A Crise do Capital Fictício: elementos para o debate
Flávio Ferreira de Miranda
Mestrando do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo: Este artigo tem como objetivo contribuir para o debate teórico sobre as causas
da crise econômica atual, reconstituindo elementos analíticos presentes na obra de Marx
que possam ajudar a compreendê-la. Sustenta-se uma visão sobre a crise atual e a teoria
marxista das crises econômicas que, embora não seja original, está longe de ser
hegemônica. Desta forma, após uma primeira seção introdutória, o texto se inicia com
uma descrição da autonomização das formas funcionais do capital, de modo a entenderse a gênese dialética da categoria capital fictício, assunto exclusivo da terceira seção.
Destaca-se a forma como esses capitais adentram na dinâmica global de acumulação
capitalista, as funcionalidades e disfuncionalidades que representam tendo-se em vista
esse processo global. Acredita-se que esse ponto seja uma faceta da contradição
fundamental para o aparecimento das crises, a contradição entre o domínio privado da
apropriação e o caráter social da produção. Na quarta seção, discute-se, brevemente, o
tema das crises em Marx e alguns de seus seguidores, ressaltando-se, por fim, a
essencialidade da contradição entre a apropriação privada e a produção social como
causa das crises. Conclui-se o texto com uma brevíssima descrição da eclosão da crise
atual de forma, apenas, que se possa vislumbrar a capacidade explanatória dos
elementos categoriais desenvolvidos, frente ao objeto concreto em questão.
Palavras-chave: crise; capital fictício; autonomização das formas funcionais do capital.
Abstract: This paper carries the aim to contribute to the theoretical debate on the cause
of the current economic crisis, reconstituting analytical elements that are present in
Marx’s work that may help its comprehension. Sustaining a view both on the current
crisis and the Marxist theory of crisis that, although not original, is far from being
hegemonic. Thus, after a short introduction the paper starts with a description of the
“autonomization” of the functional forms of capital, in a way to understand the
dialectical genesis of fictitious capital, theme of the third section. Light is put on the
way that these capitals fit in the global dynamics of capitalist accumulation, the
functionalities and “unfunctionalities” that they represent to the process globally. This
point is believed to be an aspect of the fundamental contradiction for the crisis
phenomenon, the contradiction between the private domain of appropriation and the
social character of production. In the fourth section, the theme crisis in Marx and some
of its followers is discussed briefly, putting light on the essentiality of the contradiction
between the private appropriation over social production as cause for crisis. The paper
concludes with a brief description of the current crisis solely to show the explanatory
capacity of the categorical elements, facing the concrete.
Key words: crisis; fictitious capital; autonomization of the functional forms of capital.
Área 1 – Escolas do pensamento econômico, metodologia e economia política
Classificação JEL: B14; B51; G01; P16.
A Crise do Capital Fictício: elementos para o debate
Flávio Ferreira de Miranda
Mestrando do IE/UFRJ
1. Introdução
Crises econômicas têm o estranho poder de resgatar idéias que pareciam
enterradas para sempre. Os advogados do liberalismo passam a amar
incondicionalmente o Estado, assim como vozes à esquerda começam a se fazerem
ouvir. Enquanto O Capital bate recordes de venda na Alemanha, alguns marxistas
parecem aceitar o papel de vozes críticas do capitalismo apenas quando se estanca a
acumulação de capital. Tudo isso para retornarem ao limbo tão logo as condições para
novo processo global de acumulação estejam repostas. A crítica da esquerda fica, desta
forma, relegada aos momentos em que a burguesia tem motivos reais para reclamar,
abrindo espaço para as vozes mais ou menos oportunas aos interesses da classe.
Entende-se que não deve ser este o caso para a verdadeira crítica da economia
política, nos termos de Marx. Seguindo a proposta deste autor, o estudo da dinâmica da
sociedade fundada no capital é, ao mesmo tempo, sua crítica a partir das relações
sociais, formas de pensamento e reprodução, subjacentes. Crítica a uma forma de
sociabilidade fundada na lógica do valor, que subordina os sujeitos desde fora. Ou seja,
dado o caráter mercantil da sociedade capitalista, a produção confronta seus próprios
sujeitos como força autônoma, externa, estranha. Nesse sentido, o mote da obra teórica
de Marx pode ser entendido como a emancipação do homem das formas de dominação
abstratas criadas e reproduzidas no agir individual em sociedade, correspondentes ao
modo capitalista de produção. “Emancipação da subordinação dos sujeitos à lógica
destrutiva, humana e ecologicamente, do seu objeto deles próprios autonomizado”.
(DUAYER & MEDEIROS, 2007, p.4)
A partir da herança teórica deixada por Marx, pode-se vislumbrar, por meio da
crítica às contradições imantes ao modo de produção capitalista, a possibilidade de sua
superação. A crítica se faz necessária, então, não apenas em momentos de crise cíclica,
mas de maneira constante. Contudo, isso não significa que o estudo do tema das crises
não tenha importância. Em primeiro lugar, se as crises fazem parte da processualidade
cíclica do capitalismo, estudar crises é estudar o capitalismo. Ademais, em momentos
de crise, as contradições imanentes a esta formação social ficam mais aparentes,
denotando a importância do estudo em dois níveis. Em primeiro lugar, no nível teórico,
por constituir uma oportunidade única para o conhecimento das estruturas, forças,
mecanismos e tendências subjacentes aos eventos, tal qual se apresentam imediatamente
aos sentidos. Em segundo lugar, as crises emergem, por este motivo, como uma
oportunidade importante de aglutinação de massas em torno de um projeto social
alternativo, anti-capitalista.
Este artigo tem como objetivo contribuir para o debate teórico sobre as causas da
crise atual, reconstituindo elementos analíticos presentes na obra de Marx que possam
ajudar a compreendê-la. Sustentando uma visão sobre essa crise atual e a teoria marxista
das crises econômicas que, embora não seja original, está longe de ser hegemônica.
Desta forma, o texto se inicia com uma descrição da autonomização das formas
funcionais do capital, de modo a entender-se a gênese dialética da categoria capital
fictício, assunto exclusivo da terceira seção. Destaca-se a forma como esses capitais
adentram na dinâmica global de acumulação capitalista, as funcionalidades e
disfuncionalidades que representam tendo-se em vista o processo global. Acredita-se
que esse ponto seja uma faceta da contradição fundamental para o aparecimento das
crises, a contradição entre o caráter privado da apropriação e a produção social. Na
quarta seção, discute-se, brevemente, o tema das crises em Marx e alguns de seus
seguidores, ressaltando-se, por fim, a essencialidade da contradição entre a apropriação
privada e a produção social como causa das crises. Conclui-se o texto com uma
brevíssima descrição da eclosão da crise atual de forma, apenas, que se possa
vislumbrar o poder explanatório dos elementos categoriais desenvolvidos frente ao
objeto concreto em questão.
2. Autonomização das formas funcionais do capital
Chegando ao momento em que trata das partições do capital total, com a
autonomização das formas funcionais do capital, ou seja, que capitais autônomos
passam (em termos lógico-categoriais) a exercer funções que até então pertenciam
exclusivamente, em abstrato, ao capital industrial, Marx já concluiu o enunciado da lei
do valor em O Capital. Já considerou as influências mais rasteiras, isto é, mais
superficiais, sobre os preços de mercado, a interação entre oferta e demanda
determinando os desvios do valor de mercado, ou dos preços de produção. Indicando
que preços de mercado flutuam em torno do valor, de acordo com as variações entre
oferta e demanda. Como se sabe, até hoje a economia burguesa tem por único fator
determinante dos preços a oferta e a demanda de mercadorias, quando estas se igualam,
contudo, o que deveriam determinar queda-se a flutuar no mar das indeterminações,
porque é justamente nesse ponto que oferta e demanda cessam de influenciar o preço.
