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Entre fábulas, perversidades e possibilidades: reflexões sobre cursos de agentes culturais populares Adriana Facina1 Pâmella Passos2 Resumo: O presente artigo é baseado na experiência de turmas de agentes culturais populares em diferentes contextos na cidade do Rio de Janeiro. Aqui pretendemos discutir o papel desta formação a partir das óticas apontadas por Milton Santos para compreender a Globalização. A temática da democratização da cultura, a lógica de projetos e captação de recursos também serão abordados com vistas a aprofundar um debate sobre políticas públicas. Palavras-chave: cultura, favela, políticas culturais 1. Considerações Iniciais Tomando como fio condutor a ótica do geógrafo Milton Santos (2006) sobre a globalização, pretendemos refletir acerca de nossas experiências como coordenadoras de cursos de agentes culturais populares. Nestas poucas páginas não objetivamos aprofundar nenhum conceito, tampouco apresentar teses e teorias. A ideia aqui é compartilhar momentos de aprendizado e também ensino. Gerido dentro de um grupo de pesquisas da Universidade Federal Fluminense (UFF), o curso de agentes culturais populares era uma experiência prática de pesquisa. Nós, estudiosos do Observatório da indústria Cultural (OiCult), não queríamos mais ficar apenas em nossas salas com livros e artigos que falam da cultura popular e da indústria cultural. Nossa perspectiva era atuar nos espaços populares, dando vida para aquilo que conhecíamos como conceito. E assim nasce a primeira turma do curso, financiada pelo edital Proext 2008 do Ministério da Educação (MEC) e coordenado pela Profª Adriana Facina. Semanalmente, 1 Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), com pós-doutorado pela mesma instituição (2008-2009). É professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/ Museu Nacional/ UFRJ. Tem como principais temas de investigação a criação artística, a produção cultural e as práticas de letramento em favelas e bairros populares . 2 Doutora em História pela UFF, realizando Pós doutorado em Antropologia Social do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro(IFRJ). numa sala da Universidade Federal Fluminense (UFF) algo diferente acontecia. Não eram apenas “favelados” que estavam na Universidade, era um lugar de troca e debate entre as culturas e cotidianos das comunidades cariocas e as teorias acerca da produção cultural. Dois anos se passaram e novamente o projeto do curso é contemplado pelo edital Proext 2010, mas agora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Essa nova turma foi coordenada pela Profª Pâmella Passos e no IFRJ o projeto assumiu o nome de Periferias em Cena. Desta forma, o curso Periferias ocupou uma sala do IFRJ de abril a agosto de 2011. Era apenas um encontro semanal, mas de presença tão forte que todos começaram a perguntar, se interessar e querer contribuir com o projeto. Assim, envolvidos e envolvendo, os alunos passaram a participar de outros eventos na Instituição, realizaram visita técnica às cidades históricas de Minas Gerais (as visitas técnicas são prerrogativa dos cursos técnicos regulares e não os de extensão), participaram do Arraiá junino da escola, ofereceram cursos e oficinas no tradicional evento do campus Maracanã e muito mais. Enfim, provaram que tinham muito a mostrar e a contribuir. Tanto na UFF quanto no IFRJ as aulas não eram monólogos. Os diversos colaboradores do curso apresentavam o conteúdo teórico das aulas, criando uma dinâmica dialógica para debate e troca com aqueles que mesmo sem uma capacitação formal já atuam na produção cultural das periferias. Assim, o que denominamos aqui de ensino formal, não apenas compreende, mas se rende aos saberes das periferias. Em ambas as experiências, os alunos organizaram festivais como atividades de encerramento. Nesses momentos, os espaços federais de educação foram preenchidos com a cultura viva das periferias e assim o “Festival Fala Favela (UFF)” e o “ Festival Periferias em Cena IFRJ” deixaram