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Olhos na Europa, Pés na América: interpretações do presente, exemplos passados e perspectivas de futuro na construção de uma experiência histórica no Primeiro Reinado

2016

Este trabalho trata das formas pelas quais dirigentes do Império do Brasil, no momento inicial de sua fundação e construção da Independência, lidaram com certa experiência histórica de interpretação do tempo e ação na realidade. Em outras palavras, esta pesquisa analisa as maneiras pelas quais políticos do Primeiro Reinado abordavam temáticas do passado e do presente, tanto do Brasil e da América quanto da Europa, para a construção de uma narrativa histórica da História das Civilizações que inserisse o Brasil na mesma lógica das “nações civilizadas”, contribuindo para a construção de uma identidade nacional que era, ao mesmo tempo, a construção ideológica de um sentido histórico para os grupos dominantes do Império do Brasil.

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA: INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO Niterói 2016 JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA: INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Social. Orientador: Prof. Dr. GUILHERME PEREIRA DAS NEVES Niterói 2016 2 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá E74 Escosteguy Filho, João Carlos. Olhos na Europa, pés na América : interpretações do presente, exemplos passados e perspectivas de futuro na construção de uma experiência histórica no Primeiro Reinado / João Carlos Escosteguy Filho. – 2016. 338 f. Orientador: Guilherme Pereira das Neves. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Departamento de História, 2016. Bibliografia: f. 323-338. 1.Experiência. 2. História. 3. Primeiro Reinado, 1822-1831. 4. Historiografia. 5. Política. I. Neves, Guilherme Pereira das. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título. 3 JOÃO CARLOS ESCOSTEGUY FILHO OLHOS NA EUROPA, PÉS NA AMÉRICA: INTERPRETAÇÕES DO PRESENTE, EXEMPLOS PASSADOS E PERSPECTIVAS DE FUTURO NA CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA NO PRIMEIRO REINADO Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do Grau de Doutor. Área de Concentração: História Social. Aprovada em BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. GUILHERME PEREIRA DAS NEVES – Orientador UFF Prof. Dr. RICARDO HENRIQUE SALLES Unirio Prof. Dr. RODRIGO TURIN Unirio Prof. Drª. ANA MARIA MAUAD ESSUS UFF Prof. Dr. LEONARDO MARQUES UFF Niterói 2016 4 AGRADECIMENTOS Ao Cnpq, pela bolsa que permitiu a construção da pesquisa. Ao meu ex-orientador, Théo Lobarinhas Piñeiro (in memoriam), pelo acompanhamento, pela bravura e pelo esforço mesmo durante a doença. Até o final. Ao meu orientador, Guilherme Pereira das Neves, que assumiu a difícil empreitada na reta final e possibilitou a tese a cruzar a linha de chegada. Por toda a paciência e as lições oferecidas. Aos professores Ricardo Salles (Unirio), Gladys Sabina Ribeiro (UFF), Alex Varela (UERJ), Pedro Marinho (Mast) e Vitor Izecksohn (UFRJ) por todos os cursos que me permitiram assistir como ouvinte, pelos debates, pelas dicas valiosas e pela construção de um espaço estimulante de troca de ideias, mesmo em tempos de aperto. Ao professor Ricardo Salles, ainda, por todo o acompanhamento desde a graduação; por toda a orientação, oficial ou não, desde então; pela força e amizade. Por ser exemplo de historiador totalizante em um mundo onde eles estão cada vez mais em falta. Pelas sugestões e críticas no momento da defesa, que estimularam esta tese a ser apenas mais uma etapa, e não o final do caminho de pesquisa. Aos professores Valdei Araújo e Ana Maria Mauad, pela composição da banca de qualificação e pelas valiosas questões que ofereceram, ajudando a tese a chegar ao formato atual. À Ana, ainda, pela permanência da contribuição na banca final. Aos professores Rodrigo Turin e Leonardo Marques, pelo aceite na composição da banca final. Pela paciência e compreensão com meus atrasos e prazos estourados. Pelo exemplo profissional, como historiadores, que sempre inspiraram. Pelas colocações na defesa que permitiram ampliar os horizontes da discussão e refinar pontos ainda não plenamente amadurecidos deste trabalho. Ao Leonardo, ainda, pelas inúmeras dicas bibliográficas e historiográficas que, mesmo em parte não estando presentes aqui, me acompanharão academicamente por um longo tempo. À família, em especial mãe, tia, irmão, avô e amigos, pelo apoio e compreensão pelas ausências. Por todo o amor e carinho. Pela construção de quem eu fui, de quem eu sou e de quem eu serei. Aos que se foram, meu pai e minha avó (in memoriam), pela certeza de que suas memórias e suas presenças continuarão acompanhando minha jornada até o final. À família da Quézia, que também me acolheu como sua, por todo o cuidado, toda a ajuda ao longo dos anos e todo o carinho que tornam a vida mais bonita. Aos amigos-irmãos de ensino médio e faculdade, pela caminhada que começamos e continuamos. Pelas viagens, pelas conversas, pela vida que tivemos e que ainda teremos! Aos amigos-companheiros de IFRJ e de IECL, pela luta, pelo aprendizado que me oferecem, pelo cotidiano que tornam maravilhoso e cheio de esperança. Pela liberdade e democracia que lutam por construir nos espaços mais autoritários e mesquinhos. Às alunas e aos alunos, em especial do IFRJ, parte inseparável deste trabalho e da minha vida. A quem, completando sua jornada no ensino médio, renova em mim a alegria do “ser professor”. Àquelas e àqueles que, não aceitando as variadas formas de opressão, machismo, homofobia etc., renovam continuamente nossas esperanças em ver um mundo melhor nascendo. Àquelas e àqueles que bem compreenderam as melhores lições que a História pode oferecer: a desnaturalização do que parece ser eterno e a problematização do senso-comum. Obrigado por me fazerem descobrir, nos últimos anos, que todo o trabalho só faz sentido se for por vocês e para vocês. À Quézia. Porque este doutorado é seu também. Porque cada alegria cotidiana minha tem uma parte sua envolvida. Porque não apenas a vida é muito melhor com 5 você, mas porque você deu um novo sentido à minha própria vida. Pelo amor que sentimos um pelo outro. Pelo companheirismo que parece não ter fim. Por todas as suas risadas e todos os seus sorrisos que suavizam até os momentos ásperos da vida. Por todas as descobertas que fizemos juntos e que continuaremos a fazer. Pela vida que construímos juntos. Pela família que formamos e pela que ainda formaremos. Por ser o motivo de eu ter chegado até aqui. Por ser tão especial na minha vida que me faz lamentar muitíssimo não conseguir escrever nada mais especial que isso. Esta tese é dedicada a você. 6 RESUMO Este trabalho trata das formas pelas quais dirigentes do Império do Brasil, no momento inicial de sua fundação e construção da Independência, lidaram com certa experiência histórica de interpretação do tempo e ação na realidade. Em outras palavras, esta pesquisa analisa as maneiras pelas quais políticos do Primeiro Reinado abordavam temáticas do passado e do presente, tanto do Brasil e da América quanto da Europa, para a construção de uma narrativa histórica da História das Civilizações que inserisse o Brasil na mesma lógica das “nações civilizadas”, contribuindo para a construção de uma identidade nacional que era, ao mesmo tempo, a construção ideológica de um sentido histórico para os grupos dominantes do Império do Brasil. Palavras-chave: Experiência Histórica. Primeiro Reinado. História da Historiografia. Política. 7 ABSTRACT This paper deals with the ways in which leaders of the Empire of Brazil , at the time of its foundation , have dealt with some historical experience of interpretation of time and action in reality. In other words , this research examines the ways in which politicians of the First Reign addressed themes of past and present , both Brazil and America and Europe , for the construction of a narrative history of the History of Civilizations that inserisse Brazil in the same logic of " civilized nations " , contributing to the construction of a national identity that was at the same time , the ideological construction of a historical sense to the dominant groups of the Empire of Brazil Keywords: Historical Experience. First Reign. History of Historiography. Politics. 8 Sumário Introdução: I) Delimitação do tema II) O tema e suas origens III) Enquadramento da abordagem: uma reflexão de cunho teórico IV) Fontes e método: 10 10 11 15 24 Parte I: História e Civilização na construção do Estado Independente 29 Capítulo 1: História e Historiadores no Primeiro Reinado 1.1) Autores e presenças 1.2) A História para uso no presente 30 32 59 Capítulo 2: Bases do discurso histórico no momento da Independência 2.1) Modernidade conceitual: história e nação em tempos de crise 2.2) O Reverbero e a história como história da liberdade. 2.3) O Brasil como trajetória portuguesa na América. 2.4) O Brasil como unidade autônoma. 71 72 86 102 114 Capítulo 3: Das possibilidades da civilização na América 3.1) Modernidade política: construção civilizatória sobre colonizados 3.2) De volta ao Reverbero: A América à frente das transformações do tempo. 3.3) Os “bens da liberdade sem as comoções da democracia e sem as violências da arbitrariedade”. 121 122 127 Parte II: Referências em disputa no Império do Brasil 157 Capítulo 4: Comprimindo interpretações ao redor da Independência 4.1) Incorporando oficialmente a narrativa da Independência: 4.2) O “novo tempo” contra o “velho tempo” 4.3) As heranças do tempo antigo na nova nação 4.4) Os marcos da nação brasileira: 158 158 177 190 201 Capítulo 5: Olhos na Europa: a lógica da civilização 5.1) Antigos e modernos entre as luzes do século e a Turquia 5.2) Inglaterra, França e os exemplos a seguir 218 218 243 Capítulo 6: Pés na América: a outra civilização 6.1) Três momentos da modernidade escravista (séculos XVI-XIX): 6.2) O chão escravista da Constituinte: 6.3) A peculiaridade da civilização brasileira 260 261 270 294 135 Considerações finais 316 Referências Bibliográficas 324 9 Introdução: I) Delimitação do tema: Este trabalho tem como objetivo geral analisar as formas pelas quais atores políticos do momento da Independência e do Primeiro Reinado lidavam com a experiência histórica em seu cotidiano parlamentar. Para tanto, as fontes serão especialmente o Reverbero Constitucional Fluminense, para os anos 1821-1822, os anais da Assembleia Constituinte de 1823 e os da Câmara dos Deputados e do Senado para o período 1826-1830. A análise da experiência histórica levará em consideração as formas pelas quais alguns dos principais dirigentes da política parlamentar imperial naqueles anos articulavam eventos da história e da contemporaneidade na execução de seus projetos e na exposição de seus discursos, buscando traçar uma trajetória que associasse certos eventos à ideia de “civilização” e outros à de “barbárie”. Em outras palavras, serão considerados os modos pelos quais passado e presente eram entendidos e trazidos à discussão parlamentar como formas de se construir interpretativamente a civilização no Brasil e evitar-se a barbárie como destino inevitável para o Império. Os usos da experiência temporal nas discussões foram analisados a partir dos exemplos levantados e conectados aos eventos em debate. Foram primordialmente buscados os exemplos que lidaram com as trajetórias históricas e com os acontecimentos coevos da Europa e da América, posto que compartilhei do pressuposto que a construção de determinada experiência nacional no Império do Brasil esteve umbilicalmente ligada à forma pela qual dirigentes imperiais inseriam o país na trajetória das civilizações, das quais a Europa fornecia os melhores elementos. A base conceitual deste trabalho inspira-se fundamentalmente nas reflexões de Antônio Gramsci, as quais já possibilitaram profícuas análises para diversos aspectos do século XIX no Brasil 1, bem como nas de Jörn Rüsen, conforme ficará mais claro à 1 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial: a formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996; SALLES, Ricardo. Gramsci para historiadores. In: História da historiografia. Número 10, Ouro Preto, p. 211-218, dez-2012; MENDONÇA, Sônia Regina de. Os intelectuais na historiografia brasileira. Comunicação apresentada no IV Simpósio Nacional Estado e Poder: Intelectuais. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2007; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os simples comissários”: negociantes e política no Brasil Império. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2002; MARINHO, Pedro . O centauro imperial e o partido dos engenheiros: A contribuição das concepções gramscianas para a noção de Estado ampliado no Brasil Império. In: MENDONÇA, Sonia Regina. (Org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EDUFF/FAPERJ, 2006, p. 55-70; SARAIVA, Luiz Fernando & PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. 10 frente. No fundo, o exercício pensará como tais experiências históricas podem fazer parte de uma “história da historiografia integral” do oitocentos brasileiro, ainda por ser escrita. II) O tema e suas origens: Ilmar Rohloff de Mattos, em sua clássica obra sobre a formação do Estado Imperial, argumenta que, no momento em que a “moeda colonial começa a completar uma recunhagem”, simultaneamente à ascensão de Pedro II ao trono, “o Reino cede lugar às Nações Civilizadas, particularmente as que foram o cenário da „dupla revolução.‟” 2 Com isso, Mattos explicita o processo de reordenamento das relações políticas e econômicas entre o Império do Brasil e as nações européias, notadamente Inglaterra e França, num momento de rearticulação da economia mundial sob expansão capitalista. Nessa expansão, o Império do Brasil ocuparia um espaço relevante, integrando-se ao mercado mundial a partir de certo domínio e virtual monopólio da produção cafeeira, mas também como espaço privilegiado para a introdução de capitais, especialmente ingleses, a fortalecer suas relações sociais fundamentais nos quadros da chamada “Segunda Escravidão”3. Na análise de Ilmar Mattos, esse reordenamento a conectar Brasil e “nações civilizadas” – conexão, ressalte-se, não apenas política e econômica, mas também, e essencialmente, ideológica –, afastando o “reino” – Portugal – como referência na integração à Europa, constitui a trama de interesses entre grupos dominantes da América e do Velho Mundo, essencial ao fortalecimento do Estado Imperial (mais ainda: da Coroa) e à construção da direção Saquarema. No delineamento dessas relações entre América e Europa, um jogo de inversões e hipérboles teria papel central na definição da posição do Império no conjunto da Civilização, ora aproximando-o em nome das similitudes (seja por uma auto-visão liberal, constitucional ou pela herança Compreender o Império: Usos de Gramsci no Brasil no século XIX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. 2 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 92. Para a definição de “moeda colonial” em suas relações com o monopólio, cf. o mesmo livro, p. 30-45. 3 SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: MUAZE, Mariana & SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015; TOMICH, Dale. Pelo Prisma da Escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011; MARQUESE, Rafael & SALLES, Ricardo (org.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil, Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 11 lusitana na formação nacional), ora afastando-o em defesa de suas particularidades (como a permanência da escravidão). O tecimento das relações ideológicas entre Brasil e Europa, cujo auge Mattos identifica no momento da Maioridade, foi parte indissociável da própria construção do Império independente desde o rompimento com Portugal. A construção de interpretações sobre o desenvolvimento da História Universal, nas quais o Brasil aparecia encaixado em diferentes posições, significava delinear os próprios caminhos possíveis ao Império que se buscava construir; aos rumos desejados a percorrer, simultaneamente àqueles de que se tentava afastar. Ao ineditismo do movimento faziase necessária uma memória de que certos eventos passados sustentavam a trama, de que outros espaços já haviam transgredido aquelas sendas com segurança, e que o desvio da rota, no estilo da França revolucionária, ainda que possível, como atestava a História recente, poderia ser evitado caso se tivesse o necessário exemplo à mão, como uma nau que desvia das rochas em seus trajetos pelo mar. O produto dessa conexão teve resultado peculiar. No seio das disputas por referências nas primeiras décadas de existência do Império do Brasil, os dirigentes imperiais viram-se frente a uma articulação que produziu uma singularidade. Nas palavras de Ilmar Mattos, que inspiraram o título deste trabalho, fundadores e consolidadores do Império do Brasil tinham os olhos na Europa e os pés na América (...). Os olhos na Europa porque tinham como ideal erigir um Império soberano, à semelhança dos Estados nacionais europeus. (...) Os pés na América porque ameaçados pela „nova metrópole‟. A cada investida da polícia britânica, no sentido de uma ação geral e comum para a extinção do tráfico negreiro intercontinental, tornava-se necessário marcar a singularidade deste Reino americano, enfatizando que „a África civiliza‟ 4. Esta pesquisa teve como principal objetivo analisar formas pelas quais alguns sujeitos centrais da construção política do Império do Brasil, em seu alvorecer, produziram narrativas e interpretações do tempo, dos eventos históricos e do sentido das transformações do mundo que os cercava, a partir da dupla relação entre “olhos na Europa” e “pés na América”. Grosso modo, compreendo a centralidade desses agentes a partir de suas posições em alguns espaços públicos de discussão que surgiam no desenho inicial e no primeiro momento de conformação do Império do Brasil, na década 4 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 139. 12 que vai do começo ao final dos anos 1820, momento de desenho do Brasil Independente. A escolha deste tema tem relação, simultaneamente, com preocupações de um historiador e de um professor de história. Primeiro, o historiador. Este, seguindo algumas considerações anteriormente trabalhadas na dissertação de mestrado5, passou a preocupar-se com as relações entre certa experiência histórica (entendendo como tal a forma de se relacionar tanto com eventos do passado quanto com aqueles da contemporaneidade, todos ligados a certa forma de experimentação do tempo vivido) e a defesa e execução de projetos políticos, buscando traçar uma trajetória que associasse certos eventos à ideia de “civilização” e outros à de “barbárie”. Inspirado nas reflexões de Jörn Rüsen sobre as relações entre consciência histórica e a produção de sentidos para a vida 6, e motivado pela leitura do trabalho de Valdei Araújo 7, comecei a indagar-me sobre as relações entre política e história na construção de projetos de nação para o Brasil do século XIX, analisando como certos usos do passado e do presente, isto é, como certas formas de se interpretar os tempos passado e presente, poderia contribuir para a construção de certo horizonte de expectativas para um tempo futuro.8 Como forma de analisar essa relação inicial, o espaço privilegiado escolhido foi a Assembleia Geral do Império do Brasil, composta pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. Tal escolha não foi fortuita: tratava-se de espaço central na construção de narrativas políticas naquele momento de delimitação do Estado-nação brasileiro, apresentando-se deputados e senadores como representantes da nação que, 5 ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010. 6 A obra de Jörn Rüsen, cada vez mais lida no Brasil, é vasta, compreendendo diversos aspectos da reflexão histórica sobre pesquisa, escrita, ensino etc. Cf. RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001; RÜSEN, Jörn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007; RÜSEN, Jörn. Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia. Versão espanhola não-publicada do original alemão em: K. Füssmann, H.T. Grütter and J. Rüsen, eds. (1994). Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Keulen, Weimar and Wenen: Böhlau, pp. 3-26; RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história (organizadores: Maria Auxiliadora Schmidt et al). Curitiba: Ed. UFPR, 2011; RÜSEN, Jörn. Studies in metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Counsil, 1993; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado – Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007; RÜSEN, Jörn. A História entre a modernidade e a pós-modernidade. História: Questões e Debates. Curitiba, v. 14, n. 26/27, p. 80-101, 1997. 7 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. 8 Aqui fica clara a influência também da obra de Koselleck para a construção da temática de pesquisa Cf. KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006. 13 simultaneamente, buscavam definir com precisão. Trata-se de espaço central de embates entre projetos de sociedade que construíram um caminho para o país. Trata-se, por fim, de lócus indispensável para análise das relações entre história e política, já que seus componentes eram compostos, em grande parte, por sujeitos que, na lógica do poder imperial, cumpriam rituais e trajetórias de ascensão que lhes colocavam em posição de definição para os rumos do Império. Não obstante, outros espaços também foram pontualmente contemplados nesta análise, especialmente o já mencionado Reverbero Constitucional Fluminense. As razões para tal escolha serão apontadas no devido tempo. Nesse sentido, os usos do passado e do presente, bem como as expectativas de futuro construídas nas discussões foram analisados a partir dos exemplos levantados e conectados aos eventos em debate. Foram primordialmente buscados os exemplos que lidassem com as trajetórias históricas e com os acontecimentos coevos da Europa e da América, posto que compartilho do pressuposto que a construção de determinada experiência nacional no Império do Brasil esteve umbilicalmente ligada à forma pela qual dirigentes imperiais inseriam o país na trajetória das civilizações, das quais a Europa fornecia os melhores elementos. Agora, o professor. Nessa segunda dimensão, inseparável da primeira, a plena consideração das palavras de Francisco Falcon, de que “história e poder são como irmãos siameses”, a cada dia me afirma mais e mais a necessidade de se ampliar a perspectiva sobre o “discurso histórico” para além das muralhas da academia ou, mesmo, da história escolar9. Considerando-se o sucesso que best sellers sobre o passado têm alcançado nos últimos anos, inclusive moldando percepções públicas sobre a história, seja do Brasil ou não, estudos sobre produções de interpretações do tempo histórico fora dos moldes rígidamente “científicos” são não apenas uma necessidade para os séculos passados, mas para hoje 10 . Superados os questionamentos sobre a “História e poder são como irmãos siameses – separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível. A história da humanidade deve neste caso ter presentes estas duas maneiras de ver a questão das relações entre a história e o poder: há um olhar que busca detectar e analisar as muitas formas que revelam a presença do poder na própria história; mas existe um outro olhar que indaga dos inúmeros mecanismos e artimanhas através dos quais o poder se manifesta na produção do conhecimento histórico. Na verdade, porém, a historiografia costuma ser (...) quase sempre imprecisa ou cega quanto ao segundo.” Cf. FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo (orgs). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 5ª edição. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 10 O fato de a maioria desses Best Sellers ter sido escrita por não-historiadores profissionais não é, em si, um problema significante, considerando-se dois aspectos principais: 1) diversos não-historiadores profissionais produziram obras de imenso valor para a história “científica”; 2) alguns historiadores 9 14 profissionalização da área e sobre o método que confere ao discurso científico do historiador um caráter “superior” em relação ao senso comum11, resta analisar as formas pelas quais o discurso histórico, ontem e hoje, é capaz de alcançar grandes ou pequenos públicos, ou interferir no encaminhamento de propostas e projetos políticos 12 . Este trabalho foca no passado sem querer deixar de pensar no presente13. Entre o historiador pós-mestrado, preocupado com as relações entre consciência histórica, formação da identidade nacional e política no Brasil Império, e o professor que vê diariamente discursos históricos produzidos fora da academia ganharem volume na consolidação de visões sobre o passado, eis que este trabalho ganha sentido. Tal confluência implicou pensar nas formas pelas quais a história foi produzida no século XIX fora dos moldes disciplinares que o próprio século XIX desenhava para a área. III) Enquadramento da abordagem: uma reflexão de cunho teórico. Já há algum tempo os estudos historiográficos têm se expandido para além dos marcos clássicos que os definiram no caso particular da História do Brasil. A expansão cronológica e autoral nos estudos sobre escrita da História no século XIX, em especial, possibilitou perceber formas de interpretação e consciência histórica para além dos limites definidos pelo IHGB e por Varnhagen, indo além daquelas obras consideradas “textos de fundação”, na expressão de Manoel Salgado Guimarães. Com isso, esses trabalhos têm permitido ampliar as possibilidades de análise das transformações conceituais sofridas pela escrita da História ao longo do oitocentos14. O próprio Manoel profissionais, amparando-se nos títulos que a institucionalização do cargo lhes confere, não se furtam a opinar sobre aspectos fora de sua alçada sem qualquer preocupação metodológica com os resultados. 11 Se não superada conceitualmente, certamente na prática ela se encontra majoritariamente resolvida. 12 Para citar apenas algumas das propostas, dos debates e projetos recentes nos quais o conjunto dos historiadores profissionais tem tido importância menor do que, por seu ofício, deveria ter: os trabalhos das comissões da verdade, os debates sobre escravidão e políticas de reparação (como cotas), as intermináveis discussões sobre relações entre direita e esquerda no espectro político brasileiro contemporâneo e, finalmente, os também infindáveis debates sobre a natureza do capitalismo histórico, estes francamente monopolizados por economistas nos espaços públicos de discussão no país. 13 Nesse contexto ganha imensa importância o crescimento entre nós da chamada “história pública”, bem como de trabalhos acadêmicos na área de ensino de história. Embora ainda não bastante explorada, a discussão sobre espaços muitas vezes ignorados de produção de sentidos históricos, num espectro que vai de clássicos como filmes, novelas, literatura etc. até elementos mais contemporâneos, como games, além, claro, da temática do patrimônio, não apenas amplia o significado social da existência do historiador profissional, como ainda permite uma melhor percepção sobre como ideias sobre o passado interferem no presente para além de uma linearidade que enxerga na academia o motor e no binômio escola-livro didático seus meros redutores/reprodutores. Sobre a questão, cf. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de & ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (orgs.) Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, especialmente os dois primeiros capítulos. 14 A expressão “textos de fundação” refere-se, especificamente, a textos clássicos, produzidos ao longo do século XIX, que buscaram dar formas à escrita de uma história nacional. Cf. GUIMARÃES, Manoel Luiz 15 Salgado Guimarães explorou essa possibilidade ao analisar as páginas do jornal O Patriota, em busca dos significados da palavra “história” ali presentes15. Nos últimos tempos, o conjunto de trabalhos que ampliam o universo historiográfico do século XIX só aumentou. Esta pesquisa propõe uma contribuição a esse conjunto de estudos, analisando as relações entre experiência histórica – ou, mais amplamente, entre certa experimentação do tempo, incluindo o passado, presente e futuro – e política no momento de delineamento do “Brasil Independente”; grosso modo, a conjuntura que resultou no rompimento político com Portugal e o Primeiro Reinado. O espaço privilegiado de análise é aquele no interior do que poderíamos considerar o “Estado Imperial”, ainda em processo de construção no período que analisamos. A delimitação de nosso espaço de análise implica uma consideração. Embora não consideremos “Estado” simplesmente o espaço institucional de sua atuação, mas, também, os elementos de construção ideológica que lhe servem de sustentação e lhe conferem substância 16 , buscando, assim, seguindo outros autores, evitar a oposição entre “estado-coisa” (como simples instrumento passível de manipulação por algum indivíduo ou classe) e “estado-sujeito” (como um ente cuja vontade, própria, se justifica e realiza por sobre a sociedade) – isto é, evitando uma perspectiva que destaque o Estado do conjunto de relações sociais que lhe dão sentido; que interprete o Estado como bloco monolítico sem fissuras ou contradições; que veja o Estado apenas pelo viés negativo de instância coercitiva, em oposição ao qual estaria a sociedade civil 17 -, não obstante tudo isso, este trabalho não abordará o “Estado Imperial” em toda sua Salgado. Apresentação. In: ______ (org.) Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 12. Penso que não seria errôneo incluir outros textos nesse conjunto, como, por exemplo, a obra de Varnhagen. 15 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da História no Brasil oitocentista. In: ______ (org.). Estudos sobre a escrita da História. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 68-85. 16 É a noção de “Estado ampliado” de Gramsci. Para uma discussão a respeito, cf. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999; PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. 6ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002. 17 Para algumas críticas a essa perspectiva do Estado como ente exterior e/ou todo poderoso, cf. CORRÊA, Darcísio. Marxismo, Direito e Cidadania. In: A construção da cidadania: reflexões históricopolíticas. 3ª edição. Ijuí, RS: Editora Unijuí, 2002, p. 126-137; MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado, violência simbólica e metaforização da cidadania. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF. vol. 1. 1996, p. 94-125; PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. As Classes Sociais na Construção do Império do Brasil. In: MENDONÇA, Sônia Regina de (org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: EdUFF/FAPERJ, 2006; MENDONÇA, Sônia Regina de. Os intelectuais na historiografia brasileira. Comunicação apresentada no IV Simpósio Nacional Estado e Poder: Intelectuais. São Luís: Universidade Estadual do Maranhão, 2007. 16 plenitude. Sem querer adentrar a discussão sobre a densidade da “sociedade civil” no Império do Brasil, especialmente em sua década inicial, consideraremos que o espaço do “Estado restrito” – em nosso caso, especialmente o espaço das discussões parlamentares já mencionado – é central no esforço institucional de produção daquela “crença mobilizadora” que, segundo Bourdieu, define com precisão um aspecto essencial do “Estado”. 18 Da mesma maneira, consideraremos que o enfoque sobre o “Estado restrito” não anula a ampliação das discussões ali produzidas, sendo necessário, em alguns momentos, articular o discurso que vem de fora desse espaço restrito, produzido em outras instâncias da discussão política. Aqui entram, por exemplo, os periódicos que dão sustentação ideológica às interpretações “restritas”. Daí a importância de se focarem as “discussões miúdas”, os embates cotidianos travados no interior dos espaços pertencentes à dimensão mais ampla do “Estado imperial”. Nesses espaços produziram-se políticas e ações para exercício do poder sobre o território que se pretendia nacional – e imperial –, sobre seus habitantes e sobre as relações sociais que, não obstante tenham origens fora do eixo de atuação mais direto desse Estado, eram por ele atravessadas.19 Essas políticas e ações eram embasadas numa experiência histórica que produziu concepções de mundo mais amplas, difundindo interpretações sobre o Brasil na medida em que construíam ideologicamente o próprio sentido de “ser brasileiro”. A noção de “experiência histórica” se baseia fortemente nas reflexões de Jörn Rüsen, para quem o ser humano é quase concebido como um “animal histórico” que busca na história um significado para suas ações no mundo. Segundo o autor alemão, o homem necessita estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta como mudança de si mesmo e de seu mundo, ao longo do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ou seja, 18 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 175. A discussão sobre a densidade da “sociedade civil” no Império do Brasil é longa e tem produzido boas discussões, mesmo entre aqueles que não utilizam o arcabouço gramsciano. Dentre estes últimos, predominam as análises que consideram “sociedade civil” dentro da lógica da “esfera pública” a partir de Habermas. Para um exemplo, cf. MOREL, Marco & BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 21-22. 19 Talvez o maior exemplo desta consideração seja o caso da escravidão: longe de as relações escravistas de dominação serem oriundas exclusivamente o espaço estatal, dependiam deste na medida em que certas ferramentas de controle – inclusive legais – e o contexto mais amplo de sua reprodução – via comércio negreiro – estavam diretamente ligadas à forma de atuação desse Estado (ainda que dele nem sempre dependesse totalmente, como no caso do próprio comércio negreiro, que se fundamentava internacionalmente). 17 assenhorear-se dele de tal forma que possa realizar as intenções do seu agir20. Para Rüsen, os seres humanos buscam apreender o mundo em que vivem, a partir das necessidades e das angústias de seu presente, por meio de uma determinada “consciência histórica”, entendida por ele como “a realidade a partir da qual se pode entender o que a história é, como ciência, e por que ela é necessária” 21. É, para o autor, o “trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo”22. A consciência histórica é a forma pela qual a experiência dos humanos com o tempo torna-se possível e desejável, e é a partir dessa forma básica que outras formas de organização – científicas – são possíveis23. Considerarei com maior destaque, porém, neste trabalho, a expressão “experiência histórica”, por sua maior amplitude, por sair um pouco da racionalidade mais estrita na produção das visões históricas e por levar em conta, também, elementos inconscientes na produção das narrativas. Não é objetivo do trabalho esmiuçar quando começa e quando termina a consciência na produção (se é que tal esforço seria possível), mas apenas atentar para as diversas camadas que se sobrepõem na construção de narrativas e perspectivas sobre o passado, o presente e o futuro. O foco serão as interpretações sobre essa experiência do tempo, desenvolvidas de forma “não-elaborada”- isto é, sem pretensão científica a princípio ou sem rigor intelectual mais organizado. Essas interpretações dos dirigentes imperiais, construídas, como se verá, principalmente sobre aspectos não-científicos da história, buscavam não a análise ou a compreensão do passado por si só, mas a intervenção no presente. Daí que o foco nas discussões “não-elaboradas”, mas produzidas de modo fragmentado, possam RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica... op. cit., p. 58. 21 Idem, p. 56. Esse entendimento distingue a abordagem de Rüsen de outros, para quem a “consciência histórica”, em vez de ser um aspecto antropológico da existência humana, configura-se numa forma específica de elaboração dessa experiência, referente a um momento específico da trajetória história da humanidade. Tais seriam os casos de Gadamer e Ariés. Cf. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. (organização de Pierre Fruchon). 3ª edição. Rio de Janeiro: editora FGV, 2006; ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. Para uma comparação da perspectiva de Rüsen com a desses autores, bem como às perspectivas de Agnes Heller e Raymond Aron, cf. CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão contemporânea. Rio de Janeiro: editora FGV, 2011. 22 RÜSEN, Jörn. Razão Histórica... op. cit., p. 59. 23 Rusen também articula essa “consciência histórica” às noções de “cultura histórica” e “memória histórica”, ambos caracterizados como formas de uso da história para intervenções no presente; significados da história balizando atitudes, compreensões e interpretações do presente. Cf. RÜSEN, Jörn. Qué es la cultura histórica? Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia... op. cit., p. 3-26. 20 18 nos dar melhores pistas sobre como se interpretava o tempo na disputa pela direção àquele momento de formação do Império. A abordagem de Rüsen pode ser complementada com as reflexões de Antonio Gramsci, que oferece uma poderosa abordagem das formas de construção de concepções de mundo hegemônicas e contra-hegemônicas. Tal abordagem possibilita um exercício de compreensão da experiência do tempo e da história exatamente como partes de concepções de mundo mais amplas – ideológicas. Em outras palavras, Gramsci possibilita a saída do campo da história da historiografia como espaço despregado da realidade ou restrito ao debate intelectual acerca das ideias em voga para uma história da historiografia que seja parte de uma totalidade conceitual integrando o mundo concreto à interpretação sobre ele. Parte, em suma, de um universo conceitual mais amplo. Não é outro o sentido das palavras que abrem o parágrafo 12 do caderno 11 da obra principal do italiano: É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças (...) que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”. 24 Para Gramsci, a ideia de que todos os homens são filósofos significa, primordialmente, que todos compartilham de uma filosofia, entendida enquanto “concepção de mundo” e devendo ser concebida em sua historicidade, sob o risco de incorrer-se numa metafísica especulativa 25 . Serem todos os homens filósofos não implica, obviamente, afirmar que todos compartilhem igualmente dessa filosofia, daí sendo preciso definir os limites e as formas dessa participação – que invariavelmente estão ligadas à forma como esses sujeitos inserem-se no mundo das relações sociais. Partir dessa concepção de filosofia implica, em Gramsci, considerá-la não como um “sistema individual ou de tendência”, mas como “o conjunto de todas as filosofias 24 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.93. 25 Idem, p. 120. 19 individuais e de tendência, mais as opiniões científicas, mais a religião, mais o senso comum”26. Em suma, considerar que “a filosofia de uma época histórica, portanto, não é senão a „história‟ desta mesma época” 27 , e não o desenvolvimento linear das idéias soltas de intelectuais pontuais. Gramsci, em sua crítica do conceito de história de Benedetto Croce, questiona se a mesma não teria uma origem “puramente livresca e erudita”. E afirma que “somente a identificação entre história e política evita que a história tenha esta característica.” A continuação dessa citação, quando utilizada para a reflexão sobre os modos de escrita da história no Brasil oitocentista (como para os modos pelos quais muitas narrativas históricas são produzidas ainda hoje), oferece uma abordagem mais ampla para a consideração das relações entre História e Política: Se o político é um historiador (não apenas no sentido de que faz a história, mas também no de que, atuando no presente, interpreta o passado), o historiador é um político; e, nesse sentido (que, de resto, aparece também em Croce), a história é sempre história contemporânea, isto é, política. Croce, contudo, não pode chegar a esta conclusão necessária precisamente porque ela conduz à identificação entre história e política e, consequentemente, entre ideologia e filosofia.28 A relação íntima entre política e história, posto seja temática bastante discutida e debatida na historiografia, tradicionalmente tem sido merecedora de uma perspectiva mais forte da história para a política do que o contrário – isto é, gerado mais análises sobre como a escrita da história sofre influências das questões políticas do que sobre como agentes ligados diretamente a questões políticas constroem suas narrativas históricas. Além disso, quando o segundo caminho é abordado, normalmente o é a partir de obras pontuais ou paradigmáticas, escritas com o intuito específico de produzir uma narrativa histórica, como exposto anteriormente. É preciso considerar-se, porém, que da mesma forma que a consciência histórica de uma época não é a consciência de intelectuais pontuais, tampouco a experiência histórica se restringe a uma reflexão escolástica de letrados em discussão com seus pares. A experiência da história e do tempo só podem ser parte de uma totalidade, de 26 Idem, p. 128. Idem, p. 326. Cf. também GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 18-23. 28 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume 1... op. cit., p. 312. Para Croce, “As exigências práticas que suportam todo julgamento histórico dá a toda história o caráter de „história contemporânea‟, porque, mesmo que os eventos assim recontados possam parecer remotos no tempo, a história na verdade refere-se a necessidades presentes e situações presentes, onde aqueles acontecimentos vibram.” In B. Croce, History as the story of liberty, tradução inglesa de 1941, p. 19, apud CARR, Edward Hallet. que é história? São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 54. 27 20 uma “história integral” em que realidade e compreensão da realidade se complementem, obrigando seus intérpretes, a todo momento, a reforçarem os consensos que fortaleçam ou enfraqueçam determinadas concepções de mundo. E aqui cabe uma reflexão, pelo viés gramsciano, a respeito do trabalho de J. G. Pocock, autor de grande influência em alguns trabalhos que, nos últimos anos, têm ampliado enormemente os estudos sobre história da historiografia no Brasil – uma crítica que nos coloca em diálogo com os estudos inspirados por aquilo que ficou conhecido como “escola contextualista”, ou “escola de Cambridge” 29. Em “O Momento Maquiaveliano” 30 , por exemplo, Pocock buscou a influência de certa tradição republicana (que envolvia as formas de se conceber a participação do homem no governo de sua cidade) sobre a tradição política inglesa nos anos até a Independência dos EUA. Para Pocock, o problema da República em confronto com a sua própria finitude, devendo permanecer eternamente estável num mundo marcado pela instabilidade, levou ao desenvolvimento de uma linguagem em que os termos “virtude”, “fortuna” e “corrupção” marcavam essas lutas entre permanência e transitoriedade, num turbilhão que arrastou não somente os “grandes” – dos quais Maquiavel, até pelo que o título do livro indica, seria a grande estrela –, mas também os “menores” atores políticos a tentar interpretar e resolver esse problema. No decorrer de sua análise, Pocock percebe que, pouco a pouco, o “momento maquiaveliano” (como aquele período em que tanto o problema da permanência republicana quanto a questão da participação dos homens no governo surgiram) vai ganhando, em si, uma continuidade histórica que marca, também, a trajetória da passagem da consciência européia cristã para uma consciência histórica secular moderna. Em outras palavras, Pocock não apenas contribui para a análise das formas de se experimentar o tempo e a História em termos metodológicos (inserindo atores outros e ampliando o escopo de fontes como forma de se apreender uma linguagem de maneira mais ampla), mas nos leva a repensar a própria periodização que Koselleck e Hartog, outras imensas influências nos estudos de História Para a importância metodológica e historiográfica dos chamados “contextualistas”, cf. POCOCK, J. G. A. Quentin Skinner: a história da política e a política da história. Topoi, v. 13, n. 25, jul/dez 2012, p. 193206; RICHTER, Melvin. Reconstructing the history of political languages: Pocock, Skinner, and the geschichtliche grundbegriffe. History and Theory, vol. 29, n. 1, FEB./1990, p. 38-70. 30 POCOCK, J. G .A., The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, Princeton (NJ), Princeton UP, 1975. 29 21 da Historiografia Brasileira31, estabelecem como de formação da consciência histórica moderna. 32 Não obstante a influência, Pocock, embora estivesse interessado na forma pela qual as linguagens são apropriadas e combatidas pelos diferentes grupos para além das intelligentsias, não confere aos grupos populares o mesmo potencial de iniciativa na criação mais ampla dessas concepções de mundo, como faz Gramsci. 33 Além disso, o autor, inserindo-se no grupo dos historiadores orientados pelas discussões acerca da linguagem, apresenta-se como distinto do “marxista inteligente” (os “vulgares” são desconsiderados) por minimizar a preponderância da relação linguagem-sociedade no estudo das linguagens políticas, já que considera estas como um fenômeno histórico de relativa autonomia.34 Nesse sentido, a abordagem gramsciana, por ampliar ainda mais o escopo de possibilidades, me parece mais rica para a interpretação do período imperial. Nesse momento, ampliar ainda mais a abordagem normalmente feita sobre o significado da palavra “historiografia” – palavra, na verdade, já com vários sentidos possíveis35 – pode nos ajudar a incorporar as considerações de Gramsci às de Rüsen no 31 Analisaremos ambos os autores mais à frente neste trabalho. E aqui entramos num problema possível aos estudos sobre história da historiografia oitocentista: o risco da leitura muito direta dos autores estrangeiros. Isto é, transferindo automaticamente seus contextos e suas questões para outras realidades. As formas anteriores de experiência do tempo e da História não devem ser generalizadas todas como “antigas”, posto que tal classificação pode levar ao erro de se considerar todo o seguinte ou como “moderno” – portando dentro de uma lógica progressista que universaliza um desenvolvimento particular – ou como “permanência do antigo”, como se o velho mundo se arrastasse e insistisse em oprimir um presente que ruma à liberdade e, se a não alcançou ainda, tratarse-ia apenas de uma questão de tempo. No caso brasileiro, essa perspectiva pode ser ainda mais problemática. Busca-se uma linearidade para essa modernidade e procura-se a posição do mundo lusobrasileiro nela, ora percebendo-o como atrasado, ora vendo-o em consonância com as transformações européias. Não se cogita muito buscar o que o mundo luso-brasileiro – e, posteriormente, o Império do Brasil – teria de próprio. O risco, aqui, é cair, no caso dos estudos sobre história da historiografia, no mesmo erro de estudos sobre economia e sociedade, que viam na permanência do escravismo, ao longo do Império do Brasil, um sintoma de atraso, e não uma forma própria de inserção na modernidade capitalista do sistema atlântico. Essa discussão tem sido empreendida, na historiografia sobre as sociedades escravistas oitocentistas em geral, e sobre a brasileira em particular, principalmente por TOMICH, Dale. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy. Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2004; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial de café no século XIX. In: GRINBERG, Keila. & SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Volume II – 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 33 Cf. POCOCK, J. G. A Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EdUSP, 2003, p. 68. 34 Cf. POCOCK, J. G..Texts as events: reflections on the history of political thought. In: ______Political, thought and history: essays on theory and method. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 106122, em especial p. 110-111. 35 Para alguns desses sentidos ao longo da História e hoje, cf. MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, introdução; CAIRE-JABINET, Marie-Paule. Introdução à Historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 11-16; SILVA, Rogério Forastieri da. História da Historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2001, capítulo 1; LOPES, Marcos Antônio. 32 22 estudo da experiência histórica oitocentista. Em Rüsen, o campo da consciência histórica é definido por um sistema de operações mentais a que o autor chama simplesmente “narrativa histórica”, que pode ser de vários tipos – e não apenas da forma como entendemos majoritariamente “historiografia” modernamente, isto é, narrativa relacionada a uma “história-ciência”36. Abordar a questão da historiografia no Império do Brasil, bem como analisar as formas de experiência histórica e do tempo, pode valer-se muito das relações entre Gramsci e Rüsen para enriquecer-se. Para tal, é crucial ampliar nossa ideia sobre o que seriam “narrativas históricas”37 no Brasil oitocentista, flexibilizando a noção de discurso historiográfico – aqui, não primordialmente preocupado com método ou busca pela veracidade, mas, sim, interessado em difundir uma determinada interpretação histórica como parte de uma concepção de mundo, incorporando, portanto, tanto outras formas de escrita e circulação quanto outros atores do processo político, dos de maior aos de menor expressão. Talvez pudéssemos dar a essa perspectiva o nome de “historiografia integral”, inspirando-se na ideia de “história integral” gramsciana, em nome de uma amplitude nas formas de se analisar as experiências históricas oitocentistas. Poderíamos tentar ir além das produções pontuais, ou elaboradas/publicadas, de alguns intelectuais selecionados, para incluir, também, outros tipos de fontes e produções, como a dos periódicos e dos discursos fragmentados surgidos dos acalorados debates políticos diários nas assembléias. Isso não bastaria, evidentemente, posto que o principal aspecto dessa perspectiva – a inclusão de concepções historiográficas contrahegemônicas – não estaria plenamente abarcada. Em outras palavras, a expansão inicial da noção de historiografia não resolve o problema das concepções históricas das classes subalternas. Aceitando-se a premissa gramsciana de que “a história dos grupos sociais subalternos é necessariamente desagregada e episódica” 38 , podemos nos perguntar: como buscar uma história da historiografia que inclua os discursos não-hegemônicos, subalternizados, na análise das experiências da História e do tempo do oitocentos no Idades da História: figuras e ideias do pensamento histórico moderno. Porto Alegre, RS: EDPUCRS, 2009, p. 15-39; 36 RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de história... op. cit., p. 95. 37 Para as diversas formas de narrativa histórica e constituição de sentido analisadas por Rüsen, cf. RÜSEN, Jörn. História Viva – Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007, capítulo 1. Versão menor da discussão encontra-se em RÜSEN, Jörn. Studies in metahistory. Pretoria: Human Sciences Research Counsil, 1993, Chapter 1: historical narration: foundation, types, reason, p. 3-14. 38 GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Vol. 5: O Risorgimento. Notas sobre a História da Itália. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 135. 23 Império do Brasil? Por hora, tal questionamento fica sem resposta. Não é objetivo desta tese avançar nessa direção. Apenas consideramos o ponto para reforçar uma de nossas questões centrais: a ansiedade da busca pelo “discurso moderno da historiografia”, pela “História-Ciência”, ofusca a busca pelas formas como outras narrativas históricas iam sendo construídas no calor da prática, no fulgor das experiências de luta e conflito. E que moldaram e moldam, até hoje, nossa totalidade de experimentação do passado. Esta tese, repetindo, não tem a pretensão de oferecer essa “historiografia integral”. Ao ampliar o escopo das fontes e incorporar documentação não comumente utilizada para se pensar a experiência da história, nosso objetivo é apenas somar forças aos trabalhos que vêm, nos últimos anos, oferecendo inúmeras contribuições à ampliação das narrativas historiográficas. 39 Se a reflexão para a produção desta tese levou em consideração os elementos levantados nas páginas anteriores, não foi com intenção maior do que abrir uma discussão. Apenas futuras pesquisas poderão avaliar se tal abertura pode ou não ser produtiva. IV) Fontes e método: O principal corpus documental trabalhado nesta pesquisa, como já indicado, são os Anais da Assembleia Constituinte do Império do Brasil, referentes ao ano de 1823, e os Anais da Câmara dos Deputados e do Senado do Império do Brasil, para os anos entre 1826 e 1830. Doravante, chamarei esses conjuntos, respectivamente, de AAC, ACD e AS.40 Os Anais são compilações de discursos, projetos, discussões e decisões das respectivas Casas, organizadas e publicadas em datas diferentes e sem uma diretriz única. Os discursos da Câmara dos Deputados, por exemplo, que foram os primeiros organizados, somente começaram a ser impressos concomitantemente às discussões a partir de 1857. Até então, os discursos parlamentares eram veiculados por periódicos da época, os quais serviram de base para a posterior compilação. Os AAC foram publicados a partir da segunda metade do século XIX, enquanto os AS encontraram publicação apenas no século XX. 39 Para ficar em alguns exemplos, cf. SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010; FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015; bem como os trabalhos de João Paulo Garrido Pimenta e Valdei Araújo. 40 As demais fontes, especialmente o Reverbero, que ocupará boa parte de nossa atenção, serão discutidas ao longo dos próprios capítulos. 24 Trata-se, portanto, de um conjunto com critérios de organização pouco homogêneos. A massa de discursos produzidos perpassa os mais amplos e distintos assuntos, sem que seja possível confiar inteiramente nos índices próprios dos volumes. A busca por um tema qualquer de pesquisa exige paciência e atenção aos detalhes dos discursos produzidos, pois um determinado assunto pode surgir repentinamente no meio de um acalorado debate sem que tal surgimento estivesse antecipadamente sugerido nos índices das publicações. As sessões aparecem nos Anais no formato de atas que eram produzidas por taquígrafos, que acompanhavam as discussões, e posteriormente aprovadas nas sessões seguintes da respectiva Casa. Como já dito, essas atas encontravam publicidade anteriormente a 1857 apenas nos periódicos de época, o que já garantia que as discussões travadas ressoassem, ainda que parcialmente, pelo território do Império. Cientes da divulgação que alcançariam, os deputados e senadores não costumavam falar a esmo. Os discursos seguiam certos ritos que iam da memorização prévia de discursos e preparo de referências até a aprovação ou desaprovação de discursos redigidos nas atas. Deputados e Senadores poderiam, eventualmente, reclamar dos taquígrafos por considerar que o material produzido se não coadunava com a “verdade dos fatos” ditos pelo autor. Além disso, outros elementos devem ser levados em consideração ao se trabalhar com os Anais: as atas estão sujeitas a uma série da variáveis que torna o texto eventualmente bastante fragmentado. Algumas vezes a fala de um senador ou deputado é substituída pelo registro da interpretação do taquígrafo. Assim, ao invés de um discurso registrado, temos o resumo produzido pelo taquígrafo sobre o que foi falado. Da mesma forma, muitas vezes o taquígrafo, por não ouvir ou por qualquer outro motivo não-declarado, não registra a fala de certos deputados e senadores, argumentando terem sido proferidos “em voz baixa” ou por outra justificativa. Como o objetivo central da pesquisa é articular uma certa experiência histórica oitocentista às questões políticas, a partir dos usos e das interpretações dadas à História do Brasil e aos exemplos estrangeiros nas falas parlamentares, a fragmentação discursiva dos Anais permite que tenhamos também em fragmentos essa análise das formas de consciência histórica presentes. Por serem fragmentárias, podemos, com algum grau de certeza, conferir aos discursos históricos um caráter de verossimilhança, ou seja, considerar que os exemplos e as narrativas efetuadas, ainda que não correspondam necessária e exatamente ao que foi dito por este ou aquele parlamentar, 25 correspondem a referências sustentadas no oitocentos brasileiro, ao menos nos círculos políticos e de poder em que os parlamentares estão inseridos. Podemos definir os discursos parlamentares, portanto, como seguros suportes de questões relativas às formas de experiência histórica veiculadas nas discussões oitocentistas. Partindo-se dessa definição, a forma de tratamento das fontes foi, basicamente, destacar as referências e as narrativas usadas em seus contextos, a partir de duas preocupações centrais: 1) Buscar perceber como exemplos de outros países (europeus e americanos, em especial), outros tempos históricos (Época Colonial, Antiguidade, Idade Média, mas também o tempo presente) ou outras referências físicas ou cronológicas eram levantadas pelos parlamentares e de que forma inseriam seu próprio tempo histórico e o do Império do Brasil nessas referências; 2) Buscar perceber como narrativas sobre a trajetória histórica do Brasil eram construídas, utilizando-se desde elementos internos ao Império até elementos de fora da identidade nacional, a partir, novamente, da comparação com trajetórias históricas de outras regiões. É fundamental, na abordagem desse tipo de fontes, entender que o número de agentes políticos que se envolvem nas discussões é bastante reduzido. Embora não haja números para uma análise estatística geral, podemos afirmar, com alto grau de confiabilidade, que não mais do que um punhado de parlamentares participava mais ativamente de cada discussão, e normalmente eram os mesmos, buscando manter suas posturas e colidir em suas disputas na tentativa de avançar ou fazer retroceder projetos que pudessem ameaçar seus objetivos 41 . No caso do Senado, por exemplo, para o período discutido neste trabalho, quatro senadores respondem por 62% de todas as intervenções que envolvem a construção de exemplos históricos ou apelos à história. São eles: José Joaquim Carneiro de Campos, marquês de Caravelas 42, José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, Francisco Carneiro de Campos, irmão de José Joaquim, e José Ignácio Borges, o único dos quatro não representante da Bahia. É esse o grupo que concentra a maioria absoluta das intervenções no Senado que fazem, de alguma forma, 41 Esse tipo de análise será sempre aproximativa, dados os limites das fontes disponíveis para pesquisa da história parlamentar. Jeffrey Needell chegou à mesma interpretação para a Câmara dos Deputados em período posterior. Cf. NEEDELL, Jeffrey. Party formation and state-making: the Conservative Party and the reconstruction of the Brazilian State, 1831-1840. Hispanic American Historical Review, Durham, NC, US, V. 81, N. 2, P. 259-308, may 2001, p. 299-300. 42 Para Caravelas e Cairu, utilizarei sempre o maior título a que chegaram. Assim, embora em algumas discussões Carneiro de Campos ainda seja referenciado como “visconde” e Silva Lisboa como “barão”, manterei as denominações “marquês” e “visconde” ao longo do trabalho. Ambos alcançaram tais títulos já em 1826. 26 referência ao passado ou ao presente de exemplos estrangeiros para formulação de políticas para o Império do Brasil. As implicações dessa restrição, bem como as análises qualitativas sobre as exposições nos debates, serão discutidas ao longo da tese. *** Chegamos ao final desta longa introdução. Resta apenas indicar como o trabalho será organizado. A tese será dividida em duas partes, cada uma contendo 3 capítulos. A primeira parte, intitulada “História e Civilização na construção do Estado Independente”, tem dois objetivos principais. Em primeiro lugar, analisar as formas pelas quais o conceito de “História” e o termo “historiadores” foram entendidos pelos agentes políticos do Primeiro Reinado. Esse objetivo será tratado no Capítulo 1: História e Historiadores no Primeiro Reinado. Em segundo lugar, temos como objetivo analisar as formas pelas quais certa narrativa história – que identificamos na análise dos Anais para 1823-1830 – foi produzida antes disso, já no momento de ruptura política com Portugal. Em outras palavras, dedicaremos os capítulos 2 e 3 desta tese à análise de elementos da experiência histórica do Primeiro Reinado naquele momento que identificamos como de sua gênese: os anos de 1821 e 1822. Focaremos essa análise no Reverbero Constitucional Fluminense. As razões para tanto e o conteúdo dessa narrativa histórica serão explicitados no Capítulo 2: Bases do discurso histórico no momento da Independência e no Capítulo 3: Das possibilidades da civilização na América. Aquele, focando no delineamento do que chamaremos de “história como história da liberdade”, identificando-se com uma noção da “história da civilização”. Este, concentrando-se na maneira como a América – e, portanto, também o Brasil – podia inserir-se naquela história da civilização. A segunda parte, intitulada “Referências em disputa no Império do Brasil”, terá como eixo a articulação de elementos elaborados no biênio 1821-1822 à construção do Estado Imperial, nas discussões políticas da Constituinte, da Câmara e do Senado, a partir de 1823. Nesse sentido, nosso foco central será analisar como algumas temáticas centrais surgidas no momento da Independência – a questão da monarquia constitucional, o papel de Dom Pedro I na formação de certa memória da Independência, a questão das datas comemorativas, as influências e os exemplos que a Europa poderia fornecer ao Brasil, a posição do Brasil frente aos vizinhos americanos, e, finalmente, a questão da escravidão no processo de construção da civilização na 27 América – desdobram-se ao longo dos anos seguintes. Como ficará claro ao final deste trabalho, essas questões não se encerram no Primeiro Reinado. Pelo contrário: ganham vida longa e agregam novos elementos nas décadas seguintes, conforme poderemos vislumbrar. A análise dessa continuidade e desses novos elementos, porém, ficará para um outro trabalho. Assim, nosso Capítulo 4: Comprimindo interpretações ao redor da Independência, tratará desses temas na passagem da ruptura, em 1822, para o fim da Constituinte e início da atividade parlamentar corriqueira, a partir de 1826, enquanto os capítulos seguintes constituem duas partes de uma mesma discussão, que foca nas relações entre construção do Império e os exemplos da civilização europeia (Capítulo 5: Olhos na Europa: a lógica da civilização) e a construção do Estado-nação no Brasil e a questão de suas peculiaridades, especialmente a escravidão (Capítulo 6: Pés na América: a outra face da civilização). Versões anteriores de partes dos capítulos a seguir foram apresentadas em eventos pelo Brasil e publicadas em artigo 43, atividades possibilitadas graças a bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq, pela qual sou grato. 43 ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Gramsci, Rüsen e a busca por uma “historiografia integral” do oitocentos brasileiro. In: Revista de Teoria da História, Universidade Federal de Goiás, v. 11, n. 1, p. 3962, jun. 2014. 28 Parte I: História e Civilização na construção do Estado Independente 29 Capítulo 1: História e Historiadores no Primeiro Reinado A historiografia recente sobre o Primeiro Reinado tem valorizado o período em suas particularidades, ao invés de considerá-lo mero apêndice no processo de construção do Estado imperial. Essa valorização considera os anos entre 1822 e 1831 não apenas como uma disputa entre o “autoritarismo de Dom Pedro” e a “liberdade da nação”, mas, sim, como um momento ímpar na definição dos rumos da nação, uma vez que as delimitações a respeito do “ser brasileiro”, da cidadania, das instituições básicas do Estado e, inclusive, da escrita da história nacional já ali se encontravam expostas 44. Particularmente em relação a essa última questão, o Primeiro Reinado vem se mostrando período fértil para análise. Não apenas foi uma década conturbada do ponto de vista institucional (com os desdobramentos das lutas de Independência dando sequência ao fechamento da Constituinte, apenas alguns meses após o começo de seus trabalhos) e social (com a Confederação do Equador, em 1824, sendo apenas uma dentre diversas manifestações que sacudiram o período), mas, também, foi um momento de disputas internas pela direção política que o Império deveria tomar45. Momento marcante na trajetória de formação do Estado-nação brasileiro, o Primeiro Reinado pode ser considerado como um momento de efervescência do Brasil em construção – isto é, um momento dotado de temporalidade própria, e não mero prolongamento do passado, no qual as questões inauguradas pelo processo de emancipação, conduzindo à ruptura com Portugal, encontraram seu primeiro acabamento na atuação política dos grupos envolvidos no processo de disputa pela direção a seguir46. Embora várias dessas questões fossem ter sua resolução somente na 44 Para uma apreciação historiográfica dessa nova forma de ver o Primeiro Reinado, cf. RIBEIRO, Gladys S. & PEREIRA, Vantuil. "O Primeiro Reinado em revisão". In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (orgs): O Brasil Imperial, Volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009 pp.137-174, na qual os autores argumentam que muito do construído na primeira década do Império perdurou Regência adentro. Na mesma linha analítica da construção da cidadania no Primeiro Reinado, cf. PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado Imperial Brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010. Para as disputas identitárias no período, cf. RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construção. Rio de Janeiro: Relume Dumará-FAPERJ, 2002. 45 Disputas que envolveram não apenas espaços institucionais, mas, principalmente, as ruas, com panfletos, periódicos e articulações entre grupos econômicos e políticos distintos, cada um buscando universalizar sua visão de mundo particular. Para essas disputas políticas entre diferentes tendências e grupos nos anos críticos da dissolução do Império português e começo da independência, cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (18201822). Rio de Janeiro: Revan: Faperj, 2003. 46 Exemplo desses grupos era o dos negociantes, que, durante todo o Primeiro Reinado, mantiveram relações nem sempre cordiais com o Imperador. Cf. PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Negociantes, 30 década seguinte, ou mesmo no momento de consolidação do Império do Brasil, algumas das perspectivas levantadas no Primeiro Reinado foram de fundamental importância para os rumos seguidos a partir dali47. Grande exemplo desse ponto pode ser visto exatamente no encaminhamento dado à busca pela resolução de questões relativas à organização interna do Império e aos negócios externos. 48 Internamente, com a reorganização da lógica do poder territorialista, graças à suspensão das sesmarias, em 1822 – que era, também, elemento central na disputa por referências no momento de emancipação49 –; com a lei de outubro de 1828, que deu nova forma às Câmaras Municipais e aos Juízes de Paz; com a promulgação do Código Criminal, em 1830. Externamente, com o encaminhamento da disputa por soberania na região do Prata, especialmente na Cisplatina; com os tratados de reconhecimento da Independência junto a Portugal – pelo qual abria mão o Brasil de independência e o primeiro banco do Brasil: uma trajetória de poder e de grandes negócios. Tempo, Rio de Janeiro, n. 15, pp. 71-91 (em especial p. 75-78). 47 Para as discussões na década de 1830, cf. BASILE, Marcello. Projetos de Brasil e construção nacional na imprensa fluminense (1831-1835). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das et. ali. (orgs). História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A: Faperj, 2006, p. 60-93 e Projetos políticos e nações imaginadas na imprensa da Corte (1831-1837). In: DUTRA, Eliana & MOLLIER, Jean-Yves (orgs.) Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política. São Paulo: Annablume, 2006, p. 595-620; para o momento da consolidação do Império, cf. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004. A distinção entre “Brasil em construção” e “Império em consolidação” busca apenas apontar dois momentos distintos da trajetória de formação do Estado-nação no Brasil. Não se pretende, com isso, considerar ambos os momentos como blocos monolíticos, tampouco ignorar as relações e continuidade de um com o outro. A inspiração vem de trabalhos que apontam a diferenciação entre o momento de fundação e o momento de consolidação do Império. Cf. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit. e ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. Para uma interpretação distinta, que prioriza as continuidades desde o periodo colonial, bem como o peso da tradição sobre a formação do Estado imperial, cf. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. Em outra chave interpretativa, trabalhos recentes que buscaram interpretar a consolidação do Estado imperial a partir de meados do século deram menos importância ao Primeiro Reinado como um período de influência ou formação, focando sua abordagem especialmente a partir da Regência, como podemos ver em DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005 e NEEDELL, Jeffrey. The Party of Order: the conservatives, the state and slavery in the brazilian monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006. No trabalho de Miriam Dolhnikoff, o Primeiro Reinado aparece pontualmente na contextualização de discussões sobre o federalismo que sirvam de base para o foco a partir da Regência. Em Needel, o foco anterior à Regência sobre a província do Rio de Janeiro é em termos das relações sociais e econômicas entre aqueles que constituiriam, mais tarde, o núcleo central do Partido Conservador. 48 Os exemplos que seguem são baseados em MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. almanack braziliense. Nº 1. Maio 2005, p. 8-26, especialmente p. 23-25. 49 Os encaminhamentos de pedidos de confirmação da posse de sesmarias envolviam, naquele momento, também a leitura dos lavradores sobre qual instância deteria o poder legítimo de atender aos seus interesses, peça fundamental na construção da autoridade da Corte no Rio de Janeiro. Cf. MOTTA, Márcia. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito, 1795-1824. São Paulo: Alameda, 2009, p.. 244246. Desnecessário recordar que a questão da terra no Império só será melhor encaminhada em 1850, com a Lei de Terras. 31 interferir diretamente na independência de Angola, contrariando a proximidade histórica entre as partes -; com o encaminhamento da solução do tráfico negreiro, pela lei proibitiva que seguia ao término do prazo conferido pelos acordos com a Inglaterra, direcionando a continuidade do reabastecimento negreiro a outro patamar nos anos 1830.50 Em todos esses eventos estava em jogo a construção de uma determinada autoimagem do Brasil independente, sua inserção no conjunto das nações civilizadas e, também, o fortalecimento de uma determinada experiência histórica que implicava interpretar aquele tempo e situá-lo na trajetória mais ampla da história das civilizações. Considerando a importância das narrativas históricas para a construção dessa auto-imagem e dessa inserção, cabe, primeiramente, questionar quais foram os significados que a palavra “história” teve para os políticos do Primeiro Reinado. Desenvolver essa questão inicial implica dois exercícios: 1) questionar quais eram as principais referências historiográficas que embasavam a visão de mundo histórica da sociedade política naqueles anos (ou seja, quais eram os principais autores presentes nos discursos políticos entre 1823 e 1829 51 ), a partir de um mapeamento das citações e análise das formas pelas quais tais autores eram utilizados nas abordagens sobre o passado; 2) questionar quais eram os sentidos predominantes conferidos ao conceito de “história” naqueles anos. É disso, em especial, que trataremos nas próximas páginas. 1.1) Autores e presenças Comecemos pelo mapeamento das principais referências autorais que embasaram a experiência histórica dos sujeitos envolvidos na construção política do Império do Brasil. Tal mapeamento levará em conta dois grupos principais de autores: 1) aqueles tratados, ao menos uma vez, por ao menos um agente político, como historiadores e/ou mencionados explicitamente como autores de obras de história; 2) aqueles tratados “apenas” como escritores, como inspirações políticas, mas cujas obras possam ter tido influência também sobre a formação de visões de mundo a respeito de temas específicos do presente e do passado. 50 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 51 Optamos por encerrar esta análise em 1829 por considerar que, ao menos para as questões discutidas nesta tese, o ano de 1830 – posto ainda estar no interior do Primeiro Reinado – faz parte de um outro momento da experiência histórica do Brasil em construção, momento este que adentrará a década de 1830. A análise desse segundo momento do Brasil em construção será deixada para trabalhos futuros. 32 Tal divisão baseia-se numa hierarquia criada a partir dos objetivos deste trabalho: se o autor em questão foi ao menos uma vez indicado como “historiador” ou autor de obra histórica, então ele entra no primeiro grupo; se o autor em questão em nenhum momento foi citado como historiador, mas foi ao menos uma vez utilizado para fortalecer uma argumentação, entra, então, no grupo 2. Cabe ressaltar, porém, que em todos os casos os autores foram citados em contextos de construção de interpretações ligadas à experiência histórica dos parlamentares, fosse para construir interpretações sobre elementos passados, fosse para construir paralelos com a situação presente, tanto da realidade social brasileira quanto de realidades sociais estrangeiras, fosse, ainda, para desenvolver concepções generalistas sobre transformação temporal, mudanças históricas etc. Em suma, os autores levantados nos gráficos que seguem são aqueles que serviram de embasamento para a construção das concepções que discutiremos nos capítulos seguintes – embora, é claro, não necessariamente todas as concepções a serem trabalhadas tenham sido articuladas a partir da base de algum dos autores apontados neste capítulo. Foram excluídos, assim, outros autores citados apenas por retórica, para efeito discursivo, como ornamento, sem qualquer articulação de ideias ou referência autoral para fortalecer um argumento, ou sem qualquer referência ao tema em discussão. Também foram excluídas as referências religiosas que, ao invés de servirem como partes constituintes à argumentação em questão, tenham sido levantadas apenas para efeito discursivo. Embora considere que esse tipo de citação pontual também possa ter tido alguma influência na construção da visão de mundo dos agentes políticos, sua interferência direta seria secundária frente à predominância dos demais tipos de citação para a formulação de visões coletivas de mundo no seio da discussão. O objetivo que orienta a divisão em grupos é duplo. Em primeiro lugar, tentar verificar quais eram as auto-concepções dos membros da sociedade política do Primeiro Reinado a respeito do que seria um “historiador” naquele momento, no calor das discussões. Em segundo lugar, buscar as influências centrais de autores que, mesmo não tendo sido classificados como “historiadores”, possam ter influenciado visões sobre a história, nem que fosse pela montagem conceitual de lógicas de abordagem do passado, do presente e do futuro. Por fim, cabe uma ressalva. O próprio tipo de documentação trabalhada, como dito na introdução deste trabalho, possui limitações que interferem diretamente neste tipo de exercício. Não pretendemos, aqui, considerar que as referências que seguem 33 correspondem à totalidade daquelas proferidas à tribuna. Os limites de nosso alcance encontram-se nos registros taquigráficos, que, não obstante possam oferecer um panorama das discussões travadas na Assembleia, deixam a desejar em certas ocasiões. Dessa forma, mais que o número pontual de citações, é a relação entre os autores que nos interessa aqui. Feitas essas considerações, passemos aos dados. Para o período 1823-1829, temos a seguinte classificação: Gráfico 2.1: Historiadores e autores de obras de história mencionados 16 14 12 10 8 6 4 2 0 Tácito Hume Gibbon João de Barros Southey Tito Lívio Rocha Pitta Outros Fontes: AAC (1823), AS (1826-1829), ACD (1826-1829). 34 Gráfico 2.2: Outros autores mencionados 250 200 150 100 50 0 Montesquieu Bentham Smith Benjamim Constant Burke Outros Fontes: AAC (1823), AS (1826-1829), ACD (1826-1829). A observação de ambos os gráficos permite, inicialmente, algumas considerações de ordem geral. Em primeiro lugar, podemos perceber, relacionando ambos os gráficos, a disparidade entre referências diretas a autores definidos ou indicados como “historiadores” ou “escritores de História” e aqueles outros definidos como “publicistas”, “filósofos” ou mesmo sem uma definição precisa. O somatório dos cinco principais autores do gráfico 2.2 supera em muito o conjunto de todos os personagens mencionados no gráfico 2.1. Mais precisamente, um único autor do segundo gráfico, Montesquieu (38), encontra-se em equivalência junto à totalidade de sujeitos do primeiro gráfico (39). Se invertermos a individualidade, podemos ver que, com exceção de Burke, todos os principais autores isolados do gráfico 2.2 superam qualquer nome solitário do gráfico 2.1, inclusive o principal nome de historiador referenciado, Tácito. Esses indícios apontam que as principais referências intelectuais na construção da experiência histórica nas discussões parlamentares não eram aquelas consideradas “historiadores”, ainda que levemos em conta os critérios dos próprios membros da sociedade política em discussão para definir o que constituía um “historiador”. Ou, ao menos, apontam que a principal característica intelectual da maior parte dos autores que embasavam a constituição da experiência histórica daqueles parlamentares não era a de ser “historiador”, como, ao contrário, era posto logo em destaque nos momentos em que os sujeitos do gráfico 2.1 eram referenciados. 35 Essa conclusão é reforçada ainda mais pela pulverização nas referências a autores no gráfico 2.2, indicada no alto número da categoria “outros”. Essa categoria corresponde a nada menos do que 128 autores diferentes, aproximadamente 80% dos quais mencionados apenas uma vez ao longo de todo o período. Esse número pode significar um duplo movimento no uso de citações: por um lado, a pulverização de autores indica a variedade de que dispunham alguns deputados e senadores para fortalecer seus argumentos em determinados momentos de discussões parlamentares; contudo, por outro lado, a distância entre aqueles nomes com maior presença e o restante mostra que, não obstante a variedade, os argumentos mais usados concentravam-se em figuras bem repetitivas. Em segundo lugar, contrastando os nomes no interior de cada gráfico, podemos ver diferenças. No 2.1, por exemplo, vemos a presença, para concepções mais amplas de “história geral”, tanto de autores como Tácito e Tito Lívio até de escritores mais próximos da contemporaneidade, como Hume ou Gibbon. Para a história do Brasil, considerada em sua anterioridade como história de Portugal, são indicados desde um João de Barros ou um Rocha Pitta até, mais recentemente, Southey. No interior da categoria “outros” do gráfico 2.1, no qual incluímos autores referenciados apenas uma vez, temos a presença de Josefo e Heródoto, de um lado, e de John Millar, historiador escocês do século XVIII, do outro. A presença desses autores antigos e modernos, no conjunto daqueles sujeitos definidos nas discussões como “historiadores”, mostra bem como os homens que viveram aquelas primeiras décadas do XIX encontravam-se na fronteira de um regime de historicidade para outro, momento no qual elementos de uma concepção “antiga” de história articulavam-se com elementos considerados “modernos” na estruturação dessa área do saber. A coisa muda quando olhamos o gráfico 2.2. Nele, percebemos uma predominância completa de autores modernos. Alguns poucos autores de um regime antigo, como Santo Agostinho, ou ainda mais antigos, como Homero, são tão pontuais que diluem-se na categoria “outros” – que abarca, também pontualmente, autores modernos em muito maior quantidade, como Guizot, Rousseau etc. Que esses autores não sejam claramente identificados como “historiadores” não tira, como dito, sua influência sobre a construção de interpretações sobre o passado e o presente das sociedades, inclusive a brasileira. A questão, portanto, é outra: a necessidade política de compreensão de um mundo em cada vez mais acelerada transformação cada vez deixa menos espaço para o apelo à tradição clássica e obriga a uma “atualização” das 36 referências junto aos autores que embasam uma perspectiva contemporânea das transformações. A permanência do topos da historia magistra vitae não impede, sequer diminui, o ímpeto da necessidade de entender um presente que se amplia e avança sobre o passado. A ideia crescente de rompimento com o que veio antes, a partir da percepção de uma “nova época”, uma “época de luzes”, produtora de um novo tempo, como veremos no capítulo três, sintetiza o tempo passado em interpretações cada vez mais concisas, criando-se conceitos que dão conta de todas as camadas e nuances do já acontecido. O tempo presente, porém, complexo demais para abrigar-se sob sínteses interpretativas, apela a um maior manancial de autores que possam dar conta da explicação. O passado recente se sobrepõe, dessa forma, ao passado distante, posto que os fatos recentes explicavam o mundo em que os agentes se encontravam melhor do que os clássicos do passado. Inverte-se, na política, a lógica que presidia a produção de narrativas históricas acadêmicas, como no próprio IHGB mais tarde, nas quais a história recente era desconsiderada em nome da história distante – lógica reforçada pela ideia de “arca do sigilo”.52 A história na política, diferentemente da lógica da academia que se consolidaria a partir de meados do século XIX no Brasil, aproximava o presente e o passado recente da interpretação de mundo. Ao menos naquele momento de efervescência no Brasil em construção. Isso fica mais claro quando somamos os dados de ambos os gráficos e destrinchamos o resultado para perceber como acontece a distribuição em cada espaço do legislativo no Primeiro Reinado: 52 MALEVAL, Isadora Tavares. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o (não) lugar da história do presente. In: Ars Historica. v.1, n.2, jul-dez 2010, p. 49-59, especialmente p. 54; GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). RIHGB, Rio de Janeiro, v. 156, nº 388, p. 459-613, 1995. 37 Gráfico 2.3: Autores na Assembleia Constituinte 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Fonte: AAC, 1823 Gráfico 2.4: Autores no Senado 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Montesquieu Smith Tácito Bentham Outros Fonte: AS, 1826-1829 38 Gráfico 2.5: Autores na Câmara dos Deputados 120 100 80 60 40 20 0 Montesquieu Benjamin Constant Bentham Rousseau Outros Fonte: ACD, 1826-1829 Podemos perceber como apenas no Senado do Império a presença de um autor antigo equipara-se à dos modernos, o que nos leva a pensar que a tensão entre influência da escrita antiga e da escrita moderna, nas interpretações daquele tempo vivido e experimentado, talvez não se apresentasse da mesma maneira em todos os ambientes. O Senado do Império, espaço não apenas mais ligado ao Imperador – afinal, por ele escolhido a partir de lista tríplice - ,mas, também, cuja auto-imagem o projetava a uma perspectiva mais conservadora da política – espaço de maior moderação e freio às disputas passionais da Câmara, segundo se considerava à época 53 – era também onde mais se arrastava a influência da concepção antiga, mais ligada a uma perspectiva histórica arrastada que focava não apenas as transformações em velocidade no presente, mas também a perenidade do tempo e a busca pela sua permanência – em grande parte devido à atuação de José da Silva Lisboa, como veremos à frente. A Constituinte, porém, momento de acaloradas discussões a respeito do Brasil que se buscava construir, e a Câmara dos Deputados, caixa de ressonância mais aberta a críticas sistêmicas à política Imperial (ainda que dentro de certos marcos para tal crítica), mostravam-se espaços de maior presença de autores modernos que pudessem oferecer interpretações viáveis para as transformações da História recente e do presente. Não podemos, evidentemente, pensar que a influência desses autores se dá por adesão imediata às suas ideias. Embora construído numa lógica civilizacional que 53 Discuti brevemente a questão na minha dissertação de mestrado. Cf. ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010, p. 80-85. 39 mantinha os olhos na Europa, a incorporação de ideias e influências era constantemente filtrada pelos pés na América. Sendo assim, mesmo os autores mais referenciados nos anais não constituem uma aplicação direta de pensamentos à realidade do Império. Podemos dizer que o movimento de influências forma-se numa dupla dimensão: por um lado, ideias e linguagens político-historiográficas eram utilizadas para embasar e fortalecer visões de mundo; por outro lado, as ideologias formuladas eram construídas também na recusa, refutação, reinterpretação e diálogo com essas linguagens. A dimensão que buscava conectar o Império à trajetória das “grandes civilizações” mantinha a proximidade autoral; a dimensão que tratava das particularidades do Império necessitava de uma formulação de mundo marcada por certa originalidade. Verifiquemos melhor essa dupla dimensão. Observando-se os três últimos gráficos, podemos perceber que apenas um punhado de autores ocupa o topo em volume de referências. São eles: Montesquieu, Edmund Burke, Adam Smith, Jeremy Bentham, Benjamin Constant, Jean-Jacques Rousseau e, como outsider no conjunto temporal, Tácito. Boa parte da referência a estes é pontual. Isto é, aborda-se um autor, ou alguma obra sua, para fortalecer algum ponto de vista ou opinião. Em diversos outros momentos, porém, os autores são utilizados de maneira mais aprofundada, partindo-se de algumas ideias-chave para construir uma interpretação mais ampla do “mundo civilizado” e da relação do Império com este. Na Constituinte e no Senado, Montesquieu, Smith, Burke e Bentham constituíram a coluna central dos autores mencionados nos debates parlamentares. À exceção de Burke, são mencionados, ao menos uma vez, em todos os anos indicados. Quando mencionados, diversas de suas ideias são debatidas e discutidas. Aparecem fundamentalmente em debates a respeito da organização administrativa, legal, política e econômica do Império. São, portanto, as balizas autorais a definir o que era considerado essencial à construção do Estado imperial independente, em especial os dois primeiros54. O autor de Do Espírito das Leis, em particular, foi constantemente trazido à tona nas discussões como caminho para a construção de interpretações gerais de mundo, como autor de fórmulas a servirem de guia para a construção do arcabouço político- 54 Bentham foi mais usado para questões pontuais, em especial questões de organização da assembléia, enquanto Burke é mais citado na Constituinte do que posteriormente. Por outro lado, Smith e Montesquieu foram envolvidos inclusive em discussões conceituais. Por isso, concentrarei a análise nesses dois. 40 administrativo no Brasil. O deputado Carneiro 55 , por exemplo, na Assembleia Constituinte, em discussão sobre a importância da educação, logo após afirmar estar persuadido de que “o plano da educação [a ser adotado] deve ser também relativo ao princípio de cada governo e sua constituição política”, não podendo ser a mesma educação em um “governo livre, ou em um governo absoluto, na pura aristocracia, ou democracia, ou na monarquia temperada”, indica como gostaria que, “para prosperidade da geração que se educa e para segurança e permanência do sistema que havemos proclamado que a mesma constituição, ou um catecismo político, e ainda legal, fizesse parte da assídua instrução da mocidade”. Afinal, de tal adoção “nasceria uma maior estabilidade nas nossas instituições, e um maior respeito a certas leis, que por serem pouco familiares e conhecidas muitas vezes se quebrantam”.56 “Esta doutrina é corrente, e não sei como ela tenha podido parecer estranha”, afirma. E, então, usa Montesquieu para sustentar sua fala: Montesquieu diz muito bem que “se um povo em geral tem um princípio, as partes que o compõem o terão também, e que as leis de educação serão pois diferentes em cada espécie de governo”. E assim deve necessariamente ser, porque no mundo físico, como no moral, todos os entes devem ser ligados por nexos apropriados aos fins do sistema de que eles fazem parte, [senão] aliás seguir-se-há a dissolução e a desordem.57 As ideias de Montesquieu aparecem, em certas circunstâncias, como conjunto de fórmulas a serem aplicadas em determinados momentos, com a expectativa de possibilitar esperados resultados. A não aplicação das fórmulas poderia trazer desgraças, nenhuma maior, naquele momento, do que a possibilidade de dissolução do Império e fortalecimento da “anarquia”. Num momento em aberto, no qual o conteúdo dos elementos em discussão precisava ser rapidamente definido (por exemplo, o conteúdo de palavras como “liberdade” – mesmo que num sentido econômico), esse tipo de fórmula poderia servir como garantia da permanência de experiências consideradas vitoriosas alhures sobre os riscos do excesso de provisoriedade. Por isso José da Silva Lisboa remeteria a Montesquieu para lembrar que Todos os políticos concordam em que o espírito de liberdade extrema é não menos nocivo que o da restrição extrema; e o escritor do Espírito Nos anais consta apenas o nome “Carneiro”, não sendo possível identificar se era um dos irmãos Carneiro de Campos ou se Carneiro da Cunha. 56 AAC, 1823, livro 3, p. 180. 57 Idem. 55 41 das Leis até com razão diz que nem tudo se deve reformar e que devem ser graduais ainda as reformas justas para serem profícuas e sólidas. 58 Adam Smith, da mesma forma, poderia permitir leituras que generalizassem casos históricos particulares a ponto de transformarem-se em fórmulas de ampla aplicabilidade. Como podemos perceber em um exemplo envolvendo Silva Lisboa, numa discussão sobre a criação de universidades. A discussão versava sobre o melhor lugar para começar a expansão de elemento tão fundamental para a difusão das luzes pelo Império: se no interior do Brasil ou se no litoral. Já contendo a carga que, posteriormente, nos debates não apenas do Brasil, mas da América, desdobrar-se-ia na questão do litoral x sertão59, afirma o futuro visconde de Cairu: “é bem notado na obra clássica do já citado mestre da riqueza das nações, que, em todos os países marítimos, a civilização, ciência e riqueza sempre começaram do litoral para o central: o contrário é ordem inversa da natureza”60. É Silva Lisboa, aliás, cuja conexão com a obra de Smith já foi amplamente discutida pela historiografia61, quem mais se refere ao autor inglês nos anos mencionados. A fórmula autoral de Montesquieu e Smith, contudo, não brotava do nada, mas de análises localizadas histórica e culturalmente que, sendo extrapoladas para outras situações, poderiam servir de base para a direção política. De uma análise do autor francês sobre a Turquia, por exemplo, nascem comparações desde sobre produtividade e eficiência, que é transposta para discussão sobre lei de mineração no Império 62 , até análise do papel de rebeliões para a destruição de despotismos63, mostrando que pontes poderiam ser construídas entre diferentes contextos, ou mesmo distintos momentos históricos. Não que todos concordassem com a aplicação imediata, ou mesmo com a infabilidade do autor. Pelo contrário: trazer um nome de peso para sustento de um posicionamento poderia gerar uma crítica que lembrasse a necessidade de filtragem para aplicação das ideias no contexto local – o que vimos considerando “pés na América” – ou mesmo a desqualificação do autor, por ser indicativo de desgraça para o Brasil. 58 AS, 1827, Sessão em 12 de maio 1827, p. 63. Da mesma forma, em outra ocasião Silva Lisboa lembraria Montesquieu, afirmando que “o genuíno espírito de liberdade não se acorda com o capricho de uma liberdade extrema.” Cf. AAC, Sessão em 20 de outubro 1823, p. 144. 59 SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, Introdução e caps. 1 e 2. 60 AAC, 1823, livro 6, p. 206. 61 Em 1827, Cairu declara já conhecer “A Riqueza das Nações” há 40 anos, estando convencido da verdade da sua doutrina. AS, 1827, 24 de julho, p. 55. 62 AS, 1826, livro 4, p. 50. 63 AS, 1829, Sessão em 09 de maio 1829, p. 102. 42 Bentham, por exemplo, junto com Benjamin Constant, seria alvo da crítica de Silva Lisboa em discussão sobre lei de liberdade de imprensa, em que afirma: Eu opino que tais autoridades [Constant e Bentham] nada valem em objetos sobre que tem havido tanta discórdia de opiniões entre os publicistas e os governos, ainda de Constituição MonárquicoRepresentativo. (...) Bentham, ainda que jurisconsulto de muito engenho e saber, é notado pelos sábios de seu país por confuso, singular, paradoxista, e o respectivo governo não tem adotado as suas opiniões de ideal perfeição da Sociedade Civil; e é estigmatizado como o Cabeça dos radicais de Inglaterra. 64 O mesmo Silva Lisboa, que aliás já havia declarado ser Montesquieu o seu 65 farol , aponta também falhas no autor francês, cuja obra teria reprovado moinhos d´água “segundo o erro popular que as máquinas [é] que abreviam o trabalho e dispensam braços, tiram emprego e pão ao povo” 66. Em outra ocasião, numa discussão sobre livre estipulação de juros, Carneiro de Campos responde a um argumento de Silva Lisboa baseado em Montesquieu e outros autores. Afirmara Cayru, então, contra o primeiro artigo da lei, que permitia nos empréstimos qualquer estipulação de juros, que tinha por si, “além dos legisladores dos mais famosos estados, a Montesquieu, Smith, e o parlamento britânico”. E afirma: Quando se fez a primeira leitura do projeto, o nobre senador [Carneiro de Campos] citou a Montesquieu, notando os males que a proibição da usura causa na Turquia. Porém este escritor só reprova a absoluta proibição do interesse da moeda, dizendo ser a causa de se estabelecer horrorosa usura no império romano e nos estados maometanos, acrescentando a reflexão que a lei extrema no bem faz nascer mal extremo, e que obriga ao mutuante a exigir maior interesse para se indenizar do risco de contravenção à lei. 67 Em sua resposta, Carneiro de Campos retoma os pilares apresentados por Lisboa: Fundou (...) o ilustre senador a sua oposição nas autoridades de Montesquieu, Smith, e no exemplo do parlamento de Inglaterra, (...) Mas que força têm estes argumentos? Todos sabemos que pouco tem a autoridade de doutores em objetos de puro raciocínio; quando a cousa 64 AS, 1829, Sessão em 09 de maio, p. 101-102. As referências a Bentham e Constant, feitas por Caravellas e Albuquerque a partir da indicação de Cayru, não foram registradas nos anais, não sendo possível verificar como os nomes são primeiro trazidos à discussão. 65 “tenho por farol ao escritor do Espírito das Leis, o qual bem adverte aos legisladores de guardarem, quanto for possível, simplicidade na legislação, porque, multiplicando-se particularidades e exceções, se destrói a força da regra e, segundo ele diz – uns detalhes trazem outros detalhes.” AAC, 1823, livro 5, p. 260. 66 AS, 1826, 11 de agosto, p. 54. 67 AS, 1826, 01 de julho, p. 4. 43 admite demonstração clara, como no nosso caso, eu quero antes guiarme pela razão que Deus me deu, do que pela dos outros, por mais celebrados que sejam.68. E complementaria: “Montesquieu, não obstante ser um grande gênio, era hóspede na ciência econômica, que não existia no seu tempo”69 Vejamos mais um exemplo, este um pouco distinto. O senador Vergueiro, durante discussão sobre proibição do estabelecimento de morgados, ao invés de argumentar contra a competência do autor, faz um questionamento acerca do contexto histórico de produção das ideias de Montesquieu: “Já se respondeu ao argumento que se fez com as ideias de Montesquieu; ele escreveu segundo as luzes do seu século; hoje estão muito mais adiantados, e a sua autoridade, aliás, de grande peso em outros pontos, neste não nos pode servir”70. A lógica de Vergueiro diz muito a respeito da forma pela qual deputados e senadores lidavam com temporalidades diversas daquela em que se consideravam inseridos. A situação não muda quando passamos à Câmara dos Deputados. Nela, também Montesquieu, Constant e Bentham aparecem com destaque, e também encontramos a generalização de análises que, pretendendo ultrapassar os espaços onde foram produzidas, pretendem abarcar o Império na lógica construída por aqueles autores citados. Assim, em discussão sobre projeto de lei para dotação do Imperador, o deputado pelo Pará, Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, defende um valor para o projeto que seja compatível com o “decoro e grandeza, que deve rodear a augusta pessoa do imperador”, e que atenda bem à forma de governo. Nas repúblicas, diz, “assenta mui bem a simplicidade e frugalidade do chefe da nação”; essa simplicidade, porém, seria deslocada, e anômala, em um governo monárquico, cujo princípio, como diz Montesquieu, é a honra, isto é, o amor das preferências e distinções, que supõe necessariamente o maior esplendor e aparato em torno do chefe do estado, como a fonte, donde emanam todas essas distinções.71 A especificidade do caso brasileiro em discussão é diluída na generalidade de uma fórmula autoral considerada passível de universal aplicação no discurso do 68 AS, 1826, 01 de julho, p. 9-10. Idem, p. 10. 70 AS, 1829, 11 de julho, 91. 71 ACD, 1827, 28 de julho, p. 295. 69 44 deputado. Os contextos que levanta para provar o princípio aplicável aos governos republicanos, mas não aos monárquicos, são tirados da história, mas desprendidos de historicidade, servindo apenas de enumeração para a afirmação geral.72 Foi o deputado Odorico, em resposta, quem trouxe o exemplo geral à especificidade, conferindo alguma historicidade (embora ainda dentro de uma lógica de fórmula autoral aplicável a modelos) à referência a Montesquieu. Lembra Odorico que, quando Montesquieu diz que o principio de obrar nas monarquias é a honra, fala das monarquias puras, e nunca teve em vista as monarquias representativas. Nestas há também o princípio popular; e por tal princípio o fausto monárquico é temperado com a economia dos governos democráticos. (...) Demais, esse princípio da honra, de que trata Montesquieu, além de não tomar este autor a palavra de honra no seu sentido em que o toma o Sr. arcebispo, tem achado muitos que o combatam e entre os escritores mais acreditados, como Bentham e Tracy.73 Na mesma discussão, o deputado Vergueiro reforça a necessidade de contextualização da obra à realidade e ao tempo, tecendo mais críticas à argumentação do arcebispo: argumentou-se com Montesquieu, não sei para que. Pretende-se (e sem boa aplicação) cobrir um grande erro com um grande nome. A Montesquieu é desculpável adotar a honra como base das monarquias, dando a virtude às repúblicas; talvez se ele escrevesse algum tempo depois, retratasse sua arbitraria opinião. 74 Em outra discussão, o deputado Costa Aguiar restringe a aplicabilidade das ideias do filósofo francês. Debatendo-se projeto para o fim dos morgadios, e analisando as relações entre a mesma e a aristocracia, Costa Aguiar diz: Eu não cansarei esta augusta câmara com a história dos morgados e dos males que eles têm causado (...). Ela não pode quadrar ao Brasil, repugna inteiramente com as ideias do tempo, e apenas poderia servir para plantar entre nós a aristocracia, e com ela os males inseparáveis de semelhante ordem de coisas. É pois isto o que repugna às luzes do “Eu gosto de ver um Cincinnato lavrando o seu pequeno campo com as mãos vitoriosas, que tantas vezes salvaram Roma; não me ofendem os legumes, que Curio estava preparando para sua comida, quando foi surpreendido pelos embaixadores de Pirro, que lhe traziam ricos presentes; admiro finalmente um pensionário da Holanda passeando a pé pela Haia apenas com um pajem atrás de si, ao mesmo passo que humilhava a França, o conciliava o respeito de toda a Europa; esta simplicidade está de acordo com a natureza e constituição do governo republicano”. In: Idem. 73 Idem, ibidem. Na sequência, o arcebispo retruca dizendo que trouxera Montesquieu com o intuito de corroborar a ideia de que o fausto e o esplendor são próprios da monarquia, e que não se lembrava da distinção feita por Odorico entre monarquias puras e representativas, já que “há muito tempo” que não lia esse escritor. 74 Idem, p. 297. 72 45 século e às ideias atuais. (...) Deixemos para a velha Europa semelhante instituição; já se passaram esses tempos em que Montesquieu dizia que a moderação era o princípio e o elemento da aristocracia; melhor julgou Voltaire quando ao contrário avançou que a aristocracia não era fundada sobre a moderação e só sim sobre o orgulho, a ambição e desejo de dominar. (Apoiado.). 75 Seguindo a perspectiva de Costa Aguiar, Montesquieu não estaria errado em associar aristocracia a moderação. A questão é que essa análise não cabia mais nos tempos atuais, para os quais outro moderno, Voltaire, ofereceria análise mais convincente. O deslocamento geográfico também contribuía: não necessariamente uma instituição europeia faria sucesso caso implementada no Brasil, e era preciso verificar a precisão da análise dos autores antes de transferir suas ideias de modo automático para outras realidades. O “apoiado” registrado pelo taquígrafo mostra manifestações de concordância com a visão de Costa Aguiar. Mas se a aplicabilidade de instituições modernas era algo a ser discutido, a autoridade dos modernos sobre o passado mais distante não era um elemento posto à prova. O deputado Monteiro de Barros, em discussão sobre resolução a respeito das eleições e sobre o caráter do voto, se público ou secreto, afirma: A questão versa sobre saber-se qual é mais útil, a votação pública ou a votação secreta. Cada uma dessas opiniões tem sido sustentada por autores mui notáveis. Montesquieu tratando do império romano, diz que um dos princípios da desmoralização daquele povo, se originou das votações que se faziam secretamente; e por isso se ia votar às vezes em um homem inteiramente obscuro. Outros autores porém, e de grande nota seguem o contrário. Entre outros Jeremias Bentham, depois de ter apresentado de um e de outro lado as razões em que se apóiam os dois métodos, decide-se pela votação secreta, e diz que ele preferiria a votação por escrutínio nos lugares onde a oral não estivesse suficientemente estabelecida. Eu também presentemente me inclino a segui-lo nesta parte, porque assim o exigem as nossas atuais circunstâncias.76 Nota-se que, não obstante Montesquieu seja trazido à discussão para corroborar um exemplo histórico da decadência do mais famoso Império do ocidente, cadinho de experiências para todos os séculos vindouros, o francês é “derrotado” por Bentham no argumento de autoridade. O segundo autor apresenta opinião comparável à grandeza do ACD, 1828, 09 de junho, p. 67. O autor completaria: “Eu não falarei nos tempos mais próximos da nossa idade; quem tem conhecimento da história moderna, não pode ignorar semelhantes fatos, não convém portanto ao Brasil semelhante instituição hereditária: o que lhe convém é certamente a aristocracia não de classe, mas sim a de graduações e interesses, a do merecimento contra a qual não militam as razões expedidas, porque a qualquer está franca a porta para a obter sem o risco de inimigos”. 76 ACD, 1828, 23 de maio, p. 150. 75 46 primeiro, porém mais aplicável às “nossas atuais circunstâncias”. A autoridade sobre a história de Roma não é contestada; a aplicabilidade do exemplo, porém, o é. A modernidade apresentava circunstâncias com as quais a antiguidade não se deparara. A exceção, na análise da Câmara dos Deputados, fica pela maior presença de Rousseau. Um dos autores mais referenciados neste espaço é menos presente na Constituinte e no Senado, mas nem por isso sua figura deixa de passar por um tensionamento que o coloca entre o papel de arauto da destruição, de um lado, e autor moderno equiparável aos demais, de outro. Se os autores mencionados até aqui têm em comum o fato de serem igualmente respeitáveis do ponto de vista das ideias, restringindo-se as críticas à maior ou menor pertinência de sua aplicabilidade, Rousseau, por outro lado, ultrapassava o limiar intelectual e adentrava o grupo de autores perigosos. Exemplo disso podemos vislumbrar na Constituinte. Ali, em discussão sobre lei de criação das universidades, Silva Lisboa pronunciou: Pode algum governo tolerar que em quaisquer aulas se ensinem, por exemplo, as doutrinas do Contrato Social do Sofista de Genebra, do Sistema da Natureza e da Filosofia da Natureza dos ímpios escritores, que têm corrompido a mocidade, que forma a esperança da nação, para serem seus legisladores, magistrados, mestres e empregados na igreja e no estado? Nunca, nunca, nunca.77 A composição curricular dos espaços formadores da “esperança da nação” não deveria, na visão de Silva Lisboa, incluir autores como Rousseau ou o Barão de Holbach, “ìmpios escritores” que corromperiam a mocidade. A tripla negativa, cuja ênfase foi registrada pelo itálico presente na letra do taquígrafo, pontuava toda a negatividade que encobria tais autores. No Senado, no momento de discussão da lei sobre liberdade de imprensa – um dos mais longos e proeminentes temas discutidos naquele espaço ao longo do Primeiro Reinado –, o perigo que tais autores ofereceriam seria analisado pelos senadores. Carneiro de Campos, por exemplo, assim se pronunciaria: Tenho sete obras de J. J. Rousseau; isto para mim não é de perigo, porém, para o homem que o não conhece bem ainda, e cuja opinião é do livro, que está lendo, não pode ser útil porque o induz a variar de opinião conforme o que lê. E pergunto eu: esses princípios não podem 77 AAC, 1823, 27 de outubro, p. 207. 47 trazer consigo conseqüências funestas ao sistema constitucional? Podem, ninguém o negará;78 Carneiro de Campos, futuro Visconde de Caravellas, baseado nessa ideia, ainda continuaria: portanto, a minha distinção seria esta: todas as vezes que se tratasse de obra; por exemplo o livro que tivesse para cima de 100 páginas, este poderia circular; o Povo não o lê, nem quer que se lhe leia um livro assim, falando geralmente; lê folhas avulsas, e não livros; mormente se são dos que exigem mais aturada reflexão; portanto o livro pode muito bem passar; porque à liberdade de imprensa deve dar-se toda a extensão; o perigo está em folhas avulsas, e periódicos; estas vão ensinando, e quando se apresenta já o sintoma, é tarde para se remediar.79 A crítica recaía sobre folhas curtas (os “papelinhos”) e periódicos, pois estes, sim, divulgariam ideias perigosas na ótica de Carneiro de Campos. Os livros, porém, ofereceriam um perigo mais restrito, não sendo lidos por todos. Mesmo nessa ótica, porém, um segundo filtro seria necessário: aquele que impedisse a indução à mudança de opinião, filtro que pessoas como Carneiro de Campos teriam, o que lhe permitia ler Rousseau sem qualquer dano. Filtro que Almeida e Albuquerque definiria melhor em sua resposta: a primeira vez que peguei em João Jacques Rousseau, assentei que não tinha resposta, e depois já conheci o seu erro; e depois um homem de letras que conhece que a ordem é o maior benefício que pode ter um Estado, e que ele pode ter, nunca avança a querer destruir, salvo se é mao ho [sic].80 O mesmo Almeida e Albuquerque que, antes de ser senador, defendia na Câmara dos Deputados, em discussão sobre a criação de cursos jurídicos, o seguinte: Eu devo lembrar a esta augusta câmara, que no tempo em que se ensinava na universidade de Coimbra que o poder dos reis vinha de Deus, e outras semelhantes tolices, leia-se Mably, Voltaire, Rousseau e outros muitos escritores, no entanto, que o governo não só mandava que os estudantes aprendessem pelos tais celebres compêndios, mas até punha proibição destes livros, que chamava perigosos. 