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Texto de Discussão - Controvérsia sobre Capital Financeiro

2010, By Metri, Mauricio. In: Texto de Discussão NEI/UFRJ

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO E C O N O M I A P O LÍ T I C A IN T E R N A C I O N A L - E P I T E X TO D I D Á T I C O CONTROVÉRSIA SOBRE O CAPITAL FINANCEIRO P ro f . M a u r i c i o M e t r i 2010 1 – Introdução Os últimos trinta e cinco anos foram marcados por uma restauração liberal da ordem financeira internacional. Um verdadeiro retorno às intenções do imediato pós-guerra, abortadas em 1947, pelo então presidente norte-americano, Harry Truman, em razão da instabilidade política no continente europeu. Presenciaram-se uma expansão dos fluxos financeiros e uma financeirização ainda crescente da riqueza capitalista, ambas decorrentes da difusão dos processos de liberalização e desregulamentação financeiras. Como resultado, assiste-se a um descolamento das atividades financeiras em relação os níveis de produto, de emprego e de comércio. Os preços dos ativos financeiros vêm crescendo acentuadamente, o que tem criado um considerável descompasso entre os valores potenciais dos papéis financeiros em circulação e os valores reais dos ativos produtivos, sobre os quais está assentada, em última instância, a “exuberância irracional” dos mercados financeiros. Há um predomínio, na atualidade, dos processos financeiros de valorização da riqueza. Basta observar a atenção que as autoridades públicas e os diversos órgãos de imprensa, nacional e internacional, dedicam diariamente aos mercados de capitais, de câmbio e monetário. A fim de se compreender minimamente a essência desse tipo de fenômeno, denominado por alguns como fases de “expansão financeira”, volta-se aos autores que, em diferentes momentos da história do capitalismo, interpretaram de modo original a representação teórica dominante do capital nessas fases: o capital financeiro. O propósito deste trabalho é, portanto, depreender algumas idéias a respeito do papel do capital financeiro nos processos de valorização da riqueza capitalista, suas relações com as demais formas de capital e seus laços com o poder político consolidado - os Estados nacionais. Para tanto, optou-se por realizar uma leitura de quatro importantes referências teóricas acerca do tema, a saber: Marx (1994), Hilferding (1985), Hobson (1980) e Arrighi (1994). Não se pretendeu fazer um resumo do trabalho de cada autor, mas, sim, uma leitura interpretativa daquilo que se julgou ser mais interessante para o propósito deste trabalho. Ademais, preferiu-se apresentá-los separadamente, destacando uma seção para cada um, com o intuito de aprofundar as contribuições individuais. Houve a preocupação de se sublinhar as divergências, as complementaridades e as similitudes entre os quatro autores referenciais. Além do mais, 2 contribuições mais pontuais de outros autores foram agregadas às interpretações e aos conceitos discutidos anteriormente. Por fim, o trabalho é encerrado com uma breve conclusão. 2 – As Leis e os movimentos do capital em Marx Em seu consagrado e revolucionário livro, O Capital, Karl Marx dedica grande atenção à analise das leis e movimentos do capital. Filho da revolução industrial inglesa (1780-1840) e vivendo sob as transformações que a acompanharam, Marx privilegiou a esfera da produção em seus estudos a respeito do capitalismo, em detrimento dos processos comerciais e financeiros característicos deste sistema. Definiu a indústria como a verdadeira identidade do modo de produção capitalista e, portanto, núcleo principal do processo de acumulação de capital. Em outros escritos, apontou o capital industrial como último estágio de sua evolução antes da superação do próprio modo de produção capitalista. Tal primazia industrial decorre da percepção de que o processo criação do excedente de capital (da mais valia) encontra-se no interior da industrial, onde estão dadas as principais condições para produção e apropriação do excedente de capital, vale dizer, a dissociação entre as condições de trabalho, que se tornam propriedade privada de alguns (capitalistas), e o trabalhador direto, detentor da substância criadora de valor. Portanto, o autor inaugurou uma teoria cuja perspectiva central recai sobre o processo de acumulação de capital dentro da indústria e a disputa pelo excedente de capital entre as classes sociais que dele participam. Com efeito, os principais atores desta disputas são as duas classes sociais típicas das fábricas: os capitalistas (proprietários dos meios de produção) e os trabalhadores assalariados (donos da substância criadora de valor). A criação da mais valia e seus principais atores Para Marx, qualquer valor deve ser considerado como capital apenas quando se inserir num processo cuja finalidade última é a sua valorização, sua auto-expansão. A produção capitalista busca incondicionalmente a valorização do capital. Seu objetivo não é a produção de bens e serviços em si. Somente produzir bens nada significa para um capitalista, que deve tentar convertê-los em capital-dinheiro numa quantidade maior do que o inicialmente investido. Em hipótese alguma, a mercadoria é o fim último da produção capitalista. 3 Esse primeiro ponto fica evidente na fórmula geral do movimento do capital, definida como D-M-D’, onde dinheiro (D) é investido na compra e produção de mercadorias (M) com o propósito de se gerar ao final de todo processo um valor ainda maior na forma de dinheiro (D’ = D + ΔD)1. Nesse caso, o dinheiro atua como capital (capital-dinheiro) e não apenas como meio de troca, pois sua meta é a sua valorização. Diferentemente, a forma simples de circulação de mercadorias, definida como M-D-M, tem por objetivo último o consumo. Produzem-se mercadorias para vendê-las e, desse modo, com o dinheiro auferido, que no caso não exerce a função de capital, adquirir outras mercadorias que satisfaçam às necessidades humanas do produtor inicial, que, no caso, não é capitalista. O ponto de chegada na forma simples da circulação de mercadorias é a própria mercadoria. Aqui o dinheiro empregado no processo não tem como essência a autovalorização, atua apenas como meio de troca, como equivalente-geral, portanto, não se define como capital. De acordo com Marx, por acumulação de capital entende-se a reprodução ampliada do capital, na qual é investido não apenas o valor do capital anteriormente empregado no processo de reprodução, mas também parte do produto excedente em capital, a mais valia. Acumulação de capital é, por assim dizer, conversão de mais-valia em capital. É mais-valia usada para a criação de mais capital, numa lógica em que os próprios resultados retornam continuamente ao seu processo de criação. Neste contexto, capitalista é o agente que de modo consciente e permanente busca acumular capital. O processo geral e elementar da acumulação de capital (D-M-D’) 2, ou seja, o circuito do capital para os investidores individuais, divide-se em três etapas. Na primeira (D-M), há a conversão de capital-dinheiro em meios de produção e força de trabalho, em outras palavras, ocorre o investimento do capitalista. A segunda etapa é o processo de produção propriamente dito, no qual as mercadorias são produzidas com o emprego dos meios de produção, cuja propriedade encontra-se exclusivamente nas mãos dos capitalistas, e da força de trabalho, convertida em trabalho assalariado. Na terceira (M-D’), há o retorno à esfera da circulação, onde o capital-mercadoria é transformado em capital-dinheiro. 1 Onde ΔD é a mais-valia, o produto excedente em capital. Geral porque trabalha com as formas que explicitam a natureza do modo de produção capitalista, capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital-produtivo. Elementar porque “não dá conta de toda estrutura anatômica do sistema capitalista em sua evolução.” (Tavares e Belluzzo, 1980). 