suas marcas nas paredes (grafites), corações e mentes dessas instituições, como exemplifica o cartaz abaixo: As temáticas discutidas foram muitas, como pode ser observado no quadro abaixo. As horas pareciam nunca abarcar a sede de saber/ensinar presente nos alunos e professores do projeto. Com isto era recorrente os papos de corredores, as conversas após as aulas, as “esticadinhas” no bar mais próximo ou mesmo a participação em eventos e projetos realizados pelos alunos em seus territórios de atuação. Disciplina Duração/horas Comunicação popular 2 Economia da cultura 2 Economia e gestão popular 4 Gestão cultural 2 Introdução à produção cultural 2 Informática básica (Word, Power point, Excel) 4 Informática para internet (e-mail e twitter) 4 Informática para internet (blogs e sites) 4 Marketing cultural 2 Patrimônio cultural 2 Políticas culturais 2 Prática (oficinas e produção da intervenção cultural) 28 Produção de artigos 8 Projeto cultural 4 Teorias da Cultura 2 Total de horas 70 Grade de horários da turma do IFRJ de 2011. Textos e vivências misturavam-se nos encontros semanais. Debates acalorados e enxurradas de ideias eram a tônica constante em sala de aula. E assim, costurando diferentes idades, múltiplas práticas culturais e diversos enraizamentos territoriais seguimos em frente. Como produtos materiais e oficiais dessas experiências temos a confecção de um CD da primeira turma realizada na UFF e três publicações da experiência no IFRJ, quais sejam: uma cartilha de elaboração de projetos, um livro escrito pelos próprios alunos e equipe de execução do projeto e um outro livro com reflexões teórico/práticas de parceiros e professores do projeto. Apresentado nosso curso e recorrendo as categorias do geógrafo Milton Santos (2006) em suas pesquisas sobre o processo de globalização, propomos três olhares sobre as experiências dos cursos de agentes culturais populares. Ou ainda, analisarmos cursos de agentes culturais populares como: fábula, perversidade e possibilidade. 2. A fábula do curso de capacitação: formação para quê e para quem? “Faça um curso de como elaborar projetos e ganhe muito dinheiro com editais!” Eis o mito que circula na produção cultural, em especial nas periferias. É inegável que tal realidade contribuiu para a enorme procura que nossos cursos tiveram no ano de 2009 na UFF e em 2011 no IFRJ. Cabe destacar que em ambas as experiências, contamos com baixíssimos ou nenhum recurso de divulgação, sendo a internet e as redes sociais quase que exclusivo meio pelo qual comunicamos a seleção e fizemos as inscrições. Tanto em 2009 quanto em 2011 previmos uma turma de 30 alunos e nos surpreendemos com a procura, mais de cem inscritos para cada edição do curso. A partir desta realidade era necessário: 1- afirmar uma seleção democrática e 2ser transparentes com os objetivos do curso. Nessa direção, a equipe de coordenação do curso decidiu realizar a seleção com base numa ficha que era preenchida pelos candidatos e, após o exame destas, entrevistamos os pré-selecionados. Na ficha os candidatos, além de preencher seus dados pessoais e de atuação cultural, deveriam expor em poucas linhas os motivos pelos quais desejavam realizar o curso. Nosso critério fundamental foi a diversidade: geográfica, de gênero, ramo de atividade (artes plásticas, música, dança, etc.), idade, escolaridade. Conseguimos formar turmas bastante heterogêneas, o que demonstra a complexidade da cultura nas favelas e espaços populares. Em 2009 nossos educandos eram provenientes da Baixada Fluminense, Areal (região serrana), complexos da Maré, do Alemão, de Acari, favela da Rocinha, Sepetiba, Cidade de Deus, Pereirão, entre outros. Tivemos ainda um rapper da periferia de Foz do Iguaçu, conexão criada a partir do historiador Danilo Ribeiro, pesquisador de favelas daquela cidade e membro do OICult. No ano de 2011 a pluralidade se repetiu. Diversas faixas etárias se inscreveram como mostra o gráfico abaixo: Idade dos Inscritos 12 Número de Alunos 10 46+ 8 36‐45 6 26‐35 4 18‐25 2 0 Idade dos Alunos