ARTIGOS
Sonhando com dragões: sobre a
imaginação da vida real
Tim Ingold [1], Tradução de Sebastian Wiedemann [2]
Resumo: Este artigo parte de estudos do monasticismo medieval e das ontologias indígenas do norte
para mostrar como poderíamos curar a ruptura entre o mundo real e a nossa imaginação dele, a qual
sustenta os procedimentos oiciais da ciência moderna. Embora a ciência não seja adversa aos sonhos
da imaginação como fontes potenciais de novos insights, eles são banidos da realidade que pretende
ser descoberta. Desde Bacon e Galileu, a natureza foi pensada como um livro que não vai revelar
voluntariamente de seus segredos para os leitores humanos. A ideia do livro da natureza, no entanto,
remonta a tempos medievais. Para os leitores medievais como para os caçadores indígenas, as criaturas
falam e oferecem conselhos. Mas na transição para a modernidade o livro foi silenciado. Este artigo
sugere que ao reconhecer nossa participação imaginativa em um mundo mais-do-que-humano e os
compromissos que isso implica, podemos conciliar a investigação cientíica com a sensibilidade religiosa
como formas de conhecer sendo.
Palavras-chave: Imaginação. Ciência moderna. Conhecimento indígena. Idade média. Leitura.
Dreaming with dragons: on the imagination of real life
Abstract: This article draws on studies of medieval monasticism and northern indigenous ontologies to
show how we might heal the rupture between the real world and our imagination of it, which underpins
the oficial procedures of modern science. Though science is not averse to dreams of the imagination as
potential sources of novel insight, they are banished from the reality it seeks to uncover. Ever since Bacon
and Galileo, nature has been thought of as a book that will not willingly give up its secrets to human
readers. The idea of the book of nature, however, dates from medieval times. For medieval readers as
for indigenous hunters, creatures would speak and offer counsel. But in the transition to modernity the
book was silenced. This article suggests that by acknowledging our imaginative participation in a morethan-human world, and the commitments this entails, we can reconcile scientiic inquiry with religious
sensibility as ways of knowing in being.
Keywords: Imagination. Modern science. Indigenous knowledge. Middle Ages. Reading.
[1] Tim Ingold é professor de Antropologia Social na Universidade de Aberdeen. Realizou trabalho de campo etnográico
na Lapónia e escreveu sobre ambiente e organização social no Norte circumpolar, sobre teoria evolutiva na antropologia,
biologia e história, sobre o papel dos animais nas sociedades humanas, sobre o uso da linguagem e das ferramentas e sobre
percepção ambiental e práticas qualiicadas. Ele está atualmente explorando questões sobre a interface entre antropologia,
arqueologia, arte e arquitetura. Seus livros mais recentes são: Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture.
(Routledge: London, 2013) e The Li f e of Li nes. (Routledge: London, 2015).
[2] Sebastian Wiedemann é cineasta-pesquisador, trabalha na intersecção entre arte e ilosoia acolhendo o problemático que
emerge da atual crise ambiental como potência de pensamento que se desdobra em processos de criação que leva adiante
com o grupo multiTÃO (Unicamp) e o Orssarara Ateliê.
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SONHANDO COM DRAGÕES: SOBRE A IMAGINAÇÃO DA VIDA REAL
Enfrentado os fatos
Em 1620, Francis Bacon, ilósofo e estadista
inglês traçou o plano do que seria um
enorme trabalho cientiico titulado A gr ande
i nst aur ação. Bacon nunca terminou a obra,
dedicada ao rei Jaime I, quem o tinha nomeado
lord chanceler. No entanto, no prolegômenos
Bacon atacava as formas tradicionais de
conhecimento, que misturavam continuamente
a realidade do mundo com suas conigurações
nas mentes humanas. Bacon argumentava que
se a mente fosse tão clara e perfeita como
um espelho, então reletiria os raios genuínos
das coisas (1858). Mas não o é. A mente está
issurada e deformada por defeitos inatos e
adquiridos, pelo instinto e o doutrinamento,
e distorce as imagens que se projetam sobre
sua superfície através dos sentidos, e não se
pode coniar em que – por conta própria – possa
proporcionar informação verdadeira sobre as
coisas tal como são. Bacon argumentou que
há somente uma saída para esta situação, que
consiste em apelar aos fatos: “Aqueles que
aspirem, não a adivinhar, mas a descobrir e
conhecer, que não se proponham a inventar por
eles mesmos mundos ilusórios e fabulosos, mas
a examinar e dissecar a natureza deste mundo,
devem ir aos fatos mesmos para tudo” (1858,
pp. 27-28)[3].
As palavras de Bacon têm uma inconfundível
ressonância contemporânea. A ciência atual
ainda se legitima apelando aos dados, que
se veriicam uma e outra vez numa busca
interminável da verdade através da eliminação
do erro. E na sua maioria, as ciências da mente
e da cultura (a psicologia e a antropologia)
têm embarcado na mesma empresa. Isto é,
têm apoiado a divisão entre aquilo que Bacon
chamava o mundo em si mesmo, a realidade
da natureza que só pode se descobrir através
da investigação cientiica sistemática, e os
distintos mundos imaginários, que as pessoas
de diferentes tempos e lugares têm conjurado
e que – em sua ignorância da ciência e
seus métodos – têm considerado reais. Os
antropólogos têm analisado comparativamente
estes mundos imaginários e os psicólogos
têm estudado os mecanismos, supostamente
universais, que governam sua construção.
Todos estão de acordo em que, por nenhum
motivo, devem se confundir os espaços do
real e do imaginário, pois a autoridade mesma
da ciência se baseia em sua pretensão de ser
capaz de revelar os fatos que estão por trás
das fantasias que a imaginação plasma diante
de nossos olhos. Claro, é possível estudar
os produtos da imaginação e os fatos para
apresentar o que muitos antropólogos ainda
chamam considerações émicas (em vez de
éticas), mas misturar ambos seria permitir que
o erro e a ilusão obscurecessem nosso juízo.
Bacon o expressou assim: “Que Deus nos livre
de tomar um sonho de nossa imaginação por
um padrão do mundo” (1858, pp. 32-33).
Neste artigo argumento que o mandato de
Bacon, levado a sério pelas ciências modernas,
tem tido consequências terríveis para a vida
humana, o que tem deixado a imaginação à
deriva, longe de sua ancoragem terrestre,
lutuando como uma miragem sobre a estrada
que transitamos na nossa vida material[4]. Com
nossas esperanças e sonhos submersos no éter
da ilusão, a vida parece diminuída. Ao recortarlhe seu impulso criativo, já não nos dá motivos
para o assombro e a surpresa. De fato, aqueles
que têm sido educados nos valores de uma
sociedade onde a autoridade do conhecimento
cientiico é suprema, a divisão da vida real e
da imaginação, em dois âmbitos mutuamente
excludentes de fatos e fábulas, tem se ixado
tanto que parece uma verdade evidente. Para
nós o problema tem se convertido em como
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SONHANDO COM DRAGÕES: SOBRE A IMAGINAÇÃO DA VIDA REAL
conseguir um certo tipo de ajuste entre estes
dois âmbitos. Como abrir espaço para a arte
e literatura, para a religião, ou as crenças e
práticas dos povos indígenas, numa economia
do conhecimento na qual a busca da verdade
das coisas tem se convertido numa prerrogativa
exclusiva da ciência racional? Suportamos a
persistência da imaginação em nosso meio
ou toleramos sua inclinação em direção à
fantasia devido a um desejo compensatório
de encantamento num mundo que, de outro
modo, tem deixado de cativar? Mantemos a
imaginação como um signo de criatividade,
como um sinal de civilização, por respeito à
diversidade cultural ou simplesmente para nos
entretermos? Estas perguntas são endêmicas,
mas ao formulá-las esquecemos o difícil que
resulta, em nossa experiência, separar a
realidade de nossa vida no mundo e do mundo
em que vivemos, das correntezas meditativas
de nossa imaginação. De fato, o problema
é justamente o oposto ao que se supõe: não
consiste em como reconciliar os sonhos de
nossa imaginação com os padrões do mundo,
mas em como separá-los em primeiro lugar.
Historicamente esta separação se atingiu de
forma lenta e dolorosa, durante a agitação
da Reforma e os começos turbulentos da
precoce ciência moderna, nos quais Bacon e
seu contemporâneo Galileu tiveram um papel
fundamental. Mas este processo histórico se
recapitula e repete hoje em dia na educação
de todas as crianças, a quem lhes é ensinado,
sobre a dor da falência de suas próprias
análises, a desconiar do sensorial, a valorizar
mais o intelecto que a intuição, a considerar
a imaginação como um escape da vida real,
mais que como seu próprio impulso. Parece
que, quase por deinição, o imaginário é
irreal: é nossa palavra para o que não existe.
