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Pregando aos doentes do corpo e da alma: o Sermão do Mandato do Padre Antônio Vieira (Lisboa, 1643)

Analisamos o Sermão do Mandato, proferido pelo padre jesuíta Antônio Vieira aos enfermos do Hospital Real de Lisboa, no ano de 1643, destacando a percepção que o pregador apresenta sobre as doenças do corpo e da alma. No século XVII, leigos e religiosos acreditavam que as moléstias do corpo eram reflexos da enfermidade da alma, as quais só poderiam ser curadas pela intervenção do amor divino. Essa foi, possivelmente, uma das principais motivações para que Vieira pregasse seu primeiro Sermão do Mandato no principal hospital da capital portuguesa. As reflexões que o sermão deveria provocar e os remédios recomendados pelo jesuíta aos enfermos não deixavam de ser práticas de cura socialmente aceitas, na medida em que havia um pretenso fim terapêutico no atendimento espiritual que os religiosos realizavam em hospitais.

PREGANDO AOS DOENTES DO CORPO E DA ALMA: O SERMÃO DO MANDATO DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA (LISBOA, 1643) Eliane Cristina Deckmann Fleck* * Doutora em História pela PUCRS (Porto Alegre, RS, Brasil), Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS (São Leopoldo, RS), pesquisadora do CNPq (PQ 2) e integrante dos Grupos de Pesquisa-CNPq “Jesuítas nas Américas” e “Imagens da Morte: a morte e o morrer no mundo ibero-americano”. E-mail: ecdfleck@terra.com.br UNISINOS, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil Resumo: Nesta comunicação, analisamos o Sermão do Mandato, proferido pelo padre jesuíta Antônio Vieira aos enfermos do Hospital Real de Lisboa, no ano de 1643, destacando a percepção que o pregador apresenta sobre as doenças do corpo e da alma. No século XVII, leigos e religiosos acreditavam que as moléstias do corpo eram reflexos da enfermidade da alma, as quais só poderiam ser curadas pela intervenção do amor divino. Essa foi, possivelmente, uma das principais motivações para que Vieira pregasse seu primeiro Sermão do Mandato no principal hospital da capital portuguesa. As reflexões que o sermão deveria provocar e os remédios recomendados pelo jesuíta aos enfermos não deixavam de ser práticas de cura socialmente aceitas, na medida em que havia um pretenso fim terapêutico no atendimento espiritual que os religiosos realizavam em hospitais. Palavras-Chave: Antônio Vieira SJ; Sermão do Mandato; Doenças do Corpo e da Alma; Práticas Curativas; Amor Divino. Abstract: In this communication, we analyze the Sermão do Mandato, delivered by Jesuit priest Antônio Vieira to the diseased of the Hospital Real de Lisboa, in the year 1643, highlighting the perception the preacher presents about the illnesses of the body and soul. In the 17th century, laymen and religious men believed the sicknesses of the body were reflections of the infirmity of the soul, which could only be healed by the intervention of divine love. That was, possibly, one of the main motivations for Vieira to preach his first Sermão do Mandato in the Portuguese capital's main hospital. The reflections the sermon should provoke and the remedies recommended by the jesuit to the sick were socially accepted healing practices, insofar as there was a supposed therapeutic end to the spiritual service the religious men performed in hospitals. Keywords: Antônio Vieira SJ; Sermão do Mandato; Illnesses of the Body and Soul; Healing Practices; Divine Love À guisa de introdução O padre jesuíta Antônio Vieira (1608-1697) viveu boa parte de sua vida no Brasil, foi orador de grande prestígio, confessor, diplomata e “superior de missão catequética” (Hansen 2003: 15). Como um homem “do poder real”, Vieira foi, “antes de tudo”, um “defensor da Coroa” e da “nação portuguesa”, influenciando até mesmo decisões régias. De grande