81 A primeira fala do deputado trata Rousseau como um autor que pode oferecer perigo, posto estar com erro, salvo se lido pelo homem de Estado preocupado com a 78 AS, 1829, 09 de maio, p. 93. Idem, ibidem. 80 Idem, p. 101. 81 ACD, 1826, 11 de agosto, p. 118. 79 48 ordem como maior benefício. A segunda, proferida três anos antes e em outro espaço, afirma que Rousseau, como outros autores, eram considerados perigosos por um governo que, no tempo da escuridão, ensinava que o poder real vinha de Deus – o que, podemos sugerir, transforma os autores subversivos da ordem em construtores do tempo moderno, onde se sabe (poderia lembrar o próprio Albuquerque) que o poder dos reis é sustentado pelo povo. Os “compêndios” criticados na fala acima são sugeridos pelo projeto em discussão como material básico de estudo, o que provoca a recusa de vários deputados – dentre os quais Albuquerque, que associa os mesmos à ação do poder absolutista. Almeida e Albuquerque não seria o único a considerar mais confortável a defesa de Rousseau na câmara. Em discussão de projeto vindo do Senado sobre naturalização de estrangeiros, nas considerações gerais, Bernardo Pereira de Vasconcelos menciona “João Jaques Rousseau, a quem reputo por infalível em política”82 para construir sua argumentação. Tal menção elogiosa rende censura do deputado Cruz Ferreira, que afirma: “não posso, Sr. presidente, consentir na ideia, que aqui se enunciou da infalibilidade em política de Rousseau: desgraçada a nação que se houvesse de reger pelas suas teorias, não há escritor que não tenha mostrado os seus paradoxos, e absurdos.” 83 Lino Coutinho, em discussão sobre resolução a respeito do hospital de caridade de Desterro, seria outro que recusaria menção a Rousseau na fala de Souza França (“se quereis fazer cessar os males da mendicidade, acabai com os hospitais”), retrucando: “o ilustre deputado não deve avançar proposições que cheiram a paradoxos só por seguir a Rousseau”.84 Podemos, assim, perceber como não havia um consenso no uso dos autores modernos: tais poderiam ser fortes apoios para a construção de interpretações de mundo, mas, também, perigosas ameaças de subversão da ordem social. Não obstante, um fio os une: em nenhum momento a autoridade interpretativa de tais autores sobre eventos passados ou presentes foi posta em xeque por não serem “historiadores”. Apenas Rousseau chegava perto disso, e mais pela consideração do perigo de sua imagem do que pelo conteúdo de suas afirmações. Para as considerações que mais nos interessam aqui, podemos afirmar que há um claro predomínio do uso dos autores 82 ACD, 1826, 01 de julho, p. 06-07. 83 Idem, p. 07. 84 Para ambas as referências, cf. ACD, 1828, 07 de junho, p. 60. 49 modernos na construção da interpretação do mundo presente e das lógicas passadas no seio das discussões políticas. A grande exceção, mencionada anteriormente, é Tácito: único autor antigo comparável, em referências, aos autores modernos. O que nos leva a tecer algumas considerações sobre sua presença. De acordo com Valdei Araújo e Flávia Varella, a linguagem política do tacitismo teve suas primeiras formulações no século XVI, consolidando-se, nos séculos seguintes, como ferramenta crítica à concepção autoritária de governo. 85 Dessa forma, o tacitismo permaneceria como um conjunto de experiências registrado na obra do historiador latino, que legaria à cultura política europeia a antiga experiência da tirania.86 No caso das concepções presentes no universo luso-brasileiro do começo do século XIX, tal linguagem se traduziria na interpretação da decadência das civilizações como resultado do despotismo, presente, por exemplo, no Correio Braziliense e em outros periódicos do contexto da Independência, ampliando sua presença mesmo no decorrer das décadas seguintes, fosse como “leitor da natureza humana, capaz de revelar o caráter de um personagem pelos pequenos gestos”, fosse, invertendo-se o sentido de sua obra, como inspiração para atribuição do segredo de Estado (Arcana Imperii) às discussões e interpretações históricas do presente. 87 A linguagem do tacitismo, traduzida como História, viria somar-se, assim, aos demais autores que compunham um panorama do que se compreendia como autor-historiador naquele momento das discussões políticas. Vejamos alguns elementos de sua presença, bem como a dos demais autores definidos como “historiadores”, no Primeiro Reinado. Em discussão sobre naturalização no Império do Brasil, quando se debatiam os direitos políticos a serem concedidos a cidadãos naturalizados, Silva Lisboa, sempre ele, apoia-se no “grande historiador do Império romano, Tácito”, para traçar paralelos entre passado e presente. Diz que Tácito bem notou o contraste entre a maléfica estatística dos lacedemônios e atenienses, que consideravam os estrangeiros como inimigos, e a generosa política do fundador do Império romano, Rômulo, que depois 85 ARAÚJO, Valdei Lopes de; VARELLA, Flávia Florentino. As traduções do tacitismo no Correio Braziliense (1808-1822): contribuição ao estudo das linguagens historiográficas. In: In: Maria Clara V. Galery; Elzira Divina Perpétua; Irene Hirsch. (Org.). Tradução, vanguarda e modernismos. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 239-259 (241-243). 86 Idem, p. 244. 87 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A época das revoluções no contexto do tacitismo: notas sobre a primeira tradução portuguesa dos Anais. Estudos Ibero-Americanos (PUCRS. Impresso), v. 36, 2010, p. 343-365, especialmente p. 351-352. 50 da vitoria, no mesmo dia via, com prazer, acolhidos os adversários combatentes ao grêmio dos cidadãos. (...) Até depois do rapto das Sabinas, também admitiram no senado aos padres sabinos. 88 Consideremos dois elementos nessa citação, um de caráter teórico-metodológico e outro de caráter político. Em primeiro lugar, nota-se a total despreocupação, na citação, com qualquer prova, indício ou documento a respeito da informação que se traz do passado. O autor clássico é referido como “historiador” ainda que a “história”, em questão, tenha ares de mitologia. As menções a Rômulo e ao rapto das Sabinas, longe de constituírem apenas efeito discursivo ou ornamental, entrelaçam-se à argumentação a respeito dos naturalizados do passado e das formas de cidadania e integração então realizadas por gregos e romanos. Essa despreocupação, aliás, perpassa todas as referências a historiadores nas discussões políticas. A história, assim usada, dispensa qualquer regime disciplinar, como conforme, aliás, elementos daquele momento de passagem de um regime de historicidade a outro. Em segundo lugar, em relação à política, Tácito é o principal autor “antigo” a permitir a construção da aproximação entre o Império do Brasil e o Império Romano. Roma, como modelo praticamente universal para civilizações e revoluções, para governos e governantes, povos e espaços ocidentais, precisava ser integrada, como exemplo, à civilização brasílica que se pretendia construir. Tácito permitia essa costura num regime de historicidade antigo, remetendo-se não apenas ao conteúdo sobre Roma – o que um autor moderno, como Gibbon, poderia permitir –, mas também na própria linguagem utilizada. Tácito, como historiador do Império Romano, oferecia a aproximação necessária ao Império do Brasil – inclusive nas ameaças que, porventura, o futuro pudesse reservar. Na discussão já anteriormente mencionada sobre a livre estipulação de juros, Silva Lisboa voltaria a mencionar Tácito num paralelo com o economista Jean-Baptiste Say. Este, diz Lisboa, sugere que se deveria forçar um devedor falido ao serviço de seu credor, “o que era do bárbaro costume dos romanos, depois que, segundo diz Tácito, pela corrupção dos costumes o interesse particular predominou ao bem público; o que foi causa de tantas desordens” 89 . Independentemente do que se pretendesse com a cobrança de juros devidos no Império do Brasil, saber que, num Império distante no 88 89 AS, 1826, 30 de maio, p. 176. AS, 1826, 01 de julho, p. 04. 51 tempo, um tipo determinado de cobrança havia resultado em desordens, como fruto de uma corrupção de costumes, ajudaria a, quem sabe?, prevenir o mesmo destino de ocorrer ao Brasil 90 . Definido como “historiador”, a presença dos escritos de Tácito serviria a tais propósitos. Mas Tácito pouco teria a oferecer, em termos de informação, à necessidade de conhecimento a respeito de um passado mais recente. Essa tarefa ficaria para outros autores definidos também como “historiadores”, como Hume, João de Barros, Southey e Rocha Pitta, conforme o gráfico 2.1 anteriormente mostrado. Assim, Hume é trazido à discussão para demonstrar, “com fatos históricos”, como o metal levado da América à Europa baixou o valor das mercadorias91, ou mesmo trazido para corroborar fatos da história da Inglaterra 92 . João de Barros, para Silva Lisboa o “pai da História Portugueza”93, é trazido à tona, em discussão sobre a obtenção de cidadania por escravos forros, para mostrar como os portugueses foram os primeiros autores desse “mal enorme” (o tráfico da escravatura), e como motivações econômicas sobrepuseram-se ao discurso oficial de resgate do paganismo94. Southey é utilizado para mostrar a antiguidade da exploração dos rios do Amazonas, essencial informação para 90 A importância e a influência de Roma era tão considerada por diversos políticos que, em discussão a respeito dos conteúdos a serem ensinados nas universidades a serem criadas, Silva Lisboa diria: “O famoso Gibbon, na historia da decadência do império romano, faz um admirável summario da legislação e política do império romano; nem é possível prescindir do estudo das leis de um povo, que durou, em várias formas de governo, por mais de quatorze séculos, e que ainda depois de destruídos, regerão a tantos paizes”. AAC, 1823, 28 de agosto, p. 178. 91 “Hume, nos seus ensaios econômicos, demonstrou com fatos históricos que a extraordinária e progressiva importação dos metais preciosos para a Europa, depois da descoberta da América, só teve o efeito de triplicar, ou quadruplicar o valor nominal das mercadorias, mas não o de abaixar a quota do interesse da moeda, antes o de exaltá-la, de sorte que Felipe II foi obrigado a recorrer a empréstimos usurários, e fazer, por fim, bancarrota”. AS, 1826, 01 de julho, p. 04. 92 “O celebre ministro de estado, o chanceler Bacon, que depois deu tão espiritual sopro aos conhecimentos humanos, foi condenado no parlamento por venal; mas o historiador Hume diz que os seus maiores inimigos reconheceram que as suas sentenças eram fundadas na maior equidade”. AS, 1826, 16 de agosto, p. 78. 93 AS, 1829, 14 de julho, 96. João de Barros também é mencionado, pelo mesmo senador, em outra ocasião, como “o historiador da descoberta do Brasil e da Ásia Oriental”. Cf. AS, 1829, 27 de maio, p. 252. 94 “Os portugueses foram os primeiros autores desse mal enome. Consta da história que, logo que se descobriu uma das Canarias (...) alguns portugueses roubaram os naturais da terra, trazendo-os a Portugal cativos; o que tanto indignou ao infante D. Henrique, que os mandou repor vestidos no seu país. Mas este mesmo príncipe, depois do descobrimento das ilhas de Cabo Verde, admitiu o comércio de escravatura, a título de resgate do paganismo, para terem o benefício da cristandade; mas realmente para com os escravos cultivarem a ilha de Madeira, onde se introduziu a cultura das canas de açúcar. O mesmo comércio se foi introduzido no chamado Senhorio de Guiné e com tanta violência que em toda a costa vizinha é conhecido o nome de - Apanhia, que designa o furtivo ato de apanhar os naturais da terra, que aliás, como diz o historiador João de Barros, continham povos criados na inocência de seus padres, e que facilmente tomaram o jugo da fé católica”. AAC, 1823, 30 de setembro, p. 257 (?), grifos no original. 52 delimitação de fronteiras95. Por fim, Rocha Pitta é usado para mostrar os perigos de uma política voltada para privilegiar a mineração, a partir do exemplo mostrado do “século de ouro”96. Em primeiro lugar, essas referências mostram a autoridade dos autores no trato com o passado. Para Silva Lisboa (e, pela ausência de contestações, talvez pudéssemos extrapolar para a Assembleia como um todo), as informações pontuais – digamos, factuais – transmitidas por esses autores não são alvo de discussão. Não se questiona a autoridade deles sobre as informações do passado, embora, como já dito, regimes de historicidade distintos estivessem ali reunidos em torno do epíteto “historiador”. As informações prestadas por eles não são mero ornamento ao discurso, mas informam exemplos que devem ou não ser seguidos, de forma semelhante aos autores anteriores que trabalhamos (Montesquieu e os demais). Como a forma de abordagem desses autores todos sobre eventos passados não se altera, podemos considerar ambos os gráficos como parte de um mesmo conjunto, a saber: mesmo que nem todos tenham sido tratados como historiadores, todos os mencionados autores, quando oferecem informações sobre o passado, não têm seu regime de veracidade contestado. Inexiste, no espaço político ali trabalhado, qualquer preocupação com um método do qual se poderia alcançar o passado – preocupação que, ao menos no Brasil, ficaria para mais tarde. Cairu: “os projetistas exploradores do Amazonas supõem que este rio, seus ramos, e adjacentes territórios se acham inexplorados pelos habitantes do império, e que ainda ignoramos o tesouro que ali possuímos: mas já o escritor inglês da História do Brasil, Roberto Southey [sic], fez justiça aos brasileiros, segurando-lhes a honra dos essenciais descobrimentos daquele rio até o Orinoco, referindo-se a monumentos, e ao testemunho do celebrado prussiano viajante Humboldt, de cuja autoridade (diz) não há apelação”. AS, 1826, 22 de agosto, p. 107. Na mesma discussão, Cairu também usaria Hume para traçar paralelos entre a situação do Brasil e a da Inglaterra. O exemplo inglês é trazido à discussão por Cairu para criticar um projeto de um cidadão dos EUA, apresentado, com crítica, pela comissão de comércio, tencionando delimitar a seu favor a exploração do rio Amazonas. À p. 108, Cairu introduz assim um argumento: “Permita-se-me aqui recordar o monumento que Hume refere na sua história da Inglaterra”. Passa, então, a narrar um acontecimento do reinado de Isabel, no qual os “ingleses navegantes descobriram o Archangel [sic], e o czar João Basilides, então reinante no império da Moscóvia, antes quase incógnito na Europa, lhes concedeu por isso muitos favores, e privilégios.” Esse fato deu origem, ainda na narrativa de Cairu, via Hume, a uma abertura do comércio da região do mar Cáspio pelo czar, mesmo sob protestos de Isabel, que desejava manter o monopólio. Sobre isso, diz Cairu que “o historiador [Hume] reflete: eis um príncipe bárbaro dando lições de sólida política a uma princesa a mais esclarecida do século. “ [grifos no original]. 96 “O nosso escritor Rocha Pitta, na sua historia da America portuguesa, seguindo o geral entusiasmo, chamou a esse século a idade de ouro; mas de fato foi a de ferro, porque só atraiu braços e capitais de beira-mar para o centro, e influiu muito na decadência do Brasil, que depois não pôde concorrer com as mais colônias ultramarinas.” AS, 1826, 28 de julho, p. 186. No ano seguinte, Lisboa voltaria a tratar do ponto quase com as mesmas palavras, na continuação da mesma discussão sobre mineração: “O Historiador d´América Portuguesa, Rocha Pitta, intitulou a essa época a idade de ouro, porém mostrou-se realmente a idade de ferro. Então, viu-se a mania com que muito povo do litoral correu ao centro: abandonaram-se muito as lavouras das canas de açúcar, e este precioso ramo da agricultura e o do tabaco decaiu por extremo. O mal depois se agravou pela concorrência também de outras Nações, que estabeleceram iguais culturas em suas colônias d´América”. AS, 1827, 10 de maio, p. 46. 95 53 Assim, se, por um lado, a opinião dos autores poderia ser criticada, reavaliada ou adaptada, as informações pontuais fornecidas não eram alvo de discordância. Refletia-se sobre as conclusões de acordo com a realidade brasileira, mas não das bases que a ela levavam. Em segundo lugar, conforme já pode ter ficado evidente na leitura, o fato de praticamente todas as referências a historiadores terem partido de Silva Lisboa, especialmente as de Tácito (apenas uma referência é feita por outro parlamentar: Borges). Tal preponderância fica clara quando vislumbramos os deputados e senadores que traziam as referências aos debates, tanto historiadores quanto demais autores: Gráfico 2.5: Constituintes que fizeram referência 35 30 25 20 15 10 5 0 Silva Lisboa Carvalho e Mello Andrada Machado Outros Fonte: AAC, 1823 Gráfico 2.6: Senadores que fizeram referência 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Cayru Marquês de Caravellas Borges Carneiro de Campos Outros Fonte: AS, 1826-1829 54 Gráfico 2.7: Deputados que fizeram referência 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Vasconcellos Arcebispo da Bahia (Romualdo Antônio de Seixas) Almeida Lino Coutinho Albuquerque Outros Fonte: ACD, 1826-1829 Primeiro, duas considerações de ordem geral. Os gráficos acima mostram a quantidade de referências, nos debates, feitos pelos respectivos parlamentares em três espaços: a Assembleia Constituinte, o Senado e a Câmara dos Deputados, entre 1823 e 1829. Não devemos, porém, considerar que os demais participantes, ou mesmo aqueles pouco numerosos a ponto de estarem na categoria “outros”, são menos relevantes nas discussões que os mais atuantes. O exercício aqui proposto não pretende desconsiderar que intervenções poderosas podem ser estabelecidas na discussão política sem que o argumento de autoridade seja necessariamente exposto. Além disso, como veremos nos capítulos seguintes, boa parte dos produtores de narrativas exemplares sobre os “olhos na Europa” ou os “pés na América” faz parte do conjunto de agentes políticos mostrados nos gráficos acima. O que nos leva a uma conexão entre os deputados e senadores que trazem autores à discussão e aqueles que trazem exemplos estrangeiros, do presente ou do passado, para a construção de uma narrativa da experiência histórica brasileira. Dito isso, passemos aos gráficos. Observando os dois primeiros, referentes à Assembleia Constituinte de 1823 e ao Senado, podemos perceber a notável distância entre o volume de citações levadas à tribuna por José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, e o de seus pares. No momento da Constituinte, suas intervenções são comparáveis à soma de todas as outras colhidas. No Senado, superam em muito a 55 totalidade dos demais. Na Câmara dos Deputados, embora a liderança esteja com Bernardo Pereira de Vasconcellos, aquele que se notabilizaria como o principal ator da política liberal e conservadora nas primeiras décadas do Império do Brasil, sendo seguido, no gráfico, pelo arcebispo da Bahia, o conjunto de intervenções é menos desequilibrado, sem tantas discrepâncias acentuadas. Além disso, se vamos ao total de intervenções, percebemos que a soma de todas elas na Câmara dos Deputados não fica muito acima da soma de todas as efetuadas apenas por Silva Lisboa. Por que, nos dois primeiros espaços, existe tamanha dominância referencial do Visconde de Cairu? A trajetória de Silva Lisboa explica essa disparidade, havendo entrado para a historiografia como autor mais próximo ao padrão do “homem de letras” do Antigo Regime do que de um intelectual em moldes mais modernos.97 Cairu era conhecido – e, não raro, criticado – por seu estilo erudito, repleto de citações em latim e referência a autores clássicos e iluministas. 98 “Sempre orbitando em torno do núcleo do poder”, nas palavras de Antônio Penalves Rocha, Cairu foi deputado das Juntas das Cortes, nomeado por Dom João VI, Inspetor Geral dos estabelecimentos literários, que lhe deu poder de censor, e publicista, publicando periódicos, panfletos e historiador memorialista oficial do regime joanino no Brasil – cargo que desempenharia oficialmente depois para o Brasil independente a mando de Dom Pedro I.99 Tal trajetória punha Cairu em diferenciação em relação a seus contemporâneos, tanto pela maior proximidade com um regime de historicidade antigo, o que lhe conferia aquela característica de viver em uma “brecha entre dois tempos distintos” 100 , quanto pelo maior entrelaçamento entre preocupações do político e preocupações do historiador. Entrelaçamento este que, aos olhos dos contemporâneos, ao menos oficialmente, era repudiado. Nesse sentido, por essa percepção de separação entre o homem de letras e o homem da tribuna, uma de suas obras historiográficas mais significativas, a primeira grande tentativa de macronarrativa da História brasileira, foi, já desde meados do século XIX, relegada a segundo plano, desconsiderada como historiografia. Trata-se da História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil, cuja “introdução”, de 97 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu: itinerários de um ilustrado luso-brasileiro. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: PUC-Minas, 2009, p. 13. 98 Idem, p. 206. 99 Idem, p. 207-235 e 267-271; ROCHA, Antonio Penalves (org.). Introdução. In: José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 19. 100 KIRSCHNER, Tereza Cristina. José da Silva Lisboa... op. cit., p. 10. 56 1825, poderia ser considerada, segundo Valdei Lopes do Araújo, “uma interpretação geral da historiografia sobre o Brasil”101, ou ainda um “primeiro esboço de uma História Geral do Brasil escrita por um brasileiro (...) [e] um momento de inflexão na escrita da história, que caminha para uma maior autonomia e cientifização”102. Para Diniz, Cairu escreve sua História com o intuito de “legitimar o projeto de „Regeneração do Brasil‟ empreendida [sic] por Dom Pedro” 103. A obra acaba saindo incompleta: dividida originalmente em 10 partes, foram publicadas apenas a introdução (1825), um volume dedicado à primeira parte (1826) e outros três volumes, nos anos seguintes, para a décima parte. Nessas frações, porém, nota-se o esforço do autor em dar à História uma concepção distinta daquela que predominou nas décadas anteriores, e mesmo na obra anterior do próprio Cairu. Em sua História, Cairu busca no passado distante um viés explicativo para a afirmação do Império do Brasil, passado este que remontaria aos Descobrimentos portugueses. Além disso, a concepção de Cairu acerca da História envolve uma preocupação com a veracidade dos fatos e uma abordagem da História como processo. Nota-se também, em Cairu, uma preocupação com um levantamento historiográfico do já produzido a respeito da História do Império, algo fundamental nos trabalhos acadêmicos atuais. Em sua Introdução, Cairu reconhece a importância de seu empreendimento e o lugar que tem a História na formação da identidade nacional. Segundo suas palavras, A Importância de uma História Geral de qualquer Estado Independente, é reconhecida em todo o País Culto; e não menos é reconhecida a dificuldade desta espécie de Composição Literária, que demanda grande vigor de espírito e corpo, longos anos de trabalho, e muitos subsídios de Monumentos Públicos. Por isso tem sido raros os Herodotos, e Livios.104 Para Araújo, essa dificuldade de escrita de uma História Geral, no caso brasileiro, dizia respeito à ausência de uma liberdade de idéias, fruto do sistema de colonização aqui implantado. Tal sistema, que para Cairu fundamentava-se nos segredos de Estado, gerou uma escassez de monumentos que servissem informações a respeito dos primeiros anos do Brasil. Após a assinatura do Tratado de Utrech, em 1713, que 101 ARAÚJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (18081830). In: NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das... [et al.]. (orgs.). Estudos de Historiografia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 75-92 (p. 78). 102 SILVA, Bruno Diniz. Cayru e o primeiro esboço de uma História Geral do Brasil Independente. In: História da Historiografia. Número 2. Março, 2009, 260-266 (261). 103 Idem, p. 263. 104 LISBOA, José da Silva. Introdução à História dos principais sucessos do Império do Brasil. In: História da Historiografia. Número 2. Março, 2009, 267-281 (268). 57 para Cairu estabeleceu em definitivo o “Sistema Colonial”, “foram insuperáveis os obstáculos da exploração do Brasil pelos Sábios da Europa” 105. Entre idas e vindas, apenas a chegada da Corte, em 1808, teria sido capaz de romper com esse sistema e inaugurar uma nova era em termos de escrita da história nacional. Não à toa, parte desse rompimento deveu-se à assinatura dos tratados comerciais. Liberdade de comércio e de idéias ligavam-se intimamente na reflexão de Cairu. Novamente segundo Araújo, “no centro da história de Cairu estava a idéia de que as sociedades modernas fundavam-se no comércio e na sociabilidade” 106 . Para Cairu, seguindo a tradição de Bonifácio, o Império do Brasil seria o herdeiro cultural da civilização representada por Portugal, e a vitória da Independência representava um projeto de continuidade em relação a 1808, que teria representado o encerramento da política de segredos de Estado, tão característica do despotismo. A Dom Pedro I caberia o mérito de manter esse processo sem deixar que o perigo da revolução se aproximasse. Percebe-se, em Cairu, a associação entre Império, nação, História do Brasil e civilização. Essa associação seria ainda incorporada por outros intelectuais que buscavam construir a História nacional ao longo do século XIX. Cairu, não sem surpresa, foi apontado pela historiografia subsequente não como autor de uma História nacional, mas como panfletista a serviço da reabilitação de Pedro I107. Defender Pedro I, naquelas circunstâncias, significava para os coevos partilhar da concepção de nação centralizada em sua figura. Nos anos derradeiros do Primeiro Reinado, e principalmente nos anos iniciais da Regência, após a abdicação de Dom Pedro, a concepção descentralizada, momentaneamente vitoriosa, acaba deixando a obra de Cairu em segundo plano. Mais à frente, nos moldes da historiografia definida no IHGB, Cairu continuaria a não ser considerado, especialmente por não atender aos princípios decididos no Instituto como essenciais ao historiador. É fundamental percebermos que as partes da História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil foram lançadas numa década de grandes conflitos entre grupos políticos diversos. A idéia de que atuação política e escrita da História não se poderiam misturar ganharia cada vez mais força até se fixar como método único 105 Idem, p. 269. ARAÚJO, Valdei Lopes de. Cairu e a emergência da consciência historiográfica no Brasil (18081830)... op. cit., p. 90. 107 Assim tachado, Cairu seria relegado por parte significativa da historiografia, vítima do “desprezo ao intelectual que põe seus serviços à disposição do Estado”. Cf. ROCHA, Antonio Penalves. A Economia Política na Sociedade Escravista. São Paulo: Departamento de História – FFLCH – USP/HUCITEC, 1996, introdução. 106 58 legitimado para a análise do passado. Essa fixação, que afastou a obra de Cairu como uma possibilidade historiográfica real, deu-se principalmente a partir do final da década de 1830. A História, tal como era entendida no Primeiro Reinado, porém, guardava certas particularidades. Vamos discutir algumas delas a seguir. 1.2) A História para uso no presente Como vimos anteriormente, a forma de tratamento dos autores referenciados no Primeiro Reinado foi de profunda confiança nas informações deles oriundas. Tal perspectiva é significativa quando comparamos com a forma pela qual a “história” era vista. Afinal, tamanha confiança nas informações vindas do passado, mediante ação dos historiadores ou demais escritores, vistos como autoridade nesse assunto, ligava-se, via de regra, a uma convicção na força do passado para direcionar a ação política. Para Costa Aguiar, por exemplo, nos debates da Constituinte a respeito da concessão ou não de anistia a presos políticos, frutos das perseguições no encaminhamento do processo de ruptura com Portugal, havia o entendimento de que era uma fatalidade humana que nem sempre os homens aprendam da historia a evitar males a maior parte das vezes originados por medidas imprudentes, e por um excesso mal entendido de piedade ou comiseração da pobre humanidade, que quase sempre é o manto escuro com que se pretendem encobrir vistas sinistras de amizade, ou de uma proteção decidida para melhor consecução de fins particulares 108. Num momento de abertura para o novo, de experimentação da construção de uma direção política, olhar para trás poderia trazer luzes à ação. “História”, aqui, é um manancial de informações que pode ser interpretada, que pode ser acessível a todos que se dispuserem a tanto. “Ler” na história era tarefa aberta aos legisladores. A “história” como livro aberto servia à metonímia presente em diversos discursos. Como em Andrada Machado, que, na mesma discussão anterior, afirmava: Por mais que folheio a historia nunca vejo senão dois casos, em que se tenham concedido anistia; 1º, no fim de uma conquista para conciliar a vontade do povo subjugado, e imprimir-lhe profundamente a ideia da bondade do conquistador. É política dar como graça o que se devia de justiça, pois quem lhe resistiu, tinha direito de o fazer; e ele nenhum de 108 AAC, 1823, 22 de maio, p. 138-139. 59 punir a resistência; 2º, quando desavenças políticas dividem em dois partidos os membros de uma sociedade109. E, mais à frente, defendendo o exercício da anistia pelo monarca: “A historia nos proclama a precisão de um poder conservador; e na monarquia outro qualquer que não seja o monarca, é inútil”110. Muitas outras coisas teria a “história” a ensinar. Em discussão sobre tropas, o mesmo Andrada Machado volta ao passado para marcar um posicionamento: “a historia mostra que os homens de países quentes são sempre bons soldados nos países frios; graças ao sol que nos produziu! Seremos tão bons soldados nos desertos da África como nos gelos da Noruega” 111 . Silva Lisboa, em outra sessão em que se aborda o tema, também tiraria do exemplo passado uma norma geral: “As tropas (...) farão os esforços de heroicidade que a historia mostra dos povos valorosos, quando souberem que não têm esperança de salvação, ainda rendidos” 112. No momento de discussão do projeto de Constituição, falando-se sobre a questão da forma de governo, se confederado ou não, o deputado Montezuma vai à história para mostrar que “confederação” e “monarquia” não são excludentes: “Ninguém ainda o disse, é novo: e a historia de todos os tempos mostra diametralmente o contrario: - são infinitas as vezes que se têm confederado pequenos reinos, sustentando todavia as formas e instituições monárquicas” 113. E mesmo num momento delicado para os deputados (ou especialmente nesse momento), quando a movimentação das tropas se intensificava e o fechamento da 109 AAC, 1823, 22 de maio, p. 141. Idem, ibidem. Da mesma maneira, Carneiro da Cunha diria, noutra ocasião: “Li na história que temendo certo povo um varão distinto pela aura popular, que tinha adquirido por suas brilhantes qualidades pretenderam abatê-lo, e para o conseguirem deram-lhe um emprego, que eles reputavam vil, o qual seguramente correspondia ao de almotacel; mas o herói e virtuoso cidadão de tal forma desempenhou o seu lugar e procedeu com tal atividade, resultando dele tão grande bem à cidade que dali para diante ficou sendo um emprego nobre”. Cf. AAC, 1823, 21 de junho, p. 128. O mesmo autor, numa terceira ocasião, sobre a forma de promulgação das leis, discutindo-se o tamanho da influência que se deveria conceder ao monarca para sancionar a legislação da Assembleia, voltaria à ideia de “leitura na história”: “Nós sabemos, e todos os que têm lido a historia sabem, as cenas deploráveis que viu a França... tendo dentro em seu seio elementos opostos, foi-lhe necessário, apesar da propagação das luzes, quando quis formar as suas novas leis, conceder a sanção ao monarca pelos motivos que mui bem demonstrou o Sr. Andrada Machado; mas que fizeram com isto? Bem desgraçado dom foi esse que concederão ao infeliz Luiz XVI! Foi dom que finalmente o levou ao cadafalso”. A história permitia leituras das quais se tirariam boas lições. Cf. AAC, 1823, 29 de julho, p. 166 111 AAC, 1823, 31 de julho, p. 190. 112 AAC, 1823, 30 de agosto, p. 198. 113 E complementaria: “Se a experiência nos mostra que de reinos unidos, se forma um todo monárquico federal; se de províncias unidas se forma um todo republicano; porque igualmente de províncias confederalmente unidas não formaremos um todo monárquico representativo? Onde está o absurdo, pedra de escândalo, que tanto irritou o delicado sensório do ilustre deputado todo ocupado, e tão ardentemente, em defender o bem geral?” AAC, 1823, 17 de setembro, p. 154. 110 60 Constituinte já era possibilidade levantada por alguns, Silva Lisboa recorria à história para entender e, até, tranquilizar a situação: A tropa é essencialmente uma força armada, estar ou não atualmente debaixo das armas e com munições de guerra, evidentemente, se mostra ser medida de precaução para prevenir desordens, pelos boatos que a malignidade de paixões particulares tem espalhado por ocasião dos delitos noturnos, sobre que se tem discutido nesta assembléia com grande agitação (...) Examinar-se com severo escrutínio agora pela assembléia que corpos militares primeiro se moveram, com ordem, ou sem ela, de seus aquartelamentos, não pode ter efeito útil. A história mostra exemplos semelhantes em convulsões dos estados ou dissensões de autoridades, as irregularidades muitas vezes são momentâneas e sem conseqüência, quando o governo é respeitado e firme, que põe tudo em ordem pela disciplina do exército114. “A lição da história”, segundo Muniz Tavares em discussão sobre o projeto de Constituição em 1823, “nos ministra bastantes exemplos em confirmação do que acabo de dizer, e estes exemplos nos devem servir de farol em tão árdua questão” 115. “Não aprenderemos da lição de História e não nos escarmentaremos do hórrido fato que o mundo viu no juízo da Assembleia Nacional, quando pôs em processo o infeliz Luiz XVI?”, questionou Silva Lisboa ao defender a votação no Senado por escrutínio secreto. “Se a votação da sentença se fizesse por escrutínio, é moralmente impossível que ele fosse condenado”, completou116. Noutra discussão, após elencar exemplos de situações políticas que levaram sistemas do passado ao caos momentâneo (Roma, França e Inglaterra), o Marquês de Caravelas pergunta: “Se acaso, Sr. Presidente, a lição da História nos apresenta semelhantes exemplos, para que nós queremos expor aos mesmos perigos? Para que estamos metafisicando [sic] contra a Constituição, quando tão claramente se patenteia o seu sentido?” 117. A experiência da história (ou da História) serviria, também, como prática da teoria e contraponto do que se considerava uma “metafísica”118. 114 AAC, 1823, 11 de novembro, p. 306, grifos no original. Na mesma sessão, sem mencionar a palavra “história”, o deputado Alencar também buscou num exemplo passado uma lógica que auxiliasse na ação àquele momento: “estou muito persuadido que da energia à precipitação não vai mais que um passo, e a precipitação tem sido nas assembleias constituintes a causa da sua queda”. Idem, p. 289. 115 AAC, 1823, 8 de outubro, p. 59. A “árdua questão”, no caso, referia-se à liberdade religiosa. Porém, diversas outras “árduas questões” poderiam ser aí incluídas e ter sua solução tirada do farol da história. 116 AS, 1827, 10 de julho, p. 394. 117 AS, 1828, 10 de junho, p. 218. 118 O deputado Marianno Cavalcante resumiria bem a questão sobre união de teoria e prática: quando a experiência as tem mostrado nocivas [as teorias], parece absurdo admittil-as”. AAC, 1823, 21 de junho, p. 126. 61 O mesmo se passava na Câmara dos Deputados. Em discussão de projeto de lei sobre responsabilidade dos ministros, por exemplo, o deputado Costa Aguiar apelaria à História para explicar a importância de se acompanhar de perto as práticas administrativas do governo: Abramos, senhores, abramos os anais do mundo e veremos com admiração, que as grandes épocas da história, que as revoluções que as caracterizam e que até as menores comoções políticas, correspondem aos vícios da renda pública e da sua administração. Este resultado é o mesmo por toda a parte, em todos os tempos, em todos os povos e em todos os governos; e este concurso dos mesmos efeitos reproduzidos pelas mesmas causas em circunstâncias diversas, mostram melhor do que razões o que deixo avançado.119 Abrindo-se e verificando-se os “anais do mundo” poderia ver-se a regra geral que conectava as “grandes épocas”, caracterizadas por revoluções, a práticas similares àquelas que o projeto de lei acima em discussão procurava resolver, responsabilizandose os ministros pelas suas ações no cargo. A observância da história para prevenção de males pode ser vista também em discussão de parecer da comissão de comércio, apresentado em 26 de junho, sobre requerimento para estabelecimento de uma companhia agronômica na província do Maranhão. A crítica a companhias remetia ao passado, a ponto de Bernardo Pereira de Vasconcellos afirmar que era “inimigo jurado de companhias: sou inimigo de companhias, porque a história m´as apresenta muito prejudiciais. (...) A história mostra os maus efeitos das companhias. (...) A historia o prova e estes princípios são infalíveis.”120 Não obstante, a questão da aplicabilidade permanecia com força. O próprio Vasconcellos, em discussão de projeto de lei sobre abolição dos privilégios de foro pessoal – que tencionava eliminar, nos âmbitos civil e criminal, o privilégio pessoal de foro dos eclesiásticos, militares, cavaleiros, desembargadores e outros – mostraria isso. Após uma sequência de intervenções de diversos deputados trazendo elementos históricos para justificar a posição contrária ao projeto de lei (na qual destacaria-se a atuação do deputado Marcos Antônio 121 ), afirmaria Vasconcellos, indignado: “Muita admiração me causa que estejamos aqui a gastar inutilmente o tempo que nos é precioso 119 ACD, 1826, 20 de junho, p. 226. ACD, 1826, 19 de julho, p. 234-235. 121 Disse o deputado que “a utilidade pública exige que se conserve este foro, e que os eclesiásticos não compareçam perante juízes temporais; (...) Além disto desde as primeiras eras da igreja católica têm sido os eclesiásticos julgados por seus pares, consentindo os príncipes cristãos. Ora, sendo este privilégio estabelecido, e sancionado pela longa duração de 15 séculos, como pretende a assembléia legislativa do Brasil destruir obra tão antiga?”. ACD, 1826,, 27 de julho, p. 327. 120 62 discutindo pontos da história! Nós não somos historiadores, mas legisladores.”122 A fala de Vasconcellos mostra o limiar do uso da história tal como defendido por aqueles que mais a ela apelavam: a diferença entre o acesso ao passado para iluminar e construir interpretações no presente e o recurso a ele para elencar uma sequência de fatos pontuais que não mais cabiam como exemplos moralizadores da experiência presente. No primeiro caso, o apelo ao passado servia para fortalecer posições que os legisladores construíam a partir do presente: era este quem definiria a aplicabilidade ou não do evento passado. Tal forma de apelo era aceitável. No segundo caso, porém, o passado usado como argumento para impor-se ao presente como exemplo moralizador era enfraquecido. Melhor seria deixar o passado para os historiadores. A resposta do deputado Seixas a essa fala última de Vasconcellos, bem como sua tréplica, mostram essa distinção. Após fazer referências à história eclesiástica e mencionar lei do imperador Honório, no ano 408, afirmaria: Mas enfim deixemos isto, como alheio da questão, não consentindo todavia passe a ideia aqui emitida por um nobre deputado [Vasconcellos], de que se não devem admitir fatos históricos em as nossas discussões, pois estou convencido de que a história é a verdadeira escola da legislação, da moral e da política, e oxalá que todos os legisladores bebessem nesta fonte os princípios que devem regular a sua marcha.123 Ao que retruca Vasconcellos: Sr. Presidente, eu agora não tenho que falar sobre a matéria, vou falar sobre a ordem: julgo que esta casa não é aula de história eclesiástica, assim não devemos estar aqui expedindo fatos de história para mostrar erudição. (...) o que são causas eclesiásticas? Para definirmos, não é preciso o recurso da história, não é necessário citar S. Pedro, S. Paulo, e os imperadores romanos, isto é perder tempo que se podia aproveitar. O plenário não era aula de história, fosse eclesiástica ou não; os legisladores não eram historiadores. Estes, colecionadores de fatos passados, buscariam o passado em si, nas suas particularidades, no conjunto de acontecimentos pretéritos que formavam toda a dimensão erudita do saber. Os legisladores, homens de ação, homens de prática, recorriam ao passado apenas para conferir argumento ao julgamento presente, à interpretação presente – para isso, claro, precisando dos historiadores. É a separação entre história como um processo contínuo do qual se podem tirar conhecimentos pertinentes à vida prática presente e a história como conjunto isolado de acontecimentos 122 123 ACD, 1826, 27 de julho, p. 333. Idem, p. 356. 63 passados, que faz a vida dos eruditos em seus ofícios, mas que, no calor da construção política, redundariam apenas em tempo perdido. Nenhuma discussão na Câmara dos Deputados, porém, é mais significativa desses conflitos sobre usos da história do que a discussão sobre a criação dos cursos jurídicos. O projeto de lei, organizado pela comissão de instrução pública e lido pelo deputado Januário da Cunha Barbosa, em 5 de julho de 1826, estabelecia originalmente um “curso jurídico ou de ciências sociais por agora no Rio de Janeiro”, o qual teria 8 cadeiras. Dessas oito, metade tinham, no nome, a palavra “história”, a saber: “2.ª – Direito Pátrio civil e criminal. História de legislação nacional”; “3.ª – Filosofia jurídica, ou princípios gerais de legislação. História das legislações antigas, e seus efeitos políticos.”; “4.ª – Instituições canônicas, e história eclesiástica.”; “8.ª – História filosófica e política das nações, ou discussão histórica dos seus interesses recíprocos e de suas negociações.”124 Diversas questões são debatidas, como a pertinência da localização, a capacidade dos professores, a quantidade de cursos etc., em grande parte dando continuidade a debates a respeito iniciados ainda na Constituinte, em 1823. Porém, nesse momento, as discussões sobre as cadeiras indicadas no projeto, especialmente as que tocam a história, são nosso foco. O busílis estava exatamente na cadeira 2, no que tange à “História de legislação nacional”. Vasconcellos, lendo em voz alta o projeto, diz que não se pode negar que a história de qualquer legislação muito favorece a inteligência, e que isso permite maior conhecimento do “espírito das leis”. Contudo, continua, como temos de organizar um novo código, e há de finalmente chegar o tempo de acabar com esta legislação atual, que provisoriamente nos serve, parecia que por ora se pode muito bem escusar esta cadeira de história da legislação portuguesa, que nestes últimos 50 anos tem crescido, e avultado tanto, que o jurisconsulto mal pode ter notícia da lei, quanto mais da sua história! A nova legislação, deve principiar quanto antes se possível fosse do ano de 1827 por diante.125 Novamente vemos a relação da história com a ideia de conhecimento prático. Se antes a discussão era sobre a relevância do conjunto de dados isolados do passado para o legislador, agora discute-se a pertinência do pleno conhecimento da legislação pátria passada – e a continuidade nacional entre Portugal e Brasil fica patente no discurso – 124 ACD, 1826, 5 de julho, p. 51. A cadeira número 6 ainda poderia entrar nesse conjunto, já que tratava do “Direito político, ou análise das constituições dos diversos governos antigos e modernos.” 125 ACD, 1826, 07 de agosto, p. 64. 64 como pré-requisito para formação jurídica. Vasconcellos, percebe-se, não nega a relevância de tal saber. Mas a história, o conhecimento do “espírito da lei”, o contexto que a produziu, é hierarquizado e tornado secundário frente à necessidade de se conhecer a novidade – e aqui é crucial a articulação dessa lógica ao próprio rompimento com Portugal: a “novidade” era o novo país, o Império; o passado era o passado português a ser superado. A lei a ser produzida, a lei a ser criada, sobrepõe-se à lei antiga a ponto de o conhecimento desta ser passível de exclusão curricular; o presente sobrepunha-se ao passado. Compreende-se que, não obstante o saber passado possa fornecer melhor compreensão da lei presente e futura, tal compreensão não é indispensável para a existência àquela contemporaneidade. O passado não era indispensável à plena compreensão e vivência prática do presente. O presente e o futuro, em termos legais, prescindia do passado para lhe dar sentido – afinal, os sentidos presentes e futuros estavam inscritos numa lógica que o passado não era mais fundamental para sua realização. Clemente Pereira discordaria. Para ele, pelo que respeita a história da legislação nacional, que aqui se disse ser ociosa, direi que se nós tivéssemos já um código particular, então devendo a história principiar do dia em que o código aparecesse, com alguma razão se poderia dispensar, mas como muito tempo se passará sem que apareça este código, a história da legislação que temos ensinada pelos jurisconsultos servirá de princípios ao estudo do direito pátrio (...) pois com estes dados mais habilitado se fica, para bem entender as leis, o que nunca se poderá bem conseguir sem este estudo por assim dizer preliminar destas matérias. 126 As condições que Clemente Pereira apontava no Brasil não eram as mesmas de Vasconcellos. Para este, o futuro era mais fundamental ao legislador do que o passado; para aquele, o passado ainda se mantinha como sombra sobre o presente, devendo sua plena compreensão ser indispensável. Para Clemente Pereira, por conseqüência, o estudo da história é necessário, e deve preceder mesmo a todos os mais estudos, a lição da história é a lição do passado, que serve de boa regra para o futuro: o homem que sabe a história bem, que nela é forte, sabe muita coisa, nela verá os males, e inconvenientes, que têm havido por falta de boas aplicações e tirará daqui a regra para não cair nos mesmos inconvenientes e males. Se fosse possível carregar com mais 126 ACD, 1826, 23 de agosto, p. 241. 65 história, votaria que fosse ensinada a história universal, porque serve de grande base no desempenho dos lugares. 127 Estando o passado ainda com sombras sobre o presente, ao invés do futuro como referência, a história ainda servia à “boa aplicação” que impediria a queda “nos mesmos inconvenientes e males”. A história mantinha sua importância porque o passado ainda se fazia presente. E, generalizando a especificidade do cursos jurídicos, a história universal ainda servia de “grande base” no “desempenho dos lugares”. “Carregar mais história” permitiria uma mais destacada atuação no presente. Outro deputado, Lino Coutinho, não discordaria da importância do estudo da história da legislação pátria. Pelo contrário: considerava que tal seria muito útil porque, no presente, ainda vigiam as leis portuguesas, e, no futuro, tal estudo daria as razões para as mudanças legislativas. Porém, reforçaria o ponto de Vasconcellos, que ouvia ali dizer que a história devia sempre preceder a todo e qualquer estudo, mas que história, Sr. Presidente? Como poderá um estudante sem conhecimentos ainda nenhuns das matérias de que se vai tratar ligar fatos às vezes destacados, ou apreciar as suas relações e conseqüências disfarçadas ordinariamente por tão diversas circunstâncias? A história não serve, principalmente nas ciências, senão como uma demonstração dos princípios já estudados, a experiência tem mostrado que só assim pode ela apresentar-se com toda a sua utilidade, e presentemente nenhum tratado aparece, qualquer que seja a sua doutrina, que principie pela história, pois seria perder tempo, e mesmo inutilizar este estudo aliás proveitoso. Por isso eu acho que a história deve servir de fecho a todos estes estudos.128 Ou seja, para a história fazer sentido, não se poderia partir cru para o estudo do passado em si, mas, no lugar disso, era preciso primeiro estudar os princípios para depois, sim, ir à história em busca da “demonstração” dos mesmos princípios já estudados. Não se deveria principiar pela história; seria “perda de tempo”. Os estudos deveriam partir do presente, agindo a história como liga a manter todos unidos e com sentido. Novamente percebe-se a subordinação. Custódio Dias também seguiria essa direção, ampliando a questão para a própria concepção de presente na qual enxergava o Brasil, contrastando-a com um passado terrível que se havia superado.129 Segundo o deputado, 127 Idem, ibidem. Idem, p. 242. 129 Voltaremos a essa questão nos próximos capítulos. 128 66 O nosso direito pátrio, Sr. Presidente, é todo contrário a essas pestíferas máximas do direito português. E será possível que vamos imbuir a nossa mocidade nessas máximas de legitimidade e escravidão nacional? No Brasil não é possível. Estamos em outra época, e em outro mundo. O mundo velho não tem trazido ao mundo novo, senão a escravidão, e com ela os males de todo o gênero. O nosso direito é todo constitucional, contra o qual se levantam as testas coroadas da Europa: é este direito que nos há de salvar das máximas do mundo velho. A Europa da forma em que se acha, e a que a tem reduzido o célebre congresso de Laibak, poderá oferecer ótimos princípios de legislação à Ásia, ou à África; porém à América não. A nossa legislação nós é que havemos de fazer: por conseqüência a história desta legislação ainda está nos possíveis. Contudo, eu votarei pela cadeira de história, só com a condição de servir unicamente para ensinar à mocidade brasileira a detestar e a ter em horror essas máximas e esses tempos de execranda memória.130 A história, nessa perspectiva, era um espaço preso ao passado. Um museu de horrores cujo estudo justificava-se apenas para manter viva a memória da tragédia pretérita. O Brasil não era uma continuidade da presença portuguesa, tampouco uma continuidade temporal da época de trevas. O novo tempo, no qual o Império se inseria, era a ponta de lança da civilização, não tendo Portugal nada a lhe ensinar nesse particular. A temporalidade da América não era comparável à da África ou da Ásia, que constituiriam o passado europeu e americano.131 A história ganhava um outro caráter nesse conjunto. Baptista Pereira, encerrando a questão, afirmaria que votara contra a aula de história, supondo que a história da jurisprudência indispensável ao jurisconsulto de outro tempo, hoje a considero como uma lição meramente instrutiva e agradável como a história filosófica e política de todos os acontecimentos, que têm tido lugar no mundo inteiro. A história era indispensável ao jurisconsulto, que se propunha a interpretar as leis, pelos motivos que as fizeram promulgar nessas nações, donde elas foram adotadas. Porém, bem se vê que os princípios, por que hoje nos regemos, felizmente não permitem que os negócios do Brasil sejam julgados pelas leis promulgadas em Roma há dois mil anos, nem pelas que se fizeram em Portugal há 400 ou 500 anos. Ainda que desgraçadamente nos servimos do informe código português, todavia não o havemos de entender pelos princípios que vogavam, mas pelas luzes do nosso século e pelos axiomas da nossa constituição. Demais, esta mesma legislação há de terminar e ser substituída por outra (talvez em menos tempo do que se julga) e então de que servirá essa história?132 130 ACD, 1826, 26 de agosto, p. 267. Também voltaremos a esse ponto nos próximos capítulos. 132 Idem, ibidem. No final da discussão, não foi aprovada a cadeira de história da legislação pátria. 131 67 De que servirá a história que está prestes a ser plenamente superada? A linha que separava a história que serve de mero conjunto de curiosidades, devendo, portanto, não ser aplicável à vida prática, e aquela distinta, que ainda servia à ação presente, era tênue. Portanto, quando falamos de “história”, de que “história” estamos falando? De “história”, no singular, ou de “histórias”? De “história” como um “singular coletivo”, à Koselleck, ou das diversas narrativas e trajetórias passadas, sem um elemento que as unificasse num único conceito? Em suma, de “História”, com maiúscula, ou com minúscula? A maioria absoluta dos casos de apelo à “história” para fortalecer ou justificar uma posição política vem dessa estrutura: palavra singular com minúscula. As exceções que confirmam a regra são de dois tipos: o uso da inicial maiúscula para a palavra (“História”) e o uso de expressões que possam particularizar a narrativa passada de que se trata (como “história da guerra”, “história eclesiástica” etc.) “A história proclama”, “a história mostra”, “a história fornece”, “a história ministra”, “a história prova”, “a história confirma”, “a história certifica”... Muitos são os usos e os verbos que acompanham a palavra “história”. Todos, de alguma maneira, tentando pôr a “história” como sujeito de uma ação que possa, por si só, garantir inteligibilidade àqueles tempos de mudança. Quanto mais se apegasse aos exemplos passados em casos-limite de dúvidas, mais perto de uma estabilidade se estaria. Mas qual o significado profundo dessas lições? Qual é o sentido do aprendizado que se poderia ter a partir da experiência da história? Estaríamos diante de uma continuidade do topos da historia magistra vitae? Valdei Araújo analisa a permanência da expressão historia magistra vitae atentando para a necessidade de se refletir sobre a questão a partir de dois elementos: seria uma permanência topológica – ou seja, como um locus de onde se construiria um arcabouço constitutivo da pesquisa – ou mero vício de linguagem, reproduzindo uma estrutura antiga mais ou menos despojada de sua carga conceitual original?133 Embora careçamos de mais estudos na área, argumenta Valdei que a permanência da expressão não deve significar atraso ou discrepância do Brasil em relação ao regime de temporalidade moderno, mas, simplesmente, pode significar a permanência da noção de que a história ensina, embora sob outras bases e noções do 133 ARAÚJO, Valdei Lopes de. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editoria FGV, 2011, p. 131-148. 68 significado de “ensinar”. Não mais seria o livro ou o exemplo puro perfeitamente aplicável, mas, sim, a compreensão do processo histórico é que poderia servir de guia para atuação no futuro incerto (característica da modernidade conceitual). Um dos significados levantados por Valdei no artigo, no esforço de sistematização da permanência no século XIX brasileiro, é a sua “politização”. Nas palavras de Valdei: os usos pragmáticos da escrita da história em contextos de elevado conflito político-social impunham um tipo de ação direta por parte do “historiador”, inclusive nas disputas sobre os significados da escrita da história e da história em si. Esse parece ter sido o caso da França durante boa parte do século XIX e do Brasil desde a crise aberta em 1808 até os anos finais da Regência (...) Esses momentos de crise deram novo fôlego aos modelos clássicos de escrita da história, sua função judicativa e moralizante. 134 Na linha aberta por Valdei, gostaria de abordar a questão do significado da palavra “história” argumentando que talvez possa ter havido um deslocamento do locus onde a história poderia cumprir sua função educadora e moralizadora, bem como exercer seu potencial exemplar, como processo contínuo, do espaço do estudo para o espaço da política. Ao mesmo tempo em que a história deixava sua inserção acadêmica à setecentos rumo à cientifização no oitocentos, cada vez mais as exigências da política pública abertas na Era das Revoluções exigiam dos agentes políticos – intelectuais no sentido gramsciano – um posicionamento na construção das nações que envolvia, em variados graus, um apelo à história135. Assim é que, para ficarmos em dois exemplos, podemos pensar na forma como o apelo a uma Roma clássica influenciou a visão de mundo dos colonos às vésperas de 1776, construindo-se uma visão na qual a Inglaterra deixava de ser associada à virtude republicana para ser vista como a degeneração imperial136, e podemos pensar em como a memória histórica da Revolução Francesa 134 Idem, p. 144 Para a vitória da história científica, cf. BERGER, Stefan. Introduction: towards a global history of national Historiographies. In: ______ (ed.) Writing the Nation: A Global Perspective. New York: Palgrave Macmillan, 2007, p. 1-29. , cf. ; para as academias, DIAS, Fabiana. Da Gênese do Campo Historiográfico: Erudição e Pragmatismo nas Associações Literárias dos Séculos XVIII e XIX. Revista de Teoria da História. Ano 2, Número 4, dezembro/ 2010; JESUS, Roger Lee Pessoa de. A História da América Portugueza (1730) de Sebastião da Rocha Pita: o contexto, o autor, a obra. Revista de História da Sociedade e da Cultura, 11, 2011, p. 141-164; KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-brasileira (1724-1759). São Paulo: HUCITEC; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004; KARVAT, Erivan Cassiano. Histórias na “História da América Portuguesa”: concepções de história em torno da obra de Rocha Pita (1730). Anais do XXIII Simpósio Nacional de História. Anpuh: Londrina, 2005. 136 SHALEV, Eran. Rome Reborn on Western Shores: Historical Imagination and the Creation of the American Republic. University of Virginia Press, 2009. 135 69 tornou-se arena de combate político entre liberais e conservadores na França do século XIX, cada qual buscando na história a sustentação para sua visão política137. Esse deslocamento não significa, contudo, que a expressão magistra vitae tenha mantido um sentido original moralizante. A questão é outra: tendo de lidar com um acúmulo de experiências passadas que tomavam como suas, os dirigentes políticos do Primeiro Reinado precisavam equacionar a tradição em que se viam inseridos com as tensões que se mostravam à sua frente. Em outras palavras, cientes de que faziam parte de algo novo na América, não deixavam, contudo, de se apoiar numa tradição que remontasse à Europa, com todas as conseqüências que isso poderia causar. A história que interpretavam, a qual liam e na qual buscavam exemplos para auxiliar seu proceder político continha também os exemplos de desgraça. Assim é que as lições de experiências parlamentares anteriores, ou situações de tensão social ou divergências econômicas poderiam ser aproximadas da nova experiência americana. O novo Estado a ser construído era atravessado pelas heranças a manter e pelas novidades a lidar: do primeiro conjunto, o nome, o território, a escravidão e a própria história; do segundo conjunto, as experiências de revoltas e revoluções europeias e americanas, tornadas próximas pela Confederação do Equador e pela permanente possibilidade de rebelião escrava, e as limitações causadas pela política inglesa no Atlântico. Assim, conectar a história do Brasil ao conjunto de experiências europeias anteriores teria um duplo significado: embora pudesse servir de farol para a política, não era uma lição 100% aplicável. A noção de que vivia-se na América um outro contexto, uma outra temporalidade, ainda que conectada à europeia, era forte. E isso exigia a construção de interpretações sobre as transformações dessa temporalidade, especialmente no preciso momento da ruptura política, como veremos no próximo capítulo. 137 MELLON, Stanley. The Political Uses of History, Stanford University Press, 1958. 70 Capítulo 2: Bases do discurso histórico na construção do Brasil Independente (1821-1822) No capítulo anterior, analisamos alguns usos e significados para a palavra “história” e para definições sobre o que seriam “historiadores”, ou “autores de história”, nas discussões políticas do Primeiro Reinado. Daqui até o final, trataremos mais dos conteúdos das narrativas históricas produzidas pelos agentes da política nos primeiros anos de Brasil independente. Para tanto, faremos, neste capítulo, um breve recuo. Como pretendemos mostrar, as principais bases que sustentaram a narrativa histórica nos discursos políticos do Primeiro Reinado foram formuladas inicialmente, com maior delineamento, no contexto de Independência (1821-1822). Como muitos dos pontos que serão discutidos nos capítulos finais encontram naquele momento sua primeira elaboração mais precisa, acredito ser fundamental analisar como no momento de ruptura uma certa narrativa da história da civilização, em luta contra a barbárie, foi primeiro construída, bem como o modo pelo qual o Brasil se inseria nessa narrativa. O espaço privilegiado de análise será o Reverbero Constitucional Fluminense, por razões que ficarão claras no item 2.2. Antes, porém, como forma de contextualizar a discussão, passemos a alguns elementos preliminares. *** Os anos de 1821 e 1822 foram plenos de disputas políticas, intelectuais e sociais entre grupos diversos a respeito da direção que a sociedade brasílica deveria seguir. Tratava-se de momento histórico privilegiado, “em que a linguagem se politizava e entrava na vida pública, recorrendo a um novo vocabulário político, pautado nas Luzes”138. Esse curto período testemunhou não apenas uma expansão dos espaços de discussão pública, com maior publicação de livros, periódicos, panfletos, discursos etc., mas, também, vislumbrou as primeiras experiências liberais e constitucionais de mais ou menos amplo alcance por que passaram frações da sociedade que tencionavam atacar certas estruturas políticas e identitárias herdadas do Antigo Sistema Colonial 139. Nesse 138 NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Liberalismo Político no Brasil: ideias, representações e práticas (1820-1823). In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal (org.). O liberalismo no Brasil imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan: UERJ, 2001, p.73-101 (citação à p. 79). 139 Para o contexto político daqueles anos, que resultou na profusão dos chamados “papelinhos” e outros suportes de ideias políticas radicais, cf. CARVALHO, José Murilo de et alii (orgs.). Às armas, cidadãos! 71 contexto, as transformações nos significados vocabulares, nas interpretações da experiência histórica e nas formulações de propostas de ação pública atravessaram muitos dos coevos, especialmente nos maiores centros de efervescência política, como o Rio de Janeiro. Foi também a partir daquele biênio que certas formas de interpretação do mundo, conjugadas aos eventos acelerados que buscavam explicar, começam a tomar o formato de construção de uma lógica geral para o desenvolvimento universal da história da civilização, como veremos. A experiência histórica daqueles anos, consubstanciada nessa lógica geral, promovia o Brasil a potência de primeira ordem ao mesmo tempo em que desenhava os parâmetros de seu rompimento simbólico com Portugal. Os intelectuais que disputavam a direção do movimento – que acabou integrado à persona de Dom Pedro, especialmente após sua atuação nos eventos do Largo do Rocio, em 26 de fevereiro de 1821 140 –, independentemente dos elementos que compunham suas concepções de Brasil e de império (quando não de república...), compartilharam dessa experiência histórica, produzindo uma leitura de mundo que, com os olhos na Europa (mas também em outras partes do mundo) e os pés na América (com toda a herança colonial), fincaram uma lógica para o desenvolvimento geral daqueles tempos, desde a antiguidade rumo ao futuro. Essa lógica, como poderá ser observado ao final deste capítulo, poderia ser sintetizada na fórmula da “história como história da liberdade”, cujo discurso casava-se com a produção de distâncias entre a ideia de “civilização” e seu oposto, a de “barbárie”. A trajetória da produção dessa distância nos obriga à ampliação do contexto dos anos 1821-1822. Afinal, quando pensamos nos processos que resultaram no rompimento entre Brasil e Portugal e na construção do Brasil Independente, ao longo da década de 1820, se torna impossível não relacioná-los a um universo mais amplo que compreende o alvorecer do próprio longo século XIX. As questões que se apresentavam àqueles que dirigiram o processo que resultou na Independência e na primeira década de construção do Estado Nacional brasileiro eram, em grande parte, questões que se desdobravam na própria lógica de crise e de rupturas que envolviam, em maior ou menor escala, o mundo atlântico e, em especial, o universo hispano-americano desde o Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, Introdução. 140 Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, cap. 3. 72 último quartel do século anterior 141 . Inserida nesse universo mais amplo, a Independência do Brasil e a posterior construção do Estado independente, longe de configurarem fenômenos pontuais localizados no tempo e no espaço, conectam-se a dimensões mais complexas que produziram um contexto revolucionário em larga escala, com o qual os dirigentes imperiais, frutos, em grande parte, desse mundo em transformação, precisavam aprender a lidar. O conjunto de processos pelos quais os mundos atlântico e europeu passavam correspondia ao surgimento daquilo que inúmeros autores referenciavam como “modernidade”. Nesse sentido, a Independência e o processo de construção do Estado Imperial no Brasil constituiriam um aspecto desse processo de modernização, superando-se a condição colonial e inserindo-o plenamente no desenvolvimento capitalista que construiria os pilares de nosso mundo contemporâneo. “Modernidade”, porém, é um conceito complexo. Não podemos, sob pena de uma simplificação exagerada, considerá-la como processo de via única, ou unidimensional, que teria um ritmo unitário a partir do qual as variadas posições de países, governos e/ou sociedades poderiam ser indicadas, uns à frente, outros mais atrasados, todos rumo a uma mesma redenção (a qual, sob o signo do “progresso”, mistura no discurso a análise da modernidade como fenômeno social ao discurso legitimador e inaugurador do próprio fenômeno em si). Dados os objetivos e o alcance deste trabalho, não há pretensão aqui em desenvolver qualquer reflexão mais apurada do conceito, ou que pretenda sintetizar bibliograficamente a discussão. Não podemos, porém, avançar na análise sem antes tecer algumas considerações sobre alguns aspectos dessa modernidade, ao menos para situar quais dimensões – ou quais franjas – dessa modernidade mais peso tiveram no processo de construção do Império do Brasil. Nesse sentido, podemos remeter a três dimensões da modernidade, ou a três distintas modernidades, que nos possibilitam compreender não apenas a ruptura política com Portugal, mas, também, as decorrências que fariam parte do horizonte de Na formulação de Fernando Novais, “a crise era geral e promanava da própria estrutura e funcionamento do sistema”. Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1989, p. 300. Para Istvan Jancsó, “Ainda que esta crise não tenha sido percebida como tal, e nem tenha resultado em discursos teóricos coerentes e perfeitamente ajustados aos paradigmas ilustrados da época, nota-se que, tendencialmente, os eventos sediciosos [do final do século XVIII] revelam o esgotamento da eficácia de formas vigentes de ordenamento político da sociedade e dos padrões que regem sua reiteração, padrões de abrangência variável, a depender de cada uma das situações concretas consideradas.” Cf. JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil, vol. 1: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 387-437 (citação à p. 392). 141 73 expectativas dos brasileiros-por-se-constituir até meados do século XIX. Essas três dimensões implicam pensar o processo de Independência desde meados do século XVIII (ou, como veremos, em alguns elementos, desde o século XVI), finalizando tal narrativa apenas na década de 1840, para ficar num corte mínimo. Se recorremos a essa interpretação é porque ela nos ajuda a esclarecer, ao menos em parte, o mundo com o qual construtores e consolidadores do Império do Brasil lidavam, tanto em relação aos elementos que teimavam em resistir às mudanças quanto em relação àqueles que aceleravam mais do que o desejado pelos contemporâneos, provocando certa sensação de vertigem e insegurança que balizava toda a narrativa histórica que pretendiam produzir. Essas três dimensões, as quais, para efeito de explicação (já que, na prática, todas estão entrelaçadas142), podem ser descritas como: a) modernidades políticas; b) modernidades conceituais; c) modernidades escravistas. Nenhuma dessas dimensões resume em si o próprio conceito de “modernidade”, mas todas, de um modo ou de outro, construíram, no alvorecer do longo século XIX, o mundo com o qual os dirigentes imperiais lidavam 143 . Vislumbrar essas dimensões é, também, tocar nas franjas concretas de diversos aspectos dentro de um mundo que se convencionou compreender como “moderno”. Cada uma dessas dimensões será tratada separadamente. Neste capítulo, abordaremos a primeira delas, em conjunção com o que pretendemos discutir – a saber, a produção das bases de uma narrativa histórica no contexto de construção do Brasil Independente. As duas dimensões seguintes serão tratadas em capítulos futuros, como partes constitutivas dos demais elementos da narrativa histórica que predominou nos discursos dos contemporâneos. 2.1) Modernidade conceitual: história e nação em tempos de crise Foi especialmente no contexto revolucionário aberto entre os séculos XVIII e XIX – o qual exigia redefinições nos termos utilizados pelos coevos para dar conta das novas experiências históricas – que correram eventos puxando o gatilho de uma série de Por “entrelaçadas” quero dizer que é impossível pensar isoladamente qualquer uma dessas dimensões, já que, num jogo de influências recíprocas, cada uma só se desenvolve em conjunto também com as outras duas, como ficará claro no texto. 143 Da mesma forma, essas três modernidades não esgotam todas as modernidades ali presentes no momento de construção do Império do Brasil – como ignorar, para ficar num exemplo, certos elementos de uma modernidade religiosa? Podemos considerá-las, porém, as mais essenciais para os objetivos deste trabalho. 142 74 transformações, influenciando substancialmente a história do mundo atlântico e, em especial, a do mundo luso-brasileiro. Momento fundamental que provocava cada vez mais a fragmentação das antigas concepções de mundo e a busca por novas ferramentas conceituais que dessem conta da interpretação dessas novas experiências e auxiliassem a construção de uma nova trajetória. Em outras palavras, o contexto aberto pelas transformações da “Era das Revoluções”, provocando uma profunda sensação de crise no mundo luso-brasileiro, demandava um esforço conflitivo na disputa por novas direções políticas, morais e sociais. Dentro do contexto mais geral de crise aberta a partir do século XVIII, fosse a crise revolucionária, fosse a crise que implicou numa trajetória reformista, as próprias formas de percepção do tempo pelos contemporâneos se alteraram significativamente, como produto indissociável das mudanças sociais então em curso. A mudança nessas percepções conceituais configura um aspecto daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck chamou “modernidade”. Nesse conjunto de transformações, dois elementos são centrais para o que discutiremos neste trabalho: as mudanças nos conceitos de “história” e de “nação”. Koselleck, já em seu primeiro trabalho publicado no Brasil, traduzido sob o título de “Crítica e Crise”, buscava as relações entre o que percebia como uma crise de sua época (escrevia em 1954), cujas origens remontariam ao século XVIII, e a elaboração de filosofias utópicas da história com a “função histórica” de dissimular o caráter político da crise144. Nessa dissimulação, ou encobrimento, o futuro passaria a ser o espaço onde a razão poderia exercer-se plenamente, afastando-se da política e esvaziando o presente. Desenvolvendo essa compreensão, Koselleck afirma que, entre os séculos XVIII e XIX, as formas de se lidar com o tempo mudaram sensivelmente para os europeus, com o passado cada vez mais se tornando incapaz de apontar seguramente os rumos do futuro145. Pelo contrário: mais e mais se perceberia o tempo como acelerado, fugindo ao controle daqueles que buscassem entendê-lo. “Não apenas o fosso entre passado e futuro aumenta; a diferença entre experiência e expectativa é sempre superada, e de forma cada vez mais rápida, para que possa continuar viva e atuante”146. 144 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, p. 151. 145 KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, p. 318-319. 146 Idem, p. 322. 75 O distanciamento entre experiência e expectativa teria alterado, para o autor, a própria concepção sobre o conceito de “história”, que teria perdido, pouco a pouco, seu caráter de magistra vitae para tornar-se um singular coletivo irrepetível. “Se a história se torna um evento único e singular da educação do gênero humano, então cada exemplo particular, advindo do passado, perderá força, necessariamente” 147 . A aplicação moral imediata de eventos históricos perderia consistência. O próprio conceito de progresso serviria para dar conta dessa nova forma de se lidar com o tempo e a realidade. Trata-se, para Koselleck, de fator central ao começo da modernidade148. De forma quase complementar à abordagem de Koselleck, François Hartog propôs a expressão “regimes de historicidade”, buscando dar conta dessas modificações em relação à experiência do tempo. “Regime de historicidade” seriam construções com o intuito de dar conta das diversas formas com que os seres humanos lidam com as diversas temporalidades, especialmente passado, presente e futuro. “Regime de historicidade”, em suma, podia ser compreendido de dois modos. Em uma acepção restrita, como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em uma acepção mais ampla, regime de historicidade serviria para designar „a modalidade de consciência de si de uma comunidade humana‟. (...) Mais precisamente, a noção devia poder fornecer um instrumento para comparar tipos de história diferentes, mas também e mesmo primeiramente, eu acrescentaria agora, para colocar em foco modos de relação com o tempo: formas da experiência do tempo, aqui e lá, hoje e ontem. Maneiras de ser no tempo.149 Indissociável dessas transformações em torno do conceito de “história” foram as produções ideológicas de novas formas de identidade política e social, notadamente a 147 Idem, p. 55 Sobre a questão, conferir, também, o artigo em KOSELLECK et al, O Conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 119-184. Esse livro, aliás, é ótimo panorama para se acompanhar as transformações no significado da palavra “História” a partir de uma perspectiva da História dos Conceitos. Sobre a perspectiva histórica de Koselleck, cf. ainda JASMIN, Marcelo Gantus & FERES JÚNIOR, João. História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro Ed. PUC-Rio/Edições Loyola/IUPERJ, 2006, em especial p. 77-82. O recorte cronológico de Koselleck para a aceleração dessas transformações no conceito de História foi, porém, posto em evidência por outros estudos, que sugeriram transformações mais lentas e cumulativas que teriam se iniciado ainda antes – o que esticaria, para esses autores, o advento da modernidade para mais fundo no passado. Para essas críticas, cf. PALTI, Elías José. Koselleck y la idea de Sattelzeit. Un debate sobre modernidad y temporalidad. In: Ayer, nº. 53, Historia de los conceptos (2004), pp. 63-74. 149 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 28-29. Cf. também: HARTOG, François. Tempos do mundo, história, escrita da história. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 15-25; e HARTOG, François, “Regime de Historicidade”. In: Time, History and the writing of History: the order of time, KVHAA Konferenser 37: 95-113 Stockholm 1996. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html. Último acesso em 02/10/2011. 148 76 nacional. Em que medida a história, tal como se construíam consensos conceituais, servia à construção das identidades nacionais? Em que medida eventos do passado eram mobilizados para justificar intervenções políticas no presente? E de que forma essa experiência pode ser analisada no caso do século XIX brasileiro? A trajetória de busca por uma história nacional que desse sentido à existência política de comunidades humanas no longo século XIX foi algo comum a todos os Estados nascidos da Era da Revoluções, que cada vez mais eram pensados em termos nacionais, vendo na história uma poderosa ferramenta de construção de novos vínculos identitários coletivos e no fortalecimento dos já existentes 150 . Sendo as nações, na clássica formulação de Benedict Anderson, “comunidades imaginadas” 151 , e sendo preciso atentar para “uma perspectiva que visa despojar o conceito de nação e de nacionalidade de seu suposto caráter natural (...) para fixar-se no critério de sua artificialidade, ou seja, de ser efeito de uma construção histórica, ou „invenção‟” 152 , precisamos compreender de que forma a escrita de histórias nacionais contribuiu como poderosa arma de construção de um passado comum, servindo de elo entre os habitantes pela sensação de pertencimento a uma mesma origem – o que acabava por diluir, de certa maneira, os conflitos internos e de classe153. As histórias nacionais, elaboradas ao longo dos processos de construção das identidades nacionais, buscaram em passados remotos os “germes” da nação, cada uma valendo-se de particularidades regionais, lingüísticas, artísticas etc. para realizar seu objetivo. São dignas de nota, nesse aspecto, as palavras de Antonio Gramsci, que, criticando certas interpretações a respeito do Risorgimento e da história da Itália que remontavam o sentimento nacional aos romanos, escreveu: O problema de buscar as origens históricas de um evento concreto e circunstanciado, a formação do Estado moderno italiano no século XIX, 150 Entendo aqui, como Hobsbawm, a nação moderna como historicamente construída, constituindo “entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o „Estadonação‟”. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 19. 151 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2008. 152 CHIARAMONTE, José Carlos. Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: HUCITEC, 2003, p. 63. 153 Para uma discussão historiográfica acerca dessa passagem do mito da nação como entidade “naturalizada” para uma perspectiva que busque problematizá-la, cf. PALTI, Elías. La nación como problema: los historiadores y la “cuestión nacional”. Buenos Aires: Fonde de Cultura Económica, 2003. Para o caso latino-americano, em especial a região do Prata, ao longo do proceso de construção dos Estados nacionais, cf. PIMENTA, João Paulo Garrido. Estado e Nação no fim dos Impérios Ibéricos no Prata. São Paulo: HUCITEC; FAPESP, 2002. Afirmar esse papel à escrita das histórias nacionais não implica ignorar o caminho oposto – isto é, como as histórias nacionais foram produto, e não meramente produtores, dos elos que aproximavam sujeitos em termos de identidade comum. 77 é transformado no problema de ver esse Estado, como Unidade, como Nação ou genericamente como Itália, em toda a história anterior, assim como o pinto deve existir no ovo fecundado.154 A elaboração de historiografias para cada país foi capaz de ajudar a promover as ligações culturais necessárias para que a identidade nacional superasse – ou, ao menos, subordinasse – as demais formas de identidade a que os seres humanos estão sujeitos (étnicas, regionais, de classe etc.), via fortalecimento de um discurso comum que remetesse ao processo temporal como sedimentação de sentimentos naturais do passado, produzindo a necessária teleologia que conectou o resultado final ao ovo fecundado155. E isso num momento que, segundo definiu Phillipe Ariés, marcava o nascimento definitivo da consciência histórica moderna 156. As escritas de histórias nacionais ajudaram, assim, na produção de conexões entre passado, presente e futuro que, num momento de aceleração na percepção do tempo, organizava experiências e expectativas a partir de um eixo mais sólido. A nação enraizada no passado que se dissolvia permitia a manutenção de vínculos que as revoluções ameaçavam fragmentar. A nação tornava-se porto seguro para ancoragem da trajetória do passado ao futuro, e a história, incapaz de manter a segurança que, como mestra da vida, oferecia, agora era utilizada como fiadora da continuidade num momento de novidades aceleradas. Tomando como exemplo o caso da Revolução Francesa, podemos perceber como os historiadores franceses do século XIX a vislumbraram: incapazes de negarem-na (os que a recusavam) ou revivê-la (os que a admiravam), transformaram-na em ponto fundamental na produção da nação francesa: os que a negavam, a viam como desvio, fortalecendo o passado pré-revolucionário 154 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 5: o Risorgimento. Notas sobre a História da Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 34. Para a afirmação da História como “biografia da nação”, de inspiração gramsciana, cf também SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e Nativismo: a História como “biografia da nação”. São Paulo: HUCITEC, 1997, Introdução. 155 Embora nem sempre as historiografias ditas “acadêmicas” aparecessem como as mais significativas desse processo para a formulação de identidades sociais, digamos, “de massa”: “One just has to think of the diverse ways in which national days of remembrance and festivals were celebrated across Europe, or of the institutionalisation of national holidays, monuments and symbols, or the popularity of historical novels, or the increasing influence of the mass media (newspapers, radio and television) throughout the nineteenth and twentieth centuries. Whilst the writing and reading of academic history books has remained to a very large extent the pastime of elites, the political mobilisation of the masses has by and large relied on different means to achieve their integration into nation-states.” Cf. BERGER, Stefan et Alii. Apologias for the nation-state in Western Europe since 1800. In: BERGER, Stefan et alii (ed.). Writing National Histories. Western Europe Since 1800. London; New York: Routledge, 1999, p. 4. 156 Observando principalmente o caso francês, afirma o autor: “Depois das convulsões da revolução e do império, o século XIX marcou a etapa definitiva do nascimento da consciência histórica moderna. Se, no século XVIII, tínhamos reecontrado o sentido do contínuo, o século XIX descobriu as diferenças da cor humana através dos tempos.” Cf. ARIÈS, Philippe. O Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, p. 148. 78 como caldo primordial da nação; os que a admiravam, como síntese necessária do desenvolvimento histórico anterior da nação francesa157. As narrativas nacionais inventaram a ideia de nação 158 ? O debate sobre essa questão atravessou o campo historiográfico desde o próprio surgimento da historiografia moderna 159 . Não cabe, nos limites deste trabalho, aprofundar a discussão. Interessa, porém, compreender que as nações modernas, não obstante suas origens seculares e sua polissemia histórica, ganharam significados na viragem dos séculos XVIII-XIX que não se assemelham às definições anteriores. A discussão sobre o quanto desses novos significados foi produto das revoluções, ou o quanto as revoluções foram sínteses processuais de movimentos anteriores, não muda o fato de que os coevos construíram sentidos específicos para a ideia de identidades nacionais (bem como para a ideia de uma história nacional) como forma de lidar com a própria vertigem pós-revolucionária da modernidade160. Vertigem que, no contexto luso-americano, tornava as identidades provisórias, especialmente a partir do período compreendido entre a transferência da Corte e o desencadeamento do movimento constitucionalista – grosso modo, entre 1808 e 182021. Tanto no mundo luso-brasileiro quanto nos contextos abordados por Koselleck, a Revolução Francesa ocupou lugar destacado nas transformações conceituais por que passaram os que viveram aquele período. Nada mais indicativo dessas ligações, para ficar em um exemplo, do que a tese de que a vinda da Corte, em 1808, representara um novo momento de experiência do tempo, cada vez mais visto como acelerado e com o 157 É claro que a própria Revolução era vista de formas distintas. De 1789 ao Terror, dos jacobinos a Napoleão, a Revolução continha, na verdade, muitas revoluções. Sobre a questão, cf. MELLON, Stanley. The Political Uses of History, Stanford University Press, 1958; e GÉRARD, Alice. A Revolução Francesa. 2ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. 158 “Invenção”, como expressão que “remete a uma temporalização dos eventos, dos objetos e dos sujeitos, podendo se referir tanto à busca de um dado momento de fundação ou de origem, como a um momento de emergência, fabricação ou instituição de algo que surge como novo. O termo invenção, portanto, também remete a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum evento humano.” Cf. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: EDUSC, 2007, p. 19-20. 159 Para essa discussão, cf. PALTI, Elías. La nación como problema… e SMITH, Anthony D. O nacionalismo e os historiadores. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 185-208. 160 Para uma visão sobre a nação como “evolução” conceitual culminando na ideia revolucionária, cf. GUERRA, François-Xavier. A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades. In: JANCSÓ, István (org.) Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Editora HUCITEC, 2003, p. 33-60. Para uma ideia mais próxima da nação como produto inventado, para o caso brasileiro, cf. SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. A Invenção do Brasil: ensaios de história e cultura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, capítulo 3. A questão das representações que produzem a nação é ainda trabalhada por HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª edição, Rio de Janeiro; DP&A Editora, 2002, p. 50-57. 79 futuro valorizando-se frente ao passado, como pudemos analisar em relação às visões sobre a história e sobre historiadores no capítulo anterior. Outra forma de afirmar essas mudanças seria ver a primeira metade do século XIX, no Brasil, como de passagem de um regime de historicidade a outro, com alguns autores representando, cada qual ao seu modo, essa passagem, num processo que abarca simultaneamente tanto a construção do Estado Nacional no Brasil quanto as interpretações conceituais que lhe dão sustentação (e que são, também, fruto dessa construção) 161. Valdei Araújo, por exemplo, argumenta que da geração pré-Independência à geração que consolidou o Império houve uma significativa descontinuidade conceitual e discursiva, fruto de uma percepção crescente do tempo como aceleração e de uma contínua historicização da realidade162. Para Araújo, o universo semântico em que a primeira geração se inseria diferenciava-se significativamente daquele segundo momento, marcado não apenas por movimentos como o romantismo, mas, principalmente, pelo evento-Independência e demais acontecimentos a ele relacionados, responsáveis, em grande parte, pela fragmentação do mundo herdado do século XVIII. A partir de então, argumenta Valdei Araújo, essa herança setecentista, apesar de esticarse ao máximo, alcançando seus limites, não mais seria capaz de dar conta das novidades do século163. O que seria visualizar essa herança setecentista como limitada? Seria a consideração de que, a partir de então, o significado conceitual de “história” foi deixando seu caráter sagrado e revestindo-se do sentido profano, a partir de uma espécie de “laicização das narrativas”, ou seja, a passagem de um discurso religioso sobre a 161 Para uma análise que conjuga a historiografia francesa à brasileira na representação dessa mudança nos regimes de historicidade a partir da escrita da história de Alphonse de Beauchamp, cf. MEDEIROS, Bruno Franco. Plagiário, à maneira de todos os historiadores: Alphonse de Beauchamp e a escrita da história na França nas primeiras décadas do século XIX. Dissertação de mestrado. São Paulo, SP: PPGHS/USP, 2011. O autor escolhido é significativo de um momento em que as concepções de escrita da história sofriam tanta variação interpretativa que possibilitava, inclusive, que o “estilo antigo” de Beauchamp fosse associado, cada vez mais, a uma noção de “plágio” que se construía ligada à necessidade da citação, da nota de rodapé e da evidência documental para firmar-se num mundo em que a História cada vez mais se tornava “ciência”. Beauchamp, escrevendo num “estilo antigo”, à maneira dos mestres da Antiguidade, transbordava uma história que, progressivamente, passava a limitar-se aos cânones da erudição crescentemente universitária. Isso não impediu que Beauchamp fosse lido e utilizado no Brasil por diversos autores, até que as condições de método postas em evidência pelo IHGB e, principalmente, por Varnhagen relegassem essa influência ao limbo da mera “cópia” 162 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. 163 Para uma análise da escrita da História nessa herança setecentista, atrelada à gênese das Academias, cf. KANTOR, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-brasileira (1724-1759). São Paulo: HUCITEC; Salvador: Centro de Estudos Baianos / UFBA, 2004; DIAS, Fabiana. Da Gênese do Campo Historiográfico: Edurição e Pragmatismo nas Associações Lietrárias dos Séculos XVIII e XIX. Revista de Teoria da História. Ano 2, número 4, dezembro/2010. 80 história para um discurso laico (inclusive progressivamente ocupando o espaço deixado pela religião como explicação do estar-no-mundo) 164 . Isso significa dizer que, gradualmente, a história deixa de ser uma narrativa marcada pelo sentido religioso e passa a ser uma história circunscrita às ações humanas165. Definindo melhor essa primeira mudança de sentido, podemos dizer que o significado da palavra vai deixando de lado a clássica diferenciação entre história sagrada e história profana, na qual esta era submetida àquela, e seu sentido vai tornando-se, cada vez mais, o de uma narrativa racional sobre o passado que abarca a humanidade numa lógica discursiva das transformações na sociedade civil, entendida como reino da liberdade em luta contra a tirania. O contexto de crise aberta pela Era das Revoluções contribui para a percepção, pelos contemporâneos, de que a história, não obstante possua uma lógica naturalizada, é produto também das realizações humanas, dependendo dessa ação o resultado, fosse positivo ou negativo, das disputas sociais. Daí também a percepção de que o tempo histórico poderia acelerar-se em determinadas circunstâncias, comprimindo distâncias e implementando uma carga maior de transformações. Além disso, uma outra mudança que tem a ver com um deslocamento de escala: no contexto do Império português, inicia-se uma transformação na qual as várias “histórias” ligadas a lugares territoriais específicos, cujos sentidos assemelham-se aos das crônicas, dão espaço, no último quartel do século XVIII, a um esboço de unificação em que “História” passará a designar um “campo de experiência comum”166. Em outras palavras, as narrativas localizadas, restritas a espaços de atuação regionais, vão dando lugar ao uso da palavra “história” para circunscrever uma realidade aumentada – já aqui, para voltarmos a Benedict Anderson, a uma realidade imaginada. O grande exemplo da passagem entre esses dois sentidos é a diferença entre a obra do pernambucano Loreto Couto (Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco), de 1757, que, como o nome diz, enfatizava os acontecimentos daquela província e criticava outras “histórias” ligadas a realidades locais distintas, e os poemas dos autores 164 PIMENTA, João Paulo G. & ARAÚJO, Valdei Lopes de. História. In: FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 119-140. Para uma discussão dessa passagem no contexto da modernidade, cf. NEVES, Guilherme Pereira da. História, teoria e variações. Rio de Janeiro: Contra Capa; Companhia das Índias, 2011, p. 106-107. 165 Cabe destacar que, progressivamente, a história passa a ocupar o lugar da própria religião como “referencial decisivo para cada um encontrar, ou não, a posição que lhe cabia.” Cf. NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações... p. 107 166 PIMENTA PIMENTA, João Paulo G. & ARAÚJO, Valdei Lopes de. História. In: FERES JÚNIOR, João. Léxico da história dos conceitos políticos do Brasil... p. 124. 81 brasílicos Basílio da Gama (O Uraguay), de 1769, e Cláudio Manoel da Costa (Vila Rica), de 1773, cujas idéias centrais de “história” são indicativas de uma referência mais abrangente, que não se limita à localidade, mas que busca, pela referência a tradições, livros, documentos escritos e testemunhos orais, indicar uma “história” una, válida para diferentes experiências regionais. Isso ganha novas cores no século XIX brasileiro. Uma das principais contribuições do trabalho de Araújo está em ampliar a perspectiva das bases da produção historiográfica nacional para incluir, aí, a própria dimensão da experiência temporal como fundamento de constituição não apenas do próprio pensamento historiográfico, mas, também, da formação identitária dos coevos (e aí se incluem outras identidades possíveis para além da nacional). Ao analisar as formas pelas quais realidade e consciência da realidade se relacionam, Valdei permite que sigamos as tentativas das gerações sucessivas da primeira metade do século XIX em compreender um mundo para o qual o passado não mais parecia oferecer segurança. Um mundo em crise, repleto de novidades, mas para o qual a experiência prévia e o universo semântico anterior não se mostravam eficientes. Daí o caráter híbrido das concepções de história, a ponto de abordagens antigas e modernas disputarem a primazia na construção das concepções de mundo167. Essa disputa ficaria mais evidente no primeiro grande processo de aceleração que produziu algo próximo de uma ruptura conceitual no discurso dos sujeitos que buscavam dirigir o processo de transformações políticas no mundo luso-americano: o contexto da Independência do Brasil, especialmente a partir de 1821. É voltando a esse contexto, agora inserido na dinâmica mais ampla da era revolucionária, que podemos analisar como alguns contemporâneos lidavam com a sensação de crise que obrigava a novas concepções explicativas para o que identificavam como inevitável mudança temporal. Conforme é corrente na historiografia, foram os eventos revolucionários europeus que, forçando a Corte a uma transferência crucial para sua colônia americana, causaram grande impacto na concepção imperial lusitana, sendo, portanto, um marco da modernidade política no interior do Império português. A partir desse marco, as tensões entre as percepções, pelos intelectuais da época, das diferenças entre identidades Na acepção de Gramsci, para um outro contexto crítico, “A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer; neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados.” Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, vol. 3: Maquiavel; notas sobre o Estado e a Política. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 184. 167 82 “americanas” e “portuguesas” ultrapassarão os elementos fragmentários e o unitarismo reformista e se acirrarão, colocando a própria concepção imperial em risco – em nome de uma nova. O resultado final será a ruptura em 1822, após dois anos de aceleração do sentimento de “provisoriedade política” presente havia uma década ao menos de aprendizado político, coroando a busca por novas formas de articulação com o passado que dessem conta das angústias que as transformações causavam nos coevos 168. A vinda da Corte e a presença do regente, futuro Dom João VI, transformaram o Rio de Janeiro e o alçaram à condição de “cabeça” do Império, substituindo Lisboa nesse papel. À medida que os anos avançavam, contudo, mais e mais ficava claro que crescia uma diferenciação entre os habitantes do reino – reinóis – e os da nova Corte. Novos termos surgiram ou ganharam novos significados para dar conta dessas diferenças – o “ser português” tornava-se distinto do “ser brasileiro”, ou “brasiliense”, ou “brasílico” etc. Segundo Jancsó e Pimenta, a instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência, no interior do que fora anteriormente a América portuguesa, de múltiplas identidades políticas, cada qual expressando trajetórias coletivas que, reconhecendo-se particulares, balizam alternativas de seu futuro. Essa identidades políticas coletivas sintetizavam, cada qual à sua maneira, o passado, o presente e o futuro das comunidades humanas em cujo interior eram engendradas, cujas organicidades expressavam e cujos futuros projetavam. Nesse sentido, cada qual referia-se a alguma realidade e a algum projeto de tipo nacional.169 Essas identidades, naquele contexto de crise, combinavam-se e digladiavam-se, misturavam-se e atacavam-se, num processo que transformou os antigos genéricos de diferentes bases em um único contorno nacional que acabou naquilo a que hoje chamamos Brasil170. A identidade portuguesa preconizada por Dom Rodrigo de Sousa “Percebe-se na documentação [do período joanino] (...) que havia um sentimento de grande provisoriedade no que diz respeito às alternativas políticas em curso, além de visíveis transformações no nível das sociabilidades, fenômenos que ainda mal se evidenciavam durante os primeiros momentos apís a instalação da família real no Rio de Janeiro, e que ganharam nitidez sobretudo após a convocação das Cortes Constituintes em Lisboa e seus desdobramentos americanos”. Cf. SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006, p. 197. Para os esforços da monarquia para dar conta daquele sentimento de fragmentação, bem como seus limites, cf. SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, capítulo 6. 169 JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). MOTA, Carlos G. (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000, p. 127-175 (citação às páginas 131132). 170 A ideia de “genéricos de diferentes bases” é inspirada em István Jancsó. Para ele, na passagem do século XVIII para o XIX a multiplicidade de identidades possíveis produziu identidades políticas que oscilavam, na América portuguesa como na espanhola, entre o “genérico de base imperial (identidades espanhola ou portuguesa), o genérico que fundia as anteriores com outra de base territorial ainda geral 168 83 Coutinho no século XVIII, que já devia se relacionar com outras bases identitárias mais ou menos genéricas, passava também a confrontar-se com uma nova identidade brasiliense em crescimento, que já não se resumia àquela unidade americana oriunda do olhar metropolitano, mas que precisava ser recriada no contexto revolucionário 171. Se o contorno foi melhor definido, dentro dos padrões hoje consensuais, apenas ao longo dos dois séculos seguintes, é seguro afirmar que um primeiro esboço mais firme nesse sentido foi desenhado ali entre os anos 1821-1822, ainda que restrito inicialmente a alguns poucos grupos no interior da antiga sociedade colonial. Esse confronto entre identidades – uma ainda nos moldes do Império português e da nação portuguesa, outra que aspirava a uma nova condição nacional – foi uma das formas pelas quais os coevos experimentaram um tempo histórico de crescente incerteza. Para dar conta dessas incertezas, o tempo histórico do “presente” e o evento da transferência da Corte passavam a ser considerados contendo funções de “fundação mítica”; espaços de transição para um futuro a ser prognosticado, antevisto, no limite até controlado. Cada vez mais o futuro era alçado a referência para a busca pela compreensão do passado. O futuro a ser projetado tornava-se eixo articulador da experiência histórica daqueles tempos. Entre 1821 e 1822, essas distintas expectativas de futuro entraram em conflito nos espaços públicos de discussão do Reino do Brasil, notadamente ao redor da Corte, buscando articular suas ideias à direção política para o Império – primeiro, como dito, português; depois da ruptura, do Brasil. Conceitos até então pouco ou nada usuais invadiram esses discursos como forma de entendimento daqueles tempos. Liberdade e despotismo, luzes e trevas, constituição e arbitrariedade etc. forjavam sensações e conferiam materialidade à ação política dos agentes. Outros conceitos como revolução, regeneração e restauração produziam sínteses daquela e de outras épocas, buscando aproximar a lógica das transformações europeias à lógica das mudanças americanas, (identidades espanhola ou portuguesa americanas), ou o genérico que incorporava o universo da prática política possível, imediata (identidades espanhola ou portuguesa americanas da Bahia, de São Paulo, de Quito ou do Paraguay etc.)”. Cf. JANCSÓ, István. A construção dos estados nacionais na América Latina – apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: SZMRECSÁNYI, Tamás & LAPA, José Roberto do Amaral. História Econômica da Independência e do Império. 2ª ed. revista. São Paulo: HUCITEC/ABPHE/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 3-26 (citação à p. 10). 171 A partir dos anos de aceleração que resultaram na ruptura (1821-1822), mais e mais essa unidade precisava ser recriada. Afinal, a própria ideia de “Império do Brasil” não pode ser tomada como uma inevitabilidade – concepção, porém, hegemônica na historiografia sobre o período, que vê, para ficar num exemplo, os movimentos “locais” como “separatistas”, pressupondo, de antemão, a unidade como fundamento. Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Transmigrar – nove notas a propósito do Império do Brasil. In: PAMPLONA, Marco Antônio e STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e nação no Brasil e no Chile ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: Garamond, 2010, p. 97-124. 84 delineando uma única direção para todos os acontecimentos de modo a inserir, nessa linha, os vários espaços que tencionavam fazer parte do concerto das nações civilizadas.172 Civilização, aliás, era o grande conceito em formação a costurar as tramas interpretativas daquela época.173 Os conceitos, evidentemente, não pairam no ar, mas atendem aos interesses de grupos em conflito na disputa pela construção da direção. E a historiografia sobre o período é profícua na análise desses grupos e na identificação de seus membros, especialmente aqueles estudos que opõem dois grupos principais: um forjado numa espécie de perspectiva americana e outro construído a partir de uma perspectiva europeia. As distinções pouco têm a ver com a opção imediata pela unidade ou pela separação: via de regra, não há consenso pelo separatismo senão avançado o ano de 1822. Essa diferenciação mais tem a ver com certa formação intelectual/institucional e posicionamento a respeito do balanço/equilíbrio da unidade imperial portuguesa. Assim, na terminologia mais usual, opõem-se aqueles “radicais” àqueles “luso-brasileiros”, aqueles mais familiarizados com a ideologia das revoluções americana e francesa àqueles mais próximos da experiência do reformismo português174. É essa segunda perspectiva que pautará a análise que faremos a partir de agora: como os “radicais”, os “brasilienses”, enxergavam as transformações por que passavam o mundo e o Brasil naqueles dias? 172 Para os novos conceitos em disputa naqueles anos, cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/FAPERJ, 2003, capítulos 5 e 6; CARVALHO, José Murilo de et alii (orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, introdução; LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários: pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na independência (1821-1823). São Paulo: Cia das Letras, 2000; Izabel Marson e Cecília Oliveira trabalharam com a ideia de “tangibilidade da nação” para se referir aos elementos comuns que produziam nos contemporâneos uma certeza acerca da realidade concreta da nação. Cf. MARSON, Izabel Andrade & OLIVEIRA, Cecília H. L. de Salles (orgs.). Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil: 1780-1860. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, introdução. 173 Segundo João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá, o conceito de “civilização” não existia no mundo luso-americano até o século XIX, embora seu conteúdo “contraconceitual” – construído pela oposição a termos como selvageria, irreligiosidade, barbárie etc. É na passagem dos séculos XVIII ao XIX que os vocábulos de raiz “civil” vão ganhando a densidade conceitual que resultará no conceito de “civilização”, tal como conhecemos ainda hoje. Cf. FERES JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil.2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 209-231. 174 A terminologia é inspirada em BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 76-78. Lúcia Neves inspira-se em Barman para separar os grupos em “brasilienses” e “coimbrãos”. Cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais..., p. 48-53. 85 2.2) O Reverbero e a história como história da liberdade. Para responder a essa pergunta, abordaremos as perspectivas de interpretação histórica que pautavam o principal veículo de produção de ideias de dois dos nomes mais representativos daquele grupo: o Reverbero Constitucional Fluminense, periódico fundado em 1821 por Januário da Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo. Sua existência, segundo Cecília Salles de Oliveira, foi um desdobramento das lutas políticas que os liberais do Recôncavo da Guanabara e de Campos dos Goitacazes empreenderam no contexto da Independência.175 Publicado ao longo de 14 meses (setembro de 1821 a outubro de 1822), resultando em 48 edições ordinárias e 3 extraordinárias, o Reverbero juntou-se a um grupo crescente de periódicos que, naquele curto espaço de tempo, no começo dos anos 1820, multiplicou a exposição de posicionamentos políticos na América Portuguesa, especialmente na Corte. Composto por seções diversas, nas quais expunha os pensamentos de seus redatores (notadamente na seção “reflexões”) ou pensamentos de pretensos leitores (especialmente na seção “correspondência”), o Reverbero notabilizouse, desde o começo, pela defesa da manutenção da unidade imperial portuguesa, ao mesmo tempo em que defendia a valorização da porção americana em pé de igualdade frente ao velho Reino. Com o passar dos meses, justificando-se a partir de uma intransigência das Cortes, o Reverbero mudaria a postura para a defesa do rompimento com Portugal, pregando a aproximação das vontades coletivas no espaço americano em torno da figura de Dom Pedro como única forma de garantir a continuidade do desenvolvimento de certa ideia de liberdade – conforme veremos – e de melhoria no Brasil 176 . Por conta dessa expressão de moderação política, bem como pela representatividade frente aos grupos econômicos centrais em disputa no Rio de Janeiro naquele momento, além de pela trajetória que seus fundadores teriam nos quadros políticos do Império177, o Reverbero constitui um dos principais espaços de discussão 175 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal..., p. 148-149. Sobre o Reverbero, cf. SILVA, Virgínia Rodrigues da. O Reverbero Constitucional Fluminense, constitucionalismo e imprensa no Rio de Janeiro da Independência. Dissertação de mestrado. Niterói, UFF: 2010, capítulos II e III, e OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal... op. cit. Isabel Lustosa afirma que o Reverbero foi a primeira publicação de jornal que “não passava pelo crivo do censor”. Também afirma que era o primeiro espaço onde se defendiam por escrito “as ideias preconizadas na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade”. Como veremos à frente, isso não significava uma ausência de posicionamento crítico em relação à Revolução. Cf. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003 [coleção Descobrindo o Brasil], p. 23 177 Tanto Ledo quanto Barbosa seriam eleitos deputados posteriormente; o segundo ainda seria um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 176 86 pré-Independência a oferecer uma perspectiva sobre as formas de interpretação do tempo em produção naquele momento. A historiografia já há bastante tempo tem abordado o periódico como fonte privilegiada para análise das transformações em curso nos anos 1821-22, já que tanto o espaço quanto seus redatores foram personagens centrais dos processos que então se desenrolavam na Corte, defendendo não apenas um posicionamento do Brasil no conjunto do Império português, inicialmente, mas, também, passando depois à separação com vistas a um determinado modelo de Império independente. Na defesa de seus posicionamentos, em diversos momentos o periódico apelou à história e a eventos contemporâneos como forma de embasar argumentos e solidificar posturas distintas em momentos que exigiam certa maleabilidade conceitual, haja vista a rapidez das transformações a exigir constantes reposicionamentos políticos. Nesses apelos à história emerge não apenas uma interpretação geral da história do Brasil até ali (inicialmente como parte da trajetória portuguesa, mas progressivamente ganhando autonomia numa trajetória própria), mas, também, uma interpretação geral da História como o desenvolvimento da liberdade em disputa contra o despotismo e a escravidão. 178 Os motores que provocam as mudanças e os eventos marcantes desse desenvolvimento são também distinguidos pelo periódico como forma de se pensar a inserção do Brasil nesse quadro mais geral de desenvolvimento. As ideias de progresso e aperfeiçoamento são centrais aqui. A edição de número 13 do periódico é exemplar dessa forma de analisar as transformações históricas daquele tempo. Nesta edição, os editores apresentam uma tradução de De Pradt, em uma dentre várias vezes que mencionaram o autor ao longo das edições. O texto, intitulado “A Europa, e América depois da paz de Aix-laChapelle”179, começa com uma citação: “O gênero humano está em marcha; nada o fará retrogradar” 180. E tal serve para De Pradt expor sua interpretação daquela marcha: São estas as palavras, de que há anos, e por muitas vezes me tenho servido: acolhidas a princípio por facções diversas; uns afetados por esta marcha progressiva e irresistível, outros ou interessados em distrair a atenção deste grande movimento, e de suas consequências, ou muito fora da esfera de capacidade necessária para a contemplação de um igual espetáculo, ao qual tão pouco convém a frivolidade como a 178 Não se trata, como a historiografia a respeito já deixou claro, de uma crítica à escravidão como forma de exploração da força de trabalho, mas, sim, de uma recusa da “escravidão civil” de base liberal. 179 Reverbero Constitucional Fluminense (doravante, RCF), Número 13, 05 de fevereiro de 1822, Tomo I, p. 149. 180 Idem, p. 149 87 distração, desde então cada dia, e quase que a cada hora, tem-lhes dado um eminente grau de confirmação, por uma série sempre aumentativa de acontecimentos, que rapidamente renovam a face do mundo, e que na sua continuada progressão reduzem qualquer gênero de oposição a „inutilidade ou ridículo‟181. Nestas poucas palavras podem ser percebidas algumas das características que dão o tom não apenas do Reverbero, mas de diversos contemporâneos a respeito das mudanças que vislumbravam. Em primeiro lugar, a ideia, presente tanto na citação quanto na introdução da transcrição, de que uma marcha está em curso e que a ela se não pode resistir. A marcha não é deste ou daquele grupo, mas do gênero humano; a totalidade da humanidade aparece contemplada num movimento inescapável e que se não pode barrar, tampouco desviar ou fazer retroagir. A marcha tem direção e apanha os distraídos a reboque, sendo a oposição a ela atitude inútil ou ridícula. Em segundo lugar, essa marcha pode ser percebida pelos que não se distraem, pelos que têm a capacidade para observá-la. Afinal, a marcha da humanidade oferece, a “cada dia, e quase que a cada hora”, com acompanhamento quase em tempo real, simultâneo, um “eminente grau de confirmação, por uma série sempre aumentativa de acontecimentos, que rapidamente renovam a face do mundo”. O mundo já não é mais o mesmo e continuará em franca transformação: a marcha é de mudança, de inovação; é progressiva e dilui as certezas. A marcha é progressiva: tendência de aceleração continuada. Afinal, deixa claro De Pradt, “do 1° de janeiro de 1820 ao 1° de setembro do mesmo ano (...) ganhou-se mais caminho do que nos últimos 800 anos” 182. As transformações do tempo histórico comprimiam-se em velocidade. A longa estabilidade da História dava lugar a um processo cujo dinamismo causava estranheza aos contemporâneos. Mas de que serviria irritar-se ou não querer ver o que existe? Como se o desvio de olhar pudesse fazer a trama teatral desaparecer, aponta De Pradt. A distração e a cólera seriam apenas jogo de crianças, incapazes de perceber as coisas como elas estão: tal é hoje o estado do mundo: (...) porque é o mundo mesmo que nesta grande efervescência se apresenta a todo o instante, e todo inteiro, ocupado de um mesmo e único objeto, e ressentindo no seu todo a vibração de cada um dos movimentos que afeta cada uma das suas partes. Era verdade em 1789, não deixou de o ser até agora, ainda hoje o é, e com maior evidência – que não há mais que um negócio no mundo, o da Revolução – Não de outra sorte o cristianismo ocupou o mundo 181 182 Idem, p. 149-150. Idem, p. 150. 88 por muitos séculos, e a Reforma por muitos lustros. Na nossa idade já não há movimentos, nem atos parciais, não há interesses isolados, tudo se refere à harmonia geral do grande movimento que se opera; a tendência é declive e uniforme; o fim é comum; todos são co-obrigados – in solidum – por todos (...) 183 . O movimento é revolucionário, a vibração das partes afeta o todo. Há uma ideia comum de humanidade e uma experiência comum revolucionária que percebe no conjunto as transformações das partes, e os eventos inaugurados em 1789, nesse sentido, são centrais. 184 Nisso distingue-se a época das anteriores e a Revolução de movimentos amplos como o cristianismo e a Reforma, que não alcançaram a totalidade que estes tempos apresentavam aos contemporâneos. A concepção planetária permitia a formulação sem precedentes de uma escala a incluir toda a humanidade na mesma trajetória, sempre ligada a transformações temporais, sim, mas com ritmos distintos. “A propriedade destes grandes movimentos afeta o corpo das Sociedades; deles por longo tempo data a humanidade; formam épocas, que são como os marcos, pelos quais a espécie humana reconhece as suas diferentes idades, e os seus diversos modos de existência” 185 , afirma o francês. Cada época, como os marcos da espécie humana, produz a síntese das transformações e hierarquiza as idades da humanidade. E, nessa hierarquização, nenhuma época anterior se compara àquela, diz De Pradt: Nós somos evidentemente no [sic] centro de um desses formidáveis e extraordinários sucessos que abraçam vastíssima extensão do tempo, do espaço e de interesses, e que imprimem nova direção a uma considerável porção da humanidade; é uma das maiores épocas da História do mundo. Iede [sic], e marcai algum outro, que seja comparável ao movimento atual, que abraça a Europa e América, que apenas até aqui existira para o resto do mundo, e que vale mais que todo ele; (...) equilibrai esta com a mudança, que fizeram os Impérios de Alexandre, e Roma; apenas somos na aurora deste renovamento [sic]; porém marcai, se podeis, o espaço que ele abraça. 186 Mudança incomparável e inobservável nos exemplos antigos, não obstante toda a grandeza produzida pelas civilizações grega e romana. “Nós”, a humanidade, “todos somos passageiros no mesmo Navio; o mundo tornou-se a Pátria de quantos existimos; e a comunidade de interesses nos fez verdadeiros Cosmopolitas. Cessarão os interesses parciais e isolados; é uma e a mesma a cadeia que nos prende, e reúne a um centro 183 Idem, ibidem. Sobre a questão, cf. PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (c.1780 - c.1830). Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2012, capítulos 1 e 2. 185 RCF, número 13, 05 de fevereiro de 1822, Tomo I, p. 149 186 Idem, p. 151 184 89 comum”187. A humanidade toda no mesmo barco, concebida a partir do olhar europeu de De Pradt, avança num ritmo no qual cada elo da cadeia afeta a cadeia inteira. O centro comum – a Europa e a América – formam a fonte que dita o avanço desse navio. As transformações (revolucionárias) produzem a incerteza. A Europa que produz essa renovação é ainda uma Europa provisória, diz De Pradt: a “Europa definitiva pertencerá a outros tempos” 188 . A certeza fica para o futuro; a imprevisibilidade é a marca do presente, imprevisibilidade que produz uma construção189. A perspectiva de De Pradt daria o tom da interpretação daquele momento histórico presente no Reverbero190. Assim como o abade Raynal, De Pradt foi um dos principais intérpretes dos acontecimentos americanos a ser manejado discursivamente por todos aqueles envolvidos na disputa ideológica sobre os rumos que a América em geral, e o Brasil de maneira específica, deveriam tomar 191 . Os prognósticos que destacavam a inevitabilidade da emancipação das colônias americanas, tomando-se por exemplo os acontecimentos das 13 colônias inglesas, do Haiti e, posteriormente, das demais regiões coloniais, fortaleciam uma concepção progressista e a leitura da história recente como produção de um conjunto unitário a abarcar toda a humanidade num ritmo acelerado de transformações. Tal definia as fronteiras a separar o conjunto que “vale mais” do restante do mundo; o conjunto que daria a direção daqueles que apenas seguiriam o ritmo. No Brasil, dessa forma, as palavras de De Pradt provocavam a necessidade de inclusão: qual a posição da América lusa naquele contexto? De onde partia e até onde chegaria a civilização brasílica? Como se relacionaria a esse conjunto de transformações? A tônica geral da inevitabilidade da emancipação fazia parte de um quadro geral que entendia a história como “história da liberdade”, sempre em alerta contra os riscos 187 Idem, p. 152 Idem, p. 151 189 Para a imprevisibilidade como marca do período, cf. SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006. 190 Assim como em outros periódicos do período. Cf. SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010, p. 131; FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015, p. 117-118; PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências... op. cit.; PIMENTA, João Paulo Garrido. O Brasil e a América Espanhola (1808-1822). Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2003, p. 70. 191 MOREL, Marco. Independência no papel: a imprensa periódica. In: p. JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: HUCITEC, 2005, p. 617-638; PIMENTA, João Paulo Garrido. De Raynal a De Pradt: apontamentos para um estudo da ideia de emancipação da América e sua leitura no Brasil. Almanack Braziliense, n. 11, São Paulo, maio de 2010, p. 88-99. 188 90 do “Despotismo” e da “escravidão” 192 . É um tom marcado por uma interpretação histórica fortemente política, na qual o resultado dos embates depende fortemente do movimento das ideias e da ação dos governos. No contexto luso-brasileiro, foi a Revolução do Porto, na visão do Reverbero, que serviu de acontecimento central para sua interpretação daqueles tempos e para inserção do mundo português, bem como do Brasil, na “marcha da humanidade”. A data de 24 de agosto, começo da Revolução do Porto, é tido como o dia em que “ressurgiu a antiga glória com a antiga Liberdade” 193, momento de reconexão do presente com o passado, na trajetória desejada pelo desenvolvimento dos tempos. A liberdade é a luz; o despotismo são as trevas. A imagem é a do espetáculo da Liberdade que planta seu estandarte no Brasil, que sofria há três séculos o jugo dos “vergonhosos ferros” da escravidão194, momento produzido pelo “clarão brilhantíssimo da Regeneração Civil”, que “marcou para sempre nas páginas da nossa História o célebre dia 24 de Agosto do ano de 1820”. Aí é que se afirmou “nossa glória, a nossa honra, o nosso caráter”, “nossa tão desejada prosperidade”195. A imagem do “clarão” que ilumina as trevas do despotismo é significativa: remete a um rompimento, mais do que acúmulo progressista. O clarão ilumina os “vergonhosos ferros” que escravizam o Brasil há três séculos, mas que, pela dominância da escuridão, não eram vistos como tal. O clarão que irrompe, portanto, permite a visualização da própria condição colonial, que, então, será posta em perspectiva numa nova dinâmica (a “marcha da humanidade” produz uma nova época). A liberdade que planta seu estandarte no Brasil é fruto dessa irrupção. E, considerando-se o sentido moral do verbo “plantar”, pode-se considerar que é o movimento do Porto que possibilita o próprio exercício das novas doutrinas das luzes; sem o movimento que rompe a dinâmica do Antigo Regime, o Brasil não poderia absorver as necessárias luzes para vislumbrar sua própria condição de escravidão 196. É assim que o movimento do Porto é considerado o evento inaugural da interpretação do passado brasileiro que ficará Para o significado de “escravidão” nesse contexto, ver nota 38 acima. RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 02. 194 Idem, p. 03 195 Idem, p. 07 196 Em Bluteau, “plantar, no sentido moral, vale o mesmo que fundar, estabelecer ensinando, pregando, &c.”. Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. volume 6. Lisboa: Oficina de Pascoal da Sylva, 1720, p. 545. Em Moraes e Silva, “Plantar” pode também ser usada no sentido de “plantar virtudes, costumes; introduzir no ânimo”. Também “plantar doutrina”, “plantar as letras, as ciências”.Cf. MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Segundo. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, p. 418-419. 192 193 91 sintetizado, como já analisado em outros trabalhos, na fórmula dos “três séculos de opressão”197. O movimento do Porto, dessa maneira, ao ser interpretado como inauguração do processo de aceleração da transformação do despotismo em liberdade no Império Português, previne o encaminhamento dessa passagem por vias que possam fugir ao controle dos envolvidos. Essa é uma questão central para os coevos, pois, se a liberdade é necessária, é preciso que seu proceder seja controlado. A luta do homem contra a escravidão, afinal, é percebida como entalhada na própria condição humana; a opressão é vista como um “estado contrafeito para o homem”, chegando ao ponto de o avisar, “pelas dores, a que procure a natural posição, em que só pode viver e prosperar 198. A resistência ao despotismo é inevitável, e isto, que a cada momento observamos no homem físico, a história nos aponta também no homem moral, e quando não é o efeito de uma exasperação terrível, é o resultado de uma acumulação de luzes científicas, que adoçando os meios, com que procura o seu melhoramento, não macula a sua honra, não ensangüenta os seus planos, porque os escolhe com prudência, e os dirige com firmeza e com desinteresse pessoal. 199 A liberdade é uma inevitabilidade da condição humana: ou se a buscará por um rompimento enfurecido, ou por um caminho abrandado e adoçado pelas luzes científicas. O movimento português, encaixado no segundo exemplo, permitira uma transição segura ao estado natural do homem, desviado pela opressão despótica. A Providência Celeste, como autora do movimento, garantiria também a tranqüilidade 200. E o apelo à lembrança de um outro passado de luta contra a opressão serviria para garantir uma segurança no presente: Este dia avivando a lembrança daquele outro, que no ano de 1640 recomendou a nossa honra ao pasmo de todas as Nações civilizadas, marca nos Anais da monarquia duas épocas, que eternizam a nossa glória. Mas se então os portugueses deram provas decisivas, de que não era do seu caráter brioso o arrastar cadeias, que lhes lançara uma mão estranha, hoje com verdadeiro heroísmo mostram, que também se 197 SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro... op. cit.; FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do Brasil... op. cit. 198 RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 08. 199 Idem, p. 08. 200 Idem, p. 09. Para a permanência da “providência” nas linguagens historiográficas oitocentistas, cf. ROSA, Giorgio de Lacerda. A Suprema Causa Motora: o providencialismo e a escrita da história no Brasil (1808-1825). Dissertação de mestrado. Mariana, MG: ICHS/UFOP, 2011, cap. 3. 92 envergonhavam da opressão caseira, emanada dos que, ao invés de promoverem o bem de todos, abusavam da bondade do Soberano. 201 O apelo a 1640 não serve, aqui, apenas para traçar paralelo a uma situação tida como semelhante, mas para mostrar a naturalização da condição do “ser português” que atravessava os séculos. A luta contra a opressão é alçada a luta histórica da condição humana, e 1640 contextualiza a condição na existência portuguesa. Já tendo antes dado provas de não se curvar frente à opressão, agora 1820 pode reativar aqueles brios e tornar ao caminho de onde nunca Portugal se devia ter desviado: a liberdade que produz a necessária prosperidade. A necessidade de controle do movimento de transformação, naquele momento, podia ser satisfeita pelo brio português em si, pelo histórico que mostrava sucesso em outros eventos considerados análogos e pela presença do rei, que deveria ser preservada. Afinal, se, por um lado, o conteúdo da crítica à opressão ainda não atingia diretamente Dom João VI, por outro lado revivia-se a velha fórmula dos aduladores que desviam o soberano de sua verdadeira essência. Longe de ser tratado como um déspota, Dom João VI é equiparado a outros monarcas históricos de Portugal, como o “grande Afonso” e o “invicto João I”202. Mas, cercado por maus conselheiros, qualquer crítica que se fizesse ao encobrimento dos ministros logo produziria, da parte destes, apelos a tragédias da História recente, com gritos de “Revolução, Jacobinismo”.203 Se a lógica da história da liberdade era uma inevitabilidade da condição humana, e se Portugal dava mostras, com os eventos do Porto, de integrar-se a essa trajetória universal da humanidade, então era preciso superar, inclusive, os riscos passados em nome de uma transição tranqüila. Tal não se daria reprimindo os movimentos transformadores sob a desculpa da caça aos jacobinos revolucionários. Pelo contrário: a transição se daria pela completa “fortaleza da alma”, possível apenas em Estados livres, e não em Absolutos, que consistia na possibilidade de mostrar a verdade aos reis a partir do sacrifício do interesse à virtude, pela elevação à honra e à fortuna. Apenas Estados livres onde a imprensa “é a salvaguarda da Nação”. Apenas Estados livres o suficiente para cumprir a lógica da liberdade. O caminho, indicava o Reverbero, não era apenas rumo ao futuro, mas também um olhar ao passado. Considerando-se que a história da liberdade era uma constante 201 RCF, Número 1, 15 de setembro de 1821, Tomo I, p. 09. RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 13. 203 Idem, p. 15 202 93 humana, e considerando-se a trajetória de glórias de Portugal 204, lembra o periódico que, no passado, os portugueses já haviam tido esse tipo de situação, na qual o rei não era conduzido a considerar-se absoluto, dono de tudo, mas respeitava uma constituição que mantinha a justiça: Vós tivestes destes homens ó portugueses, nos dias doirados da vossa liberdade, quando a vossa Constituição seguida à risca fulminava, e reduzia a opróbrio aqueles que não falassem verdade aos Reis; então é que o escrivão que lavrava o testamento de João II recusou escrever para seu Sucessor o nome do Príncipe D. Jorge, que o rei nomeou com prejuízo ao Duque de Béja, em que por justiça devera recair; então é que na tomada de Safim não quis outro lançar as ordens para uma contribuição extraordinária, bem que precisa, dizendo ao Rei, (que o tentou até com a prisão) – Vossa Alteza não pode lançar tributos sem convocação e aprovação de Cortes – Ah! Que diferença! Até agora só lhe diriam: as leis casuísticas da equidade não são para um grande Potentado: quanto o estado tem é patrimônio dos reis, e até o mesmo ar, que respiram os Vassalos é um favor do Soberano, que é o representante de Deus – O Cortesão com grandeza d´alma e elevação dos sentimentos é um fenômeno: a natureza leva séculos para produzir um Sully, e o Conselheiro de Afonso IV, não acha modelos na história dos Povos escravos.205 Nesse sentido, as referências a reis do começo da monarquia – João II, Manoel I (menção na tomada de Safim) e Afonso IV – trazem à imagem do leitor um momento do passado no qual as leis existiam, eram cumpridas e garantiam a liberdade, e reforça a ideia da Revolução como Regeneração, ou da Revolução no sentido à inglesa do termo206. O grande culpado, nas páginas do periódico, são os aduladores, a Corte, os ministros “indignamente complacentes”, “ávidos de distinções e honras”. Tal movimento não era exclusivamente português: os riscos do decaimento da monarquia graças aos corruptores era uma constante na História. 204 Para a percepção de passado de glória e atualidade de decadência de Portugal na obra de José Bonifácio, cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, cap. 1. 205 RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 15-16. 206 O conceito de Revolução vivia sob tensão naquele momento, tensão esta que ultrapassa inclusive a temporalidade deste trabalho. Para as disputas em torno do termo naquele momento, e para outros usos do passado glorioso português naquele contexto, cf. NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Revolução: em busca do conceito no império luso-brasileiro [1789-1822]. In: JÚNIOR, João Feres & JARDIM, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Ed. Loyola: IUPERJ, 2007, p. 129-140, especialmente 137-138; PIMENTA, João Paulo Garrido. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da historiografia. Ouro Preto, número 03, setembro 2009, p. 53-82. Para o conceito “à inglesa” do termo e sua influência sobre a Revolução Americana, cf. GUSDORF, Georges. As revoluções da França e da América: a violência e a sabedoria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. Para uma discussão clássica e muito influente sobre as diferenças entre o conceito para os casos americano e francês, bem como para as diferenças entre o conceito de revolução ao longo do tempo, cf. ARENDT, Hanna. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 57-91. 94 Consultemos a história, Astiages deu a comer a Harpago a carne de seu próprio filho, e perguntando-lhe que tal a achava, respondeu o Cortesão – Excelente: à mesa do Rei tudo é saboroso – Camises [sic] para mostrar a sua destreza em atirar atravessou o coração de um menino aos olhos de seu pai, e este exclamou – Nem Apolo atiraria melhor.207 Trata-se, segundo o periódico, de exemplos que provam até onde o homem pode envilecer-se e degradar-se. E que, não fosse isso, o encaminhamento feito por Portugal e congêneres teria muito a ensinar àquelas regiões que ainda não sincronizavam suas temporalidades antigas, de opressão, ao novo momento: E porque [sic] fatalidade não tem a massa geral dos homens seguido os exemplos da Inglaterra, Espanha, e Portugal? (...) Porque [sic] os reis do mundo não se dão pressa a marchar pela estrada há pouco trilhada pelo Magnânimo, pelo Grande e Imortal João VI? É porque os princípios da moral são ignorados pela maior parte dos homens, que infelizmente os consideram pelo microscópio enganador de prejuízos destruidores. 208 Restava lamentar a sorte da humanidade e esperar que essa verdade, como em Portugal e no Brasil, alcançasse toda a família humana. A questão é interessante: Portugal, de país atrasado na Europa, da percepção de um afastamento gradual em relação aos seus pares, de espaço periférico tanto em relação a uma certa concepção de modernidade escravista (expresso na superação do “sistema atlântico ibérico” pelo “sistema atlântico do noroeste europeu”, com Inglaterra e França 209 ) quanto da modernidade política (que fazia urgir toda a lógica do reformismo210) agora aparecia como vanguarda daquela “marcha da humanidade” de que falava De Pradt, promovendo uma conexão com o passado (tanto 1640 quanto os primórdios da monarquia) em nome da superação do despotismo que, sempre à espreita, nas atitudes dos que cercam o soberano, tencionava atingir o estado natural do homem: a liberdade. A construção de uma lógica histórica associada à eterna luta da liberdade contra a opressão, isto que estamos chamando de “história como história da liberdade”, permitia um livre deslocamento temporal para qualquer momento do passado em nome 207 RCF, Número 2, 01 de outubro de 1821, tomo I, p. 17. Tratam-se de figuras do antigo Império Medo. “Camises” pode se referir a “Cambises”, filho de Ciro. 208 Idem, p. 18-19. 209 BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010. Voltaremos à questão da modernidade escravista no último capítulo. 210 Esse esforço, inclusive, produziu uma primeira ideia de “Brasil” como unidade no conjunto imperial: a busca pela superação do atraso significava um maior destacamento à posição da América Portuguesa no conjunto imperial, segundo a ótica metropolitana. Cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime português (1750-1822). São Paulo: HUCITEC: FAPESP, 2006, capítulos 1 e 2 e conclusão. 95 do presente, e tal servia plenamente à leitura do porvir. A luta pela liberdade, sendo eterna à condição humana, encontrava seus altos e baixos na história, construindo uma lógica inescapável. O momento atual era de renovação, é certo, mas, não obstante todo o sentimento de provisoriedade e fragmentação, a interpretação dos fatos presentes à luz dessa lógica e da compreensão do passado possibilitava um seguro encaminhamento para afastar os riscos mais danosos. Um esforço de permanência da historia magistra vitae nos novos tempos, contradizendo sua dissolução característica da modernidade conceitual à Koselleck?211 Nos novos tempos, deveriam desaparecer “todas as velhas, decrépitas, e desusadas ideias opostas às luzes do século, ao progresso do entendimento humano, à civilização da Europa, e a aquelas reformas que têm introduzido nos Governos as ideias liberais”. Um novo tempo se construía, inspirando terror àqueles “que se não podem persuadir que é chegado o tempo de se governarem os Povos por uma maneira diferente daquela porque foram governados há cem anos”.212 A forma de lidar com essa diferença era, de certa forma, apegar-se a uma lógica que se aproximasse do imutável. A luta pela liberdade na Europa, que teria inclusive vencido Napoleão, “o maior inimigos das ideias liberais”, era travada naquele alvorecer da década de 1820. Não se tratava, na percepção dos redatores, de guerra vencida. Pelo contrário: Portugal, sendo cabeça das transformações, bem como a Espanha, ainda eram “considerados pedras de escândalo”, “aborrecidas e anatematizadas” pelo odioso vocabulário dos antigos governos, parto do feudalismo e da escravidão, em que “desgraçadamente gemíamos”213. O presente oferecia resistências ao avanço da liberdade. Era importante, portanto, ampliar a perspectiva e jogar a origem da batalha pela liberdade para o passado distante, para sustentar a noção de que havia suficiente consistência na história portuguesa para alimentar os espíritos com a possibilidade de renovada vitória na contemporaneidade. Assim como 1640 fornecia a Portugal uma justificativa para fortalecer o fundo da luta contemporânea, outro “fato histórico” era lembrado às folhas européias identificadas ao despotismo “que assaz favorece a nossa causa”. Segundo o texto apontava, Andre II, no ano de 1204, publicou a favor dos Hungaros um Decreto, no qual se declarou o seguinte: - Se eu, ou qualquer dos meus 211 KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, cap. 2. 212 RCF, Número 7, 15 de dezembro de 1821, Tomo I, p. 79. 213 Idem, p. 80 96 sucessores, quiser em algum tempo anular os vossos privilégios, servoshá permitido a vós, e a vossos descendentes, por esta minha declaração, defender-vos com armas, sem que sejais por isto tratados de rebeldes. – Maria Thereza, em tempos mais próximos de nós, ratificou esta declaração: assim o manifestam os Anais da Hungria, e Alemanha: assim está escrito na vida de José II, impressa em Madrid, no Reinado de Carlos IV, Tomo I, p. 20. – Nem André, nem Maria Theresa receberam do Céu os direitos, com que reinaram, porque se assim fosse não teriam tão solenemente pronunciado o direito de resistência dos Povos, para conservação dos seus foros214 O poder não descia dos céus, mas vinha de baixo; o decreto real, já no começo do século XIII, reforçaria a lógica natural da história ao proclamar o direito de resistência contra qualquer opressão. O caminho do rei húngaro somava-se aos servidores de João II e Afonso IV, a 1640 e também ao movimento das Cortes em 1820 como sucessivas atualizações de uma mesma lógica histórica que ampliava, seguindo a interpretação de De Pradt, a marcha da liberdade até o alcance de toda a humanidade. Os intervalos de opressão eram suprimidos; os grandes homens de cada momento, como guardiões da liberdade, garantiam a continuidade e a existência histórica concreta do natural desejo do ser humano. O processo de exercício da liberdade, porém, como já vimos, comportava riscos. Especialmente nos momentos de ruptura mais acentuada, quando a tensão entre opressão e liberdade aumentava a ponto de a segunda, no limiar da explosão, arriscar-se fazer de tudo para garantir a própria existência, o retorno ao passado com intuito de produzir uma conexão com a eterna luta pela liberdade aparecia como caminho para suavizar a violência do processo. Afinal, a liberdade, não obstante fosse definida como natural ao homem e aparecesse como auto-evidente, junto aos demais direitos naturais, precisava ser qualificada, gerando, por um lado, uma aparente contradição 215, porém, por outro, marcando os limites do entendimento. Num século herdeiro de revoluções que, em nome da liberdade, produziram caminhos tão distintos, o adversário comum – identificado ao despotismo – não era suficiente para que todos os lados se unissem numa só direção. Isso justifica, por exemplo, a preocupação com a associação vista pelos redatores, em Portugal, entre os termos “independência” e “jacobinismo”: “hoje o termo – independência – substitui o de - jacobinismo - há bem pouco usado em Portugal para denegrir a honra de cidadãos beneméritos, talvez para vinganças particulares, e quase 214 Idem, p. 80 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Cia das Letras, 2009, introdução. 215 97 sempre o menor fundamento para tão hórridas calúnias?”216. As páginas da história já se achavam carregadas de episódios perigosos em nome da liberdade, e, no contexto dos anos 1820, manter-se na defensiva sobre as reais intenções era quase uma inevitabilidade: Temeremos dizer que as páginas da moderna história da França, manchadas com todos os horrores da Anarquia e de um Despotismo ainda mais cruel, do que aquele, de que se diziam livres, assusta e desengana os que poderiam ter ideias de uma independência Republicana? (...) Que outra independência podemos nós desejar do que aquela que nos afiança uma sábia e bem proporcionada Constituição? 217 A luta pela liberdade era uma luta arriscada para quem a defendia contra o despotismo. Afinal, onde acabava esta batalha e começava uma outra, daqueles que desejassem esticar até o limite o conceito, a exemplo da França jacobina? Era preciso manter o distanciamento, e se, por um lado, defender os revolucionários da pecha de “revolucionários” era parte do processo218, por outro havia constantemente a lembrança dos riscos que se escondiam sob a luta pela liberdade.219 A solução, sugeria um correspondente ao Reverbero, não se alcançaria por leis e cárceres, mas passava pela instrução. Afinal, o único método de prevenir os crimes, e fazer o Governo durável, é difundir luzes e ciências pelo Estado, como sementes fecundas de todas as virtudes. Na verdade conhecemos, de onde começa a História, ainda com o socorro da Fábula, até os nossos dias; que um Povo por virtuoso 216 RCF, Número 8, 01 de janeiro de 1822, Tomo I, p. 86 Idem, p. 87. Diria ainda em outro número: “A Liberdade (dizia aos Polacos o Cidadão de Genebra [Rousseau]) é como os alimentos fortes, que só se digerem por estômagos vigorosos. A liberdade sem virtude, degenera em licença, e cedo ou tarde, em Anarquia, pior que o despotismo.” RCF, Número 7, 15 de dezembro de 1821, Tomo I, p. 77. 218 Extrato do Morning Chronicle publicado pelo Reverbero em novembro de 1821, por exemplo, lembrando o papel de Portugal e Espanha para livrar a Inglaterra de seus males “quando Bonaparte mandava toda a Costa desde o Neva até a Grécia”, critica os que, naquele começo dos anos 1820, consideravam os países “revolucionários”, dizendo que os que assim os chamam hoje até pouco tempo os chamavam de “Protetores da Liberdade da Europa contra Bonaparte. Mudaram os tempos; mas os Espanhóis são ainda os mesmos”. Lembra, ainda, que seis mil soldados franceses puderam desembarcar na Irlanda, e “poderiam cem mil ter feito outro tanto na Inglaterra, se não fossem os Democráticos, e os Revolucionários Espanhóis, e Portugueses, que amam a sua Honra, e Dignidade, assim como amam os seus Reis.” RCF, Número 5, 15 de novembro de 1821, p. 59-60 219 Outro extrato do mesmo jornal, num Reverbero de janeiro de 1822, transcrevendo o “Memorial que os membros do club patriótico de Valhadolid apresentaram a Fernando VII” afirmaria: Diz temer uma nova revolução, “que será horrível e ensangüentada, porque os liberais de 1821 não são os de 1814”, e que “As revoluções, bem como as tempestades descarregam a sua principal fúria sobre os pontos mais elevados.” RCF, Número 10, 15 de janeiro de 1822, p. 124. 217 98 que seja, sem luzes se corrompe; e que um Povo corrupto pode fazer-se virtuoso pela instrução. 220 Assim é que “só uma instrução sólida, que vivifique a razão, demarca os limites, dos quais nem parem aquém, nem transcendam as pertenções [sic]” 221. Sem ela, podiase chegar ao abismo. O exemplo vem da França em contraste com as 13 colônias: A Revolução Francesa, Livro Mestre a todas as Nações do Mundo, abortou, porque luzes verdadeiras, e princípios razoáveis, não fizeram em todos uma só vontade, e um só modo de atuar. Perto estiveram os Anglo-Americanos, não cessando a Revolução, ainda depois da paz 1789 [sic], de se despenharem no mesmo precipício. 222 Os grandes impérios têm caminhado do Oriente para o Ocidente, continua a edição. Se novos terremotos e convulsões agitarem o Antigo Mundo, o Novo será o asilo das ciências e das virtudes 223 . O mundo que se descortinava colocava as transformações em curso no mundo atlântico numa retórica valorativa que fazia o futuro nascer do modo pelo qual conduzia-se a revolução. Com um pé no passado e outro firme no presente, o futuro não pareceria tão assustador: A instrução não só regula a conduta presente, senão ainda previne, e providencia a marcha do futuro. O presente está prenhe do porvir, diz Leibnitz, e pode-se conhecer a conexão por observadores atentos e profundos. As medidas e providências dos homens são proporcionais às suas vistas. O que é cego do futuro tropeçará em mil obstáculos no caminho da vida.224 A instrução permitiria a difusão das luzes e a certeza do caminho seguro a ser seguido. A contração do futuro e do passado na fórmula de Leibnitz – que também era utilizada por outros à época, como Silvestre Ferreira, com a ideia da existência de uma “unidade ontológica visível a partir de uma perspectiva superior” – oferecia uma visão otimista aos contemporâneos da Independência, pela ideia de que “observadores atentos e profundos” poderiam conhecer a conexão temporal que produzia essa unidade 225. Tal 220 RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 209-210. A questão da instrução como elemento de garantia de saída do barbarismo seria uma constante na produção intelectual do Império – e também em outras partes da América. Para o caso específico da obra do Visconde de Uruguai, inclusive com influência da produção francesa sobre educação, cf. SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e Barbárie... op. cit., em especial o capítulo 3. 221 RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 212 222 Idem, p. 212 223 Essa perspectiva já motivava os escritos de José Bonifácio. Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, cap. 1 e 2. 224 RCF, Número 18, 12 de março de 1822, Tomo I, p. 212, grifos meus. 225 Para a “unidade ontológica” da fórmula em Silvestre Ferreira, cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: 99 conhecimento, aplicado a uma ação, garantiria a continuidade da História da Liberdade sem os percalços que a eterna e necessária luta poderia atravessar. Os “mil obstáculos no caminho da vida” apareceriam não como inevitabilidade, mas como resultado da condução da luta pelo “cego do futuro”, que não conseguiria ler no tempo presente os fios que constroem o tempo futuro. O aprendizado, como visto, era garantia de fortalecimento da compreensão desses fios. Dentre os elementos do aprendizado, a matemática se sobressai, pois seus princípios “são a base eterna, a Metafísica primordial, o Genesis da exatidão em todos os conhecimentos humanos”. Estes princípios são para o espírito, poderoso incitante, familiarizando-o e habituando-o a proceder com ordem, e sistema, e à prática de uma Lógica inacessível a sofismas, e paralogismos. É admirável que entre milhares de pessoas, que perderam o juízo na Revolução Francesa, o principal clinico dos Maníacos, não visse entre eles um só Geometra. Tanto é o vigor a firmeza [sic] que dão estes princípios ao Entendimento humano! 226 E conclama: “Avante, avante, e progressivamente à perfeição; de forma que essas maravilhas Políticas, objetos da admiração da História, despojadas do esplendor, vão, com que se tem revestido, nada mais pareçam aos nossos vindouros, do que brincos frívolos, e muitas vezes funestos, da infância do gênero humano. Avante nas luzes, avante no melhoramento”.227 O aperfeiçoamento progressivo garantiria a boa definição de liberdade. Não que o Brasil já não estivesse em um nível adequado de instrução para sua liberdade, pelo contrário. Na verdade, no momento em que as distâncias entre as Cortes e os grupos que disputam a direção no Rio de Janeiro chega ao auge, em meados de 1822, qualquer preocupação com os níveis de instrução necessários ao rompimento submetem-se ao sabor das circunstâncias. Afinal, se o rompimento se afigurava inevitável, não sendo vislumbrada outra opção, qualquer alternativa que duvidasse da capacidade do Brasil em exercer sua autonomia política, ingressando no circuito da lógica liberdade x despotismo sem o braço português, levaria ao fracasso. Assim é que, Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 95-96. Uma década depois do contexto do rompimento, José Bonifácio, afastado da vida política e tendo fracassado em seu projeto restauracionista na América Portuguesa, utilizaria a mesma fórmula de Leibnitz com pessimismo. Em Bonifácio, a frase ganha ares de apego a um universo conceitual passado para compreensão de um provir que não mais se apresenta a ele como passível de leitura clara. Tal se explicitava no uso do verbo “esperar”: “comentando com o amigo Meneses a morte da Imperatriz, [Bonifácio] escreveu: „Esperemos: que o presente está prenhe de futuro”. Cf. Idem, p. 96. 226 Idem, p. 215 227 Idem, p. 216 100 comparado a outros povos que, no passado, exerceram seu direito à libertação, o Brasil não poderia levar desvantagem. Os brasílicos poderiam se regozijar, respondendo àqueles que os considerassem fracos em luzes: Mas concedamos por cinco minutos o paradoxo da nossa falta de conhecimentos. Por ventura os Germanos quando fizeram a sua formidável Dieta para dividirem o gigantesco Colosso do Império Romano, quando organizaram essa Constituição, que os fez Independentes no meio de todas as comoções dos Senhores do mundo, tinham grandes conhecimentos políticos? Os Povos da Suécia, cuja Constituição primordial é ainda hoje contemplada como um grande modelo; os Franceses no tempo de Henrique IV, à frente do Congresso de Roma estariam mais adiantados do que nós? Amigos, é no berço das indignações que nascem os Aristides, os Alcebíades e os Thesmitocles [sic]228 Se a história da liberdade produzida era capaz de comprimir as distâncias entre tempos passados e o tempo presente, então uma escala única poderia dar conta de medir todos os elementos necessários à plena realização da liberdade, sem qualquer necessidade de consideração contextual. Sim: faltava instrução, e ela era fundamental à libertação sem os desvios do sangue ou da anarquia, mas já o Brasil encontrava-se suficientemente adiantado, quando comparado a outros momentos de vitória da liberdade, para fazer nascer os seus Aristides, Alcebíades e Temístocles. Afinal, as ideias da liberdade da prosperidade da segurança Individual são ideias inatas em todas as Nações: o fio de Ariadne nunca falta àqueles que fazem esforços por saírem dos labirintos: um Povo que se propõe organizar o plano de seu melhoramento acha em si um gênio particular que o ilumina. Os Brasileiros não podem ver sem lágrimas, que os seus irmãos caminhem passo a passo após dos vestígios das três Assembleias Constituintes de França; cotejando as folhas dos debates revolucionários com os Diários das Cortes acham até as mesmas expressões de que alguns Deputados se servem, e desconhão[sic], ou melhor já lastimam o infeliz resultado por um princípio teórica e praticamente conhecido nos melhores Publicistas, que não se pode transportar o plano de Legislação de uma por outra nação sem mil inconvenientes e obstáculos indestrutivos, e que infalivelmente devem comprometer a sorte das Monarquias se à força tentarem esta classificação.229 Quando se rompe a unidade conceitual do Império luso-brasileiro, mudam-se também alguns detalhes da interpretação. A instrução continuava fundamental, mas agora destacava-se que, na ausência dela, “um gênio particular” iria iluminar aqueles que, por esforço, buscassem sair do labirinto e dar vazão às ideias de liberdade e 228 229 RCF, Tomo Segundo, Número 02, 04 de junho de 1822, p. 13-14. Idem, p. 14. 101 prosperidade que, inatas, alimentam o coração de todas as nações (inclusive das novas...). A conexão com o passado, que até então unia os destinos de Brasil e Portugal às vitórias da liberdade em tempos antigos, agora separava os dois lados do Atlântico, jogando a face europeia não ás vitórias, mas à cola da derrota francesa: as Cortes seguiam o mesmo fracassado caminho que arriscara a França à ruína, apenas por não atentar às particularidades que destacavam cada povo no conjunto das nações 230 . A unidade que, até então, dava o tom na interpretação da lógica histórica da luta da liberdade cedia espaço, agora, à cor local. A ausência desse atendimento, a ausência da “liberalização”, faria o Povo voltar-se contra seus próprios representantes, liberando, no lugar, o germe das facções, envenenando as medidas mais ajustadas: Eis as causas porque raras vezes as Assembleias gerais deixam de abortar tornando-se mais perigosas do que úteis: eis o motivo porque a França nos últimos dias de Luiz XVI, viu mudado o teatro de sua regeneração em um tempo de euriçaria [sic], e surgir debaixo das ruínas do trono dos Reis um monstro infinitamente mais feroz do que o Despotismo, que se procurava suplantar.231 Se a liberdade era inevitável, posto que contida no coração do homem, o caminho de seu alcance era repleto de riscos. A liberdade pela qual se lutava, assim, embora moderna, apresentava-se como pautada por uma eterna luta partida da condição humana. Não para fracionar ou dividir, pelo contrário: os que procuram cismas não são amigos da liberdade, afirmava o Reverbero. A luta, afinal, era pela renovação: “a Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o amor da Pátria não pode separar-se do amor da Nação; e o que dizemos em favor do Brasil, redunda em Em longa citação, a edição afirmaria: “O legislador que não atende para os sentimentos dos Povos, para os primitivos elementos de sua educação, para a influência daqueles costumes que com o tempo se incorporam no Código da Legislação Nacional, o legislador que pretende fazer de um Romano um Ateniense, que pretende dar às Repúblicas, ou Monarquias modernas, a têmpera das antigas, em lugar de um Código de Legislação oferecerão aos Povos a sentença de sua desgraça e da completa raiva. Os ingleses tinham uma tendência natural para o seu sistema de Governo, e por isso o célebre Eduardo, depois de haver apresentado a Carta, não pôde obrigá-los a retrocederem. Os franceses tinham uma impossibilidade moral para o estabelecimento da Democracia, puseram em movimento todas as molas que forjou o delírio, e depois de se estrangularem, voltaram a um estado pior, ao do Despotismo Monárquico Militar, e hoje debaixo da antiga Dinastia vivem em convulsões por não conhecerem os limites da grande Carta. O estado atual das nações indica suficientemente que todas esperam uma legislação liberal, destruidora dos abusos introduzidos pelas brechas nas antigas Constituições, a grande arte dos novos organizadores deste plano se manifestará se eles acertarem com o encadeamento deste nó górdio; porém deixarão tudo em pior estado se o cortarem à espada.” Idem, p. 14. 231 Idem, p. 15. 230 102 benefício de Portugal”. Desse modo, “somos livres, abraçamos a Causa que se identificou com o nosso mesmo sangue”232. 2.3) O Brasil como trajetória portuguesa na América. Dentro desse contexto de interpretação da história geral, cabe uma pergunta fundamental: o que era o Brasil aos olhos do Reverbero? Podemos dizer que a definição sofreu algumas alterações no breve período de duração do periódico. A concepção inicial presente nos discursos dentro do Reverbero apresentava o Brasil como um espaço escondido por muitos séculos às vistas dos Geógrafos, [que] encerrava no seu seio todas as preciosidades da natureza; era um grande tesouro, mas só possuído pelos indígenas, nações bárbaras, destituídas de conhecimentos polidos, e de toda a comunicação com o resto do mundo, que nem supunham existir fora do círculo das suas vistas, necessitando por isto mesmo de quem as tirasse do esquecimento para encaminhá-las à glória, de que os homens são suscetíveis.233 O delineamento de uma unidade, no discurso, produzia uma articulação entre natureza e território que já poderia vislumbrar em potencial um governo – antes inexistente, mas cuja trajetória viria a constituir-se. Geógrafos, afinal, eram os responsáveis pela “descrição das terras e mares”, mas também, politicamente, por darem “razão das divisões dos estados, formas de governo” etc. 234 À unidade territorial faltava uma unidade política capaz de elevar ao máximo a potencialidade do espaço. A destituição dos conhecimentos polidos (associados, à época, também à urbanização no contraste litoral x interior) e da comunicação com o resto do mundo (fundamentalmente a comercial) próprios das “nações bárbaras” que habitavam o Brasil atirava o destino da unidade ao esquecimento, numa lógica de apagamento da história que se coadunava com a posição de Januário da Cunha Barbosa e do IHGB duas décadas depois. 235 A polidez, filha da urbanização, e a comunicação, fruto das trocas comerciais, produziam a 232 RCF, Número 8, 01 de janeiro de 1822, Tomo I, p. 88. RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33. 234 MORAES E SILVA, p. 682. 235 No conhecido discurso de fundação do IHGB, Januário da Cunha Barbosa justifica a criação da “nossa associação” por ser ela “encarregada, como em outras nações, de eternizar pela história os fatos memoráveis da pátria, salvando-os da voragem dos tempos e desembaraçando-os das espessas nuvens que não poucas vezes lhes aglomeram a parcialidade, o espírito de partido, e até mesmo a ignorância”. No caso brasileiro, “um grande número de feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade, sem proveito das gerações subseqüentes”. Os instituto, assim, cumpria sua função: “nós vamos salvar da indigna obscuridade, em que jaziam até hoje, muitas memórias da pátria, e os nomes de seus melhores filhos”. Cf. RIHGB nº „1, p. 9-17 (referências, respectivamente, às páginas 9, 16 e 10). 233 103 possibilidade de fuga do esquecimento – a entrada na História. A História do Brasil, como narrativa na visão do Reverbero, nascia fundamental e paradoxalmente a partir de uma impossibilidade de conhecimento histórico: o começo, fadado ao esquecimento, não seria acessível; tratar-se-ia de uma não-história que continuaria a trazer questionamentos profundos aos historiadores acadêmicos de meados do século (e, diríamos, até os dias de hoje em salas de aula pelo Brasil). 236 A entrada dos bárbaros na glória seria fruto essencialmente dos “bravos argonautas portugueses no ano de 1500”, os quais, conduzidos ao berço da Aurora por Pedro Álvares Cabral, e desviados na sua derrota por temporais, em que se ocultava a mão da Providência, descobriram esta grande porção do globo, estabelecendo nela cordial amizade, estendendo aqui a glória do nome do Senhor D. Manoel, plantando a Religião, e em conseqüência disto ensinamento as Leis, os sábios costumes, a Agricultura, o Comércio, a Navegação, fontes principais da prosperidade dos Povos.237 A história do Brasil sai da obscuridade com os portugueses, auxiliados pela mão da Providência, que reservava àquela unidade um destino glorioso que catapultasse o potencial de sua natureza ao máximo238. A troca cordial, e não a guerra, marcava no discurso a inauguração da presença portuguesa no Brasil. A religião, a agricultura, o comércio e a navegação felicitavam nações bárbaras inocentes, coletoras, sem trocas, sem riquezas. A Providência aparece como elo a unir os distintos povos em prol da mesma direção comum. Davam-se “as mãos mutuamente por aqueles princípios, e pelos sagrados vínculos de parentesco, que tão rápida e progressivamente produziram o enlace, que hoje vemos generalizado em todas as Províncias do Brasil”. A presença portuguesa criava a família; a mistura de raças produzia a união. Esses preciosos vínculos “forma[m] a base da sua perfeita harmonia, jurando-se mutuamente uma perpétua e necessária união.”, fruto da “Magnânima Nação Portuguesa”, unificando na Europa, na América e no restante “do seu todo” uma só família.239 Em suma, a civilização, fruto de doação magnânima de Portugal, coroava o processo de desenvolvimento sintetizando tempos imemoriais (até o ano de 1500) numa não-história e concentrando em três séculos (daquele momento da chegada portuguesa até o “hoje vemos generalizado”) o processo de produção de uma unidade civilizada, 236 TURIN, 2013; VALDEI, 2008. RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33. 238 Cf. nota 60 acima. 239 RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33. 237 104 dentro da história e progressivamente desenvolvendo seu potencial, fruto da união entre natureza e controle sobre a mesma (comércio, navegação, agricultura etc.) sob encaminhamento pacífico e amigável. A narrativa sobre a História do Brasil tornava esta tributária de Portugal em sentido amplo: Portugal inseria-se na lógica da história da liberdade, e o Brasil dela fazia parte pelo braço português. Essa conexão tornava ambos os passados comuns marcados por uma série de coincidências. Esses pontos em comum seguiam a já vista lógica da história da liberdade, em eterna luta contra o despotismo. Assim, comparando-se Portugal ao Brasil, ficava exposto que Se Portugal geme o Brasil também geme; a opressão dos Holandeses não foi menor que a dos Felipes, nem maior a energia com que na Europa se quebraram os ferros da Espanha, do que aquele com que no Brasil se triunfara da Nação Batava, ligando-nos sempre em um centro Nacional, donde resultava o mais encendrado [sic] patriotismo. 240 A primeira visão presente no Reverbero a respeito de narrativas sobre o Brasil associava, portanto, a luta portuguesa à brasileira como uma unidade marcada por uma diversidade. Os problemas da invasão holandesa e da União Ibérica, partes de um mesmo momento da história dessa unidade portuguesa, manifestava-se de modo semelhante, mas em duas unidades distintas (Portugal e Brasil). O “centro nacional” produtor de um “patriotismo”, entendido como sentimento do conjunto do Império Português, era o elo entre a luta pela liberdade na Europa e na América. Esse centro, não territorializado, não se identificava com Lisboa, mas com um sentimento difuso. Não era o rei, a Corte ou a institucionalização da colonização que unia Brasil a Portugal. Era algo a ultrapassar essa concretude e fixar-se no âmbito mais geral da história da liberdade. E era assim que o movimento do Porto, promovendo o “Sábio e Magnânimo Congresso Nacional”, reunido em Lisboa “como os bravos e prudentes de Ourique na célebre Cidade de Lamego” o fizeram, coroava o “mesmo heroísmo” da ”Regeneração da Monarquia” que marcara a sua fundação, atualizando a liberdade para ambos os lados do Atlântico. “Eles restituem o caráter nacional ao seu primitivo esplendor, dissipando as trevas, que o sepultavam no mais vergonhoso esquecimento”, abrindo-se para as ciências e as artes em uma nação livre 241. 240 241 RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 33-34. Idem, p. 34. 105 O texto inclui o Brasil na narrativa. Diz que o Brasil também sofria “o peso daqueles ferros, que lhe lançara a mais revoltante ingratidão, vendo declarados inimigos aqueles que generosamente abrigara, (...) e o Brasil persistiria escravo, enquanto os seus irmãos europeus se aclamavam libertos”. 242 Dessa maneira, tendo sido aberto o caminho com a Regeneração, abria-se também o caminho do retorno à glória dos antepassados. Cessando a opressão, “cessa por isso mesmo o motivo de nos separarmos daqueles a quem devemos a nossa existência Religiosa, Literária, e Civil” 243. E quem pensasse diferente estaria insistindo em intrigas, haja vista que “ainda nos devemos considerar na infância da Liberdade, e é melhor sem dúvida termos mentores aqueles de quem temos o sangue, a educação e os brios, do que qualquer das nações estrangeiras, que nos venderão muito cara a sua proteção”244. O Brasil já começara a sentir os frutos de um bom sistema constitucional. Mas valeria mais a pena pertencer a uma monarquia constitucional em que há centro e limites aos diversos poderes a abandonarmo-nos aos delírios de uma democracia absoluta, que não pode permanecer por muitos anos em um país extensíssimo como é o Brasil, nem pode assegurar as suas diversas e remotas províncias da separação mútua, a que podem ter direito nesse caso, e que sem dúvida servirá para sua ruína, por guerras civis, ou por fraqueza, que delas se siga, que as entregue à primeira Nação, que tente empolgá-las, ou ao mais astuto a afortunado general, que se converta em seu opressor. 245 A memória de Napoleão ronda a narrativa presente no Reverbero. E misturavase também às recentes memórias da América Espanhola, com seus conflitos militares e riscos de “separação mútua” das “remotas províncias”. A unidade, mantida nos últimos séculos pelos laços criados, porém sob risco pela opressão – que não tem ainda uma origem espacial ou temporal definida fora da secular e universal crítica ao “ministério despótico” –, iria renovar-se graças à Constituição e ao movimento regenerador. A história futura do Brasil seria, assim, o prolongamento da história passada na qual a união com Portugal tantos frutos produzira. A narrativa sobre as origens e o futuro do Brasil insere-se nos limites da história portuguesa, sendo as Cortes uma atualização e síntese dos movimentos anteriores pela liberdade (Lamego, separação da Espanha, invasão holandesa etc.). 242 Idem, p. 35 Idem, ibidem. 244 Idem, p. 35-36. 245 Idem, p. 36. 243 106 O número seguinte, que não é correspondência ao periódico, como a anterior, mas trecho tirado do “Campeão Português”, número 27, complementa a montagem da narrativa. Comparando-se a situação da América Espanhola à Portuguesa, no que tange às relações com a Europa, explica-se uma diferença fundamental que coroa a narrativa histórica vista até aqui sobre o Brasil no Reverbero. Segundo o periódico, na América Espanhola haveria “um grande número de indígenas civilizados, e de outro igual ou maior de europeus, ou seus descendentes”. O Brasil, por outro lado, “pode dizer-se completamente habitado só por portugueses, quer aí nascidos, quer na Europa, porque os indígenas do Brasil ou vivem no interior sem fazer corpo de Nação civilizada, ou em mui pequeno número vivem conosco sem nenhuma influência civil ou política.” 246 E conclui: Assim é claro que se nas América Espanholas pode haver um motivo plausível de antipatia e desunião entre Americanos e Europeus; não existe, nem deve racionalmente existir entre portugueses europeus ou brasileiros, porque todos eles formam a mesma família, e são exclusivamente dependentes do mesmo tronco Europeu. 247 A não-história dos indígenas anteriormente à presença portuguesa traduziu-se numa continuidade da não-história dessa população até aqueles anos. Não mais espalhada por todo o território, mas confinada cada vez mais ao interior, sem “corpo de nação civilizada”, ou como resquício no interior da civilização, “sem nenhuma influência civil ou política”. A história do Brasil tirada do esquecimento, assim, é a história da nação portuguesa, a qual, ocupando o território e fundando ali os marcos civilizatórios, foi capaz de produzir a história local, do Brasil, sem descolar-se na trajetória mais ampla de Portugal. Diferentemente do acontecido na América Espanhola, onde, segundo o autor do trecho, o número de indígenas civilizados mantinha uma tensão permanente entre uma narrativa local própria e a outra, europeia. A lógica que produz o Povo Brasileiro, nesse sentido, é europeia-portuguesa, diferentemente da espanhola, onde a presença indígena civilizada produz uma alteridade em relação à civilização europeia, portanto desunião e instabilidade. A ordem no Brasil é produzida pela homogeneidade europeia. E os negros? Continua o trecho: “Não falamos na povoação preta, ou de cor, porque sendo a primeira quase toda de escravos, são estes como estranhos no País sem 246 247 RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 37. Idem, p. 38. 107 direitos políticos, e sendo a segunda uma mistura de portugueses com pretos, ou índios, entram eles na classe de portugueses”.248 Ou o preto é escravo e estranho, portanto fora da narrativa histórica, ou a miscigenação produzira um amálgama onde prevalecia o tronco europeu civilizatório. “Logo é evidente que entre Portugueses europeus e portugueses brasileiros há mais ligação natural que, por exemplo, há entre espanhóis europeus e americanos”.249 A grande família lusitana tinha uma única História. Após o encerramento das referências, os comentários dos editores do Reverbero finalizam a questão. Mencionando Bentham e Milton, afirmam: “Nunca pode haver reconciliação sincera onde as feridas de um ódio mortal estão profundamente gravadas. Felizmente entre nós existiu a mais cordial aliança, que nos reúne há três séculos em corpo de Monarquia, aliança ainda mais apertada desde o político Decreto de 15 de dezembro de 1815.”250 Dizem, por fim, que “uma mãe nunca procura a infelicidade dos seus filhos; antes alegra-se pela sua grandeza (...). A liberdade é franca e generosa, e a Sabedoria bebe as suas leis na Justiça, e na Igualdade”, ambas reunidas no Soberano Congresso.”251 Ou seja, os tempos passos eram de cordialidade e o presente mostrava-se pleno de novidades impossíveis de se retrogradar. A liberdade, ocupando o lugar da opressão, e a igualdade, o espaço da desigualdade, eram características do mundo português, não uma fratura entre os dois lados do Atlântico. Sob as bênçãos das “luzes do século”, os gemidos de luta e sofrimento que atingiam ambas as partes do Império igualmente haviam ficado em definitivo para trás, posto que a atualização da luta da liberdade rompia com círculos anteriores, abrindo a prosperidade de forma inexorável. Dali para a frente a vitória seria o único caminho. A narrativa, portanto, produz uma síntese de três séculos de cordialidade, aliança e magnanimidade; três séculos que encerraram um tempo a-histórico suspenso e fadado ao esquecimento, introduzindo a unidade territorial à civilização e produzindo uma aproximação familiar, com um centro nacional e uma força moral que distinguia aquele espaço da trajetória da América Espanhola. Apontava-se o coroamento da explanação no decreto de dezembro de 1815, que elevava o Brasil à categoria de Reino, marco após o qual qualquer “retrogradação” do tempo mostrava-se impossível. Daí em diante o tempo apenas poderia correr para frente, rumo ao aperfeiçoamento e ao progresso, jamais para trás. 248 Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. 250 RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 42. 251 Idem, p. 43. 249 108 A visão idílica da narrativa histórica da presença portuguesa no Brasil conviveu, porém, desde seu início, com seu oposto, explicitado na fórmula dos “três séculos de opressão”.252 Em pelo menos cinco edições do periódico podemos ver tal formulação. A começar pela própria edição anteriormente mencionada, de 01 de novembro, num texto publicado logo após o discurso sobre a cordialidade das relações. A correspondência seguinte, dirigida aos senhores redatores, falando as exportações da Ásia à Europa de chá, pimenta, canela, cânfora etc., fala de uma plantação de árvores destes produtos na Lagoa. Pergunta-se o autor por que aquelas plantas se conservariam ali guardadas: “Acodiram de chofre à minha imaginação muitas reflexões, e não pude eximir-me de censurar e mal dizer o sistema do antigo Governo, que por três séculos nos oprimira. Que miséria tem sido a nossa? Que desenido, que desprezo para com o Brasil?”253 Interessante que, enquanto o artigo anterior, na mesma edição, fala positivamente da união de três séculos, a partir dos laços firmes que se formaram, a correspondência pensa pela ótica da opressão. Mas a contradição é apenas aparente. Os laços cordiais que uniam o Brasil a Portugal naquela conjuntura específica de finais de 1821 baseavam-se na ideia de civilização, que fora construída pelos lusitanos na América dos bárbaros indígenas e que produzira o território que, via Portugal, ansiava inserir-se na lógica europeia (inclusive saindo do esquecimento e ingressando na História). A crítica da correspondência aos séculos de opressão, contudo, é estritamente econômica. Usa exemplos de práticas econômicas francesas e inglesas na página seguinte, apenas para depois dizer: “Só nós ainda não ousamos deixar o mísero estado de rotineiros, só nós seremos sempre cegos, e no meio de riquezas imensas seremos sempre Tantalos?”254 Fala da agricultura como “fonte mais rica da nossa prosperidade.”, e que “o Café há 50 anos era no Brasil uma Planta exótica, e hoje forma a parte mais considerável da nossa Agricultura e da nossa riqueza” 255 . A “opressão portuguesa” constituía o conjunto de entraves que impedia a plena expansão dessas questões econômicas pelo território, sendo, portanto, de fundamental importância uma transformação nessa relação. 252 Para a expressão, cf. FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de Independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2015; SANTOS, Cristiane Alves Camacho dos. Escrevendo a história do futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2010. 253 RCF, Número 4, 1 de novembro de 1821, p. 44. 254 Idem, p. 45. 255 Idem, p. 46. 109 Com o passar das edições, a união civilizatória não impediu que a crítica econômica transbordasse para o terreno da política e produzisse metáforas e termos que dessem concretude à narrativa daquela relação. Assim é que a imagem da escravidão, bem como seus termos associados256, e a conceituação de um “Sistema Colonial” 257 ganharam, naquele momento, força explicativa para identificar a situação do Brasil frente a Portugal. Inclusive abarcando os anos posteriores à vinda da Corte ao Brasil258. Não é sem cuidado que essas associações espalham-se nas páginas do periódico. O jogo de associação e críticas entre Brasil e Portugal era complexo demais para reduzir-se ao dualismo “colônia” x “metrópole”. Era preciso manter os ganhos e considerar os marcos tanto da colonização portuguesa, como já indicado no processo de civilização, como dos tempos joaninos, que se não deveria misturar nem às críticas mais genéricas, feitas a Portugal, nem às específicas, dirigidas ás Cortes. Esses marcos, exemplificados fundamentalmente nos anos de 1808, 1821 e 1822, ganham sentidos distintos nas páginas do Reverbero e se relacionam a narrativas de avanços e retrocessos por que passava o Brasil naquelas interpretações. O primeiro desses sentidos procura ver os ganhos que Portugal poderia auferir do desenvolvimento da grandeza do Brasil. Em reflexão sobre uma passagem do “Semanário Cívico da Bahia”, número 35, os redatores do Reverbero afirmam que os “detratores do Brasil”, nas palavras do Semanário, se refugiam no tamanho do país, comparando o Brasil a 256 Um discurso pronunciado no ato da eleição paroquial de Santa Rita, no Domingo 21 de julho de 1821, e oferecido à Sereníssima Senhora Infanta D. Januária, por seu autor o Padre Januário da Cunha Barbosa, fala que o presente ato vai “principiar a prosperidade da nossa Pátria”. Diz que, até pouco tempo, os cidadãos não sabiam o que era este edifício, “cujo plano encantava as vistas de um Povo, que via quebrados os ferros, que arrochavam os seus pulsos por mais de três séculos”. Cf. RCF, Tomo Segundo, Número 10, 30 de julho de 1822, p. 114. 257 Carta aos senhores redatores começa por afirmar: “O Sistema Colonial, com que Europa escravizava a América, parecia afugentar do Brasil as Ciências e as Artes; não porque faltasse a alguns dos seus habitantes o talento necessário, esse dom admirável, com que a pródiga Natureza mimosea aos seus escolhidos em todas as partes do Mundo; mas porque a nossa Metrópole, assim como era ciosa dos homens ricos, também era dos Sábios.” Cf. RCF, Tomo Segundo, Número 05, 25 de junho de 1822, p. 49. Na recusa da existência colonial, cujo sentido recente, distinto do antigo (associado ao povoamento), denotava profunda sensação de exploração, afirmaria ainda o Revérbero, em resposta à ideia, transcrita em manifesto português, de que “ideia do estado de Colonia a que Portugal em realidade se achava reduzido afligia sobremaneira todos os Cidadãos que ainda conservavam e presavam o sentimento da dignidade Nacional.”: “sendo odioso a Portugal o estado de Colonia, pode por ventura ser agradável ao Brasil?”. Cf. RCF, 08 de janeiro de 1822, p. 97. 258 “Nós tínhamos abertas profundas chagas, gemíamos debaixo de uma dívida horrorosa, sofríamos todos os males provindos da escravidão de 300 anos, e da ruinosa administração que se lhe seguiu nos quatorze últimos, e nós não vimos uma só providência, uma só lei que nos respeitasse diretamente, e nos produzisse o menor gênero de alívio, ou de esperança.”. O discurso ainda completa: “ Cf. RCF, Número 26, 7 de maio de 1822, p. 311. O discurso de Januário, mencionado na nota 19 acima, ainda indicaria que a situação recente, longe de ser louvada como libertação, como no começo do periódico, seria, na verdade, de reafirmação da escravidão: “a liberdade, que para nós voara das margens do Tejo, ocultava debaixo das suas roupas novos e mais pesados ferros, que a vista do sagaz brasileiro lobrigou muito a tempo”. Cf. RCF, Tomo Segundo, Número 10, 30 de julho de 1822, p. 114. 110 Portugal e contrastando os tamanhos populacionais, o que conferia maior poderio a este em relação àquele. “Mas não se recordam que Portugal tem chegado à sua madureza, e já não pode crescer; que o Brasil situado na mais feliz posição, enriquecendo de todos os dons da Natureza, começa agora a desenvolver-se; e quem sabe a que ponto de grandeza chegará?” 259 Não era uma simples questão de comparação direta: os tempos de Portugal e Brasil eram distintos: o primeiro caminhava rumo a uma estagnação e possível degradação; o segundo, no esplendor da idade, abria seu potencial ao futuro de grandeza. O Brasil, tendo muito a crescer, aparece com mais brilho que Portugal, velho e incapaz de novos progressos no novo tempo. Continuam os redatores afirmando que a grandeza da Nação exige, para conservar-se e crescer, que, ou a Sede do Governo seja no Brasil, gozando Portugal das vantagens, que mencionávamos (...), ou que o Brasil tenha um Governo central seu subordinado e sancionado por aquele, e apertado com todos os laços do Comércio, uniformidade de Rito e de Língua, e com todas as prisões de parentesco; não haverá castigos, que não mereça o homem, que abandonar uma ocasião tão útil e preciosa para estabelecer a nossa união debaixo destes princípios, e de maneira que ela dure eternamente, e que nossos filhos gozem em paz os bens que lhes deixamos. 260 Lamentam os redatores que o Brasil não tenha ainda colhido todos os frutos da “nossa feliz Regeneração”, que parecem ainda estar ao alcance, e elegem a Constituição do Estado – que deve ser uma só – como a “grande força, que deve atrair e ligar os dois centros”. 261 A conexão entre grandeza e Constituição desemboca na defesa da Regeneração como perspectiva de síntese das duas realidades – americana e europeia –, capaz de, desenvolvendo as potencialidades do Brasil, possa igualmente elevar Portugal a um estado de sublime desenvolvimento. Qualquer outro caminho, nesse momento, era visto como fruto dos inimigos da liberdade. Afinal, “a Liberdade que a Nação proclamou anima o amor da Pátria, o amor da Pátria não pode separar-se do amor da Nação; e o que dizemos em favor do Brasil, redunda em benefício de Portugal” 262 . A realidade local – Pátria – entrelaça-se à unidade mais ampla – Nação, ainda portuguesa –, o que produzia um duplo caminhar. E o engrandecimento passava, necessariamente, pela plena abertura ao “sistema liberal” – tanto num sentido político quanto econômico –, que, contrastando as conclusões 259 RCF, 01 de dezembro de 1821, p. 67. Idem, p. 70. 261 Idem, Ibidem. 262 RCF, 01 de janeiro de 1822, p. 88. 260 111 oriundas da observação da História passada, poderiam produzir expectativas futuras que invertessem a relação até então percebida como predominante. Afinal, perguntavam-se os redatores, “que grandes coisas tem obrado, em que tem prosperado Portugal com o comércio exclusivo do Brasil, durante mais de dois séculos e meio?” O Brasil, por outro lado, “com a adoção de um sistema liberal, que lhe dê todo o desenvolvimento de que é suscetível, não só proverá por outros muitos meios à conservação de Portugal, mas darlhe-a a preponderância política de que gozam as principais Potências da Europa.” 263 Isso significaria, inclusive, a superação da histórica condição subalterna de Portugal frente aos seus concorrentes europeus.264 A interpretação combatia e invertia a proposição que se tornava dominante no Velho Reino: a de que a “inversão colonial” produzira a decadência de Portugal. Para o Reverbero, atribuir a decadência das fábricas e manufaturas portuguesas à franqueza dos portos do Brasil era um erro: Se a indústria daquele reino estivesse mais adiantada, se pudessem as suas manufaturas concorrer no mercado com as dos estrangeiros, teriam segura a preferência, por mais ilimitada que fosse a franqueza dos portos. Ora, se as manufaturas estrangeiras, de que o Brasil necessita, deverem ser proibidas para terem extração as de Portugal, que esperanças podem conceber os Brasileiros de um dia estabelecerem as suas?265 É a própria temática da “inversão colonial” que produzirá a tensão que muda a postura do Reverbero. Se no começo de 1822 ainda era possível afirmar a unidade de interesses entre Brasil e Portugal, na qual a prosperidade de um produziria a prosperidade do outro, as discordâncias em relação ao caráter exploratório da colonização levariam à clivagem266. Toda a narrativa direcionava-se à avaliação sobre o estado de adiantamento do Brasil em suas relações com o Império Português, num nível, e com as luzes do século, em outro, ambos projetando-se para o futuro. Conhecendo bem seus direitos, afirmam 263 Idem, p. 93-94. “Desenganem-se os falsos zelosos de Portugal, o crescimento do [105] Brasil fará a Grandeza e a Felicidade de Portugal, e a sua escravidão não lhe produzirá vantagem alguma real: sirva-lhes de prova os 300 anos passados: o Brasil era avarentemente guardado, e Portugal nunca deixou de ser considerado na Europa como Potência de segunda Classe: extraiu das suas minas por um cálculo aproximado do ano de 1700 a 1821, 45 U288 arrobas de ouro além dos diamantes, e do monopólio do Pau Brasil, e Portugal foi sempre pobre. Tristíssima ideia! Política erradíssima! Querer engrandecer-se uma parte da Nação à custa da decadência da parte maior dela!!” (104-105). RCF, 08 de janeiro de 1822. 265 RCF, 01 de janeiro de 1822, p. 94. 266 Para o conceito de “recolonização” naquele momento, cf. ROCHA, Antonio Penalves, A recolonização do Brasil pelas Cortes. São Paulo: Ed. Unesp, 2009. 264 112 os redatores do Reverbero, o Brasil não cairia em ilusões advindas somente do título de “Reino” se, na prática, se visse reduzido de fato “ao estado de colônia”. 267 Ninguém poderia negar a qualquer nação o direito de ser feliz; tampouco poderia a Europa negar ao Brasil suas luzes e socorros para o mesmo fim. “Não se achando o Brasil no estado de prosperidade de que é suscetível, vendo com mágoa sua o retrocesso de que está ameaçado na carreira do seu adiantamento (...) é o sentimento profundo da desgraça eminente e o desejo de remediá-la” que o vai conduzindo em seus patrióticos movimentos.268 Havendo a Natureza depositado no Brasil tudo de que precisaria para ser feliz, restaria a Portugal a aceitação daquele estado, uma vez que os impulsos que motivavam o Brasil em seu caminho rumo à felicidade eram os mesmos que catapultaram Portugal à sua Regeneração. E tal não se deveria confundir com apelo à desordem: Sou português, amo a união fraternal do Brasil com Portugal, e odeio a democracia; o que eu não quero é a degradação, a vileza, a escravidão do meu País: o que eu não quero é que se lhe tolhe a carreira da sua prosperidade: é natural o desejo do crescimento e da felicidade; e é violenta a retrogradação na marcha dela. 269 Pregava-se a continuidade da união fraternal que produzira a civilização na América, mas condicionava-se a manutenção dos laços à permanência e ao desenvolvimento da prosperidade no Brasil. Ao passar dos meses, porém, ao acirramento das disputas e ao fortalecimento da leitura dos acontecimentos que aumentava a distância entre o que se percebia como “recolonização”270 e o desejo de união fraternal, a manutenção da prosperidade suplantou o desejo de manutenção dos laços, e os benefícios advindos do adiantamento do Brasil, antes favoráveis tanto ao Velho Reino quanto ao Novo, agora seriam direcionados exclusivamente ao segundo. 267 RCF. 08 de janeiro de 1822, p. 97. Idem, p. 99. 269 Idem, p. 106. 270 Para Antonio Penalves Rocha, “a recolonização, como está presente na memória nacional brasileira e portuguesa, foi uma invenção historiográfica.” Isso significa que, embora nunca tenha havido uma tentativa efetiva de recolonização do Brasil pelas Cortes – isto é, o retorno a um sistema de exclusivismo colonial – “a noção de recolonização serviu inicialmente para expressar um sentimento criado pela mentalidade reinol de um grupo de brasileiros.” Cf. ROCHA, Antonio Penalves, A recolonização do Brasil pelas Cortes. São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 117. Não obstante, é preciso ressaltar que o vocábulo “recolonização”, posto indicasse uma acusação de dominação econômica, se coadunava perfeitamente com interpretações que consideravam igualmente perniciosa a opressão política de Portugal sobre o Brasil, buscando aquele o retorno deste ao estatuto colonial pela revogação da condição de Reino e pelo desmantelamento do aparato institucional instalado no Rio de Janeiro desde a vinda da Corte. 268 113 2.4) O Brasil como unidade autônoma. É a partir da edição de 12 de maio de 1822, edição extraordinária, que podemos observar a transformação com mais clareza. O Reverbero publica então extratos do Correio Brasiliense que indicam essa mudança de postura. Diz que, até ali, tinham olhado para a questão da união entre Portugal e Brasil como algo útil para ambos os países, considerando que os desejosos de uma separação eram “pessoas inconsideradas no Brasil, que desejavam a separação dos dois países, antes que ela devesse ter lugar pela ordem ordinária das coisas.” 271 Diz que não pensavam haver em Portugal partidários da desunião, já que a união seria benéfica especialmente para o país europeu. Mas dizem que se enganaram. E que, sendo assim, melhor seria se Portugal já declarasse o Brasil independente de uma vez, ao invés de se fomentarem ali partidos, “que produzirão a guerra civil, degolando-se os povos uns aos outros”. “declare-se que Portugal não precisa do Brasil, e previnam-se assim os males da guerra; a qual quando começar, não pode deixar de ter o mesmo êxito da que houve na América Espanhola.”272 Diz que não se pode aceitar o “retrogradar o Brasil de sua dignidade de Reino, que tinha na aparência”273; “retrogradar o Brasil de sua dignidade de Reino e reduzi-lo a seu antigo estado de dependência de Portugal; o que não é união mas sujeição; e o que se devia fazer era a união, que recomendamos, dos dois Reinos.”274 Aparentemente, era tarde demais para uma união. O retorno ao recurso de De Pradt dava um sentido profundo ao movimento dos tempos: Dissemos, em o n. 13 do nosso periódico, com as palavras do imortal De Pradt, a quem todos os Americanos devem o mais profundo respeito e amizade: o gênero humano está em marcha, nada o fará retrogradar; e para clareza deste pensamento só desprezado por aqueles, que acompanham esta marcha com dois ou mais séculos de atrasamento, cumpre fazermos algumas reflexões, sempre com o nosso fito na Santa Causa do Brasil, que nos propusemos sustentar, e acostados à Opinião Pública, visto ser o verdadeiro termômetro de um bom governo liberal, como o em que ora somos.275 A marcha do gênero humano era a marcha inevitável da liberdade x despotismo que marcava a lógica histórica do Reverbero, como visto anteriormente. O Brasil inseria-se agora plenamente nessa marcha, não mais como parte da unidade portuguesa, mas como singularidade que se desenhava junto às irmãs da América. Capitaneadas 271 RCF, Número 01, 12 de maio de 1822, p. 02. Idem, p. 03. 273 Idem, p. 04. 274 Idem, p. 05. 275 RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 65-66. 272 114 pelos Estados Unidos e inseridas no caldeirão das ex-colônias espanholas, o Brasil deixava de produzir o caminhar junto a Portugal para traçar sua direção de forma autônoma. A separação, antes da ruptura político-institucional, se dava, segundo o Reverbero, na interpretação da trajetória territorial no tempo. E a “opinião pública” se encarregaria de dar sustentação a essa interpretação.276 As transformações aceleravam-se e a narrativa seguia essa sensação. Reflexões dos redatores do Reverbero em janeiro de 1822 já indicavam a sensação de vertigem acelerada, misturando elementos políticos e físicos para dar conta do significado daqueles tempos: O espírito de ordem constitucional é hoje o móbil, ou o objeto da ação principal do Mundo. Que extensão prodigiosa não tem ganhado nestes dois últimos anos o Sistema Representativo? Tornado como que uma nova potência agregada às potências da alma, vê se o Mundo em uma dessas épocas de fermentação em que ele por vezes se tem visto, e de que tem rebentado consideráveis mudanças na ordem moral e política. Com tudo, se atentamente lançarmos os olhos pelo Mundo, veremos que a América apresentou um desenvolvimento muito mais rápido, e entrou em uma esfera de atividade muito mais enérgica que a Europa: mas o Brasil requintou sobre a América. Mais veloz, que o fluido elétrico o Calor de Liberdade atravessou o espaço imenso do Amazonas ao Prata; e as diferenças de cores, e de condições opôs-lhe menores obstáculos, do que a Superstição, e o Despotismo, em todos os estabelecimentos Europeus sociais, e religiosos.277 Trecho curto, mas com muitas considerações importantes. Em primeiro lugar, coloca o “espírito constitucional” como o grande produtor da ação social naqueles tempos, especialmente nos dois anos anteriores, que vinham produzindo um panorama intenso de transformações na ordem moral e política 278 . Essa “nova potência” que constituía o Sistema Representativo vinha somar-se às outras épocas de fermentação que transformavam consideravelmente o mundo, a partir de uma lógica histórica que, longe de seguir avanços serenos, constantes e cumulativos, “rebentavam” (isto é, Para uma discussão sobre o conceito de “opinião pública”, cf. MOREL, Marco & BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, cap. 1.. 277 RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 131. 278 As mesmas reflexões, algumas páginas antes, falando da “Revolução de Portugal”, indicava, meio entre sustentação, meio entre crítica à própria linguagem empregada: “se é que assim se deve chamar a luta da Justiça contra o Despotismo”. Embora fosse apropriada ao sentimento do momento, o conceito de Revolução ainda guardava muitos riscos oriundos da experiência histórica recente. Cf. RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 129. 276 115 rompiam, quebravam com estrondo, saíam com ímpeto 279 ) as mudanças em escala global. Essa mudança acelerada, porém, não acontecia de modo homogêneo, mas ganhava ritmos distintos de acordo com o espaço onde eram produzidas. Assim, na América as mudanças eram mais intensas que na Europa, cumprindo largas distâncias entre um passado distante e um futuro próximo de maneira mais veloz do que no Velho Mundo. E, no interior do Novo, o Brasil era palco de um ritmo ainda mais puxado, ao qual nem o “fluído elétrico” poderia comparar-se. O imenso território do Amazonas ao Prata foi abrasado pelas ideias do século, encontrando muito menos resistência naquele contexto do que no outro a erguer barreiras na Europa. Duas inversões produzidas discursivamente contavam fundamentalmente para essa sensação pronunciada de aceleração, no Brasil, do espraiamento do “Calor da Liberdade”. Em primeiro lugar, uma inversão quanto ao estado de virilidade do Brasil. Se, por um lado, a importância da lógica histórica à De Pradt, que tornava inevitável a emancipação americana, era certa, por outro a própria acusação de “imaturidade” em si não constituiria um mal insuperável para o jovem Brasil. Pelo contrário: poderia ser uma vantagem comparativa. Em edição de abril de 1822, após criticar os “falsos Amigos” e os “senhores deputados” do Augusto Congresso que, “com os olhos e o coração na Europa, consideram este Reino só próprio a ser eterno patrimônio de meia dúzia de Monopolistas.”, e após afirmar que, a não conhecer as suas “sórdidas vistas de lucro, e de injusta recolonização em tantos procedimentos”, diriam que eles “lembram ou apressam a Independência do Brasil, (que cedo ou tarde se efetuará, visto que o Brasil já entrou no período da sua virilidade, já não precisa de tutela, que a emancipação das Colônias segue uma marcha natural, irresistível, que jamais forças humanas podem fazer retrogradar.)”280, o Reverbero questiona os que dizem que o Brasil está na “sua primeira infância a respeito de conhecimentos”, e que, por isso, “nem sabe o que é Constituição”. Pergunta: por acaso os autores escrevem só para Portugal? Então, valoriza a ideia de o Brasil estar na infância: A infância em que agora nos julgam os que não querem conhecer-nos, longe de prestar um motivo para estarmos por injustiças, é o maior estímulo, que favorece a nossa prezada Liberdade; é um dos argumentos mais sólidos para nos decidirmos por ela, porque nenhum homem, que 279 280 MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza... op. cit., vol. 1, p. 117. RCF, Número 23, 16 de abril de 1822, p. 274-275. 116 provou, ainda por uma só vez, o néctar da Liberdade, pode sofrer que o chamem escravo, ou que o tratem como tal. A mocidade, no sentir de um grande Político, é para as Nações assim como para os Indivíduos o momento de tomarem boas inclinações; as que se originam do Liberalismo, e se adiantam pelo conhecimento dos verdadeiros direitos do homem, não podem deixar de produzir bons efeitos, e em muito breve tempo. Consultemos a História; é sempre na infância dos Povos livres, que se executaram as suas maiores empresas. O que era Roma em seus princípios; e quando assustou mais o mundo? O que era Portugal e quando fez ele calar o Leão da Espanha, e minguarem-se as Luas Ágarenas? O que era a Holanda? Um Povo, que fugindo da Tirania, refugiou-se no seio das águas; pequenas Províncias, mais inundadas do que regadas por grandes Rios, muitas vezes submergidas pelo Oceano, a penas contidas por diques, e sem outras riquezas, que o produto de pastagens, que pareciam roubar aos Mares e aos Rios; e quando fez ela tremer os Generais e os Exércitos do maior dos Soberanos da Europa? Não é a nossa falsamente apregoada infância, repetimos nós, o motivo, que nos chama à grande União com Portugal; o Brasil tem sentimentos muito generosos; mas apesar disso, ele nunca sofrerá que o tratem com injustiça, nem que lhe míngüem a sua Representação Política. 281 A mocidade brasileira, longe de ser fator de pesar, poderia ser uma oportunidade para a produção de uma novidade histórica filtrada dos vícios e do acúmulo de progressivas corrupções morais.282 O apelo aos exemplos da História dava sustentação ao argumento: Roma, o próprio Portugal e a Holanda surgiam como exemplos de sucesso e grandeza ainda no despertar de sua infância. O Brasil seguiria trajetória semelhante nessa lógica, especialmente por sua condição especial produzida pela natureza e pela posição americana. O Novo Mundo surgia como asilo das Ciências e das Virtudes expulsas do Velho por terremotos e convulsões 283. E, ao traçar um panorama dos 322 anos desde a chegada de Cabral, arremata: “Que grandes coisas temos feito (...) em espaço de tempo tão breve, comparativamente ao que tem absorvido a civilização Europeia?”284 281 Idem, p. 276-277. Como defendia, por exemplo, José Bonifácio. Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. cit., cap. 1 e 2. 283 RCF, 12 de março de 1822, p. 212. Afirma, ainda, que os grandes Impérios têm caminhado do Oriente para o Ocidente. 284 Idem, p. 213. A inversão promovia, ainda, a ideia de que o Novo Mundo salvara a Europa do caos, ao invés de a Europa haver cedido as luzes ao Novo Mundo: “Esqueceram-se os Senhores do Congresso de que a mudança do Trono foi a salvação da Monarquia, quer na Europa, quer no Brasil; esqueceram-se, que as cenas de 1807, podem reproduzir-se, e mui facilmente; esqueceram-se de que foi o título de Reino, dado ao Brasil, quem deu assento aos nossos Embaixadores no Congresso de Viena, entre os Embaixadores das grandes Potências; de nada lhes aproveitou a experiência do presente, em que os sucessos mais pasmosos sucedem-se tão rapidamente que não dão tempo a prevenirem-se; só se lembraram de punir a este Paiz pela decidida superioridade que a Natureza lhes dera sobre essa já cansada ourela [sic] de uma parte da Europa.” (227)” - 19 de março de 1822 282 117 Em segundo lugar, conforme indicação do próprio trecho anteriormente destacado, as condições heterogêneas, fruto da colonização portuguesa na América, e a “mistura de cores”, evidenciando a inexistência de uma sociedade unitária, nem de longe poderiam equiparar-se às classes que, infestando a Europa, travavam a batalha de sua existência despótica e supersticiosa contra a enxurrada das luzes do século. As condições brasílicas, na verdade, ao não impor entraves àquele espalhar de ideias, acabavam por justificar uma maior fertilidade do território luso-americano à inovação, invertendo qualquer hierarquia que colocasse a Europa como espaço único e/ou privilegiado da liberdade. Pelo contrário: não foi na América que primeiro se vislumbrou o grito de liberdade nas 13 colônias? Como seria reafirmado noutra ocasião pelos redatores do Reverbero, os obstáculos, que se fazem nascer da mistura de cores, ou não devem assustar-nos, ou assustam menos do que aqueles que na Europa resultam das grandes Classes da Nobreza, e Clero, que o Brasil felizmente não conhece. Não ignoramos os males horrorosos, que tem rebentado desses dois Vesuvios (principalmente na Espanha) contra o sábio sistema Representativo; mas os sustos, que nestes princípios da nossa Política Liberdade tem enlutado e afligido os nossos corações, vêm mais de brancos Europeus, que de Pretos, ou Mulatos da África, ou do Brasil.285 Invertendo temores que pudessem apelar à existência da escravidão e dos contingentes de origem africana como impedimentos para a existência das luzes no continente, o Reverbero aponta a persistência dos grupos identificados à mentalidade medieval como os grandes e verdadeiros entraves ao pleno ingresso nas luzes do século, sendo a herança despótica e/ou supersticiosa inimigo mais poderoso que qualquer produto da condição colonial poderia ser. Além disso, continua o trecho, o Batalhão de Henriques da Bahia, sem desmerecer a glória daquele, que lhe dera o nome na luta com os Holandeses, defendeu o Estado, quando as Falanges Provisórias regaram de sangue as ruas dessa infeliz e briosa Cidade. Os Henriques, e o Batalhão dos Pardos do Rio de Janeiro, punindo pela glória, e pelo decoro de um Povo livre, de um Povo generoso, apresentaram-se com denodo, com bizarria, e unânime voluntariedade ao lado da Tropa da I Linha, para obrigarem aos seus deveres esses Militares arrogantes, que davam vivas à Constituição, e morte aos Constitucionais. 286 285 286 RCF, Número 23, 16 de abril de 1822, p. 277-278. Idem, p. 278. 118 Não era o risco da “multidão de pretos e mulatos”, para remeter a uma fórmula de perigo presente às autoridades desde o setecentos287, que mais travava a liberdade no discurso do Reverbero, mas os próprios brancos europeus apegados a certo passado. Afinal, como justificar a capacidade plena de realização da liberdade sem essa inversão? O contraste entre a multidão de pretos e pardos e os brancos europeus apareceria em outra edição do Reverbero, já em 10 de setembro de 1822, após, portanto, a datasímbolo que representava o horizonte de eventos da ruptura política. Usando reflexões do Correio Brasiliense frente a diálogo com o Campeão Português, após discorrer sobre o “espírito de arbitrariedade, que apareceu em Portugal, sendo tão contrário às ideias do nosso século”, e que “tem-se feito ainda mais terrível no Brasil; porque ali se tem sentido seus efeitos com maior veemência, pela espada férrea, e não de manteiga” 288, o periódico critica a postura do Campeão de “descansar as esperanças do seu partido de sujeitar o Brasil, nos dois estratagemas de opor as mesmas províncias do Brasil umas às outras, e de sujeitar uma revolução dos Negros naquele país”289. A essa postura sobre os negros, respondem os redatores do Reverbero com uma nota de pé de página: É seguramente bem estolida esta ameaça contínua de Sublevação de Escravos. Como não veem estas toupeiras, que a sublevação dos Escravos em que tanto falam lhes há de ser mais fatal que a nós? Que desorientamento [sic] de ideias! Como se persuadem, que os Escravos se levantarão contra os Senhores Brasileiros, sempre mais brandos, e sofrerão os Senhores de Portugal sempre mais cruéis? Não há uma lógica mais esfarrapada! Era melhor que cuidassem dos seus Frades, e dos seus privilegiados: que tivessem sempre diante dos olhos, que aqueles saem na Espanha a combater cantando o Terço. Saibam mais que os pardos, e os pretos no Brasil dividem-se em suas Classes – forros, e cativos – Dos primeiros tem bastante que temer os autômatos fardados de Portugal; dos segundos nada receiam os Brasileiros. [grifos meus]290 Nobres e frades são o contraponto discursivo do Reverbero para justificar as condições possíveis da realização das luzes no Brasil. A revolução a evitar-se, pois que arrastava consigo características não previstas inicialmente, esticando os limites da mudança para além dos controles vistos como necessários, não nascia das condições da escravidão. Ao contrário: “Se a opressão dos povos tem dado nascimento às revoluções do mundo, como é fácil de provar-se, crede, que aqueles que promovem a opressão, não 287 Para os usos políticos da expressão no Brasil setecentista, cf. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007, cap. 3. 288 RCF, Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 197. 289 Idem, p. 198. 290 Idem, p. 197-198. 119 querendo limites à autoridade, promovem por isso mesmo as revoluções.” 291 E quem seriam estes promotores da opressão? A continuação desse trecho citado deixa a indicação: “Nem temos fidalgos, que tanto mal causaram na França, nem devemos temer os Frades, que tantas desordens ainda fazem na Espanha, atribuindo-as com tudo aos verdadeiros Liberais por eles provocados, com as suas costumadas intrigas.”292 A dupla inversão (mocidade, ao invés de maturidade; condição oriunda da colonial, ao invés da trajetória europeia) produzia discursivamente as condições para a justificativa do rompimento sem a perda da matriz civilizatória necessária ao ingresso do Brasil no rol das nações (que, como vimos, era condição para ingresso e permanência também na própria História). Daí que, paralelamente a essa inversão, o olhar europeu deslocava-se para a América como símbolo da trajetória a ser seguida e como exemplos a adotar e evitar. 291 292 RCF, Tomo Segundo, Número 14, 27 de agosto de 1822, p. 176. Idem, ibidem. 120 Capítulo 3: Das possibilidades da civilização na América O jogo de forças aberto ao longo do processo de ruptura política com Portugal não se restringiu ao modo de se proceder junto às Cortes. Pelo contrário: tal constituía um primeiro passo, mas estava longe de esgotar as possibilidades. Criado certo consenso ao redor da ideia de emancipação e separação política, o passo seguinte consistiria na produção do novo Estado Nacional, incluindo seu arcabouço simbólico. Na produção desse simbolismo, os acontecimentos no restante da América permitem articular um “espaço de experiência revolucionário moderno”, a incluir a América Portuguesa, nas palavras de João Paulo Pimenta. Isso quer dizer que, para o autor, a experiência hispano-americana, pela sua relevância, em termos de efeitos, para a configuração do “processo político do qual resultou a independência da América portuguesa e a subseqüente formação do Estado nacional brasileiro”, tinha um significado especial em relação aos acontecimentos passados “que ainda se faziam „presentes‟ no mundo português”. Nessa lógica, haveria se formado um espaço de experiência, no sentido de Koselleck, que indicava uma manifestação singular no conjunto de uma realidade comum que abarcava os séculos XVIII e XIX. 293 Nesse conjunto, cabe a questão: como os agentes da construção narrativa do período da Independência enxergavam as relações da América portuguesa com o restante do continente em transformação? Como relacionavam o conjunto da América à Europa e ao restante do mundo? Como encaixavam tanto a América quanto o Brasil na narrativa de história da liberdade que vimos discutindo no capítulo anterior? Esta e outras questões orientarão a discussão deste capítulo. Se no anterior analisamos a base discursiva que alimentou, ao longo do Primeiro Reinado, a interpretação da narrativa da história da civilização, como veremos no próximo capítulo, neste analisaremos as bases de inserção da América e do Brasil nessa narrativa. Em outras palavras, os elementos que, no momento da Independência, buscavam garantir discursivamente as possibilidades da existência da Civilização na América, e que sustentaram, em grande parte, a interpretação dos contemporâneos sobre sua própria trajetória nacional. 293 PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (c.1780-c.1830). Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2012, p. 57. 121 Antes, porém, será preciso contextualizar a trajetória da América portuguesa frente ao restante do continente, tema já imensamente abordado pela historiografia. Com o intuito de situar alguns elementos da modernidade política que marcaram a construção das singularidades luso-americanas, vamos traçar um breve panorama das transformações desde o século XVIII que desembocaram na ruptura da Independência. Com isso, tencionamos, também, complementar o percurso historiográfico que iniciamos na discussão da modernidade conceitual, no capítulo anterior. 3.1) Modernidade política: construção civilizatória sobre colonizados 294 No século XVIII, os impérios ibéricos depararam-se com uma crescente sensação de atraso em relação a outras potências europeias em ascensão, notadamente Inglaterra e França. A crise econômica buscava ações políticas que, afinadas com as “ideias do século”, pudessem encaminhar uma solução para certa percepção de grandeza perdida. E isso implicava esforços para um melhor conhecimento das partes que compunham o império, bem como um direcionamento reformista à política lusitana. Esse contexto, cujos marcos temporais são o início do reinado de D. José I em Portugal e a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, é marcado por uma transformação nas relações entre metrópole portuguesa e colônia brasílica. A segunda metade do século XVIII assiste ao crescimento da importância do Brasil no conjunto do Império colonial português. Esse crescimento de importância traduz-se na imensa dependência que Portugal passa a ter dos rendimentos coloniais. Esse crescimento da importância do Brasil significou um novo momento nas relações entre metrópole e colônia. Vários intelectuais luso-brasileiros procuraram desenvolver novas idéias e concepções a respeito do Império colonial, que resultaram no chamado reformismo ilustrado. Ou seja, a aplicação de alguns princípios iluministas em busca de uma melhor organização do Império, tanto política quanto economicamente. Essa foi a época do marquês de Pombal, cujas principais inovações na estrutura administrativa portuguesa não se alteraram significativamente após sua saída do governo. Com o objetivo de recuperar a economia do Império português, foram estimulados produtos como linho, anil, arroz e algodão – este último especialmente valorizado, na conjuntura aberta pela Guerra de Independência nos EUA e pelas 294 Avanço aqui em algumas considerações tecidas primeiro em meu trabalho de mestrado. Cf. ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010, cap. 1. 122 possibilidades geradas pelo início da Revolução Industrial –, sempre com vistas a recuperar a economia do Império295. De acordo com tais princípios do reformismo ilustrado, era fundamental agir no sentido de melhorar a aplicação de recursos e a coleta de riquezas. A associação entre conhecimento e poder era crucial naquele momento. Para melhor conhecer o Império, uma série de “memórias” foram escritas na segunda metade do século XVIII, sempre com o objetivo de tornar a dominação colonial cada vez mais eficaz. Essas memórias buscavam “olhar” o Império. Eram escritas por intelectuais, viajantes, pesquisadores e cientistas, formados nos princípios da Ilustração portuguesa, e eram dirigidas aos administradores coloniais como ferramenta para informar a sua ação. Devemos ter em mente que o Império português abarcava um conjunto muito variado de posses e relações culturais, indo de territórios no Oriente (Macau, Índia, Japão etc.) até a América, passando pela África (Congo, Angola, Moçambique etc.). “Olhar”, conhecer e interpretar o Império era de suma importância para descobrir suas diferenças, suas particularidades e, com isso, fortalecer o sentimento em comum e o papel metropolitano como cabeça coordenadora de todas as relações, lógica semelhante a um contexto mais amplo de cientifização e racionalização do “olhar” sobre o mundo extra-europeu que se traduziu numa lógica de categorização das diferentes zonas de contato a partir de uma consciência planetária eurocêntrica296. Esse esforço, inclusive, produziu uma primeira ideia de “Brasil” como unidade no conjunto imperial: a busca pela superação do atraso significava um maior destacamento à posição da América Portuguesa no conjunto imperial, segundo a ótica metropolitana297. De todos os administradores imperiais, as principais idéias nessa época vieram de Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, que, entre 1798 e 1803, iria propor a transferência da capital do Império português para o Brasil, como parte de um amplo programa de 295 Para um panorama das transformações, cf. WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José C. M.. Formação do Brasil Colonial. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 336. Segundo Novais, “para os estadistas do final do século XVIII português, a crise apresenta-se primariamente como um conjunto de problemas que a monarquia absolutista tinha de enfrentar e resolver, alguns mais antigos que se agravavam na nova conjuntura, outros novos que emergem em face das recentes condições internacionais.” Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial... op. cit., p. 117. 296 Cf. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999, em especial o capítulo 2. 297 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: intelectuais ilustrados e estadistas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime português (1750-1822). São Paulo: HUCITEC: FAPESP, 2006, capítulos 1 e 2 e conclusão. 123 reformas com vistas à revitalização da administração dos domínios coloniais 298. Para Dom Rodrigo, reformar o Império era indispensável para evitar a influência, considerada perniciosa, das circunstâncias européias no interior do mundo português. Dom Rodrigo tinha em vista reorganizar as partes do Império de forma a mostrálas como complementares, e não em relações de subordinação direta, de forma a consolidar uma “identidade nacional imperial” que causasse a cada colonizador ou colono, nascido em qualquer canto do mundo, a idêntica sensação de ver-se português. Era, concomitantemente, uma forma de reintegrar as diversas partes do império português sob um só manto e uma maneira de afastar as crescentes rebeliões desagregadoras – que, se não ofereciam um amplo projeto nacional em contraposição ao português, por outro lado ameaçavam a unidade do Império, em especial naquelas onde as perigosas idéias francesas encontravam eco. Nota-se, nesse contexto, que as idéias de Dom Rodrigo estão ligadas a uma associação entre “nação” e “Império”. Ou seja, não se trata, aqui, do sentimento nacional predominante no século seguinte, ligado a um Estado nacional e circunscrito a um território limitado por fronteiras bem definidas. No caso de Dom Rodrigo, sua preocupação era criar laços ligados à monarquia portuguesa, à dinastia lusitana, à metrópole ibérica. Todas as diferenças e particularidades regionais deveriam ser subordinadas a essa presença européia. Os planos de Souza Coutinho não se realizariam no momento inicialmente planejado, mas numa conjuntura de guerras européias que tornava a transferência da Corte a única solução vislumbrada para manter coesos os domínios atlânticos e contínua a monarquia. A vinda da Corte expandiu todo o processo de modernização política por que passava o Reino, projetando-o, agora, sobre a colônia americana. A vinda da Corte alterou significativamente o panorama da região de agricultura mercantil-escravista a partir de 1808, ao associar às transformações que já se produziam no centro-sul do Brasil desde a segunda metade do século XVIII as mudanças de natureza política que a presença da “metrópole interiorizada” possibilitou a partir de então299. A política de integração inaugurada por Dom João, fosse para o abastecimento 298 LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A Utopia do Poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, 61-83. Cf., ainda, MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 a idéia do império luso-brasileiro. In: Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 184-187. 299 O conceito de região de agricultura mercantil-escravista, bem como boa parte da interpretação sobre as transformações a partir de 1808, é inspirado em MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, cap. 2, especialmente p. 56-69. Para as transformações em curso desde meados 124 da Corte, fosse para a construção social de sua sustentação política, implicou todo um direcionamento da concessão de sesmarias, títulos, articulação de interesses e aproximações do novo centro decisório do Império Português frente aos poderes coloniais300. Nas palavras de István Jancsó, Na Corte do Rio de Janeiro realizou-se a síntese que anteriormente cabia a Lisboa evitar, estabelecendo a aproximação entre os diversos segmentos das elites das regiões que formavam o Reino do Brasil (1816), intercambiando experiências, confrontando interesses, construindo as bases subjetivas para a construção de uma identidade política comum. O Brasil, ainda que diverso, afigurava-se no seu todo como o espaço de afirmação e expansão de uma hegemonia de classe, na medida em que os interesses comuns eram reconhecidos como de maior monta que os divergentes.301 Nesse processo, ainda segundo o autor, a escravidão ocupava um lugar central, posto que a reprodução local da hegemonia dos poderes locais passava pela reprodução mais ampla do escravismo. O papel dos negociantes na nova configuração imperial era notável, “ocupando postos de grande destaque, a partir dos quais podia[m] consolidar seu prestígio entre a alta burocracia e alcançar privilégios tais como arrematações de impostos e sesmarias”302. Diversificando as direções de seus investimentos, dominavam diversas áreas fundamentais para além do tráfico, como, por exemplo, o comércio e a produção de abastecimento, ligados fundamentalmente à própria plantation, monopolizando, um mesmo negociante, vários segmentos do mercado 303. Entrelaçando interesses políticos e econômicos, a Corte e sua base escravista de apoio produziram uma atualização das relações de dominação na América Portuguesa que, parte dessa modernidade política que avançava, produzia também uma articulação a uma modernidade escravista, de que trataremos melhor no capítulo final, construindo, nessa do século XVIII no centro-sul da América Portuguesa, cf. FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura. 2ª edição revista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 300 LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil – 1808-1842. São Paulo: Símbolo, 1979, especialmente capítulo II; MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema....; SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical: império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, especialmente cap. 5; SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: HUCITEC, 2006, cap. 1. 301 JANCSÓ, István. A construção dos estados nacionais na América Latina – apontamentos para o estudo do Império como projeto. In: SZMRECSÁNYI, Tamás & LAPA, José Roberto do Amaral. História Econômica da Independência e do Império. 2ª ed. revista. São Paulo: HUCITEC/ABPHE/Edusp/Imprensa Oficial, 2002, p. 3-26, citação às páginas 23-24. 302 FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 205 303 FRAGOSO, João. Homens de Grossa Aventura..., p. 180-181; 321. Sobre as relações entre política e negócios nesse contexto, cf., ainda, PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os simples comissários”: negociantes e política no Brasil Império. Tese de doutorado. Niterói: UFF, 2002. 