Por exemplo, como sabe todo pai moderno,
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os dragões não existem (KENT, 2009). Nós,
adultos, estamos convencidos de que os
dragões são criaturas da imaginação. Quando
vistos nos desenhos dos livros que líamos
quando crianças, e que agora lemos para
nossos ilhos, temos nos familiarizado com sua
aparência geral: corpos verdes escamosos,
caudas compridas bifurcadas, sobrancelhas
largas e bocas que cospem fogo. Estes monstros
deambulam no terreno virtual da literatura
infantil junto com outras criaturas também
de procedência ictícia. Alguns, claros, têm
sua contraparte zoológica. Embora o popular
tiranossauro esteja convenientemente extinto,
outros animais – cobras e jacarés, ursos e leões
– ainda perambulam e, de vez em quando,
cobram vidas humanas[5]. Ao encontrarmos
estas criaturas em carne e osso, fazemos bem
em ter-lhes medo.
No entanto, seus primos ictícios não nos
alarmam, pois as únicas pessoas que podem
devorar são tão imaginárias como eles. Junto
com a matéria dos pesadelos, estas criaturas
estão isoladas numa zona de aparições e
ilusões rigorosamente separada do âmbito da
vida real. Deste modo, acalmamos o dormente
que acorda aterrorizado porque ia ser devorado
por um monstro: “Tranquilo, era só um sonho”.
Est e limit e ent re fat o e fant asia, que parecia
em dúvida na hora de acordar, restaura-se
imediatamente. Então, que devemos pensar da
seguinte história tirada de A vi da de São Benedi t o
de Nur si a, livro escrito por Gregório o Grande
no ano 594 d. C.? O livro conta a história de
um monge que encontrou um dragão. O monge
estava inquieto: sua mente tinha a tendência a
divagar e ele queria escapar do enclausuramento
da vida monástica. Eventualmente, o venerável
padre Benedito, cansado das queixas do
monge, ordenou-lhe que fosse embora. No
entanto, logo que o monge saiu do mosteiro
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SONHANDO COM DRAGÕES: SOBRE A IMAGINAÇÃO DA VIDA REAL
encontrou no seu caminho um dragão com uma
boca enorme. Tremendo de medo e convencido
de que o dragão estava prestes a devorá-lo, o
monge chamou aos gritos seus irmãos pedindo
ajuda. Eles acudiram correndo, mas nenhum
viu o dragão. Mesmo assim, levaram a seu
irmão, que ainda tremia pela experiência, de
volta ao mosteiro. Depois desse dia ele nunca
mais se perdeu, nem pensou em se desviar de
seu caminho. A história conclui dizendo que foi
graças às orações de Benedito que o monge “viu
no caminho o dragão que antes tinha seguido
sem ver” (CARRUTHERS, 1998, p. 18).
A forma do medo
Talvez o monge desta história admonitória
simplesmente sofresse de pesadelos. No entanto,
as pessoas da Idade Média não se tranquilizavam
tão facilmente como nossos contemporâneos
ao perceber que seus encontros com dragões e
outros monstros não eram mais do que sonhos.
Claro, não eram tão crédulos como para supor
que os dragões exi st i am , no sentido especíico
de existência invocado pelas pessoas modernas
quando airmam que os dragões não existem.
Não se trata de que o monge de nossa história
tenha encontrado outra criatura que, com o
benefício da informação cientíica posterior,
nós os modernos tivéssemos reconhecido
como uma espécie de réptil, por exemplo.
Lembremos que os irmãos que foram resgatálo não viram nenhum dragão. Mesmo assim,
observaram que o monge tremia e, sem dúvida,
também perceberam o olhar de terror no rosto
do monge. Mas quando o monge gritava que
o salvassem das fauces do dragão, os irmãos
entenderam sua situação de imediato. Não
reagiram diante de seu ataque de pânico da
mesma forma em que o psiquiatra moderno
reagiria aos desvarios de um lunático que foge
do asilo, isto é, não consideraram que fosse
consequência de alucinações, talvez induzidas
por drogas, de uma mente febril e perturbada.
Pelo contrário, os monges reconheceram de
imediato, na visão do dragão, a forma da
agitação que o monge não podia articular
de outro modo e se apressaram a responder,
afetiva e eicazmente, a sua alição. O monge
estava a ponto de ser consumido pelo medo e
sentia os sintomas da desintegração pessoal. O
dragão não era a causa objetiva do medo; era a
forma mesma do medo.
Para os irmãos das comunidades monásticas,
esta forma era bem conhecida, pois se lhes
inculcava através de uma disciplina rigorosa
da mente e do corpo. Em sua formação, as
histórias e desenhos de dragões e outros
monstros
igualmente
aterrorizantes
se
utilizavam não como as usamos hoje em
dia, para criar uma zona de tranquilidade e
segurança ao consignar tudo o aterrorizante
no âmbito da fantasia, mas para infundir-lhes
medo aos novatos, para que pudessem sentilo, reconhecer suas manifestações e vence-lo,
por meio de um irme regime de exercícios
mentais e corporais. Como forma manifesta de
um sentimento humano fundamental, o dragão
era a encarnação palpável do que signiicava
“conhecer” o medo. Por isto, na ontologia
medieval, o dragão existia como existia o medo,
isto é, não como uma ameaça exterior, mas
como uma alição instalada no núcleo do ser do
sofrimento. Como tal, o medo era tão real como
a expressão facial e a urgência na voz do monge.
Ao contrário dos gestos que evidenciavam o
medo, somente quem tinha medo podia ver
ou escutar o dragão. Por isso quem acudira em
ajuda do monge não via o dragão. Seguramente
eles atuaram guiados por um sentimento de
compaixão, que para muitos – na linguagem da
época – evocava a imagem de uma igura santa
que irradiava luz. Na imaginação monástica,
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tanto os santos como os dragões se construíam
a partir dos fragmentos de textos e imagens
que se lhes mostravam aos novatos ao largo
de sua formação. Neste sentido, para adoptar
o termo da historiadora Mary Carruthers,
eram “produzidos pela imaginação” (1998, p.
187). Mas para os pensadores medievais, estes
produtos da imaginação não estavam dispostos
num âmbito distinto ao da “vida real”, eram
as formas externas da experiência humana
visceral e habitavam na fenda entre o céu e o
inferno[6].
O monge da história estava dividido entre ambos.
Expulsado do mosteiro pelo santo Benedito,
viu-se confrontado pelo demônio – em forma de
dragão – que o esperava lá fora. Resgatado ao
instante, retornou ao mosteiro. Deste modo, a
história segue um caminho de movimento, do
interior ao exterior e logo de volta ao interior.
Desde o começo nos é dito que a mente do
monge tendia a divagar. De fato, num giro
intrigante ao inal da história, Gregório conta
que durante todo esse tempo o monge tinha
seguido ao dragão sem vê-l o r eal ment e. É como
se tivesse estado sonâmbulo. Quando o monge
saiu, perdeu seu sentido de localização, como
quando se está num entorno desconhecido.
Foi um despertar duro. Entrou em pânico
quando o dragão apareceu diante de seus olhos
bloqueando seu caminho. Assim, a história
conclui dizendo que Benedito em realidade lhe
fez um favor ao monge ao expulsa-lo, pois isto
o levou a ver – e consequentemente a conhecer
– ao dragão que tinha seguido cegamente. Para
os escritores da tradição monástica, tal como é
ilustrado claramente nesta narrativa, conhecer
dependia de ver, e ambos transcorriam ao
longo de trajetórias de movimento. Para
entender isto temos que conceber a cognição,
tal como explicada por Carruthers, “em termos
de caminhos e vias” (1998, p.70). O pensador
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medieval era um caminhante que viajava em
sua mente de um lugar a outro, compondo seus
pensamentos à medida que avançava (INGOLD,
2007).
Sonho e realidade
Mais adiante retornarei ao tema de pensar como
percorrer um caminho. No entanto, me deixem
dar outro exemplo. Entre os Ojibwa caçadores
do norte do Canadá, se diz que existe um
pássaro cujo som, quando atravessa o céu, é
como o de um trovão. Poucos o viram, e quem o
viu lhe atribuiu poderes excepcionais de visões
reveladoras. Segundo o etnógrafo Alfred Irving
Hallowell, uma dessas pessoas era um menino de
doze anos aproximadamente. Hallowell conta
que durante uma grande tormenta, o menino
saiu de sua tenda e viu um pássaro estranho
sobre umas rochas. Voltou para a tenda para
chamar a seus pais e quando saíram o pássaro
já não estava. O menino estava seguro de que
era o pi nési , o pássaro trovão, mas os adultos
não estavam convencidos. O assunto concluiu
somente quando um homem que tinha sonhado
com o pássaro veriicou a descrição do menino
(HALLOWELL, 1960, p.32). Claramente o penési
não é um pássaro comum e corrente, assim como
o dragão não é um réptil ordinário. Como o som
do trovão mesmo, o pássaro trovão faz sentir
sua presença não como um objeto do mundo
natural, mas, num nível mais fundamental,
como um fenômeno da experiência (INGOLD,
2000). É a forma encarnada de um som que
reverbera através da atmosfera e constrange a
consciência de quem o escuta. Assim como os
irmãos do monge saíram e não viram nenhum
dragão, os pais do menino tampouco viram
nenhum penési . Mas como forma convencional
de uma sensação auditiva poderosa, também
lhes pareceria inteiramente familiar. O pássaro
trovão pode ser um produto da imaginação,
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mas é uma imaginação que tem saturado a
totalidade da experiência fenomênica.