Chega-se a lei da tendência à queda da taxa de lucro como conseqüência
necessária da lei do valor, isto é, do progresso da produtividade social do trabalho no
modo de produção capitalista. Os mesmos motivos que levam à tendência à queda
geram forças que atuam em direções opostas. A predominância ora para uma direção,
ora para a outra, obedece ao movimento cíclico da economia capitalista. Diversos
fatores atuam incessantemente sobre o objeto em questão, a taxa de lucro. As mesmas
causas que concorrem para a tendência à queda, moderam a realização dessa tendência.
Assim, pode parecer arbitrária a escolha da queda para tendência, já que outros fatores
atuam em sentido contrário, isto é, como contra-tendências. Quer dizer, porque lei da
queda é tendência e os fatores contrários que levam ao aumento da taxa de lucro são
contra-tendências, ao invés do contrário? Levando-se a cabo um raciocínio acerca dos
limites dos fatores que atuam em direções contrárias, elimina-se a aparência de
arbitrariedade na escolha. O aumento na composição orgânica da capital é, em abstrato,
ilimitado, enquanto que os fatores que são listados por Marx como contrários à lei são
todos limitados1.
A terceira parte do livro III é então encerrada com um capítulo sobre algumas
contradições internas à lei da tendência à queda da taxa de lucro. Neste capítulo o tema
das crises capitalistas é abordado como em nenhum outro de O Capital. Contudo, de
maneira confusa e dando margens às mais diversas interpretações sobre o fenômeno. É
curioso que, neste capítulo, podem-se retirar citações que corroboram diferentes visões
sobre as causas das crises, a despeito de que descontextualizar pode ser um subterfúgio
para que as palavras soem exatamente como os ouvidos as querem ouvir. Confusão
entre causa e forma de manifestação é regra na maior parte dos casos. A esse respeito
1
Por exemplo, o aumento do grau de exploração da força de trabalho não pode chegar ao ponto em que os
capitalistas se apropriam de todo o tempo de trabalho, mesmo assim, imaginando-se extremos, o limite
para o aumento da mais-valia absoluta é a duração do dia, limite que nem o capital conseguiria transpor, e
a redução do valor da força de trabalho não pode ultrapassar zero, como se diz, do chão não passa.
falar-se-á com mais cuidado, embora ainda com perigosa brevidade, mais a frente no
texto, na seção sobre a teoria das crises na análise marxiana.
Acredita-se poder argumentar que a forma de exposição, no que tange à escolha
de primeiro enunciar a lei do valor para depois analisar os capitais que não penetram
diretamente a esfera da produção, serve ao intuito de afirmar, ao mesmo tempo
contrapondo as concepções dos economistas burgueses, que excedente em valor, e dessa
forma o lucro, provém da produção e não da distribuição. A mais-valia, para ser
dividida, deve antes ser produzida.
Da mesma forma, a lei da tendência à queda é apresentada antes da divisão do
lucro entre as diversas categorias do capital e renda da terra, para mostrar a
independência da lei com relação a essa dissociação. Segundo Marx:
A queda da taxa de lucro expressa, portanto, a proporção decrescente da
própria mais-valia com o capital global adiantado, e, por isso, não depende da
distribuição, qualquer que ela seja, da mais-valia entre diversas categorias.
(MARX, 2008, p.284)
A forma de exposição marca a diferença com relação às explicações correntes
para o fenômeno à sua época. Como é sabido, economistas, como Ricardo, explicavam
a lei da queda da taxa de lucro pela divisão do lucro industrial entre os capitais que
habitam apenas a esfera da circulação e a parcela que cabe à renda da terra.
É sempre importante lembrar que não se deve confundir desenvolvimento
lógico-categorial com desenvolvimento histórico. É verdade que grandes capitais
comerciais e mesmo bancários conviviam com formas de produção pré-capitalistas, o
que deve ter contribuído para a subordinação paulatina destas formas arcaicas de
produção à lógica do valor. O capital produtivo é considerado primeiro porque a
produção de valor é a base da economia capitalista, aí transparecem suas contradições
mais fundamentais que crescem em complexidade conforme são consideradas as suas
formas mais concretas de manifestação, ou seja, conforme baixa-se o nível de abstração.
De certa forma, a obra que aqui consideramos pode ser vista a partir desse movimento,
do mais abstrato em direção às formas mais concretas. Portanto, o desdobramento
lógico, dialético, das categorias diz respeito ao processo de autonomização das formas
do capital, como parte da lógica constitutiva do capital total. Conforme Painceira e
Carcanholo:
Em termos de origem e precedência histórico-temporal, é preciso sempre
ressaltar que a origem e o desenvolvimento do sistema de crédito moderno
estão ligados organicamente ao desenvolvimento e à consolidação do modo
de produção capitalista. (PAINCEIRA & CARCANHOLO, 2009, p.7)
Feita esta necessária ressalva, parte-se para a seara das formas “autonomizadas”
do capital.
2.1. O capital mercantil
A categoria se refere aos capitais com funções relativas apenas à circulação.
Como se sabe, a rotação de um capital industrial divide-se em tempo de produção e
tempo de circulação. A criação de valor é exclusividade do tempo de produção. O
tempo de circulação se refere à realização do valor criado e à reposição da lógica de
acumulação do capital, necessidade constante e definidora da soma de valor que se
aplica como capital, isto é, que se destina à valorização.
Como se sabe, o capital mercantil divide-se em capital comercial, ou de
comércio de mercadorias, e capital financeiro, ou de comércio de dinheiro, isto é, nas
formas características da circulação através das quais se autonomiza. A fim de evitar-se
mal entendido com a nomenclatura devido aos diversos usos que foram dados aos
nomes em teoria econômica, mesmo marxista, adota-se a do comércio de mercadorias e
comércio de dinheiro.
Em consonância com os objetivos aqui pretendidos, tratar-se-á da primeira
classe apenas de passagem, ressaltando-se tão somente seus pontos mais fundamentais e
características que podem ser úteis para a caracterização do capital de comércio de
dinheiro. Este, abordado em maiores detalhes, principalmente com relação aos seus
desdobramentos dialéticos que redundam em categoria de fundamental importância para
a caracterização da crise econômica atual.
O capital de comércio de mercadorias corresponde à autonomização da função
que o capital-mercadoria cumpre no ciclo co capital industrial, tornando-se atribuição de
uma classe específica de capitalistas. É a forma em que se converte a parte do capital
em circulação em vias de metamorfosear-se, ou seja, de mediante a troca por dinheiro
assumir unicamente sua faceta de valor-de-uso, mero material a ser consumido,
produtivamente ou não.
Uma vez que o fabricante realiza com o dinheiro do comerciante a primeira
metamorfose do seu capital-mercadoria, pode reverter esse dinheiro em meios de
produção, matérias-primas, salários, subsistência do próprio capitalista etc. No entanto a
venda aconteceu para o produtor, mas não para a mercadoria, que se encontra ainda no
mercado como capital-mercadoria destinado a efetuar sua primeira metamorfose, ou
seja, a ser vendido. Até aqui há somente transferência do capital-mercadoria do
industrial para o agente da circulação, e não venda definitiva. Apenas a venda do
comerciante é a primeira metamorfose definitiva do capital-mercadoria. Configura-se
assim uma contradição entre o domínio privado da apropriação da mais-valia e o caráter
social da produção capitalista. Se o comerciante não for capaz de vender antes de o
processo de produção lançar mercadorias novas no mercado, o capital-mercadoria do
industrial pode não se converter em dinheiro, paralisando o processo de reprodução do
capital adiantado. Dessa contradição dar-se-á conta mais adiante e na medida em que
reaparece sob diferentes formas com a introdução na análise das partições do capital
total e que concorre para o fenômeno das crises capitalistas.
