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Polícia e Sociedade aportes da psicologia política

2014, Hur, D. U. & SandoS. A. M. Sandoval; D. U. Hur & B. S. A. Dantas (Eds.), Psicologia Política: temas atuais de investigação. Campinas, SP: Ed. Alínea, pp. 247-264.

como citar: Hur, D. U. & Sandoval, S. A. M. (2014). Polícia e sociedade - aportes da Psicologia Política. Em S. A. M. Sandoval; D. U. Hur & B. S. A. Dantas (Eds.), Psicologia Política: temas atuais de investigação. Campinas, SP: Ed. Alínea, pp. 247-263. CAPÍTULO 12 Polícia e Sociedade aportes da psicologia política Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval Os constantes episódios de violência e repressão policial retratados exaustivamente pelos meios de comunicação reacenderam, ao mundo acadêmico e ao grande público, o debate sobre a tensa relação entre polícia e sociedade. Contudo, falar em polícia na Instituição Universitária é algo polêmico, pois muitos adotam posturas de rechaço e a criticam por ser um aparelho repressivo de Estado, pela violência excessiva empregada no exercício de seu trabalho, ou pelo seu envolvimento violento com a repressão no período do regime militar. É um tema complexo e constatamos que as pesquisas sobre esta Instituição no Brasil ainda é recente, em que a maior parte dos trabalhos vem sendo desenvolvida desde a década de 19901, como por exemplo, os casos relatados e registrados sobre violência policial (Pinheiro, 1983, 1991; Mesquita Neto, 1999; 1. Afirma-se isso tomando como base as pesquisas realizadas no âmbito da Universidade. Pois sabe-se que instituições de ensino policiais, como o Centro de Formações de Oficiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo, produzem conhecimentos sobre a polícia há longo tempo. Contudo, por uma incomunicabilidade entre Instituições de formação policiais e associações científicas, há pouco intercâmbio desses saberes. 248 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval Cavassani, 1988; Bretas, 1997), estudos sobre a rejeição da população à polícia (Ramos & Musumeci, 2005), a ação letal da polícia brasileira, em que existe um alto índice de homicídios (Oliveira Jr, 2003), etc. Dessa forma, nosso objetivo, neste capítulo, é discutir algumas contribuições da Psicologia Política para refletir sobre a relação entre Polícia e Sociedade. Queremos conhecer algumas características desta Instituição, sua história e como se relaciona com a população, para refletir por que há essa tensão, os conflitos existentes e de que forma a Psicologia Política pode figurar como um campo de conhecimento que contribua para traçar caminhos de superação. Então, neste capítulo, caracteriza-se esta Instituição, realiza-se um breve histórico sobre sua constituição, reflete-se sobre perspectivas de investigação da Psicologia Política e apresenta-se alguns dados de pesquisa realizada com policiais militares e jovens pobres da periferia, que podem contribuir para uma diminuição do antagonismo existente entre Polícia e sociedade, entre aparelho repressivo de Estado e conjunto social. A Psicologia Política fundamenta-se como um campo privilegiado de investigação da Instituição-polícia, pois estuda as relações de poder e os efeitos psicossociais que resultam dessas relações de dominação e sujeição, ou seja, apreende os mecanismos institucionais das políticas de segurança pública ao mesmo tempo em que analisa os processos psicossociais resultantes dessas práticas. Dessa forma, a Psicologia Política apreende os mecanismos sociais, institucionais e psicológicos decorrentes da relação polícia-sociedade, o que pode referenciar mecanismos de negociação para a redução do conflito (Serrano, 1988). Entretanto, ainda há poucas pesquisas no Brasil referente aos estudos da Psicologia Política sobre a polícia. A Polícia como lógica de Estado As instituições de segurança pública têm um aspecto único nas sociedades contemporâneas, pois, ao mesmo tempo em que têm uma função repressiva, de regular as relações sociais, são as instituições que mantêm o laço social na proteção de uma guerra de todos contra todos. Polícia e Sociedade 249 Tais instituições são consideradas necessárias, pois são o sustentáculo de todo o sistema judiciário e base da defesa nacional, no entanto, portam um caráter problemático na relação com a sociedade, devido a suas atividades de repressão e regulação social. A existência das polícias nas sociedades é um fenômeno praticamente universal. Salvo raros casos, como na tribo dos índios guayaqui, que