DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR
A Filosofia Africana no Ensino Médio
Luís Thiago Freire Dantas
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Luís Thiago Freire Dantas
DESCOLONIZAÇÃO CURRICULAR
A Filosofia Africana no Ensino Médio
1ª Edição - 2015
São Paulo
Luís Thiago Freire Dantas
Copyleft
Este livro ou parte dele pode ser copiado e reproduzido desde que sua
utilização seja para fins estritamente educacionais e/ou acadêmicos, a
autoria deve ser citada. Para fins mercadológicos ou pessoais é necessária a
autorização do autor.
Catalogação na publicação (CIP). Ficha catalográfica feita pelo autor.
Símbolo “Denkyemfunefu” extraído de Adinkra: sabedoria em símbolos
africanos, livro de autoria de Elisa
Larkin Nascimento e Luis Carlos Gá, cujo significado é a democracia e
unidade.
Revisão: Débora Cristina de Araujo
Capa: Luís Thiago Freire Dantas
D192
Dantas, Luís Thiago Freire.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana
no ensino médio / Luís Thiago Freire Dantas. São Paulo:
Editora PerSe, 2015.
118 f.
ISBN: 978-85-8196-949-7
1. Filosofia – Estudo e ensino 2. Filosofia Africana.
3. Currículo Escolar 4. Estudos Descoloniais
I. Título.
CDD: 107
CDU: 37.06/09
Esta obra é resultado de um texto que foi originalmente escrito para a
monografia de conclusão do Curso de Especialização em Educação das
Relações Étnico-Raciais, promovido pelo NEAB – UFPR e sofreu alterações
para melhor se adaptar ao formato.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Dedico este trabalho às professoras e
aos professores de filosofia que fazem
do ensino médio o seu campo de
experiência.
Luís Thiago Freire Dantas
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
AGRADECIMENTOS
A produção deste livro foi possibilitada pelas diversas
pessoas que contribuíram de algum modo para a
produção desse trabalho:
Débora Cristina de Araujo, cujo amor, companheirismo
e incentivo me ajudaram e ajudam na crença que o
caminho pode ser repleto de alegrias.
Prof. Dr. Hector Guerra, cuja orientação trouxe-me
enormes contribuições para o desenvolvimento do tema.
Os professores, as professoras e colegas da
especialização em Educação Étnico-Racial do NEABUFPR que proporcionaram novos questionamentos e
conversas gratificantes.
Minha avó, Maria Anita (in memoriam) símbolo de fé e
otimismo para vida.
Minha mãe, Maria Tereza, com amor nutriu esperança
para o florescimento do caráter e perseguição dos
objetivos. Os demais familiares que sempre torcem pelo
meu sucesso.
Amigos e colegas, Daniel Galantin, Marcus Paranhos,
Gustavo Fontes, Gustavo Jugend, Marco Antônio
Valentim, Paulo Ugolini, Roberto Jardim, Renato
Noguera, Sérgio Nascimento, Wagner Bitencourt.
NEAB/UFPR por realizar a especialização que ajuda a
construir cidadãos conscientes do panorama étnicoracial do Brasil;
Ogun por me proteger e guiar-me pelos caminhos que
abriram na minha vida.
Luís Thiago Freire Dantas
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
É certo que nem o conhecimento racional é uma
propriedade privada do pensamento ocidental
moderno, nem tampouco a superstição é uma
peculiaridade das populações africanas.
WIREDU, KWASI
Luís Thiago Freire Dantas
Prefácio
11
Introdução
19
Capítulo 1
O eurocentrismo e seus críticos
36
1.1 Europa: uma invenção ideológica
36
1.2 Colonialidade do poder
42
1.3 A desobediência do conhecimento marginal
47
Capítulo 2
O conhecimento de fronteira
54
2.1 Identidade em filosofia: Towa e Heidegger
55
2.2 O conceito Ubuntu de justiça
66
2.3 Aspectos do afrocentricidade
77
“Interlúdio”: síntese dos capítulos 1 e 2
90
Capítulo 3
Currículo Afroperspectivista
92
3.1 Diretrizes Curriculares de Filosofia do Paraná
93
3.2 Enegrecendo o currículo de filosofia
105
Em-fim um novo horizonte?
117
Referências
119
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
PREFÁCIO
É possível uma
eurocentrados?
filosofia
fora
dos
preceitos
Prof. Dr. Hector Guerra Hernandez
Departamento de História
Universidade Federal do Paraná
O
PRESENTE trabalho propõe responder
esta pergunta, sua resposta vai depender
da reflexão e abertura às leituras ecléticas e ainda não
padronizadas dos leitores e das leitoras. O desafio de
questionar os regimes de verdade que sustentam a
produção de conhecimento e, desta maneira, apostar
por uma ressignificação crítica do lugar de enunciação
epistêmico, mesmo sabendo que o marco conceitual e
sistemas de categorização estão determinados pela
ordem epistemológica ocidental que se pretende
criticar1, constitui o mérito desta obra. Mesmo
condicionado
pelo
dito
marco
conceitual,
Descolonizar o conhecimento deveria ser uma prática
1
Esta é uma preocupação, seja como crítica ou oportunidade,
aparece na reflexão de muitos autores na África como em Ásia e
América latina, aqui resgato a reflexão de Valentin Mudimbe: “A
questão em causa é que, até agora, tanto interpretes ocidentais
como analistas africanos têm vindo a usar categorias de análise e
sistemas conceituais que dependem de uma ordem epistemológica
ocidental. Mesmo nas mais evidentes descrições ‘afrocêntricas’, os
modelos de análise utilizados referem-se, direta ou indiretamente,
consciente ou inconscientemente à mesma ordem.” (MUDIMBE, V.
2013, p. 10).
Luís Thiago Freire Dantas
instaurada no ethos das nossas instituições de
formação. Infelizmente, continuamos lidando com o
exercício da repetição de um dispositivo hegemônico
de transferência de conhecimento formatado pelo que
Ramón Grosfoguel (2014) definiu como "sistemamundo ocidentalizado moderno/colonial cristãocêntrico capitalista/patriarcal”2. Na contramão deste
exercício de repetição é que se coloca a proposta de
Luís Thiago Dantas abrindo mão de décadas de
debates cruzados e teorias “indisciplinadas”
(RICHARD, 1998)3 produzidas por autores e autoras
que, por motivos de espaço, reduziremos a definir
como “pós-coloniais”4.
E como o autor mesmo esclarecerá o uso desta definição um tanto
comprida e complexa: “Aún a riesgo de sonar ridículo, preferimos
utilizar una frase extensa como ésta para caracterizar la actual
estructura heterárquica (múltiples jerarquías de poder enredadas
entre sí de maneras históricamente complejas) del sistema-mundo,
antes que la limitada caracterización de una sola jerarquía llamada
'sistema-mundo capitalista'”(GROSFOGUEL, 2014, p. 84).
3 Sobre a ideia de indisciplina na teorização, vide Richard, 1997.
4 Sob o termo "pós-colonial" poderíamos aceitar que inicialmente
estariam reunidas um conjunto de estudos socioculturais e
históricos que vão desde a crítica do colonialismo europeu na
década de 40 e 50, passando pela teoria do imperialismo dos 70, até
as confrontações temáticas sobre os fenômenos da diáspora,
migração e racismo dos anos 80 e 90 (GUTIERREZ, 2003). Para
Mignolo (2005), o termo pós-colonial seria uma expressão no
mínimo ambígua, perigosa e confusa. Ambígua, porque abrange e
homogeniza diversas histórias coloniais e processos de
descolonização, localizados em diversos espaços e tempos.
Perigosa, porque esconde a potencialidade discursiva de constituirse como uma oposição à hierarquia estabelecida na circulação e
distribuição de conhecimento. Mas confusa, também, porque cria a
2
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Autores e autoras oriundos/as de um “sul
global” que optaram a produzir diferentes
possibilidades heurísticas e de análise, movidos/as
por uma desconfiança frente a um discurso
eurocentrado (pós-moderno) que anunciara décadas
atrás o colapso das pretensões universalizantes do
modelo ocidental dominante e seu legado de
transcendência e finalismos históricos. Situação que
supostamente abriria as possibilidades para uma
crítica pluriversal que tendiam a revalorizar as
margens construídas historicamente em torno deste
modelo. Esta desconfiança se fundou precisamente
em torno deste discurso sobre descentramentos, pois,
ao invés de promover a inclusão de outros saberes e
conhecimentos, tem transformando essa crise
paradigmática em uma nova e grande narrativa,
incapaz de desafiar as estruturas de poder existentes,
nem as hierarquias e violências que continua
reproduzindo.
Em nossas regiões ainda paira a ideia de que a
epistemologia moderna, e dentro dela a própria
filosofia, seria o produto de processos históricos
constitutivos que iriam desde o renascimento à
expansão do cristianismo pós-reforma, junto com o
capitalismo e a emergência do circuito comercial do
ideia de excepcionalidade, sobretudo porque com categorias como
“hibridização”, “mestiçagem”, entre tantas outras, sugere-se a ideia
de descontinuidade entre a configuração colonial do objeto de
estudo e a posição pós-colonial do lugar da teoria.
Luís Thiago Freire Dantas
Atlântico. No entanto, as histórias e processos que
participaram na constituição do nosso ser coletivo “se
era interessante o era como objeto de estudo que
permitia compreender formas locais de vida, mas que
não considerava como parte do saber universal,
produzido pela humanidade” (MIGNOLO, 1996, p. 4,
grifos nossos). Essa geopolítica do conhecimento foi
substantiva para entender o que alguns autores
chamaram de colonialidade do poder (QUIJANO,
2000), sustentada por um consenso silencioso (NIGH
HÁ, 2004) – muitas vezes escondido no interior das
práticas e mecanismos de reprodução do próprio
conhecimento científico –, o qual, voluntária ou
involuntariamente, continua a repetir cânones e
padrões de pensamento ditos “modernos” e oriundos
de uma tradição iluminista, entendida como
democrática e abstraída do seu lugar enunciativo, mas
se pensada em nossos contextos nos permitiria ver
que na sua matriz é portadora de um ethos constituído
historicamente sobre a base de uma lógica colonial: a
cara oculta, messiânica e endoutrinadora, de uma
modernidade eurocentrada.
Este fenômeno é denominado por Mignolo
como “dependência epistêmica” (MIGNOLO, 2005).
Esta dependência tem contribuído substancialmente à
manutenção de uma ordem nas quais muitas
identidades e saberes, além de essencializados através
de
enquadramentos
ontológicos
excludentes
continuam recluídos nas margens da produção do
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
conhecimento, negando cosmovisões e sistemas
cognitivos que, por não se encaixarem no modelo
eurocentrado se tornam inconcebíveis se pensados
desde suas próprias racionalidades. Eis o caso da
filosofia africana. Neste sentido, o trabalho de reflexão
realizado por Luís Thiago Dantas neste livro é
fundamental, uma leitura obrigatória para todo/a
aquele/a que está trilhando os caminhos da crítica
política e epistemológica e não apenas no nível do
currículo escolar. A proposta de Dantas transcende o
debate escolar e nos convida a uma importante e bem
documentada reflexão em torno dos limites e
ambiguidades de uma geopolítica do conhecimento
ultrapassada, porém, hegemônica.
Finalmente, é absolutamente necessário
questionar-se qual é o currículo pensado para a
formação escolar no Brasil, e sendo pretensioso
incluiria esse sul global mencionado mais acima. É
possível na atualidade falar de um paradigma
educacional democrático se, ao revisar suas diretrizes,
constatamos que se continua a repetir ideias e
concepções filosóficas forjadas em outros contextos?
Esta questão nos leva a outra um pouco mais
espinhosa: até quando vamos continuar introjetando
conceitos cuja suposta universalidade só é possível
compreender de maneira abstrata? Fonseca (2007)
sentencia que:
Luís Thiago Freire Dantas
A história da educação constituiu-se como uma
disciplina cuja finalidade estava praticamente restrita à
formação de professores. Isso lhe deu a conformação de
uma disciplina voltada para a compreensão da evolução
das ideias pedagógicas e a deixou em uma relação muito
estreita com a filosofia da educação (FONSECA, 2007, p.
16).
Considerando apenas este aspecto parece que a
educação é vista como algo que transcende os
conflitos históricos e os problemas de inclusão de
grande parte da população pobre e marginalizada que
não entra no padrão do individualismo liberal
reproduzido nas diretrizes curriculares obrigatórias.
Dentro desta perspectiva, filha do iluminismo a
educação se levanta por cima de qualquer problema
estrutural ou relação de poder construída
historicamente e não questiona sua própria
conformação contraditória. Pois sua proposta
emancipatória e inclusiva continua envolvendo um
caráter doutrinário e impositivo.
Contra esta maneira de reprodução da
educação devemos insistir na ampliação do
paradigma que aponta para compreensão dos
processos educativos localizando-os em um espaço
complexo e diverso. Este posicionamento exige, por
sua vez, uma reflexão crítica dos conteúdos, práticas e
valores operacionalizados no processo pedagógico,
mesmo que condicionados pelo marco epistemológico
dominante. Neste sentido este livro é uma tentativa
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
ousada e bem sucedida que aponta para essa reflexão.
Desta maneira, se pretendemos democratizar o
processo de formação, garantir reflexividade e
autonomia devemos, na medida do possível, criar os
espaços de intercâmbio e diálogo que nos permitam
reconhecer oportunamente quando uma metodologia
ou um conteúdo estaria discriminando e
marginalizando minorias sociológicas em nome de
uma maioria ideológica, mas não demográfica.
REFERÊNCIAS
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y
translocalizaciones
narrativas
de
“lo
latinoamericano”: La crítica al colonialismo en
tiempos de globalización; en FOLLARI, Roberto y
LANZ, Rigoberto (Comp.): Enfoques sobre
Posmodernidad en América Latina, editora Sentido,
Caracas 1998. p. 155-182
FONSECA, M. A arte de construir o invisível o negro
na historiografia educacional brasileira. Revista
Brasileira de História da Educação n° 13 jan./abr.
2007. p. 11-50.
HA, Kien Nghi. Ethnizität und Migration
RELOADED: Kulturelle Identität, Differenz und
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MIGNOLO, Walter. El pensamiento des-colonial,
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Disponível em:
Luís Thiago Freire Dantas
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______. Espacios geográficos y localizaciones
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______. Cambiando las éticas y las políticas del
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postcolonialidad imperial. Tabula Rasa. Bogotá Colombia, n.3. 2005, p. 47-72.
MUDIMBE, V. A Invenção de África. Gnose, Filosofia
e a Ordem do Conhecimento. Ed. Pedago, 2013.
RANDEIRA,
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“Verwobene
Moderne:
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em: BRUNKHORST, COSTA (HG.) Jenseits von
Zentrum und Peripherie: Zur Verfassung der
fragmentierten Weltgesellschaft, Mering: Hampp
Verlag, Buchreihe Zentrum und Peripherie, 2005, p.
169-196
RICHARD, Nelly: “Mediaciones y tránsitos
académicos-disciplinarios de los signos culturales
entre Latinoamérica y el Latinoamericanismo.”
Dispositio, v. 22, n. 49, The Cultural Practice of
Latinamericanism I (1997), p. 1-12
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
INTRODUÇÃO
Ou um passo a frente e já não estamos no mesmo
lugar
A
PUBLICAÇÃO deste livro tem como
motivação o deslocamento intelectual
ocorrido durante a minha trajetória intelectual. Isso
porque no decorrer da minha graduação e do
mestrado concordava com o discurso acadêmico que
defende a ideia de filosofia enquanto uma formação
de pensamento estritamente europeia, de origem
grega, cuja sustentação é formada pela tríade Sócrates,
Platão e Aristóteles. Outro quesito é que apesar da
origem humilde, eu reproduzia o ideal elitista da
filosofia de que para se tornar um “filósofo” no
sentido mais comum do termo era necessário dedicarme somente aos estudos, já que destinaria tempo ao
trabalho quando alcançasse a vaga de professor em
uma universidade.
Diante desses aspectos, o interesse inicialmente
consistiu em pesquisar um dos pensadores
hegemônicos, no caso Heidegger5. Além disso, criei
uma resistência em lecionar no ensino médio que
representava, para essa compreensão reduzida de
No mestrado desenvolvi uma dissertação em que abordou o tema
do niilismo na interpretação da filosofia de Heidegger. O ponto
principal foi pensar o niilismo enquanto histórico-ontológico, isto é,
um evento que atua na história do Ocidente e modifica a
constituição do próprio ser. Cf. DANTAS (2013)
5
Luís Thiago Freire Dantas
mundo, um atraso na construção da minha carreira
acadêmica. Entretanto, no meio do caminho houve
uma mudança que rompeu com ambas as ideias e
apresentou o grande equívoco que eu tinha de
compreensão de mundo e de pensamento. O princípio
da mudança ocorreu quase no término do mestrado
em filosofia na UFPR, em que passei a participar de
um grupo de leitura de textos africanos em língua
francesa, organizado no Núcleo de Estudos AfroBrasileiros (NEAB-UFPR). As leituras de filósofos
camaroneses6 como Marcien Towa (2009; 2011), Nkolo
Foé (2013) e do congolês Théophile Obenga (1990)
fizeram-me perceber a existência da Filosofia Africana
e que ela era de origem milenar.
O principal destaque dessas leituras concernia
à filosofia não ser uma produção originariamente
grega, pois o Egito antigo havia fornecido as bases do
pensamento grego e, ainda, havia egípcios que
elaboravam uma filosofia própria. Nesse tempo,
também ingressei na especialização em Educação das
Relações
Étnico-Raciais,
promovida
pelo
NEAB/UFPR e que me permitiu um aprofundamento
nos assuntos até então marginalizados ou nem sequer
notados.
Por mais que possa parecer desnecessário e racializante a
identificação da origem dos filósofos negros citados neste estudo (já
que aos filósofos europeus não se utiliza tal prática, numa lógica de
“normalidade”), a intenção de destacar o pertencimento geográfico
nesse caso deve-se ao objetivo de ressaltar pensadores localizados
para além das fronteiras racistas estabelecidas pelo Ocidente.
6
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Assim, os conhecimentos provenientes dos
módulos das disciplinas foram fundamentais na
percepção do racismo antinegro atuando em vários
setores sociais e, também, evidenciando como
algumas ações buscavam afirmar um grupo
historicamente discriminado e reestabelecer o lugar
da população negra na “formação do povo brasileiro”
(RIBEIRO, 2014). Acrescentado a isso, a intensificação
das leituras dos filósofos africanos em suas diversas
correntes de pensamento, incentivaram-me na
construção de um projeto de doutorado que abordaria
a filosofia de Towa (2009; 2011) contrapondo-se ao
ideal de modernidade a partir de uma tradição que
localiza o europeu como centro. Com o meu ingresso
no doutorado e a ausência de bolsa no primeiro
semestre, houve a necessidade de lecionar filosofia no
ensino médio. Nesse conjunto de mudanças, a ideia
de elaborar uma monografia que atendesse tanto a
interesses próprios quanto à regulamentação da
especialização motivou o tema desta pesquisa: a
contribuição da Filosofia Africana para a disciplina de
filosofia no ensino médio.
Com isso, a pesquisa teve como preocupação
promover uma discussão sobre o currículo de filosofia
do ensino médio e sobre as diversas práticas de
racismo, que têm o intuito de hierarquizar grupos
humanos e normatizar o modo pelo qual se formula o
conhecimento. Tal normatização é propiciada pela
filosofia enquanto um pensamento elevado e
Luís Thiago Freire Dantas
caracterizador da cultura de um povo. Isso se deve em
grande medida por causa do privilégio a uma forma
de fazer filosofia. Um bom exemplo diz respeito a
seguinte advertência de Miguel Reale (1961) para a
formação de uma filosofia brasileira:
Integrados que estamos nas coordenadas da civilização do
Ocidente, como filhos da prodigiosa cultura europeia, dela
só podemos nos emancipar como se emancipam os filhos
dignos, dignificando e potenciando a herança paterna,
cientes e conscientes da nobreza de nossa estirpe espiritual.
