NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO
BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL:
SOCIEDADE E MUNDO FUNERÁRIO
NOS BARROS DE BEJA
Margarida FIGUEIREDO
(Arqueóloga e Antropologa)
Rui MATALOTO
(Município de Redondo)
RESUMO
Escavadas em contexto de emergência e de forma parcial durante a minimização
de impactes resultantes dos blocos de rega do Alqueva, as cinco necrópoles que aqui
apresentamos – Poço da Gontinha 1, Pardieiro (Ferreira do Alentejo, Beja), Poço Novo
1, Fareleira 2 e Fareleira 3 (Pedrogão, Vidigueira) – vêm integrar e enriquecer o panorama do mundo funerário da Idade do Ferro no Baixo-Alentejo. Enquadradas numa
espacialidade muito específica, de confluência entre duas grandes bacias hidrográficas
– Guadiana e Sado – as suas arquitecturas, ritos e espólios apontam para um universo
de semelhanças formais, de confluência de diferentes influxos culturais, com dinâmicas
e soluções várias.
ABSTRACT
Partially excavated in a context of rescue archaeology related to the Edia’s water
supply infrastructures, the five necropolis presented here – Poço da Gontinha 1, Pardieiro (Ferreira do Alentejo, Beja), Poço Novo 1, Fareleira 2 e Fareleira 3 (Pedrogão,
Vidigueira) – integrate and enrich the Iron Age funerary landscape in the Baixo Alentejo. Framed in a very particular spatiality of conflux between two different watersheds
– Guadiana and Sado – they present a similar universe in terms of architecture, rites
and assets, despite different fluxes, dinamics and solutions.
SIDEREUM ANA III
El Río Guadiana y Tartessos
JAVIER JIMÉNEZ ÁVILA (ed.)
Publicaciones del Consorcio de la Ciudad Monumental de Mérida
Serie Compacta (Compendia et Acta) nº 1. Mérida 2017
“As particularidades, como todos sabem,
são favoráveis à virtude e à felicidade;
as generalidades é que são,
intelectualmente, males necessários.”
Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo.
1. UMA PLANÍCIE ENTRE DOIS RIOS:
DAS PLANURAS DE FERREIRA À CURVA DO GUADIANA
O Baixo Alentejo é tido, em grande medida,
como a paisagem típica do todo alentejano, um
grande plaino, pouco arborizado, levemente ondulado, dominado por paisagens sem fim, de cultivos
de sequeiro. Todavia, a realidade alentejana, e em
particular a baixo alentejana, é bem mais complexa
e diversa em termos fisiográficos do que o Alentejo onde “a sombra é a que vem do céu”. Como se verá
no enquadramento histórico-arqueológico das realidades aqui em estudo, o Baixo Alentejo é uma
entidade político-administrativa bastante diversa em termos geográficos, dominada, é certo, por
uma grande planura de férteis e profundos solos
dos Barros de Beja, que se desenvolvem da serra
do Mendro para sul desta cidade, ou da Serra de
Grândola até à margem esquerda do Guadiana,
principalmente na região de Moura e Serpa, onde
esbarram nos contrafortes da Serra Morena e da
Serra de Ficalho/Aracena. Este facto não obsta a
que, por vezes, por entre férteis planuras, de relevo ondulante, pontualmente pronunciado, se ergam áreas mais enrugadas, de xistos, ou mesmo de
granitos, como fica bem patente nas margens do
Guadiana. Este é, então, um território de paisagens
abertas, e de fácil trânsito, principalmente EsteOeste, interligando as bacias do Sado e do Guadiana, funcionando os fundos de estuário, em Alcácer,
e em Mértola, respectivamente, como verdadeiros
canais de intercâmbios extra-regional.
Importa neste trabalho, principalmente, a área
setentrional deste Baixo Alentejo, acima de Beja,
dominada justamente pela paisagem aberta e ondulada de solos férteis, com as planuras do Sado e a
serra do Mendro como pano de fundo, para Norte
(Fig. 1).
A
B
Fig. 1.— O Baixo-Alentejo e a localização dos dois núcleos de necrópoles em
análise: Ferreira do Alentejo (A) e Pedrogão (B).
2. ADMIRÁVEL MUNDO NOVO: A PRIMEIRA
METADE DO Iº MILÉNIO a.C. NA PLANÍCIE BAIXO ALENTEJANA
O Baixo Alentejo constitui, de há muito, uma
referência essencial no estudo do Iº milénio a.C. do
Sul do território actualmente português, contudo,
esta é uma vasta região, que conhecemos de modo
bastante desigual.
Como deixámos entender no ponto anterior, esta
imensa região pode subdividir-se em várias sub-regiões, com percursos de investigação bastante diferenciados: os Barros de Beja, a faixa piritosa, a serra
e a sua margem imediata, a faixa litoral e a margem
esquerda do Guadiana. Todas estas sub-regiões
356
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
apresentam os seus sítios emblemáticos, em torno
dos quais se foi estruturando o conhecimento sobre
este Iº milénio a.C. no Sul de Portugal: o Outeiro
do Circo e a estela de Ervidel II nos Barros de Beja;
Corvo e Neves II na faixa piritosa; Fernão Vaz e as
necrópoles no planalto de Ourique; Alcácer do Sal
e a necrópole do Gaio, na faixa litoral; e o Castro
dos Ratinhos e a Azougada para a margem esquerda do Guadiana. Todavia, ainda que alguns destes
sítios tenham conhecido trabalhos prolongados, o
certo é que apenas recentemente, digamos na última
década, o conhecimento sobre os mesmos começou
a tomar bases mais sólidas, com os devidos estudo
monográficos, como aconteceu com a Azougada1 ou
o exemplar caso do Castro dos Ratinhos.2 Noutros
casos, como os povoados e necrópoles do planalto
de Ourique/Palheiros ou do couto mineiro de Castro Verde, apesar dos diversos estudos de revisão
realizados,3 continuam a faltar trabalhos de fundo
sobre os resultados das escavações desenvolvidas
por C. Beirão e Manuel e Maria Maia.
A implementação da rede de rega do projecto
de Alqueva transformou-se numa extraordinária
oportunidade de alterar profundamente o conhecimento sobre esta região, o que tem sido confirmado
a toda a escala, dando o mote para o título deste capítulo, traduzindo-se, então, num “Admirável Mundo
Novo”, em particular na realidade funerária, como
ficou patente no programa deste Sidereum Ana III e,
anteriormente, no 4º Encontro de Arqueologia do
Alqueva, em 2010. A par destes, novos trabalhos
sobre velhos sítios têm-se traduzido, igualmente,
na consolidação do conhecimento sobre as dinâmicas proto-históricas desta ampla região como se
pode mencionar para o caso do Outeiro do Circo,
com projecto de estudo desenvolvido nos últimos
anos,4 ou o Cabeço Redondo.5
Os conjuntos de necrópoles que pretendemos
tratar neste trabalho enquadram-se nesta ampla
região, afigurando-se-nos essencial compreender a
sua formação no quadro das dinâmicas populacionais e culturais aqui desenvolvidas durante a primeira metade do Iº milénio a.C.
Se, por um lado, as necrópoles de Ferreira do
Alentejo se implantam claramente nas dinâmicas
dos Barros de Beja, numa região de evidente ligação
com o mundo litoral, dada a proximidade com o
tramo navegável do Sado, pelo menos até época
medieval, por outro, as necrópoles de Pedrógão,
adjacentes ao Guadiana, não serão alheias às dinâmicas da margem esquerda, mas também ao próprio vale do rio.
No final da Idade do Bronze parece desenrolarse na região um processo de abandono generalizado das grandes ocupações de cumeada, como o que
tem vindo a ser documentado para o Alentejo Central.6 Efectivamente, a região em análise encontrase separada daquele território pela serra de Portel/
Mendro, onde este último autor identificou um sistema de povoamento do final da Idade do Bronze
composto por um conjunto diverso de grandes ocupações de cumeada (São Bartolomeu do Outeiro,
Serra Murada), e de altura (Lentisca, Outeirão e
Mendro) que parece sucumbir por completo na
transição para a Idade do Ferro. Este processo está
particularmente bem documentado no castro dos
Ratinhos, situado na margem esquerda sobranceiro
ao Guadiana, uns escassos 20 km a Norte das necrópoles de Pedrógão, que trataremos em seguida.
Aqui, a construção de um templo de planta nova
e arquitectura de cânones mediterrâneos, parece
ser o último momento de ocupação do local, nos
inícios da Idade do Ferro,7 traduzindo, provavelmente, um último ímpeto de agregação e legitimação das elites existentes que claramente falhou, gerando-se a desagregação e abandono do povoado.
Mais a Sul, em pleno Barros de Beja, ergue-se
sobre a planície a impressionante ocupação do
Outeiro do Circo, amplo povoado provavelmente
murado e rodeado de fosso, como ficou patente nos
últimos trabalhos.8 Numa envolvente alargada parece estruturar-se um sistema de povoamento, principalmente de planície, que tem vindo a ser intervencionado no âmbito da rede de rega de Alqueva,
com sítios como Arroteia 6,9 Pedreira de Trigaches
2, Horta do Panéque, Horta do Jacinto, Vinha das
Caliças 510 ou Monte do Bolor,11 principalmente caracterizados por estruturas negativas de tipo “silo”,
o que demonstra a existência de um território rural
activo e em produção durante o final da Idade do
Bronze, nesta região.
Uma vez mais, esta rede de povoamento parece
desmantelar-se, com o abandono do sítio de altura
6
1
Antunes 2009.
2
Berrocal e Silva 2010.
3
Arruda 2001; Jiménez Ávila 2001.
4
Serra e Porfírio 2012.
5
Soares 2012; Soares e Soares neste volume.
Mataloto 2012.
Berrocal e Silva 2010.
8
Serra e Porfírio 2012.
9
Ibidem.
10
Antunes 2012.
11
Borges et al. 2012.
7
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
mesma
e a remodelação da rede de ocupações rurais, o que
não obsta que, em alguns casos, como no Monte do
Bolor,12 se mantenha a já longa tradição de ocupação numa área sensivelmente semelhante.
Cremos que será de realçar a posição oposta representada pela ocupação de Alcácer do Sal onde,
apesar da escassez gritante de dados num sítio tão
amplamente escavado, foi possível documentar
uma aparente continuidade, ou sobreposição, de
uma ocupação sidérica à anterior do final da Idade do Bronze, revelando dinâmicas ocupacionais
distintas das registadas mais para o interior. Efectivamente, como se verá, Alcácer do Sal, situado
cerca de 50 km para noroeste da área de Ferreira,
aqui em estudo, representa uma realidade bastante
diferente da documentada nesta área interior, certamente sustentada na clara posição de interligação
entre estas duas regiões.
No campo funerário não nos iremos estender,
em particular porque os dados concretos são escassos, e a temática sobre o espectro cronológico do
Bronze do Sudoeste é extensa e pouco documentada.13 Será de mencionar, todavia, a escassez de necrópoles claramente do final da Idade do Bronze,
ainda que se possa supor a utilização de estruturas
tumulares de planta circular, do tipo Atalaia, até
aos inícios do Iº milénio a.C.,14 no Baixo Alentejo
meridional, como os parcos dados da necrópole de
Neves IV deixam entrever.15 Os diversos conjuntos
de hipogeus que se têm vindo a registar nos últimos
anos em todo o Baixo Alentejo afectado pelo plano
de rega de Alqueva, parecem ser sempre anteriores
ao final da Idade do Bronze, enquadrando-se no
Bronze do Sudoeste.16 Igualmente nos últimos anos
tem vindo a documentar-se um amplo número de
inumações em fossa, usualmente sem espólio, associadas a ocupações de fundo rural do final da Idade
do Bronze.17 Estas definem com clareza a utilização do rito de inumação, num momento onde, a Sul
do Tejo, eram já conhecidas as primeiras incinerações em momentos anteriores à colonização fenícia, como acontece na região de Alpiarça.18 Curiosamente, em território alentejano existe um outro
caso, pouco claro, é certo, onde o rito de cremação
é proposto: a reutilização do Monumento da Nora
12
Ibidem.
Mataloto et al. 2013.
14
Schubart 1975.
15
Maia e Maia 1996.
16
Mataloto et al. 2013.
17
Antunes et al. 2012.
18
Vilaça et al. 1999.
13
357
Velha.19 Todavia, há que realçar dois aspectos: nem
a cremação é clara, não se tendo, quanto se sabe,
recolhido ou mencionado a presença de ossos queimados, nem a cronologia do monumento é claramente anterior aos primeiros contactos fenícios na
região de Huelva, que poderiam ter introduzido o
dito ritual na região.20 Assim, o que temos para o final da Idade do Bronze é um panorama claramente
dominado pelo rito da inumação no interior Sul do
território actualmente português.
A transição para a Idade do Ferro era, como se
afirmou acima, basicamente desconhecida até há
poucos anos nesta área setentrional e média do Baixo Alentejo. A Azougada, dentro da sua singularidade, era tomada como o grande pólo em torno do
qual se orientavam os discursos, sustentado sempre pela presença de elementos isolados, prova da
“Orientalização” destas comunidades, como parecia ser o caso do Tesouro do Álamo, o thymiaterion
de Safara ou o touro de Mourão, eventualmente
pertencente a outro destes queimadores. Por outro
lado, o paradigma sobre a Idade do Ferro do Sul do
território actualmente português foi largamente influenciado pelas leituras realizadas a partir de uma
área de características peculiares, onde se reconheceu um fenómeno muito particular, a presença de
escrita, grafada sobre estelas de pedra. Os trabalhos arqueológicos no planalto de Palheiros, desenvolvidos por C. Beirão, seguiram, em primeiro
lugar, a presença de escrita associada a necrópoles
tumulares, que lhe conferiam marcada visibilidade
e individualidade.21
A intensidade dos trabalhos nesta micro-região,
com a intervenção de mais de uma dezena de necrópoles, acompanhada pela identificação de raros
pequenos povoados, de cariz iminentemente rural,
estabeleceu um verdadeiro modelo civilizacional
onde os escassos elementos de origem exógena foram sempre realçados num contexto marcado pela
presença da escrita como evidência de “orientalismo” e pujança.
Contudo, uma análise menos parcial
principescas
confrontava-se com o marcado regionalismo e atavismo dos conjuntos materiais, bastante distantes
das dinâmicas desenvolvidas nos territórios litorais.
Por outro lado, o cariz rural do povoamento era óbvio, por mais “principesco” que se entendessem determinadas estruturas habitacionais, e os putativos
grandes centros urbanos, vertebradores do povoamento, tardam em surgir, até aos dias de hoje.
19
Viana 1959.
Mataloto 2010-11.
21
Beirão 1986.
20
358
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Na justa medida em que esta região meridional
do Baixo Alentejo foi, no último quarto do século
XX, base para o paradigma da Idade do Ferro do
Sul do território actualmente português, em particular na sua vertente funerária, importa, no quadro
deste trabalho, reter-nos de modo mais extenso.
As especificidades do território de Ourique/Palheiros se, por um lado, ajudaram a sustentar um
modelo dual da Idade do Ferro do Sul do território
actualmente português, por outro, foram sempre
entendidas como uma realidade muito particular,
extensível, quanto muito, à geografia abrangida
pela área nuclear da epigrafia do Sudoeste.
A realidade funerária deste território, baseada
na construção de impressionantes conjuntos tumulares, tem conduzido a elaboração de leituras
diacrónicas evolutivas, que permitem avançar, segundo alguns autores, com espectros cronológicos
mais amplos22 ou mais curtos,23 enquadrando grande parte do que deve ter sido a diacronia sidérica,
pelo menos da primeira metade do I milénio a.C.
Coincidimos com estes últimos autores quando verificamos o pouco que se sabe de cada um dos monumentos, raras vezes escavados e apresentados de
forma extensa. Aliás, o modelo evolutivo daqueles
autores baseia-se, em larga medida, na necrópole
de Fernão Vaz, nunca escavada em extensão, permanecendo inédito parte dos espólios recolhidos
em muitos destes locais.
A evolução proposta por V. Correia é, em geral, aceite, ainda que com contornos cronológicos
e sociais algo distintos.24 As necrópoles tumulares
desenvolver-se-iam em quatro fases distintas, sendo o momento mais antigo caracterizado pela presença de monumentos de planta circular, erguidos
a partir do séc. VIII a.C. Nas fases subsequentes,
II e III, desenroladas entre os finais do séc. VIII
a.C. até inícios do séc. V a.C., edificar-se-iam espaços sepulcrais cobertos por estruturas tumulares de
planta rectangular, que vão perdendo monumentalidade ao longo do tempo, mas que conseguem
agregar, em alguns casos, conjuntos com várias
dezenas de túmulos. Nos meados do milénio surgiriam os designados monumentos em π, que seriam
logo depois acompanhados pelas deposições de
cremações em urna.25 Como já se mencionou, ainda que este esquema evolutivo seja genericamente
aceite, as propostas cronológicas foram amplamen22
Beirão 1986; Correia 1993.
Arruda 2001; Jiménez Ávila 2001.
24
Arruda 2001.
25
Correia 1993.
23
te refutadas, em particular as que se prendem com
o início do fenómeno, por serem demasiado recuadas, propondo-se um enquadramento essencialmente dentro dos sécs. VI e V a.C.26
Nos diversos monumentos, os túmulos sepulcrais vão-se justapondo a partir de um central,
usualmente de maiores dimensões. Em contadas
situações os monumentos sepulcrais dispunham
de um pequeno recinto ritual adossado, de planta
rectangular, entendido como temenos, como acontece no núcleo A da necrópole da Chada e na Fonte
Santa.27 Os enterramentos localizavam-se usualmente na área central de cada túmulo, constando
principalmente de inumações, ainda que se reconheça a presença de cremações, aparentemente
em menor número. A este nível julgamos essencial
mencionar a escassez ou mesmo ausência de dados,
sendo muitas vezes avançadas leituras meramente
“impressionistas”. Seja como for, por agora julgamos ser mais prudente manter a posição dos diversos autores que sustentam a convivência de ambos
rituais de tratamento e deposição do corpo, a inumação e a cremação.28
Os espólios, escassos devido a frequentes violações, representam uma interessante síntese entre
elementos locais e outros de grande circulação, claramente forâneos. Mesmo as cerâmicas parecem,
por vezes, como num dos vasos da necrópole do
Pego, ser claramente inspiradas em modelos exógenos, neste caso nos vasos “à chardon”.29 As armas de
alvado, nomeadamente lanças longas de marcada
nervura central, acompanhadas de contos igualmente longos, usualmente surgidas aos pares30 são
claramente os elementos metálicos dominantes, estando as facas afalcatadas também representadas.
Os elementos de indumentária são, em geral, raros,
tendo-se documentado apenas um fecho de cinturão, aparentemente do tipo dito “tartéssico”, na necrópole do Pego31 e um bracelete “acorazonado”, este
recolhido na necrópole de A-do-Mealha-Nova.32
Para além destes, são de referir as escassas fíbulas
recolhidas, como as anulares hispânicas, de modelo
antigo, da Chada e Fonte Santa.33
Por outro lado, os elementos de adorno (contas
de colar de pasta vítrea, âmbar, prata, anéis em prata
26
Arruda 2001: 282; Jiménez Ávila 2001.
Beirão 1986; Correia 1993.