capacidade retórica, foi um grande e eloquente orador, defensor do catolicismo e pregador de muitos sermões (Vainfas 2011: 25; Cesar 2001: 06-07). Encontrando-se bastante próximo do rei D. João IV desde seu retorno a Portugal em 1641, Vieira não se limitou a oficiar missas na Capela Real, dedicando-se também ao consolo dos enfermos do Hospital Real, mantido pela Coroa. Destino de muitos dos doentes, famintos e empobrecidos da Lisboa seiscentista, mas também de fidalgos, lavradores, comerciantes e burgueses, o Hospital Real oferecia, ainda, tratamento e consolo aos enfermos de doenças como a lepra e a sífilis. No século XVII, leigos e religiosos acreditavam que as moléstias do corpo eram reflexos da enfermidade da alma, as quais só poderiam ser curadas pela intervenção do amor divino. Essa foi, possivelmente, uma das principais motivações de Vieira para a pregação do seu primeiro Sermão do Mandato, em 1643, no principal hospital da capital portuguesa. Apesar do discurso religioso, sustentado em passagens bíblicas e em autoridades da Igreja, Vieira parece se inspirar em procedimentos terapêuticos próprios da teoria médica hipocrático-galênica, na medida em que propõe o restabelecimento da saúde, através da ação de agentes contrários à causa da enfermidade, como se pode constatar nas doenças de amor, cuja cura residia em remédios como o tempo, a ausência, a ingratidão e a “melhora do objeto”. Ao longo do sermão, encontramos diversas expressões que evidenciam o ambiente, tais como ferido (a), tristeza, dor, chagas, enfermidades e aflição, e o público ao qual se destinava a pregação: “não é muito que viesse a parar em um hospital”, “a enfermidade vos trouxe a este lugar”, “tão enfermo que a vossa mesma ciência vos promete poucas horas de vida”, e, ainda, “Vos, Enfermo divino, que estais nos últimos transes da vida” (Vieira 2011 [1643]: 09; 73). Vieira e o Sermão sobre os remédios de amor e o amor sem remédio Dentre os inúmeros sermões que o padre jesuíta Antônio Vieira escreveu no século XVII, um deles – o Sermão do Mandato, de 1643, foi proferido aos doentes do Hospital Real de Lisboa. Este hospital era também conhecido como Hospital Real de Todos os Santos, tendo sido construído entre os anos de 1492 e 1504, por iniciativa do rei D. João II “a fim de substituir os 43 albergues e hospitais que antes juncavam a cidade”, surgindo “para responder a problemas da época, em nome de uma (...) vontade de controle e organização (...) dos pobres e da pobreza”. O hospital funcionou até o século XVIII, pois nos anos 1750 foi consumido por um incêndio e também pelo terremoto. (Ramos 1993: 336) Especialmente no século XVI, os sermões assumiram uma importância crucial para os objetivos contrarreformistas da Igreja Católica, não apenas para divulgação da fé, mas para a conversão e para o convencimento de indivíduos à “mudança de hábitos” pela “força da palavra” (Massimi 2005: 13). Importante, no entanto, destacar – tal como analisou Sonia de Mancera para o contexto da evangelização na Nova Espanha – que entre o teólogo tridentino [e também pós-tridentino] que pensava e o povo ignorante e analfabeto que devia viver como cristão, havia um abismo mental, emocional e vivencial (Mancera 1994: 27). Evidentemente, o sermão não era pregado apenas para analfabetos e a recepção de suas mensagens não se dava exclusivamente através da leitura, pois era através da audição dos sermões pregados nas igrejas que a mensagem cristã alcançava e instruía as almas. Em relação, especificamente, aos sermões do mandato, era prática comum no século XVII que religiosos escrevessem sobre o “mandamento do amor” e sobre o significado do amor de Cristo que morreu, justamente, por ter amado muitíssimo aos homens. Entre os anos de 1643 e 1670, o padre Vieira escreveu seis sermões sobre a perfeição do amor de Cristo e sobre