2 4 Destaca-se o fato de que é na produção, e não na comercialização ou no financiamento, onde se cria a mais-valia. Para tanto, existe necessariamente a separação dos trabalhadores diretos de seus meios de produção, de modo a preservar as condições de exploração e a apropriação do produto do trabalho pelo capitalista, dono das condições de trabalho. Enquanto assalariado, os trabalhadores recebem apenas parte do produto de seu trabalho na forma de salário, e o capitalista apropria-se do produto restante por deter a propriedade dos meios de produção. É importante sublinhar que o trabalhador é quem possui a substância criadora de valor, contudo é o capitalista quem de seus frutos se apropria. Capital comercial e capital produtor de juros O capital comercial e o capital financeiro são, por sua vez, analisados a partir do modo como a mais-valia é distribuída entre os diferentes donos do capital. O fato de ser criado no processo de produção não significa que o excedente em capital seja apropriado exclusivamente por aqueles que dirigem tal processo. Na verdade, parte da mais-valia é também apoderada por outros capitalistas que executam outras funções no processo geral de acumulação. O capital comercial é formado por parte do capital social que ganha autonomia para realizar as atividades inerentes ao processo de intercâmbio material, permanecendo na esfera da circulação e fazendo dela seu espaço de valorização. Do ponto de vista do capitalista comercial, a etapa de transformação do capital-mercadoria em capital-dinheiro (M-D’) é encarada como um circuito completo (D-M-D’), pois este capitalista adianta dinheiro na aquisição de mercadorias, as quais são revendidas posteriormente no mercado. O que era uma atividade complementar do produtor, a venda no mercado, ganha autonomia como atividade específica de um grupo de capitalistas. Na circulação ou na troca de mercadorias, não se cria valor algum, pois, da perspectiva da sociedade como um todo, os valores se preservam na esfera circulação mesmo quando os comerciantes conseguem vender a mercadoria por preços mais elevados. Por sua vez, o capital produtor de juros é analisado de forma semelhante ao capital comercial, pois que sua atividade também se restringe à esfera da circulação. Os movimentos financeiros presentes no processo de circulação do capital tornaram-se função autônoma de determinado capital em relação ao processo de produção. Na verdade, este tipo de capital auxilia 5 a realização da mais valia. Sua remuneração (os juros) nada mais é do que uma parte da mais valia produzida pelo capital industrial, da qual se apropria o grupo ligado aos negócios financeiros. Uma das novidades no caso do capital produtor de juro é que o capital-dinheiro “potencial”, aquele “disponível” para ser utilizado no processo de acumulação, torna-se também uma mercadoria. Enquanto mercadoria, o capital-dinheiro é emprestado a um empresário (D-D) 3, que o emprega no circuito geral do capital (D-M-D’). Depois de certo tempo, o que tomou emprestado reembolsa o credor com o valor do capital original acrescido com uma parte da mais valia que produziu, na forma de juros (D’-D’). De toda operação, infere-se o seguinte movimento D-D-M-D’-D’. Os dois novos movimentos, o de concessão e o de reembolso (D-D e D’-D’), são transações jurídicas. São acordos estabelecidos entre as partes, nos quais ficam definidos seus termos (taxa de juros, prazos, garantias, etc.). Não pertencem ao processo real de acumulação do capital. Na perspectiva do capitalista financeiro, o movimento resume-se a somente D-D’, ou seja, investe-se um valor na forma de capital-dinheiro e o seu retorno também ocorre na mesma forma e expandido. As fases D-M e M-D’, representantes dos circuitos do capital nas esferas da comercialização e da produção de mercadorias, não existem para esse capitalista. O processo de acumulação restringe-se ao movimento D-D’. Capital-dinheiro que cria mais capital-dinheiro. O ponto chave é que, por não precisar passar pelo circuito da produção, onde as relações sociais capitalista estão presentes, os movimentos de valorização do capital produtor de juros escondem os aspectos mais importantes do modo de produção capitalista. Para o autor, este percurso de valorização, D-D’, é uma farsa, um fetiche, portanto, não pode explicar a essência e os elementos determinantes e constitutivos do processo de acumulação capitalista. Negligencia a exploração e a expropriação da força de trabalho. Nele, atribui-se ao capital a característica central da força de trabalho, sua capacidade de produzir mais valia, o que para Marx é um absurdo. É como se, num passe de mágica, capital produzisse mais capital. Portanto, como exposto abaixo, Marx fez forte crítica àqueles que atribuíram importância ao processo de valorização financeira do capital. Para a economia vulgar, que pretende apresentar o capital como fonte autônoma de valor, essa forma [D-D’] é sem dúvida suculento achado: nela não se 3 A passagem do capital nesse primeiro momento não se configura como uma metamorfose da reprodução do capital, pois o capital continua na forma original, ou seja, como capital-dinheiro. 6 pode mais reconhecer a fonte do lucro, e o resultado do processo capitalista de produção adquire existência independente, separada do próprio processo. (Marx, 1979: 452). Depreende-se o caráter estéril da esfera da circulação no processo de acumulação de capital. O comércio e as finanças são identificados como espaços secundários do processo de acumulação, o que conduz o enfoque central da análise ao âmbito da produção real. Por isso que o autor afirma que: “A análise do processo [de acumulação] em sua pureza exige, por isso, que se ponham de lado todos os fenômenos que dissimulam o funcionamento interno do seu mecanismo.” (Marx, 1984: 658). Os fenômenos aos quais se refere são o fracionamento da maisvalia, isto é, como ela se distribui entre os diversos tipos de capitalistas (industriais, comerciais e financeiros) e a circulação que serve de veículo para a acumulação, ou seja, o exato papel cumprido pela esfera da circulação no processo de acumulação de capital. E conclui da seguinte maneira: Evidencia-se assim a razão por que, em nossa análise da forma básica do capital pela qual ele determina a organização econômica da sociedade moderna, não são, de início, objeto de exame suas formas populares e por assim dizer antediluvianas, o capital comercial e o capital usurário. (Marx, 1994: 183 e 184). Deve-se notar que, ao hierarquizar dessa forma, dando à indústria papel central, a teoria desenvolvida por Marx privilegia a luta de classes, uma vez que, sendo a exploração da força de trabalho e sua dissociação dos meios de produção condições necessárias e aspectos constitutivos do modo de produção capitalista, a relação entre aqueles que detêm a substância criadora de mais valia e os donos dos meios de produção encontra-se polarizada fundamentalmente na esfera da produção, onde trabalhadores alienam o fruto de seu trabalho (a produção social) e capitalistas dele se apropriam. A despeito deste posicionamento em relação ao circuito financeiro de valorização do capital, alguns autores consideram que Marx (...) desdobra analiticamente as possibilidades de que estas formas [capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital produtivo] tenham uma evolução histórica numa direção determinada. Assim, na lei geral de acumulação estão estruturalmente implícitas as necessidades de concentração e centralização do capital, principalmente através da e externalização crescentes do capital a juros, com o predomínio cada vez maior do sistema de crédito sobre as órbitas mercantil e produtiva. (Tavares e Belluzzo, 1980: 03). 7 Ou seja, considera-se que parte dos elementos necessários ao estudo sobre as necessidades de expansão e valorização do capital estão implicitamente presentes na fórmula desenvolvida por Marx, muito embora tenha o autor dado pouca importância ao capital financeiro. A autonomização do capital produtor de juros não foi percebida como sendo acompanhada por um movimento de domínio das finanças no processo de acumulação de capital. Este ponto teve implicações importantíssimas para o posterior desenvolvimento da escola marxista, sobretudo, para Rudolf Hilferding, como será visto mais adiante. Estado e acumulação Marx praticamente não atribui papel relevante ao poder político na dinâmica do processo de acumulação. Somente na etapa de formação do modo de produção capitalista, na fase da acumulação primitiva4, é que o autor confere funções importantes ao poder político, mediante os instrumentos por ele comandados, como o sistema colonial, a dívida pública e as políticas protecionistas. Os sistemas coloniais, estabelecidos com base no poder das armas, proporcionaram gigantescas vantagens aos capitais nacionais, que passavam a desfrutar dos monopólios comerciais com as colônias, ou seja, de mercados exclusivos e de abundantes recursos naturais para a indústria nacional em plena formação. Isso numa época em que o domínio comercial era um dos pontos chaves do desenvolvimento nacional. Os sistemas coloniais permitiram, em poucas palavras, uma “acumulação acelerada”; uma importante alavanca no processo inicial de concentração de capital. Na mesma perspectiva estavam as políticas protecionistas, as quais permitiram a superação de etapas do desenvolvimento capitalista de praticamente todas as forças produtivas nacionais. “O sistema protecionista era um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores independentes, de capitalizar meios de produção e meios de subsistência, de encurtar a transição do velho modo de produção para o moderno.” (Marx, 1984: 875). Já a dívida pública “converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital, sem ser necessário que seu dono se exponha aos 4 Ver capítulo XXIV de Marx (1994). 