Sujeitos, histórias e doenças no campo da saúde mental: notas para uma
antropologia do diagnóstico
Fernando José Ciello1
fernando.ciello@gmail.com
O presente trabalho busca contribuir para o pensamento de uma “antropologia do
diagnóstico”, apresentando, para tanto, algumas discussões originadas em pesquisa com
sujeitos de uma Clínica-dia para tratamento de “transtornos mentais”. Busco pensar
criticamente a ideia de diagnostico, resgatando alguns possíveis eixos analíticos a partir
desta experiência etnográfica: a relação entre diagnósticos, práticas biomédicas e
instâncias reguladoras metadisciplinares; o diagnóstico como categoria vivida e
agenciada pelos sujeitos e não somente como um nexo isolado de outras relações na
experiência do tratamento psiquiátrico e; por fim, também, o diagnóstico como prática e
performance atrelada aos movimentos e elaborações particulares à cada contexto.
O desafio da escrita deste ensaio é o de demonstrar, por um lado, as diferentes
linhas que atravessam e emergem de uma categoria diagnóstica. Por outro, também é o
de tentar pensar o que está para fora do diagnóstico no sentido psiquiátrico que lhe é
atribuído, entendendo que a vida de uma categoria como a do “transtorno depressivo”,
por exemplo, não é somente animada pela psiquiatria nem faz circular somente a
biomedicina ou a psiquiatria propriamente. Ao contrário, as categorias médicas fazem
circular imagens sobre pessoa, corpo, produzem agências variadas que acionam outras
esferas: Estado, família, clínica, afetos, etc. Embora ocupem um lugar central nos
manuais diagnósticos e no manuseio psiquiátrico, também existem “restos” (BONET,
2018) que extravasam aos grandes processos classificatórios e das grandes categorias,
que podem ser olhadas nesse perseguir sujeitos e processos ao invés de partir das
categorias inicialmente. Me interesso aqui pelo que pode haver, portanto, de inconcreto e
inacabado nas categorias diagnósticas, pensando-as tanto como “princípios de
transformação e continuidade” (ZEA, 2013) – de onde emergem não só processos
classificatórios, mas também potentes relações de negação e transformação destas
classificações – quanto “códigos discursivos” (CSORDAS, 2013) – reiterando a
circulação destas categorias e classificações em diferentes planos e arranjos.
Por esta mesma razão, o desafio também é o de mostrar como diferentes enquadres
e momentos estão arranjados na produção desta vida cotidiana do diagnóstico e das coisas
1
Doutor em Antropologia Social. Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
1
que ele produz. Assim, cabe reiterar que este é apenas um breve ensaio, com comentários
a partir de um tema com o qual convivi intensamente em minha pesquisa de campo e o
qual tem sido importante para mim desde o desenvolvimento de minha tese de doutorado
(CIELLO, 2019). Neste sentido, o que se encontra aqui também é parte de uma reflexão
ainda em processo, balizada pela intenção central de compreender diagnósticos
psiquiátricos para além da fixidez dos manuais classificatórios. Parto do pressuposto de
que, na vida cotidiana desta clínica-dia, podem ser observados diferentes planos onde
“diagnósticos" podem funcionar como articuladores das experiências de tratamento,
adoecimento, melhora, cura, classificação.
Diagnóstico e psiquiatria
Logo que chegam à clínica-dia todos os pacientes passam por um processo de
triagem, que inclui, entre outros, passar por uma consulta com psiquiatra. Nesta consulta
é onde se inicia propriamente o preenchimento de um prontuário, que tem como abertura
uma ficha com a descrição de dados da pessoa que chega e dados para a instituição (nome,
idade, endereço, data de entrada na instituição, pessoa que acompanhou, tipo de
internação). A esta primeira ficha é incluída a anamnese psiquiátrica, que é construída
naquela primeira consulta.
Descrever um plano em que os diagnósticos funcionam mais de acordo com
princípios biomédicos e classificatórios não é inteiramente uma tarefa fácil.