Não ignoro as contribuições das culturas ameríndia e
africana na modelagem da que justamente se considera a
maior ‘democracia racial’ do planeta, mas tais influências,
malgrado a pretensão de certos ‘africanistas’, não são de
molde a afastar-nos das linhas mestras do pensamento
oriundo das fontes greco-latinas (REALE, 1961, p. 117).
Por meio de uma breve digressão metafórica,
Reale (1961) levou-me a observar que a nossa herança
cultural europeia seria um privilégio por articular-se
com as “fontes greco-latinas”. Além disso, a
interpretação do autor é de que a emancipação do
pensamento brasileiro exclusivamente se daria com a
subserviência ao modelo europeu considerado como
um “pai”. No entanto, além de assimilada, essa
reflexão demonstra que tal “paternidade” apenas teria
registrado o nome naquela terra ocultando aqueles
que viviam nela em tempo anterior: os povos
indígenas.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Se for assim, a anterioridade deveria legitimar
os indígenas como “mães” da filosofia brasileira. Essa
digressão estimula, portanto, uma pergunta: e quanto
aos africanos que foram desenraizados e obrigados a
viver nessa terra, qual seria a posição de parentesco?
Uma possível resposta, e que será mais explorada no
decorrer deste livro, estaria na problematização do
próprio ensino da filosofia no Brasil que
historicamente
negou
ou
invisibilizou
os
conhecimentos relacionados à intelectualidade
africana, ignorando a intrínseca relação entre Brasil e
África, por meio de grande da parte da sua
população.
Nesse sentido, estudos como este se fazem
necessários à medida que levantam dúvidas acerca de
aspectos do ensino da filosofia e das metodologias
utilizadas em seu ensino (em especial no ensino
médio, foco deste livro), principalmente porque a
obrigatoriedade da filosofia neste nível de ensino
ocorreu com a Lei 11.648/2008. Antes a filosofia ora
apareceria como assunto transversal em algumas
disciplinas (isso ocorreu em 1996 com a reforma na
Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDB)
ou apenas sugerida como nas leis 4.024/1961,
5.692/1971 e 7.044/1982. Porém, a partir da
obrigatoriedade os estudantes tiveram acesso a alguns
conteúdos filosóficos como: Ética, Filosofia Política,
Lógica, Estética e História da Filosofia. O problema
que se apresenta na exposição desses conteúdos é que
Luís Thiago Freire Dantas
em seu cerne há um eixo geopolítico de enorme
influência: o europeu. Dessa forma, a filosofia
consolida a ideia de que é uma disciplina de base
europeia.
Em contrapartida, a Lei 10.639/2003, modificou
a LDB, exigindo a obrigatoriedade do ensino de
História e Cultura Africana e Afro-brasileira para
todas as disciplinas, em especial Literatura, História e
Artes. Outra modificação ocorreu em 2008, com a
aprovação da Lei 11.645/2008 que acrescentou a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Indígena. Ainda vale destacar que tais modificações
na LDB foram ampliadas para o ensino superior por
meio das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL,
2004). O referido documento ao tratar da filosofia
afirma que:
[...] respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino
Superior, nos conteúdos de disciplinas e em atividades
curriculares dos cursos que ministra, de Educação das
Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz
africana e/ou que dizem respeito à população negra. Por
exemplo: [...] em Filosofia, estudo da filosofia tradicional
africana e de contribuições de filósofos africanos e
afrodescendentes da atualidade (BRASIL, 2004, p. 24).
Dessa forma, este livro propõe contribuir para a
luta antirracista de maneira que a filosofia, sendo “a
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
mais branca” entre as disciplinas das Humanidades
(MILLS, 1999), tenha um espaço de reflexão também
para a contribuição da cultura, história e pensamento
africano. Para isso, vale destacar ainda a importância
do presente estudo a partir dos dados levantados pelo
Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e
interseções (Afrosin), apresentados por Renato
Noguera (2014) no livro O ensino da filosofia e a lei
10.639/03:
O Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e
interseções (Afrosin) tem feito alguns levantamentos
parciais sobre os assuntos abordados por monografias,
dissertações e teses em cursos de graduação, mestrado e
doutorado, respectivamente. A pesquisa que recobriu a
produção de trabalhos filosóficos de 2003 (ano da
promulgação da Lei 10.639/03) até 2008 na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Universidade de São
Paulo (USP) revelou uma coisa em comum nas duas
instituições: pouquíssimos trabalhos versaram sobre algum
tema referente às relações étnico-raciais, seja o assunto
propriamente dito, seja a revisão de obras sobre filosofia
africana ou teses críticas sobre o racismo antinegro
(NOGUERA, 2014, p. 14-15).
Apesar de tais resultados se referirem a um
período anterior, o quadro atual revela-se o mesmo,
pois trabalhos de monografia, dissertações e teses dos
departamentos de filosofia que tenham como
principal abordagem temas ou filósofos africanos são
Luís Thiago Freire Dantas
quase inexistentes7. Desse modo, este livro teve como
objetivo principal propor alternativas de inserção da
filosofia africana nas Diretrizes Curriculares de
Filosofia do Paraná, num processo de descolonização
curricular. Os objetivos específicos foram: i) analisar
quais foram as principais críticas acerca do ideal
eurocêntrico, que elegeu historicamente um saber
como naturalmente “maior” frente aos demais; ii)
explicitar temas filosóficos a partir do pensamento
africano; iii) discutir e propor um currículo escolar
que promova um diálogo entre diversos centros
filosóficos. A partir de tais objetivos algumas questões
podem ser levantadas: Como se pode definir uma
filosofia africana? Qual a legitimidade do seu estudo?
Qual a abordagem que este estudo pretende utilizar?
Essas questões são importantes para explicar três
pontos necessários a essa obra.
7 “Nós encontramos apenas dois trabalhos na UFRJ: a monografia
de graduação de Katiuscia Ribeiro Pontes intitulada O que
é
filosofia africana? Investigaçoes epistemológicas na construção de sua
legitimidade, de 2012, e a dissertação de mestrado de Rodrigo
Almeida dos Santos intitulada Baraperspectivismo contra
logocentrismo ou o trágico no prelúdio de uma filosofia da diáspora
africana, defendida em abril de 2014. Vale destacar que os dois
trabalhos, orientadores pelo prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo,
figuram entre as minhas coorientações” (NOGUERA, 2014, p. 15,
grifos do autor). Apesar de tais trabalhos, num breve levantamento
nos bancos de teses em departamentos de filosofia de outras
universidades brasileiras, durante o período 2009-2014, não fora
encontrada nenhuma monografia, dissertação ou tese concluídos
que versasse sobre a Filosofia Africana.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Primeiramente, localizar geograficamente a
filosofia não sugere uma redução em seu modo de
pensar, pois o epíteto de Filosofia Africana nada mais
é o que o filósofo costa-marfinense Paul Houtondji
define: “Eu falo de filosofia africana como um conjunto
de textos: conjunto, precisamente, de textos escritos
por africanos e qualificados pelos próprios autores de
filosóficos8” (HOUTONDJI, 2013, p. 3, grifos do
autor). Desse modo, afirmar um texto ou um
pensamento como filosófico não necessita de um aval
alheio que venha dizer que isso é filosofia. O
importante é que os autores se percebam como
produtores de tal pensamento, já que no contexto
europeu não há esse tipo de questionamento.
A partir disso, responde-se a segunda
pergunta, sobre a legitimidade em pesquisar Filosofia
Africana, já que pesquisas com tal interesse buscam
desvelar formas implícitas do racismo que operam no
meio intelectual cristalizando a filosofia em um único
modo de produzir-se. Tais formas implícitas insistem
em desqualificar perspectivas filosóficas fora do eixo
europeu, sugerindo, ainda, que haveria uma
deficiência sistemática e racional em certos grupos
humanos, o que impossibilitaria de serem
Apesar de o filósofo Houtondji enfatizar para textos escritos a
comprovação da Filosofia Africana, não se pretende neste livro
sustentar que a Filosofia somente tem a produção escrita como sua
certificação. Mas se entende que a Filosofia está também inserida
em outros modos da reflexão humana, por exemplo, através da
Oralidade.
8
Luís Thiago Freire Dantas
reconhecidos ontologicamente, isto é, em seu modo de
ser. Na aproximação dessas duas questões, este
estudo concorda com o filósofo sul-africano Mogobe
Ramose (2011):
Afirmamos que não há nenhuma base ontológica para negar
a existência de uma filosofia africana. Também
argumentamos que, frequentemente, a luta pela definição
de filosofia é, em última análise, o esforço para adquirir
poder epistemológico e político sobre os outros (RAMOSE,
2011, p. 14).
Opondo-se a esse esforço de poder sobre o
outro, o horizonte do presente estudo possui como
linha de
pesquisa a forma da
filosofia
afroperspectivista para escapar de tal dominação, o
que responde à terceira pergunta. A filosofia
afroperspectivista consiste em analisar os conteúdos
dos currículos trazendo para diálogo uma perspectiva
africana, que ratifica a existência de uma luta perante
o discurso universal, por estabelecer, enquanto
contraponto, uma pluriversalidade na intenção de
impedir a manifestação do racismo epistêmico9. Além
do que a escolha pela filosofia afroperspectivista
deve-se à definição proposta pelo filósofo afroAcerca da definição de racismo epistêmico Maldonado-Torres
(2008) explica da seguinte maneira: “O racismo epistêmico descura
a capacidade epistêmica de certos grupos de pessoas. Pode basearse na metafísica ou na ontologia, mas o resultado acaba por ser o
mesmo: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente
humanos” (MALDONADO TORRES, 2008, p. 79).
9
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
brasileiro Renato Noguera (2012, p. 65): “filosofia
afroperspectivista é todo exercício filosófico
protagonizado por pessoas com pertencimentos
marcados principalmente pela afrodiáspora10”. Além
disso, o autor apresenta alguns dos desafios
relacionados ao ensino de filosofia que se propõe
afroperspectivista:
Diante deste quadro, um de nossos desafios está na
articulação de uma dupla obrigatoriedade: (1ª) ensinar
Filosofia; (2ª) ensinar e promover relações étnico-raciais
equânimes através do estudo de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Este desafio duplo passa por uma
análise filosófica da própria Filosofia. O que é próprio da
Filosofia que pode contribuir para horizontes antirracistas
na sociedade brasileira? O que a Filosofia tem a dizer sobre
o racismo antinegro? Existem pontos de contato entre a
Filosofia e a História da África? As culturas africanas e
afrodescendentes, em especial a afro-brasileira, são
relevantes para o entendimento da Filosofia? Ou ainda,
existe Filosofia Africana e/ou Filosofia Afro-Brasileira? Em
caso afirmativo, a Filosofia Africana e/ou Filosofia Afro-
Por afrodiáspora entende-se o processo de colonização e
escravidão europeia sobre os africanos para os países da América
Latina, Caribe, América do Norte e outras partes do mundo. O
antropólogo congolês radicado no Brasil, Kabengele Munanga
(2012, p. 84-85) apresenta uma definição complementar ao tratar de
diáspora: “Originalmente, a palavra foi usada para designar o
estabelecimento dos judeus fora de sua pátria, a qual se acham
vinculados por fortes laços históricos culturais e religiosos. Por
extensão, o conceito também é utilizado para designar os negros de
origem africana deportados para outros continentes e seus
descendentes (os filhos dos escravos na América, etc.)”.
10
Luís Thiago Freire Dantas
Brasileira estaria(m) apta(s) a examinar e discorrer sobre os
postos-chaves da educação das Relações étnico-raciais?
(NOGUERA, 2014, p. 19).
Vale destacar que as respostas a tais desafios
estarão continuamente presentes não apenas nesse
trabalho em particular, mas também na minha própria
trajetória daqui em diante. Porém, na impossibilidade,
nesse trabalho, de um tratamento aprofundado de
todas as questões, algumas somente serão exploradas.
No Capítulo 1, a reflexão foi desenvolvida no
seguinte sentido: para que a crítica à construção do
currículo em filosofia seja precisa, deve-se direcionar a
observação àquilo que é considerado como
característica
delimitadora
do
currículo:
o
eurocentrismo. Porque o “eurocentrismo é um dos
grandes obstáculos que devem ser superados para
que seja assegurado o acesso e a permanência dos
diversos grupos étnico-raciais no sistema escolar
brasileiro, que é uma reivindicação política e
educacional dos grupos sociais marginalizados”
(PRAXEDES, 2008, p. 2). No entanto, para um estudo
filosófico, problematizar o eurocentrismo é ainda mais
importante e mais desafiador. Ao passo que, por
exemplo, as Ciências Sociais já têm conseguido
esboçar críticas ao eurocentrismo, por meio de uma
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
literatura significativa11, a Filosofia ainda necessita de
uma reflexão precisa sobre o tema.
Tal fato pode ser motivado pela influência da
Europa na filosofia, ou uma compreensão de que esse
ponto, o eurocentrismo, seria um falso-problema para a
reflexão filosófica. Contudo, a escrita desse texto
realizou uma crítica ao eurocentrismo por compreendêlo como um saber que inviabiliza, ou dificulta, a
expressão de saberes fora do seu eixo, já que no
Entre algumas das posições contrárias ao eurocentrismo nas
Ciências Sociais destacam-se o egípcio Amim (1989, p. 9): “O
eurocentrismo é um culturalismo no sentido de que supõe a
existência de invariantes culturais que dão forma a trajetos
históricos dos diferentes povos, irredutíveis entre si. É então
antiuniversalista porque não se interessa em descobrir eventuais
leis gerais da evolução humana. Mas se apresenta como um
universalismo no sentido de que propõe a todos um modelo
ocidental como única solução aos desafios do nosso tempo”; o
indiano Bhabha (1998, p. 43): “Entre o que é representado como
‘furto’ e distorção da ‘metateorização’ europeia e a experiência
radical, engajada, ativista da criatividade do Terceiro Mundo, podese ver uma imagem especular (embora invertida em conteúdo e
intenção) daquela polaridade a-histórica do século dezenove entre
Oriente e Ocidente que, em nome do progresso, desencadeou as
ideologias imperialistas, de caráter excludente, do eu e do outro”; o
colombiano Lander (2005, p. 34, grifos do autor): “Existindo uma
forma ‘natural’ do ser da sociedade e do ser humano, as outras
expressões culturais diferentes são vistas como essencial ou
ontologicamente inferiores e, por isso, impossibilitadas de ‘se
superarem’ e de chegarem a ser modernas (devido principalmente
à inferioridade racial). Os mais otimistas veem-nas demandando
ação civilizatória ou modernizadora por parte daqueles que são
portadores de uma cultura superior para saírem de seu
primitivismo ou atraso. Aniquilação ou civilização imposta definem,
destarte, os únicos destinos possíveis para os outros”.
11
Luís Thiago Freire Dantas
encontro com outro que apresenta novas perspectivas
para antigos problemas, rapidamente este passa a ser
denominado como “menor” em relação ao
pensamento eurocêntrico.
Assim, nesse capítulo foi detalhado qual o
sentido da palavra eurocentrismo aqui problematizado,
assim como a formação desse saber e o motivo pelo
qual lhe é necessário uma crítica.
No Capítulo 2, após o estabelecimento da
crítica é relevante apresentar como a filosofia não
consiste em um saber unívoco e com uma forma
somente de produzi-la. Diante disso, apresentar a
filosofia a partir da compreensão de filósofos
africanos contrapõe-se à concepção eurocêntrica que
sustenta a filosofia como uma produção europeia com
origens gregas. Assim, este estudo concorda com as
intepretações que, de um lado, criticam o discurso de
exclusividade europeia da filosofia e, de outro,
fornecem uma compreensão mais global, no sentido
de estabelecer a filosofia enquanto uma produção de
diferentes povos.
Entretanto, devido à gama de autores nas
tradições europeias e africanas, algumas diferenças
perante a definição de filosofia foram exploradas a
partir de dois pensadores que em larga medida
exemplificam de um lado o modo de pensar
eurocêntrico – Martin Heidegger – e, do outro, um
filósofo que assevera a legitimidade de se refletir
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
filosoficamente a partir de uma base não eurocêntrica:
Marcien Towa.
Como se sabe, Heidegger é considerado um
dos maiores pensadores do século XX e de grande
influência em áreas que não se restringem à filosofia.
Apesar disso, não somente por fatos turbulentos da
sua biografia, mas também por afirmações que são, no
mínimo, centradas no germanismo, pode-se afirmar a
presença de um conteúdo eurocêntrico. Verifica-se tal
presença, por exemplo, no início da preleção de 1933,
A Europa e a filosofia Alemã:
Dir-se-á aqui, neste instante, alguma coisa acerca da filosofia
alemã e, consequentemente, acerca da filosofia em geral. O
nosso ser-aí histórico experimenta, com premência e clareza
crescentes, que o seu futuro se equivale à crua alternativa ou
de uma salvação da Europa ou da sua destruição. A
possibilidade da salvação requer, no entanto, duas coisas:
1) A conservação dos povos europeus perante o asiático.
2) A superação do desenraizamento e da fragmentação que
lhe são próprios. (HEIDEGGER, 1993, p. 31, grifos nossos).
Por outro lado, Towa (2009; 2011; 2012)
desenvolveu teses que afirmariam a existência da
filosofia no continente africano. No entanto,
diferentemente
de
uma
tendência
que
classifica/classificou a Filosofia Africana como
“etnofilosofia”, ou seja, “como um sistema e filosofia
dos valores do mundo negro, apresentando a forma
de uma realidade transcendente para relatar as
Luís Thiago Freire Dantas
condições materiais e contingentes da existência”
(DIAKITE, 2007, p. 3), Towa (2009) discorda de tal
posição porque a Etnofilosofia consistiria em um
movimento reacionário que insere o conceito de
filosofia como resultado de uma cultura, “em
realidade, essa interpretação dos dados etnológicos
não tem por objeto estabelecer o resultado de uma
filosofia negro-africana [...]. Porque a etnologia ou
antropologia cultural já estabelece que toda sociedade
humana tem uma cultura” (TOWA, 2009, p. 27).
Além disso, Towa argumenta que a reflexão
filosófica seria algo eminente a qualquer grupo
humano e sua construção seria um pensamento em
princípios absolutos12:
Filosofia existe. Apresenta-se como umas coleções de obras
que se dizem filosóficas. A leitura dessas obras impõe a
ideia de que a filosofia é a coragem de pensar o absoluto. O
ser humano pensa, e, todos conhecem os entes, ele é um
único que pensa. Aqui, pensar é entendimento no sentido
restrito: no sentido de ponderar, discutir representações,
crenças, opiniões, confrontá-las, examinar os prós e os
contra de cada uma, selecionar criticamente, no intuito de
reter somente o que pode resistir ao teste da crítica e
classificação (TOWA, 2012, p. 17, grifo do autor).
O uso aqui do termo “absoluto” serve para ilustrar a formação de
um pensamento africano capaz de dialogar em nível similar à
tradição europeia, pois é compreensível a ressalva perante a
“formulação de princípios absolutos”. Isto porque tais princípios
não são condicionantes necessários para presença de uma filosofia,
mas, ao contrário, pode muito bem desviar-se de um saber
filosófico.