28
Correia 1993: 356; Arruda 2001: 270.
29
Dias et al. 1970.
30
Beirão 1986; Correia 1993.
31
Dias et al. 1970: 187.
32
Ibidem: 201.
33
Beirão 1986.
27
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
e bronze, com ou sem “escaravelho”, entre outros)
de mais que provável origem alóctone constituem o
espólio melhor documentado nestas necrópoles.34 É
claro que será de realçar ainda a presença de anéis
de prata com engaste de “escaravelho” em suporte
rotativo em necrópoles como A-do-Mealha-Nova35
e Fonte Santa36 ou Pardieiro, a par de outros elementos neste metal, como um pequeno anel de volutas de Favela Nova.37 Os adornos em ouro são
mais raros e de pequenas dimensões, eventualmente fruto do saque quase sistemático a que estiveram
sujeitos desde a sua construção, estando associados
principalmente a botões, como o da Fonte Santa38
mas outros elementos poderão indiciar a presença
de objectos de maior dimensão, como arrecadas.39
A ocupação da Idade do Ferro do Baixo Alentejo meridional terá então sido caracterizada, entre o
séc. VI a.C. e os meados do seguinte, pela presença
de uma importante ocupação rural, estruturada em
torno das linhas de água mais relevantes, organizadas em pequenas unidades de base familiar, às
quais se encontravam associadas importantes necrópoles tumulares, usualmente em local mais elevado, nas proximidades do povoado. As necrópoles
eram constituídas por tumuli de planta circular, na
fase mais antiga, mas principalmente de planta rectangular justapostos, formando por vezes extensos
conjuntos sepulcrais, revelando a estabilidade do
grupo humano que lhe deu origem. Apesar de ser
fortemente marcada por rasgos de grande atavismo, como as próprias necrópoles o indicam, estas
comunidades, relativamente isonómicas, encontravam-se integradas em amplos circuitos de distribuição de elementos de adorno de clara origem
mediterrânea. Por outro lado, a escrita representa com maior clareza a sua integração em fluxos
culturais mais amplos, que se traduzem, todavia,
numa expressão profundamente localista enraizada
numa tradição verdadeiramente milenar.
A região do couto mineiro de Castro Verde partilha, em grande medida, durante um momento antigo da Idade do Ferro, as características enunciadas para a região de Ourique/Palheiros. Os dados
disponíveis para aquela região reportam-se a uma
área muito concreta, o couto mineiro de NevesCorvo, tendo os trabalhos sido desenrolados no
34
Ibidem; Correia 1993; Arruda 2001.
Dias et al. 1970: 200.
36
Beirão 1986.
37
Dias e Coelho 1983: 202.
38
Beirão 1986.
39
Dias et al. 1970: 188.
359
âmbito da instalação de uma infra-estrutura extractiva. Assim, uma vez mais, a dinâmica de povoamento centra-se numa importante ocupação
rural estruturada em pequenos núcleos de povoamento, de cariz aparentemente familiar, edificados
com uma arquitectura de tradição mediterrânea,
bem patente nos conhecidos núcleos de Neves I e
II ou Corvo I.40 Estes incorporam, mais uma vez,
uma forte tradição local, conjugada com a presença de importantes indícios de contacto, directo ou
indirecto, com populações forâneas, materializados
na presença da escrita e de materiais de grande
circulação (como as contas e recipientes de vidro
polícromo), para além da partilha de elementos de
cariz aparentemente ritual, de clara inspiração mediterrânea.
A entrada e distribuição destes elementos de
fundo e tradição mediterrânea decorremcuja
da ligação
foz
destes territórios com aqueles que foram os grandes canais de ligação entre o interior e o litoral, os
vales do Sado e Mira, em cujas desembocaduras se
deverão ter instalado os grandes focos de incorporação e irradiação das influências mediterrâneas. Se
no Mira, com a foz numa costa de mais complexa
navegação, ainda não dispomos de dados para esta
fase, já Alcácer se assume de há muito como o grande centro de ligação com o Mundo mediterrâneo.
Obviamente que neste trabalho não cabe mais
que um enquadramento sumário da ocupação sidérica de Alcácer do Sal, onde importa essencialmente reter as fortes ligações com o Mundo fenício num momento antigo da Idade do Ferro, que
se perpetuará numa clara matriz cultural de cariz
mediterrâneo até à romanização.41 Estas ligações ficaram patentes nos trabalhos desenvolvidos no povoado, ainda que se conte apenas com os resultados
de um pequeno corte.42 Estes autores assinalam a
presença de uma longa diacronia caracterizada por
um conjunto material, principalmente cerâmico,
claramente devedor das influências coloniais fenícias, cuja matriz se manterá até momentos bastante avançados do milénio. Esta presença de fundo
“orientalizante” começa a documentar-se a partir
do séc. VII a.C. de modo bastante vincado, como
se atesta pela larga maioria (em torno aos 90%) de
cerâmica produzida a torno, onde se destaca a cerâmica de engobe vermelho, a cerâmica cinzenta e
as ânforas de produção exógena, do tipo 10.1.2.1
35
40
Maia 1986; Arruda 2001; Mataloto 2004.
Fabião 1998; Arruda 1999-2000.
42
Silva et al. 1980-1981.
41
360
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
de Ramón,43 claramente filiáveis nos contextos coloniais da época. Este panorama mantém-se basicamente inalterado até aos meados do milénio, onde
um estrato de incêndio e abandono assinalaria uma
forte convulsão no povoado, a que se seguiria uma
ocupação dos finais do milénio, ainda marcada
pela tradição “orientalizante”. Contudo, como foi
já bem assinalado por outros autores,44 esta suposta descontinuidade de ocupação no povoado não é
hoje sustentável, quer por indícios intrínsecos aos
dados disponíveis, quer através da própria necrópole anexa, onde se denota uma importante ocupação associada a este momento.
A necrópole do Olival dos Senhor dos Mártires
terá sido, com toda a certeza, uma das necrópoles
associadas ao povoado de Alcácer do Sal. É, ainda hoje, a mais emblemática necrópole da Idade do
Ferro do território actualmente português. Apesar
de escavada e estudada desde os finais do séc. XIX
até quase à actualidade, não dispomos ainda de um
estudo monográfico abrangente, contando apenas
com estudos parcelares, saídos principalmente da
mão de V. Correia45 na primeira metade do séc. XX,
e de Schüle,46 Cavaleiro Paixão47e Frankenstein48
mais recentemente. Duas importantes revisões efectuadas recentemente permitiram estruturar novas
perspectivas sobre as sequências e características
da necrópole à luz dos novos dados, estabelecendo
uma base bastante mais sólida de leitura actual.49
A análise efectuada por estes autores segue
essencialmente as observações efectuadas por V.
Correia,50 ainda assim o autor que mais extensamente se debruçou sobre os achados dos seus próprios trabalhos. Correia definiu quatro tipos de
sepulturas, todas de cremação, constando os dois
primeiros tipos da redução e deposição em urnas,
e os dois seguintes de cremações in situ, com o tipo
3 a ser atribuído a sepulturas de planta rectangular
e o 4 a sepulturas de planta rectangular com canal
central, e perfil em “T”, certamente para favorecer
a combustão da pira crematória. Uma vez mais, seguimos a linha interpretativa dos citados autores
que parece remeter o tipo 1 para as cremações mais
recentes, enquadradas a partir de meados do Iº milénio a.C. Estas sepulturas parecem-nos transmitir,
43
Ramon 1995.
Fabião 1998; Arruda 1999-2000.
45
Correia 1925; 1928.
46
Schüle 1969.
47
Paixão 1983.
48
Frankenstein 1997.
49
Ibidem.
50
Correia 1925; 1928.
44
com relativa clareza, o panorama cultural multifacetado onde conviviam elementos de clara influência mediterrânea, a par de outros de cariz mais
setentrional.
permitindo
Os restantes três tipos de sepultura parecem
associar-se a fases mais antigas, não sendo, todavia, claro o modo como se estruturam cronologicamente, os escassos dados disponíveis permitem
diversas leituras. No entanto, os dois citados estudos de síntese realizados mais recentemente51 parecem coincidir na aceitação do tipo 4 como o mais
antigo, tal como V. Correia52 sugeriu. Segundo C.
Fabião as sepulturas de tipo 2, principalmente urnas de tipo “Cruz del Negro”, implantadas sobre
pequeno covacho aberto no substrato rochoso, poderiam enquadrar-se na fase mais antiga da necrópole, acompanhando as sepulturas de tipo 4,53 hipótese aparentemente sustentada também por M.
Torres.54 Ao invés, A. Arruda, ainda que defenda
a contemporaneidade das sepulturas de tipo 3 e 4,
entende que as de tipo 2 seriam mais recentes, sendo apenas parcialmente contemporâneas das sepulturas de tipo 3.55 O conjunto do espólio apresenta
notáveis semelhanças com o conhecido em outras
necrópoles do Sul peninsular, nomeadamente na
região dos Alcores de Carmona (Cruz del Negro,
Camino de Bencarrón, Acebuchal, etc), mas também na necrópole de Medellín,56 não sendo aqui
local para uma análise concreta dos mesmos.
A cremação dos corpos manteve-se como ritual único de tratamento final do féretro, que poderá
ter conhecido a convivência de dois usos distintos
numa fase inicial, entre meados do séc. VII a.C. e
finais do seguinte, com cremações in situ e em ustrinum.
Alcácer do Sal terá sido, certamente, um polo
de grande relevância na estruturação das ligações
interior-litoral ao longo da Idade do Ferro, posição
que terá beneficiado da sua adjacência ao tramo
navegável mais a montante no rio Sado. Importa
lembrar aqui como, até aos inícios de época moderna, Alcácer era quase um verdadeiro porto de
mar onde se embarcava o “pão” alentejano para
abastecer Lisboa, e mesmo para exportação,57 a
par de Mértola que, de modo bastante sugestivo,
conheceu igualmente uma importante ocupação de
51
Fabião 1998; Arruda 1999-2000.
Correia 1925.
53
Fabião 1998: 356.
54
Torres 2005: 197.
55
Arruda 1999-2000: 81.
56
Almagro-Gorbea 2008a.
57
Oliveira 1978: 144.
52
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
feição “orientalizante”.58 Deste modo, cremos que
ambos portos terão sido os centros redistribuidores
dos produtos de origem mediterrânea para o interior alentejano, estabelecendo-se, como importantes núcleos de difusão das técnicas, conhecimentos
e culturas de igual origem na região, quer por via
directa, quer por via indirecta, através de estreitos
contactos com a área central da colonização fenícia. Não terá sido despicienda, no caso de Alcácer,
a relação de proximidade com Abul, situado apenas uns quilómetros a jusante.59 Todavia, e como
veremos, apesar da grande proximidade geográfica com os plainos de Beja, tal não inviabilizou,
de modo algum, a manutenção nesta região de um
cariz cultural próprio das entidades humanas aí estabelecidas.
Se nos temos debruçado sobre o vale do Sado e
Mira, importa agora observar o processo humano
no baixo vale do Guadiana, na justa medida em que
as necrópoles da área de Pedrógão se encontram
adjacentes à margem direita deste rio, na sua entrada em território baixo alentejano.
Já se comentou acima como a transição para a
Idade do Ferro parece ser marcada pela introdução
de um conjunto de novidades de fundo cultural e
técnico de raiz mediterrânea nas grandes ocupações do final da Idade do Bronze, as quais, todavia, não conseguiram impedir o desmantelamento
das redes de povoamento existentes. Uma nova realidade emergiu marcada, no vale do Guadiana a
montante da serra de Portel, por um intenso e complexo povoamento rural, onde os influxos mediterrâneos são particularmente visíveis na arquitectura
doméstica, mas igualmente nas baixelas cerâmicas
que conservam fortes atavismos durante o segundo
quartel do Iº milénio a.C.60 Cremos ter, igualmente,
bons indícios de que um processo semelhante terá
decorrido no território aqui em análise, como estas
mesmas necrópoles o demonstram.
Mértola, como já se mencionou, deverá ter desempenhado um papel fulcral na estruturação das
ligações interior-litoral, na região mais interior do
baixo vale do Guadiana. Este povoado funcionava
quase como um verdadeiro porto de mar,61 irradiando daqui para o território envolvente. No entanto, é
de crer que as ligações com o vale do Guadalquivir,
através da Serra de Aracena, pela portela de RosalAroche, possam ter desempenhado igualmente um
papel relevante na difusão, pela região da margem
esquerda, das novidades introduzidas no litoral pelas populações fenícias. Efectivamente, a estrutura
oro-hidrográfica do território, com vales abertos de
fácil trânsito, marginados pelas elevações das serras da Adiça e Belmeque, parecem canalizar a transitabilidade SE-NW para pontos-chave de passagem do Guadiana, fixados na toponímia em locais
como o porto de Évora ou de Portel, ligeiramente
a montante do castro dos Ratinhos, ou o Porto de
Moura, escassos quilómetros a montante de Pedrógão, sem mencionar outros mais a Sul, para a ligação aos plainos de Beja.
Contudo, ainda que certamente integrada em
circuitos amplos de distribuição de produtos forâneos, cremos que a realidade humana baixo alentejana, de ambas as margens do Guadiana, será
marcada por um claro fundo indígena onde se integrariam e reinterpretariam os elementos exógenos,
criando um percurso cultural marcadamente local.
Ao invés das estratégias de povoamento de base urbana, bem patentes no litoral em sítios como Castro
Marim,62 no interior do baixo vale do Guadiana, e
à excepção de Mértola, adjacente a um Guadiana
navegável até ao mar, parece ser o povoamento iminentemente rural que domina pelo menos até meados do séc. V a.C. É neste contexto que deveremos
integrar sítios tão relevantes como a Azougada, adjacente ao próprio curso do Guadiana, junto à foz
do Ardila,63 ou o Cabeço Redondo.64 Estes, apesar
das suas dimensões relativamente modestas, deveriam ter assumido um papel relevante na coordenação do espaço rural, tal como o deixam entender
a riqueza e diversidade dos conjuntos artefactuais
reunidos em ambos. Relativamente à Azougada,
de grande interesse por se situar a menos de duas
dezenas de quilómetros para ENE das necrópoles de Pedrógão aqui em análise, cremos bastante
relevante salientar o extenso e bem documentado
estudo sobre a componente cerâmica levado a efeito por A.S. Antunes.65 Este trabalho permite-nos
melhor conhecer uma ocupação centrada entre meados do séc. V a.C. e boa parte do século seguinte,
reconhecendo-se as extensas similitudes materiais
com a realidade documentada em Cancho Roano,
no Médio Guadiana. Cremos que este aspecto, que
já havíamos salientado anteriormente,66 é particu62
58
Barros 2008.
59
Mayet e Silva 2000.
60
Calado et al. 2007; Calado e Mataloto 2008.
61
Barros 2008; Veiga 1880.
361
Arruda 1999-2000.
Antunes 2009.
64
Soares 2012.
65
Antunes 2009.
66
Mataloto 2004: 177.
63
362
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
larmente relevante por ajudar a melhor fundamentar a associação funcional entre os dois sítios mencionados na região de Moura, enquanto complexos
aúlico-produtivos, capazes de coordenar e explorar
um território rural envolvente.
Como já se afirmou, as ocupações da Azougada ou do Cabeço Redondo deveriam coordenar um
território onde se integrariam pequenas unidades
de produção rurais, neste caso dependentes, como
as documentadas, no Alentejo Central,67 ou na Atalaia da Insuínha, escassos 5 km a NE das necrópoles de Pedrógão aqui em estudo. Este pequeno sítio, infelizmente apresentado como uma ocupação
da Idade do Bronze,68 apresenta notáveis paralelos
em sítios como a Herdade da Sapatoa69 devendo
enquadrar-se cronologicamente entre finais do séc.
VI a.C. e meados do seguinte. Grande parte da
população desta região deveria estar dispersa em
sítios destas características coordenando-se entre
si, desenvolvendo estreitos laços familiares, como
veremos em seguida, partilhando certamente muito
do modo de vida também evidenciado pelas comunidades que ocupavam as unidades rurais da região
de Ourique/Castro Verde.
Este facto não deve, contudo, fazer-nos esquecer que no território da margem esquerda se conhece um conjunto de artefactos, caso dos já mencionados thymiaterion de Safara e o de Mourão, que
nos indicia a circulação de importantes elementos
culturais de fundo colonial em momento antigo da
Idade do Ferro na região, como aliás o bem denuncia o putativo templo dos Ratinhos.70 Contudo,
o modo como o processo cultural se desenvolveu
neste território durante os séculos VI e V a.C., demonstra um percurso próprio, onde as mais profundas transformações impostas pelo contacto colonial não conseguiram eliminar um substrato local
forte, ajudando a criar um denso e diverso mosaico
cultural, bem longe da homogeneização proposta
para o litoral.71
Nos últimos anos, o conhecimento arqueológico da planície dos Barros de Beja, especialmente a
Poente, tem sofrido uma profunda transformação
motivada pela implantação de uma extensa rede de
rega subsidiária de Alqueva, que criou um “Admirável Mundo Novo”. Todavia, já existiam alguns novos e
velhos indícios que faziam suspeitar da integração
desta região num amplo território de distribuição
das influências de fundo colonial durante um momento antigo da Idade do Ferro.
O impressionante tesouro do Gaio,72 recolhido
numa pequena necrópole de cistas a escassos 7 km
da costa, que conjuga em si uma enorme diversidade de adornos de origem e influência mediterrânea,
provavelmente até de cronologia distinta, demonstra de modo claro a circulação a partir do litoral
destes bens de origem forânea, em meio rural e indígena, para além dos centros urbanos, como seriam Alcácer e ou Mértola.
Algo mais para o interior, cerca de 20 km a Sul
das necrópoles da região de Ferreira, aqui em estudo, documentou-se, há poucos anos, uma nova
destas necrópoles de cistas, Corte Margarida.73
Apesar de pontualmente intervencionada demonstra a chegada e distribuição na região de diversos
elementos de adorno de importação a partir do
litoral, como contas de vidro, oculadas ou não, e
âmbar, mas também um escaravelho e um possível
dente de tubarão, que convivem com elementos
de clara filiação regional, como a cista em que se
encontravam depositadas, ou um pequeno pote de
torno lento, de produção local/regional. A interessante presença de dois ornitomorfos em cerâmica,
que vieram reforçar outras existências conhecidas
na região, um pouco mais a Sul, poderá indiciar a
introdução de novos elementos ideológicos no quadro dos rituais funerários. Os dados obtidos não
foram conclusivos sobre o ritual usado nesta necrópole, se a inumação ou a cremação.
A necrópole da Herdade das Carretas (Quintos)74 foi, sem margem para dúvidas, como já devidamente assinalado,75 a primeira a
necrópole
da
ser documentada
Idade do Ferro da região de Beja com as características registadas nas aqui em estudo. Efectivamente,
aquele autor menciona a presença de várias sepulturas de inumação, de planta rectangular, escavadas no substrato geológico, nas quais se recolheu
um espólio semelhante ao registado nas necrópoles
aqui em estudo, como veremos. Será de realçar o
notável exemplar de uma fíbula de tipo Bencarrón76 acompanhada por diversas armas e outros
elementos de adorno.
Nos últimos anos tem vindo a documentar-se,
na envolvente de Beringel, um conjunto de necró-
67
72
68
73
Mataloto 2004.