Principalmente por que a própria prática psiquiátrica não é sustentada somente em si
mesma, mas pelas práticas dos profissionais de diferentes áreas e também por aquelas dos
próprios pacientes. Assim, descrever o impacto de uma classificação psiquiátrica inclui,
por exemplo, pensando no caso da clínica, lembrar de outras formas como o diagnóstico
é agenciado e operado pelas pessoas que os possuem e pelas pessoas que os atribuem. A
todo o tempo as práticas do tratamento dentro da clínica-dia, aí incluídas o diagnóstico
realizado por psiquiatra, fogem à realidade imaginada pelos manuais psiquiátricos. Nisso
consiste, me parece, uma parte importante da própria experiência do tratamento
psiquiátrico ou da experiência do “transtorno mental” e, necessariamente, também um
dos sentidos de se compreender a autonomia destes sujeitos.
Anteriormente (CIELLO, 2019), tentei discutir algumas diferenças entre os tipos
de anamneses e os tipos de psiquiatras, principalmente dos profissionais que são tomados
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como “rápidos e rasteiros” e aqueles que são mais atenciosos/as e que escutam os
pacientes (p. 147). Os prontuários médicos abordam diferentes aspectos da vida das
pessoas que são submetidas ao tratamento mas, em geral, compõem um gênero narrativo
que tem como objetivo, de modo principal, definir uma classificação médica, oferecendo
para tanto justificativas que são observadas no comportamento, na apresentação pessoal
dos pacientes (roupas, discurso, etc) e no que é chamado de “Exame de Estado Mental”
(EEM). Os aspectos observados pelos psiquiatras, conforme aparecem nos exemplos
nesta sessão, funcionam como um preâmbulo (que no caso da clínica, varia muito entre
cada profissional) para a posterior apresentação do código diagnóstico segundo o Código
Internacional de Doenças (CID):
“Vem só. Relata que sofreu um acidente e viu a esposa, sogro, sogra e enteado
morrerem queimados. Fazem 8 anos. Depois disso começou a beber e ficou
desgostoso da vida. Vinha bebendo bastante, quase todos os dias – está em
abstinência há 30 dias. ‘Eu sonho com eles pedindo ajuda – todos eles ficaram
no meio das ferragens. Sou muito família’. Esteve internado no Hospital xxxxx
por 30 dias (alta em xx/xx/xxxx) e foi encaminhado para continuidade do
tratamento em Clínica-dia. EEM – colaborativo, orientado, humor depressivo,
dependência de bebida alcoólica – em abstinência há 30 dias. F33-2 + F10.2
Conduta: admitido na Clínica-dia e mantido a medicação em uso. LÍTIO
300mg 1-0-1 VENLAFAXINA 150mg 1-0-0 QUETIAPINA 25mg 0-0-2
DIAZEPAN 10mg 0-0-1”. (Anamnese psiquiátrica do prontuário de Jonas.
Diário de Campo.)
Para Kleinman (1991) as entrevistas médicas que conduzem à produção dos
relatos médicos funcionam por meio de uma organização interna disposta a obter
determinadas respostas. Isto é, a investigação é pensada de modo a obter respostas que
preenchem os critérios diagnósticos das classificações psiquiátricas. No caso das
anamneses, ainda que no caso da Clínica-dia existam diferentes formatos, fica evidente a
existência de uma adequação narrativa com os critérios diagnósticos estabelecidos em
manuais como o DSM e o CID. Em uma proposta analítica semelhante, Caponi (2009)
também mostra que o diagnóstico de depressão, por exemplo, é validado e legitimado
sempre a posteriori, por meio da resposta do individuo aos medicamentos antidepressivos
e não, ao contrário, pelo estudo de hipóteses ou ideias diagnósticas. Isto ajuda a
compreender não necessariamente a centralidade das categorias diagnósticas mas a
posição crucial que ocupam os profissionais da psiquiatria, pela lugar cativo que ocupam
na própria rede que produz o tratamento psiquiátrico. Seja no contexto da clínica-dia ou
no contexto ambulatorial, o/a psiquiatra precisa sempre ser consultado/a para troca de
receitas de medicamentos, para indicar tratamentos ou internações, produzir atestados e
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laudos médicos. Evidentemente, tratam-se de argumentos diferentes, mas é importante
notar como uma categoria diagnóstica encontra-se enredada numa rede maior de sentidos
e, mais do que isso, resultante de uma metodologia que parece nunca levar em conta
integralmente o que dizem as pessoas.