125 íntima relação, um conceito de civilização que não deixava de produzir outros espaços colonizados como marca dos espólios do processo civilizatório304. Percebe-se, assim, que a aceleração da produção da modernização política, no contexto brasílico, passa longe de um simples desenvolvimento linear de ideias e sociabilidades, que transformam atitudes e percepções de mundo como fruto direto das luzes de uma época 305 . Os conflitos que surgiam como resultado do processo civilizatório desencadeado pela presença da Corte inaugurou um novo tempo que reconstruía laços entre grupos dominantes, que disputavam a direção real como forma de ampliação dos seus espaços de atuação, buscando ampliar as condições objetivas e subjetivas que possibilitavam sua expansão como frações de classe. As novas condições inauguradas pela presença da Corte, assim, possibilitando um alargamento das formas de exercício da política, promoveu também uma crescente tensão entre o Brasil da civilização e o Brasil colonizado. As tensões acompanhariam as disputas entre grupos econômicos aproximados e afastados pela ação da Corte, como aqueles que envolviam os donos de engenhos, proprietários e comerciantes do Recôncavo da Guanabara e de Campos dos Goitacazes; as disputas entre aqueles que recebiam isenções (como os proprietários de Serra Acima) e os que viam as cobranças de impostos avolumarem-se (açúcar, tabaco, algodão); entre os naturais do Reino e os naturais da América etc.306 As tensões estariam presentes nos movimentos de rua que, após a deflagração da Revolução do Porto, em 1820, forçariam o juramento das bases da Constituição por Dom João VI e pressionariam as disputas entre identidades, projetos políticos e sustentação de fundamentos do poder entre 1821 e 1822 no Rio de Janeiro. Do conjunto dessas disputas emergiram concepções de mundo que buscariam, todas elas, afastar os elementos mais radicais de tensionamento da política (a massa de colonizados) em nome de uma perspectiva que estruturasse o Império, fosse o 304 Para uma análise das relações entre espaços civilizatórios e espaços colonizados, com foco sobre a Corte, cf. BARRA, Sérgio. Entre a Corte e a Cidade: o Rio de Janeiro no tempo do rei (1808-1821). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. O termo “colonizado” é usado no sentido conferido por Ilmar Mattos, em O Tempo Saquarema. 305 Para uma leitura da modernização política nesse feitio, cf. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independências: ensayos sobre las revoluciones hispânicas. 3ª Ed. México: FCE, MAPFRE, 2000. Segundo o autor, para o contexto hispânico, paralelamente ao avanço da modernidade política do absolutismo surgiu uma “modernidade alternativa” centrada na “invenção” do indivíduo e que, a partir da produção de “novas formas de sociabilidade” e da difusão das luzes, foi se impondo na nova sociedade. Se essa dimensão é inseparável do processo de modernização política, ela, porém, não esgota a totalidade desse processo. Para uma análise da modernização política na Corte que se baseia em Guerra, cf. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: HUCITEC, 2005. 306 OLIVEIRA, Cecília Helena L. de Salles. A Astúcia Liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista, SP: EDUSF & ÍCONE, 1999, p. 81-106. 126 português, fosse o do Brasil, sobre bases sólidas. O desenho de determinada concepção de “povo” e de “nação”, a constituição de uma visão homogeneizadora sobre o “ser brasileiro” e a produção de uma certa concepção de história que integrasse o Brasil numa trajetória sem conflitos fariam parte das preocupações dessas concepções de mundo. Fundamental, assim, no tecimento de uma retórica para a construção de uma visão homogeneizadora do “ser brasileiro” foi a elaboração de bases sobre as quais pudessem apoiar-se as interpretações passadas e presentes daquele momento de formação do Brasil, na primeira década de 1820. O fundamento dessas bases, produzido com mais vigor no momento do rompimento, entre 1821 e 1822, lançou mão de alguns elementos essenciais que pudesse tanto promover uma posição relevante para a América, de forma geral, e para a América portuguesa, em particular, na narrativa geral da história da liberdade, que discutimos no último capítulo, quanto destacar os atributos cruciais das transformações da época no espaço americano que pudessem promover o máximo alcance da liberdade – condição natural e inescapável do ser humano – sem cair nos riscos da anarquia. Em outras palavras, o momento do rompimento produziu uma narrativa que inseriu a América no conjunto de transformações históricas da civilização, conferindo a ela tanto papel de destaque quanto apresentando os atributos que fariam daquele espaço o melhor dos mundos para o entrelaçamento necessário entre liberdade e segurança. Tratemos, então, desses dois aspectos a seguir. 3.2) De volta ao Reverbero: A América à frente das transformações do tempo. Como vimos no capítulo anterior, a produção narrativa do Reverbero, tratando da trajetória histórica da civilização, em geral, e da Europa, em particular, produziu uma interpretação da História como história da liberdade em constante luta contra o despotismo. Essa interpretação selecionou fatos múltiplos do passado para embasar sua argumentação, com a construção de uma concepção de tempo que se transformava naqueles curtos anos: de uma concepção voltada à perenidade, na qual cada novo evento da liberdade contra a opressão era apresentada como reiteração de um desenvolvimento inerente, inevitável, natural da humanidade, cada vez mais o Reverbero incluía na narrativa acontecimentos marcados pela novidade e rompimento com o passado. Ao mesmo tempo em que se justificava uma narrativa de continuidade, produzia-se uma interpretação que apresentava aqueles anos como novidade na história civilizacional. 127 Como entrava, para os editores do Reverbero, a América nessa narrativa? E em que medida a situação da América Espanhola poderia ser comparável à da Portuguesa? Em que medida a América Inglesa poderia constituir referência para os luso-brasileiros? O quão ampla era a lógica a conduzir os destinos americanos em torno de uma só direção, um só rumo, que pudesse encaixar-se na totalidade da luta pela liberdade que marcara a história dos povos na interpretação predominante do periódico? Nas discussões transparece a interpretação de que o destino da América Portuguesa entrelaçava-se, ao menos até certo ponto, àquele das demais partes do continente. Em edição de 15 de novembro de 1821, após indicar promessa de transcrever em suas folhas discursos feitos pelos deputados da América nas Cortes espanholas de junho último, afirma o periódico que “ele nos pareceu muito interessante, aplicável às circunstâncias do Brasil, e próprio para nele se prevenirem os males, que há onze anos oprimem as Américas Hespanholas”307. A aproximação das circunstâncias é corrente no Reverbero, especialmente no tocante aos riscos pelos quais passava a monarquia portuguesa em suas conexões com os domínios americanos. Em edição de 01 de dezembro daquele ano, uma nova transcrição das sessões espanholas, ao analisar os riscos a que estavam submetidas as províncias na América, expõe a conclusão que parecia inevitável: “nas presentes circunstâncias, as partes da monarquia tendem a uma mútua separação; as Américas no pé em que estão não podem subsistir em paz, caminham portanto velozmente para a sua ruína, apesar das luzes do século”308. Ruína e progresso do espírito humano não necessariamente caminhariam juntos. Era preciso uma boa política oriunda dos peninsulares, uma mudança de atitude para com a América. Era um dever dos agentes do presente. “Não somos nós responsáveis às gerações futuras e presentes pelo sangue dos nossos Irmãos, pela separação dos Povos, pela secção da Monarquia?”, questiona o periódico 309 . Os destinos de Portugal e Espanha caminhavam juntos. Mas não caminhavam na mesma temporalidade. A observação pormenorizada dos destinos da América Espanhola, segundo o Reverbero, poderia ser a salvação da Portuguesa. Era como se os acontecimentos espanhóis, ainda que inseridos no mesmo conjunto de transformações daqueles anos, produzissem um ritmo que não alcançaria as províncias portuguesas senão no futuro. Identificava-se uma mesma dimensão da crise – 307 RCF, 15 de novembro de 1821, p. 54. RCF, 01 de dezembro de 1821, p. 64. 309 Idem, p. 65. 308 128 o descaso metropolitano levaria à ruína da união na América –, mas não se considerava que o destino brasílico já ultrapassara o horizonte de eventos após o qual qualquer ação seria inútil. Pelo contrário: o papel do periódico e das narrativas dos acontecimentos consistia, precisamente, em apontar os futuros possíveis: o trágico e o sucesso, a fim de alimentar as escolhas que produziriam cada um dos caminhos. Não é outro o sentido das várias transcrições de acontecimentos na América Espanhola e na Espanha que perpassam as edições do Reverbero. Os acontecimentos da América Espanhola “tocam muitas das nossas circunstâncias”, afirma 310. Periódicos que negassem a “congruência e identidade de circunstâncias entre o Brasil e a América Espanhola”, como o Semanário Cívico da Bahia, segundo a interpretação do Reverbero, mereceriam críticas. A identidade de circunstâncias existiria, “com a diferença, como já dissemos, que aqui é preciso prevenir males, e ali remediá-los”311. A distinção entre aqui prevenir os males e ali remediá-los talvez indique um deslocamento da noção temporal, sendo a América Espanhola um futuro possível para a América Portuguesa: destino que se pode enxergar, mas alterar, de acordo com a ação e a direção a ser dada. Observar a América Espanhola não era apenas observar o presente, mas, também, observar um futuro possível. Aquele a ser evitado. Se, como já vimos, o Brasil ainda tinha um destino brilhante de crescimento no futuro, a ponto de, em breve, superar Portugal (que já chegara ao seu limite), o cuidado seria, então, para que o crescimento não redundasse em tragédia. “Aproveitemos o presente para nos servir de guia no futuro: não desprezemos a filosofia da experiência.”, conclamaria o periódico. Era preciso lembrar que “o saber do homem de Estado consiste em fixar o verdadeiro ponto da felicidade e Liberdade”, e que “merecerão as recompensas de todas as idades os homens, que acharem o modo de um Governo próprio, para produzir a maior soma de felicidade individual com o menor grau de sacrifícios”. A observação do presente e passado imediatos da América constituiria caminho seguro para a plena execução desse equilíbrio entre felicidade e sacrifícios tão própria do homem de Estado.312 Serviria aos homens de Estado no Novo e no Velho mundos. Afinal, como já vimos no capítulo passado, a marcha da História era inexorável, e todos os esforços das Metrópoles para contrariar esta marcha [de emancipação das colônias] são perdidos; a sua arte deve consistir em observar o desenvolvimento das suas Colônias, seguir os seus 310 Idem, p. 66. Idem, ibidem. 312 Idem, p. 72. 311 129 progressos, regular-se por eles, para evitar de travar-se com elas por extemporâneas restrições, ou pertenções; ceder quando é razoável; conceder mesmo antes que requeiram; substituir os laços da amizade, e os do reconhecimento às leis imperiosas da autoridade, que o tempo tem enfraquecido. O esquecimento destes princípios custou à Inglaterra a feliz perda dos Estados Unidos; custa neste momento à Espanha a de suas Colônias; que ela ainda procura reter, sem saber porque, nem como...313 Mas se a situação na América Espanhola era algo a ser observado com cautela e preocupação, pois continha um futuro possível (e trágico) para a América Portuguesa, a observação da América Inglesa fornecia uma alternativa não apenas respeitável, mas exemplar de sucesso para o caminho da emancipação que se desenhava nas páginas do periódico. A América Inglesa, ainda que fosse, em diversos aspectos, distinta da Portuguesa, a começar pela República, fornecia o melhor exemplo que, naqueles anos, embasava a ação por autonomia e prometia sucesso na arriscada empreitada da ruptura com a metrópole. Reflexões expostas na edição de 15 de janeiro de 1822 já indicavam essa ideia. O texto explicava aos leitores a situação após o 9 de janeiro. Alertava para os que tentavam estabelecer a separação entre as províncias, roubando-nos “o nosso centro de União para deixar-nos entregues à desordem e à luta de opostas forças”314. Indicava que não era difícil adivinhar por qual princípio tal tentativa de fragmentação seria alcançada. Afinal, a “Revolução de Portugal” oferecia duas combinações possíveis a seguir: “ou o rei se conservava no Brasil ou voltava para Portugal”. Ambas as alternativas, segundo o “apóstolo da América” – De Pradt, provavelmente – davam por final resultado o estabelecimento do sistema representativo na América. Afinal, Se ficava preferindo um mundo na América a uma província na Europa, era impossível que o Brasil situado no centro das Constituições Americanas, comunicando diariamente com povos constituídos, e contratando com homens constitucionais, tendo por estrela polar os Estados Unidos, que muito alto colocaram o farol para escapar às vistas dos povos vizinhos, se pudesse subtrair a este vórtice de influências. Se voltava era incompatível que na mesma monarquia existisse a Luz e a Treva, a Justiça e a arbitrariedade (...) 315 313 RCF, 08 de janeiro de 1822, p. 109-110. Havendo o esquecimento desses princípios, melhor seria, seguindo análise transcrita do Correio Brasiliense, se Portugal já declarasse o Brasil independente de uma vez, ao invés de se fomentarem ali partidos, “que produzirão a guerra civil, degolando-se os povos uns aos outros”. “declare-se que Portugal não precisa do Brasil, e previnam-se assim os males da guerra; a qual quando começar, não pode deixar de ter o mesmo êxito da que houve na América Espanhola.” Cf. RCF, Número 01, 12 de maio de 1822 – EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA, p. 03. 314 RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 129. 315 Idem, p. 129-130. 130 Em outras palavras, na lógica apresentada no periódico, a manutenção do monarca em terras americanas não bastaria, por si só, para garantia de manutenção do Reino Unido. Afinal, a presença dos Estados Unidos, como “estrela polar” cujo farol encontrava-se muito alto, constituiria irresistível vórtice de influências. Comparando-se o trecho acima com o destacado anteriormente, que destacava como o “esquecimento” de certo trato com as colônias causara lição na Inglaterra da perda dos Estados Unidos, podemos vislumbrar como a sombra dos americanos do norte derramava-se pelo sul como inspiração – ou, ao menos, ameaça de inspiração – para os caminhos a serem seguidos. Se os conflitos na América Espanhola em processo de emancipação eram manejados para assustar e afastar o risco separatista no Brasil (embora, como visto, pudessem ser manejados também como exemplo de práticas a se apreender para evitar), o contra-exemplo de sucesso das 13 colônias balanceava a equação e oferecia perspectivas positivas àqueles que desejavam uma maior autonomia em relação à mãepátria. A mesma edição, após chamar os EUA de “sede da filosofia e da liberdade” 316, ainda mira-se no exemplo das 13 colônias para proceder a questões mais, digamos, concretas a respeito da emancipação, como um possível conflito armado contra Portugal. Questiona quem pode desejar um conflito desses e afirma que a paz é o melhor proceder, pois “só à sombra dela pode [o Brasil] florescer a sua agricultura, manancial ixaurível [sic] de suas riquezas, e de sua prosperidade”. Questiona quem pode querer uma guerra tão arriscada: quem “lucrará em acabar de inanir-se de homens, e dinheiro, e indústria, e comércio?” E indica: “leiam a História dos Estados Unidos; consultem os fastos da América do Sul, e desenganar-se-hão de tão quiméricos projetos”. 317 A vitória dos irmãos americanos em guerras passadas servia discursivamente para garantir a vitória na guerra aos portugueses da América. Os EUA constituíam, assim como a América Espanhola, um passado como fonte para a interpretação do futuro da América Portuguesa. Apresentavam um resultado positivo e uma possibilidade de realização sem danos da emancipação. Possibilitavam uma atitude passada que servia para embasar atitudes presentes frente ao comportamento metropolitano perante o Brasil. No momento em que a Corte aprova o envio de tropas à América, o Reverbero questiona se o Brasil já não dera mostras suficientes de querer a união com Portugal, uma vez que já pedira a Constituição 316 317 Idem, p. 131. Idem, p. 132. 131 Portuguesa e mandara seus representantes ao soberano congresso. Questiona, então, o porquê das tropas. Critica a atuação de Luiz do Rego (“bravo general”, mas “muito mau governador”). Compara seu modo de tratar o “povo pacífico” ao dos “presos em um navio, à maneira da escravatura da Costa da Mina”318. E afirma que, para os deputados que apóiam tal arbitrariedade, o “sistema constitucional não se arreigará no Brasil sem que seja escoltado de baionetas europeias”. Tal postura, contudo, não pode deixar de produzir males de uma natureza assustadora. Quando a América Inglesa, depois das suas primórdias contestações com a Metrópole, jurou à face do Céu, e da Terra adesão à sua Causa, os primeiros choques que produziram a desunião foram nascidos da introdução das Tropas Inglesas, que imediatamente deram a conhecer os intentos de apoiar as pertenções tirânicas da Mãe Pátria. Então sobre os Manes sagrados das vítimas sacrificadas pelos Ingleses, eles juraram não depender, que de si mesmos, e de só à as vontade confiarem os seus futuros destinos.319 Não era uma questão menor. Noutra edição, reflexões lembravam que a Independência da América (dizia em 1777 o Apóstodo [sic], que a pregava com a palavra, enquanto Washington a firmava com vitórias) deve datar do instante, em que sobre ela se disparar o primeiro tiro de espingarda. Boston apresentou então as cenas de horror, que agora se apresentam na Bahia. Realizou-se ali a profecia, e o soberbo Colosso da Europa, que Franklin com a mão, que pôde arrancar o raio das nuvens, pôde arrancar-lhe o cetro, com que jurara esmagar os Americanos. Debalde a fúria dos partidos os ameaçava (como agora nos acontece) com a mui diminuta população, com a falta da sua precisa Marinha, e com o peso de uma grande dívida; debalde se lhes opunham as riquezas, o capricho, e a força da sua preponderância rival: o mundo estupefato viu prontamente sair dos Lagos, e das Matas de S. Lourenço, e Mississipi, a obra mais completa que tem visto os homens, e que fará por longa extensão de séculos a felicidade de uma Nação generosa, e que obrigou a Inglaterra a confessar pelo seu mesmo silêncio, que cometera um gravíssimo erro em Política, aplicando-se os seus ombros para fazer retrogradar uma Obra, que seguia o impulso necessário da irresistível Natureza. 320 O primeiro tiro disparado havia posto tudo a perder. Haveria escolha para portugueses de ambos os mundos? Continuaria o Reverbero: Portugueses de um e de outro hemisfério, atendei às vozes da verdade, para que se apague o fogo de partidos, que podem sim derramar muito sangue, mas que não poderão conseguir fins contrários à marcha da civilização do nosso presente século. As Nações todas têm épocas de contato entre si; as cenas da América do Norte são as Cenas do Brasil, 318 RCF, 19 de fevereiro de 1822, p. 174. Idem, p. 175. 320 RCF, Número 22, 9 de abril de 1822, p. 265 319 132 mas as circunstâncias do Brasil são muito mais felizes, tanto porque temos um centro de união em um Regente Amante da Constituição, como porque a Sabedoria do Soberano Congresso, tendo em vista aquele exemplo dos Americanos, procederá com Prudência a nosso respeito, e não com caprichos loucos; porque é tempo de saber-se geralmente, que a Liberdade é franca e voluntária; que quando se apresenta, ou com disfarce, ou com armas, em vez de Irmãos dispéria [sic] inimigos, que cedo ou tarde se debatem, com horror da humanidade civilizada. 321 A América inglesa juntava-se ao conjunto de eventos passados que serviam de referência para a construção de propostas futuras e interpretações presentes. Se antes o Reverbero buscava os pontos de contato entre Brasil e Portugal no mesmo universo histórico, juntando ambos os lados do Atlântico na mesma lógica histórica, agora o deslocamento provocado pela perspectiva de ruptura com a metrópole aproximava os pontos de contato entre Brasil e demais regiões da América – no caso, especialmente a inglesa. Os eventos mais próximos da contemporaneidade eram usados para essa aproximação, haja vista que não eram aspectos de uma colonização comum que os conectava, mas, sim, elementos da ruptura, da libertação, da luta contra a opressão. De certa maneira, era também a produção de uma síntese a unir as diversas colonizações num mesmo processo, que, na lógica da história como história da liberdade, significava, fundamentalmente, que toda colonização era opressiva, despótica, e o exercício da natural liberdade presente no coração dos homens, neste particular, era a luta que unia todas as regiões coloniais da América contra a dominação da Europa. A leitura dos acontecimentos ali permitia que se pudesse proceder com cautela. Afinal, as cenas da América do Norte eram as cenas do Brasil, apenas deslocadas no tempo. E se é certo que as condições específicas da América Portuguesa permitiam maior esperança frente àqueles que ainda sonhavam com a união dos dois reinos, é fato que tal só seria possível se aqueles com o poder para produzir o futuro mantivessem-se ligados ao passado para compreender os fios que juntavam causas a conseqüências. Se o Soberano Congresso esquecesse tal leitura e continuasse a promover as “inventivas e as chufas”, insultando os brasileiros “com os nomes de Tupinambás, de Botocudos, e de macacos”, então estes escolherão vingadores para conseguirem o triunfo da sua causa, e tão enérgico como foram aqueles que na América do Norte formaram essa Constituição, eterno penhor da fortuna, da riqueza e do respeito desse Povo que se levantou do estado de sua opressão quando seus Irmãos da 321 Idem, p. 266-267, grifos meus. 133 Europa julgavam que eles não tinham outro remédio senão beijar suas cadeias pela falta de recursos necessários para as quebrar. Se este Povo tivesse a fortuna que nós temos possuindo um Príncipe de tanta energia pelo bem geral, não seria tão custoso aos Franklins repelir os obstáculos que retardaram a vitória. 322 “O gênero humano está em marcha, nada o fará retrogradar”. Aquelas palavras de De Pradt ecoavam em inúmeros posicionamentos do Revérbero. Aliada à retórica que buscava fincar uma bandeira política na disputa pela construção futura do Império, a interpretação dada àqueles tempos precisava levar em conta os passados das demais regiões da América na inserção do Brasil na lógica das civilizações. E se a aproximação com os eventos americanos, naquela lógica, era fundamental à ruptura, não esquecer a herança europeia era também indispensável para a manutenção dos aspectos civilizatórios das novas nações libertas. Apareciam, assim, lado a lado os eventos da América e os da Europa, agora numa experimentação um pouco mais radical: A Revolução da França, que em parte pode ser considerada um efeito da civilização dos Povos, deu impulso tão forte aos espíritos na Europa, como a dos Estados Unidos deu também na América. Tocada a principal mola do coração do homem, pela solene declaração dos seus inalienáveis direitos, sabiamente deduzidos da sua invariável natureza, era impossível que o Liberalismo assim proclamado retrocedesse ao seu primeiro caos. Houve sim uma força na Europa, que aproveitando com dexteridade a luta entre os liberais e os servis, pareceu reprimi-lo por alguns anos, deixando-o em antro profundo, cavado pelo terrorismo o mais inaudito. (...) A América toda naturalmente desejosa da Liberdade, como um filho, que anhela [sic] emancipar-se para gozar por si mesmo: mas cuidadosamente vigiada pelas suas metrópoles, que nada menos queriam do que possuir com exclusão, e desfrutar sem partilha, a América, digo, sentiu o impulso das províncias do norte, e espreitava o momento de aproveitar-se do seu exemplo, para dar expansão à chama sagrada, escondida nos corações de todos os seus filhos. A da Espanha era bem como um navio preso às praias de Cádis por um cabo já muito enfraquecido; Napoleão cortou este cabo invadindo a Espanha; o Navio vogou em alto mar, e a pesar de grandes tempestades e da inexperiência de alguns seus pilotos, ele chegou ao Porto desejado, porque assim devia acontecer.323 Revoluções na Europa, revoluções na América; despertada a chama natural da busca pela liberdade no coração dos homens, a história seguia seu curso rompendo as forças que oprimiam e prendiam essa potencialidade. Se a história era a história da liberdade versus a tirania, então o aprisionamento da primeira pela segunda não poderia conseguir resultados senão momentâneos e à custa de um esforço cada vez mais 322 323 RCF, Tomo Segundo, Número 02, 04 de junho de 1822, p. 17. RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 66. 134 ineficaz. Nada faria retrogradar a marcha do gênero humano. Mas, evidentemente, a destruição das correntes liberaria forças que, por descuidos, desvios ou não preparo de seus dirigentes, poderiam resultar em destruição, caos, infelicidade. “Ó França, acaso se vão reproduzir em Portugal os horrores da tua Revolução!”, lamentariam os editores do Reverbero em edição de setembro de 1822, logo após afirmarem aos “brasileiros generosos” que “a sorte está lançada”.324 Observar o passado da América Inglesa e da América Espanhola oferecia condições para medir a posição do Brasil naquele gradiente, buscando armas ideológicas para suavizar a inexorabilidade da marcha do tempo (afinal, não poderia manter-se a liberdade prisioneira da tirania) a partir da construção interpretativa da singularidade brasileira naquele conjunto. Afinal, o Brasil, diferentemente de suas irmãs americanas, e mesmo de seus espelhos europeus, reunia condições únicas para atender àquela marcha sem passar pelas mesmas inseguranças: a presença do Príncipe Dom Pedro. 3.3) Os “bens da liberdade sem as comoções da democracia e sem as violências da arbitrariedade”. A posição a favor de Dom Pedro começa a se estabelecer com mais firmeza em reflexões de janeiro de 1822. Após apontar a situação revolucionária em Portugal e na América, destacando como as ideias constitucionais encontraram terreno fértil para acelerar as transformações neste espaço, destaca a situação privilegiada do Brasil naquele contexto, afirmando o Reverbero que “o Brasil adotando o príncipe, adotou o partido mais seguro; vai gozar dos bens da Liberdade sem as comoções da Democracia, e sem as violências da Arbitrariedade.” 325 Era possível, portanto, superar a transição revolucionária sem os riscos a que estavam sujeitos nos processos. Afinal, se a vitória da liberdade era uma inevitabilidade, inscrita na lógica do desenvolvimento histórico dos povos, a possibilidade de realização dessa lógica histórica sem desvios que causassem adversidades era própria apenas para aqueles povos que houvessem reunido as necessárias condições. O Brasil era desses. O Brasil, que já vinha com destaque pelas benesses da Providência, que derramara uma natureza magnífica e um potencial inexaurível, que já 324 RCF, Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 201. À exposição da situação do momento, no qual a sorte estava lançada, conclamavam os editores: “Cumpre agora corrigir as passadas faltas pela nossa atividade, patriotismo, e mais do que nunca necessário entusiasmo. Acaso os Brasileiros são menos homens do que todos os seus Irmãos Americanos? Acaso a Natureza tão pródiga em o nosso solo, seria para conosco mesquinha na doação de qualidades morais?” 325 RCF, 15 de janeiro de 1822, p. 131. 135 se situava numa vantajosa posição no Globo, abrangendo as mais férteis e abundantes zonas, com todas as matérias primas e com todas as artes, a este Brasil, já destacado no conjunto colonial, “só lhe faltava a Liberdade, e a Liberdade veio coroar os seus votos”, possibilitando a transição pacífica326. Para tal seria de imensa importância a conservação do Príncipe em seu seio, “necessário centro da sua reunião, princípio da sua tranqüilidade, que o livrará das comoções da Democracia, e dos vórtices horrorosos da Anarquia, pondo freio ao mesmo tempo ao astuto maquiavelismo, que parecia desunilo, intrigá-lo, e enfraquecê-lo”327. A condição única do Brasil não era considerada nem mesmo produto da colonização europeia, criticada dentro da lógica dos 300 anos de opressão – agora sem o balanceamento da “harmonia” como possibilidade que teria pautado as relações entre Portugal e Brasil nas primeiras edições do Reverbero. Afinal, “o tesouro que possuímos no Príncipe, o devemos à Providência, e não à generosidade dos nossos Irmãos de Portugal”328. Fosse para a independência, fosse para a manutenção das duas Coroas, a chave era o Príncipe Regente, a grande “égide da nossa Liberdade; (...) [e] o esteio da Constituição no Brasil; é o instrumento da nossa tranqüilidade; é o centro da nossa liberal Reunião com Portugal; é a fonte da nossa ventura; é o amigo dos Portugueses, porque só deseja a sua maior glória e só promove o seu maior bem.”329 Enquanto a Europa dilacerava-se em conflitos entre a reação e os liberais; enquanto a América Espanhola fragmentava-se em disputas entre grupos rivais; enquanto a liberdade rompia com a opressão em todo lugar à custa de muito sofrimento e destruição, “feliz então o Brasil, porque já tem abraçado a [sic] Sistema Representativo, o primor, a maravilha da Arte de governar Povos, evitando assim as delongas, que hão de sofrer outros países.” 330 Feliz o Brasil, que, recusando o despotismo, possibilitava “uma indisputável estabilidade, uma prosperidade superior à das outras nações, [que] há de ser a sua infalível, e gloriosa pertença.” 331. O caminho final haveria de ser este, de uma forma ou outra, pois reunia em sua organização política todas as necessárias condições para a máxima prosperidade dos povos. E se assim não era no presente, tudo se resumia a uma questão de tempo: 326 RCF, 05 de fevereiro de 1822, p. 157. Idem, ibidem. 328 RCF, 19 de fevereiro de 1822, p. 180. 329 RCF, 19 de março de 1822, p. 230. 330 RCF, Número 24, 23 de abril de 1822, p. 291. 331 Idem, ibidem. 327 136 Se a América do Norte, e do Sul restabeleceram Repúblicas, é porque ainda contam dez habitantes por légua quadrada; quando porém cem ou duzentos ocuparem o mesmo espaço de terreno; quando cidades magníficas, e florescentes substituírem as florestas virgens, que hora cobrem as margens dos seus Rios; quando a Indústria se abraçar com a natureza; quando a Arte tirar vantagens dos soberbos portos, que bordam as suas Costas, e um Comércio bem dirigido levar a vida, a força, a riqueza, e a abundância a todas as Artérias do Estado; quando finalmente as Artes do velho Mundo se aclimatarem neste país abençoado, que a Natureza por tantos séculos ocultara no túmulo do Sol, receosa de que a cega Idolatria da Europa lhe não desse o grau de apreço, que lhe convinha de justiça, então a América toda procurará na Monarquia Constitucional um refúgio contra a sua própria grandeza, e contra o seu colossal engrandecimento.332 Abraçar a Monarquia Constitucional, no caso do Brasil, era, portanto, assumir a figura de futuro da América. Se a observação das tragédias recentes americanas era uma forma de se prevenirem os males no Brasil, uma vez que, como vimos anteriormente, o passado próximo da América era entendido como futuro à espreita do Brasil, então antecipar-se aos destinos trágicos de guerra e destruição, pela adoção da forma monárquica constitucional de governo, era não apenas governar a própria história, conduzindo o próprio destino, mas, também, tornar-se o próprio Brasil novo exemplo para o restante do continente – e, por que não?, do mundo. A retórica que interpretava a linha de desenvolvimento da história dos países americanos achava um lugar de gala para o Brasil no conjunto das sociedades. Assim é que o Brasil poderia cumprir seu destino da Natureza de ser grande e glorioso, caso sua população estivesse unida como os átomos na matéria. A questão da união era central. As facções poderiam tudo pôr a perder. Se, por um lado, a espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas luzes, que não pode mais conter-se na concentração dos poucos conhecimentos dos séculos passados; quer[endo] reintegrar-se dos seus naturais, e inauferíveis direitos de propor novo pacto social em Liberdade, por união voluntária, e acordo mútuo333, por outro “os Filósofos do século 18 abstraídos em especulações metafísicas se exaltaram na ideia da perfectibilidade da natureza humana, e conceberam, da mesma forma que o ponto geométrico, a existência da liberdade, e igualdade absoluta entre os homens, quimera a mais perigosa de todas na sociedade”334. Se a união que produzia o 332 Idem, p. 290. RCF, Tomo Segundo, Número 11, 06 de agosto de 1822, p. 127-128. 334 , p. 128. 333 137 pacto era decorrência esperada da produção da liberdade, a igualdade absoluta, como quimera perigosa, produzira apenas tragédias. Os homens quiseram benevolência fraternal, e se tornaram malévolos; quiseram ser livres, e foram licenciosos; quiseram tolerância, e se fizeram intolerantes; quiseram paz perpétua, e acenderam guerra inextinguível. Quiseram enfim consolidar uma república eterna, e se reduziram à desenfreada anarquia, da qual evadiram para o despotismo militar, e felizmente voltaram para o mesmo ponto, donde haviam partido nos desvarios, e aberrações, porque divagaram. 335 Melhor seria viver em Constantinopla – a “Turquia” que, como poderemos ver no capítulo cinco, constituía a imagem sintética do extremo oposto da civilização – do que em Paris no auge da Revolução provocada por esses inocentes ou malévolos propugnadores do mal336. Quase como uma tendência natural, a produção de demagogos levaria a democracia à aristocracia; esta, à tirania, “como se tem observado em todas as idades do mundo”, resultando na concentração da autoridade em menos e menos mãos, até que uma a usurpe e transforme em governanças “inconstitucionais, arbitrárias, absolutas, e militares”337. A partir de Montesquieu, aponta uma distinção fundamental entre o passado e o presente para justificar a inoperância das repúblicas. Antes, “na austeridade dos costumes”, quando se desprezavam o ouro oferecido e os cidadãos, para salvação da pátria, se “devotavam à morte”, “as repúblicas antigas apresentavam ao universo modelos de patriotismo”. No século presente, porém, em que a dissipação, o espírito mercantil, o luxo, a corrupção moral, e o egoísmo se tem desenvolvido geralmente, pretender firmeza nas Repúblicas fundadas sobre tais alicerces, é transtornar a ordem as coisas, conciliar ideias contraditórias, e conceber absurdos, como simultaneamente querer e não querer virtudes. 338 A isso somava-se a imensidão do território do Brasil tornando qualquer forma republicana inadmissível. E voltam os EUA como exemplo. Mesmo os EUA, o “farol da liberdade”, que para o rompimento era exemplo pleno a ser vislumbrado, no momento da construção posterior deveria ser visto com mais cuidado. Afinal, ainda não haviam alcançado o acabamento final que apenas a monarquia constitucional 335 Idem, p. 129. “Manes Idem de Voltaire, de Rousseau, d´Alembert, e de quantos preparastes a Revolução Francesa, de Mirabeu, de Condorcet, de Brissot, e de quantos a executastes, vós nos gritais aos ouvidos da razão, que antes viver em Constantinopla ou Ispahan [sic] do que em Paris na época desastrosa de sua Liberdade, e igualdade absoluta.” In Idem, p. 129. 337 Idem, ibidem. 338 Idem, p. 129-130. 336 138 possibilitaria: “Não se me argumente com os Estados Unidos do Norte, os quais daqui a alguns anos, se a sua opulência for sempre crescente, comprovarão as minhas asserções.” 339 A partir de Benjamin Constant, mostrava-se que a Monarquia Representativa Constitucional, esta, sim, era a melhor forma de governo, já que “o soberano é interessado em causa própria a neutralizar-se e a manter o equilíbrio de todos os poderes entre si” 340 . A consulta à História disponibilizaria diversos exemplos passados, se a lógica interpretativa do presente não bastasse para tal conclusão: Os maiores e mais florescentes Impérios têm sido monarquias. Se a república de Roma, má aristocracia, e péssima democracia, devendo a sua conservação à política guerreira, com que entretinha ao longe em hostilidades incessantes os cidadãos fascinados com os pomposos títulos de liberdade, glória e dignidade do Povo romano, agitado sempre em casa por dissensões entre a Plebe e o Senado; se a república romana, dizia eu, pôde subsistir em grande por sete séculos, não o deveu ao recurso da criação dos ditadores nas ocasiões apertadas, em cujas mãos, como nas de um monarca, depositava em parte o poder legislativo, e plenamente o executivo?341 A durabilidade da Roma Republicana, sua perenidade, fora possível apenas porque sustentada, nessa interpretação, pelos momentos ditatoriais que garantiam eficácia análoga à da monarquia. Eficácia observável no passado. A História o mostrava. No Brasil via-se exemplo sem par na História, a todos os reis da Terra. Dom Pedro possibilitava a síntese que outros espaços e tempos não puderam ser. Prega que seja ele o centro “do qual emane o impulso das leis, que com ele instituirmos ao nosso corpo político”, “que anime as faculdades da nossa pátria há três séculos entorpecidas, para nos elevarmos à categoria e grandeza a que, desde a criação, nos destinou a providência”342. Dom Pedro permitiria, afinal, a realização de todo o potencial cravado no Brasil desde a Criação. E, entre exemplos passados e o destaque presente, encerrava assim o texto: Brasileiros. Estes documentos, e outros muitos nos fornece a História, são lições instrutivas para nós. Eia, vamos, unamo-nos a S. A. R.; cuja felicidade e a nossa são recíprocas. Resumbre ela das nossas Cortes para nós, e para as gerações que nos hão de suceder! (...) É a favor das marés (diz Marmotel) que se trabalha nos diques. Aproveitemo-nos da oportunidade do tempo.343 339 Idem, p. 130. Idem, ibidem. 341 Idem, p. 130-131. 342 Idem, p. 135. 343 Idem, p. 136. 340 139 A marcha do gênero humano não poderia retrogradar. O Brasil oferecia, porém, um “espetáculo novo no Teatro do Mundo civilizado” 344 . Sua emancipação, já desenhada, vinha de um complexo de circunstâncias que encurtou a nosso respeito a cadeia dos tempos, aproximou-nos da Liberdade, erguendo a nossa Represenação Política por um modo, que evitou as delongas experimentadas pelas Províncias da América Espanhola, e que experimentaram ainda as que não forem no nosso caso. Napoleão acometendo o Reino de Portugal quebrou também os laços, que o ligavam ao Brasil em antigo sistema; mas não foi do primeiro golpe, como na Espanha. Apareceu um novo Reino em tríplice união; apareceu um Monarca na América, convertendo uma Colônia em Metrópole; tudo isto era novo, mas os destinos do Brasil aguardavam novos, e bem próximos desenvolvimentos para completar-se a sua glória de um modo em tudo admirável. 345 O tempo no Brasil foi encurtado por essa síntese produzida pela presença do Príncipe e pelo espírito da Monarquia Constitucional. Se a marcha humana não poderia ser evitada, seu ritmo poderia ser transformado. O encurtamento do tempo era a redução da distância entre o grito e o rompimento final dos grilhões pela liberdade. Era nessa distância que se produziam as paixões que transtornavam o caminhar e desviavam a direção. O Brasil aparecia potencialmente incólume a essas desgraças, pois o Príncipe sintetizaria a necessária aceleração do tempo que resultaria na final transformação. Essa presença do Príncipe, “penhor da nossa tranqüilidade e centro de um grande Império”, “evitando os escolhos da democracia pura, e os ferros do aborrecido despotismo, deve conduzir-nos livres e felizes ao termo dos nossos prudentes e honrosos desejos.”346 E assim o calendário das transformações ganhava suas datas e retoques finais: Se são célebres nas páginas da nossa História os dias 7 de março de 1808, e 26 de fevereiro de 1821, não são menos gloriosos os dias 9 de janeiro, e 3 de junho deste ano de 1822, porque são conseqüências infalíveis daqueles primeiros sucessos, e adiantamento necessário da marcha da nossa civilização, suspendida sim por 25 anos, mas nunca de todo corrompida, porque a natureza não perde os seus foros, nem a razão renuncia princípios abraçados pela convicção de evidência. 347 Os marcos de 1822 como “conseqüências infalíveis” de 1808 e 1821 projetavam o Príncipe como agente do passo seguinte na marcha da liberdade. O Brasil cumpria a lógica histórica desencadeada pela presença portuguesa, mas marcada pelo 344 RCF, Tomo Segundo, Número 06, 02 de julho de 1822, p. 67. Idem, ibidem, grifos meus 346 Idem, p. 67. 347 Idem, p.67-68. 345 140 aprisionamento da liberdade, que, agora, emancipava-se. Os desvios, estes seriam evitados pela aceleração-síntese produzida pelo herdeiro da Coroa. Daí a importância de seu atendimento ao chamado que, de acordo com o Reverbero, lhe fazia toda a nação: Príncipe, em vossas ações, ainda mais do que em vossas palavras brilham os liberais sentimentos, que reúnem em torno da vossa Pessoa quatro milhões de habitantes que a intriga, e a desconfiança trabalharão por desunir, com prejuízo da nossa grandeza; não somos lisonjeiros, porque dizemos menos do que os Brasileiros sabem de vós, e no fundo dos nossos corações sacrificados todos aos interesses da nossa Pátria, fazemos incessantes votos para que penas mais dignas recomendem à posteridade, e à admiração do mundo os testemunhos da vossa prudência, da vossa glória, e do vosso decidido Liberalismo. 348 E finaliza: “ou se atenda ao grau de civilização de nosso século, ou a colocação deste grande e florente reino, no meio de povos livres, já reconhecidos por nós e por uma grande nação, e que se não fundaram monarquias representativas, foi por não terem príncipes, que lhes servissem de centro e de apoio.” 349 Felizmente, o Brasil não apresentava esse problema. Para tal, era de fundamental importância o fortalecimento da persona de Dom Pedro.350 A síntese dessa interpretação, que encaixava o Brasil na lógica histórica do desenvolvimento das nações a partir de sua peculiaridade que lhe permitia uma síntese superior ao de outras situações, encontra acabamento em dois discursos do próprio Januário da Cunha Barbosa, transcritos em edições de 30 de julho e 20 de agosto de 1822, ambos pronunciados durante missas. Embora sejam ocasiões distintas (o primeiro 348 Idem, p. 68. Idem, p. 70. Noutro momento, comparando-se, a partir de um discurso apresentado no periódico como sendo de um estrangeiro, os esforços dos brasilienses “para recuperar a liberdade” com o de outros povos em outros momentos, o autor analisa: “Atenas, fundada num território ingrato, chegou ao cúmulo da glória, deu à luz ao eloqüente Demóstenes, ao invencível Temístocles, ao legislador Sólon, foi o oráculo da Grécia, e fez tremer a Ásia; Roma, fundada por uma tropa de facinorosos vagabundos, e circundada de inimigos, viu nascer no seu seio Cícero, César, Trajano, e domou o universo; a França, centro da civilidade, das ciências e das artes, deve a sua origem a bárbaros que saíram do fundo do Norte; os ingleses, que possuem hoje o império de Netuno, não eram se não miseráveis pescadores: - passando ao novo hemisfério - : os Americanos, quebrando as cadeias de ferro, que lhe faziam carregar os soberbos insulares, não somente triunfaram, mas obrigaram seus inimigos a uma paz indecorosa; a cidade de Buenos Aires, expulsou de seu seio o arrogante castelhano, e zomba de um império que teve por muitos séculos o Portugal no aumero [sic] de sua províncias. E vós brasileiros que tendes recursos infinitos, vós para quem a natureza tem sido tão pródiga? Vós que possuis este metal ídolo de todas as nações? Vós que tendes por égide um magnânimo, e intrépido herói, que não espera se não o sinal para conduzir-vos à vitória? Vós que tendes por mentor, um sábio cuja fama faz retenir a Europa, duvidais, flutuais entre o medo e a esperança? (...) Brasileiros, é tempo de surgir do letardo em que estais sepultados, e de mostrar ao universo atento, que os habitantes do Brasil são homens. (...) E tu, jovem príncipe! Tu, cujo nome será sempre gravado no templo da memória! Tu, cujas ideias são tão nobres como o nascimento! Zomba dos fulminantes oráculos da Sibyla Lusitana, e aceita os títulos e o poder que te oferece o teu povo brasileiro.” In: RCF, Tomo Segundo, Número 09, 23 de julho de 1822, p. 111-112. 350 SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada: O Brasil como corpo político autônomo, 1780-1831. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, cap. 3 e 4. 349 141 referia-se à eleição paroquial de Santa Rita, o segundo à Missa do Espírito Santo da Real Capela), uma unidade marca ambas as falas. Após retomar a fórmula dos “três séculos de opressão” na exposição da trajetória histórica do Brasil até ali, Januário da Cunha Barbosa apresenta o que esperar do presente e do tempo futuro que se avizinha. Nessa relação presente-futuro, Januário conclama seus ouvintes-leitores (“concidadãos”) a uma observação, que conduz a uma conclusão sobre a posição do Brasil naquela lógica histórica. O espetáculo oferecido pelo Brasil, naquele momento, era “muito mais interessante” do que qualquer um anterior, incluindo aquele em que “surgira dos mares” para pôr na História o nome do “afortunado Cabral”. O momento presente, superior a qualquer um passado, produzia nos liberais uma inveja da “nossa sorte”. Afinal, Pelo nosso abraçado sistema de monarquia representativa, nós saboreamos todos os frutos da liberdade, sem nos expormos aos seus excessos. A paz, de que hoje gessam, foi precedida de longos trabalhos, porque a hidra da sangrenta anarquia por muitas vezes reproduziu as suas decepadas cabeças no meio dos que se diziam irmãos. A nossa paz será fruto da nossa prudência, da nossa bem entendida reunião com o grande e liberal príncipe, que jurara defender o Brasil e a liberdade; que dado pela providência como centro próprio e necessário das operações de tão vastas províncias, como as do nosso reino, quer, que façamos pelos nossos representantes as leis por onde seremos regidos em corpo majestoso e respeitável. 351 A possibilidade de rompimento com as decorrências passadas, na América ou alhures, oriundas da necessária e inevitável vitória da liberdade sobre a opressão constituía, no Brasil, um diferencial em relação a qualquer outra emancipação nacional já vista nos faustos da História. A presença do príncipe garantia não apenas uma continuidade, mas uma inédita situação. A novidade, na fala de Januário, era a possibilidade de síntese do que os melhores mundos haviam produzido, sem os temores dos riscos que o desenvolvimento da civilização carregava consigo. A monarquia constitucional, consubstanciada em Dom Pedro, seria a garantia desse sucesso. E “a América já desembaraçada de suas cadeias, e o Mundo oprimido, talvez [estivessem] ansioso[s] por seguir a nossa marcha.”352 O ponto central, é claro, é a respeito da possibilidade de o Brasil ingressar, ou não, no rol das nações civilizadas. Nesse sentido, a narrativa que o colocaria parelho às melhores nações do mundo já se definia como auto-imagem invertida da colonização: 351 352 RCF, Tomo Segundo, Número 10, 30 de julho de 1822, p. 115-116. Idem, p.116. 142 “E surgiria do esquecimento do Mundo este grande Reino, quando voluntário abraçou a Cruz, e as Quinas apresentadas por Cabral, para ser agora considerado indigno dos bens de uma justa, e liberal confraternidade?”353, pergunta Januário em seu discurso. Afinal, Os brasileiros querem ser felizes por um código, que cortando perniciosos abusos, combine a sabedoria do século com a experiência do passado, e com as circunstâncias da nossa localidade. O príncipe deseja súditos, e não escravos, quer amigos, e não vassalos, quer bem assinalados os poderes, que sustentam, como principais colunas, o majestoso edifício de uma monarquia constitucional, para que se não reproduzam no Brasil as cenas terríveis, que se viram na França, que ainda se observam na Espanha, e talvez agora entristeçam Portugal. O Mundo espera ver o Brasil entrando na grande família das nações cultas, e prosperando à sombra de uma legislação, que nem seja indigna da América, nem contrária às circunstâncias favoráveis em que fomos constituídos quase milagrosamente. 354 A concretude do discurso de Januário da Cunha Barbosa, ao defender uma generalidade (“a sabedoria do século” e “a experiência do passado”) mesclada a uma especificidade (“circunstâncias da nossa localidade”), indica não apenas as benesses que as luzes do século provocariam ao derramar-se sobre o Brasil, mas também o que o Brasil teria a acrescentar a essas luzes, a essas mudanças, ao mostrar ao mundo a possibilidade de se construir um majestoso edifício que, de maneira inevitável, pudesse não reproduzir as cenas de terror da França, da Espanha e, potencialmente, de Portugal (e poderia acrescentar as da América). A luta da liberdade contra a opressão não repetia o passado, mas, sim, criava um novo futuro potencial, graças à presença do príncipe e a articulação nação-Coroa que permitia a monarquia constitucional. Mas se a ação era concreta, vinda do príncipe e da população, também era divina, e o analista da história Januário misturava-se ao padre em missa ao lançar as origens dessa possibilidade de sucesso futuro para o Império: Eterno Deus! Desça sobre nós a vossa graça; um instante da vossa ilustração, vale mais, do que séculos de experiência e de estudo. Este povo, que se acolheu à sombra da vossa cruz, não quer outra redenção que não venha por ela, tocai os seus corações, para que ponderando sisudamente os interesses da pátria, possam concluir uma escolha, que seja digna de vós, do Brasil, e do Augusto Príncipe Constitucional, que nos rege, e nos defende.355 353 RCF, Tomo Segundo, Número 13, 20 de agosto de 1822, p. 152. Idem, p. 153. 355 Idem, p. 154. Outra seção da mesma edição tocaria no assunto: “Os direitos dos povos são de instituição divina, e os dos governos são de instituição humana; restitui a aqueles, o que Deus lhes doou 354 143 A monarquia constitucional permitiria saltar sobre as tragédias que seguem os momentos revolucionários; a presença divina, ilustrando um povo, valeria mais do que séculos acumulados de História. A narrativa que une ambos na produção da individualidade do Império do Brasil permitiria que ação divina e ação humana produzissem a singularidade que marcaria a peculiar inserção do Brasil na lógica civilizatória da história universal. 356 Sempre de olho dos vizinhos americanos para traçar paralelos. E é assim, com esses paralelos, que o Reverbero encerra sua trajetória naqueles velozes anos de rompimento com a Metrópole. As últimas edições do periódico trazem a tradução de trechos da “Solução da Questão de Direito sobre a emancipação da América”, de autoria de Joaquin Infante, “natural de Cuba”.357 Joaquin Infante, nascido por volta de 1780, advogado de formação, participou de uma conspiração política sufocada em Cuba, em 1811, sendo um de seus únicos sobreviventes. Em 1812, enquanto na Espanha era feita a Constituição de Cádiz, Infante publicava na Venezuela uma constituição para Cuba. Quando publicou a “Solução da Questão de Direito”, encontrava-se exilado na Espanha, em 1820. O texto foi impresso também em Caracas, México e Buenos Aires. 358 Segundo João Paulo Pimenta, para Infante, “era chegada a hora da América se emancipar de sua “mãe”, a Espanha, e viver livremente.”359 Para tanto, apresenta o autor cubano duas ordens de razões. As primeiras, as “razões filosóficas”, giram em torno da consideração das diferenças físico-territoriais, populacionais e de recursos econômicos, que apontavam para uma “artificialidade de uniões políticas”. As “razões políticas”, por outro lado, significavam, para Infante, o “esgarçamento irremediável das relações de complementaridade entre Espanha e América”, resultando da decadência da primeira a como um bem inalienável, a fim de que o seu livre e espontâneo consenso, e a religião do juramento, imprimam no vosso poder legítimo um caráter inviolável e sagrado.”. Página 154. 356 “Províncias do Brasil, é chegada a época da nossa glória; a nossa Revolução é única nos fastos do Universo. É um príncipe, que precede os votos do seu Povo; [e um pai, que diz aos seus filhos – chegou o tempo da vossa emancipação – é um sábio, que marca os direitos da sua Nação, e circunscreve o poder do seu trono; nós podemos verdadeiramente exclamar: spectaculum facti sumus Deo et hominibus.” In: RCF, Tomo Segundo, Número 16, 10 de setembro de 1822, p. 206. 357 O texto foi publicado nas edições 17 a 20 do tomo segundo, de 17 de setembro a 08 de outubro de 1822 (última edição do Reverbero). 358 Os dados biográficos do autor encontram-se em PIMENTA, João Paulo Garrido. Tempos e espaços das independências: a inserção do Brasil no mundo ocidental (c.1780-c.1830). Tese de livre docência. São Paulo: USP, 2012, p. 105. A tese também faz uma análise do documento nas páginas seguintes, que servirá, também, de base para nossa análise. 359 Idem, p. 107. 144 exploração da segunda em nome de uns poucos monopolistas. 360 A partir dessa perspectiva, o Reverbero reproduz partes do texto e inicia uma longa sequência de comentários em notas de rodapé – 29 no total, 22 das quais, ao menos, fazem referências ao passado do Brasil ou outros elementos da história para afirmação de pontos de vista do periódico. Assim, essas notas mostram um rico diálogo entre as perspectivas que vimos aqui discutindo e aquelas que, voltadas para a América como um todo, aproximavam o Brasil do destino inevitável oferecido pela História. Produzem, assim, um único texto, um único corpo que buscava interpretar a lógica dos eventos recentes para abarcar toda a América no conjunto da civilização.361 Assim é que, iniciando a explicação de suas “razões filosóficas” para a emancipação, Infante explica que a natureza constituiu as Nações, traçando-lhes um círculo em que se encerrem, e separando-as por barreiras, cuja violação é sempre funesta. A sua tendência ao círculo primitivo é constantemente visível. Daqui vem a analogia de fisionomias, caracteres, opiniões, e costumes. Assim vemos na Europa, por exemplo, a diferença da Espanha à França pelos Pirineus; desta com a Itália pelos Alpes: a Inglaterra com as Nações Setentrionais do Continente pelo mar que as separa. Aplicando esta evidência ao Novo Mundo, relativamente ao Velho, pode haver um limite mais assinalado, que o da duplicidade de dois hemisférios? E quanto à Espanha, pode haver maior separação que a de um mar de 1500 léguas na parte mais contigua, que é o Golfo do México? É por tanto claro, é evidente, que a sujeição de uns a outros é em tal caso violenta, e precária, e que enfim a demarcação política há de regula-se pela demarcação física.362 O Reverbero não apenas concorda, como reforça o ponto na nota 4: Não sei como podem os emperrados persistir na louca pretensão de domínio, e direito de Portugal sobre o Brasil. As razões desenvolvidas neste excelente capítulo, são para a América Espanhola, como para o Brasil. Se eles argumentassem com a razão, e fossem de boa fé, deveriam ceder à força delas; mas só argumentam com etiquetas, direitos obsoletos, rançosas precedências, e outras parvoíces indignas do presente século.363 360 Idem, p. 108-109. A título de exemplo: Infante inicia seu texto afirmando que “a questão de direito sobre a emancipação da América é urgentíssima: [e] a sua pronta decisão segundo os princípios da Justiça Universal poria termo à questão de fato nos países que ainda a defendem com as armas.” Ao que o Reverbero completa: “Todas as razões que se dão sobre a Independência da América são aplicáveis, quer ao Meio-Dia, quer ao Norte dela: assim o que se diz nas Tribunas de Madrid, Londres, ou Washington sobre a liberdade, é aplicável a todo o Mundo.” O que valia para uma parte da América aplicava-se ao mundo. 362 RCF, Tomo Segundo, Número 17, 17 de setembro de 1822, p. 210-211. 363 Idem, Ibidem. 361 145 A natureza já impunha barreiras que indicavam a necessária separação entre os espaços. Os “emperrados”, porém, na sua “louca pretensão de domínio”, não utilizam a razão para justificar uma união a que se impõem barreiras naturais; em seu lugar, os argumentos giram em torno do apelo a justificativas históricas “indignas do presente século”, que fortalecem uma tradição que é de opressão, e não de liberdade. E, se assim agem, é porque a liberdade apenas fortaleceria o argumento natural, ao invés de contradizê-lo. Afinal, como afirma Infante, é impossível que haja união moral entre os dois países [Espanha e Novo Mundo]: porque se as instituições são liberais, nos pontos extremos hão de facilitar insensivelmente a separação natural, que existe; e se opressivas, produzindo uma explosão mais pronta, hão de causar a seu tempo o mesmo efeito.364 Apenas a opressão poderia tentar contrariar a natureza – e, mesmo assim, a outra natureza, a do coração dos homens, a liberdade, faria tal mecanismo despótico explodir. Como comenta o Reverbero, na nota 5 a essa passagem acima, este argumento não tem volta; a emancipação das colônias está baseada na Natureza, é uma progressão do desenvolvimento das suas forças. A Ave ainda implume ensaia-se para voar, parecendo tardar-lhe o momento de fugir da dependência. A sujeição é um ato de coação, é um estado de violência, tanto no físico como na moral. 365 Nada poderia o Velho Mundo fazer; o resultado afigurava-se inevitável. Chegara o momento do definitivo rompimento. Se ao longo de todo o Reverbero a colonização europeia na América produzira uma tensão entre a perspectiva dos “três séculos de opressão” e a da chegada da civilização, agora a primeira superava em definitivo a segunda, inclusive expondo os resultados que a modernidade política havia imposto sobre a massa de colonizados, de que tratamos no começo desde capítulo. Para Infante, ao não se adotarem as razões filosóficas que explicava, vários resultados podiam ser observados na relação Europa-América, dos quais os dois primeiros tocavam mais diretamente na produção da massa de colonizados: 1º que a Conquista daqueles países [América], sob capa de Religião, produzisse o extermínio de vinte milhões de almas, segundo a relação do Venerável – Las Casas, - que ainda quando fosse exagerada, dá contudo ideia de haver sido o maior, que a História de todos os séculos apresenta, e de que o absoluto desaparecimento dos Indígenas nas Antilhas todavia convence. 2º Que o resto desses miseráveis fossem 364 365 Idem, p. 212. Idem, Ibidem. 146 condenados à mais dura escravidão, sem que bastassem as repetidas ordens dos Reis Católicos, os esforços pessoais do mencionado Bispo, e o arbítrio de substituir os negros d´África, o que foi querer remediar um com outro mal igual, ou pior por suas circunstâncias, ficando em pé a essência, como bem se convencerá todo o que for ao Continente Americano ver o tratamento, que se dá aos Indígenas. Para o Reverbero, na nota 07 ao trecho acima, cabiam as palavras de Eneias ao narrar a morte de Laocoonte, na Eneida, de Virgílio: Horresco referens!, “Horrorizo-me a narrar!”. A referência antiga, cujo uso retórico comum aproximava-se de um efeito satírico, abria uma interpretação crítica da presença europeia na América, incluindo o Brasil no quadro descrito por Infante: Horresco referens! A humanidade estremece à vista do quadro infernal de atrocidades cometidas na América! O sangue inocente clama vingança diante do trono do pai universal dos homens!.. “A América há de ser livre” Tal é o decreto da providência, em cujo nome se cometeram monstruosos atentados. “O Brasil há de ser livre” os que teimam em lançar-lhe os ferros, contem governar sobre montões de ruínas, se contra todos os humanos cálculos, conseguirem oprimir a nossa com a sua força. Que arranquem, se podem, do nosso seio o sagrado penhor da nossa Liberdade! Que nos despojem do heróico desejo, e da nobre determinação de sermos livres, apesar dos maiores sacrifícios! Em sua raiva eles se assemelham ás ondas enfurecidas, que se encapelam arrogantes contra a grande Pedra, que marca aos navegantes a nossa barra, e ao Mundo todo a nossa firmeza. 366 A Europa estacionara a América, na lógica de Infante. A América havia “deixado de progredir na nova ordem de coisas, que adquiriam depois do descobrimento e possessão pelos espanhóis”, enquanto “os pontos abandonados, por menos estéreis” haviam “florescido incomparavelmente em mãos de estrangeiros, pela doçura da Administração, ou por sua oportuna emancipação.” 367 “E que dirá a isto o Brasil?”, questionaria o Reverbero. Para o periódico, o quadro pintado por Infante era ainda pior para a ex-colônia portuguesa, uma vez que ela encontrava-se no centro do Globo; em frente da Europa e da África; no caminho da Ásia; possuindo os melhores Portos; cortado dos maiores Rios; coberto das mais preciosas Florestas; poderoso com opulentas Minas; sem par pela fertilidade do seu solo; apreciável pela salubridade e doçura do seu Clima... E [estava] acanhado e envenenado nas fontes da sua própria grandeza, pelo terrível governo que o oprimiu há três séculos!!! E ousam lançar-nos em rosto o nosso estado? E dele se prevalecem para argumentarem a favor de um novo e mais terrível despotismo? Que 366 367 Idem, p. 213. Idem, p. 213-214. 147 maldade! Mas nós podemos responder-lhes com o Poeta de Augusto. – „Libertas, quae será tamen respecti inertem. 368 A situação precária do controle metropolitano, impedindo o pleno exercício de todas as potencialidades americanas, somada às razões naturais, produziam os elementos da emancipação. E isso não era daquele momento; não era produto do calor dos acontecimentos recentes (lembrando que escreveu Infante em 1820). Tal situação já vinha de muito tempo, e o autor cubano recua mais de um século para dizer que já na Guerra de Sucessão espanhola, no começo do setecentos, se apresentara ocasião para “sacudir o jugo” metropolitano, e que se nela a América foi simples expectadora da contenda, e sujeitou-se ao vencedor, [foi] porque estava ainda impúbere, isto é, não tinha todo o vigor, ilustração, e peso necessário para a sua emancipação; porém, ao invadirem os franceses a Península, quase todas as províncias da América, sem poderem pôr-se de acordo, em razão das distâncias, deram um mesmo e simultâneo grito, por haverem já saído da infância, ou o que vale o mesmo, por terem já luzes, madureza, e consistência, que produzem inevitavelmente a emancipação O contexto da Guerra de Sucessão não era favorável; o mesmo não ocorrera com a invasão napoleônica. A diferença, porém, era simplesmente de acumulação temporal, de desenvolvimento das forças internas associadas ao desenvolvimento natural da História. Quando as condições apresentaram-se próprias, o movimento natural da liberdade contra o despotismo produziu seu grito e rompeu em definitivo os grilhões. O mesmo valia para o Brasil, segundo o Reverbero, cujos editores foram buscar seu exemplo de possibilidade anterior noutra guerra de sucessão, esta ainda anterior: 1640. Se, como vimos no capítulo anterior, o periódico já recorrera a esse exemplo para conectar o movimento do Porto, tratando ambos como instantes de exercício da liberdade contra a opressão, nos quadros de uma narrativa da história que misturava a trajetória brasílica à portuguesa, agora o mesmo acontecimento era referido exclusivamente ao Brasil: O Brasil também suportou o jugo do domínio espanhol, e as vicissitudes da guerra, que à Espanha fazia a Holanda (tendo arvorado o estandarte da sua Liberdade,) porque o seu estado de luzes e de vigor, que andava na proporção do ciúme das Metrópoles para com as Colônias, não lhe franqueava a precisa energia para então soltar o grito da Independência; e se o não soltou quando a América Espanhola declarou, que era chegada a hora da sua virilidade, foi porque então viu o mundo um espetáculo novo; isto é a passagem do rei para o Brasil, passagem que 368 Idem, p. 214, nota 09. 148 mudou inteiramente o regime Colonial, que quebrou os ferros da opressão de três séculos, e fez partir do trono aquela obra, que sem isso partiria da Revolução. Mas para evidenciar-se que a Independência da América é um efeito necessário da sua atual civilização, bem que ainda inferior à da Europa, atendam-se às circunstâncias do Brasil, o Rei que saindo de Portugal sustou a Revolução do Brasil com a sua chegada a ele, voltando a Portugal, apressou a Revolução do Brasil, apesar das promessas lisonjeiras dos Deputados Europeus no Congresso de Lisboa. Este sucesso, favorecido grandemente pelo partido de certos homens, que se fizeram Oráculos naquele Congresso, nasce principalmente da irresistível tendência de todas as Colônias para a sua liberdade. Ferve já a impaciência nos corações Brasileiros, e ferve estimulada pela injustiça com que são tratados pelos que se apregoaram seus Irmãos.... Tardalhes o momento de verem instalada a sua Grande Assembleia, para firme segurança de seus foros, como Cidadãos de um poderoso Império!... Não nos esqueça porém que o Rei deixando nosso legítimo herdeiro do trono português, para reger esta parte tão considerável da Monarquia, deixou-nos por isso mesmo uma certeza de que prezava o amor dos Brasileiros para com a Augusta Cada de Bragança. Se hoje sem vontade, e quase mesmo que sem aquela Liberdade, que em Portugal se concede a todos, ele não pode dizer-nos: „Brasileiros, obedecei a meu Filho, segurai com ele a integridade da Monarquia, que certos homens têm determinado aniquilar‟, nós o presumimos por tantas ações do congresso, e dando vivas ao Príncipe, damos por isto mesmo ao Rei, à sua Augusta Dinastia, e ao Reino do Brasil, que salvará pela sua próxima Constituição, a honra e a glória da nação Portuguesa. Os que aclamaram o Sr. D. João 6º, aclamarão também o Sr. D. Pedro, e só por este ato, se decidirá onde deve se a sede da monarquia, que o Congresso de Lisboa legislou sem audiência dos nossos deputados. 369 Na longa referência, podemos perceber quatro momentos distintos que apontam para instantes de luta do Brasil pela sua liberdade. O primeiro, já referido, é 1640, ocasião na qual a distância entre o Brasil e sua independência era marcada pela impossibilidade, haja vista a ausência das necessárias energias (“estado de luzes e de vigor”) para efetuar o rompimento. Já ali, porém, admite-se uma autonomização para a trajetória brasílica – o que não existia nas narrativas iniciais do Reverbero, que, como dito, tratavam esse momento como a luta portuguesa pela sua liberdade. O segundo momento é aquele no qual encontrava-se também a América Espanhola, conforme analisado por Infante: o contexto das invasões napoleônicas, momento no qual a América já estava madura o bastante para o grito de liberdade, que foi sustado no Brasil, porém, devido ao “espetáculo novo” da vinda da Corte, quebrando os ferros da opressão e possibilitando as transformações desejadas a partir do trono, evitando que se partisse da Revolução. Nota-se, novamente, a possibilidade aberta das vantagens da liberdade sem os riscos revolucionários, entendendo-se, também, que a Revolução posto fosse 369 Idem, p. 214-215, nota 10. 149 direito da liberdade quando sufocada, não era o caminho mais desejado, se fosse possível alcançar os resultados de outras maneiras. O terceiro momento encontrava-se no retorno do Rei a Portugal, que, invertendo a lógica transformista-reformista, interrompeu momentaneamente o “espetáculo novo”, apressando – acelerando – a “Revolução do Brasil”. A ideia de velocidade é interessante: o fantasma revolucionário estava sempre à espreita e faminto; o esforço para contê-lo era uma constante necessária, sua suspensão podendo acarretar não apenas a volta do perigo da Revolução, mas, acima disso, a volta acelerada, buscando recuperar o tempo perdido e conferindo ainda mais insegurança ao rumo dos acontecimentos. Por fim, o último momento, aquele em que escreviam, apontava o futuro: a integração à persona de Dom Pedro assumiria o barco e evitaria os riscos futuros. A continuidade interpretativa projetava para o futuro a grandiosidade das transformações que se narrava sobre o passado.370 A prudência era necessária. Infante, em seu texto, apontava para o fato de que o descrito sobre a América Espanhola espalharia-se por todo o continente em questão de tempo, “pela lei imperiosa do exemplo e imitação, e porque este acontecimento está na ordem necessária dos acontecimentos humanos”. 371 Portugal não fora prudente. Já a Inglaterra, segundo os editores do Reverbero, não seguiria o mesmo caminho, abstendose de tratar com brutalidade a inevitável emancipação dos demais povos seus na América. “Podem os Ingleses cercar com os seus muros de pau o Canadá e a Nova Holanda; poderão eles mudar as Leis da Natureza?”, questiona o Reverbero na nota 11. Claro que não. Pelo contrário: “a Inglaterra hoje muito mais prudente, não tentará Na nota 12, na mesma edição, o Reverbero afirma: “Eis aqui uma grande vantagem da Monarquia Constitucional no Brasil, e é, que este sistema há de consolidar-se mais facilmente por isso que a passagem para ele é menos violenta, do que para a Liberdade absoluta, e principalmente deixando-nos a Providência em nossos braços o Herdeiro do trono Português, o Príncipe, que tão digno se tem mostrado do nosso amor e dos nossos sacrifícios. Com este Penhor Respeitável por tantos títulos, não importa que as Províncias do Maranhão e do Pará ainda se não coligassem; elas virão de certo. A suíça viu no fim de duzentos anos aliarem-se os seus últimos dois Cantões. Dado um centro no Brasil, é de absoluta necessidade que as suas partes gravitem para ele. Que importa que os Monstros raivem na Bahia, e que imorais, mentirosos, estúpidos redatores, com discursos de Cabo de esquadra, e com argumentos de Taberna, ali os açulem a derramar sangue brasileiro? Cada tiro que disparam é um cravo de diamante com que mais seguram em nossos corações a Liberdade, a Independência, e o Amor ao Grande Pedro. Que importa, que víboras disfarçadas, semeiem entre nós a intriga, a desconfiança e a calúnia, conversando e comendo conosco, e ao mesmo tempo vendendo-nos para Portugal, com informes atraiçoados [217], e com relações de partidos, que ou não aparecem, ou são desprezados, por isso mesmo que são pouco temíveis? O Sol nunca fulge tão radioso, se não depois que rasga espessas aglomeradas nuvens, que por algum tempo ousam roubar-lhe a sua primeira luz. Brasileiros? Nada temamos, a Causa da Liberdade é Causa do Céu, os que a defendem triunfam sempre: e a dificuldade dos triunfos não realça consideravelmente a glória de quem os consegue?...” 371 RCF, Tomo Segundo, Número 17, 17 de setembro de 1822, p. 215. 370 150 repetir as cenas de Boston, lembrando-se que as ocasiões oportunas fazem sempre aparecer Franklins, Penns, e Washingtons”.372 A bola estava com a América no jogo de forças, segundo a interpretação do Reverbero. Mas por que a Europa insistia tanto em negar isso? Ora, a América não poderia aparecer como um cão implorando atenção de seu ex-dono. O nãoreconhecimento da América não era fator decisivo na retórica do Reverbero; era simples aceitação da ordem das coisas. Afinal, questionam os redatores, “pode a Europa impedir que a América exista?” E continua: Que lhe pode dar? Que lhe pode tirar? Quem duvidará de fornecer à América, o que ela pedir, ou carecer? Se a América insiste pelo seu reconhecimento, não é por interesse próprio, porque nenhum daí lhe vem: é só para sistematizar uma ordem de relações, que não podem persistir equívocas entre dois Mundos. O comércio da Europa vai correr para a América: inumeráveis relações, vão formar-se entre os dois continentes. A América tem o direito de dizer – Antes de pisar este solo, declarai-vos seu protetor, eu reconheço vossos direitos, reconhecei vós os meus, ou sai. – E se a América, como já disse um de seus enviados em uma sua nota, não reconhecer também os Estados da Europa, que lhe recusarem o seu reconhecimento! ... Veremos uma parte do Mundo desconhecer a outra... Que extravagante espetáculo! Que desordem sob o pretexto de procurar-se ordem!373 Ao não aceitar a ordem das coisas, a Europa produzia um “extravagante espetáculo” que poderia gerar ainda mais desordem. E o grande motivo para isto “é o hábito das ideias de domínio que ela teve na América: custa-lhe a largar a supremacia que teve empolgada, que foi fruto dos tempos, e da irreflexão. Quem dominou retém sempre saudades do domínio.”374 Isso apenas invertia a nova relação entre as partes do mundo. Recuperando o exemplo dos EUA, afirmaria o periódico: Os Governos Europeus abundam de obstáculos, que os Estados Unidos têm a ventura de nem suspeitar que existem. Eles não conhecem nem santa aliança, nem corte, nem antigos colonos, nem famílias privilegiadas, nem classes preponderantes, nem proselitismo religioso, nem uma só parte das formalidades Europeias: quando tem que tomar alguma resolução não consultam o protocolo das etiquetas, consultam somente seu interesse, sua natureza, e sua moral. Ora sobre uma estrada tão plana, tão bem nivelada por força que se há de marchar segura e rapidamente. Com grossas bagagens diplomáticas leva-se um século para dar um passo.375 372 Idem, p. 216. RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 245-246. 374 Idem, p. 246. 375 Idem, ibidem. 373 151 As vantagens americanas sobre a podridão e tradicionalismo europeus eram evidentes; as amarras europeias travariam seu progresso na mesma ordem de velocidade que poderia derramar-se sobre a América. O exemplo dos Estados Unidos saída do acontecimento da emancipação e entrava na questão social. E, assim, generalizando-se para toda a América, tal vantagem social oferecia uma maior condição de forças à América. Não apenas a civilização poderia existir nesta, como, àquele momento, passava-se a imagem de que ela poderia desenvolver-se mais na América. O Novo Mundo tinha a vantagem. Na posição vantajosa em que se acha, a América não pode deixar de saber que ela é a Senhora da decisão, e que ela é que deve impor a lei. Há oito anos, que São Domingos disse à França – Reconhece a minha independência, e o teu pavilhão será depois recebido nos meus portos.376 Trazer o exemplo de São Domingos para reconhecer uma vitória e uma superioridade americanas à Europa poderia aparecer, inicialmente, como um risco. Afinal, simbolizava uma ruptura da contra-modernidade que ia diretamente contra todo o esforço argumentativo do Reverbero.377 Mas o risco era apenas aparente. A questão escrava era silenciada no exemplo, aparecendo o Haiti apenas como o espaço que venceu a França. Não à toa, o momento da resistência era travado em 1814, e não para o turbilhão revolucionário – a invasão de Leclerc é de 1801. Expliquemos melhor essa questão. O próprio Infante, também usando o Haiti para argumentar contra a postura espanhola, afirmou: A Espanha por fim se arruinará inutilmente com semelhante empenho de reconquistar a América, bastante para convencer-se desta verdade o caso recente da França com a parte da Ilha de S. Domingos, que foi sua, e teve de ceder à gente de cor que a defendia depois de perder cem mil homens pouco mais ou menos, e gastar imensas somas estabelecendo por fim com aqueles habitantes, relações mercantis úteis a ambos os povos.378 Ainda que houvesse acrescentado o “gente de cor”, nenhuma palavra sobre escravidão e sua relação com a revolução em São Domingos aparece no trecho acima, nem em outro trecho qualquer do documento. A questão haitiana é restringida na ideia de colônia x metrópole, fundamentando-se a argumentação na ideia de que uma parte da ilha, pertencente à França, houvera-se levantado contra a opressão e vencido tentativas 376 Idem, p. 248. Discutiremos melhor essa questão no capítulo final desta tese. 378 Idem, p. 248-249. 377 152 de recolonização. O comércio, restituído depois, é sobreposto a qualquer conflito racial ou ligado à escravidão; o Haiti aparece como mais um espaço da luta colônia x metrópole, sustentando, por aproximação, o risco a que estavam sujeitos os europeus caso não aceitassem a inevitabilidade da emancipação. A lógica dessa liberdade contra a opressão metropolitana subordinava a opressão oriunda do mundo da escravidão, e a massa de colonizados que promovera a revolução era reduzida à percepção de colonos em luta contra os opressores europeus. 379 Ficava subentendida, portanto, a questão escravista – muito mais significativa, aliás, para os senhores da América do que para qualquer força europeia. Ao silenciar sobre a escravidão, o Haiti aparecia como mais um espaço em luta pela liberdade entendida como emancipação colonial. Ameaçava-se a Europa com um exemplo assustador para os senhores; tranqüilizava-se os senhores com o abafamento das razões escravistas. Assim é que a nota 25 dos redatores do Reverbero, ao trecho mencionado acima de Infante, afirma que Também entre o Brasil e o Portugal está feita a separação. A Independência do Brasil é um desses acontecimentos necessários, que nenhuma força humana pode obstar. Debalde diga o Deputado Girão, energúmeno, ou doido, que se o Brasil se declarar independente, ou a mãe pátria usará de seus direitos, ou nações ambiciosas irão colonizar as suas províncias, ou os escravos renovarão as horrorosas cenas de S. Domingos. Esteja descansado o Sr. Girão, que apesar dos seus vaticínios, e dos seus gritos, não lhe havemos dar o gosto de ser testemunha do nosso opróbrio nem da nossa obediência a ele, e aos cem lobos do deu partido. Três vezes tem as forças européias já sido repelidas do Brasil: os povos que se propõem a defender a sua liberdade são invencíveis:380 Antônio Teixeira Girão, deputado português das Cortes, membro do grupo dos “integracionistas”381, como tantos outros deputados portugueses, apelava, em Portugal, à ameaça do Haiti para reforçar o sentimento anti-Independência do Brasil. 382 A emancipação, para Girão, segundo acusam os articulistas do Reverbero, reproduziriam Para a distinção entre “colonos” e “colonizados”, novamente remeto a MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 33-40. 380 RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p.250, grifos meus. 381 Ou seja, aqueles deputados portugueses nas Cortes que desejavam a manutenção da união portuguesa em torno de uma concepção de nação única, que não se restringia ao território de Portugal, mas o ultrapassava, aproximando-se da concepção imperial. Cf. BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822. São Paulo: HUCITEC, FAPESP, 1999, p. 94-95; RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil. In: Caderno Cedes, Campinas, v. 22, n. 58, dezembro de 2002, p. 25. 382 Para o uso do Haiti como argumento, cf. BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, p. 158-159. Voltaremos à questão no último capítulo. 379 153 no Brasil as “horrorosas cenas de S. Domingos”. Era um nível de ameaça muito acima dos riscos de anarquia produzidos na América Espanhola, e cujos exemplos, como vimos, serviam retoricamente de guia para a sua prevenção futura no Brasil. Neste caso, o único exemplo concreto de “horrorosas cenas” tais como as do Haiti era... o próprio Haiti. Contudo, diferentemente da América Espanhola, que era discutida abertamente como passado-futuro brasileiro, a Revolução Haitiana era alvo da produção de uma filtragem que buscava tanto reduzi-la em sua densidade – o próprio termo “revolução” era evitado para a ela se referir – quanto no seu impacto – desviando-se a discussão sobre ela para aspectos não diretamente relacionados à violência contra os senhores. 383 Assim, a ameaça produzida discursivamente nas Cortes, atrelando a Independência do Brasil ao risco de um levante tal como o de S. Domingos, era algo a ser combatido intensamente. Tendo isso em vista, a continuação do trecho destacado do Reverbero continua a comentar a fala de Girão, indicando outros elementos: Toquemos porém de passagem nas duas outras razões do Sr. Girão: Qual será a nação que fará a conquista do Brasil, dizemos mal, que empreenda a invasão do Brasil? A única pela sua poderosa Marinha seria a Inglaterra: mas esta sabe melhor que ninguém que uma semelhante empresa era contrária aos seus interesses: conhecer que o comércio com o Brasil lhe produz maiores vantagens do que produziria a sua conquista. O povo inglês e o seu Governo tem íntimos e grandiosos sentimentos de justiça para tentar uma ação que o cobriria de vergonha, e destruiria, sem utilidades, nem garantias equivalentes uma das mais ricas fontes do seu comércio. Todas as outras nações só metem medo aos Srs. Girões. Continuam a falar de escravos. Cumpre dizer aos Srs. Das Cortes o que eles talvez não saibam: os Escravos têm repartido o nosso ódio para com elas: escusam portanto de nos estar ameaçando com este mal, nem mesmo de estar formando planos a esse respeito: temam que o feitiço se não volte contra o feiticeiro.384 Analisando a passagem grifada no trecho acima, Gladys Ribeiro afirma que tal indicava o quanto os articulistas do Reverbero “reconhecia[m] que os escravos não eram passivos diante dos últimos acontecimentos, sabiam o que estava em jogo naqueles dias”. Tal percepção abarcava, ainda segundo a autora, um universo de referências que ia das disputas no mercado de trabalho em formação na cidade do Rio de Janeiro, via 383 Nas transcrições do Correio Braziliense dos debates ocorridos nas seções das Cortes a respeito de São Domingos, por exemplo, segundo, o termo “revolução” não era usado na descrição, preferindo-se “sublevação”, “insurreição” etc. Cf. FREITAS, Soraya Matos de. Nas entrelinhas da revolução: o dito e o não-dito nas páginas do Correio Braziliense e na Gazeta do Rio de Janeiro sobre a Revolução Haitiana (1808-1817). Dissertação de mestrado. São Gonçalo, RJ: UERJ, 2010, p. 25. 384 RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 250-251, grifos meus. 154 competição entre portugueses imigrantes pobres e forros e/ou escravos de ganho, até a formação de batalhões de pardos para defesa da Independência política. 385 Não tencionamos, aqui, contrariar o apontamento. A participação de escravizados e libertos no processo de emancipação política do Brasil já foi analisado em diversos trabalhos. 386 O ponto, aqui, é outro: ao afirmar que “os escravos têm repartido o nosso ódio para com elas”, as Cortes, os redatores produzem uma aproximação que, diluindo, ou dissolvendo as tensões inerentes ao escravismo e ao conflito classista entre colonizadores e colonos, prioriza uma espécie de identidade a unir ambos os grupos em torno do mesmo objetivo: a independência nacional, que acabava unindo as modernidades conceitual e política da ideia de “nação” à reafirmação da subordinação de todos, escravos e senhores, à monarquia constitucional que nascia. Em outras palavras, na análise que vimos empreendendo até aqui, a narrativa da Independência chegava ao seu ápice, no momento em que, invertendo os termos dos riscos a que estavam submetidos os senhores desde, ao menos, o Haiti – entendido tal risco como uma imensa Revolução escrava –, o Reverbero aproxima cativos e senhores no mesmo lado da moeda contra o colonizador português, identificado com as Cortes. Essa aproximação, tendo em vista a importância atribuída, nos discursos até aqui analisados, à monarquia constitucional como elemento indissociável da ruptura, reafirmava o sentimento nacional de todos contra os portugueses, ainda que, para a massa de escravizados, o que restaria, ao fim, seria apenas a não-identificação com o “ser brasileiro”, conforme analisaremos futuramente. Mas, para o momento, a aproximação serviria bem aos anseios do periódico. Portugal estava encurralado. Seu principal argumento esvaía-se. Só restaria ao Reverbero lamentar: “De nada lhe servirão as lições da História? De nada a experiência dos males alheios?”387 A independência apresentava-se como consumada. Sua narrativa também. O Reverbero cumprira seu papel, finalizando suas análises a 8 de outubro de 1822, um mês após o “Sete de Setembro”, cuja construção simbólica não ajudaria a consolidar, ficando para um momento futuro. A visão presente no Reverbero – e em outros periódicos semelhantes à época – moldou uma perspectiva que, posteriormente, seria abordada, à época e RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo de liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil... op. cit., p. 36-38. 386 Dos quais o de maior destaque talvez seja o de REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 79-98. 387 RCF, Tomo Segundo, Número 20, 08 de outubro de 1822, p. 249. 385 155 historiograficamente, como simbólica do “liberalismo moderado”. Não obstante estivesse longe de ser a única presente, predominou nas discussões abertas na virada do começo dos anos 1820, no momento de rompimento político com Portugal. Seria uma narrativa incorporada o discurso político oficial e talhada para tornar-se referência central nas discussões ao longo da década seguinte. Isso especialmente entre o rompimento definitivo e a consolidação do Primeiro Reinado, como veremos no próximo capítulo. 156 Parte II: Referências em disputa no Império do Brasil 157 Capítulo 4: Comprimindo interpretações ao redor da Independência No capítulos dois, analisamos como a narrativa da história da civilização, como história da liberdade em luta contra o despotismo, encontrou seus fundamentos no momento da Independência; da mesma maneira, no capítulo 3, refletimos sobre como a América, em geral, e o Brasil, em particular, encaixavam nessa trajetória. A interpretação da ruptura veiculada em periódicos como o Reverbero fundamentou as discussões ao longo de toda a década de 1820, especialmente nos debates parlamentares. Como já tivemos a oportunidade de analisar no capítulo um, deputados e senadores traziam a História à discussão em seus discursos, bem como debatiam sobre o valor dos eventos passados para criticar ou reforçar pontos de vista a respeito de projetos políticos a implementar. Neste capítulo, vamos analisar como se dá essa passagem, ou seja, a incorporação do discurso do momento de ruptura às discussões parlamentares. O Reverbero foi escolhido para análise por seu caráter representativo de certo liberalismo que se construía, conforme a historiografia do período não cessa de apontar. Aqui, iremos além do periódico para analisar os primeiros espaços mais institucionais do discurso político na Independência, tanto em torno da figura de Dom Pedro quanto ao redor da Assembleia Constituinte de 1823, bem como o início da experiência parlamentar corriqueira, em 1826. 4.1) Incorporando oficialmente a narrativa da Independência: O processo de Independência do Brasil, inserido na lógica mais ampla da Crise do Antigo Sistema Colonial e da Era das Revoluções, conforme visto anteriormente, fez parte daquilo que David Armitage chamou “epidemia de soberania”, que teria sido, na visão do historiador, desencadeada especialmente após a Revolução Americana, em 1776. Nessa lógica, a proliferação de Estados nascidos dos antigos Impérios significava a transição da sujeição para a independência, havendo surgido, também, uma multiplicidade de declarações de independência que, no modelo da americana, seriam simultaneamente sintomas e diagnósticos dessa epidemia nos dois séculos seguintes à independência das 13 colônias388. 388 ARMITAGE, David. Declaração de Independência: Uma História Global. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 89-90. 158 O texto original de Armitage, ao final, traz anexos alguns exemplos de declarações, como a própria original de Thomas Jefferson. A edição brasileira da obra inseriu um apêndice contendo o que seriam documentos equivalentes às declarações para o caso brasileiro. Havendo o Brasil realizado um “processo sui generis, movimento de forças locais em torno do filho do soberano metropolitano”, a Independência aqui “não tem um único documento simbólico, mas uma série de atos normativos, que refletem o processo de emancipação gradual, e um marco simbólico, o Sete de Setembro, só posteriormente erigido pela memória oficial ao Dia da Independência” 389. A ausência de declaração oficial justificaria, assim, a escolha por alguns seus equivalentes. Na lógica apresentada por Armitage, seriam sintomas e diagnósticos de nosso processo. Quais diagnósticos aparecem nos documentos escolhidos? A própria seleção já mostraria uma linha narrativa: convocação da Assembleia Constituinte, em 1823, comunicação pessoal de Dom Pedro a seu pai, Dom João VI, aclamação do Imperador, em outubro, e o reconhecimento, por Portugal, da Independência, em 1825390. Nessa linha narrativa, a Independência aparecia como fruto inicialmente da ação de Dom Pedro, atendendo, à vontade do povo, tendo em vista a “mantença da integridade da monarquia portuguesa”, na direção da convocação da “Assembleia LusoBrasiliense”. Esta seria investida da porção de soberania que residia no povo “deste grande, e riquíssimo continente”, a fim de construir a sua independência, “que a Natureza marcara, e de que já estava em posse, e a sua união com todas as outras partes integrantes da Grande Família Portuguesa, que cordialmente deseja” 391. Em seguida à convocação, o segundo documento, a carta a Dom João VI, explicaria as razões pelas quais o passo seguinte rumo ao rompimento havia sido dado: a ação das Cortes e os “infames deputados europeus e brasileiros do partido dessas despóticas cortes executivas, legislativas e judiciárias”, além de manterem o próprio Dom João VI sob coação, cujo estado fazia o rei “obrar bem contrariamente ao seu liberal gênio”, também tencionavam travar a “santa causa [que] não retrogradará”, levando os brasileiros à situação de fazerem triunfar a Independência ou morrer no caminho. Afinal, “Se o povo de Portugal teve direito de se constituir revolucionariamente, está claro que o povo do 389 Idem, p. 201. Os documentos respectivos são: Decreto de 3 de junho de 1822, Carta de d. Pedro I a d. João VI, Império do Brasil. Ata da aclamação do senhor D. Pedro imperador constitucional do Brasil, e seu perpétuo defensor, em 12 de outubro de 1822, e Tratado do Rio de Janeiro (1825). 391 Decreto de 3 de junho de 1822. In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p. 202. 390 159 Brasil o tem dobrado, porque se vai constituindo, respeitando-me a mim e às autoridades estabelecidas.”392 O direito do Brasil em constituir-se nação independente, tal como antes inscrito na natureza, agora mostrava-se fortalecido pelo respeito do povo brasileiro à ordem estabelecida, sem o rompimento revolucionário pelo qual outras nações haviam passado. “Jazemos por muito tempo nas trevas, hoje vemos a luz”, afirmaria Dom Pedro.393 E a aclamação, em 12 de outubro, apenas confirmaria que o caminho para a luz, segundo declararia o próprio governante a respeito da vontade da população, passava pela sua titulação. Apenas assim, como desejaria o artigo 4° do tratado de reconhecimento, seria possível o “total esquecimento das desavenças passadas” rumo à paz, aliança e amizade dali por diante entre os dois povos 394 . Completar-se-ia, assim, a Independência do Brasil. A linha narrativa exposta na seleção de documentos presente na obra de Armitage não é fortuita. Como podemos perceber, seu delineamento refere-se a uma construção específica presente naqueles velozes anos entre 1821 e 1822: uma construção específica que parte da defesa da manutenção do Império Português e chega no rompimento, culpando as Cortes por sua atuação despótica, produzindo simultaneamente a persona de Dom Pedro à frente do processo de separação, apoiado no povo brasileiro, cujo brio coloca em evidência as duas alternativas possíveis: independência ou morte, no cumprimento daquilo que jazia inscrito na própria natureza do território (e que encontrava-se escondido sob as trevas do passado) dentro de uma lógica de marcha para o progresso. Essa linha narrativa era a presente no Reverbero, bem como em outros periódicos e folhetos da época, e seria a linha central de interpretação seguida por aqueles que se aproximaram de Dom Pedro ao longo dos acontecimentos. Mas a própria linha narrativa construída ao redor de Dom Pedro I não nasceu pronta. Ao contrário: a leitura das várias proclamações produzidas pelo então Príncipe Regente e dirigidas a diversos públicos ao longo de 1822 mostra as mudanças pelas quais as percepções dos acontecimentos passavam. A distância entre aquela linha narrativa e a proclamação de 12 de janeiro de 1822, por exemplo, é patente. Nesta, Dom Pedro dirige-se aos habitantes do Rio de 392 Carta de d. Pedro I a d. João VI. In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p. 204-205. Embora não houvesse sido aclamado à época de escrita da carta, é com o título que a mesma é nomeada no livro. 393 Idem, p. 205. 394 Tratado do Rio de Janeiro (1825). In: ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., p. 212. 160 Janeiro a fim de comunicar que a representação por eles levada à Real Presença, a representação que resultou no Fico, “está longe de ser um princípio de separação, que ela vai unir com laços indissolúveis o Brasil a Portugal.” 395 Ao contrário: deixa claro o Príncipe Regente, aos brasilienses, que “não penseis em separação, nem levemente; se isso fizerdes, não conteis com a Minha Pessoa; porque ela não autorizará senão ações,que sejam baseadas sobre a honra da Nação em geral, e sua em particular.” 396 União, tranqüilidade e honra: eis as palavras que presidem o posicionamento institucional naquele momento, somando-se à postura dos periódicos e panfletos que, a exemplo do Reverbero, já visto, defendiam a união entre as partes, com igualdade de direitos, como o caminho a seguir para conduzir o Brasil na marcha de seu desenvolvimento. Em discursos de 9 e 17 de abril, dirigidos aos mineiros, Dom Pedro ressaltaria esse posicionamento, declarando que “os ferros do despotismo começados a quebrar no dia 24 de agosto no Porto”, que àquele momento rebentavam em Minas Gerais, traziam a necessidade de que os mineiros unissem-se com o Príncipe, confiando e não se deixando “iludir por essas cabeças que só buscam a ruína da vossa província e da Nação em geral”397. Os destinos das localidades eram os destinos de todo o conjunto do Império Português. Interpretações distintas daquele tempo não teriam lugar. Como afirmaria Dom Pedro, As convulsões políticas, que ameaçavam esta província fizeram uma impressão em meu coração, que ama verdadeiramente ao Brasil, que me obrigaram a vir entre vós fazer-vos conhecer qual era a liberdade de que éreis senhores, e quem eram aqueles que a proclamavam a seu modo, para extorquirem de vós riquezas e vidas, não lembrados, que vós não serieis por muito tempo sofredores de semelhantes despotismos. Raiou enfim a liberdade, conservai-a.398 Qualquer alternativa àquele preciso entendimento sobre a liberdade que se derramava sobre o Brasil naquele momento era perniciosa. Se entre vós alguns quiserem (...) empreender novas coisas, que sejam contra o sistema da união brasílica, reputai-os imediatamente terríveis inimigos, amaldiçoai-os e acusai-os perante a Justiça, que será pronta a descarregar tremendo golpe sobre monstros, que horrorizam aos mesmos monstros. Vós sois constitucionais e amigos do Brasil. Eu não Proclamação – de 12 de janeiro de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 119. Idem, ibidem. 397 Falla – de 9 de abril de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 122. 398 Proclamação – de 17 de abril de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 122-123. 395 396 161 menos. (...) Uni-vos comigo, e desta união vireis a conhecer os bens, que resultam ao Brasil399 O decorrer dos acontecimentos, porém, como nos jornais, transformaria os posicionamentos oficiais. Fissuras começariam a aparecer no discurso, ameaçando o tom de união e exigindo maior destaque para a necessidade de moderação. E já em primeiro de junho, em proclamação aos brasileiros, tal apareceria no discurso do Regente: A nossa pátria está ameaçada por facções: preparam-se ao longe ferros para lhe serem suas mãos agrilhoadas (e no tempo da Liberdade!! Que desgraça!). (..._ Quem diz – brasileiro – diz – português – e prouvera a Deus que quem dissesse – português – dissera brasileiro. Firmeza, constância e intrepidez na Grande Obra começada. Contai com o vosso defensor perpétuo, que há de em desempenho da sua palavra, honra e amor do Brasil, dar a sua vida, para que o Brasil nunca mais torne a ser nem colônia, nem escravo, e nele exista um sistema liberal ditado pela prudência, que tanto caracteriza nossa amável pátria. 400 A caracterização do Brasil como moderado (mostrada também na expressão “Independência moderada”, que pauta a defesa da autonomia no Brasil), a insistência na prudência como caminho a seguir, a delimitação dos inimigos como sendo aqueles que buscam romper essa harmonia e o destaque dado àquilo que se tornaria inaceitável: a retrogradação ao estado de colônia e de escravidão. A viragem do discurso, da junção das partes para a separação, começava a tomar forma, uma vez que se projetava o futuro mais para a consolidação do sistema liberal no Brasil do que para a construção mais ampla da mesma na dimensão do Império Português. Ao fim do discurso, um “viva” a Dom João VI, à união “luso-brasileira” e à “assembléia geral brasiliense” (e não, como no decreto que a cria, a “assembléia luso-brasiliense”). A Assembleia, aliás, ganharia outra denominação na proclamação de 17 de junho aos baianos. Nela, após pedir ânimo à Bahia para que resistisse aos invasores do “infame Madeira”, fazendo aparecer “o valor, e intrepidez dos invictos, e imortais Camerões”, encerra-se o discurso afirmando que os “honrados brasileiros preferem a morte à escravidão”, devendo, portanto, os baianos fazer vivas à “independência moderada do Brasil”, a Dom João VI, e à “nossa Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Reino do Brasil”401. No espaço de menos de 2 meses, a Assembleia passa de luso-brasiliense para constituinte e legislativa do Reino do Brasil. 399 Idem, p. 123. Proclamação – do 1° de junho de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 123-124. 401 Proclamação – de 17 de Juno de 1822. In: CLIB. 1822, parte II, p. 125. 400 162 O caminho percorrido pela convocação da Assembleia seguia de perto as vias percorridas pelo Reverbero, que discutimos anteriormente. Não era à toa: a conectar as pontas, a influência de Joaquim Gonçalves Ledo, redator do periódico e membro do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil402, marcando, nas palavras de Roderick Barman, “a admissão dos radicais às câmaras do poder”.403 Não que tal admissão se desse sem conflitos. Voltemos, para melhor analisar a questão, à sessão do Conselho de Procuradores no contexto de convocação da Assembleia, a três de junho. Nele, a retórica faz urgir a Dom Pedro que convoque uma Assembleia Geral dos representantes das províncias do Brasil, considerando-se que “o Brasil quer ser feliz”, e que este desejo que é o princípio de toda a sociabilidade é bebido na natureza, e na Razão, que são imutáveis: para preenchê-lo, é-lhe indispensável um governo, que dando a necessária expansão às grandíssimas proporções, que ele possui, o eleve àquele grau de prosperidade e grandeza, para que fora destinado nos Planos da Providência. Foi este desejo, que há longos tempos o devorava, e que bem prova a sua dignidade, que o fascinou no momento em que ouviu repercutido nas suas praias o eco da liberdade, que soou no Douro, e no Tejo (...).404 O desejo de felicidade da nação, sendo o princípio de qualquer construção social, remetendo à necessidade de busca da felicidade presente na Declaração de Independência dos Estados Unidos, cuja fonte é a natureza e a razão, é imutável; parte própria da constituição nacional. O desejo, sendo imutável, precisa de um governo que lhe dê as necessárias condições pra alcance do máximo de grandeza e prosperidade – e, dentro da lógica já construída desde o Reverbero, tal só poderia ser realizada plenamente no Brasil pelo fortalecimento da monarquia constitucional e da presença de Dom Pedro, como elemento a conectar o futuro do Brasil ao destino traçado pela Providência. O desejo de felicidade, que fascinou o país quando da instauração das 402 Gonçalves Ledo representava o Rio de Janeiro, tendo sido convocado pelo decreto de 01 de junho de 1822. Cf. ATAS DO CONSELHO DE PROCURADORES-GERAIS DAS PROVÍNCIAS DO BRASIL. 1822–1823 (ACPG), SESSÃO N. 1 – A DOIS DE JUNHO DE 1822. In: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS1Conselho_dos_Procuradores_Gerais_das_Provincias_do_Brasil_1822-1823.pdf , p. 44 403 BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 93. Para o autor, os radicais já vinham tendo preponderância no processo desde, ao menos, os eventos de maio, com o oferecimento do título de Defensor Perpétuo a Dom Pedro e a petição pedindo a convocação de uma Assembleia separada no Brasil. Petição, aliás, redigida pelos próprios Januário da Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo – da lavra deste sendo ainda, o decreto de convocação da constituinte. Cf. LIMA, Oliveira. O Movimento da Independência, 1821-1822. 6ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 302; 309. 404 ACPG, Sessão n. 2 – a três de junho de 1822, p. 45. A representação é apresentada a Dom Pedro pelos procuradores, sem distinção de nomes. 163 Cortes, logo ameaçado pelo “orgulho Europeu”, pelo “maquiavelismo”, pela “recolonização”, embora tenha se enchido de indignação causada pela perfídia de seus irmãos, logo rompia “os vínculos morais de rito, sangue, e costumes, quebrava de uma vez a integridade da Nação”405. Tal resultava que O Brasil já não pode, já não deve esperar que de alheias mãos provenha a sua felicidade. (...) O congresso de Lisboa, que perdeu o norte, que o devia guiar, isto é, a felicidade da maior parte sem atenção a velhas etiquetas já agora é capaz de tentar todos os tramas e de propagar a anarquia para arruinar o que não pode dominar. Tal situação levava a um momento-chave da trajetória histórica do Brasil, como continua a própria representação a indicar: É este, Senhor, o grande momento da felicidade, ou da ruína do Brasil. Ele adora a Vossa Alteza Real, mas existe em uma oscilação de sentimentos movida pelo receio de seus antigos males, pelo temor de Despotismo, que as facções secretas muito fazem valer, e muito forcejam para aproveitar. A âncora, que pode segurar a nau do Estado, a cadeia que pode ligar as províncias do Brasil ao trono de Vossa Alteza é a convocação de Cortes, que em nome daqueles que representamos instantaneamente requeremos a Vossa Alteza Real. (...)406 O trecho expõe os elementos centrais que atravessavam a interpretação daqueles tempos na ótica dos que construíam a narrativa oficial. As Cortes, em Portugal, sendo um rompimento com as trevas do passado e inauguração do novo tempo, em consonância com as luzes do século, haviam decepcionado os brasileiros, que, desejosos da felicidade, precisavam de outra referência. Ruína ou felicidade: a primeira, com a manutenção dos laços com as Cortes, que, longe de produzirem as luzes para o Brasil, ameaçavam com antigos males; a segunda, com a única âncora capaz de segurar a “nau do Estado”: a convocação de Cortes próprias ao Brasil, que poderia unir as províncias em torno de Dom Pedro. O processo de autonomização do Brasil descolava-se das Cortes para produzir seu próprio rompimento com o despotismo e a inauguração de suas próprias luzes. A marca do descolamento era a consideração, somada a uma percepção anterior de que “as leis, as constituições, todas as instituições humanas são feitas para os povos, e não os povos para elas”, de que Europa e América já não caminhavam no mesmo ritmo de transformações. Enquanto, como visto anteriormente, crescia a percepção da diferença entre América e Europa no discurso do Reverbero, oficialmente se 405 406 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 164 apresentava ao Príncipe Regente a ideia de que se devia partir de um “princípio indubitável”: as leis formadas na Europa podem fazer a felicidade da Europa, mas não a da América. O sistema Europeu não pode pela eterna razão das coisas ser o sistema Americano, e sempre que o tentarem será um estado de coação, e violência, que necessariamente produzirá uma reação terrível. 407 Não era o rompimento político ou institucional: era um rompimento na interpretação do tempo, que não mais considerava em consonância as duas partes do Reino, como elementos do mesmo conjunto de transformações na época histórica. A narrativa da história da nação portuguesa, que vinha se desenvolvendo numa linha reta, sofrera uma bifurcação: o não atendimento das necessidades próprias do “sistema Americano”, mais que despotismo ou opressão, era a consideração de que a narrativa do futuro deveria ser produzida pelos próprios americanos, não mais pelos europeus. A união de ambas as partes deveria ser mantida, seguia o discurso, mas já agora a compreendendo não como duas metades do mesmo mundo, mas como dois mundos que orbitavam uma mesma estrela. O decreto de convocação que segue a representação, já discutido acima, provoca, na descrição da ata, uma “efusão de júbilo”, graças à “heróica resolução de Sua Alteza Real, que vai marcar a época a mais faustosa do Brasil”. Os entraves que prendiam o desenvolvimento da prosperidade no lado americano do atlântico dissolviam-se. E o discurso do procurador da província Cisplatina, Lucas José Obes, expõe bem essa sensação: Senhor. De ontem para hoje que distância! De ontem para hoje quantos sucessos! De ontem para hoje, que glória para Vossa Alteza Real! Que venturas para todos nós! Ontem não tínhamos Pátria, ontem não tínhamos Leis, ontem não tínhamos um Soberano... Hoje temos tudo, e temos mais que tudo, porque temos a Vossa Alteza Real. (...) Luz que dissipou as trevas, e por quem esta porção encantadora da América Meridional conseguira manter a sua integridade, e por si mesma derribar os calabouços em que gemeram por três séculos os nossas [sic] pais e pereceram (desgraçadamente miserandas!) milhares de gerações que não têm conta. Está vencido o grande passo, o que resta será obra do tempo.408 Em um dia percorrera-se imensa distância, assim como em 14 anos, vimos anteriormente no Reverbero, se avançara mais do que séculos inteiros. O tempo 407 408 Idem, p. 45-46. Idem, p. 46. 165 histórico comprimido pela ação de Dom Pedro permitia a equiparação às nações mais avançadas do tempo. A saída do esquecimento, produzida, no discurso do Revérbero, pela colonização portuguesa ganhava nova dimensão com a ação do herdeiro da Coroa: agora há Pátria, Leis e Soberano. Os elementos da civilização preponderam: as trevas foram dissipadas e os três séculos de opressão deixados para trás. Os limites possíveis à ação humana, atendendo às necessidades do tempo, foram transpostos pelo Regente: o futuro, deixado à ação do tempo, completaria o que restasse. Tudo seria devido a Dom Pedro, o “fundador da liberdade brasiliana”, o “amigo da nação”, o “digno sucessor daquele monarca benfazejo, que primeiro doou à Plaga Brasílica o esplendor da Majestade, e o gérmen de uma santa independência!”. A continuidade entre Dom João VI e Dom Pedro ia além da filiação: era a continuação de um processo que se entendia como interrompido pela ação das Cortes. A narrativa da independência do Brasil, antes mesmo que oficialmente ela acontecesse, lançava no passado os fundamentos do futuro, e na presença joanina os alicerces do processo em que começavam “os séculos do Brasil”409. E onde entra Ledo nesse processo? Como secretário, assina a ata. Como um dos articuladores do processo de convocação da Assembleia, junta suas vozes às dos demais participantes que, naquele momento, submetem suas diferenças ideológicas à mais ampla interpretação do descolamento de Portugal. Mas já na sessão seguinte as diferenças voltariam à tona. À discussão sobre como nomear os deputados da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil, José Bonifácio, como Ministro dos Negócios do Brasil, propõe eleições indiretas. Ledo, opondo-se, propõe eleições diretas. Apesar de argumentar a respeito da necessidade de se fazer prevalecer a vontade da maioria, e de que se não pode limitar o exercício do poder constituinte, perde a votação em favor da proposta de Bonifácio 410. Em sessão de 16 de junho, discussão sobre punir ou não o autor do Correio do Rio de Janeiro a propõsito de “doutrinas criminosas que [o periódico] continha”, Ledo coloca-se contrário a qualquer punição, defendendo a necessidade de liberdade de imprensa. Com o apoio do procurador da Cisplatina, não perdeu, mas ficou sob sua responsabilidade o encaminhamento de regulamentação para fiscalizar e julgar os abusos da liberdade de imprensa411 . E, na mesma sessão em que o procurador da Cisplatina apresenta uma 409 As últimas referências são todas de Idem, p. 46. ACPG, Sessão n. 3 – a 10 de junho de 1822, p. 47. 