a imperfeição do amor humano, sendo os cinco primeiros proferidos em Portugal e o último na Itália. Apesar de não terem sido destinados ao mesmo público, todos se caracterizam pela erudição e pelo emprego de complexos jogos de palavras, visando a persuadir e a convencer os ouvintes (Lima 2002: 200-202). No sermão de 1643, Vieira se refere ao amor como uma doença incurável e recomenda o emprego de “remédios” – tempo, ausência, ingratidão e “melhorar[sic]do objeto” – para a cura dos enfermos de amor (Lima 2002: 202), detendo-se na explicitação da eficácia de cada um deles para a eliminação desse sentimento das almas pecadoras. O termo “remédios” foi muito empregado na Europa moderna, especialmente, na literatura religiosa, para se referir não apenas à cura dos corpos, mas também à cura dos males que afligiam os sentimentos, as relações sociais e, principalmente, a alma dos indivíduos. Eram comuns, portanto, as recomendações de “remédios” para eliminação de pecados, “remédios” para maus casamentos, “remédios” para salvação das almas, “remédios” para os males da alma, dentre os quais, já tivemos a oportunidade de analisar em outros textos. É importante, no entanto, ressaltar que, embora Vieira estabeleça uma relação entre cura e enfermidade e que recomende “remédios” para sentimentos humanos, anunciando, em grande medida, seus conhecimentos sobre a medicina da alma, não é possível identificar neste sermão qualquer indício de que tivesse um conhecimento médico ou farmacêutico. Ao escrevê-lo, Vieira agregava uma experiência de praticamente dez anos de púlpito, se consideramos o ano de sua ordenação sacerdotal, ocorrida em 10 de dezembro de 1634, e, ainda, a adquirida como professor de Retórica no Colégio de Olinda (Castro; Mendes 2007: 14), aspectos que apontam para a necessidade de relativizarmos a importância dada ao contexto político e às experiências vividas pelo jesuíta exclusivamente no ano de 1643. Aos ouvintes deste sermão – em sua maioria, pobres e doentes internados no hospital – e aos seus potenciais leitores – nobres e letrados portugueses – Vieira apresentava a sua interpretação do amor, um sentimento a ser cultivado, alimentado e fortalecido pelos homens, a partir da moral cristã. Empenhado em convencê-los sobre a eficácia dos “remédios de amor”, o jesuíta recorreu a palavras como “padecimento”, “sofrimento”, “chagas”, “enfermidades” e “dores”, o que parece apontar para a preocupação do pregador em adequar o sermão ao local e ao público a que se destinava. Pregando aos doentes do Hospital Real de Lisboa Ao longo do século XVI e XVII, Lisboa não apenas apresentou expressivo crescimento demográfico – motivado, em grande medida, pelo lucrativo comércio ultramarino –, como se viu assolada por epidemias como o tifo, a difteria, a peste bubônica, a febre tifóide e a malária (febre terçã). Situação que seria agravada pela escassez de alimentos e pela alta dos preços, especialmente, a partir do declínio dos lucros advindos da produção açucareira no Brasil, no período imediatamente após a Restauração, em 1640 (Rodrigues 2007: 47). Destino de muitos dos doentes, famintos e empobrecidos da Lisboa seiscentista, mas também de fidalgos, lavradores, comerciantes e burgueses – o Hospital Real oferecia tratamento e consolo diante da iminência da morte. O Hospital abrigava enfermos dos mais diversos grupos sociais, funcionando também como instituição beneficente encarregada de auxiliar “pedintes andantes” e peregrinos e, ainda, de acolher e cuidar de crianças expostas (Ramos 1993: 339). Se o restabelecimento da saúde física poderia resultar da intervenção de médicos, cirurgiões, boticários e sangradores, a cura, segundo o imaginário da época, se dava pela “força da oração”, à qual “se atribuía uma eficácia maior do que aos cuidados clínicos”. Vale lembrar que neste período atribuía-se à palavra um inegável caráter terapêutico, tanto que pregadores como Vieira podiam ser enquadrados na categoria de “médicos da alma” (Massimi 2009). Massimi, Marina (2009). “Antônio Vieira e a medicina da alma. Fundamentos teóricos e aplicações na obra sermonística”; In. Anais do III Seminário Internacional Farias Brito, 2009. Disponível em <http://iiiseminariofariasbrito.blogspot.com.br/2009/08/antonio-vieira-e-medicina-da-alma.html.