Algumas vezes a demanda da clínica se origina em encontros ambulatoriais com
médicos privados, que recomendam a busca de instituição para tratamento, outras tantas
vezes, no entanto, o sujeito que passa pela triagem vem de outros serviços de saúde,
internações integrais, outras clínicas e hospitais. Um aspecto que aparece no cotidiano da
clínica frequentemente, diz respeito à precisão dos diagnósticos. Há uma rede complexa
de serviços na cidade onde a clínica que pesquisei é localizada e, volta e meia, se nota
uma disputa velada sobre os ambientes que oferecem melhores serviços e, não raro,
também sobre a precisão e qualidade dos diagnósticos feitos nestes lugares. Assim, o
diagnóstico se revela desde os primeiros momentos da chegada na clínica uma realidade
em disputa, seja por parte dos profissionais que preencherão o prontuário, seja por parte
do sujeito em atendimento, que escolhe o espaço que produz o melhor diagnóstico, o
profissional que faz o melhor atestado, o melhor laudo, etc.
Pensar o lugar da psiquiatria com relação aos diagnósticos no ambiente da clínica
não pode prescindir de uma discussão sobre a própria medicalização do mundo (ROSE,
2013) e de medicalização da loucura (FOUCAULT, 1989; CUNHA, 1986; ENGEL,
1997), que podemos ver tanto na intervenção constante na vida privada e em aspectos da
identidade pessoal, quanto numa tendência, expressa em algumas da anamneses que trago
aqui, de especialização extrema em torno de sintomas, detalhes, histórias, momentos da
vida, indicações e indícios comportamentais, biológicos e psicológicos.
“xx anos, solteiro, sem filhos, mãe acompanhou consulta, contam que pcte teve
crise há 1 ano, quebrou crise, quebrou objetos se mordendo, risos imotivados
PCTE egresso do hospital, 2º internamento, crise após briga com namorada,
DX prévio F25 Pcte em uso de Lítio 600 mg, Citalopran 20Mg, QTP 100 mg,
HX familiar: desconhece Nega uso de SPA Nega alergia medicação Nega
comorbidades Intolerância Haldol??? Eutímico, afeto aplanado, colaborativo,
sem alt de sensopercepção CD> mantenho prescrição”. (Anamnese
psiquiátrica do prontuário de Apolo. Diário de Campo.)
“Conta que tem esquizofrenia paranóide de longa data. Dorme bem a noite,
apetite exagerado, passa o dia na cama, afeto embotado, delírios persecutórios.
Nega alucinações, ideação suicida. Encaminhado pelo seu médico para
internamento. CID.10: F20.0 Carbolitium CR 450 mg 1M Haldol 5mg 1N
Akinaton 2mg 1N Rivotril 2mg 1N”. (Anamnese psiquiátrica do prontuário de
Renato. Diário de Campo.)
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Outro dado importante se refere ao dato de que a clínica-dia onde pesquisei é
reconhecida localmente pela sua associação com a Federação Espírita do estado, a qual
mantém a instituição para tratamento psiquiátrico onde está incluída a clínica-dia de
transtornos mentais (TM). Assim, muitas vezes o benefício da clínica é descrito como
sendo o de facilitar diagnósticos menos fechados na experiência biopsicológica, e que
incluam as experiências espirituais dos pacientes entre os aspectos diagnósticos. Parte do
argumento que defendo aqui emerge precisamente do fato de que coexistem diagnósticos
“estritamente” psiquiátricos e muitas outras facetas dessas categorias, mediadas por
sentidos conferidos por uma esfera espiritual/espírita.