Capital de comércio de dinheiro é a autonomização dos movimentos do dinheiro
no processo de circulação, do capital industrial e mercantil, que assim tornam-se função
de capitais específicos através de operações peculiares. Parte do capital industrial e
mercantil existe sempre como capital-dinheiro “empenhado apenas nessas funções
técnicas”. (MARX, 2008, p.421) Uma parte do capital total se destaca, se tornando
autônoma, na forma de capital-dinheiro, com o papel de efetuar essas operações para
toda a classe dos capitalistas.
Essas operações peculiares são as funções puramente técnicas de pagar e receber
dinheiro. Quando o dinheiro serve de meio de pagamento o capital de comércio de
dinheiro responsabiliza-se então por operações de compensação e balanço de contas,
liquidação de transações comerciais sem utilizar materialmente qualquer quantia de
dinheiro. Adicionalmente, o capital de comércio de dinheiro especializa-se na guarda da
parcela do capital total que deve sempre permanecer na forma de tesouro, capitaldinheiro potencial. De acordo com Marx:
As diferentes operações que, ao se tornarem autônomas convertidas em
negócios especiais, dão origem ao comércio de dinheiro resultam das
diversas destinações do próprio dinheiro e de suas funções, que também o
capital na forma de capital-dinheiro tem de exercer. (Ibid., p.423)
Assim, na medida em que reúne grandes montantes de capital-dinheiro, para
realizar as funções específicas do comércio de dinheiro, abre-se a possibilidade do
comércio de crédito. O capital bancário, como desdobramento dialético do capital de
comércio de dinheiro, torna-se o responsável por esse comércio de crédito. Neste ponto
do argumento fica mais uma vez clara a opção metodológica de Marx na forma de
exposição da teoria, partindo das categorias mais abstratas e simples para as formas
mais complexas e próximas da manifestação dos fenômenos, a fim de que com a
mediação das categorias abstrativamente criadas se possa entendê-los. É desta forma,
em termos lógico-dialéticos, que se parte do sistema de pagamentos e guarda de capitaldinheiro potencial e partir daí toma-se a direção das “soluções” surgidas para esse
capital ocioso, ou seja, a forma como esse dinheiro pode ser aplicado. Assim, “o capital
bancário pode ser entendido como passagem lógica (dialética) para o capital portador
de juros”. (PAINCEIRA & CARCANHOLO, 2009, p.6) Julga-se oportuno reproduzir
aqui a advertência feita, em nota, pelos autores citados:
(...) não se pode confundir a categoria capital bancário com os bancos
enquanto instituições concretas específicas. A primeira diz respeito à função
autonomizada do capital total que desenvolve o sistema de crédito, tanto na
expansão do comércio de dinheiro como na administração do capital portador
de juros (...). Que esta função seja, ou não, cumprida por instituições
propriamente bancárias trata-se de uma eventualidade da conjuntura
histórica. (Ibid., p.6)
Retomando, o empréstimo de uma determinada quantia de valor-dinheiro
implica que se pague um adicional na forma de juros ao emprestador, no momento de
sua liquidação. A partir da análise de Marx depreende-se que dinheiro pode
transformar-se em capital, quando se transforma em valor que se expande. Na
circulação do capital industrial, vê-se que o dinheiro capacita o capitalista a extrair
determinada quantidade de mais-valia dos trabalhadores que emprega, apropriando-se
desse excedente sob a forma de lucro. Por isso, o dinheiro adquire um valor-de-uso
extra, a capacidade de poder funcionar como capital, se para este motivo lhe empregar
um capitalista. Ou seja, o dinheiro, como forma de manifestação do valor-capital tornase uma mercadoria, pois seu proprietário aliena o seu valor-de-uso por valor-de-troca,
mas mercadoria de qualidade especial, porque, como será visto, possui propriedade que
a distingue das demais. Nas palavras de Marx: “o capital como capital se torna
mercadoria”. (MARX, 2008, p.454)
A passagem pelo capital-dinheiro no processo de valorização é necessária para
todas as categorias do capital global, não apenas para o capital industrial, a fim de que
adquiram meios de produção, matérias primas, força de trabalho etc. Assim, a passagem
inexorável pelo dinheiro, a fim de que atue como meio de compra de capital constante e
variável, para toda a classe capitalista e a reunião de uma grande massa de capitaldinheiro na mão do capitalista de comércio de dinheiro, faz com que o capital-dinheiro
se torne mercadoria peculiar, cujo valor-de-uso é produzir lucro2.
A peculiaridade dessa mercadoria está no fato de não possuir um preço, de ser
cedida mediante promessa de pagamento que não corresponde ao seu preço. Como se
2
Meios de produção também podem ser emprestados como capital. “Mas todo capital emprestado,
qualquer que seja a forma dele, como quer que a natureza do valor-de-uso modifique o modo de
devolução, é sempre forma particular do capital-dinheiro, pois o que se empresta então é sempre
determinada soma de dinheiro sobre a qual se calculam os juros”. (MARX, 2008, p.459)
sabe, o preço é expressão monetária do valor, podendo divergir deste apenas
quantitativamente, nunca qualitativamente. Seria absurdo supor que alguém pode tomar
emprestada uma quantidade de valor-dinheiro, pagando por esse empréstimo essa
mesma quantidade de valor-dinheiro. Por isso, dizer que essa mercadoria possui um
preço seria o mesmo que dizer que possui dois valores: o seu próprio e outro que se
manifestaria em um preço que não seria expressão monetária do primeiro.
O capitalista que centraliza grandes somas de dinheiro cede determinada quantia
a ser empregada pelo tomador como forma de obter lucro. O capitalista-proprietário
(emprestador) recebe do capitalista-em-função (tomador), como recompensa, uma
parcela do lucro produzido por este último, na forma de juros. Assim, juros “nada mais
é que nome, designação especial da parte do lucro, a qual o capitalista em ação, em vez
de embolsar, entrega ao dono do capital”. (Ibid.)
Pode-se dizer que o dinheiro, dessa forma, assume uma nova determinação. No
ciclo do capital industrial, o capital-mercadoria se transforma em capital-dinheiro
apenas para servir novamente como meio de compra de meios de produção,
considerando-se que toda mais-valia apropriada é acumulada.
Em seu processo de circulação, o capital nunca é capital, e sim mercadoria ou
dinheiro, e apenas assim existe então para os outros. Mercadoria e dinheiro
são aí capital, não quando a mercadoria se converte em dinheiro e o dinheiro
em mercadoria, não em suas relações reais com o comprador ou vendedor, e
sim em suas relações ideais com o próprio capitalista (aspecto subjetivo) ou
como fases do processo de reprodução (aspecto objetivo). No movimento
real, o capital é capital não no processo de circulação, mas no processo de
produção, o da exploração da força de trabalho. (Ibid., p. 458-459)
Entende-se porque diz que quando capital-dinheiro vira mercadoria, tem-se o
capital como capital, isto é, o capital refletindo a si próprio. É capital para os dois lados
da transação aqui considerada, a que ocorre entre o capitalista-proprietário e o
capitalista-em-função. O dono do dinheiro cede-o, fazendo dele mercadoria, para
recebê-lo posteriormente de volta acrescido de mais-valia. O tomador adquire esse
dinheiro também como capital, aplica-o a fim de obter lucro (mais-valia). O dinheiro
adquire para ambos o valor-de-uso de obter lucro (mais-valia). Fica claro aqui que
ambos se apropriam de mais-valia, produzida pelo tomador.
