(En)Cena
Jan/Jun. 2016, Vol. 01, n. 1, 75 - 83.
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DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA À TRANSFERÊNCIA DE TRABALHO:
UMA TRANSMISSÃO
From worktransfer to the transfer of work: a transmission
Du travail de transfert au transfert de travail : une transmission
Del trabajo de la transferencia a la transferencia del trabajo: una transmisión
Chatelard, Daniela Scheinkman
Psicanalista. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura no
Departamento de Psicologia Clínica. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano.
ABSTRACT: The aim of this article is to reflect about the discourse and the social bond under the
perspective of the psychoanalytic theory. For so doing the ideas of jouissance, structure and
language will contribute to reflect on the topics. The psychoanalytic experience goes through a
discourse structure,i.e., the way through which the individual unconscious intertwines with the
social bond. In this perception, the discourse as a machine builds up to deal with the real out of
which emerges the subject upon whom psychoanalysis operates. Through the unfurling of the
theory of discourses, we will reach the issue of transmitting and teaching, through the path of
transfer of work.
KEYWORDS: Jouissance. Discourse. Language.
RÉSUMÉ : Il s’agit da s et a ti le de fl hi su le dis ou s et le lie so ial à la lu i e de la th o ie
psychanalytique. Ainsi, nous avons recours aux notions de jouissance, de structure e du langage afin
d’e a i e ette th ati ue. L’e p ie e ps ha al ti ue e voie à u e st u tu e de dis ou s,
’est-à-di e la faço do t l’i o s ie t ui est si gulie de ha ue sujet va à la e o t e du lien
so ial. Da s ette pe spe tive, le dis ou s o
e a hi e s’appa eille pou t aite le el d’où
émerge le sujet sur lequel opère la psychanalyse. À travers le développement de la théorie des
discours nous aboutirons à la question de la transmission et de l’e seig e e t pa le iais du
transfert de travail.
MOTS-CLÉS: Jouissance. Discours. Langage.
RESUMEN : En este artículo se trata de reflexionar sobre el discurso y el lazo social a partir de la
teoría psicoanalítica. Para ello, la noción de goce, de estructura y de lenguaje contribuirán para
reflexionar sobre esta temática. La experiencia psicoanalítica pasa por una estructura discursiva, o
sea, la manera por la cual el inconsciente singular de cada sujeto atraviesa el lazo social. En esta
concepción, el discurso como máquina se prepara para tratar lo real de donde surge el sujeto sobre
el cual opera el Psicoanálisis. A través del desarrollo de la teoría de los discursos, llegaremos a la
cuestión de la transmisión y de la enseñanza, por vía de la transferencia del trabajo.
PALABRAS CHAVE: Gozo. Discurso. Linguaje.
RESUMO: Este artigo reflete acerca do discurso e do laço social à luz da teoria psicanalítica. Para
isto, a noção de gozo, de estrutura e de linguagem contribuirá para refletir sobre essa temática. A
experiência psicanalítica passa por uma estrutura de discurso, ou seja, a maneira pela qual o
inconsciente singular de cada sujeito perpassa o laço social. Nessa concepção, o discurso como
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máquina aparelha-se para tratar o real de onde surge o sujeito sobre o qual opera a Psicanálise. Por
meio do desenrolar da teoria dos discursos, chegaremos à questão da transmissão e do ensino, pela
via da transferência de trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Gozo. Discurso. Linguagem.
Uma Escola de Psicanálise faz
referência ao ensino, à sua transmissão.
Podemos colocar aqui a questão do grupo e da
função dos coletivos humanos, ou seja, o que
gira em torno do mal-estar na civilização:
ênfase no grupo, aqui a questão fundamental e
central para Freud concerne à noção de gozo.
O que possibilitaria fazer laço social? Como o
fala-ser pode consentir na perda de gozo, que
é uma condição da civilização? Para Freud, o
laço social implica um sacrifício. O fala-ser é
efeito de linguagem sobre o vivente. A
Psicanálise não entra no debate se um sintoma
é somático ou psíquico. A Psicanálise intervém
a partir do momento em que é questão o
sujeito, mas isso não significa que essa
qualidade do fala-ser não tenha no sujeito
incidências sobre o organismo pulsional.