411 ACPG, Sessão n. 6 – a 16 de junho de 1822, p. 48. 410 166 proposta questionando por que não imitamos a Grã-Bretanha, única exceção, entre todas as nações, que não foi vitimada pelos inimigos externos e internos que causam “males espantosos” devido à sua riqueza412, o ministro da Fazenda, Caetano Pinto Montenegro, analisa as transformações vivenciadas pelo Brasil recentemente com cuidado. Afirmando que “a passagem do despotismo para a liberdade é tempestuosa: ferveram as paixões, agitaram-se os partidos”, acaba destacando, apesar das críticas, que “a salvação pública, torno a dizer, é a suprema lei”413. E é sob os auspícios dessa lógica que, em 15 de outubro, Ledo assina pela última vez a ata como secretário, antes da bonifácia avançar sobre os “radicais” e desmembrar o grupo temporariamente, atingindo não apenas o próprio Ledo, como José Clemente Pereira, Luis Pereira de Nóbrega e João Soares Lisboa. Os atritos entre o “grupo de Bonifácio” e o “grupo de Ledo” atingiam seu auge. Antes, porém, ambos compõem separadamente as duas manifestações de agosto que também poderiam ser incluídas no rol de documentos análogos a “declarações de independência” – embora, aqui como alhures, mantenha-se um esforço retórico para salvar a ideia de unidade luso-brasileira em ambas as falas. O primeiro manifesto, de 01 de agosto, produzido por Ledo, é dirigido aos “brasileiros”; o segundo, de 06 do mesmo mês, é dirigido às “nações amigas” 414 . Em conjunto, sintetizam as interpretações daquele tempo produzidas com vistas à hegemonia até ali. Os manifestos cumprem, cada um a seu modo, papel análogo àquele que a Declaração de Independência cumprira no caso americano. Como declarações 415 , os manifestos inseriam-se na tradição, criada desde 1776, de produzirem pronunciamentos internacionais por meio de um órgão oficial (no caso do de 6 de agosto), enumerando as razões para uma atitude de rompimento (mais presente na de 01 de agosto) 416 . Dirigindo-se tanto “para dentro” quanto “para fora”, os dois manifestos justificam o posicionamento de reconfiguração não apenas da política nacional – e, com isso, contribuem para reconfigurar inclusive o significado do conceito de “nação”, da “que o diga a França perdida, na opinião de Necker, pela desordem de suas finanças; que o diga a Espanha sem colônias, sem comércio, sem esquadras, pela pobreza do seu Erário; e talvez nós mesmos poderemos também dizer brevemente”. Idem, p. 58-59. 413 Idem, p. 49-50. 414 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 7ª edição. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 52-53. 415 Embora não se intitulassem “declarações”, sua definição dicionarizada era semelhante. “Manifesto”, no Morais e Silva, significava, dentre outras coisas, “escrito, em que os Soberanos, e os Estados dão razão de moverem guerra, expõe os seus direitos, ou o motivo de alguma ação”. Vol. II, p. 57. Já “declaração” consistia em “ato de dar ao manifesto”; “ato de declarar”; “explicação, ou exposição”. Vol. I, p. 388. 416 ARMITAGE, David. Declaração de Independência... op. cit., cap. 01. 412 167 “portuguesa” à “brasileira” –, mas, também, de realinhamento da interpretação sobre o passado distante e recente da formação do Brasil. É o momento-chave em que a interpretação corrente, que se pretendia hegemônica, finca-se em definitivo no coração do poder, com a plena assunção da separação narrativa entre Europa e América. A lógica presente no Revérbero em particular, e nos periódicos em geral, entrelaçava-se à perspectiva institucional oficial. Vejamos como. O primeiro manifesto já começa dirigindo-se aos brasileiros e lembrando que “está acabado o tempo de enganar os homens.” Afinal, Os governos, que ainda querem fundar o seu poder sobre a pretendida ignorância dos Povos, ou sobre antigos erros, e abusos, têm de ver o colosso da sua grandeza tombar da frágil base, sobre que se erguera outrora. Foi por assim o não pensarem que as Cortes de Lisboa forçaram as Províncias do Sul do Brasil a sacudir o jugo, que lhes preparavam: (...)417 A separação indicada logo no começo afasta o tempo passado do tempo presente num caminho sem volta. O passado, referenciado a partir de uma ótica política, pela fundamentação do poder, é sintetizado novamente como o tempo da ignorância e das trevas. Os tempos mudaram e, com isso, a fundação do poder dos governos deveria mudar junto. As Cortes, por ignorarem a sincronia com o tempo histórico atual, pagavam o preço de sua desconsideração: a partir do Sul o Brasil sacudia o jugo que contra ele era lançado. O Sul, considerado parte desse conjunto americano mais amplo, ganha destaque no contexto, destacando, também, os grupos que dali sustentavam o poder do Imperador, que assumiria o papel de reunir o Brasil em torno de si, assegurando a “defesa de seus Direitos, e a mantença da sua Liberdade, e Independência.”418 Os motivos estavam expostos. Portugal, destruindo as formas estabelecidas da Monarquia, e mudando suas antigas e respeitáveis instituições, corria “a esponja de ludibrioso esquecimento por todas as suas relações”, reconstituindo-lhas novamente. Não era uma simples continuidade de opressão que perdurasse por todo o sempre. Era um novo tipo de dominação que corrompia o que de respeitável havia na tradição do Reino, o que justificava a mudança de postura sobre as relações Brasil-Portugal sem que se entrasse em contradição sobre o apoio até há pouco conferido a elas. As Cortes provocaram, não o Brasil. Aquela não poderia obrigar este a Manifesto – do 1º de agosto de 1822. Esclarece os Povos do Brazil das causas da guerra travada contra o Governo de Portugal. In: CLIB. 1822. Parte II. p. 125. 418 Idem. 417 168 aceitar um sistema desonroso, e aviltador sem atentar contra aqueles mesmos principios, em que fundara a sua revolução, e o direito de mudar as suas instituições políticas, sem destruir essas bases, que estabeleceram seus novos direitos, nos direitos inalienáveis dos Povos, sem atropelas a marcha da razão, e da justiça, que derivam suas leis da mesma natureza das coisas, e nunca dos caprichos particulares dos homens.419 O trecho é rico em interpretações. Em primeiro lugar, e retomando o afastamento da contradição exposto anteriormente, fica claro, no complemento, que a contradição estava em Portugal, e não no Brasil. Atentar contra os direitos desta parte do Império era atentar contra os próprios direitos nos quais as Cortes se baseavam para fundar sua “revolução”420. Se o Brasil produzira a riqueza portuguesa, e se o progresso do Brasil era o progresso de Portugal, como visto nos capítulos anteriores, também as fundações que valiam para a Europa valiam para a América. Em segundo lugar, o trecho também indica que a institucionalização do discurso do Reverbero era, também, a oficialização da influência de De Pradt na produção da interpretação daquele tempo. A proximidade do trecho com a fundamentação lockeana dos “direitos inalienáveis”, nisso aproximando-se da justificativa da Declaração americana – embora o termo “Povos”, no plural, possa remeter a uma lógica de Antigo Regime – não deixa de provocar abertura à lógica pradtiana que fortalecia a interpretação daquele tempo: na Revolução Americana, a perspectiva de produção do novo em nome de direitos inerentes à condição civil; na revolução brasílica, o atendimento à marcha inevitável da razão e da justiça, que atualizaria a realização das expectativas de “tão rica e grande porção do nosso globo”, com “talentos dos seus habitantes, e os recursos imensos do seu solo”, que, antes lamentando a marcha “desorientada e tirânica”, agora voltava aos trilhos da verdade sob comando do Príncipe421. Nessa condução segura da marcha, os fiéis súditos, sopeando talvez desejos, e propensões republicanas, desprezaram exemplos fascinantes de alguns Povos vizinhos, e depositaram em Mim todas as suas esperanças, salvando deste modo a Realeza, neste grande continente Americano, e os reconhecidos direitos da Augusta Casa de Bragança.422 419 Idem, p. 125-126. Nisso, como visto, existe uma aproximação com a tônica do Reverbero. 421 Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 126. 422 Idem, p. 126. Mais à frente, falando da Assembleia Constituinte e lembrando a importância de manear o “leme da razão, e prudência”, declararia a importância de “evitar os escolhos, que nos mares das revoluções apresentam desgraçadamente França, Espanha, e o mesmo Portugal; para que marque com 420 169 A Independência era, simultaneamente, a salvação do Brasil e a salvação da monarquia. A Casa de Bragança, já ameaçada, como vimos na carta de Dom Pedro a seu pai, pelo “aprisionamento” de Dom João VI pelas Cortes (temática que retomaria nos manifestos), via sua renovação no Brasil, assim como o Brasil era visto como renovação do próprio Portugal423. Para o cumprimento da dupla salvação, desprezar os “exemplos fascinantes” das Repúblicas Americanas vizinhas era fundamental 424 . Não fosse o Príncipe, explica o próprio, “quem poderia sobrestar os males da anarquia, a desmembração das suas Províncias, e os furores da Democracia?” 425 Mas não seria apenas como mantenedor da ordem centralizada que o Príncipe deveria agir. Mais do que coerção, também a produção da direção e do consenso seria tarefa assumida por Dom Pedro naquele contexto: Quem acalmaria tantos partidos dissidentes, quem civilizaria a nossa Povoação disseminada, e partida por tantos rios, que são mares? Quem iria procurar os nossos Índios no centro de suas matas impenetráveis através de montanhas altíssimas, e inacessíveis? De certo, Brasileiros, lacerava-se o Brasil (...) e as vistas benfazejas da Providência se destruíam, ou, pelo menos, se retardavam por longos anos. 426 A ação de Dom Pedro evitaria o retardo que atravancaria o progresso do Brasil. A ação do herdeiro dos Bragança seria o gatilho a comandar a “expansão para dentro” que caracterizaria a formação do Estado nacional no Brasil427. Embora reforçasse, no parágrafo seguinte, a ideia de manutenção dos vínculos com Portugal, estes apenas sustentariam uma boa relação entre ambas as partes, visto que todo o processo seguinte de desenvolvimento do Brasil seria, agora, conduzido de dentro. A parte seguinte do manifesto é aquela dedicada à exposição dos fatos que justificavam o comportamento. A interpretação é dada de antemão: a história das ações das Cortes sobre o Brasil é uma “história de enfiadas injustiças”, cujos fins eram “paralisar a prosperidade do Brasil, consumir toda a sua vitalidade, e reduzi-lo a tal mão segura e sábia, a partilha dos Poderes, e firme o Código da vossa Legislação na sã Filosofia, e o aplique às vossas circunstâncias peculiares.”. In: Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 129. 423 Valdei Araújo, 2008. 424 Fascinar”, no Morais e Silva, tem como significado “enganar, alucinar”. Volume 1, página 624. Já no Bluteau, p. 55, volume 4, tem a ideia de “olhar com aspecto melancólico, turvo e carrancudo, e juntamente com inveja, ou ódio, ou ira, ou outra paixão violenta, misturando os espíritos venenosos das ditas paixões com os espíritos e humores do corpo, e juntamente alterando-os, destemperando-os, e corrompendo-os de sorte que o corpo cai, e mostra o mal que recebeu”. 425 Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 127. 426 Idem. 427 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit.; IDEM. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. almanack braziliense. Nº 1. Maio 2005, p. 8-26.. 170 inanição, e fraqueza, que tornasse infalível a sua ruína, e escravidão” 428. As metáforas relacionadas a crescimento e vida consolidavam a ideia de que o Brasil apresentava-se como o jovem em pleno arranque de aprimoramento, enquanto Portugal, velho, decrépito, descia a ladeira num esplendor passado que se tornava apenas vislumbre distante rumo a um péssimo futuro429. Incapaz de mudar seu quadro, Portugal sugava do Brasil a vida que não conseguiria mais ter para si – ainda que, para isso, ousassem, inclusive, ameaçar “com libertar a escravatura, e armar seus braços contra seus próprios Senhores”430. Portugal, na sua gana de destruição, ultrapassava limites cujas convenções seculares, turbinadas por tragédias de revoluções escravas recentes, não deveriam ser transpostas nem nas mais tensas situações de conflito entre pares. No fim, palavras de esperança àqueles a quem se dirigia o manifesto: “Encarai, habitantes do Brasil, encarai a perspectiva de Glória, e de Grandeza, que se vos antolha, não vos assustem os atrasos da vossa situação atual; o fluxo da civilização começa a correr já impetuoso desde os desertos da Califórnia até ao estreito de Magalhães.” O novo tempo pertencia à América. A civilização unia mesmo as partes cuja distância procurava-se manter – por republicanas. Algo superior se impunha: a plenitude da realização da liberdade em luta contra o despotismo – e que buscava evitar a anarquia. E é exatamente a caracterização desse despotismo que move fundamentalmente o segundo manifesto, de 06 de agosto. A colonização portuguesa na América é duramente retratada, o que mostra de forma mais contrastante as transformações naqueles anos, já que a autoria do manifesto é de José Bonifácio. Nesse sentido, uma breve contextualização é necessária, já que em seus escritos notam-se duas fases marcantes de preocupação com o papel da História, além de uma preocupação com a questão da identidade nacional que também perpassa sua obra431. Em relação à História, a primeira fase relaciona-se à trajetória de Bonifácio na burocracia imperial portuguesa. A idéia central em seus escritos sobre a História de Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 127. Mais à frente, retomaria a questão declarando que o Brasil já era “Povo Soberano”, já entrado na grande sociedade das nações independentes, a que tinha todo direitos. Afinal, “a honra e dignidade nacional, os desejos de ser venturosos, a voz da mesma naduteza mandam que as colônias deixem de ser Colonias, quando chegam à sua virilidade, e ainda que tratados como colônias não o éreis realmente, e até por fim éreis um Reino. Demais: o mesmo direito que teve Portugal para destruir as suas instituições antigas, e constituir-se, com mais razão o tendes vós, que habitais um vasto, e grandiosos País, com uma povoação (bem que disseminada) já maior que a de Portugal, e que irá crescendo com a rapidez com que caem pelo espaço os corpos graves.”. Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 129. 430 Manifesto – do 1º de agosto de 1822..., p. 128. 431 A construção da interpretação sobre o período é fortemente baseada em ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. ct., cap. 1, e SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio.Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, especialmente cap. 2 e 3. 428 429 171 Portugal, nesse momento, é a de “restauração”, que busca no passado português as glórias perdidas e, aproximando o passado do presente, tem por objetivo “atualizar” essa Era de Ouro passada. A idéia é resistir à ação do tempo, que cada vez mais afasta Portugal dos centros civilizacionais europeus. Bonifácio enxerga no Brasil colonial uma oportunidade para essa restauração do tempo perdido, que não é mera repetição do passado, mas uma nova chance de ligação desse passado ao presente, e até ao futuro, do Império. Note-se que, nessa abordagem, a identidade a que Bonifácio liga sua noção de História é a do Império português. É o sentimento que predomina até princípios da década de 1820. A idéia de restauração criava uma continuidade entre a experiência passada de Portugal e a realidade presente do Império português. Essa continuidade teórica, porém, foi posta à prova a partir dos eventos que desencadearam o processo de separação política. O desenrolar dos acontecimentos que culminaram na independência, em 1822, transformaram a perspectiva de Bonifácio. A idéia de “restauração”, como ligação do passado de Portugal a um presente de incertezas, cedeu lugar à idéia de “regeneração”, que implicava mais que uma simples ligação. Regenerar, na concepção de História de Bonifácio, significava uma “refundação do pacto social em bases compatíveis com o espírito do século” 432 . Essa refundação teria no Brasil seu porto seguro, e, frente à impossibilidade de manutenção dos vínculos a partir de 1822, o Brasil surgirá como país novo, porém tributário da herança histórica portuguesa. O Portugal do passado, que não pôde ser restaurado, teria de ser refundado (isto é, regenerado) num espaço novo, inexistente antes: o Império do Brasil. O sentimento imperial português dá lugar à necessidade de construção de uma identidade nacional brasileira. Nesse sentido, a consolidação de um duro discurso sobre a colonização portuguesa supera qualquer perspectiva de fortalecimento do Império Atlântico. Afinal, contra os direitos que os brasileiros desejavam conservar “Portugal sempre atentou, e agora mais que nunca, depois da decantada Regeneração política da Monarquia pelas Cortes de Lisboa” 433. Radicaliza-se a perspectiva do despotismo como algo que sempre foi a tônica nas relações entre Europa e América, e não simplesmente uma ação pontual das Cortes sobre o Brasil. A exploração estava presente desde o surgimento do Brasil: 432 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. cit., p. 58. Manifesto – de 6 de agosto de 1822. Sobre as relações políticas e comerciais com os governos, e nações amigas. In: CLIB, 1822, vol. II, p. 132. 433 172 Quando por um acaso se apresentara pela vez primeira esta rica e vasta região Brasílica aos olhos do venturoso Cabral, logo a avareza e o proselitismo religioso, móveis dos descobrimentos e Colônias modernas, se apoderaram dela por meio de conquista; e leis de sangue, ditadas por paixões, e sórdidos interesses, firmaram a tirania Portuguesa.434 Ora, comparemos o trecho acima àquele discutido anteriormente do Reverbero, no qual a chegada de Cabral ao Brasil representara a saída do território do esquecimento e seu ingresso na História, com a realização da civilização graças à presença portuguesa, e que aspirava, num primeiro momento, a ser a interpretação central das relações entre ambos os continentes, marcando o tom das transformações constitucionais pelas quais passava o Império. Agora, consolidava-se a visão dos “três séculos de opressão”, ampliando-se, porém, seu escopo: não se tratava simplesmente de uma opressão comercial ou política, mas, mesmo, de um despotismo presente nos próprios instrumentos civilizatórios – as “leis de sangue” substituíam as leis da civilização; o “proselitismo religioso” ocupava o espaço da catequização que tirava da barbárie os nativos; a avareza era alçada a um dos motores da “colonização moderna” – inclusive, distinguindo-se das formas antigas de colonização435. Não que a visão fosse nova: a crítica à colonização com essa radicalidade – que, como dito, ultrapassa inclusive os limites presentes na concepção de “três séculos de opressão” – já se encontrava inclusive no Reverbero 436 . Mas, agora, a radicalidade chegava ao discurso institucionalizado. 434 Idem, p. 132. Para uma análise do manifesto de 6 de agosto que analisa os dois conceitos de “colônia” – antigo e moderno – presentes em Bonifácio, cf. ARAÚJO, Valdei. A experiência do tempo... op. cit., p. 63-66. 436 Reflexões presentes na edição de 9 de abril de 1822, do Reverbero já criticavam “aquelas cenas Inquisitoriais, que mancham a História, desde o século XIV, até o XVI”, presentes desde o “instante em que os bárbaros Espanhóis fundamentaram a escravidão da América, [e que] as Virgens do Sol, foram profanadas; eram de diferente rito, dirá alguém, e a superstição marcha com os Soldados conquistadores”. Cf. RCF, n. 22, 9 de abril de 1822, p. 266. Noutro momento, comentando famosa publicação de autor cubano, os editores do periódico lembram que “os espanhóis e os portugueses são bárbaros na guerra: a América, e a Índia o sabe [sic]”. Cf. RCF, tomo segundo, n. 20, 08 de outubro de 1822, p. 251. Esses comentários, aliás, presentes na reta final do Reverbero, quando já se consumava a Independência política, oferecem outros pontos de análise do passado que se aproximam daquele de Bonifácio. Nessa lógica, os portugueses e espanhóis se tornam os bárbaros, pois os primeiros “mataram milhares de inocentes vítimas, e pagaram com ferros a hospitalidade generosa, que haviam recebido”, enquanto os segundos “sob capa de Religião, produzisse o extermínio de vinte milhões de almas, segundo a relação do Venerável – Las Casas, - que ainda quando fosse exagerada, dá contudo ideia de haver sido o maior, que a História de todos os séculos apresenta, e de que o absoluto desaparecimento dos Indígenas nas Antilhas todavia convence”, enquanto “o resto desses miseráveis fossem condenados à mais dura escravidão, sem que bastassem as repetidas ordens dos Reis Católicos, os esforços pessoais do mencionado Bispo, e o arbítrio de substituir os negros d´África, o que foi querer remediar um com outro mal igual, ou pior por suas circunstâncias, ficando em pé a essência, como bem se convencerá todo o que for ao Continente Americano ver o tratamento, que se dá aos Indígenas”. P. 212-213. 435 173 A “estrada da miséria e escravidão”, oferecida pelos portugueses, unia o “colono europeu” e o “indígena bravio”, ambos obrigados a trilhar o mesmo caminho de extração de riquezas, leis absurdas e impostos sofríveis. O que a “benigna Natureza” oferecia em termos de tesouros, o Estado português, com “sôfrega ambição”, devorava. “Queriam que os Brasileiros pagassem até o ar que respiravam, e a terra que pisavam”, lamentava. Qualquer tentativa de inovação feita na colônia era tolhida pelos portugueses. “Sempre quiseram os Europeus conservar este rico país na mais dura e triste dependência da Metrópole, porque julgavam ser-lhes necessário estancar, ou pelo menos empobrecer a fonte perene de suas riquezas”437. Aqui sequer é mencionada a perspectiva antes existente de que tal se devia à miopia lusitana, posto que o desenvolvimento da riqueza da colônia seria o desenvolvimento da riqueza da metrópole. Aqui, o que sobra é apenas a intencionalidade da destruição e da exploração que oprimiram, por séculos, um território naturalmente destinado ao sucesso e repleto de iniciativas que poderiam desenvolver o que já nascera possuindo. Tal fora a sorte do Brasil por quase 3 séculos. E não deixaria Dom Pedro/Bonifácio de apelar àquela categoria que, como vimos no caso do Revérbero, e como continuaria a ser ao longo do Primeiro Reinado, sintetizava, dentro da lógica histórica da luta da liberdade contra o despotismo, o reino da barbárie e do extremo oposto às luzes: a “Turquia”. Explicando como a sede de ouro e ambição do poder são inesgotáveis, lembraria que não se esqueceu Portugal de mandar continuamente Bachás desapiedados (...) que no delírio de suas paixões e avareza despedaçavam os laços da moral assim pública, como doméstica (...) para que reduzidos à última desesperação seus povos [do Brasil], quais submissos Muçulmanos, fossem em romarias à nova Meca comprar com ricos dons e oferendas uma vida, bem que obscura e lânguida, ao menos mais suportável e folgada. 438 A explicação dirigida às nações amigas apela a um exemplo do presente – o mundo muçulmano, cujo principal exemplo mencionado continuamente era o Império Otomano, ou a “Turquia”, para apontar o passado. Conforme teremos oportunidade de desenvolver no próximo capítulo, a Turquia presente era o passado do mundo ocidental na lógica histórica que presidia a interpretação daqueles tempos. Os Bachás substituíam com precisão os absolutistas; os “submissos muçulmanos” formavam perfeita analogia 437 438 Manifesto – de 6 de agosto de 1822... p. 132. Idem, p. 133. 174 do outro oprimido pela escuridão; o trânsito à Lisboa, eivado de humilhações àqueles americanos que apenas buscavam desenvolver seu potencial, assemelhava-se à travessia a Meca, cuja obrigatoriedade impedia a plenitude da liberdade àquele século como nos passados. Se o Brasil resistira a tamanha opressão, tal apenas fora possível devido à força que a Natureza conferira a seus filhos, talhando-os para gigantes, como boa mãe que lhes dava sempre remanescentes forças para desprezarem os obstáculos físicos e morais, “que seus ingratos pais e irmãos opunham acintemente ao seu crescimento e prosperidade”. Portugal tornara-se pai-irmão que castigo e zombaria oferecia; a própria natureza brasílica era alçada á condição de mãe, moldando com carinho e ternura o brioso povo brasileiro439. Assim tratado, o povo brasileiro assistira candidamente às outras ações que Portugal dirigia, desde sua Regeneração, para restabelecer astutamente o “velho sistema colonial, sem o qual creu sempre Portugal, e ainda hoje o crê, não pode existir rico e poderoso”440. Nessa concepção das Cortes, “o Brasil não devia mais ser Reino; devia descer do trono da sua categoria; despojar-se do manto Real de Sua Majestade; depor a Coroa e o Cetro, e retroceder na Ordem política do Universo, para receber novos ferros, e humilhar-se como escravo perante Portugal.”441 Deveria o Brasil, na explicação do manifesto, retroceder na marcha que seguia, significando um retorno ao passado de opressão e a anulação das conquistas até ali garantidas. A ação, similar à dos “selvagens da Louisiana”, desejava somente colher os frutos da conquista, ainda que às custas da desgraça do Brasil. A única alternativa para, nessas condições, garantir o “rápido desenvolvimento de suas forças e futura prosperidade”, seria para o Brasil “um governo forte e constitucional”, que pudesse “desempeçar o caminho para o aumento da civilização e riqueza progressiva do Brasil”442. Nenhuma nação civilizada deixaria de compreender essa necessidade, haja vista que o contrário arriscava a própria sociedade brasileira: À vista de tudo isto, já não é possível que o Brasil lance um véu de eterno esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades; nem é igualmente possível que ele possa jamais ter confiança nas Cortes de Lisboa, vendo-se a cada passo ludibriado, já dilacerado por uma guerra Idem, p. 133. Povo brioso, povo hospitaleiro, o qual abraçou, com “inexplicável júbilo”, a Família Real. Idem. 440 Idem, 134. 441 Idem, p. 135. 442 Idem, p. 136. 439 175 civil começada por essa iníqua gente, e até ameaçado com as cenas horrorosas de Haiti, que nossos furiosos inimigos desejam reviver. 443 Se o primeiro manifesto mostrava a tragédia que consistia em ultrapassar os limites do não-dito, ao trazer à cena o risco de ameaça à escravidão, o segundo manifesto ultrapassava o contexto local escravista para trazer ao presente uma dimensão do passado que deveria ser mantida no esquecimento. Não era possível mais lançar o véu de esquecimento sobre tantos insultos e atrocidades, diz o trecho, especialmente considerando-se que aquela atrocidade que mais mereceria o véu do esquecimento era justamente a que os adversários insistiam em desvendar. As cenas do Haiti, passado ainda presente, fortaleciam o argumento não apenas aos brasileiros, mas, como o manifesto intentava, às nações amigas (dentre as quais incluía-se aquela que primeiro reconheceria a Independência, os EUA), para as quais o Haiti constituía um problema semelhante àquele que provocava no Brasil. Se o manifesto de 01 de agosto, dirigido aos brasileiros, podia prescindir dessa referência, apelando à generalidade da ameaça à situação escravista, o manifesto seguinte centralizava a contextualização, provocando uma maior aproximação da tragédia do passado com riscos de novas repetições trágicas no presente.444 E isso não era tudo. Como pudemos trabalhar no capítulo anterior, analisando os comentários dos redatores do Reverbero ao trecho traduzido de Joaquin Infante, publicado no periódico, nos quais faziam-se acusações ao deputado Girão, um dos argumentos contrários às Cortes veiculados pelos redatores era quanto às falas que apontavam a Independência como caminho para a transformação do Brasil em Haiti. Segundo Girão, pelos olhos do Reverbero, iriam repetir-se no Brasil as “horrorosas cenas” de São Domingos, caso continuassem os apologistas da separação a agir. No manifesto de agosto, porém, publicado antes da crítica do Reverbero (que foi de outubro), o argumento mostrava-se invertido: não era a separação que ameaçava o Brasil com as cenas do Haiti, mas, sim, a ação portuguesa de guerra e “atrocidades”; 443 Idem, p. 138. Digno de nota é que o reconhecimento da Independência do Brasil pelos EUA, em maio de 1824, seguiu-se aos esforços de José Silvestre Rebello, representante brasileiro, junto ao secretário John Quincy Adams. Em abril do mesmo ano, Rebello enviou a Adams um documento no qual expunha uma interpretação dos eventos ocorridos entre 1808 e 1822, incluindo, dentre os documentos, o manifesto de 6 de agosto. Embora não se possa afirmar que a narrativa tenha tido um papel fundamental no reconhecimento, a consideração de trazer à cena a ameaça de o Brasil repetir um Haiti pode somar-se aos apelos passados que construíram a interpretação voltada a justificar o rompimento perante nações que, assemelhadas ao Brasil em certas condições (no caso, a escravidão), muito teriam a perder se o passado atravessasse o futuro. Cf. ACCIOLY, Hildebrando. O reconhecimento do Brasil pelos Estados Unidos da América. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 115-116. (Brasiliana). 444 176 mas, sim, as tentativas dos próprios portugueses em fazer as terríveis cenas reviverem no Brasil. O espectro de São Domingos continuava um poderoso fator de aglutinação discursiva a unir os poderes escravistas em torno da persona de Dom Pedro, justificando, assim, a separação: quanto mais os portugueses insistissem na manutenção da opressão recolonizadora, mais próxima da tragédia ficaria a escravista nação brasileira. Tudo justificava o rompimento e a centralidade do Brasil na sincronia do território com o novo tempo. A Portugal, com “essa mínima parte do território português, e sua povoação estacionária e acanhada”, sendo exemplo desses povos “envelhecidos e defecados”, cujos “belos dias” já “estão passados”, não convinha mais ser o centro político e comercial da Nação inteira. Só do Brasil poderia a pequena porção a monarquia recuperar sua virilidade antiga 445. E só a Dom Pedro competiria conduzir o processo e realizá-lo plenamente, sem riscos. Se era verdade, conforme expresso na proclamação de 21 de outubro, sobre o reconhecimento da Independência, que “toda a força é suficiente contra a vontade de um Povo que não quer viver escravo”, e se “a História do Mundo confirma esta verdade”, então apenas Dom Pedro poderia estabelecer a separação que, fosse feita antes, “o Brasil teria avultado em prosperidade há mais tempo”446. Sendo proclamado como não mais parte da antiga monarquia portuguesa desde o dia 12 de outubro, com o agora Imperador à frente e com uma interpretação consolidada institucionalmente sobre os eventos recentes e o peso dos acontecimentos passados para compreensão daquele tempo, poderia abrir-se o Brasil ao desenvolvimento que justificava todas as ações até ali empreendidas, ingressando no conjunto das nações civilizadas. 4.2) O “novo tempo” contra o “velho tempo”: Não obstante a distância que separou, nas disputas políticas, o “grupo de Ledo” do “grupo de Bonifácio”, inclusive a exclusão e perseguição da “bonifácia”, ambos pautaram-se, naquele momento de produção dos manifestos, por um mesmo consenso interpretativo no que tange à formação do Brasil e sua inserção na lógica do desenvolvimento histórico das nações. Podemos considerar, assim, a tônica de Manifesto – de 6 de agosto de 1822... p. 140. Manifesto – de 21 de outubro de 1822. Sobre o reconhecimento da Independência do Brasil pelo Governo de Portugal. In: CLIB, 1822, vol. II, p. 143-144. 445 446 177 Bonifácio em conjunto com a perspectiva do Reverbero que tratamos nos capítulos anteriores. Com uma diferença. O encaminhamento das disputas políticas a partir de 1823, na Constituinte, implicou a maximização de certos elementos discursivos e a minimização de outros; o enfoque maior em certos aspectos e o silenciamento de outros. Se o discurso historiográfico produzido pelo Reverbero ainda se dava nos quadros de uma experimentação – o que explica a aproximação feita com as demais realidades americanas –, a de Bonifácio/Ledo posterior produz um afunilamento – o que implica o afastamento das realidades desvinculadas diretamente da monarquia constitucional unitária e centrada na figura do Imperador. O segundo projeto, vitorioso nos embates em 1822, é aquele que começa o tom na Constituinte – não sem enfrentar resistências. Assim, a trajetória da Assembleia Constituinte em 1823 representava não apenas a concretização do projeto de ruptura política com a dinâmica das Cortes, mas também a história da disputa entre um determinado tipo de expressão político-institucional para o nascente país, bem como a narrativa histórica que o acompanhava – como vimos aqui tratando –, e outras formas narrativas que buscavam construir consensos nos debates políticos da Câmara em torno das transformações recentes do Brasil, agora considerado Império independente. Essas disputas, em certos aspectos, se prolongariam ao longo de todo o Primeiro Reinado, culminando numa certa visão sobre a formação do Brasil. Por ora, focaremos em alguns elementos centrais daquelas disputas em 1823: a percepção de uma lógica do surgimento de um “novo tempo” contra um “velho tempo” (ressignificando, em alguns aspectos, a análise que o Reverbero havia feito em 18211822) e os conflitos interpretativos em torno dos principais motores das mudanças históricas na História do Brasil. Aqui, neste último aspecto, é onde as faíscas em torno da persona de Dom Pedro vão ser expostas com mais clareza. O fechamento da Constituinte, em 1823, apenas suspenderia momentaneamente esse conflito. Afinal, na interpretação que o Reverbero ajudara a consolidar em sua reta final, e que foi, ao longo de 1822, incorporada institucionalmente pela narrativa oficial que se desenhava, como vimos, a monarquia constitucional, encarnada na figura de Dom Pedro I, coroado Imperador em dezembro de 1822, buscava também marcar os limites do possível para aqueles que se reuniam na Corte imperial em 1823. A vitória da monarquia constitucional encaixava a narrativa histórica produzida desde o Reverbero num modelo indissociável do poder centralizado como formato para plena inserção do 178 Brasil na lógica histórica das civilizações. E, como vimos, sem que houvesse riscos de cair na anarquia destrutiva. É nessa situação que a Constituinte se reúne em 1823447. E logo na abertura dos trabalhos na Assembleia, Dom Pedro I, em discurso, afirmaria: É hoje o dia maior, que o Brasil tem tido, dia em que ele pela primeira vez começa a mostrar ao mundo, que é império, e império livre. (...) O Brasil, que por espaço de trezentos e tantos anos sofreu o indigno nome de colônia, e igualmente todos os males provenientes do sistema destruidor então adotado, logo que o Sr. D. João VI rei de Portugal e Algarves, meu augusto pai, o elevou a categoria de reino (...) exultou de prazer; Portugal braniu de raiva, tremeu de medo.448 A narrativa estava desenhada e pronta para ser apresentada à Assembleia: a formação do Brasil era vista como fruto de trezentos anos de jugo sob o sistema colonial, instaurado por Portugal, cujo fio de dominação era fundamentalmente políticoeconômico, havendo a primeira quebra com a elevação da ex-colônia a Reino Unido e a segunda com a Independência. Em ambas, o comando político passa de pai para filho, de Dom João VI a Dom Pedro I, ambos considerados elementos indispensáveis à transformação do Brasil. A fala de Pedro I se coaduna com a do deputado Ferreira Araújo, que, meses depois, já em data próxima ao fechamento da constituinte pelo mesmo Dom Pedro, retomaria a formulação em indicação objetivando transformar o doze de outubro, data da aclamação do Imperador, em dia de festa nacional. Afirmou, nesse contexto, Araújo: Não há dia mais plausível para uma nação do que aquele em que começa a datar a época da sua grandeza. O Brasil, mais de três séculos agrilhoado sob o bárbaro sistema colonial, ressurgiu uma vez do seu abatimento e elevou-se à categoria de império; e este gigante, ainda no seu berço, fez alarde da sua força. A voz unânime dos povos levantou um novo trono, onde colocou uma dinastia, ilustre por suas virtudes, famosa por suas façanhas. Um príncipe, delícias dos brasileiros e tanto tempo ensaiado em promover a sua prosperidade, mereceu todos os votos que solenemente o proclamarão no sempre memorável dia 12 de Outubro.449 447 Sobre a Constituinte, cf. os trabalhos de RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1974; RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2003; SLEMIAN, Andrea & PIMENTA, João Paulo Garrido. O “nascimento político” do Brasil: as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 96-106. 448 AAC, 1823, Volume 1, p. 38. 449 AAC, 1823, vol. 6, p. 54 179 O que os trechos têm em comum, para além do apelo ao topos dos três séculos de opressão, que sintetizavam uma interpretação a respeito de uma trajetória histórica, são as referências ao modo pelo qual o Brasil teria rompido esse círculo de dominação: à fraqueza e ao sofrimento daqueles séculos de sufocamento seguir-se-ia um despertar, um “ressurgimento”, ou renascimento, que indicava um novo tempo de felicidade, “delícias” e exultação de prazer. À dor dos trezentos anos abrir-se-ia um caminho de maravilhas para o gigante que fazia sentir sua força ainda do berço. E, como diria o deputado Gomide num outro momento, em discussão sobre ofício informando da chegada de embarcação portuguesa à Bahia, no contexto dos conflitos pela Independência na província, provocando debate sobre as relações entre Portugal e Brasil, pudesse Portugal agitar as ondas, e submergir-nos; abalar e revolver as nossas montanhas, e sepultar-nos nas ruínas; chover sobre nós o fogo electro; e abrir debaixo dos nossos pés a explosão do inferno; nenhum brasileiro retrogradaria da heróica resolução que tem tomado (Apoiado.) Anátema e maldição para sempre ao fraco e perjuro, se o houvesse, que se quer vacilasse, se quer estremecesse na adesão com seus irmãos na santa causa da nossa liberdade. Não somente nos braços, está gravado em todos os corações independência ou morte; ninguém poderá compelir a reassumir grilhões que quebramos para nunca mais se soldarem. (Apoiados.) (...). Eia, Sr. Presidente. Marchemos avante! Nem ao pensamento se tolere a mais leve ideia de retrogradação. 450 As marcas dessa interpretação do passado colonial brasileiro se fariam sentir nas discussões entre deputados, especialmente em relação aos debates que mexiam, fosse para conservar, fosse para reformar, na herança político-administrativa deixado pela colonização. A lógica dos “três séculos de opressão”, produzida e consolidada no processo de rompimento com a metrópole a partir de 1821, primeiramente difundida pelos periódicos, como o Reverbero, além de panfletos e folhetos que veiculavam interpretações sobre os tempos presente e passado, com vistas ao futuro, e que chegara ao discurso institucional oficial nas proclamações de 1822 de Dom Pedro, como vimos, agora era posto no centro da discussão política por aqueles que se apresentavam como os únicos e legítimos “representantes da nação”. Ao redor dessa síntese dos três séculos anteriores giraram projetos e disputas políticas a partir de 1823. Carneiro da Cunha, por exemplo, em indicação propondo ao governo que expedisse logo as sentenças dos presos da ilha das Cobras, que aguardavam sua sentença, aprisionados por mais tempo 450 AAC, 1823, vol. 5, p. 63, grifos no original. 180 do que o considerado justo451, afirmaria: “Bem tristes provas nós temos na opressão dos povos do Brasil, que por três séculos sofreram toda a espécie de violências e despotismos da parte dos magistrados sempre prontos a sacrificar a justiça a seus sórdidos interesses e paixões”452. Ou, ainda, em discussão sobre parecer a respeito das tropas portuguesas no Brasil, o deputado Silva Lisboa afirmaria que, qualquer que fosse o vencedor dessa disputa, “o governo português há de sempre querer dominar, e monopolizar o Brasil: como fez há três séculos.”453. Ou, por fim, a discussão de projeto de Rocha Franco sobre a alternativa eclesiástica nas contas dos testamentos, quando Carneiro da Cunha fica a favor da urgência: “Sr. Presidente, os povos do Brasil há 300 anos que sofrem gravíssimos males pelos defeitos da legislação, e atualmente pedem e clamam por algum alívio a esses males.”454 Mas talvez o exemplo mais bem acabado dessa concepção dos três séculos de opressão na Assembleia seja o vindo da discussão a respeito de projeto de naturalização proposto por Muniz Tavares em 22 de maio. Segundo esse projeto, em seu artigo primeiro, “aqueles portugueses que presentemente residem no Brasil com intenção de permanecerem, e que têm dado provas não equívocas de adesão à sagrada causa da independência, e à augusta pessoa de S.M. Imperial são declarados cidadãos brasileiros”. Os demais, considerados suspeitos, seriam retirados do país pelo governo. 455 Tal projeto gerou reação de vários deputados, de uma forma ou outra remetendo ao passado brasileiro para justificar sua posição. Para o deputado Alencar, por exemplo, o terem nascido em Portugal não lhes deve servir para terem menos direitos do que nós; é o merecimento e não o lugar do nascimento quem distingue o cidadão brasileiro. (...) Não caiamos finalmente no mesmo erro, em que caiam os portugueses no tempo do governo velho, isto é, de olharem para nós com desprezo, e reputarem-nos menos dignos do que eles, isto muito nos desgostava, e excitava nossa indignação; o mesmo sucederia com eles, se nós usássemos da mesma injustiça que eles conosco praticavam.456 451 Trata-se do caso de quatro oficiais portugueses aprisionados na Colônia de Sacramento pelo Barão de Laguna e enviados para a Corte, sendo aprisionados na Ilha das Cobras. Os oficiais eram José de Vasconcellos, Bandeira de Lemos, José Felipe Jácome de Sousa Pereira e Vasconcellos e Domingos Manuel Pereira de Barros. 452 AAC, 1823, vol. 3, p. 15. 453 AAC, 1823, vol. 4, p. 201. 454 AAC, 1823, vol. 2, p.181. 455 AAC, 1823, vol. 1, p. 133. 456 AAC, 1823, vol. 2, p.105. 181 O exemplo de atitude de Portugal não poderia ser reproduzido pelo Império nascente, que deveria abrir-se de maneira pacífica e condizente com os tempos liberais. Assim pensava também o deputado Cruz Gouvêa, ainda que discordasse do projeto, incapaz de deixar para lá um passado cuja lembrança ainda o atormentava: Confesso, Sr. Presidente, que não posso beijar a mão que, por mais de 300 anos lançou ferros à minha pátria. Odeio, e odiarei sempre as crueldades que enlutarão Olinda, Pernambuco, Paraíba; e olho com horror para as que ainda sofre a desgraçada Bahia; mas não posso odiar nossos irmãos europeus que, à maneira das vestais, guardaram nos seus corações conosco a centelha da liberdade; ao contrário cordialmente os amo; e mui respeitosamente o nosso Washington da America Meridional, o imortal D. Pedro I, nosso augusto imperador constitucional, que para mais nos obrigar aceitou o titulo de nosso perpetuo defensor.457 Portugal, como fator de escravidão e despotismo, não deveria confundir-se com os portugueses que se desviassem do teor da mãe-pátria, adorando e adotando a perspectiva brasileira. Era o caso, afinal, de Pedro I. Mas Cruz Gouvêa sentia não conseguir “beijar a mão” que lhe havia oprimido. O que dizer, então, dos povos do Brasil? Como estes se sentiriam após a superação dos 300 anos de opressão? Qual seria, exatamente, o conteúdo específico sobre cada “tempo”? Ou seja, quais os conteúdos específicos do “tempo antigo”, superado, e o “tempo novo”, que abriu o Brasil dos grilhões para a felicidade? A discussão do deputado Andrada Machado sobre a abolição das juntas de governo pode nos dar algumas pistas para essas e outras questões. O objetivo do projeto, apresentado na sessão em nove de maio, era, como declarado eu seu artigo primeiro, abolir as juntas provisórias de governo, “estabelecidas nas províncias do Império do Brasil, por decreto das cortes de Lisboa em setembro de 1821”. Seria confiado o governo das províncias a um presidente e a um conselho, o primeiro de nomeação do imperador, sendo executor e administrador geral da província, o segundo formado por quatro ou seis membros, a depender do tamanho da província, com o magistrado mais condecorado e a maior patente das ordenanças da capital fazendo parte de forma nata e os restantes dois ou quatro sendo eletivos, com eleição à mesma maneira como se elegiam deputados à assembléia. Os conselhos se reuniriam duas vezes por ano, em janeiro e julho, salvo urgências, e este, junto ao presidente, se responsabilizaria por questões de fomento à agricultura, comércio e indústria; educação 457 AAC, 1823, vol. 2, p. 149. 182 da mocidade; vigília sobre estabelecimentos de caridade; exame de contas e despesas do próprio conselho; conflitos de jurisdição e suspensão de magistrados. Tratava-se de proposta para organização do poder local.458 O projeto entrou em discussão em 26 de maio. Carneiro de Campos, em sua fala, afirmou estar persuadido que os maiores males que têm afligido as províncias não procedem tanto da forma que se deu às juntas provisórias, como da mudança súbita do governo arbitrário para o livre; o povo que de repente passa da escravidão à liberdade, não sabe tomar esta palavra no seu verdadeiro sentido. (...) Disse-se que o povo era soberano, e disto entendeu-se que cada cidade ou vila podia exercitar atribuições da soberania. Por esta inteligência vimos com escândalo pretender-se, nesta cidade, obrigar ao Sr. D. João VI a assinar a constituição de Espanha, sem se consultar se era este o voto geral da nação.459 O “novo tempo”, diferentemente do “tempo antigo”, era de liberdade, não de escravidão; era de luzes, não de despotismo. Assim considerando-se, a passagem do antigo ao novo tempo produzia uma clivagem entre aqueles antenados às novidades do século e aqueles ainda presos à concepção antiga, que resultava em uma clivagem entre “ilustrados” e “povo” – não o “povo qualificado” de que fala Ilmar, duas décadas à frente, mas um povo fundamentalmente entendido como massa da nação, porém carente de luzes.460 A saída dos grilhões do império português seria a maior causa dos problemas nas províncias, Uma vez que tenha se espalhado a concepção de que “estava chegada a época da nossa regeneração”, havia-se julgado que isso queria dizer que tudo devia ir abaixo, as leis não terem vigor, nem os magistrados autoridade; em qualquer parte se ouvia dizer – que me importa com o Sr. Juiz de fora; o tempo da sujeição já acabou; agora temos constituição que quer dizer – liberdade - ; e liberdade é cada um fazer o que bem lhe parece. Além disto, os mesmos membros das juntas, pela maior parte, assentam que são representantes do povo, e que podem como tais exercitar a soberania. 461 O mau entendimento da ideia de liberdade, esperado de um povo acostumado à escravidão, provocava os problemas centrais naquele momento de ruptura. Os conceitos, também em formulação acelerada e em rápida transformação, fugiam àqueles 458 AAC, 1823, vol. 1, p. 69-70. Para o contexto de discussão do projeto, cf. SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, cap. 2. 459 AAC, 1823, vol.1, p. 167. 460 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 138. 461 AAC, 1823, vol.1, p. 167. 183 congelamentos conceituais tão necessários à fixação do governo e ao estabelecimento de direções políticas. A disputa pela soberania apenas começava – e a Assembleia, que buscava concentrar em si esse papel, algo deveria fazer para exercê-la em nome do Povo 462 (disputa maior que apenas Assembleia x Imperador – outras instâncias de exercício da soberania aparecem sugeridas na fala de Carneiro de Campos). A regeneração, cuja realização Carneiro de Campos reafirma, não teria sido bem compreendida, posto que, ao invés de assegurar a passagem segura do antigo sistema ao novo, transformava-se em fator de instabilidade e insegurança; à chegada da época da “regeneração”, julgava-se que isso significaria pôr abaixo todo o edifício – isto é, ignorar a tradição, a experiência, enfim, a continuidade histórica em nome da novidade. Confundia-se o conteúdo preciso da “regeneração” com o conteúdo da palavra “revolução” – a qual não aparecia na fala, mas assombrava por comportar a possibilidade de um significado mais próximo da ruptura. E vem a conclusão: “Destes e outros absurdos é que eu assento que nascem todos os males que se tem sofrido nas províncias; porque o povo, que é sempre falto de luzes, vai na boa fé do que lhe pregão os mal intencionados que o desencaminha para seus fins particulares” 463 . A direção disputada nas províncias causava caminhos não apenas errados, mas, no limite, potencialmente destruidores. A Assembleia, para Campos, estaria em situação delicada, graças à existência de três partidos nas províncias, dois dos quais poderiam acusar o terceiro de despótico caso a Assembleia agisse erroneamente 464. Assim, finaliza dizendo achar melhor deixar a 462 O limite dessa acepção seria exposto por Cruz Gouvea, que, ao rebater a fala de Carneiro de Campos sobre a aclamação no Rio de Janeiro. diz: “quando vejo culpar o povo por aquele acontecimento que produziu a desordem da praça do comércio, e dizer-se que assim obrara por se arrogar o exercício da soberania, admira-me vê-lo elogiada até com o titulo de imaculado, por ter aclamado, o Sr. D. Pedro I, pois neste ato fez também o que só a nação podia fazer como soberana”. Ou seja, a fragmentada legitimidade do povo seria bem aceita quando fosse para conferir substância à persona de Dom Pedro I; noutro, porém, seria recusada como referência para a política para além da Assembleia. AAC, 1823, p. 169. 463 AAC, 1823, vol. 1, p. 167. Essa seria a tônica da fala de Carneiro em outros momentos. Na sessão de 16 de junho, por exemplo, afirmando não estar convencido de que os males das províncias viriam da forma dada à juntas de governo, diria que “a mudança repentina da escravidão para a liberdade, e a inteligência errada da expressão soberania do povo, e do mesmo termo liberdade, espalhada por indivíduos de tenções sinistras entre os povos, ou dada por estes mesmos, como noviços em doutrinas constitucionais, têm sido, no meu entender, as causas principais das desordens que têm desassossegado as províncias.” (Vol. 2, p. 77-78) 464 “[há] o partido europeu que não aprova a nossa independência, e que se não sobressai é porque não pode; há o partido democrático, e há o da monarquia constitucional, que é o nosso.” AAC, 1823, vol. 1, p. 167. 184 reforma “para o tempo em que os povos estejam mais acostumados às novas instituições, e esta assembleia tenha adquirido mais força moral”465. Para o deputado Rodrigues de Carvalho, porém, foram as determinações de Portugal que haviam provocado essa visão de soberania nas províncias. E usaria exatamente o termo que esticava o potencial interpretativo das ações no período: “revolução”. Para ele, “o tempo era de revolução, em que todos querem tudo a um tempo”466. E mais: “Os escritores que deviam conduzir a opinião publica, explicando qual era a essência da soberania da nação e a sua indivisibilidade, entrarão a lisonjear o povo e em breve tempo foram tantas as soberanias quantas as províncias” 467 . Na interpretação de Rodrigues de Carvalho, havia um claro problema de direção política: em tempos fugidios, com significados reinterpretados e disputa entre concepções de mundo, caberia àqueles intelectuais – os “escritores” – conduzir a “opinião pública” nos termos de um consenso que incorporasse, sob os auspícios da Assembleia, da monarquia constitucional e da definição de “nação” e “novo tempo” que ali se desenhava, todas as demais interpretações produzidas na sociedade imperial à que se fortalecia a partir da Corte468. Para tanto, conclamava o mesmo deputado: “emendemos esta forma de governo, que foi feita no fogo da revolução, que longe de produzir bens, tem causado males, e que o governo de Portugal aprovou, e cuidou em conservar (...). Finalmente deixando teorias, sigamos a pratica, a mestra dos governos; que mostra ela?” 469 O “novo tempo” não deveria fazer tabula rasa do passado, da experiência; a dialética entre conservação e novidade deveria ditar o ritmo das transformações apropriadas ao Império que nascia. Tratava-se, no fundo, de analisar as causas de uma situação que, todos concordavam, apresentava-se instável. Se era verdade, como queria o deputado Costa Aguiar, que “em todas as revoluções (...) há causas que preparam e antecedem as mesmas revoluções, e causas e efeitos que as acompanham, e se lhes seguem”, então poder-se-ia afirmar, no caso do Brasil, que aquelas causas “já existiam, quero dizer o Idem, 167. Carneiro de Campos voltaria ao assunto em outra sessão: “A mudança repentina da escravidão para a liberdade, e a inteligência errada da expressão soberania do povo, e do mesmo termo liberdade, espalhada por indivíduos de tenções sinistras entre os povos, ou dada por estes mesmos, como noviços em doutrinas constitucionais, têm sido, no meu entender, as causas principais das desordens que têm desassossegado as províncias.” AAC, 1823, vol. 2, sessão em 16 de junho, p. 77-78. 466 AAC, 1823, vol. 1, p. 177. 467 Idem, p. 177. 468 É nesse sentido que posse ser compreendida a fala de Andrada Machado, em outra ocasião: “É mister que nos persuadamos que os governos não podem ser opostos às opiniões dos governados; governo que se opõe à opinião conhecida do povo deixa de ser governo em breve tempo.” (Vol. 2, p. 85) 469 AAC, 1823, vol. 1, p. 177. 465 185 despotismo do governo e dos seus agentes; a corrupção geral dos costumes e mesmo certo progresso de luzes, que de tempos a esta parte felizmente se tem difundido e derramado com mais velocidade pelas diversas partes do Brasil.” 470 O tempo antigo se dissolvia por um misto de arbitrariedade dos que nele dominavam (“mais desumanos, alguns deles, que os próprios pachás da Turquia nas malfadadas províncias da Grécia”471) e pela “corrupção geral dos costumes”; associada a essa decadência, as luzes se difundiam “com mais velocidade” pelo Brasil, permitindo uma resposta à situação precária; forma-se a mistura revolucionária que, inevitavelmente, traria males, cabendo aos sujeitos conduzir as práticas de forma a minorar a situação. A sensação de velocidade que o espraiamento das luzes sugeria, se não bem controlada, corria o risco de exagerar-se e produzir males tão ruins quanto, ou até piores (pois corria-se o risco de anomia social) do que aqueles que se buscava combater. O fiel dessa balança era o “povo”, ainda não completamente banhado pelas luzes, posto que a passagem do “tempo velho” ao “novo tempo” não se dava em uníssono. O deputado Xavier de Carvalho, por exemplo, também criticaria o projeto de Andrada Machado, considerando não ser ainda hora de uma lei assim. Para ele, “Quando o povo estiver ilustrado pelo andamento dos negócios políticos, quando ele vir todos os seus direitos garantidos na constituição, por que suspira, então será o momento oportuno de estabelecer a forma duradoura dos governos das províncias.”472 O deputado Alencar, também contra o projeto, afirmaria que não são estes [do projeto] os meios de se desvanecerem as desconfianças; só a constituição pode dissipá-las. Sem a constituição, essa obra do nosso assíduo trabalho, da nossa boa fé, e do profundo conhecimento que nós temos do espírito e ideias do povo e das circunstâncias do nosso país; essa obra, digo, que sairá (como eu espero) adaptada e amoldada aos nossos constituintes, é a primeira que lhes devemos mandar, e é a única que desviará suas desconfianças. É com ela que lhes mostraremos a firmeza do nosso caráter e o desvelo que temos por não enganarmos a confiança que de nós fizeram a principio; é finalmente só ela que fará a estabilidade de todas as cousas brasileiras, e firmará as opiniões de todos. 473 A noção de experiência e circunstâncias é fundamental para o bom entendimento da política. A trajetória histórica que levou a esta, e não àquela situação precisa ser bem compreendida por aqueles que tencionam governar, ou o caminho a ser seguido traria 470 AAC, 1823, vol. 1, p. 177. Idem, 178. 472 AAC, 1823, vol. 2, p. 71. 473 Idem, p. 75. 471 186 frutos desastrosos 474 . Tal seria a lição da História para o bom governo, tendo a Constituição de atender a essa necessidade. É esse o conteúdo da fala do deputado Andrade Lima, outro contrário a elementos do projeto, ao afirmar que é uma máxima bem conhecida em política que nem sempre a melhor instituição considerada em abstrato, é a melhor na prática. Uma lei que fizesse a felicidade de um povo dado, faria igualmente a desgraça daquele, cujo estado mental, e prevenções recebidas estivessem em manifesta oposição com o espírito, e disposição da dita lei. 475 “Ser-nos-á lícito, a nós procuradores da nação, impor à mesma nação uma lei contraria ao seu sentimento e vontade soberana?”, questionaria o deputado. 476 Seu colega Henriques de Rezende entendia isso. Na discussão do artigo 3º 477, que definia o presidente das províncias como executor e administrador geral da mesma, sendo de nomeação direta do imperador e amovível ad nutum, o deputado propõe o seguinte: “Será da nomeação do imperador, mas tirado de entre as pessoas da mesma província”. Considera que, assim, evitaria o fato de que “os povos (...) pensariam que era um homem de feição, mandado para torcer a opinião publica e forçá-los a receber o despotismo que eles entendem que do Rio de Janeiro pretende estender-se a todo o império”478 A sombra passada do despotismo assombrava as circunstâncias do tempo presente, exigindo dos deputados capacidade para inserir elementos da nova temporalidade num povo ainda sujeito às heranças da temporalidade antiga. Os deputados enxergavam o fosso aberto entre si, antenados à modernidade civilizatória e entendidos das novidades que os tempos coevos ofereciam, e “os povos do vasto império”, ainda presos às conseqüências da nefasta herança do barbarismo resultante Cavalcanti de Lacerda, noutra discussão sobre o mesmo projeto, não querendo entrar na “difícil e importante questão, de qual seja a forma das administrações provinciais mais adaptável às circunstancias peculiares do Brasil”, pois julga tal ponto superior às suas forças. (volume 1, 27 de maio, p. 180), diria que o receito de “acertarmos com o verdadeiro remédio de tais males” não deve ser desculpa para não agir, pois “o mesmo inconveniente existirá a todo o tempo e nós jamais saberemos quais são os governos que mais convém ao Brasil: a experiência somente e não as teorias é que nos hão de servir de farol na indagação desta verdade” (180-181). Sujeitos banhados pelas luzes, atentos ao farol da experiência histórica, seriam os únicos capazes de garantir a realização do “novo tempo”, em superação ao “velho tempo”, sem o risco de desagregação social. Igualmente, na mesma sessão, Alencar diria que “as teorias nem sempre são praticáveis; é necessário às vezes modificá-las; e esta modificação depende sempre da índole, localidades, e mais circunstâncias dos povos” (181). 475 AAC, 1823, vol. 2, p. 83. Continua dizendo que olha somente os povos. “Os povos deste vasto império, Sr. Presidente, há longo tempo calcados pelo despotismo dos delegados dos monarcas, olham com horror para tudo quanto é fabricado no segredo dos gabinetes.” Diz que essa organização de governo seria boa “se eles [os povos] em fim não estivessem, como aqui se tem dito, tão exaltados, e em uma desconfiança quase completa de tudo o que se faz no Rio de Janeiro.” (p. 83) 476 Idem, p. 83. 477 Artigo terceiro, que dizia: “O presidente será o executor e administrador geral da província; será da nomeação do imperador”. 478 AAC, 1823, vol. 2, p. 84. 474 187 dos três séculos de colonização – cuja referência arriscava deslizar-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, que poderia ser considerado um novo lócus de produção do despotismo. A solução? Propõe o mesmo Henrique de Resende: “É necessário, Sr. Presidente, acostumar os povos a ver nas autoridades publicas a lei, e não os homens; obedeça-se a lei, e não importa o individuo que a executa.”479 Carneiro de Campos sabia dessa necessidade. Para ele, os povos conservam mui viva a lembrança do jugo pesado que suportaram; estão ressentidos do despotismo mas não se pode negar que alguns o foram, e tanto basta para os flagelos que destes sofreram os fazerem minimamente desconfiados e cautelosos. Não só os nomes e títulos, também as analogias têm uma força mágica 480 Analogias entre presente e passado poderiam ser mais fortes do que os conteúdos específicos de cada um. Ou seja, ainda que o projeto do presente seja de outra ordem, de outra origem, banhado pelas “luzes do século” e dos “ilustres deputados mui liberais”, ainda assim o passado exerceria toda sua força e pressão, sob forma de analogias de formato, que esmagariam os conteúdos específicos e poderiam estimular revoltas. Assim, Campos reforça que a lembrança do despotismo atingirá esses povos inevitavelmente, até porque “eles não têm as suficientes luzes para distinguir estes [os presidentes] daqueles [os governadores] (...)” 481. A ausência das luzes impediria uma diferenciação histórica precisa, engolindo, assim, os particularismos e esticando a presença do passado despótico em dias entendidos como não-despóticos. Os “princípios do século” encontravam, aí, uma barreira alterando o ritmo de seu avanço. Noutra dimensão, porém ainda dentro dessa lógica, os “princípios do século”, ou “do tempo”, elevavam-se à categoria de tribunal da política. Teorias, decisões, debates, argumentos, tudo passa a submeter-se ao império das circunstâncias. Para os constituintes, definir a vontade da nação seria atender, simultaneamente, às circunstâncias do tempo histórico. A justificativa usada por Henriques de Rezende, na discussão anteriormente citada do artigo 3, sobre a nomeação dos presidentes de província pelo Imperador, era “propor alguma emenda que conciliasse o sistema atual e os direitos do imperador com as circunstâncias do tempo, que são a maior autoridade do mundo.”482 Sua intervenção nessa discussão – propondo que o escolhido pelo imperador 479 Idem, p. 84. Idem, p. 87. 481 Idem, ibidem.. 482 AAC, 1823, vol. 2, p. 83-84. 480 188 fosse tirado dos membros da província em questão - se pautava pela ideia de “conciliar este decreto com as desconfianças em que estão os povos”, pois tratava-se de uma medida que requerem as imperiosas circunstâncias do tempo: máxime quando pelas leis antigas, segundo a minha ideia, nenhuma pessoa de fora (ao menos para Pernambuco) podia ocupar os empregos municipais e outros; e todavia não houve por isso rivalidades, porque as circunstâncias do tempo assim o exigiram. 483 Henriques de Rezende, como outros, estava convencido de que “as circunstancias do tempo têm muito império sobre nossas particulares ações e sobre a organização das leis.” 484 Esse entendimento, que parte de uma concepção de mundo geral, quando aplicada àquele tempo específico ganhava coloração própria. Afinal, ainda segundo o mesmo deputado, “Não há cousa mais fácil do que confundir; e cada um quer que as cousas sejam dirigidas segundo as teorias e imaginações que têm na ideia”. E faz um apelo: Senhores, metafísicas não regem o mundo: a época presente é verdadeiramente revolucionária, e nas revoluções os princípios todos são atropelados: o governo no estado presente é obrigado a ir levando a barca como quer o ímpeto da corrente, apenas dirigindo o leme em ordem a se não quebrar em algum cachopo. É necessário que o rigor dos princípios ceda às circunstâncias: é o que temos feito, e é o que somos obrigados a ir fazendo ainda. 485 Falava o experiente revolucionário de 1817. E diria mais. Afirma não ser de opinião que os governos das províncias tenham tanto poder, “mas que se há de fazer?”, pergunta. Afinal, “a época é crítica: é preciso ceder um pouco do rigor dos princípios, por duas razões: para que o governo faça e não o povo; e para que o governo faça por lei, e não por arbítrio, e por circunstâncias.” 486 A integração plena presente no discurso incorporado ao oficialismo em 1822 cedia lugar, agora, a uma distinção entre “povo” e “representantes da nação” que deveria ser resolvida em favor dos últimos, já que deixar às mãos daqueles a condução do processo, considerando-se a época crítica, significaria um risco de “quebrar em algum cachopo”. Se a época presente, “verdadeiramente revolucionária”, atropelava todos os princípios metafísicos, era preciso inverter a 483 Idem, p. 86. AAC, 1823, vol. 2, p. 119. 485 AAC, 1823, vol. 2, p. 140. 486 AAC, 1823, vol. 2, p. 141. Carneiro de Campos também cederia a essas necessidades. Diz que, a princípio caberia ao povo a suspensão, demissão ou destituição dos membros do conselho provincial. “Porém em política não basta atender a direitos abstratamente, muitas considerações devem entrar em linha de conta quando se trata do seu exercício.” (p. 142) 484 189 interpretação social e partir do contexto histórico específico para a produção da direção. O “ímpeto da corrente” determinava o posicionamento e justificava qualquer política. Essa lógica seria fundamental para a construção futura de posicionamentos que apenas aparentemente apareciam em contradição com o discurso, como no caso da escravidão.487 O deputado Ribeiro de Andrada sintetizaria essa sensação, defendendo-se de acusações lançadas por um jornal, desta forma: “eu sei que estamos na época desgraçada das paixões, e que nesta se transforma em crime a virtude, e a virtude em crime”488 A época crítica pautava a direção política; as necessidades do “novo tempo” ditavam as decisões dos homens do “velho tempo” que precisavam, agora, conduzir a barca no ritmo da corrente, torcendo para não encontrar o cachopo que destruiria toda a embarcação. Esses homens do “velho tempo”, frente à exigência de agirem no “tempo novo”, banhados pelas luzes do século, tornavam-se os propugnadores da construção do novo Império na América ao mesmo tempo em que conferiam um sentido e um significado para seu passado, seu presente e seu futuro. Isso pode ser mostrado na forma pela qual os debates levaram em consideração a simples questão: se a passagem do “tempo velho” ao “tempo novo” foi fundamental para sincronizar o Brasil com os “países cultos” europeus, afastando-o dos espaços despóticos e dos anos de opressão e escravidão, então quem, de fato, foi responsável por essa passagem? Quem tecia os fios da mudança do tempo, que também eram os fios da elaboração de uma consciência nacional e de um Estado territorial que se pretendia autoridade central sobre os múltiplos espaços herdados da colonização? 4.3) As heranças do tempo antigo na nova nação Nesse ponto, os debates em 1823 seguiram a tendência entre apoiadores e opositores do Imperador e da Assembleia no que se refere à questão da representatividade e da soberania nacionais. Para Andréa Slemian, em relação à Constituinte, duas posições distintas saltavam aos olhos: a dos que valorizavam o papel dos representantes e da Assembleia (Legislativo) na elaboração do pacto, pois não o consideravam ainda constituído; e a dos que 487 488 Conforme veremos no capítulo 5. AAC, 1823, vol. 5, p.30. 190 reconheciam a autoridade do imperador de antemão, pois que assim já teria sido reconhecido pela “nação” (...).489 A disputa por saber se a nação depositara sua vontade na Assembleia ou se no Imperador, ou se haveria um equilíbrio marcado por maior protagonismo deste ou daquela, seria uma das tônicas da discussão na Constituinte ao longo daqueles meses de 1823, envolvendo, inclusive, a disputa narrativa pelas transformações recentes por que passava o Brasil. Aqueles que defendiam a persona de Dom Pedro como condutor do processo de Independência e aqueles que depositavam na Assembleia esse caminho confrontaram-se durante todo o ano legislativo, resultando os conflitos no fechamento da Constituinte pelo próprio Imperador em novembro. Como vimos, a tendência a se concentrar na persona de Dom Pedro a síntese da vontade nacional tornava o Imperador protagonista das transformações temporais e, portanto, principal agente da direção sobre os rumos que o Brasil deveria seguir para continuar no caminho de sua prosperidade. Tal perspectiva, construída e fortalecida desde as disputas de 1821-1822, chegava agora à Assembleia na fala de José Bonifácio, no discurso ao Imperador por ocasião da abertura dos trabalhos: Senhor! Estava reservado a Vossa Majestade Imperial reunir debaixo de um centro de unidade, e de força o desmembrado e nutante reino do Brasil. Estava reservado à sabedoria, e ao heroísmo de Vossa Majestade destruir as intrigas, e perfídias dos nossos encarniçados inimigos tanto internos como externos; e criar com a palavra – Eu fico – um novo império; tirar as luzes das trevas, a ordem do caos, e a força e a energia, da irresolução, e do egoísmo individual.490 A tônica do ano anterior, destacando Dom Pedro como a síntese de um movimento nacional que se reuniria ao redor dele – ou seja, a figura de Dom Pedro como um “organizador” da direção nacional – ganhava novos realces. O agora Imperador não era apenas expressão da “vontade nacional”, mas o ator central/produtor dessa própria vontade. O “desmembrado e nutante reino do Brasil”, sem a sabedoria e o 489 SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, p. 92. Segundo Barman, seguindo interpretação do enviado austríaco Von Mareschal, haviam emergido na Constituinte, a partir de maio, três blocos, ou partidos: um do Ministério, ligado aos Andradas, buscando um “modelo inglês” de Constituição, um partido médio, oposição ao Ministério por oposição aos Andrada e mirando a França como ideal, e um “partido democrático”, composto por menos de uma dúzia de membros barulhentos, que permaneciam como uma minoria até então. Para Barman, os últimos haviam preenchido o vazio deixado pelos “radicais” desde a bonifácia, simpatizando, no limite, com o republicanismo. Cf. BARMAN, BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation (1798-1852). Stanford: Stanford University Press, 1988, p. 110-111. No centro desses debates, a questão do Imperador e da Assembleia ocupava posição central. 490 AAC, 1823, vol. 1, p. 36-37. 191 heroísmo de Dom Pedro, incapaz seria de romper as trevas, o caos, a irresolução e o individualismo egoísta que até então o caracterizavam. A força dos laços a construir a identidade nacional dependia, na fala de Bonifácio, diretamente do Imperador. A passagem do “tempo antigo” ao “tempo novo”, de luzes, ordem, energia e força, aparecia como possível pela ação firme de Dom Pedro I, cuja manifestação concreta afirmava-se no Fico como marcação daquela passagem. Recuava-se mais ainda o começo do Império do Brasil, minimizando-se as tensões que levaram à convocação da Constituinte (no lugar do Conselho de Procuradores) e, posteriormente, à “bonifácia”. Recuava-se a marcação do novo império, do “tempo novo”, para um momento então totalmente identificado com o apelo pleno a Dom Pedro, aquele último no qual sua figura destacara-se com força mais completa, sem divisões de protagonismo 491. Mais: continua Bonifácio afirmando que nós, os legítimos representantes da nação brasileira, livre e independente, havemos de ter sempre ante os olhos, na gloriosa carreira que começamos; o bem duradouro da nossa pátria comum, das nossas províncias, das nossas famílias, e de cada cidadão em particular: certo, não nos podemos esquecer jamais que a Vossa Majestade devemos a brilhante carreira, já tão gloriosamente encetada, na qual sem dúvida espero que marcharemos com prudência, sabedoria e firmeza, para felicidade da pátria, honra do trono, imortalidade no nome brasileiro, e admiração das outras nações civilizadas, que nos observam e contemplam492 Além da já contumaz preocupação demonstrada com a necessidade de marcharse com prudência, seguindo firme o caminho dos que marcharam antes, e da expectativa de inserção do Império no rol das “nações civilizadas”, a partir da perspectiva de uma admiração a ser despertada pela observação atenta entre “iguais” (na lógica daquela inversão caracterizada por Ilmar Mattos como máscara de uma dependência que se afirmaria com mais força décadas à frente, no momento em que a Inglaterra assumiria a antiga face metropolitana da “moeda colonial” 493 ), podemos perceber na fala de Bonifácio um escalonamento que associa ações dos “legítimos representantes na nação O imperador, em resposta, após afirmar que a seguir-se o rumo de Portugal, “se converteria para nós em escravidão”, indica que o que quebrou isso foram os “heroicos esforços que por meio de representação fizeram primeiro que todos, a junta de governo de S. Paulo, depois a câmara desta capital, e após destas, todas as mais juntas de governos e camaras, implorando a minha ficada.” (Sessão de 3 de maio, p. 38). Os destinos da nação, conduzidos pela ação heróica de Dom Pedro, são também produto do esforço da própria nação em fortalecer a condução do imperador. O povo, representado pelas juntas e câmaras, articula-se a Dom Pedro num momento ainda em que a representação da soberania é um campo aberto a interpretações variadas. 492 AAC, 1823, vol. 1, p. 37. 493 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 21-29. 491 192 brasileira” a uma sequência que vai da “pátria comum” a “cada cidadão em particular”, passando pelas “nossas províncias” e “nossas famílias”; nação imaginada que coordena todos os elos espalhados pelo território do Império à mesma marcha histórica conduzida pelo Imperador. Em outras palavras, a conexão indicada submete todos os elementos do Império brasileiro ao ritmo do desenvolvimento histórico identificado a partir do olhar do velho estadista do império luso-brasileiro (desenvolvimento que, de novo, dá lugar essencial à figura de Dom Pedro). Uma releitura de suas bases para a delegação paulista que se dirigiu ao Congresso de Lisboa, quando a preocupação central era com a relação hierárquica entre nação portuguesa e província, passando pelo reino do Brasil, destacando-se, como conexão entre essas realidades, o espaço do governo. 494 É essa específica relação dialética entre nação e governo que confere ao nascimento do Império do Brasil ares tão destacados. A interpretação na resposta à Fala do Trono, por exemplo, feita pelo presidente da Assembleia, retoma a questão da peculiaridade do Brasil, destacando que “a novidade deste mesmo espetáculo soberano, e majestoso, pela primeira vez ostentado no Brasil, e raras vezes visto no resto do mundo”, era possível não pela pompa, nem pelo “entusiasmo patriótico de uma nação inteira, que despertando da miséria e do opróbrio, em que a tinham agrilhoado, grita pela liberdade, reclama os seus direitos, e exige um governo justo, e digno de homens.” 495 Pompa e entusiasmo no levante de uma nação oprimida não eram acontecimentos inéditos em momentos assim. Afinal, diria, “não há uma nação que não possa apontar alguns destes acontecimentos, como épocas notáveis da sua historia, e que são realmente o resultado, e o desenvolvimento das paixões humanas no estado social, efeitos espontâneos da natureza moral do homem.” Como visto anteriormente, na lógica da história como história da liberdade, fortemente presente aqui, os levantes como o despotismo eram decorrências naturais da opressão sobre o estado natural da humanidade. A questão era outra. E continua o presidente: normalmente esses acontecimentos andam separados, raras vezes se ajustando para se combinarem e “produzirem um só fenômeno, que identifique a grandeza, e a gloria de um príncipe com a justa liberdade; Nas “Lembranças e Apontamentos”, de autoria de Bonifácio, as recomendações começam pelo que diz respeito à “organização de todo o Império Lusitano”, passando depois ao que se refere ao “Reino do Brasil” e acabando “pelos que tocam a esta Província em particular [São Paulo]”. Cf. BONIFÁCIO, José. Lembranças e Apontamentos do Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de São Paulo. Rio de Janeiro: Typhographia Nacional, 1821, p. 5 495 AAC, 1823, vol. 1, p. 42. 494 193 com a segurança e felicidade de um povo.” 496 O Brasil não apenas atravessava os processos históricos de modo semelhante a outras nações e épocas, mas produzia uma novidade, aos olhos do Presidente, que consistia exatamente na fórmula que encontramos anteriormente no Reverbero e, anos depois, ainda marcaria o movimento do Regresso: “a maior soma de liberdade com maior e mais perfeita segurança” 497. Essa combinação, tônica saquarema no momento de exercício de sua direção, tornava-se meta a ser alcançada no momento mesmo de fundação do Império, quando a combinação entre potência nacional e ação governativa poderiam manter um equilíbrio que aparecia aos contemporâneos como um “fenômeno”. Fenômeno que produzia, nas palavras de Andrada Machado, não uma “liberdade espúria, ou antes licença, que marcha sempre ataviada com as roupas ensanguentadas da discórdia”, mas, sim, uma verdadeira liberdade, filha de uma regeneração, que pesa com prudência o bem, e o mal das inovações políticas, que não sacrifica a geração presente à futura e menos abandona o interesse real do individuo, que sente ao presumpto [sic] de coleções metafísicas, que estão fora da esfera das sensações. 498 O que antes aparecia como prescrição no Reverbero e na interpretação até 1822 ganha agora ares de realização histórica. A presença de Dom Pedro possibilitara ao Brasil superar os desvios da trajetória e escapar dos futuros que se apresentavam no momento em que, dentro da lógica da história da liberdade, o levante inexorável avançara sobre a opressão portuguesa. O Brasil escapara do pior. Um “grande fenômeno político” que, voltando às palavras do Presidente, nunca se pode realizar na infância dos povos bárbaros, nem na decadência dos povos corrompidos, e desmoralizados; este fenômeno raro só o tem podido apresentar à contemplação do mundo aquelas nações ditosas, que se tem perfeitamente constituído, e civilizado; e é este o mesmo grande fenômeno, que agora temos diante dos olhos. 499 O Brasil realizara algo inédito, e esse ineditismo fora possível apenas porque o país encontrava-se na perfeita constituição nacional e civilizacional. A descrição do fenômeno recente passado projetava as intenções do futuro. O presente era assegurado discursivamente pela ordenação inevitável ao país que combinava ação do Imperador 496 Idem, p. 42. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit., p. 160. 498 AAC, 1823, vol. 1, p. 68. 499 AAC, 1823, vol. 1, p. 42. E completaria: “Oxalá que nas revoluções dos anos, e dos séculos sempre cá nos traga um aumento progressivo da gloria, e das prosperidades que esperamos” (p. 42). Afinal, este seria um dia a ser abençoado pela mais “remota posteridade” (p. 43). 497 194 com condições objetivas necessárias. Superado o “velho Portugal” – este, sim, interpretado como corrompido – e compreendido o Brasil como superação da barbárie, o futuro se abria para a construção do Império que faria inveja às demais nações do mundo civilizado. Agora se tem o “mesmo espírito, respirando uma só vontade e formando um só corpo vivo e vigoroso”. O Brasil, no auge de seu desenvolvimento histórico, na maturidade de sua formação, rompendo os grilhões e apresentando-se pleno de vigor ao mundo, encontrava-se na época exata para realizar plenamente seu potencial. Interpretação que pode ser vista na discussão do já mencionado projeto sobre naturalização proposto originalmente por Muniz Tavares em sessão de 22 de maio. Nas palavras do deputado Alencar, O que éramos nós ainda no principio do ano passado? Todos formávamos uma sociedade, a que se chamava nação portuguesa: todos éramos membros dessa família, todos gozávamos dos direitos de cidadão português. Que sucedeu depois? Os membros dessa mesma família, que habitavam esta parte da nação, chamada Brasil, usando dos direitos inalienáveis e imprescritíveis que têm os povos de se declararem independentes, quando chegam ao estado de virilidade, conhecendo ter chegado a época dessa virilidade, e que já não precisavam de tutor; reconhecendo os recursos extraordinários que tinham dentro de si para sustentar a sua independência, e agravados finalmente das Cortes de Portugal, que nada menos queriam do que escravizá-los, romperão os laços sociais que os união a Portugal, proclamarão sua independência, e formarão um novo pacto, uma nova sociedade e uma nova família, a que chamarão nação brasileira; (...). 500 O Brasil, como parcela original de uma família única que envolvia várias partes do mundo – a nação portuguesa –, desenvolvendo-se ao longo dos séculos de colonização, atingira a maturidade e, seguindo o destino dos povos que assim caminham, uma vez alcançada a “época da virilidade”, passou a dispensar tutoria e, graças ao gatilho das Cortes opressivas, rompera os laços que o ligavam a Portugal e fundara um novo pacto: a nação brasileira. A mutação nas formas de identidade nacional, constante nos movimentos americanos da passagem do setecentos para o oitocentos, era um dos motes a exigir uma interpretação histórica para aqueles anos de transição501. Assim diria Carneiro de Campos na mesma discussão, afirmando que 500 AAC, 1823, vol. 2, p. 103-104. Rodrigues de Carvalho concorda mais à frente: A nação até então [a independência] compunha-se do reino do Brasil, e dos da Europa, era uma só; separou-se em duas e cada um seguiu a sorte daquela parte a que se uniu.” (p. 109-110). 501 Cf. a discussão já feita a partir de JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). MOTA, Carlos G. 195 O Brasil era um reino que formava uma parte integrante da nação portuguesa. Todos os indivíduos que compunham aquela nação eram cidadãos portugueses, embora fossem nascidos em Portugal, suas ilhas adjacentes, ou em as suas possessões da África e Ásia, ou neste nosso vasto e rico país. O nome que então tínhamos de brasileiros não significava como hoje uma qualidade na ordem política, indicava somente o lugar do nascimento; assim se chamam beirões, transmontanos, algarvios etc., os nascidos nas províncias da Beira, Trasos-Montes ou reino do Algarve, sendo aliás todos estes, como nós éramos, cidadãos portuguezes.502 O “ser brasileiro” passa de status geográfico para identitário com o processo de independência, na lógica apresentada pelo deputado. Dessa forma, diria ele, Deixamos de ser portugueses e passamos a ser brasileiros, desde que pela insurreição do Brasil se dissolveu o antigo pacto social que nos ligava à monarquia portuguesa, e proclamamos a nossa independência, constituindo-nos em uma nova nação, distinta e separada absolutamente da portuguesa por um novo pacto social.503 A insurreição, processo considerado natural no desenvolvimento das nações, provocara a dissolução dos velhos pactos e o estabelecimento de um novo. “Nesta associação política não entrarão só os que nascerão no Brasil; ela compreendeu todos os que eram membros da antiga nação, residentes neste país, ou fossem nele nascidos ou na Europa”. Era mais do que uma questão geográfica: era uma questão de adesão racional ao novo pacto, ou uma perspectiva liberal do conceito de nação.504 Esse novo pacto pressupunha relacionar-se com a herança da antiga nação portuguesa – o que implicaria também relacionar-se com as heranças do “velho tempo”. Aqui a questão se complexificava: por um lado, a lembrança do despotismo assombrava os adeptos das luzes do século, cuja expansão necessariamente significava a dissolução das velhas estruturas; por outro lado, a herança portuguesa era garantia de inserção no clube das “nações cultas”, nivelando o Império ao corte das nações tidas por civilizadas. Um projeto do deputado Pereira da Cunha, apresentado na sessão de 5 de maio, vai nessa direção. Considerando que a nação brasileira se achava “felizmente representada nesta soberana assembléia para organizar uma constituição”, com vistas a se obter “o desejado fim da nossa independência”, Cunha apontava similitudes entre o processo brasileiro e outros: “separados nós da monarquia a que pertencíamos, nos (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000, p. 127175. 502 AAC, 1823, vol. 2, p. 121. 503 Idem. 504 HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, cap. 1. 196 ficou, com os costumes e com a linguagem, a mesma legislação: igual sorte aconteceu a Portugal quando se desmembrou da Espanha no século undécimo.” 505 Nessa ocasião mencionada, sobrepuseram-se leis e se acumularam legislações produzidas a partir de então. “Por isso, limito-me a lembrar que as diversas épocas pelas quais temos passado, variando em suas circunstâncias, exigem imperiosamente alguma medida que regule a legislação, enquanto se não conclui a nossa constituição, e se não forma um código civil de que tanto necessitamos.”506 Da mesma maneira, o desmembramento do Brasil de Portugal, situado a 12 de outubro na fala do deputado, quando da aclamação de Pedro I, foi marcado pela sobreposição de leis vindas de diversas fontes de autoridade, fosse Dom João VI, fossem as Cortes portuguesas, fosse a legislação prévia portuguesa. Como forma de resolver essa questão, Cunha propunha lei que previa o cumprimento da legislação prévia, desde que chancelada pelo Imperador.507 Cunha argumentava que, assumindo a nação brasileira sua soberania, ficou conservando as mesmas leis políticas e civis que a governavam, até que se consumassem nossos trabalhos, aos quais nos prestamos com o fervor e assiduidade que exige nossa obrigação, e patriotismo; mas esse consentimento tácito da nação, devia ser explicitamente declarado por esta augusta assembleia, a quem está cometido o alto exercício de legislar. Esta tem sido a pratica das nações; que mudando de forma de governo, ou de dinastia, têm autorizado a legislação anterior, em quanto novas leis adaptadas ás suas circunstancias, não formão o complexo da jurisprudência pátria.508 A herança portuguesa aparecia como necessidade para o “bom legislar”, visto que se não pretendia inaugurar uma nação do nada, tampouco romper definitivamente ou abruptamente com o passado – ainda que esse passado pudesse ser qualificado, na retórica interpretativa mais geral, na síntese dos “três séculos de opressão”. O Brasil que não rompia plenamente com seu passado era uma nação filha desse passado, nele se ancorando para mostrar que, apesar de ainda ser nova, não se deveria apresentar como nada menos do que inserida na tradição, garantia de ser civilizada. Esta era a preocupação de Maciel da Costa quando, pedindo a palavra, expõe na Constituinte aquilo que sobressaltou o seu coração “logo que tive ainda na Europa a notícia da instalação desta assembléia”. De acordo com o deputado, havia “o receio de 505 AAC, 1823, vol. 1, p. 46. Idem, ibidem. 507 Idem, p. 47. 508 AAC, 1823, vol. 1, p.63. 506 197 que ela, não traçando a esfera dentro da qual fossem irremissivelmente circunscritos seus trabalhos, caísse nos tropeços e embaraços em que caíram as cortes de Portugal, e foram a causa original de sua perda.” Para ele, tais tropeços e embaraços referiam-se a um “furor de legislar [que] arrastou-as a mexer em todas as instituições”. O resultado disso “foi o que se devia esperar: em pouco tempo, ninguém se entendia; não apareceram os frutos ansiosamente desejados pela nação, o descontentamento foi geral, e o edifício foi à terra.”509 O “furor legislativo” da Constituinte apagava a tradição de certas instituições que, não obstante o pacto nacional da Independência, não deveriam ser mexidas. Esse furor poderia avançar sobre elementos que deveriam ser mantidos inalterados, haja vista que já constituíam parte significativa do edifício da nação. A saída para a manutenção sadia desse edifício, evitando sua ruína, seria a percepção de que nem tudo poderia ser alvo da política da Assembleia, não obstante alguns defendessem que a ela caberia a plena representação da nação.510 O discurso o faria ser acusado pelo deputado Montezuma, de acordo com registro do taquígrafo, de avançar “proposições anárquicas e subversivas”. Responde afirmando que “se minha proposição é anárquica, protesto que é por erro de entendimento e não da vontade: sou incapaz de professar e menos de proclamar, com conhecimento de causa, princípios anárquica”. E arremata com outro discurso, reafirmando nós não somos uma nação que se constitui a primeira vez; éramos já um povo com leis e governo; nada mais fizemos do que declarar que nos separávamos do reino de Portugal, e elevar ao trono particular do Brasil o herdeiro de toda a monarquia. Nesta elevação ficou Sua Majestade investido do poder soberano para governar-nos como nos governava até então, salvo a sujeitar-se às mudanças que o povo mostrou que desejara, mudanças que se marcariam na constituição política que seus representantes irão fazer. Não fez pois o povo brasileiro o que fizeram os jacobinos em Portugal, que declararão o Sr. D. João VI despojado da realeza para legislarem e governarem eles sós, e quando se virão embaraçados com a sua inopinada presença naquele reino, apenas (porque não podiam mais) o constituirão executor espúrio das suas ordens, sem nenhum arbítrio no andamento do governo, o que foi em grande parte causa das desordens que recrescerão e excitarão um descontentamento geral. Felizmente não procedeu assim o povo brasileiro, e Sua Majestade Imperial tem governado e continua a governar no mesmo pé em que se achava até que a assembleia marque 509 AAC, 1823, vol. 4, p. 54. A crítica que Maciel da Costa faz ao “furor legislativo” a favor da manutenção de certas instituições se coadunará perfeitamente com sua postura a respeito do tráfico negreiro e da escravidão, como veremos no último capítulo. 510 198 por leis fundamentais as regras de conduta que os monarcas brasileiros devem seguir. Não vejo onde está aqui anarquia. 511 Não havia qualquer indício de anarquia em reafirmar que o Brasil não se fundava do nada, mas a partir de uma herança que deveria ser filtrada, não anulada. Novamente, a garantia de civilização ao Brasil recém-nascido como Estado independente era a pregação da continuidade histórica com o Brasil português. A síntese despótica dos “três séculos de opressão”, valiosa como articuladora de uma experiência histórica negativa que justificava a separação em 1821-1822, agora começava a perder sua força em nome da busca por outra articulação dessa experiência temporal com o passado português: a valorização dos instrumentos de manutenção do vínculo civilizatório, único relevante após o término dos vínculos econômico e político. Era uma questão relativa às heranças do Império, que se relacionava também a uma perspectiva de governabilidade. Assim é que, por exemplo, a proposta do deputado Maia, em 5 de maio, trazendo à discussão alguns apontamentos para uma proclamação da Assembleia aos povos do Brasil, toca na questão. 512 E, mais à frente, na sessão de 11 de agosto, Pereira da Cunha, ao pedir licença ao presidente para ler um projeto de proclamação aos povos elaborado pela comissão de constituição, faz uma narrativa sobre os eventos recentes do Brasil conectando-os à trajetória histórica de Portugal.513 Começa falando da resolução dos portugueses de dar nova forma à monarquia, com constituição sábia e liberal. Narra, em seguida, os acontecimentos que levaram à independência, dando um sentido à história recente brasileira. Nessa narrativa, Portugal surge como promotor de ações contra o Brasil eivadas de “orgulho e perversidade”. Este, por sua vez, surge como entidade já existente desde a descoberta, devendo responder ao mal tratamento de Lisboa com uma decisão: se queria 511 AAC, 1823, vol. 4, p. 55. A proclamação, pedida por alguns deputados como uma espécie de prestação de contas de seus trabalhos aos cidadãos, narrava os eventos recentes desde junho do ano anterior, quando o Brasil, desde a convocação da Constituinte, mudara “desde os fundamentos até a perspectiva” e passara a decorar o seu frontispício com o “duradouro rótulo da independência”, surgindo desligado dos laços que, “debaixo do falaz verniz de uma fraternal amizade, de uma reciprocidade, e igualdade perfeita de interesses, encobriam o peso da opressão e violência”. Ao invés do despotismo, surgia o Brasil nos apontamentos como revestido de “uma mui diferente muito mais sublimada categoria (...) pela voz uníssona do povo”: uma nação “grande, livre e independente”. Reafirmado o argumento que se desenvolvia desde 1822, como visto, passavam os apontamentos à parte seguinte, na qual mostrava que, “enquanto não pode concluir-se a importante obra da nossa constituição política; enquanto a assembléia legislativa não pode aperfeiçoas um código; nem ainda avulsamente promulgar todas as leis, que são indispensáveis para o bem regulado regime da pública administração nos seus diversos ramos, declara em seu inteiro vigor todas as leis atualmente existentes, ou sejam as do Sr. D. João VI, e seus augustos antecessores, ou sejam as das cortes de Portugal, que mereceram a sanção de Sua Majestade Imperial (...)”. Cf. AAC, 1823, vol. 1, p. 43 513 AAC, 1823, vol. 4, p. 58-61. 512 199 continuar Reino, ou passar novamente a Colônia; se ser livre e comandar-se a si próprio, ou receber as leis de “mão inimiga”. Podemos observar como a Assembleia, incorporando as narrativas presentes desde 1822 em periódicos como o Reverbero, acabar por dar acabamento à versão definitiva da narrativa das causas que levaram à Independência. O ponto de partida da emancipação, por sua vez, é indicado já no 9 de janeiro de 1822, com o Fico; “dia para sempre fausto e memorável que fixa o momento feliz da fundação deste império, e que será abençoado pelos nossos vindouros como a pedra angular do majestoso edifício da nossa independência.” 514 Nesse sentido, o papel de Pedro I é destacado: expulsou tropas, defendeu o país, convocou, sob pedidos dos povos, a constituinte e foi, assim, agraciado com o “glorioso titulo de vosso defensor perpetuo”. Assim, reconheceu a nação brasileira, que reassumindo seus mais caros e imprescritíveis direitos podia praticar os mesmos atos de soberania como os velhos portugueses tinham feito quando em 1139 aclamaram rei de Portugal a D. Afonso Henriques, e quando em 1385 elevarão a D. João I ao trono lusitano e em 1640 a D. João IV quebrados os ferros da tirania espanhola. 515 Assim como no Reverbero, novamente podemos observar datas consideradas marcantes do passado português sendo trazidas para fortalecer a lógica da eterna luta da liberdade contra a opressão. 1640, em especial, marca presença mais uma vez para fortalecer o paralelo com uma situação tida como semelhante e para justificar razões de rompimento: Portugal já o fizera, e era de seu direito fazê-lo; o Brasil assumia o seu próprio destino como terra destinada também a ser livre. A ideia de que esses direitos imprescritíveis foram reassumidos é, portanto, fundamental. Não era criação do novo, era conexão com o passado. E é Dom Pedro quem é alçado a motor central para essas transformações, já que se dedicara a sacrifícios para “preservar o belo país que habitamos dos estragos e desolação de que o ameaçavam os bárbaros da Lusitânia”, sendo justamente reconhecido em sua bravura pelo povo do Brasil, que lhe concedera, por “uníssona aclamação”, a coroa do Império. 516 A construção da narrativa da Independência, agora proclamada pela Assembleia de representantes das províncias do Brasil, atrelava em 514 Idem, p. 59. Idem, ibidem. 516 Idem, ibidem. 515 200 definitivo a imagem do Império à imagem de Dom Pedro. 517 O mesmo tipo de argumentação valeria para quaisquer projetos que não se coadunassem com a fórmula da monarquia constitucional centralizada – que também se atrelava à narrativa da Independência na fórmula que, como vimos, atribuía a ela a possibilidade de alcance da liberdade e da civilização sem os riscos da anarquia. 4.4) Os marcos da nação brasileira: Toda essa discussão passava também pela disputa e definição dos marcos que pudessem servir de suporte para lembranças e celebrações dos momentos de passagem. A questão das datas comemorativas, que atravessaria o Império ao longo do século XIX518, aparecia com força em 1823 tanto por se relacionar com os agentes centrais do processo de ruptura – deslocando a ênfase, de acordo com o dia a ser celebrado, de Dom Pedro à Assembleia –, quanto por se referir com precisão ao momento exato em que o Brasil deixara de ser porção do Império Português para tornar-se unidade autônoma. Tratava-se, em suma, de indicar o real nascimento do Brasil Independente e pôr em destaque o seu verdadeiro parteiro. No momento em questão, de início da construção de interpretações para o tempo que se inaugurava, esse elemento tornava-se essencial. Era necessário marcar não apenas os “dias distintos” que celebravam o presente, mas também as marcas do passado recente e distante. Tomemos, por exemplo, a escolha do dia 3 de maio para início dos trabalhos legislativos, por já ser considerado “dia distinto – considerava-se tal data como a do descobrimento do Brasil 519 . Em sessão de 9 de junho, em deputação enviada ao 517 Sobre esse ponto, é interessante notar o contraste com posicionamentos a respeito da fala do trono do Imperador, que prometera jurar a constituição se fosse digna dele próprio e do país. Alguns deputados se colocaram contrários a essa fala, afirmando, inclusive, que, desejasse Dom Pedro, poderia abrir mão de participação no pacto caso não concordasse com a Carta a ser produzida pelos deputados. Sobre a questão, cf. também a análise de SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild: Fapesp, 2009, p. 87100. 518 A esse respeito, cf. KRAAY, Hendrik. A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831. In: Almanack Braziliense. São Paulo. n. 11, mai/2000, p. 53-61; BASILE, Marcelo. Festas cívicas na Corte regencial. In: Vária História. vol. 22, n. 36. Belo Horizonte, jul/dez 2006, p. 494-516; KRAAY, Hendrik. “Sejamos brasileiros no dia da nossa nacionalidade”: comemorações da Independência no Rio de Janeiro, 18401864. In: Topoi. v. 8. n. 14. jan/jun 2007, p. 9-36; LYRA, Maria de Lourdes Viana. Memória da Independência: marcos e representações simbólicas. In: Revista Brasileira de História. v. 15, n. 29. São Paulo, 1995, p. 174-206; OLIVEIRA, Cecília Salles. O espetáculo do Ipiranga: reflexões preliminares sobre o imaginário da Independência. In: Anais do Museu Paulista. v. 3. São Paulo, jan/dez 1995, p. 195208. 519 A questão do 3 de maio perduraria século XIX adentro, embora Varnhagen, na sua obra, afirme o dia 22 de abril como aquele em que, “quando se achava com mais de quarenta dias de viagem”, avistou a 201 Imperador para felicitações pelo 3 de junho, discurso lido pelo capelão-mor, membro da deputação, afirma que Se a instalação da primeira assemblea geral constituinte e legislativa do Brasil é o sucesso mais glorioso da nossa história não é muito menos relevante aquele primitivo ato soberano e generoso, que convocou esta mesma assembléia dos legítimos representantes do povo brasileiro; e se o dia 3 de maio do presente ano há de fazer uma época assinada nos fastos do Brasil, também nunca passará sem louvor, e sem aplauso o dia 3 de junho do ano pretérito, que viu aparecer o decreto, que imortalizou a V. M. Imperial, e que nos deu a todos as mais doces esperanças da tranqüilidade, e da união entre as províncias, da maior força, e prosperidade para todo o Império.520 O discurso, não obstante dirija-se a Dom Pedro em felicitações pela proclamação do decreto de convocação da Constituinte, reproduz a tensão interpretativa entre os agentes do processo de ruptura e inauguração do Brasil independente. Embora aproxime o 3 de maio do 3 de junho, considera-se aquele o “sucesso mais glorioso da nossa história”, enquanto o segundo apenas “não é muito menos relevante” – “muito menos”, e não “menos”. O 3 de maio “há de fazer uma época” nos “fastos do Brasil”: é data inaugural e resplandecerá no futuro dos cronistas e historiadores. O 3 de junho, contudo, “nunca passará sem louvor”, com uma lembrança, com uma boa memória, não “sem aplauso”. As felicitações produzem uma hierarquia: o 3 de junho é louvável porque levou ao 3 de maio, e não por ser, simplesmente, uma data da Independência. O 3 de junho, de certa forma, subordina-se ao maior esplendor do 3 de maio, a reunião dos “legítimos representantes do povo brasileiro” sendo o verdadeiro ato inaugural dos fastos do Brasil futuro, enquanto o 3 de junho, de iniciativa do Imperador, garantia seu brilho como parte integrante da data maior. “O celestial decreto de 3 de junho de 1822”, continua o discurso, foi como a aurora meiga e risonha, que despontou sobre nossos horizontes melancólicos e abafados, e afugentou as trevas, as incertezas e as ansiedades de um futuro que nos ameaçava medonho, e sanguinolento: foi como o astro sereno, que depois de longa, escura tempestade resplandece nos espaços celestes, e aponta o rumo, e dá os elementos do cálculo, que pode levar a salvamento a nau do Estado por entre o furor das paixões e través da confusão das opiniões contrárias. 521 “terra desconhecida”. Cf.História Geral do Brasil, tomo.1, 1 edição, Madrid, 1854. p. 13. Ainda segundo o autor, aos 3 de maio Cabral já havia se feito “de vela para o Oriente” (p.18). 520 AAC, 1823, vol. 2, p. 35-36. 521 Idem, p. 36. 202 A convocação da Constituinte rompia com as incertezas dos rápidos anos 18211822, dando um direcionamento às angústias que dominavam os intérpretes daquele momento. Novamente percebemos a conexão entre a formação da monarquia constitucional e a boa condução da trajetória futura, afastando-se o “futuro que nos ameaçava medonho e sanguinolento”, permitindo superar-se o “furor das paixões” e guiar seguramente a nau do Estado após a “longa escura tempestade”. Conectando-se o segundo trecho ao primeiro, podemos acrescentar, então, mais um elemento: a monarquia constitucional aparecia como redentora do futuro na medida em que permitia também o avanço da representação legislativa. Dom Pedro aparecia mais como um canal ao futuro do que como o futuro em si. O discurso continuava considerando o 3 de junho como “primeiro movimento para a sua própria existência”, lançando-se a “primeira semente para a regeneração política dos povos”, que agora conferiam à Assembleia autorização para empreender os trabalhos de sua alçada e do seu desenho. E encerra fazendo a outra conexão: graças a tal ato, o Brasil “não tornaria a ser jamais colônia de uns, nem escravo de outros”, reassumindo (novamente o “re”) “a natural dignidade da sua soberania, e da sua independência, como todos os povos livres”. A linha de interpretação daqueles anos colocava cada esfera que se considerava representativa da nação em seu lugar.522 A questão das datas também dizia respeito ao momento exato de surgimento do Brasil independente. Ou seja, o momento em que a identidade portuguesa teria cedido lugar, na interpretação dos coevos, à identidade autônoma do Brasil. Voltando, por exemplo, à discussão sobre os prisioneiros da Ilha das Cobras, já abordada anteriormente, na sessão de 2 de julho entra em discussão um parecer da comissão de marinha e guerra sobre o caso. O deputado Alencar, em discurso, afirma que não poderia considerar esses homens nem como prisioneiros de guerra, nem como espiões: “eu os considero unicamente como indivíduos que não quiseram aderir à causa do Brasil.” E continua: Esses homens, Sr. Presidente, foram presos em 2 de Outubro; nessa época dávamos nós os primeiros passos para a nossa independência mas não estava ainda absolutamente proclamada; reconhecíamos o mesmo chefe, e formávamos com Portugal uma só nação. É verdade que no 522 Idem, ibidem. Em sua resposta ao discurso, Dom Pedro afirma que, na assinatura do decreto de 3 de junho, procurou “desempenhar o honroso título de defensor perpétuo do Brasil, com que tinha sido mimoseado pelos generosos brasileiros (...), mostrando quanto podia os meus puros, sinceros e cordiais sentimentos monárquico-constitucionais”. A lembrança do título de defensor, não referido no discurso original, reforçava como Dom Pedro se apresentava naquela relação. AAC, 1823, vol. 2, p. 36. 203 decreto de 18 de Setembro de algum modo se indicava a independência; mas essa mesma indireta declaração seguramente não tinha chegado à colônia do Sacramento. Em tais termos não os contemplo prisioneiros de guerra, porque o Brasil, não era então uma nação separada e diversa daquela a que fomos unidos, e a que eles pertencem. 523 O deputado França, complementando a fala de Alencar, afirma que, segundo o que examinou, esses homens “foram presos em 2 de Outubro, isto é, 10 dias antes da proclamação da nossa independência, que foi no dia 12 do mesmo mês. Antes daquele dia estávamos sujeitos à Portugal: com ele fazíamos uma só nação.”524 Dias seria outro a concordar: “sempre considero que quando foram presos não estávamos legitimamente separados de Portugal, nem a nossa independência bem proclamada.”525 E, por fim, o deputado Araújo Lima completa a sequência: “na verdade a esse tempo [da prisão] não havia propriamente separação, haviam antecedências, achávamo-nos na lide, mas não se podia dizer de que lado estava a razão, nem que éramos nação independente.” 526 O que os fragmentos acima mostram é uma certa concordância, ainda que retórica – afinal, estavam discutindo a soltura de prisioneiros, servindo o argumento a ser usado ao objetivo, moldando-se, portanto, a ele –, entre os deputados a respeito do dia 12 de outubro, aclamação de Dom Pedro I como Imperador, como a data de inauguração do Brasil Independente. Até então, o Brasil ainda seria parte de Portugal. Dom Pedro aparecia, nessa lógica, como o elemento central da passagem de um estágio a outro.527 O 12 de outubro também apareceria nas discussões a respeito de um projeto sobre a aplicabilidade no Brasil, ou não, de legislação elaborada pelas Cortes. Araújo Lima, já mencionado acima em defesa do 12 de outubro, posiciona-se a respeito afirmando que tinha ali uma lei que considerava boa – não indica qual – e que, na ausência de lei no Brasil a respeito da matéria – ele também não diz qual –, questiona a possibilidade de adoção da mesma, embora tenha sido publicada em 14 de outubro – 523 AAC, 1823, vol. 3, p. 10. Idem, p. 11. 525 Idem, p. 13. 526 Idem, p. 13-14. 527 A voz discordante, naquela discussão específica, seria de Andrada Machado, para quem “ainda que nesse tempo estava [estivesse] inteira a grande monarquia portuguesa, nós já fazíamos um partido diferente do que seguiam os portugueses europeus.” Assim, embora o rompimento não estivesse ainda efetuado, já se identificava um elemento de distinção entre os hemisférios que se aproximava da identidade nacional brasileira. AAC, 1823, vol. 3, p. 11. 524 204 ainda que houvesse saído das cortes no dia 11 anterior.528 O deputado França, sobre essa questão, posiciona-se da seguinte maneira: diz que a lei Tem a data de 11 [de outubro]; logo, foi anterior à época da nossa separação e está na razão das outras [leis] anteriores. Além de que, nem todas as outras províncias proclamaram simultaneamente com o Rio de Janeiro a sua independência no dia 12 de Outubro e isso basta para o caso. A primeira que o proclamou foi o Rio de Janeiro, logo, como se trata das outras províncias que ainda o não tinham feito? Como é que as vamos privar do direito que elas têm a essa lei?529 França não apenas reforça o 12 de outubro como data da independência, como, também, insere um dado novo: a ruptura foi feita por partes, não pela unidade inteira do Brasil-nação. Ora, se é verdade que a percepção das demoras nas comunicações era um constante do discurso do período, considerando-se a vastidão territorial do Brasil, isso não diminui a importância desse elemento novo na fala de França. Afinal, a articulação do dia 12 como inaugurador da Independência repousava sobre o fato da aclamação de Dom Pedro, e tal ato inaugural, nos discursos defensores da monarquia constitucional centralizada, era tratado como de simultânea entrega, a Dom Pedro, daquela parcela da representação nacional que lhe era devida. Daí que a instauração de distintos ritmos para a separação poderia representar uma leitura alternativa da aclamação de Dom Pedro. Afinal, se ele não foi aclamado simultaneamente por toda a nação, como justificar a predominância que se dava à monarquia constitucional como inerente ao pacto político? Daí que o deslocamento da data inaugural da Independência fosse importante. O deputado Souza e Mello, por exemplo, respondendo a França, afirmou que “o Brasil renunciou ao direito que tinha às legislaturas de Portugal, não em 12 de Outubro daquele ano, como diz o Sr. França, mas em 3 de Junho, em que se decretou a existência de uma assembléia legislativa no Brasil.” 