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Morte na antilírica de João Cabral de Melo Neto

MORTE NA ANTILÍRICA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO Fabiane Renata Borsato, Unesp – FCLAr Sumário: O crítico João Alexandre Barbosa aponta na obra Agrestes (1981-1985), do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, a presença da morte individualizada. Este fato motivou a análise dos enunciadores em primeira pessoa e lirismos na obra Agrestes, traço gradativamente eliminado do campo discursivo cabralino desde a obra primeira, Pedra do sono (1940-1). Estes elementos destoam do projeto estético de João Cabral, anteriormente baseado na seleção de vozes e fazeres artísticos coerentes com seu método compositivo, em rigorosos valores de triagem e eliminação de quaisquer subjetivismos. Para compreensão desta incoerência, propomos o estudo da última parte da obra Agrestes, intitulada “A “indesejada das gentes””, lugar em que a temática da morte é recorrente, bem como a presença de enunciadores a enunciar-se, inclusive a revelar suas sensações sobre envelhecimento e morte. O procedimento analítico deve pesquisar a hipótese de ruptura do tom inflexível do discurso de João Cabral que faria, em relação ao projeto poético, um trajeto inverso, partindo da poesia objetal rumo à poesia subjetiva. Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; Agrestes; morte; poesia brasileira; lirismo. Abstract A tradução do abstract é de autoria de Erica Santos.: Critics João Alexandre Barbosa points in the work Agrestes (1981-1985), from the Brazilian poet João Cabral de Melo Neto, the presence of individualized death. In this way, this study proposes to analyse the meanings of lyrisms and enunciations in first-person, in the work Agrestes, trace gradually eliminated from the Cabral discursive field since his first work, Pedra do Sono (1940-1). These elements will clash with the poetic of João Cabral, previously based in the selection of voices and artistic practices consistent with his compositional method, with accurate values of sorting and disposing of any subjectivism. To understand this inconsistency, we propose studying the last part of the work Agrestes, entitled “A indesejada das gentes”, a place where the theme of death is recurrent, as well as the presence of enunciators to set out, even to reveal its feelings about aging and death. The analytical procedure should research the hypothesis of breaking of the inflexible tone of the speech that João Cabral would do, in respect to the poetic project, a reverse path, starting from concrete poetry to subject poetry. Keywords: João Cabral de Melo Neto; Agrestes; death; brazilian poetry; lyrism. Introdução O crítico João Alexandre Barbosa, em estudo da poética de João Cabral de Melo Neto, afirma que em Agrestes, obra produzida entre 1981 e 1985, fase de maturidade do projeto poético de Cabral, há uma “educação pela morte, não a social, como a dos diversos cemitérios evocados no primeiro conjunto da obra, mas a individual.” (Barbosa, 2000: 170). O primeiro conjunto da obra referido pelo crítico Barbosa vai de Pedra do sono (1940-1) a A educação pela pedra (1962-1965), sendo Agrestes produzida no segundo conjunto que compreende Museu de tudo (1966-1974) até a última obra Andando Sevilha (1987-1989). O crítico analisa este traço como o que oferece singularidade a Agrestes, momento em que um procedimento de individualização constitui-se na narração irônica e sarcástica da morte. A individualização a que se refere Barbosa insinua um aparente lirismo na obra Agrestes, expresso ainda pela presença freqüente de eus poéticos em primeira pessoa, recurso de ruptura do tom inflexível da poesia objetal cabralina anterior. A análise deste traço de individualização pode revelar um modo de apreensão das marcas da obra Agrestes e da hipótese de ruptura do projeto estético e ético de Cabral, iniciado na década