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Com outros olhos: uma análise etnográfica da "cegueira" e "deficiência visual"

The main object of this dissertation is the study of the performances of "visual disability", "blindness", "low vision" and “seeing”, through social interactions. Its main objective is to describe and to analyze these performances as the use of the nomination categories, distinctive signs and qualifying attributes. Furthermore, I propose to present the processes of embodiment of these representations and its importance for the constitution of the actors’ "self". The theoretical and methodological assumptions rely on aspects of Goffman’s dramaturgical perspective and Bourdieu’s theory of meaning. The data were developed through participant observation at specialized institutes.

ANDREA DE MORAES CAVALHEIRO Com outros olhos uma análise etnográfica da “cegueira” e “deficiência visual” Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Antropologia. (O exemplar original encontra-se disponível no Centro de Apoio à Pesquisa Histórica da referida Faculdade). Área de concentração: Antropologia Social Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2012 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Catalogação da Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo CAVALHEIRO, Andrea de Moraes. C : uma análise etnográfica da “cegueira” e “deficiência visual”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Antropologia. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes Aprovado em: _____________________ Banca examinadora Prof.Dr. ___________________________________________ Instituição: ________________Assinatura: _______________ Prof.Dr. ___________________________________________ Instituição: ________________Assinatura: _______________ Prof.Dr. ___________________________________________ Instituição: ________________Assinatura: _______________ Às minhas avós, Elza e Ivone, e ao meu avô Horácio ( e a ), por terem me criado, serem grandes referenciais e portos seguros. Nunca vou conseguir agradecer a altura. Agradecimentos À minha orientadora, Sylvia Caiuby Novaes, por abrir as portas da Antropologia e por acreditar neste trabalho. Muito obrigada pelo apoio, incentivo e ensinamentos imprescindíveis. À FAPESP pela bolsa concedida. Aos colegas do LISA/USP, principalmente à Francirosy Ferreira, pelas discussões, aconselhamentos e amizade. Aos pesquisadores do NAU/USP, especialmente ao professor José Guilherme Magnani pelas contribuições em meu exame de qualificação; ao César Augusto de Assis Silva, coordenador do Grupo de Estudos Surdos e da Deficiência, pela amizade e imensa colaboração no amadurecimento teóricometodológico deste trabalho; e por fim, à Cibele Barbalho Assênsio, pelas discussões e apontamentos. À professora Paula Montero pelas contribuições em meu exame de qualificação e por ter mudado a minha forma de olhar o mundo. Aos colegas do PPGAS/USP, que me acompanharam nessa empreitada, sobretudo ao André Drago Andrade, Carlos Gutierrez, Fábio Mallart, Giancarlo Machado, Rafael Adriano Marques, Rosenilton Oliveira e Samantha Gaspar. À Magdalena Gutierrez e à Camila Guerreiro por compartilharem os primeiros passos na Antropologia e no Trabalho de Campo. Aos meus amigos da História e do Departamento do Patrimônio Histórico, David Sampaio, Felipe Dias Carrilho, Fernanda Menezes, Helenice Diamante, Laura Souza, Marina Galvanese e Maurício Rodrigues, afinal, os cargos passam, a amizade fica, obrigada por permanecerem. Em especial à Maria Lúcia Perrone de Faro Passos, Malu, querida chefe, professora, conselheira e amiga, obrigada pela consideração, histórias e lições preciosas. À família Berro, pela convivência nos últimos nove anos, em específico à Ruth e Julia pela amizade e carinho. À direção e coordenação do Instituto de Cegos Padre Chico, Irmã Helena Mariano, Ana Maria Pires e Anna Maria Miceli, obrigada pelo acolhimento e concessão para realizar esta pesquisa. A todos os professores, técnicos e funcionários do Instituto Padre Chico que admiro pela competência, dedicação e união. Especialmente à Isabel Bertevelli pela amizade e por viabilizar esta pesquisa de Nascimento, Vanessa muitas formas. Vesterman e Rafael À Adriana Silva pela oportunidade e confiança. Às minhas professoras de braile, Irmã Apoline Camargo e Irmã e Madalena Marques, pelos ensinamentos. Aos alunos e familiares do Instituto Padre Chico, pelos sorrisos, abraços e amizade, vocês moram no meu coração. À coordenação da LARAMARA, Eliana Ormelezi, Cecília Maria Oka e Erica Cristina Takahashi da Silva por possibilitarem a realização deste trabalho e pelo diálogo. Agradeço a todos os especialistas e funcionários da LARAMARA, que admiro pelo empenho e entusiasmo, em particular à Regina Versoça, Elisa de Oliveira, Ana Carolina Loschiavo e Silverlei Vieira. Aos alunos e familiares que convivi na LARAMARA, pela amizade, risadas e alegria. Sobretudo ao Alexandre, Jovana, Eduardo, Erica e Marines Almeida. Aos amigos do Movimento Livre, Erici Honório, Fábio dos Santos, Irene Pereira, Rosaura Louzzano, Regina Célia Ribeiro, Ricardo de Melo, William Rodrigues e Wilma Teixeira. Principalmente à Marly Solanowski pelos ensinamentos e debate do meu relatório de qualificação; e ao Renato Tadeu Barbato pela amizade e discussões. Às minhas grandes amigas de infância, Ana Helena Tokutake, Ana Julia Kiss, Juliana de Faria, Luciana Kaori Shintani e Regiane Ishii, com quem compartilhei minha juventude, minhas utopias, minhas decepções e meu crescimento. Vocês são HUGES. Ao tio Luís Claudio, à tia Márcia e ao primo Márcio Cavalheiro, pelo carinho e preocupação. Aos meus pais, Mauro e Tais Cavalheiro, pelo amor e educação, por apoiarem minhas escolhas e pelo mecenato. Em particular, à minha mãe, pelos exaustivos turnos de revisão de texto. Por fim, agradeço ao Luiz Gustavo Berro, meu companheiro, pelo apoio nos momentos de desespero; pela compreensão, interesse e incentivo; por ser meu descanso e aconchego. Muito obrigada, com todo o meu amor. Resumo CAVALHEIRO, A. M. Co o o o ho : uma análise etnográfica da “cegueira” e “deficiência visual”. 2012. 185 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. Esta dissertação tem como principal objeto de estudo as interações sociais, que envolvem performances chamadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência” e correlativos. O objetivo desta pesquisa é descrever tais performances em termos de acionamentos de categorias de nomeação, sinais distintivos e atributos qualificativos. Pretende-se refletir sobre os processos de negociação e incorporação das mesmas na constituição do “eu” dos atores. Entre os pressupostos teórico-metodológicos, optou-se por uma aproximação com aspectos do modelo teatral de Goffman e da teoria da significação de Bourdieu. Para a construção dos dados, realizou-se observação participante principalmente em institutos especializados. Palavras-chave: Cegueira. Deficiência Visual. Baixa Visão. Interação Social. Performance. Incorporação. Abstract CAVALHEIRO, A. M. With other eyes: an ethnographic analysis of "blindness" and “visual disability”. 2012. 185 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. The main object of this dissertation is the study of the performances of "visual disability", "blindness", "low vision" and “seeing”, through social interactions. Its main objective is to describe and to analyze these performances as the use of the nomination categories, distinctive signs and qualifying attributes. Furthermore, I propose to present the processes of embodiment of these representations and its importance for the constitution of the actors’ "self". The theoretical and methodological assumptions rely on aspects of Goffman’s dramaturgical perspective and Bourdieu’s theory of meaning. The data were developed through participant observation at specialized institutes. Keywords: Visual Disability. Blindness. Low Vision. Social Interaction. Performance. Embodiment. Sumário Introdução ..................................................................... 11 1. Classificação de personagens: categorias de nomeação .... 33 2. Identificação de diferenças: sinais distintivos .................. 58 3. Caracterização de máscaras: atributos qualificativos ..... 100 4. Negociação de representações: rendimentos simbólicos . 140 5. Construção do “eu”: processos de incorporação ............ 156 Considerações finais ...................................................... 170 Referências bibliográficas ............................................... 179 Introdução Nesta introdução exponho: o objeto de pesquisa, os objetivos, os pressupostos teórico-metodológicos que norteiam a investigação e o percurso levado para estabelecê-los. Também apresento o campo empírico e aspectos da construção e análise dos dados. Por último, forneço o resumo de cada capítulo. O principal objeto desta dissertação são as interações face a face que envolvem performances nomeadas, entre outros termos, por “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão” e “vidência”. A interação face a face pode ser definida como uma negociação de representações entre atores, uns sobre os outros, quando em presença física imediata, orientando-se pelo reconhecimento da atuação alheia, em suas categorias, atributos e sinais, através de imputações condescendentes. Nesta negociação cada ator solicita que seja levado a sério pelos demais, acreditando em sua performance (GOFFMAN, 2009). Neste estudo, as performances são o acionamento de representações estereotipadas, como sinais e atributos, ligados a um padrão de ação pré-estabelecido, que distinguem e qualificam os atores subsidiando a classificação. Quanto às representações, partindo de Durkheim (1978) e Bourdieu (2004), estas são consideradas como construções 11 simbólicas, que configuram maneiras de agir, pensar e sentir; e são constituídas e solidificadas historicamente de acordo com contextos específicos. O objetivo desta dissertação é descrever e analisar as performances chamadas, entre outros termos, de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão” e “vidência”. Refiro-me especificamente aos acionamentos práticos de representações como: categorias de nomeação, sinais distintivos e atributos qualificativos. Em seguida, pretendo refletir sobre os possíveis rendimentos simbólicos envolvidos nas negociações destas representações. Por fim, estudo os processos de incorporação das mesmas na constituição do “eu” dos atores. Entre os pressupostos teórico-metodológicos, opto por uma aproximação com aspectos da abordagem interacionista goffmaniana. Parto do modelo teatral do autor e o adapto à empiria e problemática específica desta pesquisa. Abaixo apresento tal modelo e, em seguida, indico os ajustes necessários. O modelo teatral é desenvolvido prioritariamente na obra çã (2009), publicada em 1959. Trata-se de um conjunto de metáforas relativas à dramaturgia, que constituem uma teoria explicativa para as situações interativas1. A seguir exponho seus principais elementos e dinâmica. 1 “um aspecto importante do conjunto dos face a face é que, por eles e só por eles, podemos atribuir uma configuração e um cenário dramático a coisas que, de outro modo, não seriam perceptíveis aos nossos sentidos”. (GOFFMAN, 1999, p.215). 12 O primeiro elemento a ser especificado é a cena, tratase da estrutura de ocasião, o tempo e o espaço nos quais se realizam a interação (NUNES, 2005, p.86). O ator é o agente social do modelo, ele estabelece a interação ao negociar representações com outros atores. Goffman enfatiza a agência possível do ator ao considerar que suas negociações não estão garantidas previamente pelas constrições estruturais que as pressionam. O ator depende de seu corpo enquanto condição de entrada na interação face a face. Nela, o corpo está em situação vulnerável, expõe-se ao risco de ferir-se, sendo obrigado a leva-la a sério. Além disso, o corpo é veículo de transmissão e recepção de sinais, cuja identificação influi na previsão da interação. [...] por definição só podemos participar em situações sociais se levarmos os nossos corpos e os seus adornos, e este equipamento é vulnerável aos objetos que os outros trazem com seus corpos (GOFFMAN, 1999, p.199). A máscara dos atores são as representações do “eu”, as concepções formadas sobre si, num confronto com o reconhecimento alheio. Trata-se de um caráter adquirido que se torna internalizado, cristalizando-se como uma segunda natureza. Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos 13 esforçamos por chegar a viver -, esta mascara é nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de nossa personalidade. Entramos no mundo como indivíduos, tornamos adquirimos pessoas. um caráter e (PARK, 1950, nos p.249. .: GOFFMAN, 2009, p.27). Os atores desempenham papéis, que são padrões de ação guiados principalmente por categorias, sinais e atributos pré-definidos (NUNES, 2005, p.54). Os papéis são relacionais – dependem daqueles desempenhados pelos demais atores em cena, “o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes” (GOFFMAN, 2009, p.9). A fachada são os sinais acionados pelos atores durante suas atuações para a classificação dos mesmos e para a previsão da interação. A fachada é dada a partir de sinais estereotipados atrelados a um papel. Um papel estabelecido geralmente possui uma fachada determinada, que deve ser mantida acionando-se seus sinais característicos, por exemplo: a fachada de médico implica geralmente em vestir-se de jaleco branco, possuir expressão segura, etc. Quando um ator assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada já foi estabelecida para esse papel. (GOFFMAN, 2009, p.34). 14 A partir da leitura dos sinais dos demais atores, das interações passadas e de outras informações obtidas, o ator prevê como se dará a interação, construindo afirmativas chamadas de expectativas. Contudo, o desfecho da interação permanece imprevisível. O desfecho da interação depende do reconhecimento e da imputação de representações em relação às expectativas criadas pelas partes. Se os acionamentos corresponderem às expectativas, os atores recebem um tratamento adequado e o desfecho da interação é satisfatório. Mas, se os acionamentos não correspondem às expectativas, o desfecho da interação pode envolver algum embaraço ou desapontamento. De maneira geral, no modelo teatral a interação é realizada numa cena, travada entre atores mascarados, que desempenham papéis relacionais com suas fachadas características. Cada um deles espera que suas representações sejam reconhecidas recebendo um tratamento adequado. Para Goffman, a interação constitui uma ordem específica – um domínio autônomo e particular de atividade, pois “os elementos contidos neste domínio estão mais intimamente ligados entre si que a elementos situados no exterior da ordem” (GOFFMAN, 1999, p.195), sendo sua configuração irredutível a outras ordens sociais. Acima procurei sistematizar de forma simplificada aspectos do modelo teatral. Para proceder tal sistematização houve um enrijecimento devido à minimização dos exemplos empíricos, que ancoram o mesmo. Também é necessário frisar que outros conceitos conexos não foram abordados, 15 como os de bastidor, plateia, equipe, etc., pois os considero menos relevantes para a presente pesquisa. Optei pela abordagem e modelo acima descritos por alguns fatores. O primeiro deles refere-se a não essencialização – Goffman aborda papéis talhados de modo relacional, que só existem na medida em que são atuados e identificados na interação. Deste modo, não há uma essência anterior às práticas e para além da aparência das performances. Outro fator refere-se à questão da agência. Antes de adotar tal teoria, abordava a construção do “deficiente visual”, “cego”, “ceguinho”, etc. muito mais como uma imposição por técnicos e familiares, do que uma negociação situacional entre as partes, que envolveria também auto-reconhecimento e negação. Assim, considero que a interação permite ampliar os pontos de vista, dando conta de resistências e contrariedades. Neste mesmo viés, também aprecio a teoria da ação interacionista, na qual a agência do ator é enfatizada mesmo considerando as constrições estruturais que a limita. Na interação, a negociação não está definida previamente por tais constrições, há uma margem de indefinição, que possibilita agência para o ator. O último fator é o rendimento na análise dos dados construídos. Das abordagens tentadas durante a pesquisa, essa foi que me permitiu relacionar a maior quantidade de dados. Talvez isso se deva, em parte, pela própria condição dos dados, que são relativos à microinterações, presenciadas em observação participante. 16 Considerando que todo modelo é criado a partir de problemáticas e empirias específicas, o deslocamento e empréstimo de seus conceitos para outro contexto exigem uma adaptação, torção e, no limite, uma reinvenção. A seguir explicito alguns comentários a este respeito. Quanto à problemática, Goffman está interessado em analisar a própria ordem da interação, sua operação, regularidades, etc. Já a presente pesquisa procura analisar as performances negociadas na interação. Desta forma, a interação não é um objetivo, mas um instrumental para decodificar a prática dos atores. Tendo em vista estes diferentes interesses, descartei alguns conceitos do modelo teatral, não emprego propriamente o papel e a fachada. Mas, os decomponho em categorias, atributos e sinais, como elementos negociados na interação. Decompus a fachada em seus sinais, analisando-os um a um durante acionamentos práticos. De modo semelhante, esmiucei o papel em categorias e atributos, analisando-os um a um. Tais decomposições foram necessárias para especificar de modo mais palpável os elementos das negociações interativas. Ao descartar alguns conceitos e priorizar aspectos abordados de modo marginal na teoria do autor, tais como: as categorias, os atributos e os sinais, fui obrigada a forjar definições e teorizações aos mesmos. Tal tarefa foi empreendida a partir do confronto entre indicações esparsas de Goffman e meu universo empírico. 17 Por conta da diferença de problemática, adotei outros autores para colaborar na construção de uma teoria da significação capaz de analisar as representações em questão. A teoria elaborada propõe dar sentido as representações acionadas nas performances analisando-as em três aspectos: no contexto interativo ou no conjunto das demais representações acionadas e identificadas; nas contraposições possíveis entre os termos propostos; e nas conexões históricas às quais tais representações podem se remeter. Esta proposta fundamenta-se na combinação e adequação da abordagem dos autores abaixo: A partir de Bourdieu, suponho que as representações em si são vazias, sendo que seu sentido reside na relação com o contexto: Compreender não é reconhecer um sentido invariante, mas apreender a singularidade de uma forma que só existe num contexto particular. relações Produto sociais da práticas neutralização nas quais das ela funciona, a palavra ­ em todo caso, a do dicionário ­ não tem nenhuma existência social: na prática, ela só existe submersa nas situações, a tal ponto que a identidade da forma através da variação das situações pode passar despercebida (BOURDIEU, 1983, p.159). Neste estudo, o contexto é considerado como a própria interação, ou seja, as demais representações que são acionadas e identificadas pelos atores em suas negociações. 18 Deste modo, adoto apenas alguns aspectos muito circunscritos da teoria de Bourdieu, não pretendo, por exemplo, abordar as lutas simbólicas, que pautam as relações de poder num de agentes posicionados por meio de e disposições de Lygia Sigaud (1978), baseada em Bourdieu, procura entender como a ideologia anti-patrão repercute sobre a legitimidade e a reprodução do sistema da açucareira pernambucana, no início da década de 1970. Neste trabalho, me interessa o modo como a autora apresenta as representações empregadas pelos agentes, agrupando-as de acordo com semelhanças e descontinuidades identificadas, compondo feixes de contraposições possíveis. Quanto aos aspectos históricos, pretendo apresentar alguns fragmentos de discursos, de diferentes temporalidades, fornecendo indicações sobre a emergência das representações em análise. Desta forma, espero evidenciar contingências e arbitrariedades destas representações, construídas enquanto naturezas a partir de reiterações e acumulações discursivas. (FOUCAULT, 2008). Ressalvo que a presente pesquisa não priorizou analisar coletivos de enunciados, seus sistemas de relações, suas recorrências e suas transformações ao longo do tempo. Apresento apenas poucos enunciados dispersos, que procuram pontuar minimamente as representações como construções forjadas em contextos específicos. Além da teoria da significação, também adoto Bourdieu de modo muito preciso no quarto capítulo e nas Considerações 19 Finais. No quarto capítulo faço uma aproximação com o conceito de capital para considerar possíveis rendimentos envolvidos nas negociações interativas. Nas Considerações Finais, menciono o autor para refletir sobre a instituição e solidificação da “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, etc. como naturezas autoevidentes. Contudo, considero que as relações entre Goffman e Bourdieu são muito mais intensas do que pode expor esta pesquisa. Por exemplo: apesar de Bourdieu não abordar a interação face a face propriamente, é possível sugerir que as lutas simbólicas também se travam nesta e que os capitais podem ser instituídos a partir de imputações e reconhecimentos dados interativamente. Também acredito que as disposições relativas ao são instituídas e incorporadas na interação. Deste modo, a interação pode ser uma janela para olhar a prática dos agentes e suas disputas. Por hora, apresento o campo empírico deste estudo e os procedimentos metodológicos. A maior parte dos dados foi construída a partir das minhas experiências de campo, obtidas por meio de observação participante, tendo em vista interações vividas ou presenciadas por mim. Tal método justifica-se por permitir acesso privilegiado às interações com suas negociações, manejo corporal, etc. Quanto ao meu campo empírico, a seguir descrevo-o de acordo com o percurso de minha inserção e as posições que ocupei. Também ressalto as alterações realizadas no enfoque 20 da pesquisa devido às próprias possibilidades do campo e aos aprimoramentos teóricos. Fui a campo pela primeira vez em março de 2008, no meu último ano de graduação em História, procurando montar um projeto de mestrado na área de conhecimento que já havia me seduzido – a Antropologia. Neste primeiro momento, cogitei questões mais ligadas à percepção sensorial e à visualidade. Até então nunca havia tido nenhum contato mais aprofundado com tal universo, que surgiu um pouco por acaso. Logo de início supus que os institutos especializados podiam ser uma porta de entrada privilegiada. A primeira instituição procurada foi o Instituto de Cegos Padre Chico2. Fiz uma visita padrão para os interessados em conhecer o local – no meu grupo havia alunos de Psicologia, jornalistas e dois funcionários da Secretaria Municipal do Trabalho que buscavam parceria para divulgação de vagas de emprego. Circulamos um pouco pelo local, passamos brevemente por uma da sala de aula e ouvimos a história do instituto. Após a visita expliquei o intuito da minha pesquisa para a responsável e apresentei uma pequena proposta de trabalho. Dias depois, informaram que não seria possível me atender e recomendaram que procurasse a LARAMARA – instituição com melhores condições para o meu trabalho. 2 Escola especial de ensino fundamental, fundado em 1927, pela iniciativa de oftalmologistas, figurões paulistanos e da Companhia das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, que recebeu a direção do instituto (INSTITUTO DE CEGOS PADRE CHICO, 2009). 21 Na semana seguinte fui conhecer a Fundação Dorina Nowill3. Tratava-se de uma visita com o mesmo formato e intuito da descrita acima. Novamente disseram-me que não seria possível realizar minha pesquisa observando e participando de atendimentos e que eu deveria procurar a LARAMARA, instituição que possuiria maior estrutura e receberia pesquisas. Assim sendo, procurei a LARAMARA – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual, ONG criada em 1991 por um empresário paulistano. Passei por outra visita semelhante às demais, mas no final da mesma o responsável me apresentou para a coordenação, que me solicitou um currículo. Eu havia cogitado colaborar como voluntária nas aulas de Braille, Orientação e Mobilidade, Artes ou Projeto de Vida. Alegando a necessidade da professora, decidiram me alocar como assistente do ateliê de Artes Plásticas, do grupo de adultos. Desta forma obtive a minha primeira inserção no campo, em abril de 2008. As oficinas eram semanais, com cerca de dez alunos. Além delas, não perdia a oportunidade de participar de todos os eventos extras, como: palestras, passeios, festas, saraus, etc. Considero que este primeiro momento foi importante por proporcionar um decisivo estranhamento inicial. Fui a 3 Instituição fundada em 1947, por Dorina Gouvêa Nowill, “cega aos 17 anos devido a uma patologia ocular”. A instituição produz livros em braile e em áudio e promove programas de habilitação e reabilitação (FUNDAÇÃO DORINA NOWILL PARA CEGOS, 2009). 22 campo buscando compreender “a percepção do cego”, com uma visão um tanto ingênua e essencializada. Neste contato meus preconceitos também emergiram e paulatinamente foram se despindo para que outros problemas de pesquisa viessem à tona. Entre os especialistas da LARAMARA, conheci a professora de Musicografia Braile, que também lecionava no Padre Chico. Ofereci-me para ser sua assistente e foi assim que obtive minha inserção naquele colégio, em maio de 2008. No Padre Chico, passei a acompanhar as aulas de Musicografia Braille e Artes entre os cerca de 50 alunos do 4º ao 9º ano, às segundas, quartas e quintas-feiras. Através de um dos alunos da oficina de artes da LARAMARA fui convidada a participar do Movimento Livre, movimento político em prol da inclusão e acessibilidade do “deficiente visual”. O grupo foi formado em 2008, por cerca de dez “deficientes visuais” e eu, que sou considerada a única “vidente”. Deste modo, também ocupo a posição de militante. Além do próprio campo, a participação nos debates do Grupo de Estudos Surdos e da Deficiência do Núcleo de Antropologia Urbana da USP e as disciplinas de pós-graduação sugeriam outras abordagens possíveis, incluindo um alargamento do trabalho empírico para além dos institutos, visando uma compreensão mais ampla do que se passava ali. Decidi, então, expandir o circuito etnografado, frequentando também vários eventos que ocorriam pela cidade, tais como os da Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do governo do Estado de São Paulo e as reuniões e do Grupo 23 Retina São Paulo4. Ainda dirigi maiores atenções aos discursos médicos e jurídicos. No segundo semestre de 2009 resolvi levar a cabo a remodelação da problemática do projeto, deixando a percepção e focando na incorporação da “cegueira”. Com isso, também decidi mudar a minha inserção nos institutos, circulando internamente por outras áreas. Em 2010, deixei as aulas de artes do Padre Chico para passar a acompanhar a turma de alfabetização do primeiro ano do Ensino Fundamental, supondo que o braile seria um artifício importante no processo de domesticação do corpo. Tal turma possuía treze alunos com, em média, oito anos de idade. Neste mesmo intuito, também comecei a acompanhar as aulas de Educação Física, entre os cerca de cinquenta alunos das turmas do preparatório ao quarto ano. Na LARAMARA deixei os cursos dos adultos, que seriam mais genéricos (Artes, Teatro, Dança, Yoga, etc.), para acompanhar as turmas de crianças em seus cursos mais voltados para a “deficiência visual” (Braille, Orientação e Mobilidade, Atividades de Vida Autônoma e Social, etc.), que são ministrados de forma integrada em grupos divididos por faixas etárias. Nesta instituição, passei a frequentar os encontros semanais de um grupo de oito jovens de em média treze anos, acompanhados de seus familiares, que também 4 Rede de pacientes com doenças degenerativas da retina, que em parceria com uma médica geneticista da UNIFESP, fornecem as últimas novidades das pesquisas médicas aos seus membros. Os médicos, em troca, possuem um amplo cadastro de pacientes que são contatados para as pesquisas. 