Publicamos hoje o sétimo texto de Alcida Rita Ramos (UnB) na série BVPS Autorais:
Sonhando com ABYA-YALA (Parte II). O texto tem como base o projeto de pesquisa
“Realidades Indígenas, Utopias Brancas”, apresentado ao CNPq em 2019 na categoria
Bolsa de Produtividade Sênior.
Serão 10 textos publicados, um a cada semana, sempre às terças-feiras, abordando temas
como Yanomamis, viagens etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a
antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas, cosmopolitismo, perspectivismo e a
renascença artística indígena. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos, como indicam
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os curadores André Botelho (UFRJ) e Maurício Hoelz (UFRRJ) na pequena apresentação
que abre a série e que pode ser lida aqui. (https://blogbvps.com/2023/10/03/autoraissingularidade-e-pluralidade-sonhos-e-textos-de-alcida-rita-ramos/)
Para conferir a primeira parte deste texto, clique aqui.
(https://blogbvps.com/2023/11/07/bvps-autorais-alcida-rita-ramos-5/) Para ler os textos
anteriores de Alcida publicados na BVPS Autorais, clique em: I
(https://blogbvps.com/2023/10/03/autorais-singularidade-e-pluralidade-sonhos-etextos-de-alcida-rita-ramos/), II (https://blogbvps.com/2023/10/10/bvps-autoraisalcida-rita-ramos/), III (https://blogbvps.com/2023/10/17/bvps-autorais-alcida-ritaramos-2/), IV (https://blogbvps.com/2023/10/24/bvps-autorais-alcida-rita-ramos-3/) e
V (https://blogbvps.com/2023/10/31/bvps-autorais-alcida-rita-ramos-4/).
Boa leitura!
Sonhando com ABYA-YALA
(Parte II)
Por Alcida Rita Ramos (UnB)
Utopias são boas para sonhar
Ella está en el horizonte… Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el
horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré.
¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar.
Pensamentos expostos em Palabras andantes do escritor uruguaio Eduardo Galeano, eles
resumem o exercício aparentemente fútil de perseguir utopias. No entanto, seu remate dá
o tom do presente texto: caminhar pelas trilhas indígenas com olhos bem abertos para
sinais de sabedoria e resiliência, como uma bisbilhotice metodológica que nos aguce o
sentido de deslocamento do mundo em que vivemos. Sigo pois os passos ilusórios de
Galeano pelo emaranhado dos utopistas euro-americanos, cujo sentido agudo de
deslocamento desencadeou uma quantidade de fantasias dignas de menção. A longo
prazo, seus sonhos se tornaram bons para ousarmos pensar no World Otherwise.
A verdadeira avalanche de textos escritos sobre utopia explica minha timidez ao abordar
este assunto. No entanto, é preciso mirá-los, ainda que de soslaio e com extrema brevidade,
para refletir sobre “políticas indigenistas” no sentido mais amplo possível. Ao me referir a
Realidades indígenas, Utopias brancas, chamo a atenção para a ideia de que o que é
utópico para os brancos, aturdidos pela opressão do Estado, é rotina para a maioria dos
povos indígenas. Autores de utopias criaram fantasias sobre lugares deliciosamente
opostos aos seus. Tão deliciosos e perfeitos eram eles que mereceram um nome próprio:
utopia, o não lugar, um espaço aporético de existência impossível.
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Thomas Morus ([1516] 1992) imagina a Ilha Utopia como o exato oposto à Inglaterra do
século XVI oprimida sob Henrique VIII que, aliás, mandou executar o autor. William
Morris, outro inglês, caiu no sono depois de uma reunião extenuante da Liga Socialista e
acordou “numa sociedade futura baseada na propriedade comum e no controle
democrático dos meios de produção” (comentário anônimo na contracapa do livro de
Morris [1890] 2018). O norte-americano Edward Bellamy ([1888] 2016) compõe seu enredo
de ficção científica onde o herói, um jornalista, cai num sono hipnótico e acorda 113 anos
depois. Enquanto dorme, no ano 2000, os Estados Unidos se metamorfoseiam em utopia
socialista! Por sua vez, Henry David Thoreau ([1845] 2004), também norte-americano,
rebelou-se contra as armadilhas da sociedade industrial e se refugiou na sua idealizada
Walden, afastado de toda interação humana, enterrado nas profundezas de sua própria
individualidade, cercado pela alardeada “natureza”. Devemos-lhe a noção de
desobediência civil.