O ilósofo Gaston Bachelard (1988) tem escrito
com eloquência sobre como o pássaro de nossos
sonhos, que habita o âmbito da imaginação
poética, não é uma coisa de carne e penas, mas
uma composição de ar e movimento na que o
sonhador mesmo se eleva e se transporta. O
pássaro, diz Bachelard, “é o olho dinâmico da
tormenta” (1988, p.77); seu corpo é o vento,
seu fôlego a tempestade, suas asas o céu.
Para que apareça na sua acostumada forma
de ave, o sonhador deve “escalar de retorno
ao dia” (1988, p.73), mas a aparição somente
pode ser momentânea, pois a mesma ascensão
faz com que esta se eclipse, à medida que
se restaura a fronteira cotidiana entre o ver
e o sonhar. Embora as fontes de Bachelard
provenham da literatura ocidental – os escritos
visionários de William Blake, em particular –,
o povo Ojibwa teria entendido de imediato o
argumento, junto com seu corolário, isto é,
que o pássaro de carne-e-penas não é mais
que uma manifestação do pássaro real do
sonho-tormenta, e não ao contrário, e que não
poderia existir sem este. Da mesma forma, o
aterrorizante dragão da história de Gregorio era
a forma do terror incandescente que envolvia
o sujeito que retornava à consciência ao
acordar. Por isto, não deveria nos surpreender
que no incidente relatado anteriormente, a
observação do menino tenha sido veriicada
por um sonho. Como o exprime Bachelard, a
direção da iliação “descende do espírito em
direção aos seres corporais” (1988, p. 71), o que
permite que os segundos sejam trazidos à vida
pelos primeiros. Se Bacon tivesse conhecido
este caso teria entrado em shock. Para nós, os
modernos, a direção da iliação é justamente a
contrária, da realidade das coisas viventes às
suas aparições mais o menos fantásticas. Por
isto é mais usual, e certamente mais aceitável,
demandar que os sonhos sejam veriicados por
meio da observação, e não ao contrário.
Uma instância bem conhecida é a da descoberta
por parte do químico Friedrich August Kekulé da
estrutura da molécula do benzeno, composta
por um anel de seis átomos de carbono.
Segundo a história contada pelo mesmo Kekulé,
claramente retrospectiva e talvez embelecida,
a descoberta ocorreu durante a noite de 1865
em Gante, a cidade belga. Essa noite icou até
tarde no seu escritório trabalhando num livro
de texto. Avançava pouco, assim que girou sua
cadeira em direção ao fogo e dormiu-se. No
seu sonho, observou átomos que brincavam e
pulavam diante de seus olhos, se retorcendo
e se enrolando com um movimento similar ao
de uma serpente. “Mas olhem! O que era isso?
Uma das serpentes tinha mordido sua própria
calda e a girava zombeteiramente diante de
meus olhos. Acordei como com o relâmpago de
um raio… Passei o resto da noite extraído as
conclusões da hipótese” (KEKULÉ apud BENFEY,
1958, p.22)[7].
Podemos estar seguros de que seja o que for
que Kekulé sentiu quando acordou, uma vez
que se extinguiu o lash que o tirou do sonho, a
serpente que se enrolava e retorcia deixou de
ser uma afetação de sua visão e se converteu
numa igura abstrata do pensamento – uma
serpente “boa para pensar” –, peculiarmente
apta para decifrar a estrutura de uma realidade
dada. Assim, a serpente e o anel de benzeno
caem inequivocamente em lados opostos de
uma divisão ontológica impermeável entre a
imaginação e a realidade. Isto é o que permite
que um deles ocupe metaforicamente o lugar
do outro. A congruência entre a serpente e o
anel reforça a divisão, antes que quebra-la.
Mesmo assim, a conjetura induzida pelo
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sonho não é mais do que uma quimera, até
que supere as provas empíricas. Kekulé lhe
fez a mesma advertência a sua audiência:
“Senhores, aprendamos a sonhar e então
talvez encontremos a verdade… Mas sejamos
precavidos e não publiquemos nossos sonhos
antes que o entendimento consciente os
veriique” (apud BENFEY, 1958, p. 22). De
fato, experimentos posteriores no laboratório
comprovaram que a hipótese de Kekulé era
basicamente correta e depois passaria a ser
uma das pedras angulares do emergente
campo da química orgânica. Não ocorreu o
mesmo com o sonho. Sob a luz do dia, o sonho
foi esquecido. Assim, a ciência lhe concede à
imaginação o poder da conjetura – de pensar
“fora do molde” –, mas só ao proscreve-la da
realidade mesma à que oferece suas ideias. Em
contrapartida, para os Ojibwa seria bem mais
ao contrário. Para eles, a verdade das coisas
não somente se encontra na experiência onírica
pessoal, também se comprova através desta.
Por isto o fato de ver o pi nési por parte de
uma criança pode ser corroborado pelo sonho
de um adulto. Nesta busca do conhecimento
através da experiência, os poderosos seres
mais-do-que-humanos que habitam o cosmos
dos Ojibwa, incluindo os pássaros trovão, não
são recursos analógicos, mas interlocutores
vitais. Este cosmos é poliglota, uma mistura de
vozes através das quais diferentes seres, em
seus próprios idiomas, anunciam sua presença,
se fazem sentir e produzem efeitos. Para viver
como um Ojibwa, devemos nos sintonizar com
essas vozes, escuta-las e responder-lhes.
Outra história do pássaro trovão narrada por
Hallowell – que, por sua vez, a escutou de um
informante – ilustra este ponto perfeitamente.
Em uma tarde tormentosa, o informante de
Hallowell, um homem velho, estava sentado na
tenda. Um trovão soou com força. De imediato
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o homem se virou em direção a sua mulher:
“Você ouviu o que ele disse?”, perguntou.
“Não”, respondeu ela, “não consegui”. Ao
comentar este intercâmbio, Hallowell enfatiza
que o homem “reagiu diante do som da mesma
forma em que o faria diante de um homem cujas
palavras não entendesse” (1960, p.34). Isto
não foi simplesmente uma falha na tradução.
O velho não entendeu a mensagem do pássaro
trovão não porque não dominava bem esse
idioma (HYMES, 1964). Hallowell observa que
[…] no geral os Ojibwa não estão pensando
em receber mensagens cada vez que há
uma tormenta. Acontece que este homem
em particular tinha conhecido o pássaro
trovão em sua juventude, através de
sonhos de jejum da puberdade, e tinha
desenvolvido uma estranha relação de
t ut ela com o pi nés. (1976, p. 459).
No contexto desta relação, escutar e responder
ao trovão não era um assunto de tradução, mas
de empatia, de estabelecer uma comunhão
de sentimento e afeto ou de um se abrir de
si mesmo ao ser do outro[8]. E esta abertura
ocorre, sobretudo no sonhar, onde se dissolvem
as fronteiras que cercam o eu na vigília.
Este se expor ao outro não era algo que um
cientíico sério como Kekulé teria podido
chegar a contemplar. Para ele, o caminho para
o conhecimento verdadeiro não consistia em
estabelecer um diálogo com seres de um mundo
mais-do-que-humano, mas numa leitura exata e
literal dos fatos. O mesmo Kekulé aconselhava
que o pesquisador que queira
[…] seguir o caminho dos exploradores
deve reparar cada pegada/rastro, cada
galho torto e dobrado, cada folha caída.
Depois, de pé no ponto mais distante ao
que tenham chegado seus predecessores,
lhe será fácil perceber o lugar onde o pé
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de um pioneiro posterior poderá encontrar
solo irme (citado em BENFEY, 1958,
p.23).
O propósito era, como o formulou Bacon,
escrever uma “visão verdadeira dos rastros
do criador” (1858, p.33), inscritas na obra de
sua criação. Tratava-se de tirar o ferrolho dos
segredos da natureza. Mas estes segredos não
se descobririam através da percepção sensorial
imediata ou do envolvimento afetivo, nem a
natureza os entregaria por vontade própria. Em
vez de deixar que criaturas distintas-às-humanas
falassem por si mesmas e escuta-las, o ilósofo
natural devia penetrar em seu funcionamento
oculto por meios próximos à tortura: “[…]
entortar-lhe a calda ao leão” (EAMON, 1944,
p.285) até que grite. Tal como Bacon o
escreveu e sua Novum or ganum (a segunda
parte de sua inconclusa A gr ande i nst aur ação),
“os segredos da natureza se revelam com mais
facilidade sob as vexações da arte quando
seguem seu próprio caminho” (1958, p.95).