No entanto, o fenômeno não se apresenta desta forma imediatamente aos
sentidos, o que leva a apreensões mistificadas do seu conteúdo. No capital portador de
juros o dinheiro incorpora a qualidade de capital como se fosse qualidade própria dele,
sem necessidade de mediação. O capital produtor de juros se distingue pelo fato de que
o retorno ao ponto de partida, característica do ciclo completo de qualquer categoria de
capital, é externo, dissociado do ciclo mediador, isto é, do ciclo do capital que em
última instância produz valor em excesso que remunera a si próprio e aos demais
capitais com os quais tem de se entrelaçar no processo globalmente considerado. A
volta ao ponto de partida, assume “no capital portador de juros uma configuração
inteiramente exteriorizada, dissociada do movimento efetivo de que é forma”. (Ibid.,
p.464) A relação entre emprestador e tomador, de cessão de capital para posterior
reembolso acrescido de juros é de natureza jurídica e, aparentemente, não tem nada que
ver com o processo real de reprodução do capital. O movimento parece provir apenas
das relações jurídicas, sem relação com o movimento efetivo do capital. O movimento
efetivo como capital, do dinheiro emprestado, transcende a relação entre emprestador e
tomador, ficando, para estes, invisível o movimento mediador. Tem-se a aparência de
que o capital emprestado nunca abandona a forma dinheiro.
A mistificação é, portanto, a de que qualquer soma considerável de dinheiro tem
a capacidade de gerar uma remuneração. Isso não é falso! Para o proprietário do
dinheiro é exatamente isso que acontece. Aplica-o em alguma instituição bancária sob a
condição de que sua aplicação receba uma remuneração na forma de juros. Essa
remuneração lhe cabe exatamente por ser ele o proprietário dessa soma de dinheiro. Isso
é correto do ponto de vista do indivíduo, mas não do ponto de vista do capital global, já
que a mais-valia para ser apropriada deve ser produzida.
Através dessa lógica, passa-se a perceber todo rendimento obtido a partir de uma
taxa qualquer de juros como proveniente da propriedade de um capital (portador de
juros). A remuneração é capitalizada à taxa de juros que lhe origina, obtendo-se um
montante de capital, a isto dá se o nome de capitalização. Ou seja, essa lógica faz com
que qualquer indivíduo que receba uma remuneração periódica apareça como
proprietário de valor-capital, mesmo que esse capital efetivamente não exista. A
capitalização é a base categorial do capital fictício. Conforme Reinaldo Carcanholo e
Maurício Sabadini: “Lo primero que hay que considerar es el hecho de que el capital a
interés, por si mismo, produce una ilusión social y es precisamente a partir de ella que
aparece el capital fictício”. (CARCANHOLO & SABADINI, 2008, p.2)
A categoria que aqui surge como desdobramento dialético do capital portador de
juros será o assunto da próxima seção, a partir deste ponto. Antes, deve-se tratar de um
aspecto importantíssimo para os propósitos do artigo.
2.2. Funcionalidades e disfuncionalidades
O atento leitor deve ter percebido a omissão de um aspecto muito importante
sobre a inserção dos capitais da circulação no processo global de produção capitalista.
Por um lado, a questão da funcionalidade que esses capitais representam para o processo
de acumulação. O papel positivo desses capitais, que faz com que sejam necessários no
modo de produção capitalista. Por outro lado, a forma como esses capitais aprofundam
as contradições da base do modo de produção capitalista tal qual analisado em O
Capital, desde a mais básica, interna à mercadoria, entre valor e valor-de-uso.
A omissão, contudo, não se faz sem propósito. Acredita-se que a relação
dialética entre, as assim chamadas, funcionalidades e disfuncionalidades assumam papel
importantíssimo dentro da dinâmica cíclica das economias capitalistas. Nunca cessam
de operar, mas ao longo do ciclo alterna-se a predominância de umas sobre as outras.
Em fases expansivas predominam as funcionalidades sobre seu par dialético, em crises
as disfuncionalidades fazem-se sentir com mais força. Pretende-se aqui ressaltar estas
características, a fim de que mais a frente se destaque o papel que este aspecto da
concorrência entre os capitais desempenha no fenômeno das crises econômicas.
Por conseguinte, com respeito ao capital de comércio de mercadorias pode-se
imaginar o seguinte cenário. Após ter adquirido os meios de produção e tê-los posto em
ação, da forma adequada para o fim da produção capitalista, isto é, criando mais-valia,
tem o produtor em suas mãos a mercadoria criada que deve ser vendida a fim de que
possa realizar o seu lucro, continuando o processo de reprodução do capital. Tivesse o
produtor de esperar que sua mercadoria chegasse ao consumidor final, o processo de
produção se interromperia. Ou, suas operações seriam reduzidas e grande parte do
resultado das vendas teria de ficar sob a forma de reserva monetária, até que suas
mercadorias fossem vendidas, a fim de que não se acumulassem estoques em excesso.
Parte menor do capital seria empregada na produção do que sob a forma de reserva
monetária. No entanto: “Em virtude da interferência do comerciante, pode o produtor
continuamente empregar parte maior de seu capital no processo de produção
propriamente e manter menor reserva monetária”. (MARX, 2008, 369)
O que o capital de comércio de mercadorias faz para o industrial é que este
economize o tempo que gastaria na venda da mercadoria produzida. Tempo no qual não
se acresce valor algum ao produto. Por este motivo, atua no sentido do aumento do
número de rotações anuais que pode realizar um capital industrial, uma vez que o tempo
de rotação é a soma do tempo de produção com o de circulação, elevando a taxa anual
de lucro do capitalista industrial3. Ademais, se operar com o tamanho adequado para seu
funcionamento, o capital de comércio de mercadorias representa uma economia de
capital para a sociedade, decorrente da especialização que acompanha a divisão do
trabalho. O capital que se ocupa exclusivamente com compra e venda é menor do que o
que seria necessário caso o capitalista industrial tivesse de empregá-lo com o mesmo
fim; converte-se a mercadoria em dinheiro mais rápido para seu produtor, além disso, o
comerciante vende mais rápido ao consumidor final do que venderia o produtor. A
centralização dos custos comerciais supostamente acarreta a diminuição dos mesmos.
Além disso, o comerciante assume uma parte do risco do produtor de não ter o valor da
mercadoria a confirmação social por meio da venda ao consumidor final.
Analogamente, o trabalho despendido com as tarefas técnicas de efetuar
pagamentos, recebimentos, compensações etc., acarretariam custos para o capitalista
industrial sem criar valor. A centralização destas operações em capitais particulares
reduz esses custos em sua totalidade, operações que antes deveriam ser executadas com
dinheiro em espécie, podem agora corresponder à mera compensação contábil. Diminui,
desta forma, o montante que o capitalista deve deixar entesourado para executar as
operações típicas do capital-dinheiro.