Cosme 2007.
69
Mataloto 2004.
70
Berrocal e Silva 2010.
71
Arruda 2010.
Costa 1966.
Deus e Correia 2005.
74
Viana 1945.
75
Santos et al. 2009: 778.
76
Storch 1989: 243; Ruiz Delgado 1989: 161.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
poles de inumação, por vezes dotadas de recintos
abertos no substrato geológico, de planta rectangular adossados, em torno dos quais se abrem sepulturas rectangulares. Estas têm vindo a ser dadas a
conhecer em diversas apresentações públicas, nomeadamente neste encontro, entre outros, dispondo a necrópole de Palhais de uma primeira publicação77 e a Vinha das Caliças de um artigo numa
revista de grande distribuição.78 Além destas, e das
que aqui apresentamos, conhecem-se as necrópoles
de Monte Marquês 7, Carlota,79 Cinco Réis, entre
outras menos documentadas.
Importa reter alguma atenção sobre os dois casos melhor conhecidos, em particular Palhais, por
constituírem a base de análise deste admirável mundo novo das necrópoles rurais do Baixo Alentejo
setentrional. Contudo, e como certamente serão focadas de modo alargado em outros trabalhos deste
encontro, cremos despiciendo entrar em excessivos
pormenores, que remetemos para as respectivas
publicações. É conveniente assinalar, desde já, que
a necrópole de Palhais foi apenas pontualmente intervencionada, enquanto a Vinha das Caliças o foi
extensamente, conhecendo-se cinco sepulturas na
primeira e cerca de 50 na segunda. Estas necrópoles encontram-se a escassos quilómetros de distância entre si, implantando-se ambas em locais ligeiramente sobrelevados da planície, que lhes permite
facilmente ver e serem vistas, como aliás acontece
também na necrópole da Carlota. As seguintes anotações sobre ambos os sítios baseiam-se totalmente
nos citados trabalhos pelo que evitaremos multiplicar as referências.
Estas necrópoles parecem desenvolver-se entre
finais do século VII a.C. e meados do séc. V a.C.,
ainda que Palhais deva ter-se iniciado e terminado
antes de Vinha das Caliças. Em ambas o rito da
inumação é dominante, mas em Palhais a cremação está documentada através de um enterramento
efectuado no interior do recinto detectado, apresentando outras características peculiares, além da
cremação. Ao estar dentro do recinto não parece
ser a mais antiga sepultura, mas é, aparentemente,
anterior a outras que cortam o preenchimento do
recinto no qual se implantou. Na Vinha das Caliças, ao menos de momento, parecem existir apenas inumações, usualmente individuais, ou duplas.
A arquitectura funerária apresenta semelhanças
em ambas, ainda a que a amostra de Palhais seja
77
Santos et al. 2009.
Pereira e Barbosa 2009.
79
Salvador e Pereira 2012.
78
363
bastante limitada e a de Vinhas das Caliças pouco
conhecida. Em ambas registaram-se recintos funerários de planta rectangular, justapostos, apenas
parcialmente conhecidos em Palhais, enquanto na
Vinha das Caliças se documentam por completo,
apresentando uma sepultura aproximadamente
central, facto suposto também em Palhais. Contudo, neste sítio a estrutura negativa que delimita o
recinto é bastante profunda, ao invés do documentado na Vinha das Caliças, tendo sido usada como
espaço de circulação, e ritual, para além de espaço
de enterramento.
O recinto funerário parece ter sido amortizado em ambas anteriormente ao abandono destes
espaços sepulcrais, o que fica provado pelo corte
dos seus enchimentos pela abertura de novas sepulturas. Contudo, estas aparentemente nunca se
cortam entre si e raras vezes se tocam, o que poderá indiciar alguma marcação exterior da sepultura, ou uma organização do espaço funerário que
se prolonga no tempo. As sepulturas de inumação
são usualmente de planta rectangular, estando
representadas na Vinha das Caliças as de canal
central, neste caso bastante largo, de modo a acomodar o corpo, usualmente em decúbito lateral. O
espólio que acompanhava e adornava os finados
era bastante variado e variável, demonstrando evidentes ligações com as realidades litorais, quer nos
adornos (fíbulas, fechos de cinturão, braceletes,
conjuntos de tocador, anéis, pendentes em prata e
ouro, escaravelhos, contas de colar, etc), quer mesmo nalgumas cerâmicas, pouco frequentes, e noutros amuletos, que parecem traduzir a partilha de
um fundo cultural de matiz mediterrâneo “orientalizante”. Contudo, e como fica bem patente no
putativo queimador com coroplastia ornitomorfa
de Palhais, entretanto também documentado em
outras necrópoles, e na própria arquitectura destes
espaços funerários, tudo isto se encontra integrado num fundo local bastante enraizado, segundo
cremos.
3. NECRÓPOLES RURAIS DO
ALENTEJO SETENTRIONAL
BAIXO
O conjunto de dados aqui em estudo resulta
de uma série de intervenções derivadas da
implementação da rede de rega do Alqueva,
levadas a efeito por um de nós (M.F.) enquanto
arqueóloga responsável em diversas empresas.
Estes desenvolveram-se num espaço de tempo
364
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Fig. 2.— Localização das necrópoles do Poço da Gontinha 1 e do Pardieiro na Carta Militar de Portugal 509 1:25.000.
alargado, com equipas diversas, e em duas áreas
geográficas distintas, separadas entre si várias
dezenas de quilómetros. Trataremos cada uma delas
de forma individual, apresentando as respectivas
áreas sepulcrais.
3.1. O NÚCLEO DE FERREIRA
As vizinhas necrópoles do Poço da Gontinha 1 e
Pardieiro encontram-se localizadas a 2 km a noroeste da aldeia de Peroguarda (Ferreira do Alentejo,
Beja). Com a noroeste um espaçamento entre si de
cerca de 1 km, estão implantadas na peneplanície
alentejana, ocupando um mesmo espaço sobranceiro na paisagem, no topo de duas pequenas elevações, partilhando os cursos de água (Barranco do
Azinhal e afluentes) e os solos férteis circundantes
(Fig. 2).
Estas escavações de emergência foram efectuadas através da empresa Era Arqueologia SA.,
no âmbito da minimização de impactes sobre o
património cultural decorrentes da execução do
Bloco de Rega de Ferreira, Figueirinha e Valbom
(Edia). Por entre um quadro cultural e cronológico complexo e abrangente, com cronologias que
vão desde a pré-história recente até época moderna, foram intervencionadas oito sepulturas – duas
das quais no sítio do Pardieiro – e dois recintos
funerários de época sidérica – ambos no Poço da
Gontinha 1.
3.1.1. Poço da Gontinha 1
A ocupação funerária sidérica encontrava-se
bem evidente ao longo de toda a área decapada,
sendo que, por razões inerentes à obra, só se intervencionou o seu limite sul (432 m2). Aqui, identificaram-se segmentos diferenciados de dois recintos
e seis sepulturas de inumação, abertos no substrato
geológico, com morfologias semelhantes, dinâmicas de enchimento idênticas e um constante fenómeno de espoliação inerente (Fig. 3). A interação
entre recintos e sepulturas demonstrou uma continuidade de ocupação do mesmo espaço, corroborada pelos cortes entre estruturas e espólio exumado.
Todas as sepulturas intervencionadas correspondiam a enterramentos “parabólicos/periféricos”,
posteriores à génese dos recintos.
Para Norte, as manchas vermelhas e alaranjadas,
prolongavam-se nitidamente pelo corredor aberto,
contrastando com o caliço polvorento e esbranquiçado, por cerca de mais 230 m2. Com uma esquadria particular, desenvolviam-se sucessivamente os
recintos e as sepulturas rectangulares. Após a decapagem e limpeza diferenciou-se um total de cinco
365
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
1
2
Fig. 3.— Planta da necrópole do Poço da Gontinha 1. 1. Planta conjunta da área intervencionada e da área apenas decapada; 2. Área intervencionada.
366
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
recintos e onze sepulturas, com morfologias, orientações e sedimentos em tudo idênticos aos intervencionados. É importante salientar que nenhum dos
recintos – quer na área escavada, quer na área apenas registada – foi integralmente delimitado, sendo
o limite Sul o único conhecido. Para além desta leitura parcelar, contávamos ainda com uma ocupação
intensa e sobreposta de época romana e moderna,
a dificultar leituras e interpretações. Estas diferentes ocupações, traduzidas também num constante
reutilizar do mesmo espaço funerário, constituem
o único motivo para a numeração intercalada das
sepulturas aqui apresentadas. A numeração errática não representa sepulturas não intervencionadas,
mas estruturas funerárias de distintas idades históricas, nomeadamente calcolíticas e romanas.
Recinto 1
Valado rectangular regular, a delimitar um espaço interior (fechado?) de cerca de 45 m2. Escavado e delimitado apenas nos seus segmentos oeste
(comp. 6 m) e este (comp. 7,20 m) ambos de orientação SO-NE, de paredes tendencialmente rectas
e fundos aplanados, num perfil em “U”. A largura,
mais ou menos constante, oscilava entre os 0,50 e
os 0,60 m, apresentando uma profundidade média
de 0,50 m e estando colmatado por dois sedimentos diferenciados: um primeiro correspondente a
um depósito vegetal, castanho-avermelhado, um
posterior composto essencialmente por substracto
rochoso desagregado, ambos estéreis em artefactos
(Fig. 3).
Recinto 2
No extremo sudoeste da área intervencionada
definiram-se os limites sul e este do que deverá ter
sido um recintoEste
de planta rectangular, com orientação, morfologia, processo de colmatação e métrica em tudo semelhante ao anterior. A extremidade
NE do segmento este, para além de cortar parte
do Recinto 1, terminava sem ligação a outro tramo,
indiciando a presença de um recinto em U, aberto a
Norte. O espaço central interior não foi decapado.
Sepultura 1
Estrutura extremamente afectada pelos contextos posteriores de uso romano e moderno, com um
plano inicial impossível de recuperar. O fundo era
rectangular regular (1,80 x 0,70 x 0,08 m), numa
orientação SO (cabeceira) – NE (pés). A colmatála registou-se um enchimento e uma inumação primária em muito mau estado de conservação.
Inumação primária: Indivíduo adulto de sexo
indeterminado, depositado em decúbito lateral esquerdo, com braço direito flectido sobre o tórax e
pernas igualmente flectidas. Em muito mau estado
de conservação e representação.
Sepultura 4
Estrutura rectangular de perfil em “T”, com
duas bancadas interiores laterais e na zona da cabeceira (para a deposição de uma tampa?), esta última associada a um nicho de contornos circulares
e um corredor central estreito e aprofundado (1,06
m de comp. x 1,10 m de largura de topo x 0,60 de
largura interior da base x 1,20 m). Com uma orientação NO-SE, foi parcialmente cortada no seu limite SE, pela implantação de um silo moderno. A
sua colmatação – três sedimentos muito heterogéneos – diferenciados por uma interface negativa,
acusavam um claro momento de espoliação. A ausência de vestígios osteológicos (inumação/incineração) será fruto deste(s) momento(s) de violação
e destruição parcial.
Junto da zona de cabeceira, registou-se uma
taça de cerâmica cinzenta (Fig. 4.1).
Sepultura 5
Estrutura rectangular regular, de base plana,
algo irregular nos seus contornos (1,70 x 1,40 x
0,60 m). Escavada simultaneamente no substrato
rochoso e no Recinto 1, sensivelmente a meio do
tramo este.
Embora seguisse a mesma orientação
Apresentava
da vala do recinto, SO-NE, era mais larga que
este, extravasando os limites laterais, já colmatado.
lhecontinha-lhe um único enchimento e uma inumação.
Inumação primária: Indivíduo adulto masculino, em decúbito lateral esquerdo, membros superiores flectidos e mãos junto à face, membros
inferiores extremamente flectidos (quase em posição fetal). Da observação paleopatológica identificou-se um padrão de desgaste oclusal extremo:
nos dentes anteriores (incisivos, caninos), com
exposição total da dentina. Junto ao esqueleto,
num mesmo alinhamento, encontrava-se depositada uma lança em ferro (Fig. 4.2), com a ponta
(29,2 cm de comprimento e 3,2 de largura) junto
do crânio e conto no limite oposto, apresentando
a arma um comprimento máximo de 1,50 m. Parece enquadrar-se no Tipo 9b, variante VII.B.b.8
de Quesada.80
80
Quesada 1997: 357.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
1 (Sep. 4)
2 (Sep. 5)
3 (Sep. 8)
Fig. 4.— Espólio da necrópole do Poço da Gontinha 1, distribuído por sepulturas.
367
368
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Sepultura 7
Estrutura rectangular regular (1,30 x 0,82 x
0,32 m), de base plana, com uma orientação NOSE. Colmatada por três sedimentos diferenciados
por duas interfaces: uma de violação (centrada na
zona da cabeceira), outra de destruição (moderna,
no limite oposto). Diferenciaram-se dois conjuntos
osteológicos, que terão pertencido ao mesmo indivíduo inumado.
Foi documentada em posição secundária um
conjunto de duas diáfises de úmeros (direito e esquerdo), em muito mau estado de conservação, no
limite NO da estrutura, provavelmente deslocados
no acto de violação parcial da mesma.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino
depositado em decúbito lateral direito, composto
apenas pelos ilíacos e membros inferiores, extremamente flectidos (quase em posição fetal).
Espólio: Não foram encontrados artefactos associados, no entanto, a presença de manchas esverdeadas nas diáfises dos úmeros é sugestiva de
um contacto directo com objectos metálicos (cobre/
bronze).
Sepultura 8
Estrutura rectangular regular (2 x 0,86 x 0,80
m), de base plana, orientada num eixo NO-SE.
Para além de uma interface de violação, registaram-se outras quatro interfaces intrusivas, correspondentes ao contexto habitacional moderno
sobreposto. Registou-se parte de uma inumação
muito destruída.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
com tronco em decúbito dorsal (processo tafonómico posterior?) ilíacos e membros inferiores em
decúbito lateral direito, numa orientação NO-SE.
Muito mal conservado, representado quase exclusivamente pelos ossos longos muito fragmentados.
O espólio (Fig. 4.3) estava constituido por um
pote completo, de fabrico manual e perfil em “S”,
com bordo exvasado, sem colo, fundo côncavo e
superfície exterior polida, de coloração cinzenta
acastanhada, depositado no limite SE da sepultura;
um fecho de cinturão de tipo dito “tartéssico”, com
três garfos transversais rebitados, sem decoração,
integrável no tipo 3 de Cerdeño.81 Uma segunda
placa (eventualmente peça fémea) em ferro muito
concrecionado e de difícil percepção, eventualmente com inscrustações em prata e um conjunto de
toucador (cosmética/higiene pessoal) em bronze,
81
Cerdeño 1981: 49.
composto por quatro hastes de feição rectangulares
sub-alongadas, achatadas e ligeiramente curvadas
nos seus limites distais, com terminações variadas:
duas espátulas com golpes em V no topo distal,
provável scalptorium, um estilete curvo e afunilado
e uma colher e bastonete, todas perfuradas na extremidade proximal e unidas numa argola de secção circular.
Sepultura 10
Estrutura rectangular, com dois rebordos escalonados interiores e laterais ao longo de toda a
sua extensão (1,90 x 1,10 x 0,70 m). Assumia uma
orientação NO-SE, cortando simultaneamente o
substracto geológico e parte de um dos segmentos
do Recinto 2, com respectivos enchimentos. Colmatada por dois sedimentos, posteriormente cortados por uma interface de violação. A inumação
primária encontrava-se, mesmo assim, bem representada.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
com o tronco em decúbito dorsal (alteração tafonómica?), ilíacos e membros inferiores em decúbito
lateral direito. O crânio, incaracteristicamente, encontrava-se intacto, permitindo a observação morfológica e paleopatológica: desgaste muito acentuado
nos dentes anteriores e primeiros molares inferiores,
com destruição completa da coroa e exposição da
dentina. Cárie interproximal de pequenas dimensões na coroa do terceiro molar inferior direito.
Não foram encontrados artefactos associados,
no entanto, a presença de manchas esverdeadas
nos braços é sugestiva de um contacto directo com
objectos metálicos.
3.1.2. Pardieiro
Parte de uma necrópole constituída apenas por
duas sepulturas escavadas no substrato brando,
com o mesmo enquadramento paisagístico que a
necrópole anterior. As duas estruturas negativas
foram muito delapidadas pela abertura da vala, impossibilitando-nos o desenho dos seus contornos de
topo. A reduzida largura da vala de infra-estrutura
aberta, com cerca de 3 metros, não permitiu a percepção total do espaço em causa, nem a delimitação
da área sepulcral, que se crê obviamente maior.
Sepultura 1
Estrutura rectangular regular (1,60 x 0,80 x
0,20 m) de paredes rectas e fundo plano, com uma
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
369
1 (Sep. 1)
2 (Sep. 2)
Fig. 5.— Espólio da necrópole do Pardieiro, distribuído por sepultura.
orientação O-E. Colmatada por um único sedimento castanho-avermelhado, muito solto, fruto de violações posteriores, como corroboram os ossos.
Inumação primária: Indivíduo adulto indeterminado, depositado em decúbito lateral direito,
com membros inferiores flectidos. Apresentava
algumas entesopatias no rádio e fémur esquerdos,
encontrando-se fracamente conservado e representado.
Ao longo do limite interior Norte da sepultura
encontravam-se duas lanças em ferro, constituídas
por duas pontas idênticas (45 cm comprimento e
4,5 cm de largura) e dois contos, estes últimos parcialmente dobrados na base, aparentemente para
adequação à dimensão da sepultura (Fig. 5.1),
apresentando ambas um comprimento total de 1,70
m com haste, sendo passíveis de se integrar no Tipo
1, na variante IIB, de Quesada.82 Na zona da cabe-
ceira sob as duas pontas de lança, em forma de oferenda, encontrou-se uma fíbula anular hispânica
semifundida, passível de ser integrada no tipo 13a
de S. da Ponte83 genericamente o tipo Cuadrado
4a.84 Importa realçar que esta fíbula se encontrava
reparada, ou reforçada, na base do arco, na união
com a mola, por um fio têxtil, enrolado à mesma
em cruz.
Sepultura 2
Estrutura rectangular simples (1,5 x 0,80 x 0,24
m) e orientação consentânea com a anterior, apresentava uma cabeceira sobrelevada. Colmatada por
dois sedimentos diferenciados por uma interface de
violação, no limite oeste (cabeceira). Foi registado um conjunto de ossos dispersos e sem conexões
anatómicas, constituído exclusivamente por membros superiores e fragmentos de crânio, que terá
83
82
Quesada 1997: 357.
84
Ponte 2006: 182.
Cuadrado 1957.
370
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Introduzir
parágrafo
Fig. 6.— Localização
das necrópoles do Poço Novo 1, Fareleira 2 (Núcleos A, B e C) e Fareleira 3 na Carta Militar de Portugal 511 1:25.000.
sido fruto das remobilizações posteriores, associadas ao momento de violação. Inumação primária:
Indivíduo adulto masculino, depositado em decúbito lateral direito. A posição das mãos junto à zona
do crânio indica que os braços se encontravam
flectidos, tal como as pernas, representadas apenas
pela tíbia e perónio direitos. Observaram-se patologias orais, com um padrão de desgaste dentário
muito acentuado, sobretudo na dentição anterior.