12
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Por fim, o Capítulo 3 analisou as Diretrizes
Curriculares da Educação Básica do Paraná, da
disciplina de Filosofia, com o objetivo de avaliar como
e se a Filosofia Africana foi inserida. A hipótese
desenvolvida foi de que não há nas referidas
Diretrizes o reconhecimento de perspectivas
filosóficas para além do modelo eurocêntrico. Assim,
uma pergunta foi estabelecida: por que há ainda uma
invisibilidade das filosofias fora do eixo europeu?
Após a análise das Diretrizes, o estudo fez um
exercício propositivo de pensar um currículo
filosófico que contemple o pensamento africano (sem
fazer uma hierarquização), de maneira que estimule o
diálogo e utilize elementos conceituais afro-brasileiros
para expressar os conteúdos filosóficos.
Espera-se, com esse livro, desenvolver uma
contribuição à área de estudos filosóficos, ainda em
construção, que tem questionado o privilégio de um
grupo em produzir tal pensamento. Principalmente
porque o presente estudo propõe uma série de
reflexões acerca da construção curricular que alcance
as produções humanas sem hierarquizar um grupo
humano em detrimento de outros.
Luís Thiago Freire Dantas
CAPÍTULO 1
O EUROCENTRISMO E SEUS CRÍTICOS
1.1 Europa: uma invenção ideológica
P
ARA explicar a constituição do conceito de
Europa, o filósofo argentino radicado no
México Enrique Dussel (2005) inicia com uma análise
da sequência semântica de tal termo. Inicialmente o
autor refere-se à diferença entre a origem da Europa e
a Europa moderna, de maneira que esta não haveria
qualquer conexão com aquela. Inclusive pelo fato de
que o local geográfico da modernidade europeia na
antiguidade consistiria no dos “bárbaros” e a
distinção entre Ocidente e Oriente seria muito mais
uma questão de linguagem, pois no Ocidente estaria
Roma, de língua latina, e no Oriente estaria o
helenismo grego: “o ‘Ocidental’ será o império
romano que fala latim, que agora compreende a
África do Norte. O ‘Ocidental’ opõe-se ao ‘Oriental’, o
império helenista, que fala grego” (DUSSEL, 2005, p.
56).
Assim, o importante desses pontos é que
descrever, como será apresentado nos parágrafos
seguintes, uma história linear entre Grécia-RomaEuropa indica um equívoco, já que expor dessa forma
consiste em um invento ideológico romântico
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
alemão13 surgido durante o século XVIII e definido
como sendo “uma manipulação conceitual posterior
do ‘modelo ariano’, racista” (DUSSEL, 2005, p. 56).
Desse modo, destaca-se que o mais importante
na instauração do eurocentrismo trata-se do momento
em que a Europa foi colocada como “centro” do
mundo. Para Dussel, esse momento ocorreu após o
Renascimento Italiano em que uma fusão entre o
Ocidental latino e o Oriental helênico permitiu o
nascimento do que viria a ser a ideologia
“eurocêntrica” do romantismo alemão: Ocidental =
Helenístico + Romano + Cristão. Diante dessa
fórmula, consolidar-se-ia o pensamento que trata a
ideologia eurocêntrica como uma sequência
tradicional. Contudo, Dussel critica a ausência de
percepção sobre essa invenção ideológica que procura
colocar a Grécia e Roma como sendo “centros” do
mundo antigo quando, na verdade, o lugar
geopolítico impede-as de ser o “centro”, já que “O
mar Vermelho ou Antioquia, lugar de término de
comércio do Oriente, não são o ‘centro’, mas o limite
A tentativa de suprimir as fragmentações políticas e culturais que
a Alemanha vivia no século XVIII foi por meio da aproximação com
a Grécia antiga. Tal ideologia pode ser encontrada em vários
pensadores alemães da época, entre os quais pode-se destacar
Goethe, Schiller e Winckelmann. Deste último destaca-se a seguinte
reflexão: “O único meio para nós de nos tornarmos grandes e, se
isso é possível, inimitáveis é imitar os Antigos” (WINCKELMANN,
1990, p. 95).
13
Luís Thiago Freire Dantas
ocidental do mercado euro-afro-asiático” (DUSSEL,
2005, p. 59).
Diante desses aspectos, Dussel argumenta que
o caráter eurocêntrico tornou-se possível pela
construção da modernidade, ou seja: aquilo que limita
os diferentes povos a pensarem por si mesmos é efeito
do progresso da humanidade. Para entender melhor
essa afirmação, faz-se necessário averiguar o
surgimento da modernidade para o filósofo. Dussel
argumenta que há duas vias que explicam esse
surgimento: a primeira é a tradicional que contém
uma força eurocêntrica enorme, visto que destaca a
saída da imaturidade para o processo crítico humano
e esse processo estaria em sintonia com os eventos
destacados, por exemplo, por Habermas: “Os
acontecimentos-chave históricos para o estabelecimento
do princípio da subjetividade [moderna] são a
Reforma, a Ilustração e a Revolução Francesa”
(HABERMAS, 2000, p. 25, grifos do autor). Com o
acréscimo do Renascimento Italiano e do parlamento
Inglês, Dussel completa a sequência espaço-temporal
que propiciará a fundamentação do eurocentrismo:
Ou seja: Itália (século XV), Alemanha (séculos XVI – XVIII),
Inglaterra (século XVI) e França (século XVIII). Chamamos a
esta visão de ‘eurocêntrica’ porque indica como pontos de
partida da ‘Modernidade’ fenômenos intraeuropeus, e seu
desenvolvimento posterior necessita unicamente da Europa
para explicar o processo (DUSSEL, 2005, p. 73).
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
A segunda explicação do surgimento da
modernidade seria o que Dussel propõe como
paralela a anterior. Esta atenta para o ano de 1492,
quando o continente americano fora descoberto pelas
navegações espanholas. Com isso, Dussel destaca que
a modernidade europeia tornou-se possível pela
colonização do continente americano, visto que antes
disso a Europa latina era a “periferia do mundo”, e
somente o acúmulo de riquezas provindas do novo
continente possibilitou a sua emancipação territorial e
o desenvolvimento das suas próprias ciências. Em
outras palavras, “a ‘centralidade’ da Europa latina na
história mundial é o determinante fundamental da
Modernidade” (DUSSEL, 2005, p. 61, grifos do autor).
Dessa maneira, o autor coloca a colonização
espanhola como propulsora da Europa moderna, e
países como Inglaterra e França somente percorreram
o caminho já aberto e ampliaram a ideologia. Por
conseguinte, é essa “Europa moderna” surgida a
partir da dominação que instaura uma posição central
no mundo, de maneira que as demais culturas são
periféricas.
Assim, a crítica que se realiza ao eurocentrismo
tem como fio condutor a construção da modernidade
enquanto um projeto colonial. O importante de se
considerar nessa colonização é que ela não se
restringiu a uma ordem de riquezas, mas também de
conhecimentos, já que receberia o rótulo de civilização
aquela que justamente desvincula-se de todo um
Luís Thiago Freire Dantas
saber “imaturo”, que recorre ao exterior para
fundamentar-se e para transformar-se em uma
autônoma compreensão do mundo, a qual estaria no
interior do indivíduo por meio do uso “livre” da
razão. Tal uso remete-se ao que Kant (1985) explica
através da razão em que os indivíduos em sua
autonomia, nas palavras do autor, projetam a saída da
razão de sua menoridade para a maioridade:
“Esclarecimento é a saída do homem de sua
menoridade da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo”
(KANT, 1985, p. 98). Contudo, o filósofo nigeriano
Emmanuel C. Eze (1997) considera a antropologia
kantiana e, principalmente, o uso dessa razão
autônoma, como promotora de um racialismo:
Se os povos não-brancos não têm o ‘verdadeiro’
caráter racional e, portanto, não têm ‘verdadeiro’
sentimento e sentido moral, então eles não têm a
‘verdadeira’ piedade, ou dignidade. A pessoa negra,
por exemplo, pode de acordo ser negado à plena
humanidade, uma vez que a completa e a ‘verdadeira’
humanidade incidem apenas ao branco europeu. Para
Kant, a humanidade europeia é a humanidade por
excelência (EZE, 1997, p. 121, grifos do autor).
Dessa forma, facilmente percebe-se que tal
norma civilizatória possui o problema de
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
universalizar-se abstratamente, porque concretamente
insere uma região do planeta como centro e, por
conseguinte, promove uma invasão nos espaços de
outrem por meio de uma “violência justificada”, já
que crê em si como “inocente”, pois está
“modernizando” o bárbaro. Perante isso, Dussel
destaca a construção do mito da modernidade
fundamentado em sete sentenças:
1. A civilização moderna autodescreve-se como mais
desenvolvida e superior (o que significa sustentar
inconscientemente uma posição eurocêntrica).
2. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos,
bárbaros, rudes, como exigência moral.
3. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento
deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um
desenvolvimento unilinear e a europeia o que determina,
novamente
de
modo
inconsciente,
a
‘falácia
desenvolvimentista’).
4. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis
moderna deve exercer em último caso a violência, se
necessário for, para destruir os obstáculos dessa
modernização (a guerra justa colonial).
5. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas
maneiras), violência que é interpretada como um ato
inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói
civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de
serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio
colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição
ecológica, etecetera).
6. Para o moderno, o bárbaro tem uma ‘culpa’ (por opor-se
ao processo civilizador) que permite à ‘Modernidade’
Luís Thiago Freire Dantas
apresentar-se não apenas como inocente, mas como
‘emancipadora’ dessa ‘culpa’ de suas próprias vítimas.
7. Por último, pelo caráter ‘civilizatório’ da ‘Modernidade’,
interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou
sacrifícios (os custos) da ‘modernização’ dos outros povos
‘atrasados’ (imaturos), das outras raças escravizáveis, do
outro sexo por ser frágil, etecetera (DUSSEL, 2005, p. 77).
Essas sentenças resumem a maneira como o ato
colonizador atua e hierarquiza os diferentes povos.
Diante disso, Dussel oferece uma alternativa 14 para
saída desse processo de colonização aos povos do sul15,
entretanto pela complexidade e distância do objeto
deste estudo, não será por ora descrito. No entanto, é
importante explicar o conceito de colonialidade e
como ele permite uma leitura do eurocentrismo em que
se observa o julgamento dos diferentes povos através
de um artifício: a raça.
1.2 Colonialidade do poder: a legitimação através da
raça
O conceito de colonialidade é desenvolvido
pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2009), em que
A alternativa consiste na Trans-Modernidade. Esta significa um
paradigma que inclui a alteridade entre o Nós e os Outros em que os
Outros se referem aos povos não europeus, porém com o
reconhecimento da Modernidade europeia enquanto exercitadora
da função de violência aos demais povos.
15 Tomo essa expressão de Boaventura dos Santos (2009).
14
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
a contribuição crítica da colonialidade fundamenta-se
na seguinte definição:
[A colonialidade] sustenta-se na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como
pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada
um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos,
da existência social quotidiana e da escala societal
(QUIJANO, 2009, p. 73).
Assim, colonialidade difere de colonialismo,
pois este possui aspecto de controle da autoridade
política, do trabalho e da autoridade de uma
população, não necessariamente implicante em
aspectos étnico-raciais. Em contrapartida,
a
colonialidade atua e reforça os traços raciais nas
relações de poder. Com isso, Quijano explica que
apesar da origem mais antiga do colonialismo, a
colonialidade aparece como duradoura e com alcance
mais profundo.
Como o ponto principal da colonialidade
consiste na problemática étnico-racial, cabe ao
presente estudo a necessidade de analisar a raiz da
concepção de raça enquanto elemento político para
avaliar outra cultura como inferior. Isto significa a
construção de “uma concepção de humanidade
segundo a qual a população do mundo se
diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e
racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e
modernos” (QUIJANO, 2009, p. 74, grifo do autor).
Luís Thiago Freire Dantas
Tal concepção de humanidade articula-se com o
projeto do eurocentrismo. Inclusive, conforme escreve
Quijano, esse projeto tem um padrão de poder
composto a partir da ideia de raça, isto é, “uma
construção mental que expressa a experiência básica
da dominação colonial e que desde então permeia as
dimensões mais importantes do poder mundial,
incluindo
sua
racionalidade
específica,
o
eurocentrismo” (QUIJANO, 2005, p. 227).
Contudo, de que maneira a ideia de raça
implica em uma ação de poder eurocêntrica? Para
entender essa pergunta é importante frisar que raça
aqui escrita não sugere um elemento biológico, apesar
de compor a ideia inicial dessa maneira, mas uma
relação de poder entre aquele que é considerado um
dominador “natural” daquele que “naturalmente” é
colocado como dominado. Partindo dessa dicotomia,
compreende-se o motivo pelo qual Quijano destaca a
América como primeiro lugar em que se abre um
espaço/tempo de padrão de poder mundial formando
uma id-entidade, que talvez possa ser entendido como
aquilo que é inconscientemente, pois a colonização da
América permitiu uma instauração de identidades
sem relações ulteriores, por exemplo, índios, negros,
mestiços, entre outras.
Além disso, Quijano (2005, p. 228) observa que
o português e o espanhol, mais tarde o europeu, não
se restringem mais a uma posição geográfica, mas a
partir dessas outras identidades ocorre uma
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
racialização que os identifica como detentores de certa
superioridade16. Por esses aspectos pode-se dizer que
raça é uma categoria mental da modernidade que
implica em uma “re-identificação histórica” de certas
regiões e populações do planeta (QUIJANO, 2005, p.
236).
O interessante é que o Ocidente nesse instante
torna-se a Europa pela forma e nível do
desenvolvimento político, cultural e, especialmente,
intelectual. Já no Oriente17, movimentos diferentes
aconteceram: ao passo que a Ásia, mesmo considerada
como inferior, possuía um reconhecimento que a
constituir-se-ia na qualidade de “Outro” (como
sinônimo de alteridade), os demais povos não se
incluiriam, pois tanto a América e quanto a África
seriam “primitivas” (QUIJANO, 2005, p. 238). Tal
intitulação de primitivo teve inúmeras consequências,
dentre elas, a redução de uma complexidade étnica
em uma distinção racial. Na verdade, conforme
Uma crítica interna sobre a racialização do Europeu refere-se a
Gilles Deleuze e Félix Gattari em que no Mil Platôs (2004) definiram
o racismo europeu como aquele em que o estrangeiro é tratado
como um desvio de um padrão normatizador. Em consequência, “o
racismo jamais detecta as partículas do outro, ele propaga as ondas
do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar”
(DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 41) e justamente porque identifica
o outro como desvio que “não existe exterior, não existem as
pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e
cujo crime é não o serem” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 41).
17 Para saber mais acerca da “invenção” do Oriente e sua posição de
“inferioridade” perante o Ocidente, cf. SAID (1990).
16
Luís Thiago Freire Dantas
escreve Quijano, apesar do descobrimento inicial de
diferentes desenvolvimentos da própria história,
linguagem, produtos culturais e identidades, nada
impediu que “os nomes dos mais desenvolvidos e
sofisticados deles: astecas, maias, chimus, aimarás,
incas, chibchas, etc., trezentos anos mais tarde todos
eles se reduzissem a uma única identidade: os índios”
(QUIJANO, 2005, p. 249). Da mesma maneira sucedeu
com os grupos africanos escravizados, pois “achantes,
iorubas, zulus, congos, bacongos, etc., no lapso de
trezentos anos, todos eles não eram outra coisa além
de negros” (QUIJANO, 2005, p. 249, grifos do autor).
Por fim, a mentalidade de raça na modernidade
acarretou em uma dupla consequência: primeiro,
retirou qualquer identidade histórica que fosse
singular dos povos ameríndios e africanos; segundo, a
nova identidade, com conteúdo racial, colonial e
negativo, implicou na exclusão do lugar desses povos
na história da humanidade. Inclusive, a única
“história” possível era da não-humanidade.
As críticas ao eurocentrismo até aqui se
fundaram na formação do conceito de Europa
moderna e na criação de uma hierarquia de controle
por meio da identidade racial. Após essas críticas, o
texto trará uma terceira ao eurocentrismo que terá
como fundamento: explicar a origem epistêmica não a
partir do lugar hegemônico, e sim daquele que se
situa historicamente “à margem”.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
1.3 A desobediência do conhecimento marginal
Para explicar como ocorre a construção
epistêmica a partir do pensamento que historicamente
é considerado como um “pensamento marginal”, o
presente estudo abordará o sentido da “opção
descolonial”, descrito na argumentação do argentino
Walter Mignolo (2008) acerca da desobediência
epistêmica:
A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula
dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da
acumulação de conhecimento. Por desvinculamento
epistêmico não quero dizer abandono ou ignorância do que
já foi institucionalizado por todo o planeta. [...] Pretendo
substituir a geo e a política de Estado de conhecimento de
seu fundamento na história imperial do Ocidente dos
últimos cinco séculos, pela geo-política e a política de
Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e
econômicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou
seja, sua óbvia humanidade foi negada) (MIGNOLO, 2008,
p. 290).
Mignolo propõe refletir acerca do tipo
hegemônico que a política, nela mesma, tende a
avaliar os sujeitos através de um tipo: europeu,
branco, heterossexual e do sexo masculino. Dessa
forma, a desobediência epistêmica é um movimento
político que problematiza a política da identidade
para, com isso, colocar a “identidade em política”
(MIGNOLO, 2008), ou seja, impor à identidade um
Luís Thiago Freire Dantas
movimento que procura questionar as normas e
legitimações atuantes no seu processo de subjetivação.
Diante disso, Mignolo argumenta que é a partir da
“identidade em política” que se permite uma ação
descolonial:
Sem a construção de teorias políticas e a organização de
ações políticas fundamentadas em identidades que foram
alocadas por discursos imperiais, pode não ser possível
desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade
no mundo moderno em uma economia capitalista
(MIGNOLO, 2008, p. 289).
Como a descolonização que Mignolo propõe é
epistêmica, através dela a figura do Ocidente deixa de
ser uma localização geográfica para tornar-se uma
geopolítica do conhecimento. Dessa forma, a crítica da
desobediência não é pensada de dentro das línguas
“imperiais” como o grego, o latim, o francês e o inglês,
mas de fora: pelo árabe, mandarim, aymara, iorubá ou
bengali. Inclusive porque “Eurocentrismo não dá
nome a um local geográfico, mas à hegemonia de uma
forma de pensar fundamentada no grego e no latim e
nas seis línguas europeias e imperiais da
modernidade; ou seja, modernidade/ colonialidade”
(MIGNOLO, 2008, p. 301).
Na sequência, o autor detalha o vocabulário
que ele utiliza para explicitar o desenvolvimento de
seu argumento oriundo de dois grupos de palavraschave: de um lado “desenvolvimento”, “diferença” e
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
“nação” (imaginário da modernidade e da pósmodernidade); e, de outro, “interculturalidade” e
“descolonialidade” (imaginário descolonial). Através
dessas palavras-chave é que Mignolo argumenta que
a “retórica da modernidade obstruiu a perpetuação da
lógica da colonialidade, ou seja, da apropriação
massiva da terra, a massiva exploração do trabalho e a
dispensabilidade de vidas humanas” (MIGNOLO,
2008, p. 293), ocorridas em matanças desde as
civilizações astecas até as da Ucrânia.
Entretanto, no que se refere ao termo
“desenvolvimento”, Mignolo adverte para o caráter
político que ele ganhou no século XX com o projeto de
dominação global dos EUA durante o período da
Guerra Fria, mesmo havendo como oponente uma
tendência de esquerda, como a Teoria da
Dependência e a Teologia/Filosofia da Libertação.