Queimados, Mesquita, Belford Roxo, São João de Meriti, Campo Grande, Nilópolis, Copacabana, Méier dentre outros pontos, formavam a geografia da turma do curso de agentes culturais populares no IFRJ, conforme detalha o mapa a seguir: Advindos de lugares tão distantes algo aproximava os candidatos ao curso de formação de agentes culturais populares. Nas entrevistas, era recorrente escutar: o desejo por aprender a “escrever projetos”, “adequar projetos para lei Rouanet” e “prestar contas”. Sinceros com os candidatos ao curso buscamos, já na entrevista, indicar que um curso de extensão de 70 horas não é o suficiente para ensinar todos os meandros da captação cultural e seus desdobramentos. No entanto, para além do pouco tempo, tínhamos outras questões como: questionar a maneira engessada e burocrática que o financiamento para cultura se dá no Brasil ao longo do tempo. Ou seja, nosso objetivo era ensinar a escrever projetos para editais, mas também questionar esses mesmos editais, percebê-los como limitados e ainda distantes da realidade da produção cultural popular. Logo na entrevista de seleção dos alunos afirmamos nosso objetivo maior: formar uma rede de produtores culturais das periferias e, como desdobramento, captar recursos para suas ações. De 2009 até os dias de hoje podemos elencar algumas dezenas de propostas/experiências de cursos de agentes culturais ou ainda de elaboração de projetos. Buscando refletir sobre as diferentes perspectivas e experiências de algumas dessas iniciativas, participamos como co-organizadoras do “Seminário sobre métodos de formação de agentes culturais”, realizado em outubro de 2014 no Complexo do Alemão. Nesse seminário quatro experiências dialogaram: as duas que relatamos mais profundamente neste artigo e que foram realizados respectivamente na UFF e no IFRJ, o curso na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a turma do Observatório de Favelas. Diferentes em sua carga horária, captação e volume de recursos, públicoalvo, dentre outros fatores, as quatro realidades de formação de agentes culturais tinham como fio condutor uma visão crítica da realidade social e a concepção da cultura como uma prática social que pode estar inserida numa lógica de reprodução ou crítica ao status quo. Cabe destacar que algumas destas experiências dialogaram mais diretamente com as políticas de governo. Em alguns casos delimitando sua área de atuação a territórios ocupados pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), ou apresentando-se como uma proposta de curso técnico do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC). Ambas as escolhas não invalidaram a crítica às políticas públicas para a cultura no desenrolar dos cursos. No entanto, a nosso ver, geraram algumas contradições que foram trabalhadas por suas respectivas equipes. Se houve o que chamamos de contradições por parte de tais experiências, destacamos também a infraestrutura de pessoal e recursos que pôde ser consolidada na UFMG por se tratar de uma iniciativa de maior porte. Com mais recursos financeiros, uma carga horária maior e a consolidação de uma equipe docente e não apenas colaboradores pontuais, as experiências da UFMG consolidaram-se como importantes referências para novas ações. 3. A perversidade das burocracias: o gargalo dos editais e das prestações de contas Como dissemos anteriormente, as duas experiências que analisamos neste artigo, foram financiadas pelo edital PROEXT/ MEC/ SETEC, fator que traz algumas implicações/limitações que discutiremos neste item com vistas a problematizar a fábula do financiamento dos editais e sua perversidade de implementação. O atraso da chegada da verba, a burocracia de execução e o baixo orçamento impuseram significativos desafios da equipe tanto na UFF quanto no IFRJ. Cabe destacar que apesar de aprovados em 2008 e 2010, respectivamente, as turmas só aconteceram em 2009 e 2011, demonstrando a lentidão de liberação de recursos. Materiais importantes para o início do curso como: gravadores MP4, pastas, canetas, laptop, filmadoras