8 aborrecimentos e riscos inseparáveis das aplicações industriais e mesmo usurárias”. (Marx, 1984: 872). É com a dívida pública que a aliança entre poder político e mundo das altas finanças aparece de modo contundente. Grandes bancos são apresentados como cooperadores dos governos ao financiarem as “novas despesas extraordinárias” dos Estados, em outras palavras, ao patrocinarem os projetos militares dos senhores das guerras. Por outro lado, o poder político concedia à “bancocracia” privilégios que lhe permitia engendrar uma acumulação acelerada, ao criar, através da dívida pública, excelentes oportunidades de valorização para os capitais ligados às altas finanças. “Desde sua origem, os grandes bancos ornados com títulos nacionais não passavam de sociedades de especuladores particulares que cooperavam com os governos, graças aos privilégios recebidos, ficavam em condições de adiantar-lhes dinheiro”. (Marx, 1984: 873). Diversas eram as conveniências do endividamento público para os senhores das altas finanças. A dívida pública os assistia ao viabilizar o desenvolvimento das sociedades anônimas, das bolsas de valores, dos instrumentos financeiros, enfim das principais instituições do capitalismo financeiro moderno. A formação de uma “moderna bancocracia” nacional na Inglaterra, por exemplo, assegurou a esta o comando de funções vitais da própria economia nacional, como por exemplo, “guardião inevitável dos tesouros metálicos do país e o centro de gravitação de todo o crédito comercial” (Marx, 1984: 873). Concomitante ao surgimento da dívida pública, nasce também o sistema de crédito internacional capaz de elucidar a “transformação” de alguns países em nações capitalistas modernas, através captação de capitais internacionais “dispostos” a financiar a modernização das forças produtivas deste país. É interessante observar que nesta passagem, Marx cita como exemplos exatamente as mudanças dos centros hegemônicos, de Veneza para Holanda, desta para Inglaterra e, por último, da Inglaterra para os Estados Unidos. Pode-se afirmar que Marx descreve magistralmente as conveniências recíprocas de uma aliança entre o poder político e os ávidos capitais, com destaque para os senhores das altas finanças. No entanto, toda sua argumentação e análise estão comprometidas em explicar única e exclusivamente o nascimento do modo de produção capitalista, o nascimento das condições necessárias ao funcionamento desse sistema. Nem sua teoria da acumulação, nem seus esquemas de reprodução ampliada, ‘endogenizam’ o papel do poder político na ruptura da ‘reprodução simples’. Marx 9 reconheceu a enorme importância das ‘dívidas públicas’, mas restringiu-as aos processos e momentos de ‘acumulação primitiva’, sem considerar o papel dos Estados nacionais na competição, concentração e centralização do capital (...) (Fiori, 1999: 51). A razão, para tanto, é que a sua perspectiva teórica privilegia a esfera da produção, cujos atores centrais são as distintas classes sociais envolvidas no processo de criação de mais valia, mais especificamente, os trabalhadores como detentores da substância criadora de valor, por um lado, e os capitalistas enquanto proprietários dos meios de produção, por outro. É natural, portanto, que as ações do estado e as suas alianças com o capital apareçam apenas como complemento a sua estrutura teórica, cuja lógica e dinâmica não dependem desses elementos. 3 – Imperialismo e capital financeiro em Hilferding Rudolf Hilferding, expoente da chamada “escola marxista” do início do século XX, em sua magnífica obra “O Capital Financeiro”, desenvolveu algumas idéias ausentes na teoria de Marx e outras a ela complementares. Para os propósitos deste trabalho, destacam-se duas idéias que rompem com a perspectiva estabelecida por Marx. Primeiramente, partindo da problemática da “autonomiazação” dos capitais na esfera da circulação, desenvolveu o conceito de capital financeiro relacionando-o às necessidades de concentração e centralização do capital sob a regência das altas finanças, tornando explícito o que, para alguns autores 5, estava estruturalmente implícito na teoria de Marx. Posteriormente, de maneira bem original, Rudolf Hilferding atribuiu caráter central ao poder político, às alianças deste com o capital financeiro e às lutas interestatais e intercapitalistas nos processos de acumulação de capital e de poder em escala global. De acordo com Hilferding, as soluções violentas, as disputas imperiais pelo poder e em defesa dos interesses de seus capitais são parte constituinte e central da própria dinâmica do sistema capitalista internacional e, portanto, inevitáveis. Concentração e centralização do capital sob os auspícios das altas finanças O destaque dado ao capital financeiro no comando do processo de acumulação de capital tem como ponto de partida a articulação entre sociedade anônima, bolsa de valores e bancos. A 5 Ver Tavares e Belluzzo (1980). 10 partir destes, pode-se depreender, segundo Hilferding, a enorme capacidade de mobilização de capitais, responsável em parte pela nova etapa de concentração e centralização de capitais. As sociedades anônimas tornaram-se a modalidade de organização empresarial capaz de articular os interesses das diferentes formas do capital (comercial, industrial e financeiro). Possuem como característica fundamental a separação entre as atividades empresariais e a propriedade capitalista. As empresas transformaram-se em propriedade de vários “capitalistas” que, por um lado, passaram a deter direitos sobre parte dos rendimentos futuros da empresa, através da posse de ações (títulos de mais-valia) e, por outro lado, perderam praticamente todo poder decisório sobre a atividade produtiva da empresa, o qual fora entregue aos empresários. O ponto chave é que, por causa desta separação, o capitalista particular consegue desfazer-se de seu investimento a qualquer momento do tempo, uma vez que as ações podem ser revendidas em seus mercados secundários (bolsa de valores), sem interferência sobre a produção. Para o capitalista particular, o capital que antes era fixo, converteu-se em capital acionário, passível de se transformar a todo instante em capital-dinheiro. Um capital recuperável para o agente econômico individual a qualquer momento do processo produtivo. As sociedades anônimas tornaram o capital sempre realizável para o indivíduo. Contudo, para o conjunto da sociedade, tal transformação permaneceu sendo impossível. Neste âmbito, o capital investido preservou seu caráter fixo e permanente. O preço das ações não guarda relação alguma com o capital investido, vale dizer, não pode ser considerado “como alíquota do capital industrial”. O capital acionário, com efeito, têm uma lógica de valorização distinta daquela que ocorre no processo produtivo dentro da fábrica. A questão central aqui é que existe um grande espaço para valorização “fictícia” do capital acionário. Espaço proporcionado pela diferença entre o valor do capital investido na construção da “fábrica” e a cotação diária do capital acionário (fictício) nas bolsas de valores. Tal fato cria para o capitalista grandes e preciosas oportunidades para realização de lucros, ou através dos processos especulativos ou, no caso dos bancos, através da emissão de novas ações (lucro de fundador). Vale notar que ambos processos (especulação ou emissão) não detêm qualquer relação direta com a atividade produtiva da empresa da qual o capitalista possui ações. A bolsa de valores é o mercado especializado para comercialização de ações (títulos de mais valia). A principal atividade prática da bolsa é a especulação, que significa a exploração dos 11 diferenciais de preços entre as diversas ações ali negociadas. Para que a especulação permita a transformação do capital fictício (ações) em capital-monetário, deve haver um mercado secundário (bolsa de valores) capaz de absorver tais ativos sem grande prejuízo ao vendedor. Ao mostrar que a especulação permite ao capitalista reverter seu investimento em ações sem maiores prejuízos, o autor afirma que a especulação em bolsa é um “processo socialmente necessário” à economia capitalista. Representa mudanças nos estados patrimoniais dos diferentes capitalistas que atuam na bolsa. Nesse contexto, porque os bancos são os responsáveis pela emissão de ações nos mercados primários, o que lhes permite auferir lucros de fundador, e porque utilizam seu controle sobre os instrumentos crédito de modo a interferir, de acordo com suas conveniências, nos negócios especulativos em bolsa, os bancos ocupam posição central. São capazes não apenas de dominar, mas também de manipular (criar) processos de valorização fictícia do capital, conseguindo, assim, lugar de destaque nos processos de acumulação e concentração de capital. Em resumo, pode-se afirmar que, ao permitirem a realização de ganhos extraordinários através das atividades especulativa e emissora, ao mesmo tempo em que resguardam para o capitalista particular a possibilidade de retirada do capital investido, as sociedades anônimas e as bolsas de valores viabilizam a atração (mobilização) de grandes volumes de capitais e, por conseguinte, permitem a concentração e centralização do capital sob os auspícios das classes que manipulam esses capitais, as altas finanças, vale dizer, os grandes bancos. Somente a partir do desenvolvimento das sociedades anônimas, consolidou-se a fusão de interesses entre os bancos e a indústria, através das associações de empresas capitalistas (trustes e cartéis). É exatamente sobre esta conveniente confluência de interesses antes dispersos que Hilferding constrói seu conceito de capital financeiro. O capital financeiro significa a uniformização do capital. Os setores do capital industrial, comercial e bancário antes