É a função do campo da fala e da
palavra que norteia, na Psicanálise, o discurso
íntimo do analisante ante o discurso do Outro.
Ao nodular a Psicanálise em intenção para a
extensão, retiramos a Psicanálise do lócus
restrito dos consultórios, oferecendo sua práxis
e sua ética do bem-dizer aos demais
dispositivos clínicos. As estruturas clínicas
declinam-se na Psicanálise conforme a
maneira como cada sujeito lida com a falta
inscrita na subjetividade, falta que condiciona
a modalidade de cada um ter de se haver com
o sexo, com o desejo, com a lei, com a angústia
e com a morte, enfim, os pilares de uma
Psicanálise.
A experiência psicanalítica passa por
uma estrutura de discurso, ou seja, a maneira
pela qual o inconsciente singular de cada
sujeito perpassa o laço social. Desde Freud, o
gozo está relacionado a um campo de energia,
ideia que converge com o que é colocado como
princípio de prazer, isto é, princípio de
regulação de gozo. “O gozo enquanto efeito de
pulsões e ligado ao inconsciente é também
efeito de linguagem" (Faleni, 2000, p. 26). O
sujeito é efeito de linguagem no real, real de
gozo – o gozo que concerne a cada sujeito,
ligando o mais íntimo da pulsão à linguagem.
O campo da linguagem é constituído pela falta
de um significante, de uma parte impossível a
significar, ligado ao enigma do desejo do
Outro.
Para interrogar o que é o gozo, é preciso
interrogar não o organismo, mas o sujeito, o
sujeito de uma combinatória: sujeito, Outro, a
imagem do sujeito e seus objetos. Aparelhos de
gozo, foi uma expressão forjada por J. Lacan,
mas primeiramente, no campo freudiano – a
noção de aparelho lembra a noção de aparelho
psíquico. Aparelho sob o modelo ótico na
Interpretação dos Sonhos ou biológico no
Mais Além do Princípio do Prazer – do
funcionamento psíquico, sugerindo, por um
lado, uma espécie de ordenamento, de um
dispositivo interno, ligando funções diferentes
a lugares específicos e, por outro lado, uma
atividade de um trabalho, mesmo de um
metabolismo indo da percepção à motricidade.
Em uma passagem do Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan,
a propósito do sujeito, sublinha que “O sujeito
é um aparelho. Este aparelho é algo de lacunar,
é na lacuna que o sujeito instaura a função de
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certo objeto, enquanto que objeto perdido. É o
estatuto do objeto a enquanto que presente na
pulsão” (Seminário 11, p. 168).
Para explicar o que está por detrás desta
expressão, aparelhos de gozo, vamos ao
contexto em que Lacan faz uso dessa
expressão; foi em seu Seminário, de 13 de
fevereiro de 1973, que Lacan utilizou essa
expressão da seguinte forma: “A realidade é
abordada com os aparelhos de gozo”
(Seminário 20, p. 52). E prossegue Lacan:
“Aqui está mais uma fórmula que eu lhes
proponho (...) que não há aparelho que não seja
de linguagem”. É dessa forma que, no ser
falante, o gozo é aparelhado. Indo um pouco
mais adiante, chegamos ao aforismo, o
Inconsciente é estruturado como uma
linguagem. A partir daí, podemos fazer uma
leitura em que a linguagem coloca-se como
aparelho de gozo. Assim, há aparelhos de
gozo; o gozo só tem um aparelho, que é o da
linguagem, ou seja, a realidade é abordada com
aparelhos de gozo. Não há uma anterioridade
de um em relação ao outro, mas a própria
noção de realidade em Freud já é complexa, ou
seja, temos a noção de percepção, de
representação, inscrição, traços, índices de
realidade, realidade psíquica, realidade
material. Com Lacan, podemos dizer que a
realidade é fundada por um discurso. “Cada
realidade se funda e se define de um discurso”
(Lacan, 1975, p. 33).
Linguagem e estrutura
Da estrutura de linguagem à estrutura
de discurso, Jacques Lacan avançou alguns
passos. Da estrutura de linguagem, podemos
definir clinicamente a estrutura enquanto que a
estrutura dos discursos toca em uma concepção
topológica da estrutura. Os discursos podem
ser definidos como modos de ordenar a
linguagem e entendidos como laços sociais
instauradores de aparelhos de gozo que, em sua
materialidade significante, determinam a
realidade.