530 A questão tornaria ao debate na sessão de 7 de outubro, a partir de uma indicação que Ferreira Araújo pede licença para apresentar. Nessa indicação faz uma narrativa dos fatos recentes, afirmando que “não há dia mais plausível para uma nação do que aquele em que começa a datar a época da sua grandeza.”531 Essa nação, o Brasil, 528 AAC, 1823, vol. 5, p. 198. Idem, ibidem. 530 Idem, ibidem. Não obstante, em outra ocasião defendeu o 12 de outubro como “dia memorável que fará época nos fatos do Brasil, e nos corações brasileiros”, por ser aquele “o dia que trará todos os anos à memória, a aclamação do imperador constitucional; com a qual se consolidou a ereção e independência deste Império, e o fausto nascimento do jovem herói para ele chamado pelo voto geral da nação brasileira.” AAC, 1823, vol. 5, p. 241. 531 AAC, 1823, vol. 6, p. 54. 529 205 mais de três séculos agrilhoado sob o bárbaro sistema colonial, ressurgiu uma vez do seu abatimento e elevou-se à categoria de Império; e este gigante, ainda no seu berço, fez alardo da sua força. A voz unânime dos povos levantou um novo trono, onde colocou uma dinastia, ilustre por suas virtudes, famosa por suas façanhas. Um príncipe, delícias [sic] dos brasileiros e tanto tempo ensaiado em promover a sua prosperidade, mereceu todos os votos que solenemente o proclamaram no sempre memorável 12 de Outubro. 532 E arremeta: “poderá esta augusta assembleia, intérprete dos sentimentos da nação, deixar em silêncio tão plausível dia?” A conexão entre Independência e aclamação mostra-se novamente com força, superando, na fala de Ferreira Araújo, o 3 de junho e, até, o 7 de setembro, cuja construção demandou mais tempo para ser consolidada.533 Para Ferreira Araújo, se o dia 7 de Setembro, em que nas margens do Ipiranga retumbou o grito da independência, mereceu deste soberano congresso a honra de ser declarado de festa nacional, o de 12 de Outubro, em que o Brasil não só fez estalar os ferros do seu antigo cativeiro, mas levantou um solo, que as ideias não abalaram, será guardado em perpétuo silêncio? (...) Este dia deve ser marcado com caracteres de ouro nos fastos do nosso Império e nenhum brasileiro se negará a concorrer para o seu aplauso.534 O 7 de setembro, nessa interpretação, era entendido como o espaço do grito de liberdade, como o momento de declaração máxima da separação. O 12 de outubro, porém, era compreendido como a efetivação do grito em concreta ruptura e construção da independência. E uma construção que criava uma sólida base inabalável a estremecimentos arriscados. Não apenas era a realização das vontades expressas no 7 de setembro, mas, também, a garantia das formas corretas de execução dessa vontade. Faz, então, Ferreira Araújo sua indicação, para a declaração do 12 de outubro como de festa nacional, que é aprovada e, em 9 de outubro, aparece como resolução a ser comunicada ao Imperador. Ambas as datas, favoráveis a Dom Pedro, aparecem como de festa nacional.535 532 Idem, ibidem. Seguimos aqui também as considerações de Kraay, para quem o 7 de setembro, não obstante fosse igualmente considerado dia de festividade nacional já desde 1823, permaneceu subordinado ao 12 de outubro até, ao menos, 1825. Cf. KRAAY, Hendrik. A invenção do Sete de Setembro, 1822-1831... op. cit., p. 55. O deputado Costa Barros já havia pedido a declaração do 7 de setembro como de festividade nacional em 5 do mesmo mês. Em seu pedido, solicita à Assembléia que “declare o dia 7 do corrente, aniversário da independência brasileira, dia de festa nacional; e que nomeie uma deputação composta de tantos membros quantas são as províncias que se acham representadas, um de cada província, afim de cumprimentar a S.M. Imperial, e agradecer-lhe em nome do império o primeiro grito da sua independência, solto por ele nas margens do Ipiranga.” 534 AAC, 1823, vol. 6, p. 54. 535 AAC, 1823, vol. 6, p. 84. 533 206 Na sessão de 13 de outubro, dia seguinte à celebração, é Ferreira Araújo quem, retornando à ribalta, profere o discurso de homenagem ao Imperador. Esperando que “os gloriosos fastos da heróica nação brasileira transmitirão com reverente aplauso às idades futuras a solenidade deste grande dia”, consolida-se, naquele momento, uma memória dos últimos acontecimentos que produz uma interpretação histórica que se coadunava plenamente com o resultado das disputas pela direção na Constituinte. Essa memória lembrava que “nas margens do Ipiranga trovejara o brado da independência”, estalando “os pesados ferros da escravidão colonial”, e que fizeram vingar sobre aquele afortunado terreno os “direitos do homem, até então sopeados, mas nunca destruídos.” 536 A história como história da liberdade encontrava um acabamento final para sua aterrissagem no Brasil, fazendo se erguer um “novo império, fundado sobre os firmes alicerces da justiça, na malfadada América, que três séculos antes vira com horror afogar-se um antigo império no sangue de seus pacíficos cidadãos, sacrificados à mais nefanda ambição, mascarada em fanatismo.”537 A data não apenas conectava o Brasil com as nações civilizadas, mas, também, conectava o Brasil à América, restaurando uma tradição imperial perdida pela “mais nefanda ambição”. Essa memória lembrava que o príncipe, descendente de uma “dinastia respeitada pelos séculos” – o tempo, esse juiz de profundo renome – , havia com habilidade “meneado as rédeas do governo, franqueando-nos os doces frutos da bem entendida liberdade, ainda antes que esta lançassem profundas raízes.” Reaparece a perspectiva da superação da opressão sem os riscos da anarquia. Essa memória lembrava como a “augusta presença” do monarca “afugentara para longe do Brasil as sanguinolentas cenas que enlutaram as outras partes da América Meridional, e com a velocidade do raio dissipara as negras nuvens da discórdia e da intriga”.538 A energia, a metáfora natural do raio iluminador, a extinguir as trevas do passado, permitia destacar novamente o Brasil do conjunto da América que decaía em conflitos internos a lhe causar horror. A virtude do príncipe, que assumira essa heróica tarefa, o inseria numa especial tradição: aquela que não empunhava o “férreo cetro do bárbaro despotismo, só válido dos Tibérios e dos Neros, mas imitando os Marcos Aurélios e Antoninos, tendo por farol as luzes do século e por alvo a prosperidade do 536 AAC, 1823, vol. 6, p. 103. Idem, ibidem. 538 Idem, ibidem. 537 207 grande povo, de que se constituía pai, e de que já era perpétuo defensor.” 539 Se o Império refletia Roma, como tantas outras tradições da política antes dele, não se referia a qualquer Roma, mas aquela bem entendida como auge da civilização. As luzes do século garantiriam, nessa perspectiva, a Roma “correta”. Por fim, essa memória, agora indicada na resposta de Dom Pedro à fala de Ferreira de Araújo, consolidava não apenas a interpretação daquela ruptura, mas, também, delimitava os sujeitos que deveriam entendê-la da maneira como era descrita. Ao declarar o “mui especial agrado” com que recebia as felicitações, Dom Pedro indicava que a elevação do Brasil a Império, como conseqüência de sua aclamação, “não pode deixar de ser festejada em separado por todo o bom brasileiro amante da bem entendida liberdade”. 540 Qualquer outra interpretação para a inauguração do Império não seria produto do cidadão brasileiro que o Império procurava criar. Exatamente um mês depois, a Constituinte seria fechada e a questão das disputas entre partidários de Dom Pedro e outras forças políticas entraria em um novo patamar. Mas a questão das definições sobre datas continuaria a ser uma discussão importante, especialmente no Senado. Em sessão de 20 de junho de 1826, fez-se, nesse espaço, a primeira discussão de projeto de lei sobre os dias de festividade nacional, de autoria do Visconde de Nazaré, Clemente Ferreira França – que participara das discussões na Constituinte, como vimos acima. O senador justifica seu projeto afirmando que “todas as nações recomendaram sempre à posteridade os dias notáveis de suas instituições, aqueles em que se praticaram certos fatos de grandeza, e heroísmo, que as tornaram célebres à face do mundo”, e que, daí, “vem a divisão, que se faz de épocas gerais, e épocas particulares”.541 Sobre essa distinção entre épocas, explica o senador: As épocas gerais são aquelas, que marcam geralmente fatos da história do mundo, como por exemplo, a da criação do mundo, a da lei escrita, a era de Cristo, etc. Épocas particulares são aquelas que marcam fatos particulares de uma nação, como são, por exemplo, a fundação da monarquia portuguesa, a aclamação do Sr. João I, e do Sr. D. João IV, acabado o cativeiro dos portugueses, o descobrimento da Índia, o do Brasil, a independência dos Estados Unidos, etc. 542 539 Idem, ibidem. AAC, 1823, vol. 6, p. 104. 541 AS, 1826, vol. 2, p. 100. 542 Idem, ibidem. 540 208 Nas palavras de França, as “épocas particulares” inseriam-se nas “épocas gerais”, o que era uma forma de distinguir a “história nacional” da “história geral”. A narrativa da história geral, porém, articulava história sagrada e história profana, ao misturar elementos religiosos com seculares, enquanto a história nacional girava tanto ao redor de feitos de “grandes indivíduos” – aclamação de reis, por exemplo – quanto transformações mais amplas que se ligavam à fundação de nações. Neste último caso, a marcação dos dias de festividade nacional simbolizariam o público regozijo que marcaria a identificação de um povo com a nação, inserindo as trajetórias particulares na lógica geral de desenvolvimento da história mundial. Aponta, em seguida, em longa citação,os marcos do seu projeto para o Brasil: o dia 9 de Janeiro, aquele, em que Sua Majestade o Imperador declarou ficar no Brasil, para o engrandecer, regenerar, e tornar uma nação independente: o dia 22 de Janeiro, que já é de grande gala por ser o aniversário de Sua Majestade a Imperatriz. (...) Segue-se o dia 23 de Março, em que Sua Majestade o Imperador mandou jurar o projeto de constituição, que sendo por ele oferecido a todo o povo brasileiro, a todas as províncias, elas não só o aceitaram, mas pediram que fosse jurado para servir como constituição do Império. Este dia é notável por ser nele que se firmou o nosso pacto social, a nossa lei fundamental do Império. Temos o dia 13 de Maio, um dos mais célebres, por ser o em que o mesmo senhor se declarou defensor perpétuo do Brasil (...). O dia 7 de Setembro é outro igualmente célebre por dois motivos: primeiro, porque nele se proclamou a independência do Brasil; segundo, porque nele se declarou o reconhecimento do Império. Temos o dia 12 de outubro, glorioso para toda a nação brasileira, dia solene, e já marcado nos fastos do Brasil, por ser o do seu descobrimento, dia do nascimento, e da aclamação do grande Pedro I, Imperador do Brasil; dia em que nasceu para felicitar esta nação nova, para constituir um novo império, que só uma mão poderosa, e filha da providência podia erigir. Segue-se o dia 1º de Dezembro, o da sua coroação: é igualmente memorável por ser o da sua sagrada unção; bem como o dia, em que nasceu o príncipe imperial, futuro sucessor, e legítimo herdeiro do trono, e virtudes de seu augusto pai.543 As justificativas para as datas apontadas são variáveis, envolvendo elementos distintos para sustentação dos marcos na construção da memória do Brasil independente. Mas um fio perpassa todas elas: a conexão profunda entre os destinos do país e os da família real, incluindo-se a data de aniversário da Imperatriz e a de nascimento de Pedro de Alcântara – embora se trocasse o dois de dezembro pelo dia primeiro. O “Fico” se torna a data de decisão de Dom Pedro para promoção da Independência, sendo seguido, nessa linha, pelo 7 de setembro, quando se proclama a 543 Idem, p. 100-101. 209 ruptura, e 12 de outubro, data de constituição do “novo império”. O Brasil nascia a partir dessas três etapas principais, e em todas o Imperador aparecia à frente. O projeto de Nazaré sintetizava essa conexão íntima entre Imperador e Brasil, e nenhum argumento no Senado iria contrariar essa ligação. A longa discussão que segue ao projeto é de outra dimensão, e iria produzir duas oposições principais, a partir de duas discussões: na primeira, ficariam, de um lado, os defensores da marcação de várias datas para celebração da festividade nacional relacionadas à Independência; de outro, aqueles que defendiam que se concentrasse a festividade nacional em apenas uma data. Em segundo lugar, a segunda oposição era entre os defensores do 12 de outubro como data central para marcação dos acontecimentos e, de outro, dos defensores de outros momentos, como 9 de janeiro ou 7 de setembro, para o destaque na memória nacional. Comecemos pela primeira oposição, aquela entre os defensores de várias datas (fundamentalmente o autor do projeto) e os da síntese em apenas uma. Em resposta a Nazaré, o Visconde de Barbacena, após considerar que, não obstante todos os dias fossem notáveis, criava-se o inconveniente de “em pouco tempo, metade do ano ser todo de festas”, caso se celebrassem todas as datas. Afirma, então, que nós temos uma feliz casualidade entre nós, que vem a ser, que a fundação do império, como o dia do nascimento do fundador dele, e todos os outros, de que se faz menção, à exceção de 22 de Janeiro, são todos de um só homem, e então era melhor que reuníssemos todos em um só, que é o dia 12 de Outubro, que deu ao mundo o Imperador, que declarou a independência, e efetuou a fundação do império.544 Assim, defende que se reduzam todas as datas unicamente ao dia 12 de outubro, que se torna síntese da produção do Império como nascimento simultaneamente do Brasil independente e de Dom Pedro I. Na segunda discussão do projeto, em sessão de 01 de julho, Nazaré volta a reafirmar as datas por ele escolhidas, justificando uma a uma tal como indicado acima. Barbacena, da mesma forma, reafirma sua posição de escolha apenas pelo 12 de outubro, por ser de síntese de todos os demais. Dessa vez, porém, seu voto é acompanhado pelo do então Barão de Cairu, Silva Lisboa. E, na defesa do dia 12 como de síntese, faz um acréscimo: 544 Idem, p. 101. 210 O dia 12 de Outubro deve ser permanente, considerado como o grande dia do Império do Brasil, por ser o aniversário do natalício, e da aclamação do nosso augusto Imperador: e também porque, por maravilhosa coincidência, é o dia do aniversário do descobrimento da América. (...) A este dia, pois, são subordinados, e nele compreendidos todas as outras épocas; nele é que o Brasil deve celebrar com a maior solenidade e pompa a grande era nacional: nele também em conseqüência deve cessar o trabalho público, e particular, para só se manifestar o júbilo universal. 545 Ao entrelaçar os destinos do Brasil e de Dom Pedro à América como um todo, Cairu confere ainda mais densidade ao dia 12 de Outubro, a ser considerado, então, único grande dia de festividade nacional. E assim, passando-se à primeira votação, venceu a síntese em 12 de outubro. Não sem lamento do autor da lei. Nazaré, em sessão de 17 de julho, voltando ao assunto, questiona: o historiador do Brasil, quando memorar estes dias, tratará de todos debaixo de um só? Falará somente do dia 12 de Outubro? Não fará menção dos outros igualmente gloriosos, bem como de todas as circunstâncias, e fatos neles acontecidos? Logo, como se poderão reunir tantos fatos notáveis em um só dia?546 Lamentava Nazaré ver seu desfile de marcos celebratórios a Dom Pedro I, articulado ao Brasil, ficar reduzido a apenas um dia, ainda que pudesse ser considerado de síntese dos eventos marcantes. Contra a lógica da memória pontual, fincava Nazaré a necessidade do seqüenciamento, da insistência em um calendário anual de celebrações e reforço da lembrança. E, para justificar tal postura, recua à lógica de rememoração dos portugueses: Os portugueses, de quem nós fazíamos parte, até memoravam os dias que tinham ganhado batalhas (...) celebravam o dia 12 de maio, memorável por muitos fatos, quais o de haver sido coroada nele a senhora rainha D. Maria I; o de ser o do nascimento do Sr. D. João VI, de gloriosa memória (...) por ser, finalmente, o dia em que Barreto se coroou de glória na Ásia; e nós então havemos de reunir tantos dias célebres e notáveis em um só? Tantos gloriosos acontecimentos em um somente? Tantas coisas singulares em só uma? Não Srs., nós não devemos reunir todos esses dias em um só, porque o historiador há de fazer de cada um deles particular menção. 547 A projeção do papel futuro do historiador como memorialista causava, segundo Nazaré, a necessidade de multiplicação dos momentos marcantes para que cada um 545 AS, 1826, vol. 3, p. 16. AS, 1826, vol. 3, p. 123. 547 Idem, ibidem. 546 211 pudesse receber tratamento específico. Ancorando-se na prática dos portugueses, da antiga nação a que todos pertenciam, defendia a necessidade de diversas âncoras para a memória, de modo a manter ativa a chama da celebração permanente. Num país novo, não deixava de ser uma necessidade para garantir a plena hegemonia da concepção monarquia constitucional, garantia da civilização. Tal ficava claro na parte final de seu discurso. Para Nazaré, a multiplicidade de dias festivos, ao invés de obscurecer a glória daquele “grande dia” que era o 12 de outubro, servia para que nossos filhos, e netos, e geralmente falando, as futuras gerações, ouvindo as salvas, vendo embandeiramentos, e mais demonstrações de regozijo próprias de semelhantes dias, se lembrem dos gloriosos fatos, que neles se passaram, e digam: este é o dia em que o grande Imperador Pedro I, nasceu; é o dia em que nasceu o imortal fundador do Império, e em que foi aclamado; este é o dia em que pronunciou que ficava no Brasil: este é o dia em que ele declarou ser nosso defensor perpétuo: este o em que se coroou, e sagrou: este o mesmo em que proclamou a nossa independência, etc. E finaliza: “poderão escapar à gratidão brasileira dias de tão gloriosas recordações?” 548 O perpétuo festejar dessas datas, sempre ao redor da majestade de Dom Pedro I, servia para a reprodução, nos moldes do Antigo Regime, de um culto à figura do rei como símbolo da nação. A figura de Dom Pedro se eternizaria na narrativa da Independência, país e nação atreladas ao Imperador numa lógica de dependência que garantia a posição central do monarca na distribuição das agências da Independência na memória que se desenhava. Foi o senador Fernandes Pinheiro que, concordando com a necessidade de várias datas, lançou outra luz sobre a questão ao lembrar a mortalidade de Dom Pedro I. Defendendo os dias 9 de janeiro e 7 de setembro como centrais, em complementação ao 12 de outubro, afirma: “quando ele [Dom Pedro] volver à terra (e tarde seja!) porque é mortal, no vindouro a festividade da aclamação nos trará apenas uma ideia isolada, toda independente de atos anteriores.” Defende, assim, o nove de janeiro como um “vislumbre de razão, um choque elétrico [que] tocou a mente de todos, [e] quebrou-se o encanto das cortes de Lisboa”. Seguindo-se, assim, o sete de setembro, “o dia em que nascemos, e nos tornamos em nação; e enquanto durar o Império, o primeiro será nos fastos do Brasil.” Por fim, o 12 de outubro, dia no qual, “como no batismo, tomamos um nome, adotamos o sistema de monarquia constitucional” e, ainda que isso “já 548 Idem, p. 124. 212 existisse no coração de todos os bons brasileiros, não se achava ainda pronunciado”, podendo-se duvidar, portanto, se o título dado em 13 de maio – Defensor Perpétuo – era “de um defensor do reino, como D. João I em Portugal, ou protetor de uma república, como Cromwell, em Inglaterra, ou de um stadhouder, como os príncipes de Orange na Holanda.” 549 Nessa narrativa, a conexão entre as datas sai da figura direta de Dom Pedro, embora ainda fosse esta proeminente, para a criação da nação como ato de continuidade de um povo: primeiro o choque que gerou o rompimento com Portugal e a percepção da diferença, depois o nascimento que faz passar a diferença a nação independente, por fim a delimitação do conteúdo dessa nação, a monarquia constitucional pronunciando-se, como algo já existente no coração dos bons brasileiros, a estrutura oficial do Brasil nascido. Até então, os caminhos não estavam plenamente definidos. Até a república volta a surgir como possibilidade retórica. E Nazaré insistia mais uma vez. Diz que não se poderia deixar em silêncio os demais dias que indicava. E justificava tal pela instabilidade do Império recém-nascido: Se nós já estivéssemos há séculos constituídos, não pugnaria tanto: mas nós principalmente agora, tratamos de uma monarquia nova, de um novo império: é agora que nos constituímos, e é impossível que as gerações futuras não nos cunhem de ingratos, que não digam: o Brasil assim pagou aquele grande imperador, cujos dias foram uma sucessiva série de fatos tão memoráveis?550 Era o pouco tempo de existência do Império que justificava a necessidade de fundar uma memória mais ampla ligada ao Imperador. Nazaré indicava o risco, caso sua proposta não se cumprisse integralmente, de se perder a necessária conexão entre os destinos do Império e o papel de Dom Pedro I. Após a institucionalização da narrativa da Independência, como discutimos acima neste capítulo, era chegado o momento de garantir a lembrança permanente daqueles dias. Cairu responderia novamente voltando-se para o 12 de outubro, argumentando que a “majestosa simplicidade de uma única festa nacional” é o melhor caminho para “concentrar a atenção de todo o cidadão brasileiro para o geral júbilo, pela recordação dos reunidos sucessos da aclamação”. Além disso, voltando à conexão do 12 de outubro com o descobrimento da América e nascimento de Dom Pedro, apresenta a lógica histórica que deveria conduzir aquela votação: “A história não tem fato paralelo; 549 550 Idem.p. 124-125. Idem, p. 125. 213 verossimilmente, este exemplo será profícuo aos mais estados americanos, além de que o ato da aclamação tem o caráter da vontade do povo.”551 Não havia fatos paralelos na História, o que destacava ainda mais o 12 de outubro como uma data única, especial, digna de eterna rememoração. A providência, nas palavras de Cairu, garantira a ligação entre a apresentação do continente ao mundo e a apresentação do herói brasileiro ao povo. A aclamação, data de amálgama do povo brasileiro com o fundador de seu Império, casava perfeitamente para a marcação da passagem do tempo velho ao novo. Quanto às demais datas deixadas de lado, “a história fará a devida comemoração” no futuro.552 Caravelas, em resposta a Cairu e em defesa de várias datas, discordaria da argumentação: disse o ilustre senador que a história fará a devida comemoração deles [dos dias]; mas eu pergunto se pela história se faz que, quando chegar o aniversário de um destes dias, a nação se sensibilize, e entusiasme, como sendo de festividade? De certo que não, porque não há um objeto que lhe desperte a memória deste dia, nem dos fatos nele acontecidos. 553 A necessidade de fixação política dos dias marcantes era fundamental, para Caravelas, de modo a servir de suporte à história/memória. Ainda mais, continua o senador, considerando a questão: “a nação toda compõe-se de homens que têm a história?” E responde: “Não: a maior parte da nação consta de homens, que não folheiam livros, uns porque lhes falta o tempo, outros porque não sabem ler.” Comparando o Império com outros espaços e temporalidades, afirma que “os antigos, para eternizarem estes dias, levantavam monumentos, e até os gravavam em bronze, para não se esquecerem: nós não fazemos o mesmo tão freqüentes vezes, porque temos a imprensa, com que suprimos esses monumentos, e esses bronzes.” A imprensa surgia como suporte de memória a garantir a eternização da lembrança que a política buscava definir como correta. “É necessário que haja a festividade nacional, porque o povo, em geral, não lê a história, como já disse, mas vê a festividade, e então pergunta ao instruído na história o motivo dela, e este lho explica.”554 551 Idem, ibidem. Grifo no original. Idem, p. 126. 553 Idem, ibidem. 554 Idem, p. 126. E completa novamente com o uso de um exemplo do tempo antigo: “os portugueses que não liam a história, sabiam que o dia da aclamação d´El Rei D. João IV era para eles de grande glória, por ser aquele em que se resgataram do cativeiro de Espanha”. Daí insiste para a manutenção, no projeto, dos dias 9 de janeiro, 23 de março, 13 de maio, 7 de setembro e 12 de outubro. Quanto à questão da falta de 552 214 A história, como produto, nesse discurso, do estudo, da ação intelectual, estando em falta no Brasil, necessitava dos marcos da memória para se difundir pela população. A questão central, como já indicada, era a discordância a respeito da extensão dessas celebrações. A narrativa histórica-memorialista da Independência iria fundar-se no seqüenciamento de datas ou na síntese de apenas uma? A segunda grande discussão a opor senadores dizia respeito a qual data melhor representava a passagem do tempo antigo ao tempo novo. Como visto acima, alguns senadores, como Fernandes Pinheiro, ao defender a variedade de datas, produziam também um escalonamento sobre os marcos temporais. Na fala de Pinheiro, por exemplo, como já analisado, o 9 de janeiro seria o momento do “choque” e da percepção da distinção em relação a Lisboa; o 7 de setembro seria o rompimento, o grito da separação; o 12 de outubro seria a consolidação da forma monárquico-constitucional de governo. As três etapas, complementando-se, marcariam em definitivo a passagem do velho ao novo tempo, cada data marcando, respectivamente, o despertar, a separação e a escolha do novo caminho a seguir. Já antes, na primeira discussão de 20 de julho, o Visconde de Inhambupe, em resposta à proposta de Barbacena para sintetizar as celebrações no 12 de outubro, marcava a necessidade de distinção das etapas. Concordando com a síntese no dia 12, pedia, porém, para que se mantivesse o “Fico”, já que simbolizava a permanência do príncipe entre nós, devendo o dia ser memorável. Afinal, “se acaso ele se retirasse, em que estado ficaríamos? (...) Uma horrorosa anarquia nos ameaçava, despedaçar-nosíamos uns aos outros (...).”555 A presença do príncipe, como fiador da estabilidade, dava ao dia 9 de janeiro não apenas o significado de percepção da “brasilidade”, mas, também, de garantia de que essa distinta percepção no interior da nação portuguesa não resultaria na fragmentação dos portugueses da América ainda antes de sua formalização como sociedade distinta. Para o Visconde de Inhambupe, o dia 9 de janeiro representava mais. Era o “fundamento de todos os bens, que nos têm resultado: todos os outros dias são conseqüência deste” – sem que isso significasse, lembrava, diminuir o esplendor do 12 leitura da história pelo povo, Cairu depois responderia afirmando que a Constituição, por destinar instrução pública a todo o povo, garantiria, via cartilhas, a chegada da história a todos. Cf. Idem, p. 127. 555 AS, 1826, vol. 2, p. 101. 215 de outubro.556 Acontece que o destaque ao 9 de janeiro justificava-se por ele representar o dia que verdadeiramente deu toda a grandeza ao Brasil, quando o soberano, então príncipe regente, disse – Fico. – Este dia é todo do doberano, bem como o dia 7 de Setembro; o 12 de Outubro é do povo: e havemos de escurecer aqueles dois dias, e só fazer memorável o terceiro? 557 Os primeiros, dias do soberano; o terceiro, do povo. A ideia da aclamação como resultado da manifestação popular indicava ser a monarquia constitucional fruto da vontade popular, e não iniciativa vinda de cima. Sendo o dia 12 de outubro aquele do encontro do Brasil com sua forma de governo, e considerando-se tal como de festa do povo, e não ação soberana, consolidava-se a imagem da monarquia como resultado do desejo dos brasileiros, e não solução oferecida pelos dirigentes. Simultaneamente, o heroísmo de Dom Pedro I ficava mais direcionado à luta contra as Cortes – numa narrativa que ressuscitava a do Reverbero, como vimos anteriormente: a ruptura era graças a Dom Pedro I; a monarquia constitucional, vontade popular.558 Seria o Visconde de Barbacena quem encerraria a discussão. Para ele, a “opinião mais seguida” seria de “assentar as festas nacionais nos dias 9 de Janeiro, 7 de Setembro, e 12 de Outubro.” E confere novamente o significado para cada uma das datas: O dia 9 de Janeiro, merece atenção, por ser aquele em que Sua Majestade Imperial ficou no Brasil, pois se Sua Majestade Imperial não houvesse tomado essa deliberação, nada haveria acontecido; (...) O dia 7 de Setembro é, sem dúvida, notável por ser o da nossa independência; porém essa independência podia subsistir debaixo de outra qualquer forma, debaixo da forma de um governo despótico: assim, a nossa grande fortuna consiste em ela ser debaixo de um governo 556 Idem, p. 126. Idem, ibidem. 558 O senador Borges produziria argumentação semelhante, mas agora quanto ao 7 de setembro. Destacando a superioridade desta data em relação ao 9 de janeiro, afirmava que, embora a decisão do Imperador de ficar no Brasil fosse fundamental para o que veio posteriormente, foi no 7 de setembro que houve a “declaração manifesta da nossa emancipação e independência, enunciada nas margens do Ipiranga por aquele mesmo príncipe, que tomava o oneroso encargo de criar uma nação; que se comprometia aos perigos, de que depois nos vimos ameaçados; e em uma palavra, é o dia em que aquele grito da independência, sendo ouvido desde o Prata até o Amazonas, foi repetido por todos os brasileiros, com exceção de um ou outro degenerado.” E comparou com os Estados Unidos: “um americano do norte , em qualquer parte que esteja, bebe no dia 4 de Julho um copo de vinho ao jantar para aplaudir o aniversário da declaração de sua independência.” Todos os demais dias decorriam do 7 de setembro, que deveria constituir o marco central dos processos recentes da passagem do velho ao novo tempo. Estava ali a origem da nação brasileira. Idem, p. 128. 557 216 constitucional, o qual se fundamentou no dia 12 de Outubro. Este é, pois, o dia em que se deve fazer a nossa grande festa nacional (...). 559 No final, ficou aprovado que, além do 12 de outubro, fossem declarados dias de festa nacional em todo o Império os dias 9 de janeiro, 7 de setembro e 25 de março.560 A memória de 1822, porém, já se encontrava definida, a inserção do Brasil na história da liberdade já tinha sua narrativa e os aspectos centrais de aproximação com a civilização europeia e construção da civilização no Novo Mundo já estavam delineados. A partir de então, outros elementos viriam somar-se e eles, produzindo os alicerces centrais, no Primeiro Reinado, que sustentavam os Olhos na Europa e os Pés na América. 559 Idem, p. 128-129. A questão apareceria nos anos seguintes apenas em homenagens. Em discurso lido ao Imperador, reproduzida no Senado na sessão de 13 de outubro de 1827, o deputado Nabuco faz uma homenagem pelo 12 de outubro. Na fala, a data aparece como aquela que ofereceu ao Brasil “ mais poderosa garantia de felicidade e elevação categórica”, por conta de todas as qualidades e recursos dos quais havia sido privado por “quase três séculos”. AS, 1827, vol. 2, p. 164. No ano seguinte, em sessão de 9 de setembro, o Marquês de Caravelas apresenta discurso lido em homenagem ao dia 7 do mesmo mês, no qual afirma que “na série dos acontecimentos que influem nos felizes destinos das Nações nenhum se apresenta tão brilhante como o da Independência do Brasil” (da qual o 7 de setembro seria dia “para sempre memorável”), já que, graças à identificação entre monarca heróico e briosos brasileiros, “o Céu ouviu e sancionou o generoso brado, e o Brasil foi independente.” AS, 1828, vol. 2, p. 220. Independentemente do foco futuro no dia 12 de outubro ou no dia 7 de setembro, a lógica a entrelaçar Brasil e imperador, com as etapas da ruptura e da construção da monarquia constitucional, sendo Dom Pedro I a conexão entre ambas as partes, perduraria como interpretação dos eventos de passagem do velho ao novo tempo. 560 217 Capítulo 5: Olhos na Europa: a lógica da civilização 5.1) Antigos e modernos entre as luzes do século e a Turquia Como vimos nos capítulos anteriores, a interpretação, na longa duração, da história como história de lutas da liberdade contra a opressão era elemento fundamental da construção de uma narrativa histórica que buscasse dar sentido às transformações do tempo, tais como apareciam nos discursos no Reverbero. Essa narrativa aparecia aos olhos dos coevos marcada por uma divisão que teria continuidade ao longo de todo o Primeiro Reinado: a distinção entre, de um lado, a síntese do atraso despótico em plena era das luzes, simbolizada na “barbárie”, e, de outro, a liberdade que, pulsante, resistia a essa opressão em nome dos pilares da “civilização”. Tal era a tônica de uma interpretação do tempo presente que se tornou predominante nos debates parlamentares entre 1823 e 1830 no Império do Brasil, e que dava uma nova dimensão à perspectiva da história como história da liberdade: a interpretação do tempo como disputa entre civilização e barbárie. Os estudos sobre as relações entre os polos opostos desse par não são novidade561. Aqui, buscarei analisar as formas pelas quais a polarização era interpretada em espaços de atuação política no Primeiro Reinado, tentando articular essas formas às interpretações sobre o devir histórico para os coevos, especialmente na tônica da história como história da liberdade tratada anteriormente. Os “olhos na Europa” presidiram essa interpretação, considerando, como já exaustivamente tratado pela historiografia, o que o continente representava para a nação em construção. A inspiração nos exemplos das consideradas “nações civilizadas” – assim como seus semelhantes: “nações cultas”, “nações ilustradas”, “nações adiantadas” etc. – perpassou praticamente todo o conjunto de discussões parlamentares, das questões econômicas às políticas, das formas de relacionamento entre os poderes aos modos de 561 Para exemplo desses estudos, cf. os já citados: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. In: Estudos Históricos. Nº 1. Rio de Janeiro: FGV, 1988, p. 5-27; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004; PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, SP: EDUSC, 1999; FERES JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil.2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 209-231. 218 etiqueta e organização legislativa562. Afinal, como definiria um senador, “sempre que nós seguirmos as nações civilizadas em seus usos e costumes (...) não poderemos ser censurados: a civilizada, a polidez [sic] não é filha do Brasil, veio, e vem da Europa”. 563 “Polidez”, segundo o Moraes e Silva, era sinônimo de “polícia”, que, por sua vez, referia-se ao “governo, e administração interna da República, principalmente no que respeita às comodidades, i. é, limpeza, asseio, fartura de viveres, e vestiária; e à segurança do cidadão”. Também referia-se a “tratamento decente; cultura, adorno, urbanidade dos cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira. “Polido”, por sua vez, referia-se a homens “não rudes, mais que civilizados, e urbanos”.564 “Civilidade”, por sua vez, no mesmo dicionário, “hoje significa, cortesia, urbanidade, opp. a rusticidade, grosseria.” ”Civil” envolvia a “sociedade de homens que vivem debaixo de certas leis”, suplantando o sentido antigo, mas ainda presente no dicionário, de “mecânicos, que moravam em cidades cercadas, e não nos campos, em castelos como a gente nobre, e guerreira”.565 Esses sentidos já estavam presentes na edição de 1813, não se alterando frente a de 1823.566 A civilidade e polidez, nascidas na Europa e vindas para o Brasil, justificavam um movimento da história que se ligava à luta pela liberdade: se esta estava presente no coração de todos os homens, como vimos, e se sua potência de guerra contra o despotismo e a opressão era uma inevitabilidade, posto que elemento da própria condição humana, então a forma de travar essa luta, de modo a controlar bem seus caminhos e suas conseqüências, dependeria diretamente dos exemplos europeus, da “polidez” nascida na Europa. E tal polidez envolvia simultaneamente elementos culturais (a “urbanidade” que se opunha à “grosseria”) e políticos (o domínio das leis sobre a comunidade), ambos numa nova dimensão temporal, e não identificados essencialmente com a nobreza cortesã. Exemplos dessa preocupação com associação entre práticas no Brasil e práticas nas “nações civilizadas” não faltam, indo desde discussões a respeito da presença ou não de ministros junto ao Imperador, na abertura dos trabalhos, até questões sobre leis pontuais. A título de exemplo, cf. AAC, 1823, volume 1, p. 27-29; AAC, 1823, volume 3, p. 113; AAC, 1823, volume 5, p. 57; AS, 1827, volume 3, p. 239; AS, 1828, volume 1, p. 245; AS, 1829, volume 1, p. 13; p. 343; ACD, 1826, 30 de abril, p. 07; ACD, 1826, 2 de maio, p. 14; ACD, 1826, 30 de maio, p. 181-183; ACD, 1826, 8 de agosto, p. 66; ACD, 1827, 5 de julho, p. 55; ACD, 1827, 26 de julho, p. 288; ACD, 1829, 22 de maio, p. 123; ACD, 1829, 17 de julho, p. 142. 563 A fala é do Visconde de Barbacena. AS, 1826, volume 2, p. 28. 564 MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Segundo. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, Vol. 2, 425. 565 Idem, vol. 1, p. 418. 566 Cf. vol. 1, p. 401-402, e vol. 2, p. 464 da edição de 1813. 562 219 Este era o caminho para ingresso do Brasil no clube das nações civilizadas. Afinal, bem proceder era uma forma de também ser bem visto por essas nações. Os olhos na Europa importavam-se sobremaneira com os olhos da Europa567. Essa Europa, como símbolo do conjunto das nações civilizadas, sintetizava a ponta de lança dos tempos mais modernos. Ao século XIX cronológico correspondia um momento ímpar na história do desenvolvimento humano, cujas principais características deveriam ser bem seguidas por todos aqueles que desejassem ingressar no concerto das nações568. À geração que fundava o Império do Brasil, essas características deveriam ir muito além da organização parlamentar. A “nação civilizada” deveria representar a superação da barbárie em todas as suas formas. Em discussão de 1823, sobre projeto de Rodrigues de Carvalho propondo revogação do alvará de 30 de março de 1818, o qual punia as sociedades secretas com o crime de lesa-majestade, Muniz Tavares defendeu o projeto dizendo que custa a crer, Sr. Presidente, que no século XIX aparecesse um tão extravagante alvará. Custa mesmo a conceber que houvesse homens tão degenerados que o aconselhassem! Os bárbaros do norte da Europa não legislaram de semelhante maneira. Impor penas e penas atrocíssimas a homens só por que se reúnem em segredo, é até onde pode chegar o excesso da tirania!569 Isso não seria tudo. Disse Tavares que não era a favor das sociedades secretas. Apenas “tendo a ventura de viver presentemente em um país livre; eu falo somente contra a desproporção das penas impostas no precitado alvará, falo contra essa barbaridade que a legislação filosófica tanto condena, e, com razão” 570 . Andrada Machado, tomando a palavra a respeito do alvará, não teria dúvidas de “ver nele [no alvará] os últimos arrancos do assustado despotismo, que certo de largar para sempre o ensanguentado assento, que para desgraça do Brasil tanto tempo ocupara, queria ao 567 Em discussão sobre escrutínio secreto para votações, Muniz Tavares questionaria "o que diriam as nações cultas da Europa" se passasse esse método de votação? Costa Aguiar também foi outro a perguntar o que diriam os homens sensatos e as nações cultas se a câmara aprovasse o voto secreto. AAC, 1823, volume 1, p. 27-29. 568 Num mundo em que o nascente e crescente “princípio de nacionalidade” deveria, cada vez mais, apresentar-se como viável, tal aproximação ao ideário constituinte de uma “nação civilizada” seria poderosa justificativa para angariar apoio. Cf. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 42-50. 569 AAC, 1823, volume 1, p. 98. O deputado Accioli depois reafirmaria a ideia de ser o alvará “injusto e indigno de aparecer em um século de luzes” (p.104). O mesmo diria Carneiro de Campos em outra sessão: “Sr. presidente, penas bárbaras e tão sanguinárias como as do alvará de 30 de Março de 1818, não são para homens livres e são incompatíveis com o século em que vivemos”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p. 110. 570 AAC, 1823, volume 1, p. 98. 220 menos na sua queda rodear-se de cadáveres e de sangue” 571. A nação civilizada não poderia punir barbaramente; superar o barbarismo significaria trocar as normas punitivas. Superar o barbarismo significaria, por um lado, superar o passado. Ainda nessa discussão do alvará de 1818, Carneiro de Campos falaria sobre a necessidade urgente de reparar perante o mundo ilustrado a honra nacional, maculada por uma lei bárbara, monstruosa e tão deslocada do século em que vivemos. Parece incrível, senhores, que no século XIX, depositário de tantas luzes, neste século em que se acham tão difundidos os luminosos princípios do direito criminal, e em que são tão vulgares as preciosas obras de Beccaria, Filangieri, Brissot, Pastoret, e tantos outros valentes defensores dos direitos da humanidade, se desse tão pouco apreço ao sangue e à vida do homem que tivesse lugar e aparecesse para desdouro nosso, publicado no Brasil o alvará de 30 de março de 1818, como apoteose da crassa ignorância do século X! Fenômeno tão extraordinário só pode ser conciliado com a natureza do governo absoluto, arbitrário e despótico, faltando-lhe as bases solidas das instituições liberais, e o apoio da razão é por sua natureza fraco e receoso. 572 Portanto, se alguns ainda poderiam justificar o alvará de 1818 num tempo de despotismo, num tempo em que as ideias liberais ainda não encontrassem terreno fértil para espalhar-se, agora, em pleno século das luzes, em pleno século XIX, tal seria injustificável573. O discurso dos atores políticos, naquele início de fundação do Império do Brasil, marcava um imediato distanciamento em relação ao passado, a partir de uma perspectiva de dupla dimensão: por um lado, o governo liberal superava o horror do despotismo; por outro lado, o governo liberal permitiria o ingresso conceitual do Brasil no século XIX. O alvará de 1818, posto pertencesse ao oitocentos em termos cronológicos, era afastado do real significado do século devido a uma intervenção política (“despótica”) clara; existia como sobrevivência de um passado distante a E completaria: E fala mais: “Mas se não há legislação alguma, se não há poder que queira se lhe impute a bárbara precisão de vingança, é porém certo que todo o poder quer a segurança, e é isto o que constitui a eficácia material das penas. Este varia segundo os diversos estados da sociedade, seus grãos de civilização, ideias dos povos e situação do poder.”. Idem, p. 98-99. 572 Idem, p. 101. 573 Segundo o deputado Dias, se “é necessário que durem [as sociedades secretas] enquanto dura a oposição do poder absoluto”, agora, “caindo e morrendo o despotismo pelo espírito do século e pelo império da razão já não são úteis, antes prejudiciais, as sociedades secretas”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p. 191. 571 221 superar. Para Carneiro de Campos, um passado remetendo ao século X 574. Para outro deputado, um passado remetendo à crise da República romana575. A ideia de que a um passado de barbarismo ascendia um presente de luzes pautou diversas outras discussões na década. Tal noção conjugava-se a uma interpretação do tempo como acúmulo, como progressão, a qual, longe de esgotar-se naquele momento presente, continuaria sua trajetória rumo ao futuro. Para continuarmos na discussão sobre sociedades secretas, por exemplo, o deputado Gomide insistiria, em sessão de 7 de junho de 1823, na crítica à pena de morte, defendendo que as penas devem ser sempre remissíveis ou revogáveis, dada a falibilidade dos juízes. Diz que as opiniões flutuam e que “amanhã, Sr. presidente, se nos arguirá, como nós arguimos hoje os autores dessas proscrições inquisitoriais, monumentos eternos dos delírios e das imperfeições do espírito humano”576. Assim se entendia a astúcia da posteridade, que remeteria ao futuro como juiz dos acontecimentos presentes, dando aos coevos a dimensão de fragmentação narrativa de seu próprio tempo 577 – o que, nas questões legislativas e políticas, implicava a consideração de provisoriedade das decisões tomadas. Afinal, os olhos do futuro, postos sobre os atores do presente, eram assim capacitados a entender aqueles tempos a partir de certo distanciamento, tal como os do próprio presente sentiam-se em relação aos do passado, inclusive lamentando as decisões tomadas: Quantas vezes se arrependeu Grécia da precipitação, com que propinou a cicuta? Quantas vezes lamentou Roma a inconsideração, com que arrastou cidadãos inocentes ao precipício da Rocha Tarpeia? Não, não vamos longe. Se a pena de morte se distribuísse com o rigor das nossas leis, se todas as vítimas a ela designadas fossem sacrificadas; este augusto congresso, Sr. Presidente, estaria hoje privado de luzes, que o ornamentam.578 574 O mesmo poderia ser dito da pena de morte, para ficar em outro exemplo. O deputado Gomide afirmaria que “em tese, Sr. presidente, a pena de morte deve ser banida do código de uma nação civilizada e polida”. Pereira da Cunha, na mesma discussão, vai além, dizendo que “tendo os soberanos de algumas nações civilizadas da Europa exterminado de seus códigos criminais a pena de morte natural, eles se virão em breve tempo na dura necessidade de reformarem essa legislação com aquelas modificações, que extinguindo a severidade de Draco, se acomodasse à doçura dos costumes, e à filosofia de nossos dias”. Cf. AAC, 1823, volume 2, respectivamente p. 23 e 25. 575 Para Rodrigues de Carvalho, o alvará “fulminou contra as sociedades secretas penas dignas do tempo de Scylla”. Cf. AAC, 1823, volume 2, p. 63-64. 576 AAC, 1823, volume 2, p. 24. E diria Cairu noutra ocasião: “Se desprezarmos em tudo a sabedoria dos nossos maiores, também os nossos vindouros desprezarão a nossa”. AS, 1827, volume 1, p. 408-409. 577 Cf. ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op.cit., p. 46. 578 Idem, ibidem. Ao mesmo tempo, a construção legislativa se não deveria fazer às pressas. Em debate sobre lei de marinhagem, Visconde de Nazareth lembraria que “Roma não se fez num dia, como vulgarmente se diz; é necessário marcharmos com passos vagarosos para serem seguros. Se em um dia 222 Seria a mesma lógica empregada por Henriques de Rezende quando da discussão do regimento interno da Constituinte, respondendo a propostas que, em sua concepção, dificultariam reformas futuras nas regras parlamentares: Os tempos mudam-se, e nós e as circunstâncias com eles; seriamos uns loucos, Sr. presidente, se tivéssemos a presunção de querer legislar expressamente para toda a eternidade; por mais que queiramos dar às nossas instituições o ar de duradouras compete fazer nelas as alterações que as circunstâncias exigirem. A nossa constituição há de sofrer alterações de tempos a tempos pela forma que nela mesmo se há de estipular: e se isto tem de acontecer em leis, que são fundamentais, como é possível pôr o cunho de eternas às do nosso regulamento interno? É um direito que compete às gerações futuras o fazer as derrogações, mudanças, interpretações necessárias nas leis, que lhes transmitirmos. Nós podemos destruir o antigo sistema que tantos séculos nossos predecessores julgaram que era mal mudar; com o mesmo direito as futuras legislaturas, os nossos vindouros, se tão tristes conjunturas ocorrerem podem mudar todas as instituições, quanto mais meros regulamentos da assembleia? Com que direito queremos nós privar a posteridade da inviolável liberdade, que lhe toca.579 Não se poderia tirar do futuro a liberdade de, seguindo as transformações inerentes ao tempo, alterar a própria legislação. Não legislar para a eternidade era admitir um princípio de melhoramento possível nas leis, já que o contrário disso seria, para a vida política, aceitar a degeneração social 580 . E esse não era um princípio aplicável apenas ao Brasil. Pelo contrário: para Vergueiro, como “o legislador não olha só para o que está, olha também para os séculos futuros”, “se as Nações Europeias no seu princípio tivessem acautelado isso, não sofreriam os males que agora sentem.” 581 Tal perspectiva calcava-se, como dito, numa noção de acumulação progressiva da civilização que afastava o presente (e, por conseguinte, o futuro) de tempos passados nós quisermos constituir uma nação, como a inglesa, de certo tornaríamos para trás, em vez de progredir: deixemos que, com o tempo, venha o mais”. AS, 1826, volume 3, p. 194. 579 AAC, 1823, volume 2, p. 189. O mesmo diria Andrada Machado, ao criticar “o argumento que parece de mais peso [,que] é o que se funda na obrigação de darmos à constituição a maior perfeição possível; mas não sei como não se repara que as constituições recebem essa perfeição do decurso dos tempos e da experiência, como tem acontecido às que conhecemos, sem excetuar a da Inglaterra, feita, por assim dizer, de pedaços, à medida que se foram reconhecendo as alterações de que precisava”. AAC, 1823, volume 5, p. 98. 580 O deputado Carneiro conectaria a noção de mudança futura com a de mudança passada: “nem nas cousas humanas há perfeição absoluta; também imperfeitos seriam sem duvida os primeiros fundadores da liberdade inglesa, atento o atrasamento do século em que viveram (...). Eu sei que as constituições não são eternas, porque tudo se altera e perece com o andar do tempo; mas deixemos ao tempo o que é obra dele; e então a nossa prosperidade cuidará também em apropriar novos planos de educação a essas novas mudanças”. Cf. AAC, 1823, volume 3, p. 181. 581 AS, 1829, volume 1, p. 259. Os males a que se refere Vergueiro são da acumulação de capitais em poucas mãos. Continuaria o senador: “Portanto, nós é que estamos em tempo de pôr as cautelas, e por que desprezá-las? Vendo nós os males, não havemos providencias para que não aconteça, não digo daqui a 10, mas a 100, e 500 anos?” 223 de barbárie. “O progresso da civilização tende a diminuir os mais penosos trabalhos da Sociedade, e a fazer que a indústria seja dirigida para os ramos mais reais da vida”, afirmou Cairu, destacando os benefícios oriundos de tal progressão 582 . Para tanto, porém, seria preciso superar o barbarismo do passado. À ideia de progressão e acúmulo somava-se à do necessário distanciamento desse passado como trilha a se caminhar na construção do Brasil considerado “civilizado”. Esse passado do qual deveria o Brasil afastar-se não eram somente os “três séculos de despotismo” legados pela colonização portuguesa na América, segundo fórmula presente na interpretação da época colonial. Esse passado também integrava a trajetória brasileira à dos Impérios passados, à das nações civilizadas, à da Europa. Integrava a perspectiva de superação do barbarismo e do aperfeiçoamento constante da civilização à história da liberdade em luta contra o despotismo. Por isso era preciso distanciar-se dos despotismos de Roma e dos Dracos, dos Scyllas e dos Catilinas, dos Carlos 2º e dos Jaimes 2º, dos tempos de Inquisição e dos tempos feudais583. O passado europeu não interessava senão na medida em que marcava a vitória das luzes do século, e o passado a ser afastado poderia servir de memória a marcar os limites, no presente, das políticas a seguir, dos eventos a se tolerar. Havia a clara percepção de que regras que valiam para situações passadas não mais se aplicavam. Assim é que, em 1823, notícias sobre manifestações de apoio à independência, à constituição e a Dom Pedro I, todos vindos de Rio Grande de São Pedro, defendendo, inclusive, o poder de veto total do imperador às determinações da Constituinte (ou seja, manifestações integradas mais à persona de Dom Pedro do que à Assembleia) são recebidas pelo deputado Gomide nestes termos: [são] perversos que procuram arruinar a pátria. Não vemos um Catilina, esse furioso tirano que quis largar fogo à sua própria pátria, mas temos na minha opinião, um inimigo mais perigoso que dando vivas ao monarca quer perturbar a ordem, procurando subornar ânimos com insinuações cavilosas. Sr. Presidente: Anibal está às portas de Roma; é necessário vigilância; embaracemos que entre na cidade tão terrível inimigo.584 AS, 1827, volume 1, p. 64. Para o autor, também, seria “de esperar que, no progresso da civilização do Brasil, sejam sempre dominantes o amor ao Imperador, e aos agentes dos poderes políticos”. AS, 1829, volume 1, p. 187. 583 Para exemplos do passado europeu a se superar, cf. AS, 1828, volume 1, p. 218; AS, 1829, volume 2, p. 06-07; p. 72-74; p. 90-91; p. 94. 584 AAC, 1823, volume 3, p. 124-125. Andrada Machado completaria: “Sr. Presidente: diz-se que Annibal está às portas de Roma, e eu digo também que os Lentulos e os Catilinas se acham entre nós”. 582 224 A tensão entre o potencial oferecido pelo progresso da sociedade e das luzes e a intervenção despótica que poderia tudo fazer retrogradar é uma constante. O progresso da civilização, posto que fosse uma constante na história ocidental, já que atrelado à luta pela liberdade, não era uniforme, nem homogêneo. Alguns espaços ou unidades poderiam progredir mais do que outros. Diferentes momentos da história humana poderiam tanto oferecer avanços quanto riscos a esse processo de progressão. E o Brasil independente poderia caminhar para qualquer direção, inclusive consideradas piores, caso falhassem as luzes que o deveriam conduzir. A alguns elementos se poderia atribuir a permanência das luzes na trajetória europeia ao longo os séculos. As universidades e a manutenção das pandectas, por exemplo, constituíam, na perspectiva discursiva, baluartes de resistência civilizacional às invasões bárbaras585. Para Gomide, “deve-se às ordens religiosas a salvação das letras na inundação do barbarismo gótico; a elas se deverá a conservação e progresso, entre nós no século XIX, principalmente em um governo constitucional”586. O cristianismo como um todo, aliás, é outro elemento considerado essencial na manutenção desse progresso, inclusive na transposição de regiões bárbaras para o ingresso na civilização. Para Cairu, a doutrina cristã, havendo por isso feito época nos anais da sociedade, que ainda ora se intitula a era cristã; tendo civilizado a tantas nações, que, antes de receberem a sua doutrina, eram bárbaras e selvagens; continuando a ser tais, ou cheias de desordens civis e políticas, todas aquelas que ou não a têm abraçado, ou só recebido com cismas e divisões arbitrárias, apartando-se do centro da união, isto é, do cabeça visível da igreja universal, o sumo pontífice de Roma,587 deveria ser a oficial do Império, contrapondo-se a outros deputados, como Dias, para quem “todas as sociedades têm reconhecido que a tolerância é uma virtude preciosa e indispensável, e até a tolerância religiosa se estabelece hoje por lei nas nações civilizadas”588, ou a Muniz Tavares, para quem alguns deputados querem “que 585 É o argumento de Cairu em AAC, 1823, volume 4, p. 172 e 177. AAC, 1823, volume 5, p. 53. Em outra ocasião, já senador, diria Gomide: “os frades fizeram ainda outros benefícios à civilização: quando a Europa estava barbarizada, nos claustros se asilou a instrução, e dali saiu como uma luz para dissipar as trevas da ignorância, terminar a noite dos erros, em que os povos dormiam.” Cf. AS, 1829, volume 2, p. 138. 587 AAC, 1823, volume 6, p. 60. O papel do cristianismo, aliás, é um argumento central na interpretação da escravidão e nas justificativas para o tráfico desde os tempos coloniais, mantendo-se ativo no começo do século XIX. 588 AAC, 1823, volume 2, p. 147. 586 225 se restabeleça esse hórrido tribunal, chamado por insolência o Santo Ofício”, e outros absurdos típicos do “barbarismo”589. Daí a necessidade de distinção entre a religião, como elemento de manutenção cultural da civilização, e qualquer política clerical que pusesse barreiras ao desenvolvimento da liberdade. O conceito de “civilização”, em construção naquele momento590, ganhava dimensões culturais que a distinguiam da simples ação política direta – embora esta fosse uma dimensão constitutiva daquela. Assim é que, em discussão sobre o orçamento para 1828 na Câmara dos Deputados, o financiamento do corpo diplomático brasileiro pelo mundo ganha cores distintas no trato com a Europa, berço da civilização, em relação a outras partes do mundo. O deputado Vasconcellos, por exemplo, criticou duramente o governo por, ao invés de enviar “diplomatas para aquelas cortes, em que podiam ser úteis, pelo contrário disseminou-os por nações com as quais nada tínhamos a tratar”. E questiona: E que temos nós, Sr. Presidente, com Mackdembourg [sic], com Frackfort [sic], com esse desgraçado reino de Nápoles, com as apostólicas cortes de Viena e de Paris? O que temos nós com a velha Europa? A América é da América, seja a Europa da Europa, e tudo irá o melhor possível (Apoiado geralmente)591 Consideremos a expressão “velha Europa”. Posto a Europa constituísse espaço destacado da civilização, continente central das “nações cultas”, das “nações adiantadas”, a fala de Vasconcellos, como a de outros deputados e senadores, possibilita uma percepção daquela distinção apontada acima entre “civilização”, como cultura, e “ação política”. A primeira, cumulativa, progressiva, nascida na Europa, fazia parte da trajetória das “nações ilustradas” e delas não poderia ser apartada. Na lógica da história como história da liberdade, a conexão entre o sentimento da alma humana e sua realização civilizatória era plena naquele espaço. Isso não se negava. A ação política, contudo, poderia desviar a rota. A “Velha Europa”, na fala de Vasconcellos, não é a Europa decrépita e decadente que se apresentava na fala de alguns 589 AAC, 1823, volume 6, p. 57-58. João Feres Júnior argumenta que o conceito de civilização não tinha uma dependência direta do conceito de cultura nos séculos XVIII e XIX, relacionando-se mais a aspectos materiais, políticos e morais dos povos. Argumenta-se, aqui, que essa dependência da cultura é um elemento que começa sua construção exatamente naquele momento, talvez as disputas políticas antecedendo as definições dicionarizadas e articuladas por intelectuais em obras sobre a temática. Cf. FERES JÚNIOR, João. O conceito de civilização: uma análise transversal. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 423454. 591 ACD, 1827, 20 de agosto, p. 169. Grifos meus. 590 226 intelectuais das primeiras décadas do século XIX, como José Bonifácio. Este, refletindo sobre Portugal, aponta critérios de “torpor mental” que teriam “minado a vitalidade do corpo moral do Império” português, associado a um declínio nas artes e na ciência. 592 A “Velha Europa”, em Vasconcellos, não se liga diretamente ao esgotamento no desenvolvimento do corpo social, mas a uma ação política incisiva de velhas forças que buscavam, como soldados do despotismo e do “velho tempo”, travar as conquistas da liberdade e da civilização. Assim é que, na sua concepção, “o governo tem procedido muito mal, metendo-se com a política da santa aliança que hoje felizmente jaz no mesmo túmulo, em que derrubou o imperador Alexandre.”593 Para Vasconcellos, a Europa da Santa Aliança, a Europa da restauração, era a “Velha Europa” que não poderia ser interlocutora do Império do Brasil. Posicionava-se, assim, junto a forças de desenvolvimento da modernidade que associavam o progresso das luzes ao avanço da civilização, aspirando às “duas nações grandes e livres conjuntamente poderosas, justas e amantes da humanidade, [que] tinham em voz alta proclamado já à face dos céus e da terra que nunca consentiriam que força estrangeira viesse da Europa destruir as instituições americanas.” As forças da reação, exemplificadas na Santa Aliança, eram as forças que, travando o progresso das luzes, impediam o pleno desenvolvimento da América, e essas “duas nações grandes e livres” – Inglaterra e Estados Unidos – constituíam, na fala do deputado, as novas forças desse mundo novo. Vasconcellos assim conclui seu posicionamento a respeito dessa questão: Eu sou declarado inimigo de toda essa política Européia que se não funda nas luzes do nosso século, e tende a fazer retrogradar o espírito humano da marcha brilhante que segue para as trevas desses tempos, em que só a força constituía direito. Nada, nada de Europa (apoiados gerais), seja ela muito embora feliz debaixo da junta apostólica que a domina, ou para melhor dizer, que a anarquiza, não quer fazer mais do que uma única exceção que não será muito do agrado dos ministros que promoveram os tratados; esta exceção é em favor da grande Albion; nação benfeitora do gênero humano, que tem procurado plantar a liberdade em todo o mundo, contra a qual lutam, mas debalde, todas as juntas apostólicas, barreira firme contra o restabelecimento da tirania que aquelas juntas tentam propagar pelo mundo todo. Nada de Europa – ou nada da “Velha Europa”. A percepção da história do desenvolvimento da civilização que vimos discutindo admitia que, embora fosse berço 592 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo... op. cit., p. 34. ACD, 1827, 20 de agosto, p. 169. Esse Alexandre refere-se, provavelmente, a Alexandre I, czar da Rússia e um dos artífices da Santa Aliança. 593 227 dessa civilização, a Europa poderia ruir por uma ação política reacionária que voltasse o mundo ao tempo de trevas em que “só a força constituía direito” 594 . A exceção, a Inglaterra (“grande Albion”), como benfeitora do gênero humano, seguia firme na marcha do progresso, plantando a liberdade pelo mundo. E isso num momento em que, nas disputas políticas na Câmara dos Deputados, a Inglaterra mais e mais era associada à grande força contrária ao comércio negreiro.595 A liberdade de ideias era outro elemento de manutenção da civilização contra o barbarismo. Em discussão sobre projeto de lei a respeito da liberdade de imprensa, tema sensível e de grande discussão no parlamento, proposto por Gonçalves Ledo em 10 de junho de 1826 (e justificada pelo mesmo deputado sob o argumento de estar adotando no projeto as “ideias luminosas do século”), o deputado Baptista Pereira defende o projeto afirmando que o direito de comunicar a palavra por qualquer cidadão, presente no artigo 1º da lei, é desconhecido “tão somente naqueles governos que se firmam na arbitrariedade e na escravidão dos povos.” 596 Cruz Ferreira, dando continuidade à defesa, afirma que a invenção da imprensa foi um dos maiores bens para a humanidade: não é preciso demonstrar esta verdade; mas convém saber que desde o seu nascimento até 1501 foi livre em toda a parte. (...) O primeiro homem, que estabeleceu restrições à imprensa, foi o papa Alexandre VIII, cujo nome é infame na história. Isto aconteceu em 1501 e daí por diante começarão as censuras que tantos males têm feito à humanidade, que tantos obstáculos tem posto ao progresso das luzes na Europa. 597 Se a religião católica era garantia de manutenção da civilização, a atuação da Igreja poderia contribuir para seu enfraquecimento, mergulhando o mundo no obscurantismo598. Bernardo Pereira de Vasconcellos seria outro a trabalhar essa relação. 594 Em discussão de projeto na Câmara dos Deputados sobre a extinção da Intendência Geral de Polícia, associada aos tempos do despotismo, Custódio Dias afirma: “parece-me que nada temos a invejar desses homens do tempo do despotismo (...); nada temos a invejar desses tempos saudosos do despotismo. Prouvera a Deus que pudéssemos acabar com alguns publicistas velhos, cujas ideias não estão em harmonia com as do século. Eles são homens de outro século, que querem ensinar com os seus escritos as suas ciências, mas não permita Deus tal; nós temos homens de outra parte, que nos esclarecem melhor do que estes antigos; os homens são esclarecidos com as luzes do século, sabem quais são os nossos direitos, sabem que não se deve ter obediência cega quando não são escravos senão da lei.” Cf. ACD, 1828, 10 de junho, p. 77. 595 Voltaremos a essas discussões sobre a Inglaterra mais à frente. 596 ACD, 1826, 06 de julho, p. 55. 597 Idem, p. 58. 598 Afirmaria, no mesmo debate, Souza França a esse respeito: “Os crimes do santo ofício não eram outros senão os do pensamento. Todo o mundo o sabe. Não se assava um homem pelo amor de Deus, depois de ser privado ele e todos os seus herdeiros dos bens que possuía em proveito do mesmo santo ofício, só por que ele pensava de um modo diferente daquele que interessava à cúria de Roma, ou aos chefes da tirania?” Idem, p. 59-60. Noutro momento, em discussão de projeto sobre frades no Brasil, o deputado 228 Ao pedir a palavra para fazer uma indicação contra os jesuítas, afirma ser notório que o gabinete romano, o papado, trabalhava no restabelecimento da monarquia universal dos papas, pregando as duas espadas, material e espiritual: Tão criminoso projeto não pode realizar-se, sem que volvam as trevas em que pela primeira vez foi concebido e executado; maquina-se pois a ruína da civilização e do saber. Escritores venais e os janizaros de Loyola, renovam seus ataques contra os tronos e contra a liberdade dos povos.599 Os entraves à difusão das ideias eram restrições ao espalhamento das luzes. “A liberdade de pensar é essencial ao homem; mas também a liberdade de comunicar os seus pensamentos é essencial à natureza humana e tão essencial como a primeira”, defendeu o deputado Almeida Albuquerque na mesma discussão. “Se Roma não tivesse perdido a liberdade de pensar, não teria chegado a ser o ludibrio das nações. Por que razão no tempo do despotismo se mandava ensinar nas escolas só por certos livros, e se vedavam todos quantos não fossem da mesma doutrina?” 600 , questiona. O entrave à livre difusão de ideias aparecia como elemento de decadência da civilização romana e como marco característico dos tempos do despotismo – por contraposição, o momento presente deveria conectar-se a características que ressaltassem sua condição de superioridade sobre os tempos passados, já que acumulara mais civilização na lógica progressista do desenvolvimento. Almeida Albuquerque compreenderia isso na defesa de projeto de liberdade de imprensa, ao afirmar: nós vivemos no século das luzes, no século da liberdade; não devemos ser menos liberais que outros povos incomparavelmente menos adiantados que nós em civilização e conhecimentos, e que aliás tanto Paula Souza, crítico do mesmo, alertaria para o perigo de um “espírito teocrático” ameaçar o Brasil, e lembra: “Nós sabemos bem de mais a mais, que o século XIX não é o século XII”. Cf. ACD, 1828, 19 de maio, p. 112. Nem todos aceitariam plenamente essa perspectiva conta a Igreja. Na discussão do artigo sobre blasfêmia contra Deus ou contra a religião do Império, Cruz Ferreira afirmaria: Ora, a religião pode ser caluniada; escritores ímpios têm contra ela dirigido os mais fortes ataques, uns atribuindo-lhe o derramamento de sangue, que por outros motivos tem havido, outros tachando-a de inimiga das luzes, destruidora das sociedades, e pretendendo que a decadência de Roma date da introdução do cristianismo, e até seja por ele introduzida; e não será isto calúnia? Estará mal empregado este termo? Não vejo outro que seja mais próprio.” Cf. ACD, 1827, 01 de junho, p. 09. 599 ACD, 1827, 09 de novembro, p. 187. O deputado Arcebispo da Bahia afirmaria, sobre os jesuítas, noutra discussão: “Foi menos nos confessionários que nas escolas e nos livros que os jesuítas propagaram e transmitiram a infernal máxima do regicídio proclamada e seguida pelos filósofos revolucionários da Inglaterra e da França quando condenaram à morte os infelizes Carlos I e Luiz XVI, mas que é o que tememos Sr. Presidente? O jesuitismo no Brasil e na América! O jesuitismo, planta exótica, e por ventura a única que jamais pegará em o nosso solo! O jesuitismo que debaixo de qualquer forma, e com quaisquer vestes que se apresente, há de sempre encontrar uma força repulsiva que o há de afugentar para além dos mares!”. Cf. ACD, 1828, 10 de junho, p. 81. 600 ACD, 1826, 06 de julho, p. 59. 229 respeitaram a liberdade de pensar e de comunicar os pensamentos; falo dos romanos antes do século, em que principiou a sua literatura. 601 Mas, como vimos no capítulo anterior, a defesa da liberdade descaracterizada significaria para os coevos o risco da degeneração em anarquia. O projeto de liberdade de imprensa avançava nas discussões com uma série de medidas e atuações para qualificar a liberdade e desenhar seus limites. Isso provocou a crítica do deputado Soledade, para quem a câmara ia fazendo “uma lei de escravidão em lugar de uma lei de liberdade de imprensa.” A isso respondeu Lino Coutinho, um dos defensores da liberdade qualificada: É com efeito, Sr. Presidente, de lamentar que se chame a esta lei, lei de escravidão em lugar de lei da liberdade de imprensa. Será liberdade deixar ao arbítrio do homem malvado atacar o sistema constitucional? Não, senhor presidente, isto não é conforme a lei, esta seria a liberdade absoluta, o estado do homem selvagem incompatível com as leis da sociedade, ou então é a liberdade dos falsos, dos maldizentes e dos inimigos do sistema constitucional. Há de chamar-se lei de escravidão, porque se querem coarctar abusos? Então não haja leis e a licença tornará os homens tão livres que daqui virá a anarquia. 602 A verdadeira liberdade, atrelada ao princípio da civilização, que significava a plena realização da história humana – aquela encravada no coração dos homens, conforme interpretava o Reverbero alguns anos antes – era a liberdade que distinguia o estado de selvageria daquela sob as leis da sociedade – definição dicionarizada de polidez, como já vimos. Luzes, ideias liberais e ilustradas, cristianismo: estes foram alguns dos fatores mantenedores do progresso civilizacional na Europa603. A manutenção da civilização no Brasil dependeria, portanto, nessa interpretação, da forma pela qual os fatores de vitória sobre a barbárie no passado poderiam ser reproduzidos, em maior ou menor escala, no combate aos fatores de barbarismo do presente. A ação desses fatores ao longo dos séculos, como já dito, não se deu de modo homogêneo. Há uma clara noção, para os dirigentes imperiais do Primeiro Reinado, que o século XIX, posto fosse “das luzes”, não constituía uma unidade ilustrada. Existia uma percepção da coexistência de diversas temporalidades, concepção dentro do processo de surgimento da modernidade que Koselleck tão bem destacou. Para o autor 601 ACD, 1826, 07 de julho, p. 77. ACD, 1826, 08 de julho, p. 89. 603 Poderíamos, ainda, acrescentar outros, como a agricultura, o crescimento populacional e o comércio. Cf. AAC, 1823, volume 5, p. 110-111; AS, 1826, volume 2, p. 114-115; AS, 1826, volume 3, p. 172. 602 230 alemão, um dos modos de experiência histórica formalizados na passagem à modernidade é a “simultaneidade da não-simultaneidade”. Isto é, Dada uma mesma cronologia do tempo natural, pode-se falar de diferentes níveis de transcursos históricos. Nessa fissura temporal podem estar contidas diferentes camadas de tempo, as quais, dependendo do agente histórico ou das situações investigadas, são dotadas de diferentes períodos de duração e poderiam ser medidas umas em relação às outras. 604 A construção de uma lógica da história como história da liberdade, atrelada ao desenvolvimento da história da civilização, produziu uma percepção coeva de sobreposição de camadas temporais naquela contemporaneidade. O século XIX era entendido como próprio das luzes; a época era compreendida dentro da concepção de novidade que rompia com as trevas do passado e inaugurava um novo tempo, referente a um momento de progressão do desenvolvimento da humanidade como um todo. Não obstante, percebia-se essa temporalidade como atravessada por distintos momentos, que resultavam na coexistência da época das luzes com a época das trevas. Já vimos um aspecto dessa percepção na crítica anterior de Vasconcellos à Santa Aliança. Aquela crítica, porém, era voltada especificamente para uma ação que pretendia frear o desenvolvimento da civilização; para um agente entendido como deslocado no tempo, preso ao passado, fora de época – posto que exercendo sua ação sobre um espaço onde as luzes já se haviam espalhado. Não era este, porém, o único caso de percepção do deslocamento temporal. A percepção daquela coexistência entre luzes e trevas traduziuse na necessidade de um segundo distanciamento, não mais temporal em relação ao passado cronológico – aquele que contrastava o passado de trevas ao presente de luzes, ambos como unidades temporais autônomas –, mas, sim, num deslocamento temporal em relação a um “passado geográfico”. Afirmar a necessidade, para os atores políticos da época, de afastar-se de uma “temporalidade geográfica” implica considerar que, para eles, o século XIX ainda era o da barbárie e o do despotismo. Se a Europa era ponta de lança do processo de acumulação das luzes e do progresso da humanidade, noutra ponta o barbarismo mantinha firme a escravidão e opressão sobre o atraso. A síntese da outra ponta poderia ser simbolizada na figura da “Turquia”, uma generalidade que abraçava o antigo Império Otomano, em particular, visto como a contraparte não apenas da Europa física, 604 KOSELLLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio, 2006, p. 121. 231 mas, também, da cristandade, das luzes, das ideias liberais e de todos os elementos que sustentavam o progresso da civilização no século XIX; mas definição que podia, também, aplicar-se, de modo mais genérico, ao “oriente”. Era, portanto, um dos espaços discursivos privilegiados para a “barbárie”. Podemos perceber a seguir algumas dimensões desse deslocamento que produzia essa distinção. Para tanto, voltemos momentaneamente ao Reverbero Constitucional Fluminense. Não é outro o sentido das notícias estrangeiras, veiculadas pelo Reverbero, extraídas do Constitucional de Paris, que, descrevendo os acontecimentos ligados à Guerra de Independência da Grécia contra os Otomanos, afirma que “a sorte dos gregos interessa a todos os amigos da humanidade”, frente às “crueldades há muito tempo inauditas” praticadas pelos dominadores. 605 Noutra edição, de modo mais incisivo, enxerto extraído da Gazeta da França e reproduzida no periódico lançava a pergunta logo de cara: “Sois Grego, ou sois Turco?” 606. A questão, reproduzida pelo Reverbero no Brasil, ardia em algumas discussões na Europa. Tratava-se, no jornal francês, de refletir sobre se deveria ou não a França, à semelhança da Inglaterra, se meter na disputa. E, para tanto, questões sagradas e civilizacionais se misturavam na reflexão: A Fé Cristã, a civilização estão por acaso ameaçadas? A velha Europa deve acaso levantar-se para ir combater um novo Gêngis Kan? (...) nossos pais combateram os inimigos da Fé; é a favor deles que deveríamos hoje marchar. Os cavaleiros da Corte de Luiz XIV correram a Hungria para defender contra o Turco a civilização ameaçada; seria agora preciso que nós corrêssemos a Trácia para ali defendermos a Barbaria vacilante?607 A luta civilizacional no século XIX, da qual todos os elementos de resistência ao despotismo faziam parte (a marcha, afinal, era expressa como de toda a humanidade), juntava num mesmo caldeirão interpretativo contextos e momentos históricos distintos. O conceito de “civilização”, que se fortalecia cada vez mais como viés explicativo 608, abraçava todo esse caldeirão, a ponto de conflitar, ao menos retoricamente, qualquer interesse econômico: à acusação do jornal francês de que a Inglaterra desejaria que a França, envolvendo-se na guerra, derramasse seu sangue sem nada em troca (“Só ela [a França] há 30 anos não tem visto crescer suas possessões (...) Bem pelo contrário ela é a única, que tem visto diminuir seu território”, afirma o periódico europeu), somava-se 605 RCF, Número 3, 15 de outubro de 1821, p. 36. RCF, Número 6, 01 de dezembro de 1821, P. 81. 607 Idem, p. 82. 608 FERES JÚNIOR, João; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização... op. cit, p. 210. 606 232 uma ironia que sugeria a grandeza francesa em colocar-se como escudo da civilização ao invés de pensar apenas nos próprios interesses mesquinhos: “A espada de Bayard, e a de Turenne ainda existem em França, será preciso desembainhá-las porque os mercadores de Londres têm medo?...”609 A lógica interpretativa correria a década seguinte em todos os espaços de discussão política aqui analisados. Em sessão de 26 de maio de 1823, na Constituinte, discutindo-se os perigos que poderiam advir do exercício do poder pelo povo, Carneiro da Cunha lembraria os deputados sobre os opositores que havia nas províncias, afirmando que em todas as nações em semelhantes tempos sempre há um partido de oposição e divergência; mesmo em Constantinopla há muita gente, que não se pode acomodar com a escravidão, apesar do terrorismo, que infunde aquele despótico governo, de sorte, que se aparecesse uma ocasião favorável, lançariam mão dela para o derrubar. 610 A combinação de despotismo e escravidão resultava na forma tirânica de governo que, sendo contemporâneo cronologicamente, mais parecia resultado de tempos tenebrosos já superados pela civilização. Não era o caso, como na fala anteriormente destacada de Vasconcellos, de uma estrutura institucional deslocada no tempo, pois buscando exercer a força sobre uma realidade já transformada (caso da Santa Aliança). Era, no caso da “Turquia”, uma dominação político-institucional que se mantinha plenamente integrada a uma sociedade e a uma realidade ainda condizentes com seu exercício de força. A Turquia, nesse sentido específico, era a Europa antes do advento das luzes e da civilização. Era seu passado, interpretado pelo mesmo universo conceitual que “lia” a história europeia – e, por que não?, mundial – naquele momento. Não obstante, como a citação acima deixa claro, o espírito de liberdade que era inseparável do coração dos homens não se apagaria por completo mesmo nas situações de plena dominação pelo despotismo: “mesmo em Constantinopla” a chama dessa liberdade resistia à plena escravidão. Assim, os limites a serem traçados pela civilização encontrariam na Turquia seu mais bem acabado símbolo do que se não deveria transpor, passando esse limite a servir 609 Idem, ibidem. A espada de Bayard talvez se refira ao cavaleiro Pierre Terrail, senhor de Bayard, cujo ardil teria levado a França à vitória sobre Caros I da Espanha na Guerra Italiana (1521-1526) durante o cerco de Mezieres. Turenne talvez se refira ao Marechal Turenne, líder militar francês durante a Guerra Franco-Holandesa (1672-1678). Em ambos os casos, o apelo a glórias militares do passado serviam de reforço para a imagem defensora da civilização contra a barbárie. 610 AAC, 1823, volume 1, p. 168. 233 de exemplo e referência para a comparação de situações consideradas análogas na Europa ou na América. Em discussão na Constituinte, em 1823, sobre os governos provinciais, por exemplo, o deputado Costa Aguiar, falando dos males e das arbitrariedades praticadas pelos antigos governadores e capitães-generais na colônia, os classificaria como “mais desumanos, alguns deles, que os próprios pachás da Turquia nas malfadadas províncias da Grecia” 611 . Noutra ocasião, na mesma Câmara, em discussão sobre projeto de naturalização, Alencar criticaria autorização dada ao governo “para mandar sair para fora do Brasil os cidadãos brasileiros só por suspeitos, isto por terem nascido em Portugal! Será uma desgraça então para o cidadão brasileiro o ter nascido no velho mundo! Onde já se viu semelhante cousa! Isto nem em Argel” 612. E num debate a respeito de projeto sobre juízes de paz, também na Constituinte, Cairu utilizaria os seguintes termos para criticar uma emenda da qual não gostara: “Esta emenda é horrível, tal emenda não se proporia em Constantinopla”. Os exemplos multiplicam-se. Em discussão, na Câmara dos Deputados, em 1826, sobre a lei de responsabilidade dos ministros, o deputado Costa Aguiar faz uma longa exposição sobre como o poder corrompe. Diz, em defesa da lei, que a consideração da possibilidade de ser denunciado pelo abuso desse poder pode influir no ânimo de quem só pensa em seu interesse pessoal, abandonando o geral. Essa influência acabaria excluindo do poder o sujeito ambicioso que, por ser “tão insuportável mandão, (...) só poderia ser hábil para mandarim na China, ou Bachá na Turquia.”613 Não serviria à temporalidade brasileira. O mesmo Costa Aguiar, tecendo uma contundente crítica a uma questão pontual sobre a atuação do governo da província do Ceará, cujo parecer da comissão de constituição acusara de ser responsável pela alta mortandade de um agrupamento de recrutas remetidos da província para a Corte, afirmaria: Talvez nem entre esses Turcos, que hoje com tanto horror e escândalo da humanidade assolam os campos da Grécia, e seus míseros habitantes, deixados a si mesmos, talvez que nem entre esses bárbaros se faça embarcar tão grande número de desgraçados [recrutas], sem meios, e sem socorros!! (Apoiados.). Só entre os Árabes do deserto encontraremos exemplo entre esses bárbaros, que (...) fazem correr os Idem, p. 178. Em outra sessão, Teixeira de Gouvêa diria ser “mister que diminuamos esta desconfiança [dos presidentes de província]; e que os povos de uma vez se convençam que os presidentes de províncias que criamos, não são os antigos pachás, e que eles hão de ser restritamente responsáveis pelo abuso de poder, é necessário que pela experiência se desenganem que nós não pretendemos restabelecer, debaixo de outro nome; o antigo governo de capitães-generais”. Cf. AAC, 1823, volume 3, p. 30. 612 AAC, 1823, volume 2, p. 104-105. 613 ACD, 1826, 26 de junho, p. 292. 611 234 malfadados escravos que apresaram, debaixo de amiudados golpes do açoite, e do sabre, alimentando-os apenas no decurso do dia com algumas poucas gotas de leite azedo de camelo!!! (Apoiados.).614 A comparação da atuação governamental no Ceará com a Turquia – ou com o trato dos árabes sobre seus escravos – era a comparação temporal da civilização com a barbárie. O deslocamento geográfico obedecia a critérios de deslocamento cronológico. Certos elementos do país que se considerava parte da civilização, das luzes do século, não poderia admitir certas questões. O deputado Cunha Mattos deixaria isso claro em discussão sobre parecer da comissão de constituição da Câmara dos Deputados, em 7 de maio de 1827. Esse parecer fora feito devido a requerimento do cidadão Estevão Maria Ferrão Castello Branco, feitor do pátio e ponte da alfândega, que se queixava da injustiça pela qual fora demitido de seu cargo pelo antigo ministro da Fazenda, visconde de Barbacena, que teria abusado de poder discricionário.615 O parecer concede que a reclamação se baseava em um pedido justo, apoiando o requerimento. O que alguns deputados contestam, alegando diversos motivos para justificar a ação do ex-ministro. Nesse sentido, tomado por uma sensação de indignação quanto às críticas de seus colegas deputados, Cunha Mattos proclama: Se eu tivesse nascido e estado em Constantinopla, em Tunes, Argel, e Marrocos, e se eu tivesse estado na Pérsia, não me admiraria de ouvir doutrinas tais quais se emitiram nesta augusta câmara, não me admiraria que os ministros praticassem tais atos, e que assim fossem louvados, mas no Rio de Janeiro, sr. Presidente, e nesta casa dizer-se que qualquer ministro de estado pode dar um pontapé em um empregado público, e pode atirar com ele para o inferno, é coisa que nunca me passou pela ideia. Daqui à entronização do despotismo vai meia polegada (apoiados). (...) Nada de despotismo, sr. Presidente, isto é coisa que já passou no Brasil.616 O despotismo já passara; os argumentos que alegava ouvir encontravam-se deslocados no tempo para Cunha Mattos. Fariam sentido, sim, naqueles espaços do ACD, 1826, 10 de agosto, p. 102. Teixeira de Gouvea, falando em seguida, complementaria: “É realmente incrível que no século 19, quando dizem que temos um sistema constitucional, que nos rege, nós estejamos todos os dias a ver repetidos estes quadros de horror, que estejamos a ver gemer a humanidade impunemente!”. Idem, p. 103. 615 O Parlamento no Império recebeu inúmeros requerimentos de cidadãos, que enxergavam naquele espaço, em especial a Câmara dos Deputados, uma instância de referência para exercício de direitos e para interferir nos rumos da política. O mesmo valia para câmaras municipais, que remetiam pedidos à Corte. Cf. PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado Imperial Brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010. 616 ACD, 1827, 07 de maio, p. 35. 614 235 presente que ainda estavam no passado. Não ali no Brasil. Aquele momento, naquele espaço geográfico, já passara, segundo o deputado.617 O uso da “Turquia” como parâmetro para exemplos que se não coadunavam com o Brasil era um recurso à disposição dos coevos. Na discussão sobre orçamento para 1828, na Câmara dos Deputados, o Arcebispo da Bahia, deputado, faz uma longa intervenção, criticando aqueles colegas que insistiam, segundo sua perspectiva, em defender políticas de governo semelhantes à da China ou do Japão, em particular no tocante ao que considerava um “isolamento diplomático” – e a crítica, aqui, recaía a deputados como Vasconcellos, que, como visto anteriormente, defendeu para este orçamento específico o corte de embaixadas na Europa, sob argumento de que se deixasse a Europa à Europa, e a América à América, com a crítica à Santa Aliança. A tais posturas, responde o Arcebispo: Este é o meu modo de pensar, não podendo jamais admitir a ideia, que aqui tem por vezes aparecido, de nos reduzirmos no estado da China ou do Japão. Como é que o Brasil tão avançado já na carreira da ilustração poderá retrogradar, segregar-se no mundo civilizado, e invejar a sorte de um país que se acha no mais baixo degrau da escada da civilização. Sabe-se quanto o povo chinês é supersticiosamente ligado às mais ridículas e pueris minúcias dos seus ritos cerimoniais, e costumes: que toda a sua ciência está circunscrita no estreito círculo de uma moral especulativa, e do longo e penoso estudo dos caracteres do seu alfabeto; que privado de todo o comércio e comunicação externa que é o veículo das luzes e das boas instituições, eles sabem hoje tanto quanto sabiam há dois mil anos, e que por isso mesmo são inimigos, e incapazes de toda a inovação, e será possível que no seio de uma câmara onde brilha eminentemente o espírito de melhoramento, e de reformar saudáveis se façam votos para que imitemos um povo inimigo e incapaz de toda a reforma? É seguramente uma lembrança inadmissível; devemos conservar nossas relações diplomáticas com a Europa, e voto pelo orçamento da comissão.618 A China e o Japão, que em diversos momentos dos debates parlamentares apareciam associados à “Turquia”, constituíam um péssimo exemplo não apenas por suas características próprias, mas por sua recusa ao “melhoramento” que seria tão 617 O mesmo Cunha Mattos, em discussão sobre lei a respeito de pensões para viúvas e órfãs militares, defendendo a manutenção do benefício, responderia, dirigindo-se àqueles colegas que traziam exemplos europeus, especialmente da Inglaterra, para justificar a manutenção das pensões: “Não é só no Brasil que há socorros, ou pensões militares: há na Inglaterra, na França, na Áustria, e também na Turquia.” Cf. ACD, 1827, 15 de maio, p. 89. 618 ACD, 1827, 23 de agosto, p. 206. Mais à frente, complementaria o mesmo deputado: Quanto à China não confundi a sua legislação com o sistema de fechar-se, e segregar-se do resto dos povos; mas quis mostrar que essa legislação é o fruto desse sistema, ou dogma político, porque desde o momento em que ela abrisse os portos aos estrangeiros, sentiria as necessidades da civilização, e abandonaria os seus costumes e rotina. Nada portanto de imitar a China.” Cf. idem, p. 208. 236 característico do Brasil. A recusa à mudança, que se consubstanciava num fechamento tendendo à imobilidade (“sabem hoje tanto quanto sabiam há dois mil anos”), tornavaos “incapazes de toda inovação”, portanto aprisionados no “mais baixo degrau da escada da civilização”. Manter relações com esses espaços significaria travar o desenvolvimento do Brasil. Seria retrogradar. Era preciso manter os olhos voltados para a Europa. Para o bem do próprio Império. Mas a comparação com a Turquia podia igualmente servir de parâmetro para a caracterização dos países europeus sobre os quais postavam-se os olhos do Império. Para o bem e para o mal. Se o cristianismo salvara a civilização europeia da barbárie, como visto anteriormente na interpretação dos coevos, Silva Lisboa, no Senado, lembraria que também a Áustria fora alvo da salvação, tornando-se, “com a firmeza do catolicismo”, “o mais tranqüilo, seguro e poderoso da Europa, sendo o baluarte contra o turco, que por vezes tem tentado a destruição da cristandade”619. Se as conquistas liberais incluíam o direito à propriedade, parte indissociável da noção de direitos predominante nas conformações estatais nascidas da Era das Revoluções, Carneiro de Campos lembraria que “só no Governo do Turco é que há isso de ninguém ter propriedade, e que tudo é do Grão Senhor; nos Governos da Europa ainda ninguém disse tal cousa”620. Se o direito à resistência contra o despotismo e à liberdade era outra parte indissociável da noção de civilização que se construía na fórmula “luzes do século”, tal deveria ser balanceada, com a lembrança de Borges de que nem toda revolução destrói o despotismo, às vezes apenas atacando o déspota, e que nem sempre a resistência é resultado direto da dureza de um governo, ou “os Governos despóticos, como por exemplo o da Turquia e Barbária, são os mais justos, visto que os respectivos Estados deram por séculos sem revoluções contra a sua Constituição”621. Mas também a abordagem inversa poderia ser verdadeira. Em discussão sobre o voto de graças, em resposta à Fala do Trono de 1828, na Câmara dos Deputados, debatia-se trecho do discurso do Imperador em que, falando sobre as relações do Império com as potências europeias, indicavam-se as novas potências que haviam reconhecido o Brasil independente (Rússia e Saxônia) e, em seguida, lamentava Dom 619 AAC, 1823, volume 6, p. 75. AS, 1829, volume 1, p. 72. 621 AS, 1829, volume 1, p. 102-103. 620 237 Pedro I que não acontecesse o mesmo “da parte da corte de Madrid, que é o único governo da Europa que falta a praticar esse ato.”622 Tal não agradara aos deputados. Clemente Pereira criticaria Fernando VII, chamando-lhe de ingrato que fora libertado por seu povo e que pagava com cadeia e morte.623 Para o Arcebispo da Bahia, o principal motivo da “obstinação da Espanha em não reconhecer a nossa independência provém do ódio e do rancor que ela professa à liberdade americana”, temerosa de que “o majestoso exemplo do Brasil contribua para fortificar suas antigas colônias no amor da independência, e reanimar a sua coragem, para se não tornarem a curvar a um jugo proscrito pela razão e pela política.” 624 Gonçalves Ledo faz um pedido: Abra-se a história; a cada página aparecem os documentos de seus erros e de seu despotismo [da Espanha]. Onde a hidra ministerial tem desenvolvido maior prepotência? Qual a nação que mais largas deu à inquisição? Qual a que fez pagar com sangue as lágrimas que a compaixão arrancara a um de seus reis, quando ouvia os gritos e sentia o cheiro das vítimas que se queimavam nesse tribunal do inferno? Qual a que lançou corpos de americanos para sustentar a fome de animais ferozes, que estimulava contra os miseráveis senhores de um terreno que ela invadia? Qual a que tem acumulado mais perjúrios, e ensinado ao mundo que o juramento é ato de interesse, e não penhor de religião e verdade? E deve sentir o Brasil que este governo, enquanto assim continua a obrar, não reconheça a sua liberdade e regeneração? 625 Expunham-se aí, em sequência, todos os elementos característicos da barbárie que teria caracterizado há tempos a Espanha. A abertura da História propiciaria o pleno reconhecimento de onde a intolerância e o absolutismo foram mais fortes; onde os aspectos mais caracteristicamente contrários às “luzes do século” mais encontravam raízes. A manutenção da barbárie nesse espaço espanhol era afirmativa compartilhada por Paula Souza, para quem “quando a Espanha deixar de ser escrava dos frades, quando reconhecer que a inquisição é incompatível com as luzes do século XIX, então reconhecerá a nossa independência, então procurará a estrada de que se tem desviado, e fará o que deve para conosco.”626 O caminho da Espanha estava distorcido: não obstante 622 ACD, 1828, 03 de maio, p. 11. ACD, 1828, 12 de maio, p. 51. 624 Idem, ibidem. 625 Idem, p. 53. E completaria: “Sr. Presidente, impolítico fora não desaprovar no meio da América a conduta do governo espanhol: esta desaprovação formal, forte e Enérgica nasce da natureza da nossa revolução, altamente criminada pela conduta desse gabinete; é até um tributo de gratidão para com os governos da Europa que já cumprirão esse ato de justiça.” 626 Idem, p. 54. Para Lino Coutinho, “na Espanha, senhores, há guerra ou uma luta do rei com o povo; quer este mudar de sistema; aquele não se quer amoldar às luzes do século”. Idem, p. 55. 623 238 pudesse alcançar o Brasil, os desvios provocados pelos elementos de entraves às luzes do século atrasavam seu desenvolvimento. A Espanha, em síntese, encontrava-se, naquelas falas, deslocada temporalmente das luzes do século. O que permitira comparações com aqueles outros espaços que, no XIX, também se encontravam fora das luzes. Costa Aguiar, após questionar se “haverá um só brasileiro que não deseje àquele país e a todo o mundo, uma liberdade bem entendida e um governo adequado ás luzes do século?”, sendo apoiado pelos colegas, faz uma dura crítica: Comparou-se o governo da Espanha com o da Turquia. Tal é porém, Sr. Presidente, o estado da Espanha, que nem esta comparação pode quadrar-lhe: na Turquia ao menos há governo, porque existe ainda um dos fundamentos de um governo, a força: ali o déspota é obedecido e se assim não fosse, outra teria sido a sorte dos míseros gregos há muito tempo.627 Tamanha era a dimensão da crítica à Espanha que um elemento positivo se buscava na Turquia para produzir-se uma comparação favorável a esta. 628 Lino Coutinho iria além. Afirmaria que o Brasil não se deveria humilhar e pedir o reconhecimento da independência a esse “gabinete despótico e tirano”, inclusive comparando a situação do Império à do... Haiti: S. Domingos, uma república de homens de cor, soube sustentar o seu caráter, e não andou pedindo como por esmola que a França o reconhecesse como o vasto, rico e poderoso império do Brasil, que neste fato mostrou-se muito pobre, muito mesquinho e muito sem vergonha, não por culpa dos seus cidadãos, mas por culpa de um governo fraco (apoiado), que parecia desmaiar com falsos receios de que a nossa independência não fosse reconhecida. 629 Naquele momento, na retórica crítica de Lino Coutinho ao governo, o Brasil apresentava-se como mais “pobre e mesquinho” do que São Domingos. A dignidade da nação que mirava a Europa rebaixava-se à da “república de homens de cor”. Pergunta: que honra poderá resultar ao Brasil o reconhecimento de um déspota, como pelo “Grão Senhor de Constantinopla ou pelo rei de Argel”? “Nenhuma certamente. Logo, não nos interessaria, ou não deveria interessar, que Fernando VII reconhecesse a nossa independência, bastando que o fizesse quando reconhecesse o sistema errado em que 627 Idem, p. 52. Nem todos concordariam. Paula Souza, por exemplo, afirmaria: “embora se diga que a Espanha está próxima à sua dissolução: ainda figura como nação europeia. Não tem semelhança com a Turquia, porque esta não se contempla como nação europeia”. Idem, p. 60. 629 Idem, p. 54. 628 239 andava, mudando seu curso. Apelar ao reconhecimento de espaços tão marcados pela barbárie quanto Turquia ou Espanha, naquele contexto, era reduzir-se a outro tipo de barbárie, rebaixando-se ao Haiti.630 Mas não acabaria aí. Lino Coutinho também insistiria na teimosia espanhola, rebaixando também a nação europeia ao nível de barbárie oriundo da dimensão africana da constituição da modernidade, tal como o exemplo de São Domingos: Não teima o governo de Espanha por capricho? Por ventura não sabe ele que não pode ser absoluto no tempo presente? Que as luzes têm chegado a ponto que os governos absolutos hão de por força baquear? Elas caminham para diante com mais velocidade do que o erro, e eu espero que até entre os selvagens da costa d´África há de haver liberdade, eles ainda hão de ser homens livres.631 Continuaria o nobre deputado: “o tempo de meninice do governo humano passou; é chegado o tempo da virilidade; este é o tempo das luzes, não há forças que lhe resistam; hão de sucumbir os déspotas absolutos; (muitos apoiados), há de triunfar a liberdade.” Quem não compreendesse essa regra, que sintetizada a história da liberdade, não alcançaria plenamente aquela modernidade política que tanto definiria a civilização no século XIX, na época das luzes. Restaria contentar-se com a comparação subordinada aos resquícios da modernidade escravista, que tornava o Brasil inferior à dimensão moral do Haiti e tornava a Espanha atrasada na corrida em relação aos “selvagens da Costa d´Africa”, que alcançariam a liberdade ainda antes do país europeu. Restava à Espanha essa comparação, bem como com aquela da Turquia.632 *** O “governo turco”, assim, aparecia como limite da civilização no século XIX, um resquício de passado na contemporaneidade, que talvez nenhum dos fatores de manutenção da civilização que tenham dado certo na Europa poderia alterar. Afinal, O deputado Gama discordaria: “não se deve dizer que por ter um governo o sistema absoluto não devemos tratar com ele. Temos o exemplo de Bonaparte, usurpador do trono francês, e com o qual trataram todas as nações da Europa. E o que fez ele depois de reconhecido? O seu primeiro cuidado foi derrubar a constituição, e o monarca inglês apesar de tudo não deixou de conservar relações com a França.” Idem, p. 56. 631 Idem, p. 61. 632 Que era questionada pelo mesmo Lino Coutinho: “Talvez que o governo da Turquia seja melhor do que o da Espanha; ao menos Mahmoud procura civilizar os turcos, e acha-se com forças de fazer frente a três poderosíssimas nações. Estará a Espanha nas mesmas circunstâncias?” Idem, p. 61. 630 240 como diria o Marquês de Caravelas, “o Grão Turco só poderia acolher e elogiar uma Constituição que escravizasse os povos” 633. Em nada parecido com a figura de Pedro I, que acolhera e consolidara o sistema constitucional no Brasil. E este é o último elemento a se tratar aqui. Se as pontas do espectro das civilizações são Europa e Turquia (sincronicamente) e as “luzes do século” e as trevas do passado (diacronicamente), e se os elementos acima analisados funcionam como fatores de manutenção da civilização, então que outros elementos poderiam romper a acumulação temporal e introduzir novos aspectos de mudança? A revolução, uma vez rompida, poderia instaurar uma situação em que “nada valem ordens, leis, nem cadafalsos contra a opinião geral”, como diria Rodrigues de Carvalho em relação à revolução em Portugal 634. Diria ainda que as determinações de Portugal fizeram o povo de cada província julgar-se “soberano”: “o tempo era de revolução, em que todos querem tudo a um tempo”. E mais: “os escritores que deviam conduzir a opinião publica, explicando qual era a essência da soberania da nação e a sua indivisibilidade, entrarão a lisonjear o povo e em breve tempo foram tantas as soberanias quantas as províncias”635. A revolução quebrava definições, introduzia o imponderável. Para Costa Aguiar, incluía “alguns transtornos, que desgraçadamente se tem sentido, próprios das mesmas revoluções”. Dentre esses produtos ruins das revoluções estão o mal entendimento da palavra liberdade, a “esperança de bens imaginários, e do belo ideal” e o “choque das paixões e de interesses desencontrados”636. Para Henriques de Rezende, “não há cousa mais fácil do que confundir; e cada um quer que as cousas sejam dirigidas segundo as teorias e imaginações que têm na ideia”. Assim, sendo esta época presente “verdadeiramente revolucionária” e considerando que “nas revoluções os princípios 633 AS, 1827, volume 1, p. 40. A relação entre cristianismo como baluarte da civilização e a sua ausência, na Turquia, fica explícita na fala de Lino Coutinho em discussão sobre projeto de lei que proibia a admissão de frades estrangeiros no Império. Pergunta-se o deputado sobre o tipo de frades que podem vir ao Brasil, se em busca de asilo ou se para pregar a palavra de Cristo. “Ora, Sr. Presidente, de duas uma; se esses frades vêm procurar asilo, nós não queremos frades criminosos, porque frade que foge de seu país, não nos serve; se vêm pregar a fé de Cristo, eu digo que nós não precisamos de frades estrangeiros para este ministério; e não é isto uma desonra para o Brasil? O Brasil não tem apóstolos de Jesus Cristo que ensinem a sua doutrina? Precisamos destes frades que vêm aqui com uma linguagem bárbara ensinar a doutrina cristã? O Brasil não é a costa da África; nós temos muitos padres, muitos frades que nos pregam a fé de Cristo; e por isso não temos necessidade de barbadinhos, de congregados, nem de outros frades. E de mais, senhores, se eles abrasados nesse amor de Deus, querem pregar a fé de Cristo, porque não vão para a Turquia? E vêm então para o Brasil, onde todos são católicos romanos e muito católicos romanos!....” E ainda repetiria, mais à frente: “se pois querem pregar a fé de Cristo, podem ir para a Turquia. (Apoiados.)” ACD, 1828, 11 de junho, p. 89-90. 634 AAC, 1823, volume 1, p. 97. 635 AAC, 1823, volume 1, p. 177. 636 AAC, 1823, volume 1, p. 178. 241 todos são atropelados”, “o governo no estado presente é obrigado a ir levando a barca como quer o ímpeto da corrente, apenas dirigindo o leme em ordem a se não quebrar em algum cachopo. É necessário que o rigor dos princípios ceda às circunstâncias: é o que temos feito, e é o que somos obrigados a ir fazendo ainda” 637. A época revolucionária abria um conjunto de possibilidades inatendíveis enquanto a própria revolução não arrefecesse, posto que, subjugando-se a ordem às paixões, a própria civilização, tal como era entendida, via sua garantia de existência ameaçada. As circunstâncias passavam a imperar sobre as vontades. Não seria à toa que a busca pela prevenção de revoluções ocuparia as preocupações dos dirigentes. Não seria à toa que o exemplo francês, como veremos na seção seguinte, seria tão relevante para os dirigentes imperiais no Primeiro Reinado. Não seria à toa, finalmente, que, à fala de Andrada Machado (“Acabou a nossa revolução? Nem ainda começou; a inteligência descortina-lhe ao longe a medonha catadura, e o coração se encolhe de susto ao imaginá-la; não apareceu ainda, mas aparecerá por desgraça nossa”638), responderia Muniz Tavares com consternação: Ah! Sr. Presidente? (sic) Causa-me horror só o ouvir falar em revolução; exprimo-me francamente como um celebre político dos nossos tempos – Les revolutions me sont odieuses parce que la libertem est chere - , odeio cordialmente as revoluções, e odeio-as porque amo em extremo a liberdade; o fruto ordinário das revoluções é sempre, ou uma devastadora anarquia, ou um despotismo militar crudelíssimo; a revolução sempre é um mal, e só a desesperação faz lançar mão dela, quando os males são extremos. 639 A disputa entre civilização e barbárie poderia estar por um fio caso a “devastadora anarquia” ou o “despotismo militar” triunfassem. Por isso observar com atenção os faróis europeus poderia ser um excelente remédio contra as perspectivas da desgraça. 5.2) Inglaterra, França e os exemplos a seguir. Em discussão sobre a lei de responsabilidade dos ministros, no Senado, proclamou o José da Silva Lisboa, então Barão de Cairu: “Jamais me envergonharei de me conformar às regras da legislação dos dois povos, que por suas grandes luzes são 637 AAC, 1823, volume 2, p. 140. AAC, 1823, volume 1, p. 127. 639 AAC, 1823, volume 1, p. 130. 638 242 chamados os olhos da Europa”640. Cita, então, exemplos de práticas nos tribunais da Inglaterra e da França, com o intuito de restringir o número de senadores “recusáveis“ pelo ministro acusado do crime.641 Segundo Cairu, “Na câmara dos lords em Inglaterra não se dão recusações, e na dos pares em França só se admitem com as causas que a lei enumera.”642 Noutra sessão, ainda sobre essa discussão, repetiria o senador: “As minhas opiniões no senado são meras razões de duvidar; se aparecem outras que as vençam, e me convençam, cordialmente me submeto à decisão. Impugnei as recusações sem causa, pelo exemplo da Inglaterra e França, que se reputam os olhos da Europa” 643. E repete os mesmos exemplos já dados. Ambas as falas são simbólicas. Sendo verdade para os contemporâneos que a Europa era “foco das luzes e da civilização, escola das artes e das ciências, senhora das riquezas do mundo pela sua aperfeiçoada indústria e comércio”, locus onde o “espírito geral é constitucional, os ânimos de todos se dirigem a reformar as velhas instituições, que por arbitrárias e injustas são incompatíveis com a sua atual civilização”, numa síntese de Carneiro de Campos em 1823644, então mais verdadeira é a lógica que associa o “espírito europeu” a duas potências do período: Inglaterra e França. Inglaterra e França constituem os exemplos de onde a maioria esmagadora de referências ao passado e ao presente se reúnem. Quando se pensa em desenvolvimento e progresso das luzes, pensa-se, fundamentalmente, em Inglaterra e França. A primeira, tida como “país clássico da liberdade”, em expressão pronunciada por diversos atores ao longo da década, é também percebida como símbolo da vitória da moderação sobre a anarquia, das luzes sobre as trevas – embora tal vitória, como temos visto e ainda poderemos vislumbrar, jamais pudesse ser tratada como permanente. A segunda, reputada por suas luzes, carregava consigo, porém, uma tensão permanente: sendo terra da civilização, foi também onde a barbárie atingiu maiores níveis no tempo das luzes, com a Revolução de finais do século XVIII. Podemos perceber a importância que Inglaterra e França carregam com um exercício de percepção da quantidade de “referências exemplares” presentes nos 640 AS, 1826, volume 4, p. 146, grifos no original. Pela lei de responsabilidade de ministros, o Senado convertia-se em Tribunal de Justiça para julgamento dos acusados – sendo “todos os senadores” considerados “juízes competentes”. As exceções a esse “todos” pautavam a discussão, buscando definir quais e quantos senadores poderiam ser recusados pela parte acusada, justificando-se tal medida para garantir a imparcialidade do processo. A lei está na CLIB, 1827, parte 1, p. 59-60. 642 AS, 1826, volume 4, p. 146. 643 AS, 1826, volume 4, p. 188. 644 AAC, 1823, volume 6, p. 24-25. 641 243 discursos da Câmara dos Deputados e do Senado. Chamei de “referências exemplares” toda referência, seja ao passado ou ao presente, nas quais um país, região ou qualquer outro espaço delimitado estrangeiro aparecesse como exemplo a ser seguido ou recusado na afirmação de determinada política para o Brasil. Em seguida, contabilizei todas as “situações de referência” em que essas referências exemplares apareciam – isto é, cada discurso em que a referência exemplar era trazida à discussão. Uma “situação de referência”, portanto, é o discurso em que aparece a referência exemplar (cada situação de referência pode comportar inúmeras referências exemplares ao mesmo espaço, mas ignorei a repetição delas num mesmo discurso).645 A pesquisa nos anais parlamentares para o Senado e para a Câmara dos Deputados nos permitiu chegar aos seguintes dados: Gráfico 4.1: percentual de referências no Senado Holanda 3% Espanha 3% Grécia Antiga 3% EUA 7% Outros 9% Roma 9% Inglaterra 38% França 28% Fonte: AS, 1826-1829. Total de 810 referências. 