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(En)Cena Jan/Jun. 2016, Vol. 01, n. 1, 75 - 83. revista.uft.edu.br/index.php/encena DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA À TRANSFERÊNCIA DE TRABALHO: UMA TRANSMISSÃO From worktransfer to the transfer of work: a transmission Du travail de transfert au transfert de travail : une transmission Del trabajo de la transferencia a la transferencia del trabajo: una transmisión Chatelard, Daniela Scheinkman Psicanalista. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura no Departamento de Psicologia Clínica. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. ABSTRACT: The aim of this article is to reflect about the discourse and the social bond under the perspective of the psychoanalytic theory. For so doing the ideas of jouissance, structure and language will contribute to reflect on the topics. The psychoanalytic experience goes through a discourse structure,i.e., the way through which the individual unconscious intertwines with the social bond. In this perception, the discourse as a machine builds up to deal with the real out of which emerges the subject upon whom psychoanalysis operates. Through the unfurling of the theory of discourses, we will reach the issue of transmitting and teaching, through the path of transfer of work. KEYWORDS: Jouissance. Discourse. Language. RÉSUMÉ : Il s’agit da s et a ti le de fl hi su le dis ou s et le lie so ial à la lu i e de la th o ie psychanalytique. Ainsi, nous avons recours aux notions de jouissance, de structure e du langage afin d’e a i e ette th ati ue. L’e p ie e ps ha al ti ue e voie à u e st u tu e de dis ou s, ’est-à-di e la faço do t l’i o s ie t ui est si gulie de ha ue sujet va à la e o t e du lien so ial. Da s ette pe spe tive, le dis ou s o e a hi e s’appa eille pou t aite le el d’où émerge le sujet sur lequel opère la psychanalyse. À travers le développement de la théorie des discours nous aboutirons à la question de la transmission et de l’e seig e e t pa le iais du transfert de travail. MOTS-CLÉS: Jouissance. Discours. Langage. RESUMEN : En este artículo se trata de reflexionar sobre el discurso y el lazo social a partir de la teoría psicoanalítica. Para ello, la noción de goce, de estructura y de lenguaje contribuirán para reflexionar sobre esta temática. La experiencia psicoanalítica pasa por una estructura discursiva, o sea, la manera por la cual el inconsciente singular de cada sujeto atraviesa el lazo social. En esta concepción, el discurso como máquina se prepara para tratar lo real de donde surge el sujeto sobre el cual opera el Psicoanálisis. A través del desarrollo de la teoría de los discursos, llegaremos a la cuestión de la transmisión y de la enseñanza, por vía de la transferencia del trabajo. PALABRAS CHAVE: Gozo. Discurso. Linguaje. RESUMO: Este artigo reflete acerca do discurso e do laço social à luz da teoria psicanalítica. Para isto, a noção de gozo, de estrutura e de linguagem contribuirá para refletir sobre essa temática. A experiência psicanalítica passa por uma estrutura de discurso, ou seja, a maneira pela qual o inconsciente singular de cada sujeito perpassa o laço social. Nessa concepção, o discurso como Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. Chatelard 76 máquina aparelha-se para tratar o real de onde surge o sujeito sobre o qual opera a Psicanálise. Por meio do desenrolar da teoria dos discursos, chegaremos à questão da transmissão e do ensino, pela via da transferência de trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Gozo. Discurso. Linguagem. Uma Escola de Psicanálise faz referência ao ensino, à sua transmissão. Podemos colocar aqui a questão do grupo e da função dos coletivos humanos, ou seja, o que gira em torno do mal-estar na civilização: ênfase no grupo, aqui a questão fundamental e central para Freud concerne à noção de gozo. O que possibilitaria fazer laço social? Como o fala-ser pode consentir na perda de gozo, que é uma condição da civilização? Para Freud, o laço social implica um sacrifício. O fala-ser é efeito de linguagem sobre o vivente. A