É longa a lista de descontentes e visionários, como nos lembram vários observadores:
Ángel Cappelletti (1966), Ruth Levitas (1990, 2013), Gregory Claeys (2013), Manuela
Aguilera (2014), dentre muitos outros. Francis Wolff (2017), que concentra o olhar nas
utopias políticas, afirma que hoje, em vez de sonhar eternamente com o Bem, as utopias
passaram a ser uma luta indefinida contra o Mal.
Todos esses autores tentaram alcançar um regard eloigné, um olhar distanciado,
imaginando lugares e situações diametralmente opostos àqueles em que viveram e
sofreram. Thomas Morus inventou o não lugar, talvez inspirado nas notícias que
chegavam do recém-descoberto “Novo Mundo”. Como diz María Isabel Navarro (2016: 2),
é “a existência de uma geografia desconhecida na qual habitam comunidades humanas
recém descobertas que engendra um diagnóstico do mundo conhecido em chave
ahistórica…”.
A leitura de Jean-Jacques Rousseau sobre os Tupinambá da costa brasileira provocou em
Morus a urgência de produzir um retrato dos anciens regimes europeus absolutamente
crítico e condenatório. Por boas razões. O próprio Rousseau, menos sonhador, mas não
mais realista, manifestou-se de maneira surpreendentemente contemporânea.
Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada, por uma feliz impossibilidade, do feroz amor
das conquistas e preservada, por uma posição ainda mais feliz, do temor de tornar-se a conquista
de outro Estado; uma cidade livre, colocada entre muitos povos, nenhum dos quais tivesse
interesse em invadi-la e cada um dos quais tivesse interesse em impedir que outros a invadissem;
uma república, em uma palavra, que não fosse tentada pela ambição dos seus vizinhos e pudesse
razoavelmente contar com o socorro destes quando necessário. Conclui-se daí que, em posição tão
feliz, ela não teria que temer senão a si mesma, e que, se os seus cidadãos fossem exercitados nas
armas, seria antes para entreter entre eles o ardor guerreiro e a altivez de coragem, que ficam tão
bem à liberdade e que nutrem o gosto dela, do que pela necessidade de assegurar a própria defesa
(Rousseau, 1753: 4-5).
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Enquanto escritores utopistas inventavam ideais não existentes por falta de realidades no
seu campo de visão, nós, etnógrafos, não precisamos criar mundos imaginários, pois temos
o privilégio de encontrá-los concretamente nas nossas pesquisas de campo.
Na seca,
o Rio
Auaris é
um
parque
de
diversões
As utopias são fantásticas?
Já que nós, etnógrafos, temos contatos imediatos com a alteridade e nos expomos a
experiências vivas, concretas com o que poderíamos chamar de nossa própria utopia, o
que estamos esperando? De fato, deveríamos considerar as sociedades indígenas não como
utopias, mas como topoi (‘lugares comuns’), pois são bastante reais. Além disso, a noção de
topos é um lugar privilegiado para começarmos uma conversa sobre o assunto. Os mundos
indígenas tornam-se utópicos quando projetados sobre situações contrastantes, quando são
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convertidos em modelos improváveis, se não impossíveis de ser postos em prática. No
entanto, dispomos de uma pletora de materiais etnográficos esperando para serem
analisados com os instrumentos antropológicos e com visões de longo alcance. Com razão,
Ruth Levitas (2013) considera utopia um método para ensaiar a reconstituição das
sociedades ocidentais.
