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Apresentação. Intersecções do exílio

2020

No campo das artes, processos de migração, voluntários ou forçados, desempenham papel crucial na criação e difusão de ideias, conceitos e novas formas de expressão artística, rompendo barreiras entre "centro" e "periferia", estilhaçando cânones e modelos. A circulação e mobilidade de artistas e agentes culturais nas mais diferentes regiões do globo promoveu a constituição de redes criativas e de coletivos artísticos que cruzaram, por isso, diferentes experiências de desenraizamento cultural, experimentalismo bicultural, projetos artísticos individuais e programas de solidariedade política e social. A associação entre artistas e galeristas, curadores e colecionadores (muitas vezes também eles em migração) nos países de destino deu visibilidade e estruturou essas colaborações criativas, tornando o seu papel relevante em contextos distintos, os de partida e de chegada, articulando deste modo múltiplas realidades e práticas artístico-culturais. Este dossiê sublinha o...

Apresentação. Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações Presentation. Intersections of exile: transnational artistic networks, associations and collaborations Dra. Leonor de Oliveira Dra. Maria de Fátima Morethy Couto Como citar: OLIVEIRA, L.; COUTO, M.F.M. Apresentação. Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.1, p.86-90, jan. 2020. Disponível em: ˂https://www.publionline.iar.unicamp.br/ index.php/mod/article/view/4526˃. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v4i1.4526. Imagem: Foi Deus quem fez você, Jorge Fonseca, 2001 (detalhe). Fotografia: Marize Malta (2018). Apresentação. Intersecções do exílio: transnacionais, associações e colaborações redes artísticas Presentation. Intersections of exile: transnational artistic networks, associations and collaborations Dra. Leonor de Oliveira* Dra. Maria de Fátima Morethy Couto** Resumo No campo das artes, processos de migração, voluntários ou forçados, desempenham papel crucial na criação e difusão de ideias, conceitos e novas formas de expressão artística, rompendo barreiras entre "centro" e "periferia", estilhaçando cânones e modelos. A circulação e mobilidade de artistas e agentes culturais nas mais diferentes regiões do globo promoveu a constituição de redes criativas e de coletivos artísticos que cruzaram, por isso, diferentes experiências de desenraizamento cultural, experimentalismo bicultural, projetos artísticos individuais e programas de solidariedade política e social. A associação entre artistas e galeristas, curadores e colecionadores (muitas vezes também eles em migração) nos países de destino deu visibilidade e estruturou essas colaborações criativas, tornando o seu papel relevante em contextos distintos, os de partida e de chegada, articulando deste modo múltiplas realidades e práticas artístico-culturais. Este dossiê sublinha o impacto de projetos colaborativos transculturais na (re)definição de contextos artísticos locais, no agenciamento político e social e no diálogo intercultural, dando particular atenção a grupos formais ou informais que desafiaram narrativas historiográficas, sobretudo as produzidas no universo europeu e norte-americano, diversificaram formas de intervenção e exposição e definiram novas geografias de intercâmbio. Palavras-chave Migrações. Exílio. Redes artísticas transnacionais. Abstract In the field of arts, migration processes, whether voluntary or enforced, play a crucial role in the creation and diffusion of ideas, concepts and new forms of artistic expression, breaking down barriers between “center” and “periphery”, splintering canons and models. The circulation and mobility of cultural agents and artists in the most diverse regions of the world has promoted the formation of creative networks and artistic collectives that, for this reason, have crossed different experiences of cultural uprooting, bicultural experimentalism, individual art projects and political and social solidarity programs. The association between artists and galleries, curators and collectors (who are often in migration themselves) in the destination countries gave exposure to and structured these creative collaborations, making their role significant in distinct contexts, those of departure and of arrival, thus connecting with multiple realities and cultural-artistic practices. This dossier underlines the impact of transcultural collaborative projects in the (re)definition of local artistic contexts, on political and social agency and on intercultural dialogue, paying particular attention to formal or informal groups that have challenged historiographical narratives, especially those produced in Europe and North America, diversified forms of intervention and exhibition and defined new geographies of exchange. Keywords Migrations. Exile. Transnational artistic networks. MODOS revista de história da arte - volume 4 | número 1 | janeiro - abril de 2020 | ISSN – 2526-2963 87 O dossiê Intersecções do exílio: redes artísticas transnacionais, associações e colaborações surgiu de nosso interesse mútuo pelo tema, que desenvolvemos em pesquisas e artigos recentes. Considerando que processos de migração, no campo das artes, desempenham papel crucial na criação e difusão de ideias, conceitos e novas formas de expressão artística, rompendo barreiras entre "centro" e "periferia" e estilhaçando cânones e modelos, buscamos, com nosso dossiê, estimular o debate e a reflexão sobre a constituição de redes criativas e de coletivos artísticos ao redor do globo. Não se trata, evidentemente, de menosprezar os efeitos nefastos de migrações forçadas na vida de indivíduos, grupos sociais e comunidades, mas de discutir o potencial transformativo de intercâmbios diversos no campo das artes. Interessava-nos, em particular, discutir a formação de grupos formais ou informais que desafiaram narrativas historiográficas, sobretudo as produzidas no universo europeu e norteamericano, diversificaram formas de intervenção e exposição e definiram novas geografias de intercâmbio. Os textos aqui reunidos abordam diferentes geografias, reenquadram temas e personagens europeus e norte-americanos no contexto da América Latina ao mesmo tempo em que discutem os efeitos da passagem de artistas latino-americanos pelos centros hegemônicos de poder. A partir de diferentes perspectivas, propõem-se a novas leituras sobre a circulação e mobilidade de artistas e agentes culturais e sobre suas experiências criativas e comerciais no exílio. Torna-se claro que as próprias práticas artísticas locais bem como o contexto político e de imigração intervêm no acolhimento de obras de arte, movimentos e mesmo leituras historiográficas sobre o passado. Desses cruzamentos ou confrontos podem, então, resultar tensões e divergências que longe de serem prejudiciais propiciam a possibilidade de se escreverem diversas histórias e não apenas uma versão única, nacional ou hegemônica das práticas artísticas a nível global. As tensões entre um centro que dita normas estéticas e de atuação plástica/política e as suas ramificações heterodoxas podem levar à criação de uma categoria específica de “exilados artísticos”, como aconteceu no caso do Situacionismo, aqui tratado. Este dossiê aponta também para as diferentes experiências de exílio que promovem o reforço de ligações artísticas e culturais anteriormente estabelecidas e, inclusivamente, a constituição uma “segunda vida” para a obra ou seu autor. Deste modo, rotas artísticas alternativas se estabelecem, do Chile para a Bulgária, de França para Portugal, de Itália para a Argentina ou para o Brasil, da Europa germanófila para o Uruguai, dependendo da trajetória pessoal de artistas, historiadores de arte ou curadores. A ideia de uma circulação mais fluída que permite estabelecer laços com os meios artísticos e culturais de destino é reforçada se atentarmos precisamente nas histórias individuais, que indicam contactos préestabelecidos e redes de sociabilidade. Por outro lado, delimitações narrativas sobre a “Escola de Londres” ou o “Nouveau Réalisme” ou da arte comprometida da Europa a leste da cortina de ferro, tornam-se mais frágeis quando confrontadas com o trabalho de artistas vindos das chamadas “periferias” da Europa ou do continente americano, que introduzem novas questões estéticas e políticas e novas coordenadas culturais e, consequentemente, produzem olhares críticos sobre os cânones estéticos estabelecidos ou oficializados. MODOS revista de história da arte - volume 4 | número 1 | janeiro - abril de 2020 | ISSN – 2526-2963 88 Outro elemento importante que o estudo do percurso pessoal revela é a transferência dessa mesma fluidez para o trabalho em contexto de exílio, que aproxima as diferentes geografias e conjuga processos culturais e artísticos e metodologias historiográficas. Termos como “biculturalismo”, “contaminação”, “hibridismo”, “cruzamento”, “troca” podem explicitar os efeitos do encontro entre o contexto de partida e de chegada e definir um circuito de transferência com duplo sentido. O dossiê abre com a contribuição de Joana Baião e Leonor de Oliveira sobre a migração dos artistas portugueses Paula Rego, João Cutileiro, Bartolomeu Cid dos Santos, Lourdes Castro e René Bertholo para Londres e Paris no imediato pós Segunda Guerra. O artigo analisa a participação desses artistas na formulação de uma nova corrente estética, a nova-figuração, debruçando-se sobre o caráter contemporâneo de seus trabalhos, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista da nova cultura de massas e de consumo. Aborda, em especial, a recepção pela crítica portuguesa da obra desse conjunto de artistas e aponta sua tentativa de “nacionalização” da nova-figuração. Na sequência, a análise se volta para o período de exílio de um artista brasileiro em Portugal, nos anos finais da Segunda Guerra (1942-1945). Angela Grando analisa as transformações que se operaram na obra do pernambucano Cícero Dias, tendo como fio condutor as exposições em que participou e as mostras individuais que organizou em Lisboa e Porto, e a recepção de seu trabalho pela crítica portuguesa, no período em que residiu no país, após ter sido obrigado a deixar a França por ter se tornado prisioneiro dos alemães. A seu ver, trata-se de um período fértil em emoções e descobertas, já que o artista brasileiro tem um convívio amigável com um crescente grupo de artistas e escritores atuantes em Portugal e sua pintura ganha novas configurações formais que o conduzirão, quando de seu regresso a Paris, em 1945, a afirmar sua vocação para a pintura abstrata. Os artigos de Katarzyna Cytlak e David A. J. Murrieta Flores também nos levam a refletir sobre a relação entre arte e política e sobre o compromisso social de artistas e grupos artísticos, modelados na tentativa vanguardista de transformar o mundo, abordando exemplos concretos dos anos 1960/70. A partir do estudo de caso do artista chileno Guilhermo Deisler, que se radica na Bulgária após o golpe de Estado de Pinochet, em 1973, mas que se mostra igualmente descontente com as ditaduras de esquerda, Cytlak discute o papel da arte conceitual como ato de rebeldia e resistência. Flores, por sua vez, compara as propostas da Internacional Situacionista, com o discurso mais radical do grupo de dissidentes organizado em torno da revista The Situationist Times, por Jacqueline de Jong. Para tanto, toma como ponto de partida a diferença entre “movimento” e “organização”, que configura, a seu ver, as maneiras pelas quais artistas e escritores de diferentes países participaram de cada um. Já Maria Frick oferece ao leitor um panorama da assimilação do ideário expressionista europeu no Uruguai da primeira metade do século XX a partir da entrada e circulação no país de artistas imigrantes e refugiados. Em sua opinião, a assimilação não se deu em uma única direção, já que à medida que os artistas migrantes procuravam se adaptar à realidade local, seu trabalho também se transformava em contato com a produção ali realizada. Assim, no lugar de entender o processo de assimilação como um fenômeno de empobrecimento cultural, ela o percebe como um fator único e novo. Os quatro artigos seguintes debatem as atuações de determinados agentes culturais fora de seus locais de origem e/ou analisam os efeitos de suas correspondências nas ideias sobre arte. Os nomes de Bernard Berenson e de Margherita Sarfatti aparecem em três dos quatro textos. Enquanto Fernanda Marinho sublinha a importância das conexões teóricas entre Berenson e Lionello Venturi, em especial MODOS revista de história da arte - volume 4 | número 1 | janeiro - abril de 2020 | ISSN – 2526-2963 89 seu interesse em rever a forma renascentista a partir das lentes da arte moderna, Ana Gonçalves Magalhães analisa a relação entre Berenson e a crítica de arte italiana Margherita Sarfatti e as ações desta última junto ao meio artístico portenho empenhado na promoção da arte moderna e da história da arte como disciplina acadêmica na região. Em ambos os casos, as autoras tomam as cartas trocadas entre os personagens estudados como fontes documentais de suma importância para entender o desenvolvimento de suas ideias no campo da arte, inserindo este debate no contexto política fascista e das dificuldades impostas pelo pós-guerra. Em estreito diálogo com o artigo de Ana Magalhães, Laura Cecchini nos apresenta uma fina análise da exposição Novecento em 1930 em Buenos Aires, organizada por Sarfatti, discutindo as intenções curatoriais que presidiram sua realização e destacando o impacto de projetos transnacionais na redefinição de geografias artísticas, bem como os interesses políticos em jogo neste projeto. O dossiê finaliza com uma contribuição de Paolo Rusconi sobre o legado de Pietro Maria Bardi para o Brasil e para a Itália, focando-se, em especial na criativa colônia de artistas e arquitetos italianos que gravitaram em torno de Bardi e que, assim como ele, interagiram com a riqueza criativa e cultural de um país continental como o Brasil. Este dossiê descentraliza, por isso, as histórias de migração artística e exílio, multiplicando destinos, rotas e atores, e projetando, assim, uma imagem complexa e global dos diálogos artísticos e práticas criativas. Novas relações e informações são estabelecidas e desenvolvidas, as quais, acreditamos, auxiliarão no aprofundamento do entendimento das relações criativas no continente europeu e americano e entre a Europa e a América Latina. Já não se trata de identificar territórios de criação e territórios de recepção, mas de afirmar a existência de um espaço dinâmico em que práticas e movimentos artísticos são discutidos criticamente e transformados em paralelo com interesses políticos e resistências locais contra a imposição de projetos político-culturais hegemônicos. Notas * Leonor de Oliveira é investigadora integrada do Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa. A sua investigação de pós-doutoramento centra-se no contexto de migração de artistas portugueses para Londres no pós-guerra e está a ser também desenvolvida no Courtauld Institute of Art, Londres. Publicou recentemente a monografia Portuguese Artists in London: Shaping Identities in Post- War Europe, editada pela Routledge. E-mail: leonor.oliveira@fcsh.unl.pt. ORCID: ˂https://orcid.org/0000-0001-7125-8875˃. ** Maria de Fátima Morethy Couto é professora Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp. Em seu estágio de pós-doutorado, realizado no Centro de Pesquisa TrAIN da University of the Arts (Londres), com bolsa da FAPESP, e no INHA (Paris) analisou a passagem de artistas ligados à arte construtiva/cinética oriundos da América do Sul, em Londres e Paris, durante as décadas de 1950/70. Já publicou diversos artigos referentes a este tema. E-mail: mfmcouto@unicampbr. ORCID: ˂ https://orcid.org/0000-00030561-6616˃. Texto recebido em janeiro de 2020. MODOS revista de história da arte - volume 4 | número 1 | janeiro - abril de 2020 | ISSN – 2526-2963 90