Psicanálise não entra no debate se um sintoma é somático ou psíquico. A Psicanálise intervém a partir do momento em que é questão o sujeito, mas isso não significa que essa qualidade do fala-ser não tenha no sujeito incidências sobre o organismo pulsional. É a função do campo da fala e da palavra que norteia, na Psicanálise, o discurso íntimo do analisante ante o discurso do Outro. Ao nodular a Psicanálise em intenção para a extensão, retiramos a Psicanálise do lócus restrito dos consultórios, oferecendo sua práxis e sua ética do bem-dizer aos demais dispositivos clínicos. As estruturas clínicas declinam-se na Psicanálise conforme a maneira como cada sujeito lida com a falta inscrita na subjetividade, falta que condiciona a modalidade de cada um ter de se haver com o sexo, com o desejo, com a lei, com a angústia e com a morte, enfim, os pilares de uma Psicanálise. A experiência psicanalítica passa por uma estrutura de discurso, ou seja, a maneira pela qual o inconsciente singular de cada sujeito perpassa o laço social. Desde Freud, o gozo está relacionado a um campo de energia, ideia que converge com o que é colocado como princípio de prazer, isto é, princípio de regulação de gozo. “O gozo enquanto efeito de pulsões e ligado ao inconsciente é também efeito de linguagem" (Faleni, 2000, p. 26). O sujeito é efeito de linguagem no real, real de gozo – o gozo que concerne a cada sujeito, ligando o mais íntimo da pulsão à linguagem. O campo da linguagem é constituído pela falta de um significante, de uma parte impossível a significar, ligado ao enigma do desejo do Outro. Para interrogar o que é o gozo, é preciso interrogar não o organismo, mas o sujeito, o sujeito de uma combinatória: sujeito, Outro, a imagem do sujeito e seus objetos. Aparelhos de gozo, foi uma expressão forjada por J. Lacan, mas primeiramente, no campo freudiano – a noção de aparelho lembra a noção de aparelho psíquico. Aparelho sob o modelo ótico na Interpretação dos Sonhos ou biológico no Mais Além do Princípio do Prazer – do funcionamento psíquico, sugerindo, por um lado, uma espécie de ordenamento, de um dispositivo interno, ligando funções diferentes a lugares específicos e, por outro lado, uma atividade de um trabalho, mesmo de um metabolismo indo da percepção à motricidade. Em uma passagem do Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan, a propósito do sujeito, sublinha que “O sujeito é um aparelho. Este aparelho é algo de lacunar, é na lacuna que o sujeito instaura a função de Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. 77 DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA certo objeto, enquanto que objeto perdido. É o estatuto do objeto a enquanto que presente na pulsão” (Seminário 11, p. 168). Para explicar o que está por detrás desta expressão, aparelhos de gozo, vamos ao contexto em que Lacan faz uso dessa expressão; foi em seu Seminário, de 13 de fevereiro de 1973, que Lacan utilizou essa expressão da seguinte forma: “A realidade é abordada com os aparelhos de gozo” (Seminário 20, p. 52). E prossegue Lacan: “Aqui está mais uma fórmula que eu lhes proponho (...) que não há aparelho que não seja de linguagem”. É dessa forma que, no ser falante, o gozo é aparelhado. Indo um pouco mais adiante, chegamos ao aforismo, o Inconsciente é estruturado como uma linguagem. A partir daí, podemos fazer uma leitura em que a linguagem coloca-se como aparelho de gozo. Assim, há aparelhos de gozo; o gozo só tem um aparelho, que é o da linguagem, ou seja, a realidade é abordada com aparelhos de gozo. Não há uma anterioridade de um em relação ao outro, mas a própria noção de realidade em Freud já é complexa, ou seja, temos a noção de percepção, de representação, inscrição, traços, índices de realidade, realidade psíquica, realidade material. Com Lacan, podemos dizer que a realidade é fundada por um discurso. “Cada realidade se funda e se define de um discurso” (Lacan, 1975, p. 33). Linguagem e estrutura Da estrutura de linguagem à estrutura de discurso, Jacques Lacan avançou alguns passos. Da estrutura de linguagem, podemos definir clinicamente a