Na mandíbula registou-se a perda ante mortem de
todos os molares.
Junto da mandíbula surgiram três fragmentos
metálicos (Fig. 5.2) Um fragmento de argola em
prata e dois fragmentos diferenciados, curvos e de
secção circular, em bronze, aparentemente correspondentes a um brinco; este apresenta três pequenos elementos granulados na parte inferior, seguindo modelos conhecidos em ouro.
3.2. O NÚCLEO DE PEDRÓGÃO
Delimitado
As três necrópoles deste núcleo inseremse numa ampla meseta aplanada destacada na
paisagem. Delimitada a Este pelo Guadiana, a Sul
pela Ribeira de Odeacere e a Oeste pelo Barranco
da Fareleira, este planalto é ainda hoje um local
priveligiado não só no domínio da paisagem, como
no domínio dos recursos hídricos e agrícolas.
Conjungando a acessibilidade à água e vias de
comunicação, a fertilidade do seu topo aplanado
facilmente arável e a proximidade a locais de
extração e de transformação de pedra, podemos
facilmente imaginar a escolha anscentral deste local
na fixação das comunidades humanas (Fig. 6).
Espacialmente próximas entre si, distam no
máximo 3 quilómetros entre os núcleos mais
afastados, estas necrópoles partilham também uma
matriz tipológica e ritual marcada na prevalência
de estruturas negativas escavadas no caliço
esbranquiçado de contornos rectangulares (17
sepulturas), na evidência de recintos funerários
(Poço Novo 1 e Fareleira 3) e no predomínio de
espólios cerâmicos e metálicos muito similares.
Por detrás desta inquestionável uniformidade,
cada uma apresenta uma dinâmica muito própria,
baseada talvez numa diferenciação intra e inter
populacional, que tentaremos expor mais adiante.
Estas escavações de emergência foram levadas a
cabo através das empresas Arqueologia e Património
(Poço Novo 1) e Procesl (Fareleiras), no âmbito da
minimização de impactes sobre o património cultural decorrentes da execução do Bloco de Rega de
Pedrogão (Edia).
3.2.1. Poço Novo 1
A necrópole do Poço Novo 1 encontra-se na
extremidade Nascente de um amplo planalto, de
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
371
Fig. 7.— Planta da intervenção na necrópole do Poço Novo 1, Pedrogão (adaptada do Relatório final BRP11-Arqueologia e Património)
pendentes suaves e bons solos, ao longo do qual,
para Poente, iremos encontrar as necrópoles que
analisaremos em seguida. Este espaço tumular foi
documentado apenas dentro de uma faixa com
cerca de 10 m de largura, mas longitudinalmente
bastante extensa, o que não impossibilita a
presença de outras sepulturas nas imediações
(Fig. 7). Tal como no Poço da Gontinha 1, este
espaço apresenta uma contínua ocupação desde
cronologias pré-históricas, difíceis de determinar,
até época sidérica. No contexto funerário foram
também intervencionadas fossas circulares com
inumações primárias da Idade do Bronze.
Recinto 1
Estrutura de planta em “L”, com um segmento
orientado S-N (3,90 m de extensão), e outro perpendicular (O-E 2,5 m de extensão), na extremidade do qual se encontrava escavada a sepultura
5, posterior à sua abertura e colmatação. Ambos
apresentam uma potência média de 0,15 m. Estes
dois tramos entroncavam formando um “cotovelo” irregular, correspondente ao canto NO de um
quadrado inacabado. As extremidades Sul e Este
terminavam de forma abrupta e afunilada, sem que
houvesse uma continuação física da “vala” nesses
limites. Embora algo irregulares, as paredes eram
tendencialmente rectas, perfazendo uma largura
média de 0,70 m (Fig. 7).
Sepultura 1
Estrutura rectangular regular (1,60 x 0,70 x
0,15 m), com uma orientação O-E, paredes tendencialmente rectas e fundo aplanado. Colmatada
por dois depósitos posteriormente cortados por
uma interface de violação bem delimitada no centro e cabeceira da estrutura. Os restos osteológicos,
articulados e remexidos, pertenceriam a um único
indivíduo.
As peças ósseas desarticuladas na cabeceira crânio, mandíbula, braços e tronco - serão resultado das perturbações derivadas do saque parcial
e posterior.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
depositado em decúbito lateral esquerdo. Da observação paleopatológica, registou-se uma artrose
ligeira na anca esquerda. Dos dentes observados
registaram-se níveis de desgaste, especialmente acentuado nos anteriores (incisivos e caninos),
perda ante mortem de molares e pré-molares, juntamente com uma cárie no primeiro molar superior
esquerdo.
O espólio estava formado por uma taça de cerâmica manual, polida em ambas superfícies, de cozedura redutora, fundo plano e bordo simples exvertido e um conjunto de trinta e sete contas em vidro
negro e negro e branco, com “oculações”, anulares
e cilíndricas, e linhas ondulantes, em muito mau estado de conservação (Fig. 8.1).
372
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Sepultura 2
Estrutura rectangular-ovalada. (2 x 0,70 x 0,55
m), numa orientação S-N. Dois sedimentos de colmatação, intercalados por um nível pétreo que corresponderia a uma cobertura.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
em decúbito lateral esquerdo. O braço esquerdo
estava completamente fletido para o lado esquerdo
com a mão a repousar junto à face e o direito
encontrava-se dobrado sobre o mesmo lado, num
ângulo de aproximadamente 90º, com a mão sobre
o cotovelo esquerdo. Os membros inferiores
apresentavam-se também fletidos. Observouse um padrão de patologias orais com três cáries
e um desgaste moderado comum a todos, mas
bem marcado nos dentes anteriores (incisivos e
caninos). Registaram-se ainda marcas de artrose,
ligeira e moderada, nas articulações dos ombros,
cotovelos e anca esquerda.
Na zona da cintura, um fecho de cinturão de
tipo dito “tartéssico” de três garfos (Tipo 4a de
Cerdeño85 – macho e fêmea – composto por duas
placas rectangulares em bronze e uma placa de
ampliação na parte fêmea, com duas linhas de perfurações circulares; em ambas as placas nota-se
a presença de marcas de um entramado, eventualmente correspondente ao utilizado pelo tecido
da indumentária. Nos antebraços encontravam-se
dois braceletes “acorazonados”, de secção circular,
com remates esféricos. Dois anéis em bronze, na
falange intermédia da mão esquerda, de secção circular, com um pequeno espessamento a modo de
cartela, aparentemente em bronze (Fig. 8.2).
Sepultura 3
Estrutura rectangular regular (2,15 x 1 x 0,25
m), paredes tendencialmente rectas e fundo plano,
orientação O-E. Colmatada por dois depósitos de
enchimento e uma interface de violação bem delimitada ao centro e na zona de cabeceira.
Delimitado por esta interface encontrava-se
um conjunto de peças ósseas, desarticuladas e
sem qualquer tipo de organização, localizado junto à parede oeste da sepultura (crânio, mandíbula,
úmeros, rádios e cúbitos, mãos e alguns fragmentos
de costelas); deverá pertencer ao mesmo indivíduo,
a avaliar pelo estado de maturação óssea, e pela ausência de repetição de peças.
Inumação primária: indivíduo adulto jovem
(20-40 anos) feminino, depositado em decúbito
lateral esquerdo. Correspondente à continuidade
anatómica entre algumas costelas esquerdas, bacia, pernas e pés. A análise paleopatológica revelou
marcas compatíveis com patologias de cariz oral e
degenerativo, não muito graves: desgaste dentário
ligeiro, em todos os dentes encontrados; artrose nas
articulações das ancas, joelhos e tornozelos
Junto do fémur direito, surgiu um fecho de cinturão de tipo dito “tartéssico”, composto por duas
peças – macho e fêmea – aparentemente em bronze,
sem decoração, integrável no Tipo 3 de Cerdeño.86
(Fig. 8.3).
Sepultura 4
Estrutura rectangular/ovalada (1,60 x 0,62 x
0,42 m), de paredes rectas e fundo plano, orientação O-E, colmatada por dois sedimentos intercalados por um nível de selamento pétreo.
Inumação primária: Indivíduo não adulto (entre
os 16 e 18 anos de idade) de sexo indeterminado,
depositado em decúbito lateral direito. Membros
superiores fletidos, antebraço esquerdo sobre o
úmero direito e mãos junto à face. Esqueleto completo, mas em muito mau estado de conservação.
Da análise paleopatológica resgistou-se apenas
algum desgaste dentário de um modo geral fraco,
mais evidenciado nos dentes anteriores.
Sobre os pés do indivíduo, surgia um vaso acampanado, de fabrico manual, de corpo bi-troncocónico, bordo exvazado e fundo em ônfalo. Junto das
últimas costelas (parte posterior) surgiu uma fíbula
completa de tipo Alcores aparentemente em bronze,
com uma ponte simples laminar biromboidal e uma
dobra pronunciada, integrável no tipo 8a de S. da
Ponte.87 Apresenta decoração geométrica incisa no
eixo central e longitudinal da ponte, que consiste
em duas linhas paralelas longitudinais preenchidas
com linhas em ziguezague (Fig. 8.4).
Sepultura 5
Estrutura rectangular/ovalada (1,30 x 0,60 x
0,60 m) de paredes rectas e fundo aplanado, com
uma orientação O-E. Corta o limite este do Recinto
1, já colmatado. Colmatada por um único sedimento homogéneo, que cobre a inumação primária.
Inumação primária: Indivíduo adulto jovem
masculino, depositado em decúbito lateral esquerdo, com os membros superiores e inferiores fletidos
e o crânio “tombado” sobre as vértebras cervicais, o
que indica um posicionamento mais vertical junto à
86
85
Cerdeño 1981: 50.
87
Cerdeño 1981: 49.
Ponte 2006: 131.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
1 (Sep. 1)
2 (Sep. 2)
4 (Sep. 4)
3 (Sep. 3)
5 (Sep. 6)
6 (Sep. 7)
Fig. 8.— Espólio da necrópole do Poço Novo 1, distribuído por sepulturas.
373
374
Oeste
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
parede oeste, posteriormente deslocado com o processo de natural decomposição. Esqueleto completo, mas com elevado grau de fragmentação. Desgaste moderado, mas com uma evidente gradação
dos dentes anteriores para os dentes posteriores
(mandíbula e maxilar). Artroses ligeiras nas articulações do cotovelo direito, ancas, joelho e tornozelo
direitos. Artrose moderada nas vértebras torácicas
e lombares. Marcas de trauma (remodelado) num
fragmento de diáfise da clavícula direita. Evidências da ocorrência de um processo infeccioso na
diáfise da tíbia direita.
Sepultura 6
Estrutura rectangular regular (1,70 x 0,86 x
0,38 m), com uma orientação O-E, paredes rectas
e fundo aplanado, muito afectada no seu topo, estando colmatada por dois sedimentos diferenciados
pela interface de violação.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
depositado em decúbito lateral esquerdo, com os
membros superiores e inferiores bem flectidos, crânio fora da posição original – rolamento natural ou
antrópico. Esqueleto muito incompleto e em muito
mau estado de conservação. Ainda assim registaram-se sinais de artrose ligeira nas articulações da
anca esquerda, do tornozelo e do pé direitos e vértebras torácicas.
Aos pés foi depositada uma taça de fabrico manual, de forma tendencialmente hemisférica com
base plana. Dispersas e fragmentadas sobre a zona
do pescoço encontravam-se quatro contas de pasta
vítrea policromada, com decoração ondulante ou
com “oculações”, de morfologias globulares, juntamente com uma conta anular lisa (Fig. 8.5).
Sepultura 7
Estrutura rectangular/ovalada (1,60 x 0,85 x
0,66 m), paredes rectas e fundo aplanado, com uma
orientação O-E. Colmatada por dois sedimentos
intercalados por um nível pétreo, posteriormente
cortados por uma interface de espoliação, cheia
por novo sedimento heterogéneo, com restos ósseos dispersos. As peças ósseas diferenciadas em
três unidades estratigráficas constituem elementos
do esqueleto de um único indivíduo, a avaliar pela
sua maturação óssea, características morfológicas e
pelo facto de não existir repetição das mesmas.
Os restos desarticulados e remobilizados correspondiam a dois conjuntos: um primeiro constituído
por ossos desarticulados e sem qualquer tipo de organização, localizado junto à parede oeste, onde se
identificaram fragmentos de mandíbula, clavícula,
braços e de vértebras cervicais e torácicas, costelas
e ilíaco esquerdo. Estas peças ósseas encontravamse extremamente fragmentadas. Outro formado por
um conjunto de vértebras lombares, em conexão
anatómica, ligeiramente desviadas da sua posição
original, fruto de um “arrastamento” posterior.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
depositado em decúbito lateral direito, continuidade
anatómica entre o ilíaco direito e os membros
inferiores flectidos. Presença de patologias orais:
uma cárie, doença periodontal e desgaste dentário,
regra geral moderado e com um padrão de
agravamento anterior-posterior. Evidências ainda
de artroses ligeiras nas vértebras lombares.
Na zona da cabeceira, posteriormente espoliada,
exumou-se um exemplar de conta bicónica em
bronze (Fig. 8.6).
Sepultura 8
Estrutura rectangular (1,70 x 0,85 x 0,15 m),
algo irregular, muito afectada pela abertura da vala
de decapagem, com uma orientação S-N, apresentava paredes tendencialmente rectas e fundo plano,
estando colmatada por um único enchimento e uma
inumação primária.
Inumação primária: Indivíduo não adulto (com
uma idade aproximada de 12 anos), depositado em
decúbito lateral direito, com os membros superiores e inferiores flectidos. Esqueleto incompleto e
muito destruído. Da análise paleopatológica destacam-se o desgaste dentário ligeiro, mais acentuado
nos anteriores e quase imperceptível nos posteriores; e o desenvolvimento de hiperostose porótica e criba
orbitalis nos parietais e frontal.
3.2.2. Fareleira 2
Localizada entre as outras duas necrópoles deste
núcleo de Pedrógão, situa-se a cerca de 2,5 km a poente da anterior descrita e a escassos 250 m a Este
da Fareleira 3, ao longo do mesmo topo aplanado.
Tal como acontece nos demais conjuntos funerários,
surge aqui acompanhada por um amplo conjunto
de estruturas negativas escavadas no substracto rochoso, com cronologias que vão desde o Neolítico
final ao período Islâmico. As sete sepulturas intervencionadas encontravam-se dispersas, ao longo da
vala de infra-estrutura, em três núcleos distintos: A
(Sep. 1 e 2), B (Sep. 3-5) e C (Sep. 6 e 7), distantes
entre si escassas centenas de metros (Figs. 6 e 9).
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
375
Fig. 9.— Planta dos três núcleos sepulcrais da necrópole da Fareleira 2, Pedrogão.
Sepultura 1
Estrutura rectangular regular (1,40 x 0,60 x 0,10
m) de paredes rectas, fundo plano e uma orientação
O-E. Colmatada por dois sedimentos intercalados
por um nível pétreo já muito destruído. Registou-se
ainda uma interface de violação no centro e limite
oeste com um depósito distinto e um conjunto ósseo
disperso, que por razões de número e morfologia
correspondiam ao restante indivíduo inumado.
Do conjunto de ossos remexidos contaram-se
vários fragmentos de úmeros, rádios, clavícula e
costelas, em muito mau estado de conservação.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
depositado em decúbito lateral direito, com pernas
376
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
flectidas. Em muito mau estado de conservação e
representado apenas pelas vértebras lombares, ilíacos, pernas e pés.
Sepultura 2
Estrutura rectangular simples (1,85 x 0,75 x
0,12 m), paredes rectas e fundo plano, com uma
orientação O-E. A colmatá-la registou-se um único
sedimento homogéneo e pouco compactado, envolvendo um conjunto reduzido e fragmentado de restos osteológicos.
O conjunto de restos em posição secundária
correspondia a três diáfises de ossos longos indeterminados, concentrados aleatoriamente ao centro
da sepultura. O grau de fragmentação não permitiu
qualquer tipo de aferição.
Constituíam o espólio duas contas de colar vítreas, de vidro negro, às quais, por razões tafonómicas indeterminadas saltaram quase todas as
“oculações” a branco (Fig. 10.2).
Sepultura 3
Estrutura rectangular regular (1,27 x 0,58 x
0,08 m) muito destruída, com uma orientação SONE, que se encontrava colmatada por um sedimento homogéneo e um enterramento em muito mau
estado de conservação.
Inumação primária: Indivíduo adulto masculino, depositado com o tronco em decúbito dorsal e
os membros inferiores em decúbito lateral direito,
numa orientação SO-NE. O braço direito em ângulo recto sobre as costelas, mão esquerda junto da
face. Os membros inferiores, representados apenas
pelo fémur direito e esquírolas de tíbia, demonstravam uma posição flectida e lateral
Sepultura 4
Estrutura rectangular regular (1,40 x 0,70 x
0,10 m), com uma orientação NO-SE, encontravase bastante destruída pela abertura mecânica da
vala, sendo colmatada por um enchimento, para
além do enterramento e respectivo espólio.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
depositado em decúbito lateral direito com mãos
junto da face, membros inferiores muito flectidos.
Extremamente fragmentado encontrava-se representado apenas por parte do crânio e mandíbula,
pelos braços e antebraços, fragmentos de ilíaco e
fémur direito, perónio esquerdo. Da observação
paleopatológica observou-se apenas um desgaste
médio em todos os dentes anteriores e um desgaste
mais ligeiro nos posteriores.
No limite SE, junto dos pés, foram colocados
três recipientes cerâmicos, já muito fragmentados,
aparentemente correspondentes a taças ou tigelas,
uma delas manual.
Sepultura 5
Estrutura rectangular ovalada (1,40 x 0,70 x
0,45 m), com uma orientação NO-SE, colmatada por dois sedimentos, intercalados entre si pelo
que seria um elemento pétreo de cobertura. Não
se registou nenhum indício osteológico, mas a sua
morfologia e localização são peremptórias nesta interpretação.
A ausência de um enterramento poderá estar
directamente associada às reduzidas dimensões da
estrutura, indiciando a presença de uma criança/
bebé, de composição mais frágil, mais facilmente
desintegrável.
Registou-se uma conta de colar cerâmica circular/ovalada com perfuração central, de cozedura
redutora e pasta castanha-clara (Fig. 10.3).
Sepultura 6
Estrutura rectangular ovalada (1,75 x 0,68 x
0,14 m), com uma orientação NO-SE. Na sua colmatação, já muito arrasada pela decapagem mecânica, registou-se um único sedimento, com restos
de uma inumação muito destruída. A presença de
ossos já fora de sítio e de ausências que não se podem imputar à acção recente das máquinas levanos a aceitar um momento posterior de reabertura
e violação.
Desta suposta acção de remeximento e saque
terá resultado uma concentração de fragmentos
ósseos (esquírolas, muitos deles) pertencentes ao
tronco e a um antebraço indeterminado, junto do
limite da cabeceira, os quais deverão ter pertencido
ao indivíduo em posição primária.