24 participam. Tais encontros me proporcionaram um contato com os pais que antes não possuía. Em março de 2010, surgiu a oportunidade de fazer aulas de braile com uma das religiosas do Instituto Padre Chico. Esta atividade foi muito interessante, pois pude experimentar a alfabetização das crianças junto com o meu próprio aprendizado de braile – usamos a mesma cartilha e tivemos várias dificuldades semelhantes. Deste modo, o trabalho de campo foi realizado principalmente entre março de 2008 e dezembro de 2010, quando frequentei o campo pelo menos três vezes por semana. Neste período construí vínculos, familiarizei-me com os discursos, desmistifiquei pré-noções e ajustei os focos para desenvolver a organização e a análise final dos dados construídos. Durante o trabalho de campo fiz registros escritos e fotográficos, descrevendo em detalhes a experiência vivida. Estes compõem um documento em Word com mais de 500 páginas; e o montante fotográfico é de mais de 6.000 imagens digitais. Também reuni duas caixas-arquivo com materiais, como: folhetos, revistas, CDs, objetos, etc. Iniciei a elaboração do relatório de Qualificação em Agosto de 2010. Para tanto, analisei as primeiras cinquenta páginas do meu caderno de campo. Construí fichas temáticas, tais como: circulação/rede; trajetórias; dados institucionais; disciplinas corporais; fotografia; posições e papéis ocupados por mim; posições e papéis de “deficiente visual”/“cego”/“ceguinho”/“cegueta”; entre outras. Em seguida 25 aprofundei a análise da última ficha citada, transformando seus dados em problemas de pesquisa. Tal ficha temática rendeu três fichas-problemas: a incorporação da “cegueira” e/ou “deficiência visual”; jogando com categorias, atributos e sinais; e normatização do corpo. As duas primeiras problemáticas formaram a base do capítulo apresentado no relatório. A análise final da massa dos dados de campo foi realizada entre janeiro e março de 2011. Prossegui à organização dos dados a partir das fichas feitas para a Qualificação. As fichas temáticas, em sua versão final, são: 1) Incorporação de categorias, atributos e sinais da “cegueira” e/ou “deficiência visual”; 2) Incorporação de técnicas corporais; 3) Incorporação de habilidade (“skills”); 4) Jogando com categorias, atributos e sinais; 5) Normatização do corpo; 6) A ordem da interação; 7) Sociabilidade; 8) Capitais e posições; 9) Circulação e rede; 10) Trajetórias; 11) Dados institucionais; 12) Outros marcadores; 13) Fotografia; 14) Posições e papéis ocupados por mim; 15) Dados históricos acionados em campo. 26 Após organizar todo o material escrito nestas fichas, foi necessário organizar os dados dentro de cada uma das fichas. Contudo, algumas fichas ficaram enormes, a primeira delas possuía 121 páginas, pois acabei duplicando alguns dados que cabiam em várias fichas. Ao organizar e analisar a primeira ficha “Incorporação de categorias, atributos e sinais da ‘cegueira’ e/ou ‘deficiência visual’”, percebi que ela por si só era bastante rica. Tal ficha serviu de base para os capítulos 1, 2, 3 e 5 desta dissertação. A ficha 4 “Jogando com categorias, atributos e sinais” é o substrato do quarto capítulo. Também usei alguns dados da ficha 2 “Incorporação de técnicas corporais” quando descrevo o braile e a bengala no segundo capítulo. Infelizmente, não consegui analisar e aproveitar todas as fichas, por conta do tempo, espero fazê-lo em estudos futuros. Com relação ao material fotográfico e físico, iniciei sua organização, mas não concluí a tempo. Especificamente quanto às fotografias, espero analisá-las no âmbito do Projeto Temático (Processo FAPESP No. 09/528880-9R), que participo. Iniciei propriamente a escrita da dissertação em abril de 2011. Parti das fichas que já estavam organizadas internamente por problemas a serem desenvolvidos. Mesmo assim, me afoguei nos dados, pois queria aproveitar todos. Contudo, isto era impossível, tive de selecionar apenas os mais emblemáticos. Depois desta limpeza, fui escrevendo conforme a ordem das questões das fichas, que serviram de estrutura para a dissertação. 27 Concluindo os aspectos metodológicos exponho um breve comentário acerca da fotografia na pesquisa. Utilizei a fotografia como método para a construção e expressão de dados e ainda como artefato criador de relações, contextos e posições no campo. A construção de dados através da fotografia é uma método consolidado na Antropologia. De meados do século XIX até 1920, a fotografia foi utilizada principalmente com propósitos classificatórios para registrar tipos humanos. Nos anos 1930 destacam-se os trabalhos de Margaret Mead e Gregory Bateson, que conduziram um esforço de operacionalizar o uso da fotografia, procurando registrar aspectos visíveis do comportamento humano que julgavam em desaparecimento. Após tais incursões houve um esmaecimento do uso da fotografia na pesquisa antropológica, visto a mudança de foco da temática ligada à arte e cultura material para a organização social. Apenas no fim do século XX, a imagem voltou a ser problematizada mais sistematicamente pela disciplina (CAIUBY NOVAES, 2009, p.46). Nesta pesquisa utilizo a fotografia como um apoio à observação de campo. Ela opera como um “ver seletivo”, que conduz a um primeiro recorte para a construção dos dados: “É um dos primeiros passos na expressão mais apurada da evidência que transforma circunstâncias comuns em dados para a elaboração na análise de pesquisa” (COLLIER, 1973, p.7). Especificamente, a fotografia me auxilia a reconstruir a sequência temporal dos eventos pela ordem de suas tomadas, 28 registrando etapas de processos; e a captar aspectos corporais ou do cenário que são pouco verbalizados (gestos, posturas, vestimentas, organização do espaço, etc.). A câmera e seu produto, a fotografia, também possibilitam criar contextos, relações e posições. Abaixo especifico tais possibilidades. Com relação aos contextos, em campo a câmera provoca situações como: a correção da postura dos alunos pelos professores e familiares, expondo as disciplinas corporais, o padrão de corpo e uma imagem que se quer construir. Ela também evidencia tensões entre os atores, a partir do que deve ou não ser registrado. Quanto às relações, a fotografia pode gerar favores, trocas e reciprocidade. Em vários casos, colegas, alunos e professores pedem-me para registrar eventos e enviar-lhes as fotos. Os mesmos também fotografam e enviam-me suas imagens. Algumas das minhas fotos foram utilizadas para compor material institucional e comercializadas para arrecadar fundos para a instituição. A câmera confere-me a posição de fotógrafa. Tal posição possibilita: acessos privilegiados a palcos, bastidores, etc.; circular em momentos que os atores deveriam permanecer parados ou sentados; aproximar-se mais dos protagonistas para a tomada da imagem, entre outros. Durante a dissertação exponho algumas imagens que se relacionam com o texto. Para Wolff (2004) a imagem possui quatro defeitos em relação ao texto, mas neles residem as 29 suas potencialidades. Trata-se da inviabilidade de expressar o conceito, a negação, a dúvida e o tempo. A impossibilidade de conceituar implica em não “raciocinar, comparar, induzir, deduzir; ela não pode sobretudo nada” (WOLFF, 2004, p.26). Por outro lado, “o que ela pode mostrar nada pode dizê-lo”; a escrita “tem dificuldade para descrever o indivíduo naquilo que ele tem de único, tal pessoa, tal paisagem, tal ato, tal acontecimento; são necessárias longas descrições incompletas e inexatas” (WOLFF, 2004, p.26). O segundo defeito-potência da imagem é a inexistência da negação: “ignorando a negação, ela ignora o debate, a dialética, a discussão, a oposição de opiniões, o verdadeiro e o falso” (WOLFF, 2004, p.26). Contudo, se a imagem não expressa a negação, ela expõe a afirmação de modo arrebatador: o “isto é” – a imagem de um cachimbo “é” um cachimbo; “eis então sua força: ela é pura afirmação” (WOLFF, 2004, p.27). O terceiro defeito-potência é dado pela dificuldade de expressar a duvida: “só conhece um modo gramatical: o indicativo. Ela ignora as nuances do subjuntivo ou do condicional. ‘É’, ponto, é tudo. Jamais um ‘se’ nem um ‘talvez’” (WOLFF, 2004, p.27). Com isso “ela dá um sentimento de realidade que a linguagem não dá” (WOLFF, 2004, p.27). O último defeito-potência é a ausência do passado e do futuro, “ela também só conhece um tempo, o presente [...], ela ignora pretérito e futuro. Ela não pode representar o 30 tempo”, e isto “é o que faz sua força mágica, religiosa” (WOLFF, 2004, p.28). Tendo em vista as potencialidades e limitações destas duas linguagens, procuro explorar o texto em sua dimensão conceitual, argumentativa e temporal; e utilizo as imagens para descrever situações, ambientes e corpos, em seus detalhes e particularidades. Por fim, resumo cada um dos cinco capítulos desta dissertação. Ressalto que os três primeiros formam um bloco, desenvolvendo algumas representações acionadas nas performances nomeadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos. Os dois capítulos seguintes partem destas representações para analisar suas negociações interativas. O primeiro capítulo aborda as categorias de nomeação, que são a maneira pela qual os atores representam seus personagens e os dos outros, classificando-se por meio delas e instituindo fronteiras. Procurei analisar o uso das categorias mais recorrentes em campo, tais como: “cego”, “ceguinho”, “deficiente visual”, “baixa visão”, “vidente”, etc.; atentando para seus aspectos históricos, suas contraposições e acionamentos em contextos específicos. O segundo capítulo aborda os sinais, equipamento expressivo reconhecido e exposto principalmente para distinguir os atores na interação e gerar expectativas. Descrevo sinais como: ã ó , etc. Também pontuo aspectos das técnicas corporais envolvidas no manejo de alguns equipamentos e práticas sinalizadoras. 31 O terceiro capítulo analisa alguns atributos acionados nestas performances. Trata-se de cristalizações ou estereótipos qualificativos, tais ç como: a , entre outros. O quarto capítulo expõe como os atores negociam as representações abordadas nos três capítulos precedentes, indicando possíveis rendimentos simbólicos, que podem contribuir na reprodução das representações em questão. O quinto capítulo versa sobre a incorporação das representações apontadas nos três primeiros capítulos. Neste estudo, a incorporação é o reacionamento das representações, a partir de acionamentos anteriores, que geraram um reconhecimento íntimo, atingindo as instâncias do “eu” dos atores. Demonstro como, em grande parte, a incorporação é dada em situações cotidianas mínimas, por meio de pequenas imputações e testes solidificados através da repetição. As considerações finais procuram amarrar os argumentos dos capítulos anteriores através de questões transversais mais gerais, que se afastam das microssituações interativas. Também me permito um breve comentário pessoal sobre a experiência desta pesquisa. 32 1. Classificação de personagens: categorias de nomeação Neste capítulo pretendo apresentar um dos modos de representação acionado nas performances da chamada “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos. Trata-se das categorias de nomeação. Tais categorias nomeiam padrões de ação pré- estabelecidos e suas performances específicas. Os padrões de ação correspondem a representações estereotipadas, como atributos e sinais determinados, que são acionados pelos atores em suas performances. Nesta situação, as categorias são usadas pelos atores para representar seus personagens e os dos outros, classificando-se por meio delas e instituindo distinções. As categorias escolhidas para este estudo são as mais utilizadas, segundo pude observar em campo. Deste modo, o trabalho de campo é o guia norteador da análise. Contudo, tal análise não se pretende exaustiva, dando conta da totalidade das categorias empregadas. Reparei que algumas categorias podem ser intercambiáveis, em alguns contextos, e outras dificilmente. De modo geral, as categorias não intercambiáveis correspondem a performances distintas dos atores. 33 Em campo, há pelo menos três diferentes performances, que possuem diversas categorias para nomeá-las, abordarei neste capítulo dezesseis delas. Observe o quadro a seguir: Tabela 1 – Categorias de nomeação em análise. - Cego, ceguinho, cegueta; - Vidente; - Anormal; - Normal; - Deficiente visual, DV, portador de - Não-deficiente. deficiência visual, pessoa com deficiência visual. - Cego. - Meio-cego, semicego; - Baixa-visão, BV. As três diferentes performances correspondem às três colunas de fundo cinza. Deste modo, a primeira performance é nomeada pela categoria “cego”; a segunda, pelas categorias “baixa-visão”, “BV”, “meio-cego”, “semicego”; e a terceira, pelas categorias “vidente”, “normal” e “não-deficiente”. Como sugere a tabela, as categorias da segunda linha: “cego”, “baixa visão”, “BV”, “meio-cego” e “semicego”, podem ser englobadas por uma classificação comum, que abarca e nomeia ambas as performances. Esta classificação englobante refere-se à primeira célula da tabela, a única de fundo branco. Tal configuração é detalhada ao longo do capítulo. Cada uma das três performances possui, entre outros fatores, atributos e sinais específicos que são reconhecidos e imputados classificação para de haver um classificação. ator como Por exemplo, a “cego” envolve o 34 reconhecimento e a imputação de sinais como: ã ó , etc.; e de atributos como: , etc. Tais sinais e atributos são descritos e analisados nos próximos capítulos. As categorias dentro da mesma célula da tabela podem ser intercambiáveis por corresponderem a uma mesma performance e podem ser contrapostas às categorias e performances da coluna ao lado. Por exemplo, a categoria “cego” pode ser intercambiável por “deficiente visual”, “DV”, etc. e pode se opor a “vidente”, “normal” e “não deficiente”. Algumas categorias e suas oposições possuem profundidades históricas semelhantes, tendo se constituído concomitantemente. Tal correlação está exposta na tabela através de uma correspondência horizontal entre os termos, sendo elas: “cego” “vidente”; “anormal”; “deficiente” “normal” “não deficiente”. Contudo, dentre as categorias de uma mesma coluna há situações onde estas não são intercambiáveis, apesar de remeterem a mesma performance. Como pondera Sigaud (1978), tais situações referem-se a contextos específicos e a disputas pela nominação. A análise a ser feita deve partir do princípio de que a pluralidade de termos não é simplesmente questão de sinonímia – embora ela exista – e que se o trabalhador precisa de um certo número de termos para se classificar a si próprio e os outros é porque esses termos possuem valores diferentes [...]. O importante é identificar justamente o que, neste nível de 35 análise, não é intercambiável e, portanto específico e apontar para os contextos de sua utilização (SIGAUD, 1978, p.8-9). No final deste capítulo, desenvolvo algumas disputas e tipifico alguns contextos onde categorias que nomeiam a mesma performance não são intercambiáveis. Por hora, analiso cada categoria do quadro acima atentando para três aspectos: suas contraposições possíveis; as conexões históricas às quais podem se remeter; e o contexto interativo ou os demais sentidos acionados. Tal proposta foi fundamentada na Introdução desta dissertação. As primeiras categorias da tabela são “cego” e as suas variações – “ceguinho” e “cegueta” –, que podem ser acionadas, em campo, contrapondo-se à “vidente” ou às demais categorias da coluna oposta. Historicamente a categoria “cego” possui longa duração, sendo acionada desde a Idade Antiga. Sua etimologia remete (WEISZFLOG, 2007), encontrado, por exemplo, ao latim na comédia de Plauto (Sarsina, cerca de 230 a.C. - 180 a.C.)5, na poesia de Horácio (Venúsia, 65 a.C. - Roma, 8 a.C.)6, na 5 “ ” [cega de amor]. PLAUTUS, Titus Maccius. . [S.l.]: IntraText Edition, Èulogos, 2007. Disponível em: http://www.intratext.com/IXT/LAT0549/. Acessado em: Set.2011. 6 “ ” [O cego quer mostrar o caminho]. HORÁCIO FLACO, Quinto. Epistulae In: KOCHER, Henerik. õ . Disponível á em: http://www.hkocher.info/minha_pagina/dicionario/v04.htm. Acessado em: Set.2011. 36 tragédia de Sêneca (Corduba, 4 a.C. - Roma, 65 d.C.)7 e na bíblia8. De modo semelhante, a categoria “vidente” provém do latim homônimo (WEISZFLOG, 2007) e pode ser encontrada em contraposição ao termo “cego”, por exemplo, no século XIII, nas parábolas do compiladas por João de Cápua (Roma, 1262/1278 - ?) e também na de São Tomás de Aquino (Roccasecca, 1225 Fossanova, 1274) 7 “ ” [É cega a audácia que busca o acaso como guia]. SÊNECA, Lúcio Aneu. . Estudo de José Eduardo dos Santos Lohner. São Paulo: Globo, 2009. 8 “ æ æ ” [Pode um cego guiar outro cego. Será que eles não cairão ambos no fosso.] BÍBLIA. . Evangelium secundum Lucam, cap. 6, ver. 39. Disponível em: http://www.bibliacatolica.com.br/09/49/6.php. Acessada em: out.2011. 9 “ ” [Enquanto os dois homens, um deles é cego, o outro vidente; e quando eles foram de igual modo pelo caminho, ambos caíram no poço]. IOHANNES DE CAPUA. . In: BIBLIOTHECA AUGUSTANA. Disponível em: http://www.hs- augsburg.de/~Harsch/Chronologia/Lspost13/IohannesCapua/cap_dip l.html. Acessado em: set.2011. 10 “ ” [e se é vidente e cego, é para ver e não ver]. TOMÁS DE AQUINO. . Liber secundus. em: BIBLIOTHECA AUGUSTANA. Disponível http://www.hs37 Entre os exemplos mencionados, alguns deles são atribuídos a agentes posteriormente considerados como autores consagrados nos campos religioso, filosófico e artístico. Assim, é possível supor que tais campos podem ter contribuído para reproduzir o uso de tais categorias. Além disso, elas também são encontradas em discursos pedagógicos, médicos e estatais (KOESTLER, 2004) –, prevalecendo predominante nos mesmos até o século XX. Quanto ao meu trabalho de campo, segue um exemplo relativo ao emprego das categorias em questão e da contraposição citada: [Funcionário de um instituto especializado criticando escolas especiais, na visita de apresentação do instituto] Se uma criança vidente vê a cega colocando o dedinho no nariz, ela vai falar; se todos são cegos ninguém vai corrigir. Neste trecho, que remete a um contexto de visitação, o ator distingue as crianças em “cegas” e “videntes” com relação à correção de uma etiqueta. Dentre as categorias listadas, as próximas solidificadas referem-se ao par de oposição “normal” e “anormal”. Segundo Foucault (2009), o “normal” se estabelece desde o século XVIII, como meio de classificar e hierarquizar, sustentando homogeneidades e determinando os “desviantes” ou “anormais”. augsburg.de/~Harsch/Chronologia/Lspost13/ThomasAquinas/tho_scg 2.html. Acessado em set. 2011. 38 Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderes obrigando-os a novas delimitações; [...] a regulamentação é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. As marcas que significavam status, privilégios, filiações, tendem a ser substituídas ou pelo menos acrescidas de um conjunto de graus de normalidade, que são sinais de filiação a um corpo social homogêneo, mas que têm em si mesmos um papel de classificação, de hierarquização e de distribuição de lugares. Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras (FOUCAULT, 2009, p.176-177). Kim (2011, p.17), baseado em Davis (2010, p. 3-19), indica que o “normal” cristaliza-se com a estatística, no século XIX. A estatística elege critérios de medição e determina o “normal” por uma maioria representada através da área central de um gráfico em formato de sino; e o “anormal”, através das extremidades do gráfico. A “cegueira” corresponde apenas a uma forma de “desvio” ou “anormalidade”. Apesar da amplitude e falta de especificidade das categorias “normal” e “anormal”, decidi mantê-las na análise por serem muito empregadas em campo. A seguir, alguns exemplos: 39 [Instituto especializado] Como não ia ter reunião, perguntei para o Vinícius [professor de informática] se eu poderia assistir a sua aula. Ele disse conhecer os Entramos na que sim, recursos sala, ele que [de me é bacana informática]. colocou num computador e os alunos foram chegando. No início da aula, o professor me apresentou, disse meu nome e que era voluntária de outro setor, aí uma aluna perguntou “então, você é normal?”. O professor interveio: “não liga, não, a Maíra fala engraçado assim”. Respondi a pergunta, meio sem jeito, dizendo que “sou...”. [Instituto especializado] Antes da aula sentei lá na frente [no hall] e conversei com a Lola, moça simpática, BV [baixa visão], amiga do Antônio, uma hora ela perguntou “você é normal?”. Nos dois exemplos, em contextos de coleguismo, os atores acionaram a categoria “normal”, questionando “você é normal?”, para classificar um interlocutor desconhecido no cenário de um instituto especializado. No século estabilizaram-se, XX, tais outras como: categorias “inválidos”, de nomeação “incapacitados”, “defeituosos”, “deficientes”, etc. (SASSAKI, 2006). Isto ocorreu principalmente nos pós-guerras, em virtude do contingente de “corpos lesionados”, objetos de práticas estatais-médicopedagógicas. Dos termos citados, excetuando “deficiente”, os demais praticamente não aparecem em meu trabalho de campo. 40 Na década de 1970, configuraram-se nos Estados Unidos e Europa movimentos sociais de luta por direitos, tributários também de processos associativos primários produzidos principalmente na Igreja Católica e na clínica, que se traduziram em grupos de ajuda mútua e posteriormente numa rede de associações11. Tal movimento foi encabeçado principalmente pelos chamados “Estudos da Deficiência”, que requalificaram a categoria “deficiência”, contrapondo-a às demais categorias e principalmente aos discursos considerados patologizantes. Grande parte destes enunciados propõe que o lócus da “deficiência” passe do “corpo doente” para a “relação da pessoa com o contexto social” (MELLO, 2009, p.27-28). A categoria “deficiente” pretende renomear “cegos”, “surdos-mudos”, “aleijados” e “retardados”, unificando-os enquanto “deficientes” e particularizando-os em “deficiências” específicas: “visual”, “auditiva”, “física” e “intelectual”. A seguir um exemplo do uso destas categorias em meu trabalho de campo: [Instituto especializado] A professora distribuiu bonequinhos de EVA [placa de borracha] com diferentes posturas, lembrando aqueles do [artista] Keith Haring, e pediu para os alunos acharem o par idêntico. Um dos bonequinhos estava quebrado, sem um braço, aí a Fernanda disse “é aleijado”, então Joana replicou “coitado”. A professora repreendeu “não é aleijado, é deficiente físico”. 11 Informação verbal fornecida por César Augusto Assis Silva, em sua arguição na defesa da presente dissertação, em 17 jan.2012. 41 Neste exemplo, num contexto pedagógico, a repreensão da professora, denota que a categoria “deficiente físico” impõese sobre a de “aleijado”, devendo substituí-la. A partir de 1980, a categoria “pessoa deficiente” solidifica-se vinculando nominalmente a “deficiência” “pessoa”. Nesse caso, a “pessoa” torna-se o à da “deficiência” que a adjetiva. O ano de 1981 foi nomeado pela ONU como “Ano Internacional das Pessoas Deficientes”. Conforme indica Mauss (2007, p.387), a categoria “pessoa” está relacionada à detenção de direitos na idade clássica: “o cidadão romano tem direito ao e ao que sua ao lhe atribui”; diferentemente do escravo, que não era considerado “pessoa” e, portanto, não possuía direitos. Já com o cristianismo acionou-se a unidade da “pessoa” perante Deus. Por fim, nos séculos XVII e XVIII, a formação do pensamento político e filosófico colocou a questão da consciência individual. Neste caso, a reverberação relativa à luta pelos direitos dos movimentos sociais é coerente com o deslocamento da categoria “deficiência” para as instâncias da “pessoa”. A “pessoa”, enquanto tal, é detentora de direitos, por exemplo: de locomover-se, reivindicado pelos “deficientes físicos”; de comunicar-se, pelos “deficientes auditivos”, entre outros. Além dos direitos, a “deficiência” também é colocada como um atributo individualizante da “pessoa”, conforme o relato abaixo: [Perfil publicado em uma rede social virtual] Talvez esse seja só mais um perfil do Orkut 42 que você está acessando, mas é só você continuar lendo e verá que não é bem assim. Cada pessoa, por mais parecida que seja, no fundo, lá no fundo, tem uma coisa que a torna totalmente diferente. E é justamente essa coisa, que faz toda diferença. Sou deficiente visual desde os cinco anos de idade, perdi a visão devido a glaucoma congênito e catarata, mas isso nunca me impediu de ser feliz. Nos países de língua portuguesa houve a variação da categoria “deficiente” vinculada ao termo “portador” – “pessoa portadora de normatividade questionado deficiência” –, que jurídica. Contudo, o pelos movimentos chegou termo sociais a ganhar “portador” foi por aludir a “carregador”, argumentando-se que não se portaria uma “deficiência” como uma carteira de identidade, a qual se abandona a qualquer momento (MELLO, 2009, p.51). Tal termo foi substituído oficialmente pela categoria “pessoa com deficiência”, em 2008, quando o congresso ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. As categorias anteriormente mencionadas, “deficiente” e “pessoa deficiente”, também deixaram de ser consideradas como as mais adequadas pelos movimentos sociais com a cristalização do termo “pessoa com deficiência”. Argumentouse que aqueles termos tomariam “a parte pelo todo”, sugerindo que a “pessoa inteira” é “deficiente” (MELLO, 2009, p.51). Contudo, noto que há predileção pelo termo oficial “pessoa com deficiência visual” principalmente em situações 43 formais, como discursos institucionais; já que em muitas outras situações, as demais categorias são amplamente acionadas. Em contraposição à categoria “deficiente” e suas variações, estabelece-se a “não-deficiente”, que tem como referencial positivo a “deficiência”, definindo seu oposto pela negação. Tal operação entre os polos – positivo e negativo – é reversa ao do par “normal” e “anormal”, onde a referência é a normalidade e sua ausência determina o “anormal”. Abaixo um exemplo do emprego daquele termo: Sexualmente falando, a satisfação de 7,14% dos pesquisados é exclusiva com pessoas com deficiência, enquanto 28,47% deles afirmam relacionar-se satisfatoriamente também com não deficientes. A maioria (64,29%) não soube responder, já que nunca teve a oportunidade de manter uma relação sexual com uma pessoa com deficiência. (CRESPO, 2006). No trecho acima, extraído do texto çã relativo a uma palestra proferida na X Conferência Mundial da Rehabilitation International, publicada pelo site (CRESPO, 2006) o termo “não deficiente” é contraposto a “pessoa com deficiência” no contexto da apresentação de uma pesquisa acadêmica. De acordo com a tabela apresentada, as próximas categorias a serem tratadas são “meio-cego” e “semicego”. A referência mais antiga que encontrei remete à década de 1920, 44 quando o “Sindicato dos Jardineiros Cegos” de Londres, fundado em 1900 e filiado ao “Instituto Nacional para Cegos”, mudou seu nome para “Sindicato para Promoção da Jardinagem entre os Cegos e os Parcialmente Cegos” (LAGN; ROSENTHAL; SEIDMAN, 1999, p.4). Contudo, essa distinção e demarcação entre “cegos” e “parcialmente cegos” parece constituir uma exceção com relação à nomeação de instituições, pois de modo geral os “parcialmente cegos” eram abarcados por instituições denominadas para “cegos” A diferenciação entre “cegos” e 12 . “meio-cegos” ou “semicegos” é dada em termos de performance, por exemplo: estes geralmente são identificados pelo uso de ó e aqueles não; aqueles geralmente utilizam e estes não, etc. Detalho as ou performances ã dos personagens nos próximos capítulos. Contudo, apesar das diferenças, os ditos “meio-cegos” e “semicegos” foram englobados em instituições para “cegos” e também não havia técnicas e especialistas solidamente estabelecidos para os mesmos. Abaixo apresento um exemplo, do meu trabalho de campo, referente à diferenciação entre “cego” e “semicego” e a contraposição de ambos perante a categoria “normal”: 12 Conforme pode se verificar através dos nomes das diversas instituições citadas em: GOODRICH, Gregory L; ARDITI, Ariel. An Interactive History – the low vision time line. In.: STUEN, Cynthia; ARDITI, Ariel; HOROWITZ, Amy; LAGN, Mary Ann; ROSENTHAL, Bruce; SEIDMAN, Rose. : assessment, intervention, and outcomes. New York: Swetz & ZEITLINGER, 1999. 