separados encontram-se agora sob a direção comum das altas finanças, na qual estão reunidos, em estreita união pessoal, os senhores da indústria e dos bancos. Essa mesma união tem por base a supressão da livre-concorrência do capitalismo individual por meio das grandes associações monopolistas. (Hilferding, 1985: 283). Sobre a superação da livre-concorrência a que se refere, é a mobilização de capital patrocinada pelos bancos, através dos mercados de capitais, que reforça consideravelmente a capacidade de acumulação das empresas na esfera da produção, ao aumentar seu poder de 12 concorrência, através do maior poder de competição nos mercados, de negociação de acordos, de realização de lobbies, de financiamento de gastos (investimento), de desenvolvimento de tecnologia, etc. Dessa maneira, a formação de trustes e cartéis é uma poderosa alavanca para superação de obstáculos tecnológicos e de mercado que acompanham a própria concentração e centralização do capital. A respeito da relação entre as diferentes formas de capital, Hilferding é ainda mais explícito na seguinte passagem: O poder dos bancos cresce, eles se tornam fundadores e, finalmente, os soberanos da indústria, cujo lucro usurpam como capital financeiro, exatamente como usurário se apodera, outrora, com seu ‘juro’, do rendimento do trabalho dos camponeses e da renda do senhor da terra. (Hilferding, 1985: 219). Em suma, são os grandes bancos que, com a ascensão e predomínio das sociedades anônimas, articuladas com base nos trustes e cartéis, vêm fortalecendo seu domínio e comando sobre as demais formas de capital, seja ele o industrial ou o comercial. O poder do estado e o capital financeiro Em “A exportação de capital e a luta pelo território econômico”, Rudolf Hilferding apresenta sua teoria do imperialismo. O autor, já no primeiro parágrafo, aponta a contradição central do sistema capitalista internacional, responsável pela insistência do sistema em produzir conflitos com desfechos violentos. De um lado, a força universalizante do capital financeiro, que busca no limite ampliar seu espaço privilegiado de acumulação a todos recantos do mundo. De outro, um sistema de Estados nacionais soberanos, que dividem o mundo inteiro em territórios econômicos. Enquanto, por um lado, a generalização do sistema protecionista aspira desmembrar progressivamente o mercado mundial em territórios econômicos individuais separados por Estados, a evolução para o capital financeiro eleva a importância da magnitude do espaço econômico”. (Hilferding, 1985: 17). Pelo lado do capital financeiro, há uma permanente força expansiva em busca de um território econômico por ele monopolizado e o mais amplo possível, que no limite abarcaria todos continentes. Maiores territórios econômicos possibilitam, ao capital financeiro, maiores lucros, provenientes dos ganhos em termos de complementaridade, produtividade e eficiência. Tais ganhos, por sua vez, decorrem: do aumento da escala de produção (mercados mais amplos); do 13 maior controle sobre as fontes de matérias primas; do acesso mais fácil aos centros consumidores e aos recursos naturais; do aprofundamento da divisão do trabalho nas industrias e na economia; da maior capacidade de se compensar possíveis choques externos e instabilidades na demanda; etc. Nesse sentido, os sistemas coloniais e as políticas protecionistas ganham enorme relevância, sobretudo, para os capitais financeiros de países cujas forças produtivas estão em estágio de desenvolvimento inferior aos de seus concorrentes internacionais. Ambas as políticas, a colonial e a protecionista, têm como propósito último garantir um espaço econômico seguro aos capitais nacionais, livres da concorrência estrangeira, permitindo-lhes uma “acumulação acelerada”. O protecionismo, ao garantir o monopólio interno aos capitais nacionais, estimula a formação de cartéis. Por outro lado, ao reduzir o território econômico a fim favorecer o desenvolvimento das forças produtivas nacionais, impele-os à busca de novas áreas de exploração, não “pela transição para o livre-comércio, mas pela ampliação do território econômico próprio, forçando a exportação de capital”. (Hilferding, 1985: 295). 6 Obviamente que as exportações capitais dirigem-se às áreas de maior expansão ou que proporcionem vantagens ainda não exploradas. Por outro lado, os países mais desenvolvidos industrial e financeiramente, aqueles que já alcançaram estágios mais avançados no processo de concentração e centralização industrial e de capitais, estão mais aptos a aproveitar as melhores oportunidades, justamente por causa do maior poder econômico e financeiro de seus trustes e cartéis. Portanto, a dinâmica das exportações de capitais é assimétrica e seus efeitos são cumulativos, o que aprofunda ainda mais o grau de disparidade entre os diferentes países ao longo do tempo. Além do mais, porque existe uma força expansiva que move os capitais nacionais para territórios mais distantes, esse processo conduz necessariamente ao acirramento da competição entre capitais de diferentes nacionalidades. Aos mais atrofiados, resta unicamente brigar para que sejam implementadas em seu território econômico políticas protecionistas, não apenas em relação 6 Por exportação de capitais compreende-se os investimentos realizados no exterior com o propósito de gerar maisvalia que possa ser repatriada. 14 ao comércio de bens e serviços, mas também no que concerne à exportação de capitais, visando diluir as disparidades de poder favoráveis aos capitais estrangeiros. O protecionismo de um país arrasta necessariamente consigo o protecionismo de outro país, e isso é tanto mais certo quanto mais desenvolvido for o capitalismo nesse último e quanto mais poderosos e mais extensos forem os monopólios capitalistas. (Hilferding, 1985: 303 e 304). Dentro de seu território econômico, o Estado nacional tem a incumbência de garantir que a produção na colônia e nas suas demais áreas de influência seja feita de acordo com o modo capitalista. Com efeito, o Estado deve providenciar em todo o seu território econômico a presença das instituições capitalistas básicas para que o processo de acumulação ocorra sem restrições ou prejuízos para seus capitais nacionais. Deve-se valer, quando necessário, de métodos violentos de coerção. O capital financeiro busca continuamente dominar um território econômico o mais amplo possível, protegido dos capitais estrangeiros a eles inconvenientes, permitindo o aprofundamento da concentração e centralização industrial dentro dos limites de tal território. Obviamente que, para tanto, faz-se necessária a existência de um Estado nacional forte, que seja capaz de atender e defender os interesses de seus capitais nacionais em todos os cantos do mundo. Daí a exigência de todos os capitalistas interessados em países estrangeiros para que o poder estatal seja forte, cuja autoridade proteja seus interesses também no mais longínquo rincão do mundo, daí a exigência de que se levante uma bandeira de guerra que precisa ser vista por toda a parte, para que a bandeira do comércio possa ser plantada em toda parte. (Hilferding, 1985: 302). Nesse jogo intercapitalista de interesses antagônicos, o poder político adquire retumbante relevância. Um Estado nacional tem que ser capaz de dominar seu território econômico e fazer valer seus interesses noutros recantos, mesmo quando necessário for violar a soberania de outros. Não deve permitir, por questão de sobrevivência e em defesa de seu território econômico, que diferente Estado cresça desproporcionalmente e de modo a acumular poder em níveis potencialmente ameaçadores. A corrida pelo poder e pela acumulação de capital é resultado natural da contradição inicialmente apresentada e, como conseqüência, há o brutal acirramento dos conflitos interestatal e intercapitalista em escala mundial. Não existe outro resultado possível a um sistema internacional que se constitua de tal maneira. 