Galileu opinava o mesmo. Dizia que a natureza
“não se importa se seus abstrusos métodos e
razões? de funcionamento são compreensíveis
para o ser humano” (GALILEI, 1957, p.183).
Para todo propósito prático, a natureza tinha
dado as costas à humanidade. Numa passagem
agora celebrada de seu livro O ensai ador , de
1623, Galileu comparou o universo natural
com um “grande livro” que, mesmo sendo
acessível a todos, não podia se ler sem um
conhecimento da linguagem e dos caracteres
em que estava escrito. Galileu argumentou
que essa linguagem eram as matemáticas e
que os caracteres eram “os triângulos, círculos
e outras iguras geométricas sem as quais é
humanamente impossível entender uma só
palavra” (GALILEI, 1957, p.237). Para Kekulé,
o anel sinuoso se converteu no equivalente dos
triângulos e círculos de Galileu: um signo do
pensamento racional.
Sobre palavras e obras
A ideia do livro do universo ou da natureza
tem uma antiguidade considerável, e era
tão corrente entre os estudiosos medievais,
como o seria depois com o surgimento da
ciência moderna. Peter Harrison, historiador
da religião, rastreia a origem desta ideia até
chegar a várias fontes eclesiásticas do século
XII, entre estas, ao ilósofo-teólogo parisiense
Hugo de São Vitor, que em seu De tribus diebus,
declarou que “a totalidade do mundo sensível
é como um livro escrito pelo dedo de Deus”
(citado por HARRISON, 1998, p.44). Em suas
raízes, a ideia se baseia numa homologia entre
a pal avr a de Deus (verbum Dei), tal como
aparecia na composição das escrituras, e a
obr a de Deus, isto é, a criação do mundo e
suas criaturas. A pergunta era: “Como podemos
os humanos ler estes livros gêmeos?” (BONO,
1995, p.11). Com isto, podemos voltar aos
monges medievais, para quem – como já tenho
observado – a prática meditativa da leitura
litúrgica era equivalente a percorrer o caminho.
Uma e outra vez comparavam seus textos
com um terreno que deviam atravessar como
caçadores seguindo uma pegada, um rastro, se
baseando nas coisas que encontravam, ou nos
eventos que presenciavam, sobre os caminhos
que percorriam. A palavra latina para este se
basear era tractare, da qual se deriva a palavra
t r at ado no sentido de uma composição escrita.
A medida que avançavam pelo caminho, os
personagens que encontravam, e cujas histórias
estavam plasmadas nas páginas, lhes falavam
com palavras de sabedoria e orientação, que
eles escutavam para aprender. Estas eram
conhecidas como as vozes pagi nar um , “as
vozes das páginas” (LECLERCQ, 1961, pp.19-20;
OLSON, 1994, pp. 184-185). De fato, a leitura em
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si mesma era uma prática vocal: nas bibliotecas
monásticas típicas se escutava o murmulho
constante dos monges, que pronunciavam
as vozes das páginas e se relacionavam com
estas como se estivessem presentes e fossem
audíveis (CAVALLO & CHARTIER, 1999).[9].
Ler, no sentido medieval original, era receber
o conselho dessas vozes, da mesma forma em
que o velho Ojibwa teria recebido o conselho
da voz de seu mentor, o pássaro trovão, se
tivesse captado o que lhe disse.[10]
Assim como o caçador tem a seu redor as vozes
da terra, o leitor medieval tinha a seu redor
as vozes das páginas e era seguidor de uma
tradição (t r adi t i o). Esta palavra, derivada do
lat im t r ader e, ent r egar , signiicava algo distinto
ao que costuma signiicar hoje em dia. Não era
de modo algum um corpo de ensinamentos
ou conhecimentos codiicados que passava
de geração em geração. Pelo contrário, esta
palavra se usava para denotar uma atividade ou
representação, graças a qual era possível – como
num relevo – continuar. As escrituras, antes que
dar-lhe conteúdo à tradição, estabeleciam os
caminhos sobre os quais este movimento era
factível. Cada caminho – cada história – levava
o leitor até certo ponto antes de entrega-lo ao
seguinte. O parecido da palavra latina t r ader e
com o termo inglês antigo t r ade (ofício), de
onde se deriva track (pista) é acidental; no
entanto, como sugerido pelo teólogo Peter
Candler (2006) num comentário aos escritos
de Tomás de Aquino, o chamado dos monges
tinha tanto de proissão (t r ade) como de ofício
( craft). Em sua pesquisa enciclopédica sobre os
animais nos mitos, lendas e na literatura, Boria
Sax assinala que “estudar uma tradição é seguir
a pista de uma criatura, como se fossemos um
caçador que retorna a tempo” (2001, p. X).
Cada criatura é sua história, sua tradição, e
segui-la é realizar um ato de relembrança e,
ARTIGOS
ao mesmo tempo, prosseguir, em continuidade
com os valores do passado.
Com frequência, o nome da criatura é, em si
mesmo, uma história condensada, de maneira
que somente ao pronunciá-lo a história se
desdobra. Mas também se estende nos chamados
ou vocalizações das criaturas mesmas – se
tem uma voz – assim como em sua presença
e atividade manifesta, visível[11]. Como um
nodo ou nó numa trança de imagens, histórias,
chamados, visões e observações, nenhum mais
“real” que os outros, toda criatura não é tanto
uma coisa vivente, e sim uma manifestação
de uma instância de certa forma de estar vivo
que, para a mente medieval, abria um caminho
à experiência de Deus. No século VII, Isidoro
de Sevilha escreveu que o mesmo ocorria
com as letras e imagens dos manuscritos, pois
lhes permitiam aos leitores escutar de novo e
memorizar as vozes dos que já não estavam
presentes (CARRUTHERS, 1990). Assim, o livro
da natureza, escrito pelo dedo de Deus, se
reletia na natureza do livro, lido pelo dedo
do homem – uma segunda natureza composta
não por obras, mas por palavras (CLINGERMAN,
2009).
Para Isidoro, a leitura devia se realizar em voz
baixa, mas não podia ser de todo silenciosa,
pois dependia dos gestos da garganta e da boca
(SAENGER, 1982). Os manuscritos da época
normalmente se copiavam em scripto continua,
isto é, sem espaços entre as palavras. Então, a
única forma de ler era em voz alta, seguindo
a linha das letras com os dedos enquanto se
murmurava com os lábios, como se seguiria uma
linha de notação musical, e permitindo que as
palavras emergissem ou “se desprendessem”
da ação mesma (CAVALLO, 1999)[12]. No
entanto, durante o século XII e começos do XIII,
aconteceu uma mudança gradual em direção a
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ARTIGOS
SONHANDO COM DRAGÕES: SOBRE A IMAGINAÇÃO DA VIDA REAL
uma leitura que se realizava unicamente com
os olhos, sem um acompanhamento da voz ou
dos gestos. Isto foi possível graças à divisão
da linha do texto em segmentos do tamanho
de uma palavra, cada um dos quais podia se
captar de uma só vez, graças aos espaços.
Isto removeu a necessidade de pronunciar
as palavras em voz alta ou de seguir a linha
com os dedos. O estudioso da Idade Medieval
e paleógrafo Paul Saenger (1982, 1999) tem
mostrado como, com esta leitura visual, se
silenciaram as vozes das páginas. Quando todos
liam em voz alta na biblioteca de um mosteiro,
a voz de cada um tampava o ruído das demais.
Mas quando se tenta ler em silêncio, o som
mais leve pode ser uma distração. Foi assim
como o silêncio chegou a reinar dentro dos
mosteiros. Mesmo assim, no mundo exterior
ao mosteiro, na sociedade laica, a leitura
oral seguiu predominando, incluso durante os
séculos XIV e XV. Como tem sido sinalado por
David Olson (1994), psicólogo da cognição, a
Reforma propagou a transição fundamental
nas formas de ler, pois se passou de ler ent r e
linhas a ler o que havia nest as, ou da busca
de revelações ou “epifanias” ao descobrimento
do verdadeiro signiicado guardado no texto,
disponível para todo aquele que tivesse a chave
necessária para extrai-lo.
A leitura do novo livro da natureza
No início do século XVI, Martim Lutero urgiu aos
leitores que abandonassem os sonhos e fantasias
que seus predecessores tinham encontrado,
escutando as vozes que eles creriam que lhes
falavam através das páginas dos manuscritos,
e traçou um limite entre os signiicados dados
das palavras e suas interpretações posteriores
(OLSON, 1994). Para os reformadores,
as escrituras não deviam se ler de forma
igurada ou alegórica, e sim como um registro
acreditado da verdade histórica (HARRISON,
1998). Este registro tampouco devia se alterar.