A Psicanálise é um discurso sem
palavras. A Psicanálise não evoca um campo
epistêmico, mas do desejo. Somos sujeito do
discurso cada vez que o sujeito tem voz. O
sujeito da Psicanálise é o da ciência, aquele que
se interroga e vem desde Descartes. O que se
articula neste campo, é fala com palavra, uma
estrutura de linguagem mobilizada na palavra.
O sujeito da Psicanálise é este que vem por
causa de um sintoma, que faz de mim um
sujeito que sofre, que falha, no sentido de
falência. Quem sou eu na palavra? Sou uma
incógnita, um enigma. A busca de sentido, o
significante, representa o sujeito, tudo o que
digo me representa sem dizer o que eu sou.
O eu não é solidário ao sujeito. O
trabalho de transferência analítica é a
instituição maior do sujeito, é uma operação do
sujeito que consiste em desenvolver uma
incógnita. O sujeito na cadeia de associação
está coberto, é o corte, a escansão, o ato, é nas
falhas que este sujeito é des-coberto. O sujeito
neurótico sofre de indeterminação. Ele espera
que uma análise ponha fim à indeterminação.
Há no sujeito o temor em descobrir que possa
ser o desejo como resposta. O discurso
ultrapassa a palavra, pois esta é da ordem da
contingência, ao passo que o discurso
representa a estrutura significante. A teoria dos
quatro discursos vem como consequência da
formalização do objeto a. A partir daí,
instaura-se outra concepção da economia de
gozo, cuja reordenação coloca em movimento
uma entropia reguladora de perda, recuperação
e excesso de gozo. Há sempre um resto,
impossível a ser capturado pela lógica do
discurso. “O discurso é sem palavras”, ou seja,
um projeto de retomar a análise freudiana pelo
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avesso e uma virada em relação ao eixo central
de todo primeiro período do seu ensino: O
inconsciente é estruturado como uma
linguagem. Sem recusar esta tese, Lacan deu
ênfase à outra dimensão, o Real utilizando o
conceito de objeto a. O Real é aquilo que
escapa ao simbólico, que é da ordem do
demonstrável, do transmissível (sem palavras
ou que escapa a palavra, mas não por isso deixa
de fazer discurso, laço social).
O Avesso, uma expressão de Jacques
Lacan, para construir uma teoria da
discursividade como forma de abordar o laço
social. Com a teoria dos quatro discursos, uma
concepção de laço social singular e frutífera,
Lacan deu um passo adiante em seu ensino,
articulando o campo da linguagem ao campo
do gozo. “Não há discurso que não seja do
gozo, ao menos quando dele se espera o
trabalho da verdade” (1970). Foi o
reconhecimento dessa relação que fez com que
Lacan, ao propor a retomada da Psicanálise
pelo avesso, pudesse questionar o lugar da
Psicanálise na política. A originalidade dos
quatro discursos como modo de pensar o laço
social.
Nessa concepção, o discurso como
máquina aparelha-se para tratar o real de onde
surge o sujeito sobre o qual opera a Psicanálise.
No fim da década de 60 – década de grandes
manifestações e revoltas estudantis no Brasil e
em outras partes do mundo –, a França disso,
não escapou, abalando as ordens sociais –
principalmente em maio de 68, pois, nesse ano,
colocou-se em questão o sistema universitário
e os valores tradicionais da sociedade francesa.
Um ano e meio mais tarde, em 26 de novembro
de 1969, ainda sob o clima de contestação
generalizada, Lacan deu início ao Seminário
17: O Avesso da Psicanálise. Suas formulações
foram
certamente
marcadas
pelas
circunstâncias históricas que convulsionaram
não apenas o meio intelectual e político
francês, mas também o psicanalítico.