645 Pela própria natureza das fontes utilizadas, esta análise não pretende ser mais do que um exercício. É claro que nem todas as referências exemplares necessariamente fazem menção direta ao espaço onde busca a inspiração; tal pode ser feita indiretamente. Da mesma maneira, as ausências na documentação, fruto de resumos ou fatiamentos dos taquígrafos, podem distorcer os dados gerais. O mais importante aqui é atentar para as diferenças percentuais, mais do que para os números absolutos ou as frações individuais. 244 Gráfico 4.2: percentual de referências na Câmara dos Deputados Alemanha 2% Holanda 2% Roma Antiga 6% Outros 14% Espanha 5% Grécia Antiga 2% Inglaterra 34% EUA 10% França 25% Fonte: ACD, 1826-1829. Total de 1550 referências. De 2360 referências exemplares presentes em discursos colhidos no Senado e na Câmara dos Deputados, a soma de Inglaterra e França aparece, respectivamente, com um total de 66 e 59% em cada um dos espaços. Em contrapartida, duas referências clássicas da política parlamentar no ocidente, Roma e Grécia, somam, respectivamente, 12 e 8% das referências. Não é de se estranhar essa distribuição, em especial no que se refere à presença maciça dos dois países que foram espaços da “dupla revolução”.646 Tidos por exemplos maiores das “nações cultas”, é à sua situação que os dirigentes imperiais aspiravam por excelência. Simultaneamente, a partir do que percebiam como risco de anarquia após os eventos revolucionários do final do século XVIII, é a elas que apelavam para buscar a necessária experiência sobre como agir para evitar, no Brasil, a repetição de eventos que consideravam tão funestos, modificando, inclusive, a lógica que discutimos anteriormente no caso do Reverbero. No momento da Independência, como vimos, os exemplos sul-americanos foram cruciais para a percepção dos caminhos a se seguir na construção do Império independente. Ao longo das discussões parlamentares no Primeiro Reinado, porém, as referências às repúblicas vizinhas mínguam frente às dos “polos da civilização”.647 646 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. A exceção na América republicana são os Estados Unidos, que foram de referências exemplares em 7 e 10% do total de referências no Senado e na Câmara dos Deputados, respectivamente, alcançando, assim, o terceiro lugar geral e superando os demais países europeus. Discutiremos alguns elementos da aproximação do Brasil com os EUA no capítulo 6. 647 245 Vejamos como foram construídas visões sobre Inglaterra e França e como tais visões articulavam-se à interpretação acerca da trajetória histórica da liberdade e da civilização, que vimos discutindo até aqui. A Inglaterra, desde o começo da trajetória do Brasil independente, foi vista como referência a ser levada em consideração. Sendo considerada o “país clássico da liberdade” – expressão corrente em todo o período analisado – forneceria diversos exemplos que, segundo senadores e deputados, deveriam ser seguidos pelo Brasil648. Para Carneiro de Campos, por exemplo, a liberdade, sendo constitutiva do povo inglês, se estamparia na sua própria cultura: os ingleses [são] tão zelosos da sua liberdade, que em todas as suas ações ostentam um caráter nobre e altivo, não se reputam abatidos pelas homenagens que prestam ao seu rei, porque consideram o esplendor do trono, como uma imagem ou reflexo da dignidade nacional, e querem pelos respeitosos atos que praticam para com o chefe da sua união política, granjear-lhe a mais alta consideração das nações estranhas. 649 País símbolo da liberdade, a Inglaterra seria também considerada exemplar em todas as demais áreas associadas à civilização. Em discussão sobre a fundação de universidades, Silva Lisboa recorre à fundação de Oxford, “a mais antiga universidade da Europa”, “pelo grande rei da Inglaterra Alfredo”, a apenas duas léguas de Londres, que também foi depois a sede de grandes estabelecimentos literários”. Tal exemplo justificaria a fundação de uma universidade na capital do Império - proposta que acabaria vencedora – , e não alhures, como defendiam outros. Afinal, desse primeiro passo, dado pelos ingleses, a consequência foi que hoje tanto sobressaem [os ingleses] nas ciências, se prezam de ainda serem mais eminentes nas artes, regozijando-se de serem todos eles os mais instruídos práticos, talvez hoje excedendo aos franceses, que até Juvenal disse terem sido os seus mestres na eloquência: Gallia causídicos docuit facunda britannos.650 Os ingleses são admirados pela potência marítima e comercial, fruto de regulamentação “pela experiência dos séculos, e cabedal de meios, que nós não temos”651 , fruto também de seu ato de navegação, a quem “deve a Inglaterra o seu grande comércio marítimo, e o auge da força em que ora se acha; e se nós a não 648 Para ficar apenas em um exemplo, cf. a fala de Carneiro de Campos sobre as forças armadas em países civilizados, considerando que a Inglaterra oferece o melhor exemplo de organização exatamente por ser “país clássico da liberdade”. AAC, 1823, volume 3, p. 134. 649 Idem, p. 161. 650 AAC, 1823, volume 4, p. 171-173. 651 Fala de Borges. AS, 1826, volume 3, p. 98. 246 imitarmos igualmente nisto, animando e favorecendo a nossa navegação, vê-la-emos acabar sufocada pela das outras nações”, como aconteceu com Portugal 652. Além disso, são também admirados por terem, no passado, passado por despotismos, mas conseguido encaminhar bem sua trajetória 653 . Diferentemente da França, que muitas vezes aparecia oferecendo o “outro lado”. Ou seja, oferecia o exemplo dos riscos que se corria caso o caminho para a civilização não fosse bem traçado. Na construção do arcabouço político-administrativo brasileiro, por exemplo, em diversos momentos surgiam discussões que tocavam na questão dos direitos do povo brasileiro e nos limites dos poderes instituídos. A linha a ser cruzada era por demais tênue para ser ignorada. Era, precisamente, a fronteira que separava a “mestra das civilizações” (Inglaterra) dos “horrores” (França). Na discussão sobre a lei de responsabilidade dos ministros, por exemplo, as duas dimensões da civilização europeia se cruzam em alguns momentos. Casos que envolviam julgamentos costumavam ser ótimas oportunidades para sincronizar as disposições do Império àquelas dos centros da civilização europeia, assim como ótimas oportunidades para lembrar os limites da adoção de certas medidas. Uma palavra mal interpretada poderia causar muitos danos. Logo na discussão do artigo primeiro, sobre a responsabilidade dos ministros em casos de traição, o senador Carneiro de Campos, após dizer que participaria do debate mesmo sendo ministro, compara as possibilidades de crime por traição previstas para o Brasil com aquelas da Inglaterra. Diz ele que os ingleses “reduziram a responsabilidade dos ministros a três casos, que vem a ser, na expedição de ordens; abuso de leis, e dissipação dos bens nacionais; porém a nossa constituição foi muito mais exuberante nesta parte, e entre esses casos incluiu mesmo alguns que parecem mais próprios do individuo do que do ministro.”654 A Constituição, em seu artigo 133, previa os ministros responsáveis por seis atos, a saber: traição; peita, suborno ou concussão; abuso do poder; falta de observância da lei; pelo que obrarem contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos e, finalmente, por qualquer dissipação dos bens públicos 655 . Para Caravelas, além de exagerar quantitativamente, dobrando o número de possibilidades para a 652 Fala do Visconde de Paranaguá. Idem, p. 99. Ver, por exemplo, a interpretação dos governos de Carlos II e Jaime II como sendo despóticos em AS, 1828, volume 2, p. 218. 654 AS, 1826, volume 4, p. 69. 655 Constituição Política do Império do Brasil, 1824, art. 133. 653 247 responsabilidade em relação à Inglaterra, a Constituição (da qual ele fora um dos redatores, diga-se de passagem) ainda havia exagerado qualitativamente. Para o senador, “convém agora definir bem o que se entende por traição, do contrário, deixando-se esta palavra, com certa amplitude, de qualquer cousa se fará um crime, como a experiência infelizmente tem mostrado.”656 Caravelas remete à experiência com o exemplo dos romanos, os quais, “desde Sylla entraram e aumentaram a lista dos crimes de lesa-majestade, de maneira que, no tempo de Augusto, trazer um anel com o busto do soberano e entrar com ele em casa de uma prostituta era um desses crimes”657. Como mirava o presente, e não o passado, já superado, Caravelas preferia o exemplo inglês, mais adiantado, e a limitação do termo “traição”. Igualmente considerava Silva Lisboa, na mesma discussão, em discurso em resposta ao Visconde de Barbacena, que tentara incluir no rol de traições a prática de se atentar contra a religião católica romana. Para tal, apelara ao exemplo de Jorge III, o qual, segundo Barbacena, teria deixado de aprovar três leis em seu reinado, “sendo uma da admissão dos católicos, visto que havia jurado manter a religião do estado” 658 . Observar o ocorrido no passado inglês e aplicá-lo ao Brasil era uma forma de garantir os mesmos resultados. Cairu não discordava da necessidade de, seguindo o exemplo inglês, garantir-se a religião oficial do Império. Pelo contrário: atentar contra ela poderia provocar uma situação em que “só Deus sabe onde iria parar tal liberdade mantida com o poder do governo”. Seguir o exemplo inglês na manutenção da religião do Estado era novamente a chance de garantir a segurança do Império contra riscos de desagregação social. E, para tal, apelava ao mesmo exemplo de Barbacena659. Silva Lisboa, porém, achava um exagero considerar tal atentado uma “traição”. Tal como Caravelas, nesse caso, uma definição imprecisa do termo poderia causar problemas. “Se houver um ministro que abuse do poder, merece de certo pena, e convenho eu vá a qualificação debaixo do artigo de abuso de poder, mas traição, não”660. 656 AS, 1826, volume 4, p. 69. Idem, Ibidem. 658 AS, 1826, vol.4, p. 73. 659 “Em Inglaterra, em que a religião anglicana faz parte da constituição do país, não obstante aí haver na prática a mais extensa liberdade de cultos, todavia, quando o ministro Pitt se comprometeu a obter de ElRei Jorge III a emancipação dos católicos, que, pelas antigas leis são inabilitados dos maiores empregos honoríficos, e úteis do estado, aquele monarca político, ainda que de mui liberais ideias, não assentiu, dizendo que ele dera o juramento de manter a religião, a constituição da Grã-Bretanha, e por isso nada a esse respeito podia inovar, mas que sustentaria o seu princípio de governo que, desde o seu Ascenso ao trono, declarara: no meu reinado não há perseguição.” AS, 1826, vol.4, p.74. 660 Idem, p. 73. 657 248 A questão não era simples. Tampouco menor no conjunto dos debates. Definir com clareza os termos pelos quais se acusariam ministros de Estado era crucial. O exemplo inglês não deveria ser usado para reforçar essa indefinição (tal como propunha Barbacena), mas, sim, para resolvê-la. O exagero da condenação poderia ser tão terrível quanto a ausência desta. Em outro momento no debate do mesmo projeto de lei, Carneiro de Campos voltar-se-ia a um outro exemplo inglês como modelo das “luzes do século”. Agora, para defender a presunção de inocência no momento de definição sobre as formas de se julgarem os ministros. Aqui, Caravelas diz compreender “quanto interessa ao bem da sociedade que se castigue o culpado”; porém, simultaneamente, afirma: “mas eu me inclinarei sempre a que se facilitem todos os meios de não padecer o inocente. Esta matéria é tão delicada que entre os ingleses basta um só voto para não ser condenado o réu”661. Finaliza seu exemplo com um caso da experiência. É um exemplo longo, mas bem mostra o que o senador considerava como arriscado na ausência de definições precisas: Aconteceu haver um assassínio, e foi acusado um homem de o haver perpetrado. Todos os indícios os mais decisivos culpavam este miserável. Foi visto vir do lugar onde existia o cadáver, os seus vestidos, e o seu cajado que deixou no luar, e foi reconhecido, estavam ensangüentados: que maiores provas se podiam desejar para fulminar contra ele a terrível sentença? Entretanto, um dos jurados se obstinou em que não eram suficientes e o homem foi absolvido; e, com efeito, soube-se depois que esse juiz é que tinha sido o matador, e que o acusado se tinha ensangüentado a lutar com o moribundo para ver se lhe prestava algum socorro (...). E à vista deste fato, que não será, certamente único, não havemos de dar ao réu toda a possível segurança? Talvez se estas suspeições fossem admitidas em França no tempo do seu delírio, não padecessem tantas vítimas inocentes, não se derramasse tanto sangue.662 . Novamente o passado francês surge como lembrança de um horror a ser evitado. O risco a que incorrera a França em seu “delírio” não poderia ser repetido pelo Brasil. As causas do derramamento de sangue francês eram relacionadas, na fala de Caravelas, à pouca preocupação conferida a direitos considerados fundamentais no novo tempo das luzes. Abrir mão dessa linha básica de definição da civilização, em conjunto com a moderação, era abrir espaço para atos que poderiam facilmente desembocar no horror. 661 662 AS, 1826, volume 4, p. 142. Idem, Ibidem. Grifos meus. 249 Horror, aliás, nascido no interior da fina flor da civilização europeia, portanto um risco ainda mais possível a uma nação jovem como a brasileira. O exemplo inglês, banhado na moderação, prudência e defesa das liberdades, era a salvaguarda da sociedade, que se não deveria decair como a francesa – evitar-se-ia, assim, o “delírio”. Volta o exemplo francês a fortalecer a discussão da lei quando se atinge seu artigo 25, o qual previa que o ministro acusado comparecesse perante o Senado, o qual, segundo a Constituição, era o espaço destinado a “conhecer dos delitos individuais (...) Ministros de Estado” 663 . O artigo gerou várias discussões: se deveria haver votação secreta nesses casos, se os votos deveriam ser por maioria absoluta etc. Para Cairu, a adesão cega ao artigo 25 significaria arriscar-se, sem recurso nem reparação, a honra e a vida “dos maiores empregadores do Estado”. A história, continua o senador, tem mostrado frequentemente a realidade de tais sucessos, tornando ministros alvos de “malignidade de ambiciosos, e das fúrias da populaça”. “Oprimidos pelo ódio público”, o horror da imagem remeteria novamente ao passado francês, incluindo aí mais um momento, com Napoleão, e remetendo também aos EUA e à Inglaterra: Ainda está vivo na memória de todos o assassinato jurídico, com aparência de formas de juízo, e com olho nacional, que a assembléia de França, intitulada a Convenção, fez ao seu bom e infeliz monarca Luiz XVI, que foi condenado à morte só pela maioridade de cinco votos, sendo o corpo de mais de seiscentos. Pela regra da maioria absoluta também neste século viu-se o espantoso fenômeno político da declaração de guerra que o congresso dos Estados Unidos, também só pela maioridade absoluta de quatro votos, fez ao governo britânico, contratando aliança com o déspota militar da França, e constituindo-se inimigo do rei, e povo da Grã-Bretanha, que aliás defendiam a si, e as liberdades do mundo, contra a ímpia usurpação daquele tirano. Eis as monstruosidades que resultam da regra férrea da maioridade absoluta. 664 De forma clara, cá estão mais uma vez as comparações entre Inglaterra e França, a primeira como guardiã das luzes e das liberdades do século e a segunda como exemplo de monstruosidade possível do rompimento daquelas luzes. Instituições firmes que pudessem resguardar o Brasil dos problemas desse rompimento eram necessárias; definições precisas sobre os termos e conceitos a serem adotados eram fundamentais. Despotismo ou luzes: luzes precisas, porém, ou riscos crescentes de revolução; eis a tônica presente nessas discussões. 663 664 Constituição Política do Império do Brasil, artigo 47, inciso I. AS, 1826, vol.4, p. 186. Grifo no original. 250 Mas qual era o conteúdo exato da Revolução Francesa para os atores políticos daquele momento? Podemos buscar uma compreensão a partir de algumas considerações que já traçamos anteriormente, em relação ao entendimento acerca do conceito de revolução – basicamente em sua dimensão rompedora da tradição, da ordem, em nome do imponderável. Considerando-se a novidade que representava, em terras brasileiras, a reunião de uma Assembleia Constituinte em 1823, e considerando-se que essa reunião inseria-se num acúmulo crescente de experiências que, desde o fim do setecentos, consolidava-se na tradição ocidental, não causa surpresa que a fala do trono já buscasse destacar uma diferença em relação aos eventos considerados mais drásticos no interior dessa trajetória. Dom Pedro, retomando a questão de esperar uma Constituição digna do Brasil e de si, diz esperar também que a Carta seja “justa, adequada e executável, ditada pela razão, e não pelo capricho”, e que “tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos povos, e toda a força necessária ao poder executivo”. Quer, afinal, uma constituição, que pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia, e planta a arvore daquela liberdade, a cuja sombra deva crescer a união, tranquilidade, e independência deste império, que será o assombro do mundo novo e velho 665. Numa tacada busca traçar a rota que fortaleceria sua própria persona na balança de distribuição dos poderes, conferindo interpretação específica ao significado tanto de “despotismo” quanto de “liberdade”. Mas não seria tudo. Continua ele: Todas as constituições, que à maneira das de 1791 e 92, têm estabelecido suas bases, e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que tão totalmente teoréticas e metafísicas e por isso inexequíveis; assim o prova a França, Espanha, e ultimamente Portugal. Elas não têm sido feitas como deviam, a felicidade geral; mas sim, depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em uns países já apareceu, e em outros ainda não tarda a aparecer o despotismo em um, depois de ter sido exercitado por muitos, como consequência necessária, ficarem os povos reduzidos à triste situação de presenciarem, e sofrerem todos os horrores da anarquia666. 665 666 AAC, 1823, volume 1, p. 41-42. Idem, p. 42. 251 “Longe de nós tão melancólicas recordações”, continua ele. Diz que os verdadeiros princípios constitucionais têm sido sancionados pela experiência, e tal conhecimento caracteriza os deputados. Diz esperar que a constituição, a receber sua imperial aprovação, “seja tão sábia, e tão justa, quanto apropriada à localidade, e civilização do povo brasileiro” Diz, finalmente, esperar que outras nações, até os inimigos, se inspirem e imitem-na667. A concepção de que a Revolução constituiu a busca pela execução de uma teoria – ou metafísica –, contrariando-se a densidade da experiência histórica em nome do futuro, constitui a base própria do pensamento conservador crescente. Mais interessante, no caso das referências acima, é notar que à base da experiência passada se deveria somar um filtro que pudesse apropriar-se à “localidade e civilização do povo brasileiro”. O nascente futuro Império constitucional, carecendo de base experimental firme sobre a qual pudesse sustentar-se, deveria apoiar-se, ainda que a contragosto, em filtros que permitissem sua existência local. E tais filtros, posto que teoréticos, poderiam abrir espaços para o exagero. A ambigüidade presente, nesse momento, no conceito de revolução – afinal, realizava-se uma revolução no Brasil, mas não a revolução à francesa – introduzia um elemento de instabilidade na organização e na vida política do país.668 Embora fundamental para o progresso da civilização, conforme vimos, as luzes poderiam trazer, também, a revolução compreendida num sentido perigoso – a marcação precisa da palavra “liberdade”, portanto, seria de crucial importância para evitar esse processo. E, ainda mais fundamental, a ausência de uma tradição própria que pudesse integrar-se à experiência dos séculos brasílicos deveria ser ocupada pela tradição estrangeira – no caso, a francesa. Mesmo administrativamente as inovações francesas poderiam constituir grave perigo. Em discussão sobre projeto a respeito dos governos provinciais, Andrada Machado reclamaria de proposta para se organizar a administração local a partir de juntas, ao invés de concentrar as decisões num único centro provincial, representado na presidência. E o exemplo francês daria a tônica do absurdo: 667 Idem, ibidem. Sobre o conceito de revolução, cf., novamente, ARENDT, Hanna. Sobre a Revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011. Marco Morel, analisando dados da livraria Plancher, no Rio de Janeiro, afirma que 59% das obras de História e Política ali listadas tratavam de Revoluções, sendo que, destar, a Revolução Francesa ocupava 72%. Isso dá uma noção de como a temática estava presente na Corte imperial nos anos 1820. Cf. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: HUCITEC, 2005, cap. 1. 668 252 Sr presidente, entregar a muitas cabeças a administração é lembrança que só veio à razão em delírio dos franceses; antes dos infelizes anos de 1789 e 90, nação alguma tinha caído em tal absurdo. Todas acreditavam que administrar é próprio de um só homem, como o deliberar de muitas; (...) Todas não concebiam como na multiplicidade de administradores se podia obter a unidade de vistas tão precisa em um bom sistema administrativo. Estava reservada aos franceses uma inovação tão perigosa. Mas eles mesmos bem depressa destruirão os altares que tinham erguido, e reduzirão a administração de cada departamento à unidade, reservando para a pluralidade só o que demandava exame e juízo.669 O fracasso da Revolução para a organização administrativa das nações seria uma fonte a que poderiam recorrer os atores políticos para sustentar suas posições. Mas o contrário também seria possível: utilizar-se da Revolução como forma de se extremar um posicionamento. Afinal, a Revolução oferecia uma imagem perfeita do caos e da perdição total; se nem ela tivesse ousado romper certos limites, então ninguém mais poderia rompê-los. Em discussão de lei sobre mineração, por exemplo, defendendo-se de argumentos que tirariam da nação a propriedade total sobre as terras e as minas, João Evangelista lembraria que esta chamada ronha é o Direito Público ainda hoje de todas as Nações, mesmo das mais cultas, como Inglaterra e França; que ainda nos tempos da Revolução de França, quando o frenesi da liberdade mal entendida o quis derrogar com esta novidade, mesmo um Mirabeau a soube respeitar e defender.670 Se mesmo no acontecimento-limite do rompimento da ordem poderia haver quem garantisse o respeito a certos direitos, como, então, atacá-los sem mostrar-se até mais radicalizado do que a própria Revolução? O uso retórico do exemplo francês possibilitava um limite para o debate que não deveria ser transposto. Mas era uma retórica perigosa. Carneiro de Campos, por exemplo, afirmaria que a matéria é plana, de simples e pura razão, e não de autoridades, sem poesia, a que em tais casos não costumo jamais recorrer; para que se vão portanto buscar exagerações, despertar ideias ominosas da ruína da França em sua desgraçada Revolução? Se a França sofreu com a supressão repentina de estancos que lhe rendiam grandes e avultadas 669 Andrada Machado ainda completaria: A nação hespanhola que copiou tão absurdamente muitos erros dos francezes, guardou-se bem de os imitar a este respeito, e collocou à testa da administração das províncias administradores únicos com o nome de chefes políticos. AAC, 1823, volume 1, p. 162. 670 AS, 1827, volume 1, p. 76. O Marquês de Caravelas usaria o mesmo argumento à p. 77: “Aos mesmos princípios recorreram o citado Regnand e Mirabeau, na Assembleia Constituinte de França, quando esta, movida dos poderosos argumentos de tão ilustres oradores, consagrou e declarou inviolável o direito de propriedade, que tinha a Nação sobre as minas.” 253 somas, não é isso aplicável ao estanco do ouro, que nada produz para a Fazenda.671 Por que apelos à imagem da Revolução seriam tão perigosos? Exatamente por seu caráter “desgraçado”. A Revolução era vista como brutal; seus articuladores eram vistos como sanguinários. Ela relativizaria valores. Para Andrada Machado, por exemplo, “a salvação do povo é a suprema lei; porém também sei que foi debaixo desta máxima, que Robespierre e seus colegas na França perseguiram a quase 200.000 cidadãos”672. Robespierre, aliás, um “monstro dos nossos dias” para o mesmo Andrada Machado 673 e um “sanguinário” marcado pelo “rigorismo”, segundo Pereira da Cunha 674 ; produto odioso da Revolução, tal qual Napoleão 675 , responsável pela “comissão de salvação pública” tão funesta à França 676 e um dos símbolos dos males que vitimaram o “infeliz Luiz XVI”. Na consolidação das imagens sobre a Revolução, o esperado despotismo absolutista dá lugar ao despotismo democrático; o esperado déspota dá lugar a um pobre infeliz vitimado677. Luiz XVI escaparia do destino memorialístico conferido aos déspotas do passado. Sobre ele, diria Carneiro da Cunha: um “desgraçado” “bom rei, que os satélites do despotismo e maus conselheiros levaram ao cadafalso” 678, cujo governo, para Borges, fora “foi um dos mais justos e moderados da França” 679. Um “piedoso” para Silva Lisboa680; “infeliz monarca “que foi condenado à morte só pela maioridade de cinco votos, sendo o corpo de mais de seiscentos”, graças ao “ódio público” presente no “assassinato jurídico” que fez a Convenção – o que, aliás, ensejaria crítica contundente à “regra férrea da maioridade absoluta” nas votações.681 Um monarca destroçado por uma Revolução; uma monarquia assassinada de cujo sepulcro sairia, segundo leitura de Burke por Cairu, “um vasto, informe e tremendo 671 AS, 1827, volume 1, p. 90. Mas deixaria a ressalva: “Longe de mim a ideia de querer comparar o nosso ministério com o cruel Robespierre, e é por isso que eu quero, mesmo de comum acordo com ele, visto, que alguns de seus membros estão conosco identificados, remediar os males sucedidos”. AAC, 1823, volume 1, p. 74. 673 AAC, 1823, volume 1, p. 127 674 Em contraposição a Luiz XVIII, a quem “os franceses têm respeitado por suas reconhecidas virtudes”. Idem, p. 137. 675 Um “aborto militar da Revolução Francesa” para Cairu, ainda que dono de uma genial cabeça política. AAC, 1823, volume 6, p. 157. 676 De acordo com Carneiro da Cunha. AAC, 1823, volume 2, p. 34. 677 AAC, 1823, volume 3, p. 166. 678 AAC, 1823, volume 6, p. 154. 679 AS, 1829, volume 1, p. 102. 680 AAC, 1823, volume 6, p. 244. 681 AS, 1826, volume 4, p. 187. 672 254 espectro de um corpo único legislativo, que subjugou a fortaleza do homem e causou hórridos males”682. Um destino a evitar-se repetir no Brasil. Mas como evitar? Saber o que causou os males na França seria um bom passo. Buscar as razões para o estouro da Revolução poderia permitir a antecipação política a fim de prevenir os males. E, nesse ponto, a discussão sobre liberdade de imprensa pode nos fornecer valiosas pistas. Em discussão de 7 de maio de 1829, Cairu, prevenindo o potencial nefasto decorrente da ausência de qualquer regulamentação sobre escritos incendiários, diria: o abuso nas palavras é a maior arma dos demagogos, ímpios, libertinos e traidores em suas particulares ou públicas falas. (...) eu ora os considero mais incendiários que o inextinguível fogo grego. A hórrida prova se viu nos paroxismos da Revolução da França, não tanto pela devassidão dos impressos malignos, e disseminadores dos princípios anárquicos, como pela verbal propagação de doutrinas subversivas de todo o Governo regular em clubes públicos, corpos de guarda, sociedades de imensas filiações, e, até, pelas inflamatórias pregações de saltimbancos, que nas ruas arengavam à plebe, e a precipitavam aos desatinos que todos sabem.683 As doutrinas subversivas, devidamente espalhadas por um tecido social, provocariam efeitos mais devastadores que armas de guerra antigas. O caos social daí decorrente levaria países à ruína. E diria mais: nem as mais ordenadas e moderadas nações estariam seguras caso o turbilhão se espalhasse: Até a Inglaterra correu o risco de se precipitar no caos dos turbilhões franceses com a sua intitulada – Sociedade Correspondente – que publicamente abriu comunicação com os facciosos da França. O Povo daquele País passaria por iguais calamidades se o Governo não providenciasse logo com energia contra as abusivas liberdades de comunicas pensamentos por palavras, escritos e impressos. 684 Mesmo no interior de tão bem estruturado sistema como o inglês haveria espaço para o brotamento de facciosos que, deixados à plena vontade, acelerariam o processo de destruição social caso o governo não interviesse com energia. Com, especialmente para Cairu, o que em Londres se passasse aqui ressoaria, o alerta seria necessário: 682 AS, 1827, volume 2, p. 141. AS, 1829, volume 1, p. 65. 684 Idem, Ibidem. Em outra sessão, Cairu tornaria ao mesmo alerta: “O Ministro Pitt durante o mais furioso período da Revolução Francesa, em que, segundo diz o escritor da História da Decadência do Império Romano, Gibbon, também a Inglaterra correu o risco de comer o venenoso pomo da falsa igualdade, a Liberdade Gálica, propôs no Parlamento um bill para serem punidos os que por impressos procurassem fazer desprezíveis os Membros do Governo”. AS, 1829, volume 1, p. 98. 683 255 Guardemo-nos dos horrores dos que na França, com gritarias, apelidando – Aristocratas – açulavam o povo a enforcar nas lanternas das ruas as pessoas mais distintas por seus títulos e serviços à Nação? Sr. Presidente. Para que nos fazemos ilusão; este mal está entre nós e sobre nós (...).Não nos instruirá e escarmentará a lição da história? Sr. Presidente: digo com candura: estamos ameaçados de iguais desordens que aceleraram a ruína do Império Romano na época do Imperador Justiniano.685 A conjugação do exemplo francês e do risco inglês como parâmetros contemporâneos a servir de lição recente sobre o potencial destrutivo presente mesmo em nações civilizadas se somaria ao à lembrança romano-bizantina de que a degradação poderia ameaçar igualmente Impérios consolidados pelos séculos. Se mesmo nações adiantadas em civilização estavam sob risco, e se mesmo Impérios estabelecidos poderiam ruir, o que dizer de uma nação nova que apenas completava seu primeiro ciclo de consolidação, com seu imperador, no final dos anos 1820, sofrendo diversos bombardeios oposicionistas e, por fim, tão ainda afastada dos centros civilizacionais? Nem todos concordariam com o alerta de Cairu. Borges, por exemplo, criticaria a referência à Revolução Francesa, questionando: “Será o mesmo entre nós, uma Nação pacífica, que uma Nação revoltosa, que não conhece Lei, e só o impulso do seu delírio em fermentação? Não tem paridade o exemplo” 686 . Além disso, diria que, independentemente dos esforços, que efeito teria uma Lei muito boa no estado de revolução, como foi o da França? De certo nenhum. Quem a faria executar? Ninguém. Porque em uma Revolução, tal como foi a da França, vão todas as Leis pelos ares. A Nação quando meio da Revolução se constitui é ao través [sic] de todos esses males que são excedentes à pena, ao cálculo, não tem linha de demarcação, não se pode que não se atropelam Leis, Direitos, tudo.687 Retomando a concepção de que o estado revolucionário era o da ausência total de previsibilidade, o espaço do imponderável, afastava-se em definitivo a situação francesa da brasileira. Diferentemente de 1823, quando a perspectiva de que o Brasil ainda vivia uma revolução seria possível, agora o exemplo deveria ser afastado. A revolução, no país, seria uma exceção, um desvio, não mais a trajetória fundadora da Independência. Nisso Carneiro de Campos concordaria, embora não com o mesmo otimismo de Borges: 685 Idem, p. 65-66. Idem, p. 67. 687 Idem, Ibidem. 686 256 nosso estado é muito mais feliz que o da França, é inegável; mas pergunto: não temos ouvido dizer que ainda agora há bem pouco tempo em Pernambuco pegaram em armas, e que houve uma espécie de sublevação, ou sedição; é fato que eu não necessito aqui bem classificar, porém não pode dizer-se que não há precisão de apagar-se alguma centelha, a tranqüilidade não é tão absoluta, que possa dizer que devemos dormir a sono solto.688 Havendo o risco, a solução parecia clara a muitos: sufocar o espalhamento de tais ideias perigosas. Para Cairu, o mais atuante senador nessa direção, A Humanidade lamenta o haver ela [França] produzido escritores que tendo abalado os fundamentos da Sociedade com os seus livros cheios de impiedade, infidelidade e imoralidade, precipitaram o Povo Frances a tão bárbara Revolução, e que havendo proclamado a sua Constituição dos Direitos do Homem, e para sempre, depois dos maiores abusos da liberdade da imprensa, e das maiores maldades contra o seu Soberano, (...). Os que mais imediatamente aceleraram a Revolução, usaram do preparatório de ridicularizar a Censura prévia de qualquer escritas. Fez para isso a mais violenta impressão no Povo Francês a bem conhecida comédia de Beaumarchal, intitulada – Le Mariage de Figaro (...) O Rei tolerou estes e outros escritos sem censura, e a França foi inundada de escritos incendiários, que até se liam nos corpos da Guarda; donde resultou levantar-se a Tropa contra o seu Soberano, e executar-se uma Revolução, qual nunca se viu em Pais civilizado.689 A mistura entre a produção e o espalhamento dos escritos incendiários e a tolerância do governo para com eles produziu uma cena inédita na história da humanidade: a Revolução, o rompimento que levava caos à ordem. Podemos notar que, nessa lógica, as causas da Revolução são consideradas bastante próximas às causas da Civilização: o desenvolvimento das ideias de liberdade. Se o processo histórico que leva à Civilização resulta desse espalhamento de ideias, o processo histórico que leva à Revolução encontra-se nele inserido, seja como deturpação das verdadeiras ideias, seja pelos abusos que se poderiam cometer a partir do uso da própria liberdade. A Revolução na França é vista como decorrência de um mal entendimento sobre a “verdadeira liberdade” somado à inoperância do governo, paralisado, em sua benignidade, pela própria moderação e piedade que lhe constituía. A Revolução, nesse contexto, talvez, de fato, fosse inevitável: semente plantada necessariamente no coração da Civilização, apenas poderia ser controlada ou prevenida 688 Idem, p. 68-69. AS, 1829, volume 1, p. 102. O topo das desgraças seria encabeçado por Rousseau, segundo a ótica de Cairu: “Sabe o Mundo que a obra do Contrato Social, de Rousseau, foi, e ainda é, a Caixa de Pandora das Revoluções Democráticas: os escritores de folhas e fohetos sectários de suas doutrinas, não são mais que plagiárica. Pode-se dizer que do sepulcro desse assassino das Monarquias é que saíram os pavorosos espectros que aterraram a Humanidade, e destruíram tantos Povos e Estados, que antes mais ou menos bem viviam em seus Governos.” AS, 1829, volume 1, p. 108. 689 257 a partir de um alerta permanente que apelasse às lições da história – especialmente da história recente – para um movimento constante de dissolução – nunca eliminação total. Do outro lado, afinal, havia o despotismo à espreita, o qual, assumido, causaria males tão graves quanto o democratismo. Uma equação difícil de balancear, cuja solução, em meados do século, passaria pela assunção de certo “liberalismo autoritário”. O contraponto a essa interpretação, naquele momento inicial do Império, seria a compreensão de que as causas da Revolução estariam muito além da simples questão das ideias. Vergueiro, no mesmo conjunto de debates acerca da liberdade de imprensa, afirmaria: Caminhando pelo meio entre os extremos, eu rejeito igualmente a opinião (...) que parece atribuir à imprensa todos os males da Sociedade, inculcando, que a revolução de França fora produzida por um folheto de que não me lembra o título. Quando ouço assim discorrer sempre me ocorre em contraposição o grande princípio de Leibnitz: “o presente está prenhe do futuro. O mais pequeno fenômeno tem por causa o Universo e a sua razão é o estado precedente do mesmo Universo”. Acanhado modo de discorrer é o atribuir um grande fenômeno a uma só e pequena causa, quando os mais pequenos são o resultado de muitas e algumas desconhecidas. A revolução de França, e todas as revoluções que têm havido no mundo, não foram, nem poderiam ser produzidas por miseráveis folhas de papel; foram, sim, o necessário efeito de uma multidão de causas espalhadas por longo curso de anos anteriores, e, talvez, por séculos. Não nos aterremos com a Imprensa, não lhe concedamos esse poder (...) mágico de pôr e dispor dos Impérios. Se a Imprensa tem concorrido para as revoluções é só patenteando as causas existentes, que devem produzi-las, não se confunda pois a publicação das causas com as mesmas causas; estas têm o seu assento ou na má organização do corpo social, ou nos erros da sua administração, ou no andamento progressivo ou retrogrado da civilização. 690 Vergueiro retoma uma fórmula já antes utilizada para dar conta das grandes transformações sociais que poderiam ser vislumbradas na História: “o presente está prenhe do futuro” 691 . No Reverbero, como já discutimos, a frase tinha um sentido otimista que vislumbrava no porvir uma lógica mais ampla que conduzia os destinos dos povos dentro de uma interpretação da história como história da liberdade. Aqui, porém, a fórmula, apontando para a multiplicidade de causas que poderiam levar à revolução, deixa o futuro mais em aberto: se as revoluções têm algumas causas que remetem a séculos anteriores, então o que poderia impedir que já estivessem fecundando aquelas que produziriam males futuros no Brasil? Tal formulação inseria as causas das 690 AS, 1829, volume 1, p. 96-97. A fórmula já fora utilizada antes por Silvestre Pinheiro Ferreira e José Bonifácio. Cf. ARAÚJO, Valdei. A experiência do tempo... op. cit., p. 96-97. Tratamos da questão no Reverbero, no capítulo 2. 691 258 transformações futuras no próprio conjunto de possibilidades oferecido pelo presente. A Revolução Francesa, longe de ser entendida como resultado de ideias incendiárias espalhadas sem controle, teria sido resultado da conjunção de fenômenos de diversas escalas: desde a concepção de erros na administração ou na má organização da sociedade (que poderíamos associar a esferas conjunturais) até a uma noção que remeteria à possibilidade de avanços progressivos ou retrógrados à civilização (fatores estruturais). E o Brasil não estaria imune a isso. A inserção dessa concepção de Vergueiro amplia o universo a se observar para a prevenção, no Brasil, de fenômenos semelhantes ao francês. Se a visão de Cairu permitiria uma ação pontual do governo para dirigir o avanço da civilização, posto que as causas de ruptura estariam presentes no desenvolvimento, mas poderiam ser controladas se bem aprendidas as lições da história, em Vergueiro era necessário buscar elementos internos, e não apenas lições externas: as causas de uma revolução futura brasileira poderiam estar “espalhadas por longo curso de anos anteriores, e, talvez, por séculos”. Uma interpretação do passado brasileiro era fundamental para se observar em que medida os exemplos europeus – notadamente os ingleses e franceses – poderiam ser aplicados à realidade americana. Dirigentes no Primeiro Reinado, porém, não obstante mantivessem seus olhos na Europa, tinham já firmes, também, os pés na América. É disso que trataremos no último capítulo desta tese. 259 Capítulo 6: Pés na América: a outra face da civilização Comecemos retomando alguns pontos: a narrativa histórica construída desde o processo de ruptura do Brasil com Portugal entendia a história como a história da liberdade em luta contra a opressão. E, nessa interpretação, a definição de uma perspectiva sobre o significado da “civilização” – bem como de seu oposto, a “barbárie” – teve papel fundamental na compreensão de como o Brasil se inseria dentro daquela lógica histórica. Vimos, até aqui, como os “Olhos na Europa” produziram referências, especialmente com relação à Inglaterra e à França, a respeito de exemplos a serem seguidos e adotados no Império, como forma de ingresso no círculo das nações civilizadas. Mas vimos, também, como alguns desses exemplos exigiam, aos olhos dos coevos, filtragens para sua plena aplicação, considerando-se as peculiaridades americanas. No fundo, a sensação dos “Pés na América” obrigava os dirigentes do Império a dialogar com sua realidade, com as circunstâncias que os cercavam, na busca pela construção do país independente. A maior “peculiaridade americana” no Império foi, sem dúvida, a questão da escravidão. Diferentemente da monarquia constitucional, que era entendida, como vimos, como uma superação da condição americana – superior, portanto, às formas republicanas –, a escravidão foi encarada, ao longo do século XIX, de maneira bem mais tensa. Especialmente no que dizia respeito às suas relações com o par civilização/barbárie. Considerando-se essa peculiaridade e essa tensão, não é de se estranhar que se produzisse, a partir daí, uma outra forma de aproximação que não com as nações europeias, mas com a própria América, especialmente aquele espaço que, sendo também um país independente, mais e mais se aproximava de uma “irmandade escravista” em relação ao Brasil: os Estados Unidos. Dessa aproximação, um tipo específico de leitura da civilização poderia emergir, como trataremos neste capítulo. Antes, porém, e encerrando o quadro das franjas da modernidade que vimos tratando desde o começo deste trabalho, consideramos necessário contextualizar a formação escravista no Brasil e sua “peculiaridade” no século XIX. Intentamos, assim, melhor compreender o mundo que estava em construção no momento mesmo em que os 260 dirigentes produziam sua interpretação do tempo naquele momento-chave de formação do Império do Brasil. 6.1) Três momentos da modernidade escravista (séculos XVI-XIX): Retomemos novamente algumas questões já levantadas. Em que pesem as diferenças interpretativas entre seus autores, inúmeros historiadores, como vimos, já há algumas décadas, têm utilizado o conceito de “crise” para referir-se à conjuntura atlântica entre os séculos XVIII e XIX. Mesmo se considerarmos a crítica de Bayly de que talvez os historiadores usem demais a palavra “crise”, supondo-se que relações sociais e políticas são “normais” na maior parte do tempo e que, de repente, tornam-se críticas, ao invés de considerá-las como pautadas permanentemente pelo conflito, é um consenso historiográfico considerar os anos entre meados do setecentos e meados do oitocentos como dignos dessa classificação692. Quando pensamos em “sistema atlântico” e utilizamos a ideia de “crise” para dar conta das transformações na passagem de um século a outro, devemos também entrelaçar dois aspectos dessas transformações. Em primeiro lugar, a passagem do predomínio de um determinado sistema escravista, base da colonização aberta após o alvorecer da expansão marítimo-comercial do século XV, para outro, mais consolidado, e finalmente para um terceiro, já nos quadros de desenvolvimento dos Estados Nacionais na América. Em segundo lugar, e entrelaçando-se a este primeiro aspecto, a própria transformação revolucionária, em maior ou menos escala, que leva à destruição dos impérios coloniais e ao duplo processo de destruição do Antigo Regime (na Europa) e dos sistemas coloniais (na América). No tocante ao primeiro elemento, às modificações nos sistemas escravistas, é de fundamental importância destacar a diferenciação, no interior do sistema atlântico, de distintas temporalidades para a escravidão 693. O chamado “sistema atlântico ibérico”, inaugurador da montagem dos sistemas escravistas coloniais nas possessões portuguesas e espanholas, alimentado por e integrado ao “primeiro ciclo sistêmico de acumulação”, genovês, deu lugar, a partir do século XVII, ao predomínio do chamado “sistema atlântico do noroeste europeu”, integrado ao “segundo ciclo sistêmico de acumulação”, 692 O próprio autor aponta como legítima tal categorização para os anos entre 1780 e 1820, por exemplo. Cf. BAYLY, C.A. The Birth of the Modern World. Blackwell Publishing, 2004, p. 88. 693 A explanação dessas diferenças é baseada em BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, p. 21-116. 261 holandês694, e tendo Inglaterra e França à frente do processo. Essa passagem não apenas provocou mudanças significativas no que tange aos elementos justificadores ideologicamente e controladores administrativamente da escravidão no Novo Mundo, mas, também, significou um deslocamento de eixo de um padrão inaugurado ainda com uma forte herança da Reconquista e da mentalidade medieval para um sistema inaugurador de uma forte expansão econômica em um novo quadro dos sistemas escravistas no Atlântico 695. Esse descompasso entre as temporalidades escravistas no Atlântico não passou despercebido pelos contemporâneos, inserindo a diferenciação dentro de uma lógica arcaico-moderno a partir do século XVII. Se a “prática da comparação entre os poderes europeus foi parte indissociável da montagem e do funcionamento de seus impérios ultramarinos”, como argumentam Berbel, Marquese e Parron, então emular os sucessos dos rivais, evitar seus fracassos e justificar os procedimentos de conquista ou ocupação dos territórios coloniais exigiam o cotejamento com as experiências alheias. Como em qualquer outra comparação, o exercício produzia, ainda, uma hierarquização de experiências que variava conforme a posição ocupada pelo sujeito discursivo que a promovia.696 Mapear as distâncias e buscar os exemplos estrangeiros, portanto, foi parte inseparável do processo de transformação sistêmica nas temporalidades escravistas da colonização americana. Dentro dos contextos de expansão dos impérios europeus pela era colonial, a escravidão constitui coluna vertebral de um primeiro processo de modernização, cuja marca perdurará, com transformações, contemporaneidade adentro, dando o tom de distanciamento entre aqueles que ficariam relegados a potências de segunda classe nas disputas interestatais européias, não obstante o pioneirismo nas primeiras expansões marítimas, e aqueles que assumiriam o protagonismo das dinâmicas continentais nos séculos seguintes. 694 ARRIGHI, Giovanni. O Longo Século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora UNESP, 1996, p. 111-148. Para uma melhor conexão do sistema atlântico ibérico ao ciclo genovês de acumulação e do sistema atlântico do noroeste europeu ao ciclo holandês, cf. BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 33-34 e 44-46, respectivamente. 695 “O escravismo do sistema atlântico ibérico pode ser lido como uma projeção ampliada e modificada – portanto moderna – de práticas de escravização seculares correntes na bacia do Mediterrâneo. Ora, o descompasso de tempo entre a montagem do sistema atlântico ibérico e a do sistema atlântico do noroeste europeu cindiu essa experiência. (...) no momento em que, a partir das décadas finais do século XVII, a escravidão negra deslanchou na América inglesa e francesa, construiu-se aí um quadro societário inédito.” In: BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 47-48. 696 Idem, p. 54-55. 262 A “decolagem” da Jamaica e de São Domingos, nesse contexto, fortaleceu ainda mais a percepção de distância. Na primeira metade do século XVIII, a introdução maciça de africanos escravizados e o avanço das plantations açucareiras geraram conflitos que, uma vez debelados, nas primeiras décadas do setecentos, expandiram a produção num ritmo acelerado. Por volta de 1740, as colônias do Caribe francês e britânico chegaram a fornecer 70% de todo o açúcar do Atlântico Norte – volume que chegaria a 80% meio século depois697. E, nesse universo, nenhuma região destacou-se mais do que a ilha de Saint-Domingue. O crescimento da “pérola das Antilhas” francesa é digno de nota. Entre 1730 e 1740 sua produção açucareira deu um salto de 10 para 40 mil toneladas anuais. Entre 1763 e 1790, a produção de café passou de 7 para 28 mil toneladas anuais. E, logicamente, nos quadros do sistema atlântico escravista do noroeste europeu, o número de escravos cresceu significativamente, com o desembarque de mais de 480 mil cativos entre 1761 e 1790, metade deles apenas nos anos 1780 (década em que o açúcar da ilha abastecia mais da metade dos mercados continentais europeus698. É este o ponto em que podemos entrelaçar a passagem de um sistema atlântico a outro às transformações revolucionárias que acometeram não apenas a Europa, mas, também, o mundo atlântico na segunda metade do século XVIII. Enquanto a pujança econômica de Saint-Domingue brilhava aos olhos dos colonizadores, um conjunto de mudanças demográficas, sociais, políticas, ideológicas etc. desenvolvia-se em paralelo, acirrando tanto as tensões internas às sociedades imperiais quanto as disputas interestatais, especialmente entre Inglaterra e França. Nesse contexto, a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) encerrou e abriu novos fragmentos dessa disputa, ao obrigar vencedores e vencidos a dar prioridade a reformismos que reequilibrassem suas finanças. Daí uma série de confrontos e revoluções marca as décadas seguintes, com especial destaque para a Guerra de Independência dos Estados Unidos (1776-1783), a Revolução Francesa e as guerras revolucionárias dela decorrentes (1789-1815), a Revolução de Saint-Domingue (1791-1804) e os próprios processos de independência da América Ibérica699. Conjunto que podemos abarcar sob a ainda poderosa fórmula da “Era das Revoluções” – embora uma consideração do 697 BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 489. 698 BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 67-68. 699 PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 17871846. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2015, p. 17. 263 período que remeta ao clássico trabalho de Eric Hobsbawm deva ser ampliada para incluir, ao menos, uma perspectiva atlântica700. Nesse sentido, os movimentos revolucionários devem ser vistos não isoladamente, mas em conjunto, “cada um ajudando a radicalizar o seguinte”, nas palavras de Robin Blackburn701. Em especial no caso da Revolução de Saint-Domingue, podemos apontar o seu impacto imenso não apenas nos destinos do Brasil e do Sul dos Estados Unidos, mas na própria conformação do mundo pós-revolucionário, chegando a representar, na interpretação de Eduardo Grüner 702 , um exemplo de “contra- modernidade” que nos leva a questionar o próprio sentido disto que chamamos “modernidade”703. Isso porque a Revolução de Saint-Domingue, não pressionou apenas a radicalidade da própria Revolução Francesa 704 . Ela pressionou, devido às suas conseqüências, o próprio futuro do sistema atlântico, especialmente pela resistência tanto às tentativas de conquista pelos ingleses quanto à tentativa de recolonização por Napoleão, frustrando os planos caribenhos do imperador. Como narra Tâmis Parron, A expressão “Era das Revoluções”, em que pesem algumas críticas, tornou-se paradigmática na historiografia sobre o período. Cf. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. Aqui, contudo, entendo a Era das Revoluções para além da “dupla revolução” de Hobsbawm, incluindo o mundo atlântico e seus desdobramentos – EUA, Haiti, América Espanhola etc.. A esse respeito, conferir os trabalhos de GENOVESE, Eugene. Da Rebelião à Revolução. São Paulo: Global, 1983; BLACKBURN, Robin. A queda do Escravismo Colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002, e também ARMITAGE, David & SUBRAHMANYAM, Sanjay (ed.). The Age of Revolutions in Global Context, c. 1760-1840. NY: Palgrave Macmillan, 2010, Introduction, xii-xxxii. Bayly, na obra anteriormente citada, seguindo tradição da História Global, amplia a era de transformações para incluir outras regiões do planeta. Não cabe, porém, nos limites deste trabalho, estender a formulação para além do espaço atlântico. Cf. BAYLY, C.A., The birth of the modern word… p. 100-106. 701 BLACKBURN, Robin. Haiti, Slavery and the Age of the Democratic Revolution. In: The Willian and Mary Quaterly. Third Series, Vol. 63, Nº 4, Oct. 2006, p. 643-674. Para um debate acerca do impacto do da Revolução Haitiana na aceleração ou retardamento das emancipações escravas nas Américas, cf. BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 91-93. 702 GRÜNER, Eduardo. La oscuridad y las luces. Buenos Aires: Edhasa, 2010, p. 525. Cabe recordar o argumento de Susan Buck-Morss, aliás usado por Grüner, para indicar a experiência haitiana como central na “dialética do senhor e do escravo” hegeliana. Cf. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos estudos CEBRAP. nº 90, 2011, n.90, p. 131-171. 703 Reflexão tributária de Walter Benjamin, especialmente de suas teses “Sobre o Conceito de História”. Cf. BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012 (para as teses em si, cf. p. 9-20). Especialmente no tocante à tese IX, segundo Löwy, “A atitude de Benjamin consiste exatamente em inverter essa visão [progressista-hegeliana] da história, desmistificando o progresso e fixando um olhar marcado por uma dor profunda e inconsolável – mas também por uma profunda revolta moral – nas ruínas que ele produz. Estas não são mais, como em Hegel, provas da „decadência dos impérios‟ (...), mas são sobreturo, uma alusão aos grandes massacres da história (...) e às cidades destruídas pelas guerras.” Cf. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 92. Para uma outra interpretação da mesma tese, também crítica da perspectiva “história-progresso”, cf. NEVES, Guilherme Pereira das. História, teoria e variações. Rio de Janeiro: Contracapa; Companhia das Índias, 2011, p. 103-123. 704 Não obstante a postura anti-tráfico (não necessariamente antiescravista) de vários jacobinos, inclusive Robespierre, “o problema da abolição da escravatura havia sido descartado [na Constituinte]: foi a grande insurreição dos escravos negros de Santo Domingo em agosto de 1791 e seus desdobramentos que o impuseram novamente”. Cf. VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa, 1789-1799. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 159. 700 264 a cadeia de eventos é simples. Assim que o Haiti esfacelou o projeto do império atlântico francês, Napoleão elegeu a Europa como o cenário exclusivo de sua edificação imperial e empreendeu uma série de conquistas militares terrestres que culminou no Bloqueio Continental de 21 de novembro de 1806 (no fundo concebível apenas porque não tinha mais um tesouro caribenho a virar presa dos britânicos e porque sua frota fora dizimada na Batalha de Trafalgar).705 O abandono do projeto americano pela França suscitou, ainda, a venda da Louisiana para os EUA, que abriu um “imenso continente” para “aventuras empresariais” e transformou o baixo Vale do Mississipi na próxima fronteira de expansão escravista706. Em outras palavras, é a partir da crise do sistema atlântico do noroeste europeu, com a Revolução Haitiana à frente, que a modernidade escravista ganharia um novo capítulo de sua expansão – uma modernidade tensionada pelo potencial crítico da contra-modernidade. 707 Essa crise aparecia não como resultado direto de um declínio econômico objetivo, mas de processos revolucionários que acometiam Europa e América num movimento amplo e integrado. A Revolução Americana inaugura a era das emancipações na América; a Revolução Francesa produzia a crise derradeira do Antigo Regime; a Revolução Haitiana esticava ao máximo os limites das novas realidades que se constituiriam ao produzir impactos objetivos e subjetivos nas sociedades escravistas do século XIX708. O impacto da Era das Revoluções e a crise dos dois sistemas atlânticos (ibérico e noroeste europeu), contudo, não deram lugar automaticamente a uma era de plena liberdade. Pelo contrário: o advento do liberalismo, nos quadros do pensamento iluminista, e o impacto da Revolução Industrial condicionaram outra faceta àquela modernidade escravista que impactava os sistemas atlânticos. Nesse sentido, se a “modernidade escravista” da passagem de um sistema atlântico ao outro promove uma primeira franja dessa multiplicidade de “modernidades” presentes no contexto colonial, a Era das Revoluções, especialmente a Revolução Haitiana, como extremo de uma potência de “contra-modernidade”, ao mesmo tempo que produz a negação daquela 705 PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade..., p. 155. BAPTIST, Edward E. A Segunda Escravidão e a Primeira República Americana. In: Almanack. n. 05. Guarulhos: UNIFESP, 2013, p. 5-41, referências à p. 17. 707 “O aprofundamento da crise no sistema atlântico do noroeste europeu nas décadas de 1790 e 1800 produziu o quadro que a traria também para o sistema atlântico ibérico”. Cf. BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 86. 708 Impacto de escala variável: mais em Cuba do que no Brasil, por exemplo. Cf. BERBEL, Márcia et alii. Escravidão e Política... p. 108. 706 265 primeira franja, possibilita sua expansão a um outro nível, abrindo conseqüências diretas para um terceiro momento da modernidade escravista. Se a Revolução Haitiana aparece como decorrência direta, embora não unicamente, dessas transformações, outras regiões escravistas atravessaram o impacto daquelas décadas não apenas sobrevivendo, mas renascendo sob novas condições que expandiram fortemente não apenas a escravidão, mas todo o complexo social, político, ideológico e econômico que se estruturava ao redor dela. Assim, se os princípios liberais, os movimentos revolucionários e a Revolução Industrial inglesa, na virada dos séculos XVIII e XIX, causaram a implosão de diversos sistemas escravistas do Novo Mundo, outras regiões não apenas expandiram seus plantéis escravistas ao longo da primeira metade do século XIX e reforçaram os grilhões em seus territórios como também o fizeram a partir das novas condições mundiais inauguradas pelo capitalismo em ascensão. Em Cuba, no sul dos EUA e no Brasil (respectivamente, produtores de açúcar, algodão e café), a escravidão atrelou-se a um incremento do processo produtivo e à introdução de máquinas-símbolos da Revolução Industrial, como o descaroçador de algodão, nos EUA, e a ferrovia, em Cuba e no Brasil. Nessas regiões, a tecnologia e a expansão do mercado mundial, longe de atacarem a escravidão, serviram para dar-lhe novo fôlego e para se recompor segundo novas justificativas, intenções e formas de dominação. Nessas áreas, a produção expandiu-se a tal ponto que elas se tornaram líderes em seus segmentos de mercado, respondendo por um virtual monopólio em suas áreas de atuação. Os maiores compradores de suas produções eram exatamente os mercados capitalistas em expansão, notadamente Inglaterra e norte dos EUA. Esse terceiro momento da modernidade escravista, a “Segunda Escravidão” 709, pode ser entendido, então, como a recomposição do escravismo em novas áreas (ainda que dentro de antigas colônias), atrelado a um novo sistema-mundo capitalista, impulsionado por inovações técnicas e justificado sob princípios liberais e cada vez mais relacionada a uma faceta moderna. Desenvolvimento do capital e aprofundamento do escravismo, nesse sentido, longe de constituírem oposições, entrelaçaram-se na construção dessa modernidade. A Segunda Escravidão ocorreu num período de mudanças aceleradas e seu alcance não chegou perto dos quase três séculos de escravidão colonial – sem falar que 709 A discussão sobre a Segunda Escravidão baseia-se prioritariamente em TOMICH, Dale. Pelo Prisma da Escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011, especialmente o capítulo intitulado, não à toa, “A „Segunda Escravidão‟”. 266 ela conviveu permanentemente com uma tensão antiescravista. Contudo, sua intensidade foi maior. Podemos acompanhar essa intensidade a partir da tabela abaixo, contendo algumas estimativas de desembarques de escravos africanos em algumas das principais regiões escravistas das Américas. Tabela 6.1: Estimativas de desembarques de escravos, séculos XVI-XIX. Brasil Caribe América do América Caribe Britânico Norte Espanhola Francês 1501-1600 29.275 - - 169.370 - 1601-1700 784.457 310.477 15.147 225.504 38.685 1701-1800 1.989.017 1.813.323 295.482 145.533 995.133 1801-1866 2.061.625 194.452 78.117 752.505 86.397 Fonte: www.slavevoyages.com Duas situações podem ser lidas a partir dessa tabela: 1) Nota-se que, enquanto em algumas tradicionais regiões do escravismo colonial diminuíram os números de escravos desembarcados, em outras, esses números subiram. Os números indicam simultaneamente o declínio do segundo momento da modernidade escravista (Caribes britânico e francês) e o advento das novas regiões da Segunda Escravidão, em especial, Cuba, Brasil e EUA. Neste último, em especial na região do baixo Vale do Mississipi, grande região de produção algodoeira, após a proibição do tráfico negreiro, em 1807, o número de cativos aumentou, conforme podemos observar na tabela seguinte: Tabela 6.2: Estimativas de população escrava no baixo vale do Mississipi (EUA) Ano 1720 1750 1770 População 1.385 4.730 7.100 1790 1810 1820 1840 1860 18.700 51.748 145.394 637.130 1.497,118 escrava Fonte: BERLIN, IRA. Gerações de Cativeiro. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 322-323 Tais números demonstram que, naquela região, os plantéis escravistas estabilizaram-se ao longo do século XIX e reproduziram-se internamente até às portas da Guerra de Secessão, durante a qual a escravidão encontrou um fim nos EUA. 2) A segunda situação, que pode ser lida a partir da tabela 6.1, envolve os destinos das duas regiões que tiveram seus plantéis aumentados via desembarque de 267 escravos ao longo do século XIX: Cuba, que concentrou a maior parte dos desembarques da América Espanhola, e Brasil. Ambas as regiões conviveram de modo diferente com esse aumento de desembarques: na primeira, o tráfico manteve-se legal por mais tempo do que na segunda, onde foi proibido por lei já em 1831 – o que implicou na reprodução via tráfico com imenso acobertamento e estímulo de frações dos dirigentes imperiais, como indicam os estudos de Tâmis Parrón710. Contudo, apesar de diferentes formas de convivência em ambos os casos, o aumento nos desembarques levou a uma situação similar: o aumento dos plantéis escravistas em novas regiões de produção voltadas para o mercado internacional (produção de açúcar, em Cuba, e café, no Brasil). Podemos perceber como escravidão, tráfico e produção, para o mercado internacional, conviveram intimamente a partir da tabela 6.3. Tabela 6.3: Volume de produção de açúcar e café em Cuba e no Brasil: Cuba Brasil 1821-25 63.2 12.5 1826-30 84.2 25.7 1831-35 101.3 52.9 1836-40 129.8 72.2 1841-45 170.3 91.2 1846-50 253.5 129.3 1851-55 389.5 155.3 1856-60 435.3 172.8 1861-65 501.4 139.7 Obs.: valores em milhares de toneladas métricas. Fonte: ELTIS, David. Economic Growth and the ending of the transatlantic slave trade. New York/Oxford: Oxford University Press, 1987, p. 284 e 286. Com as três tabelas juntas, percebemos toda a movimentação das relações entre Segunda Escravidão, mercado internacional e reorganização das sociedades em Cuba, nos EUA e no Brasil. O aumento nos plantéis escravistas (via tráfico, em Cuba e no Brasil, e reprodução interna, nos EUA) levou a um aumento nas respectivas produções internas. Deve-se ressaltar que esse aumento se dá numa conjuntura de queda nos preços 710 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, especialmente capítulo 2. 268 dos produtos, o que reforça como a expansão dos volumes, feita num contexto desfavorável, teve de contar com o fácil acesso a vastas fontes de mão-de-obra.711 Devese ressaltar, ainda, que essa expansão da escravidão e da produção contou com as amplas vantagens proporcionadas pela Revolução Industrial em andamento. Segundo nos diz Dale Tomich, em Cuba foram construídas ferrovias (grande símbolo da Revolução Industrial) com a missão específica de escoar a produção açucareira, o que otimizou o tempo e permitiu a penetração dos engenhos e dos canaviais mais para o interior da ilha. No Brasil, na segunda metade do século XIX, as primeiras ferrovias construídas também tinham por objetivo primordial escoar a produção açucareira, desde o vale do Paraíba até os portos. Em ambos os casos, os capitais oriundos dos senhores de escravos e produtores das plantations foram fundamentais para a acumulação necessária à construção desses símbolos do nascente capitalismo industrial. Ao advento da Segunda Escravidão corresponderia, ainda, a construção na maior parte da América dos novos Estados Nacionais saídos da crise colonial 712. Vale dizer: à crise da escravidão colonial seguia-se a Segunda Escravidão; à crise do sistema colonial seguiam-se os Estado de base nacional. Significa afirmar, portanto, que a escravidão tornava-se, cada vez mais, uma questão nacional nos novos Estados territoriais em criação 713 (mesmo em Cuba, que ainda era colônia da Espanha, a questão ganhou dimensões mais amplas – imperiais – e não meramente locais). Eis o mundo em plena transformação com que dirigentes do Império do Brasil precisavam lidar. Para além das mudanças conceituais e políticas que discutimos nos capítulos anteriores, que transformaram conceitos, práticas e interpretações desde o momento de ruptura, ainda havia o mundo da Segunda Escravidão a delimitar os espaços possíveis de ação para aqueles que tencionavam erguer um poderoso Império na América. Sendo esse Império escravista, também a experiência histórica que seus agentes manifestavam no processo de interpretação do mundo precisava lidar com a questão da escravidão. 711 Para o contexto de expansão econômica do Vale do Paraíba, atrelado às transformações no mercado mundial, cf. MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: MUAZE, Mariana & SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 21-56. 712 Luiz Felipe de Alencastro já apontara, ao analisar a obra de Dale Tomich, como a desconsideração pelos processos de construção dos Estados nos EUA e no Brasil faria o conceito de “segunda escravidão” perder muito da sua força. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Brazil in the South Atlantic (1550-1850). Meditations. 23.1 (Fall, 2007), p. 125-174 (especialmente p. 170, n. 84). 713 Para a noção de “escravidão nacional”, cf. SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 269 6.2) O chão escravista da Constituinte: No mundo da Segunda Escravidão em construção, não surpreende que o “chão escravista do Império do Brasil” condicionasse as discussões que envolvessem o tema714. Dessa forma, as relações que discutimos nos capítulos anteriores a respeito da interpretação da História como história da liberdade em luta contra a opressão, assim como as relações entre a construção de uma perspectiva sobre a civilização em oposição à barbárie, e sobre a forma pela qual o Brasil inseria-se dentro dessa lógica mais ampla, atravessando as transformações sem riscos de anarquia e fragmentação, tudo isso dialogava, também, com os modos pelos quais eram tratadas as relações entre escravidão, nação, civilização e História. Podemos perceber essas relações desde a Constituinte, com a discussão a respeito do famoso artigo 5 do projeto de Constituição, apresentado à Assembleia em 01 de setembro.715 Nele, declarava-se: “São brasileiros”: I. Todos os homens livres habitantes no Brasil, e nele nascidos. II. Todos os portugueses residentes no Brasil antes de 12 de Outubro de 1822. III. Os filhos de pais brasileiros nascidos em países estrangeiros, que vierem estabelecer domicílio no império. IV. Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro em serviço da nação, embora não viessem estabelecer domicílio no império. V. Os filhos ilegítimos de mãe brasileira, que, tendo nascido em país estrangeiro, vierem estabelecer domicílio no império. VI. Os escravos que obtiverem carta de alforria. VII. Os filhos de estrangeiros nascidos no império, contanto que seus pais não estejam em serviço de suas respectivas nações. VIII. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião.716 De todas as definições ali traçadas, duas, em especial, nos interessam. Em primeiro lugar, aparece já o 12 de Outubro como clivagem, antes mesmo das discussões que, como vimos no capítulo anterior, sintetizaram na data o momento central de 714 A expressão refere-se especialmente às discussões sobre cidadania e escravidão na Constituinte de 1823, e está em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824). In: CHAVES, Cláudia Maria das Graças & SILVEIRA, Marco Antonio. Território, conflito e identidade. Belo Horizonte, MG: Argumentum; Brasília, DF: CAPES, 2007, p. 75, e BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, p. 163-175. Dialogaremos com ambos os trabalhos na discussão sobre a questão na Constituinte. 715 AAC, tomo 5, p. 7. 716 Idem, ibidem. 270 construção do Império, após as etapas anteriores de 9 de janeiro e 7 de setembro. Até então, como visto, o 12 de Outubro marcava especialmente a passagem do “velho tempo” ao “tempo novo”, do “ser português” ao “ser brasileiro”, da experiência antiga à nova. Em segundo lugar, e que constitui foco central de nossa discussão agora, a possibilidade de os escravos alforriados constituírem parte desse “ser brasileiro”, alcançando não apenas uma definição de cidadania, mas também o ingresso na comunidade que se pretendia aproximar da definição de civilização que marcava as luzes do século. O “ser brasileiro”, como vimos nos capítulos anteriores, referia-se não apenas a um acesso aos direitos de cidadania, mas, essencialmente, a ser parte do conjunto que rompia com o passado de opressão e ingressava no par liberdadecivilização. O “ser brasileiro” era o agente do grito de liberdade que não aceitava a dominação; era o sujeito, na narrativa histórica que se construía, que, assim como seus pares da história da humanidade, estava, naquele momento, cumprindo o destino inevitável de abrir mão da opressão para exercer a natureza – presente no coração de todos os homens, é bom lembrar – que o tornava inviável para os grilhões. Admitir o ingresso do ex-escravo nessa narrativa do “ser brasileiro” era, discursivamente ao menos, admitir que também no coração do escravizado jazia a necessidade humana de liberdade que jamais poderia ser apagada, apenas oprimida – pelos mesmos grilhões que oprimiam os brasileiros sob o jugo português. Nessa leitura, o parágrafo VI do artigo 5 era não apenas uma questão de extensão da cidadania, mas, também, um pontapé inicial para uma gradual abolição da própria escravidão.717 Essa potencialidade emancipacionista inscrita no “ser brasileiro” foi percebida e gerou discussões na própria Assembleia, gerando dois problemas centrais nas discussões a se resolver. O primeiro dizia respeito às relações entre “ser brasileiro” e “ser brasileiro membro da sociedade civil” – ou, nas palavras usadas, “ser cidadão brasileiro”. Nessa primeira discussão, a posição de cativos, ex-cativos e indígenas precisava ser definida para se delimitar os significados de brasilidade que se admitiriam como válidos para todos. Poderiam esses grupos ser equiparados pela Constituição? Se não, quais deveriam ser as categorias de cada um? Eis o primeiro problema. 717 Num tom provavelmente dado por José Bonifácio, membro da comissão de elaboração do projeto de Constituição. A hipótese da abolição está em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)... op. cit., p. 78. 271 O segundo problema, e ralacionado ao primeiro, dizia respeito ao papel que a escravidão teria na jovem nação que se constituía. Tal papel demandava uma disputa narrativa pela memória dessa escravidão e do tráfico que a alimentara, que acabava incluída no rol das disputas pelo passado que vimos discutindo nos capítulos anteriores, além de demandar, também, uma disputa pelas perspectivas futuras que a instituição teria no Império do Brasil. Vejamos cada problema separadamente. O primeiro problema, o das relações entre “ser brasileiro” e “ser cidadão brasileiro”, se coloca mesmo antes do debate a respeito do artigo 5 em especial. A própria epígrafe do capítulo I do projeto – que definia os “membros da sociedade do Império do Brasil”, seria alvo de uma proposta de emenda, não apoiada, vinda do deputado Vergueiro. Ele propunha que se dissesse “cidadãos”, no lugar de “membros da sociedade”. Assim, produzia uma aproximação entre a qualidade da cidadania e o pertencimento do Brasil: quem fosse parte da sociedade do Império do Brasil seria, necessariamente, cidadão brasileiro. Não obstante não fosse apoiada, a emenda foi defendida pelo deputado Montesuma. Na sua defesa, diz que gostaria que se adotasse a emenda “para desvanecer a ideia de que se há de fazer diferença entre brasileiros, e cidadãos brasileiros”. Para Montesuma, “ser brasileiro é ser membro da sociedade brasílica; portanto todo o brasileiro é cidadão brasileiro”. Destacava, assim, que o que convinha era “dar [a] uns mais direitos, e mais deveres do que a outros; e eis aqui cidadãos ativos e passivos.” Mas tal não excluía os passivos do pertencimento àquela sociedade. 718 Montesuma, assimo, não admite a possibilidade, na sua fala, de alguém “ser brasileiro” sem ser membro da sociedade brasílica e, portanto, cidadão. Ao pensarmos no “ser brasileiro” como motor de luta contra a opressão portuguesa e na construção do Império, todos deveriam ser incluídos como membros da sociedade civil. É o deputado França quem critica primeiro a fala de Montesuma, defendendo que se não poderia deixar de fazer uma diferença, ou divisão, entre “brasileiros” e “cidadãos brasileiros”. Afinal, segundo a qualidade da nossa população, os filhos dos negros, crioulos cativos, são nascidos no território do Brasil, mas todavia não são cidadãos brasileiros. Devemos fazer esta diferença: brasileiro é o que nasce no Brasil, e cidadão brasileiro é aquele 718 AAC, 1823, vol. 5, p. 166. Os grifos estão no original. 272 que tem direitos cívicos. Os índios que vivem nos bosques são brasileiros, e contudo não são cidadãos brasileiros, enquanto não abraçam a nossa civilização. Convém por conseqüência fazer esta diferença por ser heterogênea a nossa população.719 A clivagem da civilização definia o pertencimento à “sociedade brasílica” – aquela que, na narrativa que se construía, havia exercido seu direito à liberdade, presente na história como um todo, e se separado de Portugal. Ao definir-se essa clivagem, ia-se além da discussão sobre direitos de cidadania: se definia mesmo o pertencimento à história da humanidade, já que esta era apanágio apenas daqueles que estivesse plenamente inseridos na lógica da civilização. Assim como os indígenas – que, cabe lembrar, já nessa narrativa eram tratados, desde o Reverbero, dentro da lógica da não-história –, aos escravos nascidos no Brasil estaria interditada a presença na História. A “heterogeneidade” da população brasileira impedia a plena historicização de todos os habitantes do Brasil. Em outras palavras, o “ser brasileiro” era pertencente a todos que nascessem no Brasil, incluindo os crioulos cativos e indígenas, mas o “ser membro da sociedade civil brasileira”, e portanto ator das transformações recentes por que havia passado o Brasil, era restrito a quem não fosse parte dos grupos anteriores. Montesuma, respondendo a França, afirma não desejar nada de diferente de seu crítico, mas vai além. Afirma que ali na Assembleia, não tratavam “senão dos que fazem a sociedade brasileira”, dos “súditos do Império do Brasil, únicos que gozam dos cômodos de nossa sociedade”. Os índios, nesse sentido, estariam “fora do grêmio da nossa sociedade”, por não serem súditos do Império e o não reconhecerem, “nem por conseqüências duas autoridades desde a primeira até a última, vivem em guerra aberta conosco”. Estariam, assim, fora da lógica da “sociedade brasílica”, embora devessem, sim, ser alvo de uma legislação civilizatória que os chamasse ao ingresso na civilização. Da mesma maneira, os “crioulos cativos” também não eram membros da sociedade, não obstante Montesuma dissesse esperar que “quanto antes purifiquemos de uma tão negra mancha [d]as nossas instituições políticas”. A crítica à escravidão não rompia a clivagem que França definira e que Montesuma ampliara: dos três grupos a habitar o território do Brasil, apenas um teria o pleno direito à História por já estar na civilização720, sendo aos outros dois vedado o acesso à sociedade civil, caso de França, ou à sociedade brasílica como um todo, caso de Montesuma. França, aliás, respondendo 719 720 Idem, ibidem. Idem ibidem. 273 mais à frente ao deputado Maia, que defendera a aproximação entre o “ser brasileiro” e o “ser cidadão brasileiro”, a exemplo de Montesuma, indagaria: Todos os homens livres, diz [Maia], habitantes do Brasil, nele nascidos, são cidadãos brasileiros. Agora pergunto eu, um Tapuia é habitante do Brasil? É. Um Tapuia é nascido no Brasil? É. Um Tapuia é livre? É. Logo é cidadão brasileiro? Não, posto que aliás se possa chamar brasileiro pois os índios no seu estado selvagem não são, nem se podem considerar como parte da grande família brasileira; e são todavia livres, nascidos no Brasil, e nele habitantes. Nessa lógica, antes que abracem “nossos costumes e civilização”, os indígenas “estão fora da nossa sociedade”.721 Assim, essa perspectiva admitiria, no máximo, um ingresso subordinado na História: os escravizados e os indígenas seriam, sim, parte da sociedade brasileira, mas não a parte civil – origem da civilização – a quem se dirigia a ação na lógica da história como história da liberdade. Seriam objeto, não sujeito. França retomaria a questão a partir da sessão de 24 de setembro, quando entra em discussão o artigo 5 propriamente dito. A discussão começa a partir de emenda sua que, retomando a questão proposta por Vergueiro, mas não apoiada, defende a substituição do “são brasileiros” do artigo 5 pela expressão “são cidadãos brasileiros”. Para tanto, novamente argumenta que o termo “cidadãos” “é o característico que torna o indivíduo acondicionado de certos direitos políticos que não são comuns a outros quaisquer indivíduos, posto que brasileiros sejam”. E dá como exemplo dos outros quaisquer indivíduos os crioulos, ou filhos dos escravos que nascem no nosso continente [que] são sem dúvida brasileiros, porque o Brasil é o seu país natal; mas são eles porventura ou podem considerar-se como membros civis da sociedade brasileira, isto é, acondicionados dos direitos políticos do cidadão brasileiro? Não certamente. 722 A chave interpretativa é, novamente, o ingresso na sociedade civil. Assim como nos dicionários 723 , também as narrativas que vimos analisando admitiam as 721 Idem, p. 167. AAC, 1823, vol. 5, p. 179. 723 No Moraes e Silva, lembremos, “história” tem o significado de “narração de sucessos civis, militares, ou políticos.” Da mesma maneira, “historiar” seria “escrever algum sucesso civil, militar ou político, a vida de alguém, a fundação de alguma Cidade etc. segundo as leis da história.” Tal seria, também, o característico de “histórico”. Cf. MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Primeiro. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823, p. 682. Cabe indicar que, no Silva Pinto, o termo “História” 722 274 transformações históricas como resultado da ação de sujeitos ingressantes no âmbito civil da sociedade. Esse ingresso, saindo da natureza, era a marcação do começo da História. O oposto era a não-história. Era o esquecimento. Outro deputado, Francisco Carneiro, defendendo a emenda, interroga os colegas: “Ora, por exemplo, os escravos e os estrangeiros também se poderão entender membros no sentido deste capítulo? Não, por certo: entram na sociedade de homens, mas não na sociedade de homens que gozam dos direitos de cidade conforme a constituição.” Os escravos, os indígenas etc. “não entram no pacto social: vivem no meio da sociedade civil, mas rigorosamente não são partes integrantes delas, e os indígenas dos bosques, nem nela vivem, para assim dizer.” Não obstante, estes não seriam seres sem quaisquer direitos, mas manteriam, além dos de “mera proteção”, a “geral relação de humanidade”. Fariam genericamente parte dela, mas não comporiam o corpo nacional de brasileiros que acabara de ingressar na história da liberdade com o brado que os tirara da opressão de Portugal.724 Vergueiro, como não poderia deixar de ser, já que era autor da proposta original rejeitada, seria outro a defender a proposta de França. Para ele, a epígrafe “dá a entender que brasileiro quer dizer membro da sociedade do Império do Brasil: o que não é exato; porque há escravos e indígenas, que sendo brasileiros não são membros da nossa sociedade.”725 Mesmas questões postas: escravos e indígenas eram as referências para se bem delinear os cidadãos do Império do Brasil, e, portanto, era preciso cuidar de tratar apenas dos membros da sociedade civil. Seria o deputado Almeida e Albuquerque, para quem a questão era de suma importância, e não apenas de nomenclatura, quem ofereceria uma explicação mais prática para a clivagem que a emenda de França oferecia. Para tanto, primeiro retoma historicamente a questão de quem compõe a “família social”. Tratava-se, argumenta o deputado, “dos indivíduos que compõe a grande família brasileira”, e todos sabiam que aparece apenas como “narração de sucessos”, estando ausentes os adjetivos. Cf. SILVA PINTO, Luiz Maria da. Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832, p.583. 724 AAC, 1823, vol. 5, p. 180. Na sessão seguinte, em 25 de setembro, voltando a discussão, seria Carvalho e Mello um deputado a discordar dessa interpretação. Reputando “cidadãos brasileiros todos os que nasceram no território deste império, ou que se tornaram tais por força e determinações da lei”, indica que tem sido entendido ao longo dos séculos que todos que fazem parte da cidade ou sociedade são admitidos como cidadãos. A distinção que priva alguns dos direitos políticos, argumenta, existem porque “assim o pede e exige o bem da ordem social”, mas tal não deve bastar para que se os privem do “honorífico título” de cidadão, que é adquirido simplesmente “pelo seu nascimento, pelas determinações legais, e porque abraçaram o nosso novo pacto social.” 724 A admissão de que todos abraçaram o pacto, sendo, portanto, cidadãos, contrapõe-se à fala anterior de Francisco Carneiro, que restringiu os ingressantes do pacto 725 Idem, p. 183. 275 família compõe-se de “pais, filhos e domésticos (...) esta é a mais natural e a mais antiga de todas as sociedades.” Isso não significaria ausência de distinções entre os que a compõem: todos seriam membros da sociedade, mas nem todos gozariam das mesmas prerrogativas. Nem todos seriam cidadãos. Seria bom, continua, se assim não fosse; se as coisas no Brasil fossem diferentes. Mas “em um país, onde há escravos, onde uma multidão de negros arrancados da costa d´África e de outros lugares, entram no número de domésticos, e formam parte das famílias, como é possível que não haja essa divisão?” E segue com exemplos do passado para confirmar sua argumentação: “Na Grécia os libertos não eram cidadãos, nem ainda seus filhos, posto que gregos fossem: não bastava mesmo ser filho de pai ingênuo, ou que nunca tivesse sido escravo: era preciso ser filho de dois naturais gregos.” Do mesmo modo, em Roma, também a “qualidade de cidadão era apreciada”, sendo alvo de inúmeras regulamentações. E se houve tempo, nessa sociedade, “em que bastava ter nascido em Roma, e ter nascido livre para ser cidadão”, isso teve como resultado “uma multidão de filhos de libertos, e de estrangeiros [que] inundou a cidade”, tornando-se eles “bem depressa senhores das deliberações pelo seu grande número de votos”, sendo necessária uma intervenção para que se restituísse a “superioridade de votos aos verdadeiros romanos”. Eis o exemplo “que nos conta a história. Ora não será isto um exemplo para não prodigalizarmos inconsideradamente o foro de cidadão brasileiro? Não devemos ter em vista melhorar, e não abastardar as gerações futuras?”726 O apelo ao passado romano como forma de produzir o medo senhorial de uma legião de descendentes de escravizados ditando o ritmo das políticas para o Império buscava manter as clivagens necessárias à ordem escravista na delimitação da posição de cada um na “grande família” que constituía a nação brasileira. Como se precisasse, insiste na argumentação deixando claro o foco da produção desse medo: Oxalá que todos os que habitam o Brasil fossem cidadãos brasileiros; mas é isto possível? Indivíduos que não têm certa aptidão para o bem geral da sociedade, e que não têm qualidades morais devem gozar das mesmas prerrogativas que aqueles em que elas concorrem? O escravo africano, por exemplo, que chegou a libertar-se, mas que não tem adquirido os nossos costumes, e que não tem alcançado algum grau de civilização, pode dizer-se cidadão brasileiro?727 726 727 Idem, p. 184. Idem, ibidem. 276 Novamente o ingresso na civilização aparecia como limite para a plena inserção na sociedade. No final, passa, na votação, a emenda de França. Mas não se encerraria a discussão. Afinal, uma vez definida a clivagem, alguns dos itens do artigo 5 poderiam causar perturbações. Como fica claro já no primeiro deles, o I, que define, como cidadãos brasileiros, “Todos os homens livres habitantes no Brasil, e nele nascidos.” Considerando a exclusão óbvia dos escravizados no trecho, a crítica se volta plenamente para os demais indivíduos livres que se não deveriam incluir na cidadania: indígenas e libertos de origem africana. O deputado Arouche Rendon lembra à Câmara que qualquer um com algumas luzes de jurisprudência “conhece bem a diferença que há entre brasileiro simplesmente e cidadão brasileiro”. Assim, levando-se em conta que a emenda de França foi aprovada e fez o artigo passar como “cidadãos brasileiros”, e não simplesmente “brasileiros”, seria preciso mudar o item I, já que, por exemplo, “o botocudo nasceu no Brasil, nele habita, é livre, e contudo nunca direi que é brasileiro cidadão”. Da mesma maneira, e já considerando o item VI, que definia como brasileiros “os escravos que obtiverem carta de alforria”, afirma o deputado que estes não podem ser cidadãos, “pois se um africano logo que chega for liberto, o mais que pode ficar sendo é um estrangeiro, e não um brasileiro cidadão.”728 Em sessão de 30 de setembro, se discute, afinal, com mais intensidade o parágrafo VI, referente aos escravos que obtivessem alforria. É o momento-chave não apenas da discussão sobre as relações entre o “ser brasileiro” e a questão da escravidão, mas, também, para a conexão entre o passado recente brasileiro a as expectativas futuras que se produziam a respeito do Império. Nessa discussão em particular, surge o segundo problema, a que nos referimos acima. Afinal, qual deveria ser o papel da escravidão para o Império que nascia? No mundo da Segunda Escravidão que começava a desenhar-se com mais clareza, mas no qual o Império ainda não plenamente ingressara, essa seria uma questão de fundamental importância frente à ordem legal que se pretendia construir. E dois debatedores marcariam com mais profundidade suas posições frente a essa questão: José da Silva Lisboa, seguindo os passos de Muniz Tavares, e Maciel da Costa, seguindo os passos de França. Idem, p. 185. Montesuma pensa de modo semelhante. Para ele, “os índios não são brasileiros no sentido político em que aqui se toma; eles não entram conosco na família que constitui o Império”. Até poderiam entrar, afirma, desde que queiram, havendo os meios de “os chamar, e convidar ao nosso grêmio; mas chamar os índios brasileiros no sentido deste artigo, ou querer já compreende-los como cidadãos brasileiros não é conforme aos princípios políticos, que devemos professar.” Idem, p. 186 728 277 Muniz Tavares, abrindo com seu discurso a ordem do dia, diz que se levanta não tanto para falar sobre a matéria, a discussão do parágrafo VI, mas, sim, “como que para se conservar a ordem.” Explicando que julgava conveniente que o artigo passasse sem discussão, lembrava que Alguns discursos de célebres oradores da assembléia constituinte de França produziram os desgraçados sucessos da Ilha de S. Domingos, como afirmam alguns escritores que imparcialmente falaram da revolução francesa; e talvez entre nós alguns Srs. Deputados arrastados de excessivo zelo a favor da humanidade, expusessem ideias (que antes convirá abafar), com o intuito de excitar a compaixão da assembléia sobre essa pobre raça de homens, que tão infelizes são só porque a natureza os criou tostados.729 Muniz Tavares, que, como visto nos capítulos anteriores, já demonstrara seu imenso horror apenas à audição da palavra “revolução”, conclamava os colegas a passar a questão sem exaltações trazendo do passado recente o espectro do Haiti – que, como vimos, já fora utilizado, tanto pelos portugueses quanto pelos brasílicos, para direcionar certos debates e questões que consideravam não merecer muita atenção, graças aos riscos que levantava. Embora o próprio taquígrafo não registrasse o final do discurso de Tavares, sob argumento de que se o não ouviu, ficaria registrado o único ponto que o deputado afirmou querer destacar: “direi somente que no antigo sistema apenas um escravo alcançava a sua carta de alforria, podia subir aos postos militares nos seus corpos, e tinha ingresso no sagrado ministério sacerdotal, sem que se indagasse se era ou não nascido no Brasil.”730 Considerando-se a posição manifesta em outras ocasiões pelo deputado, discutidas no capítulo anterior, a respeito da defesa das “luzes do século” contra a opressão dos tempos passados, sugere-se que sua fala era um ataque a uma proposição indicada na sessão anterior, de 27 de setembro, pelo deputado França, declarando que o artigo VI “poderia passar se os nossos escravos fossem todos nascidos no Brasil”. Não o sendo, sendo estrangeiros, a emenda que França oferecia era para que se restringisse a cidadania aos libertos que fossem oriundos do Brasil. 731 Assim, podemos levantar a hipótese de que Muniz Tavares considerava desnecessária ou exagerada a restrição na emenda indicada por França, sugerindo-se, portanto, que os riscos de se reproduzirem no Brasil as cenas de S. Domingos teriam mais a ver com 729 AAC, 1823, vol. 5, p. 203-204. Idem, p. 204. 731 Idem, p. 201. 730 278 esforços de restrição para ascensão social de ex-escravos do que pela discussão em si da questão. Daí a defesa de que se passasse o parágrafo VI tal como redigido.732 Outros deputados concordariam com a posição de Muniz Tavares a respeito do artigo, embora com ressalvas. Era o caso do deputado Alencar, para quem as emendas oferecidas por outros deputados ao artigo lhe pareciam “injustas, contraditórias, e impolíticas.” – e que o artigo original estaria, sim, conforme os princípios de justiça universal. Contudo, continua, essa “justiça universal” do artigo deveria subordinar-se a um princípio mais amplo, a um pragmatismo que hierarquiza a lógica social no Império do Brasil: o princípio da salvação da ordem.733 Atacando ainda as emendas de França e de Costa Barros, oferecida na sessão anterior734, afirmava que, fossem tais condições atendidas, os forros que não alcançassem a condição de cidadania ficariam sem um lugar na sociedade. o que serão esses que pelas emendas ficam excluídos? Estrangeiros certamente não, porque não pertencem a sociedade alguma, nem tem outra pátria que não seja a nossa, nem outra religião senão a que professamos, e portanto segundo o projeto não sei o que hão de ser.735 E questiona a distinção entre o tratamento dado a indígenas e aos cativos nessa questão: o índio, logo que entra para a nossa sociedade, selvagem como é, não deixa de ser cidadão (...), mas os escravos, que eu não julgo em piores circunstâncias, entende-se que não devem ser admitidos apesar de que pelo lado dos costumes estejam muito mais 732 França, respondendo a Muniz Tavares, argumenta que não oferecera sua emenda restringindo a cidadania aos libertos oriundos do Brasil por “menos filantropia” do que os autores do projeto original. E indica que as circunstâncias do Brasil são distintas daquelas das Cortes de Portugal, onde se discutia a cidadania para os africanos – possivelmente uma resposta motivada por algum argumento não registrado na fala de Muniz Tavares. 733 Tal princípio deveria o pleno ingresso dos escravos no mundo da cidadania, pois, além de os cativos “serem propriedade de outros, e de se ofender por isso este direito se os tirássemos do patrimônio dos indivíduos a que pertencem”, ainda restaria o imenso inconveniente de amortecer, com isso, “a agricultura, um dos primeiros mananciais da riqueza da nação”, abrindo-se um “foco de desordens na sociedade introduzindo nela de repente um bando de homens, que saídos do cativeiro, mal poderiam guiar-se por princípios de bem entendida liberdade.” Idem, p. 204. 734 A emenda de Costa Barros recusava a oferta de cidadania brasileira imediatamente ao escravo que alcançasse carta de alforria, tornando necessário, para tal, que os libertos tivessem emprego ou ofício para que se tornassem úteis à sociedade, e não “servir de peso”. Idem, p. 201. 735 Idem, p. 204. Para Marquese e Berbel, a fala de Alencar considerava a África “tábula rasa”, por conta da associação dos escravos à ideia de não-pertencimento a sociedade alguma. MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)... op. cit., p. 77. 279 chegados aos nossos, porque tomam os de seus senhores no tempo do cativeiro.736 A reafirmação da escravização como um processo civilizatório, visto que aproximava o cativo, originalmente não pertencente a sociedade alguma, das benesses da civilização a que pertenciam seus senhores, é trazida à discussão como uma maneira de justificar o ingresso subordinado do ex-cativo na sociedade brasílica – e, não fosse a salvação do estado, justificaria também o ingresso do próprio cativo. 737 Em suma, na linha aberta por Muniz Tavares, o artigo VI deveria passar tal como redigido – Seriam cidadãos simplesmente todos os escravos que obtivessem carta de alforria –, lamentando discursivamente Alencar que a salvação do estado impedisse que se fosse além disso. Nesse sentido, posicionam-se contra as emendas oferecidas por França e Costa Barros, que, respectivamente, defendiam que a cidadania fosse concedida apenas aos libertos nascidos no Brasil e que cumprissem certas condições de emprego e utilidade à sociedade. Falar demais sobre o artigo, impondo a ele emendas desse tipo, na perspectiva de Muniz Tavares além de se arriscar a repetição das cenas do Haiti – tal como, analisava, acontecera na Assembleia Francesa –, ainda apresentava outro problema, este de moralidade, para o Império que se erguia na América: até no “velho tempo”, no “antigo sistema”, como afirmara, um ex-escravo podia ascender socialmente a postos militares e sacerdotais, sem que se perguntasse se era oriundo ou não do Brasil. Iria querer o Império liberal travar tal ascensão?738 736 AAC, 1823, vol. 5, p. 204. Para Carneiro da Cunha, que discursa depois de Alencar, inclusive, a simples obtenção de alforria já garantia sobre o ex-cativo a presunção de bom comportamento e atividade, de cumprimento das obrigações, não vendo o deputado sentido em diferenciar, nesse particular, os africanos dos nascidos no Brasil, já que aquele necessitaria mais de amparo que este, visto que o africano não teria quem o protegesse, enquanto “o nascido no seio de uma família goza de algumas comodidades e tem, de ordinário mais estimação.” Idem, p. 204-205. Costa Barros discordaria da fala sobre a carta de alforria, afirmando que estas “são quase sempre passadas por amor, e a maior parte a escravos mal criados.” Idem, p. 205. 738 Esse ponto da discussão, sobre as diferenças entre ascensão de libertos no novo e no velho tempo, marcariam alguns outros debates ao longo da década de 1820. Em discussão sobre projeto de lei a respeito das municipalidades, por exemplo, em 1828, na Câmara dos Deputados, no que tangia à definição de cargos municipais e sobre quem poderia a ele ascender, alguns deputados, como Castro e Silva defendem que aos libertos seja restrita a ascensão às câmaras municipais, devido à sua condição. Costa Aguiar, então, critica o que enxerga como um processo de “aristocratização” do Brasil que deseja excluir das câmaras os libertos “só porque são libertos.” E completa: “A aristocracia que pode convir ao Brasil é a do merecimento, o qual pode existir em todas as classes, e o estado e a qualidade de liberto só por si não pode servir do motivo justificado para semelhante exclusão”, dizendo reconhecer apenas o mérito, não importa se branco ou preto, e se este saiu de um estado no qual teve o azar de nascer, então não haveria razão para criar mais barreiras à ascensão. Da mesma maneira, o deputado Augusto Xavier declara que “é necessário que as virtudes e o merecimento tenham lugar entre nós, embora preceda nesses desgraçados o nome de que haviam sido escravos; esse deve ser nivelado quando tenha merecimento.” E, finalmente, o melhor discurso em defesa da ascensão social dos libertos é de Cunha Mattos, personagem de que trataremos melhor na parte final deste capítulo. Mattos, em sua fala, afirma que “a ideia da 737 280 Silva Lisboa fala mais à frente. Também afirma ser o artigo VI, no seu entendimento, “justo e político”, não admitindo as restrições postas pelas emendas. Declara, assim, ser conveniente fazer o artigo mais simples ou amplo, para excluir toda a dúvida, “declarando-se ser cidadão brasileiro, não só o escravo que obteve de seu senhor a carta de alforria, mas também o que adquiriu a liberdade por qualquer título legítimo”. Traz à discussão Madame de Stael, “que atribui a uma semelhante discussão na assembléia da França a catástrofe da sua melhor colônia na América.” 739 Para Lisboa, porém, diferentemente de Muniz Tavares, “não há risco em se deixar a verdade combater com a falsidade e aquela prevalecerá, sendo o duelo sem padrinhos”. E complementa: Quem perdeu a rainha das Antilhas foi, além dos erros do governo despótico, a fúria de Robespierre, o qual bradou na assembléia – pereçam as nossas colônias, antes que pereçam os nossos princípios. – Ele com os colegas anarquistas proclamaram súbita e geral liberdade aos escravos; o que era impossível e iniquissimo, além de ser contra a lei suprema da salvação do povo. Onde o cancro do cativeiro está entranhado nas pares vitais do corpo civil, só mui paulatinamente se pode ir desarraigando. 740 Ao inverter a lógica da discussão sobre a temática da escravidão ao acusar não os discursos em si, mas a defesa de um abolicionismo repentino como causa da Revolução Haitiana, Silva Lisboa pode propor um abolicionismo gradual que dilui o perigo da presença da escravidão a partir de leitura particular da Constituição. Segundo ele, ao se combinarem os artigos 254 e 255 do projeto de Constituição ao artigo em questão741, dissolvem-se as objeções levantadas a ele e fica claro que se propõe a sua exclusão dos libertos é uma injúria que se faz ao exército; no exército e na armada existem muitos oficiais que podem chegar aos maiores postos; a cor nada significa, nós o que queremos são virtudes, e eu não terei desprezo de ficar à esquerda de um general que tivesse sido escravo, uma vez que ele tenha méritos: passando esta ideia, nós fazemos um grande mal ao nosso exército, porque nele há muitos homens distintos que foram escravos, não digo só no dia de hoje, mas em outros tempos, como Henrique Dias! Esse homem defensor de Pernambuco foi escravo, e arrostrou-se [sic] contra os melhores generais holandeses, e andou a par de todos os chefes portugueses e brasileiros. Ele fez grandes serviços à nação, e seus descendentes foram considerados como homens mui dignos de recompensa! Portanto não deve entrar em dúvida a admissão de libertos aos empregos mais consideráveis do estado.” Cf. ACD, 1828, sessão em 18 de junho, p. 148-149. 739 Presumivelmente, a autora a que Muniz Tavares se referia em sua fala. 740 Idem,p. 206. 741 O artigo 254 afirmava que a assembléia terá cuidado de “criar estabelecimentos para a catequese e civilização dos índios, emancipação lenta dos negros e sua educação religiosa e industrial; o 255, da construção de casas de trabalho para os que não acham emprego, bem como casas de correção e trabalho para os “vadios e dissolutos de um e outro sexo e para os criminosos condenados.” AAC, 1823, vol. 5, p. 16. Na transcrição da fala, ao invés do artigo 254, aparece o número 245, que trata 245 do modo de recrutamento da força armada. É mais provável, dado o contexto, tratar-se de erro de transcrição. O mesmo aparece em MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça: escravidão, 281 “lenta emancipação e moral instrução.”742 E questiona: “em tempo de liberalismo será a legislatura menos equitativa que no tempo do despotismo?” 743 Não poderia deixar o novo tempo de legislar sobre a escravidão herdada do tempo velho. No mundo da Segunda Escravidão que se construía, não obstante a crítica genérica do escravismo acompanhasse a expansão dos plantéis, como vimos, gerando uma tensão, era necessário não precipitar-se no emancipacionismo e incorporar os cativos à civilização que se construía. Para Cairu, tais práticas, “mitigando o rigor do sistema de escravidão”, sempre produziram bons efeitos. Era um avanço em relação à proposição de Muniz Tavares. Não apenas Cairu ampliava o escopo dos ex-escravos que teriam acesso à cidadania, contrariando a emenda de Costa Barros ao declarar que quaisquer meios legítimos serviriam, ainda acenava o deputado com um abolicionismo gradual e controlado de cima, tendo em vista a construção de um projeto de sociedade que se aproximava daquele que Bonifácio, por exemplo, defenderia em seu famoso escrito de 1823. Para que olharemos com tanto desprezo para os africanos?”, questiona Silva Lisboa. Mas, para ele, havia mais um elemento para além da busca por “mitigar o rigor da escravidão.” Tratava-se, mesmo, de superar mais uma característica da sociedade brasileira entendida como herança da colonização portuguesa, como marca do “velho tempo”. “Mal hajam os que introduziram o tráfico da escravatura para os irem arrancar de seu solo e fazerem da América uma Etiópia!”, complementa. Segue, então, uma narrativa sobre a fundação do tráfico africano para o Brasil. Afirma que foram os portugueses os primeiros autores desse mal enorme. “Consta de história que, logo que se descobriu uma das Canárias (...) alguns portugueses roubaram os naturais da terra, trazendo-os a Portugal cativos”, o que tanto teria indignado D. Henrique que este os teria mandado repor vestidos no seu país. D. cidadania e ideologia pró-escravista nas Cortes de Lisboa e na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (1821-1824)... op. cit., p. 79. Cf., ainda, BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política... op. cit., p. 168-169. 742 Idem, p. 206. 743 Novamente surge, portanto, a questão do “velho tempo” e do “novo tempo”. Henriques de Resende seria outro a posicionar-se nessa direção. Após afirmar ter lido a “história geral de Inglaterra” e visto o “prospecto histórico do governo do parlamento inglês por João Miller”, tendo achado nela nos “princípios da Inglaterra o sinal característico de cidadão, que podia aparecer nas assembleias, ou parlamentos, era o ser soldado, e combater em defesa da pátria”, lembra o deputado que “os escravos, desde que forravam, sentavam praça no corpo combatente, e ocupavam postos militares”. Ainda segundo Resende, o ocupar postos “não dá direitos de cidadãos; mas supõem-nos. Como pois queremos nós agora tirar aos libertos direitos de que eles sempre gozaram no tempo do despotismo mesmo? Pois então porque estão em um sistema de governo liberal, hão de os libertos ficar de pior condição do que estavam no tempo do governo despótico?” AAC, 1823, vol. 5, p. 208. 282 Henrique, não obstante, na narrativa de Lisboa, teria admitido o comércio da escravatura “a título de resgate do paganismo, para terem o benefício da cristandade; mas realmente para com os escravos cultivarem a Ilha da Madeira, onde se introduziu a cultura das canas de açúcar.”744 Escravidão, tráfico e sistema colonial surgem na fala de Lisboa como elementos integrados a uma mesma lógica e culpados pela situação que vislumbrava para o Brasil. Mas isso não seria tudo. A situação trágica produzida pelo tráfico não causava problemas apenas no Brasil. Segundo Lisboa, o infernal tráfico de sangue humano foi o que multiplicou as suas guerras [dos “etíopes”] para fazerem escravos: e esta foi a principal causa que impossibilitou a sua civilização e fez que nem onde primordialmente se fundou o Castelo de Ajudá, se pudesse formar uma só vila.745 Em outras palavras, não apenas Lisboa conectava o tráfico e a escravidão ao sistema colonial, culpando os portugueses pelo seu alvorecer, mas, também, imputava ao comércio negreiro a ausência de civilização aos “Etíopes”. A impossibilidade de fundação sequer de uma vila no coração do tráfico negreiro na costa do Benim mostrava os entraves produzidos pelo infame comércio sobre o continente, considerando-se a íntima relação, que já discutimos anteriormente, entre urbanidade, civilização e cidades. É aí que se inicia a discussão mais aprofundada com Maciel da Costa, representante maior do “outro lado”, crítico às ideias de Tavares, Alencar e, principalmente, Lisboa, e retomando o fio da construção que, desde França, Costa Barros e Almeida Albuquerque defendia outra concepção das relações entre escravidão, civilização e Império do Brasil.746 Maciel da Costa começa afirmando que, ao ouvir a emenda proposta por França na sessão anterior, havia se lisonjeado e esperado que se pusesse termo a uma “discussão desagradável e que Deus queira não tenha tristes conseqüências”. Tratava-se, 744 AAC, 1823, vol. 5, p. 206. Idem, ibidem. 746 Almeida Albuquerque, tendendo à concordância com França, questiona, em momento anterior da discussão, como se poderia defender que uma simples carta de alforria gerasse o direito à cidadania. E pergunta: “Se os europeus, nascidos em países civilizados, tendo costumes, boa educação, e virtudes, não podem sem obter carta de naturalização, entrar no gozo dos direitos de cidadão brasileiro (...), como o escravo africano destituído de todas as qualidade pode ser de melhor condição?” Novamente a ausência de civilização restringia o acesso à cidadania. Considerando-se que, segundo o mesmo deputado, os escravos que obtenham carta de alforria pertençam à “família brasileira”, a ausência de cidadania os introduzia na comunidade brasílica via uma subordinação que arrastaria sua condição não-histórica mesmo após o cativeiro. Idem, p.205 745 283 afinal, “do destino que se deve dar aos libertos: matéria espinhosa, em que têm vacilado nações alumiadas e humanas, que, como nós, os têm em seu seio”. Para tanto, era necessário, segundo o deputado, recorrer a certos princípios.747 E um princípio central para tratamento da questão dizia respeito ao modo de a nação lidar com os estrangeiros. Maciel da Costa afirma que a concessão de naturalização “é uma espécie de favor e este favor é sempre regulado por motivos de interesse nacional”, como aumento da população, por exemplo. E essas motivações para a naturalização são sempre subordinadas àquele princípio primário, que reaparece em sua fala: aquele “que absorve, para assim me explicar, todos os outros, o qual é a segurança pública, esta primeira lei dos estados a qual é a tudo superior.” 748 A segurança pública, presente aqui como em outros discursos de que já tratamos, deveria subordinar inclusive princípios filantrópicos, numa associação análoga à que já discutimos, em capítulos anteriores, a respeito das relações entre “metafísicas” e ideias gerais e a experiência que deveria sempre servir de guia para um proceder com cautela e que fortalecesse a manutenção social. Ideias belas no papel sempre precisariam submeter-se aos testes da experiências e às situações concretas de cada sociedade. Os olhos que miravam exemplos metafísicos deveriam sempre submeter-se aos pés que pisavam o chão escravista. A Inglaterra, continua o deputado, “que nos pode ser mestra em política (...) e a quem a liberdade tem custado mais caro que a nenhuma outra das que conheço, [a] Inglaterra tem sido mais acautelada neste ponto”, já que não concedia plenitude de direitos aos seus naturalizados. E se nem Inglaterra nem qualquer outra nação deveria lidar diferentemente com relação à concessão de naturalização, continua Maciel da Costa, causava espanto que o africano pudesse passar para o “grêmio da família brasileira, para nosso irmão” simplesmente obtendo a carta de alforria. 