Deste modo, o livro que tinha permanecido
aberto nas mãos dos acadêmicos medievais ou
sobre suas escrivaninhas, permitindo releituras
e recontos intermináveis, e sempre receptivo
à inserção de glosas entre linhas ou em suas
margens, icou empacotado como um objeto
completo, encadernado entre cobertas,
e passou a repousar fechado na estante
(CANDLER, 2006). De maneira semelhante,
a natureza também passaria a ser observada
como um livro fechado: um livro escrito de
princípio a im, cujos segredos só podiam se
obter através de uma pesquisa rigorosa, em que
cada descoberta representava mais um avance,
do que uma revelação. Foi em este sentido que
Bacon insistiu na distinção absoluta entre os
sonhos da imaginação e os padrões do mundo.
A natureza também devia ser lida literalmente,
apelando unicamente a seus fatos. Embora se
assumisse que se descobriria que os intrincados
padrões e mecanismos eram obra de Deus e um
sinal de sua omnipotência, nunca se sugeriu
que poderiam se abrir a uma experiência da
revelação divina. Tampouco seria possível ver
a Deus no rosto da natureza, mas somente a
muda testemunha de sua inteligência e obra
(BONO, 1995). Tal como o sinala Harrison, para
Bacon e seus contemporâneos,
[…] a natureza já não é um texto
autobiográico no qual se encontram
referências diretas ao autor. Assemelha-se
mais a um tratado matemático, que não
tem signiicado como tal e tampouco fala
diretamente de seu autor, senão que a
partir dele se podem realizar inferências
sobre certas qualidades da persona que o
elaborou (1998, p.203).
Quero chamar a atenção especialmente sobre
dois corolários desta mudança nas formas
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de ler o mundo natural. O primeiro se refere
à leitura e ao conhecimento como ação
representativa. Tenho mostrado como para
os leitores medievais o signiicado se gerava
na atividade vocal-gestual de ler em voz
alt a ( r ead out ) (CAVALLO, 1999). Neste caso,
fazer e conhecer estavam tão unidos como o
mastigar e o digerir – uma analogia plasmada
explicitamente na caracterização do pensar
como ruminar. Ainda dizemos que ruminar
é mastigar um pouco mais as coisas – como
o gado mastiga o bolo alimentício – e digerir
seu signiicado (CARRUTHERS, 1990; HAMESSE,
1999; INGOLD, 2007). Adicionalmente, como
temos visto, as pessoas da Idade Média tinham
lido o livro da natureza da mesma forma,
mediante sua prática de percorrer o caminho.
Ao ler as vozes da natureza, do mundo maisdo-que-humano, as pessoas obtinham conselhos
e os seguiam ao percorrer o caminho de sua
experiência. Com uma sensibilidade sintonizada
graças a um compromisso perceptual íntimo
com seus redores, eles podiam dizer não
somente o que tinha sido, mas o que viria.
Assim, o conhecimento da natureza se forjava
no movimento, ao se deslocar neste. Este
conhecimento se gerava na ação, na medida
em que se formava através dos ires e vires dos
habitantes. Em resumo, a leitura como ação
representativa formava as palavras mesmas e o
mundo. Como o demostra o caso dos Ojibwa e
o pássaro trovão, numa forma de conhecimento
que se ativa – que transcorre – nas fronteiras
ent re o eu e o out ro, ou ent re a ment e e o
mundo; são provisórios e fundamentalmente
inseguros, em vez de estarem desenhados na
pedra.
Pelo contrário, na ciência construída sob o
espírito de Bacon, conhecer não é se unir ao
mundo na atividade, mas obter informação do
que ali está estabelecido. Cabe assinalar que a
ARTIGOS
analogia com a caça persistiu desde a leitura
do velho livro da natureza até a do novo. De
fato, o mesmo Bacon proporcionou uma das
elaborações mais detalhadas da metáfora da
caça, ao comparar seu método experimental
com a forma em que o caçador segue sua presa,
guiado pelos rastros e sinais (EAMON, 1994). A
reaparição da metáfora, mais de dois séculos
depois, no conselho de Kekulé, ao aspirante de
pesquisador cientíico para que “se detenha
em cada rastro, galho dobrado e folha caída”
( apud BENFEY 1958, p.23), é um sinal de sua
resiliência. Mesmo assim, a imagem do caçador
mudou sutilmente: já não se trata de um
farejador de rastros e pistas tradicionais, senão
que se converteu num explorador de territórios
selvagens sem mapear, um civilizador que
busca controlar esses territórios e as criaturas
que os habitam. Em resumo, em vez de avançar
por um terreno familiar que se desdobra
continuamente, no qual nem as palavras nem
as obras se repetem, o cientíico se propõe a
mapear uma terra incógnita já existente, isto
é, descobrir, através de um procedimento de
decodiicação ou decifração, o que já existe de
fat o e i n t ot o. Dado que o criador inscreveu
o livro da natureza na linguagem das coisas, a
tarefa do cientista – tanto para Bacon, como para
Galileu – era desinscrever ou, numa palavra,
“descrever” o que ali estava escrito[13]. Isto
é, obter conhecimento não ao ler em voz alta,
senão ao ler do texto. Como o assinala Candler,
isto implica uma mudança, pois se passa “de
uma história contada e representada com
todo o corpo, a um texto visto e interpretado”
(2006, p.10). E desde o momento em que se
deu essa mudança, o mundo deixou de oferecer
conselhos e se converteu bem mais num depósito
de dados que, em si mesmos, não ofereciam
nenhuma guia sobre o que devia ser feito com
isso. Os fatos são uma coisa, os valores, outra
muito distinta, e estes últimos provinham não
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ARTIGOS
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da natureza, mas da sociedade humana. Por
isto, dali em diante, a sabedoria icou relegada
a um segundo plano, depois da informação.
O segundo corolário nos leva de volta à ideia
de que na época medieval os animais e outros
seres do mundo mais-do-que-humano se
conheciam por suas tradições, como conjuntos
de histórias, imagens e observações. Rastrear
um animal no livro da natureza se assemelhava
a seguir a linha de um texto. Mas assim como a
introdução dos espaços entre as palavras dividiu
a linha em segmentos, da mesma forma – no
livro da natureza –, as criaturas começaram a
aparecer como entidades discretas, limitadas,
mais do que como linhas de um devir em
contínua expansão. Desta forma, a natureza
se tornou apta não para um projeto de
seguir pistas, senão para um de classiicação
(CLOUGH, 2013). As linhas se quebraram e
os objetos resultantes podiam se ordenar e
organizar, sobre a base das semelhanças ou
diferenças percebidas nos comportamentos de
uma taxonomia. Por primeira vez, era possível
falar dos blocos fundamentais da natureza, e
não de seu tecido e arquitetura. Em resumo, a
natureza se percebia composta por elementos,
antes que tecida a partir de linhas. E as criaturas
deste mundo natural já não se conheciam como
tradições senão como táxons. No entanto, as
entidades que se conheciam unicamente por
suas tradições, e para as quais não podia se
encontrar evidencia corroborativa nos fatos
da natureza, escoaram-se pelas fendas das
taxonomias. Nas taxonomias cientíicas não
há dragões ou pássaros trovão. Não se trata
simplesmente de que não exi st am no novo livro
da natureza, senão de que não podem exi st i r ,
pois sua constituição ligada a uma história está
fundamentalmente em desacordo com o projeto
de classiicação. Os dragões, junto com outros
seres que se assomam ou fazem sentir sua
presença nos caminhos do mundo, podem ser
narrados, mas não podem ser categorizados. E
tampouco podem ser localizados com precisão,
com num mapa cartográico. Tal como o
explica Michel de Certeau (1984), assim como
estes seres caíram pelas fendas da taxonomia,
também foram “deslocados para os cantos”
de uma cartograia cientíica que não tinha
acolhimento para os movimentos e itinerários
da vida. O mesmo ocorre com as experiências
do medo e os sons do trovão: tampouco podem
ser classiicados ou mapeados. Mas isso não faz
como que sej am menos reais para uma pessoa
assustada ou presa na tormenta.
Ciência e silêncio
Deste modo, parece que a medida que as
páginas perdiam a voz no começo da era
moderna, o livro da natureza também se
silenciava. Já não nos fala ou nos conta coisas.
E, no entanto, esta natureza supostamente
silenciosa pode ser, e com frequência o é, um
lugar ruidoso e ensurdecedor. Como o observa
o ilosofo Steven Vogel (2006), no mundo da
natureza abundam os gestos e movimentos,
que em boa medida se manifestam como sons:
pensemos no retumbar do trovão ou o uivo do
vento, no rachamento do gelo ou no rugido da
cachoeira, no ranger da folhagem ou nos trinos
dos pássaros. Adicionalmente, a fala humana
pode se entender num certo nível como um
gesto vocal, e pode se considerar que a voz
manifesta a presença humana, assim como o
trino manifesta a presença do pássaro e o trovão
a do relâmpago. Neste nível, a voz, o trino e
o trovão são equivalentes ontologicamente:
assim como a voz é o ser humano na sua
manifestação sonora, assim o trino é o pássaro
e o trovão é o relâmpago. Mas Vogel argumenta
que nada disto respalda a conclusão segundo
a qual, as entidades naturais conversam com
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SONHANDO COM DRAGÕES: SOBRE A IMAGINAÇÃO DA VIDA REAL
os seres humanos ou entre si. Isto por duas
rações fundamentais. Em primeiro lugar, a
conversação requer que os participantes se
escutem e respondam entre si, por turnos. Os
humanos escutam e respondem aos sons da
natureza: escutam os trinos dos pássaros e os
trovões os comovem ou ainda os aterrorizam.