Inumação primária: Indivíduo adulto masculino, depositado em decúbito lateral esquerdo. Em
conexão anatómica surgiram algumas costelas, as
vértebras lombares, ilíacos e membros inferiores,
todos em muito mau estado de conservação. Observou-se um padrão de patologia degenerativa
não articular ao longo da linea aspera de ambos os
fémures (grau 2).
No limite norte da cabeceira surgiu uma fíbula
completa de tipo Acebuchal (Ponte 9.a.1).88 A acompanhar a parede lateral Norte e junto dos joelhos
flexionados do indivíduo, registou-se uma ponta de
88
Ponte 2006: 139.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
1 (Sep. 6)
2 (Sep. 2)
3 (Sep. 5)
4 (Sep. 7)
Fig. 10.— Espólio da necrópole da Fareleira 2, distribuído por sepulturas.
377
378
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Fig. 11.— Planta da intervenção isolada da sepultura e recinto funerário da Fareleira 3, Pedrogão.
lança em ferro, composta por apenas dois fragmentos muito destruídos. A ponta encontrava-se dobrada (inutilizada?). Aos pés, registou-se parte de
um recipiente pote/vaso, com fundo ligeiramente
côncavo, de produção a torno, pasta medianamente depurada de cor acinzentada escura (Fig. 10.1).
Sepultura 7
Estrutura rectangular/ovalada, de paredes rectas e fundo aplanada (1,80 x 0,60 x 0,40 m), com
uma orientação NO-SE. A colmata-la diferenciaram-se dois sedimentos iniciais, cortados por uma
interface de contornos não totalmente perceptíveis.
Apesar desta reabertura, o indivíduo encontravase completo, embora em muito mau estado de conservação.
Inumação primária: Indivíduo adulto feminino,
em decúbito lateral direito, com mãos junto da face
e pernas muito flectidas. Observou-se um desgaste acentuado nos dentes anteriores da mandíbula e
maxilar, mais moderado nos pré-molares e molares.
Registaram-se ainda duas cáries pequenas oclusais
nos molares inferiores.
Aos pés do indivíduo encontrava-se um vaso cerâmico “à chardón”, de fabrico a torno, de corpo bi-
troncocónico, colo muito acentuado e bordo exvazado e uma base com pequeno ônfalo. A superfície
exterior, cuidadosamente polida, apresentava uma
coloração cinzenta escura, com uma pasta muito
depurada de cozedura oxidante. Completo, mas
muito fragmentado. Ainda colocados na falange
proximal da mão esquerda, dois anéis de aro simples, aparentemente em bronze, de secção rectangular (Fig. 10.4).
3.2.3. Fareleira 3
A necrópole da Fareleira 3 é a que se encontrava
mais a Ocidente do conjunto, situando-se próxima
da extremidade da elevação, justamente no ponto
mais alto da mesma (Fig. 6). O recinto e a sepultura
da Idade do Ferro localizavam-se ao centro de um
povoado de fossos com cronologias enquadradas
no Neolítico Final, sem que se tivessem registado
mais indícios de uma ocupação cronologicamente
consentânea com esta utilização funerária, estando,
portanto, aparentemente isolada. Contudo, como já
se mencionou, dista pouco mais de duas centenas
de metros do núcleo B da necrópole anterior.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
379
Fig. 12.— Espólio da única sepultura na Fareleira 3. “Braseiro” em bronze.
Recinto 1
Este recinto, com uma área aproximada de 96
m2, era constituído por dois tramos paralelos, aproximadamente orientados N-S, ligados entre si por
Poente
um terceiro segmento O-E, apresentando-se
aberto pelo lado sul.Nascente
Os limites a Sul das valas N-S terminavam de forma abrupta e afunilada. Estas eram
assimétricas, com 5 m apenas no lado poente, enquanto no lado nascente apresentava 8 m; o tramo
E-O, que as interligava apresentava 10 m de extensão. Enquanto a largura média era aproximada nos
três segmentos, em torno dos 0,80 m, já na profundidade havia discrepância, embora ligeira, entre o
segmento central (E-O) e os seus congéneres laterais: o primeiro assumia uma profundidade média
de 0,50 m e os restantes dois de apenas 0,30 m, que
se dissipavam à medida que chegavam às extremidades Sul, onde a vala era apenas uma ténue depressão no caliço (Fig. 11). Os três depósitos de
enchimento registados no interior da vala aberta
eram também eles pouco reveladores na compreensão dos processos de abertura e de colmatação
destes recintos.
Sepultura 1
Estrutura rectangular regular (2,80 x 0,90 x
0,50 m), de paredes rectas e fundo plano, com um
ligeiro ressalto interior no seu limite este (pés).
Esta localizava-se precisamente ao centro do recinto funerário, apresentando uma orientação NOSE. Diagnosticaram-se dois enchimentos de sedimento muito homogéneo e semelhante, cortados
por uma interface de violação colmatada, por seu
turno, por outro sedimento mais solto e heterogéneo, com restos osteológicos e de espólio, aleatoriamente dispersos.
Os restos osteológicos dispersos, a colmatar
a interface de violação, coincidem com a área do
380
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Fig. 13.— Espólio da única sepultura na Fareleira 3. Conjunto cerâmico.
do tronco e esqueleto apendicular superior de um
único indivíduo, dispersos por toda a zona da cabeceira, fruto da desarticulação do esqueleto com
especial incidência na zona do tórax e pescoço. O
crânio parece estar ainda in situ, tal como alguns
dos ossos longos dos braços não terão sofrido grandes alterações, apesar de não subsistirem quaisquer
articulações anatómicas.
Inumação primária: indivíduo adulto masculino, depositado em decúbito lateral esquerdo. Continuidade anatómica composta por cinco vértebras
lombares, dois ilíacos e os ossos longos dos membros inferiores flectidos. Os fragmentos de mandíbula e maxilar e os dentes isolados encontrados
apontavam para um padrão de patologia oral com
desgastes e cáries observadas. Apesar da amostra
reduzida e fragmentada, detectaram-se duas cáries
de média cavidade em ambos os primeiros molares
inferiores, um desgaste médio em todos os dentes
observados, com excepção do incisivo superior direito que apresentava um grau de desgaste muito
acentuado.
O exame paleopatológico revelou ainda uma
artrose na articulação da anca direita, traduzida no
achatamento e deformação quer na zona do acetá-
bulo, quer na cabeça e colo do fémur. Geralmente relacionada com a idade avançada, neste caso
específico parece ser (também) uma consequência
directa de uma fractura diagnosticada na zona do
colo e da cabeça femoral, de desenvolvimento longitudinal e lateral, apresentava evidentes sinais de
remodelação óssea. Esta fractura veio, com certeza, afectar a locomoção do indivíduo. A corroborar
esta ideia encontram-se as marcas entesopáticas
detectadas no úmero, na tuberosidade deltoide.
Este sobredesenvolvimento da extremidade proximal do úmero poderá estar correlacionado com um
sobresforço imposto por uma bengala, por exemplo. Infelizmente os ossos apendiculares superiores não estavam nem completos nem inteiros, pelo
Este
que a comprovação se torna impossível.
Na extremidade este (pés) da sepultura, sob o
primeiro depósito de enchimento, a uma cota sobrelevada e separado do restante espólio, encontrava-se virado de bordo para baixo, um braseiro
enquadrado no tipo 2 de Jiménez Ávila,89 com diâmetro médio de 32 cm e uma altura de 12 cm (Fig.
12). O bordo vertical é ligeiramente introvertido e
espessado (8 mm) em relação aos 4 mm médios da
restante peça. Apresenta um único suporte original
conservado, de morfologia rectangular simples e irregular (16 x 3 cm), rebitado no exterior da parede
sob o bordo, sem qualquer tipo de decoração, nem
mesmo as características mãos nos seus extremos.
Apesar desta ausência, a presença de duas anilhas
circulares fundidas, nas quais se encaixava uma asa
em forma de ómega, permite aproximar o sistema
de preensão conservado ao tipo 2a daquele autor. A
ausência da outra asa e do respectivo suporte, apesar da tentativa de substituição, indicia claramente
a sua utilização efectiva, num contexto funcional
ainda complexo de descortinar. A substituição do
suporte inicialmente existente por um pequeno remendo composto por uma placa rectangular com 4
x 2 cm e respectiva anilha, mais pequena e de morfologia distinta das originais, aproxima o sistema
de preensão ao tipo b de Jiménez Ávila.90
Aos pés do indivíduo inumado encontrava-se
um conjunto cerâmico constituído por cinco recipientes abertos: três tigelas em cerâmica cinzenta,
a torno, com pastas depuradas e acabamentos polidos, muito semelhantes entre si, de bordos simples
e fundos ligeiramente côncavos; duas taças, uma
primeira de bordo em aba, com fundo côncavo,
também a torno com tratamento em ambas superfí89
90
Jiménez Ávila 2013: 56.
Ibidem.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
1
2
3
4
Fig. 14.— Espólio da única sepultura na Fareleira 3, objetos metálicos. 1.
Fibula Acebuchal; 2. Agarradores em U; 3. Placa decorada; 4. Faca de ferro.
cies e uma outra de maiores dimensões, com bordo
simples e fundo fragmentado, onde se evidenciaram restos de fauna, de prováveis oferendas cárneas (Fig. 13).
Junto das vértebras lombares do indivíduo,
encontrou-se uma fíbula de tipo Acebuchal com um
arco fitiforme ovalado, decorado com três conjuntos de estrias, uma central e restantes lateriais, pé
longo e uma mola bilateral simétrica muito desenvolvida, com 32 espiras, de corda interior ao arco
e eixo independente (comprimento: 17 cm; altura:
4 cm), integrável no tipo Ponte 9.a/191 (Fig. 14.1).
Os dois possíveis “agarradores de perfil em
U”,92 constituídos, cada um, por uma fina placa (5 x
91
92
Ponte 2006: 139.
Kurtz 2003: 420.
381
2,5 x 0,3 cm de liga de cobre, de secção rectangular,
dobrada sobre si mesma e com duas perfurações
circulares (0,5 cm de diâmetro) em ambas as extremidades distais, surgiram junto dos ossos já muito
remexidos do antebraço, no limite noroeste da sepultura (Fig. 14.2). Juntamente com estes, diagnosticaram-se outras duas peças: uma primeira,
complementar dos anteriores agarradores, em forma de gancho de morfologia em “L” e de reduzidas
dimensões fecharia o interior do U destes elementos metálicos. Uma segunda “placa” muito reduzida e fragmentada (2 x 1,5 cm), de secção semicircular com uma das faces facetada/polida, a outra
com decoração incisa ao longo de toda a superfície
boleada, em forma de linhas sucessivas, horizontalmente dispostas e dois orifícios circulares em cada
uma das extremidades (Fig. 14.3). Este conjunto
de agarradores-rebite-placa decorada fazem parte
dos elementos decorativos constituintes dos cabos
de madeira ou de ferro de armas como facas e/ou
punhais,93 ainda que no caso aqui em estudo, tal
não tenha sido possível confirmar.
Do conjunto metálico destaca-se uma faca afalcatada em ferro, com lâmina de secção triangular
com uma inflexão na extremidade distal (comprimento máximo de 19 cm) e cabo engrossado por
duas pequenas pIacas de bronze, com bordo denticulado, depositada sobre o conjunto cerâmico (Fig.
14.4). O mau estado de conservação não permite
uma leitura clara da peça, ainda que seja plausível
94
Compleintegrar-se dentro do tipo 1 de Medellín.Sul
tavam o espólio dois contos de lança em ferro, de
secção aparentemente circular e um comprimento
médio de 44 cm, depositados ao lado (parede sul)
do indivíduo; o seu estado de fragmentação não
permitiu um enquadramento morfológico claro.
4. POR QUEM OS SINOS DOBRAM: ARQUITECTURAS, RITOS E OFERENDAS
Com a descrição efectuada de cada uma destas necrópoles interessa-nos, acima de tudo, expor
com clareza os dados para uma análise e enquadramento mais alargados em trabalhos posteriores.
Numa primeira abordagem ressalta uma grande
uniformidade entre as diversas necrópoles, e mesmo entre as duas sub-regiões, expressa na implantação, na arquitectura e no tratamento do defunto
(Tabela 1).
93
94
Celestino et al. 1996: 72, 81; Kurtz 2003.
Lorrio 2008b: 567.
382
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
Ne rópole
Poço da Gontinha
Pardieiro
Poço Novo
Fareleira
Fareleira
Sepultura
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Sep.
Orientação
SO→NE
NO→SE
SO→NE
NO→SE
NO→SE
NO→SE
O→E
O→E
O→E
S→N
O→E
O→E
O→E
O→E
O→E
S→N
O→E
OE
SO→NE
NO→SE
O→E
NO→SE
NO→SE
O→E
Tipologia
Rr
Rt
Rr
Rr
Rr
Rr
Rr
Rr
Rr
Ro
Rr
Ro
Ro
Rr
Ro
Rr
Rr
Rr
Rr
Rr
Ro
Ro
Ro
Rr
Idade
A
I
A
A
A
A
A
A
A
A
Aj
NA
Aj
A
A
NA
A
I
A
A
NA
A
A
As
-
Sexo
I
I
M
F
F
F
I
M
F
F
F
I
M
F
F
I
F
I
M
F
I
M
F
M
De ú ito
Le
I
LE
LD
LD
LD
LD
LD
LE
LE
LE
LD
LE
LE
LD
LD
LD
I
LD
LD
I
LE
LD
LE
Espolio
C
A
C; Fc; T
A; Fi
An
C; Cl
Fc; Br
Fc
C; Fi
C; Cl
Cl
Cl
C
Cl
A; C; Fi
C; An
C; A; Fi; Brs
Violação
S
S
N
S
S
S
S
S
S
I
S
I
I
S
S
S
S
S
S
S
S
I
I
S
Tabela 1.— Síntese de arqueologia funerária das cinco necrópoles em análise. Tipologia – Rr: Rectangular regular; Ro: Rectangular ovalada; Rt: Rectangular de
perfil em “T”; Idade – A: Adulto; NA: Não adulto; I: Indeterminado; Sexo – F: Feminino; M: Masculino; I: Indeterminado; Decúbito – LE: Lateral esquerdo;
LD: Lateral direito; Espólio – A: Armas; An: Anel; Br: Bracelete; Brs: “Braseiro”; C: Cerâmica; Cl: Conta colar; Fc: Fecho de cinturão; Fi: Fíbula; T: Toucador;
Violação/Destruiçao – S: Sim; N: Não; I: Indeterminado.
O espaço funerário implanta-se, geralmente, em
pequenos cabeços sobrelevados numa paisagem
marcadamente plana, destacando-se do horizonte
circundante, assumindo uma posição de fácil visibilidade a partir do exterior. A proximidade a cursos de água (de maior ou menor caudal) e territórios de potencial exploração agrícola, juntamente
com a fácil acessibilidade, parecem corresponder
já a condicionantes do mundo dos vivos, circunscrito, provavelmente, a áreas muito próximas das
respectivas necrópoles. A ocupação rural é ainda
pouco conhecida nesta região setentrional do Baixo Alentejo, contudo, cremos que a presença destas
pequenas necrópoles dever-se-á associar a modelos
de povoamento rurais semelhantes aos detectados
tanto nas margens do Mira,95 como no território
centro alentejano,96 compostos por pequenos grupos demográficos, dispersos ao longo dos cursos de
água, aproveitando a riqueza imediata dos solos.
De facto, nestas áreas marcadamente rurais de óptimos solos, parece ser também evidente e determinante a necessidade de ligação com outros meios,
daí a proximidade e facilidade de acessos, reflectida numa uniformidade de arquitecturas, rituais e
95
96
Beirão 1986; Arruda 2001.
Mataloto 2004.
espólios inerente ao mundo funerário sidérico disperso por diferentes áreas de contacto.
O modelo de arquitectura funerária encontrada
indicia também uma grande proximidade, patente
nas soluções rectangulares negativas invariavelmente encontradas sob a forma de sepulturas e
de recintos unipessoais, que parecem estruturar
a ocupação da necrópole. A ausência ou o difícil
acesso a material pétreo significativo promoveu,
por seu turno, uma adaptação a um substrato rochoso apto para a escavação destas estruturas.
Esta escolha arquitectural é então, num primeiro
ponto, inerente aos condicionalismos geológicos
desta faixa dos barros de Beja, passando de uma
solução local, para uma solução regional. Uma das
consequências mais evidentes desta escassa, mas
valiosa, presença lítica é talvez o facto de muitas
das sepulturas encontradas mostrarem indícios de
um selamento pétreo, quer através da presença de
bancadas laterais para a colocação de lajes (Poço
da Gontinha 1, Sep. 4, v. Fig. 3), quer na evidência
de restos pétreos (Poço Novo 1: Seps. 2, 4 e 7, v.
Fig. 7; Fareleira 2: Seps.1 e 5, v. Fig. 9) sugestivos de uma possível utilização de superestruturas tumulares. Em todas as necrópoles intervencionadas estes elementos pétreos foram total ou
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
parcialmente saqueados aquando do momento de
espoliação. Um bom exemplo da utilização de coberturas pétreas encontra-se muito perto do Poço
da Gontinha 1, na necrópole da Vinha das Caliças
4 (Trigaches) onde algumas das sepulturas (não
violadas) registavam ainda grandes lajes de xisto
apoiadas nas bancadas interiores das estruturas
negativas.97
Tanto aqui como nas necrópoles por nós estudadas diferenciaram-se, dentro da retangularidade
das sepulturas, diferentes variações morfológicas:
tipologias regulares de linhas rectas; simples de extremidades arredondadas; com bancadas laterais
interiores e/ou com cabeceiras interiores proeminentes, de perfil em “T”. A coexistência destas tipologias na necrópole do Poço da Gontinha 1, juntamente com a homogeneidade do espólio encontrado
no interior de cada uma delas, não permite uma diferenciação temporal ou ritual clara. Efectivamente, como se referiu acima, na necrópole do Olival
dos Mártires ou em Medellín, onde as estruturas
em fossa rectangular, escalonada ou não, parecem,
segundo alguns autores, associar-se a cremações in
situ (de tipo 4 de Alcácer), enquadráveis eventualmente numa primeira fase de ambas necrópoles.98
A amostra reduzida e fragmentada também não
permitiu a associação desta diferenciação de sepultura a um género ou estatuto específicos.
Apesar de não terem sido documentados, na
área em análise, os grandes tumuli associados às
sepulturas, como acontece de forma sistemática
nas necrópoles do núcleo de Ourique, temos uma
mesma espacialidade ortogonal, com o adossamento sucessivo de estruturas rectangulares, neste caso
escavadas no subsolo, com evidentes afinidades na
arquitectura tumular do planalto de Palheiros, em
particular nos designados temenos das necrópoles
da Chada e Fonte Santa.99 O preenchimento rápido
de muito dos recintos de fossos, associado a uma
quase sistemática violação das sepulturas leva-nos
a pensar na presença de estruturas aéreas em terra compactada ou adobe, como é bem conhecido
para outras áreas do Sul peninsular em cronologias
semelhantes,100 reforçando as semelhanças com
as necrópoles tumulares da região de Ourique. A
presença destes delimitadores espaciais, comum
aos espaços funerários intervencionados (com excepção da necrópole da Fareleira 2) constitui uma
97
Rodrigues 2009: 8.
Fabião 1998: 356; Torres 2005: 197.
99
Arruda 2001: 251-257.
100
Blanquéz 1991: 344.