demoraram a chegar devido ao trâmite das licitações públicas. Outro aspecto importantíssimo foi a impossibilidade prevista no edital de pagar bolsa para alunos que não estivessem regularmente matriculados na instituição(UFF/IFRJ), excluindo-se cursos de extensão. Tal fator tinha um impacto imediato na evasão visto que eram pessoas que não tinham condições financeiras para arcar com gastos de transporte e alimentação para frequentar o curso. Em 2009 esta questão foi contornada de forma improvisada, buscando ressarcir, sempre que possível, os gastos com transportes. Já em 2011, devido à experiência anterior, a liberação de bolsa de ajuda de custo pelo IFRJ foi colocada para direção do instituto como condição de execução do projeto, tendo sido atendida. A dificuldade em executar os projetos contemplados nos editais, em especial os públicos, não é exclusividade da equipe do curso. Nos debates em sala, os próprios alunos elencavam suas dificuldades na compreensão das demandas dos editais e em especial a prestação de contas. A esse respeito cabe destacar a política de “Pontos de Cultura” implementadas pelo Ministério da Cultura (MinC) com objetivo de democratizar o acesso aos recursos da cultura. Tal iniciativa possibilitou que muitos grupos marginalizados pudessem ter acesso as verbas públicas pela primeira vez, no entanto, de forma perversa, não garantiu a estrutura de acompanhamento na execução e prestação de contas dos projetos. O resultado foi uma maioria de projetos com prestação de contas incorretas. Outro aspecto negativo foi o enfraquecimento de alguns coletivos após a execução de ações que pelas suas demandas e poucos recursos esgarçaram relações. A emissão de notas fiscais, a diferenciação entre rubricas de capital e custeio, a organização e planejamento de todos os gastos ao longo dos projetos são demandas que os projetos contemplados por editais possuem, mas que, em sua grande maioria, não dialoga com as tradicionais produções culturais populares. Assim, quando somados os esforços para elaboração e execução de determinados projetos financiados, em especial por editais públicos, a conclusão que se chegava era que o valor máximo permitido não cobria, qualitativamente, as despesas do projeto. Como solução recorrentemente encontrada, temos o sobretrabalho da equipe de execução, em especial dos envolvidos mais diretamente com a “ponta de lança” do projeto. Outro aspecto importante a ser destacado são as exigências para execução dos projetos. Reconhecida como Ponto de Cultura, uma importante ONG da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro ganhou recursos para aquisição de equipamentos de informática e máquinas para trabalhar com produção audiovisual. Em sintonia com a política nacional de software livre, os equipamentos comprados com verbas federais dos Pontos de Cultura, não poderiam ter instalados softwares proprietários. Após inúmeros contatos da ONG com o Ministério da Cultura solicitando o envio de um técnico que pudesse instalar os programas gratuitos e livres, oferecendo uma capacitação para que os contemplados com o edital, seus integrantes desistem de esperar e partem para um posicionamento radicalizado e notifica que instalará os softwares proprietários. Poucos dias depois o representante do MinC chega na instituição, instala os programas livres e oferece a capacitação tão solicitada pela equipe da ONG. Nesse caso, tudo não passava de um blefe, uma estratégia para conseguir atenção do MinC que, através da sua inação, inviabilizava a execução de um projeto que tinha seus prazos, metas e produtos a serem entregues. Assim como esta ONG da Baixada Fluminense, muitas outras Brasil a fora passaram por imensas dificuldades em executar o projeto proposto, tendo em vista as amarras e demandas do edital e da prestação de contas. 