Mas a natureza nos responde?, pregunta-se
Vogel: “As entidades falantes que escutamos e
com as que falamos na natureza nos dedicam
em algum momento sua atenção completa […]
involucram-se conosco, respondem a nossas
demandas/petições?” (2006, p.148). Vogel está
convencido de que a resposta é “não”. Vogel
sugere que os sons da natureza se parecem mais
às ordens de um monarca que não escuta a seus
sujeitos, mas os obriga a obedecer. Em segundo
lugar, uma conversação necessariamente é
sobre algo (VOGEL, 2006), permite que os
participantes comparem suas percepções sobre
o mundo na tarefa comum de entender como
é em realidade. Os interlocutores humanos
fazem isto, diferente dos pássaros, árvores,
rios, trovões e ventos. Não são interlocutores
irresponsáveis,
simplesmente
não
são
interlocutores (VOGEL, 2006).
Então, para Vogel, o silêncio da natureza
signiica que, por mais ruído que faça, esta não
participa nas conversações que temos sobre ela
mesma. Pode nos parecer como se a natureza
falasse, mas é uma ilusão. “Tenho escutado
com atenção e não ouço nada” diz Vogel
(2006, p,167). Lembremos o homem Ojibwa
e o pássaro trovão. Ele pensava que o trovão
lhe falava, mas não conseguia entender o que
dizia. Tratou-se de uma falha na tradução,
como Hallowell parece sugerir? Eu argumentei
que foi bem mais uma falha na empatia.
Mesmo assim, para Vogel, se o homem tivesse
compreendido o que dizia o trovão, não teria
conseguido traduzi-lo nem teria podido sentir
ARTIGOS
empatia. Bem mais, teria realizado um ato de
ventriloquia. Pois enquanto que o tradutor fala
pelo outro em sua própria língua, o ventríloquo
projeta suas próprias palavras no objeto mudo
criando a ilusão de que este fala por si mesmo
(VOGEL, 2006). Esta acusação de ventriloquia
é a base para o aborrecimento cientíico do
antropomorismo, onde se acusa a aqueles
que pretendem ter empatia com criaturas não
humanas ou pretendem saber o que sentem,
de projetar seus próprios pensamentos e
sentimentos
em
sujeitos
inconscientes.
No entanto, esta acusação continua tendo
detratores. Por exemplo, num debate realizado
nas páginas da revista Envi r onment al Val ues,
Nicole Klenk (2008) defendeu a posição
contrária. Esta airma que os não-humanos
podem e de f at o, respondem à voz, aos gestos
e à presença dos humanos em formas que são
signiicativas para ambas partes.
É verdade que talvez os não-humanos não
compartilham suas percepções do entorno com
os humanos num esforço colaborativo com o
propósito de estabelecer o que realmente há
“lá fora”. Mas Klenk argumenta que insistir em
que as conversações somente podem assumir
essa forma é ter uma visão tão estreita da
conversação que excluiria o que comumente
chamamos conversação no mundo humano.
Para quase todas as pessoas, a maior parte do
tempo, a conversação consiste em entender o
que outros nos contam, em “entender bem a
história”, não em veriicar sua autenticidade
(KLENK, 2008). Assim, os seres humanos que
assumem a tarefa de converter em palavras
o que a natureza diz são tradutores e não
ventríloquos. Para Klenk, isto é justamente
o que ocorre no trabalho cientíico. Se esse
não fosse o caso, conclui, as interpretações
cientíicas seriam meras icções criadas
através do diálogo entre humanos, antes que
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ARTIGOS
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o resultado de uma interação cuidadosa com (e
uma observação de) os componentes do mundo
natural. Para melhor dizer, erramos na medida
em que nos restrinjimos aos protocolos da
ciência normal. Porque a ciência pretende que
como prática do conhecimento especializado,
se busca veriicar a veracidade da história, e
não somente entende-la bem. Desde Bacon,
a ciência sempre tem insistido em descobrir a
verdade do que esta ali e, portanto, na estrita
separação dos fatos e interpretações. Ao ler o
que está nas linhas do livro da natureza, e não
aquilo que está ent r e est as, o único em que
os cientistas insistem é em que não fazem o
que Klenk assume que é sua prioridade numero
um: “[…] escutar as vozes dos seres com os
quais interatuam” (2008, p.334)[14] . De fato,
pode se dizer que os cientistas fazem todo o
possível por evi t ar escut ar, por t emor a que
isso comprometa ou interira com a atividade
de seus resultados.
Em consequência, na constituição moderna
existe um paralelo real entre o livro da natureza
e a natureza do livro, cada um entendido como
uma obra completa cujos conteúdos só podem
decifrar quem tenha as chaves para fazê-lo. O
paralelo se baseia na ideia de que ambos devem
ser lidos em silêncio: não na decorrência de
uma conversação cujos múltiplos participantes
se abrem uns aos outros e cujas histórias se
entretecem, senão como um registro dos
resultados que – ao se tornarem inertes e
impassíveis, em formas objetivas e objetivadas
– têm nos dado as costas, nos apresentando
somente aquilo que Mae-Wan Ho tem chamado
uma “superfície opaca, plana e gelada de
literalidade” (1991, p.348). Para a ciência os
fatos estão dados, estes abarcam os “dados”.
Mas o mundo não se dá de forma ostensível
à ciência como parte de um oferecimento ou
compromisso. Na ciência o que esta “dado” é
o que tem saído de circulação e tem se ixado
com uma espécie de resíduo, assolado do dar e
receber da vida. Esse resíduo – desenterrado,
feito amostra e puriicado – é o que se somete
posteriormente a um processo de análise, cujos
resultados inais aparecem nas páginas escritas
em forma de palavras, iguras e diagramas.
Assim, o conhecimento que se constitui desta
forma se cria como uma superposição ou
envolvência em relação com a exterioridade
do ser. Após termos silenciado o mundo,
encontramos o conhecimento no silêncio do
livro.
Conhecer sendo
O conceito mesmo de humano, em sua
encarnação moderna, exprime o dilema de
uma criatura que somente pode conhecer
o mundo, do qual é existencialmente uma
parte, quando se aparta deste. Mesmo assim,
na nossa experiência como habitantes, ao
nos movimentarmos através do mundo em
vez de deambular sobre sua superfície, nosso
conhecimento não se constrói como uma
acumulação externa, senão que cresce e se
desenvolve desde o interior mesmo de nosso
ser terreno. Crescemos no mundo à medida
que o mundo cresce em nós (INGOLD, 2011).
Talvez esta fundamentação do conhecimento
no ser esteja na base do tipo de sensibilidade
que poderíamos chamar de r el i gi osa. Então,
resulta ainda mais irônico que os líderes da
Reforma tenham feito campanha em nome da
religião para inverter a relação entre conhecer
e ser. Ao fazê-lo, contribuíram materialmente
ao nascimento da ciência empírica. Como o
observa Harrison (1998), embora a ênfase dos
reformadores na verdade ostensiva das palavras
e das obras provinha dos mais puros motivos
religiosos, sem querer puseram em marcha
um processo que eventualmente debilitaria a
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autoridade bíblica que tanto queriam promover.
Inevitavelmente, a mesma ciência que a religião
reformista desatou, terminou por supera-la,
pois em qualquer disputa sobre os fatos, a
ciência esta destinada a ganhar e a religião a
perder, o que deixa aberta a pergunta sobre
por que as pessoas – incluído muitos cientistas
– se aderem com tenacidade a representações
manifestamente falsas da realidade.
