superaria em muito
nossos objetivos, mas, sim, alguns dos tecimentos pelos quais dirigentes imperiais
lidaram com aqueles aspectos das múltiplas franjas da modernidade e construíram
discursos capazes de produzir uma interpretação histórica que, encaixando o Brasil na
trajetória das demais “nações civilizadas” ao mesmo tempo em que sua maior
peculiaridade, a escravidão, era justificada como elemento indissociável dessa
construção. Saímos dessa armadilha? A pertinência de algumas críticas a interpretações
não apenas vigentes, mas canônicas de nossa origem nacional sugere que não833
A relação entre essas três modernidades aqui analisadas produziu características
que acompanhariam o processo de formação do Estado nacional no Brasil do século
XIX. Em primeiro lugar, uma modernidade escravista como elemento fundador do
Império, não apenas constituindo elemento de integração territorial, mas também
delimitando a questão da cidadania e da liberdade, a partir do atributo da propriedade834.
Além, é claro, de constituir baliza fundamental da base territorial econômica (pelo café)
e social (pelo ethos senhorial) do Império em seu auge: o Vale do Paraíba fluminense.
Em segundo lugar, uma modernidade política que desenvolvia, pelo conceito de
civilização, a produção de uma massa de subalternizados afastados da própria direção
política, constituindo-se como herdeiros daqueles colonizados, à Ilmar Mattos, que eram
produzidos no próprio processo anterior de colonização. Modernidade política que
construía a plebe em oposição à boa sociedade, portanto definindo a cada um o seu
lugar naquela sociedade. 835 Em terceiro lugar, uma modernidade conceitual que
833
Cf. as críticas, por exemplo, à perspectiva de José Murilo de Carvalho, especialmente em seu A
Construção da Ordem/Teatro de Sombras, presentes em PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain;
ESTEFANES, Bruno. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política
nacional no Império do Brasil. Almanack. Guarulhos, n° 07, 1° semestre de 2014, p. 137-159, crítica à
pag. 142.
834
Para essa questão, cf. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit. SALLES, Ricardo. Nostalgia
Imperial... op. cit.; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo... op. cit. ; GRINBERG, Keila. O fiador
dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; CASTRO, Hebe Mattos de. Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico. Jorge Zahar Editor [coleção Descobrindo o Brasil], s/d. CHALHOUB, Sidney. Visões da
Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
835
Toda a estrutura dessa interpretação é baseada em MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit.
Cf., ainda, BARRA, Sérgio. Entre a Corte e a Cidade... op. cit.; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização
e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012; COSER,
Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, 1823-1866. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008, cap. 4.
322
buscava, a partir, em grande parte, dos limites produzidos pelas duas outras
modernidades, dar um sentido de interpretação àquele tempo, articulando passado e
presente na produção de narrativas sobre o Brasil, visando ao futuro.
Como pudemos conectar esse momento de síntese das três modernidades – a
escravista, no momento de abertura, no Império, da Segunda Escravidão; a política, no
momento de inauguração do “Tempo Saquarema”, e a conceitual, com a fundação do
IHGBm em 1838, e a posterior escrita da História Geral do Brazil, em 1854 – com o
momento anterior, de fundação do Brasil Independente? Essa conexão, que justificou
este trabalho, passava diretamente pela produção ideológica de referências que
buscaram inserir o Brasil no rol das “nações civilizadas” ao mesmo tempo em que
construía a definição hegemônica de “civilização” como aspecto indissociável de uma
lógica da experiência histórica no Brasil oitocentista. Essa lógica apelou à história e a
exemplos históricos e coevos para dar sustentação a um projeto de Império e de nação
que se pretendia parte indissociável do conjunto das “nações civilizadas”, ao mesmo
tempo em que se deparava, o tempo todo, com a necessidade de lembrar as
peculiaridades da América que justificavam certa diferenciação para a civilização aqui
construída. E tal passava especialmente pelo entrelaçamento das três franjas da
modernidade acima discutidas a partir do momento de fundação do Brasil Independente,
iniciando a análise na conjuntura que levou à ruptura política, em 1822, e analisando o
processo ao longo do Primeiro Reinado.
Essa forma de fundação do Brasil é, ainda, o nosso tempo. Enquanto concluo
esta tese, discutem-se, sob os auspícios de um governo de exceção, reformas na
economia, na educação, na política e na previdência que são justificadas, sem exceção,
sob o argumento de sincronizar o Brasil com as “nações mais modernas do mundo” –
substituto para as “nações civilizadas” que formaram nosso parâmetro oitocentista. Ao
mesmo tempo, nossas “peculiaridades” – não raro construídas sobre o mais rasteiro
senso comum – ainda servem de base para ações autoritárias que não permite uma plena
inserção de uma lógica de direitos humanos e democracia na sociedade brasileira.
A tese não pretendia falar do Brasil no século XXI, mas do Império do XIX.
Qualquer semelhança será mera coincidência?
323
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