estrutura enquanto que a estrutura dos discursos toca em uma concepção topológica da estrutura. Os discursos podem ser definidos como modos de ordenar a linguagem e entendidos como laços sociais instauradores de aparelhos de gozo que, em sua materialidade significante, determinam a realidade. A Psicanálise é um discurso sem palavras. A Psicanálise não evoca um campo epistêmico, mas do desejo. Somos sujeito do discurso cada vez que o sujeito tem voz. O sujeito da Psicanálise é o da ciência, aquele que se interroga e vem desde Descartes. O que se articula neste campo, é fala com palavra, uma estrutura de linguagem mobilizada na palavra. O sujeito da Psicanálise é este que vem por causa de um sintoma, que faz de mim um sujeito que sofre, que falha, no sentido de falência. Quem sou eu na palavra? Sou uma incógnita, um enigma. A busca de sentido, o significante, representa o sujeito, tudo o que digo me representa sem dizer o que eu sou. O eu não é solidário ao sujeito. O trabalho de transferência analítica é a instituição maior do sujeito, é uma operação do sujeito que consiste em desenvolver uma incógnita. O sujeito na cadeia de associação está coberto, é o corte, a escansão, o ato, é nas falhas que este sujeito é des-coberto. O sujeito neurótico sofre de indeterminação. Ele espera que uma análise ponha fim à indeterminação. Há no sujeito o temor em descobrir que possa ser o desejo como resposta. O discurso ultrapassa a palavra, pois esta é da ordem da contingência, ao passo que o discurso representa a estrutura significante. A teoria dos quatro discursos vem como consequência da formalização do objeto a. A partir daí, instaura-se outra concepção da economia de gozo, cuja reordenação coloca em movimento uma entropia reguladora de perda, recuperação e excesso de gozo. Há sempre um resto, impossível a ser capturado pela lógica do discurso. “O discurso é sem palavras”, ou seja, um projeto de retomar a análise freudiana pelo Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. Chatelard 78 avesso e uma virada em relação ao eixo central de todo primeiro período do seu ensino: O inconsciente é estruturado como uma linguagem. Sem recusar esta tese, Lacan deu ênfase à outra dimensão, o Real utilizando o conceito de objeto a. O Real é aquilo que escapa ao simbólico, que é da ordem do demonstrável, do transmissível (sem palavras ou que escapa a palavra, mas não por isso deixa de fazer discurso, laço social). O Avesso, uma expressão de Jacques Lacan, para construir uma teoria da discursividade como forma de abordar o laço social. Com a teoria dos quatro discursos, uma concepção de laço social singular e frutífera, Lacan deu um passo adiante em seu ensino, articulando o campo da linguagem ao campo do gozo. “Não há discurso que não seja do gozo, ao menos quando dele se espera o trabalho da verdade” (1970). Foi o reconhecimento dessa relação que fez com que Lacan, ao propor a retomada da Psicanálise pelo avesso, pudesse questionar o lugar da Psicanálise na política. A originalidade dos quatro discursos como modo de pensar o laço social. Nessa concepção, o discurso como máquina aparelha-se para tratar o real de onde surge o sujeito sobre o qual opera a Psicanálise. No fim da década de 60 – década de grandes manifestações e revoltas estudantis no Brasil e em outras partes do mundo –, a França disso, não escapou, abalando as ordens sociais – principalmente em maio de 68, pois, nesse ano, colocou-se em questão o sistema universitário e os valores tradicionais da sociedade francesa. Um ano e meio mais tarde, em 26 de novembro de 1969, ainda sob o clima de contestação generalizada, Lacan deu início ao Seminário 17: O Avesso da Psicanálise. Suas formulações foram certamente marcadas pelas circunstâncias históricas que convulsionaram não apenas o meio intelectual e político francês, mas também o psicanalítico. Seguindo a lógica dos quatro discursos, Lacan visou a uma logificação a fim de pensar o laço social. Em particular, o Discurso do Psicanalista inaugura esse funcionamento. O Discurso do Analista (DA) é o laço social criado por uma análise. Uma cascata