evitava a constituição de um Estado e da polícia, organizando-os apenas em momentos de guerras e conflitos; passada a época da crise, diluíam-se esses agenciamentos (Clastres, 1988). As instituições, como a polícia, remetem diretamente à questão do Estado. Para o filósofo Michel Foucault, o Estado não tem apenas uma função política, mas principalmente uma função de polícia. Polícia e política são palavras que não têm apenas origens etimológicas muito próximas, que vêm de polis, cidade, como são “as” práticas de Estado. Foucault (1990) afirma que o policiamento é o modo de gestão de Estado, um modo de gestão política anterior a instituição concreta policial, ou seja, a função policial é uma técnica de governo própria ao Estado. Convergente a tal visão, Paul Virilio (1996) também defende que a função política do Estado é a de policiamento, vistoria, controle das fronteiras e da população. Dessa forma, entende-se que antes da Instituição concreta polícia, o funcionamento policial é uma lógica de Estado que visa a governabilidade da população, a gestão da vida. A polícia e as forças armadas são os equipamentos que concretizam a razão de Estado, a qual também está presente, de forma mais sutil, em seus outros equipamentos (saúde, assistência social, educação etc.). A palavra “polícia”, por sua vez, origina-se do grego politeia, convertido em politia no latim, que adota o sentido de administração, governo da cidade e forma de governo. Posteriormente, o vocábulo assumiu um sentido particular, [...] passando a representar a ação do governo, enquanto exerce sua missão de tutela da ordem jurídica, assegurando a tranquilidade pública e a proteção da sociedade contra as violações e malefícios (SSP/SP, 2002, p. 1). Dessa forma, consideramos que a Instituição Polícia é a Agência de controle do Estado que tem o monopólio do uso da força para a manu- 250 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval tenção da ordem pública e do pacto social, o chamado “poder de polícia”. Vale enfatizar que, nessa acepção, fala-se em força como um atributo legal da polícia e não como violência, ou seja, a polícia tem o monopólio do exercício da força, mas não o direito ao exercício da violência. Então, com o objetivo de assegurar a Ordem, a polícia dispõe de uma função repressiva.2 Contudo, o uso dessa função repressiva nos traz um paradoxo, talvez inatingível, tal como expresso nos termos do jurista Dalmo Dallari (1996): O objetivo fundamental dela é, exatamente, a preservação da liberdade, é a proteção da liberdade que deve estar consagrada na ordem existente. E isto leva imediatamente à ideia da Polícia como um serviço público, serviço para o povo, serviço público que é de natureza essencial, porque o bem que ele protege é um bem essencial (p. 51). Então, teoricamente a polícia é a Agência do Estado que utiliza a repressão para manter a ordem social com o fim de preservar a liberdade do indivíduo. Mas por que temos uma distância tão grande entre ideal e real, em que concretamente a polícia se torna sujeito de uma violência excessiva e desmedida? Polícia no Brasil: breve histórico O interesse em realizar um breve histórico da Polícia Militar no Brasil se baseia na importância de entender os fundamentos sócio-históricos dessa Instituição. Privilegiamos a Polícia Militar por ser a polícia mais atuante do país, assim, realizamos nossa pesquisa com membros de sua corporação. A historiadora Heloísa Fernandes (1974) afirma que agrupamentos com funções policiais já existiam no período colonial brasileiro, 2. Muitas teorias psicossociais entendem que a repressão é função indispensável para a constituição da psique e da sociedade. O problema, então, não seria a repressão em si, mas a sua intensificação desmedida, que H. Marcuse (1968) denominou de mais repressão. Polícia e Sociedade 251 sendo o policiamento exercido pelas tropas de 1ª linha, as milícias e os corpos de ordenanças. Eram organizações muito sujeitadas a interesses privados e careciam de maior institucionalização, no entanto, perduraram por quase três séculos no país. A institucionalização da polícia pelo Estado foi efetivada, apenas, em 1831. Sampaio (1981), por sua vez, nos ensina que a polícia surgiu no Brasil no período da regência quando se estruturaram organicamente as forças policiais com o fim de conter os movimentos sociais reivindicatórios emergentes. Com a regência houve a eclosão de movimentos populares e, como medida de contenção, o Governo institucionalizou as Guardas de maneira descentralizada, ligadas