> Acesso em 10/06/2013 No Hospital Real, as salas dos doentes e a capela que nele funcionava formavam arquitetonicamente o modelo de uma cruz, o que tornava possível a assistência dos ofícios religiosos pelos pacientes que se encontravam nas enfermarias (Ramos 1993: 338-346). A atuação de religiosos como auxiliares no atendimento dos doentes era também favorecida pelo escasso corpo clínico do Hospital Real, formado por dois físicos, três cirurgiões, três enfermeiros e cinco enfermeiras (Rodrigues 2007: 78), que atendiam mais de seiscentos pacientes internados na primeira década do século XVII. Mesmo que fossem poucos, o Hospital Real concentrava, desde seu surgimento, os “práticos da medicina disponíveis”, para os quais a Realeza facultava “bons salários” (Ramos 1993: 337). Entre os anos 1616 e 1617, o hospital registrou a entrada de cerca de três mil doentes, dos quais mais de seiscentos faleceram e mais de 250 permaneceram internados. O hospital possuía, também, enfermarias específicas para os enfermos de doenças infecto-contagiosas, como a lepra e a sífilis bem como um espaço diferenciado para o tratamento dos nobres. Vale lembrar que no início da época moderna, as viagens marítimas fizeram com que a sífilis proliferasse em Portugal. Alarmados, alguns médicos escreveram sobre a doença, como Ruy Diaz d’Ysla, autor do Tractado contra o mal serpentino (1539), que “teve a seu cargo a enfermaria de doenças contagiosas do Hospital Real de Todos-os-Santos” (Rodrigues 2007: 76-77). Este hospital, certamente, recebia donativos da Coroa para a manutenção de sua botica, assim como o Mosteiro de Santa Clara, de Coimbra, que recebia especiarias e açúcar para a preparação de fórmulas terapêuticas (Leal; Ferreira 2007). Sabe-se, também, que o hospital contou, desde o século XVI, com a provedoria de capelães do rei e cavaleiros da casa real, bem como, com servidores e criados escolhidos entre aqueles que serviam à família real, pois era “dever das pessoas de qualidade que assim mostravam a sua dedicação à instituição em causa” (Ramos 1993: 345-348). Por seu apoio à Casa de Bragança durante a Restauração, em 1640, a Companhia de Jesus passou a desfrutar de grande prestígio junto à Coroa portuguesa. Em 1641, ao receber o padre Antônio Vieira em Lisboa, D. João IV impressionou-se com sua inteligência e com sua habilidade retórica, o que o levou a buscar, de imediato, uma maior aproximação com o jesuíta. A idade aproximada – o rei era apenas quatro anos mais velho que Vieira, que contava, então, com apenas 33 anos – pode ter sido outro elemento que os aproximou (Azevedo 2008: 71; Pécora, 1994: 225). Um ano depois, em 1642, Vieira realizaria, pela primeira vez, um sermão na Capela Real (Azevedo 2008: 78). Neste sermão que dirigiu aos enfermos do Hospital Real, em 1643, Vieira procurou aproximar a noção de doença à de amor, afirmando que somente o amor divino era aquele capaz de oferecer o “remédio infalível da redenção” (Bosi 2011: 04). Procurou, ainda, enfatizar a noção de brevidade da vida, os “tão poucos dias” de vida humana – se comparados à eternidade da alma – de modo que seus ouvintes/leitores fizessem da necessidade de amar a Cristo um perseverante exercício nos passageiros dias de vida terrena (Vieira 2011 [1643]: 71). A percepção de que os homens estavam doentes de amor, mas de um amor facilmente curável, mediante a administração dos seus