4. A possibilidade dos coletivos: cooperação e solidariedade num curso de agentes culturais O conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa nas relações críticas destas relações.” Paulo Freire Nos três meses de aulas semanais do curso foram muitas histórias. Risos, choros, desentendimentos, amizades, perdas de alguns, chegada de outros. Enfim, vivemos esta experiência e formamos de fato um coletivo. Criamos nossas próprias redes com tramas muito diversas, tentando assim aprender o máximo possível, abrindo-nos para a mudança. (...) a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. (BAKHTIN, 2004: 41) A citação retirada das reflexões bakhtinianas, tem como objetivo apresentar nossa discussão acerca do que compreendemos como espaços populares, bem como nossa afirmação em relação ao uso do termo “favela” para designá-los. Primeiramente cabe destacar que assumimos como espaços populares, locais economicamente desfavorecidos, marcados por uma carência de políticas públicas estatais que garantam a criação e manutenção de condições dignas de vida, em suas mais diversas áreas, tais como: educação, saúde, esporte, cultura, habitação, saneamento básico, dentre outras. Em seguida, destacamos nossa opção, sobretudo, política, em utilizar o termo favela, oriundo historicamente do início da República brasileira. Em uma das versões sobre a origem de nome se diz que, ao retornarem da última batalha contra o Arraial de Canudos, os soldados “vitoriosos” passam a abrigar a região que é atualmente conhecida como Morro da Providência, lá eles aguardavam a providência do Estado. Por terem ocupado um morro denominado favella durante o conflito na Bahia, os “heróis nacionais” acabaram por dar nome à região que ficou popularmente conhecida na época como Morro da Favela, considerada a primeira favela do Rio de Janeiro, datando de 1897. Nossa hipótese é de que as favelas ainda são ocupadas por aqueles que aguardam a providência, ou ainda, o comprometimento do Estado. Tendo passado por um processo estigmatizante, o termo favela é considerado por muitos pejorativo, associado diversas vezes à pobreza e/ou violência, ou mesmo à falta de civilidade. Compreendemos, no entanto, que se trata de uma visão preconceituosa que não legitima as produções e patrimônios culturais de tais espaços. Afirmar o termo favela é afirmar uma história, uma resistência e também uma compreensão de que o Estado tem uma responsabilidade de atuar para além das sempre reinventadas políticas de contenção/repressão nesses espaços populares. E essa afirmação positiva do termo favela foi central nos festivais culturais que encerraram os cursos. Para a maioria dos educandos do curso, apesar da sua larga experiência como agentes culturais, era a primeira vez que participavam da organização de um evento com verba pública, feito com “tanto dinheiro” (cerca de 5 mil reais). Alguns, como o poeta Severino Honorato, morador de Sepetiba, atuavam como agentes culturais há 30 anos (no caso dele, sobretudo, organizando bibliotecas comunitárias e atividades relacionadas a divulgação da leitura e produção escrita) e poucas vezes puderam contar com programas governamentais de fomento. Outros puderam reconhecer pela primeira vez o potencial artístico, e não somente social, de seus trabalhos, evidenciado pelo uso de uma estrutura que permitia isso, tais como equipamento de som de alta qualidade, iluminação de palco, projetores, computadores, técnicos profissionais etc. O perfil comum a todos os educandos que chegaram à etapa final do curso era o de, na sua auto definição, “gente que faz muito com pouco”. Todos exerciam, em algum nível, trabalho voluntário, desenvolvendo atividades sem verba que não o próprio bolso ou somente com verbas esporádicas. Durante a turma de 2009 do curso, três educandos tiveram seus projetos contemplados com o edital de pontos de cultura e começaram a ter contato com as intricadas redes da burocracia estatal. Nenhum dos artistas vivia exclusivamente de sua arte, tendo que desenvolver outras atividades laborais, fixas ou temporárias, para garantir sua sobrevivência. A motivação principal, portanto, para a atuação na área da cultura não era econômica, mas sim existencial e, por vezes, política, caracterizando uma militância cultural