Seguindo a lógica dos quatro discursos,
Lacan visou a uma logificação a fim de pensar
o laço social. Em particular, o Discurso do
Psicanalista inaugura esse funcionamento. O
Discurso do Analista (DA) é o laço social
criado por uma análise. Uma cascata de
rupturas segregativas marcou desde o início a
história da Psicanálise. A história da
Psicanálise é uma história de cisões. O analista
só se autoriza de si mesmo, quer dizer que não
se autoriza no Outro, não se autoriza no saber
do Outro porque o Outro falta. Isto é o que se
põe à prova na cura. O analista ex-siste ao saber
do Outro e ele disso sabe. É o que o DA escreve
quando, no lugar do agente, põe o objeto a, que
o analista encarna em seu saber-fazer. O saber
do psicanalista é a sua prática assim como seu
ato – no seu ato não há pensamento.
O inconsciente não conclui. Dizer só
faz prolongar o impasse. O sujeito vive em
círculos. A cadeia vive como um disco. A
aderência à cadeia só é percebida pelo tipo de
gozo, suposto nesse mesmo círculo, se não se
pode largar esse círculo é porque isto o
satisfaz. A destituição significa que o sujeito
toma certa percepção dessa satisfação que o
liga à história, e isso é uma perda. A destituição
subjetiva supõe um atravessamento do não
quero saber sobre que sou como objeto de
gozo, e esse atravessamento que implica uma
perda traz também seu benefício epistêmico:
eu sei agora de alguma coisa sobre isso. O
sujeito aí é destituído – efeito de ser.
Identificação ao sintoma. O sujeito se
reconhece nas modalidades de satisfação. A
ideia de Jacques Lacan que a análise faz
progredir – sou analisando no meu próprio
seminário – tem a ética do analisando, alguma
coisa cabe a ele que faz que alguns concluam e
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DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA
outros não. A destituição subjetiva implica
uma mudança de posição do sujeito.
Graças a Lacan, o discurso analítico
começou a existir indo além do que Lacan dizia
de Freud, sobre seus amores com as verdades.
Por sua vez, Lacan falava da Ética do BemDizer, ética correlata ao sujeito. Não é uma
ética que dite condutas, modos de agir segundo
o universal. Trata-se de uma ética relativa à
implicação do sujeito, pelo dizer, no gozo que
seu sintoma denuncia – ética de bem-dizer o
sintoma. A Psicanálise não está apenas
interessada na suspensão do sintoma, pois, lá
onde há sintoma, está o sujeito. Dito de outro
modo, a psicanálise aborda o sintoma como
uma manifestação subjetiva.
Pode parecer um paradoxo, mas a
interpretação denuncia uma deficiência de
sentido justamente por visar a um mais de
sentido. Além disso, deste mais de sentido, é
buscado aí uma satisfação. Daí o equívoco que
faz Lacan ao escrever jouissance (gozo) em
duas palavras: jouis-sens, como ele o faz em
Televisão. Se demandássemos da interpretação
cada vez mais e mais ainda de sentido,
esbarraríamos no impossível, ou seja, uma
interpretação que faça cessar a recorrência do
"o que isto quer dizer?" Gostaríamos de
tamponar a questão do sentido por um
significante último em posição de saber que
faria um efeito de basta. É pela lógica que o
discurso analítico toca o real. O dizer fica
esquecido por trás do dito, e Lacan (2001)
acrescenta, em Aturdito, que é na análise que o
inconsciente se ordena em discurso –
estruturado como uma linguagem. A estrutura
é o real que se faz luz na linguagem. A
linguagem é o fundamento das trocas entre os
indivíduos. Os discursos podem ser definidos
como modos para ordenar a linguagem, ou
seja, uma espécie de máquina que atribui
lugares cujas bases partem da exterioridade do
S1 e, como laços sociais instauradores de
aparelhos de gozo, em sua materialidade
significante, determinam a realidade, o que
podemos concluir que toda realidade é de
discurso.
Dito de outro modo, ainda em Aturdito,
Lacan (2001) fala da antinomia do sentido e da
significação. Sentido sempre há, mas a
linguagem é inapta a apreendê-lo, ou seja, o
efeito de sentido é evanescente. O que decide
o sentido? O encontro de gozo, contingência.
A contingência programa a fuga de sentido
indedutível e, também, inapreensível, ou seja,
faz do sentido um real: um objeto perdido na
linguagem. Em Aturdito (2001), Lacan faz
referência à interpretação como aquela que faz
emergir o sentido, surgir, o faz aparecer...,
várias expressões ele emprega, o que não
significa que ela diga o sentido.