Apesar de tal projeto, a opção descolonial já aparecia
como uma maneira de criticar as noções de
construções civilizatórias que prezam mais para o
acúmulo de vida e de morte ao invés de comemorar a
vida. Com isso, “[h]oje, uma forma de pensamento
descolonial que não confesse sujeição às categorias
gregas de pensamento já é uma opção existente: reinscrever os legados dos ayllu nos Andes e dos altepetl
no México e Guatemala” (MIGNOLO, 2008, p. 297).
Da mesma forma surgiam movimentos similares
descoloniais no mundo islâmico, na Índia, na África
do Norte e na África Subsaariana. Essa re-inscrição
Luís Thiago Freire Dantas
que se confronta com as categorias do Ocidente traz,
de acordo com o autor, um pensamento de fronteira
ou uma epistemologia de fronteira que propõe
afastar-se de um fundamentalismo ocidental ou até
mesmo não-ocidental:
Eu não estou dizendo que um Maori antropólogo tem
privilégio epistêmico sobre o antropólogo Neozelandês
Anglo descendente. Eu estou dizendo que um antropólogo
Neozelandês Anglo descendente não tem o direito de guiar os
‘moradores’ para o que é bom ou ruim para a população
Maori (MIGNOLO, 2009, p. 14, grifos do autor).
No desenvolvimento do argumento de reinscrição de novas categorias, Mignolo (2008)
apresenta uma definição descolonial de filosofia
bastante interessante:
Desta forma, se no mundo moderno/colonial, a filosofia fez
parte da formação e da transformação da história europeia
desde o Renascimento europeu por sua população indígena
descrita como os cristãos ocidentais, tal conceito de filosofia
(e teologia) foi a arma que mutilou e silenciou raciocínios
similares da África e da população indígena do Novo
Mundo. Por filosofia aqui eu entendo não apenas a
formação disciplinar e normativa de uma dada prática, mas
a cosmologia que a realça. O que os pensadores gregos
chamaram de filosofia (amor à sabedoria) e os pensadores
aymara, de tlamachilia (pensar bem) são expressões locais e
particulares de uma tendência comum e uma energia em
seres humanos. O fato de que a ‘filosofia’ se tornou global
não significa que também é ‘uni-versal.’ Simplesmente
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
significa que o conceito grego de filosofia foi assimilado pela
intelligentsia ligada à expansão imperial/colonial, aos
fundamentos do capitalismo e da modernidade ocidental
(MIGNOLO, 2008, p. 298, grifos do autor).
Justamente pela legitimidade “grega” da
filosofia que se operou o movimento de colonização
epistêmica que está em toda civilização, validando o
que e quem pode fazer filosofia18. Entretanto, o
argumento de Mignolo segue para outra direção, pois
tem a meta de evidenciar a política neoliberal de
globalização, ironicamente baseada na desfetichização
do poder político e em uma organização econômica
que visa à reprodução da vida e não da morte e,
também, uma distribuição justa da riqueza entre
muitos e a não acumulação de riqueza entre poucos.
Além disso, o autor destaca um panorama econômico
de quatrocentos anos da história da América do Sul e
do Caribe por meio de uma organização interna e
externa. Interna através da resistência de
comunidades afros e indígenas que sobreviveram
contrapostas à interferência europeia e, de outro lado:
“A metafísica ocidental é a fonte e origem de todo colonialismo”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2009, p. 9). Essa frase do antropólogo
Viveiros de Castro aparece impactante no primeiro momento, mas
está em conformidade com a tese descolonial que denuncia a
legitimação da violência ocidental aos outros povos através do
argumento de desenvolvimento racional.
18
Luís Thiago Freire Dantas
Uma organização externa para lutar contra as infiltrações
imperiais/coloniais nas suas cidades, na organização
econômica e social, nas culturas, nas terras e nas
organização econômica. Primeiro, em confronto com
autoridades imperiais/ coloniais; em segundo plano, após a
‘independência’ do estado-nação controlado pelos Creoles de
descendência europeia e mestiços com sonhos europeus;
finalmente, e mais recentemente, em confronto com as
corporações transnacionais que dilapidam as florestas, as
praias e as áreas ricas em recursos naturais; e também em
confronto com os estados-nacionais que defendem o Livre
Comércio de acordo com os desígnios de Washington
(MIGNOLO, 2008, p. 299, grifos do autor).
Desse modo, o que está em jogo dentro desse
panorama, ou seja, o que tal contexto tem
evidenciado, é uma tentativa de recessão da “etnia
latina”, já que ser latino só interessa a identidades de
origem europeia:
[...] a latinidade diz respeito apenas à população ‘branca’ de
ascendência europeia. Não vejo por que a população de
ascendência africana teria que aceitar sua latinidade, em vez
de sua africanidade. Da mesma forma, poderíamos falar em
América Africana em vez de Latina. E de América Indígena,
em vez de Africana ou Latina (MIGNOLO, 2010).
Como
aumentando
indígenas e
epistêmicas”
consequência, “o que está acelerando e
é o espectro variado dos projetos
afros, em suas dimensões políticas e
(MIGNOLO, 2008, p. 299) e a, partir
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
disso, comunidades afros e indígenas têm evidenciado
dois pontos que lhe fundamentam:
(a) os direitos epistêmicos das comunidades afros e
indígenas sobre os quais os projetos políticos e econômicos
descoloniais estão sendo construídos e um tópico
descolonial afirmado como diferença em similaridade
humana (por exemplo, porque somos todos iguais temos o
direito a diferenças, como reivindicaram os Zapatistas);
(b) sem o controle dos fundamentos epistêmicos da
epistemologia afro e indígena, ou seja, de teoria política e
economia política, qualquer reivindicação do Estado
marxista ou liberal se limitará a oferecer liberdade e impedir
que indígenas e afros exerçam suas liberdades (MIGNOLO,
2008, p. 299-300, grifos do autor).
Diante disso, especifica-se como o pensamento
descolonial representa o caminho, a formação de uma
pluri-diversidade como projeto global, visto que um
Estado quando formado a partir de uma única
identidade,
esquecendo-se
da
diferença,
invariavelmente legitima um tipo hegemônico que
procurará regulamentar todos os demais. Para escapar
de tal regulamentação precisa-se contrapor a história
hegemônica com a história à margem.
Tomando tais reflexões como mote para pensar
o ensino da filosofia na educação brasileira, sobretudo
por causa das implicações do eurocentrismo na
construção do saber mundial, é relevante pensar a
identidade em filosofia entre um africano e um europeu.
Esse é o tema do capítulo seguinte.
Luís Thiago Freire Dantas
CAPÍTULO 2
O CONHECIMENTO DE FRONTEIRA OU A
FRONTEIRA DO CONHECIMENTO?
O
PRESENTE capítulo tomará como mote as
críticas realizadas sobre o eurocentrismo
enquanto uma ideologia que deslegitima saberes que
se encontram distanciados da sua compreensão. Além
do que, o ponto principal deste estudo diz respeito à
inserção de uma filosofia não-eurocentrada (a filosofia
africana) no currículo escolar da disciplina de filosofia
do ensino médio. Assim, tendo como base a crítica de
hierarquização de saberes e uma definição de filosofia
que a explique como uma produção humana e não de
um “povo”, os tópicos trarão as seguintes
problematizações: a distinção do entendimento acerca
da origem e concepção de filosofia entre pensadores
de tradições diferentes; a problematização do conceito
ocidental de justiça tomando o referencial banto a
partir do conceito de Ubuntu; a reflexão sobre o
método da Afrocentricidade e como pode ele auxiliar
na interpretação de textos e eventos tendo como
protagonista o próprio africano.
Explicado o caminho desse capítulo, o estudo
inicia-se refletindo sobre a identidade em filosofia e
como tal expressão ajuda na proposta deste livro.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
2.1 Identidade em filosofia: Towa e Heidegger
No final do capítulo anterior, o texto terminou
com a expressão identidade em filosofia. Ressalta-se que
não há a pretensão de refletir sobre a filosofia da
identidade, mas sim refletir sobre o fato do agente
colocar-se na reflexão, isto é, como a formação da
identidade diz respeito à maneira em que o indivíduo
pensa a si mesmo como agente no mundo. Assim, se
estabelece-se uma pergunta: compreendendo também
que o indivíduo existe em sociedade, então há um
modo de reflexão na tradição africana que
corresponderia ao ato de filosofar? A resposta é sim,
pela existência histórica de problemas de cunho
filosófico, pois desde o Egito antigo existem pessoas
que formularam princípios morais e políticos para a
sociedade. Apesar disso, há uma tendência em ocultar
ou até mesmo em inferiorizar o conhecimento desses
povos através de um processo de rotulação como
“saberes populares” de influências religiosas. Em
outras palavras, as sociedades africanas teriam sábios
ou santos e não filósofos, uma vez que estes, para a
tradição ocidental, só foram possíveis em solo grego:
Se interpretássemos corretamente a vida inteira do povo
grego, encontraríamos evidentemente apenas a imagem
refletida que irradia, com as cores mais brilhantes, de seus
mais esplêndidos gênios. Até mesmo a primeira vivência da
filosofia ocorrida em solo grego, a sanção dos setes sábios,
constitui a linha clara e inesquecível na imagem do mundo
Luís Thiago Freire Dantas
helênico. Outros povos têm santos, enquanto os gregos, por sua
vez, têm filósofos (NIETZSCHE, 2008, p. 36, grifos meus).
Entretanto, tal representação é combatida
fortemente por vários estudiosos19, dentre eles, o
egiptólogo congolês Theóphile Obenga (1990), que
explica como a vida intelectual era presente no Egito
antigo e como os escribas seriam aqueles que tinham o
“ócio” para produzir um saber formulado em
princípios racionais:
Os escribas, ‘aqueles que escrevem’, sacerdotes ou não,
todos esses que manuseiam as plumas, são a base da
sociedade faraônica e constituem o fundamento mesmo do
Estado: eles forjaram o pensamento egípcio e mantiveram,
durantes três milênios, os valores morais, intelectuais,
culturais, espirituais, científicos, etc. da sociedade faraônica
(OBENGA, 1990, p. 207).
Desse modo, não é difícil imaginar que uma
civilização com uma produção intelectual intensa não
tenha ao menos dialogado com outras próximas e que
tal diálogo não tenha influenciado também outras
No século XX ocorreu a “retomada histórica” do continente
africano em que propiciou várias pesquisas que apresentariam a
contribuição histórica do continente para a humanidade. Entre os
vários pensadores destaca-se o senegalês Cheikh Anta-Diop que
pesquisou e levantou inúmeras teses sobre a influência africana no
desenvolvimento científico mundial, assim como, sobre a origem
humana no continente africano. Entre as suas obras vale citar:
Nation Nègres et Culture (1955) e Les fondements economiques et
culturels d'un Etat federal d’Afrique (1960).
19
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
civilizações como, por exemplo, a grega. Importante
frisar que a influência consistiu não somente no
quesito moral ou político, mas também ontológico, já
que “[h]istoriadores(as) da filosofia ocidental insistem
em afirmar que mesmo existindo textos que abordem
questões morais, nenhuma cultura teceu especulações
ontológicas, aspecto nodal da filosofia que demarcaria
definitivamente a exclusividade grega” (NOGUERA,
2013, p. 147). Ao contrário, o Egito possuía
características, incluindo arcabouço linguístico,
condizentes com o ato de refletir:
O pensamento egípcio lançou a base mais importante para a
criação de uma autêntica ontologia, a saber, os meios
linguísticos [...]. Há na língua egípcia dois verbos para ‘ser’,
um dos quais (wn/n/) com dois particípios, designando o
‘ente’ e ‘o que foi’, uma capacidade que o latim não possui.
[...] O Egípcio diferencia com exatidão os verbos ‘ser’,
‘tornar-se’, ‘viver’ (CARREIRA, 1994, p. 55 apud NOGUERA,
2013, p. 147).
Diante desses aspectos, seria equivocada a
afirmação de que a filosofia diz respeito a uma criação
unicamente grega e, por conseguinte, europeia, porém
não é difícil encontrar vários pensadores que, ao fim,
legitimem a relação originária entre a filosofia e a
Grécia. Um exemplo é Heidegger, que na conferência
“Que é isto – a filosofia?” assim escreve:
Luís Thiago Freire Dantas
A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela
primeira vez e antes de tudo vinca a existência do mundo
grego. Não só isto – a philosophia determina também a linha
mestra de nossa história ocidental-europeia. A batida
expressão ‘filosofia ocidental-europeia’ é, na verdade, uma
tautologia. Por quê? Porque a ‘filosofia’ é grega em sua
essência, e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de
sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou
do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver
(HEIDEGGER, 2009, p. 17).
Nessa passagem Heidegger procura explicar
por qual caminho a filosofia possui uma história e esta
se imiscui com a sua própria origem. Uma origem que
implica na edificação do conhecimento europeu, pois
Grécia e Europa seriam o mesmo na reflexão daquilo
que é. Isto porque, de acordo com Heidegger, a
pergunta o que é possui uma história que consolida o
pensamento mais profundo do ser humano: a
filosofia. Nessa perspectiva, o autor tende a
argumentar que haveria uma base identitária
necessária a um povo para obter certo grau filosófico
e, por natureza, seria uma base grega. Assim, restaria
como opção aos outros povos vincularem seu modo
de produzir filosofia ao modo de pensar grego.
Entretanto, Towa (2009) critica a “afirmação
intrépida” de Heidegger sobre equivalência entre a
Grécia e o Ocidente, pois disso se afirma que a
filosofia possui uma essência histórica e qualquer
desdobramento necessita de uma volta ao período
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
nascente da filosofia: a Grécia antiga: “Então, das
afirmações intrépidas, Heidegger não se dignou a
prestar qualquer justificação. Filosofia e mundo grego
pretendem apresentar uma identidade de essência.
Mais precisamente, a filosofia reivindicada pelo
mundo grego” (TOWA, 2009, p. 14). Em consequência
ignora-se que há a possibilidade de haver diferenças
entre modelos, por exemplo, europeus e africanos de
produção filosófica.
É preciso ter em mente que o fazer filosófico
não consiste em um jogo etimológico de palavras, mas
em considerações sobre o mundo em seus princípios.
Dessa forma, Towa avalia como tarefa do filosofar
africano contemporâneo “a subversão”:
A história de nosso pensar não deve se propor à exumação
de uma filosofia que nos dispensariam de filosofar, mas,
acima de tudo, à determinação do que em nós é subversivo
para que seja possível a subversão do mundo e da nossa
atual condição no mundo (TOWA, 2009, p. 75).
Precisamente pela subversão é que consiste a
maneira de como o pensamento guia-se na
perspectiva pluriversal, isto é, o significado de um
mesmo conceito reproduzido a partir de diversas
perspectivas. O primeiro tipo de subversão
apresentado por Towa (2009) diz respeito à origem da
filosofia. O autor faz parte da geração da década de
1970 que critica a noção de “milagre grego” e destaca
a Grécia antiga como a “irmã mais jovem” (FOÈ, 2013,
Luís Thiago Freire Dantas
p. 200) do Egito antigo e esta tendo em muitos
aspectos a reprodução de princípios já alicerçados
entre os pensadores egípcios 20. Além disso, essa
perspectiva propõe apresentar a filosofia como um
discurso muito antes nômade e bastante interlocutório
entre diversos pensadores em suas culturas. Um dos
exemplos é a relação entre Grécia e Egito que por
muito tempo este último fora tratado pelos
pensadores gregos como um lugar para desenvolver
suas ideias: “é verdade que Pitágoras passou 20 anos
no Egito, Platão 13, Demócrito 5, etc. É quase certo
que eles tiveram que dominar o egípcio durante sua
estadia” (TOWA, 2009, p. 72).
Outra subversão consistiria na ampliação do
termo filosofia que corresponderia, no caso dos
africanos, a uma extensão da cultura que reenvia aos
agentes a própria conjuntura e experiência vivida:
Em realidade, a vontade de presença como filosofia dos
modos de pensamentos considerados como especificamente
africanos precede e explica a diluição da filosofia na cultura,
e não o inverso (TOWA, 2009, p. 29).
Por isso, o contraste entre a filosofia africana e
europeia parte da posição dualista natureza-cultura
que atua no pensamento da maioria dos filósofos
europeus e enquanto para os africanos há um
Sobre a contribuição do Egito para Grécia antiga conferir:
BERNAL (1991); JAMES (2009).
20
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
monismo de maneira que as partes comunicam-se e
estão reunidas em uma estrutura que, em “linhas
gerais, nada são mais do que a filosofia negro-africana
em sua especificidade” (TOWA, 2009, p. 27).
Em contrapartida, Heidegger ratifica sua
posição
eurocêntrica
da
filosofia
em
que
explicitamente une Ocidente e Europa: “A frase: a
filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa
que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na
marcha mais íntima de sua história, originariamente
‘filosóficos’” (HEIDEGGER, 2009, p. 18). Não
obstante, na leitura dos escritos que formam o
conjunto de textos Das Ereignis [Acontecimento
apropriativo], Heidegger surpreende com uma
distinção entre o que seria o Ocidente e o que seria a
Europa.
Primeiramente, o Ocidente para Heidegger
detém um caráter mais ontológico e afasta-se de
qualquer determinação cultural, pois o autor indica o
Ocidente como aquele lugar em que o ser esquecido é
rememorado e possibilita que seja experimentado sem
ser dominado pelo ente. Isto quer dizer que a
possibilidade de abertura trazida pelo Ocidente é que
permite posicionar o humano mediante a experiência
do ser e do mundo:
O Ocidente alcança agora pela primeira vez os traços
fundamentais de sua verdade histórica: a terra do poente. O
poente é a noite ao final do trabalho como a noite anterior
Luís Thiago Freire Dantas
aos festejos, é a consumação do dia do primeiro início, é a
chegada do crepúsculo e do começo da noite como transição
para o outro dia do outro início. O outro início, contudo, só
é o propriamente inicial do início uno. O poente é a chegada
das primícias do dia anterior da festa. O Ocidente (a terra do
sol poente) é a terra que só se limita a partir de tal chegada
do outro início (HEIDEGGER, 2013, p. 101, grifo do autor).
Porém, se a nova ontologia consiste na
ratificação do Ocidente como sua forma mais
primordial, a terra do poente, então é questionável se
a nova ontologia compreenderá a multiplicidade de
mundos, ou nela ainda manifestará apenas um
mundo humano. A resposta aparece quando
Heidegger escreve: “O outro início, contudo, só é o
propriamente inicial do início uno” (HEIDEGGER,
2013, p. 101). Isto porque o uno diz respeito, para
Heidegger, à união entre ser e pensar descrito por
Parmênides: “Nos primórdios do pensamento, muito
antes da identidade se formular em princípio, fala ela
mesma, e precisamente, através de um dito que
dispõe. Pensar e ser têm lugar no mesmo e a partir
deste mesmo formam uma unidade21” (HEIDEGGER,
2006, p. 41); dessa maneira, o Ocidente continuaria
sendo o lugar em que o outro início ainda
contemplaria somente um modo de pensar o ser.
Para uma contraposição acerca do Uno enquanto a unidade de
Ser e Pensar de Parmênides conferir o ensaio de Pierre Clastres
(2003): Do um sem o múltiplo.
21
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Em relação à “Europa”, Heidegger aponta
severas críticas, visto que ela indicaria muito mais
uma expressão cultural do que ontológica: “O
Ocidente (a terra do sol poente) não pode ser
determinado ‘de maneira europeia’; a Europa será um
dia um único escritório, e aqueles ‘que trabalham
juntos’ serão os empregados de sua própria
burocracia” (HEIDEGGER, 2013, p. 105). Nesse
quesito, pode-se entender uma antevisão por parte do
autor da condição atual do mundo, que por mais que
a Europa não influencie culturalmente o mundo como
séculos anteriores, a questão da burocracia é algo que
é real e aparenta ter um fim distante.