contrários, remete à teoria médica hipocrático-galênica vigente no período, que estabelecia o tratamento das doenças através de agentes contrários aos seus causadores. Esta teoria, também chamada de “teoria humoralista”, considerava que o ser humano era constituído por quatro humores fundamentais, que seriam a biles preta (melancolia), a biles amarela (cólera), a fleuma e o sangue, sendo fonte de inspiração para Vieira. Se quatro eram os humores, não por acaso também eram quatro os remédios apresentados por Antônio Vieira para a “doença amor”. Há, ainda, outra correspondência que pode ser feita entre a teoria humoralista e o Sermão do Mandato do padre Vieira: na teoria hipocrático-galênica, o excesso de água correspondia ao humor fleumático e o excesso de sangue ao humor sanguíneo (Massimi 2009); Massimi, Marina (2009). “Antônio Vieira e a medicina da alma. Fundamentos teóricos e aplicações na obra sermonística”; In. Anais do III Seminário Internacional Farias Brito, 2009. Disponível em <http://iiiseminariofariasbrito.blogspot.com.br/2009/08/antonio-vieira-e-medicina-da-alma.html.> Acesso em 10/06/2013 no sermão, Vieira estabelece uma relação entre a água e o sangue para expressar a ingratidão humana que teria levado Jesus à morte: “a mesma água e o mesmo sangue lhe chegassem ao coração, e se conservassem nele até a morte” (Vieira 2011 [1643]: 51). Paulo Carvalho da Silva se deteve nas referências que Vieira faz o sistema hipocrático-galênico, quando prega sobre os remédios que deveriam ser empregados para combater a tristeza, um estado associado à melancolia: “os chamados fleumáticos, de qualidade fria e úmida, seriam naturalmente preguiçosos e insensíveis; os sanguíneos, de corpo quente e úmido, seriam serenos e tranquilos; os coléricos, quentes e secos, mostrar-se-iam destemidos e irascíveis; já os melancólicos, frios e secos, apresentariam um comportamento marcado pela tristeza e temor” (Silva 2006: 536). Influenciado por essa teoria médica, Vieira afirmava que “os remédios do amor, são os contrários do amor, seus motivos de cura” e que “a natureza e a arte curam contrários com contrários” (Vieira 2011 [1643]: 43; 71). Se para os cristãos, as doenças eram interpretadas como castigo ou provação divina, exigindo reparação e demonstrações de fé, os contrários pareciam ser “remédios” bastante eficientes para a cura das doenças da alma, tal como a alegria para curar a tristeza, a fé para curar a dúvida, o perdão para curar a ofensa e o amor para curar o ódio. Ao apresentar Cristo como um enfermo, como alguém fragilizado por uma enfermidade da alma causada pelo amor, Vieira, mais do que promover uma possível identificação, pretendia proporcionar consolo aos enfermos que o ouviam pregar no hospital. Num tempo em que a assepsia era desconhecida, em que doenças, caso não fossem tratadas adequadamente, se alastravam com facilidade (Leal; Ferreira 2007: 97), o sermão vieirino difundia a ideia de que o amor de Cristo – por ser incurável – era contagioso e a razão de todas as doenças. Por outro lado, ao anunciar que a cura podia se dar através de “remédios” como o tempo, ausência, ingratidão e “melhorar [sic] do objeto”, Vieira estava, também, oferecendo consolo e esperança àqueles que padeciam de doenças do corpo e se encontravam internados no hospital. Os quatro “remédios” destacados por Vieira têm relação também com a chamada Medicina da Alma, que na época moderna, buscou controlar os diversos distúrbios humanos emocionais e sensitivos, definidos como paixões. Consolidada pelo médico grego Hipócrates, pelo médico romano Galeno e pelos filósofos Cícero e Sêneca, firmada na Europa, ao longo da Idade Média, e ampliada na Renascença, a Medicina da Alma baseava-se “numa analogia entre a alma e o corpo”, pressupondo “a existência de ‘enfermidades da alma’”, ou seja, admitia “a especificidade da patologia psicológica, ao mesmo tempo em que a dimensão psicológica era tida como intermediária entre a orgânica e a espiritual” (Massimi 2009). Massimi, Marina (2009). “Antônio Vieira e a medicina da alma. Fundamentos teóricos e aplicações na obra sermonística”; In. Anais do III Seminário Internacional Farias Brito, 2009. Disponível em <http://iiiseminariofariasbrito.blogspot.com.br/2009/08/antonio-vieira-e-medicina-da-alma.html.