45 [Visita de uma turma de alunos de um instituto especializado à biblioteca braile de um centro cultural municipal] O funcionário que nos atendia prosseguiu a conversa falando: “muita gente me pergunta como faz para acompanhar o ensino normal, mais quem estudou em escola especial. Digo que é bom que você se integre com as pessoas. Você tem que se tornar um cara normal. No começo das aulas é comum que queiram saber como é a sua vida de cego ou semicego”. Por fim, as últimas categorias do quadro são “baixa visão” e sua sigla “BV”, que se solidificaram provavelmente na década de 1970, sobrepondo-se às categorias anteriormente preponderantes – “meio-cego” e “semicego” –, bem como à possível indistinção e englobamento pela categoria mais abrangente “cego”. Por exemplo, o relato abaixo aponta tal indistinção e a inexistência do termo “baixa visão” na década 1960, no âmbito de um instituto especializado: [Festa junina de um instituto especializado] Sr. Horácio [ex-aluno] falou “quando eu estudei aqui [na década de 1960] não tinha essa coisa de cego e baixa visão, era tudo cego, no máximo meio-cego.” Nos exemplos abaixo, de meu caderno de campo, a categoria “baixa visão” é diferenciada de “cego”, também sendo contraposta a “normal”: [Em uma das minhas primeiras visitas a um instituto especializado] Cheguei, tinha que 46 esperar a coordenadora, então fui sentar no hall, onde havia alguns alunos, pedi licença para passar entre as cadeiras e a mesa e o aluno perguntou “quem é?”, me apresentei e puxei um papo, eles eram alunos do curso de teatro. Perguntaram se eu tinha baixa visão, disse que uso óculos para astigmatismo de três graus e meio, então todos disseram “aaaah, isso não é nada. Normal.”, perguntei qual era o limite, mas não entenderam a pergunta, um deles disse “todo mundo aqui é baixa visão, ele é cego”, prosseguiu “com três graus e meio você lê jornal, não lê? A gente não”. [Sala de aula, instituto especializado] Os quadros no fundo da sala caíram, Gilson veio me dizer que foi a Fernanda e a Janaína, mas elas disseram que não. Aí ele disse de modo irônico “eu vi”, Janaína retrucou “então o que você está fazendo aqui?”, Gilson respondeu “a Fernanda não é cega e está aqui”; Janaína, meio brava, defendeu a amiga dizendo “ela é baixa visão!”. Por fim, mais manso, Gilson disse “é brincadeira Janaína...”. Sobre o primeiro trecho acima, em contexto de coleguismo, a fronteira instituída entre “baixa visão” e “normal” é dada através da possibilidade de leitura do jornal. O segundo exemplo, num contexto de discussão entre colegas, aborda-se a legitimidade de estar em um instituto especializado. Gilson situa o instituto como local de “cego” e Janaína acrescenta que alunos “baixa visão” também são 47 legítimos. Deste modo, é possível verificar a distinção e a contraposição entre as categorias “cego” e “baixa visão”. Como sugere a tabela apresentada, as categorias da segunda linha: “cego”, “baixa visão”, “BV”, “meio-cego” e “semicego”, que nomeiam duas performances distintas, podem ser englobadas por uma classificação comum, relativa à primeira célula da tabela. Esta classificação corresponde e nomeia ambas as performances através de seus termos. A seguir detalho aspectos deste englobamento. Mencionei anteriormente que até por volta da segunda metade do século XX havia uma pouca distinção performativa e institucionalizada entre os ditos “cegos” e “meio-cegos” ou “semicegos”, que permitia também o abarcamento destes termos por aquele, ou seja, o “meio-cego” podia ser classificado de modo geral como “cego”. Os próprios termos “meio-cego” e “semicego” são tributários da categoria “cego” e sugerem uma distinção parcial. Contudo, posteriormente houve uma maior institucionalização de distinções entre “cego” e “meio-cegos” ou “semicegos” e outra categoria despontuou – “baixa visão”. Apesar de desconhecer instituições pedagógicas ou associações específicas de ou para “baixa visão”, estabilizaram-se alguns setores médicos como a ó , algumas técnicas como a e algumas tecnologias, como os . Além disso, a terminologia desvincula-se do termo “cego”, atrelando-se a uma redução da “visão”, que passa a ser o referencial nominal. 48 A categoria “baixa visão” solidificou-se concomitantemente a cristalização do termo “deficiente visual”, sendo que este apresentou ainda uma pretensão estrategicamente aglutinadora daquela categoria, bem como da categoria historicamente anterior, “cego”. Nesta conformação, “cego” é contraposto a “baixa visão”, mas ambos estão contidos ou podem ser “deficientes visuais”. Abaixo indico um exemplo onde a categoria “deficiente visual” engloba a diferenciação entre “cego” e “baixa visão”: Figura 1 – Site da ONG Grupo Terra. Exemplo do uso da “categoria visual” englobando “cego” e “baixa visão”. 49 Na imagem acima, do site de uma ONG do circuito que organiza atividades de lazer, a pergunta “você é uma pessoa com deficiência visual?” tem como resposta “sim, sou cego” e “sim, tenho baixa visão”, situando, portanto, as categorias “cego” e “baixa visão” enquanto “pessoa com deficiência visual”. Ainda nesta situação relativa a passeios, a necessidade de guia também é um divisor, pela ausência de opção pressupõe-se que “cego” necessariamente precisa de guia e “baixa visão” poderia tanto precisar quanto não precisar. Com relação às outras “deficiências”, noto que essa pretensão englobante não ocorreu, por exemplo: os termos “retardado” e “aleijado” foram rechaçados pelos movimentos sociais como categorias de nomeação, excluídos das categorias oficias e não foram incorporados como subdivisões internas das categorias “deficiente intelectual” e “deficiente físico”. Já o termo “surdo” também não foi englobado pelo termo “deficiente auditivo”, mas foi reapropriado para forjar a “surdez” enquanto particularidade etno-linguística13. Por hora exponho algumas diferenças e incongruências entre categorias remeterem a que uma podem ser performance intercambiáveis similar. Refiro-me por às categorias que compartilham a mesma célula da tabela apresentada. Abaixo explicito disputas e tipifico contextos onde tais categorias não são equivalentes. 13 Para detalhes ver: ASSIS SILVA, César Augusto. : análise etnográfica de atividades missionárias com surdos. São Paulo: USP, PPGAS/FFLCH, 2010. 50 De modo exemplar, aponto o embate entre “deficiente visual” e “cego”, incluindo seus termos derivados, enquanto categorias englobantes de nomeação que abarcam as performances nomeadas pelas categorias “cego”, “baixa visão”, “BV”, “meio-cego” e “semicego”. Conforme já explicitado, a categoria “deficiente visual” e suas derivadas solidificaram-se principalmente através dos discursos dos movimentos sociais pelos direitos a partir da década de 1970, suplantando “cego” enquanto categoria oficial do estado. A seguir um exemplo: Deverão ser instaladas seções nas vilas e povoados, assim como nos estabelecimentos de internação coletiva, inclusive para cegos e nos leprosários onde haja, pelo menos, 50 (cinqüenta) eleitores. (BRASIL, 1965) As urnas eletrônicas, instaladas em seções especiais para eleitores com deficiência visual, conterão dispositivo que lhes permita conferir o voto assinalado, sem prejuízo do sigilo do sufrágio. (BRASIL, 2004). O primeiro trecho, extraído do Código Eleitoral de 1965, utiliza apenas o termo “cego”, que aparece outras dez vezes neste documento. Contudo, em alterações feitas posteriormente, como indica o segundo trecho referente à Resolução nº 21.633 de 2004, do Tribunal Superior Eleitoral, a categoria preponderante é “deficiente visual”. A categoria “deficiente visual” e suas derivadas também são preferencialmente empregadas entre as instituições especializadas, que nasceram no bojo dos movimentos sociais. 51 O próprio nome destas instituições exemplifica tal situação: a “LARAMARA - Associação Brasileira do Deficiente Visual”, que foi fundada neste contexto, durante a década de 1990, utiliza a categoria referida; já o “Instituto de Cegos Padre Chico”, inaugurado em 1929, e a “Fundação Dorina Nowill para Cegos”, constituída em 1946, utilizam o termo historicamente anterior. Quanto ao trabalho de campo, noto que a categoria “deficiente visual” e suas derivadas são preponderantes nos discursos que remetem à luta pelos direitos: [Reunião entre representantes de instituições especializadas] movimento Jonas político] [diretor disse: de “sentimos um a necessidade de criar esse movimento porque achamos que o deficiente visual tem que ser mais ativo, procurar fazer as coisas acontecer. Sabemos nossas necessidades, num trabalho em comum com vocês, em tantas áreas que vocês já desenvolvem, acredito que o papel do deficiente visual falta pró-ação”; “O movimento vem para contribuir com todos vocês, estar nas entidades, junto ao poder público e exigir direitos. Nós, como deficientes visuais, agentes principais dessa luta, nós temos que estar juntos, contribuir para que isso aconteça. Se resolvesse o problema do deficiente criar entidades, não estaríamos nessa, é para a inclusão sair do papel.” (grifos nossos). 52 No trecho acima, entre parceiros institucionais, o ator utilizou a categoria “deficiente visual” relacionando-a a exigência de direitos e a luta política. A categoria “deficiente visual” e suas derivadas são acionadas como politicamente corretas perante a categoria “cego” e suas derivadas, que são postas como inadequadas, retrógradas e depreciativas. Neste sentido, pode haver algum constrangimento em utilizar estes termos, conforme denotam os exemplos abaixo: [Aguardando amigos no metrô para irmos a uma festa] Anselmo falou que podia deixar que ele ia dirigindo e perguntou “você nunca viu ceguinho dirigir?”, falei que vi na TV, me referia ao programa Myth Busters, ele falou “é com software”, eu falei “não, era ceguinho mesmo”. Aí o José disse em tom marcado e prolongado “ceeeeeeguiiiinhoooo?”. Tomei uma chamada, respondi que só estava usando aquele termo, porque era o que já tinha sido dito e ele falou algo como “ah bom”. [Instituto especializado, antes da aula] Leonardo disse que não gosta do termo cego, disse que acha pejorativo, Priscila concordou, falam “seu cego” [como xingamento], Leonardo disse que prefere deficiente visual. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, o ator foi repreendido por usar o termo “ceguinho”, considerado inapropriado. 53 No segundo trecho, num contexto de coleguismo, o termo “cego” é colocado como pejorativo e como um xingamento “seu cego”, motivo da predileção pela categoria “deficiente visual”. Contudo, o termo “cego” e seus derivados são preponderantes em diversas situações, tais como em contextos onde os atores acionam representações e disposições religiosas. Isso ocorre possivelmente em virtude da relação histórica desta categoria com o campo religioso, brevemente mencionada no início deste capítulo. A seguir, apresento um exemplo do meu caderno de campo: [Reunião entre representantes de instituições especializadas] Elias: “eu falo cego, tem gente que acha rude. Deficiente todo mundo é, ninguém tem todos os sentidos funcionando 100%, eficiente só Deus”. Neste trecho, entre parceiros institucionais, o ator afirmou predileção pela categoria “cego”, restabelecendo a igualdade de todos perante “Deus”, o que pode relacionar-se ao universalismo católico. A categoria “cego” também é preponderante em situações de mendicância e de solicitação de ajuda ou favor, conforme exemplifica o trecho abaixo: Estava parada no farol para cruzar a avenida, veio um homem cego segurando bengala, acompanhado por uma mulher vidente, pedir esmola. Ambos usavam camisetas escritas com “sou cego, mas é você que não me vê”. 54 No exemplo acima, num contexto de mendicância, a categoria usada na camiseta dos pedintes era “cego”, referindo-se a uma invisibilidade social. Os contextos ofensivos ou afetivos são outras situações onde a categoria “cego” e suas variantes também parecem predominantemente acionadas. A seguir alguns exemplos: [Instituto especializado, antes de começar o atendimento] A mãe do Thiago contou que essa semana, na escola, chamaram ele de ceguinho, deram murro na barriga dele. [Instituto especializado, oficina de Orientação e Mobilidade] Professor: “aqui vamos chamar de ‘ceguinho’, mas de uma forma muito carinhosa”. Figura 2 – Publicação em rede social virtual. Exemplo do uso da categoria “cego” e variações em contexto de proximidade. 55 No primeiro exemplo, referente a um contexto pedagógico, a mãe do aluno aciona a categoria “ceguinho” atrelando-a a agressão física. No segundo exemplo, num contexto pedagógico, o professor indica a utilização da categoria “ceguinho” expressando carinho. No último exemplo, no contexto de uma rede social virtual, a mensagem publicada utiliza a categoria “deficiência” de forma impessoal. Contudo, já o primeiro comentador aciona a categoria “cego” em inglês, precedido por uma variação do termo “amigo”, denotando a proximidade entre os atores. O último comentário utiliza a categoria “cegueta” relacionando-a a um vínculo afetivo, “apaixonar-se”. Ainda sobre a utilização das categorias “deficiente visual” e “cego”, segue um exemplo sobre a comparação dos termos: [Instituto especializado] Henrique falou que concorda com Geraldo Magela [humorista “cego”] “pessoa com deficiência visual parece bandido, sou cego e pronto”. Aí, Jonas falou “tem gente que não gosta ‘sou cego’”, Márcia prosseguiu “de se admitir como cego”. No trecho acima, num contexto de coleguismo, a categoria “cego” remete à aceitação “sou cego e pronto”, “se admitir como cego”. Em contraposição, “pessoa com deficiência visual” é colocada quase como um eufemismo, uma polidez. A menção à bandidagem pode relacionar-se ao fato de “pessoa com deficiência visual” ser a principal categoria 56 burocrático-estatal, como aquelas empregadas para relatar ocorrências policiais. Assim, a categoria “deficiente visual” é considerada oficial, polida, sendo empregada em contextos institucionais e impessoais. Já a categoria “cego” é considerada ofensiva ou afetiva, sendo utilizada em vários contextos religiosos, de caridade, ajuda ou mendicância. De maneira geral, este capítulo procurou abordar dezesseis das principais categorias de nomeação relativas a três diferentes performances, apontando aspectos históricos, suas contraposições e acionamentos em contextos específicos. Conforme explicitado, tais categorias nomeiam performances e personagens, sendo acionadas, dentre as possibilidades disponíveis, levando em conta a imagem que se tem de si e a que se imputa ao outro em determinado momento. Nos capítulos seguintes detalho aspectos das três diferentes performances citadas, abordando, em específico, seus sinais distintivos e seus atributos qualificativos. Estes também foram organizados em função das categorias acima expostas. 57 2. Identificação de diferenças: sinais distintivos Neste capítulo prossigo apresentando as representações das performances nomeadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos, abordando seus sinais distintivos. A partir das proposições de Goffman (2009), considero os sinais como reconhecido e equipamento exposto na expressivo, interação, que pode ser compondo as performances dos atores, muitas das quais ligadas a um padrão de ação pré-estabelecido. Como consequência, os sinais distinguem os atores, subsidiando a classificação e a criação de expectativas. Os sinais se encontram em dois principais suportes: no cenário e no corpo. O cenário integra os elementos que mobíliam e decoram o palco, local onde se passa o ato da interação. Do mesmo modo, os corpos dos atores também possuem adornos simbólicos. Tais elementos podem ser expostos e reconhecidos, conformando sentidos à interação. Assim como as categorias, os sinais também são vazios e arbitrários, exigindo analisá-los no contexto interativo das demais representações em jogo. Além disso, os sinais são frequentemente acionados em conjunto, de forma relacional e cruzada – um sinal pode confirmar, complementar ou contradizer o outro, em uma dada situação. Observo também 58 que há sinais mais ou menos conclusivos, que necessitam ou não da confirmação por outros sinais no corpo e no cenário. Logo, quanto mais sinais num mesmo direcionamento, mais conclusivos são os seus sentidos. Ressalto que o levantamento realizado não se pretende exaustivo ou compondo uma totalidade, mas corresponde à eleição dos sinais considerados mais relevantes, conforme pude apreender em campo. A tabela diferenciação abaixo dos está sinais organizada relativos às em função três da diferentes performances nomeadas pelas várias categorias analisadas no capítulo anterior. Tabela 2 – Sinais em análise. Cego e derivados; anormal; deficiente visual e derivados Cego Vidente; normal; Baixa-visão, BV, não-deficiente meio-cego, semicego Bengala branca - - Cão guia Escrita braile Escrita em tinta ou Escrita em tinta ou em vidente ampliada em vidente Olhos anormais Olhos anormais Olhos normais Óculos escuros Óculos de grau - grosso Lupas 59 Por hora, desenvolvo os sinais listados a partir das suas correspondências horizontais. Os primeiros sinais, das três colunas, referem-se à locomoção. Iniciando pela coluna da esquerda, a seria um dos sinais mais conclusivos da “cegueira”, dispensando outros sinais para identificá-la. Além disso, este sinal é reconhecido por atores de modo geral, como senso comum, sendo acionado, inclusive, no “símbolo internacional de pessoas com deficiência visual” da Associação Brasileira de Normas Técnicas: Figura 3 - Símbolo internacional de pessoas com deficiência visual. (ABNT, NBR 9050, 2004, p.19) A pode ser identificada de modo visual, tátil ou auditivo. Visualmente, a sua cor branca e seu formato fino e comprido são aparentes a vários metros de distância. De forma tátil, para além do formato, percebe-se o elástico e a empunhadura emborrachada. De modo auditivo, há o som correspondente a sua abertura, onde as partes articuladas se encaixam e a sua ponta toca o chão; e, o som relativo ao uso na locomoção, onde a é batida ou deslizada de um lado para o outro no solo, conforme o andar do ator. A seguir, alguns exemplos onde a é acionada como sinal para “cego” e “deficiente”: 60 [Reunião de um movimento político] Ebert contou que foi muito mal tratado no Rei do Mate [lanchonete] do Shopping X. Disse que chegou lá com a Ju [sua namorada] e com a Ruth [uma amiga], pediram cardápio em braile, porque é lei. Aí a atendente trouxe o normal, ele até passou para Ju ver se não era ele que estava sem sensibilidade e falou “pô, a mulher viu que eram cegos, a Ju e a Ruth estavam de bengala”. Então chamou a atendente e meio reclamou algo como “é isso que você me dá?”, a Ruth até disse “você sabe o que é braile?”. Apesar de achar ruim, porque vai formando fila atrás, ele foi perguntando: “você tem café com leite?” e ela dizia só “tem”, não falava o preço, tamanho e nem nada. Finalmente fez o pedido e falou para ela levar na mesa. Foram se sentar, a mesa estava toda suja, a Ju tateou e se sujou. Demorou, mas o lanche chegou; a atendente entregou e saiu, nem explicou o que era o que; eles trocaram as bebidas e a Ju quando foi pegar o copão de pão de queijo, derrubou quase metade no chão; “foi um desastre total”, concluiu. [Conversa por telefone com um amigo] A gente que não usa bengala, [as pessoas] pensam que é normal. No banco tenho que mostrar a carteirinha, senão eles vêm falar que é fila de idoso e deficiente. No primeiro trecho, referente a um contexto comercial, o ator cita a como o artefato responsável por sinalizar que os atores eram “cegos”, conforme indica a frase: “pô, a 61 mulher viu que eram cegos, a Ju e a Ruth estavam de bengala”. Apesar do suposto reconhecimento da “cegueira” através deste sinal, o ator julgou que a atendente não lhe ofereceu tratamento adequado, frustrando suas expectativas e culminando num desfecho desastroso. No segundo trecho, também referente a um contexto comercial, o ator menciona que a ausência da impede sua identificação enquanto “deficiente”, sendo necessário um atestado oficial, a “carteirinha”. Desta forma, o ator aponta a como um fator decisivo para performar a “deficiência”, no contexto citado. Como mencionado, este sinal vincula-se à locomoção. No caso, a propriamente, não mas fundamenta o institui uma ato locomoção de andar segura, antecipando obstáculos para que o ator previna-se, conforme indica o exemplo abaixo: [Curso de técnicas da bengala] Professor: “a bengala te dá segurança. Você sempre está um passo antes do obstáculo e pode desviar, descer um degrau com cuidado”. Além da locomoção, a é tida como tendo “1001 utilidades”: [Domingo, caminhada num parque com amigos] Reinaldo usou a bengala para medir a profundidade da lagoa. Aí, Elza aproveitou para puxar um saquinho plástico que caiu na água. Tais falou “bengala é 1001 utilidades”. Também notei que o Reinaldo usava a 62 bengala de cajado na parte íngreme do percurso. [Instituto especializado, momentos antes da aula] Lia contou que o Juliano deu uma bengalada na perna dela [após uma discussão], mostrou-me o vergão. [Instituto especializado, antes de dar o sinal] George trouxe aquela sua bengala, que abre diferente. Eu fui mexer, mas não conseguia abrir. Ele mostrou como abria e disse que seu professor de informática falou que também dá para jogar bilhar. No primeiro trecho, num contexto de lazer, a aparece como medidor de profundidade, vara para pegar objetos e cajado. No segundo trecho, no contexto de uma briga, tal equipamento é acionado como arma. Por fim, no terceiro trecho, num contexto de coleguismo, ela é citada como instrumento de jogo. Estes trechos exemplificam algumas práticas possíveis, em diferentes situações. O uso da é prescrito por técnicos autorizados em institutos especializados, que possuem legitimidade e domínio sobre esse saber. A disciplina institucional que confere normatização das técnicas corporais necessárias intitula-se Orientação e Mobilidade, comumente chamada pela sigla O.M. [Conversando com um amigo pelo telefone] Perguntei se não era bom usar bengala nessas situações onde as pessoas não o identificam como deficiente. Ele disse que foi fazer O.M., 63 mas que o professor do curso disse que ele não precisava de bengala. [Oficina de Orientação e Mobilidade, num instituto especializado] Professor: “o ideal é começar o mais cedo possível, acabei de receber uma bengalinha de 60 cm. Mobilidade para criança pequena é da mesma forma quando a criança pega o giz para desenhar, vai movimentar mais o ombro do que a mão, é o estágio natural psicomotor; a bengala também vai virar brinquedo. Não é curso de 3 meses, mas de 5 anos, a criança com a bengalinha vai demorar 6 anos para adquirir a técnica adequada para andar sozinha. A maturidade também é necessária para saber que tem que pedir ajuda na rua.” No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, o ator indica que o técnico do instituto é o responsável pela prescrição ou não da , em função da necessidade avaliada por ele. No segundo exemplo, num contexto pedagógico, o especialista fornece algumas explicações técnicas direcionadas à “criança pequena”, como o tamanho da , a duração do treinamento, idade adequada para começar, etc. A seguir exponho alguns trechos de uma série de aulas do curso de Orientação e Mobilidade que pude acompanhar. As aulas eram individuais e, no caso, consistiam basicamente em andar pelas ruas próximas ao instituto. 64 Cássia [professora]: “você põe a bengala para direita e o pé direito, bengala para esquerda e pé esquerdo”, “mas não pode robotizar”. Cássia falou pra mim “ela está tensa” e imitou os movimentos da Tati com punhos fechados, braços meio tensionados e cara amarrada. Cassia para Tati: “Abre um pouquinho mais”; para mim explicou: “a abertura da bengala tem que ser um pouco maior que a largura dos ombros, pra pegar tudo” [a abertura refere-se ao quanto à bengala deve se movimentar horizontalmente, para a direita e para a esquerda]. Cássia disse que há dois tipos de ponteiras de bengalas: a roller e a fixa; “roller percebe mais, a fixa era mais antigamente”. Tatiana argumentou que teve uma bengala roller, que quebrou, então voltou para essa e acha melhor. Mas a professora discordou: “essa aí é mais difícil, a outra só desliza, não corre o risco de bengala alta”, “cansa menos e detecta mais”. E depois relativizou “há 5 anos não existia a roller, uns gostam, outros não, já se adaptaram com a outra, que nem carro automático e carro manual”. Cássia para mim: “O cego tem que ficar sempre no lado oposto da rua. Tentar ficar do lado oposto, não é para grudar na parede”; “pode ter cachorro que late no portão e te pega”. 