A interpretação incide sobre a causa
que ela revela. Ainda em Aturdito, Lacan
(2001) toca na interpretação dita apofântica, ou
seja, sob a forma da interpretação oracular, do
equívoco, que, como os oráculos antigos, não
revela nem esconde, não diz nada, mas ela
mesma faz suspender um efeito de sentido, ou
seja, há um efeito de enigma. Percebemos com
Lacan a conexão da fala e do saber com o gozo,
ou seja, lá onde isso fala, isso goza. A palavra
não é incompatível com o gozo. A você nada
diz, podemos falar da presença do analista sob
a forma de você estar aí.
Podemos considerar que a definição
dos discursos como liames sociais que
constituem o campo de gozo instaura uma
revirada moebiana sobre o campo da
linguagem. Essa torção moebiana do campo do
gozo, a partir do campo da linguagem, se faz
sentir no âmbito da clínica, uma vez que põe a
linguagem no campo do Real. Se o discurso é
o que permite escrever o laço social à função
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da fala e do campo da linguagem, nele
regulam-se as relações do sujeito ao gozo,
sendo o laço social regido por essa mesma
lógica.
Os quatro discursos – do psicanalista,
do mestre, da histérica e da universidade –,
propostos na teoria dos quatro discursos por
Jacques Lacan, obedecem a certos princípios.
O ponto de partida se dá a partir da estrutura do
psicanalista, avesso ao discurso vigente. Vale
recordar que um discurso se esclarece a partir
de outro, por regressão ou por progressão,
tomando sempre por orientação o discurso do
psicanalista: o discurso da universidade obtémse se girando um quarto de volta por
progressão, e o discurso da histérica girandose um quarto de volta por regressão, em relação
ao discurso do analista. Esse princípio
estabelece que não há discurso isolado e que a
legitimação de um é dada pela existência dos
outros, retirando a Psicanálise de um lócus
imaginariamente solitário. Isto nos conduz a
outro princípio que estabelece que um discurso
é aquilo que faz laço social determinado por
uma prática, prática de um percurso
psicanalítico quando se trata desse discurso, o
do psicanalista. Com a elaboração, a
construção dos matemas e da formalização dos
discursos, Lacan pretendeu fazer com que o
Discurso do Analista fosse capaz de transmitir
um saber, um saber não-todo, sem confundi-lo
com o Discurso do Universitário, este último
fundado em um saber cumulativo e acadêmico
no qual o sujeito como produto se resume em
créditos e não como autor.
O tripé de uma formação – análise
pessoal, debate teórico, supervisão de casos
clínicos – põe em causa o DA como laço social
determinado pela prática da análise. Já o
discurso da universidade seria o de sustentar a
transmissão do saber na universidade. A
universidade abre-se ao campo da saúde
mental e a outros, como multidisciplinar,
circulando entre os demais discursos nos laços
sociais estabelecidos, oriundos de outros
campos do saber. O Discurso da Histeria (DH)
apresenta a divisão do sujeito desejante,
possibilitando ao inconsciente o trabalho pela
busca do saber, não um saber teórico,
acadêmico, mas um saber inconsciente, aquele
que Freud chamou de um saber não sabido.
Na pluma de Lacan (1969/70): “... o
histérico é o sujeito dividido, dito de outra
maneira, é o inconsciente em exercício, que
põe o amo ao pé do muro para produzir um
saber”, ou seja, no inconsciente, trata-se de
saber, e a histérica busca desejar saber. Porém
trata-se de um saber sobre o gozo, que ela
demanda ao mestre produzir, mas a produção
de saber nesse discurso apresenta-se impotente
por não se conectar ao objeto a – causa de
desejo – colocado no lugar da verdade. O
discurso da histérica coloca o inconsciente em
exercício. Uma Psicanálise, por sua vez, só
pode existir se o psicanalista responde de outro
lugar, não esperado nem demandado pela
histérica. A partir da emergência do discurso
analítico, esse interroga o sujeito sobre o gozo
que causa seu desejo, sustentado pela verdade
do saber inconsciente, impossível de ser dita
toda, para que possa produzir o que lhe é mais
caro e singular, seu saber, S1.