98
383
tendência nas necrópoles do designado “núcleo
de Beja”, assumindo, com bastante probabilidade,
um papel de primazia na génese e organização das
mesmas.
Sem comprometer este modelo, as diferentes
necrópoles aqui apresentadas vêm demonstrar um
quadro mais complexo na estruturação e génese dos
espaços funerários sidéricos, numa multiplicidade
de soluções encontradas que reflectem, senão diferenças cronológicas, pelo menos diferentes dinâmicas supra e superfamiliares. No Poço da Gontinha
1 o modelo proposto surge-nos bem patente, como
o indica a sequência construtiva documentada,
que apresenta óbvias conotações cronológicas ao
observar-se um adossar contínuo e organizado de
sucessivos recintos de Sul para Norte. Aqui foram
escavadas três sepulturas femininas periféricas,
articuladas em torno de um recinto (Recinto 2),
deixando entrever prováveis relações interpessoais face à figura central, infelizmente não escavada.
Este conjunto encontra-se, quanto a nós, diacrónica e espacialmente diferenciado das restantes sepulturas no limite nascente, as quais se encontram
associadas a pelo menos mais um recinto (Recinto
1) visível. O espaçamento temporal é assegurado
pela observação estratigráfica, com os cortes entre
recintos (1 e 2) e entre sepulturas (sepulturas 5 e
10) (Fig. 3).
No Poço Novo 1 a dinâmica de enterramento
parece ser algo diferente, com um domínio quase
exclusivo de sepulturas femininas nas imediações
de um recinto/fosso em forma de ”L”, pressupondo
uma estruturação também ela periférica, com uma
organização por géneros, com alguns indícios de
vínculos consanguíneos e afetivos, já que estamos
na presença de uma criança e três adultos muito
jovens, assegurando hipoteticamente laços entre
Este
mães e filhas (Fig. 7). O único indivíduo masculino identificado surgia em posição demarcada das
restantes sepulturas, a cortar a extremidade este
do próprio recinto, situação semelhante à de outro
indivíduo masculino do Poço da Gontinha 1, cuja
sepultura 5 amputou de forma concordante um troço do designado Recinto 1 (Fig. 3). Aqui, tal como
acontece na Vinha das Caliças (Trigaches), o recinto assume uma morfologia distinta, sugerindo um
carácter incompleto ou até mesmo uma construção
faseada do mesmo.
Entre todas, a necrópole da Fareleira 2 era claramente aquela que menos se integrava no citado modelo. Composta por três núcleos dispersos,
sugere-nos a presença de pequenos agregados de
384
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
cariz familiar, compostos por homem-mulher e houma
mem-mulher-criança (Fig. 9). Dentro destes núcleos as orientações nem sempre eram concordantes,
pressupondo um diferenciação propositada ou um
enterramento diacrónico, com pontos de referência ligeiramente distintos. A presença de espólio,
apesar da aparente simplicidade e carácter muito
familiar da necrópole, era uma constante, subsistindo à destruição parcial desta área. Por sua vez,
o recinto e a sepultura do sítio da Fareleira 3, pela
riqueza e carácter excepcional do espólio e pela localização isolada do espaço de enterramento, poderão ser representativos de um elemento destacado
na sociedade, aparentemente um indivíduo ancião,
que assumiria um papel com uma forte carga simbólica no seio destas comunidades (Fig. 11). Da
necrópole do Pardieiro pouco se pode aduzir, dada
a exiguidade da intervenção.
A diversidade de agregação de sepulturas e o
próprio carácter dissonante de alguns recintos,
como o Poço Novo 1, reflectem uma complexidade
de organização interna da área sepulcral que transcende qualquer abordagem linear sobre a estruturação dos espaços funerários, deixando em aberto a
coexistência de diferentes modelos de organização
funerária, talvez adaptados a distintos grupos sociais, indiciando uma estruturação mais complexa
destas comunidades rurais.
A tendência de orientação das sepulturas, embora com comportamentos ligeiramente diferentes
entre necrópoles, seguia na sua maioria o eixo Oeste-Este, numa clara continuidade das tendências
cosmológicas conhecidas no mundo funerário préhistórico, acompanhando a tendência maioritária
registada no Sul peninsular.101 Das vinte e quatro
sepulturas escavadas nas diversas necrópoles, onze
surgiam com esta orientação, outras oito assumiam
uma posição ligeiramente desviada num eixo NOSE, apenas duas adoptavam a orientação S-N, e
três no sentido SO-NE. As ligeiras divergências
detectadas dentro do eixo principal (NO-SE e SONE) poderão estar relacionadas com a observação
directa do nascer e pôr-do-sol aquando da abertura
das sepulturas e recintos. A correlação entre estes
desvios aos pontos cardeais com os diferentes azimutes de elevação/inclinação do Sol ao longo das
estações do ano é tentadora, no entanto devemos
igualmente valorizar outras condicionantes que
poderão determinar a orientação das sepulturas,
como os eixos N-S, incompatíveis com leituras so-
lares, deixam bem patente. A organização e o crescimento da necrópole podem ser condicionados
por questões sociais ou arquitectónicas intrínsecas
ao grupo, gerando processos centríptos em torno
de determinados elementos socialmente diferenciados (por idade, riqueza, feitos, etc).102 Estas situações, juntamente com o melhor aproveitamento do
espaço, poderão explicar o surgimento das quatro
sepulturas orientadas num eixo Sul-Norte, localizadas nas necrópoles do Poço da Gontinha 1 e do
Poço Novo 1 (Figs. 3 e 7).
A deposição do féretro em fossa rectangular
individual escavada no solo, ainda que se possa
entrever origens locais em contextos antigos da
Idade do Bronze, parece antes acompanhar a interacção com as comunidades coloniais em todo o
Sul peninsular, podendo associar-se tanto a rituais
de cremação como de inumação. A cremação é o
ritual mais comum nos contextos coloniais e mais
“orientalizados”, convivendo frequentemente com
a inumação, principalmente em momentos avançados da primeira metade do Iº milénio a.C. As fossas
sepulcrais similares às registadas nas necrópoles
aqui em estudo encontram-se usualmente associadas a cremações “in situ”.103
O rito de enterramento seguido nas cinco necrópoles aqui apresentadas é, em exclusivo, a inumação, usualmente em decúbito lateral, flectido.
Este facto assume particular interesse pela clara
demarcação das tendências que se têm vindo a registar numa envolvente alargada, como cremos ter
demonstrado anteriormente. Na realidade, a cremação impõe-se enquanto ritual funerário dominante no litoral e no Alentejo Central,104 enquanto
mais a Sul, na área de Ourique, se aceita a convivência de ambos os ritos, algo que parece também
acontecer pontualmente nas necrópoles de Beringel, como Palhais.105 No conjunto aqui em estudo,
dado o carácter bastante parcelar de algumas das
intervenções, não devemos afastar liminarmente
a possibilidade de coexistência, também, de algumas incinerações. Esta possível dualidade de tratamentos, mas com uma clara prevalência de inumações, não deixa de corresponder a um paradigma
aparentemente circunscrito, de momento, a esta
região do interior baixo alentejano, demarcandose, claramente, dos mais expressivos exemplos da
necrópole do Olival do Senhor dos Mártires (Al102
Ibidem.
Torres 2010: 38.
104
Mataloto 2010-11.
105
Santos 2010.
103
101
Torres 1999: 152.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
cácer do Sal),106 da necrópole da Tera (Mora)107
ou Medellín,108 nas quais a prática da cremação, in
situ ou em ustrinum surge em exclusivo, sem alterações significativas ao nível do espólio e materiais
associados. Este facto representa a clara integração destas comunidades em redes de trocas interregionais, sem que tal imponha, aparentemente, a
dissolução das características culturais autóctones,
derivadas dos atavismos próprios das comunidades
rurais.
Cada sepultura era individual, não se registando nenhum sinal de reutilização, apenas uma constante marca de espoliação “cirúrgica” em quase
todas elas: das vinte e quatro sepulturas intervencionadas, dezasseis foram saqueadas e apenas três
apresentavam registos compatíveis com um grau
de preservação intocado. Quando não se registavam ocupações mais recentes no local, implicando
quase sempre uma destruição parcial da estrutura
(bem visível no Poço da Gontinha 1), os sinais de
saque eram geralmente muito ténues, traduzidos
na reabertura parcial das sepulturas, nos seus limites de cabeceira, deixando um rasto de destruição,
com ossos do tronco e crânio remexidos e fragmentados, corpos muito segmentados, restos de espólio fora de sítio e negligenciado. O facto de esta
violação ser selectiva, claramente conhecedora da
realidade em causa, juntamente com a persistência
de conexões anatómicas nos ossos remexidos (caso
da Sep. 7 do Poço Novo 1), leva-nos a supor um
processo não muito posterior ao do enterramento,
o que por seu turno se coaduna com a presença de
uma evidente visibilidade à superfície destas realidades funerárias, indicadora da presença de um
qualquer sinalizador, em materiais perecíveis, ou
as já mencionadas estruturas tumulares em terra/
adobe, posteriormente removidas.
No conjunto estudado o corpo é depositado em
decúbito lateral (esquerdo: 9 indivíduos ou direito:
12 indivíduos) com os membros inferiores e superiores bem flectidos, numa analogia inquestionável
às deposições fetais conhecidas para períodos anteriores na região. No total foram diagnosticadas
vinte e uma inumações primárias, correspondentes
a dezanove indivíduos adultos e apenas dois indivíduos não adultos. Ficaram sem diagnóstico, porque sem restos osteológicos, as sepulturas 2 e 5 da
necrópole da Fareleira 2 (Fig. 9) e a sepultura 4 do
Poço da Gontinha 1 (Fig. 3). As dimensões destas
sepulturas vazias apontam para a inumação de dois
indivíduos adultos (Sep. 4 de Poço da Gontinha 1,
v. Fig. 3, e Sep. 2 de Fareleira 2, v. Fig. 9), com
medidas muito semelhantes às demais intervencionadas, e de um indivíduo não-adulto, de menores
dimensões (Sep. 5 de Fareleira 2, v. Fig. 9).
Dentro da categoria dos adultos foi possível determinar uma sobre-representação das mulheres,
num total de onze indivíduos, para um número reduzido de seis homens identificados. Esta discrepância entre sexos é comum às necrópoles do Poço
da Gontinha 1 e Poço Novo 1. Na origem destes
valores poderão estar inúmeros factores, que não
apenas as causas demográficas já apontadas para as
necrópoles do Baixo Guadalquivir e de Medellín,
com taxas de representatividade de género muito
semelhantes às encontradas aqui, explicadas por
um forte índice de mortalidade feminina em idade
fértil, fruto de problemas de gestação e de parto,
conjugado com tarefas de esforço físico.109 Estas hipóteses contrastam, antes de mais, com a ausência
de fetos ou de recém-nados e com a inexplicável
fraca representatividade da mortalidade infantil
nas necrópoles, também ela um fenómeno recorrente. Na confirmação desta teoria necessitaríamos
ainda de conseguir afinar escalões etários, fazendo
corresponder aos indivíduos femininos exumados
um diagnóstico preciso de mulheres jovens em idade de reprodução, inferências impossíveis pela ausência de dados antropológicos válidos. Das onze
mulheres apenas uma – Sep. 3 de Poço Novo 1 –
apresentava padrões suficientes em concordância
com um escalão etário de jovem adulto (20 a 30
anos). Nesta mesma necrópole identificou-se ainda
um outro adulto jovem de sexo masculino – sepultura 5 de Poço Novo 1. A par destes dois indivíduos
com uma determinação mais afinada, surgia apenas
o indivíduo masculino da Fareleira 3, enquadrado
num escalão etário mais avançado, genericamente
aqui identificado como “ancião”, sem que haja dados suficientes para um enquadramento fidedigno.
Os indivíduos não-adultos na terminologia antropológica, uma criança com cerca de 12 anos de
idade à morte e um adolescente entre os 16 e 18
anos de idade aproximada, muito provavelmente
não seriam considerados crianças ou adolescentes,
à luz de uma sociedade onde a esperança média de
vida não era muito elevada e onde a emancipação
seria, muito provavelmente, precoce. Não deixa de
ser interessante que tenham sido colocados num
106
Fabião 1998; Arruda 1999-2000.
Mataloto 2010-11.
108
Almagro-Gorbea 2008a.
385
107
109
Belén 2012: 184.
386
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
ambiente marcadamente feminino, quase matriarcal, sem qualquer tipo de ritual específico ou diferenciador.
Tendo em conta esta disparidade na distribuição
por sexos e idades deverá ser questionada a própria
organização das necrópoles e a existência, ou não,
de uma espacialidade inerente às mulheres. O papel social das mulheres nestas sociedades é muitas
vezes defendido como determinante na justificação
e consolidação de um sistema de linhagens, quer
na construção da identidade dos grupos familiares,
onde a transmissão hereditária sobrecarrega o valor
da descendência;110 quer na legitimação de sociedades aristocráticas e clientelares de forte complexidade social, propostas por outros autores.111 Os dados disponíveis para as necrópoles aqui em estudo,
não autorizam ainda leituras claras a este nível.
A hipótese levantada acima sobre uma aparente
construção faseada da necrópole em torno de recintos com sepulturas centrais de homem e mulher,
eventuais fundadores de uma linhagem familiar,
como parece acontecer na necrópole da Carlota, e
que jogaria em favor do papel equivalente da mulher na formação de linhagens,112 não foi atestada
em qualquer das necrópoles por nós estudadas.
No Poço da Gontinha 1, apesar da evidência de
vários recintos que se desenvolvem para Norte, a
partir um inicial, foram intervencionadas apenas
sepulturas circundantes; três das quais, muito próximas entre si, de mulheres. Fazer corresponder
estes dados com alguma aferição assertiva de núcleos específicos de mulheres seria manifestamente excessivo. Por outro lado, a evidência de uma
espacialidade diferenciada por género é já bem
evidente na necrópole do Poço Novo 1, onde dos
oito indivíduos exumados, apenas um pertencia ao
sexo masculino, sendo os demais mulheres e nãoadultos (na terminologia antropológica, referente
aos diferentes estágios de maturação óssea) (Fig.
7). A própria morfologia do recinto em forma de
“L”, a presença do único indivíduo adulto masculino no interior de uma das extremidades deste recinto, parece sinalizar alguma intencionalidade de
diferenciação de um espaço reservado a mulheres
e jovens. Este constitui de facto o único fenómeno
de diferenciação ritual por género documentado no
conjunto estudado.
Apesar da generalizada má representação e conservação dos restos ósseos foi possível determinar
110
Rísquez e García Luque 2007: 264.
Torres 1999: 166.
112
Salvador e Pereira 2012.
111
alguns padrões patológicos recorrentes. Na cavidade bocal detectou-se uma uniformização dos níveis
de desgaste oclusal, de graus ligeiros e moderados
nos molares e pré-molares, contrastando com desgaste muito acentuado e exclusivo da dentição anterior – incisivos e caninos. Este comportamento
era comum a todos os indivíduos onde foi possível
esta observação. Registaram-se também processos
cariogénicos em cinco dos indivíduos, todos eles
adultos (mais de 30 anos) de pequenas e médias dimensões, localizados exclusivamente na superfície
das raízes da dentição posterior (molares e pré-molares), tal como as perdas ante mortem observadas
em apenas dois indivíduos adultos.
Este padrão muito atípico da patologia oral,
com um desgaste pouco acentuado nos dentes de
mastigação e trituração dos alimentos, poderá estar associado a uma utilização da boca e dos dentes
como “terceira mão” numa actividade recorrente,
exemplos actuais como os dos sapateiros ou das
mulheres dos pescadores no remendo das redes,
são sintomáticos deste tipo de desgaste. Infelizmente, a desigual representação da amostra não
nos permite aferir qualquer dimorfismo nesta
afectação, o que poderia sugerir uma actividade
essencialmente feminina. Foram também diagnosticados níveis idênticos de desgaste em dois dos
indivíduos masculinos exumados e no jovem com
cerca de 12 anos de idade à morte. Por outro lado,
as cáries cervicais e as perdas ante mortem sugerem,
pelo seu posicionamento posterior, mais do que
excesso de açúcares, um elevado consumo de hidratos de carbono fermentáveis como os cereais e
as leguminosas, juntamente com a falta de higiene
oral capaz de remover os restos retidos nos dentes
posteriores, promovendo uma alteração do equilíbrio dental, o despoletar de processos infecciosos como as cáries, doenças periodontais, tártaro,
e culminando inevitavelmente na perda do dente.
Com excepção do desgaste anormal dos dentes
anteriores, que assume aqui outras implicações,
os demais processos infecciosos e de erosão têm
uma implicação óbvia com a idade, num exacerbar com o passar do tempo. A presença residual de
dentes afectados com estas patologías sugere, em
contrapartida, uma média de idade à morte pouco
elevada.
Nos indivíduos adultos, com a mesma condicionante de preservação, diagnosticou-se o desenvolvimento de lesões degenerativas não articulares nas
pernas e braços, e articulares nas ancas e ombros.
O padrão mais ou menos constante sugere uma
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
intensa actividade de locomoção e de impulsão de
forças durante o levantamento de objectos pesados
com pernas flexionadas,113 sugerindo ainda movimentos mecanizados e repetitivos em trabalhos
como a agricultura, a carpintaria e em actividades artesanais.114 Registaram-se ainda dois casos
de patologia traumática remodelada, um primeiro
na clavícula do indivíduo jovem da sepultura 5 do
Poço Novo 1, outra no indivíduo adulto (provável
ancião) da sepultura 1, Fareleira 3, correspondente
a uma fractura no colo do fémur, patologia largamente associada a indivíduos de maior idade. No
crânio da criança com cerca de 12 anos de idade
– sepultura 8 de Poço Novo 1 (Fig. 7) – foram ainda registados dois fenómenos poróticos –hiperostose
porótica e cribra orbitalis – que se traduzem num aspecto poroso “rendilhado” na calote craniana e no
interior das orbitas, constituído fieis indicadores de
carências alimentares, especialmente em ferro, sugestivos de uma alimentação pobre em nutrientes
e pouco variada, ou de uma incapacidade em reabsorver os nutrientes.
A presença de articulações fechadas sugere o
acondicionamento de uma possível mortalha ou de
um qualquer tipo de indumentária, bem ajustada
ao redor do indivíduo, presa por materiais perecíveis ou através de objectos metálicos. Em quatro
das sepulturas intervencionadas foram diagnosticadas fíbulas em bronze, que poderiam ter servido
para esse efeito. Localizadas junto ao corpo dos indivíduos, geralmente nas zonas posteriores e superiores dos esqueletos – coluna vertebral, omoplatas
– poderiam estar relacionadas com alguma forma
de vestimenta ou sudário. O padrão de distribuição
destas fíbulas, com quatro exemplares recolhidos
em duas sepulturas masculinas (Fareleira 2, Sep.
6, v. Fig. 9; e Fareleira 3, Sep. 1, Fig. 11) e numa
sepultura de um indivíduo entre os 16 e os 18 anos
de idade à morte (Poço Novo 1, Sep. 4, v. Fig. 7),
juntamente com a presença exclusiva de fechos de
cinturão em três sepulturas femininas (Poço da
Gontinha 1, Sep. 8, v. Fig. 3; Poço Novo 1, Seps. 2
e 3, v. Fig. 7) – sempre na zona ligeiramente acima
da bacia – sugerem trajes ou sudários diferenciados
entre homens e mulheres.