65 Cássia desviou a Tati de um cocô de cachorro, que provavelmente ia pisar. Alguns passos à frente, Tati não pisou num outro cocô por um triz, Cássia disse “o anjo da guarda sopra”. Cássia: “Para saber que está na esquina tem o barulho do carro que agora vem na sua frente; a densidade do ar; muda a direção do vento; e a referência da parede, em boa parte dos casos, tem ângulo. Mas podem pensar que a guia é um degrau, por isso tem que prestar muita atenção”. As situações acima, em contextos pedagógicos, detalham técnicas corporais e disciplinares na utilização da : posturas, manuseio, posicionamento no espaço, etc. Tais técnicas solidificam uma performance, que também é reconhecida e exposta na interação. Caso a não seja empregada conforme o esperado, pode gerar contradições e problemas interativos. Ainda quanto à , a relação com a mesma pode manifestar dimensões de afetividade e intimidade, conforme os exemplos abaixo: [Instituto especializado, grupo de pré- adolescentes] Thiago contou que ficou sem bengala essa semana, porque ela quebrou, disse “foi ruim ficar sem a minha Gabizinha”. [Saindo de um instituto especializado] Perguntei do cão-guia, Henrique disse que foi numa palestra e “disseram que custa uns 400 reais por mês; mais limpar cocô e ver se não 66 tá faltando comida”. Disse que prefere sua Tina [referindo-se à bengala]. Ambos os feminina da exemplos indicam uma personificação . No primeiro trecho, o uso do diminutivo, “minha Gabizinha”, pode remeter à afetividade. No segundo exemplo, “Tina” corresponde não só a um nome, mas a um apelido, o que denota intimidade. Tais personificações foram acionadas em situações ligadas à perda ou substituição da “foi ruim ficar sem” – ficar sem a uma exceção. constitui Assim, é possível supor que tal afetividade e intimidade provêm justamente do uso constante e do vínculo construído com esse instrumento. O próximo sinal a ser detalhado é o ã a . Tal como , este sinal: vincula-se à locomoção; dispensa outros sinais na identificação do ator enquanto “cego” ou demais classificações; é conclusivo por si só; e é reconhecido de modo geral, como um senso comum. O ã pode ser identificado visualmente por sua silhueta, possuindo bastante visibilidade, se comparado à maioria dos outros sinais. Também é reconhecido sonoramente pelo som de sua respiração e andar. De modo tátil, os pelos, a temperatura morna Diferentemente da e o formato são peculiares. , ele não pode ser guardado e é dificilmente camuflado. A seguir um exemplo onde o ã é acionado como sinal para a identificação e classificação de uma boneca enquanto “cega” ou demais termos correlativos: 67 Figura 4 – Boneca "cega" com ã . A boneca acima foi comercializada em um estande da Reatech 2011 – Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação, 14 Inclusão e Acessibilidade14. Trata-se da Para maiores informações sobre a feira consultar: ASSENSIO, C.; ASSIS SILVA, C.; CAVALHEIRO, A. M.; MENDONCA, T.; ZAVARIZE, L. Etnografia coletiva da X Reatech: Feira Internacional de Tecnologias 68 representação de uma menina ruiva, de vestido florido, que pode ser reconhecida como “cega” através dos sinais – e ó ã . Além disso, o cenário da feira especializada agrega sentido. Assim como a , o ã vincula-se à locomoção segura. Por conta desta paridade pode haver algumas disputas, como denotam os exemplos abaixo: [Durante a aula de Orientação e Mobilidade] Tati comentou sobre o cão-guia: “não tenho segurança que o animal vai me levar para o lado certo”. [Reunião do Conselho Estadual da Pessoa com Deficiência] Conversando com Cláudio sobre seu cão-guia, ele disse que o cão é melhor que a bengala, porque com a bengala você não está protegido da cintura para cima, contra os obstáculos aéreos, tipo orelhão e caixa de correio. No primeiro trecho, num contexto pedagógico, o ator defende a argumentando que o condutor animal não transmite segurança. Já o segundo trecho, num contexto de coleguismo, o ator expõe vantagens do ã quanto à proteção perante obstáculos aéreos do percurso. em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade. 6, 2011. Disponível em: (USP), v. 8, p. http://www.pontourbe.net/edicao8- etnograficas/181-etnografia-coletiva-da-x-reatech-feira-internacionalde-tecnologias-em-reabilitacao-inclusao-e-acessibilidade. Acessado em: set.2011. 69 Conforme indica o trecho abaixo, o ã não é considerado um cachorro – um animal –, mas um instrumento. Por isso, ele pode estar presente em circunstâncias onde cachorros geralmente são impedidos: [Visita monitorada ao Zoológico, com os alunos de um instituto especializado] Uma aluna veio contar à professora: “tinha um cachorro no banheiro”. A professora respondeu perguntando “um cachorro ou um cão-guia?”. No caso, era um cachorro mesmo. Tal situação foi regulamentada pela Lei nº 11.126, de 27 de Junho de 2005, parcialmente transcrita abaixo: É assegurado à pessoa portadora de deficiência visual usuária de cão-guia o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo, desde que observadas as condições impostas por esta Lei. (BRASIL, 2005). O trecho acima autoriza a presença do ã em locais onde cachorros não necessariamente são permitidos. O termo “usuário” também situa o ã como um instrumento de uso. Há instituições especializadas que dominam a seleção e a normatização dos ã e seus “usuários”. Tais instituições, em geral, são filantrópicas – pré-requisito para filiarem-se à Federação Internacional das Escolas de Cães Guias, que além de congregar tais instituições, confere 70 reconhecimento e legitimidade a cada uma delas. Os ã também aos costumam ser fornecidos gratuitamente “usuários”: A ACGC (Associação Cão-Guia de Cego) não comercializa cães-guia. Somos uma entidade filantrópica. Nossos cães-guia são fornecidos gratuitamente aos deficientes visuais, há mais de 20 anos. As despesas dos nossos cães são custeadas pessoas por físicas doações ou e parcerias, jurídicas, por que são intitulados carinhosamente de: "padrinhos ou madrinhas”. Esses valores são efetuados através de cotas de patrocínio ou doações. Nunca comercializamos cães-guia, pois, nossa missão é a ampliação da inclusão social através de cães-guia ofertados gratuitamente aos usuários. (ASSOCIAÇÃO CÃO-GUIA DE CEGO, 2011). Algumas “raças caninas” apropriadas para serem ã são consideradas mais . A seguir, alguns exemplos a este respeito: Dentre as raças caninas a mais utilizada para o serviço de guia, o Retriever do Labrador e o Golden Retriever se destacam por apresentar um bom adaptarem caráter, às e capacidade diversas situações, de se fiéis, inteligentes e de natureza amigável, mas principalmente pela docilidade, sem qualquer traço de agressividade ou timidez exagerada. (PROJETO CÃO-GUIA DE CEGO, 2011). 71 [Instituto especializado] Thiago contou que ganhou um rottweiler. Rolou um burburinho geral entre as mães “nossa, um rottweiler!”. Então, Camila [pedagoga] falou “eles costumam ganhar um labrador”. Fabíola [mãe do Thiago] disse que eles tinham um pitbull que morreu filhote picado por uma cobra, “mas era um amor de cachorro”. O primeiro trecho, extraído do site institucional do Programa Cão-Guia de Cego do Governo Federal, expõe as “raças caninas” indicadas para serem ã de acordo principalmente com seu “caráter”, que pode ser resumido em: fidelidade, inteligência e docilidade. O segundo trecho, extraído do meu caderno de campo, referente a um contexto de coleguismo, indica o labrador como raça usual e o rottweiler, como não usual. Para adquirir um ã no Brasil o interessado cadastra-se nas instituições e aguarda, por vezes, anos, para ser chamado. Também é possível cadastrar-se em instituições americanas, que são mais numerosas e produzem mais ã do que as brasileiras. Contudo, é necessário pagar pelas passagens. Quanto à normatização do ã trechos do discurso institucional e do dono, seguem de uma das escolas especializadas: A formação de um Cão-Guia tem início com um rigoroso processo de seleção genética e comportamental. Depois de selecionado, próximo aos três meses, o cão inicia a fase de 72 socialização, que se estende até, aproximadamente, o animal completar um ano de idade. Esta fase pode ser conduzida pelo treinador ou por uma família voluntária, que cuida do animal no seu primeiro ano de vida. Durante este processo o cão aprende a conviver em ambiente social, urinar e defecar apenas em locais apropriados e alguns comandos básicos para o convívio. Terminada a primeira fase, inicia-se o treinamento específico, com duração aproximada de sete meses, podendo se estender caso necessário. Nos primeiros seis meses, o cão aprende a desviar de obstáculos, perceber o movimento do trânsito, identificar objetos, encontrar a entrada e saída de diferentes locais, entre diversas outras atividades. No último mês é realizado o treinamento para transformar a dupla composta pelo cão-guia e seu usuário em um time que interagirá com a mais perfeita harmonia. treinamento é de O tempo total de aproximadamente 16 meses, podendo se estender até 21 meses. Depois de treinados, os cães-guias identificam o movimento do trânsito, desviam de buracos, encontram as entradas e saídas de diferentes locais, localizam elevadores, escadas banheiros, escadas, rolantes, cadeiras, desviam de obstáculos altos, evitando que pessoas com deficiência visual batam com a cabeça, entre outros feitos incríveis. (CÃOGUIA BRASIL, 2011). Durante o trabalho de campo considero que não tive muito contato com ã se comparado às Nos 73 institutos especializados que frequentei poucos ã figuraram e nenhum dos meus principais interlocutores os possuía. De modo geral, a dificuldade de obtê-los e seus custos elevados podem ser alguns dos fatores que contribuem para tal escassez. Ainda quanto à locomoção, as outras colunas da correspondência horizontal da tabela apresentam um traço. Neste caso, não identifiquei sinais específicos que singularizem “baixa visão” e “vidente”. e do ã Pelo contrário, a ausência da sugere que o ator não é “cego”, podendo distingui-lo enquanto “vidente”, “baixa visão” e correlativos. A próxima correspondência horizontal da tabela referese à escrita. Iniciando pela coluna da esquerda, o também é um dos sinais que pode dispensar outros na classificação enquanto “cego” ou termos correlativos. Este sinal é relativamente generalizado e reconhecido como senso comum. O demonstra é identificado enquanto sinal, quando o ator possuir materiais assim redigidos, seus equipamentos, bem como através da performance de escrita e leitura. Contudo, há atores tidos por “videntes” e “baixa visão” que apresentam materiais e performance do , tratam-se geralmente de especialistas, familiares ou amigos próximos. Neste caso, a presença e a ausência de outros sinais elencados no quadro anterior podem determinar a classificação. Especificamente quanto à performance da leitura é possível 74 apontar uma diferença: não conheci, em campo, nenhum ator classificado como “vidente” que lesse o com as mãos, lia- se apenas com os olhos. O é considerado um sistema de escrita tátil formado pela combinação de seis pontos, que compõe todas as letras, números e caracteres do alfabeto. Quanto aos seus instrumentos, a , em geral, é uma prancheta de madeira com uma régua de metal, que possui quatro linhas; cada linha contém 28 “celinhas”, aberturas que correspondem a cada caractere; esta régua funciona como uma espécie de molde para fazer os pontos. Na escreve-se da direita para esquerda, de forma espelhada a que se lê, pois os furos são feitos no verso da folha, numa espécie de baixo-relevo. Diferente da escrita , onde as letras são desenhadas, as letras em braile são furadas. Os furos do braile na são feitos com o çã , instrumento com ponta de metal abaulada, fina e comprida. Já a escrever, á contudo assemelha-se a uma máquina de possui apenas nove botões, que correspondem aos seis pontos da do braile, o “espaço”, o “pula linha” e o “volta celinha”. Pressionam-se os botões e um mecanismo fura o papel. Escreve-se da esquerda para direita, do mesmo modo que se lê. Abaixo apresento algumas imagens destes equipamentos em uso: 75 Figura 5 – Aluno segurando a régua aberta da esquerda e o com a mão çã com a mão direita Figura 6 – Aluna escrevendo na á 76 Tais equipamentos e seu manuseio podem identificados de modo visual, auditivo e tátil. ser Visualmente, conforme descrito acima com auxilio de imagens, esses materiais possuem formatos específicos; também se destacam as folhas em branco com pontos em relevo; já a leitura do é marcada pela visualização dos dedos, que percorrem linearmente o papel ou outra superfície. De modo tátil, além dos formatos citados, os equipamentos possuem texturas características referentes aos seus materiais – madeira, metal e plástico. Auditivamente identificam-se, principalmente, os equipamentos em uso, que possuem sons particulares, conforme indicam os exemplos abaixo: [Estudo de braile na reglete, em casa] Tem vezes que furo forte, parece que estouro os furinhos do papel e faz mais barulho ainda. [Instituto especializado] Subimos para a sala [a professora e eu]. Os alunos estavam terminando estava os exercícios de aquela barulheira de matemática, regletes e máquina. A professora falou “vamos parar com esse TAC, TAC, TAC?”. Por hora, exponho um exemplo onde o é identificado como sinal relativo à “cegueira”: [Sala de aula da turma do 1º ano, instituto especializado] Perguntei para Daniela [estagiária de Pedagogia], se ela achava que [os alunos da sala] sabiam que ela era cega. Ela disse que na outra sala sim [refere-se à 77 turma do 2º ano, onde assistiu às aulas na semana anterior], porque lá ouviram a máquina e a bengala. No exemplo acima, referente a um contexto pedagógico, o barulho característico da escrita na á foi elencado como sinal determinante para a classificação da atriz como “cega”, assim como o barulho da O . enquanto técnica corporal disciplinar molda os corpos através de treinamentos repetitivos envolvidos em sua escrita e leitura. Tal disciplina é conduzida por técnicos autorizados e ofertada nos institutos especializados. Em alguns institutos o é um curso específico ministrado como “complementação educacional” ou em um “programa de reabilitação”, que o aluno frequenta, em geral, algumas vezes por semana; já nas escolas especiais o é dado diariamente na própria alfabetização dos alunos. Acompanhei, por um ano, a turma de alfabetização do primeiro ano de uma escola especial e também realizei aulas semanais, particulares, no mesmo instituto. A seguir forneço alguns dados breves sobre essas experiências. [1 de Março de 2010, minha primeira aula de braile] A professora disse que usaremos uma cartilha: “Quando você aprendeu a ler e a escrever não foi com a cartilha? Aqui você é analfabeta em braile, vai aprender que nem criança com a cartilha”. Primeiro ela pegou a reglete, colocou a folha e falou “eu pego no punção assim” [mão fechada com o dedão apoiando], “veja como você acha melhor”. Aí 78 ela me deu uma folha com o desenho do alfabeto braile. Em seguida, explicou a célula braile, que é composta por os seis pontos, distribuídos em duas fileiras, sendo que cada ponto corresponde a um número de 1 a 6. Aí, explicou que para ler a célula braile, os pontos ficam em ordem, 1, 2, 3, 4, 5 e 6; mas para escrever na reglete, a ordem seria 4, 5, 6, 1, 2, 3. Então, pediu para eu furar os seis pontos da celinha, preenchendo as quatro linhas da reglete. Disse que eu ia achar pesado, fazer força no começo, mas depois acostumava, de fato chega quase a doer o braço, tem que fazer uma pequena força física. [9 de Março de 2010 – estudo do braile, em casa] Peguei para estudar. Primeiro coloquei a folha um pouquinho torta na reglete, arrumei. Aí, eu não estava conseguindo travar a régua. Comecei a escrever e não furava direito, acabei furando demais a folha, acho que porque eu estava meio girando o punção e não pressionando. Uma hora travou melhor a régua e parecia que os buraquinhos da celinha ficaram mais nítidos. [...] Droga, ainda não sei apagar. Também me atrapalho com essa história de ser espelhado. Várias vezes coloco o sinal de maiúscula com os pontos 1 e 3 e não 2 e 4. [...] Estou lendo, quando o ponto não está bem feito confundo que letra é. [10 de Março de 2010 – sala de aula da turma de alfabetização] Diego tentou colocar o papel na máquina, primeiro colocou na horizontal ao invés de na vertical, óbvio que o papel não entrava. Aí fui ajudar, ele levantou a trava e 79 girou o rolo até travar, só que para o lado errado, eu também não sabia. Chamamos a professora, agora entendi que tem que girar para frente e não para trás. [11 de Abril de 2010 – estudo do braile, em casa] Estou bem mais rápida hoje. Acho que meus pontos também estão mais bonitos, definidos. Estou esquecendo bem menos dos espaços, ainda não esqueci nenhum. [...] Saco! Confundi o “e” com “i”, furei errado. [...] Fui ler, de olhos fechados, quando cheguei ao fim da linha descobri, porque deixam uma mão no começo da linha, perdi total a noção de onde era a próxima linha, o quanto para baixo. [...] Não tenho mais problemas com a trava da régua, peguei a manha, tem que mover um pouquinho para cima ou para baixo para ela achar bem o buraco do encaixe. [5 de Maio de 2010 – sala de aula da turma de alfabetização] Fiquei um pouco com o Ricardinho, ele estava errando várias coisas, primeiro que a régua da reglete não estava fixando bem, um pouco como a minha, aí os pontos saiam fracos. Além disso, ele também errava os pontos de algumas letras, do “u”, ele achava que era 1, 2, 3 e 6, corrigi [é 1, 3 e 6]. [25 de Maio de 2010 – estudo do braile, em casa] Nossa, está bem automático escrever, acho que estou escrevendo melhor que lendo. [...] Eu leio muito mal mesmo, pareço as criancinhas que penam para reconhecer as 80 letras. É ridículo que não consigo ler!!! Fico gaguejando: “aaa-ze-i-te”. [...] Outra coisa, aprender braile não é como aprender uma língua nova, no francês eu leio o que está escrito, mas não sei a pronúncia e o significado da palavra; no braile é bizarro, porque eu não entendo a letra, não consigo ler, mesmo sendo a mesma língua. Tenho que juntar a forma e o conteúdo da letra na cabeça, é alfabetização sim. [5 de Maio de 2010 – na sala de aula da turma de alfabetização] Rafael queria ler a ficha de leitura, fui lá com ele. Rafael ia lendo letra por letra e juntava as sílabas, quando não juntava eu perguntava “que que dá?”; e, por fim, dizia a palavra. [14 de Junho de 2010 – aula de braile] Antes de sair, a professora me deu uma folha, disse que fez para mim, para eu decifrar. É para decifrar mesmo, o braile é quase um hieróglifo, essas letras em formato diferente. Lá fui eu gaguejar. [16 de Junho de 2010 - no intervalo da aula da turma de alfabetização] Falei para a professora “acho que no fim do ano eles vão ler tudo”, ela disse algo como “Você acha? Tomara, mas não sei não”; respondi “no começo do ano não sabiam nem as letras!”; a professora replicou “é mesmo, é que eu me esqueço”. [13 de setembro de 2010 – aula de braile] Fiz lição na máquina, até que saiu, errei pouco. Li 81 bem melhor também! E olha que nem estudei essa semana! A professora disse “viu como você está rápida! Se fosse na reglete a gente ainda estava no primeiro parágrafo”. Falei para a professora que o braile da máquina fica bem melhor, os pontos saem mais bem formados. Ela disse que meu braile da reglete estava bom também. Os exemplos acima remetem a contextos pedagógicos e situam o como uma técnica corporal, incorporada de modo processual. Escolhi alguns trechos emblemáticos, em ordem cronológica, procurando reconstruir um pouco tal dimensão temporal. Contudo, é evidente que o processo não é tão linear e acabado, permanecendo em constante solidificação, rarefação, esquecimento, etc. Os trechos também indicam algumas dificuldades comuns entre os atores, como a de transformar aqueles pontinhos arbitrários em um sinal de uma letra para compor uma palavra. Além disso, os exemplos evidenciam o esforço, a repetição, a dor e o treino como dimensões do processo de incorporação do enquanto técnica corporal. Tal técnica ainda conforma uma atuação, que é reconhecida e exposta na interação – a performance do faz parte da sinalização. Ainda quanto à escrita, desenvolvo, a seguir, de acordo com a correspondência horizontal, os sinais listados nas outras colunas. Na coluna da direita, a escrita ou é identificada como sinal relativo às categorias “vidente” e similares. Tais sinais remetem aos materiais redigidos deste 82 modo, aos equipamentos de escrita e a sua performance. Assim como o , tratam-se de sinais conclusivos por si só e reconhecidos de modo geral. Comparando os dois sistemas de escrita citados em termos formais, o a escrita o apresenta-se através do baixo-relevo e através do depósito ordenado de pigmentos; envolve o ato de furar e a escrita o de desenhar, conforme indica o exemplo abaixo: [Instituto especializado] David contornou sua mão com o giz no papel, mas ficava contornando várias vezes, aí a professora falou que uma vez basta. Tentei explicar que para quem enxerga é ruim quando se risca um monte de coisas uma em cima da outra. Não sei se entendeu. Por fim, David falou “vou desenhar meu nome” e escreveu em vidente, grande, bem no centro. No exemplo acima, num contexto pedagógico, não por acaso o ator falou “vou desenhar meu nome”, com relação à escrita . Neste formato, tal escrita corresponde ao desenho de letras, possuindo os mesmos princípios formais do desenho que fez de sua própria mão. A escrita também apresenta menor variação de tamanhos e formatos do que em no . Quanto ao tamanho, encontrei duas possibilidades – o padrão e outro pouco menor, usado em etiquetas de farmácia. O tamanho do caractere padrão e a organização da escrita na superfície fazem com que, por exemplo, o Minidicionário Aurélio da 83 Língua Portuguesa (FERREIRA, s.d.) possua vinte e quatro volumes e ocupe quase uma parede inteira do instituto observado; enquanto, , o mesmo livro cabe na palma de uma mão. Isso ocorre, pois o tamanho dos caracteres em pode variar de poucos milímetros a muitos centímetros, a depender da dimensão da superfície. Quanto ao formato, a escrita oferece muitos tipos intitulados “fontes tipográficas” e grande variação quanto à caligrafia. Já no o formato é único e apresenta pequenas variações dadas pelas superfícies, equipamentos utilizados e seu manejo, que podem deixar os pontos mais ou menos cheios, definidos, furados, estourados, etc. A seguir apresento detalhes sobre a percepção da escrita ou a partir de um exemplo de campo: [Instituto especializado, sala de aula da turma de alfabetização] Bia: “Andrea, me ensina a fazer o ‘b’ em vidente?”, respondi que ia pegar uma folha, mas ela disse “no seu caderninho”. Aí eu fiz o formato da letra com o lápis sobre a palma de sua mão, para sentir. Depois, mostrei como pega o lápis – com o indicador e o polegar embaixo – e fiz o “b” com a sua mão duas vezes no caderninho. Então, ela foi passar a mão sobre o papel e disse algo como “não tem”. Aí peguei um pedaço de E.V.A. [folha emborrachada] para fazer em relevo, mas a professora a chamou e ela foi fazer outra coisa. 84 O trecho acima, num contexto pedagógico, indica que a letra escrita corresponde a “não tem”, uma escrita vazia, sem forma e nem conteúdo para a aluna. Este exemplo evidencia que o preponderantemente resultado da visual, mas escrita é também pode ser minimamente tátil se riscado com força sobre o papel ou com algum recurso como o E.V.A. (material emborrachado). O ato de escrever também pode ser um pouco sonoro – o lápis riscando a superfície produz um leve som que pode ser apreendido. Quanto à sinalização e classificação do “vidente” ou correlativo a partir da escrita , apresento a seguir um exemplo: [Instituto especializado] Estávamos na quadra aguardando, Ricardinho [8 anos] falou primeiro que a Amanda [assistente de classe] era baixa visão, depois falou que ela era “assim, normal”. Perguntei como ele sabia. Ele disse que ela lê uma outra coisa lá. Eu falei “tinta?”, ele respondeu “é, isso”. No trecho acima, num contexto de coleguismo, a assistente de classe foi identificada como “normal” por não ler , mas sim “uma outra coisa lá”, e escrita , que sinaliza tal “normalidade”. Este exemplo evidencia que a escrita dos “normais” contrapõe-se implicitamente a escrita dos “anormais”. Finalizando os sinais referentes à escrita, na coluna do meio da tabela anterior, a escrita ou 85 , seus equipamentos e performances são identificadas como sinais atrelados às categorias “baixa visão” e similares. A escrita ou possui seu formato similar à descrita acima, contudo o tamanho dos caracteres é ampliado segundo uma padronização específica. De modo geral, os saberes oftalmológico, ortóptico e pedagógico estabelecem tais padrões e determinam a escolha do sistema de escrita dos seus pacientes e alunos por meio de testes. Conforme indica o trecho abaixo, a padrão de fonte tipográfica para “baixa visão” é Arial, tamanho 24. [Instituto especializado, sala de aula] A professora chamou Marcos para ver se ele consegue ler bem o material que preparou em tipos ampliados. O menino leu. Então ela disse para mim: “o padrão para baixa visão é Arial 24. Se não der, é braile”. Além dos , há outros equipamentos específicos, tais como os com espaçamento maior entre as linhas; e os á , ou seja, 6 , que são considerados mais fortes, proporcionando maior contraste. A seguir exponho uma fotografia de uma aluna utilizando estes equipamentos. 86 Figura 7 – Aluna com rosto próximo ao , escrevendo com á 6 . Quanto à performance da escrita, de modo geral, os alunos tidos por “baixa visão” são identificados por aproximarem mais seus rostos da superfície de escrita. Tal estereótipo também pode ser identificado na imagem acima, onde a aluna está com o rosto encostado no caderno onde escreve. A seguir um exemplo onde tais materiais são acionados na identificação e classificação dos atores enquanto “baixa visão”: [Instituto especializado, sala de aula] Entrou uma funcionária com uma visita, era uma mãe e seu filho que queriam conhecer o instituto, para talvez realizar matrícula no ano que vem. A funcionária apresentou-os para a turma e falou que os alunos que estavam de máquina 87 e reglete eram cegos e aqueles com materiais ampliados eram baixa visão. Então mostrou para mãe as folhas com linhas maiores e o lápis 6B, da Luciana, que “é mais forte”. No trecho acima, num contexto de apresentação, o ator tomou os como sendo sinalizadores dos alunos “baixa visão”; bem como, os como, sinalizadores dos alunos “cegos”. O próximo feixe de sinais abordado é relativo à terceira correspondência da tabela e refere-se ao padrão dos olhos. As duas colunas ligadas às categorias “deficiente visual” e derivadas apresentam como seus sinais Os são . aqueles considerados deformados, esbranquiçados, saltados, murchos, etc. Estes sinalizam uma anormalidade no padrão de corpo esperado. Não identifiquei diferenciação clara entre “cego” e “baixa visão” neste quesito. A não ser com relação aos e às ó onde, em ambos os casos, o ator é identificado como “cego”. As os ó pressupõem a extração dos olhos e a não necessidade de abri-los. Por exemplo, na imagem abaixo, a aluna está de , sinal que pode compor a fachada da “cegueira” juntamente com a categoria “cegos” estampada em sua camiseta. 88 Figura 8 – Aluna de Já os podem sinalizar a vidência. Estes são identificados enquanto padrão corporal de referência, não apresentando as características dos citados acima. 89 Por hora, apresento a quarta correspondência horizontal da tabela anterior: os sinais relativos a equipamentos ópticos. Iniciando pela coluna da esquerda, os ó , apesar de ser um sinal reconhecido por atores de modo geral, é pouco conclusivo por si só, necessitando de outros sinais para a identificação e classificação da “cegueira”. Seu reconhecimento é dado de modo visual, pelo seu formato e lente de cor escura; e de modo tátil, pelo formato e textura, mas sem diferenciação quanto à cor da lente. A seguir, um exemplo onde os ó foram acionados na sinalização: [Passeio com alunos de um instituto especializado à Biblioteca Braille do Centro Cultural São Paulo] Pri estava me contando que, esses dias, na sua escola: “só porque uso óculos [escuros] a pessoa me xingou de cega, fiquei triste”, “cega eu não sou”. No exemplo acima, num contexto pedagógico, a atriz identifica que sua classificação enquanto determinada pelo uso dos ó “cega” foi . Em seguida, tal classificação é negada “cega eu não sou”, provavelmente em virtude de a aluna ser classificada e classificar-se, em muitas situações, como “baixa visão”. Contudo, apesar do não reconhecimento, tal exemplo ainda indica que os ó remetem à categoria “cega”. Enquanto equipamento óptico, os ó relacionam-se à redução de ofuscamentos: 90 [Instituto especializado, grupo de crianças de zero a três anos] Lia é albina, usa oclinhos escuros, sua mãe falou para a turma que com os óculos enxerga bem melhor, usa direto, em casa, em todo lugar. [Saindo de um instituto especializado, indo para o metrô] Henrique colocou seus óculos escuros e disse que “a claridade atrapalha”, perguntei se não era estético, ele disse que não, que usava mais pela claridade, tem que ajudar seus 5% de visão. Nos exemplos acima, num contexto pedagógico e de coleguismo, ó são acionados para “enxergar melhor”, reduzindo a “claridade”, tanto em cenários internos – institucional e doméstico –, quanto em cenário externo – na rua. Os ó ainda são acionados para esconder , a ausência destes ou a presença de ó e – explicitado anteriormente. Neste sentido, os ó podem operar como uma estratégia de proteção da interação, pois tais “anomalias” também podem afetar algumas interações causando estranhamento. [Instituto especializado, sala de aula, 5º ano] Na nossa mesa, as meninas começaram a falar de quando eram pequenas, Janaína disse que não tem olho, aí ela ergueu o óculos e me mostrou sua prótese. Aí Elena disse que também tinha, ergueu os óculos e mostrou, explicou que tem prótese no olho direito e um 91 expansor no esquerdo, falou que fica como um cristalzinho para fora. Contou que usa o expansor, porque a prótese ficava toda hora caindo. Eu nunca tinha visto Janaína sem óculos escuros, ela vem com eles todos os dias e nunca os tira. Elena também vem de óculos todos os dias. No exemplo acima, num contexto de coleguismo, os ó encobrem a , as ó e . Além disso, o trecho sugere que tais equipamentos possuem um uso continuo em tal contexto, provavelmente para manter uma atuação estável. Já uma das alunas da turma do primeiro ano, apesar de chegar de ó , brinca com eles, tira e põe e deixa- os jogados pelo chão. Deste modo, a menina não os utiliza como conforme o estereótipo, envolvendo uma atuação a ser manejada. Ainda quanto aos equipamentos ópticos e oculares, a coluna do meio da tabela anterior indica que os ó também podem ser reconhecidos como sinais da “baixa visão” e correlativos. Neste caso, quanto maior a espessura da lente, mais conclusiva pode ser a sua sinalização. Contudo, este equipamento exige, em geral, outros sinais para determinar tal classificação. Na Figura 7 [p.87], deste capítulo, é possível identificar o estereótipo em questão: a aluna está usando ó , que podem compor a fachada da “baixa visão”, promovendo tal classificação. 