A estas alturas, já está claro que não me dirijo a utopias políticas no sentido explorado, por
exemplo, por Russell Jacoby (1999) e a Escola de Frankfurt. Além da tremenda
complexidade dessa província intelectual que não domino, eu me afasto do seu viés
ocidental. Tampouco sigo o caminho da ficção científica, como Ray Bradbury e Ursula Le
Guin, por mais que aprecie sua imaginação. Em vez disso, privilegio autores mais
próximos, como, por exemplo, o equatoriano Armando Muyolema (2012) e a boliviana
Silvia Rivera Cusicanqui (2018). Confio no meu treinamento antropológico para focalizar a
alteridade como um espelho. Baseada no meu trabalho de campo entre os Sanumá, os
Yanomami mais setentrionais do Brasil, tento mapear algumas facetas que me parecem
especialmente relevantes para contrastar modelos indígenas com modelos brancos na arte
de manejar o mundo. Desse rico arquivo cultural, seleciono quatro elementos que
demonstram uma sabedoria cultural que faria muito bem ao Ocidente. É uma escolha
limitada e arbitrária, mas suficiente para o que quero demonstrar. Não sigo nenhuma
ordem em particular, mas, em geral, vai do mais íntimo ao mais público.
Criação dos filhos. Durante os 23 meses da minha primeira estada em aldeias sanumá, nunca
vi ou ouvi crianças serem punidas fisicamente, mas observei o efeito de uma reprimenda
cochichada de uma mãe provocar uma explosão de choro no filho. No campo, sempre
admirei a paciência dos pais ao lidar com as piores birras dos filhos (Ramos, 1995: 5).
Nesse aspecto, os Sanumá não são exceção no mundo indígena. Eles apenas seguem uma
ética muito divulgada de como lidar com crianças, consideradas não como seres humanos
incompletos, mas como, digamos, pré-adultos. Nada de linguagem infantilizada, nada de
indústria de brinquedos que prolonga a infância até a adolescência (e muitas vezes além),
nada de contextos proibidos, nada de assuntos impróprios para crianças. Nem mesmo a
relativa novidade das escolas segrega-as do resto da comunidade. A total participação na
vida diária poupa as crianças sanumá de muitos problemas sociais e psicológicos que
atormentam muitos pais brancos. Sua criação não depende exclusivamente de pai e mãe,
com suas personalidades muitas vezes incompatíveis, uma vez que os parentes em volta
partilham normalmente dessa tarefa. As crianças nunca ficam sozinhas na aldeia enquanto
os adultos saem para os seus afazeres. Há sempre um adulto de plantão, nem que seja a
própria etnógrafa.
Tal cenário é radicalmente distinto daquele descrito por Bauman e Mazzeo sobre crianças
ocidentais contemporâneas, cujos pais estão muito ausentes de casa.
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Os chamados ‘meninos da chave’ (latchkey kids, com a chave da casa pendurada ao pescoço)
vivendo num lar geralmente vazio de adultos (um setor sempre crescente de crianças
americanas) são grandes candidatos a desenvolver o que Hochschild chama de ‘egos
terceirizados’, como uma colcha-de-retalhos com uma composição frouxa de serviços (na maior
parte compráveis) oferecidos por peritos conselheiros especializados em, virtualmente, qualquer
aspecto da vida (Bauman & Mazzeo, 2016: 37).
Será que as crianças sanumá se tornam melhores adultos do que as crianças brancas em
suas respectivas sociedades? Se tomarmos como medida os dados sobre problemas
psicológicos e criminalidade em ambos os tipos de sociedade, a resposta talvez seja por
demais óbvia para merecer mais comentários.
Persuasão. De novo, o modo como os Sanumá conduzem sua vida política não é
excepcional no universo indígena. Seu regime de persuasão difere drasticamente da
política de coerção dos brancos. Persuasão é o clássico modo indígena de exercer poder.