que vinculava na prática cultura e cidadania. Quando debatíamos sobre a democratização da cultura, a maioria entendia tal processo como algo mais do que a construção de equipamentos culturais na periferia, nos territórios em que habitavam e realizavam suas atividades. Também não restringiam a democratização da cultura à realização de eventos como shows, espetáculos e outros no estilo Viradão Cultural ou Conexões Urbanas (realizados com grande investimento público e privado, mas sem participação de moradores e sem desdobramentos nas comunidades) nesses mesmos espaços. Parece claro que para esses agentes culturais reunidos no projeto democratização da cultura é, antes de mais nada, democratização ao acesso às verbas públicas destinadas à produção cultural. Sua demanda é pela possibilidade do desenvolvimento de suas atividades de modo mais consistente e autônomo através do apoio público. E o apoio público é visto como fundamental para isso. Este permitiria, por exemplo, a independência em relação a “mecenas” que exigem em troca apoio político em campanhas eleitorais (políticos) ou transferência de direitos autorais (empresários musicais). Essa capacidade de organizar a cultura mesmo em condições precárias nos fez desenvolver reflexões sobre políticas culturais e sobre o impacto que ações do Estado poderiam ter se interagissem com mais regularidade com esses agentes culturais. Ações culturais organizadas desse modo possuem muita repercussão nas favelas. Não no sentido de que “a cultura salva”, que a arte ou a cultura seriam panacéias para os males sociais, inclusive o desemprego e a precarização do mundo do trabalho. Mas sim porque a cultura constrói identidades, significados, sentidos para a existência, perspectivas de futuro que são fundamentais para a formação dos seres humanos como um todo e, mais especialmente, para seres humanos que são vistos como menos humanos, sobre os quais pesa o estigma da pobreza criminalizada. Modestamente, o Curso de Formação de Agentes Culturais Populares buscou contribuir nesse processo, afirmando coletivamente o direito humano à cultura como o direito tão humano a sonhar. 5. Considerações finais Parece claro que, para nossa pequena amostra, a política de editais é democratizante e que sua ampliação deveria ocorrer no sentido de aperfeiçoá-la na direção de uma igualdade de condições entre os pequenos produtores que “fazem muito com pouco” e aqueles indivíduos ou instituições dotados de sólida estrutura e capacidade de articulação política e que acabam por tornar a disputa por vezes desigual. E é importante que se diga que tal demanda não diz respeito somente a manifestações e expressões culturais que reivindicam preservação contra a lógica do mercado e a modernização capitalista da sociedade brasileira. Ela é apresentada, no nosso microcosmo, sobretudo pelos representantes de uma cultura urbana contemporânea que acreditam que teriam condições de sobreviver no mercado se sua lógica não fosse tão predatória para os artistas populares (como no caso do funk). Para tais agentes culturais, com modesto apoio financeiro e respaldo público, suas atividades poderiam ser a realização dos seus sonhos de viver do trabalho artístico e cultural de modo digno. Para eles, e isso ficou claro no curso, a principal dificuldade é a elaboração escrita dos projetos, exigida em quase todos os editais. Além da dificuldade de base, relacionada à baixa escolaridade ou a uma escolarização precária (como no exemplo daqueles que não conseguem se expressar por escrito mesmo tendo diploma do ensino médio), há também a barreira da linguagem dos editais. Compreendê-los não é tarefa fácil, por vezes, nem mesmo para professores universitários. Nos cursos, realizamos oficinas para a elaboração de projetos, no entanto, a demanda em trabalhar a escrita era bem maior do que a carga horária que dispúnhamos. Para os educandos, parecia muito mais fácil “por a mão na massa”, realizar aquilo que eles já sabiam fazer, produzir cultura, do que escrever um projeto adequado às regras para