> Acesso em 10/06/2013 Em um período em que era muito comum o reconhecimento social – e médico – dos transtornos causados por “doenças da alma”, todas elas com efeitos negativos para o corpo humano, bem como as reflexões sobre possíveis tratamentos, cuidados e agentes de cura, o engenhoso Vieira propunha o oposto: a doença que todos deviam possuir e evitar sua cura, a doença de efeitos saudáveis era a doença do amor. Se os sofrimentos do amor eram passageiros, provisórias eram as aflições do corpo, pois tão logo houvesse reconhecimento da culpa e arrependimento dos pecados, os enfermos conheceriam a salvação da sua alma eternamente. Para tanto – sob a perspectiva da conversão – bastava seguir as recomendações e o exemplo de Cristo que, com alegria, sofreu em vida por amor aos homens e a Deus (Bosi 2011: 04). Concomitantemente às teorias médicas que divulgavam estudos sobre o corpo e sobre o espírito e propunham procedimentos terapêuticos de cura, circulavam também pela Europa muitos escritos sobre o amor. Muitos deles vinculavam o amor ao prazer sexual, a uma forma de amor ilícito, que resultava do excesso de luxúria que, ao ser encarado como enfermidade, implicava na proposição de formas de cura. A chamada “febre amorosa” poderia apresentar inúmeros sintomas como “batimentos do coração, inchamento do rosto, apetites depravados, tristeza, suspiros, lágrimas sem motivo, fome insaciável, sede raivosa (...) epilepsia, raivas, furores uterinos”, que não seriam curados a não ser pelos “remédios do amor.” Nesta perspectiva, o amor era percebido tanto como causa, quanto como remédio, cabendo ao “enfermo de amor” a busca pela cura junto ao “médico sacerdote”, que lhe receitaria os sete melhores remédios, os sacramentos (Priore 2001: 104-105). Na apresentação e justificativa do sermão, Vieira destaca a impossibilidade de mostrar a morte de Jesus por “amor”, por um “amor sem remédio”, sem antes refletir sobre quais seriam esses “remédios do amor”. Desse modo, evoca Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), um clássico poeta romano, dedicado à retórica e ao latim, a quem ele se referia como “Galeno do amor humano”, que escreveu, entre outras poesias, O remédio do amor [De Remedio Amoris], obra que foi uma das principais inspirações de Vieira para este sermão, no qual procura analisar a eficácia dos tais “remédios”. Para Vieira existiam dois tipos fundamentais de amor, completares e, ao mesmo tempo, distintos: o amor humano e o amor divino, definindo o amor humano como frágil, por aproximar-se mais da dor do que do prazer, sendo, por isso, “um amor que não é amor, um mal a ser remediado, uma dor da alma” (Silva 2008: 477). Já o amor a Deus deveria ser fiel e eterno, cultivado permanentemente. Para o pregador jesuíta, a fragilidade e fraqueza não resistiriam aos sensíveis efeitos dos “remédios” indicados, que ao serem adotados, produziriam efeitos rápidos, diminuindo ou acabando com o sentimento de amor humano. Dentre os remédios contra o mal do amor estava o tempo, um tempo que acabava com “todas as coisas humanas” e que “tudo gasta, tudo digere”, até mesmo a memória (Vieira 2011 [1643]: 19). O pregador também insiste em caracterizar os “fervores da afeição” como absolutamente temporários e o amor humano como mais mortal do que as enfermidades do corpo, pois era falho e pecaminoso. A própria menção ao “corpo” – enquanto fonte de