de rupturas segregativas marcou desde o início a história da Psicanálise. A história da Psicanálise é uma história de cisões. O analista só se autoriza de si mesmo, quer dizer que não se autoriza no Outro, não se autoriza no saber do Outro porque o Outro falta. Isto é o que se põe à prova na cura. O analista ex-siste ao saber do Outro e ele disso sabe. É o que o DA escreve quando, no lugar do agente, põe o objeto a, que o analista encarna em seu saber-fazer. O saber do psicanalista é a sua prática assim como seu ato – no seu ato não há pensamento. O inconsciente não conclui. Dizer só faz prolongar o impasse. O sujeito vive em círculos. A cadeia vive como um disco. A aderência à cadeia só é percebida pelo tipo de gozo, suposto nesse mesmo círculo, se não se pode largar esse círculo é porque isto o satisfaz. A destituição significa que o sujeito toma certa percepção dessa satisfação que o liga à história, e isso é uma perda. A destituição subjetiva supõe um atravessamento do não quero saber sobre que sou como objeto de gozo, e esse atravessamento que implica uma perda traz também seu benefício epistêmico: eu sei agora de alguma coisa sobre isso. O sujeito aí é destituído – efeito de ser. Identificação ao sintoma. O sujeito se reconhece nas modalidades de satisfação. A ideia de Jacques Lacan que a análise faz progredir – sou analisando no meu próprio seminário – tem a ética do analisando, alguma coisa cabe a ele que faz que alguns concluam e Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. 79 DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA outros não. A destituição subjetiva implica uma mudança de posição do sujeito. Graças a Lacan, o discurso analítico começou a existir indo além do que Lacan dizia de Freud, sobre seus amores com as verdades. Por sua vez, Lacan falava da Ética do BemDizer, ética correlata ao sujeito. Não é uma ética que dite condutas, modos de agir segundo o universal. Trata-se de uma ética relativa à implicação do sujeito, pelo dizer, no gozo que seu sintoma denuncia – ética de bem-dizer o sintoma. A Psicanálise não está apenas interessada na suspensão do sintoma, pois, lá onde há sintoma, está o sujeito. Dito de outro modo, a psicanálise aborda o sintoma como uma manifestação subjetiva. Pode parecer um paradoxo, mas a interpretação denuncia uma deficiência de sentido justamente por visar a um mais de sentido. Além disso, deste mais de sentido, é buscado aí uma satisfação. Daí o equívoco que faz Lacan ao escrever jouissance (gozo) em duas palavras: jouis-sens, como ele o faz em Televisão. Se demandássemos da interpretação cada vez mais e mais ainda de sentido, esbarraríamos no impossível, ou seja, uma interpretação que faça cessar a recorrência do "o que isto quer dizer?" Gostaríamos de tamponar a questão do sentido por um significante último em posição de saber que faria um efeito de basta. É pela lógica que o discurso analítico toca o real. O dizer fica esquecido por trás do dito, e Lacan (2001) acrescenta, em Aturdito, que é na análise que o inconsciente se ordena em discurso – estruturado como uma linguagem. A estrutura é o real que se faz luz na linguagem. A linguagem é o fundamento das trocas entre os indivíduos. Os discursos podem ser definidos como modos para ordenar a linguagem, ou seja, uma espécie de máquina que atribui lugares cujas bases partem da exterioridade do S1 e, como laços sociais instauradores de aparelhos de gozo, em sua materialidade significante, determinam a realidade, o que podemos concluir que toda realidade é de discurso. Dito de outro modo, ainda em Aturdito, Lacan (2001) fala da antinomia do sentido e da significação. Sentido sempre há, mas a linguagem é inapta a apreendê-lo, ou seja, o efeito de sentido é evanescente. O que decide o sentido? O encontro de gozo, contingência. A contingência programa a fuga de sentido indedutível e, também, inapreensível, ou seja, faz do sentido um real: um objeto perdido na linguagem. Em Aturdito (2001), Lacan faz referência à interpretação como aquela que faz emergir o sentido, surgir, o faz aparecer..., várias expressões ele emprega, o