a cada Unidade da Federação. Em São Paulo, foi criada oficialmente pelo Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, presidente da província, com o nome de Guarda Municipal Permanente3, composta por cem praças a pé e trinta a cavalo (Sampaio, 1981). Este corpo tinha a mesma organização de suas antecessoras; uma estrutura militar hierarquizada aos moldes do Exército, paralelamente a funções de natureza civil de policiamento voltadas para a preservação da ordem social interna. Desde sua gênese, as forças policiais apresentam esta “mestiçagem” que consiste na função civil de policiar a cidade conjugada à estrutura e funcionamento militares. Então, desde o início, temos esse hibridismo de atribuições da polícia, a qual funciona com um regimento próprio que é submetido à justiça civil e a um tribunal militar. A atribuição de policiamento e manutenção da ordem social é uma atribuição civil que não necessariamente precisa ser militar; mas por ser militar o policial é formado numa lógica bélica, 3. De sua fundação até o fim da Primeira República, a Polícia no Estado de São Paulo recebeu uma série de nomes. Em 1837, denominava-se Corpo Policial Permanente. Em 1866, foi criado o Corpo Policial Provisório para substituir a Guarda Municipal Permanente, que foi enviada para a Guerra do Paraguai. Parte de seu contingente, posteriormente, também foi enviado à guerra. Em 1868, voltou a se chamar Corpo Policial Permanente. Já, em 1891, após proclamação da República, passa a se chamar Corpo Militar de Polícia. Em 1892, a força estadual integra-se à força da capital, passando, assim, à denominação de Força Militar de Polícia do Estado e, logo após, Força Policial. Em 1901, há um reagrupamento das forças repressivas e o nome Força Policial é mantido. Em 1905, foi chamada de Força Pública (denominação adotada de 1905 a 1939 e de 1947 a 1970). De 1939 a 1947 é rebatizada como Força Policial e, desde 1970, é conhecida como Polícia Militar. A Polícia Civil também teve outro nome, em 1926, foi criada como Guarda Civil (Moraes, 2003). 252 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval de combater um inimigo, nas artes da guerra. Por isso, entendemos ter havido um hibridismo na gênese e na constituição das polícias militares no Brasil. A militarização da Força Pública atingiu seu cume com a vinda da “Missão Francesa”, em 1906, quando um regimento francês veio a São Paulo oferecer treinamento militar para a polícia. De caráter eminentemente militarista, adotou formação rígida e instrumentalizou com arsenal de guerra a polícia paulista, fato que incomodou o exército brasileiro (Dallari, 2005). Foi a partir destes acontecimentos que surgiu a ideia de que a Força Pública era um exército particular dos governadores paulistas (Santos, 2004, p. 156). Ideia não equivocada, visto que, a polícia paulista participou de muitas campanhas bélicas (como a Guerra dos Farrapos, Guerra do Paraguai, Invasão a Canudos etc.), gerou grande contingente ao movimento tenentista (a Coluna Prestes-Miguel da Costa) e compôs grande parte das forças da Revolução Constitucionalista de 1932 (Pedroso, 2005). Em decorrência da participação em campanhas militares, o Governo do Estado criou a Polícia Civil – na época denominada Guarda Civil –, em 1926, tendo como motivação a ausência de policiais, que foram escalados para sair pelo país para combater as revoltas contra a República Velha (Vendramini, 2004, p. 21), visto que a Força Pública se constituiu como um “Exército Regional Paulista”. Foi idealizada como força auxiliar à Força Pública mas sem ter caráter militar. A Guarda Civil não era militarizada e seguia o modelo da polícia londrina, focando suas ações na prevenção e fiscalização para o controle da criminalidade. No Estado Novo, com o intuito de centralizar o poder, as polícias foram controladas e diminuiu-se sua força para que não houvesse mais sublevações regionais. Após o Golpe de Estado, em 1964, contudo, a relação entre Exército e polícia ficou ainda mais íntima: a Força Pública demonstrou conivência com o golpe militar (Pedroso, 2005). No período do regime de exceção reorganizou-se a legislação referente às forças policiais de modo a se institucionalizar a relação entre as polícias e o Exército, o que tornou patente a subjugação das forças policiais frente às Forças Armadas. Objetivou-se também controlar a Guarda Civil, que passou a sofrer intervenção política direta. Dessa forma, em 1969, no Polícia e Sociedade 253 período da ditadura militar, é expedida a