Diagnóstico e agências
Ainda que não seja totalmente comum, não é raro encontrar sujeitos atendidos na
clínica que refutam o diagnóstico oferecido em outros momentos de suas trajetórias e que
seguem buscando uma classificação que entendam ser melhor adequadas a sua situação.
Não é preciso dizer que este tipo de situação é encarado como problemática pelos
profissionais que, nestas circunstâncias levantam diferentes argumentos como
interpretações para estes comportamentos, principalmente relacionadas à personalidades
manipuladoras. Perversamente, muitos destes rótulos acabam retroalimentando a própria
prática diagnóstica e psiquiátrica. Se, como apontei anteriormente, a prática psiquiátrica
parece funcionar definindo a posteriori categorias médicas, agora vemos que, também a
experiência da doença mental (conforme entendida pela psiquiatria) parece – no esquema
psiquiátrico – produzir um enredo que justifica a si mesmo. Assim, cotidianamente,
diferentes categorias de doença, anunciados por índices como “manipulação”, “ganhos
secundários”, “mentira”, circulariam ao lado daquelas anotados nos prontuários
psiquiátricos.
Sempre fiquei muito intrigado, neste sentido, pela forma como os pacientes da
clínica-dia podiam ser facilmente identificados por categorias que remetiam à categorias
diagnósticas: “Maria, aquela bem depressiva”, “A que vive fazendo crise”, “Alvo,
aquele esquizo”, “Ela é muito manipuladora! Tem que tomar cuidado!”. Expressões
como estas, modos de interpelação que apareciam na vida cotidiana, indicam que as
categorias de “crise”, “depressão”, “esquizofrenia”, nesses exemplos, operam não só
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como referenciais de uma classificação psicopatológica, mas também como aspectos que
informam sobre o sujeito, traduzem algum tipo de posição, identidade, subjetividade. Nos
aproximando de Goffman (2008, p. 52), podemos pensar que a equipe de profissionais
trabalha com a circulação de algum tipo de “informação social”, que é reflexiva e que
recupera algum tipo de aspecto coletivamente identificável no paciente.
As categorias diagnósticas utilizadas no cotidiano, neste sentido, não somente
informam sobre um código de doença presente em algum manual, mas também servem
como uma maneira de produzir e fazer circular uma identidade do doente ou, mais
propriamente, fazem emergir o “paciente”. As categorias utilizadas, a rigor, nem sempre
coincidem com alguma classificação presente nos prontuários médicos preenchidos
dentro da unidade, o que também sugere que embora crucial para o funcionamento de um
tratamento psiquiátrico, as categorias utilizadas nem sempre estão atreladas a um
processo específico por profissional psiquiátrico. “Aquela depressiva” ou “o paciente
esquizo” podem resultar de diferentes impressões produzidas no imediato das relações
entre profissionais, pacientes e familiares, fazendo circular várias categorias paralelas, ao
mesmo tempo em que também faz as próprias categorias psiquiátrica circularem.
Em partes este processo parece resultar da própria globalização de um modelo
particular de psiquiatria a partir dos anos 1980, como sugerem Russo e Venâncio (2006),
que retomou um projeto de psiquiatria biológica e marcou o surgimento de manuais ateóricos; mas também, mais contemporaneamente, das próprias remodelações e
transformações da biomedicina no século XXI, que apontaram para uma cada vez maior
molecuralização da vida, conforme Nikolas Rose (2009). Meu argumento dentro destas
tendências, ao lado daquilo que Bonet (2018) propõe como um interesse pelas linhas de
fuga e pelo que está fora dos grandes processos ,é o de tentar captar justamente nestes
processos como se pode pensar as categorias diagnósticas e que “coisas” (INGOLD,
2012) elas fazem.