Sem leis impessoais que reforcem a conformidade, o líder de aldeia precisa persuadir as
pessoas a agir (Kracke,1978). “O poder de convencer emana da experiência vivida
transformada em autoridade para persuadir as pessoas a tomar decisões e desempenhar
ações coletivas” (Ramos 2015: 66). Não é por acaso que as sociedades indígenas valorizam
tanto as habilidades oratórias de um líder. A persuasão é domínio da oralidade por
excelência, oralidade que faz, como diria J. L. Austin em suas famosas conferências
publicadas em 1962 como How to do things with words.
Junto à persuasão está a noção de consenso. Ao contrário das expectativas do senso
comum, o consenso não implica, obrigatoriamente, harmonia. Em situações tensas, chegar
ao consenso pode levar a longos debates que, por sua vez, podem provocar mais
animosidade. Disputas sérias podem levar dias inteiros antes de se chegar ao consenso.
Podemos mesmo dizer que quanto maior a disputa, mais longo será o processo consensual
(Ramos, 2015).
O consenso faz parte de um modelo político para resolver problemas e nada tem a ver com
fantasias sobre comunismo primitivo ou harmonia da vida pristina. É uma alternativa à
controversa eleição pelo voto. Dentre outros traços pseudodemocráticos, a exclusão do
perdedor em eleições e a impessoalidade do sigilo do voto são totalmente incompatíveis
com os sistemas indígenas de tomada de decisões. Juntos, persuasão e consenso estão na
raiz da democracia propriamente dita. Não é um legado grego, mas o apanágio de
comunidades politicamente autônomas (Graeber, 2007) ocupando espaços que fogem ao
controle do Estado.
Novamente, a questão de escala traz um tema espinhoso. É difícil imaginar como países
grandes como o Brasil, com mais de 200 milhões de pessoas, poderiam adotar o consenso
como uma regra política. Até que ponto poderia um Estado centralizado observar os
requisitos do consenso universal? (Ramos, 2015). É um tema que ultrapassa muito o espaço
e as intenções deste texto, mas que merece atenção analítica.
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Comuns. Uma das piores tragédias na história europeia foi a implantação de sistema
fundiário conhecido como enclosures (cercamentos), que chegou ao auge no século XIX. Por
ele, as terras de uso comum passaram a ser propriedade privada. Vigente já no século
XVII, esse sistema foi criticado por Thomas Morus em seu livro Utopia. Foi um dispositivo
calculado para produzir pobreza extrema que viesse alimentar com mão de obra as
primeiras máquinas que deslancharam a Revolução Industrial. A vida rural nunca mais foi
a mesma. A perda de terras comuns afetou os camponeses de maneira não muito diferente
da perda de terras tradicionais pelos povos indígenas das Américas. A motivação foi um
pouco distinta, mas o efeito foi o mesmo: enriquecer os ricos produzindo pobres onde
antes não os havia. A ideologia do destino manifesto proclamada por povoadores,
exércitos, missionários e outros usurpadores fez tanto mal aos habitantes de Abya Yala
quanto os micróbios europeus que os consumiram. Não é exagero! Em nome do impulso
conquistador sem princípios, os brancos roubaram o suporte vital dos povos indígenas,
deixando-os, como aos camponeses britânicos sem terras comuns, na situação de escolher
entre morrer e vender seus corpos como força de trabalho. A noção de propriedade
privada da terra é contrária às ideias indígenas e não poderia ser-lhes mais estranha.
Simplesmente, não faz sentido.
Com extraordinária habilidade etnográfica, Keith Basso acompanhou seus anfitriões
Apache Ocidentais numa excursão durante a qual, em conversa normal, ele descobriu que
seu conhecimento histórico está profundamente entranhado em topônimos ligados à
fabricação de lugares. Como uma máquina do tempo discursiva, nomes de lugares
referem-se a “lugares tornados memoráveis … por acontecimentos de muito tempo atrás,
quando os ancestrais distantes dessas pessoas se assentavam no país” (Basso, 2000: 8),
talvez há centenas ou milhares de anos. Assim, os Apache retêm uma longa diacronia de
seus territórios, porque sua memória coletiva e sua terra coletiva estão juntas.