de 40, conforme mencionado acima. As obras anteriores a Agrestes reforçam o projeto artístico de construção de uma poesia refratária a sentimentalismos e abstrações, cujo objetivo fundamental é o questionamento contundente do eu lírico sob o objetivo de eliminação de suas marcas para avultação da poesia e de seu processo de composição. Nos anos 80, o projeto estético de Cabral estava consolidado, mas há o anúncio, em Agrestes, de certo impedimento de sua continuidade devido ao fluxo temporal e à lúcida certeza da proximidade da morte, fatores anunciados pelo eu lírico que requerem análise. O antilirismo permanece até a última obra de Cabral, mas é possível afirmar que a novidade parece ser a inserção da categoria tempo que, ligada à inevitável chegada da morte, sustenta certa narratividade na obra Agrestes. O eu poético, mantendo-se coerente com o projeto estético cabralino, utiliza o recurso da narratividade para falar dos riscos do ato de escrita, do leitor, questões que serão descritas e analisadas a seguir. 1. As duas faces de Agrestes Agrestes (1985) possui 92 textos poéticos, divididos em seis partes, que apresentam a recorrência temática de obras anteriores. O título “Agrestes”, na acepção de adjetivo comum aos dois gêneros, está grafado no plural, e faz referência a sujeitos e coisas adeptas do áspero e rigoroso. Agrestes, enquanto substantivo masculino, semantiza solo pedregoso, de escassa vegetação, espaço entre a mata e a caatinga, portanto zona intersticial a que se pode atribuir outros sentidos, como o de representação do espaço de composição poética de João Cabral, com suas marcas estruturais rigorosas e sua predileção pelo concreto, pétreo. Estes espaços áridos estruturam as seis partes em que se divide Agrestes: “Do Recife, de Pernambuco”: compõe-se de 18 poemas em que memória e história narram anedotas sobre engenhos, cais, portos, roda dos expostos, bairros recifenses. “Ainda ou sempre Sevilha”: apresenta 14 poemas e a permanência (Ainda ou sempre) do tom dos poemas que singularizaram Sevilha, a cultura e os bairros sevilhanos em obras anteriores a Agrestes. “Linguagens alheias”: contém 24 poemas predominantemente metalingüísticos, em que se mantém o diálogo dos eus poéticos de Cabral com vozes artísticas de convergência e divergência com suas opções estéticas. “Do outro lado da rua”: possui 10 poemas que retratam paisagens e cultura africanas. “Viver nos Andes”: acompanha o formato da parte 4 e em seus também 10 poemas descreve índios, páramos, cordilheiras, ovelhas da paisagem andina. “A “indesejada das gentes””: retrata, em seus 15 poemas, a chegada da morte e as possíveis reações diante do fato. A estrutura de Agrestes fundamenta-se em duas unidades em que as partes 1, 2, 4 e 5 abordam espaços diversos: Recife, Pernambuco, Sevilha, África, Andes e as partes 3 e 6 poetizam as vozes de influência e rechaço, bem como a questão da morte e da escrita, sendo a metalinguagem altamente presente nelas. A parte intitulada “Linguagens alheias” trata de métodos e discursos de artistas como Marianne Moore, Clarice Lispector, Murilo Mendes, Klee. A questão da morte aparece em três poemas: “Visita a São Miguel de Seide”, “A W.H. Auden”, “Contam de Clarice Lispector”. “Visita a São Miguel de Seide”, após mencionar o incêndio da Casa Museu Camilo Castelo Branco, detém-se no suicídio de Camilo que tem por conseqüência a concretização de uma dicção distinta e contundente como o ato de suicídio: “(...) matando-se deu à fala,/ com os mesmo metais, outra liga” (Melo Neto, 1999: 553). A dissonância da voz de Camilo com a de Cabral é elucidada na leitura que o eu poético empreende do escritor português. O suicídio é sinônimo de eliminação de correspondências entre a pessoa do autor e a poesia. A morte de Camilo por suicídio o coloca no comando da situação e a decisão de eliminar marcas de subjetivismo e de quaisquer associações da pessoa do autor com a do eu lírico dá outra liga à dicção artística camiliana, fato celebrado pelo eu poético cabralino. “A W.H. Auden” retoma a questão da morte da pessoa do autor, inserindo a obra literária num lugar de aprendizagem da transfiguração poética, do estado de coisa do poema: “(...) hoje só resta a conta aberta/ de teus livros de onde sacar-se.