O comércio de dinheiro não forma os tesouros, mas fornece os meios
técnicos para reduzir ao mínimo econômico o entesouramento, desde que
voluntário (não expressa desemprego do capital ou transtorno do processo de
reprodução), pois os fundos de reserva de meios de compra e de meios de
pagamento, administrados para toda a classe capitalista, não precisam ser tão
grandes quanto teriam de ser se a administração deles fosse incumbência
particular de cada capitalista. (Ibid., p. 427-428)
A reserva monetária do capitalista industrial não é usada em seu processo de
produção tendo em vistas a criação de valor, sendo assim o comércio de dinheiro
permite que parcela maior do seu capital se ocupe produtivamente ao invés de ficar
“vadio”. Aumenta a taxa de lucro anual, por propiciar aumento no número de rotações
do capital, assim como o capital de comércio de mercadorias.
Essa lógica é aprofundada conforme se passa a considerar as formas
dialeticamente derivadas do comércio de dinheiro. O desenvolvimento do sistema de
crédito permite, entre outras coisas, que a reserva monetária que os capitalistas devem
deixar em posse do capital bancário possam ser utilizadas produtivamente por outros
capitais. O capital portador de juros fornece meio para que essa reserva ociosa possa ser
aplicada, multiplicando-se. Essa forma de conexão entre capitais de diferentes ramos e
espécies acelera a circulação em suas diversas fases, acelerando o processo de
reprodução em geral, possibilitando o aumento do número de rotações de todo o capital
social em um dado espaço de tempo. Refere-se ao sistema de crédito também, o
desenvolvimento das sociedades por ações, o que representou “[e]xpansão imensa da
3
Sendo esta igual à taxa de lucro do capitalista, m/C, multiplicada pelo número de vezes que este lucro
consegue ser produzido em um ano, isto é, o número de rotações que o capital realiza em uma ano, n.
Assim, taxa de lucro anual= n.(m/C).
escala de produção e das empresas, impossível de ser atingida por capitais isolados”.
(Ibid., p.582) Mas, isso é assunto para a próxima parte do texto, na medida em que as
ações são uma forma de capital fictício.
No entanto, nem tudo são flores. A teoria dá razão ao dito popular, revelando as
contradições dessas formas do capital no interior do processo global de produção
capitalista.
O capital industrial nas funções que desempenha na circulação não cria valor
nem mais-valia4. O fato de essas funções serem exercidas por capitais autônomos não
modifica em nada essas circunstâncias. Capital de comércio de mercadorias propicia a
troca real das mercadorias, mas entra na tendência à igualação da taxa média de lucro,
bem como o capital de comércio de dinheiro. Se o capital mercantil fornecesse lucro
médio anual maior que o industrial, pare deste se converteria em capital mercantil, e
vice-versa. Como não produz mais-valia, a parte da mais-valia que cabe, na forma de
lucro médio, ao capital mercantil é parte da mais-valia produzida pelo capital produtivo.
(Ibid., p.380) O fato de o capital mercantil participar da tendência à igualação da taxa
média de lucro leva à redução da mesma, com relação a que vigora ao nível de
abstração em que somente o capital industrial apropriava-se do lucro que produzia.
Diminui a taxa de lucro (e a massa correspondente) dos produtores, mas a massa de
lucro total (a mais-valia produzida) permanece a mesma que na ausência do capital
mercantil. É o mesmo montante de lucro (mais-valia) que passa a ser dividido não só
entre os produtores, mas entre estes e os comerciantes.
Da mesma forma, se o capital de comércio de dinheiro abocanha uma parcela do
lucro total produzido, sem produzi-lo, o mesmo vale, logicamente, para as formas mais
evoluídas que surgem dialeticamente a partir dele. Assim, reduz-se ainda mais a taxa
média de lucro, uma vez que a massa de mais-valia produzida deve ser distribuída por
uma massa de capital ainda maior.
Para completar, o sistema de crédito seria o propulsor principal da
superacumulação de capital, tendo, portanto, papel de destaque na forma como se
manifesta o fenômeno das crises no modo capitalista de produção. O capital portador de
juros dissimula as conexões de seu próprio ciclo com o processo real de valorização do
capital, acelerando as erupções das contradições do modo de produção capitalista (isto
é, as crises), ao mesmo tempo em que acelera o desenvolvimento material das forças
produtivas. Nesse sentido pode-se dizer que há uma contradição entre o caráter privado
da apropriação de valor e conteúdo social do processo global de sua produção, expresso
nas funcionalidades e disfuncionalidades que as formas autonomizadas do capital
representam para o processo de produção capitalista. Essa contradição bem como o
caráter ilusório que possui o capital portador de juros no seu aparente descolamento
com o processo efetivo de produção se consolida e aprofunda com a categoria que será
o objeto da seção seguinte.
3. O capital fictício
Segue-se estrutura semelhante à da seção anterior. Em primeiro alugar
apresenta-se a categoria, a partir das indicações acima5, como desdobramento dialético
da forma de capital que representa a substantivação das funções do capital-dinheiro no
ciclo do capital industrial, ou seja, segue-se o nível de abstração em direção às formas
4
Salvo em casos especiais, como o transporte refrigerado, que são desconsiderados neste nível teóricoabstrato.
5
Seção 2.1.
mais complexas, aproximando-se dos fenômenos reais tal qual se manifestam. Na
sequência, analisa-se o capital fictício com respeito à dialética funcionalidade e
disfuncionalidade, isto é, no que contribui e no que atravanca o processo global de
acumulação capitalista.
3.1. Conceito
Conforme se adiantou, sob a unidade do capital bancário, o capital de comércio
de dinheiro desdobra-se dialeticamente em capital portador de juros. A exacerbação da
lógica do capital portador de juros, com a mistificação criada pela forma peculiar que o
mesmo percorre seu ciclo de valorização, dá origem ao capital fictício. O capital
portador de juros é “a fonte de todas as formas irracionais, quando o banqueiro, por
exemplo, considera as dividas como mercadoria”. (Ibid., p.617)
Viu-se que a lógica do capital portador de juros leva ao que se chama de
capitalização. Dessa forma, qualquer rendimento periódico que se recebe passa a ser
visto como proveniente da propriedade de uma capital. Segundo Juan Pablo Painceira e
Marcelo Carcanholo:
Esta é a base categorial do capital fictício, um desdobramento dialético e, por
isso, com autonomia categorial, em relação ao capital portador de juros, que
por sua vez, já era um desenvolvimento dialético do capital bancário e do
comércio de dinheiro. Esses rendimentos periódicos, base para o capital
fictício podem provir de várias fontes como títulos de crédito, ações, e
mesmo salários, ou melhor, a parcela deles que é aplicada na forma de capital
monetário. (PAINCEIRA & CARCANHOLO, 2009, p.9)
O capital fictício, portanto, diz respeito a títulos negociáveis, o que marca uma
diferença fundamental com relação ao capital portador de juros, considerado em si
mesmo, e lhe confere uma dinâmica própria. Ademais, no capital fictício o montante
originário não necessariamente se destina à aplicação efetiva de capital, isto é, à
produção de mais-valia, enquanto que o capital portador de juros de alguma forma
(mesmo indiretamente, quando, por exemplo, destina-se ao financiamento de atividades
puramente comerciais) está sempre ligado à produção de mais-valia.
A base da remuneração desses títulos de crédito é o direito à participação em
lucros ou rendimentos futuros, denotando sua natureza essencialmente especulativa.
Dessa forma, os valores de mercado desses títulos flutuam sem qualquer relação com o
capital efetivo que representam (quando este de fato existe), de acordo com o grau de
incerteza dos indivíduos quanto à segurança dos rendimentos que os títulos dão direito,
bem como o nível desses rendimentos. (MARX, 2008, p.619) Seus preços variam,
portanto, sem qualquer base real, puro fruto da especulação.