Partindo desses pontos, é válido interrogar se o
eurocentrismo que aparece na filosofia heideggeriana
seria mais um efeito de uma posição localizada na
biografia do autor, do que uma construção intelectual
que surge da própria obra. Apesar de Heidegger
criticar o europeu como preso ao campo ôntico e, em
decorrência, tanto o russo quanto o japonês podem ser
europeus, não se pode deixar de analisar o seguinte
trecho da entrevista à revista “Der Spiegel”, em 1975.
Neste trecho o eurocentrismo apareceria para
Heidegger como forma radical de manter o germânico
como protagonista do mundo:
Spiegel: É precisamente no mesmo ambiente em que o
mundo tecnológico teve origem, que ele, a seu ver, tem de…
Luís Thiago Freire Dantas
Heidegger: … ser transcendido [aufgehoben] no sentido
hegeliano do termo, não posto de parte, mas transcendido,
ainda que não só através do homem.
S: Atribui aos alemães, em particular, uma tarefa especial?
H: Sim, no sentido do diálogo com Hölderlin.
S: Acredita que os alemães estão especialmente qualificados
para esta inversão?
H: Tenho em mente, sobretudo a relação íntima da língua
alemã com a língua dos gregos e com o pensamento deles.
Hoje, os franceses voltaram a confirmar-me isso mesmo.
Quando começam a pensar, falam alemão, sendo certo que
não o conseguiriam fazer na sua própria língua
(HEIDEGGER, 2000, p. 679).
Dessa forma, a diferenciação que Heidegger
utiliza entre Europa e Ocidente pode ser pensada
como outra formulação da diferença ontológica, já que
a Europa pertenceria a uma relação ôntica entre as
culturas, enquanto o Ocidente abarcaria o ontológico
do outro início. Porém, como o outro início permanece
referido à aurora do primeiro início, ou seja, à Grécia
antiga, Heidegger ainda permanece em uma
perspectiva geopolítica excludente, conforme analisa
Maldonado-Torres (2008, p. 342): “A geopolítica de
Heidegger é uma política baseada na relação íntima
entre o povo, a sua língua e a sua terra. A geopolítica
é, simultaneamente, uma política da terra e uma
política de exclusão”. Com isso, pode-se dizer que
Heidegger não escapa de um essencialismo cultural,
no sentido da análise crítica de Towa, que perceberia
na distinção heideggeriana Ocidente e Europa ainda
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
privilegiando um modo de pensamento, que impede
qualquer outra possibilidade, pois o “esforço do
essencialismo culmina com a construção de um
sistema universal e repousa sobre os princípios
absolutos, articulados e hierarquizados em tudo o que
existe ou pode existir” (TOWA, 2009, p. 116).
Ainda mais porque essa característica do
essencialismo cultural seria específica dos pensadores
europeus, na tentativa de expor uma homogeneidade
em que procura desaparecer com qualquer diferença
diante de uma unidade mesmo que invisível:
Todas essas teorias, o mundo das ideias de Platão, as
enteléquias de Aristóteles, o inatismo cartesiano, o
formalismo kantiano, o estruturalismo de Lévi-Strauss
aparecem, do ponto de vista em que colocamos aqui, como
variantes de um mesmo tema: a realidade verídica, de
natureza abstrata, tem uma existência imutável, mas
invisível (TOWA, 2011, p. 184).
Com a apresentação da diferença de construção
da ideia de filosofia em diferentes tradições, nessa
seção foram apresentados elementos sobre diferentes
maneiras de refletir acerca da filosofia. E, partindo da
crítica ao eurocentrismo como ideologia, assinalou-se
uma limitação e não uma ampliação da compreensão
de mundo, principalmente porque a partir de uma
análise histórica de textos, este livro conduz para uma
posição de pensamento que tem o projeto de afastar-
Luís Thiago Freire Dantas
se de um tipo hegemônico e requerer uma “iniciativa
histórica” pela margem do conhecimento filosófico.
2.2 O conceito Ubuntu de justiça
A “iniciativa histórica” 22 é possível a partir de
diferentes meios. O escolhido nessa obra é a reflexão a
partir da filosofia africana. E para tanto este tópico se
concentrará sobre o conceito de justiça desenvolvido
pelo filósofo sul-africano Mogobe Ramose (2002), que
o correlaciona ao conceito de ubuntu. Ramose (2001)
identificou a ideia de justiça presente no ubuntu, com
o intuito de repensar tanto a questão de justiça quanto
a dos direitos humanos, porque ubuntu apresenta o
indivíduo associado a uma coletividade que não se
restringe a relações humanas, mas também, e
principalmente, com a natureza e a sobrenatureza.
Com isso, há uma exigência de busca pelo equilíbrio
entre aqueles que fazem a comunidade, de maneira
22
Aimé Cesáire formulou esta expressão no sentido de apontar a
possibilidade da saída da África da opressão colonial: “pode
imaginar-se que o povo colonizado a possa reconstituir e
integrar as suas novas experiências e, assim, criar novas riquezas
no quadro de uma nova unidade, uma unidade que já não será a
unidade antiga, mas que será, todavia, uma unidade. Seja. Mas
que se diga claramente: Isto é impossível sob o regime colonial,
porque só se pode esperar tal mistura, tal remistura de um povo,
quando este conserva a iniciativa histórica; dito de outro modo,
quando este povo é livre. O que é incompatível com o
colonialismo”. (CESAIRE, 2011, p. 269).
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
que o racismo da colonização aparece como uma
“ferida” que problematiza o equilíbrio entre humanos
como algo que perdura em busca de uma “justiça
histórica”. Ressalva-se que neste estudo o termo
“justiça histórica” tem relação com a lei ubuntu.
No entanto, pode-se questionar em que medida
há a necessidade de uma concepção de justiça com
raiz africana e qual a diferença em seus aspectos em
relação ao modo que o Ocidente formula o conceito,
considerando, inclusive, que no processo de
colonização grande parte dos colonizadores
compreendiam a não existência da ideia de justiça nas
sociedades africanas. Para o desenvolvimento da
resposta, esse tópico inicia com a discussão de
Ramose que articula o conceito banto de ubuntu com a
temporalidade, evidenciando que as feridas do
passado da colonização continuam implicando nas
“cicatrizes do futuro”. Dentre essas cicatrizes estariam
as diversas manifestações do racismo que, mesmo sob
diferentes facetas, continuam a desumanizar os povos
africanos.
A colonização europeia não compreendia a
existência de uma justiça nas comunidades africanas.
De tal maneira, atribuía certas normas com a tentativa
de controlar o que lhe aparecia como sem ordem
(RAMOSE, 2001). Entretanto, Ramose explica a
existência de uma relação intrínseca entre a justiça e a
lei, que é adotada por meio da interpretação ubuntu
de lei. Antes de adentrar na forma de atuação do
Luís Thiago Freire Dantas
conceito, é necessário explicar que a palavra ubuntu,
como descreve o filósofo, é dividida em dois termos –
o prefixo ubu e a raiz ntu – o prefixo refere-se à ideia
de ser em geral, isto é, possui uma conotação
ontológica, enquanto que a raiz da palavra concerne
ao ponto nodal, em que o ser assume uma forma
concreta em um processo de evolução, aproximandose do nível epistemológico. Desse modo, Ramose
explica que ubu sempre precede ntu, porém
acontecem mutuamente por constituir aspectos do ser
como uma unidade e um todo indivisível: “Em
consequência, ubuntu é a categoria fundamental
ontológica e epistemológica dentro do pensamento
africano dos povos que falam bantu” (RAMOSE, 2001,
p. 2, grifos do autor). Então, de que maneira a lei é
concebida através do ubuntu?
Primeiramente, deve-se entender que a
estrutura de uma comunidade tradicional africana,
que segundo descreve o autor, integra-se por meio de
uma tríade: os seres vivos, os mortos viventes (as
forças sobrenaturais) e os que ainda não nasceram.
Diante disso, há uma interação entre o presente, o
passado e o futuro. De acordo com Ramose “esta
estrutura metafísica assegura a comunicação entre os
três níveis do ser” (RAMOSE, 2001, p. 2) e a referência
a estas forças constituem a base da lei africana que
propõem restabelecer a harmonia e promoverem a
manutenção da paz. Entretanto, apesar da justiça ser
determinada pelos “mortos viventes”, ela se declara
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
para os seres vivos como aqueles que exercem
autoridade, já que a aplicação da justiça não está
centrada nas forças sobrenaturais e sim no mundo dos
seres vivos e, somente depois, para aqueles que ainda
não nasceram. “Desse modo, a aplicação de justiça dá
primazia ao mundo concreto, ao mundo dos seres
vivos. Em tal sentido diverge do pensamento legal
ocidental que aparentemente dá mais importância ao
abstrato” (RAMOSE, 2001, p. 3).
Em segundo lugar, apesar de ser ligada à
moralidade, a lei ubuntu é razoável e flexível, uma vez
que a flexibilidade diz respeito a uma lei
descentralizada porque não se concentra em um único
aspecto do ser humano como, por exemplo, Kant
propõe sobre a razão, ou Sartre que se sustenta na
liberdade. Por isso, Ramose explica que o sujeito legal
não pode ser o centro da lei. Isso não inviabiliza a
importância do sujeito legal à lei, mas que “o sujeito
legal é a negação ativa de uma necessidade e
finalidades falsas e abstratas que se reivindicam como
a verdade da lei [quando] a lei consiste em regras de
comportamento que estão contidas no fluir da vida”
(RAMOSE, 2001, p. 3). E por causa dessa mudança
contínua na vida, a lei ubuntu impossibilita uma
decisão antecipatória em certas regras legais que
aparecem como um direito irreversível e com
existência permanente. Portanto, a lei ubuntu seria
uma dinamologia, isto é, uma mudança contínua da
busca de justiça com o intuito de estabelecer um
Luís Thiago Freire Dantas
equilíbrio. Não obstante, o equilíbrio não seria a
finalidade, e sim o meio para aplicação da justiça.
Desse modo, a lei enquanto uma experiência de vida
contínua não impõe uma finalidade.
A partir disso, Ramose define a base da lei
ubuntu por meio da ação da comunidade,
diferenciando essa postura da forma prescritiva
estabelecida por uma ação individual:
A prescrição é desconhecida na lei africana. Os africanos
consideram que o tempo não pode mudar a verdade. Assim
como a verdade deve ser levada em conta cada vez que a
conhece, não se pode colocar nenhum obstáculo no caminho
de sua busca e descobrimento. É por esta razão que as
decisões judiciais não são autoritárias. É preciso que sempre
possam ser questionadas (RAMOSE, 2001, p. 3).
Em consequência, conforme a lei africana, uma
injustiça que perdura na memória histórica dos
prejudicados não desaparece simplesmente com o
passar do tempo: “Uma dívida ou uma disputa não se
extingue jamais até que restabeleça o equilíbrio,
apesar de terem passadas várias gerações” (MBAYE,
1979, p. 174 apud RAMOSE, 2001, p. 4).
Tomando tais perspectivas no sentido de dar
continuidade às reflexões propostas neste estudo, é
necessário abordar a questão de como o racismo
colonial seria uma injustiça que a lei africana do
ubuntu procuraria recolocar o equilíbrio por meio da
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
justiça histórica, restabelecendo a dignidade dos
grupos oprimidos.
Inicialmente,
é
necessário
ponderar,
concordando com Foé (2013), que o racismo não é
homogêneo, mas há uma dicotomia histórica, a do
oprimido e do opressor, pois o racismo aparece não só
de ordem moral, mas também de ordem estratégica e
ideológica. Estratégica no sentido de deslegitimar a
ação de um grupo humano enquanto ausente de
padrões racionais; ideológica por naturalizar atitudes
hierárquicas entre os diferentes grupos humanos.
Dessa maneira, “o racismo dos vencidos e dos
oprimidos aparece como um grito de sofrimento, um
alarme, uma queixa ou um clamor de revolta contra
os opressores” (FOÉ, 2013, p. 205). Em relação ao
clamor de revolta verifica-se a presença de duas
condições: impor o reconhecimento da sua
humanidade e vingar-se das humilhações sofridas.
O mais importante aqui se trata da procura de
reconhecimento de humanidade, já que ela desaparece
à medida que o oprimido não se enquadra no aspecto
normativo determinado por um pronome eu, porque o
opressor olha-o e fala: eu sou a humanidade. Tal
humanidade, conforme a análise de Ramose, está
fundada na definição aristotélica de animal racional,
em que o humano seria aquele que detém
racionalidade e, por conseguinte, obteria a afirmação
de si perante os outros animais de aparência não
humana. Embora, conforme análise de Ramose, o
Luís Thiago Freire Dantas
racismo tem a característica de identificar como não
humano aquele de aparência humana:
A definição de Aristóteles de ‘homem’ como um animal
racional formou a base filosófica para o racismo no Ocidente.
Para poder ser considerado como um ser humano, era
necessário ser racional. O colonizador encontrou no
colonizado uma impressionante semelhança em certos traços
fisiológicos. Ao mesmo tempo, teria diferenças físicas
discerníveis. Estas foram usadas como motivo para excluir o
colonizado da categoria de humano. Afirmou-se que o
colonizado não foi e nunca tinha sido um ser humano porque
carecia de racionalidade. Nem a razão nem a racionalidade
formavam parte de sua natureza, embora se exibisse como
humano na aparência. O selo do racismo, portanto, é a
afirmação de que outros animais de aparência humana não
são verdadeiramente e plenamente humanos (RAMOSE,
2009, p. 4).
Com isso, o processo de colonização possuiu
um ideal de transmitir “humanidade” para povos
primitivos. Contudo, essa intenção transforma o outro
em objeto e dá consentimento para escravizá-lo:
A colonização baseou-se na ideia de que os africanos não
eram seres completos. De acordo com essa ideia, os
africanos estavam desprovidos de raciocínio e, portanto, não
podiam ser qualificados como humanos. Sobre esta base, a
colonização assinou unilateralmente a tarefa de civilizar e
cristianizar (RAMOSE, 2011, p. 4).
Imbuído dessa tarefa, o colonizador constrói a
sua ideia através da subjugação, opressão e
escravização dos colonizados, cuja história foi escrita
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
por outrem e, por causa dessa construção histórica
heterônoma, estabeleceu-se a dificuldade de apagar
por completo os efeitos desumanos do racismo, seja
pela descolonização seja pela abolição da escravatura.
Principalmente, porque como Ramose argumenta, a
conquista do colonizador é fundada em retirar a lei, a
moralidade e a humanidade dos conquistados para
atribuir-lhes a concepção colonial de tais conceitos.
Por isso, o colonizador não deve possuir soberania
sobre povos nativos, já que tal “prescrição resulta
inconsistente em vista da filosofia jurídica dos povos
nativos conquistados” (RAMOSE, 2001, p. 9).
Para uma extinção da dicotomia colonizadorcolonizado seria necessário, primeiro, renunciar ao
direito sobre o território do colonizado e à soberania
sobre ele. Evidentemente isso não implicaria em uma
igualdade das condições em termos materiais, antes
precisaria da restituição e do restabelecimento da
justiça histórica:
A justiça como equilíbrio apareceria, sobre esta base, como
uma premissa aceitável para reatar a constituição. Se se
elimina o elemento da responsabilidade, então a justiça
como conceito e experiência torna-se totalmente vazia de
significado (RAMOSE, 2001, p. 9).
Partindo da questão do racismo colonial,
Ramose escreve que como o ubuntu teria um
arcabouço ontológico e o racismo requer uma justiça
histórica, então é válido propor uma lei por meio da
Luís Thiago Freire Dantas
dinamicidade do ser, isto é, “ubu como o mais amplo e
generalizado ser se-ndo, está profundamente marcado
na incerteza, por estar ancorado na busca de
compreensão do cosmos como uma luta constante
pela harmonia” (RAMOSE, 2009, p. 135). Assim, o
autor propõe uma filosofia dos direitos humanos
ubuntu, que está sustentada por dois aforismos: a)
Motho ke motho ka batho, isto é, ser humano é afirmar a
própria humanidade reconhecendo a humanidade
dos outros; b) Feta kgomo o tshware motho, isto é, se
uma pessoa enfrenta uma escolha decisiva entre a
riqueza e a preservação de vida de um ser humano,
ela deve sempre optar pela preservação da vida.
Tais aforismos, de acordo Ramose, são
contrapontos essenciais para o que atualmente
confronta-se na globalização, pois uma das
consequências da globalização constitui-se num
paradoxo entre criar e demolir fronteiras. Fronteiras
não localizadas somente aos âmbitos físicos e
geográficos, mas também culturais e intelectuais. Em
consequência dessa fronteira ocorre uma distinção
entre “nós” e “eles” que Ramose percebe como
ilegítima, o que o faz propor uma interrogação:
Se raciocinar e agir sobre as bases da fronteira já existentes
ou daquelas a-serem-estabelecidas diz respeito à realidade
do ser-humano-no-mundo, é possível encontrar um
argumento para validade e aplicabilidade do raciocínio
circunscrito que possa justificar a divisão ‘nós’ e ‘eles’ entre
e no meio de seres humanos? (RAMOSE, 2009, p. 137).
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Se a resposta fosse sim, o argumento só seria
para construir novas fronteiras, que tem como
finalidade a reivindicação à posse e à propriedade
exclusiva, como também a reivindicação ao direito e à
competência única para decidir e exercer controle
sobre uma área circunscrita.
Porém, para Ramose a globalização não seria
somente um fenômeno ocidental, e sim um efeito da
própria colonização, pois esta retirou a soberania das
populações nativas com o intuito de fortalecer os
avanços ideológicos dos dominadores e explicitou a
disparidade econômica de grupos marginalizados que
perduram na subsistência (RAMOSE, 2009, p. 153).
Dessa maneira, “os marginalizados sendo vítimas de
exclusão questionam cada vez mais ativamente, quer
o direito da globalização capitalista de excluí-los, quer
a situação de injustiça que resulta da sua própria
marginalização” (RAMOSE, 2009, p. 154).
Acompanhando a crítica de Ramose sobre a
globalização, a análise de Stuart Hall (2006) é fortuita
por ter como perspectiva o problema da etnia. Porque
há a construção de dicotomias até então ausentes de
reflexão como, por exemplo, o global e o local. Nessa
diferenciação há um reaproveitamento de identidades
locais para serem usadas na lógica da globalização
que é “uma ‘fantasia colonial’ sobre a periferia,
mantida pelo Ocidente e que tende a gostar de seus
nativos apenas como ‘puros’ e de seus lugares
exóticos apenas como ‘intocados’” (HALL, 2006, p. 80,
Luís Thiago Freire Dantas
grifos do autor). Diante disso há uma separação entre
o “Ocidente e o Resto”, que simboliza a globalização
ainda como uma ocidentalização: “Uma vez que a
direção do fluxo é desequilibrada, e que continuam a
existir relações desiguais de poder cultural entre o
‘Ocidente’ e o ‘Resto’, pode parecer que a globalização
seja essencialmente um fenômeno ocidental” (HALL,
2006, p. 78).
E naquilo que ainda pode-se dizer sobre a
filosofia dos direitos humanos, o exercício de
pensamento por meio do ubuntu revela “uma
antecipação do ser, tendo a possibilidade de assumir
um caráter específico e concreto num dado ponto do
tempo” (RAMOSE, 2009, p. 137) e com
potencialidades ocultas realizadas na esfera prática
das relações humanas. Além do que, conforme
destaca Ramose, a filosofia ocidental dos direitos
humanos parte do princípio de que o ser humano
individual é o principal critério de valor e os direitos
são agregados contingencialmente, enquanto a
concepção africana sublinha a ideia do ser humano
como uma totalidade e seus direitos assegurados
como tal.