Os povos indígenas contemporâneos da Amazônia herdaram de seus ancestrais a perícia
de preservar a floresta e explorá-la ao mesmo tempo, sem falar que, ao assim fazerem, eles
construíram a floresta, como demonstram a etnografia (Balée, 2013) e as novas descobertas
da arqueologia (Neves, 2022, Fausto & Neves, 2018). Aldeias e roças pertencem a quem as
ocupa. Ao se mudarem, deixam a terra livre para quem quiser tomá-la, ou melhor, tomá-la
emprestada. Um engenhoso sistema de pousio evita que o solo se exaure e ainda conserve
produtos de ciclo longo, como a palmeira pupunheira. Em suma, os povos indígenas,
velhos habitantes da Amazônia, sabem, exatamente, como tratar a floresta tropical, aquele
“inferno verde” dos piores pesadelos do homem branco.
A terra, recurso natural estreitamente ligado à vida social como um todo, não pode e não
deve ser objeto de propriedade individual, privada. A atitude dos não indígenas para com
a terra é uma aberração e continua a intrigar muitos povos indígenas e começa a alarmar
muitos ocidentais sob a égide do Aquecimento Global. Emulando, direta ou indiretamente,
a sabedoria milenar indígena, o movimento contemporâneo mundial conhecido como
Commons, como tantas outras tentativas de restaurar a sanidade do Ocidente, assume o
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risco de enfrentar “encontros desagradáveis com o poder do duo Mercado/Estado”
(Bollier, 2014: 5). É um risco calculado em face do assombroso prospecto de catástrofes
universais.
Guerra. Chamar as escaramuças indígenas de guerra é, data venia, um capitis diminutio e
uma injustiça nada poética. É um impropério que ofusca as diferenças radicais entre os
assassinatos autorizados das civilizações orientais e ocidentais e as incursões em terras
indígenas por povos indígenas com a sua modesta potência para matar. A quantidade de
vítimas não é o mais importante. Guerras “civilizadas” têm por objetivo exterminar ao
máximo o inimigoe deixar os derrotados num estado de ruína e humilhação. Nada disso se
aplica às incursões indígenas. Há rivalidade? Sim. Há mortos? Sim. Pode até haver uma
certa glorificação passageira dos vencedores. Mas extermínio, nunca. Táticas de terra
arrasada, nunca. Lembremos dos Tupinambá, notórios por seus guerreiros na costa
brasileira do século XVI. Apesar da reputação histórica, suas conquistas guerreiras eram
bem moderadas, apesar da fanfarra. Matar apenas um homem ou tomar apenas um cativo
era suficiente para satisfazer os requisitos de um jovem para entrar na idade adulto e se
casar (Fernandes, 1963).
Enquanto Florestan Fernandes analisava a sociedade tupinambá com base nos cronistas do
século XVI que buscavam o significado daquela belicosidade, Napoleon Chagnon, um
antropólogo norte-americano convertido à sociobiologia aplicada aos Yanomami,
reconhecia que “a guerra yanomamö propriamente dita é a incursão, raid” (Chagnon, 1968:
118). Chagnon alega que os “guerreiros” yanomami se empenham em matar inimigos em
incursões cuidadosamente planejadas. No entanto, “em menos de cinco horas, o primeiro
atacante voltava… reclamando de dor no pé” (Chagnon, 1968: 130). Ao fim e ao cabo, os
homens yanomami contentam-se com bravatas verbais. Muitas vezes, a violência
declarada concretiza-se como brincadeira de mau gosto. A isso se resumo a ferocidade
yanomami decantada nos escritos de Chagnon.