15 As palavras de Rudolf Hilferding ganham ares proféticos quando anunciadas em 1909, véspera da Primeira Grande Guerra. Estava claro para o autor que a saída para aquele contexto passava muito provavelmente pelo conflito armado. Enquanto a Alemanha avança rapidamente no seu desenvolvimento industrial, sua área de concorrência econômica é-lhe repentinamente reduzida. E isso é tanto mais delicado quando a Alemanha, por razões históricas e casuais para o capitalismo, não tem nenhuma possessão colonial que interesse, ao passo que não apenas seus concorrentes mais fortes, a Inglaterra e os Estados Unidos, mas também seus concorrentes menores França, Bélgica e Holanda, dispõem de possessões coloniais consideráveis, e seu futuro concorrente, a Rússia, possui igualmente um território econômico imensamente maior. Trata-se de uma situação que necessariamente agrava de forma extraordinária o confronto entre a Alemanha e Inglaterra com seus satélites, uma situação que impele a uma solução violenta”. (Hilferding, 1985: 311). O capital financeiro almeja permanentemente dominar as fontes de recursos, os mercados, os concorrentes, a tecnologia, etc. Submete o capital industrial e comercial à sua lógica de valorização. E, para contrariedade dos economistas de plantão, o capital financeiro organiza a concorrência através dos trustes e cartéis. Requalifica o próprio conceito de concorrência, alterando os instrumentos e as estratégias da luta intercapitalista. No entanto, tais aspirações estão condicionadas a existência de um Estado forte capaz de consolidar um território econômico que atenda as necessidades insaciáveis do capital financeiro nacional. Torna-se, praticamente, inevitável uma aliança entre o poder político e o capital financeiro nacional nos países com vocação imperialista, ou seja, com pretensões expansionistas. [O capital financeiro] Precisa de um Estado politicamente poderoso que, na sua política comercial, não tenha necessidade de respeitar os interesses opostos de outros Estados. Necessita, em definitivo, de um Estado forte que faça valer seus interesses financeiros no exterior, que entregue seu poder político para extorquir dos Estados menores vantajosos contratos de fornecimento e tratados comerciais. Um Estado que possa intervir em toda parte do mundo para converter o mundo inteiro em área de investimento para seu capital financeiro. O capital finalmente precisa de um Estado suficientemente forte para praticar uma política de expansão e poder incorporar novas colônias. (Hilferding, 1985: 314). O último passo de sua teoria do imperialismo é justamente a percepção de que os Estados nacionais almejam a submissão ou destruição das demais nações. O Estado torna-se tão desejoso em acumular poder quanto o capital financeiro busca acumular capital. As lutas entre Estados nacionais, portanto, não são provenientes das obsessões irracionais daqueles que comandam as 16 maquinas de guerra. Desse modo, estão presentes no núcleo do que se define como sistema capitalista internacional, as escaladas armamentistas e as guerras entre nações. “O ideal [do Estado nacional] agora é assegurar para a própria nação o domínio do mundo, uma ambição tão ilimitada quanto a ambição do capital por conseguir lucro, que lhe dá origem”. (Hilferding, 1985: 314). Rudolf Hilferding em seu livro “O Capital Financeiro”, a despeito de partir de Marx, alterou significativamente o foco central da teoria sobre o sistema capitalista. Desenvolveu mais a fundo a problemática da “autonomização” do capital-dinheiro ao relacioná-la à lógica e às necessidades de concentração e centralização do capital sob direção das altas finanças. Neste momento, ao dar destaque ao capital financeiro em detrimento das demais formas do capital nos processos de acumulação, alterou a hierarquia proposta por Marx, na qual o enfoque centra-se sobre a indústria e a luta de classes. Por outro lado, Hilferding pôs os Estados nacionais e a competição interestatal no centro da dinâmica do sistema capitalista internacional, distanciandose da estrutura teórica de Marx. Em suma, Hilferding articulou ambos os processos, o de concentração e centralização do capital sob auspícios das altas finanças e o papel central dos Estados nos processos de acumulação de poder e capital, o que lhe permitiu construir uma teoria sobre o imperialismo conectada a uma teoria sobre o sistema capitalista mundial. 4 – Ascensão e domínio da classe financeira em Hobson John Atkinson Hobson dedicou grande parte de seus estudos às transformações do capitalismo na virada do séc XIX para o XX, sendo “A Evolução do Capitalismo Moderno” um de seus mais importantes livros. Dentre as várias questões investigadas, destacam-se, de acordo com os propósitos deste trabalho, as relativas: ao processo de concentração e centralização do capital; ao desenvolvimento da grande empresa capitalista; e ao papel desempenhado pela classe financeira no sistema capitalista moderno. A proliferação e desenvolvimento das sociedades anônimas como forma de organização da empresa capitalista moderna, na passagem do século XIX para o XX, é um aspecto importante para o entendimento da ascensão da classe financeira no comando do grande capital monopolista em plena expansão. A sociedade anônima proporcionou enorme mobilização de capitais, antes dispersos na sociedade. Combinada à difusão do caráter de responsabilidade limitada para os 17 proprietários e investidores em relação ao passivo das empresas, em substituição à responsabilidade ilimitada, característica das empresas familiares e de pequeno porte, a sociedade anônima contribuiu decisivamente para a formação e consolidação do capital da grande empresa capitalista moderna, ao encorajar os agentes econômicos a aplicarem seus fundos de recursos em títulos de propriedade (ações) nas bolsas de valores. Somente dessa maneira, tornouse factível a mobilização e captação dos recursos necessários às crescentes exigências da indústria moderna em plena expansão. O ponto chave está na separação entre propriedade e gerência, que abre grande espaço para valorização fictícia do capital das sociedades anônimas. O cálculo do valor de uma empresa baseia-se em seus ativos tangíveis e intangíveis. Dos primeiros, pode-se fazer um exame mais exato, usando os custos de produção. Diferentemente, só é possível avaliar os ativos intangíveis pela sua capacidade futura de gerar lucros. Para tanto, utiliza-se como base registros estatísticos, mas, fundamentalmente, as expectativas futuras, num contexto de elevado grau de incerteza. Este fato abre uma janela aos movimentos especulativos e, portanto, torna o valor de uma empresa consideravelmente elástico. Concessões governamentais, marcas, patentes (ativos intangíveis), ou qualquer outro elemento (formação de trustes e cartéis) que proporcione algum tipo de poder de monopólio à empresa, podem expandir consideravelmente o valor das ações de uma empresa nos mercados de capitais. É justamente aqui que reside a capacidade permanente de valorização fictícia do capital. Um imenso poder de expansão, utilizado para concentrar e centralizar cada vez mais capital, através da monopolização crescente dos diferentes setores e indústrias. Esta capacidade valorização fictícia, mediante processos especulativos, constitui-se na marca mais importante desta modalidade de organização da empresa capitalista. Na verdade o que distingue esta forma de capital financeiro das que precederam historicamente é o caráter universal e permanente dos processos especulativos e de criação contábil de capital fictício, práticas ocasionais e ‘anormais’ na etapa anterior do capitalismo disperso.A natureza intrinsecamente especulativa da gestão empresarial, nesta modalidade de ‘capitalismo moderno’, traduz-se pela importância crescente das práticas destinadas a ampliar ‘ficticiamente’ o valor do capital existente, tornando necessária a constituição de um enorme e complexo aparato financeiro. (Tavares, 1985: XVI e XVII). Pelo lado dos pequenos investidores, a aquisição de ações justifica-se pela perspectiva de dois tipos de ganhos. De um lado, os fluxos de recursos provenientes dos lucros distribuídos entre 18 os acionistas e, de outro, os ganhos decorrentes das vendas de ações durante os períodos de alta. A despeito de seu aparente caráter democrático, no qual se supõe algum tipo de poder nas mãos dos acionistas, através da escolha dos diretores e das linhas gerais da estratégia da empresa, as sociedades anônimas têm seu controle limitado a uma pequena e fechada oligarquia. Os poucos sujeitos que dirigem verdadeiramente os destinos das grandes corporações são os membros da comunidade financeira, mais especificamente, os grandes bancos, denominados por Hobson de “financistas”, tema do capítulo mais importante de seu Livro7. Em resumo, “deseja-se o apoio monetário do público, mas não sua direção”. (Hobson,1985: 179). A trajetória de sucesso da oligarquia financeira no comando do processo de acumulação de capital liga-se diretamente ao próprio desenvolvimento das sociedades anônimas, pois com a difusão dessa forma empresarial tornou-se possível uma maior concentração de capitais, os quais passaram a fluir para o controle daqueles que operam os instrumentos financeiros das modernas empresas capitalistas. Portanto, cada vez mais que o processo de acumulação avança com base na sociedade anônima, através da expansão de seu poder de monopólio nos diversos ramos da economia, os grandes bancos reforçam sua posição de comando sobre as estratégias do grande capital em suas operações em diferentes setores da economia nacional e internacional. Assim, a relação entre a classe financeira e a moderna empresa capitalista deve ser entendida como decorrente de uma convergência de interesses entre capitais financeiros e capitais produtivos, mas não significam, para Hobson, um comprometimento dos bancos com as atividades produtivas das empresas que controlam. Por isso, o autor fala em “comunidade de negócios”, cujo comando está com os bancos, ou seja, fala de uma “relação funcional de dominação” que não se constitui numa “relação orgânica” entre bancos e indústria. 8 Os financistas avaliam, estruturam e promovem financeiramente determinada empresa e, posteriormente, garantem a venda de suas ações nos mercados de capitais, mediante sua subscrição. O segredo de seu sucesso provém de sua competência em efetuar uma superestimada avaliação da capacidade lucrativa das empresas nas bolsas de valores, apropriando-se, posteriormente, de grande parte dos resultados das vendas dos ativos inflados. 