captação de recursos ou disputa de editais. Este é um desafio que está colocado para as políticas de dotação de verbas baseadas em editais. Se, por um lado elas são reconhecidas como avanço na distribuição mais equitativa nas verbas públicas para a cultura, por outro se fixam em formatos burocráticos tradicionais que dificultam o acesso de quem realiza atividades relevantes e de impacto, mas que não dominam tais códigos. Por vezes, tal dificuldade será solucionada na associação com ONGs ou produtores culturais, o que pode implicar a remodelagem dos projetos originais, com concessões de diversos tipos, ou mesmo na destinação de recursos financeiros para o pagamento de profissionais especializados em elaborar projetos. Esta última pode ser algo viável em produções que envolvem grandes orçamentos, mas este não é o caso da maioria dos projetos que são desenvolvidos no âmbito do grupo que estamos tratando. Uma outra possibilidade é a reunião desses agentes culturais em coletivos que, de modo solidário, se juntam para elaborar projetos. A partir da experiência do curso, alguns grupos se formaram. Mas parece claro que há dificuldades na formação espontânea desses coletivos, por diversos motivos. Primeiramente, os agentes culturais populares em geral são pessoas assoberbadas de trabalho. Sobretudo as mulheres. Têm empregos regulares ou precários, desenvolvem sua arte, organizam eventos, cuidam da casa e filhos, militam em diversas frentes. A dificuldade de agenda para a elaboração de trabalhos de mais longo prazo é enorme, pois todos são absorvidos pelas “imediatezas da vida”, a dinâmica da sobrevivência orgânica e cultural. Em seguida, vem também as dificuldades das políticas territoriais das favelas, a falta de espaços para reuniões, os gastos com deslocamentos, entre outros. A propósito, durante uma das oficinas um dos educandos do curso disse, acertadamente, que a maior política de democratização da cultura e com impacto mais imediato seria a redução significativa dos preços das passagens no transporte público. Tais dificuldades de organização coletiva são amenizadas pela construção de redes virtuais. Mas ainda assim, reina a precariedade. Significativa parte dos nossos agentes não possui computador conectado à internet em suas residências, tendo de utilizar os espaços de lanhouses, ONGs, locais de trabalho para se comunicar, produzir e divulgar suas atividades. A navegação da internet é algo que “os de baixo” vem democratizando a força, reinventando formas de acesso, a despeito dos altos preços praticados no Brasil. Portanto, a formação de tais redes, essenciais para o empoderamento político desses agentes nas discussões e disputas necessárias à democratização da cultura, depende de condições e incentivos que só podem ser conquistados com políticas públicas. Um dos funks cariocas mais famosos, intitulado Rap da Felicidade, tem um verso que diz “Se eles lá não fazem nada faremos tudo daqui”. Creio que este verso traduz o espírito da atuação desses agentes culturais, os que “fazem muito com pouco”, nos termos nativos. Traduzindo: mesmo na lógica da precariedade, suas atividades culturais, as mais variadas, continuarão sendo realizadas. No caso do Curso de Formação de Agentes Culturais Populares, mesmo com todas essas dificuldades, várias foram as conquistas do projeto. Um dos nossos objetivos mais importantes era o de consolidar uma rede de agentes culturais populares que pudesse atuar como um coletivo e, assim, compartilhar saberes, unir esforços e, sobretudo, organizar suas atividades de modo que elas pudessem gerar mais impacto nas comunidades, inclusive econômico. E essa rede, bem como sub-redes, estão em pleno funcionamento. Tanto em projetos elaborados em conjunto, quanto em participações de indivíduos ou grupos nos eventos e atividades uns dos outros. Assim, o rapper compõe uma música com o sambista, o professor de artes circenses leva seus alunos a um evento de funk e hip hop e por aí vai. Nessas misturas, quantas vezes para decidir simplesmente a cor da camisa oficial