Portanto, com a interpretação de justiça e
direitos humanos através do ubuntu promoveu-se
uma orientação de conceitos filosóficos para a
perspectiva africana, que é similar a uma corrente
contemporânea que procura recolocar o africano como
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
protagonista da própria história. Denomina-se tal
corrente de Afrocentricidade.
2.3 Aspectos do afrocentricidade
Após contrapor definições de filosofia entre
Towa e Heidegger e apresentar uma breve descrição
de como o conceito banto de ubuntu elabora um
conceito filosófico de justiça que analisa como se
configura o racismo colonial, a proposta nessa seção é
de articular um método que possibilite a inserção do
pensamento africano na grade curricular na disciplina
de filosofia. Para isso, esse tópico descreverá a
Afrocentricidade como método que insere como
protagonista aquele que estava à margem do
conhecimento, quer dizer, da geopolítica do
conhecimento.
Inicialmente, destaca-se o surgimento da
Afrocentricidade por meio do livro Afrocentricidade,
do afro-americano Molefi K. Asante (1980). Mas o
conceito consolidou-se através da publicação das
obras A ideia afrocêntrica (1987) e Kemet, afrocentricidade
e conhecimento (1990). Entretanto, a guadalupana Ama
Mazama (2009) lembra que o surgimento da
Afrocentricidade não adveio de mera espontaneidade,
mas contém uma história implícita ao próprio
conceito. Com isso, a autora destaca que “a
afrocentricidade integrou os maiores princípios de
vários sistemas filosóficos tanto cronológica quanto
Luís Thiago Freire Dantas
logicamente. Tais princípios são os alicerces sobre os
quais a afrocentricidade se construiu e funcionam
como premissas básicas” (MAZAMA, 2009, p. 118): a
filosofia de Marcus Garvey23, o movimento da
Négritude24, o Kawaida25 e a historiografia de Cheikh
Anta-Diop. Diante desse alicerce, o presente estudo
apresentará brevemente as principais características
da Afrocentricidade como forma de propor elementos
para auxiliar na construção de um currículo da
filosofia do ensino médio condizente com os
princípios do Art. 3º, inciso III da LDB: “pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 2006).
Com isso, destaca-se que a palavra método não
se dilui na concepção cartesiana e nem nas possíveis
concepções que se pode retirar da filosofia
Marcus Garvey (1887-1940) foi um ativista jamaicano que tinha
como uma das premissas a necessidade de olhar o mundo “através
dos nossos próprios óculos”, isto é, interpretar os fenômenos a
partir da própria africanidade.
24 O movimento da Negritude consistiu em ação étnica-racial de
maneira a valorizar os aspectos da cultura africana em diferentes
âmbitos artísticos. O termo Negritude originalmente foi exposto
por Aimé Cesaire, em 1935, na terceira edição da revista O
estudante negro, porém foi popularizado na poesia do senegalês
Leopold Senghor. Ver mais em MUNANGA (2012).
25 Kawaida consiste em uma Filosofia Africana comunitária
desenvolvida por Maulana Karenga, um ativista do US
Organizations, uma das maiores organizações de luta negra nas
décadas de 1960. Assim, Kawaida é uma palavra do grupo
linguístico Swahili que significa “tradição”, mas o termo vem
significar uma síntese da tradição, razão informada e desenvolvida
na prática.
23
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
contemporânea europeia26, mas aqui método pode ser
substituído por posição, ou melhor, lugar. Desse modo
exige-se refletir sobre o lugar em que o agente
pensado situa-se e se ele está como protagonista ou
como coadjuvante da história. Porque, conforme
comentário de Asante, os africanos atuam
frequentemente
na
margem
da
experiência
eurocêntrica e para reorientá-las ao centro deve-se
compreender que a Afrocentricidade tem a seguinte
posição:
Afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva
que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos
atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus
próprios interesses humanos (ASANTE, 2009, p. 93, grifos do
autor).
A partir dessa compreensão é possível elencar
os
aspectos
primordiais
para
atuação
da
afrocentricidade.
O
primeiro
concerne
à
“conscientização”. Isto quer dizer que para colocar os
africanos novamente no centro da própria história é
primordial fornecê-los a consciência de que eles não
Um método que influenciou e continua predominante na filosofia
acadêmica brasileira é o estruturalismo. Com a leitura estrutural
exige-se que ao se ler um texto, o pesquisador desvincula-se do
contexto em que está inserido para, assim, obter a compreensão
ideal do texto. Diante desses aspectos, nota-se a distância total em
relação à afrocentricidade que exige uma interpretação a partir da
localidade do agente, este tanto o pesquisador quanto o objeto de
pesquisa.
26
Luís Thiago Freire Dantas
são um “fantoche de um senhor” que regula as ações e
as palavras, e sim que possuem uma capacidade de
diálogo e protagonismo como qualquer outro povo.
Por isso, “Afrocentricidade é a conscientização sobre a
agência dos povos africanos” (ASANTE, 2009, p. 94,
grifos do autor) com o intuito de rebater a falta de
consciência não apenas da opressão aos africanos, mas
também das vitórias possíveis.
Perante a conscientização decorre, de acordo
com Asante, a “agência” e seus “agentes”, ou seja, um
“agente é um ser humano capaz de agir de forma
independente em função dos seus interesses. Já a
agência é a capacidade de dispor dos recursos
psicológicos e culturais necessários para o avanço da
liberdade humana” (ASANTE, 2009, p. 95, grifos do
autor). Entretanto, há discursos em que o africano é
descartado como ator ou protagonista em seu próprio
mundo. A partir disso surge a “Desagência”, que
provoca o ocultamento de personagens principais à
história, que em grande parte são negados pelo
sistema de dominação racial branco e promove uma
destruição da personalidade espiritual e material da
pessoa africana. Com isso, Asante escreve que o
“emprego da afrocentricidade na análise ou na crítica
abre caminho para o exame de todos os temas
relacionados ao mundo africano” (ASANTE, 2009, p.
95). Além disso, o cerne da proposta afrocentrada é
que não há dogmatismo, isto é, não há sistemas
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
fechados que sejam impossibilitados de discussão e
debate.
Tendo descrito a conscientização e a agência
dos africanos nos mecanismos da própria história,
Asante apresenta o que seriam algumas características
para um projeto afrocêntrico:
1) interesse pela localização psicológica; 2) compromisso
com a descoberta do lugar do africano como sujeito; 3)
defesa dos elementos culturais africanos; 4) compromisso
com o refinamento léxico; 5) compromisso com uma nova
narrativa da história da África (ASANTE, 2009, p. 96).
A exposição dessas características tem o intuito
de afastar uma má interpretação da afrocentricidade
enquanto proposta de somente modificar a posição
hierárquica do mundo: da Europa para África. Ao
contrário, o propósito da análise afrocentrada diz
respeito à tomada de consciência da posição histórica
africana no mundo. Diante disso, as características
destacadas por Asante necessitam de elucidação,
conforme será destacado a seguir.
Interesse pela localização psicológica: como já
destacado anteriormente, a localidade é fundamental
para o afrocentrista, pois a análise de um pesquisador
ou pesquisadora com frequência relaciona-se com os
contextos e as experiências vividas. Por isso, Asante
explica que a perspectiva é fundamental para localizar
aquele que se coloca como agente da história, visto
que “[l]ocalização refere-se ao lugar psicológico,
Luís Thiago Freire Dantas
cultural, histórico ou individual ocupado por uma
pessoa em dado momento da história” (ASANTE,
2009, p. 96). Inclusive, entender a localização de
alguém consiste em saber se essa pessoa está em um
lugar central ou marginal a sua cultura.
A descoberta do lugar do africano como
sujeito: consequente à primeira característica, o
afrocentrista, conforme descreve Asante, está
envolvido na descoberta do lugar e ponto de vista dos
africanos
que
historicamente
tiveram
os
acontecimentos vistos e pensados conforme o ponto
de vista europeu. Por isso o compromisso do
afrocentrista em encontrar o lugar do africano como
sujeito em todo evento, texto e ideia. Entretanto,
mesmo ciente da dificuldade em expor as implicações
que estão ocultas em diferentes lugares tanto textuais
quanto intelectuais, ainda assim “devemos ter o
compromisso de descobrir onde uma pessoa, um
conceito ou uma ideia africanos entram como sujeitos
em um texto, evento ou fenômeno” (ASANTE, 2009,
p. 97).
Defesa dos elementos culturais africanos:
aqui, o importante diz respeito à necessidade do
intelectual ter uma avaliação nítida do elemento
cultural africano em questão. Porque o afrocentrista,
de acordo com o autor, compreende a contribuição às
ciências e às artes feitas pelos africanos, pois não “se
pode assumir uma orientação voltada para a agência
africana sem respeitar a dimensão criativa da
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
personalidade africana e dar um lugar a ela”
(ASANTE, 2009, p. 97). Entretanto, não se sugere que
todas as produções africanas tenham utilidade e sejam
benéficas em si mesmas, mas entender como elas
representam a criatividade humana, não necessitando
recorrer a interpretações eurocêntricas ou “nãoafricanas” para oferecer legitimidade.
Refinamento léxico: na compreensão dos
elementos culturais africanos o trato do uso de
palavras de maneira que representem a vivência
africana é requerido em sua importância. Atento a
isso, o afrocentrista propõe o protagonismo africano.
Asante recorre a um exemplo do uso da palavra
“choupana” referindo-se a uma casa africana. De
acordo com o autor isso é um erro, já que não se
considera a forma como os africanos interpretam o
conceito de moradia, que relacionado a um europeu é
totalmente diferente. Porque a parte da casa em que
realiza as refeições não necessariamente é a mesma
em que se recebem as visitas, devido ao fato de que a
relação do comer apresenta-se como sagrado e
fundamental para interação familiar. Por conseguinte,
a presença do visitante não implica no
compartilhamento do lugar. Assim, para avaliar as
ideias culturais africanas é fundamental o uso da
linguagem não eurocêntrica:
Luís Thiago Freire Dantas
Desse modo, o afrocentrista autêntico busca livrar-se da
linguagem de negação dos africanos como agentes na esfera
da história da própria África. As referências à África e aos
africanos na educação ocidental reduziram os africanos à
condição de seres indefesos, inferiores, não-humanos, de
segunda classe, como se não fizessem parte da história
humana e fossem, em algumas situações, selvagens
(ASANTE, 2009, p. 98).
Portanto, o pensamento afrocêntrico engaja-se
na correção do uso de linguagem que não representa a
vivência africana e a direciona a um modo de ver
dominante.
Nova narrativa da história da África: Diante
dessas características para um projeto afrocêntrico,
Asante chega ao que seria a principal característica
para um intelectual afrocêntrico: repensar a posição
da África na história humana, devido ao fato de que
usualmente intelectuais eurocêntricos colocaram o
continente africano em um lugar inferior em qualquer
campo de pesquisa. Para Asante essa ação origina-se
de duas posições: a marginalização literária africana,
já que há um cânone do conhecimento ocidental que
se presume universal; e mesmo na presença de textos
que enaltecem a África (por exemplo, de gregos
antigos), os tradutores fatalmente rebaixaram a
influência que o continente teve na produção
“europeia” de conhecimento. A segunda posição foi
impulsionada sobretudo a partir da conquista
napoleônica do Egito, que permitiu o surgimento de
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
um novo ramo da ciência humana: a egiptologia. De
acordo, com Asante, quando Champollion decifrou os
hieroglíficos e tinha ali explicitamente a contribuição
intelectual do Egito para a humanidade, rapidamente
houve um desmonte da africanidade egípcia. E com o
rio Nilo ocorreu a maior de todas as falsificações, já
que como escreve Asante:
O único rio do continente africano que se tornou parte da
experiência europeia foi o Nilo. Foi como se a Europa o
tivesse retirado da África, mililitro por mililitro, para
despejá-lo na paisagem europeia. Todas as contribuições
africanas do vale do Nilo se tornaram contribuições
europeias, e a Europa deu início à tarefa de confundir o
mundo quanto à natureza do antigo Egito (ASANTE, 2009,
p. 100).
Desse modo, a contribuição de Cheikh AntaDiop é primordial para a afrocentricidade, já que ele
demonstrou a veracidade do argumento da origem
africana da civilização humana e também destacando
a pele escura dos antigos egípcios. Com isso, Asante
escreve três argumentos principais defendidos por
Diop que ajudam modificar a forma de enxergar o
mundo antigo:
O primeiro deles é que a Grécia antiga tinha uma grande
dívida para com os africanos. Com efeito, Platão, Homero,
Deodoro, Demócrito, Anaximandro, Sócrates, Tales,
Pitágoras, Anaxágoras e muitos outros gregos estudaram e
viveram na África. A outra parte desse argumento é que os
Luís Thiago Freire Dantas
egípcios eram africanos de pele negra, como provam os
depoimentos de Heródoto, Aristóteles, Deodoro e Strabo. O
segundo argumento é que todos os seres humanos derivam
de uma fonte africana. É a teoria monogenésica da origem
humanam que ganhou maior relevo nos últimos anos em
função de numerosas descobertas científicas. [Terceiro],
mostrou-se falsa a teoria poligenética, segundo a qual os
seres humanos teriam aparecido simultaneamente em
diversos locais (ASANTE, 2009, p. 101).
Por conseguinte, a “África clássica deve ser o
ponto de partida de todo discurso sobre o rumo da
história africana” (ASANTE, 2009, p. 101) e o estudo
sobre o continente apenas agora está se orientando
para ele mesmo e não a partir do europeu. A partir
daí será possível um melhor entendimento das
relações entre as culturas africanas, pois, por exemplo,
se “os ingleses estudavam a África ocidental e
observavam os akan, faziam isso como se o povo de
Gana não tivesse relação com os baule da Costa do
Marfim” (ASANTE, 2009, p. 101).
Após apresentar as principais características de
um projeto afrocêntrico, Asante aponta o que seriam
alguns pressupostos ainda necessários para o
desenvolvimento da posição disciplinar. O primeiro
pressuposto encontra-se na interrogação: o que é
“africano”? Pois a necessidade da pergunta não se
funda somente em um caráter biológico, mas também
e, sobretudo, em um construto de conhecimento. Um
construto que define um africano como uma pessoa
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
que participou dos quinhentos anos de resistência à
dominação europeia, isto é, ter o conhecimento de que
a própria história passa por uma luta de afirmação
diante da repressão aos ancestrais e se faz presente no
cotidiano: “Assim, ser afrocentrista é reivindicar o
parentesco com a luta e perseguir a ética da justiça
contra todas as formas de opressão humana”
(ASANTE, 2009, p. 102). Tanto que para Asante há
uma conexão interna e uma conexão externa africana,
visto que africanos seriam inclusive “indivíduos que
sustentam o fato de seus ancestrais terem vindo da
África para as Américas, para o Caribe e outras partes
do mundo durante os últimos quinhentos anos”
(ASANTE, 2009, p. 102), e não necessariamente
aqueles que nasceram no continente africano sejam
por si só africanos: “Os brancos do continente
africano, que nunca participaram da resistência à
opressão, dominação ou hegemonia branca, são, com
efeito, não-africanos” (ASANTE, 2009, p. 102).
Por isso, a “conscientização” é importante ao
afrocêntrico porque é uma resistência à aniquilação
cultural, política e econômica além de abordar os
dados a partir de uma posição. Precisamente pelo
enfoque à posição que a afrocentricidade analisa os
dados através da perspectiva, porque o importante é o
lugar de onde o discurso provém. Nesse sentido,
Asante afirma com veemência que negar a existência
de uma perspectiva não é anulá-la, mas se colocar
como pertencente à outra:
Luís Thiago Freire Dantas
Para o afrocentrista não existe um antilugar. Ou se está
envolvido com uma posição ou com outra. Não se pode
estar num lugar que não existe, já que todos os lugares são
posições. Não posso conceber uma antiperspectiva porque
estou ocupando um lugar, uma posição, mesmo que essa
perspectiva seja chamada de antiperspectiva (ASANTE,
2009, p. 102).
Em decorrência disso, Asante alerta para as
críticas feitas à Afrocentricidade, pois uma das críticas
é que as pesquisadoras e os pesquisadores
afrocêntricos basear-se-iam em pesquisas ausentes de
dados sobre determinado assunto, porém o autor
argumenta que é preciso questionar a maneira como
as pessoas interpretam ou analisam a presença dos
temas e valores africanos inseridos nesses dados: “Se
você não abordar os dados de forma correta,
provavelmente chegará a conclusões equivocadas”
(ASANTE, 2009, p. 105). Inclusive porque, conforme
explica Asante, os ataques às teorias afrocentradas
que presumem a ausência de evidências de um fato
não implicam necessariamente na sua inexistência.
Um exemplo apresentado pelo autor é a não
correlação, por parte de pesquisas que criticam a
afrocentricidade, de interação entre os africanos da
região do Congo com os da região do rio Nilo, o que
gerou como conclusão para tais pesquisas que a
produção intelectual e cultural egípcia (e europeizada
pela história) não teria ligações com a África “negra”.
No entanto, Asante questiona essa interpretação, pois
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
“a ausência de evidência não constitui evidência da
ausência” (ASANTE, 2009, p. 105).
Assim, o autor destaca a importância da
história para articulação dos fatos, inclusivamente a
partir de uma mudança em seus métodos, pois
“devemos abandonar muitos elementos da pesquisa
histórica, particularmente sua exagerada ênfase nos
textos escritos, e introduzir novas maneiras de
deslindar o significado da vida dos africanos nas
favelas do Rio de Janeiro e nos subúrbios abastados
de Lagos” (ASANTE, 2009, p. 105-106). Se para
entender a vida dos “africanos” tanto das favelas do
Rio de Janeiro quanto dos subúrbios em Lagos
necessita-se de uma mudança metodológica na
disciplina de história, então para a filosofia a
exigência torna-se a mesma, ou até mesmo maior, já
que a filosofia possui tradicionalmente um labor
apenas relacionado a textos escritos. Para
compreender como uma mudança metodológica teria
um alcance maior nas vivências de uma população
brasileira, o próximo capítulo requisitará uma
abordagem curricular do ensino de filosofia que
venha valorizar os aspectos afrocêntricos e permita
pensar uma filosofia de africanos que nasceram no
Brasil.
Luís Thiago Freire Dantas
“Interlúdio”: síntese dos capítulos 1 e 2
Os dois primeiros capítulos deste livro
buscaram construir um panorama das tensões que
envolvem a filosofia contemporânea. O Capítulo 1
destacou como o ideal eurocêntrico foi construído
ideologicamente ao longo da história ocidental,
hierarquizando um saber diante dos demais, de
maneira a influenciar a produção científica e
estabelecer quais seriam os métodos rigorosos para
alcançar os resultados propostos. Nesse sentido,
foram desenvolvidas críticas em relação a esse ideal,
principalmente por causa do recorte étnico-racial que
o eurocentrismo se orienta.
Já no Capítulo 2, o estudo apresentou
diferenças de concepção de filosofia utilizando dois
autores referenciais: Heidegger e Towa. Por meio
dessa apresentação foi possível desenvolver reflexões
sobre o pensamento filosófico africano em dois
pontos: a construção do conceito de justiça a partir do
conceito banto ubuntu e a descrição da
afrocentricidade enquanto disciplina científica
conforme propõe Asante, que formulou o conceito de
afrocentricidade que funciona não como método, mas
como uma posição disciplinar nas ciências humanas.