92 A seguir um exemplo onde os ó foram relacionados como sinal: [instituto especializado, antes da aula] Henrique perguntou se o Mário era deficiente, eu disse que usava óculos grossos, mas não era, a irmã dele que é. Renato disse que achava o oposto, que ele era deficiente e que a irmã vinha buscá-lo. Eu também achei que o Mário era baixa visão, porque tinha óculos bem grossos, mas ele me falou que não é. No trecho acima, num contexto de coleguismo, discutese sobre a classificação de um ator e os ó são acionados como um sinal da “baixa visão”. Contudo, apesar do sinal e do cenário, as expectativas dos atores foram frustradas. Enquanto recursos ópticos, os ó são utilizados para corrigir e aumentar a visão tida como abaixo do padrão normal. Abaixo apresento um exemplo: [Instituto especializado, conversa de corredor] A pedagoga perguntou para a mãe do João sobre os óculos, se está usando. Ela disse que só na escola, porque a diretora obriga. Ele acha que atrapalha. A pedagoga, com feição de espanto, pergunta “nem pra ler???”. A mãe responde “ele disse que não adianta nada”. No trecho acima, num contexto institucional, a insistência e espanto da pedagoga denotam a sua expectativa 93 de que os ó devem ser usados para melhorar a visão, ao menos na leitura. Continuando com os recursos ópticos, um dos principais sinais da “baixa visão” são as . Há lupas de diversos tipos: ou Assim como os ó , etc. , estas são utilizadas para aumentar a visão tida como abaixo do padrão normal. Em geral, elas são prescritas por oftalmologistas e exigem um treinamento disciplinar conduzido pelos ortoptistas. [Instituto especializado, reunião entre professores das escolas regulares com os técnicos do instituto especializado] A professora da Eduarda disse que tinha uma dúvida sobre o uso da telelupa: “quando eu peço pra ela fazer leitura, ela cola o olho no livro e não usa a lupa, eu que lembro”. A pedagoga, especialista do instituto, respondeu “a telelupa é para ela ver a lousa, aí que ela tem que usar. Para perto é a régua. Lupa é para visão à distância, régua para perto”. Então, a Edna [mãe da Eduarda] falou “ela fez curso aqui uma vez com a lupa e a régua, mas não fez mais”, “ela ganhou a régua da prefeitura, a telelupa foi da doutora Teresa [médica do instituto] e fez treinamento com a Valéria [ortoptista do instituto]. Ela disse que teria que voltar outra vez”. A pedagoga quis explicar a todos: “o processo é assim, passa pelo oftalmo que manda para a Valéria testar as telelupas. Cada criança tem lupa com a medida certa”. O professor de educação física [especialista do instituto] prosseguiu 94 perguntando “em casa, ela usa a lupa?”. A mãe respondeu: “sim, no ônibus, peço para ela ver, mas tenho que chamar atenção, não se acostumou ainda”. Neste trecho, dado num contexto de reunião, explicitase os usos corretos de dois equipamentos: a , usada para observar coisas distantes, como a lousa e o ônibus; e a , usada para observar coisas próximas, como os livros. A ortoptista é citada, no exemplo, como a especialista responsável por testar os equipamentos prescritos pela oftalmologista e conduzir o treinamento, a normatização do uso. No caso, tal treinamento ocorreu em uma única sessão e a aluna deveria agendar as demais. As podem ser expostas não somente no momento de sua utilização, mas algumas delas possuem cordões para pendurar no pescoço, como um adorno corporal que sinaliza a “baixa visão”. Contudo, estas também podem ser escondidas no bolso, mochilas, etc., dependendo da situação. um exemplo onde a A seguir, é acionada enquanto sinal da “baixa visão”: [Instituto especializado] Cleide [funcionária] estava me falando de um professor baixa visão que eu não conhecia. Então disse “olha ele ali, o de telelupa [no pescoço]”. No trecho acima, num contexto de coleguismo, a pendurada no pescoço do ator foi acionada para reconhecer um ator “baixa visão”. 95 Quanto aos sinais de equipamentos óticos referentes às categorias “vidente” e correlativas, a coluna direta da tabela apresenta um traço. Neste caso, não identifiquei sinais específicos que distingam o “vidente”. Pelo contrário, a ausência de equipamentos ópticos e oculares, tais como ó ó , etc., sugere que o ator não é “deficiente visual”, podendo classificá-lo enquanto “vidente”. Por fim, explano brevemente como a ausência de sinais, sua ambiguidade, contrariedade ou não apreensão podem gerar conflitos de categorização e de expectativas que desarranjam a interação. Abaixo desenvolvo tais situações. [Instituto especializado] Estavam falando da Violeta, aí eu perguntei se ela tinha baixa visão. Vinicius disse que sim e completou “nem dá para perceber, né?”, “BV é estranho”. [Teatro com a turma de um instituto especializado] A mãe do menininho perguntou para Dinha se ela ia ao instituto. Ela disse que sim, que tem baixa visão e ninguém acredita. Aí a mãe disse “mas você tem um percentual bom de visão, né?”, Dinha respondeu que sim e prosseguiu "vou escrever aqui [no peito ou no meio da camisa] ‘deficiente visual’”. Ela contou que foi pedir o fone de áudio-descrição aqui no teatro e disseram que era só para deficiente, “eu sou deficiente!”, disse para a moça, que então forneceu o fone. 96 No primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, a estranheza vinculada à “baixa visão” refere-se à sua não identificação provavelmente relacionada à ausência de sinais como: ó e , etc. No segundo trecho, num contexto de coleguismo, a atriz contou que não foi reconhecida como “deficiente” perante a atendente do teatro, sendo abrigada a imputar-se como tal. Neste caso, o não reconhecimento se deve, possivelmente, à ausência de sinais da atriz, visto sua solução em escrever no peito “deficiente visual”. Os trechos apontam que a ausência de sinais, no caso, da “baixa visão”, pode levar ao não reconhecimento e consequentemente ao tratamento fora do esperado, quebrando as expectativas dos atores e causando mal estar na interação. Já a situação abaixo denota que não basta expor sinais e ser reconhecido, mas é necessário permanecer com uma atuação condizente aos sinais expostos para não ocasionar ambiguidades ou contrariedades que promovam quebras de expectativas e problemas interativos. [Conversa telefônica com um colega] Leonardo falou que um colega lhe contou que ia atravessar a rua e estava vindo uma menina bonita para lhe ajudar. Mas apareceu um cara e falou “pode deixar eu atravesso ele”, aí ele quase falou “não!”, só que iam dizer “você enxerga?”. No trecho acima, num contexto de caridade, o ator foi reconhecido como “cego” ou termos correlativos, tendo em 97 vista a oferta de ajuda para atravessar a rua. Contudo, se ele demonstrasse enxergar a “menina bonita”, ele não estaria atuando conforme os sinais expostos, como indica a frase “iam dizer ‘você enxerga?’”, o que poderia quebrar as expectativas e colocar a interação em risco. O último trecho, a seguir, é um exemplo extremo de falta de entendimento na interação ocasionado não pela ausência ou ambiguidade de sinais, mas pela não apreensão deles. [Saindo do instituto especializado, horário de ] Estávamos na avenida indo para o bar, eu guiava o Juliano que permanecia de bengala, aí uma moça que vinha apressada em nossa direção esbarrou nele, disse “caralho!” e continuou andando. Aí a Pri gritou “ele é cego, idiota!”, então ela pediu desculpas, mas o Juliano xingou “vagabunda!”. Aí eu disse para ele que ela pediu desculpas, ele falou que não tinha ouvido. O trecho acima, num contexto de passagem, os sinais de Juliano, como a bengala, parecem ter escapado à identificação da moça que andava apressada. Tal ausência de identificação provocou troca de ofensas e um desfecho desfavorável da interação. De maneira geral, o caráter de desordem dos exemplos citados reafirma as proposições prévias, denotando a correspondência entre as categorias de nomeação e os sinais que as materializam nos corpos e nos cenários. 98 Enfim, pontuo brevemente outras distinções possíveis que alguns equipamentos analisados neste capítulo podem instituir para além das diferenciações correspondentes as performances em questão. Uma delas seria em termos de “classe”, por exemplo, na sala de aula os alunos que possuem á são implicitamente considerados mais “ricos”, do que aqueles que possuem – a á cerca de três mil reais, enquanto a custa custa cinquenta reais. Outra fronteira possível remete à “geração”, conforme indica um dos exemplos anteriores, a como de “jovem” e a é tida , de “velho”. Deste modo, os equipamentos citados ainda sinalizam e distinguem outras fronteiras. Conforme procurou analisar apresentado os inicialmente, principais sinais das este capítulo performances nomeadas de “cegueira”, “vidência”, “baixa visão”, entre outros termos, apontando suas contraposições e usos que distinguem e identificam personagens. 99 3. Caracterização de máscaras: atributos qualificativos Neste capítulo apresento o último tipo de representação em análise: os atributos. Assim como os sinais e as categorias, estes também compõem as performances nomeadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos. Os atributos são predicados estereotipados vinculados a padrões de ação pré-estabelecidos. O acionamento de representações que remetam a tais predicados pode gerar a consequente qualificação ou adjetivação dos atores. Tais atributos, assim como as categorias e os sinais, surgiram em contextos particulares, em disputas simbólicas específicas e solidificaram-se historicamente. Essa solidificação é momentânea e dá-se após acúmulos de interações durante o tempo, onde os atributos são reproduzidos e alterados conforme as readequações a outros contextos. Estes atributos podem ser imputados de modo verbal, utilizando-se de categorias; ou não verbal, utilizando-se de gestos, expressões faciais e outras práticas, conforme a situação. Eles ainda são acionados de forma explícita, por meio de categorias e sinais diretamente relacionáveis; ou podem permanecer implícitos, sendo apreendidos após recorrências e comparações. 100 Também há atributos mais ou menos cristalizados. Os mais cristalizados são os mais recorrentemente acionados, que se reproduzem em mais contextos, tornando-se mais naturalizados e parte do senso comum. Os menos cristalizados estão envolvidos em mais controvérsias, são mais negados nas interações, menos reproduzidos e naturalizados. Assim como as categorias, os atributos operam de modo relacional. Também podem possuir ocorrência conjunta no mesmo enunciado, onde alguns deles servem de subsídio aos outros, legitimando e fortalecendo-os. No esquema abaixo os atributos estão organizados basicamente em duas colunas que refletem a oposição entre as performances nomeadas pelas categorias “cego” e “vidente”, sendo que estas duas categorias resumem e representam suas demais equivalentes. No caso, “cego”, representa também: “ceguinho”, “cegueta”, “deficiente visual”, “D.V.”, etc.; e “vidente” representa: “normal” e “não deficiente”. A categoria “baixa visão”, que representa também os termos “BV”, “semicego” e “meio-cego”, está localizada especificamente no meio da oposição citada. Tal condição é tratada no final do capítulo. Contudo, gostaria de frisar que as relações e o espelhamento não são tão rígidos, nítidos, acabados e exatos como o diagrama faz parecer, trata-se de uma generalização de certo modo pedagógica, um exagero, para possibilitar maior compreensão. Além disso, os atributos elencados não se pretendem exaustivos ou compondo uma totalidade. Estes apenas 101 correspondem ao que pude apreender no campo, após um acúmulo de interações. Tabela 3 – Atributos em análise. Cego Baixa Vidente Visão Enfermidade física Saúde física Enfermidade mental Saúde mental Indefensabilidade Defensabilidade Incapacidade Capacidade Dependência Independência Infantilidade Maturidade Desgraça Graça Sensibilidade Insensibilidade Clarividência Obscurantismo Os atributos de de ú í í relativa ao “cego” e relativa ao “vidente”, provavelmente possuem conexões históricas com a medicalização dos séculos XVIII e XIX, onde a “cegueira”, assim como outros fenômenos, passou a ser vista como decorrência de doenças. O saber médico e seus especialistas são uma das vertentes de reprodução desta concepção. Estes especialistas figuram inclusive nos institutos especializados etnografados, possuindo consultórios. Quando a é acionada, o contexto também se torna necessariamente médico, por tratar-se de representações deste campo. A está em jogo quando o ator é, explicitamente ou implicitamente, qualificado como doente. A 102 doença é tida como uma desordem do corpo padrão, que não se comporta conforme o esperado. Nesta situação, o corpo é reconhecido com sinais de anormalidade vinculados à doença: os sintomas. Entre estes sinais situam-se os especificados no último capítulo. De modo geral, a “cegueira” não é considerada propriamente uma doença, mas decorrência ou resultado desta. Uma mesma doença pode causar vários fenômenos, por exemplo: a síndrome de Usher pode gerar a “cegueira” e a “surdez”. De todo modo, os atores identificados como “cegos” podem ser reconhecidos como doentes a partir de sua “cegueira”, ou seja, se são “cegos” é porque foram ou são doentes. Abaixo segue um exemplo, onde a pergunta “o que ele tem?” solicita as causas médicas da “cegueira”: [Instituto especializado. fisioterapeuta perguntou Intervalo] à A professora apontando para um aluno que estava a sua frente “ele fez outra cirurgia?”. A professora respondeu “não, é que não cresce”, “achei que ele tinha válvula, mas não tem”. A fisioterapeuta perguntou “o que ele tem?”. A professora respondeu bem baixinho “câncer”. A fisioterapeuta prosseguiu “como o José? Fez cirurgia?”. A professora replicou “não, o José fez cirurgia e tirou tudo, é como a Fábia, está estacionado”. Neste exemplo, num contexto de coleguismo, dado numa conversa informal, a é acionada a partir de algumas representações como a do “câncer”, que geraria 103 intervenções cirúrgicas para a sua cura ou controle. Tal doença seria a causa da “cegueira” do aluno em questão. Especificamente quanto ao “câncer” a professora falou baixinho provavelmente pelo estigma decorrente do mesmo, atrelado ao risco de morte. A é acionada não apenas quando se aborda diretamente as doenças, mas também outras representações médicas como exames e consultas, que implicitamente indicam que o ator pode ser ou é doente. Seguem alguns exemplos: [Instituto especializado] O professor perguntou ao João por que ele faltou semana passada. Sua mãe respondeu que teve consulta; teve que fazer exame de sangue, porque a resistência dele é baixa; e também foi no psicólogo. [Instituto especializado, antes da aula] Kevin me disse que não veio segunda, porque teve médico. Perguntei de quê, disse que da vista, colocou eletrodos, “aí tinha uma luzinha”. Perguntei o que o médico disse, ele respondeu imitando a voz de médico “mãe, não vai dar para melhorar nada”. [Instituto especializado] A professora me explicou que o David não veio, porque foi fazer cirurgia para limpar a válvula, tem que fazer de tempos em tempos. O primeiro trecho, num contexto pedagógico, a consulta e os exames podem qualificar implicitamente o ator como 104 doente. Além disso, a “baixa resistência” também pode ser tida como decorrência da mesma doença causadora da “cegueira”, mas que não foi especificada no exemplo. O segundo trecho, num contexto de coleguismo, descreve exames e o veredito do médico “mãe, não vai dar para melhorar nada”, supondo que o corpo não está num padrão satisfatório dado em decorrência de uma doença não especificada. O último trecho aborda o processo cirúrgico periódico para a manutenção de uma válvula. Este trecho refere-se a um corpo que sofre uma intervenção decorrente de uma doença causadora da desordem corporal. Nos três exemplos ao se acionar representações médicas também se imputa a aos atores qualificando-os implicitamente como doentes. Além das consultas e exames a também está em jogo quando se aborda os medicamentos. Por exemplo: [Instituto especializado] Entramos na sala, Henrique pediu para que eu pegasse seu colírio que ele tinha colocado num cantinho da pia, pois é mais fresco do que deixar no bolso, em contato com o seu corpo, disse. Ele perguntou se eu não poderia pingar no olho dele e contou que sua mãe tem “paúra” de pingar. Era só no olho esquerdo. Ele disse que esse colírio é para o glaucoma, ele ajeita a pressão do olho e que normalmente o nosso corpo produz esse líquido. Aí eu perguntei por que não colocava no outro olho. Respondeu 105 que os médicos há anos não conseguem medir a pressão do olho direito. Marcia, que também estava na sala, falou que esse colírio para quem tem glaucoma é sagrado. [Fim de semana na casa de amigos] De noite Juliano tomou remédio, é daquele tipo que espirra dentro do nariz. Ele disse que custa R$200,00, mas que ganha do governo. O Anselmo também toma esse, acho que é porque tiveram a mesma doença, tumor no cérebro. O primeiro trecho, num contexto de coleguismo, o remédio aparece como regulador de um descontrole corporal, no caso, relativo à pressão do olho. No segundo trecho, dado num contexto de coleguismo, o remédio acionado é vinculado à doença: tumor no cérebro. Os exemplos também denotam que o remédio impõe outras regulações sobre o corpo: horários de administração rígidos; carregar o medicamento; operar sua administração. Em ambos os trechos, ao se acionar o remédio, implicitamente imputa-se a aos atores, situando corpos em tratamento decorrente de uma desordem corporal. A ainda vincula-se ao maior risco ou a iminência de morte, que assolaria os enfermos das doenças causadoras da “cegueira”. Abaixo seguem alguns exemplos: [Instituto especializado] A professora perguntou sobre o Ronaldo, se alguém sabia porque ele faltou. Tomas respondeu “o Ronaldo ontem não estava bem, dor de cabeça, é o problema que ele tem com a 106 válvula”. Logo em seguida o Ronaldo chegou, disse que estava mal, gripe. A professora prosseguiu “então você vai sobreviver, não vai morrer não”. [Instituto especializado] Cheguei à entrada e vi a Rose e a Elisa [mães de duas alunas], subi com elas. A Elisa foi contando que a Pri [sua filha] ficou internada por dois dias, na semana passada, estava vomitando e com dor de cabeça. Eu logo perguntei “virose?”. Ela respondeu “os médico não sabem, aí fez tomo[grafia da cabeça] e não deu nada”. No primeiro trecho, num contexto pedagógico, a é acionada na frase “é o problema que ele tem com a válvula”. O sinal relativo à anormalidade do corpo foi a dor de cabeça. Contudo, quebrando as expectativas, o aluno explica que estava gripado. A ironia da professora “então você vai sobreviver, não vai morrer não”, indica, pela negação, que o aluno estaria mais propenso a morrer, se o problema fosse a válvula. No segundo exemplo, em contexto de coleguismo, a tomografia e a internação denotam a expectativa de que os sinais reconhecidos – a dor de cabeça e o vômito – fossem relativos à doença causadora da “cegueira” e de que houvesse uma gravidade, risco de morte iminente. A expectativa foi frustrada, como denota a frase “não deu nada”. Além do risco de morte, decorrência de uma doença identificável perante outros a que atores “cegueira” não pode é enquanto prontamente implicar numa 107 expectativa de contágio. O contágio é acionado principalmente em situações que envolvam o contato corporal. A seguir alguns exemplos: [Instituto especializado] Estávamos subindo para sala e a professora disse que toma muito cuidado no contato [físico] com os alunos, concluiu dizendo “a gente não sabe o que eles têm”. [Oficina num instituto especializado] Deram vendas para os videntes, uma professora falou “esperem, vou buscar os lencinhos” e distribuiu dois lencinhos de papel para cada um e disse que era para colocar com a venda, entre a venda e os olhos. Alguém que estava atrás de mim disse “ah que bom, assim protege”, outra participante respondeu “não precisa lavar toda vez”. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a frase “a gente não sabe o que eles têm” refere-se a um desconhecimento das doenças dos alunos. Esse desconhecimento pode representar a possibilidade de haver doenças contagiosas. Neste caso, para evitar a suspeita de contágio, o “cuidado” é acionado. Este se dá em termos de restrição do contato corporal. O segundo trecho, num contexto pedagógico, também aborda implicitamente o contágio a partir da proteção do contato corporal com relação ao desconhecido. No caso, o lenço de papel protege o contato direto dos olhos com a venda, que foi usada sobre outros olhos desconhecidos. 108 A obra (1995) de José Saramago trata de uma epidemia de “cegueira” contagiosa. Tal obra reflete e reproduz as representações sobre esta questão. A também se relaciona à fragilidade intrínseca. A doença é reconhecida por debilitar o corpo, que se torna fraco e não pode chegar próximo aos seus limites, esforçando-se ou traumatizando-se. Neste sentido, o “cego” também pode ser considerado frágil por ser doente: [Instituto especializado, antes da aula] Alguns alunos me perguntaram por que faltei na quarta-feira. Eu falei a verdade, a droga do despertador. Ricardinho disse que também faltou, porque ficou internado, aí começou a contar: “minha mãe perguntou se queria comida”, “eu disse que sim e aí quando ela voltou eu estava no chão, tinha apagado, mas ouvia tudo. Aí foi para o posto e eles não me deixaram voltar, mandaram de ambulância para o São Lucas [hospital] e eles mandaram eu ficar lá. Aí eu pedia pra Deus pra eles me soltarem e para eu ficar bem”; “Era para eu ficar três dias, aí passou outro dia, nem precisou tirar ‘gadiografia’ [ele falou meio errado]”. Eu perguntei de onde era a radiografia, se da cabeça. Ele disse “não, é foto lá. Aí eu saí”. Prossegui perguntando “Deus te atendeu, né?”, ele respondeu “é, mas não posso fazer Educação Física”. [Instituto especializado, reunião dos professores com os pais] A Edna [mãe de uma aluna] disse “na Educação Física achei que ia 109 estranhar, porque não fez ano passado. Ela foi com medo, mas foi se soltando. Só não pode bater a cabeça”. No primeiro exemplo, a é evidenciada pela internação e exames; e a interdição quanto à realização das aulas de Educação Física implicitamente denota que seu corpo é considerado debilitado, não podendo ser extenuado. Já no segundo exemplo, a mãe indica que a filha não pode bater a cabeça. Tal proibição relativa a um traumatismo específico pode denotar que esta parte do corpo seria debilitada, devendo ser protegida. O medo acionado também se relaciona a essas imputações de fragilidade e proteção. As representações médicas são tão acionadas, que se tornam disponíveis para serem empregadas mesmo em contextos absolutamente diversos: [Instituto especializado, sala de aula, quarta série] Marcos estava falando sobre luthier, que faz instrumentos musicais, porque na aula estávamos construindo um chocalho, quando ele pegou o arroz para colocar no potinho disse “agora, nós fazemos um transplante simples”. [Feira de Tecnologia voltada às deficiências, apresentação de um instituto especializado] Estava futebol, conversando ele disse com que o Daniel sobre seu time estava perdendo na rodada anterior, mas que já se reabilitou. 110 No primeiro trecho, dado num contexto pedagógico, o aluno acionou a categoria médica de “transplante” para construir um chocalho. O segundo trecho, num contexto de coleguismo, o ator acionou a categoria “reabilitação” para tratar do desempenho de um time de futebol. Quanto à ú do “vidente”, esta é acionada de modo relacional à “enfermidade” do “cego”. Assim, o “vidente” é “saudável” quando se acionam representações médicas onde o “cego” é doente. Entre os exemplos acima, isso aparece na frase “a gente não sabe o que eles têm”, que expõe nitidamente a fronteira “nós” e “eles”, no caso, “eles” têm alguma doença, são doentes, e “nós” somos saudáveis. Nestes contextos, o “vidente” é o padrão de normalidade, possui um corpo dentro do esperado. Inclusive a categoria “vidente” pode ser intercambiável por “normal”, como foi especificado em capitulo anterior. Outro par de atributos seria a relativa ao “cego” e a ú relativa ao “vidente”. A é acionada quando o ator é identificado com abalos emocionais ou transtornos psicológicos. Esses abalos são reconhecidos através de comportamentos e traços de personalidade fora do padrão esperado. A “cegueira” é tida como uma das causas que desencadeia tais abalos e transtornos. De maneira geral, os “cegos” podem ser classificados de modo estereotipado como “parafuso solto”, “depressivos”, etc., em virtude da “cegueira”. 111 A seguir alguns exemplos onde a é acionada, a partir do reconhecimento de comportamentos anormais em diferentes situações: [Instituto especializado] A professora falou que teve problemas com uma aluna, que ela ficava ligando na casa dela e contando mentiras para seus familiares. Então, a outra professora disse “eles têm tudo um parafuso solto”. [Instituto especializado, reunião com pais] A professora passou para os comentários sobre o caso do João “há três anos foi quando começou perder visão, restrição do campo. Ele sentiu muito, porque tinha vida normal. A gente vê na cara do João que ele é meio depressivo. Não é ‘você perdeu a visão e vamo que vamo’. A gente tem que conseguir uma terapia para ele o mais rápido. Imagina você aquilo que você enxergava, não enxerga mais e está entrando na adolescência. Ele está emocionalmente abalado, precisa de uma terapia”. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a enfermidade mental é imputada pela frase “ ” O comportamento anormal identificado seria contar mentiras em situações inapropriadas. No segundo trecho, em contexto pedagógico, a é imputada pela professora ao afirmar que o aluno é “meio depressivo” e “emocionalmente abalado”, pois “perdeu a visão” e deixou de ter uma “vida normal”. Os 112 comportamentos anormais que levaram à imputação não foram bem especificados, há apenas uma indicação referente à expressão facial como denota a frase “A gente vê na cara do João que ele é meio depressivo”. A professora recomenda uma “terapia” – atendimento psicológico. O saber psicológico e seus especialistas são uma das vertentes de reprodução desta concepção. Esses especialistas figuram nos atendimentos. institutos especializados, oferecendo Ao acionar estas representações, o contexto torna-se também psicológico, por tratar-se de representações deste campo. Abaixo segue a fala de um especialista: [Instituto especializado, oficina ministrada por um psicólogo] No bebê, a visão está arcaica, só vê borrões. A partir dos 6 meses que consegue identificar a mãe à 30 cm. Para Winnicott essa aparição da criação e do olhar da mãe formam grandes traços de personalidade na criança. Ele diz que os deficientes visuais usam outros recursos e ponto. O Freud nem isso, não fala nada. Essa função de espelho pode ser um caminho importante para entender a personalidade. Quem não vê é muito mais fácil ter devaneios, fica sozinho no espaço, precisa da mãe que tem que dar aporte para essa criança para que ela se sinta existindo. [...] Esse movimento [mostrou balançando o corpo para frente e para trás] não é psicose, autismo, criança cega é assim, têm maneirismos. Qual relação ela tem com mundo externo? Tem a questão política de taxar por autista, psicótico – já não tem gente trabalhando com 113 deficiente visual. [...] A criança quando nasce tem evolução psicomotora – rolar, engatinhar, movimentos de pescoço – isso é adquirido pela visão, cai o brinquedo, ela olha; e também é cultural. Deficiente visual não tem nada disso, se o brinquedo escapa da mão dele, ele desapareceu, é mágico. Demora muito mais para ele adquirir [esses conhecimentos], por isso a necessidade da Estimulação Precoce, para ensinar a evolução que deveria ter feito no estágio normal. Tem também os aspectos sociais, a perda de socialização, do desenvolvimento cultural, intelectual. Esse é mais ou menos o deficiente visual que vamos estar falando. Não estamos preocupados com aspectos pedagógicos aqui, mas sim quais as técnicas necessárias para integrar essa criança à sociedade. Neste trecho, em contexto pedagógico, o especialista aborda algumas anomalias que a “cegueira” pode gerar. Tais como: má formação dos traços de personalidade; demora na evolução psicomotora; perda em socialização, desenvolvimento cultural e intelectual. O termo “evolução” é vinculado a “estágios normais”, que a “cegueira” prejudica. A Estimulação Precoce, atendimento voltado a bebês, oferecido nos institutos especializados, procuraria regularizar tal demora na evolução. De modo similar à ú í a ú do “vidente” é acionada de modo relacional à do “cego”. Assim, o “vidente” pode ser considerado saudável ou lúcido quando se acionam representações onde o “cego” é identificado, por exemplo, como “emocionalmente abalado”. 114 Entre os trechos acima, a frase “eles têm tudo um parafuso solto” expõe a diferenciação “nós” e “eles”, no caso, “eles” têm parafuso solto e, em contraposição, “nós” temos parafuso firme. Nestes contextos, o “vidente” é o padrão de normalidade, possui comportamento e personalidade dentro do esperado. Ambos os atributos desenvolvidos até aqui operam com e ú a partir da identificação de regularidades e desvios dos padrões constituídos como normais pelos saberes em causa. O próximo par de atributos a ser tratado relativa ao “cego” e a é a relativa ao “vidente”. O primeiro atributo está em jogo quando o “cego” é implicitamente ou explicitamente considerado indefeso perante os perigos do entorno, como obstáculos, sendo mais suscetível a se ferir, por não percebê-los. Tal atributo pode possuir conexões que remetem à bíblia, como na parábola do cego "Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?” (BÍBLIA, 2011. Lucas, capítulo 6, versículo 39). Este trecho situa-se entre uma série de prescrições e advertências que Jesus faz numa proclamação a seus discípulos, entre elas estão “Se alguém vos bater numa face, oferecei-lhe também a outra” (versículo 29); “Não julgueis, e não sereis julgados” (versículo 37); “Ai de vós, se todos vos elogiam, porque era assim que os vossos antepassados tratavam os falsos profetas” (versículo 26). Em relação ao próprio texto, o “cego” que guia parece referir-se ao profeta e o “cego” guiado ao discípulo. A “cegueira” poderia ser 115 uma falsa profecia, que leva ambos a caírem no buraco. Para além do sentido metafórico da parábola, há a expectativa de que “cegos” são mais suscetíveis a caírem ou ferirem-se em obstáculos do entorno. Apesar deste estudo não poder avaliar os contextos em que esta representação específica foi forjada e acionada, ou seja, as interações entre os agentes, com suas posições e interesses. É possível supor que o campo religioso colabora na reprodução e atualização deste atributo. A parábola do cego também foi representada pelo pintor flamengo Pieter Bruegel, em 1568, reproduzida abaixo: Figura 9 – BRUEGEL, Pieter. . 1568. 1 original de arte, têmpera sobre tela; 85,5 x 154 cm. Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles. Na imagem há seis “cegos”, que podem ser identificados por alguns sinais. Entre eles, a de madeira, a qual todos seguram. Contudo, este equipamento não está sendo utilizado para rastrear o chão, pois estão apoiados uns nos ombros dos outros ou segurando a bengala do da frente. Outro 116 sinal é referente aos , na pintura figuram cavidades oculares profundas, ausência de olhos, olhos fechados e olhos esbugalhados. O cenário é uma vila com igreja. Quanto às vestimentas, usam chapéus, capas, crucifixos, cantis, bolsas, etc. O primeiro “cego”, que puxa a fila, aparece caído de costas; o segundo está desiquilibrado e caindo; o terceiro está na iminência de cair; e os outros três permanecem caminhando. A ausência de sinais relativos a ferimentos, como sangue, hematomas e fraturas, pode denotar que não se machucaram com gravidade. Esta pintura também representa “cegos” como suscetíveis a cair, sendo indefesos aos obstáculos, no caso, uma vala. As caneleiras usadas pelo terceiro “cego” também podem denotar tal por ser um recurso para proteção do corpo. De modo semelhante ao campo religioso, este estudo não pretende avaliar o contexto específico em que esta representação foi forjada e os contextos em que foi acionada posteriormente. Entretanto é plausível supor que o campo artístico também pode ter contribuído para a reprodução e atualização desta representação da “cegueira”. Em meu trabalho de campo, esta representação aparece como senso comum, sendo reconhecida e imputada de modo geral. A é acionada geralmente em contextos identificados como perigosos ou potencialmente perigosos, aos quais se supõe que não seriam percebidos. A seguir alguns exemplos: 117 [Instituto especializado] As funcionárias estavam limpando com jato de água a entrada do prédio e os alunos estavam indo naquela direção. situação, Quando os saíram professores correndo e viram a berraram afobados: “Cuidaaaado!!! Água!”. [Instituto especializado] Diego estava sentado no chão balançando [seu corpo para frente e para trás], quando a professora falou “para de balançar, que eu e a Andrea já estamos ficando tontas e se tiver alguma coisa na sua frente você pode bater a cabeça”. No primeiro trecho, num contexto pedagógico, o chão molhado foi identificado como perigoso e gerou uma reação desesperada dos professores para proteger os alunos tidos como indefesos. Neste caso, a imputação da é dada implicitamente através da própria reação dos professores e pelo alerta de “cuidado”. No segundo trecho, em contexto pedagógico, balançar é colocado como potencialmente perigoso, referindo-se ao risco de bater a cabeça. Nesse caso, a professora implicitamente imputou que o aluno é suscetível a ferir-se por não perceber o risco que corre. Os exemplos abaixo também acionam a mencionando-se um perigo em específico – a corrida, que pode suscitar colisões e quedas. Sua proibição é imputada como uma medida de precaução. 118 [Instituto especializado] Estava no corredor com a professora, aí vieram alguns alunos correndo, ela disse: "não corre, que você ainda vai bater na pilastra”. [Indo para o aniversário de uma amiga em um restaurante] Ao atravessar a avenida Anselmo grita para Lia: “não corre, já viu ceguinho correr?”. Lia respondeu: “eu corro!”. [Instituto especializado, sala de aula] A professora falou para o Gilson buscar o Alan: "corre lá e busca ele”, aí se tocou do que havia dito e acrescentou “mas sem correr!". No primeiro exemplo, num contexto pedagógico, a professora imputou a proibição de correr, que implicitamente denota a perante situações perigosas como “bater na pilastra”. O segundo trecho, num contexto de coleguismo, no cenário de uma avenida, o ator imputa a interdição da corrida “não corre!” e justifica através do estereótipo “ceguinho não corre”. A amiga negou as imputações, contradizendo-as com a frase “eu corro!”. O último trecho, num contexto pedagógico, também aborda a proibição da corrida de um modo quase cômico em virtude da contradição “corre lá, mas sem correr”. Neste trecho tal proibição também aciona implicitamente a . Além da restrição da corrida, outras medidas de precaução podem ser tomadas em nome da . A seguir, um exemplo: 119 [Instituto especializado, saguão] Estávamos conversando sobre shopping centers, Lia falou “acham deficiente visual tapado”. Perguntei por que, o Leo respondeu “acham que pode acontecer alguma coisa com você” e o Henrique explicou “você tem que dizer a loja que você vai e os seguranças te levam”. Perguntei: “se você quiser tomar sorvete, o cara fica do lado esperando?”. Lia contou que no Shopping Y dá para dispensar o segurança, Henrique falou que no Shopping W tentou, mas não deu. O Anselmo disse que é coisa de segurança chato e que tem que pedir para falar com o superior. Neste trecho, que se refere a um contexto de lazer, no cenário de um shopping, a frase “acham que pode acontecer alguma coisa com você” refere-se à suscetibilidade de ferir-se, imputando a . O acompanhamento do segurança seria uma precaução acionada. Já na frase “acham deficiente visual tapado” há a negação e desqualificação deste atributo, que se relaciona à Com relação à . e do “vidente”, de modo relacional, nos trechos acima o “vidente” figura como o defensor, aquele que percebe o perigo, dá o alerta ou toma medidas de precaução para proteger ou defender o “cego”, que é tido como indefeso. O par de atributos seguinte é a em relação à do “cego” do “vidente”. O “cego” é qualificado como incapaz quando se reconhece que ele não consegue praticar um ato previsto, por não possuir as capacidades tidas 120 como necessárias, tais como: saberes, técnicas, instrumentos, etc. Nestas situações, um ator considerado capacitado pode oferecer ajuda, procurando capacitar – estabelecer os requisitos necessários –; ou praticando a ação prevista pelo ator , do modo total ou parcial. Abaixo seguem algumas situações onde a imputada através da impossibilidade de é conseguir, respectivamente, ler e servir-se: [Saída de um instituto especializado] A mãe do Marcos contou que a psicóloga do instituto X falou que o Marcos era autista e nunca ia conseguir ler. Ele chegava lá e ela não estava, dava só um copo plástico para ele brincar, desestimulava, ele não gostava de ir. Prosseguiu dizendo “ele não é autista, é que teve uma cirurgia traumática de transplante de córnea quando era bem pequeno. Imagina se não ia conseguir ler? É o melhor aluno da sala hoje”. [Casa de uma amiga] Fomos almoçar, a empregada serviu os DVs, para mim [única vidente da turma] ela disse algo como “você consegue se servir, né?”. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a mãe explicita que a psicóloga avaliou que seu filho nunca conseguiria ler, mesmo antes de qualquer tentativa, sendo, portanto, incapaz de alfabetizar-se. A mãe também nega a classificação de “autista”, remetendo a outras representações 121 ligadas às como o “trauma” decorrente de uma “cirurgia de transplante de córnea”. No segundo trecho, a é acionada na frase “você consegue se servir, né?” dirigida apenas a um dos atores, comparativamente imputando que os demais não conseguiriam, sendo incapazes de antemão. Já nos exemplos abaixo se aciona a através da imputação da necessidade de ajuda. Quando a ajuda é solicitada ou oferecida a outro ator, a pode ser acionada para justificá-la. [Instituto especializado] As professoras estavam falando sobre a entrada dos alunos na escola: “mas aqui não é uma escola normal, não é só deixar o aluno na portaria e pronto, tem que ajudar a subir”. [Instituto especializado, estava trabalhando na Festa Junina. Eu barraca da pesca] Vieram à barraca para pescar: o pai, a mãe e seu filho, que é aluno do instituto. A mãe ia ajudar o filho na pescaria, eu disse que não precisava. Então, a criança pescou o peixe e o pai ficou mais feliz que a criança “você conseguiu!!!”. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a professora indica a necessidade de ajudar os alunos a subirem até a sala de aula por serem considerados implicitamente como “anormais” e, deste modo, incapazes de subirem sozinhos. 122 No segundo exemplo, num contexto lúdico, a mãe oferece ajuda pressupondo que seu filho não conseguiria realizar a pescaria. O pai, ao surpreender-se com o sucesso do filho, demonstra implicitamente sua expectativa de que a criança seria incapaz de pescar. Com relação à do “vidente”, de modo relacional, nos trechos acima o “vidente” figura como aquele que possui os pré-requisitos necessários para conseguir praticar as ações as quais os “cegos” não conseguiriam. De modo geral, o “vidente” também é aquele que oferece ajuda, capacitando ou desempenhando a tarefa pelo ator incapaz. O quinto par de atributos da tabela refere-se à do “cego” em relação à do “vidente”. O “cego” é tido como dependente quando se identifica que o mesmo precisa de outro ator para praticar uma ação prevista, seja por sua , etc. A acionada através necessariamente, da numa também pode ser “ajuda”. A dependência, “ajuda” implica, momentânea ou recorrente, do outro ator. A seguir alguns exemplos: [Instituto especializado] Márcia falou que a Odila está se sentindo excluída, porque depende da irmã para se locomover. Disse que sabe bem o que é isso, que depende do seu marido. Ele estava sentado um pouco afastado, mas ouviu, olhei para ele e ele balançou a cabeça em sinal de positivo. 123 [Instituto especializado, hall de entrada] Cheguei, estava o Cláudio e a Márcia, eu fiz a besteira de perguntar para a Márcia se ele estava na cola dela hoje, ele disse que estava infelizmente, ela disse que não consegue liberar ele, mas vai conseguir. [Instituto especializado, visita de apresentação do instituto] O professor estava falando sobre empregabilidade, falou que se a empresa pega um cego que seja, por acaso, preguiçoso, dependente... Então, eles generalizam “todo cego é dependente e preguiçoso” e ficam com receio de contratar outros. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a é acionada “depender” de outro explicitamente ao afirmar-se ator, no caso, a irmã, para “se locomover”. O ator também imputa a si mesmo a dependência do marido para a locomoção. Neste caso, a é acionada pela própria categoria “depender”. No segundo trecho, num contexto de coleguismo, implicitamente aciona-se a do outro ator na frase “não consegue liberar ele”, a figura como um aprisionamento do ator, de modo não desejável como denota o termo “infelizmente”. O mote da pode referir-se a um acompanhamento cotidiano, como denota a expressão “na cola de alguém”. No terceiro trecho, num contexto apresentação dos serviços do instituto, o ator indica a construção de generalizações pelas empresas “todo cego é dependente e 124 preguiçoso” a partir de casos particulares. Contudo, não por acaso o ator acionou a do “cego” como um exemplo de estereótipo. Nos próximos exemplos a imputação da é mais implícita, a impossibilidade do “cego” de praticar uma ação sozinho, impõe a do outro ator. [Instituto especializado] A turma saiu da sala e a Laura ficou parada na porta. Uma funcionária estava passando e falou algo assim, “a Laura lá na porta, ela não vem, tem medo de andar sozinha”. Gritei para ela “vem Lau! É só ir reto”, a funcionária também falou “não tem nada na frente, é só vir”, mas ela ficou parada. Aí a professora, que saia da sala, deu o braço e a trouxe. A funcionária disse “também, sempre tem alguém para trazê-la”. [Instituto especializado] Joyce disse que queria ir ao banheiro, mas não consegue ir sozinha. Perguntei se fez O.M. [curso de Orientação e Mobilidade], respondeu que não, por isso não consegue e porque sempre está com alguém. No primeiro trecho, num contexto pedagógico, a é acionada através da impossibilidade do ator de locomover-se sozinho, situada na frase “tem medo de andar sozinha” e de modo não verbal pela ação da professora ao trazer a aluna. Houve uma tentativa de fazer a menina andar sozinha, mas esta se resultou frustrada. 125 No segundo trecho, num contexto de coleguismo, a é acionada na frase “não consegue ir sozinha”, que também se refere à necessidade de outro ator para a locomoção. O ator justifica tal dependência por não ter feito o curso que confere a técnica necessária para tanto e pelo acompanhamento contínuo de outros atores. Quanto à do “vidente”, esta é acionada de modo relacional à do “cego”. Assim, o “vidente” pode ser considerado independente quando está em jogo representações onde o “cego” é “dependente”. O “vidente” é o ator do qual o “cego” depende, aquele que o “acompanha” e presta “ajuda”. O próximo par de atributos a ser desenvolvido é a do “cego” e a do “vidente”. A está em jogo quando o ator é qualificado como “criança” ou recebe tratamento assim condizente. É possível supor algumas relações entre as representações da “infância” e da “cegueira”, estas seriam dadas pelo compartilhamento de alguns atributos – tanto o “cego” quanto a “criança” podem ser qualificados como , e . A seguir alguns exemplos: [Instituto especializado] Tais [professora] disse que a Virgínia trata os alunos como se fossem crianças, “eles não são crianças”, “se faltarem eu vou conversar com eles, não dar castigo”. [Instituto especializado, visita de apresentação do instituto] O professor prosseguiu a questão 126 da empregabilidade, ele disse que se falam para um chefe de departamento de uma empresa: “ah, vai entrar um cego aqui”, então o cara já fica desesperado, nem dorme a noite, acha que vai ter que ser babá, ajudar no banheiro, fazer o trabalho dobrado. [Avenida Paulista com amigos] Entramos no metrô, veio um funcionário, perguntou se eu estava com eles, disse que sim, mas que cada um ia descer numa estação. Aí perguntou as estações e disse que ele os levava. Então, pediu para eles fazerem fila indiana e colocar um a mão no ombro do outro. Afff, foi meio constrangedor, movimentaram como para eles formar não a se fila, o funcionário foi pegando eles e colocando um atrás do outro. A Rita não tinha colocado a mão no ombro do da frente, então, o funcionário veio pegou sua mão e colocou. O funcionário foi puxando a fila, mas não deu certo, logo eles estavam todos de braços dados, mais ou menos, um do lado do outro. No primeiro trecho, num contexto de coleguismo, a é acionada através de sua negação, que denota a própria presença do que se nega: “eles não são crianças”. A é relacionada à ausência do diálogo e à presença do castigo. No segundo trecho, num contexto de apresentação dos serviços do instituto, a é acionada na frase “acha que vai ter que ser babá”. Na metáfora empregada, o chefe 127 corresponde à babá e o “cego” à criança, que precisa de ajuda para realizar atividades triviais. No terceiro trecho, num contexto de prestação de serviço, no cenário do metrô, a fila indiana ou trenzinho, com as mãos nos ombros, solicitada pelo funcionário pode remeter a representações ligadas implicitamente a à “infância”, imputando . Conforma indica Foucault (2009, p.141), a fila é uma forma disciplinar para coordenação dos movimentos e controle no espaço escolar: A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; […]. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos alinhados. Sobre a do “vidente”, de modo relacional, nos trechos acima o “vidente” figura como aquele que toma conta ou cuida, impondo a disciplina, como a figura da “babá” citada. Outro par de atributos é a do “vidente”. A ç ç do “cego” e a ç está em jogo quando o ator é, explicita ou implicitamente, qualificado como coitado, digno de pena e dó, em virtude da “cegueira”. A ç pode também se relacionar à “caridade”, que é uma das virtudes teologais católicas, corresponde a “amar o próximo” e opera como base legitimadora do assistencialismo cristão. No excerto abaixo, Mauss (2007) situa a “caridade” 128 como uma dádiva não retribuída diretamente, que inferioriza quem a aceitou e confere lucros simbólicos indiretos ao doador. A ç identificada promove a dádiva “caridade” como uma recompensa que repõe a assimetria. A dádiva não retribuída ainda torna inferior quem a aceitou, sobre tudo quando é recebida sem espírito de reciprocidade [...]. A caridade é ainda ofensiva para quem aceita, e todo o esforço de nossa moral tende a suprimir o patronato inconsciente e injurioso do rico “esmoler” (MAUSS, 2007, p.294). A seguir alguns exemplos extraídos do meu caderno de campo: [Instituto especializado] A professora perguntou “quando o braile veio para o Brasil?”, não souberam responder. Então ela disse que começou no [colégio] Benjamin Constant e foi para outros lugares, “Aí veio para São Paulo, a sociedade, as senhoras católicas, a igreja pensaram ‘coitadinhos, não têm escola’”. [Institutos especializado, Festa Junina, estava trabalhando na barraca do correio elegante] A barraca estava com movimento fraco até o locutor dizer que queria receber mensagem. Aí vieram umas três pessoas para mandar para ele, entre elas uma senhora que disse “tadinho, ele também é cego”. Ela queria mandar em tinta, aí eu expliquei que teria de ser em braile para ele entender, ela aceitou. 129 [Casa de shows com amigos] Enquanto aguardávamos o início do show, falávamos que geralmente o primogênito não tem problema, mas o segundo filho sim. Aí o Fred, que é o filho do meio, entre dois irmãos videntes, disse “podia ter sido com a Vivian [irmã mais nova]”. Então a Bruna falou “ai coitada!”. Por fim, o Juliano disse “se Deus fez você é porque você pode aguentar, talvez ela não conseguisse”. No primeiro exemplo, num contexto pedagógico, a ç é acionada, pela professora, através do termo “coitadinhos”, referindo-se implicitamente aos “cegos” de São Paulo, numa época passada. Tal imputação foi atribuída a “a sociedade, as senhoras católicas, a igreja'”, marcando relação entre a ç e o domínio religioso católico. A ç figura implicitamente como propulsora de uma caridade relativa à criação de escola aos desprovidos, àqueles que “não têm escola’”. No segundo trecho, num contexto festivo, a ç é acionada pela senhora na frase “tadinho, ele também é cego”, implicitamente indicando que apesar de locutor, o ator ainda é digno de piedade por ser “cego”. O envio da mensagem também pode configurar caridade. No terceiro trecho, num contexto de coleguismo, a ç é acionada na frase “ai coitada”, expressa em reação ao desejo do ator de que sua irmã tivesse nascido “cega” em seu lugar. Apesar de comparativamente imputa a a frase ç referir-se à irmã, ao irmão. No trecho 130 também figuram representações religiosas, que são proferidas para justificar a ocorrência da “cegueira”, encarada como um fardo a ser aguentado. A cegueira provoca comoção ou furor enquanto reações imediatas da “caridade”, conforme expressam os exemplos abaixo: [Aniversário de uma churrascaria] Chegamos colega e em pegamos uma uma mesa, o gerente já veio falar que fariam preço especial, não precisamos nem pedir! O Renato disse que é normal, é sempre assim, oferecem desconto. Como era sábado fizeram preço de durante a semana. [Aula de Orientação e Mobilidade] Estávamos andando pela rua, quando um moço veio correndo até nós e perguntou se queríamos ajuda, que ele levava a gente com o carro da firma. A professora agradeceu e disse que não precisava. Depois ela disse para mim que isso acontece bastante. No primeiro trecho, dado num contexto comercial, a comoção pode referir-se a pronta atitude do gerente em dar um preço especial, por se tratar de um grupo de “cegos”. Tal desconto configura-se enquanto caridade por ser uma dádiva que não se pode retribuir diretamente. No segundo trecho, dado num contexto de passagem, a comoção pode referir-se à corrida do moço para prontamente oferecer uma carona, por se tratar de um “cego”. A carona configura-se como caridade também por não ser retribuível. 131 A respeito da ç modo relacional à do “vidente”, esta é acionada de ç do “cego”. O “vidente” tido como agraciado e afortunado, sendo aquele que promove a caridade ao coitado do “cego”. Outro par de atributos é a do “vidente”. Este do “cego” e a atributo refere-se à possibilidade de percepção ligada aos sentidos. A é imputada quando o “cego” é considerado mais sensível, por possuir audição, olfato e paladar mais desenvolvidos que os do “vidente”, em virtude da “cegueira”. A seguir, alguns exemplos: [Aula de Orientação e Mobilidade] A aluna disse que percebeu a esquina, porque agora a rua está subindo, com uma pequena inclinação. Eu não tinha reparado, aí falei para a professora que demorei a perceber, então ela falou: “quem enxerga vira retardado, não percebe nada”, disse que são detalhes sutis, como a direção do vento e o som do carro. Também falou “a mulher chega com mais medo, mas depois se sola mais que o homem, tem mais sensibilidade”. [Instituto especializado, sala de aula] A professora falou “a humanidade está perdendo os [outros] sentidos, é muito visual”. [Instituto especializado, reunião com uma professora] Manuela falou "a deficiência é limitação, mas não é que a percepção seja falha. Só concluímos que é falho se acharmos que tudo tem que passar pela visão e se 132 comparar com o vidente. Os canais de percepção deles são outros". [Quitanda perto do instituto especializado, comprando frutas para uma atividade] Vitor falou que no filme ã tem um moço cego que sabia se o melão estava bom batendo nele e ouvindo seu som. O professor parece ter gostado da ideia e os dois começaram a bater nos melões. Tentaram alguns, mas acho que desistiram. No primeiro trecho, num professora aciona a contexto pedagógico, a do “vidente” e, de modo relacional, a do “cego”. O “vidente” “não percebe nada”, já o “cego” percebe sutilezas, que são utilizadas em sua locomoção, tais como a direção dos ventos e o som dos carros. A professora também aciona uma distinção de gênero, a “mulher cega” inicialmente tem mais medo do que o “homem cego”, mas no decorrer do curso ela se “solta mais” por possuir maior . No segundo trecho, num professora aciona uma contexto pedagógico, a generalizada, relativa à “humanidade”, através da perda dos outros sentidos pelo domínio da visão. No terceiro trecho, num contexto pedagógico, o ator indica que os “cegos” teriam outros canais de percepção, uma diferenciada, mas não a especifica. No último trecho, num coleguismo, o filme citado indica a contexto comercial e de do “cego” por 133 possuir uma audição qualificada que reconhece o estado do melão em seu interior. Com relação à do “vidente”, esta é citada explicitamente no primeiro exemplo e de modo geral no segundo. O “vidente” é considerado com audição, tato e paladar menos desenvolvidos, por enxergar. O último par de atributos é a do “cego” e o do “vidente”. Conforme indica Amaral (2003), desde a Antiguidade o “cego” é considerado como aquele que vê além da aparência enganadora, alcançando a essência. Tal pode ser inferido a partir do personagem “cego” Tirésias, da tragédia É , de Sófocles: Corifeu - Mas está aí quem pode descobrir o criminoso! Afinal trazem o vidente iluminado! Se algum mortal tem acesso à verdade, é ele! Édipo - Tirésias! Tu que tudo percebes, do mais claro ao mais denso dos mistérios, alto nos céus ou rasteiro na terra, tu hás de sentir, mesmo sem poder ver, a desgraça que assola a cidade (SOFOCLES, 1976, p.22). No exemplo acima, o “cego” é colocado como um “vidente iluminado”, aquele que tem acesso à verdade. Este mesmo princípio também figura na imagem abaixo, uma alegoria da Justiça, representada como uma mulher que possui os olhos vendados para enxergar a verdade além das aparências: 134 Figura 10 – CESCHIATTI, Alfredo. ç . 