// E de onde há muito que sacar:/ como botar prosa no verso,/ como transmudá-la em poesia, (...)” (Melo Neto, 1999: 555). Novamente vemos que a morte da pessoa do autor favorece a leitura da obra como objeto único de significação. “Contam de Clarice Lispector” relata o intercâmbio com amigos, realizado por Clarice, de anedotas sobre o teor sério e jocoso da morte. A interrupção das anedotas pelo relato de notícias do futebol é passageira, pois Clarice, assim que o silêncio é retomado, volta ao tema da morte. Vemos neste texto, a associação morte, narrativa, silêncio e narrador. Os quatro elementos são capazes de gerar “dez mil anedotas de morte” (Melo Neto, 1999: 560) e novamente vemos a menção ao discurso como lugar infinitamente criador, cujo procedimento de concepção en abîme equipara morte e linguagem, inclusive no título adotado para o poema, em que vemos a metalinguagem de um relato sobre outro relato, expresso no verbo contar, do título e retomado no verbo intercambiar, do verso 2: “Um dia, Clarice Lispector/ intercambiava com amigos” (Melo Neto, 1999: 560). O ir e vir da morte e da linguagem são poetizados neste texto de Cabral. Os poemas de “Linguagens alheias” em que a questão da morte está presente sugerem uma espécie de preâmbulo para a compreensão da parte final de Agrestes, “A “indesejada das gentes”” que tem por marca a presença constante da temática da morte e da preocupação com o fazer artístico, lugar em que situaremos nossa análise para compreensão da individualização da morte mencionada pelo crítico João Alexandre Barbosa. 2. A indesejada das gentes e as reações à morte A parte final do livro Agrestes tem por título um verso do poema de Manuel Bandeira, da obra Opus 10, intitulado “Consoada”: Quando a indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável), Talvez eu tenha medo. Talvez sorria, ou diga: -Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios). Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. (Bandeira, 1961: 168) A chegada da indesejada das gentes (a morte) é tema dos 15 poemas finais de Agrestes. Há desenvolvidas nos textos poéticos duas possíveis operações quando da chegada. Numa delas, o sujeito age; na outra, reage. Estas possíveis atuações são discutidas por eus poéticos que não negam a morte, mas a interrogam, procedimento que na poesia de Cabral, em lugar de instaurar dúvidas, revela conhecimento profundo do tema e construção de perguntas com alto teor afirmativo, transformando o procedimento interrogativo em recurso de estilo para a discussão do conceito de morte. Há, em Agrestes, o afastamento do eu poético para estabelecimento de artifícios argumentativos e perspectiva objetivada. A urgência do tema da morte é evidente, mas a contenção do eu poético é prioritária. O enunciador observador descreve, categoriza e executa procedimentos comparativos sobre o tema da morte. Vemos a exaltação da morte limpa, concisa, inexcedível, presente em poemas como “O defunto amordaçado”, “Direito à morte”, “As astúcias da morte”, este último parcialmente transcrito a seguir: Há o morrer em lâmina fina do fuzilado ou em guilhotina e um morrer que se desmerece, morrer de cama, isto é, morrer-se. A votar, quem não votaria no primeiro, em sua faca fria? Mas quem que caiu na água morna da morte de cama, langorosa, se lembra que votou num dia na morte em metal, expedita? Dentro da água morna, remansa, de banheira, mas que é da cama, (...) ninguém pensa morrer nem crê que já começa a apodrecer nem que o bafo que se revolve é já o mau hálito da morte). (...) (Melo Neto, 1999: 576-7) O eu