resolução que juntou a Força Pública à Guarda Civil, constituindo-se a Polícia Militar do Estado de São Paulo. No fim da década de 1970, teve lugar a separação da Polícia Militar da Polícia Civil. A Lei Complementar Estadual nº 207, de 05 de janeiro de 1979, tratada ainda hoje como Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo, discrimina as diferentes atribuições das duas polícias. A Polícia Civil tem, como atribuição, o exercício de polícia judiciária, administrativa e preventiva especializada, ao passo que à Polícia Militar compete o planejamento, a coordenação e a execução do policiamento ostensivo, fardado, bem como a prevenção e a extinção de incêndios. Cumpre destacar que tal divisão, atualmente, é alvo de muitas críticas, pois número significativo de pensadores e políticos defendem a integração das duas forças a fim de que se alcance maior eficácia e agilidade no combate à criminalidade. A Constituição Federal de 1988 não inovou na área de segurança pública, mantendo a polícia com a mesma estrutura da época da ditadura. Não obstante, o texto constitucional vigente, teoricamente, consubstancia a transição de uma polícia que servia ao Estado, para uma polícia que serve ao cidadão e à sociedade. Isto posto, Benevides (1996) delimita três fases da polícia na História brasileira: a 1ª fase, da polícia a serviço das famílias, dos clãs e dos senhores rurais; a 2ª fase, da polícia a serviço dos chefes executivos dos estados (os governadores) e; a 3ª fase, o horizonte a se perseguir, que é a polícia a serviço da população. Polícia: alguns campos de investigação Realizamos uma revisão bibliográfica sobre artigos de periódicos norte-americanos sobre a polícia e traçamos uma categorização geral de algumas áreas de estudo que a Psicologia Política pode debruçar-se, como: primeiro, estudos sobre a polícia enquanto instituição; segundo, estudos sobre a relação polícia e sociedade; terceiro, estudos sobre tipos de violação a leis pela polícia e; quarto, estudos sobre a polícia comunitária. 254 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval No que se refere à primeira área, estudos sobre a polícia, encontramos dois grupos de pesquisas. O primeiro, sobre características mais organizacionais, como o tipo de formação que o policial tem na academia; a cultura organizacional transmitida na instituição policial; o modelo militar que é reproduzido e os efeitos resultantes dos diferentes tipos de ambientes de trabalho. O segundo refere-se a estudos mais psicológicos, como tipos de policiais e atributos psicológicos do policial correlacionados ao melhor exercício da função. A segunda área, estudos sobre a relação polícia e sociedade, versa sobre a problemática relação entre polícia e população civil. Encontramos dois eixos principais: o primeiro, o enfoque do policial, e o segundo, o enfoque da população. No enfoque do policial, há estudos sobre como o policial percebe a população, como ele caracteriza o “elemento suspeito” a ser abordado e como ele representa o uso da força sobre os civis. No enfoque da população, há estudos sobre a percepção das pessoas sobre o policial, se as variáveis socioeconômicas e raciais são determinantes na construção dessa percepção, quais são as características que podem levar a uma vontade da população de cooperar com a polícia e qual é a percepção das pessoas sobre a abordagem policial. A maior parte dos estudos conclui a existência de uma relação conflituosa. A terceira área, estudos sobre tipos de violação a leis pela polícia, aborda as pesquisas sobre os diversos tipos de transgressão que a instituição polícia e o profissional policial cometem. Grande parte dos estudos aborda a violência policial contra os cidadãos, em que há excesso do uso da força e da letalidade. Entretanto, também há estudos sobre a agressão entre policiais, principalmente dos oficiais sobre os subalternos, e episódios de agressão muitas vezes relacionados à alta dose de estresse que advém da função ocupacional. Vale ressaltar que, no Brasil, a categoria profissional policial é a que tem o maior índice de suicídio. Muitas dessas pesquisas estão relacionadas à problemática dos direitos humanos. A quarta área refere-se aos estudos sobre um novo modelo de policiamento: a Polícia Comunitária. Esta é uma modalidade de policiamento que visa superar as representações negativas atribuídas à polícia a partir de práticas mais próximas à comunidade, como, por exemplo, policiais participarem de campanhas culturais, educativas e Polícia e Sociedade 255 de saúde com a população e a implantação de postos da polícia dentro das próprias comunidades. Portanto, tais práticas visam aproximar polícia e sociedade com o intuito de diminuir a hostilidade e tensão existente. Estes estudos buscam compreender como se organizam estas práticas e mensurar quais são seus impactos. Resultados preliminares indicam que houve uma diminuição da criminalidade na região em que há o policiamento comunitário, no entanto não se sabe se tal redução se deu pela simples presença física do policial, ou pela mudança de práticas da polícia. Tais áreas de investigação sobre a polícia são potenciais para que a Psicologia Política possa contribuir com suas ferramentas conceituais e interventivas, pois esta não realiza seus estudos de maneira fragmentada e isolada, por exemplo, das características institucionais da polícia, isoladas das características psicológicas do profissional-policial. Nossa proposta é de que sejam desenvolvidos estudos e práticas acerca da estrutura sociopolítica instituída da polícia articulada aos tipos de subjetividades e condutas que emergem do contexto do trabalho policial, a partir dos distintos lugares de poder assumidos. No próximo tópico, apresentaremos uma pesquisa que realizamos referente à segunda área, da relação polícia e sociedade. Polícia vs Juventude: uma pesquisa exploratória Visamos apresentar alguns dados de uma pesquisa-piloto realizada, no ano 2006, com policiais e jovens na cidade de São Paulo acerca desta tensa relação. Esta pesquisa fez parte de projeto de intervenção chamado “Polícia e Juventude” de uma OSCIP – organização da sociedade civil de interesse público – que tem como objetivo a redução da violência social a partir do trabalho com policiais e jovens residentes em regiões consideradas bolsões de violência. Pretendemos apresentar algumas respostas iniciais sobre as representações que cada grupo tem sobre o outro. Analisamos respostas da pesquisa composta por um survey (Creswell, 2003) preenchido por trinta policiais militares e cento e sessenta jovens e adolescentes. Os policiais militares participantes da 256 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval pesquisa eram alunos de Educação Física de uma faculdade privada localizada em um bairro de periferia da Zona Leste. A maioria dos policiais era soldados, sendo apenas dois cabos e um sargento, ou seja, apenas militares categorizados como subalternos. Os adolescentes e jovens tinham entre 15 e 24 anos, residentes dos bairros Jardim Ângela, na Zona Sul de São Paulo, e Brasilândia, Zona Norte; ambos bairros com alto índice de violência e situados na periferia da cidade. Todos os participantes da pesquisa tomaram parte voluntariamente. Em cada uma das questões da pesquisa, cada policial e cada jovem podiam colocar três respostas abertas, de forma que cada pergunta alcançou um repertório de 90 respostas para os policiais e 480 para os jovens. A partir das respostas, estabelecemos categorias gerais nomeadas por “adjetivos”. Agrupamos as diferentes respostas nessas categorias gerais e a figuramos em gráficos para facilitar a visualização. Portanto, citaremos apenas algumas das perguntas que fizemos aos policiais e aos jovens. Na Figura 1 está a frequência das respostas sobre como os policiais representam os jovens na atualidade. Na Figura 2 está a frequência das respostas de como o jovem imagina ser representado pelo policial. Na Figura 3, como o jovem representa o policial, e na Figura 4, como este imagina ser representado. Já na Figura 5, há representações de como o policial gostaria de ser percebido pelos jovens. Confirmar figura Sem resposta 11% Arrogante/desrespeitoso 10% Qualificado/bom 13% Rebelde/suspeito 13% Ameaçador/aproveitador 5% Criminoso/drogadicto 5% Apático/sem perspectiva 32% Figura 1. Como o policial representa o jovem. Vítima/excluído 11% Sem resposta Qualificado/bom 10% 3% 257 Arrogante/desrespeitoso 4% Rebelde/suspeito 16% Apático/sem perspectiva 21% Ameaçador/aproveitador 9% Confirmar figura Polícia e Sociedade Vítima/excluído 4% Criminoso/drogadicto 33% Figura 2. Como o jovem pensa ser representado pelo policial. Arrogante/desrespeitoso 7% Rebelde/suspeito 2% Qualificado/bom 28% Ameaçador/aproveitador 35% Apático/sem perspectiva 12% Vítima/excluído 3% Necessário 8% Criminoso/drogadicto 1% Confirmar figura Sem resposta 4% Sem resposta Qualificado/bom 3% Arrogante/desrespeitoso 6% 13% Apático/sem perspectiva 8% Vítima/excluído 2% Necessário 2% Criminoso/drogadicto 2% Ameaçador/aproveitador 64% Figura 4. Como o policial pensa ser representado pelo jovem. Confirmar figura Figura 3. Como o jovem representa o policial. Confirmar figura 258 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval Sem resposta 17% Necessário 13% Qualificado/bom 70% Figura 5. Como o policial gostaria de ser representado pelo jovem. A partir da Figura 1 constata-se que os policiais adotam representação negativa em relação ao jovem. Nele, apenas 13% das respostas são positivas, sendo que 32% qualificam o jovem como alguém apático e sem perspectiva. Contudo, na Figura 2, os jovens imaginam que os policiais têm uma representação muito mais negativa do que realmente têm. Há 87,2% de respostas negativas, em que a categoria “criminoso/ drogadicto” chega a ter 32,9% da frequência de respostas. Apenas 2,5% das respostas dos jovens referem-se a características positivas, porcentagem muito abaixo dos 13% atribuídos pelos policiais (Figura 1). O jovem imagina que o policial o representa como um infrator e sem perspectiva (54,3%). Talvez essa representação deva-se ao fato do jovem se sentir oprimido em relação às práticas do policial. Na Figura 3, “como o jovem representa o policial”, notamos ainda a tendência geral de atribuição de características negativas para o outro. Entretanto, há o aumento da atribuição de características positivas, em que se elevam para 27,8% as respostas relacionadas a “qualificado/bom” e há incidência de 8,2% para a categoria “necessário”. Por mais que a categoria “necessário” não se refira imediatamente a características positivas, distancia-se dos adjetivos negativos costumeiramente dados para o outro. Dessa forma, podemos dizer que em 36% das respostas dos jovens há uma “aprovação” do policial. Tal representação supera a dos policiais sobre o jovem, na qual apenas 13% das respostas são relativas a características positivas (Figura 1). Polícia e Sociedade 259 Na Figura 4, sobre como o policial imagina ser representado pelo jovem, há praticamente apenas respostas negativas (89%), porcentagem muito superior a que os jovens atribuem, inclusive, o policial imagina ser representado como ameaçador/aproveitador (64%), contra os 35% atribuído pelos jovens. Apenas 6% das respostas referem-se ao qualificado/ bom, enquanto os jovens atribuem 28% das respostas (Figura 3) a essa característica. Vale ressaltar que essa questão é a que apresenta menos respostas em branco (3%). Na Figura 5, sobre como o policial gostaria de ser visto pelo jovem, 70% das respostas relacionam-se ao profissional qualificado e amigo. Neste item, 17% das respostas não foram preenchidas, sendo a pergunta com maior ausência de respostas. Esse dado dá margem a hipóteses: por exemplo, a de que os policiais não se preocupam, ou não sabem como, ou preferem não pensar em mudar a imagem negativa que imaginam ter. Percebe-se claramente como os policiais atribuem a si uma imagem negativa perante os jovens, ao mesmo tempo em que almejam a imagem de profissional qualificado. Chama a atenção o grande número de ausência de respostas para esta questão (17%). Seguramente tais representações negativas, que no imaginário são muito mais intensas, tendem acirrar a tensão entre polícia e sociedade. A seguir, apresentamos mais três figuras sobre opiniões dos jovens acerca do trabalho do policial. No Gráfico 6 há respostas sobre o que os jovens consideram ser os objetivos da atividade policial, no 7, o que consideram como objetivos do policial na situação de abordagem e, no 8, se consideram importante o trabalho do policial. 31,5% 30% 24,8% 25% 20% 13,5% 15% 12,4% 10,4% 10% 7,5% 5% 0% Segurança, proteção Orientar, prevenção Repressão legítima Oprimir, agredir Ser ético, respeitoso Figura 6. Os objetivos do trabalho do policial, segundo jovem. Em branco Confirmar figura 35% Confirmar figura 260 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0% 34,8% 32,9% 15,9% 6,6% 6,2% 3,5% Segurança, proteção Orientar, prevenção Repressão legítima Oprimir, agredir Ser ético, respeitoso Em branco Confirmar figura Figura 7. Os objetivos do policial ao fazer a abordagem, segundo o jovem. 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 67,7% 17,4% 9,3% 5,6% Sem resposta Sim Não Às vezes/depende Figura 8. Você considera o trabalho do policial importante? Na Figura 6, a maior parte das respostas refere-se às funções de segurança/proteção (31,5%) e orientação/prevenção (24,8%). Dado que nos chama a atenção é de que 7,5% das respostas afirmam que a função do trabalho do policial é oprimir/agredir. Houve uma série de respostas que dizia ser o objetivo do trabalho do policial constranger, humilhar, agredir, assassinar, bater nas pessoas etc., objetivos que não estão previstos na legislação, mas que ocupam o imaginário e, talvez, a vida concreta, das pessoas. Na Figura 7 aumenta surpreendentemente a taxa de respostas que associam o trabalho do policial com atividades violentas. 