que não significa que ela diga o sentido. A interpretação incide sobre a causa que ela revela. Ainda em Aturdito, Lacan (2001) toca na interpretação dita apofântica, ou seja, sob a forma da interpretação oracular, do equívoco, que, como os oráculos antigos, não revela nem esconde, não diz nada, mas ela mesma faz suspender um efeito de sentido, ou seja, há um efeito de enigma. Percebemos com Lacan a conexão da fala e do saber com o gozo, ou seja, lá onde isso fala, isso goza. A palavra não é incompatível com o gozo. A você nada diz, podemos falar da presença do analista sob a forma de você estar aí. Podemos considerar que a definição dos discursos como liames sociais que constituem o campo de gozo instaura uma revirada moebiana sobre o campo da linguagem. Essa torção moebiana do campo do gozo, a partir do campo da linguagem, se faz sentir no âmbito da clínica, uma vez que põe a linguagem no campo do Real. Se o discurso é o que permite escrever o laço social à função Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. Chatelard 80 da fala e do campo da linguagem, nele regulam-se as relações do sujeito ao gozo, sendo o laço social regido por essa mesma lógica. Os quatro discursos – do psicanalista, do mestre, da histérica e da universidade –, propostos na teoria dos quatro discursos por Jacques Lacan, obedecem a certos princípios. O ponto de partida se dá a partir da estrutura do psicanalista, avesso ao discurso vigente. Vale recordar que um discurso se esclarece a partir de outro, por regressão ou por progressão, tomando sempre por orientação o discurso do psicanalista: o discurso da universidade obtémse se girando um quarto de volta por progressão, e o discurso da histérica girandose um quarto de volta por regressão, em relação ao discurso do analista. Esse princípio estabelece que não há discurso isolado e que a legitimação de um é dada pela existência dos outros, retirando a Psicanálise de um lócus imaginariamente solitário. Isto nos conduz a outro princípio que estabelece que um discurso é aquilo que faz laço social determinado por uma prática, prática de um percurso psicanalítico quando se trata desse discurso, o do psicanalista. Com a elaboração, a construção dos matemas e da formalização dos discursos, Lacan pretendeu fazer com que o Discurso do Analista fosse capaz de transmitir um saber, um saber não-todo, sem confundi-lo com o Discurso do Universitário, este último fundado em um saber cumulativo e acadêmico no qual o sujeito como produto se resume em créditos e não como autor. O tripé de uma formação – análise pessoal, debate teórico, supervisão de casos clínicos – põe em causa o DA como laço social determinado pela prática da análise. Já o discurso da universidade seria o de sustentar a transmissão do saber na universidade. A universidade abre-se ao campo da saúde mental e a outros, como multidisciplinar, circulando entre os demais discursos nos laços sociais estabelecidos, oriundos de outros campos do saber. O Discurso da Histeria (DH) apresenta a divisão do sujeito desejante, possibilitando ao inconsciente o trabalho pela busca do saber, não um saber teórico, acadêmico, mas um saber inconsciente, aquele que Freud chamou de um saber não sabido. Na pluma de Lacan (1969/70): “... o histérico é o sujeito dividido, dito de outra maneira, é o inconsciente em exercício, que põe o amo ao pé do muro para produzir um saber”, ou seja, no inconsciente, trata-se de saber, e a histérica busca desejar saber. Porém trata-se de um saber sobre o gozo, que ela demanda ao mestre produzir, mas a produção de saber nesse discurso apresenta-se impotente por não se conectar ao objeto a – causa de desejo – colocado no lugar da verdade. O discurso da histérica coloca o inconsciente em exercício. Uma Psicanálise, por sua vez, só pode existir se o psicanalista responde de outro lugar, não esperado nem demandado pela histérica. A partir da emergência do discurso analítico, esse interroga o sujeito sobre o gozo que causa seu desejo, sustentado pela verdade do saber inconsciente, impossível de ser dita toda, para que possa produzir o que lhe é mais caro e singular, seu saber, S1. O surgimento do discurso do analista possibilitou que houvesse destacamento dos outros; no Seminário 16: De um Outro ao outro, esta teoria, como dizíamos, surge em um contexto histórico, sociopolítico, podendo ser formulada como aquilo de que se trata o laço social enquanto essencialmente fundado na linguagem: a lógica significante ordena tanto as relações humanas quanto estrutura o inconsciente. O inconsciente é um saber, isto se demonstra no liame o laço social. O inconsciente possibilita o surgimento do Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. 