***
Ouvi algumas vezes na clínica-dia que “a personalidade é o pior sintoma”, pois
tratar-se-ia de uma das coisas que seriam difíceis de ser efetivamente tratada. Como um
traço dos “transtornos de personalidade”, lidar com aspectos como o desejo por obter
ganhos secundários dos “transtornos de personalidade” (como sujeitos/substantivos) seria
muito difícil, pois tais pessoas tenderiam a enredar toda a equipe. Algumas vezes a
presença de uma pessoa com transtorno de personalidade poderia, segundo os terapeutas,
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prejudicar todo andamento do trabalho de equipe, razão pela qual as reuniões de
profissionais teriam sempre uma ênfase na construção de uma coesão interna. Como um
traço da personalidade de cada sujeito, isto é, não como sintomas, as manipulações ainda
poderiam sofrer
Por estes motivos, justificativas, comportamentos, saídas, eram sempre muito
frontalmente combatidas pela equipe, que inclusive realizava reuniões semanais com
pacientes “mais problemáticos”, em forma de consultoria, para lembrar dos combinados
da clínica e para apontar comportamentos que eram tidos como não aceitáveis. Os modos
de agenciar suas doenças, no entanto, eram também igualmente proporcionais ao medo
da equipe de ser manipulada.
As tentativas de saída do espaço físico da Clínica pelos pacientes durante o dia
ou a evitação das atividades, dormir no sofá, (...) são possivelmente algumas
das primeiras práticas que parecem estar envolvidas nas condições de
existência do discurso da manipulação. Muitas estratégias e comportamentos
eram utilizadas pelos pacientes neste sentido: dizer que sairiam da Clínica
somente para fumar e não retornar; mencionar a realização de exames,
doenças, dores de cabeça; alegarem problemas na família; aproveitarem
momentos de abertura do portão quando da realização de determinadas
atividades para saírem sem ser notados; assinarem a lista de entrada pela
manhã e se ausentarem logo em seguida, enquanto os portões estão abertos,
entre outras. (CIELLO, 2019, p. 214).
Tomo a liberdade de apresentar um trecho, abaixo, de minha tese de doutorado,
onde apresentei rapidamente sobre a história de Nilton e sua relação com o problema da
personalidade manipuladora.
Nilton teve um internamento principal na Clínica-dia em razão de depressão
muito forte e, conforme ouvi, havia aprendido “o que a equipe considerava
periculoso” e, em decorrência disto, já estava tendo um tratamento muito longo
e que representava grandes desafios para a equipe no sentido da construção de
sua alta. Sempre que a possibilidade de alta era ventilada, Nilton ameaçava se
suicidar, o mesmo ocorrendo quando havia o risco de seu auxílio doença ser
cortado. Sua história pessoal era sempre utilizada pela equipe como um dos
motivos que explicavam o “ganho secundário” e o desenvolvimento de um
possível transtorno de personalidade, segundo a psiquiatra, ainda que não
necessariamente este fosse seu diagnóstico. Em dado momento de sua vida,
Nilton, decidira fazer um empréstimo para adquirir uma casa junto a sua
esposa. Após a compra e construção da casa o casamento é rompido e, pouco
depois, Nilton começa a ser atendido em função de tentativas de suicídio e
desenvolvimento de uma depressão crônica. Ao romper com o casamento a
casa teria ficado no nome e sobre os cuidados da ex-esposa, mas a dívida, no
entanto, teria ficado no nome do paciente, que não achava justo pagar por uma
dívida sobretudo para que ela morasse com “outros homens”. A equipe então
interpretava, a partir da lógica do diagnóstico de transtorno de personalidade e
da “dificuldade em lidar com os problemas”, que a Clínica possibilitava para
ele um ganho secundário, que era o de não retornar ao trabalho e não pagar sua
dívida. Somado a isto, também a equipe ficava numa situação difícil pois sua
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alta precisaria ser “bem amarrada”, pois toda vez que se falava em parar o
tratamento, ele ameaçava se suicidar, o que por sua vez redundava em uma
responsabilidade da instituição para com o paciente.