A criação de capital pode multiplicar-se de maneira aparentemente infinita, com
limites não estabelecidos, mas que se expressam quando irrompem crises financeiras. O
sistema de crédito multiplica o capital existente, mas a maior parte desse capital é
puramente fictícia. Por exemplo, se B, para realizar um investimento produtivo, pega
empréstimo com A, que transforma o direito a apropriar-se dos juros do empréstimo em
um título comercializável vendendo-o a C pelo preço que corresponde à capitalização
dos rendimentos, este último possui em mãos um capital que, em termos globais, não
existe, mas que pode, por exemplo, ser usado como garantia para uma operação de
crédito que C deseje fazer. Nas palavras de Reinaldo Carcanholo e Maurício Sabadini:
Eso significa que el capital fictício no surge solamente como resultado de la
ilusión mencionada anteriormente, cuando se convierte en título negociable.
Es también resultado algo más directo del capital a interes, del sistema de
crédito, cuando este duplica aparentemente la riqueza real, como es el caso de
las acciones de una empresa. (CARCANHOLO & SABADINI, 2008, p.3)
O capital é, desta forma, fictício tendo em vista o processo global de produção
capitalista, mas é real da perspectiva do indivíduo. O proprietário desse título de fato
adquiriu com a sua compra o direito de apropriar-se de uma parte da mais-valia
produzida. Em condições favoráveis, ele pode vender esse título antes do fim do seu
prazo de maturidade no mercado, transformando seu capital fictício em dinheiro. As
formas contemporâneas do capital fictício têm um papel fundamental na crise por que
passa a economia capitalista. Pretende-se apontar esse papel com maior precisão mais à
frente. Antes, conclui-se a seção sobre o capital fictício considerando-se a maneira
como a sua lógica interfere na dinâmica da acumulação global de capital, para em
seguida elaborar-se uma breve seção sobre o tema das crises econômicas na obra de
Marx.
3.2. Funcionalidade e disfuncionalidades
Para o capital fictício são válidas, em escala ampliada as funcionalidades que
representa o capital portador de juros para a acumulação real de capital, nos casos em
que tem como origem um capital que atua na esfera da produção. Assim, permite o
financiamento de atividades que, caso contrário, teriam de esperar muito tempo para
poderem ser implementadas. Como mencionado mais acima, a criação do mercado
acionário, permite a acumulação capitalista em escala inatingível por outros meios de
financiamento. Em suma, o capital fictício implica no surgimento de novas formas de
financiamento que permitem maior acumulação de capital global e reduzem seu tempo
de rotação, operando como um fator que eleva a taxa de lucro anual.
Por outro lado, o capital fictício, como os demais capitais da circulação apenas,
tem em sua lógica a apropriação de uma mais-valia que não produz, levando a uma
redução da taxa de lucro, pela tendência a igualação da taxa média. Como visto, o
capital fictício permite a multiplicação do capital existente, aprofundando o conflito
dialético entre as lógicas da apropriação e da produção. A separação entre essas duas
esferas tem sua unidade recobrada nas crises. Ademais:
Por um lado, a funcionalidade do capital fictício permite o prolongamento da
fase ascendente do ciclo, possibilitando a redução do tempo de rotação do
capital global e elevação da taxa de lucro. Por outro lado, quando sua lógica
individual de apropriação se expande, a fase descendente (crise) do ciclo
também é aprofundada. A “disfuncionalidade” do capital fictício amplia as
potencialidades da crise. A dialética do capital fictício, com sua
(dis)funcionalidade, complexifica/amplia a tendência cíclica do processo de
acumulação de capital. (PAINCEIRA & CARCANHOLO, 2009, p.10)
Nos períodos de prosperidade predominam as funcionalidades que formas
autonomizadas do capital representam para o processo global de acumulação de capital.
Estes ampliam a possibilidade da acumulação, expandindo-a para muito além do que
seria possível caso não existissem. No entanto, aprofundam as crises, assunto para a
próxima seção.
4. Crises na análise de Marx
Nesta seção tem-se a intenção de destacar, em poucas linhas, alguns elementos
que se julga serem de fundamental importância para a concepção das crises econômicas
na obra de Marx. Apesar da carência de um tratamento acabado do assunto pelo autor
em questão, sendo as crises o momento em que as contradições do modo de produção
capitalista se explicitam, pode-se argumentar que o tema esteja presente desde o início
de O Capital, de forma latente, na contradição entre valor e valor de uso.
Ademais, pode-se encontrar na obra de Marx alguns trechos em que fala
abertamente do tema, entre outros: o capítulo XV de O Capital; o capítulo XVII das
Teorias da Mais-Valia; e um trecho sobre o processo de circulação do capital no
capítulo sobre o capital dos Gründrisse. A seção debruça-se, fundamentalmente, sobre
esses três trechos da obra e em alguns dos seus intérpretes.
Conforme se adiantou, no capítulo XV de O Capital Marx aborda o tema das
crises econômicas como em nenhum outro capítulo do livro, porém de maneira
inconclusiva, dando margens às mais diversas interpretações acerca das causas da crise:
queda da taxa de lucro; subconsumo; desproporções; e superacumulação de capital. No
entanto, todas essas situações se definem quando as causas que deflagraram a crise já
atuaram, de forma que todas elas são formas de manifestação, ao invés de causa, das
crises. (CARCANHOLO, 1996, p.169-171)
Como resposta, alguns autores propuseram uma síntese das diversas formas
acima citadas, como caminho para a construção de uma teoria marxista das crises.
Conforme Marcelo Carcanholo:
Essas tentativas de síntese de várias interpretações, para a elaboração de uma
teoria marxista da crise, não passa de uma bem intencionada proposta. Ao
empreender este tipo de tentativa, está fazendo-se, no máximo, uma "multiconfusão". Se essas interpretações marxistas tinham, como principal
equívoco, a confusão entre determinadas formas de manifestação da crise e
sua causa, uma síntese dessas interpretações só conseguiria definir um
conjunto de formas de manifestação da crise. Mas, permaneceria o problema:
qual é a sua causa? (Ibid., p.173)
Seguem-se as indicações do autor citado no parágrafo imediatamente acima, no
sentido de que para o estudo das causas de um fenômeno, faz-se necessário entender seu
conteúdo. “Uma teoria marxista da crise deve, portanto, entender o conteúdo do
fenômeno, explicar a sua causa, e explicitar as formas pelas quais ele se apresenta na
economia”. (Ibid.)
Para começar, as crises aparecem como resultado do desenvolvimento das
contradições imanentes ao modo de produção capitalista. O caráter contraditório destas
relações sociais fica patente no momento que eclodem as crises. Esse aspecto, por si só,
já denota a importância que o estudo deste fenômeno representa para entender-se a
dinâmica própria do capitalismo. Nas palavras do filósofo Roy Bhaskar:
It might be conjectured that in periods of transition or crisis generative
structures previously opaque, become more visible to agents. And that this,
though it never yelds quite the epistemic possibilities of a closure (even when
agents are self-consciously seeking to transform the social conditions of their
existence), does provide a partial analogue for the role played by
experimentation in natural science. (BHASKAR, 1998, p.48)
Retomando, nas crises os aspectos contraditórios dos dois pólos de uma mesma
relação se manifestam violentamente e essa é a única forma possível de restabelecer-se
a unidade. A unidade entre os contrários só pode ser restabelecida pela força das crises.
