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INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ESTRATÉGICOS NICOLAU MAQUIAVEL E “A ARTE DA GUERRA” MIGUEL JÚNIOR Ph. D. em História e Gestão Estratégica. Este texto é relativo à obra “A Arte da Guerra” de Nicolau Maquiavel. Esta ilustre personalidade do período Renascentista prestou atenção às questões políticas, filosóficas, militares e estratégicas, bem como escreveu duas obras de elevada importância política e estratégica. Esta é a segunda e foi escrita em 1519. A obra trata de questões militares dos séculos XV e XVI, mas também abarca ideias e ensinamentos militares da Antiguidade Clássica. Ela é composta de sete livros e um apêndice de diagramas (sinais convencionais). Por força da sua condição de obra clássica, no domínio da estratégia, interessa interpretar as ideias do pensador Nicolau Maquiavel. IDEIAS TEORÉTICO-MILITARES DE MAQUIAVEL De antemão, é preciso reter que as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel são o resultado de experiências acumuladas e uma consequência directa da interpretação que ele fez aos factos históricos, políticos e de guerra. Nesse processo ocorreu uma convergência natural que facilitou sobremaneira as suas reflexões. De resto, ele teve o privilégio de exercer, cumulativamente, várias funções no Estado de Florença e presenciou todos os eventos bélicos que tiveram lugar na península italiana devido às desavenças internas e às invasões estrangeiras. Nicolau Maquiavel desempenhou, no seio do governo florentino, funções nos domínios da defesa, da diplomacia e da política. Além de que, no âmbito das suas responsabilidades, visitou alguns Estados europeus e familiarizou-se com as realidades políticas e de defesa desses espaços. Por isso, ele analisou de forma profunda o papel das forças militares mercenárias que participavam nas guerras e que eram, ao mesmo tempo, responsáveis pela defesa de alguns Reinos, Principados e Estados europeus. Nicolau Maquiavel era um acérrimo defensor da institucionalização das milícias, porque estas eram as forças militares mais adequadas para garantir a segurança e a defesa dos Estados, dos Reinos e dos Principados europeus. O argumento decorria do facto de que os mercenários faziam várias exigências e não dispunham da fibra e da disciplina exigidas para travar as guerras que se faziam sentir na península italiana. Perante essas constatações, as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel difundiram-se no seio das elites governantes, tendo o projecto sobre a criação das milícias no Estado de Florença obtido o aval e o apoio dos dignitários florentinos. Uma vez constituídas as milícias, em 1505, elas tiveram de imediato o seu baptismo de fogo, em 1509, no conflito político-militar que opôs Florença à Pisa. Nesse confronto, as milícias de Florença obtiveram vitórias militares, as quais deixaram Nicolau Maquiavel orgulhado. A criação das milícias produziu os melhores resultados nessa guerra contra um Estado beligerante e isso era a prova de que valeria a pena contar com as milícias no Estado de Florença. Além do mais, a experiência de Florença poderia ser usada por outros Estados da Europa. Mas também os registos históricos atestaram que Pisa era um Estado fraco do ponto de vista militar, sendo essa a razão da vitória de Florença. Aliás, as capacidades militares deste Estado e das suas milícias ficaram mais evidentes, em 1512, quando a Santa Liga desencadeou uma ofensiva militar contra o mesmo. Essa ofensiva da Santa Liga contou com o auxílio de forças militares externas, o que permitiu reconduzir os Médicis ao poder. Quer dizer, as milícias de Florença foram incapazes de deter os invasores, porque estes eram muito mais poderosos e bem organizados. Assimn, o sonho de Nicolau Maquiavel caiu por terra porque as milícias florentinas foram incapazes de resistir à investida militar externa. As milícias estavam aquém das exigências da guerra. Importa recordar, no entanto, que a guerra entre Florença e Pisa deu lugar a outras guerras, nas quais intervieram franceses, espanhóis, turcos, portugueses, alemães e mercenários de diversas origens. Essas guerras tiveram lugar, no território italiano, desde o fim do século XV até ao primeiro quartel do século XVI. As guerras contaram também com a participação de alguns Estados e Reinos italianos, excepto Veneza e os Estados Pontifícios. Depois, por força das circunstâncias dessas guerras, outras coligações políticas e entendimentos tiveram lugar entre esses Estados e as forças militares externas. Entretanto, neste ponto sobre as ideias teorético-militares de Nicolau Maquiavel, há que reter os seguintes factos. Apesar dos escritos do autor serem o resultado das leituras dos eventos das guerras que varreram a península