O surgimento do discurso do analista
possibilitou que houvesse destacamento dos
outros; no Seminário 16: De um Outro ao
outro, esta teoria, como dizíamos, surge em um
contexto histórico, sociopolítico, podendo ser
formulada como aquilo de que se trata o laço
social enquanto essencialmente fundado na
linguagem: a lógica significante ordena tanto
as relações humanas quanto estrutura o
inconsciente. O inconsciente é um saber, isto
se demonstra no liame o laço social. O
inconsciente possibilita o surgimento do
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DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA
sujeito dividido, sem unidade, afetado pelo
inconsciente, é um sujeito do significante, uma
resposta do Real. No discurso do analista, no
lugar de agente, temos o objeto a dirigindo-se
a um sujeito no lugar do Outro. No lugar de
agente, o analista nesse lugar a só pode fazer
semblante ao se oferecer para o sujeito como
causa de seu desejo. É nesse lugar de dejeto,
como efeito do significante, que o analista
ocupa ao fazer operar o dispositivo analítico
para que o S1 se destaque como marca do
sujeito que é memória de gozo. Nessa mesma
veia, Lacan ressaltará – no Seminário 20: Mais,
ainda – que o discurso analítico visa mostrar
que mudar de discurso significa mudar de
razão por modificar a posição do sujeito e os
seus modos de se articular ao gozo.
Há de se situar o discurso do analista
sendo o avesso ao discurso do mestre. Isto
significa que esse novo laço social, o do
analista, é regido por um gozo avesso à
escravidão do outro, seja no sentido de
governar, como no discurso do mestre, seja no
sentido de educar, como no discurso da
universidade. Nesse sentido, o discurso do
analista é solidário ao discurso da histérica pela
interrogação que ambos fazem aos discursos
dominantes. Estes nada querem saber do
inconsciente. O analista quer escutar a
demanda manifestada no discurso histérico que
faz surgir o sujeito do inconsciente com seus
sintomas.
Há,
por
estrutura,
uma
descontinuidade entre o lugar da verdade
(situado o S2) e o lugar de produção (onde está
situado o S1). Aqui aparece na estrutura o que
Freud chamou de castração, redefinida por
Lacan como uma função puramente lógica de
um impossível da estrutura que esbarra no real,
ou seja, se produz no trabalho analítico, o S1
desarticulado do S2 da cadeia significante, isto
visa abolir as certezas de produções
imaginárias sustentadas nos significantes do
Outro e nos ideais identificatórios.
Jacques Lacan produziu apenas uma
vez o matem do discurso do capitalista, no dia
12 de maio de 1972, em Milão, em uma
reunião de trabalho e escrita pela própria mão
de Lacan. Faltam referências sobre este quinto
discurso, ou ainda sobre esse discurso extimo
–também podemos dizer que é um discurso que
parece complementar os quatro outros já
propostos por Lacan. Os quatro discursos
constituem uma estrutura. Qual seria então o
estatuto, o lugar desse quinto discurso? A
ciência foraclui o sujeito, nela o sujeito é
excluído; o discurso da ciência anula o vetor
sujeito – S2. Seguindo Lacan, a ciência não
considera o efeito do significante, esquece-se
dele, o efeito do significante é a representação
de um sujeito, o sujeito aí se faz presente
(Lerès, 2003, p. 89).
No Seminário De um Outro a outro,
Lacan fala da homogeneização de saberes.
Essa
homogeneização
significa
uma
unificação da ciência que “reduz todos saberes
a um único mercado. Isto gera como
consequência um mal-estar social. Diz Lacan
“que, a partir desta homogeneização de saberes
sobre o mercado, percebe-se enfim que o gozo
se ordena e pode se estabelecer como
procurado e perverso” (1968). O que mais
diferencia o Discurso Capitalista nada mais é
que a Verwerfung, a rejeição, “a rejeição de
todos os campos do simbólico (...) da
castração” – como comenta Lacan em O Saber
do Psicanalista (1972). O discurso fracassa ao
fazer laço social. Como nos sublinhara Freud,
o que abre a possibilidade de saber é a
castração, e estes sujeitos cortados de seu saber
não passaram por ela. O discurso do mestre
capitalista, como sublinha Guy Lerès, pode
assim ser lido como o discurso do fracasso da
castração. Lacan fala mesmo, lembra Lerès, de
foraclusão da castração. E prossegue Lerès: a
astúcia tópica e lógica do fetiche é
generalizada pelo discurso capitalista. A
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mercadoria fetiche, nomeada por Marx,
conduz à compulsão do freguês que apenas se
concebe nesse discurso, tendo, por pano de
fundo, o desmentido (Lerès, 2003, p. 89).