Crises são soluções bruscas que restauram transitoriamente a normalidade, ou seja, não
são terminais – consideradas em si mesmas –, não se deve esperar o fim do capitalismo
como mera conseqüência de uma crise econômica. Estas, antes, restauram-no,
recolocando-o em seu curso normal (contraditório) de desenvolvimento. Isto significa
dizer que as crises criam as condições para um novo processo de acumulação de capital,
denotando seu caráter cíclico.
Desde as categorias mais abstratas com as quais se inicia o estudo do modo de
produção capitalista, isto é, de maneira geral, pode-se identificar a possibilidade das
crises através desta dialética da unidade de contrários.
Por ejemplo, si la compra o la venta – o la metamofosis de las mercancias –
representam la unidad de dos procesos, o mas bién el movimiento de un
proceso a través de dos fases opuestas, y por lo tanto, en esencia, la unidad de
estas dos fases, el movimiento es en esencia, y en la misma proporción, la
separación de estas dos fases y su independización recíproca. Pero como van
juntas, la independência de los dos aspectos correlacionados solo puede
mostrarse por la fuerza, como un proceso destructivo. En la crisis afirman su
unidad, la unidad de los distintos aspectos. La independencia que estas dos
fases vinculadas y complemantarias adquieren en relación recíproca queda
destruída por la fuerza. De tal manera la crisis manifiesta la unidad de las dos
fases que se han independizado entre si. No habria crisis sin esa unidad
interna de factores que en apariencia son indiferentes el uno hacia el otro.
(MARX, 1975, p.429)
Tem-se, desta forma mais geral, o conteúdo das crises descrito através de sua
possibilidade mais abstrata, que expressa a contradição entre valor e valor de uso, como
pólos constituintes da mercadoria. No entanto, a conversão em realidade não está
garantida pela mera possibilidade da crise. Com essa primeira definição do conteúdo
das crises não se pode explicar porque os pólos antinômicos entram em conflito, de
forma que sua unidade interna só possa ser recobrada através de uma crise. “Explicar la
crisis sobre la base de esto, su forma elemental, es explicar la existência de la crisis
mediante la descripción de su forma más abstracta, es decir, explicar la crisis por la
crisis”. (Ibid.)
Um pouco mais a frente Marx aponta que essa possibilidade se demonstra de
maneira mais desenvolvida na discrepância entre o processo de produção e o processo
de circulação. (Ibid., p.435) Tomando-se por base a análise de Marx, chega-se a
conclusão que o modo capitalista de produção, para reproduzir-se, tem a tendência de
produzir mercadorias ilimitadamente, tanto para consumo pessoal, quanto meios de
produção, bem como ampliação da oferta da mercadoria força de trabalho no mercado.
A acumulação ampliada, característica capitalista, implica na necessidade de produção
crescente de meios de produção, para que possa ocorrer, assim como aumento da oferta
de força de trabalho. Este crescimento na oferta de força de trabalho induz ao aumento
da oferta de mercadorias para consumo pessoal. Para piorar, o consumo dos meios de
produção não extingue seu valor, retirando mercadorias da circulação apenas
provisoriamente; e o consumo produtivo do valor de uso da força de trabalho implica no
lançamento no mercado de maior valor do que dele se retirou. Ademais, a busca da
mais-valia extraordinária leva a um aumento de produtividade, implicando no fato de
que para realizar uma mesma quantidade de valor, deve-se lançar no mercado
quantidade sempre crescente de mercadorias. Situação semelhante se passa com a
mercadoria capital, seu valor, não apenas, não desaparece com seu consumo, como
reaparece de maneira ampliada. (RIBEIRO, 2008, pp.89-97)
As mesmas leis imanentes à produção capitalista que criam uma produção
sempre crescente de mercadorias, criam um número crescente de consumidores. O
capital, em seu processo de reprodução, repõe constantemente as relações de produção
subjacentes, dissolvendo formas pré-capitalistas, dissociando trabalhadores dos meios
de produção. Além disso, a tendência a centralização dos capitais, implica em
momentos de expropriação de capitalistas menores por capitais maiores6. Expande-se
também o consumo produtivo, já que o capital, em si, não vê limites na satisfação das
necessidades que o constituem. (Ibid., pp.97-99)
No entanto,
(...) a contradição do modo capitalista de produção consiste justamente na
tendência para desenvolver, de maneira absoluta, as forças produtivas que
colidem sempre com as condições específicas da produção, nas quais se
move o capital e as únicas em que se pode mover. (MARX, 2008, p.337)
Assim, o conteúdo das crises consiste no fato de que as mesmas leis que levam a
um crescimento incessante da produção de mercadorias e do número de consumidores
geram restrições ao consumo. “Não se produz riqueza demais. Mas a riqueza que se
produz periodicamente é demais nas formas antagônicas do capitalismo”. (p.337) Isso
ocorre porque para cumprir seu objetivo de apropriar-se do máximo possível de maisvalia, o capital tem a tendência de minimizar o seu consumo (c + v) em comparação
com o que oferta (c + v + m). Além disso, esse mesmo processo implica em uma
tendência à redução do valor da força de trabalho (v), o que tende a reduzir o consumo
pessoal. A lei geral da acumulação capitalista implica na tendência ao aumento da
composição orgânica dos capitais em concorrência. O aumento de produtividade
decorrente, se atingir o setor que produz mercadorias que compõe a cesta de
subsistência dos trabalhadores, concorre para a diminuição do valor da força de
trabalho. (RIBEIRO, 2008, pp.99-106)
Em suma, esse limite na esfera da troca é criado pela tendência geral do capital.
[This is]7 a new limit on the sphere of exchange which (…) is identical with
the tendency of capital to treat every limit on its self-valorization as a barrier
[which must be overcome]8. The boundless enlargement of its value – the
boundless positing of value – is thus absolutely identical here with the setting
of limits to the sphere of exchange, i.e. to the possibility of valorization, to
the realization of the value posited in the production process. (MARX, 1986,
p. 350)
Pode-se entender nesse sentido a afirmação de Marx de que “a barreira efetiva
da produção capitalista é o próprio capital”. (MARX, 2008, p.328) A produção
capitalista engendra as condições que criam dificuldades a sua própria realização. Não
há limites para a produção em si, mas há limite pra a produção fundada no capital. O
capital aparece como condição para o desenvolvimento das forças produtivas apenas em
um contexto histórico específico, podendo, a partir de certo ponto, tornar-se supérfluo
pelo desenvolvimento de suas contradições imanentes.
O meio – desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais –, em
caráter permanente, conflita com o objetivo limitado, a valorização do capital
6
Nesse sentido, o capítulo XXIV do primeiro livro de O Capital não deve ser visto como simplesmente
um capítulo histórico, mera ilustração, mas como um momento do processo global de produção
capitalista, constantemente repondo sua lógica.
7
Enxerto do editor da obra.
8
Idem.
existente. Por conseguinte, se o modo capitalista de produção é um meio
histórico para desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial
apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradição permanente entre essa tarefa
histórica e as relações sociais de produção que lhe correspondem. (Ibid.,
p.329)
Assim, o capital contradiz a sua “missão histórica”, o que fica patente na relação
necessária entre dois pólos opostos, produção e realização. No modo de produção
capitalista a lógica da produção está intrinsecamente ligada à realização, já que, por ser
baseada no capital, o produto deve passar por todos os momentos que conferem
existência ao capital. Ou seja, a mais-valia produzida deve percorrer necessariamente a
circulação, a fim de que a acumulação de capital se processe. Por outro lado, a
circulação é externa ao processo de produção (contradição que se aprofunda quando as
funções típicas da circulação do capital se autonomizam em diferentes capitais
particulares). No processo de valorização os momentos individuais entre si, determinam
uns aos outros internamente, mas procuram uns aos outros externamente. Determinação
interna, mas unidade buscada de maneira externa, portanto há sempre o risco de não
acharem-se uns aos outros, equilibrarem-se uns nos outros, corresponderem-se uns aos
outros. Essa é a base da contradição.