itálica, a verdade é que ele se socorreu, do ponto de vista militar, dos ensinamentos militares da Antiguidade Clássica. Tanto mais que ele destaca algumas referências clássicas de que fez uso, nomeadamente: o “Tratado da Arte Militar de Flávio Vegécio”; os “Estratagemas” de Frontino; a “História de Roma” de Tito Lívio; etc. Na verdade, Nicolau Maquiavel foi buscar muitas ideias militares aos clássicos da Antiguidade Clássica, porque considerou-as como úteis para as circunstâncias do renascimento italiano. INTERPRETAÇÃO DAS IDEIAS DE MAQUIAVEL Interpretando, no entanto, as suas ideias, há que destacar os seguintes factos. O primeiro é que a obra “A Arte da Guerra” descreve as guerras da península italiana e as intervenções militares dos exércitos estrangeiros, mas também explica que essas intervenções se deveram sobretudo a fraqueza e a incapacidade dos Estados e dos reinos italianos. Segundo Nicolau Maquiavel, havia na península italiana a “ausência de um poder forte”. Para suprir as fraquezas dos Estados e reinos italianos, propôs a institucionalização das milícias como uma força de natureza nacional. De acordo com a sua concepção, a milícia deveria ter “carácter não permanente" e teria de estar "claramente destinada a impedir os desaires, as traições e as venalidades copiosamente verificadas durante as guerras”. A ideia dele era visionária perante o conjunto dos eventos que ocorreriam na península italiana. Ele propôs a institucionalização das milícias porque naquelas circunstâncias os poderes instituídos não admitiam a existência de um “exército nacional”. Os poderes instituídos olhavam com aversão para a ideia da criação de exércitos constituídos pelos seus povos, porque tinham receios das sublevações populares. Por estes factos, os poderes instituídos achavam que as forças mercenárias eram o recurso ideal para a defesa dos seus interesses e para a manutenção do poder e das suas instituições. Outra questão que o levou a propor a criação das milícias foi o facto de que havia grupos de soldados permanentes no seio dos Estados, dos Reinos e dos Principados. E esses grupos representavam “uma casta de soldados profissionais” pagos com “soldos permanentes”. Mas, ao mesmo tempo, essas forças também impulsionavam as guerras no território da península italiana, visto que as guerras eram um meio para a sobrevivência e para a obtenção de mais soldos. Quer dizer, as guerras eram um emprego permanente. Outro assunto objecto da atenção de Nicolau Maquiavel é que havia uma desassociação entre as questões militares e civis. De acordo com o seu entendimento, isso não era correcto porque a guerra era uma questão política e jamais poderia separar a “esfera civil da esfera militar”. Para ele, o poder civil deveria interessar-se pelas questões militares e as forças militares, em Florença, deveriam depender directamente do poder político civil. Na verdade, esta é mais uma ideia central da sua obra. Nicolau Maquiavel também se deteve a descrever assuntos de organização militar e questões ligadas às campanhas militares, bem como ao emprego das forças militares na guerra. Ele via a organização militar como a força responsável pela estruturação da violência armada, mas subordinada ao comando de um poder despótico. Nesse ponto, procurou expressar a ideia de que deveria haver um exército nacional estruturado nas condições da existência do Estado feudal. Só que, no sistema feudalista, era impossível existir “qualquer modelo de exército nacional, estruturado em escalões hierárquicos”. Perante essas realidades, Nicolau Maquiavel sugeriu, por força do Renascimento, a adoptação e o revivamento dos modelos militares da Antiguidade Clássica. Tanto mais que ele destacou várias matérias de organização ligadas aos exércitos da Antiguidade Clássica, que vão desde as formas de recrutamento até aos aspectos operacionais. A “Arte da Guerra” é essencialmente uma obra de pendor político e militar e que é composta por um conjunto de princípios e normas de organização e emprego de um exército em plena campanha e guerra. É uma obra de grande alcance e que se ajusta muito bem aos desafios do seu tempo histórico. Do ponto de vista político, Nicolau Maquiavel teve uma concepção visionária porque sugeriu que os exércitos deveriam subordinar-se ao poder político e este deveria deter o controlo da organização militar e do uso da violência. Mas, ao mesmo tempo, as ideias de Nicolau Maquiavel eram avançadas, considerando as mentalidades e a estrutura do pensamento do Estado feudal. Do ponto de vista militar, a reflexão dele representa um grande contributo para se compreender o percurso e a evolução dos exércitos nacionais enquanto instrumentos do poder político. Por conseguinte, este é um contributo à história política e militar. 5 ⃰ Historiador