81 DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA sujeito dividido, sem unidade, afetado pelo inconsciente, é um sujeito do significante, uma resposta do Real. No discurso do analista, no lugar de agente, temos o objeto a dirigindo-se a um sujeito no lugar do Outro. No lugar de agente, o analista nesse lugar a só pode fazer semblante ao se oferecer para o sujeito como causa de seu desejo. É nesse lugar de dejeto, como efeito do significante, que o analista ocupa ao fazer operar o dispositivo analítico para que o S1 se destaque como marca do sujeito que é memória de gozo. Nessa mesma veia, Lacan ressaltará – no Seminário 20: Mais, ainda – que o discurso analítico visa mostrar que mudar de discurso significa mudar de razão por modificar a posição do sujeito e os seus modos de se articular ao gozo. Há de se situar o discurso do analista sendo o avesso ao discurso do mestre. Isto significa que esse novo laço social, o do analista, é regido por um gozo avesso à escravidão do outro, seja no sentido de governar, como no discurso do mestre, seja no sentido de educar, como no discurso da universidade. Nesse sentido, o discurso do analista é solidário ao discurso da histérica pela interrogação que ambos fazem aos discursos dominantes. Estes nada querem saber do inconsciente. O analista quer escutar a demanda manifestada no discurso histérico que faz surgir o sujeito do inconsciente com seus sintomas. Há, por estrutura, uma descontinuidade entre o lugar da verdade (situado o S2) e o lugar de produção (onde está situado o S1). Aqui aparece na estrutura o que Freud chamou de castração, redefinida por Lacan como uma função puramente lógica de um impossível da estrutura que esbarra no real, ou seja, se produz no trabalho analítico, o S1 desarticulado do S2 da cadeia significante, isto visa abolir as certezas de produções imaginárias sustentadas nos significantes do Outro e nos ideais identificatórios. Jacques Lacan produziu apenas uma vez o matem do discurso do capitalista, no dia 12 de maio de 1972, em Milão, em uma reunião de trabalho e escrita pela própria mão de Lacan. Faltam referências sobre este quinto discurso, ou ainda sobre esse discurso extimo –também podemos dizer que é um discurso que parece complementar os quatro outros já propostos por Lacan. Os quatro discursos constituem uma estrutura. Qual seria então o estatuto, o lugar desse quinto discurso? A ciência foraclui o sujeito, nela o sujeito é excluído; o discurso da ciência anula o vetor sujeito – S2. Seguindo Lacan, a ciência não considera o efeito do significante, esquece-se dele, o efeito do significante é a representação de um sujeito, o sujeito aí se faz presente (Lerès, 2003, p. 89). No Seminário De um Outro a outro, Lacan fala da homogeneização de saberes. Essa homogeneização significa uma unificação da ciência que “reduz todos saberes a um único mercado. Isto gera como consequência um mal-estar social. Diz Lacan “que, a partir desta homogeneização de saberes sobre o mercado, percebe-se enfim que o gozo se ordena e pode se estabelecer como procurado e perverso” (1968). O que mais diferencia o Discurso Capitalista nada mais é que a Verwerfung, a rejeição, “a rejeição de todos os campos do simbólico (...) da castração” – como comenta Lacan em O Saber do Psicanalista (1972). O discurso fracassa ao fazer laço social. Como nos sublinhara Freud, o que abre a possibilidade de saber é a castração, e estes sujeitos cortados de seu saber não passaram por ela. O discurso do mestre