Outra pessoa que estava sempre no radar dos profissionais e em cuja trajetória se
percebe a torção dos diagnósticos e da ideia de doença é Laura, uma paciente jovem que
era considerada pouco humilde, extravagante e, na perspectiva de outras pessoas da
equipe – para além de seu próprio terapeuta – enganava a todos para poder permanecer
na cidade onde estava. Laura não participava das atividades e a todo instante, sempre que
podia, faltava às atividades oferecidas no tratamento.
Em primeiro lugar, não se trata de negar necessariamente a existência de algo
como o adoecimento psíquico, os desejos pessoais dos sujeitos, os modos de agenciar o
adoecimento e as categorias de doença. Ao contrário, parece que o modo mais efetivo de
dialogar com os sujeitos seria justamente o de compreender estas atitudes e práticas como
fundamentalmente humanas (JENKINS, 2015). Em segundo lugar, para além disso, os
percursos de tratamento de Laura e de Nilton foram determinados pelas percepções de
que alguns de seus comportamentos desviavam da narrativa de sofrimento imaginada no
tratamento psiquiátrico. Em suas trajetórias, a imagem de depressão, suicídio, crise, entre
múltiplas outras imagens/categorias, eram acionadas na construção do “quadro” de cada
um. A definição do processo de tratamento, nesse sentido, não era prevista pelos manuais
objetivamente e, a rigor, a todo instante, história como a destes dois sujeitos extravasavam
as capacidades explicativas dos manuais.
Palavras finais
Minha experiência junto aos sujeitos da clínica-dia parece sugerir que mais do que
categorias bem delimitadas, diagnósticos são constantemente torcidos, pensados,
questionados na vida cotidiana de instituições de saúde e em processos terapêuticos. As
diferentes categorias diagnósticas que circulam no ambiente institucional atendem à
diferentes relações que são estabelecidas pelas pessoas (profissionais de saúde, pacientes,
familiares, etc) e também fazem emergir diferentes processos. Na Clínica-dia a circulação
de diferentes categorias diagnósticas, não necessariamente associadas com explicações
biomédicas, aponta ainda para os modos como as categorias têm uma vida para além das
instâncias que regulam a constituição de categorias psicopatológicas.
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Não trato aqui os diagnósticos psiquiátricos como “construções sociais”, no
sentido de que eles são resultados de sistemas sociais auto-contidos que estabelecem
normas de normalidade e anormalidade. Pelo menos não somente isto. Indicar que uma
categoria de doença é construída pode indicar muitas questões. Por vezes a própria ideia
de construção social é tomada como uma forma de contraposição a um outro lado, tomado
como “não construído”. Hacking (1999) sugere que dizer que algo é construído
socialmente não necessariamente explica o que de fato social acontece. Para o autor
(idem), em geral os intelectuais construtivistas estão preocupados com os temas do
controle e do poder envolvidos na construção social das coisas. Apontar o aspecto
sociogênico dos fenômenos é visto aí como uma forma de expor o funcionamento de
categorias de conhecimento nas relações de poder.
Esta interpretação, no entanto, que na maioria das vezes vem acompanhada com
a rubrica do relativismo social, na maioria das vezes não passa, segundo Latour (2003)
de “realismo social”, pois o que tais pesquisadores fazem é, de fato, afirmar o óbvio:
afinal, tudo é feito deste material que convencionalmente se chama social. O que isto
significa, no entanto, acaba não sendo explorado. Como categorias diversas, como
aquelas de doenças psiquiátricas, estão relacionadas com outras coisas que também são
do social? Como a biologia, a psiquiatria, a espiritualidade? O que me pareceu
importante, portanto, pincelar neste texto, foram algumas relações onde categorias
diagnósticas aparecem articuladas à processos cotidianos de uma clínica-dia. Entendo que
estas relações fazem emergir propriamente os sujeitos e agentes que constituem o
tratamento psiquiátrico e suas muitas expressões dentro do ambiente institucional.
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