No modo de produção capitalista, a necessidade de acumulação – que ao mesmo
tempo em que abarrota o mercado de produtos e cria uma massa crescente de
consumidores, restringe a capacidade global de consumo – tem força de lei para os
capitais individuais. Essa lei se configura para eles na concorrência entre os capitais. As
conexões e condições que regulam as empresas capitalistas “assumem cada vez mais a
configuração de lei natural independente dos produtores e se tornam cada vez mais
incontroláveis”. (Ibid., p.323) Concorrência, nesse sentido, pode ser entendia como uma
manifestação da contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da
realização (apropriação). Nas palavras de Marx:
Conceptually, competition is nothing but the inner nature of capital, its
essential character, manifested and realized as the reciprocal action of many
capitalists upon each other; immanent tendency realized as external necessity.
(MARX, 1986, p.341)
As crises, consequência do desenvolvimento das contradições imanentes ao
modo de produção capitalista, podem ser entendidas a partir do fato de que no
capitalismo, a despeito da sua interdependência (condições sociais de produção), os
indivíduos (nesse caso os capitalistas) agem com indiferença recíproca (expressão do
caráter privado da apropriação de mais-valia). Essa contradição explica o aparecimento
das crises no processo global de acumulação capitalista, estando na essência do sistema,
contendo todas as demais contradições que a ele são imanentes. Nesse aspecto, o papel
das formas autonomizadas do capital só pode ser o de aprofundar o conflito dialético
entre produção e apropriação.
5. Notas conclusivas
Por fim, pretende-se indicar uma possível forma pela qual os elementos aqui
desenvolvidos podem ser enquadrados na explicação da crise econômica atual.
Desenvolveu-se de maneira dialético-categorial a autonomização das formas funcionais
do capital, ressaltando-se a relação entre funcionalidades e disfuncionalidades para o
processo global de acumulação capitalista, até chegar-se ao capital fictício enquanto
categoria.
A origem das crises financeiras mais recentes deve ser buscada no processo de
liberalização e desregulamentação financeira iniciado em meados da década de 70. A
turbulência dos anos 70, com os choques do petróleo e a falência do sistema de Bretton
Woods, levou ao desmonte do aparato regulatório forjado na década de 1930, como
resposta ao colapso financeiro começado em 1929 nos EUA. Nesse contexto, dá-se o
desenvolvimento de inovações financeiras, com a criação de novas formas de capital
fictício. Em especial os derivativos e os bônus corporativos. Conforme Aquino e
Cipolla:
As hipotecas também podem originar capital fictício. Por um lado, uma soma
de dinheiro é emprestada a um mutuário e em contrapartida um papel é
emitido representando o direito a receber o principal e o juro deste
empréstimo. Por outro, a soma de dinheiro é transferida a uma empresa que
produziu uma casa. Mas o dinheiro do empréstimo não existe nem nas mãos
do Banco nem nas mãos do mutuário, mas sim nas mãos da construtora que
deixou em contrapartida a casa nas mãos do mutuário. Assim, a hipoteca
pode ser vendida como capital, pois dá direito ao recebimento dos juros do
empréstimo imobiliário. Pode continuar sua vida de capital, pois a sua posse
dá direito a um fluxo de renda. O preço desse fluxo de renda é capitalizado às
taxas de juros correntes e daí tira o banco o seu ganho já que emitiu a
hipoteca a taxas de juros mais altas. (AQUINO & CIPOLLA, 2008, p.16)
A expansão do capital fictício no início dos anos 2000 deve ser entendida no
contexto da mudança na atuação dos bancos comerciais, adotando práticas típicas de
bancos de investimento e voltando-se cada vez mais para a renda pessoal como fonte de
lucros9; e na conjuntura de alta liquidez internacional, com baixas taxas de juros no
início do século e taxas elevadas de crescimento da economia americana e mundial.
Mais especificamente, a expansão do capital fictício no mercado de financiamento de
imóveis, após o estouro da bolha pontocom, foi possível através de um mecanismo de
auto-alimentação, com elevação dos preços dos imóveis possibilitando o
refinanciamento das hipotecas, que por sua vez ajudava a inflar ainda mais os preços,
em uma espiral que parecia sem fim, abertamente celebrada pelo governo americano
pelo acesso de segmentos historicamente oprimidos da sua população à habitação. Esse
processo implicava no aumento do consumo das famílias nos EUA, puxando o
crescimento do PIB desse país.
Essa bolha especulativa, enquanto o ciclo de alta na liquidez e no crédito
internacionais permitia e chancelava os problemas conjunturais de liquidez
dos tomadores de empréstimos, apresentou esse caráter “virtuoso” para a
economia americana e mundial, dentro de um processo, como visto, de
funcionalidade10 do capital fictício para a acumulação do capital total.
(PAINCEIRA & CARCANHOLO, 2009, p. 13)
No entanto, o que parecia sem fim para as autoridades dos EUA começa a dar
sinais de seus limites com o início de um processo de elevação das taxas de juros nesse
país. Aparecendo com mais força em meados de 2006. O aumento nas taxas de juros e o
reajuste nos juros previstos nos contratos das hipotecas, que coincidiram em muitos
casos, levam a um aumento da inadimplência, o que leva a uma retração da oferta de
crédito imobiliário e, consequentemente, a uma redução no preço dos imóveis. Inicia-se
9
Para uma explicação detalhada das causas dessa transformação das práticas bancárias ver Lapavitsas
(2009).
10
Meu destaque.
assim uma espiral descendente, uma vez que essa redução no preço dos imóveis
expande ainda mais a inadimplência. Manifesta-se com muita força o caráter
disfuncional do capital fictício para o processo global de acumulação capitalista.
Assim, enquanto nos momentos de prosperidade predominam as funcionalidades
que as formas autonomizadas do capital representam para o processo global, nas crises,
as disfuncionalidades se apresentam com mais força. A superacumulção de capital na
esfera da circulação, isto é, de capitais especializados apenas na apropriação de valor
sem produzi-lo, se manifesta nas crises, com as quedas nas taxas de lucro e com o
conseqüente estancamento do processo de acumulação de capital. Acredita-se que essa
evidência cíclica contraditória do papel que os capitais exclusivamente da circulação
desempenham seja manifestação da contradição entre o processo social de produção e o
caráter privado da apropriação de mais-valia, que, conforme se tentou demonstrar, é a
contradição fundamental por trás do fenômeno das crises.
Longe de propor uma interpretação definitiva, tentou-se aqui trazer para o debate
teórico elementos da análise de Marx do modo de produção capitalista que podem
ajudar a entender a crise atual. Uma coisa, no entanto, é certa, o papel que a
exacerbação da lógica de acumulação do capital fictício desempenha na eclosão desta
crise leva a crer que esta fica mais bem especificada se, ao invés de crise do subprime,
como se convencionou chamá-la, adota-se o nome de crise do capital fictício.
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RIBEIRO, Nelson Rosas. A Crise Econômica: uma visão marxista. João Pessoa, Editora
da UFPB, 2008.