pecados – já aponta para a interpretação da Igreja moderna pós-tridentina que reforçava sua doutrina, defendendo a exemplaridade das vidas santas, enfatizando a eliminação de pecados capitais e condenando os sentimentos amorosos por sua vinculação aos prazeres carnais e à luxúria. A fraqueza humana advinda das tentações da carne era uma imperfeição a ser combatida com oração, penitência, lembrança da morte e dos tormentos do inferno (Priore 2001: 105). Para Vieira, o amor divino era distinto do amor humano. Era o “amor verdadeiro” porque amor de Cristo, perfeitíssimo e incurável, um amor sem remédio, um fogo que não se apaga (Vieira 2011 [1643]: 35) e que provém de Deus “Padre”. Ao final do sermão, ele destacou que “com os remédios cresce a enfermidade, e com os contrários se aumenta” (Vieira 2011 [1643]: 55). Este seria o caso do amor de Jesus Cristo, dono de um coração “humano e divino”, que não esfriava e não se dividia, ao contrário, era forte o suficiente para ser o remédio das “loucuras” do amor humano (Vieira 2011 [1643]: 30-36; 73). Se o amor era luz, o amor de Cristo era “a verdadeira luz”, “a saúde das almas”. Assim, o amor de Cristo era benéfico, benigno e misericordioso (Vieira 2011 [1643]: 44-50). Se Cristo morreu de amor pelos homens, os homens deveriam viver para sofrer por seu amor, justificando, dessa forma, os sofrimentos experimentados pelos doentes hospitalizados, a quem Vieira pregava o Sermão do Mandato. Se o Paraíso era o destino das almas santas e amorosas, a Terra era o “refúgio da pobreza” e somente o amor de Cristo – o “amor sem remédio” – podia promover a “a saúde de nossas almas” e servir de modelo aos pecadores. O Hospital Real de Lisboa, cenário da pregação deste sermão, mais do que um “refúgio da pobreza” – marcado pela indigência, pelas doenças e pela morte que castigavam, indistintamente, tanto os corpos dos nobres, quanto os dos pobres portugueses – parece ter sido, para Vieira, o espaço por excelência do empenho pela cura da alma. Ao questionar-se se “ferido o amor [de Cristo] no cérebro, e ferido no coração, como pode [alguém] viver?” (Vieira 2011 [1643]: 42), Vieira transmite a ideia de que doenças que atingiam o cérebro ou o coração (pode-se entender o órgão) eram as únicas fatais, sendo as demais, passíveis de cura. Por entender que os sofrimentos físicos enfrentados por muitos dos hospitalizados decorriam dos males da alma e da fraqueza amorosa, Vieira procurou consolar os enfermos, dizendo-lhes que estes eram necessários para a depuração e a cura do espírito, logo, fundamentais para a salvação da alma. Considerações finais É preciso considerar, como destacamos no início desta comunicação, que inúmeras são as possibilidades de apropriação que os ouvintes/leitores podem ter feito deste sermão. Além disso, diversas são as variáveis a ser consideradas quando se pensa no grupo para o qual Vieira pregou, visto que se pode apenas inferir qual era o público internado no hospital naquele momento do ano de 1643 – certamente heterogêneo do ponto de visto social, intelectual, cultural e religioso – exceto em relação a um fator que uniformizava o grupo, a sua condição de doentes. Nesse sermão destinado aos enfermos, em que ficam evidentes os objetivos contrarreformistas de conversão e convencimento dos ouvintes/leitores quanto às “verdades da fé”, Vieira faz questão de reforçar que “tudo o que acabo de dizer é filosofia não minha, senão do mesmo Cristo” (Vieira 2011 [1643]: 37) e – em uma das passagens do sermão – instiga os doentes a refletirem sobre a proximidade da morte: “Oh! Quanto nos pesa nesta hora, e para sempre, de vos não ter amado como devíamos!” (Vieira 2011 [1643]: 74). Da mesma forma como nem todos os indivíduos manifestavam as mesmas doenças ou as mesmas deformidades no corpo, nem todos possuíam a mesma forma de amar, havendo uma