1961. 1 original de arte, granito; 330 x 148 x 40 cm. Supremo Tribunal Federal, Brasília. Foto por: Niels Newton Cauper de Lima. A seguir, indico alguns exemplos, referentes a este atributo, obtidos em meu trabalho de campo: [Apresentação do maestro João Carlos Martins num evento corporativo] Após a sua apresentação, no fim do seu discurso, o maestro contou que doou seu primeiro cachê para um instituto de cegos: “para aqueles que não podem ver a luz material”. [Missa com o Cardeal de São Paulo na capela de um instituto especializado] O Cardeal comentou a leitura sobre Nossa Senhora do Rosário e disse “Maria, que não era cega e os apóstolos, que também não eram cegos, não conseguiam enxergar bem naquele momento, enxergar o mais importante”. 135 No primeiro exemplo, num contexto de apresentação, o maestro afirma que os “cegos” são aqueles que não podem ver uma luz em específico – a luz material. Deste modo, implicitamente, o ator indica que os “cegos” teriam acesso à outra luz, no caso imaterial. O segundo exemplo, no contexto de um culto, o cardeal indica que Maria e os Apóstolos não eram “cegos”, porém não enxergavam bem – o que é mais importante. Assim, os “videntes” enxergam mal ou enxergam o que é menos importante; em contraposição, os “cegos” enxergam bem, o que importa. Na tabela apresentada no início deste capítulo, a categoria “baixa visão” está situada espacialmente entre as categorias “cego” e “vidente”. Em termos de atributos, não identifiquei atributos específicos a esta categoria. Contudo, os atores assim identificados parecem compartilhar de modo mais brando e flexível tanto os atributos da “cegueira”, quanto os da “vidência”. No caso, o ator “baixa visão” pode ser considerado um pouco: incapaz ou capaz, dependente ou independente, etc. A primeiro categoria capítulo, equivalente pode “meio-cego”, relacionar-se analisada também a no este compartilhamento de atributos e a esta posição intermediária entre os dois polos citados. A seguir um exemplo: [Instituto especializado. Festa junina] Veio uma moça à barraca [do Correio Elegante], ela disse que era baixa visão e também quis olhar as mensagens em braile. Perguntei se lia o braile com os olhos, respondeu que sim. 136 Contou que lê bem, vai para todo lado, consegue andar sozinha e que dá para se defender mais ou menos. No exemplo acima, num contexto festivo, alguns dos atributos desenvolvidos neste capítulo foram acionados. A frase “consegue andar sozinha” refere-se à , mas a necessidade de afirmá-la pode supor que tal não seria evidente. A frase seguinte “dá para se defender mais ou menos” remete a , contudo termo “o mais ou menos” situa explicitamente a posição ambígua entre os polos com relação ao compartilhamento dos atributos. Dos nove pares de atributos mencionados apenas dois deles são, na maioria das situações, positivados com relação ao “cego” e depreciativos com relação ao “vidente”. Estes seriam a e a . Conforme já apontado, este trabalho não tem a pretensão de abarcar a totalidade dos atributos possíveis, mas se escolheu aqueles mais recorrentes no trabalho de campo realizado. Por hora, exponho outra forma de imputação dos atributos, especialmente daqueles considerados depreciativos ao “cego”. Esta se refere à surpresa ou exaltação quando se identifica atributos positivados do “vidente” no ator “cego”, denotando assim a expectativa contrária. Por exemplo, a surpresa ou exaltação quando o “cego” é reconhecido como , etc., indica a expectativa de que fosse , etc. Nessas interações, o ator é tratado como uma espécie de “cego-herói”. Contudo, tal 137 “heroísmo” imputa e reitera os atributos depreciativos do “cego” pela expectativa contrária. A seguir, um exemplo: [Voltando de um show com amigos] Falávamos de umas pessoas sem noção que fazem perguntas estúpidas. Bruna disse que no banco uma senhora perguntou para sua colega como que ela fazia as coisas e a colega respondeu que era independente, trabalhava e tinha até uma filha. Aí a senhora ficou abismada, achou aquilo uma grande coisa. Bruna também falou das pessoas que falam “coitados”, o Juliano disse, “são ignorantes”, falamos que melhorou ultimamente, mas ainda falta muito. No exemplo acima, que remete a um contexto comercial, a reação “abismada” da senhora com relação à “cega” que se afirma como independente, com trabalho e filho, implicitamente indica a expectativa contrária, de que ela fosse dependente, sem trabalho e incapaz de criar um filho. Além da e da atributo da , o exemplo refere-se ao ç , através do termo “coitados”, pontuando que tais imputações são ignorância. De modo geral, este capítulo procurou abordar os atributos enquanto estereótipos solidificados historicamente, que qualificam o ator através da performance dos mesmos. Explicitei, entre outros pontos, que os atores classificados como “cegos” são qualificados, em muitas situações, como: doentes, frágeis, depressivos, indefesos, incapazes, 138 dependentes, infantis, coitados, sensíveis, clarividentes, entre outros qualificativos não contemplados nesta pesquisa. Também é possível notar que os atributos podem ser interdependentes, justificar a por exemplo, a parece ; e a instituem a e a . O presente capítulo encerra a análise das representações propostas para esta dissertação. O próximo capítulo aborda a negociação das mesmas conforme interesses específicos. Já o último capítulo trata dos processos de incorporação destas representações. 139 4. Negociação de representações: rendimentos simbólicos Nos capítulos anteriores expus categorias, sinais e atributos acionados em performances chamadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos. Neste capítulo, pretendo tratar como os atores negociam tais representações, tendo em vista as expectativas criadas nas interações. O desfecho de tais negociações também pode envolver rendimentos simbólicos e culminar na reprodução destas representações. A seguir detalho tal conformação. As expectativas são previsões de como se dará a interação, são criadas a partir da identificação das representações dos atores envolvidos e de informações obtidas anteriormente em interações passadas ou por outros meios. A informação a respeito do individuo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar. Assim informados, saberão qual a melhor maneira de agir para dele obter uma resposta desejada (GOFFMAN, 2009, p.11). O desfecho da interação depende do reconhecimento e imputação de representações em relação às expectativas 140 estabelecidas pelas partes. Se tais acionamentos corresponderem às expectativas, os atores recebem um tratamento adequado e o desfecho da interação é satisfatório. Mas, se os acionamentos não correspondem às expectativas, o desfecho da interação pode envolver algum embaraço ou desapontamento. Também é possível que numa mesma interação, certos atores tenham suas expectativas atendidas e outros não. Apesar das expectativas criadas, o desfecho da interação não está garantido de antemão e permanece imprevisível. As expectativas de como se passará a interação também podem envolver interesses diretos, rendimentos específicos. Em geral, tratam-se de bens simbólicos valorizados por conferir: prestígio, comodidades, riquezas, etc. Essa noção aproxima-se do conceito de “capital” de Bourdieu, que considera tais bens como produto de relações anteriores de concorrência, cuja distribuição desigual, posiciona os agentes no campo de poder, sendo seu instrumento de batalha ou moeda de jogo: [...] o campo do poder é também um campo de lutas, e talvez, a esse titulo, comparado a um jogo: as disposições, ou seja, o conjunto das propriedades incorporadas, inclusive a elegância, a naturalidade ou mesmo a beleza, e o capital sob suas diversas formas, econômica, cultural, social, constituem trunfos que vão comandar a maneira de jogar e o sucesso no jogo (BOURDIEU, 1996, p.24). 141 O trecho acima menciona os capitais cultural, social e econômico. O capital cultural relaciona-se à educação, ao investimento educativo e possui três estados: o incorporado, enquanto conjunto de percepções; o objetivado, materializado em bens culturais; e o institucionalizado, conferido através de certidões de competência cultural, como o diploma (BOURDIEU, 2007, p.74). O capital social é ligado às redes de relacionamentos e filiações. O capital econômico refere-se às riquezas materiais. Além dos capitais citados, o capital simbólico remete à honra, ao prestigio e ao status (BOURDIEU, 2008, p.59); e também há capitais específicos de acordo com campos particulares: Falar de capital específico é dizer que o capital vale em relação a um certo campo, portanto dentro dos limites deste campo, e que ele só é convertível em outra espécie de capital sob certas condições. (BOURDIEU, 2003, p.121). Conforme explicitado acima, os capitais valem de acordo com os campos onde circulam. O trecho ainda aborda a conversão, que é a principal propriedade dos capitais: estes podem ser reconvertidos uns nos outros. Apesar de Bourdieu não abordar a interação face a face propriamente, é possível sugerir que as lutas simbólicas também se travam nesta e que os capitais podem ser instituídos a partir de imputações e reconhecimentos dados interativamente. Deste modo, pretendo apontar interações com acionamento de representações, que também sugerem 142 rendimentos simbólicos específicos. Contudo, tal análise faz apenas de uma aproximação pontual entre “capital” e “interação”, não pretende constituir um campo de poder e posicionar os agentes no mesmo. Na interação, os rendimentos simbólicos podem ser obtidos de modo implícito ou explícito, sendo reconhecidos e imputados pelo ator contracenante e/ou pela plateia. As mesmas representações podem ser acionadas em diversas interações para alçar diferentes rendimentos. Neste capítulo evidencio tais possibilidades. A seguir procuro fornecer exemplos de interações onde a presença ou ausência de rendimentos simbólicos sejam bem evidentes. Inicialmente trato daquelas com desfechos satisfatórios, onde as expectativas devem ter sido atendidas. Na sequência, exponho um exemplo relativo a uma interação mal sucedida, onde provavelmente as expectativas não se cumpriram. Quanto aos exemplos com desfechos satisfatórios, estes foram divididos em três partes, conforme os rendimentos mais evidentes, sendo eles: prestígio, riqueza e comodidade, que correspondem aos principais identificados em campo. Abaixo aponto dois exemplos onde se acionam algumas representações analisadas envolvendo rendimentos em termos de prestígio: [Caminho para o metrô] Estávamos voltando [de um instituto], eu guiava o Pedro e o Carlos, um em cada braço. Uma hora, um senhor, parado em frente a uma casa, falou 143 “parabéns, menina”. Eu sorri para ele meio sem graça e continuei andando. Também notei que algumas pessoas olhavam e sorriam para mim. [Instituto especializado, Festa Junina] Na hora dos discursos, a mãe do Marcos falou no microfone que tinham que aproveitar essas instituições [especializadas que acabaram de apresentar seus trabalhos], “porque infelizmente as pessoas acham que nossos filhos não podem fazer de tudo”. Foi aplaudida. No primeiro exemplo, num contexto de deslocamento, um senhor provavelmente reconheceu sinais da “cegueira” dos atores guiados e conferiu uma gratificação verbal à atriz condutora por guiar dois “cegos”, investindo-a de prestígio. Os outros sorrisos da plateia também podem conferir reconhecimentos semelhantes, de modo não verbal. O segundo exemplo, num contexto festivo, a afirmação “infelizmente as pessoas acham que nossos filhos não podem fazer de tudo” nega o atributo de , sugerindo seu oposto, que os filhos são capazes. Nessa situação, o aplauso confere um reconhecimento coletivo da plateia, proporcionando rendimentos em termos de prestígio, que pode ser vinculado às representações de uma mãe consciente e batalhadora. Os próximos dois exemplos apontam os rendimentos econômicos e simbólicos como os mais evidentes: 144 [Apresentação de alunos de um instituto especializado num evento corporativo] O lugar era bacana, auditório grande e chique, nós estávamos passando o som no palco. Enquanto arrumávamos as coisas, a coordenadora do evento falou meio rindo responsável para do mim e para uma instituto: “tem que parecer que eles são bem coitadinhos para [as empresas associadas] darem dinheiro para a gente”. [Avenida Paulista] Vi um homem cego pedindo esmola. Passei por ele e decidi voltar, falei que fazia pesquisa sobre deficiência visual e era voluntária em dois institutos, perguntei se ele os conhecia. Disse que sim. Eu tentei puxar um papo, apesar da situação não ser muito propícia, pois podia estar afastando as pessoas que lhe dariam esmola. Perguntei se ele sempre ficava por aqui. Disse que não, que mais agora perto do Natal e quando quer complementar sua renda. Perguntei se ganhava o benefício, disse que sim. Perguntei se poderia tirar uma foto para minha pesquisa, ele esboçou um sorriso e fez pose. 145 Figura 11 – Pedinte “cego” O primeiro exemplo, num contexto de prestação de serviço, no caso, a contratação de uma apresentação musical, a coordenadora do evento acionou o atributo da ç , “tem que parecer que eles são bem coitadinhos”, visando 146 rendimento econômico “para [as empresas associadas] darem dinheiro para a gente”. Em troca, tais empresas possivelmente recebem rendimento em termos de prestígio, relacionados à solidariedade e responsabilidade social. Se assim for, ambas as partes têm suas expectativas alcançadas conferindo um desfecho satisfatório à interação. O segundo exemplo, num contexto de mendicância, corresponde ao último trecho escrito e à imagem. O trecho agrega alguns dados contextuais à imagem, tais como: detalhes sobre a sua produção – tirada após breve conversa e com o consentimento do retratado, que fez uma pose ou gestos para a câmera. Além disso, o texto indica a periodicidade e a motivação da mendicância: complementação de renda, em situações específicas, como o Natal. A imagem possibilita apreender sinais do cenário e do corpo dos atores. Quanto ao cenário, a quantidade considerável de transeuntes e de equipamentos urbanos (metrô, orelhões, piso tátil, calçada larga), bem como a fachada das construções com letreiros, podem caracterizar o local como movimentado e comercial. Quanto ao corpo, o homem do primeiro plano está apoiando uma usando ó aberta e , sinais detalhados no segundo capítulo; a sua postura de joelhos, com as mãos postas e o próprio contexto de mendicância remetem a representações religiosas, um suplício, e acionam implicitamente o atributo da ç , onde o ator é qualificado como “coitado” ou digno de “pena”, que, conforme explicitamos anteriormente, também se vincula à caridade. A frase do cartaz “dê uma ajuda para quem não 147 pode trabalhar” pode remeter ao atributo de no caso, de trabalhar. Com relação à negociação simbólica do exemplo, provavelmente o pedinte espera que as representações da “cegueira” sejam reconhecidas pelos transeuntes para gerar rendimentos econômicos. Já um suposto doador, estabelecido como aquele que é agraciado e capaz de trabalhar, pode obter rendimentos em termos de prestígio ao ser considerado caridoso, bondoso ou piedoso, pelos que passam e sorriem, pelo próprio pedinte ou até por ele mesmo. Se assim se suceder, ambas as partes com suas representações reconhecidas e suas expectativas atendidas, conforma-se uma interação com desfecho satisfatório para os atores, com seus rendimentos distintos. O último grupo de exemplos refere-se, principalmente, a rendimentos em termos de comodidade: [Churrasco com amigos] Joyce virou para mim e disse: “você sabe, em terra de cego, quem tem um olho é escravo, busca uma água pra mim?”. Busquei, é óbvio. [Churrasco com amigos] Rita pediu para Joyce: “vai lá no mercadinho”; Joyce: “eu não, sou cega”; Rita retrucou “melhor, vão te dar tudo de graça”, Joyce debochando “aaaaah tá”. Ninguém acabou indo. No primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, a atriz acionou a categoria “cego” para alcançar uma comodidade – obter um copo de água. A representação foi reconhecida pelo 148 outro ator ao executar a tarefa. A sátira do ditado “em terra de cego quem tem um olho é rei” denota que a “cegueira”, tida, muitas vezes, por subordinação, pode ser revertida para dominância, em situações como esta. No segundo exemplo, num contexto de coleguismo, as atrizes negociam sobre a realização de uma tarefa indesejável, ir ao mercadinho, ambas tentam convencer a outra a fazê-lo em seu lugar. A autoimputação da categoria “cega” é acionada como uma desculpa para não realizar a tarefa “eu não, sou cega”. A atriz contracenante implicitamente reconhece a imputação anterior ao acionar o atributo da ç “melhor, vão te dar tudo de graça”. Com isto, ela procura convencer a outra de que ser “cega” é uma vantagem, pois pode gerar rendimentos econômicos. Contudo, a primeira atriz nega a atribuição com deboche “aaaaah tá”. Deste modo, as representações acionadas envolvem possíveis rendimentos econômicos e de comodidade. Acima indiquei interações com desfechos aparentemente satisfatórios, onde as representações acionadas foram reconhecidas. Abaixo aponto um exemplo de interação mal sucedida, onde as representações não foram reconhecidas, causando tensões na interação. Neste caso, os possíveis rendimentos também não foram efetivados. [Reunião com os pais num instituto especializado] Mãe do Vitor: “ele acha que vai à escola para fofocar e ver as meninas. Ele diz ‘não sei fazer, porque eu não enxergo, demoro para copiar a lousa e a professora já 149 apagou’. Ele tem é preguiça de estudar, de ler, mas Playstation aprende... Me irrito, é muito frustrante. A desculpa que usa é que não tem telelupa, quando conseguir não sei qual vai ser a desculpa”. O exemplo acima, relativo a um contexto familiar, refere-se a um filho que aciona a de acompanhar aulas e a carência de um equipamento para supostamente obter como rendimento comodidade e a complacência da mãe. Contudo tais acionamentos não são reconhecidos por ela, que os considera como “preguiça” e “desculpa”, já que o filho aprende videogame. Nesse caso, a interação não foi bem sucedida, o filho não obteve rendimentos e foi desmascarado pela mãe, que não reconheceu seus acionamentos e se sentiu irritada e frustrada. Além das interações com desfechos satisfatórios e insatisfatórios, que podem ou não envolver rendimentos simbólicos. Também há interações com desfechos surpreendentes que superam as expectativas. Abaixo, segue um exemplo: [Visita de uma turma de alunos de um instituto especializado à biblioteca braile de um centro cultural] O funcionário que nos atendeu estava dando alguns conselhos para os alunos: “na faculdade a aula é expositiva, o professor vai cantando. As pessoas que enxergam perdem, são menos atentas. A vivência dele [do professor] não se encontra em livro. No primeiro trabalho todo mundo 150 foge da gente, [pensam] ‘esse cego vai ser chupim’, só que eu tenho tudo no meu caderno. Eles não têm ou se têm é distorcido. Depois correm atrás de nós. No exemplo acima, referente a um contexto de coleguismo, no cenário de uma faculdade, o ator indica a expectativa dos seus colegas de que ele fosse “chupim”, ou seja, desfrutasse rendimento em comodidade ao obter nota conjunta sem trabalhar como os demais. Tal situação poderia gerar insatisfação para uma das partes, caso não reconheçam, por exemplo, uma ao ator. Contudo, a expectativa foi surpreendida, pois o ator possuía informações que os demais não possuíam, colaborando para o trabalho. Nesta situação, o rendimento se deu em termos de prestígio por alcançarem uma nota melhor. Acima abordei os desfechos da interação e os possíveis rendimentos, estimados ou não. A seguir aponto situações específicas onde o acionamento das representações parece variar em virtude do cálculo, mais ou menos consciente, de rendimentos diretos. performance dos Tais atores acionamentos e podem determinam inclusive a abarcar contradições: [Feira Cultural Inclusiva, organizada pela prefeitura] A Lia veio contar que foram no estande de equoterapia, mas só os deficientes podiam andar a cavalo. Aí a Júlia [neta vidente de uma colega deficiente visual] falou 151 assim para a atendente “eu sou celga” e conseguiu andar de cavalo, hehehe. [Instituto especializado] Estava conversando com a Michele: “inclusão nossa do dia a dia começa em casa, ensinar você a ter autonomia de pegar seu copo e tomar, fazer uma comida”. Só que há dez minutos ela pediu para eu pegar o café para ela, que estava ali do seu lado! No primeiro exemplo, dado num contexto de prestação de serviço, um dos atores alterou momentaneamente a sua performance diante de uma atendente na expectativa de obter um serviço que era proibido à performance anterior. O ator que performava a “vidência” acionou a “cegueira” através de uma autoimputação da categoria “celga”. Além da categoria, o cenário de uma feira relativa às “deficiências” pode ter colaborado no reconhecimento da atuação, já que o ator não apresentava sinais corporais da “cegueira”. É possível considerar que a atuação da “cegueira” foi reconhecida e gerou o rendimento esperado, pois a menina conseguiu andar a cavalo. No segundo exemplo, num contexto de coleguismo, o ator implicitamente acionou a , para obter um rendimento em termos de comodidade – receber um café. Contudo, algum tempo depois o ator nega a em sua fala, com relação a uma tarefa semelhante à mencionada anteriormente: “ter autonomia de pegar seu copo e tomar”. Neste caso, o ator possivelmente procurava obter rendimentos 152 em termos de prestígio, ao negar atributos tidos por desqualificativos. Este exemplo evidencia como o mesmo atributo pode ser afirmado e negado pelo mesmo ator em diferentes contextos interativos, a depender dos rendimentos envolvidos. De modo geral, os atores acionam as representações de modo variável, a partir das expetativas e, em certos casos, dos rendimentos. Se as expectativas forem alcançadas ou surpreendidas, as interações têm desfechos satisfatórios; se as expectativas forem quebradas, o desfecho da interação é insatisfatório. Ambas as situações podem ou não envolver rendimentos, calculados ou não. Contudo, não considero o rendimento como o único determinante dos acionamentos das representações – há diversos outros fatores como, por exemplo, os valores morais. Entretanto, os rendimentos podem ajudar a explicar acionamentos aparentemente contraditórios, como o do último exemplo. Além desses fatores, acionam-se apenas as representações que estão à disposição, sendo que quanto mais incorporadas, repetidas e automatizadas, provavelmente mais acionadas. Em hipótese, é razoável supor que a possibilidade de gerar rendimentos também pode colaborar na reprodução das representações. No âmbito da interação, a reprodução pode ser encarada enquanto um reacionamento das representações, mesmo que com certas alterações exigidas pelo confronto com um contexto representação específico. imputada Assim, é cada reconhecida vez e que uma proporciona 153 rendimento, os vários atores envolvidos podem apreender sua potencialidade. Uma representação rentável provavelmente continuará a ser acionada. Contudo, cada vez que uma representação é acionada é necessário que seja adaptada aos contextos, gerando a possibilidade de ser alterada e refeita na interação. Já as imputações contrárias, as negações ou não reconhecimentos das representações, ainda mais com a ausência de rendimentos, podem alterar e frear a reprodução das mesmas. Para além do âmbito da interação, é evidente que a reprodução das representações está ligada a saberes e a instâncias institucionalizadas. Nos capítulos precedentes forneço alguns indícios desta configuração, por exemplo: o atributo da está vinculado ao saber e ao campo da medicina e da psicologia; a ç saber e ao campo religioso; o sinal do está vinculada ao está vinculado ao saber e ao campo da pedagogia; a categoria “deficiente visual” está vinculada ao campo político; etc. Contudo, o investimento desta pesquisa deu-se no âmbito interativo e tais proposições são apenas possíveis conexões com outras dimensões a serem exploradas. Esse capítulo procurou abordar a negociação interativa enquanto acionamentos de representações e seus desfechos – satisfatório, insatisfatório ou surpreendente. O mesmo ainda mostrou como as negociações também podem envolver rendimentos, calculados ou não, que ajudam a determinar o que será acionado. Tais rendimentos inclusive geram 154 performances dispares ou contraditórias pelos atores. Por fim, explicitou-se como os mesmos rendimentos também colaboram na reprodução das representações em questão. 155 5. Construção do “eu”: processos de incorporação Nos algumas três capítulos categorias, iniciais sinais e da dissertação, atributos analisei relativos às performances chamadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outros termos. No capítulo anterior indiquei como os acionamentos destas representações podem compreender rendimentos simbólicos. No presente capítulo pretendo refletir como tais acionamentos envolvem a incorporação das representações constituindo facetas do “eu”. Neste estudo, a incorporação é o reacionamento de categorias, atributos e sinais, a partir de acionamentos anteriores, que geraram um reconhecimento íntimo, atingindo as instâncias do “eu” dos atores. Deste modo, incorporar as representações é reconhecer-se nelas e passar a atuá-las como parte de si. Tal incorporação também é instável, efêmera e refeita na interação. A repetição destes acionamentos colabora na solidificação momentânea das representações entre os atores envolvidos e na sua reprodução. Segundo Goffman (2009, p.27) as representações do “eu”, tal como “máscaras”, são as concepções formadas sobre si que se tornam uma segunda natureza, internalizada no ator. Esclareço que incorporar não pressupõe um “ponto de virada” ou um “tornar-se” – “do não ser ao passar a ser”, pois a incorporação é inacabada, sem ponto final, passível de 156 reformulação a cada interação. A incorporação também não se refere a uma aquisição de representações “de fora para dentro”, já que estas são jogadas e reconstruídas pelas partes no próprio ato da interação. Com relação ao aspecto temporal, considero a incorporação como um processo: as negociações interativas seriam cotidianamente travadas em atos mínimos, que repetidamente, ao longo do tempo, tomados em conjunto, na prática das atuações, com seus desfechos satisfatórios ou não, os atores incorporariam as representações, acionando-as em outros contextos repetição e cristalizações a conforme sucessão suas destes momentâneas, expectativas. acionamentos sustentadas pelos Assim, a provocam próprios reacionamentos. Empiricamente tenho acesso apenas a fragmentos deste processo interativo negociado pelos atores. No presente estudo é possível descrever interações específicas, dimensionando que estas constituem pontos nesta conformação. A seguir exponho alguns exemplos de interações com imputações de representações, que remetem especificamente ao “eu” dos atores e possibilitam a sua reprodução e solidificação ao longo do tempo. [Instituo especializado] Deu o horário do intervalo, a professora pediu para que pegassem o lanche, quando o Diego falou em tom alegre “hoje o meu suco é de morango!”, então Vini que estava ao seu lado disse “como você sabe? Você é cego”. Diego retrucou com ar de esperteza “a minha mãe me falou”. 