poético não sente a morte, mas a vê, a examina, a descreve. Situações de morte compõem quadros inusitados em que o tema é tratado a partir de sua classificação em dois tipos: a morte por lâmina e a morte acamada. A morte por lâmina, “faca fria”, é representação de morte coerente com as anunciadas em obras anteriores, como no poema “Duelo à pernambucana” (de A escola das facas, 1975-1980) em que o duelo se faz a foice, num corpo a corpo similar ao do ofício do poeta com as palavras ou ainda em Uma faca só lâmina (1955) que apresenta as vantagens do objeto faca, pois o sujeito que a leva dentro condensa a imagem do poeta diligente na busca da concretude da linguagem: “Essa lâmina adversa,/ como o relógio ou a bala,/ se torna mais alerta/ todo aquele que a guarda,// sabe acordar também/ os objetos em torno/ e até os próprios líquidos/ podem adquirir ossos.// E tudo o que era vago,/ toda frouxa matéria,/ para quem sofre a faca/ ganha nervos, arestas.” (Melo Neto, 1999: 214) O impasse do poema “As astúcias da morte” está na negação da faca fria pelo sujeito em estado de morte. Ao preferir o langor da cama e da banheira, o sujeito opta pela frouxidão e fluidez de água, matérias enganosas que iludem o sujeito acamado: “Dentro da água morna, remansa,/ de banheira, mas que é da cama,/ (...) ninguém pensa morrer nem crê/ que já começa a apodrecer” (Melo Neto, 1999: 577). A morte com coisa (lâmina fina) é limpa, merecida, mas há a morte desmerecida e condenada. Cabe conhecê-la para evitar que ela subjugue o moribundo e se torne sujeito da ação. A morte enunciada como astuta é capaz de ardis e enganos e aquele que se deixa conduzir pelo morno da morte de cama, é caracterizado como desmemoriado, porque um dia votou na morte por lâmina e dela se esqueceu. O esquecimento transforma o moribundo em vítima do engano construído pela ambígua morte a ocultar o apodrecimento do sujeito. Além de categorizar a morte, os textos poéticos de Agrestes retiram a aureolização construída e reforçada por rituais e outros discursos. Em Agrestes, a morte é representada por meio do recurso da aproximação a uma viagem de automóvel ou avião (“A cama e um automóvel”, “Morrer de avião”, “A travessia do Atlântico”), pelo amordaçamento do defunto para que este não se manifeste “em sânie” (“O defunto amordaçado”), ou pela aclamação do “Direito à morte”, em lugar do direito à vida. Nestes e em outros poemas, o conceito de morte é construído a partir de um referente forte e concreto que oferece objetividade à voz do eu poético e elimina qualquer esboço de sentimentalismos diante do fato. A leitura de alguns textos poéticos da obra Agrestes revela a coerência do projeto estético de Cabral e seus procedimentos de discussão do que deve ser evitado no ato de composição artística. Entretanto, há um texto poético bastante inusitado, intitulado “O postigo”, que encerra a obra Agrestes. Causa estranhamento a presença do eu poético em primeira pessoa fazendo uma espécie de confissão sobre velhice e conseqüente proximidade da morte. Este texto será analisado para compreensão de uma possível concessão ao lirismo. 3. Concessão ou triagem: análise de “O postigo” O poema transcrito abaixo encerra a obra Agrestes: O postigo A Theodemiro Tostes, confrade, colega, amigo 1 Agora aos sessenta e mais anos, quarenta e três de estar em livro, peço licença para fechar, como fizeste meu postigo. Não há nisso nada de hostil: poucos foram tão bem tratados como o escritor dessas plaquetes que se escreviam sem mercado Também, ao fechar o postigo, não privo de nada ninguém: não vejo fila em minha frente, não o estou fechando contra alguém. 