distinção entre o amor humano e o amor de Cristo, razão pela qual Vieira recorreu a diferentes expressões e de intensidade para definir essas diversas formas e modos de amar. Para Vieira, os sofrimentos humanos decorrentes das enfermidades do corpo eram, ao mesmo tempo, o expurgo dos pecados da alma e os remédios para a sua cura, devendo ser experimentados com resignação. Se Cristo veio ao mundo com uma “doença incurável”, era justo que os homens também experimentassem a enfermidade, na condição de doentes de amor ou doentes do corpo. Os doentes de amor estariam em estágio de perfeição moral e espiritual, uma enfermidade pouco provável aos homens dotados de “frágeis corações de cera”, mas não impossível, desde que o amor fosse fino, puro e singelo como o “amor menino”. Os motivos das enfermidades do corpo estavam, muitas vezes, relacionados com os estados debilitados da alma. Desse modo, a doença desenvolvida poderia ser justificada pelo fato de os sujeitos não estarem verdadeiramente enfermos de amor, ou estarem facilmente suscetíveis à cura com os remédios do amor. Nesse caso, a “doença amor” poderia ser um antídoto eficaz contra doenças do corpo ou, ao menos, uma possibilidade de cura, na vida terrena ou na eternidade. Somente Cristo seria alvo de uma enfermidade sem remédio, mas os homens podiam ser facilmente curados, já que “muitas enfermidades se curam só com a mudança do ar” (Vieira 2011 [1643]: 27), argumento que, com certeza, devia trazer esperança de cura aos doentes internados no Hospital Real. As reflexões que o sermão deveria provocar e os remédios recomendados por Vieira aos enfermos não deixavam de ser práticas de cura socialmente aceitas, na medida em que havia um pretenso fim terapêutico no atendimento espiritual que os religiosos realizavam em hospitais. Apesar do discurso religioso, sustentado em passagens bíblicas e em autoridades da Igreja, Vieira parece se inspirar em procedimentos terapêuticos próprios da teoria médica hipocrático-galênica, na medida em que propõe o restabelecimento da saúde, através da ação de agentes contrários à causa da enfermidade, como se pode constatar nas doenças de amor, cuja cura residia em remédios como o tempo, a ausência, a ingratidão e a melhora do objeto. Ao propor esses remédios do amor, o padre Vieira construía suas representações sobre esse sentimento, ao mesmo tempo, humano e divino, e metaforicamente, apresentava também possibilidades de cura para as doenças do corpo, como o tempo, que eliminava o amor, mas também a dor e o sofrimento. Ou a ausência que, devido às longas distâncias, podia curar o doente de amor, ao mesmo tempo em que podia ser importante aliada no tratamento de uma da enfermidade corporal, já que viagens longas e “mudanças de ar” podiam restabelecer a saúde. O sermão, contudo, não descuidava de idealizar o amor, ressaltando a necessidade de o ser humano contaminar-se deste nobre sentimento, nutrir-se dessa afeição sutil, empenhar-se no fervor do seu cultivo, de modo a, efetivamente adoecer, mas de amor! Referências bibliográficas Fonte primária Vieira, Padre António. O mandamento do Amor ou O Sermão do Mandato. Prefácio de Pe. Carreira das Neves. (Coleção Earth Gift). Largebooks, Lisboa, 2011. Fontes secundárias Azevedo, João Lúcio de (2008). História de Antônio Vieira. Tomo I. Alameda, São Paulo. Bosi, Alfredo (org.) (2011). Padre Antônio Vieira – Essencial (coleção Penguin). Companhia das Letras, São Paulo. Cardim, Pedro (1999). “Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII”; In. Lusitania Sacra, v. 2, 11, pp. 21-57. Castro, Aníbal Pinto de; Mendes, Margarida Vieira (2007). História e Antologia da Literatura Portuguesa, século XVII. N. 37, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Cesar, Thiago Groh de Mello (2011). 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