No entanto, as perguntas acerca de quem pode
representar melhor o mundo, se a religião ou a
ciência estão propostas de forma errada, pois a
disputa real encontra-se em outra parte. Gira
ao redor de determinar se nossas formas de
conhecimento e imaginação estão consagradas
num compromisso existencial em relação ao
mundo em que nos encontramos. Nos termos
de Candler (2006), é uma disputa entre a
“gramática da representação”, que nega esse
compromisso, e a “gramática da participação”
que depende deste último. O ilósofo Michel
Serres (1995) chama nossa atenção sobre a
origem da palavra r el i gi ão que, conforme com
uma interpretação atribuída a Cicero, viria do
lat im r el eger e, r el er , no sentido de ler que
temos identiicado com receber conselhos e ser
receptivo ao que os interlocutores textuais tem
para oferecer. Qual é seu oposto? É negl eger e:
não-l er . É não acolher os conselhos, desatender
ou apart ar esses ofereciment os, recusar os
compromissos que sua aceitação traia. Serres
conclui: “Quem carece de religião, não
deveria se chamar ateu ou não crente, senão
negligente” (1995, p. 48)[15]. Então, o oposto
da religião é a negligência. Mas se as releituras
ou recontos, que se realizam na gramática
representativa da participação, se refratam
através da lente deformante de uma gramática
cognitiva da representação que desatende ou
nega, a pr i or i , os compromissos mesmos dos que
depende a participação, então estão destinados
ARTIGOS
a ser descartados como um limiar de crenças
aparentemente irracionais em entidades tais
como os “espíritos” – e, por suposto, os dragões
–, que se de fato existissem, violariam princípios
óbvios da causalidade física ou biológica[16].
Esse foi justamente o destino de um dos dragões
mais célebres da literatura antropológica.
Filate, um homem velho da etnia dorze do sul
da Etiópia, desaiou a Dan Sperber (1985) a que
matasse esse dragão. Supostamente era um
dragão de ouro, com um coração de ouro e um
corno na nuca, e não morava muito longe. Para
o antropólogo racional – alheio à participação,
o compromisso e à paixão que o infunde ou,
em outras palavras, à fé – o desaio de Filate
evidenciava “certa crença representacional
de conteúdo semi-proposicional” (SPERBER,
1985, p.60), (o que quer dizer que o conteúdo
se entendia parcialmente e estava aberto a
múltiplas interpretações). Mas, tal como mostrou
John Morton numa resenha crítica, descartar
nesses termos a convicção “intimamente
sentida” de Filate sobre a existência do dragão
“claramente é exercer certo tipo de violência
sobre essa convicção, se desfazendo em
particular de suas qualidades afetivas”, pois
ao igual que o dragão que o monge encontrou
na história de São Benedito, a visão de Filate
era, na reavaliação de Morton, a forma externa
de seu “estado emocional interno” (1986,
pp.74-77). O dragão era um t opos no campo de
participação, não uma proposição a meio fazer
no campo da representação.
Como mostra este exemplo, as comparações
entre religião e ciência em termos da persistência
de
crenças
aparentemente
irracionais
constroem uma posição de negação dentro de
seus axiomas fundamentais – uma negação,
entre seus aderentes, ao fato de que em suas
deliberações conscientes, sejam cientíicas ou
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espirituais, o mundo lhes deve algo ou eles lhe
devem algo ao mundo. Em outras palavras, a
negligência tem se convertido na base para o
debate sobre a racionalidade das crenças sobre
o mundo. Mas se, pelo contrário, se admite que
nós lhe devemos nossa existência ao mundo,
e que o mundo nos deve sua existência ao
menos em parte, então bem mais deveríamos
nos perguntar: qual é a natureza dessas
dividas, desses compromissos? Serres formula a
seguinte pergunta: “Que devemos devolver aos
objetos de nossa ciência, dos quais tomamos
conhecimento?” (1995, p.38). Ou, para propor
a mesma pergunta de outra forma: como podem
nossas formas de conhecimento e imaginação
nos permitir ser, a nós e as criaturas que estão
ao nosso redor? Porque, certamente, é em
sua liberação ao ser onde se encontra a base
comum entre a religião e a ciência.
por onde outros têm passado antes, sempre
atentos e receptivos aos rangidos e murmulhos
de seu redor. Os cientistas, ao se unirem às
coisas durante os processos de formação, em
vez de simplesmente se informar a partir do
que já tem se dado, não só coletam, senão que
aceitam o que o mundo tem para lhes oferecer.
Eles podem, diferente dos protocolos oiciais,
ingir que não escutam as vozes dos seres que
estão ao seu redor, mas devem escutar, se
querem ir além da mera colheita de informação
e chegar a uma compreensão real. Gostem
ou não, eles também estão em dívida com o
mundo. E é nesta proissão mais humilde, mais
do que em atribuir-se a autoridade exclusiva de
representar uma realidade dada, que a pesquisa
cientíica converge com a sensibilidade religiosa
como uma forma de conhecer-sendo. Este é o
caminho da imaginação.
Aqui é onde, depois de tudo, Klenk poderia
estar certo. Toda ciência depende da
observação e a observação depende, por sua
vez, de uma associação íntima, na percepção e
na ação, entre o observador e aqueles aspectos
do mundo que são o foco de sua atenção
(INGOLD, 2011). Talvez a característica mais
impressionante da ciência moderna radica no
esforço que tem posto em negar ou apagar os
compromissos práticos, observacionais, dos
que depende. Sublinhar esses compromissos –
prestar atenção às praticas da ciência antes
que a suas prescrições formais – signiica
recuperar esses compromissos da ação e da
experiência que, não escritos e esquecidos,
têm caído por entre as fendas ou têm sido
deslocados em direção aos extremos das
conceitualizações cientíicas. Não esqueçamos
o conselho de August Kekulé, de seguir cada
rastro, galho e folha caída. Na prática, tanto
os cientistas como as pessoas de fé seguem
caminhos e, forçosamente, devem passar
É necessário deixar claro que seguir este caminho
não quer dizer atingir um acordo entre ciência e
religião, nem criar um espaço no qual a religião
possa lorescer junto da ciência num acordo
fácil, seus labores divididos claramente entre
os aspectos espirituais e materiais das coisas.
Nos debates contemporâneos sobre ciência e
religião, ao menos nas sociedades ocidentais, as
declarações que defendem uma união desse tipo
têm se tornado quase rotineiras, seja por parte
de cientistas que dizem abraçar a fé religiosa
ou de religiosos ansiosos de se mostrarem
amigáveis com a ciência. No entanto, estas
declarações invariavelmente tomam como
ponto de partida a mesma separação que eu
tenho tentado corrigir, entre a vida espiritual e
sua matriz material, ou entre a imaginação e a
realidade. Eu apelo justamente pelo contrário,
isto é, que se a ciência se pratica de forma
ética – com cuidado, atenção e compromisso, e
reconhecendo nossa dívida com o mundo, pelo
que ele tem a nos ensinar – então, a ciência
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é religião em ação. Ao invés, a religião, como
forma disciplinada, sistemática, mas aberta de
conhecer-sendo, deve ser no fundo uma prática
de ciência.
Adicionalmente, ali onde convergem a ciência
e a religião também se unem a antropologia
e a teologia. Esta conclusão assinala um
realinhamento entre ambas disciplinas. Tal
como o mostra Joel Robbins (2006), até agora
a maioria dos antropólogos tem considerado a
teologia de uma de duas formas. Ou bem como
uma ajuda para a autorrelexão e a crítica
disciplinaria, para esclarecer a forma na qual,
conceit os como cultura, natureza, agência e,
incluso, r el i gi ão, se ixam na tradição judaicocristã, ou bem tem tratado aos teólogos como
informant es e a seus escrit os como uma font e
mais de dados etnográicos sobre a cultura
cristã que os fundamenta. Nenhuma destas
perspectivas tem afetado a divisão entre
os dados (etnográicos) e a teoria (social) à
que segue obedecendo em grande medida a
antropologia contemporânea, ao se apegar
aos protocolos da ciência moderna. Robbins –
seguindo a Milbank (1990) – sugere que esta
divisão é o produto sobrante de uma teologia
vinda a menos. Mesmo assim, existe um
terceiro caminho. Consiste em nos virarmos
em direção aos outros pelo que eles têm a nos
ensinar sobre conhecer-no-mundo como forma
de compromisso, de ser e deixar ser, e em
encontrar uma base para a esperança. É neste
espírito que me distancio dos ensinamentos
do monacato medieval para proporcionar um
último exemplo do Norte circumpolar.
A bíblia e o território
O exemplo provém de um estudo recente de
Peter Loovers (2010) sobre o povo Teet’it Gwich,
que vive em e ao redor de Fort McPherson nos
territórios do noroeste do Canadá. O estudo
ARTIGOS
é excepcional dado que mistura um reconto
sensitivo das formas em que os gwich’in se
relacionam com seu entorno quando caçam,
fazem armadilhas e se descolam pela terra
e pela água, com uma história detalhada da
relação da etnia com a palavra escrita, em
particular com a tradução e recepção da bíblia
cristã. O arcediago Robert McDonald realizou o
enorme trabalho de tradução. McDonald nasceu
em 1829 de um pai escocês – empregado da
Hudson’s Bay Company – e uma mãe ojibwa,
e se educou na escola da missão anglicana
no assentamento do rio Vermelho. Passou
uma década trabalhando como sacerdote no
povo Ojibwa, antes de se embarcar em 1862
em uma missão para levar a fé anglicana aos
povos do distrito do rio Mackenzie. Durante
os anos seguintes, McDonald trabalhou
incansavelmente introduzindo os ensinamentos
cristãos nas comunidades nativas gwich’in e
muitos dos homens e mulheres que encontrou
em sua viagem se converteram em assessores
importantes para ajudar-lhe a traduzir os textos
litúrgicos a sua própria língua, que nesse então
se conhecia como tadukh. Para McDonald, a
tradução da bíblia ao t adukh foi uma empresa
que abarcou toda sua vida, e que inalmente
concluiu em 1898.