Tal posição tem justamente como plano principal
pensar o lugar do africano nas análises textuais, de
eventos e ideias, isto é, se ele é um protagonista ou
um coadjuvante da própria história.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
A partir dessa formulação é possível pensar
como o currículo pode ser construído dando espaço a
conhecimentos que extrapolam as fronteiras
ocidentais. As tensões aqui evidenciadas estimularam
a proposta que será apresentada a seguir: análise das
Diretrizes Curriculares de Filosofia do Paraná
(PARANÁ, 2008) com o objetivo de verificar em que
medida os conteúdos propostos contemplam
perspectivas filosóficas não eurocentradas. Além
disso, tomando os referenciais propostos por Noguera
(2011a) relacionados ao “afroperspectivismo” será
possível almejar novas possibilidades para um
currículo que abarque conhecimentos africanos
realocados numa posição protagonista.
Luís Thiago Freire Dantas
CAPÍTULO 3
CURRÍCULO AFROPERSPECTIVISTA
ANÁLISE E PROPOSIÇÃO
P
ARA análise proposta neste capítulo foi
necessário um recorte geográfico para o
Estado do Paraná devido à experiência e ao local de
maior aproximação entre a teoria e a prática para o
pesquisador que trabalha em um colégio do
município de Colombo, que faz parte da região
metropolitana de Curitiba. E também devido ao fato
de haver, nesse Estado, documentos próprios que
servem como referenciais do ensino de filosofia: as
Diretrizes Curriculares de Filosofia do Paraná,
documento produzido com o objetivo de “discutir
tanto os fundamentos teóricos das DCE quanto os
aspectos metodológicos de sua implementação em
sala de aula” (PARANA, 2008, p. 8).
Depois de verificar a construção e propostas
das Diretrizes paranaenses, principalmente se há
ênfase para abertura em tratar de assuntos filosóficos
não restritos ao modo de fazer europeu, será proposta
uma alternativa ao currículo em que os temas da
Filosofia Africana possam ser discutidos e dialogados
com os estudantes.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
3.1 Diretrizes Curriculares de Filosofia do Paraná
Na leitura das Diretrizes Curriculares de
Filosofia do Paraná (DCFP) rapidamente pode-se
notar uma preocupação em definir, ou até
problematizar, a questão do currículo no quesito da
seleção do conhecimento:
Parece não haver destaque para a discussão sobre como se
dá, historicamente, a seleção do conhecimento, sobre a
maneira como esse conhecimento se organiza e se relaciona
na estrutura curricular e, consequência disso, o modo como
as pessoas poderão compreender o mundo e atuar nele
(PARANÁ, 2008, p. 13).
Essa ressalva alerta para interpretações
equivocadas que muitas vezes compreendem que a
escolha dos conteúdos ocorre de forma neutra. Ao
contrário, a seleção dos conteúdos e conhecimentos é
reflexo de uma atitude política. Desse modo, as
normas para construção de um currículo estariam
mais propícias a valorizar as diferenças do que
reduzir a uma identidade, já que como afirma o
documento, baseado em Sácristan: “o importante do
currículo é a experiência, a recriação da cultura em
termos de vivências, a provocação de situações
problemáticas” (SACRISTAN, 2000, p. 41).
Frente a isso, as Diretrizes propõem reflexões
acerca das intenções que se articulam na proposição
de um currículo, que é traduzido pela tensão do
Luís Thiago Freire Dantas
caráter prescritivo e pela própria prática do docente:
“No caso de um currículo imposto às escolas, a prática
pedagógica dos sujeitos que ficaram à margem do
processo de discussão e construção curricular, em
geral, transgride o currículo documento” (PARANÁ,
2008, p. 16). Com isso, a transgressão do currículo é
destacada como fundamental, visto que para não se
formar um círculo vicioso na abordagem dos temas e,
assim, distanciar o entendimento de haver apenas um
modo de reprodução, a preocupação do documento é
propor: “que o currículo da Educação Básica ofereça,
ao estudante, a formação necessária para o
enfrentamento com vistas à transformação da
realidade social, econômica e política de seu tempo”
(PARANÁ, 2008, p. 20). Tudo isso intencionado para
que a Educação Básica caracterize-se através de uma
tríade:
científica,
artística
e
filosófica
do
conhecimento. A partir disso, as diversas disciplinas
concorrem para um trabalho pedagógico com o
intuito de projetar uma totalidade de conhecimento
que não se abstrai do contato com o cotidiano.
No entanto, será que a aplicação no currículo
da filosofia abarca tais características? O ensino de
filosofia estaria aberto a múltiplas formas de pensar
sobre a própria filosofia e sua relação com o cotidiano
dos estudantes? No início das Diretrizes Curriculares
de Filosofia do Paraná (DCFP) encontra-se uma
posição sobre a origem e sentido do ensino da
filosofia:
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Constituída como pensamento há mais de 2600 anos, a
Filosofia, que tem a sua origem na Grécia antiga, traz
consigo o problema de seu ensino a partir do embate entre o
pensamento de Platão e as teorias dos sofistas (PARANÁ,
2008, p. 39).
De início o ensino de filosofia orienta-se para
dois pontos: i) localizar a filosofia como modo grego27
de pensamento; ii) a divergência entre Platão e os
sofistas como modelo para o ensino da disciplina.
Mais a frente, na seção 3.2, enfocarei sobre o primeiro
ponto. Quanto ao segundo, as Diretrizes teriam a
mesma preocupação de Platão: que “os métodos de
ensino não deturpem o conteúdo” (PARANÁ, 2008, p.
39), defendendo que a finalidade do conhecimento
deve afastar-se de um instrumento retórico que
equivale a qualquer verdade.
Para isso, as Diretrizes apresentam três formas
para o ensino médio quando se trata de ensinar
filosofia:
Diante dessa perspectiva, a história do ensino da Filosofia,
no Brasil e no mundo, tem apresentado inúmeras
possibilidades de abordagem, dentre as quais se destacam:
Esse é um dos pontos fundamentais da crítica de um currículo
afroperspectivista, conforme já foi explicitado sobre o problema do
pensamento em inserir a filosofia como um modo de fazer grego.
Mais a frente será reforçada, através da prática pedagógica, a
importância da destituição da origem grega da filosofia.
27
Luís Thiago Freire Dantas
• a divisão cronológica linear: Filosofia Antiga, Filosofia
Medieval, Filosofia Renascentista, Filosofia Moderna e
Filosofia Contemporânea, etc.;
• a divisão geográfica: Filosofia Ocidental, Africana,
Filosofia Oriental, Filosofia Latino-Americana, dentre
outras, etc.;
• a divisão por conteúdos: Teoria do Conhecimento, Ética,
Filosofia Política, Estética, Filosofia da Ciência, Ontologia,
Metafísica, Lógica, Filosofia da Linguagem, Filosofia da
História, Epistemologia, Filosofia da Arte, etc. (PARANÁ,
2008, p. 39).
A partir daqui inicia-se o problema que
motivou este estudo, porque nas páginas seguintes
das DCFP lê-se que a escolha das formas para o
ensino deu-se pela divisão de conteúdos, com a
advertência de que tal escolha não exclui, mas absorve
as divisões cronológicas e geográficas. Entretanto,
verifica-se uma série de argumentos equivocados seja
para tratar cronologicamente quanto geograficamente.
Sobre a dificuldade em tratar de forma geográfica, as
DCFP comentam, por exemplo, que a Filosofia
Oriental contém uma complexidade de civilizações
em seu interior (hindu, japonesa, chinesa, síria, etc.), o
que impossibilitaria ao docente tratá-las com a mesma
profundidade que a divisão por conteúdos. Porém,
esquece-se que o docente pode escolher algumas das
civilizações e trabalhar como a filosofia dialoga entre
elas, tanto mais que tal técnica não é estranha, já que o
professor ou a professora de filosofia habitualmente
trabalham com a filosofia francesa, alemã ou inglesa
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
sem que com isso fique prejudicado o ensino da
filosofia ocidental. Já no que seria a Filosofia Africana
o equívoco torna-se ainda maior por causa da
seguinte passagem:
No entanto, se a filosofia africana traz como vantagem a
ideia de que o ser é dinâmico, dotado de força – concepção
essa que aparece também em algumas filosofias ocidentais –
é preciso considerar que a sua fundamentação exclusiva na
linguagem oral, ainda que pareça interessante, acaba por
apresentar-se como uma fragilidade, evidenciada pela
dificuldade com o idioma e também pela carência de
bibliografia. Por essa razão, esse conteúdo não está
relacionado entre os que compõem os conteúdos
estruturantes de Filosofia, podendo, todavia, ser tratado na
qualidade de conteúdo básico. O professor, dada a sua
formação, sua especialização, suas leituras, terá a liberdade
para fazer o recorte que julgar adequado e pertinente. Além
disso, deve estar atento às demandas das legislações
específicas referentes à inclusão e à diversidade (PARANÁ,
2008, p. 40).
O problema dessa passagem é que as Diretrizes
reduziram a complexidade do pensamento africano em
um estudo etnográfico: La Philosophie Bantue (1965), do
missionário belga Placide Tempels, que descreve a
concepção de ser a partir da ideia de força. Tal redução
apenas afirma o preconceito acadêmico perante a
Filosofia Africana, pois a compreende como uma ideia
de produção coletiva, não sistematizada e inconsciente,
isto é, uma Etnofilosofia. O grande problema disso é que
ratifica o pensamento de Tempels de “que só ocidentais
‘letrados’ conseguiriam filtrar o pensamento bantu e
Luís Thiago Freire Dantas
transpor em conceitos ‘sofisticados’” (NOGUERA,
2011a, p. 40) e essa concepção oculta justamente o
embate de filósofos africanos perante essa compreensão:
“Eles descavaram uma filosofia africana própria, para
empenhar diante dos negadores de nossa ‘dignidade
antropológica’
um
irrecusável
certificado
de
humanidade” (TOWA, 2009, p. 35).
Assim, pela leitura do trecho destacado das
DCFP, o problema geral seria reduzir a Filosofia
Africana à Etnofilosofia. Porém há ainda dois pontos:
i) o privilégio da escrita sobre oralidade; ii) a
responsabilidade da abordagem estaria no professor.
Desse modo, o primeiro ponto sugere que a
dificuldade, ou até mesmo a inviabilidade, de
trabalhar com os assuntos da Filosofia Africana devese à proeminência da linguagem oral em detrimento
da escrita. Tal raciocínio vincula-se a dois equívocos.
Um deles refere-se a um desconhecimento do grande
arcabouço linguístico existente desde a África antiga,
por exemplo, o Adinkra, que consiste em um conjunto
de ideogramas que possui um significado complexo
que expressam conceitos filosóficos. Elisa Larkin
(2008) descreve a importância do Adinkra por refutar
o academicismo convencional que nega à África sua
historicidade por nunca haver desenvolvido uma
escrita:
Entretanto, os africanos estão entre os primeiros povos a
criar essa técnica. Além dos hieroglíficos egípcios, existem
vários sistemas de escrita desenvolvidos por outros povos
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
africanos antes da invasão muçulmana, que introduziria a
escrita árabe (LARKIN, 2008, p. 34).
Outro equívoco é de supervalorizar a escrita
em detrimento da oralidade levando a “uma maneira
reduzida e limitada para aferir as reflexões humanas
dos mais variados povos ao longo da história da
humanidade” (NOGUERA, 2011a, p. 41). Além disso,
a referida citação das DCFP utilizam como argumento
a dificuldade com o idioma e carência de bibliografia.
Ora, já se demonstrou até aqui a existência de vários
filósofos que trataram de modos de pensar
“tradicionais” que não indicariam o idioma como
barreira de compreensão, pois, assim como nós
brasileiros, a população africana teve uma colonização
e articula o pensamento a partir de línguas coloniais
como: inglês, francês, alemão, espanhol, italiano e
português. Então, o impedimento de tratar da
Filosofia Africana não estaria nessas dificuldades.
Além disso, por meio da importância da
desobediência epistêmica apresentada anteriormente
(seção 1.3), uma das características de tal
desobediência é suscitar um pensamento, ou uma
epistemologia, a partir de línguas não imperiais.
Desse modo, articular uma filosofia a partir dos
troncos linguísticos não imperiais (como, por
exemplo, o ioruba ou o ashanti), forneceria uma
ampliação até mesmo dos tradicionais problemas
filosóficos, como a verdade, o belo e o bem.
Luís Thiago Freire Dantas
O outro ponto destacado orienta-se para o fato
de que o tratamento do assunto dependeria do
docente conforme a sua especialização, leitura, etc., já
que não estaria impossibilitado, conforme indicam as
DCFP, de pesquisas próprias. Contudo, tem-se um
problema porque se, segundo a argumentação das
Diretrizes, há uma dificuldade em trabalhar a
Filosofia Africana por causa da escassez de
bibliografia, então como um professor ou uma
professora teria a formação ideal para tratar do
assunto? Invariavelmente sugere-se a ausência do
assunto não por causa da prescrição, mas pelo próprio
docente que não teria a capacidade de lidar com o
tema. Em consequência, as Diretrizes e as políticas
públicas demandadas por esse documento eximem-se
da responsabilidade de fomentar a formação. Da
mesma forma atuam as Diretrizes Curriculares para
os cursos de Filosofia (BRASIL, 2002) que não inserem
em sua grade curricular filosofias para além do eixo
europeu. Ademais, a possibilidade mesmo que menor
em tratar de Filosofia Africana aparece nas DCFP
apenas como atenção “às demandas das legislações
específicas referentes à inclusão e à diversidade”
(PARANÁ, 2008, p. 40). Esse ponto também não é
suficiente para explicar a ausência da Filosofia
Africana nos conteúdos estruturantes.
No que concerne a outra forma de ensino da
filosofia proposta pelo documento – a divisão
cronológica linear – as Diretrizes enfatizam a
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
importância da história da filosofia, mas com a
ressalva para que o docente não realize uma
organização meramente cronológica e linear dos
conteúdos de maneira que aparente o surgimento
espontâneo dos conceitos filosóficos sem qualquer
possibilidade de articulação com os diferentes
momentos históricos pelos quais passaram os seres
humanos.
Desse modo, a descrição dos períodos da
filosofia (apesar de brevemente apresentados) toca em
assuntos importantes, como, por exemplo, a mudança
de paradigmas acerca da condição humana, a busca
de autonomia e a secularização da consciência. O
problema é que a apresentação dos períodos
permanece tradicionalmente articulada com a maneira
eurocêntrica de conceber os períodos filosóficos:
Filosofia
Antiga,
Medieval,
Moderna
e
Contemporânea. E divisão histórica com destaque aos
aspectos gregos, cristãos e à compreensão de
modernidade europeia. Com isso, é passível de ser
aplicada a crítica de Nogueira (2011a) sobre o
tratamento unilateral da História da Filosofia:
Muito já foi escrito sobre a História da Filosofia, tudo que
tem sido dito a seu respeito parece convergir para um
retrato sobre um percurso europeu de pensamento. Vale a
pena se debruçar sobre argumentos que sugerem a
superação da inexistência da Filosofia fora das cercanias
europeias, abrindo caminho para o reconhecimento de
trabalhos filosóficos dentro de matrizes de pensamentos
Luís Thiago Freire Dantas
africano, ameríndio, oriental, etc. em geral, as(os)
historiadoras(es) e professoras(es) de Filosofia afirmam que
não é adequado enquadrar formas distintas de
pensamentos, tal como o africano, num modelo que seria
‘exclusivamente’ europeu (NOGUERA, 2011a, p. 28).
Assim, seria importante atribuir uma história
da filosofia que abarque conceitos de povos antigos,
cosmovisões não cristãs e até compreensões de
modernidade que se distanciem ou dialoguem com as
europeias.
No entanto, as Diretrizes por meio dos
argumentos de que não há como propor um estudo de
filosofia exclusivamente na perspectiva geográfica ou
cronológica, defendem que a organização curricular
obedeça à divisão por conteúdos estruturantes 28: mito
e filosofia, teoria do conhecimento, ética, filosofia da
política, filosofia da ciência e estética. Essa proposta
tem, segundo o documento, a intenção de garantir
“que o ensino de filosofia não perca algumas
características essenciais da disciplina, como por
exemplo, a capacidade de dialogar de forma crítica e
“Entende-se por conteúdos estruturantes os conhecimentos de
grande amplitude, conceitos, teorias ou práticas, que identificam e
organizam os campos de estudos de uma disciplina escolar,
considerados fundamentais para a compreensão de seu objeto de
estudo/ensino. Esses conteúdos são selecionados a partir de uma
análise histórica da ciência de referência (quando for o caso) e da
disciplina escolar, sendo trazidos para a escola para serem
socializados, apropriados pelos alunos, por meio das metodologias
críticas de ensino-aprendizagem” (PARANA, 2008, p. 25).
28
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
mesmo provocativa com o presente” (PARANÁ, 2008,
p. 42).
Todavia, o presente estudo concorda que
“evidentemente, cada processo de escolha determina
ausências e toda ausência gera questionamento”
(PARANÁ, 2008, p. 42). Mas é por essa ausência é que
se coloca a questão: de que maneira a Filosofia
Africana poderia ser ministrada no ensino médio com
o intuito de contribuir não somente para afirmar
intelectualmente uma tradição, mas também para
refletir sobre o lugar que a filosofia ocupa na história
do pensamento brasileiro?
Essa pergunta é motivada em grande parte
porque o ensino de filosofia aqui em questão possui
um contexto específico, como bem redigido nas
Diretrizes: “Identifica-se o local onde se pensa e fala a
partir do resgate histórico da disciplina e da militância
por sua inclusão e permanência na escola. Ensinar
Filosofia no Ensino Médio, no Paraná, no Brasil, na
América Latina, não é o mesmo que ensiná-la em
outro lugar” (PARANÁ, 2008, p. 48). Assim, a
recolocação do fazer filosófico torna-se importante,
uma vez que comumente possui um sentido
eurocentrado e vincula-se à construção de problemas
conforme propõem os pensadores europeus.
Evidentemente o presente estudo tem ciência da
dificuldade e limites que o professor e a professora
terão na abordagem de uma filosofia não
eurocentrada. Entretanto, a urgência de trazer novas
Luís Thiago Freire Dantas
perspectivas não consiste em uma nova idiossincrasia
ou meramente por simples aplicação de uma lei, e sim
a atenção para o contexto do estudante que, diante de
saberes hegemônicos, pode encontrar proximidade
com a própria vida, principalmente porque:
Um dos objetivos do Ensino Médio é a formação
pluridimensional e democrática, capaz de oferecer aos
estudantes a possibilidade de compreender a complexidade
do mundo contemporâneo, suas múltiplas particularidades
e especializações. Nesse mundo, que se manifesta quase
sempre de forma fragmentada, o estudante não pode
prescindir de um saber que opere por questionamentos,
conceitos e categorias e que busque articular o espaçotemporal e sócio-histórico em que se dá o pensamento e a
experiência humana (PARANÁ, 2008, p. 49).