dos festivais de encerramento dos cursos ficávamos horas debatendo. Era a realidade de pessoas que não se calavam e que estavam dispostas a dar e construir suas opiniões. As turmas de agentes culturais populares veio a reforçar a certeza de que as favelas cariocas são formadas essencialmente por uma cultura de alegria, vida e não violência. Assim, em tempos onde um discurso de pacificação se afirma, terminamos parodiando o samba Nomes de favela, de Paulo César Pinheiro3. O galo continua cantando no Cantagalo, a água corre na Cachoeirinha, os meninos pegam manga na Mangueira e ainda se fazem muitas juras de amor no Juramento. Nós, que também não somos do tempo das armas, acreditamos e construímos uma paz com voz e sem medo pois, como diz uma música que foi fruto do encontro do MC Liano, cria da favela de Acari e educando do curso, com Abel Luiz, músico do Engenho de Dentro e um dos coordenadores da primeira edição do projeto, Chega da Favela Chorar: Quanto tempo na favela não existe mais esperança? E eu te confesso não consigo Mais lembrar do meu sorriso de criança. Amedontrado morador sai pro trabalho sem saber se vai voltar. Isso, aqueles que se humilham,como escravos, para poder trabalhar. Povo heroic que tenta viver a vida em condições surreais. E a classe alta acompanhando a favela em manchetes de jornais. Se vê um negro, um mendigo ou um menino na rua pedindo esmola, Já sai voado, entra em seu carro blindado Pra proteger sua sacola. Chega da favela chorar! Chega de ver nossos amigos no chão aagonizar! Perder sua vida por causa da opressão, Também quero meu direito de poder ser cidadão! Pra seu governo também tenho meus direitos, Mas eu sou discriminado. Se estou sozinho nas favelas sou suspeito Ou então pobre coitado. Sem ter transporte, saúde e educação, como ter dignidade? Se o desejo do governo que eu elejo é me ver fora da cidade. Homens de preto mancham as ruas de sangue, Pegam arrego e vão embora. Será que é esse o conceito de justiça que se ensina nas escolas? 3 Eis a letra do samba: “O O galo já não canta mais no C antagalo/ A água já não corre mais na Cachoeirinha/ M enino não pega mais manga na M angueira/ E agora que cidade grande é a Rocinha!/Ninguém faz mais jura de amor no Juramento/ Ninguém vai - se embora do M orro do Adeus/ Prazer se acabou lá no M orro dos Prazer es/ E a vida é um inferno na Cidade de Deus/Não sou do tempo das armas/ Por isso ainda prefiro/ Ouvir um verso de samba/ Do que escutar som de tiro/Pela poesia dos nomes de favela/ A vida por lá já foi mais bela/ Já foi bem melhor de se morar/ M as hoje ess a mesma poesia pede ajuda/ Ou lá na favela a vida muda/ Ou todos os nomes vão mudar. E o que resta é uma mãe desesperada sem saber o que fazer. Pedindo a Deus ajoelhada em oração, Não deixe o meu filho morrer! Chega da favela chorar, chega de ver nossos amigos no chão a agonizar, perder sua vida por causa da opressão, também quero meu direito de poder ser cidadão! 6. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC,2004. CD do Festival Fala Favela. Produzidos pelos educandos do curso de formação de agentes culturais populares – UFF. 2009. Disponível em http://culturanauff.blogspot.com.br/2010/02/cd-festival-fala-favela.html FACINA, Adriana & PASSOS, Pâmella. Cartilha cultura popular e direitos humanos. Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Rio de Janeiro,2014. FERRAZ, Joana Varon & LEMOS, Ronaldo. Pontos de Cultura e lan houses: estruturas para a inovação na base da pirâmide social. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2011. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2006. PASSOS, Pâmella; DANTAS, Aline & MELLO, Marisa S. Periferias em cena!- 4º Curso de Formação de Agentes Culturais Populares. Rio de Janeiro: IFRJ,2012. _________________. Política Cultural com as Periferias: práticas e indagações de uma problemática contemporânea. Rio de Janeiro: IFRJ,2013. SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2006. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Companhia das Letras,1998.