Esta perspectiva de género relacionada com o
mundo funerário da Idade do Ferro tem conhecido
maior debate nos últimos anos, na tentativa de um
melhor enquadramento de um modelo de socieda113
114
Dobón e Suárez 2007: 247.
Ibidem: 244.
387
de vinculado a estas estruturas funerárias.115 Da
conjugação dos resultados osteológicos conseguidos e dos objectos exumados podemos falar de um
espólio marcadamente masculino e de outro caracteristicamente feminino, sempre com a prudência que estas análises implicam e sem conclusões
exclusivas nem definitivas (Fig. 13). Na amostra
apresentada caberiam aos homens os objectos metálicos como as fíbulas e as armas em ferro – lanças e contos, facas afalcatadas. As lanças acompanhando sempre os limites laterais das estruturas,
de frente para o indivíduo inumado. Às mulheres
caberiam os fechos de cinturão de tipo “tartéssico”, os braceletes “acorazonados”, os objectos de higiene e beleza pessoal e os anéis em bronze, numa
maior diversidade de espólio. Em ambos sexos são
comuns as contas de colar e os recipientes cerâmicos. Os objectos de adorno pessoal concentram-se
entre a bacia e o crânio, sendo esta a zona mais
fustigada no interior das sepulturas, indiciando a
presença de um conjunto mais extenso de adornos,
eventualmente até preciosos, que foram saqueados. A cerâmica era usualmente colocada sobre
ou aos pés dos indivíduos inumados. Também aqui
surgia uma aparente dicotomia entre formas abertas – pratos e tigelas – e formas fechadas – potes e
vasos –, estas associadas exclusivamente às mulheres, as anteriores com uma forte, mas não exclusiva, filiação aos homens. Sinal da fragilidade desta
padronização é o caso da sepultura 4 da necrópole
do Poço Novo 1 onde, associados ao indivíduo jovem (16-18 anos), se encontravam uma fíbula de
tipo Alcores, junto das omoplatas e um vaso afim de
“à chardon” depositado sobre os pés. Neste caso, a
análise de género através do espólio torna-se impossível, na justa medida em que a fíbula indica
um indivíduo masculino e o vaso apontaria para o
género feminino.
Estas leituras foram igualmente possíveis em
outras necrópoles do Sul peninsular, como Cerrillo
Blanco116 e Medellín.117 Também nestas, a análise
dos espólios aponta para uma maior frequência e
número nas sepulturas femininas,118 constituindo
igualmente bons indicadores de género os fechos
de cinturão de tipo “tartéssico” de dois ou três garfos e os braceletes “acorazonados”, estes últimos com
características de distribuição semelhantes na ne115
Rísquez e García Lurque 2007; Belén 2012; Delgado e
Ferrer 2012.
116
Torrecillas 1985.
117
Almagro-Gorbea 2008a.
118
Belén 2012: 187.
388
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
crópole de Setefilla.119 Apesar da óbvia diversidade entre as necrópoles andaluzas, da Estremadura
espanhola e do Sul do território actualmente português, parece existir uma partilha de “códigos de
indumentária” de carácter mais abrangente, resultantes da utilização de modelos de adornos, e possivelmente fabricos, de grande circulação, que se
conjugariam de modo bastante semelhante. Tal fica
bem patente na simples comparação dos espólios
das sepulturas femininas 86G/29a de Medellín,120
de cremação e deposição em urna, muito semelhante aos conjuntos encontrados nas sepulturas femininas do Poço Novo 1 (sepulturas 1, 2 e 3) e Poço
da Gontinha 1 (sepultura 8) e aos exemplares recuperados da zona de Ourique, nomeadamente na
Herdade do Pêgo.121
A única sepultura da Fareleira 3 é, sem dúvida, a mais icónica, com uma riqueza e variedade de
artefactos surpreendente, que a distanciavam das
restantes intervencionadas na região de Pedrógão,
e mesmo na área de Ferreira (Figs. 12-14). Isolada e bem demarcada na paisagem, esta sepultura
e respectivo recinto delimitador, surgiam, como
já se afirmou, numa espacialidade privilegiada no
limite SE do cerro aplanado, com um amplo domínio sobre a paisagem circundante. Ao indivíduo
masculino, claramente ancião, encontrava-se directamente associado um vasto espólio cerâmico
– cinco recipientes abertos – e metálico – lanças e
faca –, tal como as únicas evidências de uma possível oferenda cárnea, no interior de um dos pratos.
Sobre ele, num depósito diferenciado, encontravase o “braseiro” de tipo 2 de Jiménez Ávila, virado
ao contrário, numa possível e significativa alusão
à sua derradeira utilização. Esta imagem é corroborada pelo putativo simbolismo ritual destas bacias documentadas, regra geral, em contextos funerários, por vezes fazendo par, nos modelos mais
antigos, com os jarros piriformes, também eles em
bronze ou mesmo prata. Neste sentido, no quadro
das comunidades rurais sepultadas no conjunto de
necrópoles aqui estudadas, este indivíduo ancião
detinha, à sua morte, um papel certamente estruturante no seio da comunidade, quer como elemento
fundador, quer relacionado com qualquer outra actividade agregadora do grupo, que o levaria a ser
sepultado de modo claramente diferenciado. Por
outro lado, o próprio conjunto ritual, e em particular a bacia de bronze, deveria ter desempenhado
119
Ibidem: 188.
Almagro-Gorbea 2008a: fig. 404.
121
Arruda 2001: 266.
120
um papel ritual relevante associado a este indivíduo, que a levou a ser amortizada com ele em avançado estado de uso, após, certamente, as exéquias
de preparação e enterramento do mesmo.
A análise que temos vindo a efectuar tem por
base um pressuposto cronológico, segundo o qual
cremos que as diversas áreas sepulcrais deverão
ter-se formado ao longo do mesmo espaço de tempo, ainda que, como é óbvio, cada uma seguindo
os seus próprios ritmos. Efectivamente, se à necróaparente
pole do Poço da Gontinha 1 se
pode associar um
tempo mais alargado de uso, e uma comunidade
mais extensa, dada a sua aperente maior dimensão,
os pequenos núcleos de Fareleira 2 aparentam resultar de uma utilização pontual do território, inserida numa lógica territorial e de necropolização
mais vasta, como o denota a adjacência da única
sepultura da Fareleira 3. Por outro lado, da necrópole do Pardieiro pouco se poderá adiantar, além
do possível enquadramento cronológico das duas
sepulturas escavadas.
As necrópoles aqui apresentadas ter-se-ão constituído algures entre os finais do séc. VII a.C. e
todo o séc. VI, podendo mesmo, pontualmente, entrar pelo seguinte como se verá. Todavia, cremos
que o século VI a.C. terá sido o momento central
de constituição destes espaços sepulcrais, como
tentaremos expor em seguida. Em geral, a noção
de necrópole implica uma construção e uma utilização prolongada, o que de certo modo fica patente no Poço da Gontinha 1, quer pela extensão dos
achados, infelizmente apenas muito parcialmente
intervencionados, quer pelo facto de existirem cortes entre recintos e sepulturas (Fig. 3). Por outro
lado, no caso das sepulturas das Fareleiras, talvez
seja mais correcto enquadra-las como núcleos sepulcrais, que farão parte de uma paisagem necropolizada, dispersa pelo topo aplanado, que nunca
chegaram, verdadeiramente, a constituir-se como
uma única necrópole.
À excepção do Poço da Gontinha 1, as restantes
necrópoles em análise apresentam diacronias estratigráficas curtas, com raros seccionamentos de estruturas durante o período de formação da necrópole, o que poderá derivar de tempos de utilização
curtos e da marcação à superfície das covas sepulcrais. Mesmo os escassos seccionamentos existentes, principalmente efectuados sobre os recintos,
como no Poço da Gontinha 1 (Sep. 5) e Poço Novo
1 (Sep. 5), parecem efectuar-se sobre uma memória do próprio recinto, ao estarem axializados com
ele, aproximando as duas acções no tempo. No pri-
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
meiro caso, a estratigrafia permitiu-nos uma constatação de mais do que uma fase de enterramentos,
numa diacronia de ocupação que vem, de resto, em
conformidade com a evolução geracional desta necrópole, que neste caso concreto deverá ir além da
geração fundadora. A limitada intervenção nesta
última necrópole, e o facto de se encontrar bastante
afectada por utilizações posteriores, impede considerandos mais alargados sobre uma área sepulcral
particularmente complexa.
Assim, à falta de elementos estratigráficos sólidos para obter sequências relativas, a análise cronológica será baseada principalmente nas datações
atribuídas aos conjuntos artefactuais amortizados
nas sepulturas, os quais se integram em tipologias
largamente conhecidas em todo o Sul peninsular.
Esta atribuição cronológica em contextos sepulcrais é sempre problemática, em particular quando baseada em conjuntos artefactuais que tiveram
uma biografia própria, por vezes mais longa que
o próprio indivíduo com que foi inumado. Exemplo claro disso é o “braseiro” de Fareleira 3 (Fig.
12), cujos intensos traços de uso podem revelar
uma longa existência, antes da sua amortização,
curiosamente, neste caso, associado igualmente a
um indivíduo idoso. Contudo, e tendo sempre em
atenção este facto, procuraremos fazer pontualizações cronológicas transversais, que reforcem esta
imagem de uma certa homogeneidade cronológica
que, todavia, não pode mascarar dinâmicas individuais próprias.
Na necrópole do Poço da Gontinha 1 os conjuntos artefactuais registados são relativamente
limitados, devido, em boa medida, ao forte saque
que as sepulturas sofreram. Os considerandos cronológicos são, pois, difíceis de tecer e relativamente
frágeis.
A pequena taça de cerâmica cinzenta, de tipologia simples, recolhida na sepultura 4 (v. Fig. 4), enquadrável na forma 1 de Santarém,122 ou na A1A1
de Medellín123 não permite grandes ilações. Enquadrada entre finais do séc. VII e pelo menos inícios
do séc. V a.C. nesta última necrópole, pode prolongar-se para momentos mais recentes no Ocidente
peninsular, como nos refere aquela autora124 sendo,
então, pouco significativa em termos cronológicos.
Curiosamente, esta mesma autora enquadra o tipo
de sepultura em que esta peça foi documentada (de
perfil em “T”, rectangular de canal central) algu122
Arruda 1999-2000.
Lorrio 2008c: 679.
124
Arruda 1999-2000: 196.
123
389
res entre os meados do séc. VII a.C. e meados do
seguinte em Alcácer do Sal (Tipo 4),125 o que nos
permite propor uma cronologia semelhante para o
nosso caso. Os dados disponíveis para todo o Sul
peninsular, onde este tipo de sepultura se documentou, apontam para cronologias semelhantes,
quer na região dos Alcores de Carmona,126 quer
mesmo nos contextos coloniais de Cádiz, onde são
maioritárias127 ou de Ibiza.128 Contudo, por norma,
em todos estes contextos, estas formas sepulcrais
encontram-se associados a cremações “in situ”.
No caso vertente do Poço da Gontinha 1, dado
encontrar-se fortemente truncada por destruições
de época moderna, não temos qualquer informação
sobre o ritual presente, como se viu.
Na sepultura 8 documentou-se a presença de
um pote em cerâmica cinzenta, de colo pouco desenvolvido, algo estrangulado, separando-se do
bojo por ligeira aresta (Fig. 4), que se assemelha
a alguns tipos conhecidos na necrópole de Medellín, dentro do tipo D1, integráveis dentro dos finais do séc. VII a.C. e inícios do seguinte.129 Este
pote encontrava-se acompanhado de um fecho de
cinturão de tipo 3 (Fig. 4). A cronologia deste tipo
de fechos remete-nos, uma vez mais, para os finais
do séc. VII e inícios do seguinte,130 se atendermos
principalmente à necrópole de Medellín, podendo,
segundo outros autores, prolongar-se o seu uso por
grande parte do séc. VI a.C.131 Os dados disponíveis nas restantes necrópoles aqui estudadas, onde
este tipo foi igualmente registado (Seps. 2 e 3 do
Poço Novo 1) não permitem afinar a sua cronologia, ainda que esta necrópole apresente, no geral,
e como veremos, um aspecto relativamente arcaizante.
Por último, ainda nesta sepultura, recolheu-se
o designado conjunto de toucador, ou de estética,
composto por quatro elementos unidos por uma
argola do mesmo metal (Fig. 4). Os paralelos mais
próximos verificam-se na vizinha necrópole de Palhais132 onde se registaram duas inumações de adultos femininos acompanhadas (Seps. 1 e 2) de um
conjunto semelhante com uma colher limpa-orelha,
espátula e o designado scalptorium, tendo-se registado na sepultura 2 um fecho de cinturão de tipo
125
Ibidem: 81.
Torres 2010: 41.
127
Ibidem.
128
Fernández e Costa 2004: 336.
129
Lorrio 2008c: 709.
130
López Ambite 2008: 519.
131
Cerdeño 1981: 54.
132
Santos et al. 2009: 762.
126
390
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
4c de Cerdeño. Este último permite enquadrar a
inumação em momentos mais recentes do século
VI a.C., ainda que se proponha para a sepultura 1
uma cronologia anterior, em torno dos meados do
século. Os paralelos recolhidos por estes autores
parecem acompanhar genericamente estas cronologias, tal como os achados de El Palomar133 podendo prolongar-se o seu uso até meados do século
seguinte, em conformidade com os dados de Cancho Roano.134
Na sepultura 5 da necrópole do Poço da Gontinha 1, um indivíduo adulto masculino encontravase acompanhado, como já se mencionou, de uma
lança de tipo 9b, variante VII.B.b.8 de Quesada
(Fig. 4), usualmente enquadrada entre finais do
séc. VI a.C. e os inícios do séc. IV a.C., demonstrando um claro desfasamento cronológico com
os restantes conjuntos artefactuais documentados.
Esta sepultura, ao seccionar o preenchimento do
Recinto 1, parece assumir um distanciamento cronológico face às restantes, coadunando-se bem o
seu posicionamento estratigráfico relativo com a
cronologia avançada do espólio. Contudo, a absoluta concordância da sepultura com a orientação
do fosso preenchido deixa entrever o claro conhecimento da pré-existência, o que nos poderá estar
a indicar um tempo mais curto que aquele que o
conjunto material permite percepcionar.
Deste modo, cremos que a parte intervencionada da necrópole do Poço da Gontinha 1 se deve
centrar, em termos cronológicos dentro do séc.
VI a.C., não obstante poder ter conhecido utilizações mais tardias nesta área, de finais do século ou
posteriores, bastante plausível no quadro de uma
extensa necrópole, com evidente desenvolvimento
horizontal sequencial.
A presença nas suas imediações das sepulturas do Pardieiro poderá reforçar a utilização mais
tardia destes espaços sepulcrais. Na sepultura 1
encontrou-se, junto de um individuo adulto, aparentemente masculino, duas longas ponta de lança,
e respectivos contos longos, integráveis no tipo 1,
variante IIB de Quesada (Fig. 5), integráveis cronologicamente dentro dos séc. VI-V a.C. A acompanhar esta deposição encontrava-se uma fíbula
anular hispânica do tipo Ponte 13a, genericamente
enquadrada entre finais do séc. VI a.C. e inícios do
séc. III a.C. Este exemplar é, contudo, de difícil
integração tipológica, mantendo elementos claramente arcaizantes, como o aro filiforme, unindo133
134
Rovira et al. 2005: 1235.
Celestino e Zulueta 2003: 60.
se o arco fundido àquele, por meio da mola e do
pé, reforçado por um fio metálico que recobria por
completo o aro. Deste modo, não é fácil precisar
a cronologia desta sepultura, ainda que a devamos situar em momento claramente posterior aos
mais antigos enterramentos da necrópole anterior.
A reforçar esta proposta parece vir o espólio recolhido na sepultura 2, onde um pequeno brinco em
bronze, do tipo “grão em cacho” (Fig. 5), parece
remeter para momentos relativamente avançados,
já bem dentro da segunda metade do Iº milénio
a.C., se atendermos às propostas avançadas para
elementos semelhantes em ouro.135
Na região de Pedrógão, junto das margens do
Guadiana, o panorama surge-nos ligeiramente distinto, mas seguindo um enquadramento não muito
distante.
A necrópole do Poço Novo 1, organizada aparentemente em torno de parte de um recinto, não
permite inferências cronológicas de base estratigráfica, à excepção da Sep. 5, que corta o preenchimento deste, mas a qual não apresentou qualquer espólio
A sepultura 2 apresenta uma posição relativamente central face ao recinto documentado, pelo
que poderemos atribuir um eventual cariz fundacional. Nesta sepultura, de um individuo adulto
feminino, encontrou-se um fecho de cinturão do
tipo 4a de Cerdeño com cronologias dentro do séc.
VI a.C., o qual se acompanhava por dois braceletes
“acorazonados” com botões esféricos (Fig. 8). Este
tipo de bracelete parece enquadrar-se principalmente dentro dos sécs. VII e VI a.C.,136 sendo que
em Medellín são enquadrados na sua fase I, entre
meados do séc. VII a.C. e os inícios do seguinte.137
Foi ainda aqui recolhido um anel de bronze, circular, com um pequeno espessamento a modo de cartela (Fig. 8), que apresenta vagas afinidades com
um anel de bronze com selo e cartela descoberto na
necrópole da Favela Nova138 ou com um outro da
necrópole de Medellín,139 podendo ambos integrarse dentro do séc. VI a.C., provavelmente nos seus
inícios para este último.
A sepultura 7, igualmente numa posição central,
entregou apenas uma pequena conta bicónica em
bronze (Fig. 8), que conta com abundantes para135
Correia et al. 2013: 105.
Jiménez Ávila 2006: 95. Entretanto, na necrópole do
Monte do Bolor 1-2, surgiu um elemento semelhante, com
cronologia claramente antiga. Informação de Rui Monge, que
agradecemos (ver Monge et al. neste volume).
137
Torres 2008: 539.
138
Dias e Coelho 1983: 200.
139
Almagro-Gorbea 2008b: 380.
136
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
lelos no colar identificado em Cancho Roano,140
enquadrando a sua amortização nos finais do séc.
V a.C., quando se abandonou todo o edifício. Todavia, em Medellín, na sepultura 86G/26-2a-e foram
também registadas contas semelhantes, num contexto atribuível aos finais do séc. VI a.C/inícios do
séc. V a.C.141 Efectivamente, ainda que em outro
contexto geográfico, podemos facilmente recuar a
presença destas contas para momentos mais antigos, se atendermos à inserção das sepulturas 10 e
22 de Les Moreres na fase I (900-750a.C.) desta
necrópole.142
A sepultura 4 apresentava-se relativamente próxima das anteriores, mas já no limite do que poderia ter sido a área tumular associada ao recinto
escavado, caso este fosse simétrico. Esta sepultura,
de um individuo não adulto de sexo indeterminado
acompanhado por um vaso acampanado, de fabrico manual (Fig. 8), que poderia relacionar com as
urnas E. II do tipo B.1 de Setefilla, segundo Ruiz
Mata,143 para o qual se propõe uma cronologia de
todo o séc. VII a.C. até aos inícios do século seguinte. Esta peça assemelha-se aos vasos “a chardón”, ainda que não pareça tratar-se com clareza de
um destes recipientes. A sua forma, com evidente
concavidade no colo, aproxima-se do tipo 3, o mais
tardio registado em Medellín, o qual não surge já
em formas manuais,144 ao invés do nosso exemplar.