747 Importante destacar que Maciel da Costa fora autor de um panfleto pró-escravista alguns anos antes, em 1820, no qual defendia a abolição do tráfico negreiro num prazo a perder-se de vista (20 anos), obedecendo a uma “realpolitik escravista”, segundo Marquese, que não fazia qualquer previsão de término da escravidão. Muitos argumentos levantados em sua participação na Constituinte retomam o panfleto. Cf. MACIEL DA COSTA, João Severiano. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil, sobre os modos e condições com que esta abolição se deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode ocasionar. In: SALGADO. Graça (org.) Memórias sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988, p. 9-59. Para uma breve análise da memória, cf. MARQUESE, Rafael. Escravismo e Independência: a ideologia da escravidão no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos nas décadas de 1810 e 1820. In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: HUCITEC, 2005, p. 809-828, em especial páginas 821-825. A citação à realpolitik escravista” está à p. 824. Cf. também RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, cap. 2. 748 AAC, 1823, vol. 5, p. 207. 284 Continua Maciel da Costa indicando que deixaria à consideração da Assembleia para decidir se os africanos eram tais que sua admissão livre e franca ao “grêmio da nossa família” nada tenha que se temer; em suma, se podemos arrazoadamente esperar deles que sejam afeitos ao nosso país, onde viveram escravos, e aos nossos irmãos que sobre eles exercitaram o império dominical; se sabendo eles que nos são equiparados, apenas forros, não aspirarão a avançar mais adiante na escala dos direitos sociais; se a sua superioridade numérica e a consciência da sua força... Senhores, não avançarei daqui nem só um passo.749 O discurso de produção do medo produzia também a solidariedade senhorial. No momento em que se consolidava discursivamente a narrativa da ruptura como produção do grito de liberdade contra a opressão, fazendo o Brasil ingressar na história da civilização, tornando a monarquia constitucional a melhor maneira de garantir a liberdade sem os riscos da anarquia, nesse momento de construção do Brasil independente, o discurso de Maciel da Costa fortalece as relações entre “grêmio da família brasileira” e a irmandade que, exercitando o “império dominical” sobre os cativos, precisava, defensivamente, garantir sua sobrevivência restringindo a si o acesso às benesses do ingresso civilizacional permitido pela Independência. O discurso que construía o “ser brasileiro” como agente da liberdade fortalecia seu caráter exclusivista. Não ao estrangeiro simplesmente, de forma geral, mas, especialmente, ao africano. E isto ainda seria em benefício deles próprios, uma vez que, mesmo considerados estrangeiros no Império, ainda estariam “por certo muito melhor que na África, onde vivem sem leis, sem asilo seguro, com elevação pouco sensível acima dos irracionais, vítimas do capricho de seus déspotas a quem pagam com a vida as mais ligeiras faltas.”750 Em uma frase, sem civilização. A comparação com os Estados Unidos serve de contraponto à questão. Na aproximação que coloca lado a lado dois dos únicos centros escravistas ainda restantes com força no XIX, Maciel da Costa conclama aos deputados que “não queiramos ser mais filantrópicos que os americanos do norte com os africanos: eles procuram, como sabemos, acabar com a escravidão, mas não querem nada deles para os negócios da sociedade americana, antes desejam desembaraçar-se deles, e nisso trabalham.” Nessa repugnância com que encaram a questão dos africanos, os Estados Unidos chegam ao 749 750 Idem, ibidem. Idem, p. 208. 285 ponto “de nem admitirem os homens de cor livres à participação dos direitos políticos nem de empregos, coisa em que são sem dúvida desarrozados, e nisso lhes levamos vantagem.” Conclui afirmando que Servirá esta observação para desenganar alguns miseráveis embaidos por ignorância com a grande liberalidade do governo americano, assentando que só ali há liberdade, e que é a melhor organização política imaginável. Lembro-me que os estados onde se faz aquela ignominiosa distinção de cores, são La Delaware, Carolina, Kentucky etc.751 E encerra com a proposta de emenda que define como cidadãos brasileiros os “libertos nascidos no Brasil, e os que não tendo nascido no Brasil casarem com brasileira e exercitarem algum gênero de indústria.” Mais do que a escravidão em si, o grande risco era o africano. A barbárie vinda de fora ameaçava a civilização que se pretendia erigir – ainda que essa civilização fosse erguida sobre os ombros dos filhos dessa “barbárie”. Maciel da Costa voltaria à questão mais à frente, focando na questão da barbárie. Estabelecendo distinções entre africanos e outros estrangeiros, afirma: “Os estrangeiros das outras nações vêm para este país arrastados pela necessidade de fazer fortuna, os africanos vêm porque seus bárbaros compatriotas os vendem; e o Brasil não é mais pátria natural de uns que de outros” Ou seja, modifica-se o argumento de Silva Lisboa, que imputava aos portugueses a produção do infame comércio: agora a culpa recaía sobre os africanos, o que servia para minimizar o acesso destes à plena cidadania. Nós não somos hoje culpados dessa introdução do comércio de homens; recebemos os escravos que pagamos, tiramos deles o trabalho que dos homens livres também tiramos, e damos-lhes o sustento e a proteção compatível com o seu estado; está fechado o contrato. Que eles não são bárbaros, porque segundo relações históricas, há entre eles já sociedades regulares, como diz o meu ilustre amigo, apelo para o testemunho e experiência dos que os recebem aqui dos navios que os transportam.752 751 Idem, ibidem. Idem, p. 209. Para Marquese e Berbel, o “ilustre amigo” referenciado no discurso de Maciel da Costa é Silva Lisboa, dado o contraste entre sua fala e a do futuro Visconde de Cairu. Porém, é mais provável que a fala se refira a uma ausência dos anais, uma vez que não há qualquer menção no discurso de Lisboa, já analisado, a respeito de “sociedades regulares” na África – pelo contrário: como vimos, Lisboa imputa ao comércio de almas o travamento da civilização na África –, e, também, uma vez que Maciel da Costa inicia sua fala afirmando que “não é fácil empresa lutar em discussão com o meu ilustre amigo o Sr. Andrada Machado”. A fala de Machado, embora ausente do registro, pela resposta de Maciel da Costa, 752 286 Tudo no discurso de Maciel da Costa reforça a ausência de civilização nos africanos – apelando, inclusive, para o testemunho e experiência pessoais, que servem para confirmação da narrativa que também se pretende histórica, já que se refere a sociedades anteriores no interior do continente africano. Além disso, distintamente de Silva Lisboa, corta as relações do Brasil com o tráfico por considerar o Império apenas receptáculo, não produtor do infame comércio. Na fala de Lisboa, Portugal, aparecendo como introdutor do comércio de almas, havia produzido uma tragédia que ficara como herança para o Brasil – assim como outras heranças da colonização portuguesa. Como uma herança negativa, precisava ser extirpada, ainda que não repentinamente. Na interpretação de Maciel da Costa, porém, a imputação aos africanos da responsabilidade pelo tráfico negreiro rompia a herança da tragédia para o Brasil, minimizando a escravização e aproximando a questão dos africanos de uma relação de trabalho corriqueira – e qualquer dureza ou excesso dentro da relação escravista poderia encaixar-se no argumento de que a proteção e o sustento que os africanos recebiam estava dentro do “compatível com seu estado”. E na retórica que presidia a forma de articular olhos na Europa e pés na América, tratando-se, também, das relações entre ideias e práticas, metafísica e experiência, completa Maciel da Costa afirmando que segurança política e não filantropias deve ser a base de nossas decisões nesta matéria. A filantropia deitou já a perder florentíssimas colônias francesas. Logo que ali soou a declaração dos chamados direitos do homem, os espíritos aqueceram, e os africanos serviram de instrumento aos maiores horrores que pode conceber a imaginação. Prefiro e preferirei sempre o fanal da experiência a doces teorias filantrópicas.753 E mais uma vez apela à comparação com os Estados Unidos, que encontrava-se embaraçada com a questão do destino a se dar aos libertos. Ali, segundo o deputado, a maior parte dos estados onde há escravos, temendo os perigos a que o crescimento da população de libertos exporia a sociedade, resolveram fazer lei contra as alforrias, como tudo atesta Warren na estatística dos Estados Unidos tomo 5° parece contradizer a lógica da “tábula rasa” no que se refere aos africanos, afirmando a existência de sociedades anteriores regulares no continente. 753 Idem, p. 209. 287 páginas 21 e 22. Vejo isto, e não hei de temer por nós e pela nossa pátria?754 A precisão na citação pode indicar um cuidado de pesquisa para mostra de dados que pudessem embasar e fortalecer a argumentação. O deputado não brincava em serviço. Se, no passado, a comparação com outras repúblicas americanas servia para alertar quanto aos riscos da anarquia e da fragmentação territorial, agora os Estados Unidos apareciam também como futuro do Brasil, mas especificamente na questão dos libertos. Se antes o Brasil aparecia, no discurso do Reverbero, já analisado, como um exemplo aos EUA – uma vez que a monarquia constitucional era entendida como inevitável superioridade em relação à forma republicana, sendo apenas questão de tempo até os EUA perceberem, com o próprio crescimento, esse fato tão claro, agora os EUA é que apareciam de alerta para o bem proceder no Brasil, já que, perdidos quanto aos destinos a dar aos libertos, começavam a restringir as alforrias para evitar qualquer aumento das tensões sociais e riscos para a própria existência. O que em breve poderia acontecer com o próprio Império do Brasil. “Diminuis gradualmente o tráfico de comprar homens e entretanto tratar com humanidade os que são escravos, eis aqui, senhores, tudo quanto lhes devemos”, termina Maciel da Costa. “A admissão deles para a família brasileira deve ser pesada mais prudentemente.” Silva Lisboa discursa novamente, respondendo a Maciel da Costa. Após lembrar o quanto respeita seu interlocutor e referenciar a tripla influência estrangeira presente na fala de Maciel da Costa, 755continua afirmando que, para seu adversário na discussão, os africanos deviam ser considerados como estrangeiros, para se lhes não dar o foro de cidadão, ainda que libertos. Ele os considera como bárbaros, que foram sujeitos no seu país a guerras de extermínio e ao hórrido despotismo dos seus governos, figurando pavorosos futuros, a não viverem sempre no Brasil no cativeiro, ou, ao menos, sem o grau de cidadão, posto que forros. (...) [Contudo] o susto não é o meu elemento de vida; o ser justo a todos os homens e principalmente àqueles que mais têm sofrido pelas injustiças dos mais fortes, é um dever ainda maior dos que desejam a melhora do gênero humano. Que comparação podem 754 Idem, p. 209. Diz que ele fundou-se na “polícia do sábio governo inglês, que é mui restrito em naturalização de estrangeiros”, e “na experiência da nação francesa, sobre os males que sofreu dos entusiastas de filantropia das suas colônias”, e, também, “na prática de alguns estados dos americanos do norte, que até restringem indiretamente o arbítrio dos senhores em darem alforrias, obrigando-os a prover à subsistência dos seus libertos, para não serem a cargo do público e até formando projetos de remeter para a África colônias de negros forros, para se livrarem dos perigos que resultariam de sua presença.” Idem, p. 210. 755 288 ter africanos acarretados com tantas forças e más artes de seu país e impossibilitados de tornarem a ele, com os estrangeiros livres das mais nações, principalmente da Europa, que vêm ao Brasil quase todos com ânimo e tendo sempre os meios fáceis de voltarem para as suas pátrias, que sempre consideram como superiores em civilização?756 Tratava-se de um dos maiores articuladores dos “olhos na Europa”, como vimos no capítulo passado, defendendo que, não obstante os “pés na América” exigissem ações particulares para contenção dos riscos e salvação da ordem, era necessário também promover meios para o aumento da civilização dos africanos, não os deixando à mercê do destino de eterna escravidão ou inexistência civil, quando forros. A inserção subordinada dos africanos à civilização brasílica era um caminho necessário para que a escravidão pudesse manter-se sem grandes riscos de abalo, ainda que, discursivamente, Silva Lisboa acenasse com o seu fim num futuro indefinido. O “temor justo”, continua, que “deve ser o de perpetuarmos a irritação dos africanos e de seus oriundos, manifestando desprezo e ódio, com sistema fixo de nunca melhorar-se a sua condição”, devendo-se, ao contrário, com a “proposta liberalidade constitucional”, devendo-se “inspirar-lhes gratidão e emulação, para serem obedientes e industriosos, tendo futuros prospectos de adiantamentos próprios e de seus filhos.” 757 Nesse sentido, a Constituinte abre a possibilidade de um encaminhamento para a questão da escravidão que a fala de Maciel da Costa embarrera. Diz que o exemplo inglês trazido por Maciel da Costa não procede, pois as restrições à naturalização referiam-se mais aos franceses, povo com quem os ingleses haviam criado muitas rixas. E questiona por que, se o caso era o de admirar o modelo inglês, não ter por modelo o governo inglês na questão da importação de africanos e proteção dos escravos contra o abuso dos senhores.758 Silva Lisboa também voltaria a questionar as causas da Revolução Haitiana, dessa vez voltando-se para o exemplo francês trazido por Maciel da Costa. Sobre isso, afirmaria: Permita-se-me tornar a repetir, que os males que sofreram as colônias francesas procederam dos extremos opostos, tanto dos anarquistas e arquitetos de ruínas, que pretenderam dar repentina e geral liberdade aos escravos, como da desumanidade de seus senhores, que não 756 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 758 Como no caso que menciona do “célebre Wilberforce”, que perseverou na “proposta da abolição do tráfico de sangue humano”. Idem, p. 210. 757 289 quiseram admitir nenhuma modificação do seu terrível Código Negro. Então o conflito de partidos, tão excessivos e desesperados, produziu os horríveis males que todos sabem. O mesmo bom rei Luiz XVI, muito havia antes concorrido indiretamente, ainda que sem intenção, para o transtorno que sobreveio; porque, ouvindo maus conselhos, especiosos na aparência, facilitou e animou o tráfico da escravatura dos africanos não só não impondo direitos à importação, mas até dando gratificações aos importadores; do que resultou exorbitante acumulação de cafraria e o incêndio de paixões, vinganças e resistências, que terminaram no estado que ora vemos a ilha de S. Domingos. 759 Não era a política emancipacionista a causa dos males que rompiam abruptamente as sociedades escravistas, mas a má política emancipacionista – e, também, uma não-política emancipacionista. Em sua fala, são igualmente terríveis os “arquitetos de ruínas” que romperam com a escravidão de modo imediato, sem o necessário preparo e controle sobre o processo, e os “desumanos senhores” que, incapazes de admitir qualquer modificação nas relações sociais escravistas, acabaram alimentando ainda mais o incêndio de paixões, vinganças e resistências. Mesmo o “bom rei” Luiz XVI, ainda que sem intenção, havia contribuído para a exacerbação dos ânimos, ao estimular, ao invés de restringir, o tráfico da escravatura. Tal repetição da História não desejava Silva Lisboa para o Brasil. Dentro de uma lógica do conservadorismo como elemento do progresso, e não simplesmente dos entraves, Silva Lisboa critica uma perspectiva que, incapaz de olhar a África de outro modo se não como espaço a ser repelido por quem desejasse ingressar na plena civilização, Silva Lisboa buscava contemporizar e trazer o continente africano para a narrativa da História da Civilização. Pedia, assim, aos colegas: Deixemos, senhores, de olhar para África com maus olhos. Lembremo-nos que Moisés foi africano, criado, como se diz nos atos dos apóstolos, na sabedoria do Egito e foi casado com uma mulher etiópica. A igreja africana foi famosa nos primeiros séculos do cristianismo: ela produziu os Ciprianos e Agostinhos. Todas as nações que ora são mais civilizadas, foram antigamente bárbaras.760 Os exemplos religiosos conectam-se a um dos elementos de manutenção da civilização, como já vimos nos capítulos anteriores, aproximando África dos destinos Europeus. Além disso, como fica exposto no trecho acima, a condição africana estava longe de ser eterna. Todas as nações atualmente bárbaras podem, no futuro, se tornarem 759 760 Idem, p. 210. Idem, ibidem. 290 civilizadas, poderia complementar Silva Lisboa, articulando sua lógica à lógica do Imperialismo que, em pouco tempo, iria conectar a ideologia do progresso à luta pela extinção da escravidão na África, com a posterior transição para a mão de obra livre sob tutela europeia – especialmente inglesa. 761 E o exemplo dessa transição, no trecho seguinte, volta-se para a Europa civilizada: Os russos, que há pouco mais de um século apenas eram conhecidos na Europa, e que Bonaparte chamava bárbaros do Tánais, já foram duas vezes dar a lei em Paris. E bem que ainda na Rússia haja muitos escravos domésticos e províncias de servos da gleba, que o seu imperador Alexandre, tendo, ou afetando filantropia, tem mostrado desejo de emancipar (reconhecendo todavia não o poder fazer de repente) assusta a Europa pela sua imensidade territorial e progresso de civilização. 762 A Rússia tinha escravos; a Rússia buscava lidar com seus escravos a partir de uma lógica de emancipação gradual – e o reconhecimento da impossibilidade de se o fazer de imediato é fundamental –; a Rússia era conhecida na Europa há menos de um século e há bem pouco considerada bárbara por Napoleão; a Rússia era civilizada. Essa conexão, voltada para a África, conjugava elementos até então díspares, como escravidão, civilização e história, para a promoção de uma nação grandiosa. Desde, claro, que se adotasse uma política gradual de controle sobre esse processo, com a emancipação dos cativos bem conduzida pela monarquia constitucional. Seria um absurdo considerar a África incapaz de civilização. E, para comprovar seu ponto, Silva Lisboa traz novamente o exemplo dos ingleses: Tem-se dito, que os africanos são incapazes de civilização e de regular indústria, como tendo sempre vivido em imemorial barbaridade e cujas vidas sempre estiveram à mercê de seus déspotas na África: porém os ingleses têm calculado que neste país há, pelo menos, cem milhões de habitantes, que de certo não vivem do maná do céu, mas do fruto da terra; o que supõe, além de sua fertilidade, não pequena indústria e alguma justiça regular de seus governos. O tráfico de sangue humano que os europeus tanto têm promovido, tem sido a causa de se perpetuar a fereza e tirania, que ali se vê.763 761 Cf. COOPER, Frederick. Condições análogas à escravidão. In: COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca J. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 201-279, p. 211-217 762 AAC, 1823, vol. 5, p. 210-211. 763 Idem, p. 211. 291 Novamente os europeus aparecem como os grandes promotores da ausência de desenvolvimento da civilização na África. O ponto é importante: considerando-se, repito, que se tratava de um dos principais nomes articuladores dos “olhos na Europa”, como vimos, a imputação de culpa aos europeus pelo desastre na África conectava os rumos da civilização à produção da barbárie, ainda que não fosse a intenção se Silva Lisboa. E se valiam testemunhos, na fala de Maciel da Costa, a respeito da incivilidade dos africanos, igualmente valiam testemunhos contrários. No caso do próprio Lisboa, que dá um exemplo pessoal, testemunho, da “vista da indústria de um africano forro de um boticário na Bahia”, que trabalhava com a mulher e alguns filhos menores na produção da terra e criação de galinhas. Não era a cor ou a origem um problema. Os próprios franceses, quando invadiram o Egito, tornaram-se “meio negros, quando dele saíram”. Um escritor ingês, chamado Jarrold, sustentava “que a raça primitiva do homem foi preta.” O mestre de hebraico de Silva Lisboa, declara, “era de opinião, que a raça primitiva foi a de cor de barro”. O “doutor Botado”, que “em Lisboa clérigo e letrado negro”, para Silva Lisboa “valia por cem brancos.” E, por fim, não se deveria esquecer os ”corpos militares de libertos, em que ao par estavam crioulos e africanos, [e que] têm muito contribuído para o estabelecimento do Império do Brasil”. Finaliza, assim, mostrando que “boas instituições, com a reta educação, são as que formam os homens para terem a dignidade da sua espécie, sejam quaisquer que sejam as suas cores.” 764 Não havia desculpa possível para evitar-se a aproximação das ideias de África, civilização e escravidão, desde que num processo controlado de emancipação. E é assim que Lisboa trata o caso dos Estados Unidos, também trazido à discussão por Maciel da Costa para fortalecer seu argumento. Maciel da Costa havia levantado o caso de políticas dos estados escravistas para conter as práticas de manumissão, considerando-as prejudicial à ordem social. Silva Lisboa, porém, questiona: E por que se alega a polícia de alguns estados da América do Norte, em que existe o sistema do cativeiro e onde aliás não transborda a sabedoria, antes se nota a crueldade com os escravos, como na Virgínia, Carolina etc., sendo por isso comparativamente menos civilizados e ricos a respeito dos outros estados livres; e não se louvou a sabedoria do Congresso, que já proibiu 764 Todas as referências são idem, p. 211. 292 absolutamente o tráfico da escravatura africana e até já se marcou a época, em que deve cessar o sistema de cativeiro?765 Em outras palavras, se a fala de Maciel da Costa aproximava os destinos do Império dos estados escravistas, como a Virgínia, a fala de Silva Lisboa afasta os destinos e aproxima o Brasil dos estados livres, mais civilizados. Inverte-se, assim, uma associação que teria continuidade no Império décadas à frente, no momento de maior organização da “política da escravidão”. 766 A fala de Maciel da Costa estava mais antenada com os processos que produziam o mundo da Segunda Escravidão, enquanto a fala de Silva Lisboa oferecia uma alternativa que, não obstante acabasse vitoriosa nos embates da Constituinte, acabaria derrotada nas décadas seguintes do Império do Brasil. Assim, embora, ao final da discussão, passasse a emenda de Silva Lisboa, ficando as demais prejudicadas, a posição de Maciel da Costa “foi a vitoriosa nos bastidores.”767 Após a Constituinte oferecer um esticamento máximo à questão das relações entre emancipacionismo, história, escravidão e emancipação, o desenho que se seguiria tomaria outros rumos. Especialmente no momento em que a “salvação da ordem” se veria novamente ameaçada, segundo alguns, pela política britânica contra o comércio negreiro. 765 Idem, p. 210 Cabe comparar a fala Silva Lisboa e a de Maciel da Costa à de Varnhagen, que, mais de três décadas depois, ao tratar da escravidão e dos modos de tratamento dos escravos no Brasil e nos EUA, escreveu que “neste ponto, como em muitos outros, a nossa monarquia [é] mais tolerante e livre que essa arrogante república, que tanto blasona de suas instituições libérrimas, e cujo aristocrático cidadão não admite a seu lado, nas reuniões políticas, nem nas civis e sociais, o pardo mais claro, por maiores que sejam seus talentos e virtudes”. Cf. VARNHAGEN. Francisco Adolpho. Historia Geral do Brazil..., 1854, p. 183. Essa perspectiva de defesa do modo como o Brasil lidava com a escravidão complementava a defesa da instituição como atributo da civilização, como no famoso discurso de Bernardo Pereira de Vasconcelos no Senado, ao qual retornaremos na conclusão do capítulo, no qual, em resposta a Holanda Cavalcanti, pede que “veja o nobre senador os grandes homens da América do Norte, os mais eminentes onde têm nascido; vejo os outros todos que devem sua existência, o seu aperfeiçoamento aos países que têm procurado em parte africanizar-se”. Cf. AS, 1843, vol. IV, p. 346. Sobre a questão, cf, ainda, PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2009, em especial capítulos II e III; ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 2010; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 5ª edição. São Paulo: HUCITEC, 2004, p. 139 767 MARQUESE, Rafael & BERBEL, Márcia Regina. A ausência da raça... op. cit., p. 81. Segundo os autores, após a dissolução da Constituinte, Maciel da Costa fez parte da comissão que elaborou o texto final de 1824, que integrava os libertos crioulos, mas não os africanos, no mundo da cidadania, ao mesmo tempo em que se riscou o artigo 254 do projeto de 1823, que tratava da questão da emancipação. Para além disso, ideologicamente falando, as proposições de Maciel da Costa teriam vida muito mais longa no Império do que as de Silva Lisboa. 766 293 6.3) A peculiaridade da civilização brasileira Entre 1826 e 1830, a temática da escravidão e do tráfico negreiro apareceu pontualmente em algumas discussões na Câmara e no Senado. Nenhuma, porém, é mais simbólica e poderosa em seus argumentos e efeitos do que a que acometeu a Câmara a partir da sessão de 16 de junho de 1827. Nessa sessão, fez-se a leitura de parecer da comissão de diplomacia e eclesiástica sobre a Convenção para o fim do comércio de escravos, acordada entre os governos brasileiro e britânico. A Convenção estava inserida na lógica de pressões britânicas pela abolição do tráfico que acompanharam a trajetória de formação do Brasil desde os tempos joaninos, culminando nos acordos que envolveram o processo de reconhecimento da Independência por Portugal, em 1825, intermediado pela Inglaterra. Após o reconhecimento, que atrelava tal ao compromisso brasileiro pelo fim do tráfico, foi assinado o tratado anglo-brasileiro de novembro de 1826, que previa o fim do tráfico para 3 anos após sua ratificação, que se deu em 13 de março de 1827 pela Coroa Britânica.768 A partir daí, o parecer da câmara faz uma leitura da mesma, afirmando que, embora a convenção fosse privar braços para a agricultura, as luzes do século não permitiam a conservação de “semelhante comércio”, ao mesmo tempo em que “da nossa parte havia a promessa de o abolir quando formávamos uma só nação com Portugal”. Assim, o parecer da comissão dá uma resposta protocolar, apenas fazendo a ressalva de considerar a pena de pirataria prevista dura demais, por não ser de acordo com as leis do Império.769 Foi o deputado Cunha Mattos quem faz a famosa declaração de voto em separado, que tanta discussão produziu na historiografia sobre o período. 770 Nossa intenção, aqui, é focar nesse debate exemplar como forma de analisar as relações que vimos discutindo entre história, civilização e escravidão, especialmente considerando a relevância de Cunha Mattos nos três eixos, já que, além de deputado e autor do parecer 768 Para a trajetória das pressões inglesas sobre o Brasil desde os tempos joaninos e as circunstâncias de assinatura do tratado anglo britânico, cf. BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael & PARRON, Tâmis. Escravidão e Política: Brasil e Cuba, 1790-1850.São Paulo: Editora HUCITEC, 2010, cap. 2 e 3; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 43-80; RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, p. 97-107; BETHEL, Leslie. A abolição do comércio brasileiro de escravos: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do comércio de escravos (1807-1869). Brasília: Senado Federal, 2002, cap. I, II e III; COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. 4ª edição. São Paulo: Editora da Unesp, 1998, p. 74-76. 769 ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80. 770 Cf. nota acima. O trabalho de PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., em especial, será foco de nosso diálogo a partir daqui. 294 contra a convenção sobre o fim do tráfico, foi, ainda, autor de obras de História e cofundador do IHGB, junto a Januário da Cunha Barbosa. Talvez o mais conhecido texto de Cunha Mattos seja a “Dissertação acerca do sistema de escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil”771, publicado na revista do IHGB em 1863, mas produzido ainda em 1838, no seio das discussões acerca da melhor maneira de se interpretar a História do Brasil. Segundo Valdei Araújo, um dos principais objetivos de sua produção histórica era “provar a antiguidade do Novo Mundo”, resultando disso uma interpretação do tempo lentíssima, voltada para transformações vagarosas que atravessariam os séculos e para mudanças que não poderiam ser feitas no curto ou médio prazo, como a questão da civilização de indígenas e negros. 772 Embora estes não sejam objeto da Dissertação, a forma como trata os indígenas os considera parte da história brasileira, uma vez que estão dentro das “três épocas da nossa história”, segundo o autor: na 1ª trate-se dos aborígenes ou autóctones: em a 2ª compreendam-se as eras do descobrimento pelos portugueses, e da administração colonial; e na 3ª abranjam-se todos os acontecimentos nacionais desde o dia em que o povo brasileiro se constituiu soberano e independente, e abraçou um sistema de governo imperial, hereditário, constitucional e representativo. 773 As três épocas, no texto de 1838-39, promovem uma concepção distinta daquela que predominava nas narrativas que vimos discutindo. Em primeiro lugar, considera-se como uma “época da nossa história” aquela dos “aborígenes ou autóctones” – isto é, os indígenas. Já aí se encontra uma discussão a respeito do papel indígena que não é nosso foco nesta tese, mas que se aproximará da leitura romântica e daquela própria a alguns membros do IHGB sobre se estes constituiriam ou não os antecessores dos brasileiros.774 Em segundo lugar, a síntese da colonização portuguesa sobre a América, 771 Cf. a versão reproduzida em GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010, p. 116-154. Sobre a Dissertação, em particular, e sobre a trajetória de Cunha Mattos, em geral, cf., ainda, QUEIROZ, Bianca Martins de. Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839): “a pena e a espada a serviço da pátria”. Dissertação de mestrado. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2009, em especial p. 99-105. 772 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008, p. 163-164. 773 Dissertação..., p. 126. 774 Importante destacar que visões que colocavam os indígenas como os antecessores naturais do Brasil, ou “verdadeiros donos” da terra estiveram presentes em algumas discussões políticas da Câmara e do Senado. Num debate sobre a questão do monopólio de pau-brasil, por exemplo, em 1827, o deputado Lino Coutinho, respondendo a uma declaração de Vergueiro de que o comércio de pau-brasil fora instituído desde sempre pelos portugueses, o que até se podia ver no nome do país – Brasil – sendo, portanto, propriedade da nação, afirma que “todos sabem ou devem saber que este país existiu muito 295 antes, como vimos, sintetizada na fórmula dos “três séculos de opressão”, que encontravam em 1808 seu rompimento inicial, agora se estendiam até a terceira época, que abrangia os acontecimentos nacionais desde que o povo brasileiro “abraçou o sistema de governo imperial, hereditário, constitucional e representativo.” Embora as datas pudessem variar, todas giram em torno do período entre 1822 e 1823, jogando os anos joaninos para a administração portuguesa colonial. Cunha Mattos defende a impossibilidade, àquela altura das discussões, de se escrever uma “história geral do império do Brasil que seja digna dele”, em parte devido à necessidade de, antes, levar-se ao “cadinho da censura mais severa o imenso fardel de escritos inexatos, insultos, indigestos, absurdos e fabulosos anteriores ao ano de 1822”, em que apenas se imprimia em Portugal. “Como será possível escrever a história filosófica do Brasil tomando por farol os livros estrangeiros impressos antes da declaração de independência do Império?”, questiona.775 Exceção feita a Southey, esses escritos são considerados “invectivas, insultos, calúnias, impropérios, falsidades em desabono do povo do Brasil!”776 Mas mesmo o inglês não escapa plenamente, já que o tempo todo nos qualifica de “idólatras, fanáticos, supersticiosos e de perpetradores de toda espécie de maldade, por acreditarmos que a confissão e absolvição purifica-nos perante Deus e os homens!” E complementa: “Quantas reflexões poderemos nós fazer a respeito da crença e da moral desses estrangeiros que não tem a confissão nem absolvição supersticiosa dos brasileiros, e apesar disso cometem crimes de natureza tão atroz como os que se praticam em todos os lugares do universo!” 777 De cara, uma abordagem que vê a concepção estrangeira sobre o Brasil com imensa desconfiança, oferecendo no lugar a necessidade de se produzir internamente um contraponto que seja realmente digno do Brasil, inclusive pela revisão crítica de todos os escritos produzidos sobre o Brasil, desde a Carta de Caminha. Uma desconfiança das intenções morais estrangeiras. Uma defesa, em primeiro lugar, da dignidade da nação brasileira. Temas tempo conhecido debaixo do nome da terra da Santa Cruz, e seu primitivo nome foi este, e não Brasil; logo houve um tempo em que este pau Brasil não tinha apreço, e por isso os portugueses que se apossaram do terreno, que fizeram guerra aos donos verdadeiros deste país, isto é aos índios, tiveram todos terras concedidas sem a cláusula de que o pau-brasil era propriedade da nação e só ele se tornou assim muito ao depois por um ato de arbitrariedade.” Cf. ACD, 1827, sessão em 9 de julho, p. 90-91. Da mesma maneira, no ano anterior, em algumas discussões deputados fizeram uma leitura crítica da colonização europeia, em sua relação com os indígenas. Cf. discursos de Seixas, em ACD, 1826, sessão em 27 de maio, p. 153; de Bráulio e de Teixeira de Gouvea em ACD, 1826, sessão em 15 de julho, p. 189 e 191; de Baptista Pereira, em ACD, 1826, sessão em 18 de julho, p. 226-227. 775 Dissertação..., p. 120. 776 Idem, p. 121. 777 Idem, p. 122. 296 que influenciam sua produção histórica no final dos anos 30; temas que aparecem em seu posicionamento sobre a questão do tráfico e da Convenção em 1827. 778 Voltando à sessão de 16 de junho de 1827, na leitura de sua declaração de voto em separado, Cunha Mattos deixa clara sua posição, cujos argumentos podemos dividir em 3 grupos. 779 O primeiro diz respeito à integridade da organização política do Império. O segundo se refere à integridade da economia. O terceiro se liga à sua integridade social. No primeiro grupo, a preocupação de Cunha Mattos dizia respeito aos limites de ação do executivo e ao papel do legislativo na condução política do país. Ao explicar que a convenção atacava “a lei fundamental do Império”, se referia à atribuição, pelo governo, a si próprio, do direito de legislar, “direito que só pode ser exercido pela assembléia geral com a sanção do imperador” 780 . Continuariam intensas as disputas entre legislativo e executivo, vindo a questão do tráfico unir-se a outras também delicadas, como a Guerra da Cisplatina e a questão sucessória em Portugal, no rol de eventos que contribuíram para o desgaste da imagem do primeiro Imperador e que o levaram à abdicação. Além disso, considerava Cunha Mattos a convenção “extemporânea”, por ser ratificada num momento em que a Câmara dos Deputados preparava-se para encaminhar um projeto “para diminuir gradualmente a importação de escravos para o Brasil.” Novamente notamos a crítica ao “atropelo” que fazia o executivo da ação do legislativo, principalmente por ser o tráfico objeto de tão especial atenção. Novamente, considerando-se o tráfico de escravos um vetor fundamental para a manutenção social do Império, percebe-se que, no discurso, seu destino deveria ser julgado e conduzido pela verdadeira referência nacional: a Câmara. No segundo grupo, ligado à integridade econômica, nenhuma surpresa havia quanto à argumentação. Sem o tráfico, segundo Cunha Mattos, estaria em maus lençóis Não se pretende, obviamente, incorrer aqui na “ilusão biográfica”, segundo crítica de Bourdieu a estudos que pretendem considerar todos os elementos da vida de alguém como etapas que levarão, necessariamente, a um ponto de chegada já definido. Pretende-se, aqui, tão somente verificar como as reflexões mais elaboradas de Cunha Mattos sobre o conceito de história e a História do Brasil em 1838-39 se podem coadunar com a narrativa que ele produz no momento de crítica à Convenção sobre o tráfico negreiro, em 1827. Cf. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes. & AMADO, Janaína (orgs.) Usos e abusos da história oral. 8ª edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p.183-191. Tal conexão entre o Cunha Mattos de 1838-39 e o de 1827, contudo, demandaria um trabalho específico – que, embora com uma abordagem distinta, foi exercitado em QUEIROZ, Bianca Martins de. Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839)... op. cit. 779 Retomo, nas próximas três páginas, o panorama que discuti em ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação de mestrado. Niterói, RJ: UFF, 2010, p. 88-92. 780 ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80. 778 297 o comércio nacional, já bastante reduzido “em razão da abertura dos portos do império a todas as nações do universo, e em conseqüência do tratado de 1810 feito com a Inglaterra”781. A Inglaterra aparece duplamente como culpada pelo estado das finanças: pressionando o livre cambismo e aniquilando o mais importante comércio nacional. Sem o tráfico, estaria em ruínas a navegação, pois a mais “substancial e considerável” parte desta era a que “direta ou indiretamente se aplica ao resgate ou comércio de escravos”; além disso, sem o tráfico seria prejudicado “o grande consumo [que têm na África] as nossas aguardentes, e tabacos (únicos gêneros em que [os ingleses] não podem competir conosco.”782 Sem o tráfico, diminuiriam as rendas do Estado, visto que sem os “20$000 réis de direitos de entrada de cada escravo”, e outras quantias, iria extinguir-se “esse grande manancial de sustentação dos empregados públicos”, e ficariam “muito desfalcados os meios de fazer frente às indispensáveis despesas, e infalível desempenho dos cofres públicos”783. Sem o tráfico, a tarefa de construção de um “aparato burocrático” para administração pública seria esmagada. Por fim, sem o tráfico ficaria em ruínas a agricultura, que sofreria por serem necessários amplos contingentes de trabalhadores que a sustentassem – trabalhadores estes que só poderiam ser “os pretos e pardos”, visto que “uma constante experiência” indica serem eles os únicos capazes de “viver impunemente” em certos “imensos lugares” 784 . Tal “experiência”, portanto, tornava o país dependente do comércio negreiro, visto que “a mortalidade dos escravos [era] igual, ou mais numerosa, do que o nascimento dos mesmos”785. Esse último ponto faz um paralelo com o terceiro grupo, ligado à integridade social do Império. Nota-se já aqui uma noção de continuidade na argumentação de Cunha Mattos: os escravos africanos (“pretos”) deixariam como descendentes os únicos trabalhadores que, além dos próprios africanos, poderiam cultivar essas terras (os “pardos”) e sustentar a agricultura do Império do Brasil. 786 Nesse sentido, Cunha Mattos expõe sua visão sobre a relação tráfico-escravidão-sociedade imperial. Diz ele: 781 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 783 Idem, ibidem. 784 Idem, ibidem. 785 Idem, ibidem. 786 Cabendo ressaltar, seguindo Hebe Mattos, o quanto a categoria “pardo” produziria lingüística e socialmente uma continuidade da escravidão. Cf. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Jorge Zahar Editor [coleção Descobrindo o Brasil]. p. 17. 782 298 É prematura [a convenção] por não termos por ora no império do Brasil uma massa de população tão forte que nos induza a rejeitar um imenso recrutamento de gente preta, que pelo decurso do tempo e pela mistura de outras castas, chegará ao estado de nos dar cidadãos ativos e intrépidos defensores da nossa pátria. 787 Ora, temos aqui uma argumentação que difere substancialmente não apenas da perspectiva clássica de Bonifácio a respeito, mas também se afasta da concepção vitoriosa nos embates parlamentares de 1823, presente em Silva Lisboa. Se, para estes, a escravidão e o tráfico constituíam elementos desagregadores, símbolos de atraso e ignorância dos quais deveria o Brasil em formação se livrar, Cunha Mattos, por outro lado, associa diretamente o tráfico – e, por extensão, a escravidão – à vinda do negro que, no decurso dos anos, gerará “cidadãos ativos e intrépidos defensores da pátria.” Cunha Mattos defendia ser “prematuro” rejeitar o contingente de “gente preta” gerado pelo tráfico: não se trata de atrair o negro como colono, mas como escravo: o risco do fim desse “recrutamento” existe porque ele é forçado. Tire-lhe o caráter compulsório e ele não existirá. Além disso, temos que a “mistura de outras castas” é, junto ao “decurso do tempo”, o eixo que transforma escravos em “cidadãos ativos e intrépidos defensores da nossa pátria.” Nota-se o eco das argumentações em disputa na Constituinte de 1823, mas com outro significado: se lá a busca, em Silva Lisboa, pelo ingresso do escravizado liberto na cidadania era uma forma de mitigar a dureza da escravidão, minimizando os riscos de rebelião escrava que pudessem remeter ao Haiti – sendo, portanto, uma concepção defensiva, voltada para o esticamento ao máximo das relações escravistas, porém com certa moderação conservadora que pudesse esvaziar focos de revolução –, em Cunha Mattos o argumento tem um caráter mais profundo, mais propositivo e mais positivo: o estímulo à entrada dos africanos escravizados encorpava a população brasileira, fortalecia suas bases, sua força de trabalho, desenvolvia a nação. Em Silva Lisboa, era um caminho, ao menos retoricamente, para ir, aos poucos, recuando no escravismo e minimizando a necessidade da escravização; em Cunha Mattos, tratava-se de um elemento componente da formação brasileira, que acabaria servindo de base para os argumentos pró-escravistas a partir dos anos 1830. 788 Em outras palavras, Cunha Mattos, dando um aspecto positivo à escravidão e ao tráfico, não circunscreve sua defesa apenas como fundamental à manutenção da estrutura de produção herdada da época colonial, mas vai além e confere à escravidão papel verdadeiramente formador da 787 ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80. Cf. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, cap. 2 e 3. 788 299 sociedade brasileira. Nos marcos de formação da Segunda Escravidão, seu posicionamento constituiria uma espécie de transição entre a abertura a propostas emancipadoras – ainda que graduais – em 1823 e a defesa aberta e profunda do tráfico e da escravidão a partir dos anos 1830. Cunha Mattos apelaria, ainda, a exemplos estrangeiros na construção dos seus argumentos. Afirma que os exemplos de quem declarou pirataria o comércio de escravos não podem servir ao Império do Brasil, pois “cada um governa sua casa como lhe parece.” As colônias inglesas da América, por exemplo, “regurgitam de população, e a Grã Bretanha não duvida (...) sacrificar os seus estabelecimentos ocidentais, às suas vastíssimas aquisições do Oriente.” 789 Por outro lado, os Estados Unidos, “que tem desfrutado um crescimento de população superior a tudo, quanto há na história antiga e moderna, acha-se em circunstâncias mui diversas do Brasil.” Afirma que se a imigração para este guardasse proporções com a que vai para aquele, “se o Brasil já tivesse chegado ao grau de indústria e civilização em que se achavam os americanos quando publicaram o seu ato de pirataria”, aí, sim, “também nós deveríamos imitá-los.”790 A situação pedia mais do que a retórica que invertia as perspectivas, presente desde o Reverbero, e que afirmava com convicção ter o Brasil muito a ensinar aos Estados Unidos, já que a monarquia constitucional constituiria melhor forma possível de governo para o acúmulo de progresso e desenvolvimento. A realidade das tensões produzidas pelo risco de diminuição da escravidão obrigava a olhar o exemplo norte americano da mesma maneira como se olhava a Inglaterra: como etapa superior em civilização que permitia certas políticas ainda vedadas a países na situação do Brasil. O parecer, bem como o voto em separado de Cunha Mattos, entram em discussão na sessão de 2 de julho. Cunha Mattos começa discursando novamente, para sustentar seu voto. Diz que, em primeiro lugar, de modo algum iria se propor a defender a justiça e eterna conveniência do comércio de escravos para o Brasil: eu não cairia no indesculpável absurdo de sustentar no dia de hoje e no meio dos sábios da primeira ordem da nação brasileira, uma doutrina que repugna às luzes do século, e que se acha em contradição com os princípios de filantropia geralmente abraçados: o que me proponho é mostrar que ainda não chegou o momento de abandonarmos a importação dos escravos, pois que não obstante ser um mal, é um mal menor do que não os recebermos (...).791 789 ACD, 1827, sessão em 16 de junho, p. 80. Idem, p. 80-81. 791 ACD, 1827, sessão em 02 de julho, p. 12. 790 300 Dessa forma, novamente, a disputa entre “experiência” e “metafísica” – ou, para ficar nos termos do debate em 1823, a “salvação da ordem” e a “filantropia” – aparecia como essência da discussão política. Era preciso, portanto, voltar às questões práticas e concretas da discussão. Seu argumento prático passa pela defesa de que as obrigações contraídas por D. João VI não valem. Afinal, “a nação de escrava que era, passou a tomar o lugar que lhe competia, passou a ser livre”. Os brasileiros, junto ao príncipe regente, “trouxeram consigo uma revolução” em resposta aos desmandos de Lisboa, “e o mesmo Brasil rompeu todos os laços que o uniam a Portugal.” Com isso, todos os pactos e ajustes a respeito da antiga monarquia celebrados com nações estrangeiras cessavam, numa argumentação que contrariava as discussões anteriores, em 1823, a respeito da aceitação ou não de leis anteriores à Independência do Brasil. Para Cunha Mattos, nessa passagem da “escravidão à liberdade”, os brasileiros teriam imitado os godos [que] em circunstâncias iguais puseram na execução a respeito do príncipe Pelagio – os portugueses a respeito do Sr. Mestre de Aviz, e do duque de Bragança – os suecos a respeito de Gustavo Wasa e Carlos XIV – os ingleses a respeito de Carlos II e do rei Guilherme – e os franceses a respeito de Luiz XVIII. Todos esses príncipes tinham direito aos respectivos tronos em que foram colocados; e tanto os europeus como os brasileiros mostraram o reconhecimento que deviam àqueles que souberam promover a sua independência e propugnar pela sua glória.792 Os exemplos estrangeiros de mudanças que iniciavam novos períodos históricos jogavam o Brasil no rol de países que haviam passado por transformações significativas; disso já tratamos anteriormente. A questão central agora era a respeito de uma convenção que remetia a um tratado que se referia ao futuro não mais de Portugal, mas da nova nação. E, aqui, um novo exemplo histórico poderia ser vislumbrado: considerando-se que a convenção fora arrancada, pela Inglaterra, do Brasil à força, então ela estaria, pelas regras do direito, nula. E haveria o exemplo do próprio Dom João VI, que “pelo manifesto de 1 de maio de 1808, declarou nulos todos os tratados a que fora obrigado a subscrever pelo imperador Napoleão Bonaparte.” O passado recente do Brasil entendido na figura do príncipe regente português, era contrastado com o presente: Napoleão, cuja figura, como já vimos, sintetizava a de um déspota, era comparado à Inglaterra, país de cuja liberalidade ninguém duvidava – nem Cunha 792 Idem, p. 13. 301 Mattos – para remeter-se ao autoritarismo com o qual o governo inglês impunha seu projeto abolicionista. Mas, para Cunha Mattos, a convenção também era nula porque dela resultava grave lesão aos povos do Brasil, tanto na sua agricultura e comércio quanto pela diminuição das rendas nacionais. Assim, outro exemplo histórico viria ao socorro daqueles que a ela quisessem apelar: Se o Brasil reclamar contra este tratado, tem o exemplo na súplica que no ano de 1506 os estados gerais da França reunidos em Tours levaram ao trono de Luiz XII para anular o tratado de lesão enorme feito com o imperador Maximiliano e o arquiduque Felipe seu filho e sucessor na monarquia espanhola!793 Não se entrava em detalhes desse exemplo histórico: bastava um paralelo com uma situação estrangeira considerada igualmente de opressão para que se fortalecesse o argumento. O argumento calcado nos estados gerais – forma de representatividade do Antigo Regime francês – tirava historicidade do caso: o ponto central aqui era a ideia de povo lesado que apela ao monarca para que se restituam seus direitos econômicos. Afinal, “filantropias, economias políticas, teorias inglesas e francesas, e outra imensa série de coisas boas para ler e muito más em prática, deram com os nossos comerciantes em vasa-barris!!”794 Daí passa Cunha Mattos a um argumento externo, e um dos mais importantes na discussão. Considerando-se que o argumento, digamos, filantrópico central contrário ao tráfico de escravos era a o horror da prática, o deputado afirma: Tenho lido em muitos escritores modernos e em alguns antigos, que o comércio dos escravos é odioso, e como tal deve ser abandonado. Eu convenho em que seja odioso; e para o ser basta abusar-se da liberdade dos homens! Entretanto, Sr. Presidente, a experiência de muitos anos que residi na costa d´África, sem ser negociante de escravos, fez-me persuadir que o tal comércio é menos odioso do que comumente se supõe! São por ventura criminosos os negociantes que traficam em escravos, e as equipagens dos navios que os transportam para a América? Os filantropistas modernos, os sectários da associação africana, ou os discípulos da sociedade dos amigos dos negros, a cuja testa se acham membros mui conspícuos da revolução francesa dizem que são criminosos, cúmplices e co-reus daquelas barbaridades; mas o homem que tem estudado os costumes antigos e modernos dos 793 794 Idem, ibidem. Idem, p. 14. 302 africanos, não infama tão levemente aqueles que negociam em escravos nos portos da Costa d´África! É entre os pretos e com os olhos filosóficos que se estudam as regras da moral aplicada aos africanos, é necessário conhecer as suas instituições, os seus usos, os seus costumes, e o seu modo de pensar.795 Além de minimizar a brutalidade do comércio negreiro pela equiparação de seus horrores específicos a uma fórmula geral da história da liberdade – afinal, odioso não era o tráfico em si, mas qualquer experiência que abusasse da “liberdade dos homens” –, Cunha Mattos ainda desqualificava os críticos do tráfico, os “filantropistas modernos”, remetendo às relações conspícuas de alguns com a Revolução Francesa – fortemente presente no imaginário dos agentes políticos daqueles anos, como vimos, como exemplo maior de caos, anarquia e horrores produzidos por “ideias metafísicas”, sem base na experiência ou na concretude, tal como Cunha Mattos indicava serem as críticas ao tráfico negreiro. Não apenas isso. A partir de uma perspectiva, digamos, antropológica de abordagem do fenômeno do tráfico negreiro e da escravidão, Cunha Mattos inverte completamente o argumento que Silva Lisboa usara para sua defesa do processo emancipatório (que pedia para que se olhasse a África com outros olhos, e não considerando-a bárbara em si) e afirma que a África meridional (...) é no dia de hoje, e há de continuar a ser por milhares de séculos o mesmo que tem sido desde o tempo dos fenícios, cartaginenses e romanos. Tão bárbaros são no dia de hoje como eram no tempo em que se escreveu o Périplo de Hanon! Guerra, caça, pesca, danças, cânticos e pouca agricultura; eis a vida do selvagem ao sul do deserto. E poderia ainda piorar, já que o “maometismo”, em expansão “nessas ardentes regiões”, parece que “ainda mais aumenta a ferocidade dos seus habitadores!”. 796 As guerras na África, continua, “fazem-se por ofício, por inclinação ou necessidade”, e “antes de haver comércio de escravos havia guerras contínuas”. Depois do estabelecimento do tráfico as guerras continuaram, e quando o comércio negreiro acabasse as guerras ainda iriam continuar. Mesmo nos países “mais civilizados da África”, como a “Abissinia”, havia guerras contínuas e os mais terríveis estragos, 795 796 Idem, ibidem. Idem, p. 14. 303 cometidos por “diferentes chefes” que aspiravam independência. Nos países menos cultos que a Abissinia, diversas leis e punições reduziam criminosos ao cativeiro. 797 Nota-se como a argumentação em defesa da continuidade do tráfico, em Cunha Mattos, projeta não apenas a barbárie sobre a África, contrariando a argumentação vencedora de Silva Lisboa na constituinte, mas, também, fortalece uma concepção de estado estacionário quase eterno para a história da África 798 . Se em Silva Lisboa a civilização era apenas uma questão de tempo para o continente africano, já que todas as atuais civilizações também haviam sido bárbaras no passado, em Cunha Mattos a barbárie é eternizada como condição própria do continente africano, que sempre vivera na selvageria e continuaria por muitos séculos a assim continuar. A concepção lenta do tempo em Cunha Mattos, aplicável em seus escritos históricos ao passado do Brasil, como vimos acima, projetava-se desde antes sobre a África. Nessa perspectiva, a brecha argumentativa pró-tráfico era previsível: Se não houvesse quem comprasse os pretos sentenciados à escravidão, eram mortos infalivelmente logo que fossem colhidos (...). E não será melhor que os infelizes tomados em guerra sejam conduzidos para fora da África do que serem assassinados por um braço sempre armado?799 Recusa, assim, a pretensa “filantropia inglesa”; a desconfiança do estrangeiro, no caso, do inglês, que desejaria apenas maldizer o Brasil: “os ingleses querem fazer-se senhores da África, como já estão da Ásia, Deus os ajude.” Eles que não viessem nos “iludir com filantropias imaginárias.” 800 No Brasil, por outro lado, “os pretos e os pardos em todos os tempos prestaram relevantes serviços”, como, novamente, no exemplo de Henrique Dias. 801 “Venham para cá pretos, logo teremos pardos, e Idem, ibidem.. E complementa mais à frente:“Como estranhamos pois que os africanos sigam no dia de hoje o mesmo sistema que seguiam os seus avós antes da descoberta da costa da África pelos portugueses?” Idem, p. 15. 798 Nas palavras de Tâmis Parrón, Cunha Mattos “simplesmente retirou o continente negro da história, privando-o de mudanças no passado e no futuro.” Cf. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p. 69. 799 ACD, 1827, sessão em 02 de julho, p. 14. E argumentaria, mais à frente: “É melhor que os pretos escravos sejam sacrificados na África, do que serem conduzidos para o Brasil, onde podem vir a ser muito menos desgraçados?” Idem, p. 15. 800 Idem, p. 15. Noutro momento, criticando certa “seletividade” dos ingleses, que, segundo ele, atacam o comércio cativo na África, mas não usam “de tanta filantropia” com os católicos da Irlanda, com o combate a piratas do Mediterrâneo, com a Índia, coma escravidão dos gregos etc., Cunha Mattos questiona se “muitos desses que se chamam filantropos, [não] são mais políticos do que amigos da humanidade, ou da proteção dos pretos africanos”. E completa: “Ah! Tanta caridade a favor dos pretos, e tanta indiferença a respeito dos brancos!”. Idem, p. 17. 801 “Os holandeses sabem quanto sofreram dos pretos de Henrique Dias.” Idem, p. 15. O exemplo de ascensão de pretos e pardos no Brasil também serviria para atacar a Inglaterra. “os ingleses não podem ser 797 304 finalmente brancos, todos descendentes do mesmo Adão, de um mesmo pai!” Os africanos, destinados à morte ou ao barbarismo inevitável na África, na interminável sequência de guerras e selvageria, tinham não apenas uma chance de melhorar no Brasil, graças ao tráfico e à escravidão, como, ainda, ofereciam uma chance de melhor à população brasileira.802 A recusa à Inglaterra traz de volta, no discurso, José Bonifácio, mencionado por Cunha Mattos. Não o Bonifácio do projeto de emancipação – isso, claro, apenas contaria contra o deputado. O Bonifácio que é trazido é o dos embates parlamentares que defendia que é com as nações americanas, que nós devemos ter íntimas relações diplomáticas, tanto por serem nossas vizinhas, como para fazer barreira contra as desordenadas pretensões da velha Europa. Na América figuramos como potência da 1ª ordem, ao mesmo passo, que no antigo mundo nos classificam a par do rei de Sardenha. Todas as convenções e tratados, que celebramos com os potentados da Europa serão tratados de lobos, ou leões com cordeiros! Onde há suma desigualdade não existe, nem pode existir perfeita reciprocidade; o maior há de suplantar o menor; e o mais fraco é quem há de pagar as custas do tratado.803 A “Velha Europa” aparecia novamente com sentido negativo, em contraste com os potenciais do Novo Mundo. Aproximar-se das nações americanas para fazer barreira a essas pretensões não deixava de forjar uma solidariedade escravista entre, por exemplo, Brasil e Estados Unidos, ambos entrelaçados no mesmo destino que acabaria futuramente com a escravidão. E, se era verdade que “todas as nações civilizadas do Universo têm abjurado o bárbaro tráfico de escravos”, era também verdadeiro que “nenhuma delas foi a isso obrigada”. A aproximação com a América permitiria o mestres de filantropia dos brasileiros; a sua filantropia data de ontem, e a nossa é muito velha, tem mais de três séculos”, afirma. Afinal, “não temos mós tido bispos, cônegos, vigarios, teólogos, canonistas, historiadores, e artistas sublimes pretos e pardos? Não mandou o Sr. rei D. João II, no século XV, estabelecer um colégio para pretos no mosteiro de Santo Eloy de Lisboa? Não mandou o rei Filipe IV da Espanha criar um colégio para pretos na Universidade de Coimbra (...)? Não mandou o Sr. rei D. João II e D. Manoel embaixadores, e não recebeu outros dessas regiões (que os ingleses agora reputam encantadas) no interior da África, com vistas de aumento de comércio e civilização dos naturais? Não foram as cortes do Congo, e a do Monomotapa mui brilhantes e civilizadas?” A filantropia da tradição brasílica, voltando ao começo da colonização, tencionava mostrar que o verdadeiro esforço civilizatório no continente africano havia sido feito por Portugal com sua prática colonial e catequizadora, e não pela filantropia inglesa metafísica. “Como pois nos vêm agora os ingleses dar lições de filantropia”, questiona. “a quem apresentam eles como provas dos seus desvelos?” Idem, p. 17. 802 Idem, p. 15. E complementaria, mais à frente: “o que seria hoje o Brasil no caso de se seguirem as antigas leis de ciúme e desconfiança de Portugal, e de não entrarem pretos para este continente? Não estaria ainda hoje povoado de indígenas, vivendo no meio de barbaridade?” Idem, p. 17. 803 Idem, p. 16. 305 fortalecimento de uma iniciativa própria para condução dos próprios destinos das sociedades escravistas. Por fim, Cunha Mattos lança, ainda, um último, mas também importante, argumento. Afirma ter ouvido dizer “que a escravatura traz consigo a imoralidade.” Afirma conceder em parte, “mas não no todo; a imoralidade não procede de haver escravatura, mas sim da natureza dos governos.” Nessa lógica, “se os soberanos são imorais, os povos quer tenham ou não tenham escravos, também são imorais; e se os soberanos são exemplares de virtude, os povos também são virtuosos.” 804 Para fortalecer sua argumentação, Cunha Mattos apela a exemplos da antiguidade. Fala dos “gregos no tempo dos Sólons, dos Licurgos, dos Aristides, dos Temístocles, dos Epaminondas, e dos Sócrates”, que “tinham imensos escravos, e eram exemplos e espelhos da moralidade”. Da mesma forma, os romanos “no tempo de Romulo, Numa, Servio, Anco Márcio, Bruto e Populicola” também “tinham muitos escravos, e eram bem morigerados”.Os mesmos gregos e romanos, contudo, nos tempos dos “Filipes, dos Demóstenes, dos Marios, dos Neros, dos Calígulas, dos Heliogabalos”, foram o máximo das abominações. Espanhóis e portugueses, idem: “sempre tiveram escravos, e nunca ninguém deixou de confessar que a modéstia, a fidelidade, a intrepidez e a bizarria foram qualidades que adornavam constantemente aqueles povos!” Por fim, “dizer que no Brasil não há moral, é um ataque à justiça e um insulto à razão!”805 Tâmis Parron aponta como, nessa direção interpretativa, a defesa da monarquia constitucional chancelava o futuro da instituição escravista no Brasil, já que se elevava acima do despotismo por suas virtudes. 806 Se lembrarmos a forma pela qual a imagem da monarquia constitucional foi construída, como elemento indissociável do progresso das luzes e da plena inserção do Brasil no mundo das nações civilizadas sem os riscos da desordem, então podemos perceber, na argumentação de Cunha Mattos, uma associação que dá um passo adiante nessa percepção: a monarquia constitucional garantiria a moralidade da sociedade escravista, uma vez que, por ser a melhor forma de governo possível para o país, naquele contexto de passagem do “velho tempo” ao “novo tempo”; simultaneamente, a sociedade escravista garantiria a continuidade e o progresso da monarquia constitucional, não apenas pela melhora da civilização brasileira, como 804 Idem, p. 17. Idem, ibidem. 806 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p. 70. 805 306 pela manutenção de sua economia e de sua integridade física. No caso específico da questão do tráfico, a crítica à convenção anglo-brasileira significaria, ainda o fortalecimento político da monarquia frente às potências estrangeiras. A fala de Cunha Mattos começa a receber respostas na sessão seguinte. 807 O primeiro a falar é o Bispo da Bahia, afirmando que “todas as nações são obrigadas sem dúvida a procurar o meio da sua conservação e bem ser; e evitar a sua destruição; mas é preciso que estes meios não sejam injustos, nem reprovados, e proscritos pelo direito natural.” E haveria quem dissesse que os meios do comércio de escravos não se encaixa nisso, sendo “somente próprio para retardar progressos da civilização da espécie humana? (Apoiados.)”808 Sobre a narrativa da barbárie africana que Cunha Mattos pintara, o Bispo da Bahia retrucara dizendo que nem um desses africanos agradeceria ao ilustre deputado este ato de compaixão e humanidade, que os arrebata da companhia de suas mulheres, de seus filhos e de sua pátria, para os vir entregar com a mais horrível degradação e zombaria ao açoite de um senhor implacável. 809 Por fim, ainda culpa pelas guerras, hostilidades, efusão de sangue e “tantos horrores” não os africanos em si, mas os “armadores ou antes os governos que os consentem, e autorizam”, inclusive apelando às “leis da humanidade”, como no passado se invocara “sacrilegamente o sagrado nome da religião com o pretexto de converter os africanos”. E, por fim, derruba o argumento sobre o tratado ser nulo, conforme argumentado por Cunha Mattos. Para o Bispo, o tratado tornou-se brasileiro quando a Assembleia de 1823 autorizou o executivo a tratar da questão. E mesmo o argumento de quebra da economia não poderia ser válido: Desenganemo-nos, se no tratado estipulasse a continuação daquele tráfico ainda por mais 20 anos, ao finalizar esta época renasceriam as mesmas queixas, e se julgaria que o Brasil precisava outro tanto tempo desta execrável importação. Foi assim que quando as colônias ingleses sacudiram o jugo da metrópole, muita gente na Inglaterra, até mui hábeis economistas, assentaram que ficava perdida, que decairia necessariamente a sua marinha, o seu comércio, e o seu poder naval: mas bem depressa se reconheceu que isto era um terror pânico, e nunca a Inglaterra prosperou mais em população, em capitais, e preponderância marítima, do que depois da emancipação das colônias. O mesmo há de acontecer ao Brasil, quando a falta de braços africanos 807 ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 21. Idem, ibidem. 809 Idem, ibidem. 808 307 o obrigar a lançar mão de medidas mais sólidas, e perduráveis, que até agora se têm desprezado.810 O argumento demolia a justificativa de Cunha Mattos para o fracasso da agricultura, ao remeter, pelo exemplo inglês, inclusive ao que se dizia a respeito da Independência do Brasil alguns anos antes. Ou Portugal não produzira, ele próprio, discursos baseados no medo, na previsão de destruição e degradação, caso houvesse a ruptura política? O discurso do medo, poderosa ferramenta de aglutinação dos interesses senhoriais, que projetava para o futuro a tragédia anunciada, era diluído pela lembrança do passado recente. Seria, porém, de Lino Coutinho a crítica mais contundente a um dos aspectos centrais da fala de Cunha Mattos a respeito da escravidão: a das suas relações com a moralidade. Lino Coutinho, após criticar a posição de Cunha Mattos afirmando que a escravidão se opõe “aos progressos da indústria”, “desmoraliza os homens” e “espanca as virtudes”, entra no terreno da questão moral: Mas dir-se-há: os gregos e os romanos tiveram escravos; os primeiros criaram as artes, as ciências e mesmo a moral; e os segundos, posto que inferiores nas artes e ciências, não eram contudo nas virtudes domésticas e públicas eles eram livres, e para serem livres tinham precisão de haverem escravos. Assim é, ou ordinariamente se pensa; porém se compararmos o passado com o presente, veremos que basta só a Inglaterra para deitar a barra adiante dessas famigeradas repúblicas da antiguidade, cujo renome é mais devido à saída que elas faziam entre as várias nações bárbaras que as rodeavam do que às suas próprias instituições.811 Coutinho não apenas minimiza o destaque de Roma e da Grécia no conjunto civilizacional, contextualizando de uma forma que mais faz suas inovações brilharem pela concorrência ao redor do que por méritos próprios, como, ainda, confere clara preponderância à modernidade em comparação com os antigos. Bastaria a Inglaterra para mostrar, por contraste, a distância entre as “repúblicas da antiguidade” e a civilização presente. O argumento remete à ideia de que o progresso nos tempos contemporâneos era não apenas mais acelerado do que no passado, mas, também, qualitativamente melhor, mostrando-se o tempo presente com posição de superioridade em relação aos tempos antigos. Mais: o caso de Grécia e de Roma não apenas era fraco em termos de moralidade, como ainda oferecia boas lições para o presente do Brasil: 810 811 Idem, p. 22. Idem, p. 26. 308 E quem não sabe que a Grécia e mesmo Roma sucumbiram debaixo dos Felipes de Macedônia e dos Césares, quando o número dos seus escravos chegou a ser excessivo, quando Atenas tendo 50.000 cidadãos contava 500.000 escravos; quando em Roma aparecia um Cresso com 2 mil captivos? Que segurança interna pode ter uma nação, cujo número dos escravos é excessivo em relação àquele dos indivíduos livres? Nós sabemos o que se fazia em Lacedemonia aos míseros hilotes; nós conhecemos a lei romana que mandava matar a todos os escravos da casa onde havia sido morto o senhor, quando não aparecia o assassino, e acontecendo em Roma um fato destes, quatrocentos escravos foram levados ao patíbulo, e aí mortos.812 Tãmis Parron, a partir desse exemplo, afirma que o deputado baiano, província então afetada continuamente por rebeliões escravas, evitara falar da revolução haitiana ou do Brasil para voltar-se à Antiguidade, embora não estivesse “exatamente preocupado com o Mundo Antigo.” 813 Contudo, é preciso considerar o peso do apelo à Antiguidade na produção de referências históricas, ainda mais considerando-se que o foco dessa discussão em particular era a questão da moralidade. Ao repetir os exemplos grego e romano levantados por Cunha Mattos, Lino Coutinho buscava relativizar a pretensa moralidade, questionando se a busca pela sua existência justificaria um estado de insegurança permanente. Moralidade essa que, no mais, não era tanta quanto se supunha. Para piorar a situação, argumenta Lino Coutinho, se algum proveito tiraram os povos da antiguidade com os seus escravos brancos, (...) não esperemos achar o mesmo entre os escravos africanos e pretos; porque estes são diferentes dos brancos pela organização física do seu cérebro, e inferiores pelo fraco desenvolvimento dos seus órgãos intelectuais. 814 O argumento racialista somava-se ao da imoralidade para produzir uma aproximação entre a lógica da barbárie africana e a crítica ao tráfico negreiro. Percebase que não há críticas à perspectiva de Cunha Mattos no estilo daquelas de Silva Lisboa a Maciel da Costa. Pelo contrário: a defesa do fim do tráfico serviria também para mostrar ao Brasil as vantagens da abolição desse comércio: Concluo pois, meus senhores, que o Brasil, em vez de perder com a abolição do tráfico de escravatura, há de pelo contrário muito ganhar com ela; porque, o que temos nós visto nos Estados Unidos da América? Eles têm melhorado muito a sua agricultura, a sua indústria e 812 Idem, ibidem. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p. 44. 814 ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 27. 813 309 o seu comércio, acabando com a escravatura, e admitindo colonos. E seremos nós só os exceptuados deste resultado geral? 815 Diz que desculpa os ingleses por terem se metido nesse negócio, já que toda nação deveria usar suas forças para atos dessa natureza. “Os ingleses nessa parte são dignos de louvor, porque usam de sua influência, para que se reconheça a dignidade do homem, e se acabe com o vil comércio de escravos.” Assim como Vasconcellos, que, falando em seguida, também apela à imitação e ao exemplo inglês: O procedimento do gabinete inglês, longe de excitar queixumes, reclama agradecimentos da nossa parte. Para que pois acusar de interessado o governo inglês? Como se pode avançar, que ele se propõe não o bem da humanidade, mas o nosso prejuízo de que espera lucrar? Como se afirma neste templo da justiça, que eles não têm beneficiado os africanos? O estabelecimento de serra Leôa, que se produziu, prova o contrário. (...) Estes africanos têm adotado todos os costumes e hábitos dos povos civilizados, por exemplo, a instituição dos jurados que ali floresce, e da qual muita gente julga incapazes os brasileiros. Mesmo Vasconcelos, futuro campeão do Regresso e do contrabando negreiro 816, posicionava-se, naquele momento, contra a continuidade do tráfico de escravos. A mudança é notória: quinze anos antes da famosa defesa, no Senado, em 1843, de que a África civiliza a América, Vasconcelos conecta a civilização da África à ação inglesa: a presença da civilização romperia qualquer pretenso estado estacionário africano e permitiria seu pleno desenvolvimento. Não era, aqui, a escravidão a moralizar e desenvolver a civilização num país escravista: era a liberdade a desenvolver a civilização na terra originária dos escravizados. O que explica a mudança no comportamento de Vasconcelos? Esta não é uma questão para ser tratada aqui. Porém, é preciso considerar que o Vasconcelos de 1827 está, ainda mais ligado às questões que presidem a construção do Brasil Independente do que àquelas que se colocam para a consolidação do Estado Imperial no Brasil, pósRegresso. Não à toa, na construção de sua defesa da ação inglesa, Vasconcelos, a exemplo do que discutimos nos capítulos anteriores, defende que “sejamos também gratos à nação inglesa; lembremo-nos que eles têm defendido a liberdade do gênero humano, e que às suas terminantes declarações à santa aliança se deve a tranquila emancipação da América.” Em outras palavras, antes das preocupações pós-Regresso com a construção da ordem no Brasil, envolvendo, aí, manter plenamente a inserção do 815 816 Idem, p. 27. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p 71-72. 310 Império nos quadros da Segunda Escravidão, num momento de expansão plena da cafeicultura e da Bacia do Paraíba, Vasconcelos ainda operava numa lógica da Independência da América como resposta do Novo Mundo às pretensões da “Velha Europa”, que ainda lutava contra os riscos de regredir na sua civilização – exceção feita à Inglaterra –, e num contexto retórico no qual o Brasil, monarquia constitucional, teria grande exemplo a dar ao mundo. Vasconcelos ainda ataca com ironia o argumento de Cunha Mattos de que os escravos fruto do tráfico seriam mortos caso não fossem comprados, mostrando como a lógica da história como história da liberdade presidia seu discurso naquele momento: “Que grande humanidade! Degradar o homem de sua natural dignidade, reduzi-lo à condição de animal, dar-lhe uma morte mais lenta e mais dolorosa, pode em qualquer conjuntura considerarse benefício?”817 A “natural dignidade” da condição humana – que, como vimos, era base de sustentação da lógica da história como história da liberdade – era projetada por Vasconcelos também sobre os africanos. E tal lógica não se poderia reduzir seque à questão da utilidade do tráfico para a formação do Brasil. Afinal, para Vasconcelos, “o útil e o justo devem ser sempre inseparáveis.” A interpretação da questão do tráfico e da escravidão dentro da lógica da história da liberdade levava a uma interpretação sobre a posição do Brasil no mundo, no que tange a esse ponto, e sobre as relações do Império com seus vizinhos: Ah! Senhores, imitemos os estados americanos; o Brasil é hoje o único país do globo, que ainda prossegue nesse comércio: mudemos de conduta a respeito dos africanos em tudo nossos semelhantes, como provam os haitianos. A Inglaterra que não só é livre, mas que quer que todos o sejam deu o exemplo, abolindo este tráfico nas suas colônias, e hoje intervem para que também ele cesse no Brasil. Quem pudera disputar-lhe este direito? Todas as nações têm rigorosa obrigação de socorrer a humanidade oprimida. Oh! Intervenham todas assim nos negócios alheios!! Portugal, quando ainda lhe estava unido o Brasil, tinha resolvido cooperar com S. M. Britânica para a completa abolição deste tráfico, que pelos tratados existentes só aos portugueses é permitido. 818 O Brasil já se apresentava como isolado; imitar os estados americanos era fundamental.819 Que a causa que a Inglaterra professava se tornasse, então, uma causa 817 ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 28. Idem, p. 28. 819 Costa Aguiar discordaria dessa proposição, por considerar, como outros, a diferença de situações entre Brasil e Estados Unidos: “O que se diz dos Estados Unidos da América serve para agravar ainda mais a nossa desgraça. (...) Argumenta-se com aquela nação a semelhante respeito! Ah! Senhores, que diversidade de circunstancias, que diferença de proceder!! Amanhã se não me engano fazem precisamente 818 311 mundial da civilização, da qual aspirava a fazer parte o Brasil. Sendo parte desse conjunto civilizacional, tornava-se obrigação de todos intervir em nome da “humanidade oprimida” – da qual fazia parte, portanto, também a África. E a aproximação do Brasil com o Haiti, num exemplo de valorização que, como vimos, aparecera apenas pontualmente em outros momentos, conectava-se à ideia de América contra a Velha Europa, destacando, provavelmente, a capacidade dos haitianos em gerir um auto-governo, à semelhança das nações saídas da Independência.820 Cunha Mattos ainda buscaria responder às críticas que recebera. Desafia os “srs. eclesiásticos” que afrimam ser o tráfico vergonhoso e oposto ao “espírito do cristianismo” a libertarem seus escravos, para que “não se sirvam com cativos”, dandonos “exemplos de moralidade”, não ficando “esta moralidade em simples palavras, que são levadas pelo vento.” “Confessa” que ele próprio não se acha disposto a libertar os seus escravos – coisa de “30 ou 40” – pois custaram muito dinheiro (busca, contudo, tratá-los bem) – lembrando que, “sr. Presidente, tudo são teorias, modas do tempo e que com o tempo hão de acabar!” 821 À enxurrada de filantropias criticando o tráfico, Cunha Mattos apela à rigidez do tempo e da experiência que poderia diferenciar ideias da moda das teorias consagradas e consolidadas pela tradição. Diz que os nobres deputados “ignoram os costumes da costa da África”, e que, embora não duvide “que a compra dos pretos tenha desafiado mais a ambição dos reis da África”, mesmo assim, nós todos sabemos que, antes da descoberta de Guiné pelos portugueses, as guerras eram mui freqüentes e que para Marrocos, Tunes e Tripoli iam imensos escravos d´Africa meridional. Eu já ontem disse que o estado da guerra é o estado da natureza dos africanos brancos e pretos; e agora acrescento que sempre foi o estado da natureza 822 dos antigos europeus, tanto do sul como do norte. Curiosamente, ao admitir, agora, que a guerra foi também o estado da natureza dos antigos europeus, Cunha Mattos abria a possibilidade de mudança. Indício de que sua argumentação original se fragilizara, e que apostar todas as fichas na questão da “salvação da ordem” parecia mais promissor. Não à toa, ao tratar das nações que 51 anos que os Estados Unidos da América proclamaram a sua independência: quando porém ali foi abolida a importação dos escravos? Eu referirei muito em resumo o que a este respeito diz Adam Seyhert nos seus anais estatísticos dos Estados Unidos, e compararei o estado da população naquele país em diversas épocas e tempos, desde a sua independência até nossos dias, para de tudo isto poder melhor deduzir a verdade do que deixo expendido quanto à diversidade de nossas circunstâncias.” Idem, p. 29-30. 820 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil... op. cit., p 72. 821 ACD, 1827, sessão em 03 de julho, p. 31-32. 822 Idem, p. 32. 312 declararam o fim do tráfico no Congresso de Viena, arrola exemplos (Áustria, Rússia, Prússia) que diferenciam-se do Brasil, uma vez que “nenhum destes soberanos têm colônias”, e “os franceses não fazem grande caso de Caiena”, portanto estando em condições bem distintas para lidar com a questão. Bem, bem! Insistem alguns srs. deputados em que a abolição do comércio não trará consigo a decadência do Brasil! Eu ontem provei o contrário; e como nós não havemos de morrer todos antes de chegar essa época fatal, então se verá qual é o aumento que os nossos agricultores e proprietários hão de experimentar. 823 O historiador do “tempo lento”, das transformações longas e seculares, advogava a crise e a decadência do Brasil para um futuro próximo, a que todos assistiriam como testemunhas. E não haveria solução capaz de resolver esse problema a curto ou médio prazo: o comércio negreiro era alçado a condição de elemento indispensável da manutenção do Império do Brasil. Sem ele, os escravos em vez de aumentarem, hão de diminuir, e os comerciantes hão de perder grandes capitais no último ano do tráfico. Apresentam-se brilhantes teorias para encher com índios selvagens o vácuo que ficará pela falta de escravos! Há 300 anos estão se catequizando os índios, e, à exceção dos aldeados pelos jesuítas, todos os mais têm sido menos úteis do que desinteressantes ao estado.824 Volta a falar das relações entre escravatura e moralidade. Afirma que “já ontem” havia demonstrado que pode haver escravatura e haver moralidade. Muitos países da Europa em que não existe nem existiu escravatura em tempo algum são povoados de gente muito mais imoral do que os brasileiros. A moralidade do povo siciliano, a dos lazarões de Napoles e dos Estados Pontificios, a dos corsos pode comparar-se com a dos brasileiros? Não; 825 entre nós não há os vícios infames da Italia meridional. E se a criminalidade aumentara recentemente no Rio de Janeiro, continua, isso se deu por conta dos “suíços tirados dos cárceres de Friburgo e os alemães varridos das cadeias das cidades hanseáticas.” Diz que o número de criminosos no Brasil, comparado com a Inglaterra, proporcionalmente, é quase insignificante. Nada justificaria uma correlação direta entre a presença da escravidão e a imoralidade da sociedade. 823 Idem, ibidem. Idem, ibidem. 825 Idem, p. 34. 824 313 O que faz chegar ao argumento final. Àqueles deputados que traziam exemplos ingleses para corroborar a defesa da humanidade contra o tráfico, destacando-se as “grandes instituições da Inglaterra”, Cunha Mattos rebate: “Que temos nós com essas instituições! Quando o Brasil tiver tantos anos de existência política no meio da liberdade quantos tem a Inglaterra, nós também apresentaremos coisas semelhantes às que eles agora nos estão mostrando.” E finaliza: “A Inglaterra data as suas grandes instituições desde o reinado de Alfredo em 800 e o Brasil principiou no ano de 1822.” 826 Dessa forma, Em Inglaterra há jurados, nós teremos a lei dos jurados; em Inglaterra há liberdade de imprensa, nós teremos liberdade de imprensa; em Inglaterra há muitas academias e universidades, nós havemos de ter universidades e academias; em conclusão quando nós formos tão antigos quanto os ingleses, quando tivermos uma população igual à deles, quando as nossas rendas públicas montarem a 800 milhões de cruzados, então teremos instituições iguais às da Inglaterra; as faculdades intelectuais dos ingleses não são maiores do que as nossas, no Brasil desenvolvem-se os gênios mais facilmente, aqui não temos nevoeiros contínuos, não respiramos a fumaça do carvão de pedra, e não conhecemos outras inconstâncias da atmosfera que são ordinárias na Inglaterra (Apoiado.) O ponto central para onde se desloca o argumento de Cunha Mattos é, finalmente, a questão das distintas temporalidades nas quais se encontravam Brasil e Inglaterra. Se os argumentos anteriores falharam em defesa do tráfico, que se destacasse, então, o fato de que o Brasil de hoje era a Inglaterra de ontem, e em algum momento chegaria lá. Quando chegasse, quando se equiparassem em termos de economia, política, justiça e liberdade, aí, sim, o espelho inglês poderia ser plenamente aplicado ao Brasil. E tal discrepância nas temporalidades era, ainda, minimizada pela velocidade das transformações: a Inglaterra, existente desde 800, e o Brasil, desde 1822, não levariam o mesmo tempo para chegar lá, já que o segundo se encontrava em condições melhores que os ingleses. Ironicamente, a modernidade capitalista que se processava na Inglaterra era criticada por seus efeitos sobre as cidades e a população. A ausência desses problemas tornaria o Brasil uma Inglaterra de maneira mais acelerada que a própria Inglaterra... Até lá, valeria a peculiaridade brasileira no desenvolvimento de sua civilização.827 826 Idem, p. 34. Outro que defenderia a particularidade das condições brasileiras para tratamento da questão seria Clemente Pereira. Criticando as teorias abstratas e princípios filosóficos gerais que não se aplicam à realidade brasileira, diz que é preciso observar a questão sobre fatos “existentes passados às nossas vistas, 827 314 **** A partir dos anos 1830, especialmente após o Regresso, a defesa dessa particularidade definiria não apenas um projeto para a construção do Partido Conservador que se entrelaçaria aos rumos do próprio Império, como, ainda, se articularia a uma concepção de História que cada vez mais fortaleceu determinada concepção de mundo senhorial-escravista sem, contudo, demonstrar diretamente tal conexão. À medida que se considerava progressivamente um saber à parte, descolado das disputas políticas, mais e mais essa visão de História contribuía para a consolidação de certa concepção de mundo que afastava possibilidades alternativas. À hegemonia historiográfica do IHGB correspondia uma hegemonia ideológica da classe senhorial – esta última também se ancorando em visões do passado, ainda que, ao menos para a temporalidade tratada, processavam-se de forma um tanto quanto independente dessas discussões no interior da “academia”; do “conjunto de letrados”. Essa articulação, dentro dos quadros da Segunda Escravidão, entrelaçaria ainda mais os destinos futuros da nação à manutenção da instituição escravista. A história dessas conexões, porém, ficará para trabalhos futuros. e não sobre teorias abstratas, que se acham nos escritos dos filósofos que nunca vieram ao Brasil, nem sabem como as coisas por cá vão.” Diz que é preciso ver as circunstâncias particulares de cada nação, e não partir de teorias de sistemas gerais feitos para todas as nações, que não servem para nenhuma delas. E afirma que, atentando à situação do Brasil, é preciso cautela, pois “o erro de uma experiência pode fazer a desgraça e os atrasos de uma nação, de que muitos exemplos fornece a história!” E conclui: perguntarei a estes senhores [que defendem o fim do tráfico], por que razão queremos imitar as nações clássicas da liberdade na plantação de suas instituições liberais e não as havemos imitar na lenta madureza com que elas as estabeleceram entre si? Nós que nascemos ontem, já queremos hoje saber como elas, que são práticas e têm mais juízo, por isso que são mais velhas?” Idem, p. 42-43. 315 Considerações finais Chegamos ao final desta tese com algumas questões em aberto e tantas outras para o futuro. Primeiro, uma consideração. Em que pesem os avanços da historiografia recente que ampliou os limites dos estudos para além do IHGB, o tipo de fonte muitas vezes utilizado não permitiu expandir ainda mais o leque de possibilidades. A despeito das distinções entre cada trabalho, o foco continua a ser o conjunto de “intelectuais oitocentistas” – muitas vezes sem uma maior reflexão sobre o significado da palavra “intelectual”, não raro assemelhado ao “letrado”, ou membro da “república das letras”. O deslocamento do IHGB para outros temas passa a ser apenas cronológico (no caso dos estudos anteriores a 1838) ou pela desvinculação institucional desses intelectuais (no lugar da categoria “membros”, inerente aos estudos sobre sócios do IHGB). Permanece, porém, a figura do sujeito da “elite” – nesse caso, uma elite intelectual – escrevendo uma obra delimitada, a partir de certas condições de produção. Os limites desse tipo de abordagem ficam visíveis quando se incorpora a interpretação coeva e se a generaliza para toda uma época, um período ou uma sociedade. O intelectual/letrado passa a soar quase como representativo do “espírito de época”, sua visão sobre a sociedade passa a ser “a” visão. E, no caso particular das discussões sobre história e experiência do tempo, suas próprias experiências podem passar a ser admitidas pelo historiador como se fossem o único percurso possível de desenvolvimento do conceito ou das formas de se experimentar. As alternativas, as opções “fracassadas”, as demais visões contra-hegemônicas não são, muitas vezes, levadas em conta. E há mais: os conflitos sociais não são, muitas vezes, levados em conta como fator de mudança, parecendo que transformações conceituais decorrem de um mundo de idéias, palavras e leituras apenas, como se à semântica bastassem as definições de dicionários ou escritos, ao invés de tratar-se o significado como produto de lutas sociais. Em suma, o historiador se torna prisioneiro de um desenvolvimento linear, inexorável e etapista, no qual os conflitos e contradições ficam restritos, muitas vezes, a diálogos internos entre os intelectuais escolhidos. A intenção, aqui, foi analisar algumas formas pelas quais agentes políticos do Império do Brasil usavam a História e certa experiência histórica para defender pontos de vista, argumentos, políticas, direções para o Império em construção. Com isso, 316 buscamos ampliar os “regimes de autonomia”828 da produção de narrativas históricas no oitocentos, compreendendo outros sujeitos, outras formas não acadêmicas e buscando como determinadas concepções narrativas sobre o passado influenciaram discussões políticas na primeira década de construção do Brasil Independente. Para tanto, inicialmente, analisamos as formas pelas quais as palavras “história” e “historiadores” eram compreendidas na discussão. Como pudemos perceber, há uma grande predominância de “autores não-historiadores” dentre os mencionados para corroborar ou atacar pontos de vista sobre o passado. Apesar da continuidade de autorias clássicas, especialmente Tácito, nas discussões do Primeiro Reinado, em grande parte graças à atuação de senadores como José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, pudemos perceber um predomínio de autores “recentes”, “modernos”, como Adam Smith, Burke, Benjamin Constant e, principalmente, Montesquieu. Esses elementos geraram uma dupla situação no que tange às formas de entendimento do que constituía a História: de um lado, em espaços como o Senado, uma concepção “antiga” de História se arrastava, associada a figuras como o já mencionado Silva Lisboa; de outro lado, em momentos de efervescência e maior discussão, autores mais modernos começavam a surgir como intérpretes da História. O passado aproximava-se do presente, já que tais autores se referiam não apenas a acontecimentos distantes no tempo – dentro de uma chave acadêmica “antiga” que considerava ser a distância temporal fundamental para um juízo adequado dos acontecimentos – mas, pelo contrário, aproximavam-se de considerações sobre a contemporaneidade e sobre o passado recente. O mundo criado pela Era das Revoluções demandava um conhecimento dessas transformações para a boa ação política no presente. A ausência de parâmetros acadêmicos “modernos” para delimitação do que significava, de fato, a ciência da História contribuiu para que se alargasse o conceito e a experiência histórica fosse, também, uma experiência política, voltada, também, para aprendizado e uso nas ações do presente. Essa concepção se diferenciava de uma perspectiva que predominaria, por exemplo, no IHGB décadas mais tarde. Do século XVIII a Varnhagen, do Império português ao Império do Brasil, em meio às disputas e mudanças nas concepções 828 Para os distintos regimes de autonomia da produção historiográfica no Brasil oitocentista, cf. ARAÚJO, Valdei. Historiografia, nação e os regimes de autonomia na vida letrada no Império do Brasil. In: Varia História, Belo Horizonte, vol. 31, n. 56, maio/agosto 2015, p. 365-400. Considero que, ampliando o escopo para além da vida intelectual mais restrita, podemos perceber outras formas narrativas da experiência histórica nas discussões políticas do Império. 317 predominantes a respeito da História e da Nação, podemos perceber um progressivo afastamento entre História e cotidiano, a partir do afastamento entre “homens de letras” e „homens da tribuna”, que resultou na concepção de que à História deveriam escapar os eventos contemporâneos, restringindo-se aquele campo do saber aos eventos já considerados “do passado” e isolados de permanências coevas 829. Assim, a concepção predominante no complexo IHGB-Varnhagen afastou os eventos contemporâneos do olhar do historiador, ao mesmo tempo em que, noutros espaços, como a Câmara, o Senado e os periódicos, essa relação história-cotidiano não desapareceu. Em outras palavras, não obstante, ao longo da primeira metade do século XX, no Império, o discurso histórico moderno tenha se autonomizando em relação à atuação no presente, as relações entre história e cotidiano, contudo, não desapareceram, mas, sim, foram deslocados à esfera do político, que fortaleceu-se como produtor de uma história recente ao menos a partir do Primeiro Reinado. Articulada a esse afastamento e deslocamento está a cientifização do conhecimento histórico, resultando numa concepção predominante de “discurso autorizado” sobre o passado conectada ao IHGB e a certos intelectuais, cada vez mais associados aos únicos possíveis produtores do saber sobre eventos transcorridos. A forma como essa relação se estabeleceu com a política após a década de 1820 fica como hipótese para trabalhos futuros. Em relação ao conteúdo prático dessa história voltada para a atuação política, podemos tecer algumas considerações a partir do que vimos trabalhando até aqui. Em primeiro lugar, a partir dos anos 1821-1822, delineia-se com mais precisão uma concepção de história, presente em periódicos como Reverbero Constitucional Fluminense, que a enxergava como a história da liberdade em luta contra a opressão. Essa concepção, que entendia o processo histórico como um movimento permanente de conflito entre as forças da liberdade e da escravidão, buscava interpretar os acontecimentos recentes, em especial aqueles que caracterizavam a Era das Revoluções, como processos inseridos nessa lógica mais ampla, embora não abrissem mão de buscar compreender toda a novidade daquele “novo tempo”. Assim, as narrativas que buscavam compreender as transformações e as novidades abertas desde o século XVIII, ao menos, posicionavam-se no meio de uma tensão entre a abertura a um novo mundo que se apresentava e os riscos contidos no processo de mudanças aceleradas, que poderiam facilmente degenerar as sociedades em anarquia, fragmentação, destruição. A 829 Sobre a questão, cf. MALEVAL, Isadora Tavares. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o (não) lugar da história do presente. In: Ars Historica. v.1, n.2, jul-dez 2010, p. 49-59. 318 América, que se pretendia inserir nesse processo, aproximando os efeitos revolucionários europeus do Novo Mundo, oferecia, nessa concepção, uma dupla possibilidade: de um lado, o grito de liberdade que conectava seus destinos aos do restante do mundo, aproximando-se do cumprimento do destino que se encontrava presente no coração de todos os homens: a resistência ao despotismo; do outro lado, os riscos nos caminhos distintos que o continente percorria para cumprir seu intento: o lado republicano arriscava-se por veredas conflituosas; a parte monárquico-constitucional oferecia, noutra direção, as vantagens de incorporar todas as mudanças positivas sem qualquer risco de destruição. É assim que podemos considerar a perspectiva de ser o passado da América entendido como o futuro do Brasil, caso falhassem os esforços pela construção da monarquia constitucional em torno de Dom Pedro I. O Brasil apresentava-se como melhor posicionado para executar a transição do velho ao novo tempo exatamente porque, nessa interpretação, aprendera com os erros alheios, observara seus vizinhos, compreendia como eles haviam chegado ao lugar indesejado, embora, na origem, todos quisessem a mesma coisa: a liberdade. E essas lições do passado recente serviriam para a construção de um discurso sobre o medo que fortaleceria retoricamente a sustentação da monarquia ao redor de Dom Pedro. Ao mesmo tempo, em segundo lugar, simultaneamente à narrativa da história da liberdade se constrói uma certa concepção de história da civilização que buscava produzir uma interpretação geral da História que desse conta de todas as transformações passadas, presentes e futuras amparadas numa certa ideia de progresso. E, nessa concepção de história da civilização, o mundo se apresentava nas suas múltiplas temporalidades, as distâncias geográficas misturando-se às distâncias temporais que marcavam, para cada região, sua posição na transição do “velho tempo” ao “novo tempo”. As “luzes do século”, posto fossem, como o nome indica, próprias do XIX, não se derramavam simultaneamente sobre todos os locais. Dessa forma, era possível, no XIX, observar-se a distância sobre os séculos passados a partir das distâncias temporais: cada vez mais associava-se a civilização à Europa contemporânea – que superara uma Europa antiga marcada pelo domínio da barbárie, ligada ao despotismo –, enquanto sua antítese, a barbárie, cada vez mais era jogada para cantos distantes do Ocidente, sintetizando-se o longínquo na figura da “Turquia”. A civilização caminhava do Oriente para o Ocidente, entendia-se. O Brasil recém surgido do rompimento com Portugal buscava-se inserir na continuidade civilizacional ocidental. 319 Os “olhos na Europa” buscaram os exemplos das “nações civilizadas” como forma de compreender os caminhos a serem seguidos tanto para se alcançar o patamar dessas nações – em especial a Inglaterra, que ocupa posição central nessa narrativa –, quanto para se entender por que mesmo no coração da civilização poderia a qualquer momento a tragédia irromper, como no caso da França. Em outras palavras, os “olhos na Europa” não apenas constroem aquela narrativa civilizacional e a distância temporalgeográfica da Europa em relação tanto ao seu próprio passado quanto a outras regiões do mundo, como, também, produz uma retórica de aproximação e alerta, a partir de exemplos positivos e negativos, que também informou a experiência histórica dos sujeitos que disputavam a direção política no Primeiro Reinado acerca do que poderia ou não ser aplicável ao Brasil; de como se poderia ou não garantir a plena inserção sem sustos ou desvios do Império na civilização. Tal inserção na civilização, via de regra o “caminho brasileiro” para a modernidade, com suas três franjas principais, não se deu sem a produção de uma massa de colonizados que, prostrados no chão frente ao “cortejo triunfal” da história da civilização, tal como construída interpretativamente, dela não participariam senão como subalternizados. Assim, e retornando a Walter Benjamin, entender a construção do Império como parte constituinte de um processo de modernização implica considerar, de todas as possibilidades que se apresentavam, as razões pelas quais uma específica, impondo-se e apresentando-se como a única modernidade possível, varre os escombros sobre os quais se ergue e produz esquecimento daqueles que dela não fizeram parte senão como subalternos e fruto de exploração830. Esta tese, contudo, não buscou a “História a contrapelo”, tarefa que superaria em muito nossos objetivos, mas, sim, alguns dos tecimentos pelos quais dirigentes imperiais lidaram com aqueles aspectos das múltiplas franjas da modernidade e construíram discursos capazes de produzir uma interpretação histórica que, encaixando o Brasil na trajetória das demais “nações civilizadas”, pautou também os modos de interpretação de si e dos outros, da América e da Europa, que davam sustentação àquele encaixe.831 830 Cf. as Teses Sobre o Conceito de História, em BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, bem como a análise delas feita por LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. 831 Saímos dessa armadilha? A pertinência de algumas críticas a interpretações não apenas vigentes, mas canônicas de nossa origem nacional sugere que não. Cf., por exemplo, as críticas, por exemplo, à perspectiva de CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem/ Teatro de Sombras. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, presentes em PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain; 320 É neste ponto que chegamos à questão das relações entre história, civilização e escravidão, bem como a inserção dos indígenas nesse processo. Isso envolveu, por exemplo, as discussões sobre as relações entre cidadania e escravidão no Brasil. Nos debates de 1823 a respeito, duas questões centrais foram postas. A primeira interrogava a respeito das diferenças entre “ser brasileiro” e “ser membro da sociedade civil brasílica”, ou “ser cidadão brasileiro”. Não era apenas uma questão retórica ou ligada à discussão sobre direitos. Envolvia, para os fins que nos interessam, saber, também, quem havia feito parte do conjunto em luta contra a opressão metropolitana na formação do Brasil. Envolvia aspirar à produção de uma sociedade única, que abarcasse todos os nascidos no território em torno da “brasilidade”, ou construir uma sociedade que se mantivesse “heterogênea”, com grupos nascidos no Império, mas sem serem parte da civitas. Contudo, se a Constituinte de 1823 oferecia uma possibilidade de esticamento da crítica à escravidão, inclusive na proposta vitoriosa de Silva Lisboa a respeito do encaminhamento da questão dos libertos à cidadania, o começo da experiência parlamentar mais corriqueira no Império, a partir de 1826, alterou significativamente esse quadro, como ficou evidenciado na crítica de Cunha Mattos à ratificação da convenção anglo-brasileira que previa o fim do comércio negreiro para dali a três anos. Embora quase isolado em seu posicionamento e derrotado na discussão final, Cunha Mattos lançou bases de articulação entre história, civilização e escravidão que consolidaram, especialmente na década seguinte, uma interpretação da formação do Brasil condicionada pela lógica da “salvação do estado” superando a interpretação mais aberta e teórico-filosófica da “história como história da liberdade”. A história dessa substituição conhecemos bem. Retornando a Walter Benjamin, podemos lembrar que a construção da ordem, no Brasil, nas décadas seguintes, foi parte parte constituinte de um processo de modernização que implica considerar, de todas as possibilidades que se apresentavam, as razões pelas quais uma específica, impondo-se e apresentando-se como a única modernidade possível, varre os escombros sobre os quais se ergue e produz esquecimento daqueles que dela não fizeram parte senão como subalternos e fruto de exploração832. Essa “única modernidade possível” encontra seu acabamento no período de consolidação do Império, entre 1838 e 1850, não à toa ESTEFANES, Bruno. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil. Almanack. Guarulhos, n° 07, 1° semestre de 2014, p. 137-159, crítica à pag. 142. 832 BENJAMIN, Walter. O anjo da história... op. cit. 321 periodização também que praticamente abarca os dois elementos centrais da escrita da História no Brasil oitocentista, tais como tradicionalmente são considerados: o IHGB e Varnhagen. Esta tese não buscou a “História a contrapelo”, tarefa que superaria em muito nossos objetivos, mas, sim, alguns dos tecimentos pelos quais dirigentes imperiais lidaram com aqueles aspectos das múltiplas franjas da modernidade e construíram discursos capazes de produzir uma interpretação histórica que, encaixando o Brasil na trajetória das demais “nações civilizadas” ao mesmo tempo em que sua maior peculiaridade, a escravidão, era justificada como elemento indissociável dessa construção. Saímos dessa armadilha? A pertinência de algumas críticas a interpretações não apenas vigentes, mas canônicas de nossa origem nacional sugere que não833 A relação entre essas três modernidades aqui analisadas produziu características que acompanhariam o processo de formação do Estado nacional no Brasil do século XIX. Em primeiro lugar, uma modernidade escravista como elemento fundador do Império, não apenas constituindo elemento de integração territorial, mas também delimitando a questão da cidadania e da liberdade, a partir do atributo da propriedade834. Além, é claro, de constituir baliza fundamental da base territorial econômica (pelo café) e social (pelo ethos senhorial) do Império em seu auge: o Vale do Paraíba fluminense. Em segundo lugar, uma modernidade política que desenvolvia, pelo conceito de civilização, a produção de uma massa de subalternizados afastados da própria direção política, constituindo-se como herdeiros daqueles colonizados, à Ilmar Mattos, que eram produzidos no próprio processo anterior de colonização. Modernidade política que construía a plebe em oposição à boa sociedade, portanto definindo a cada um o seu lugar naquela sociedade. 835 Em terceiro lugar, uma modernidade conceitual que 833 Cf. as críticas, por exemplo, à perspectiva de José Murilo de Carvalho, especialmente em seu A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, presentes em PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain; ESTEFANES, Bruno. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil. Almanack. Guarulhos, n° 07, 1° semestre de 2014, p. 137-159, crítica à pag. 142. 834 Para essa questão, cf. MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit. SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial... op. cit.; SALLES, Ricardo. E o Vale era o escravo... op. cit. ; GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; CASTRO, Hebe Mattos de. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Jorge Zahar Editor [coleção Descobrindo o Brasil], s/d. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2003. 835 Toda a estrutura dessa interpretação é baseada em MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema... op. cit. Cf., ainda, BARRA, Sérgio. Entre a Corte e a Cidade... op. cit.; SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e Barbárie: a construção da ideia de nação: Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012; COSER, Ivo. Visconde do Uruguai: centralização e federalismo no Brasil, 1823-1866. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2008, cap. 4. 322 buscava, a partir, em grande parte, dos limites produzidos pelas duas outras modernidades, dar um sentido de interpretação àquele tempo, articulando passado e presente na produção de narrativas sobre o Brasil, visando ao futuro. Como pudemos conectar esse momento de síntese das três modernidades – a escravista, no momento de abertura, no Império, da Segunda Escravidão; a política, no momento de inauguração do “Tempo Saquarema”, e a conceitual, com a fundação do IHGBm em 1838, e a posterior escrita da História Geral do Brazil, em 1854 – com o momento anterior, de fundação do Brasil Independente? Essa conexão, que justificou este trabalho, passava diretamente pela produção ideológica de referências que buscaram inserir o Brasil no rol das “nações civilizadas” ao mesmo tempo em que construía a definição hegemônica de “civilização” como aspecto indissociável de uma lógica da experiência histórica no Brasil oitocentista. Essa lógica apelou à história e a exemplos históricos e coevos para dar sustentação a um projeto de Império e de nação que se pretendia parte indissociável do conjunto das “nações civilizadas”, ao mesmo tempo em que se deparava, o tempo todo, com a necessidade de lembrar as peculiaridades da América que justificavam certa diferenciação para a civilização aqui construída. E tal passava especialmente pelo entrelaçamento das três franjas da modernidade acima discutidas a partir do momento de fundação do Brasil Independente, iniciando a análise na conjuntura que levou à ruptura política, em 1822, e analisando o processo ao longo do Primeiro Reinado. Essa forma de fundação do Brasil é, ainda, o nosso tempo. Enquanto concluo esta tese, discutem-se, sob os auspícios de um governo de exceção, reformas na economia, na educação, na política e na previdência que são justificadas, sem exceção, sob o argumento de sincronizar o Brasil com as “nações mais modernas do mundo” – substituto para as “nações civilizadas” que formaram nosso parâmetro oitocentista. Ao mesmo tempo, nossas “peculiaridades” – não raro construídas sobre o mais rasteiro senso comum – ainda servem de base para ações autoritárias que não permite uma plena inserção de uma lógica de direitos humanos e democracia na sociedade brasileira. A tese não pretendia falar do Brasil no século XXI, mas do Império do XIX. Qualquer semelhança será mera coincidência? 323 Referências Bibliográficas: Fontes: I - Internet: www.slavevoyages.com ATAS DO CONSELHO DE PROCURADORES-GERAIS DAS PROVÍNCIAS DO BRASIL. 1822–1823 In: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS1Conselho_dos_Procuradores_Gerais_das_Provincias_do_Brasil_1822-1823.pdf II – Anais e documentos oficiais: Anais da Assembleia Constituinte do Império do Brasil (1823) Anais da Câmara dos Deputados do Império do Brasil (1826-1830) Anais do Senado do Império do Brasil (1826-1830) Coleção de leis do Império do Brasil Constituição Política do Império do Brasil III – Obras de referência: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. Lisboa: Oficina de Pascoal da Sylva, 1720. MORAES E SILVA, Antonio. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado de todos os impressos até o presente, por Antonio de Moraes e Silva. Tomo Segundo. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1823. SLVA PINTO, Luiz Maria da. Diccionario da Lingua Brasileira. 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