Mesmo diante das dificuldades levantadas
sobre o contato com as produções da Filosofia
Africana (acesso à bibliografia ou dificuldades com
idiomas), as Diretrizes Curriculares de Filosofia do
Paraná possuem a autonomia em propor diferentes
formas de ensinar filosofia, transferindo a
responsabilidade ao docente que já possui uma
formação deficiente sobre filosofias para além do eixo
europeu. Como forma de superar tal dilema, a seção
seguinte proporá um exercício de reflexão que explora
a posição afroperspectivista e outras correntes
afrocentradas, com o objetivo de apresentar opções de
um currículo de filosofia não eurocentrado.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
3.2 Enegrecendo o currículo de filosofia
A posição afroperspectivista diz respeito à
formulação desenvolvida por Noguera (2011a; 2011b;
2012; 2014) com o intuito “de passar a limpo a história
da humanidade, tanto para dirimir as consequências
negativas de limar culturas e povos não ocidentais do
rol do pensamento filosófico, como para desfazer as
hierarquizações que advêm desse processo”
(NOGUERA, 2014, p. 71). Utilizando o discurso como
um mote importante, o autor propõe uma revisão de
alguns
conceitos
afro-brasileiros
(comumente
desqualificados por expressarem os modos de ser e de
estar da população negra e marginalizada) no sentido
de ressignificá-los. Alguns exemplos seriam:
“denegrir,
vadiagem,
drible,
mandinga,
enegrecimento, roda, cabeça feita, corpo fechado, etc”
(NOGUERA, 2011b, p. 5), que passam a representar
modelos de éticas, epistemologias e estéticas,
apresentados por meio de personagens como “o griot,
a mãe de santo, o pai de santo, o(a) angoleiro(a), a(o)
feiticeira(o), a(o) bamba, o(a) jongueiro(a), o zé
malandro, o vagabundo, orixás [...] inquices [...],
voduns” (NOGUERA, 2011b, p. 5).
A
construção
de
um
currículo
afroperspectivista não consiste em contemplar outro
modo de filosofar que destituiria os demais. Antes,
seria fornecer a outros povos o reconhecimento da
Luís Thiago Freire Dantas
produção intelectual e capacidade de diálogo, já que
“colocar a história da filosofia em afroperspectiva
permitiria a consideração do pensamento filosófico
dos povos ameríndios, dos povos asiáticos, da
Oceania, além da produção filosófica africana”
(NOGUERA, 2014, p. 71).
Partindo desse interesse, comparar os
conteúdos estruturantes ordenados pelas DCFP com
uma hipótese de currículo afroperspectivista será a
proposta deste tópico, levando em conta que o tema
não se esgotaria nas dimensões deste livro. Apesar
disso, a proposta aqui sugerida apresentará vias para
uma perspectiva não hierarquizante e que exercita um
polidiálogo, isto é, um campo em que há vários centros
dialogando e debatendo intelectualmente (RAMOSE,
1999).
Partindo do texto oficial, os conteúdos
estruturantes estão apresentados da seguinte forma:
• Mito e Filosofia;
• Teoria do Conhecimento;
• Ética;
• Filosofia Política;
• Filosofia da Ciência;
• Estética (PARANÁ, 2008, p. 55).
O interessante é que essa distribuição tem para
as DCFP o seguinte objetivo: estimular “o trabalho da
mediação intelectual, o pensar, a busca da
profundidade dos conceitos e das suas relações
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
históricas, em oposição ao caráter imediatista que
assedia e permeia a experiência do conhecimento e as
ações dela resultantes” (PARANÁ, 2008, p. 57). Esse
objetivo implica em uma posição que para este estudo
torna-se importante, pois abre a possibilidade de o
profissional tratar de alguns conteúdos de maneira
mais independente, até mesmo fazendo uso de
perspectivas não eurocêntricas: “Notadamente,
Filosofia é o espaço da crítica a todo conhecimento
dogmático, e, por ter como fundamento o exame da
própria razão, não se furta à discussão nem à
superação das filosofias de cunho eurocêntrico”
(PARANÁ, 2008, p. 57). Para realizar uma superação
das filosofias eurocêntricas, uma sugestão aqui
proposta consistiria nos princípios curriculares que
Asante (2009) esboça para um projeto afrocêntrico29:
Você e sua comunidade: o desenvolvimento das disciplinas
precisa discutir com os alunos o senso de identidade e sua
relação com a comunidade em que vivem. Por isso, necessita
introduzir as ideias de pessoa, família, cidade, Estado,
Nação e mundo para que os alunos entendam o sentido e o
como se formou tais ideias. Bem-estar e biologia: esta parte
diz respeito à explicação da importância das atitudes físicas
e hábitos que promovam o bem-estar. Articulando com
saberes como fisiologia e biologia humana (não
restritamente). Tradição e inovação: aqui se explora a
Esses princípios foram organizados por Asante para fundamento
de várias disciplinas, porém o estudo entende alguns desses
princípios como importantes para a construção de um currículo
filosófico afroperspectivista.
29
Luís Thiago Freire Dantas
preservação e a geração como poderosos instrumentos de
interação de mudança e continuidade da vida. Criação e
expressão artística: as múltiplas formas humanas que
expressaram seus pensamentos mais íntimos através dos
meios de materiais e realização, por exemplo, na música,
dança, desenho, poesia, Rap, etc. Localização no tempo e
espaço: explorar a cronologia, a geografia e conceitos
matemáticos para desbloquear interpretação e habilidades
analíticas. Produção e distribuição: conceituar os princípios
da produção, distribuição e consumo de bens e serviços.
Poder e autoridade: problematizar a obtenção e uso de
poder e autoridade para efetuar a vontade comum.
Tecnologia e ciência: explicar como ocorre a interação
complexa de comportamentos humanos por meio da ciência
e da tecnologia visando à melhoria da sociedade. Escolha e
consequências: situar através de situações históricas e
sociais nas diferentes formas os seres humanos e como eles
têm tratado escolhas e consequências. Sociedade e do
mundo: desenvolver as relevantes habilidades sociais,
valores e comportamentos com o intuito de promover a
maturidade multicultural para, enfim, desenvolver uma
educação não-sexista, não-hegemônica e não-racista
(ASANTE, 2009, grifos meus).
Reconhecemos que essa inserção se dá em um
trabalho árduo que dependerá do maior ou menor
envolvimento docente ou maior ou menor
receptividade do grupo participante (comunidade
escolar, secretaria de educação, dentre outros), na
sequência serão apresentadas propostas para
mudanças nos conteúdos estruturantes.
Mito e filosofia: Esse conteúdo é descrito com
o objetivo de fornecer ao aluno a compreensão
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
histórica
de
como
surgiu
o
pensamento
racional/conceitual entre os gregos e como foi
decisivo no desenvolvimento da cultura da civilização
ocidental. A partir disso, o estudante entenderia a
conquista da autonomia da racionalidade diante do
mito e, com isso, compreenderia o advento de uma
etapa
fundamental
do
pensamento
e
do
desenvolvimento de todas as concepções científicas
produzidas ao longo da História. Nesse aspecto há
dois problemas: um deles é a ratificação da filosofia
como uma produção grega sugerindo que outros
povos não produziam filosofia, pois possuíam um
saber “incompleto” e uma relação direta entre mito e
filosofia, ou seja, um modo de pensamento primário e
que se subordinava a autoridades místicas. Outro
aspecto é a ideia de que somente os gregos
contribuíram para o desenvolvimento intelectual e
cultural do Ocidente, ignorando as contribuições
árabes, muçulmanas, turcas, mongóis, dentre outras.
Uma possibilidade de tratar tal assunto seria
pensar por meio da Cosmologia, pois nesse sentido
ampliar-se-ia o campo de reflexão por não restringir a
uma discussão que decairia no discurso de ruptura
entre mito e filosofia ocorrente na Grécia antiga, mas
possibilitaria trabalhar formas de interpretação da
origem do mundo e do ser humano de outras
civilizações e, necessariamente, não distanciando de
forma rápida a filosofia do mito. Uma sugestão
trataria do Egito antigo e a proximidade das
Luís Thiago Freire Dantas
narrativas dos deuses para explicar e problematizar
certos aspectos como, por exemplo, o deus Thot da
escrita, a deusa Maat da verdade. Além de destacar a
enorme contribuição da civilização egípcia para a
filosofia através de filósofos como Ptah-hotep30 e
Amenemope31.
Teoria do conhecimento: Objetivo desse
conteúdo é fornecer ao aluno o questionamento de
como a verdade possui certos critérios e como se
permite reconhecer o verdadeiro. Assim, o que estaria
em jogo seria a possibilidade do conhecimento e qual
a sua fonte. Contudo, a definição de conhecimento
está próxima da dicotomia sujeito-objeto, em que há
um ser que estaria apto a conhecer e outro a ser
conhecido, provocando uma dependência deste para
o primeiro. Para ampliar a discussão, o propício seria
trazer ao aluno a questão de que o conhecimento não
começa em um “Eu” solipsista que possibilitaria à
natureza ser conhecida, mas que o conhecimento
iniciaria a partir de uma extensão de si mesmo com
outros e com o mundo, não havendo qualquer
ruptura. Desse modo, estimular-se-ia a gnose,
expandindo a compreensão de faculdade racional, que
Assim como aconteceu com os pré-socráticos, da filosofia de
Ptah-hotep foram preservadas algumas máximas, no total 37,
datadas aproximadamente de 1.900 A.C. e que foram reunidas por
Christian Jacq (2004), no livro Les Maximes de Ptah-hotep: l’enseigment
d’un sage au temps des pyramides.
31
Os ensinamentos de Amenemope são encontrados no livro
Escritos para a Eternidade, organizado por Emanuel Araújo (2010).
30
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
não mais se restringiria ao ser humano mas também
ao mundo em seu entorno. Poderiam se somar, além
dessa proposição, outros trabalhos da Filosofia
Africana que contribuiriam para explicar a questão do
conhecimento como, por exemplo, a obra Kemet
(ASANTE, 1990), e as publicações do ganês Anto
Wilhem Amo, 32 que se posicionou como crítico de
Descartes.
Ética: o objetivo desse conteúdo é estudar e
analisar a atribuição de valores que ao mesmo tempo
podem ser especulativos (baseado em princípios) e
normativos (de caráter mais imperativo, com
resultados mais práticos). Além do que tal objetivo
propõe uma crítica à heteronomia em detrimento da
busca por uma autonomia. Por isso, a ética possibilita
o desenvolvimento de valores, mas pode ser também
o espaço da transgressão, quando valores impostos
pela sociedade se configuram como instrumentos de
repressão, violência e injustiça.
A contribuição a partir da filosofia africana
seria realizar uma discussão através do ubuntu que,
como foi exposto, fornece a compreensão do
indivíduo enquanto coletivo, porém com a ressalva de
que o coletivo não se limita às pessoas, mas também à
fauna, à flora e ao sobrenatural que constitui a
Anton Wilhelm Amo (1703-1759) foi filósofo e professor da
Universidade de Jena que defendeu uma tese sobre a Impassividade
da mente humana, na qual se opõe à filosofia cartesiana acerca da
fonte do conhecimento.
32
Luís Thiago Freire Dantas
comunidade. Outra possibilidade consiste em retomar
o sentido original do termo Ética que designa morada
(Ethos). A partir disso, amplia-se ao estudante a
compreensão sobre a inserção do humano na natureza
como local de vida, e não somente de passagem.
Política: O enfoque desse conteúdo são as
sociedades que transformaram o poder político em
coisa pública, ou seja, transparente, participável e
voltado à construção do bem comum. E, conforme o
que está escrito nos conteúdos, tende ao professor ou
à professora desenvolver a seguinte reflexão: “Se, por
um lado, a modernidade está distante do ideal da polis
ateniense ou da res publica romana, por outro é preciso
reconhecer que ela trouxe conquistas fundamentais,
como a valorização da subjetividade e da liberdade
individual” (PARANÁ, 2008, p. 58). Mas essa
proposta escamoteia que tal valorização foi bem
sucedida pelo caráter colonizador com o intuito de
impor um modelo de ideal político, simbolizado pela
lógica de “democracia”. Por isso, é preciso considerar
a crise da representação política que coloca em
questão o atual modelo dos chamados Estados
democráticos de cunho liberal. Principalmente no que
se refere à problemática do micro e macropoder que
possibilita outras formas de compreensão acerca do
caráter jurídico de pessoa, assim como de outras
maneiras de construir politicamente a sociedade. Por
exemplo, a filosofia de Ramose possui uma literatura
importante que questiona o significado de democracia
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
no Ocidente, principalmente contrapondo a ideia de
partido utilizando da concepção de solidariedade na
África do Sul:
A singularidade da oposição política é enfatizada ainda
mais pelo fato de que muito frequentemente este tipo de
política degenera-se para dentro da oposição por causa da
oposição. Sem dúvida, os protagonistas deste sistema
replicariam que o objetivo da oposição é acender à posição
do poder político por deslocar o partido no poder. Sem
negar este fim egoísta, eu argumento que compreender
neste modo, a oposição política enfraquece o princípio de
solidariedade na política cultural da África tradicional
(RAMOSE, 1992, p. 75).
Filosofia da Ciência: Tem como objetivo o
estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos
resultados das diversas ciências. Assim, sua
importância consiste em refletir criticamente sobre o
conhecimento científico, para conhecer e analisar o
processo de construção da ciência do ponto de vista
lógico, linguístico, sociológico, político, filosófico e
histórico. Por isso, a Filosofia da Ciência tem a
pretensão de mostrar que o conhecimento científico é
provisório, jamais acabado ou definitivo, além de
problematizar o quanto a ciência está, ou não,
envolvida de fundamentos ideológicos, religiosos,
econômicos, políticos e históricos. Aproveitando a
construção contínua da ciência, o docente teria a
possibilidade de apresentar as contribuições de várias
Luís Thiago Freire Dantas
civilizações africanas para a ciência, principalmente, a
do Egito antigo. Com isso, o trabalho de Obenga
(1990) é relevante para entender como se deu tal
contribuição, pois o autor analisa como os egípcios
possuíam uma compreensão avançada para o
desenvolvimento
da
arquitetura,
medicina,
aeronáutica, dentre outras atividades tecnológicas.
Estética: com a proposta de refletir
principalmente a beleza e a arte, a estética procuraria
tratar da realidade e das pretensões humanas em
dominar, moldar, representar e reproduzir o mundo
como realidade humanizada, além de possibilitar uma
crítica aos limites que o império da técnica com as
máquinas promovem a arte como produto comercial,
ou do belo como conceito acessível para poucos.
Desse modo, a busca de espaço de reflexão,
pensamento, representação e contemplação do mundo
não ficariam restritas a uma maneira de conceber uma
obra de arte. Articulando com a perspectiva africana
seria possível uma flexibilização do modo de definir a
arte e a estética, que não as conceberiam apenas como
“eruditas”.
Dessa
maneira
esse
conteúdo
problematizaria, por exemplo, a dicotomia corpo e
mente para desconstruir a ideia de corpo como uma
parte subordinada à mente. Nesse sentido, autores
como Noguera (2011b) problematizam o quanto
atividades corporais são dotadas de princípios
estéticos múltiplos, como, por exemplo, o movimento
da ginga trazida pela capoeira:
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
Os capoeristas que na roda de capoeira angola palmeiam o
solo, com chapas e martelos são capazes de imprimir aos
movimentos uma graça que o jogo de chão ganha quando o
cansaço deixa as camisas amarelas ensopadas de novas
ideias. É importante frisar que num episódio deste tipo, as
ideias não são abstrações, nem realidades transcendentes;
mas, movimentos corporais, traços relacionais que
constituem personagens conceituais (NOGUERA, 2011b, p.
12).
Dentro dessa arquitetura de conteúdos, o
professor e a professora de filosofia teriam a liberdade
de relacionar os temas filosóficos com o cotidiano do
estudante,
principalmente
do
jovem
negro,
valorizando algumas expressões que remetem às suas
origens. Introduzir letras de música de cantores
africanos e seus contextos sócio-políticos como, por
exemplo, a música política de Fela Kuti, Miriam
Makeba, dentre outros ou, ainda, explorar na cultura
Hip Hop ou no Funk elementos da ética e estética
africana, sobrepujando a interpretação unilateral e
excludente
que
comumente
considera
tais
manifestações culturais como desqualificadas. O
debate em torno de tal intepretação pode estimular
uma reflexão crítica sobre as maneiras como o racismo
se constrói no que se refere à arte africana. Outras
possibilidades
relacionam-se
ao
destaque
a
contribuições de intelectuais negros em vários setores
científicos para estimular nos jovens, sobretudo
Luís Thiago Freire Dantas
negros, a construção de representações positivas sobre
ser negro.
Como fora advertido, esse tópico teria o caráter
mais especulativo, pois a riqueza que o ensino de
Filosofia Africana pode dar à relação professor-aluno
é grande e, ao mesmo tempo, complexa. O necessário
é enfocar para o fato de que a construção de um
currículo pluri-versal (NOGUERA, 2014) não deve
limitar-se diante das dificuldades (dentre elas a
“formação ideal”). E como a construção de um
currículo não ocorre de modo individual, as Diretrizes
Curriculares de Filosofia (no caso analisado do
Paraná, mas poderia ser do Brasil) não devem se
omitir da responsabilidade de apresentar conteúdos
que abarquem vários centros, não se restringindo a
um que se coloque hierarquicamente superior aos
demais.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
EM-FIM UM NOVO HORIZONTE?
E
livro teve como horizonte o
questionamento do currículo de filosofia
no ensino médio, na perspectiva de inserir os temas
da Filosofia Africana. Diante de tal horizonte, a
pesquisa também explicou que a possibilidade de
tratar os temas filosóficos de maneira não
eurocentrada carece de uma interação entre diversos
setores educacionais. Porque o docente não pode
ensinar caso não haja uma capacitação em cursos que
proporcionem outras vias de pensamento. Entretanto
tal capacitação necessita de uma posição explícita nas
Diretrizes para propor conteúdos oriundos de
temáticas não eurocentradas. A partir dessa
interatividade é que se situa a primeira e a grande
dificuldade em discutir um currículo não
eurocentrado.
Contudo, a discussão de como a Filosofia
Africana poderia ser inserida no currículo escolar
invariavelmente propôs a desconstrução de algumas
das posições tradicionais sobre a filosofia,
principalmente
o
caráter
europeu
que
ideologicamente a constituiu. Por isso, atento a
observação de Mills de que a “filosofia é a mais branca
dentre todas as áreas das ciências humanas” (1999, p.
13, grifos nossos), a discussão através de Marcien
Towa, Mogobe Ramose, Molefi Asante forneceram
subsídios para “escurecer” a filosofia e, por
STE
Luís Thiago Freire Dantas
conseguinte, incentivar um debate nas Diretrizes para
que o ensino não reproduza um ideal vazio em
conteúdo e distancie o jovem do interesse filosófico.
Diante desse panorama, pode-se considerar
que o resultado deste estudo foi fortuito na medida
em que ele possui uma intenção propositiva e não
pretende que a discussão esgote no texto em si. Tanto
mais porque a pesquisa, concordando com Noguera
(2014), defende um posicionamento de estudo a partir
da filosofia afroperspectivista, pois se entende que a
identidade do negro brasileiro não pode ser reduzida
ao efeito de marginalização oriundo de alguns setores
sociais, mas demonstrada a influência da africanidade
no próprio exercício filosófico brasileiro. Com isso, a
conclusão deste livro é informar que o uso da Filosofia
Africana no ensino médio ou em qualquer outro nível,
primordialmente requer uma descolonização tanto do
currículo quanto do pensamento.
Descolonização Curricular: a Filosofia Africana no ensino médio
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Luís Thiago Freire Dantas
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SOBRE O AUTOR
Luís Thiago F. Dantas é graduado em
Filosofia pela Universidade Federal de
Sergipe (UFS). Tem especialização em
Educação das Relações Étnico-Raciais
(NEAB – UFPR) e mestrado em Filosofia
pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Atualmente é doutorando em
Filosofia pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e professor de Filosofia da
rede Estadual do Paraná. Participa do
Grupo de Pesquisa SPECIES – Núcleo de
Antropologia Especulativa (UFPR).
Contato: fdthiago@gmail.com