Estas formas evoluídas são incluídas nos finais do
séc. VII a.C. em Medellín, coincidindo pois, com
a proposta anterior. Efectivamente, este enquadramento cronológico não se afasta do proposto para
os escassos exemplares deste tipo de vasos documentados no território actualmente português,
como foi já devidamente salientado.145 A acompanhar este enterramento surgia uma fíbula de tipo
“Alcores”, integrável no tipo 8a1 de Ponte, com
uma cronologia proposta que cremos excessivamente recuada, entre finais do séc. IX e todo o séc.
VIII a.C. Outros autores que trabalharam este tipo
de fíbulas são relativamente consensuais quanto a
um enquadramento entre o séc. VII-VI a.C.,146 que
parece coadunar-se melhor com o exemplar aqui
em análise.
As sepulturas anteriores apresentavam-se mais
estreitamente relacionadas com o recinto, e com
140
Celestino e Zulueta 2003: 44.
Almagro-Gorbea 2008c: 396.
142
González-Prats 2002: 251.
143
Ruiz Mata 1995: 277.
144
Torres 2008: 662.
145
Santos et al. 2012: 772.
146
Ruiz Delgado 1989: 133; Storch 1989: 214.
141
391
uma suposta área tumular a ele associada, sendo
que a sepultura 4 estaria no limite da mesma, caso
esta respondesse simetricamente ao troço do fosso
aberto (Fig. 7). Em torno desta área central documentaram-se quatro outras sepulturas (1, 6, 8 e
3) distribuídas de Norte a Sul, pelo arco nascente.
A sepultura 8, para além de apresentar um indivíduo não adulto de sexo indeterminado, não entregou qualquer espólio. As restantes três sepulturas,
curiosamente distribuídas pelos pontos cardeais,
com deposição de indivíduos adultos femininos,
permitem outros considerandos, sendo de destacar,
desde logo, a sepultura 3 por apresentar um fecho
de cinturão de tipo “tartéssico” do tipo 3 de Cerdeño (Fig. 8), o qual, como se afirmou a propósito
dos exemplares do Poço da Gontinha 1, apresenta
uma cronologia entre os finais do séc. VII a.C. e
meados/finais do seguinte, podendo variar ligeiramente segundo os diversos autores.147
As sepulturas 1 e 6 entregaram ambas um espólio composto por uma tigela de produção manual,
de perfil simples em calote de esfera e fundo plano
(Fig. 8). A par destas documentou-se um conjunto
variado de contas de colar negras lisas, negras com
oculações e motivos ondulados a branco, transparentes, em tons melados, usualmente anulares e esféricas, por vezes de perfil triangular geminadas,
em bastante mau estado de conservação. Este facto
leva a que em vários casos as “oculações” se tenham
separado da restante conta, produzindo uma forma
triangular (Fig. 8).
Os produtos vítreos no Ocidente peninsular, nomeadamente as contas de colar, parecem tornar-se
mais frequentes a partir dos inícios do séc. V a.C.,
sendo bastante frequentes até bem entrado o séc.
IV a.C., quando se tornam menos frequentes,148
ainda que se considere a sua presença pontual em
contextos anteriores, como na necrópole de Medellín onde, apesar de escassas, se encontram documentadas em ambas as fases estabelecidas.149
Efectivamente, ainda que em contextos geográficos distintos, existe um conjunto de evidências que
permite documentar a presença destes elementos
vítreos em momentos antigos da Idade do Ferro
peninsular, de que destacaríamos, pelas semelhanças com os exemplares aqui presentes, as contas
oculadas das sepulturas 10 e 22b de Les Moreres,
pertencentes à sua Fase I (900-750 a.C.),150 ou as
147
López Ambite 2008: 519.
Jiménez Ávila 2001: 117.
149
Almagro-Gorbea 2008c: 399.
150
González Prats 2002: 251.
148
392
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
presentes nas sepulturas 5, 16 e 18 da necrópole
de Les Casetes, onde são enquadradas nos finais
do séc. VII e primeira metade do seguinte,151 para
além de um conjunto diverso de outras em contextos geográficos mais próximos,152 sem termos que
recorrer às mais problemáticas contas da necrópole da Atalaia,153 que poderão enquadrar-se em contextos de produção e distribuição completamente
distintos.
Perante este conjunto de dados, e a assumirmos
que a construção da necrópole do Poço Novo 1
não deverá apresentar uma diacronia longa, dado
o reduzido número de enterramentos e a ausência
de sobreposições estratigráficas entre as sepulturas, sem esquecermos a implantação, que nos surge
bastante direccionada e consciente, da sepultura 5
sobre o troço terminal do fosso colmatado. Assim,
cremos que esta necrópole se terá desenvolvido essencialmente entre finais do séc. VII a.C. e os meados do século seguinte
Os núcleos da Fareleira 2 apresentam-nos uma
dinâmica distinta, ao serem constituídos por grupos de número bastante reduzido, quase de família
restrita, sendo mais núcleos sepulcrais que propriamente uma necrópole. Neste sentido, devemos
assumir alguma proximidade na morte entre os
diversos indivíduos dentro de cada núcleo, sendo
mais complexa a relação cronológica entre os três
pequenos núcleos, separados escassas centenas de
metros. Por fim, realçar que a aleatoriedade dos
achados, dependente de uma estreita faixa decapada de 10 m, deixa totalmente em aberto a existência, até provável, de outros núcleos imediatos, com
perfis cronológicos distintos dos aqui apresentados.
Assim sendo, o núcleo A apresentava apenas
duas sepulturas (1 e 2), uma delas com um indivíduo adulto feminino e outra indeterminada. Apenas esta última apresentava como espólio duas contas oculadas a negro, com as questões e contornos
cronológicos mencionados acima. A proximidade
com a necrópole do Poço Novo 1, apenas 2,5 km a
Nascente, poderia indiciar uma contiguidade cronológica de chegada destes elementos, ainda que
tal não seja, de modo algum, obrigatório.
O núcleo C, localizado cerca de 100 m a Poente
do anterior, era composto, como se viu, por dois
enterramentos de adultos, um masculino (Sep. 6)
e outro feminino (Sep. 7). A sepultura masculina
estava acompanhada por um conto de lança em
ferro, com a ponta dobrada, bastante fragmentado,
a par de dois outros troços de artefacto em ferro,
de tipo indeterminado, bastante corroídos e afastados daquele. À cabeceira surgia uma fíbula de tipo
“Acebuchal”, de arco liso, do tipo 9.a.1 (Fig. 10),
com uma cronologia atribuída de finais do séc. VIIinícios do séc. VI a.C.,154 propondo outros autores
uma cronologia com ligeiros matizes, ao enquadrarem-na, na sua variante II, entre meados do séc. VII
a.C. e grande parte do séc. VI a.C.155 O vaso que
surgia aos pés encontrava-se bastante fragmentado, não permitindo considerandos tipológicos. Na
sepultura feminina surgiu um vaso acampanado, a
torno, com ligeiro ombro no bojo, de superfície cinzenta polida (Fig. 10), bastante fragmentado, que
poderá assemelhar-se ao vaso “a chardon” do tipo 3
de Medellín, com uma cronologia de finais do séc.
VII a.C.,156 contudo, os exemplares em cerâmica
cinzenta, como é o caso, são relativamente raros e
difíceis de precisar cronologicamente.157 Além deste surgiam dois anéis em bronze, bastante simples,
pelo que se torna complexo qualquer aproximação
cronológica, contudo, nesta última necrópole surgem anéis semelhantes em contextos tanto de finais
do séc. VII a.C., como de inícios do séc. V a.C.158
Estas sepulturas devem, então, enquadrar-se algures entre os finais do séc. VII a.C. e os meados do
séc. VI a.C., sem que possamos ser mais precisos.
O núcleo B da Fareleira 2, situado apenas 100
m para Poente do núcleo anterior, era composto
por três sepulturas (3-5), com dois adultos, um
masculino e outro feminino; na sepultura 5 não se
registou qualquer vestígio osteológico, ainda que a
presença de uma conta de colar em cerâmica, e a
reduzida dimensão da sepultura autorize supormos
o enterramento de um jovem de tenra idade (Fig.
10). Esta conta, apesar de ser um objecto particularmente simples, o que dificulta o estabelecimento
de paralelos com sentido cronológico, apresenta
grande semelhança com outra recolhida na necrópole de Medellín, na sepultura 86G/8-1, enquadrada nos finais do séc. VI a.C. Junto aos pés do individuo feminino detectaram-se três pequenas taças,
em muito mau estado de conservação, que não permitem o devido enquadramento tipológico, sendo
uma delas de fabrico manual, e outra com um pequeno bordo em aba. O enquadramento cronológi154
Ponte 2006: 141.
Ruiz Delgado 1989: 148; Storch 1989: 234.
156
Torres 2008: 662.
157
Caro 1989: 54.
158
Almagro-Gorbea 2008b: 381.
155
151
Gacía 2009: 139.
Lorrio 2008a: 287.
153
Schubart 1975.
152
falta espaço
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
co deste núcleo sepulcral é bastante complexo. Todavia, a proximidade com os restantes núcleoscom
características semelhantes permite, avançarmos
com uma cronologia genericamente similar para
sua formação.
A escassos 250 m para Poente, isolada em local
destacado na extremidade da linha de cumeada em
que se situam as restantes necrópoles surge o recinto da Fareleira 3, aberto a Sul e centralizado por
uma única sepultura, de um ancião masculino. De
todo o conjunto de sepulturas que temos vindo a
analisar, esta é a que apresenta um conjunto votivo
mais extenso, coadunando-se bastante com o destaque que a sua localização lhe confere (v. Fig. 12).
Num segundo nível de preenchimento desta sepultura documentou-se o já referido “braseiro” do
tipo 2 de Jiménez Ávila.159 Este tipo de peças, ainda
que surjam em contexto estremenho essencialmente durante o séc. V a.C., podem enquadrar-se igualmente em momentos bastante antigos, bem dentro
do séc. VII a.C.160 Junto dos pés documentou-se
um conjunto de cinco tigelas, quatro das quais de
morfologia simples, em calote, fundos planos ou levemente côncavos, produzidas a torno, com uma
morfologia bastante elementar que dificulta enquadramentos cronológicos curtos. A quinta destas tigelas apresentava-se claramente peculiar, não
sendo fácil registar paralelos imediatos. A sua morfologia funda de bordo em aba, com estrias bem
marcadas pelo interior não facilita a identificação
de paralelos nos acervos vasculares do Sul peninsular. Em geral, estas formas com bordo em aba
e marcadas estrias interiores parecem surgir em
torno do séc. V a.C., ou em finais do século anterior, como acontece entre a cerâmica cinzenta de
Medellín.161 Uma outra peça, que aponta igualmente para cronologias avançadas, foi identificada na
Azougada e interpretada como tampa, forma III,
justamente pela presença de marcadas estrias interiores.162 Sobre este conjunto cerâmico onde, numa
das taças existia uma oferenda cárnea, detectou-se
uma faca afalcatada (Fig. 14) que se aproxima do
tipo I de Medellín, à qual se atribui uma cronologia,
no local, dentro da segunda metade do séc. VII a.C.
Este exemplar apresenta o interesse de ter aplicações em bronze no cabo, com uma placa de contorno “serrilhado”, bastante semelhante ao elemento
identificado na reutilização do túmulo do cerro do
Gatão,163 sendo de realçar outro exemplar, este do
tipo 2 de Medellín, documentado na necrópole da
Herdade do Pego, igualmente com apliques em cobre/bronze na zona do cabo.164 Do espólio metálico em ferro há ainda que mencionar a presença
de dois contos de lança longos, provavelmente do
tipo I de Quesada,165 ainda que o seu estado de conservação fosse bastante mau, não permitindo o seu
registo gráfico.
A fíbula de tipo “Acebuchal” do tipo Ponte 9.a/1
recolhida nesta sepultura é um exemplar de grandes dimensões, de arco cintiforme decorado, que
se pode incluir também nas variantes IIb de Ruiz
Delgado166 ou III2 de Storch167 (Fig. 14), coincidindo os diversos autores na sua existência desde
meados/finais do séc. VII a.C., podendo prolongarse até aos finais do séc. VI a.C., parecendo que os
tipos mais elaborados, como é o caso, se poderiam
integrar nos momentos mais avançados da sua produção.
Este núcleo de Pedrógão surge-nos bastante
mais coeso em termos cronológicos, apesar da sua
dispersão no território. Cremos, efectivamente,
que se terá formado no essencial durante a primeira metade do séc. VI a.C., ainda que os extremos
possam prolongar-se de modo pontual em cada
sentido. Algumas ausências, ao nível das pontas de
lança, fíbulas e fechos de cinturão justificam a dificuldade de prolongarmos o espectro cronológico
para os finais do séc. VI a.C. ou inícios do seguinte.
Do mesmo modo cremos que a ausência de fíbulas
de dupla mola deverá ser significativa, não permitindo recuar com clareza o arranque da formação
destas necrópoles para os meados ou mesmo finais
do séc. VII a.C. Na realidade, cremos que devemos atender aos dados provenientes do Castro dos
Ratinhos, situado a escassas dezenas de quilómetros a montante junto ao Guadiana, onde nos finais
do séc. VIII a.C. ou mesmo nos inícios do seguinte
mantém uma fortíssima ligação com as realidades
da Idade do Bronze, deixando escassa margem
cronológica para uma transformação tão profunda
como a que notamos nos enterramentos da área de
Pedrógão, o que nos leva a posicioná-las principalmente dentro do séc. VI a.C.
Por último, o número limitado de indivíduos
enterrados, mesmo contando com os diversos nú163
159
Jiménez Ávila 2013.
160
Jiménez Ávila 2002: 218; 2013: 57.
161
Lorrio 2008c.
162
Antunes 2009: 144.
393
Viana et al. 1961: 9.
Dias et al. 1970: 188.
165
Quesada 1997.
166
Ruiz Delgado1989: 142.
167
Storch 1989: 222.
164
394
MARGARIDA FIGUEIREDO - RUI MATALOTO
cleos, acompanhados de espólio genericamente semelhante, favorece uma leitura mais concentrada
no tempo, onde uma pequena comunidade dispersa
criou uma verdadeira paisagem necropolizada durante um espaço de tempo relativamente curto.
5. ALL IN THE FAMILY: FAMÍLIA E SOCIEDADE RURAL BAIXO ALENTEJANA
NOS SÉCS VI-V a.C.
As necrópoles aqui analisadas foram, muito
certamente, estruturadas por comunidades rurais baseadas numa organização essencialmente familiar, em núcleos mais ou menos alargados
de exploração de um território. Cremos que os
exemplos aqui apresentados são particularmente
elucidativos sobre as vicissitudes inerentes a estas
comunidades e à estruturação social que lhes está
subjacente.
No núcleo de Ferreira, em particular na necrópole do Poço da Gontinha 1, vemos o resultado
de um grupo, provavelmente de base familiar, que
conseguiu a estabilidade produtiva e social que lhe
permitiu estruturar uma extensa necrópole onde
os laços sociais de integração ficaram patentes
através da agregação sepulcral, que atingiu alguma complexidade num espaço de tempo alargado.
Por outro lado, quando vemos o núcleo de Pedrógão, cremos que se torna patente a existência de
uma realidade substancialmente distinta. Ainda
que possa ser algo arrojada, cremos que esta poderá ser uma paisagem sepulcral verdadeiramente
pioneira, onde os grupos instalados não parecem
ter sido capazes de uma continuidade produtiva e
social que lhes permitisse configurar amplas necrópoles de base familiar. No entanto, parece-nos
ficar patente uma clara estruturação espacial da
paisagem sepulcral, como o posicionamento destacado de um dos elementos, o ancião da Fareleira
3, que poderá ter jogado um papel fulcral na estruturação dos pequenos grupos que se vieram a
instalar na envolvente, e que ficaram marcados nas
sepulturas imediatas da Fareleira 2, onde a estrutura familiar de sentido restrito é muito apelativa.
A presença destes núcleos sepulcrais de cariz familiar restrito, próximos de um recinto isolado e
destacado na paisagem, onde se fez sepultar um
ancião, associado a um espólio de forte carga ritual, poderá remeter-nos para uma comunidade
organizada em torno de um elemento agregador,
que provavelmente desempenharia funções de co-
ordenação dos grupos. Será igualmente plausível
que a sua condição derivasse ainda de mecanismos sociais bastante simples, como a sua condição
etária deixa entrever. Neste contexto, a necrópole
quase exclusivamente feminina do Poço Novo 1,
justamente no extremo oposto da paisagem face a
Fareleira 3, é mais complexa de explicar, podendo
resultar de preceitos sociais ainda difíceis de discernir.
No conjunto de sepulcros que acabámos de analisar fica patente a existência de uma estruturação
social essencialmente familiar, com indícios de diferenciação, mas de relativa isonomia, onde os factores etários e de género parecem ser ainda estruturantes. Esta proximidade social ficou bem marcada
nos ossos e dentes, verificando-se em muitos dos
elementos indícios de esforço associados quer a acções comuns e recorrentes de difícil acervo, com
uma utilização da boca enquanto terceira mão,
quer a actividades relacionadas com a exploração
agrícola, provavelmente numa base comunitária de
entreajuda, mas não propriamente comunal, podendo a mesma gerar as diferenciações económicas
que ficam patentes em alguns dos espólios. Contudo, cremos que estas terão sido, essencialmente,
necrópoles de pastores e agricultores, provavelmente seareiros, hipótese verosímil se atentarmos
nos padrões homogéneos da dieta alimentar destas
populações e na existência de estruturas relacionadas com as práticas agrícolas.
Justamente nesta região de Pedrógão parecem
ter sido detectados indícios de verdadeiros campos
de cultivo, associados a uma cultura ainda indeterminada, que ficaria marcada no terreno através
da escavação de um grande conjunto organizado
de pequenas interfaces negativas tendencialmente
rectangulares, de cronologia difícil de precisar, mas
que poderia claramente associar-se a estas comunidades, dada a sua proximidade.168 Efectivamente, cremos que este será um momento de profunda
transformação nos campos, com a entrada de novas culturas, como a vinha ou o olival, introduzidos
pelas comunidades coloniais, que terão chegado à
região seguindo caminhos semelhantes aos tomados pelas novidades na indumentária, arquitectura,
técnicas cerâmicas, ou mesmo alguns rituais funerários.
168
Informação consultada na base de dados Endovélico:
CNS – 33346 e 33589, baseada em relatório de L. Baptista, R.
Pinheiro e V. Mata.
NECRÓPOLES RURAIS SIDÉRICAS DO BAIXO ALENTEJO SETENTRIONAL
AGRADECIMENTOS
Os autores gostariam de agradecer, em primeiro
lugar, todo o apoio e incentivo concedido pelo
Javier Jiménez Ávila, com quem começámos a
395
rever estes materiais, numa fase ainda bastante
incipiente do estudo; à Inês Conde agradecemos
a paciência e o génio com que nos brindou na
elaboração do material gráfico a carvão.
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