2 O que acontece é que escrever é ofício dos menos tranquilos: se pode aprender a escrever, mas não a escrever certo livro. Escrever jamais é sabido; o que se escreve tem caminhos; escrever é sempre estrear-se e já não serve o antigo ancinho. Escrever é sempre o inocente escrever do primeiro livro. Quem pode usar da experiência numa recaída de tifo? 3 Aos sessenta, o pulso é pesado: faz sentir alarmes de dentro: se o queremos forçar demais ele nos corta o suprimento de ar, de tudo, e até da coragem para enfrentar o esforço intenso de escrever, que entretanto lembra o de dona bordando um lenço. Aos sessenta, o escritor adota, para defender-se, saídas: ou o mudo medo de escrever ou o escrever como se mija. 4 Voltaria a abrir o postigo, não a pedido do mercado, se escrever não fosse de nervos, fosse coisa de dicionários. Viver nervos não é higiene para quem já entrado em anos: quem vive nesse território só pensa em conquistar os quandos: o tempo para ele é uma vela que decerto algum subversivo acendeu pelas duas pontas, e se acaba em duplo pavio. (Melo Neto, 1999: 584-5) O texto poético acima tem no título o substantivo postigo, portinhola secundária, anexa a uma porta maior que tem por função a comunicação restrita e seletiva entre dois espaços. Nas acepções do termo postigo há os semas do perscrutador cuidadoso e do trânsito interespacial, campo semântico adotado no poema “O postigo” para o estabelecimento da relação escritor-leitor. Dividido em quatro partes, o texto aborda primeiramente o pedido de licença ao leitor para fechamento do postigo e nesta primeira parte há uma relação especular entre sujeitos (leitor e escritor) que fecham o livro, embora o escritor o faça devido à idade avançada. Na segunda parte do poema, é revelada a dificuldade de escrever. Cada livro impõe-se como estréia e a experiência se torna inábil diante deste fato. A parte três retoma a questão da velhice do escritor, momento em que há o risco de produção de uma escrita descontrolada. A idade avançada gera medo e impossibilidade do esforço. A saída é o abandono da escrita ou a escrita líquida, condenável. A quarta parte lança a hipótese de um retorno à escrita desde que haja abolição dos nervos, ou seja, de toda e qualquer excitação física interior. Assumindo-se sujeito preocupado com o passo temporal, afirma que a escrita ainda possível é a de dicionário: “se escrever não fosse de nervos,/ fosse coisa de dicionários.” A escrita de dicionário é feita por métodos racionais de compilação lexical, categorial, etimológica, cultural e social, portanto trabalho de organização do espaço textual por meio da seleção, categorização e apreensão dos valores da língua e da linguagem. A etimologia de dicionário remonta ao latim medieval dictionarìum ou dictionarìus que semantiza ‘repertório de dictiónes’. Há, no termo dicionário, a referência a um modus operandi da escrita desenvolvida sobre o pilar de organização de dicções próprias e aprendidas. A historicidade da língua exige constantes revisões da obra dicionarística, método semelhante ao usado pelo poeta João Cabral em seu ofício poético. A divisão do poema em quatro partes reitera a presença deste número da proporção perfeita na organização da poesia cabralina. Sua recorrência em “O postigo” está não só na divisão em quatro partes, mas na presença das quadras que totalizam doze, número múltiplo de quatro. Outro elemento notável é a presença do itálico, recurso de realce; presença gráfica que dialoga com o primeiro poema da obra Agrestes, intitulado “A Augusto de Campos”. Os dois textos apresentam o interlocutor leitor, a quem primeiramente é enviado o livro para posteriormente fechá-lo (postigo). A presença do eu em primeira pessoa nestes dois poemas faz-se sob a interlocução do leitor. Este procedimento comunicativo revela que o eu poético não pretende falar de si, mas da escrita, objeto de interesse dos dois sujeitos em questão. Escritor e leitor, como co-criadores da poesia, pactuam a escrita elaborada rigorosamente e são vozes de grande perspicácia analítica: “talvez veja no defunto/ coisas não mortas de todo.” (Melo Neto, 1999: 517). O interlocutor Augusto de Campos, do poema de abertura de Agrestes, atua nas duas