9 A avaliação exacerbada do valor das ações de uma empresa durante seu lançamento no mercado de capitais 7 O capítulo X, cujo nome é “O Financiador”. Ver Tavares (1985). 9 Para Hilferding este é o próprio lucro de fundador. 8 19 depende, por outro lado, de uma eficiente promoção financeira, cujo objetivo único é “provocar um boom passageiro”. A classe financeira ainda realiza lucros através de praticas especulativas que envolvem a manipulação de preço de mercadorias, como por exemplo, de matérias primas nos mercados nacionais e internacionais. Por outro lado, asseguram para si as atividades industriais e comerciais, que julgarem mais rentáveis. Edificam enorme poder de monopólio através da formação de grandes trustes, os quais controlam e utilizam para manipular mercados e realizar lucros, especulando nas bolsas de valores ou manipulando preços em outros mercados. Nessas operações, o crédito é o instrumento mais importante, uma vez que permite a ampliação das práticas especulativas de um modo geral. Não é por coincidência que são justamente os bancos comerciais o principal sócio da comunidade financeira. O domínio e controle dos bancos sobre processo de acumulação de capital, através do controle sobre os principais instrumentos de crédito, lhes permite aproveitar as melhores oportunidades de lucros financeiros e, por conseguinte, uma enorme apropriação do excedente produzido pela atividade industrial. Em resumo, o segredo do sucesso das grandes corporações norte-americanas “trustificadas”, no que se refere ao seu gigantismo, à sua capacidade de acumulação, à internacionalização de seu capital, etc., está no seu caráter intrinsecamente financeiro enraizado em sua estrutura organizacional e funcional. Não poucas vezes têm sido ressaltadas, para explicar o atual predomínio da economia americana, as vantagens tecnológicas de seu sistema manufatureiro vis a vis ao complexo industrial europeu. Com o mesmo propósito alguns autores apontam para a natureza continental do espaço econômico americano. Mais recentemente (ver ‘Strategy and Structure’ de Chandler e Hyrner) a ênfase tem sido colocada na morfologia multidivisional da corporação norte-americana. Cremos, no entanto, que Hobson, da mesma maneira que Hilferding, acentuou corretamente o papel do capital financeiro para explicar o surgimento da grande empresa americana e o caráter de sua hegemonia futura. (Tavares e Belluzzo, 1980: 05). O poder de monopólio, a outra face dos grandes trustes, faz das grandes corporações capitalistas poderosas máquinas de acumulação de capital. Os resultados daí provenientes compelem os trustes a buscar novos setores e mercados para desaguar seus capitais, pois, do contrário, imporiam enormes prejuízos aos praticamente saturados mercados de onde provém (crises de superacumulação). Essa força expansiva leva à concentração de outros setores e indústrias, dado a enorme capacidade de concorrência dos trustes. 20 Ademais, Hobson menciona a ligação que existe entre a necessidade de se procurar mercados externos, como alternativa para o problema da superacumulação de capitais dentro dos mercados nacionais, e o papel da política externa governamental nesse contexto. Todavia, faz de modo bem mais comedido e simplista, quando comparado ao Hilferding. A raiz econômica essencial, a principal força motriz de toda a expansão imperialista moderna, é a pressão das indústrias capitalistas no sentido da conquista de mercados. (...) Onde a concentração capitalista foi mais longe e predomina um sistema protecionista rigoroso, essa pressão atinge necessariamente um nível mais alto. Os trustes e outras empresas manufatureiras que destinam sua produção exclusivamente ao mercado interno não só exigem com mais premência mercados estrangeiros, como também se mostram mais ansiosos de assegurar mercados protegidos, objetivo que só podem alcançar com a expansão de sua área de dominação política. Eis o significado essencial da recente mudança na política exterior norte-americana, manifesta na Guerra espanhola, na anexação das Filipinas, na política com o Panamá e na recente aplicação da Doutrina Monroe aos Estados Sul-americanos. (Hobson, 1985: 193). Infelizmente o autor não prosseguiu investigando as enigmáticas relações entre o capital financeiro e o poder do Estado, apesar de reconhecer na dívida pública um poderoso, talvez o mais importante, instrumento de acumulação para a comunidade financeira em toda sua história 10. Como comentários gerais pode-se dizer que Hobson descreve melhor o papel e o domínio das altas finanças nos processos de acumulação de capital. Alguns autores atribuem isso ao fato de que Hobson estava analisando a economia norte-americana, cujo sistema financeiro nacional era mais desenvolvido do que o alemão, no caso de Hilferding 11. No entanto, o mais importante é que ambos perceberam a centralidade da esfera financeira no comando do capitalismo monopolista, através dos trustes e cartéis. Observaram a convergência de interesses entre capital industrial e capital financeiro a partir do desenvolvimento das sociedades anônimas. Ambos concordam que o gigantismo, característico das empresas capitalistas modernas em plena ascensão em seu tempo, decorria mais do caráter financeiro de sua organização do que do superior desenvolvimento tecnológico da indústria alemã e norte-americana em relação às restantes. 10 “Existe outra raiz [em relação às origens do financista moderno] – o desenvolvimento do empréstimo nacional, que desempenha talvez um papel ainda mais importante que a sociedade anônima nos negócios de algumas das maiores instituições financeiras européias. (...) Esta antiqüíssima área de finanças lucrativas expandiu-se enormemente com a evolução das despesas públicas, voltadas para a guerra; os armamentos e os empreendimentos produtivos na Europa, no Extremo Oriente e na América do Sul.” (Hobson, 1985: nota 03, p. 177). 11 Ver Tavares e Belluzzo (1980). 21 Hilferding desenvolve melhor a relação entre a classe financeira e o poder político do Estado nacional. Mostra o quanto tal aliança atende aos interesses de ambas as partes, convergindo num movimento de conquista de outros territórios e mercados. Hobson, apesar de reconhecer tal aliança, tanto na aquisição de privilégios internos quanto no apoio a conquista de mercados externos, e de mencionar a importância das finanças públicas no desenvolvimento da classe financeira, não aprofunda tais questões. 5 – As expansões financeiras e as crises de hegemonia em Arrighi Giovanni Arrighi, em seu grande livro “O Longo século XX”, analisou a evolução do sistema capitalista mundial desde seu nascimento, no longo século XVI (1450-1640), até atualidade. Utilizou como principal referência teórica o historiador francês Fernnand Braudel. Construiu um esquema interpretativo que se propõe dar coerência à longa história do capitalismo. Para tanto, apontou os fenômenos recorrentes e as tendências que julgou serem os mais importantes e os organizou de modo a viabilizar a comparação dos sucessivos períodos da história do capitalismo em que eles surgiram, os afamados “longos séculos”. Não desconsiderou as descontinuidades, rupturas e anomalias dos padrões de desenvolvimento capitalistas característicos de cada longo século. Desenvolveu, na verdade, uma perspectiva teórica bastante diferente e original, principalmente quando comparada às demais análises percorridas anteriormente neste trabalho. O ponto de partida do autor é a percepção braudeliana de que o elemento mais distinto e particular do capitalismo histórico é a “flexibilidade e ecletismo do capital”. Com efeito, a essência do capitalista só pode ser encontrada onde tais características possam se manifestar, e estas aparecem de modo mais claro nos lugares onde o capital relaciona-se com o estado, numa espécie de conveniência recíproca, responsável pelas melhores oportunidades para a acumulação de dinheiro e de poder. A essência do capitalismo não está no mercado, onde suas “forças naturais” são costumeiramente tratadas como uma clássica identidade do que se entende por capitalismo. O Estado, que é tratado como uma espécie de avesso das economias de mercado, devido às interferências que causa ao bom e natural funcionamento destes, passa a ser um dos elementos centrais no que se define como capitalismo. A visão convencional das ciências sociais, do discurso político e dos meios de comunicação de massa é que capitalismo e economia de mercado são mais ou menos 22 a mesma coisa, e que o poder do Estado é oposto a ambos. Braudel, ao contrário, encara a emergência e a expansão do capitalismo como absolutamente dependentes do poder estatal, constituindo-se esse sistema na antítese da economia de mercado. (Arrighi, 1994: 10). Assim sendo, nos espaços onde, por um lado, vigoram as economias elementares e voltadas para a auto-suficiência12 ou, por outro lado, onde predominam as economias de mercado, caracterizadas pela coordenação entre oferta e demanda através de sistemas de preços, não pode ser achada