capitalista, como sublinha Guy Lerès, pode assim ser lido como o discurso do fracasso da castração. Lacan fala mesmo, lembra Lerès, de foraclusão da castração. E prossegue Lerès: a astúcia tópica e lógica do fetiche é generalizada pelo discurso capitalista. A Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. Chatelard 82 mercadoria fetiche, nomeada por Marx, conduz à compulsão do freguês que apenas se concebe nesse discurso, tendo, por pano de fundo, o desmentido (Lerès, 2003, p. 89). Se o que norteia a Psicanálise gira em torno da questão da castração, do traumático ante a diferença de um saber inconsciente, como pensar em um discurso avesso a este quanto a sua transmissão? Como passar de um discurso marcado pelo significante mestre em que se atribuía o valor de verdade, que consiste no discurso universitário a um discurso em que comparece a transmissão de um saber não todo? A questão da transmissão da Psicanálise se faz a partir da formação analítica e da análise pessoal, seja ela em uma Escola de Psicanálise, seja em uma instituição, seja em uma universidade – a transmissão na clínica, na instituição, seja ela qual for. Sendo insuportável a solidão determinada por seu ato, resta ao analista se associar a outros analistas: escola, instituição etc. Quando Lacan desenvolveu os quatro discursos que fazem laço social, sugeriu que aquele que ensina se encontra no lugar de agente do discurso da histérica que, interrogando o mestre, produz o saber. Ou seja, aquele que ensina não é o mestre, ou está no lugar do mestre (do saber) como pretende o universitário, mas está no lugar daquele que interroga, sabendo, no entanto, que esse lugar é do semblante. A questão está na transmissão de um saber não todo que o campo da Psicanálise oferece à universidade ou a qualquer outra instituição – transmissão de uma ética, a do desejo, a do bem-dizer. edição inglesa do Seminário 11 no qual escreve hystoire, condensando histoire e hystérie. A histerização comparece nos relatos, nas crônicas ex-sistentes e consistentes. Lacan forjou o termo historisterização para falar de uma análise, deixando este termo “à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa” (Lacan, 1976, p. 568). O sujeito em uma Psicanálise, em um relato no dispositivo do passe, seja de que forma for, expõe seu teatro histérico historizando sua verdade, cuja estrutura é de ficção. Ao redefinir o inconsciente como saber sobre lalíngua, Lacan sublinha que a verdade é amortecida pelo real. O que se espera verificar não é a verdade do que diz o sujeito e, sim, como Lacan (1977) pronunciou, em um neologismo, a varidade do sintoma, ou seja, não é a verdade mentirosa que se verifica, mas antes o real em todas as suas variedades que resiste à significação, à crônica tragicômica do falaser. Resta, assim, ao analista convocar o psicanalisante a falar o que lhe vem à cabeça, advertido que só se pode semidizer a verdade porque o gozo jamais se completa e porque o saber do Outro é meio de gozo. Toda esta durchabeitung, trabalho de elaboração, visa produzir uma nova articulação de gozo S1, no lugar da produção, ou seja, aquela que coloca a impossibilidade no lugar da impotência. Há uma possibilidade aí de passar do trabalho de transferência à transferência de trabalho. Referências Faleni, S. Répérages. (2000). In Link Révue des Forums du Champ Lacanien, Paris, n. 8, p. 26. Conclusão Para concluir, Historisterização é um termo forjado por Lacan (1976) no Prefácio à Lacan, J. (2001). Autres Écrits. Paris: Editions du Seuil. Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83. 83 DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA Lacan. J. Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. In Outros Escritos (1976). Paris: Editions du Seuil. Lacan. J. (1975). Seminário, livro 20: Mais, ainda. Paris: Editions du Seuil. Lerés, G. (2003). Lecture du Discours capitaliste selon Lacan. Un outil pour répondre au Malaise. In: Essaim, 3, Paris, p. 89. Recebido em 05.08.2016 Primeira decisão editorial em 27.09.2016 Aceito em 27.09.2016 Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83.