funções (escritor e leitor). Entretanto, o eu poético afirma que a produção de Augusto não é discipular, mas voz capaz de um fazer diverso: “Por que é então que este livro/ tão longamente é enviado/ a quem faz uma poesia/ de distinta liga de aço?” (Melo Neto, 1999: 518). À interrogação, há a resposta de que o leitor em questão é aquele capaz de reconhecer a revolução de poesia diversa: “Envio-o ao leitor contra,/ envio-o ao leitor malgrado/ e intolerante, o que Pound/ diz de todos o mais grato;/ àquele que me sabendo/ não poder ser de seu lado,/ soube ler com acuidade/ poetas revolucionados. (Melo Neto, 1999: 518). A seleção de um leitor acurado é retomada no último poema, “O postigo”. O eu poético anuncia a ausência de uma fila de leitores e retoma o aspecto seletivo de sua poesia e de seu destinatário. Se no primeiro poema de Agrestes, o leitor-poeta Augusto de Campos foi privilegiado, tanto na dedicatória, quanto na descrição de seu método compositivo; no último, o leitor-poeta é o interlocutor do enunciador e o lugar de destaque é ocupado pelo postigo do escritor que do presente da enunciação faz um balanço de sua produção de 43 anos e decide encerrar sua poética. O poema “O postigo” reitera a lucidez do escritor e seu arbítrio de autor. Aos sessenta, o tempo sofre aceleração e a escrita espacial e figurativa se desacelera. A consciência da continuidade temporal leva o escritor a decidir finalizar a obra e só reabri-la em circunstância propícia a um fazer limpo e cerebral, marcas do projeto ético e estético de João Cabral. Considerações finais O estudo de alguns textos poéticos da obra Agrestes possibilita afirmar que a morte ali presente é conceitual. A presença de interlocução instaura um universo de comunicação para a discussão do conceito de morte. O tema existencial é recurso metalingüístico, pois revela correspondências com a ação de escrever poesia. A parte intitulada “A “indesejada das gentes”” dialoga com “Consoada”, de Manuel Bandeira, ao classificar as reações causadas pela chegada da morte. Bandeira, numa postura similar à de João Cabral, dá ao eu poético a serenidade de quem pode encontrar morte, porque preparado está e seu entorno espacial se encontra organizado e limpo à espera dela. João Cabral apresenta duas classes de morte: de um lado a previsível e/ou premeditada; de outro, a inesperada. Trata-se do embate entre a consciência e a inconsciência da morte. Morrer de cama é inevitável e imprevisível, morte oposta à valorizada pelo eu poético cabralino e que corresponde aos procedimentos de criação da linguagem poética. A morte cabralina é limpa como a anunciada em “Consoada”. Nela, o sujeito, por meio de procedimentos reflexivos, possui autonomia para arquitetar seu espaço sob rigoroso controle e decidir o momento da chegada da morte. Esta classe de morte metaforiza o próprio fazer artístico de João Cabral, estando nela representado o rigoroso processo compositivo. Não há concessões em Agrestes, mas o embate entre o fazer e o não fazer, entre o controle e o descontrole. Por meio de argumentações e questionamentos, o eu poético aborda o ofício da poesia e reforça a necessária construção de teorias da poesia no seio do próprio poema. A dimensão metalingüística dos textos poéticos estudados apresenta e denota a coerência da arquitetura da poética cabralina. Morte, objetos, possibilidades, peso e medidas são lucidamente tratados pelo eu poético que assume posição crítica diante da coisa e da linguagem que a representa. Bibliografia BANDEIRA, M., (1961), Antologia poética, Rio de Janeiro, Sabiá. BARBOSA, J. A., (jul.-dez 2000), “João Cabral: Museu de tudo e depois”, Paisagem Tipográfica: homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920-1999) - Revista Colóquio Letras, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n. 157/158, (p.159-181). MELO NETO, J. C. de, (1999), Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar.