A proposta criativa de
Étienne Decroux e a
passagem de fronteiras:
a interculturalidade como
procedimento artístico
Bya BRAGA1
Resumo
O presente trabalho é uma reflexão acerca da proposta criativa de Étienne Decroux, por meio da arte Mímica Corporal
Dramática, na relação com o pensamento intercultural. Esta
análise encontra apoio inicial na noção do teatro como um
fenômeno de confluências. Ela busca reconhecer a interculturalidade como uma passagem de fronteira, a começar no exercício do ator/performer sobre si mesmo e sua identidade cultural, abrindo-se para um comportamento cênico dialógico que
possa criar gestualidades expressando híbridos performativos.
Palavras-chave: Mímica Corporal Dramática
Interculturalidade. Híbrido performativo.
Abstract
This work reflects on the creative proposal of Étienne Decroux,
through art Corporeal Mime, in its relation to intercultural
thinking. This analysis finds initial support at the concept of theater as a phenomenon of confluence. It seeks to recognize interculturalism as a border crossing, departing from the exercise of actor
/ performer on himself and his cultural identity, opening himself
to a dialogical scenic behavior which might create gestualities and
express performative hybrids.
Keywords: Corporeal Mime. Interculturalism.
Performative hybrids.
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1.
Bya Braga (nome artístico
de Maria Beatriz Mendonça)
é atriz e diretora cênica.
Professora e pesquisadora
na Universidade Federal de
Minas Gerais, Escola de Belas
Artes, Curso de Teatro e
Programa de Pós-Graduação
em Artes. Seu campo de
trabalho inclui Processos
criativos, Teatro físico,
Mímica Corporal Dramática e
Atuação, entre questões sobre
a performatividade e corporeidade. Coordena o Grupo de
Pesquisa LAPA – Laboratório
de Pesquisa em Atuação/
CNPq. É atual Diretora da
Escola de Belas Artes da
UFMG.
Os monstros, felizmente, existem não para
nos mostrar o que não somos,
mas o que poderíamos ser. (...)
Que corpo podemos nós ter hoje?
José Gil
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros.
Oswald de Andrade
(...) blasfemar é sonhar.
Homi K. Bhabha
O interculturalismo nas artes da cena pode ser investigado
a partir de algumas práticas e teorias tais como a noção de
duplo em Antonin Artaud, as experiências de Jerzy Grotowski
na arte como veículo, as vivências sobre culturas e cena de Peter
Brook, e também de Ariane Mnouchkine, bem como por meio
das proposições de Eugenio Barba e Nicola Savarese sobre as
manifestações espetaculares entre Ocidente e Oriente. No
Brasil também possuímos referências específicas, como a carnavalização e antropofagização na cena de José Celso Martinez
Correa, as pesquisas práticas de atores do Grupo Lume, os
estudos da performance realizados por Renato Cohen2, entre
outros. A temática da interculturalidade não é, portanto,
uma discussão nova no campo da criação performativa, mas
reconhecemos sua ênfase nas últimas décadas articulada com
reflexões oriundas dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais.
Neste texto, experimentamos um modo específico de
pensar e praticar a interculturalidade nas artes da cena com o
foco sobre o fazer do atuador (ator/performer), em um topos de
atuação expandida e paradoxal. Para esta reflexão, destacamos
a arte Mímica Corporal Dramática como referência principal,
técnica cênica francesa criada por Étienne M. Decroux (18981991).3 Junto dela, abordamos questões sobre alteridade e
hibridismo, o que nos dá suporte para a compreensão sobre o
aparecimento de símbolos “misturados” na atuação. Aqui chamaremos isso de composição de “híbridos performativos”. O
performativo é uma produção expressiva que pode conter, em
si, processos de adaptação, contaminação, fusão, ou mesmo
transcriação de aspectos artísticos e culturais. Assim, falar em
“híbrido performativo” pode soar redundante. No entanto, a
ênfase aqui é proposital porque queremos sinalizar a vivência
do híbrido na atuação como um dos resultados do processo
intercultural. Este “efeito” se fundamenta em princípios tais
como o entendimento de que a noção de identidade humana
não é algo estável e fixado. Ao contrário. E, no Brasil, país com
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2.
Conferir o artigo de Renato
Cohen: Cartografia da cena
contemporânea: matrizes
teóricas e interculturalidade.
São Paulo: Revista Sala Preta/
PPGAC/USP, 2001, p. 105-112;
o livro de Renato Ferracini,
Café com queijo. Corpos em
criação. Campinas: HUCITEC,
2012; e o livro de Suzi Frankl
Sperber, Contadores de histórias da Amazônia ribeirinha.
Campinas: HUCITEC, 2012.
3.
Sobre a arte Mímica Corporal
Dramática e suas relações
com a arte da cena contemporânea, conferir o livro:
Étienne Decroux e a artesania de ator. Caminhadas
para a soberania. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2013,
de nossa autoria.
bases culturais sincréticas, mesmo que não façamos intercâmbios entre povos distintos, precisamos, em nós mesmos,
negociar as múltiplas referências e expressões culturais que
possuímos a fim de manifestarmos nossa identidade. Nossa
presença no mundo não é, portanto, inocente. Não podemos
ou devemos negar quem somos. Para um ator/performer,
esta negociação cultural em si mesmo se torna um ato de trabalho constante. Ele precisa, continuamente, revisar o que vai
expressar a partir de si, de seu corpo, seu suporte artístico, seja
representando, seja apresentando a si mesmo entre as figurações que cria. Neste sentido, um atuador tende a se colocar em
constante processo de pesquisa autoetnográfica, investigando
as diferentes referências culturais que compõem seu ser a fim
de produzir, por meio de sua existência, outras existências. E,
por meio delas, dialogar com o mundo.
Étienne Decroux parece ter vivido uma autoetnografia
por cerca de seis décadas, o tempo divulgado de seu trabalho
na criação/pesquisa e apresentação da arte Mímica Corporal.
O que observamos a partir de sua experiência, em especial
consigo mesmo, mas também por meio de sua arte nos seus
aspectos de transmissão e na relação com a interculturalidade? Podemos compreender que a Mímica Corporal pode
ser abordada como uma plataforma artística de incentivo às
experiências cênicas, com ênfase corporal, que problematizem a identidade humana que ainda pode ser pretensamente
entendida como algo integrado, limitado, fixado. E ela faz isso
em procedimentos artísticos bastante rigorosos fisicamente,
que lhes são característicos. Seus princípios técnicos não são,
porém, para a permanência de uma expressividade de atuação
em gestos fixados, mas para a aparição de “ações presentes”,
como disse o próprio Decroux (1994, p. 144).4 Esta arte pode
ser também uma base para a criação de expressões específicas
em uma atuação, ou seja, pode colaborar diretamente na composição de híbridos performativos corporais nas ações do atuador. Além disso, a Mímica Corporal, ao não desconsiderar o
jogo do ator com ele mesmo e com o outro como um elemento
importante de trabalho, revela o lúdico a partir do trabalho
corporal e sensorial.
Para pluralizarmos esta reflexão, esclarecemos que buscamos também inspiração nos estudos de dois filósofos:
Mikhail Bakhtin, sobre arte e responsabilidade e também sobre
expressão, e Georges Bataille, sobre a soberania da arte.5
Alertamos, porém, para o fato de que na abordagem que
aqui fazemos não podemos assegurar que o que dissermos
escape de uma utopia de um sonho singular para as artes da
cena, com a valorização de um entre-lugar complexo e mistu-
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4.
Josef Nadj (1957-...) é um
artista que compreende
isso bem e propõe concretamente inovações artísticas
a partir de suas diversas
referências, entre elas a
Mímica Corporal Dramática
e a Dança contemporânea.
Ele diz em uma entrevista:
“Podemos fazer essa analogia
e dizer que as criações são a
máscara de um coreógrafo.
Uma máscara não serve só
para esconder, muitas vezes
também serve para revelar
dimensões escondidas. Tal
como as pessoas, também as
obras vivem de coisas que nos
escapam”. (...) “Como pode o
gesto falar de algo que está
em permanente mudança?
Como pode o gesto ser a voz
dessa mudança?”
Em: http://www.publico.pt/
culturaipsilon/noticia/
autoretrato-de-um-homem-a-atravessar-um-rio-1661895.
Acesso em 02/07/2015.
Conferir também:
http://www.josefnadj.com/.
5.
As proposições de M. Bakhtin
podem ser conferidas nos
livros citados nas referências
ao fim deste texto. Sobre o
pensamento de G. Bataille,
conferir no livro citado na
nota 2, em especial p. 131-147.
rado para a atuação, talvez de difícil concretização continuada
por um artista. Não queremos, também, de modo ingênuo e
não contextualizado, buscar simplesmente inverter algo considerado como um cânone ou um poder estabelecido, a fim
de obtermos o que não possuímos ou abrigar em nós algo que
está fora de nossos hábitos com o fim de colecionar repertórios cênicos. E, por outro lado, não pretendemos criar super
valores para o que não está no chamado “centro”, pois este é
uma construção cultural, não uma realidade, como também o
é o que está “fora” dele. Queremos, portanto, destacar a noção
do encontro como eixo vital para a arte da cena (assim trabalhamos em nossas atividades de pesquisa, criação e ensino). E,
com ela, afirmarmos o valor do diálogo, da experiência, da conversação6 , seja entre o outro e nós ou seja em nós mesmos entre
as próprias diferenças de nossa composição cultural humana.
Reafirmamos que é importante considerarmos nossa formação
por meio de multiplicidades e de mobilidades identitárias culturais. Por isso, desejamos que as possibilidades potentes de
uma confluência artística apareçam no convívio entre pessoas
e artes, valorizando as diferenças de todas as espécies, tipos,
modos, gêneros, etc, buscando, assim, as transcriações possíveis já a partir do trabalho sobre nós mesmos atuadores.
A relação artística que estabelecemos no contato com a arte
do mimo corporal toma como princípio de que fazemos parte
de uma cultura, no Brasil, permeada pela mistura sincrética,
intertextualizada em códigos e referências. Além disso, não
desconsideramos algumas experiências que tivemos no campo
teatral anteriores a arte de Decroux, no âmbito da formação
artística e do trabalho profissional com artistas, propiciando
encontros com base na diferença.7 Isso nos deu um solo fértil
para, ao encontrarmos mais diretamente com a arte francesa
Mímica Corporal, compreendermos sua dimensão ética e as
possibilidades técnicas artísticas que ela contém para além de
atuações formalistas ou de esteticismos. Com ela nos permitimos, então, fazer processos adaptativos para uma atuação
contemporânea que se pretenda dialógica. Os modos para isso
podem ser mais perceptíveis na prática com esta arte. Mas,
aqui buscamos sinalizar alguns caminhos.
Para realizarmos percursos de uma adaptação ou mesmo
apropriação de uma técnica artística que é estrangeira a nós,
consideramos seus contextos de origem, princípios éticos e
treinamentos artísticos específicos em busca de uma artesania8 eficaz com ela. Decroux revelava seu receio com um
processo artístico intercultural que se realizasse sem aprofundamento anterior na própria experiência de vida do
artista ou mesmo com a arte que ele propunha. A noção
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6.
Referimo-nos aqui à concepção do “ato de conversar”
de Humberto Maturana.
Conferir o livro A ontologia da
realidade. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1997, p. 167-181, com
organização de Cristina Magro,
M. Graciano e N. Vaz.
7.
Em 1992 e 1993 participamos
como atriz e pesquisadora do
grupo “Andarilhos Mágicos”
(RJ), criando de modo colaborativo dois espetáculos (palco e
rua). O grupo, coordenado pelo
Prof. Dr. Rafalele Infante (UFRJ),
era formado por pacientes psiquiátricos, estagiários da área
de Saúde Mental, além de nós,
e assessorados por profissionais
desta área. Sua sede era no
Teatro Qorpo Santo (RJ), pois o
grupo se vinculava ao Instituto
de Psiquiatria da UFRJ por meio
de oficinas comunitárias do
Hospital-Dia e Centro de atenção
psicossocial. Em 1993, apresentamos espetáculo do grupo no
VII Festival Internacional de
Teatro do Oprimido, o primeiro
a se realizar no Brasil. Em
2001, ministramos aulas de
teatro e dirigimos o espetáculo
“Nossa padaria”, inspirado em
A padaria, de B. Brecht, com a
comunidade do Assentamento
de Reforma Agrária Dorcelina
Folador, em Arapongas-PR,
integrante do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem
Terra. Este espetáculo integrou
a programação do Festival
Internacional de Teatro de
Londrina (FILO).
8.
A noção de artesania de ator/
performer é uma proposição
que fazemos para o trabalho de
treinamento e composição artística, relacionados à processos
de pesquisa de um atuador. Sua
conceitualização é exposta no
livro citado na nota 2.
intercultural trazida por ele poderia estar referenciada e
limitada ao intercâmbio entre culturas distintas, ou seja, no
convívio entre povos e suas técnicas artísticas diferentes.
No contexto da primeira metade do século 20, com a menor
experiência de encontro cultural existente, o temor com o
trânsito de fronteiras era algo mais evidente. E isso poderia
ser compreendido em razão dos riscos de criação de um tipo
de sincretismo que resultasse na anulação de dada cultura,
em processos de colonização, ou até mesmo em uma manifestação de aspecto exótico fetichista, esvaziando princípios
éticos culturais existentes. Decroux não visava uma produção
artística “exótica” e demonstrava recear determinado modo
de sincretismo. Ele se manteve focado artisticamente em
objetivos específicos, ou seja, na criação e defesa de uma arte
potente de ator que se comparasse, na sua idealização, com
a arte da escultura, da pintura e do desenho. Decroux queria
criar uma arte específica de ator. Portanto, conciliar esta
motivação com uma prática intercultural, nas percepções
acima expostas, poderia ser uma ação inviável para ele. Além
disso, Decroux recebia críticas na França por estar criando
uma arte que já demonstrava grande diferença para o teatro
ortodoxo no ocidente europeu, pois ela não estava assentada
em dramaturgias textuais ou mesmo em concepções voltadas para a pesquisa de encenação. Por isso, ao visar outra
maneira de jogo para o atuador, ou seja, um jogo que parte da
pesquisa do próprio corpo e de sua presença, e com produção
de imagens corporais insólitas, podemos compreender que a
arte da Mímica Corporal colabora, mas em outra perspectiva,
como preparadora para um comportamento intercultural do
atuador, ainda que notemos ambiguidades e contradições de
seu inventor.
Assim, o princípio intercultural aqui tratado por nós na
relação com o mimo corporal é pensado, primeiramente, como
o estudo do nível “biológico” do teatro por meio da pesquisa
aprofundada do ator/performer sobre si mesmo, uma condição
técnica importante na busca da alteridade. Este modo de investigação artística tende, assim, a abrir processos de conscientização no indivíduo artista que explorem sua multiplicidade
expressiva. Compreendemos isso como um trabalho de alteridade poética que se inicia no reconhecimento das diferenças
que existem em nós mesmos e que nos compõem como ser cultural. Para Decroux, isso é um trabalho que se relaciona à atitude de um artista frente ao mundo. “A atitude é, talvez, mais
que uma pontuação de movimento. É talvez o testemunho,
o balanço. Em todo caso, é um resultado” (Decroux, 1994, p.
124). E, paralelo a isso, a interculturalidade pode se apresentar
como um exercício de fortalecimento de procedimentos téc-
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nicos diferentes de uma atuação ortodoxa ocidental, em bases
realistas, com geração de resultados também diferentes.
Para isso, tomamos aqui alguns exemplos de práticas da
Mímica Corporal, ancoradas em bases filosóficas-técnicas
desta arte, que podem nos auxiliar na discussão sobre procedimentos interculturais com ela: 1. Prática corporal do atuador
como pensamento para a pesquisa e a criação: o trabalho de
atuação é considerado por Decroux como um ato de desenhar
o corpo na relação com o espaço e com o outro. Assim, ele valoriza uma alteração na hierarquia da erudição, valorizando a
elaboração do conhecimento por meio do corpo do artista, de
sua experiência sensível, e não mediada, primordialmente,
pelo estudo livresco, pela leitura. O pensamento se apresenta,
portanto, no movimento expressivo corporal e na presença do
atuador; 2. Dilatação do ser: treinamento energético e estudo
de movimento para um jogo com a tridimensionalidade do
corpo; 3. Ocultação do rosto no treinamento do atuador por
um véu: o rosto é uma parte do corpo humano considerada
por Decroux de limitado trabalho. Ao ocultá-lo, desloca-se
um centro expressivo importante do corpo humano no teatro
ortodoxo, fazendo aparecer outra “face” no corpo do atuador.
Esta pode ser “localizada” no tronco, o que revela outra alteração hierárquica; 4. Criação de ações na relação com a força
da gravidade e a alteração de equilíbrio: realização de trabalho com os pés, seja em posicionamentos diferentes, seja por
exercícios do repertório mímico corporal sobre “contrapeso” e
entre “supressões de suporte”; 5. Intensa interarticulação corporal com bases no jogo da “estatuária móvel” e dos “ritmos
dinâmicos”; 6. Jogo com a equivalência: o estudo do outro por
meio da criação de equivalentes corporais, ou seja, a revelação
de uma transposição, uma suposição do original, uma transcriação. “Encontramo-nos mais ou menos perto da noção de
presença que não representa” (Decroux, 1994, p. 150).
A composição de ator embasada na prática do mimo corporal valoriza, assim, descobertas de si em processos, inicialmente, individuais de desconstruções, fragmentações e contrafações corporais. Contrafazer, na arte do mimo corporal, é um
ato de jogar com a forma expressiva. Decroux criou, portanto,
uma dinâmica de jogo para o atuador que coloca em questão sua
identidade cultural humana conhecida antes mesmo de haver
um diálogo com o que está além dele. Ele propôs que fosse feita
uma pesquisa sobre nós mesmos em um modo de “aculturação”
técnica. Com isso, revelou seu desejo de que, ao fim, tudo pudesse
se tornar uma presença potente do atuador, podendo este se
manter, até, imóvel na sua aparição ou, ainda, sem um tipo de
movimento expressivo que revelasse repertórios e padrões téc-
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nicos de sua arte. Neste sentido, sua proposição promove um
modo de desestabilização do ser mas, ao mesmo tempo, abre-o
ao encontro com um Outro fora dele para uma nova composição.
A revelação desta pode se aproximar de uma expressão corporal
híbrida, seja no conjunto gestual diferenciado que a própria
arte do mimo corporal produz, seja na base técnica que ela dá
para outras apropriações e expressões de ator.
Pensamos, assim, que este modo de trabalho de atuação com a Mímica Corporal colabora eficazmente para uma
expressividade distinta do atuador que podemos também
relacionar com a noção de “monstruosidade”, mas sem necessariamente focar-se em objetivos estéticos formalistas. Mas de
que “monstro” falamos? Daquele que se fundamenta no jogo
com a multiplicidade do movimento expressivo propiciada
pelo exercício do mimo corporal e se cria a partir desta experiência abrindo-se a improvisos de atuação com uma produção
gestual “misturada”.
Esta “mistura” pode se constituir, de modo mais habitual,
no excesso expressivo da gestualidade do atuador, no seu
ímpeto de ação, na intensidade e grande energia de sua presença. Mas, em continuidade, se mostra também a partir de
certa indisciplina e até insolência em relação ao seu trabalho
técnico de origem. Mesmo continuando a se alimentar de práticas sobre o corpo desfigurado e contrafeito, esta expressividade problematiza as regras corporais aprendidas no processo
de “aculturação técnica”. Trata-se, assim, de uma mistura que
suscita um devir-outro para além do eu do artista.
O devir-animal está sempre latente em nós; com menos evidência,
mas não com menos intensidade, o devir-vegetal e o devir-mineral
[e outros que estejam em novas classificações biológicas]. E o que
é um devir senão a experimentação de todas as nossas potências _
afetivas, de pensamento, de expressão? (Gil, 2007, p.178)9
O híbrido performativo, portanto, pode ser constituído
a partir da pesquisa prática da expressividade corporal do
artista e da investigação entre seres (eu e outro, sendo corpos
de homens e animais; corpos vivos e objetos ou máquinas),
gêneros, disciplinas e também de técnicas artísticas. A forma
artística híbrida resultante do trabalho de uma atuação performativa, por meio desses conteúdos, tende a gerar um forte
estranhamento em quem a recebe, a vê, pois trata-se de algo
mostrado que se revela diferente do humano costumeiro, e até
de equivalências expressivas, mas que pode despertar uma
sensação familiar. Corpos híbridos nas atuações performativas podem, então, nos fazer ver algo que deveria estar escondido no humano ator/performer, mas aparece. A reflexão aqui
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9.
O filósofo nos chama também
a atenção, por outro lado,
para o fato de que não
há devir real por meio da
monstruosidade, pois os
signos desta servem como
uma anunciação de algo que
sinaliza uma privação, ou
seja, a limitação da figuração
do corpo teratológico para
um devir. O “corpo monstro”
sinaliza uma irreversibilidade. Recomendamos a
leitura do artigo de José
Gil, Metafenomenologia da
monstruosidade: o devir-monstro. In: James Donald;
Ian Hunter; J. Jerome Cohen e
José Gil. Trad. Tomaz Tadeu.
Pedagogia dos monstros
- Os prazeres o os perigos
da confusão de fronteiras.
Belo Horizonte: Autêntica,
2007, em especial as páginas
178-180, para o entendimento mais aprofundado
de nossa apropriação neste
texto sobre as questões da
monstruosidade.
presente sobre o estranho familiar tem base direta no pensamento freudiano sobre o que é inquietante, o estranho.
A palavra “monstro” possui um sentido de revelação de
uma conduta a seguir (Gil, 1994, p. 77) e não somente o de mostrar algo. Assim, compreendemos que o caminho da monstruosidade a ser conquistado no processo criativo de uma atuação
performativa deve ser atravessado por uma advertência que
aponte para uma expressão superabundante e extraordinária
do artista, mas que não se reduza à sua forma. “O monstro é
sempre um excesso de presença” (Gil, 1994, p. 79). A criatura
expressa pelo ator/performer é, portanto, também, uma apresentação da realidade artística corporal, não do realismo naturalismo de uma ação física do artista. Há nesta criatura um
transbordamento no material corpóreo que tende a mostrar,
aqui sim, o que está submerso nela.
O seu corpo difere do corpo normal na medida em que ele revela o
oculto, algo de disforme, de visceral, de ‘interior’, uma espécie de
obscenidade orgânica. O monstro [criatura] exibe-a, desdobra-a,
virando a pele do avesso, e desfralda-a sem se preocupar com o
olhar do outro; ou para o fascinar, o que significa a mesma coisa
(Gil, 1994, p. 83).
Esse caminho de uma atuação intensa, fundada no excesso
expressivo, é um dos percursos possíveis para a relação artística
com a Mímica Corporal. Nesta perspectiva, existem criações
simbólicas de atores/performers cuja expressividade manifestada não necessariamente existe para, somente, se realizar
como um ato de reconhecimento de um pensamento nela dos
signos originados pela técnica do atuador. Esta expressividade
pressupõe algo para além do conhecimento e da comunicação
do artista, ou seja, trata-se de uma imagem produzida que, ao
se revelar, pede também dialogismos do receptor e se abre,
portanto, ao outro que a recebe. Deste modo, a expressão artística do atuador, com bases de investigação criativa na Mímica
Corporal, ao se fazer intensa, monstruosa, não visa atrelar-se à
categoria da identidade humana para produzir uma expressão.
O humano se faz outro, deformando-se do habitual. A gestualidade cultural do cotidiano é explodida e transcriada. Mas,
ressaltamos que a imagem artística corpórea do híbrido performativo, ou seja, as ações físicas do atuador neste sentido, é,
assim, algo sobre o qual, por fim, não se tem controle sobre
como ela será recebida. Ela pode produzir encantamentos por
sua experiência viva de busca da metamorfose do ser por meio
de ações críveis. Há neste jogo um possível pânico do artista
em poder se tornar outro tão diferente de si, ser humano. Mas
esta é uma brincadeira de atuar que a Mímica Corporal possibilita, ou seja, uma atuação na fronteira entre a humanidade e a
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possível não humanidade na aparição do híbrido performativo.
Para isso, a artesania de ator/performer precisa ser intensa, pois
somente assim possibilitará, paradoxalmente, sua dissolução e,
consequentemente, o aparecimento da soberania da arte.
Compreendemos que neste século 21 é importante para
quem aprende Mímica Corporal poder ser incentivado também
a revisá-la buscando, inclusive, transcriar o próprio repertório
aprendido. Por outro lado, pode, talvez, haver ainda hoje receio
de saída da linguagem que esta arte propõe na direção de
maior busca dos híbridos performativos. Este receio poderia
ser entendido como um medo do artista em acabar se desvinculando de sua origem formativa, podendo produzir algo que
não tenderia a ser “fértil” como arte, ou de difícil continuidade
de transmissão. Além disso, o híbrido surgido a partir de uma
origem “paterna” artística, poderia ser também considerado
um símbolo “herege”. Assim, é importante discutir a questão
de uma impossibilidade de transmissão da produção artística
híbrida, especialmente se ela foi criada a partir de uma pedagogia que se pautou, inicialmente, na aprendizagem de um
modelo e na repetição de sistematizações corporais bastante
estruturadas. Consideramos que um resultado híbrido não
deve ter, por princípio, a motivação de uma reprodução “filial”
futura. A transmissão do híbrido performativo pode acontecer
na medida em que a expressão intercultural de um atuador
faça surgir um tipo de figura, ou exercício técnico, que se torne
novo repertório passível de ser repassado a outro artista. Ou
seja, o híbrido pode ser “fértil”, mas de outra maneira, ou
seja, não na perspectiva “familiar” da “filiação paterna (ou
materna)” do modelo original. Assim podemos fazer adaptações e transcriações.
Se entendemos que a manifestação híbrida já está presente
no próprio repertório mímico corporal, constatamos que ela se
mostrou muito potente na sua própria transmissão ao longo
de muitas décadas e até hoje. Os resultados de uma atuação
híbrida podem, assim, ser transmitidos e gerarem variações
expressivas. Essas podem surgir intencionalmente a partir de
diretriz dada pelo próprio Decroux em seus princípios de trabalho e procedimentos técnicos. Em peças clássicas do repertório desse artista, como O Carpinteiro, podemos ver que o
equivalente mostrado é uma expressão de base mais abstrata
artística composta a partir de matrizes de ação realista em atitudes corporais culturais de ofícios profissionais. Este caminho
de criação não parou na realização de peças clássicas do artista
francês nos anos 30 e 40, mas se tornaram procedimentos de
composição instigantes, originando outras peças nas décadas
seguintes. Assim, procedimentos como estes para os estudos
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de atuação corpórea, bem como a criação de figuras de estilo,
entre outros, são, a nosso ver, caminhos concretamente sinalizados por esta arte para a realização de composições que
possam revelar outros híbridos performativos. Por meio de
exercícios corporais do repertório decrouxiano, pode-se experimentar possibilidades de criação de outros corpos, outros
seres, jogar com a intensidade da presença e a ficção. Sátiros,
Medusas, Centauros, Faunos, Cérberos, Minotauros até poderiam ser compostos, jogando com uma atuação que não se
caracterizasse, somente, na expressão do fantástico e do alegórico apoiada em máscaras, adereços e figurinos. O corpo
pode ser máscara, suposição do original, um equivalente, e
Decroux compreendeu bem isso, trabalhando na perspectiva
da sistematização de um treinamento para o mascaramento
corporal, da recriação do próprio corpo humano, antes mesmo
de uma relação do corpo do artista com objetos. Assim, várias
figuras originadas da prática com a Mímica Corporal escapam
da expressão figurativa representacional. A liberação da figura
por um atuador se revela nos traços do jogo de seu corpo com
o espaço. Portanto, a representação daqueles seres fantásticos
acima citados, e outros, se revelará como apresentação, presentação de um corpo que atua, hibridamente, em uma zona de
indiscernibilidade entre o humano e outro ser.
Antonin Artaud possui um comentário importante sobre
a atuação de Jean-Louis Barrault, em 1935, que atuava um
“Cavalo-centauro”. Este ator, à época, havia recentemente
realizado um processo de pesquisa prática com Decroux, recebendo ensinamentos da Mímica Corporal, que começava a se
fortalecer como uma arte específica. Artaud comenta, assim,
que o trabalho de Barrault demonstrava uma ação irresistível
do gesto, trazendo magia por meio de uma gestualidade estilizada na expressão de uma figuração fantástica, não humana.
No laboratório cênico decrouxiano, ele próprio parece ter
“misturado”, especialmente em si e usando sua própria vida, referências da arte da pantomima antiga, que possui gestualidade
denominada como “pantomima realista”, da dança clássica, da
rítmica corporal, da ginástica, da luta, do teatro, inventando um
repertório extremamente rico, inusual e inovador para o trabalho
de treinamento de um ator. Neste sentido, ainda que de modo aparentemente indireto, o artista pareceu saber que “a força e a saúde
de uma cultura medem-se pela sua aptidão a transformar-se; pela
sua plasticidade, pela sua apetência em devir, evoluir, provocar
grandes mudanças internas” (GIL, 1994, p. 177). Decroux problematizou, portanto, a cultura teatral francesa e nos propicia, com
sua arte, buscarmos experiências radicais de composição.
Mas, quem se interessa por compor atuações híbridas hoje,
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de fato? Quem “compra” uma atuação híbrida que problematize sobremaneira atuações realistas naturalistas, ou as dos
espetáculos com padrões definidos pelos musicais norte-americanos, rentáveis financeiramente (ainda que mais para os
produtores do que para os atores-bailarinos-cantores), ou até
mesmo as atuações de expressão épica? A “compra” parece
rara e, quando ocorre, talvez não seja, prioritariamente, por
razões ideológicas de afirmação sobre a mestiçagem ou sobre
o híbrido corpóreo do artista da cena.
Infelizmente, parece também haver ainda preconceitos na
recepção de modos de atuação mais voltados aos hibridismos,
às contaminações e fusões entre artes. Isso porque o campo
das “misturas” em artes é um campo que tende a revelar o
disforme, o grotesco, o estranho, o inquieto e, especialmente,
o feio. Ora, se assim o é, de fato, parece que estamos, ainda, no
tempo atual, realizando algo na contramão histórica, ou seja,
uma impertinência, uma subversão artística.
Decroux foi um artista com propostas que subverteram o
fazer nas artes da cena e também o pensamento sobre ela. Ele
foi muito contestado e também, possivelmente, até hoje, visto
somente como um pedagogo corporal que criou uma gramática
física para treinar o ator. Este modo de entendimento sobre
as proposições que ele fez é muito restrito. Os danos oriundos
de não se pensar e praticar a arte decrouxiana para além do
seu registro “ginástico” é impedir uma revisão sistematizada
de sua pesquisa artística e, assim, bloquear experimentações
necessárias para a arte de ator e do teatro (para falarmos de
um modo disciplinar).
O fortalecimento de uma experimentação “mestiça” a
partir das propostas de Decroux, seja nas Américas, seja no
Brasil, pode ser fortalecida também à luz de nossas manifestações culturais espetaculares, de nossas festas e tradições
corporais. Para isso, é preciso partir de uma qualidade técnica de execução e experimentação da arte decrouxiana nos
repertórios que ela possui, reperformando-as. Fazer isso de
modo público, sem fins didáticos ou de pesquisa pode custar
caro financeiramente no pagamento de direitos autorais para
as obras cênicas de Decroux e seus colaboradores. Mas, com
as reperformances, da forma como puderem ser realizadas,
abrimos possibilidades de problematizar possíveis ortodoxias
artísticas ainda existentes e criar outras expressões simbólicas
a partir da arte decrouxiana. Quem conhece o repertório de
peças, figuras e movimentos de Decroux, ou mesmo de seus
ex-colaboradores diretos, consegue identificar citações expressivas em determinadas atuações cênicas e espetáculos daqueles
que fizeram formação em Mímica Corporal. Uma citação, ou
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seja, o uso de fragmentos de determinado repertório pré-existente, é também um modo de “contaminação” artística e um
caminho importante para a criação de um existir diferenciado
com o que se aprendeu, por anos, com a Mímica Corporal.
Pode-se, por exemplo, na criação, manter um núcleo de partitura expressiva física desta arte e fazer surgir outra partitura a
partir dela. A ação física híbrida, portanto, origina-se também
deste tipo de mistura.
Diante do que já expomos, ressaltamos ainda a luta intensa
do artista Decroux em romper paradigmas, digamos, “coloniais” no campo das artes da cena. Se podemos pensar que a
arte teatral foi “colonizada” pela literatura dramática e que
o ator se subjugou a ela como meio principal para sua composição artística, podemos considerar que Decroux realizou
uma ação artística subversiva, anti colonialista, permitindo
ao que estava subalterno, falar. Seus processos de pesquisa e
criação são, assim, inspiradores, de modo único, para o campo
de estudos interculturais nas artes da cena.
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