157 [Instituto especializado, sala de aula] Diego pediu para desenhar no meu caderno [de campo]. Deixei e fui ver o que o Ricardinho queria. Quando voltei, o Fernando estava com o Diego e disse: “só rabisqueira... Eu já tentei ensinar ele a desenhar, mas ele não consegue”. No primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, um colega aciona a categoria de nomeação “cego”, imputando-a explicitamente ao outro: “você é cego”. Nesta negociação, o outro ator não nega a imputação, mas parece reconhecê-la implicitamente. Tal imputação dirige-se ao “eu” do ator e contribui para que ambas as partes absorvam e solidifiquem tal possibilidade de acionamento. No segundo exemplo, num contexto de coleguismo, o colega aciona o atributo da na frase “ele não consegue”. Tal imputação pode ser incorporada como parte de si e acionada posteriormente. Estes exemplos expõem situações banais e cotidianas, mas nelas, as imputações proferidas, se encenadas repetidas vezes, em diferentes contextos e roupagens, podem ser incorporadas pelos atores, que passam a reacioná-las em outras situações e ainda reconhecem-se intimamente nas mesmas, abrangendo as instâncias do “eu”. Quanto corporais, às elas concomitante aos representações são que incorporadas treinamentos. A envolvem técnicas conjuntamente seguir um e trecho explicitando tal congruência: 158 [Passeio à Biblioteca Braille do Centro Cultural São Paulo] Estávamos saindo do instituto, a professora perguntou se Miguel queria a bengala, acho que ele ficou meio sem jeito e aceitou, nunca havia usado antes. Ela foi buscar e entregou para o aluno. Prosseguimos o percurso até o metrô. Fui ouvindo a conversa dos professores com Miguel, o Mauro falou que não precisava ter vergonha da bengala e continuou brincando “dá mais vergonha usar camisa do Corinthians”, “além disso, [sem ela] você pode se machucar”. Miguel foi indo, os professores acompanhavam e iam explicando como rastrear, sobre o posicionamento da bengala, etc. Por fim concluíram: “você está andando bem mais rápido que antes”. Entramos na estação do metrô, Mauro mostrou o piso tátil. Já no vagão havia duas moças nos assentos pessoas com azuis reservados deficiência, elas logo às se levantaram para ele sentar. Só fizeram isso com ele, para as outras alunas, nada, afinal não pareciam deficientes visuais, já que estavam com suas mães e sem bengala. Miguel não quis sentar, mas as moças saíram do assento do mesmo jeito e disseram para nós, acompanhantes, sentarmos. No exemplo acima, dado num contexto pedagógico, o ator está treinando o manejo da enquanto técnica corporal, supervisionado por especialistas. Mas, ao mesmo tempo, a desconhecidos parece um sinal essencial para que identificassem o ator como “pessoa com 159 deficiência” e cedessem os bancos. No caso, as outras duas alunas presentes, provavelmente, não pareciam “deficientes”, em grande medida, por não manejarem este equipamento. Tais imputações, apesar de implícitas, podem ser apreendidas pelos atores, que incorporam estas representações. Alguns acionamentos podem servir como testes ao “eu” – os atores testam suas atuações perante outros, balizando se são reconhecidos. Deste modo é possível readequar suas autorrepresentações e futuras atuações. A seguir exponho algumas atuações que não foram reconhecidas, provavelmente por serem consideradas pouco convincentes, contudo, os atores podem computar como não são considerados e refazer seu “eu”: [Instituto especializado, sala de aula, 1º ano] Lu também ganhou o livro em braile e em tinta com tipos ampliados, aí ela olhou para mim e disse “em braile eu não consigo ler direito”, então respondi “mas você só lê em vidente”. Estava me testando. [Instituto especializado, sala de aula, 1º ano] Bia: “sabia Andrea, que se você me der um caderninho e um lápis igual ao seu eu faço minha lição nele?” – Que saia justa! Eu não sabia o que dizer, não queria afirmar que não escreveria em “vidente” e nem que o faria. Nem me lembro bem o que disse, acho que mudei de assunto, algo como “vamos continuar a lição Biazinha”. 160 No primeiro exemplo, num contexto pedagógico, a aluna imputou a si o uso do , mas tal acionamento não foi reconhecido pelo outro ator. Este atribuiu àquele a escrita em . As imputações e reconhecimentos citados podem balizar a incorporação de representações pelo ator. No segundo exemplo, num contexto de coleguismo, o questionamento quanto à possibilidade de fazer lição foi ignorado pelo outro ator. Contudo, tal situação também é significativa, pois pode ser computada pelos atores presentes e considerada em acionamentos futuros. Também imputadas são há interações rechaçadas. onde Apesar as representações disso, estas foram proferidas e podem ser internalizadas enquanto uma visão do outro sobre si. Negando ou reconhecendo as imputações, o “eu” está permanentemente em risco nas interações. [Instituto especializado] Na entrada, subindo a galeria, vi a Luciana irritada gritando que não era cega para o Nelson e o Caio que riam. [Instituto especializado] O professor contou que estava dando aula de Orientação e Mobilidade para o Thiago e quando iam sair do instituto, ele tacou a bengala no chão e disse que não queria continuar. O primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, a menina nega reconhecer-se enquanto “cega” perante imputações de colegas. Esta situação também indica como a incorporação das representações é uma negociação, por mais 161 que as partes não tenham chegado a um acordo, ambas assimilaram os acionamentos alheios. No segundo exemplo, num contexto pedagógico, o aluno desprezou a , quando iam sair do instituto. Tal situação pode remeter a uma negação da “cegueira” ao evitar o reconhecimento que a bengala pode proporcionar. Nas interações, os atores, além de correrem o risco de receber imputações alheias que podem ser incorporadas para conformar o seu “eu”, também estão sujeitos a situações onde se solicita ou induz o autorreconhecimento de representações, como no exemplo abaixo: [Instituto especializado, sala de aula, 1º ano] Eles estavam brincando com lego, juntos. Fernando, não sei bem porque, falou para Diego “você não enxerga”. Aí Luciana retrucou “Fernando fica debochando”. Então Diego disse “eu sou cego mesmo”. A professora ouviu e falou: “isso mesmo, tem que aceitar”. Neste exemplo, num contexto de coleguismo, perante o deboche alegado pela colega, o ator imputou-se a categoria “cego”, afirmando-a para os demais e para si. Deste modo, conseguiu a aprovação da professora, “isso mesmo tem que aceitar”. O termo “aceitação” é bastante acionado pelos atores em campo. Na maioria dos casos, a “aceitação” relaciona-se à autoafirmação e à requalificação das representações enquanto constituintes do “eu” do ator. A “aceitação” é contraposta a 162 situações de “rejeição”, “discordância” ou “crise”. A seguir alguns exemplos: [Biblioteca Braile do Centro Cultural São Paulo, visita de um grupo de alunos de um instituto especializado] O funcionário disse: “você não deve ter vergonha de dizer que não enxerga. Para que isso? Todo mundo tem limitação, você tem que aceitar seu problema”. [Instituto especializado, antes da aula] Estava conversando com a Lola sobre faculdade, ela disse que queria saber sobre bolsas de estudo e completou “senti que parei no tempo depois que tive esse problema”. Aí um senhor que estava sentado numa cadeira ao lado entrou na conversa e disse “tem que se aceitar”. O primeiro exemplo, num contexto de prestação de serviço, o funcionário dá conselhos aos visitantes e imputa a aceitação do problema relativo à “cegueira”, negando a vergonha. No segundo exemplo, num contexto de coleguismo, a aceitação foi imputada por um ator que acompanhava a interação. Neste caso, seu acionamento sobrepõe-se ao lamento da colega quanto a estar “parada no tempo” devido ao “problema” da “cegueira”. O acionamento da aceitação implicitamente nega ou não reconhece tal lamento. Além disso, o ator utilizou a aceitação de modo reflexivo, “se aceitar”, aceitar a si mesmo, no caso, infletindo nas representações do “eu”. 163 A aceitação também é identificada como um processo, que parte da rejeição das representações e culmina numa requalificação das mesmas. A seguir um exemplo: [Casa de shows com amigos] Bruna contou que seu irmão teve depressão que não aceitou perder a visão “é que ele trabalhava, tinha a vida dele”, disse que ela mesma demorou cinco anos para aceitar. Falou que enxergar é uma benção, mas a vida vale muito mais e dá pra ser feliz sem, só que para isso precisa de aceitação, “a vida é tão boa, eu posso tudo estou aqui no show aproveitando”. No exemplo acima, num contexto de coleguismo, a atriz aborda a rejeição do seu irmão, devido, por exemplo, à impossibilidade de trabalhar; e a sua própria aceitação, que demorou cinco anos. No período citado, a atriz teria recomposto seu “eu”, deixando de acionar representações ligadas a rejeição, requalificando-as e positivando-as: “a vida é tão boa, eu posso tudo estou aqui no show aproveitando”. Outro mecanismo que matiza a solidificação do “eu” na interação refere-se à articulação de narrativas de vida, que são solicitadas e oferecidas perante outros atores. Sua repetição, mesmo que transformada a cada contexto, consolida as afirmações das representações do “eu” entre os envolvidos. Geralmente tais narrativas contam a história da “descoberta” ou “obtenção” da “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão” e correlativos. Seguem alguns exemplos: 164 [Bar, perto do instituto especializado] Anselmo contou que estava trabalhando na oficina e disse que olhava para uma parede branca e ofuscava demais, “vou ver, estava com tumor [no cérebro]”. Contou que foi para o hospital, cortaram o cabelo dele com gilete, disse que foi na época daquela novela que a moça estava com câncer, ele chorou muito. Fez a cirurgia, apagou por dois ou três dias e voltou gritando “mãe!”, porque não queria deixá-la sozinha. Disse que o olho que enxergava melhor antes é o que enxerga pior agora. Ele disse que acha que teve o tumor, porque bateu muito a cabeça quando pequeno, batidas fortes de estourar, mas o principal fator são os espíritos, contou que é espírita e que na casa dele ele ia dormir e sentia afundar a cama como se alguém sentasse e sentia a respiração deles. Disse que vai receber alta logo mais e com dinheiro da indenização da oficina quer comprar casa na praia para aproveitar a vida. [Instituto especializado] Daniela [ex-aluna] falou “eu não te contei minha história?”. Então disse que nasceu de seis meses e meio, porque seu irmão colocou um besouro na barriga de sua mãe, “ela tomou um susto e eu nasci”. Perguntei se foi por conta disso que ficou cega, ela disse que não se sabe ao certo, pode ter sido na incubadora. Concluiu dizendo: “gosto de mim assim, não me imagino de outro jeito”. 165 No primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, o ator contou uma narrativa sobre a instituição da “cegueira” em si. A narrativa começa no momento da percepção de uma anomalia no corpo, o ofuscamento; passa para a situação do hospital e da cirurgia; depois aborda as razões para tal ocorrência; e termina no futuro, no plano de comprar uma casa na praia para “aproveitar a vida”. A construção e a encenação da narrativa exigem a reelaboração de suas representações e reafirmam facetas do “eu”, para si e para os outros. No segundo exemplo, dado num contexto de coleguismo, apesar de não solicitado, a colega ofereceu contar sua história, uma narrativa sobre seu nascimento, que se relaciona a obtenção da “cegueira”. Contar a própria história culmina numa resolidificação sobre si, no caso positivado “gosto de mim assim, não me imagino de outro jeito”. De modo semelhante aos diálogos acima, as narrativas proferidas perante plateias, também podem configurar-se como interações onde se solicita e se oferece representações, que consolidam a imagem do “eu”. A seguir, um exemplo: [Sarau num centro cultural] Cleide foi recitar uma poesia de sua composição: “Deus, estou perdendo a minha visão, perdi o emprego, a autonomia, estou perdendo a minha vida, o amor próprio. Minha visão, está tudo escuro, escuro... Escuro nada! Está claro e límpido como a Pedrinho, água. Joyce, todos Joana, amigos, o fofo todos do tem autonomia, dignidade. Você não perdeu a vida 166 não, você ganhou amor no coração.” Aplausos. No exemplo acima, no contexto de uma apresentação, a atriz recita uma poesia que aborda a instituição da “cegueira” enquanto uma perda sucessiva: da visão, do emprego, da autonomia, da vida e do amor próprio. Então, a poesia apresenta uma guinada e nega as atribuições anteriores, imputando a autonomia, a dignidade e o amor no coração. Pelo contexto e por citar amigos presentes no local, a poesia possuía a conotação de experiência pessoal, que aciona entendimentos subjetivos do ator. Tal exemplo guarda, de certo modo, semelhança com a questão da aceitação, onde há uma rejeição inicial e uma requalificação com a consolidação de um novo representações “eu” positivado. solidifica, para Neste caso, acionar si e para a tais plateia, representações do próprio ator. Para além da ordem da interação, aponto, a seguir, algumas instâncias e saberes, que também são identificados como representativos na construção do “eu”. De modo geral, os institutos especializados são tidos como os locais onde há a possibilidade de reconstruir o “eu”: [Esperando o show começar] Bruna também disse que perdeu a visão antes do seu irmão e que logo foi procurar o instituto e depois, também para ajudar o irmão a se aceitar, mas ele não quis ir. 167 [Instituto especializado, na entrada] Lena disse que é muito bom aqui, porque fala de coisas que não pode falar em casa, que seu marido não aceita [a “cegueira” de sua filha]. No primeiro exemplo, num contexto de coleguismo, o ator situa o instituto como a instância que o ajuda a se aceitar. O segundo exemplo, num contexto de coleguismo, o ator indica o instituto especializado como o local onde é possível falar, no caso, sobre a “cegueira”, que é proibido em casa. A psicologia e seus especialistas, os psicólogos, também são identificados como responsáveis por resolver e resguardar as questões do “eu”, através da terapia. Conforme o exemplo abaixo: [Instituto especializado, reunião de fechamento de semestre com os pais] A professora falando para a mãe do João “o Vitor [outro aluno] também não se aceitava, indiquei terapia e ele melhorou”. Por fim, friso que a maioria das interações abordadas nos exemplos deste capítulo se passa em institutos especializados, porém as situações relativas à incorporação de representações e a construção do “eu” podem ocorrer em cenários e contextos variados, perante familiares, desconhecidos, etc. De modo geral, este capítulo procurou apontar que a incorporação das representações da “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência”, entre outras denominações, e 168 sua solidificação no “eu”, ocorre em situações cotidianas, em pequenos testes, comparações, aprovações e reprovações que implicitamente geram reconhecimento das mesmas pelos atores, que podem acioná-las em outras interações, consolidando uma máscara. 169 Considerações finais Este capítulo procura alinhavar alguns argumentos apontados ao longo da dissertação, estabelecendo uma reflexão mais geral sobre a instituição e a cristalização das performances chamadas de “cegueira”, “deficiência visual”, “baixa visão”, “vidência” e correlativas. Por fim, permito-me um comentário pessoal a respeito da experiência desta pesquisa e abordo algumas indicações em termos políticos. No capítulo anterior descrevi como os atores incorporam as representações analisadas nos três primeiros capítulos. A incorporação refere-se à instituição das representações performadas como parte do “eu”. Tal incorporação se dá de modo prático, nas atuações dos atores, manejando as categorias, expondo e reconhecendo os sinais e encenando os atributos. Partindo de Bourdieu (2004), é possível afirmar que o acionamento das representações nas atuações institui a existência das representações acionadas: Todas as vezes em que afirmações existenciais (a França existe) são mascaradas sob enunciados predicativos (a França é grande), somos expostos ao deslizamento ontológico que faz com que se passe da existência do nome à existência da coisa nomeada, deslizamento tanto mais provável, e 170 perigoso, na medida em que na própria realidade os agentes sociais estejam lutando por aquilo que chamo de poder simbólico do qual uma das manifestações mais típicas é esse poder de çã constituinte, que ao nomear faz existir. Eu atesto que você é professor (é o certificado de aptidão), ou doente (é o atestado de doença). Ou, pior ainda, eu atesto que o proletário existe, ou a nação occitânica. O sociólogo pode ser tentado a entrar nesse jogo, a dar a última palavra na querela das palavras, dizendo o estado real das coisas. Se, como penso, o que lhe compete é descrever a lógica das lutas a respeito das palavras, é compreensível que ele tenha problemas com as palavras que precisa empregar para falar dessas lutas (BOURDIEU, 2004, p.72-73). No trecho acima, Bourdieu expõe que afirmações existenciais são mascaradas por predicativos. Os atributos desenvolvidos no terceiro capítulo, tais como: , os , , etc., podem ser considerados como predicativos citados pelo autor, assim ao falar-se “coitadinho, é cego”, reafirma-se a existência “cegueira” através de um enunciado personagem e o atributo da predicativo, que aciona seu ç . De modo geral, é possível considerar que os acionamentos das representações da “cegueira” nas atuações as fazem existir. No quarto capítulo apresento um dos fatores que pode explicar tal acionamento: os rendimentos. Estes são bens simbólicos, valorizados por conferir principalmente prestígio, 171 comodidade e riqueza. Cada vez que uma representação imputada é reconhecida e proporciona rendimento, os vários atores envolvidos podem apreender sua potencialidade. Uma representação rentável provavelmente continuará a ser acionada, reproduzindo-se. Em termos interativos, a reprodução é justamente o reacionamento das representações em outras negociações. Contudo, quando uma representação é acionada, é necessário que seja adaptada ao contexto, gerando a possibilidade de ser alterada na interação. Tal reprodução interativa colabora na solidificação das representações: quanto mais acionadas, reiteradas em diferentes contextos, ao longo do tempo, mais cristalizadas elas se tornam e, assim, mais naturalizadas. Conforme indica Butler (2008), a respeito da questão do gênero, a cristalização é dada pela repetição sucessiva, que produz a aparência de uma classe natural do ser: O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser (BUTLER, 2008, p.59). No senso comum ser “cego”, “baixa visão”, “vidente” ou correlato é meramente uma contingência de cunho biológiconatural. Este tipo de argumento, que naturaliza a “cegueira”, a “baixa visão” e a “vidência”, implica em considerá-las como 172 rígidas, imutáveis e atemporais, pois a “natureza” não possui história e nem agência humana. Em resumo, esta reflexão pretende assinalar como o acionamento das representações materializa e institui sua própria existência como real; e a reprodução destes acionamentos, em sucessivas camadas de interações, cristaliza tal existência como natural. Com isto, a presente dissertação procura justamente descontruir e desnaturalizar a “cegueira”, a “baixa visão”, a “vidência” e correlatos apresentando-as como performances, ou seja, acionamentos de representações forjadas em contextos específicos; e abordando os mecanismos que as instituem como naturezas autoevidentes. Por hora, gostaria de arriscar alguns comentários pessoais – um pequeno esboço de autoanálise ou um balanço acerca da experiência desta pesquisa e do que incorporei em minhas interações. Também me permito algumas proposições em termos políticos. Relendo meu diário de campo, noto que levei mais de um ano para começar a perceber e relativizar representações analisadas nesta dissertação. as A seguir um exemplo referente à primeira visita que fiz em um dos institutos: [Instituto especializado, visita de apresentação do instituto para público externo] A recepcionista falou para eu aguardar lá no outro prédio que o Caio, com quem marquei por e-mail, já descia. Fiquei olhando a loja de 173 brinquedos adaptados e outras pessoas foram aparecendo no saguão. O Caio chegou [de bengala], ele é cego! Nunca imaginei! Ele escreveu o e-mail direitinho, domina os códigos visuais do computador e parece bem independente, afinal vai conduzir esse grupo de mais de dez pessoas! No exemplo acima, o espanto denota a expectativa de que o ator considerado “cego” fosse e para lidar com recursos digitais e conduzir grupos. Conforme analisado no terceiro capítulo a e a são atributos forjados socialmente e não uma natureza intrínseca ao ser “cego”. Considero tais representações como preconceituosas na medida em que são estereotipadas e desqualificativas. Esta dissertação espera possibilitar a identificação destes preconceitos para colocá-los em suspenso: deixando-se de acioná-los, negando-os e descreditando rendimentos presumíveis. Contudo, é evidente que a margem de escolha das representações pelos atores é limitada e que há negociações onde são impingidos a acionar algumas delas. Além disso, também pode ser penoso não acionar representações muito incorporadas e automatizadas. Outro comentário pessoal refere-se à questão do padrão de corpo. Quando iniciei meu trabalho de campo, o que mais me chocou foi o contato com corpos : olhos saltados ou esbranquiçados, crânios deformados; além das 174 más posturas, como andar duro, balançar o corpo para frente e para trás, etc. De modo geral, é possível afirmar que há representações sobre o corpo reiteradas desde a Antiguidade e tidas como absolutamente considerado naturais. Contudo, o corpo , conforme explicitado no primeiro capítulo, solidificou-se no século XIX, através dos discursos médicos e estatísticos, principalmente, que elegeram critérios de medição e determinação do pela maioria. Tal estereótipo de corpo envolve, entre outros aspectos, a apreensão de uma totalidade em correto funcionamento, com posturas e movimentos específicos. As também podem operar como preconceitos desqualificando os atores. Em campo, após a convivência e a desnaturalização das representações do corpo estereótipos e, em muitos Incorporei consegui relativizar meus casos, nem noto outras possibilidades mais corporais tais e considero que normatividades mais plurais são desejáveis para destituir preconceitos. Inicio o próximo comentário com um trecho do livro : (TAYLOR, 2009). Trata-se de um diálogo entre a filósofa Judith Butler e a artista com “deficiência física” Sunaura Taylor: S. TAYLOR: I am just remembering, when I was little and I did walk, when I would walk places, I would be told that I walked like a monkey. And I think that for a lot disabled people, the violence and the sort of hatred 175 exists a lot in this reminding of people that our bodies are going to age and are going to die… (TAYLOR, 2009, p.205) Este comentário refere-se ao meu baque perante o e a que gerou a recomposição das minhas representações a este respeito. Antes do trabalho de campo, tais acionamentos eram escassos em meu cotidiano. De modo geral, meus vinte e poucos anos pareciam garantir certa indestrutibilidade e uma longa distância da . Contudo, durante a pesquisa me deparei, frequentemente, em interações como: “Ricardinho [8 anos] tem tumor estacionado no cérebro”, “David [14 anos] ficou assim depois que caiu do telhado e estourou a cabeça” “fui dormir enxergando, acordei não vendo mais nada”, “era uma cirurgia simples, mas deu errado”, etc. Ao longo do tempo incorporei estas situações, inconscientemente, e então tive alguns surtos de hipocondria, comecei a achar que iria morrer a qualquer segundo. Demorei meses para entender o que se passava. O contato tais acionamentos recompôs minhas representações sobre a questão: passei a encarar que estou morrendo, que meu corpo está perecendo, que sou completamente suscetível a contingências fatais, etc. Além disso, também requalifiquei a , comecei a positivá-la: “é a única coisa que acontece para todos”, “ainda bem que as pessoas morrem, já pensou certas figuras aqui eternamente?”, etc. Em termos mais assertivos, considero que essa pesquisa pode contribuir para: quebrar preconceitos, avaliar implicações 176 dos pequenos acionamentos e flexibilizar o padrão de corpo. A seguir explano minha frustração acerca de algumas questões que essa pesquisa não colabora. Para tanto exponho um trecho do meu caderno de campo: [Jantar na casa de uma grande amiga de infância, sua mãe teve um AVC – Acidente Vascular Cerebral, recentemente e passou a utilizar uma cadeira de rodas para se locomover] Muito fácil estudar ou falar de deficiência quando se tem distanciamento, uma coisa é estudar pessoas que ficaram cegas e eu nunca vi antes e outra é ali com a mãe da Tati. Hoje doeu em mim, mesmo que eu relativize o drama da deficiência, isto não serve de nada. Relativizar é uma compensação simbólica muito pequena. Hoje não tive resposta, não tive palavras, queria falar algo que fizesse sentido para eles, mas o que eu falo faz mais sentido para a academia. Foi assim: na mesa, num clima amigável, me perguntaram como estava indo a minha pesquisa e depois pediram para explicá-la em detalhes. Assim que eu terminei a explicação a mãe da minha amiga disse meio cabisbaixa que se sentia um estorvo. Putz, aquilo foi direto no meu âmago, porque sei tudo o que significa, tenho acompanhado as angústias da minha amiga, sei que choram todas as noites, que a Tati é quem escova seus dentes, que gastou absolutamente todo o seu dinheiro com o tratamento e com a reforma da casa, etc., etc. A minha pesquisa não conseguiu dizer nada que rebatesse essa simples frase: “eu me sinto um estorvo”. 177 A mãe da minha amiga encontra-se numa situação liminar, o seu “eu” está em suspenso, pois ainda tem a expectativa de voltar a andar e não precisar construir-se definitivamente enquanto “deficiente física” ou termos correlativos. A presente dissertação não acompanhou os primeiros momentos da constatação da “deficiência”, seu tratamento hospitalar, etc. Enfoquei situações posteriores à referida situação liminar, tendo em vista o trabalho e campo em institutos. O que esta pesquisa pode afirmar àquele respeito é que se trata de um processo: devagar as representações do “eu” são reconstruídas, renegociadas e as angústias vão passando. Em suma, essa pesquisa propôs apresentar a “cegueira”, a “baixa visão”, a “vidência” e correlatos como representações instituídas como reais e consolidadas como naturezas. Procurei demonstrar suas negociações interativas e os processos de incorporação das mesmas na constituição do “eu” dos atores. Por fim, explicitei alguns comentários pessoais sobre a experiência desta pesquisa, que me fez ver com outros olhos. 178 Referências AMARAL, Rita; COELHO, Antonio Carlos V. Nem Santos nem demônios: imagem social e auto-imagem dos deficientes físicos em São Paulo. , ano I, vol. 1, 2003. Disponível em: http://www.aguaforte.com/antropologia/deficientes.html. Acessado em: jul.2009. ASSENSIO, C.; ASSIS SILVA, C.; CAVALHEIRO, A. M.; MENDONCA, T.; ZAVARIZE, L. 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