Se o que norteia a Psicanálise gira em
torno da questão da castração, do traumático
ante a diferença de um saber inconsciente,
como pensar em um discurso avesso a este
quanto a sua transmissão? Como passar de um
discurso marcado pelo significante mestre em
que se atribuía o valor de verdade, que consiste
no discurso universitário a um discurso em que
comparece a transmissão de um saber não
todo? A questão da transmissão da Psicanálise
se faz a partir da formação analítica e da
análise pessoal, seja ela em uma Escola de
Psicanálise, seja em uma instituição, seja em
uma universidade – a transmissão na clínica,
na instituição, seja ela qual for.
Sendo
insuportável
a
solidão
determinada por seu ato, resta ao analista se
associar a outros analistas: escola, instituição
etc. Quando Lacan desenvolveu os quatro
discursos que fazem laço social, sugeriu que
aquele que ensina se encontra no lugar de
agente do discurso da histérica que,
interrogando o mestre, produz o saber. Ou seja,
aquele que ensina não é o mestre, ou está no
lugar do mestre (do saber) como pretende o
universitário, mas está no lugar daquele que
interroga, sabendo, no entanto, que esse lugar
é do semblante. A questão está na transmissão
de um saber não todo que o campo da
Psicanálise oferece à universidade ou a
qualquer outra instituição – transmissão de
uma ética, a do desejo, a do bem-dizer.
edição inglesa do Seminário 11 no qual
escreve hystoire, condensando histoire e
hystérie. A histerização comparece nos relatos,
nas crônicas ex-sistentes e consistentes. Lacan
forjou o termo historisterização para falar de
uma análise, deixando este termo “à disposição
daqueles que se arriscam a testemunhar da
melhor maneira possível sobre a verdade
mentirosa” (Lacan, 1976, p. 568). O sujeito em
uma Psicanálise, em um relato no dispositivo
do passe, seja de que forma for, expõe seu
teatro histérico historizando sua verdade, cuja
estrutura é de ficção. Ao redefinir o
inconsciente como saber sobre lalíngua, Lacan
sublinha que a verdade é amortecida pelo real.
O que se espera verificar não é a verdade do
que diz o sujeito e, sim, como Lacan (1977)
pronunciou, em um neologismo, a varidade do
sintoma, ou seja, não é a verdade mentirosa
que se verifica, mas antes o real em todas as
suas variedades que resiste à significação, à
crônica tragicômica do falaser. Resta, assim,
ao analista convocar o psicanalisante a falar o
que lhe vem à cabeça, advertido que só se pode
semidizer a verdade porque o gozo jamais se
completa e porque o saber do Outro é meio de
gozo. Toda esta durchabeitung, trabalho de
elaboração, visa produzir uma nova articulação
de gozo S1, no lugar da produção, ou seja,
aquela que coloca a impossibilidade no lugar
da impotência. Há uma possibilidade aí de
passar do trabalho de transferência à
transferência de trabalho.
Referências
Faleni, S. Répérages. (2000). In Link Révue des
Forums du Champ Lacanien, Paris, n. 8,
p. 26.
Conclusão
Para concluir, Historisterização é um
termo forjado por Lacan (1976) no Prefácio à
Lacan, J. (2001). Autres Écrits. Paris: Editions
du Seuil.
Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83.
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DO TRABALHO DE TRANSFERÊNCIA
Lacan. J. Prefácio à Edição Inglesa do
Seminário 11: Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. In Outros
Escritos (1976). Paris: Editions du Seuil.
Lacan. J. (1975). Seminário, livro 20: Mais,
ainda. Paris: Editions du Seuil.
Lerés, G. (2003). Lecture du Discours
capitaliste selon Lacan. Un outil pour
répondre au Malaise. In: Essaim, 3,
Paris, p. 89.
Recebido em 05.08.2016
Primeira decisão editorial em 27.09.2016
Aceito em 27.09.2016
Trabalho (En)Cena, Vol. 01, n. 1, Janeiro a Junho de 2016, 75 – 83.