Quando os Yanomami da aldeia de Haximu, na fronteira entre Brasil e Venezuela, em
visita a outra aldeia distante, deixaram os velhos, algumas mulheres e criancinhas no
acampamento de verão, assim fizeram porque nunca poderiam imaginar que seres
humanos fossem capazes de atacar e matar mulheres e crianças. Por isso ficaram
assombrados, sem compreender por que um grupo de garimpeiros invadiu o
acampamento e massacrou dezesseis pessoas, todas indefesas (Albert, 2001). A ética
guerreira que os protegera até então sucumbiu com aquela ação selvagem inimaginável.
Atividades guerreiras envolvem um complexo sistema de comunicação em que as partes
precisam umas das outras para manter a sociabilidade. Num artigo curto de 1942, Claude
Lévi-Strauss apresenta uma análise sagaz, tomando guerra e troca como duas faces da
mesma moeda. Impressionado com a facilidade com que os Nambiquara passavam da
agressão à cooperação, afirmou: “As trocas comerciais representam guerras potenciais,
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pacificamente resolvidas; e as guerras são o resultado de transações mal sucedidas”.
Fenômeno comum entre povos das Américas, “a guerra e o comércio constituem
atividades que dificilmente se conseguirá estudar isoladamente” (Lévi-Strauss, 1942: 143).
Esses exemplos confirmam que aniquilar inimigos não é nem prático nem desejável, pois a
continuidade das relações extra aldeias depende dessas negociações, mesmo sob a
aparência de atos violentos destrutivos. A lacuna invencível entre as atitudes indígenas e
“civilizadas” com relação aos inimigos é um lembrete sombrio da tragédia do Ocidente.
Finalmente …
Depois de passar dois anos em intenso contato com os Sanumá e um posterior exílio
voluntário, cheguei à melancólica conclusão de que o modelo estatal não é uma solução
afável para o ser humano. Na verdade, senti um choque cultural ao contrário. Ser exposta
ao funcionamento de mundos indígenas e confiar na força de suas tradições e
conhecimento intensificou minha aversão por viver em permanente estado de exceção,
sempre sob o risco da volta de governantes totalitários (Agamben, 2005). Enfrentar
intermináveis atos contra a cidadania, conviver com desigualdade e injustiça endêmicas e
a eterna quebra de princípios corrói a confiança que todo cidadão deveria ter no seu
próprio país. Não tenho ilusões sobre a invulnerabilidade das sociedades indígenas a
desmandos, mesmo porque testemunhei certos episódios em contrário. No entanto, a
abstração impessoal do que foi chamado, de maneira imprecisa, de comunidades
imaginadas, transforma ânimos e rusgas passageiros num padrão fixo de “primitivismo”
simplesmente pela força do hábito. Aqui, sem escusas, faço minhas as palavras de
Rousseau (1973: 10): “Comecei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na
esperança de resolver a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu
verdadeiro estado”. Mais próximo no tempo, no espaço e no espírito, as sábias palavras de
Gersem Baniwa acendem meu entusiasmo pela possibilidade de transformar utopias em
realidade para todos.
Considero a antropologia como uma lente multifocal, multidimensional e multicósmica que
possibilita ao indígena enxergar coisas que a própria antropologia não consegue ou não quer
enxergar, porque este dispõe de outras formas, propósitos e ângulos para enxergar. Neste sentido,
a antropologia pode oferecer aos indígenas um bem precioso e complexo que é o conhecimento
sobre o mundo do branco (Baniwa, 2015: 234).
Há décadas sendo inundada de realidades indígenas, venho absorvendo um mundo de
inquestionável sabedoria, mas relegado a uma espécie de nicho selvagem, o famoso savage
slot de Trouillot (1991). Agora, finalmente, dou-me conta de quanto precisamos dessas
realidades para a nossa própria sobrevivência moral, se não física. Afinal, utopias são boas
para pensarmos e nos indignarmos. Como Mario Benedetti expressou no YouTube,
Cómo voy a creer/ dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías…
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E como reforçou José Mujica, igualmente no YouTube,
No me quiten la utopía!
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A imagem que abre o post é de autoria de Joana Lavôr
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