a essência do capitalismo, ou seja, a natureza eclética e flexível do capital e a suas alianças com o poder estatal. Estes três diferentes espaços citados acima (vida material, economia de mercado e capitalismo) estão hierarquizados, como num edifício em cujo primeiro andar encontra-se a vida material, no segundo, as economias de mercado e, no mais alto e obscuro, o capitalismo, espaço privilegiado das fusões e conexões entre os interesses do poder e do dinheiro. Este último com toda sua flexibilidade e ecletismo, ausentes nos andares inferiores. Para evidenciar a importância do terceiro andar desse edifício, Arrighi toma emprestadas as palavras de Braudel na seguinte passagem: Nessa camada superior é que se fazem os lucros em grande escala. Nela os lucros não são grandes apenas porque a camada capitalista monopolize as atividades econômicas mais lucrativas; mais importante ainda é o fato de que a camada capitalista tem a flexibilidade necessária para descolar continuamente seus investimentos das atividades econômicas que estejam enfrentando uma redução dos lucros para as quais não se encontrem nessa situação (Braudel, 1982, p. 22, 231, 428-30). (Arrighi, 1994: 08). As ligações entre os interesses do poder político e do capital são a égide da estrutura analítica proposta pelo autor. Não se pode pensar em capitalismo sem estado, como também em estado sem capitalismo. Nascem num mesmo momento histórico, ao longo do que se convencionou chamar de longo século XVI (1450-1640), e no mesmo lugar, no continente europeu. Em suma, na definição de capitalismo, está o estado nacional e sua relação com o capital. E este capital, a que se refere Arrighi, é acima de tudo o comandado pelas altas finanças, independentemente da forma predominante através da qual ele tenha se manifestado nas diferentes fases da história do capitalismo. Isso porque a comunidade financeira consegue tirar 12 Denominadas por Fernnand Braudel de “vida material”. 23 maior proveito da flexibilidade e ecletismo do capital. Por excelência, são os barões das altas finanças, os agentes que lidam com o capital em sua forma mais líquida e, portanto, mais flexível. Para Arrighi, seguindo as advertências de Marx, o agente capitalista é aquele que se empenha fundamentalmente na valorização de seu capital, tratando a produção e o comércio de mercadorias apenas como meios a eles disponíveis para alcançarem o seu objetivo; a multiplicação de seu capital. A partir de então, apresenta-se o esquema teórico que se propõe interpretar o perfil temporal do capitalismo histórico em sua longa duração, baseando-se, para tanto, na identificação de períodos que possam: “(...) descrever e elucidar a formação, consolidação e desintegração dos sucessivos regimes pelos quais a economia capitalista mundial se expandiu, desde seu embrião subsistêmico do fim da Idade Média até sua dimensão global da atualidade”. (Arrighi, 1994: 10). Esses períodos são denominados de ciclos sistêmicos de acumulação. A idéia central é que a história temporal do sistema capitalista mundial desde seu nascimento no longo século XVI até atualidade, fase final do longo século XX, pode ser narrada com base na seqüência de sucessivos ciclos sistêmicos de acumulação. Desses ciclos, duas características básicas se destacam. Em primeiro lugar, todo ciclo sistêmico de acumulação é conduzido e liderado pelos agentes econômicos e governamentais de determinado país, que impõem e coordenam o padrão de desenvolvimento capitalista em escala mundial, tanto no que concerne à estabilidade das relações internacionais entre os mais diferentes estados nacionais soberanos, quanto no que se refere ao regime de acumulação mundial 13. Em segundo lugar, todo ciclo sistêmico de acumulação é marcado pela ocorrência de períodos de grande expansão financeira, que sinalizam o esgotamento de seu regime de acumulação característico. Concomitantemente a esse esgotamento, nas fases de expansão financeira, surge um novo e mais pungente padrão de desenvolvimento capitalista, que está em plena ascensão. O ponto a se sublinhar é que as expansões financeiras definem-se como a unidade de análise básica da narrativa que está sendo proposta. Considera-se que todos ciclos sistêmicos possuem estruturas parecidas, em termos de suas fases de expansão material e financeira, as quais se alternam e se repetem ao longo da história do sistema capitalista mundial. 13 “O que entendemos por regimes de acumulação em escala mundial são estratégias e estruturas mediante as quais esses agentes preponderantes promovem, organizam e regulam a expansão ou a restruturação da economia capitalista mundial”. (Arrighi, 1994: 10). 24 Para descrever melhor a dinâmica das fases de cada ciclo sistêmico de acumulação, Arrighi utiliza a fórmula (D-M-D’) desenvolvida por Marx. Emprega-a, todavia, não como representativa do circuito do capital para os investidores capitalistas individuais, como fez Marx, mas para descrever o padrão reiterado do capitalismo histórico como sistema mundial. A primeira passagem da fórmula (D-M) é a representação da fase do ciclo em que ocorre um predomínio da expansão material, ou seja, um considerável crescimento das atividades produtivas de um modo geral. Durante esses períodos, o desenvolvimento capitalista mundial é conduzido por determinado padrão (regime de acumulação) e suas transformações são contínuas, ou seja, sem rupturas. Por sua vez, a segunda passagem da fórmula (M-D’) é representativa das fases de expansão financeira dos ciclos sistêmicos de acumulação, momentos em que se verificam transformações descontínuas no padrão de desenvolvimento capitalista mundial, ou seja, momentos em que “(...) o crescimento pela via estabelecida já atingiu ou está atingindo seus limites e a economia capitalista mundial ‘se desloca’, através de reestruturações e reorganizações radicais, para outra via”. (Arrighi, 1994: 09). Essas fases são dominadas pela lógica financeira de valorização do capital, o que permite tratá-las pela fórmula reduzida (D-D’), em que capital cria mais capital. Os lucros financeiros passam a crescer e a rivalizar com os provenientes das atividades produtivas. Ademais, nesses períodos de liberalismo financeiro, sucede-se a queda do regime de acumulação vigente, o qual vai sendo paulatinamente superado por um novo e mais dinâmico regime e, portanto, capaz de substituí-lo. A passagem de uma fase para outra, mais precisamente, da expansão material para a financeira, transcorre devido a uma contradição intrínseca à própria dinâmica de funcionamento do sistema capitalista. O sucesso do desenvolvimento do sistema capitalismo repõe permanentemente as barreiras para sua contínua reprodução. Mais precisamente, no esforço para alcançar seu objetivo central, sua autovalorização, o capital recoloca em escala ampliada as suas barreiras, pois condições cada vez mais complexas são exigidas para sua expansão devido à tendência de queda no nível da taxa de lucro ao longo do tempo. Ademais, essa tendência impele um acirramento das disputas intercapitalistas, que por sua vez reforçam a tendência de queda nas taxas de lucro. Com as palavras do autor: Essa tendência [de esgotamento das fases de expansão material] pode ser atribuída ao fato de que, de um modo ou de outro, todas as expansões foram cerceadas pelas próprias forças que as geraram, de modo que, quanto mais intensas 25 se tornavam essas forças, mais forte era também a tendência de que cessasse a expansão. Mais especificamente, à medida que aumentou a massa de capital que buscava reinvestimento no comércio, sob o impacto dos lucros ascendentes ou elevados, uma parcela crescente do espaço econômico necessário para mantê-lo em ascensão ou elevados foi sendo consumida – ou, para usar uma expressão de David Harvey, foi “aniquilada no tempo”. Quando os centros de comércio e acumulação tentaram opor-se aos lucros decrescentes, através da diversificação de seus negócios, eles também aniquilaram a distância geográfica e funcional que os vinha mantendo fora do caminho uns dos outros, em mercados mais ou menos protegidos.Como resultado dessa dupla tendência, a cooperação entre os centro foi substituída por uma concorrência cada vez mais violenta, que deprimiu lucros ainda mais e acabou por destruir as estruturas organizacionais em que se baseara a expansão material anterior. (Arrighi, 1994: 231). Inevitavelmente, com o aprofundamento da crise, passa a ser mais interessante investir o capital na esfera financeira e auferir “ganhos de juros” do que prosseguir investindo na indústria e no comércio. Portanto, de acordo com o esquema analítico de Giovanni Arrighi, as expansões materiais deságuam, por razões estritamente econômicas, em fases de expansão financeira, visto que a superacumulação, manifestação do sucesso das fases de expansão material, causa o aprofundamento da competição intercapitalista em função das necessidades permanentes de se buscar novas oportunidades de lucro, para que o capital cumpra sua razão de ser. Nas fases de expansão financeira, não por acaso, ocorre outro fenômeno de central importância: o aumento das rivalidades entre os Estados nacionais. Argumenta-se que a intensificação