Embora a bíblia tadukh foi recebida
calorosamente pelos gwich’in, esta recepção
não foi exatamente a que McDonald esperava. A
diferença de seus rivais da missão católica, que
tinham uma atitude mais relaxada, McDonald
estava impregnado pelas tradições da igreja
reformada e acreditava que o texto da bíblia
devia ser lido literalmente, como o registro
inalterável de uma verdade singular que não
admitia negociações. No entanto, para seu
desassossego, muitos gwich’in, incluindo vários
de seus pupilos, começaram a ter sonhos e visões
onde as páginas da bíblia lhes falavam, dando-
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lhes instruções e revelando-lhes profecias.
Estas páginas falavam com as vozes de seus
maiores, das pessoas com as que McDonald
tinha trabalhado para transcrever o texto (e
cujas idiossincrasias dialectais particulares
lhe tinham incorporado) e ainda com a voz do
mesmo McDonald. Assim, para os gwich´in,
ler a bíblia era estabelecer uma conversação
com esses maiores, escutar suas vozes, receber
seus ensinamentos e aprender. Por sua parte,
McDonald estava muito incomodado e se
sentia na obrigação de denunciar as “falsas
profecias” dos gwich’in (citado em LOOVERS,
2010). Mesmo assim, a discordância entre
estas formas de leitura não se limitavam à
bíblia. Tem continuado aparecendo em outros
contextos, em particular na interpretação dos
tratados e acordos sobre terras elaborados com
os funcionários do governo canadense. Neste
caso a decepção foi para os gwich’in, que se
surpreenderam ao descobrir que os documentos
que eles suponham abertos a um diálogo
com aqueles cujas vozes continham, eram
considerados pelos funcionários como escritos
em pedra, silentes e inlexíveis (LOOVERS,
2010).
Loovers mostra que é possível encontrar
exatamente a mesma discordância nas formas
de ler o território. Para os colonizadores,
exploradores, cientistas e outros que têm
chegado ao território desde fora, com a missão
seja de civiliza-lo, desenvolve-lo, pesquisalo ou apreciar sua beleza natural, não há
dúvida de que o que está ali já está ixado, e
está esperando a ser descoberto, explicado e
possivelmente transformado pelas mentes e
mãos humanas. Para os gwich’in isto é muito
diferente. Para eles, ler o terreno é por atenção
às múltiplas pistas que revelam as atividades e
intenções de seus múltiplos habitantes humanos
e mais-do-que-humanos. Loovers nos diz que
estas pistas “incluem movimentos de animais,
rastros, novos acampamentos e cabanas,
marcas na terra e a madeira, as condições da
neve e o gelo no inverno, as margens dos rios
e os lugares onde têm ocorrido eventos” (2010,
p.300). Onde queira que vão, os gwich’in estão
escutando, lembrando, aprendendo, recebendo
conselhos do território. É seu professor e não
somente um repositório do que podem extrair
materiais para a construção do conhecimento
proposicional. Assim, o território lhes fala aos
gwich’in com muitas vozes, justamente como o
faz a bíblia.
Devemos nos alinhar com o arcediago McDonald
e concluir que essa forma de ler o território é
igualmente falsa, ou que se apoia no tipo de
ilusões pelas quais os indígenas, primitivos para
o olhar colonial de Ocidente, supostamente
sempre têm tendido? Ainda McDonald, criado
com os Ojibwa, teria sabido que o conhecimento
indígena é mais do que isso. E nós, à luz do
que tenho argumentado neste artigo, também
o sabemos. Tenho mostrado como os estudos do
monacato medieval e das ontologias indígenas
mostram formas alternativas de ler e escrever,
que poderiam nos permitir voltar a escutar os
conselhos tanto das vozes das páginas como do
mundo a nosso redor, escutar e nos deixar guiar
pelo que nos dizem, e assim curar a ruptura
entre o mundo e nossa imaginação sobre este.
Esta cura deve ser um primeiro passo para
estabelecer uma forma de vida mais aberta e
sustentável.
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Recebido em: 15/10/2017
Aceito em: 15/11/2017
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*Versão original: INGOLD, T. Dreaming with dragons: On the
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online: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/14679655.12062/full Nossos mais sinceros agradecimentos a Tim
Ingold e ao Journal of the Royal Anthropological Institute
(Wiley) pela gentileza e generosidade que izeram possível
esta tradução e publicação
[3]The great instauration: the plan of work e de Novum
Organum, obtiveram-se do volume IV da tradução padrão de
James Spedding, Robert Leslie Ellis e Douglas Denon Heath
(Bacon, 1858). Disponível online: http://www.constitution.
org/bacon/instauration.htm e http://www.constitution.
org/bacon/nov_org.htm .
[4] Aqui desenvolvo um argumento inicialmente rascunhado
em Ingold (1997, p. 238).
[5] Caberia acrescentar a esta lista o dragão de Komodo, a
maior espécie de lagarto do mundo, que habita as ilhas do
sudeste da Indonésia. Embora raros, estes animais são muito
perigosos e os ataques a humanos tem se incrementado
durante os últimos anos.
[6]Uma aproximação completa e equilibrada à cosmologia e
práticas medievais seria muito mais extensa. Os estudos ao
respeito são muito amplos e desaiam qualquer tentativa de
resumi-los. Carruthers (1990, 1998) é uma excelente guia à
literatura mais importante. Inspirei-me ao ler uma seleção
claramente pequena desta literatura, e meu propósito neste
momento não é proporcionar uma resenha ou compendio,
mas somente mostrar como algumas ideias que emergem
desta nos ajudam a pensar os temas que giram entorno da
imaginação e a vida real.
[7] A citação provem de uma tradução da narração de Kekulé
realizada por Otto Theodore Benfey (1958). Ver também
Roberts (1989).
[8]Com base no exemplo de Hallowell, tenho discutido a
distinção entre tradução e empatia mais amplamente
em outro lugar (INGOLD, 2000). Para uma exploração da
importância da empatia nas relações de tutela/ tutoria ver
GIESER (2008).
[9] Por suposto, havia exceções (PARKES, 1999), mas
justamente em relação com a norma. Por exemplo, quando
Agostinho chegou a Milão no século IV se assombrou ao
perceber que Ambrósio, o então bispo católico da cidade,
lia sem fazer ruído. Embora seus olhos seguissem o texto,
“sua voz e língua estavam em silencio”. Agostinho não
soube explicar por que, mas especulou que poderia ser
para preservar sua voz para falar em público (AGUSTINE,
1991). No entanto, incluso, Ambrósio escreveu sobre o sonus
l i t t er ar um , “o som das letras” (PAKES, 1992, p. 116, nota
de rodapé 6). Para uma discussão mais ampla deste e outros
exemplos ver INGOLD (2007).
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[10] Sobre o sentido medieval inicial da leitura entendida
como receber conselho ver HOWE (1992).
[11] Tenho discutido em outras partes a forma em que os
nomes e os sons dos animais representam suas próprias
histórias (INGOLD, 2011).
[12] Para uma discussão das histórias paralelas da escrita
e da notação musical, e da leitura e do canto, ver INGOLD
(2007).
[13] Sobre Bacon e a “nova hermenêutica de-in-scriptiva da
natureza” ver BONO (1995).
[14] Os defensores da ciência goetheana são a exceção,
pois para eles se involucrar no estudo cientíico é “entrar
numa conversação com a natureza [e] escutar o que a
natureza tem a dizer” (HOLDREGE, 2005, pp. 31-32). No
entanto, o desdém com o qual a corrente principal trata a
esta perspectiva revela suas prioridades.
[15] Desde faz muito, a etimologia certa de r el i gi ão tem sido
um assunto de disputa. O escritor cristão Lactantius desaiou
no século IV a interpretação de Cicero, ao considerar que
r el i gar e é um composto de r e (voltar a) e l i gar e (unir, ligar,
conectar). Então, a religião seria um religar, mais do que
um reler. Esta ideia teve eco em Agustinho e em muitos
estudiosos posteriores. Mesmo assim, como para Serres
a negligencia se refere tanto a renegar os vínculos que
unem como o falhar em receber conselhos, o argumento se
mantem, independentemente da etimologia que se preira.
[16] Existe uma literatura crescente dedicada à pregunta
de por que a imaginação humana tende a idear e acreditar
em entidades deste tipo. Ver, por exemplo, BOYER (2000).
Desde a perspectiva que temos defendido, esta literatura,
ao tratar a religião como um domínio da ilusão cognitiva, se
equivoca por completo.
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