34,8% das respostas apontam que o objetivo das abordagens policiais está ligado à repressão legítima e 32,4% a oprimir/agredir. Tendo por base a lei, esperávamos que as respostas versassem sobre as três primeiras categorias de respostas, contudo 1/3 do que os jovens responderam associa à abor- Polícia e Sociedade 261 dagem policial condutas muito violentas. Talvez a história vivida desses jovens aponte uma prática policial distinta do que está previsto na legislação e nas políticas de segurança pública. Contudo, sendo ou não representada como violenta, na Figura 8, constatamos que a grande maioria desses jovens considera ser importante o trabalho do policial (67,8%), 17,4% consideram que às vezes o é, enquanto apenas 9,3% julgam que tal trabalho não é importante. Diante de todo o exposto, fica claro que os primeiros resultados da análise corroboram as hipóteses acerca da conflituosa relação entre policiais e jovens, mas que é intensificada a partir do que cada segmento imagina como o outro o representa. Considerações finais No início do texto, foi discutido o caráter militarista da Polícia Militar, que lhe confere uma formação nas artes da guerra e na luta contra um inimigo, no entanto, sua atribuição profissional é civil, a de policiar e controlar as relações sociais na cidade e não de combater o cidadão. No breve histórico realizado, consonante com suas características militares, foi apresentado como a polícia teve papel protagonista nas campanhas bélicas dos acontecimentos nacionais e como o caráter militarista da polícia sempre foi afirmado; por isso, atribuímos um caráter híbrido à polícia militar, com uma atribuição civil, mas com um perfil militar. Podemos levantar a hipótese de que, devido ao caráter militar da polícia possa haver um maior uso da força e da violência empregadas no seu trabalho, que levam a uma má imagem que o jovem tem do policial (Figura 3), como também na própria auto-imagem que o policial tem de si, de como imagina ser representado pelo jovem (Figura 4). Essa formação calcada na lógica de “combater o inimigo” também pode contribuir para a má imagem que o policial tem do jovem (Figura 1), em que o jovem é representado e também imagina ser representado como inimigo (Figura 2). Um dado interessante é que os dois segmentos imaginam serem representados com atribuições muito mais negativas do que “real- 262 Domenico Uhng Hur e Salvador Antonio Mireles Sandoval mente” são representados pelo outro (a partir da comparação das respostas das figuras 2 com a 1 e 4 com a 3). Outro dado interessante é que, mesmo com as críticas dos jovens aos objetivos do trabalho do policial (Figura 6) e da abordagem policial (Figura 7), mais de 2/3 deles compreende o trabalho do policial como importante e apenas 9,3% compreendem como não importante (Figura 8), ou seja, por mais que a força e a violência empregadas nas ações policiais sejam duramente criticadas, a grande maioria dos jovens pesquisados, que são os mesmos que criticam os abusos da polícia e têm representações negativas sobre o policial militar, considera o trabalho do policial importante. Dessa forma, os dados da pesquisa corroboram com o pressuposto de que a Psicologia Política pode ser bastante contributiva para a análise institucional dessa tensa relação, considerando que pudemos tornar visível como cada segmento se autorrepresenta como muito mais ameaçador ao outro do que realmente é representado, o que, provavelmente, aumentaria suas defesas e hostilidades em relação ao outro. Pode-se concluir, a partir daí, que apenas uma reforma na estrutura da polícia, sua desmilitarização, ou a criação de uma polícia comunitária, não são condições suficientes para transformar essa relação. São condições necessárias, mas, além das mudanças institucionais, os dados mostram a importância de realizar um trabalho psicossocial entre os membros de ambos os grupos para que tais representações possam ser ressignificadas e reconstruídas, diminuindo, assim, a violência institucionalizada exercida por segmentos do Estado. Referências Benevides, M. V. M. (1996). 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