da competição entre os estados é a principal força motriz das expansões financeiras, pois estes passam a disputar o capital em sua forma mais líquida, criando, assim, oportunidades de ganhos financeiros aos donos do capital. Graças às necessidades de financiamento do Estado, decorrentes do crescimento dos gastos públicos nos momentos em que se intensificam as hostilidades interestatais, que os processos de financerização da riqueza capitalista e de valorização do capital via circuito D-D’ ganham centralidade e proporcionam aos donos do capital excelentes oportunidades para expandi-los. Lembra-se apenas que serão, acima de tudo, os inquilinos do terceiro andar do edifico braudeliano, que poderão usufruir intensamente dessas oportunidades, pois a flexibilidade e o ecletismo são marcas praticamente exclusivas de seu capital. Arrighi afirma, portanto, que o acirramento da competição interestatal é uma condição necessária às expansões financeiras. Ademais, olhando para a história da era moderna, a 26 intensificação da disputa entre os estados nacionais nessas fases de liberalismo financeiro teve como desdobramento uma profunda crise sistêmica, no sentido de que, além do esgotamento do regime de acumulação, que é substituído por outro mais dinâmico, há também uma crise de hegemonia do país responsável pela condução e comando do padrão de desenvolvimento até então vigente. Por isso que as expansões financeiras são entendidas como um sinal de uma derradeira crise no comando político das relações internacionais. Em suma, expansões financeiras são acompanhadas por crises de hegemonia. O interessante a se perceber é que o autor estabelece em sua estrutura teórica uma coincidência entre os dois processos centrais de seu esquema analítico: o acirramento da competição interestatal, com a subseqüente crise de hegemonia, e as expansões financeiras. Ambos ocorrem simultaneamente e são os responsáveis pela dinâmica “regular” dos ciclos sistêmicos de acumulação ao longo de toda história do capitalismo. O resultado da crise de hegemonia, que ocorre nas fases de expansão financeira, tem sido a substituição do centro do poder político do sistema por outro mais forte, capaz de estabelecer ordem às relações internacionais de poder. Por sua vez, o resultado da crise do regime de acumulação até então vigente também tem sido sua substituição por outro mais dinâmico, capaz de promover uma nova fase de expansão material. No entanto, um ponto que não parece muito claro é o seguinte: se as expansões financeiras decorrem por motivos estritamente econômicos, ligados à tendência de queda das taxas de lucro devido á superacumulação durante as fases de expansão material (como visto anteriormente), o que garante a ocorrência de um acirramento da competição interestatal, responsável pela criação das melhores oportunidades de lucros financeiros mediante os instrumentos de endividamento público, nesses momentos de liberalismo financeiro, com abundância de capitais? Caso se considere que a busca por lucros financeiros garante por si só a demanda por esses capitais, em outras palavras, que a oferta de crédito estimule por si só os mais importantes “tomadores” (os Estados nacionais) a se endividarem, implicitamente está-se considerando que a dinâmica do poder político, das rivalidades interestatais, das guerras, subordina-se a uma dinâmica estritamente econômica. 27 Por outro lado, poder-se-ia imaginar que, ao contrário, à medida que se aumentasse a gravidade das disputas entre os estados nacionais, criar-se-iam oportunidades de lucros financeiros ainda mais tentadoras através de uma tendência de crescimento das taxas de juros básicas da economia mundial. Assim sendo, essa evolução ascendente das taxas de juros anteciparia a crise de superacumulação ao reduzir as vantagens dos ganhos na indústria e no comércio em favor dos ganhos financeiros. Nesse caso, implicitamente estar-se-ia subordinando o esgotamento dos regimes de acumulação ao grau de intensidade das disputas do poder político. Seria necessário, por conseguinte, compreender a dinâmica (se é que existe) das relações internacionais de poder para, em última instância, entender a regularidade dos ciclos sistêmicos de acumulação. Enfim, de qualquer modo, não parece estar claro qual seria, então, a dinâmica que garantiria, em última instância, a coincidência central do esquema proposto entre as expansões financeiras e as crises de hegemonia. Por último, alguns comentários finais. Trata-se de uma abordagem que, ao privilegiar as relações entre o poder e o dinheiro, acaba por negligenciar outros elementos importantes do sistema capitalista, como por exemplo, a luta de classes e as relações entre centro e periferia característica da economia mundial. Por outro lado, Arrighi evidenciou as altas finanças, assim como Hilferding e Hobson, em sua análise sobre o capitalismo. Ademais, a respeito da importância dada à relação entre o capital e o estado, Arrighi segue a direção apontada por Hilferding. No entanto, parte da diferença entre ambos os autores é que, enquanto Hilferding tratou o capital financeiro como uma etapa mais avançada do desenvolvimento do sistema capitalista que ocorreu na virada para o século XX, Arrighi abordou o capital financeiro como um elemento constituinte do sistema capitalista desde seu nascimento ao longo de 1450-1640. 6 - Conclusão A conjuntura atual, marcada por uma ordem financeira completamente liberalizada e desregulada, instiga um debate acerca do papel exercido pelo capital financeiro na dinâmica do sistema capitalista mundial. No entanto, ao mergulhar nos estudos daqueles que já se dispuseram a pensar sobre o assunto, uma rica controvérsia emerge. 28 Em seus estudos sobre o modo de produção capitalista, Karl Marx privilegia a esfera da produção em detrimento dos circuitos do comércio e das finanças, justamente porque tem como objetivo desvendar onde a mais valia é produzida e sob quais condições ocorre sua apropriação por uma classe diferente daquela que a produziu. Com efeito, concede atenção à indústria e à luta de classes em seus trabalhos, dando pouca importância relativa ao capital financeiro e ao Estado nacional nos processos de acumulação e distribuição da riqueza capitalista. Rudolf Hilferding, expoente da “escola marxista”, desenvolveu uma perspectiva absolutamente original que inaugurou uma série de elementos interessantes ao debate sobre o capital financeiro. Articulou duas idéias chaves, depositando-as no centro da dinâmica do sistema capitalista mundial. Por um lado, estão as necessidades de concentração e centralização do capital sob o comando da classe financeira e, por outro lado, a convergência dos interesses do capital financeiro e do poder político nacionais, com o subsequente acirramento das rivalidades intercapitalistas e interestatais. Introduz, portanto, nos estudos sobre o sistema capitalista mundial, o domínio das altas finanças nos processos de acumulação de capital e o papel central das disputas interestatais na dinâmica desse sistema. Joan Hobson, contemporâneo de Hilferding, observou as mesmas transformações do final do século XIX início do XX. Descreve de modo mais interessante o processo de concentração e centralização do capital sob a égide do capital financeiro. No entanto, diferentemente, prende-se mais à dinâmica interna do capitalismo, sem relacioná-la à lógica do poder político. Destaca-se o fato de que ambos, Hobson e Hilferding, notaram a centralidade das altas finanças no comando do capitalismo monopolista, e que a fusão dos interesses dos senhores da grande indústria e dos barões da “bancrocacia” ocorreu através da consolidação das sociedades de capital acionário. Por fim, Giovanni Arrighi privilegia notadamente a relação entre o capital financeiro e o poder político. Constrói um esquema interpretativo, em que as expansões financeiras, fases de predomínio dos processos financeiros de valorização da riqueza capitalista, são a unidade básica utilizada para organizar e recortar a longa história do sistema capitalista mundial, desde sua origem no longo século XVI até a atualidade. Como ponto central de seu esquema teórico, identifica uma coincidência entre as expansões financeiras e as crises de hegemonia, responsáveis pela substituição simultânea do regime de acumulação mundial, por um lado, e do país que comanda a geopolítica internacional, por outro. 29 7 – Bibliografia ARRIGHI, G. (1994), O Longo Século XX, Contraponto/UNESPE, Rio de Janeiro, 1994. ARRIGHI, G. & SILVER, B. J. (1999), Caos e governabilidade, Contraponto/Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1999. BELLUZZO, L. G. (1999), Finança global e ciclos de expansão, in: FIORI, J. L. (org.), Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações, Ed. Vozes, Petrópolis, 1999. BRAGA, J. C. de S. (1997), Financeirização global: O padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo in: TAVARES, M. C. & FIORI, J. L. (org.) Poder e Dinheiro: Uma economia política da globalização, Ed. Vozes, Petrópolis, 1997. FIORI, J. L. (1999), Estados, moedas e desenvolvimento, in: FIORI, J. L. (org.) 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