Da Favela ao Bairro: Entre Urbanidade Rarefeita e Segregação.
Tales Lobosco - Doutorando PPG-AU/UFBA
1. Introdução
A proposta deste trabalho é discutir a forma tradicional de se abordar o problema das favelas,
através da compreensão dos mecanismos de articulação com a materialidade dos espaços construídos
e das estratégias de adaptação espacial e territorial empregadas por seus habitantes, buscando
ferramentas para repensar os limites e possibilidades de intervenções em um universo, tão rico quanto
frágil, de redes sociais inscritas no território.
Nos basearemos, portanto, na experiência acumulada em pesquisas nas favelas da Babilônia,
Vidigal e Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, RJ, um trabalho que buscou um contato intenso com os
moradores, através de entrevistas aprofundadas, da convivência e participação no cotidiano e nos
problemas vividos pela população local. Neste processo buscamos perceber igualmente as
diferenciações encontradas na experiência de espaços que ainda guardam a materialidade original,
gestada em seus processos intrínsecos, frente àqueles submetidos à reconfigurações, transformações e
rearticulações geradas externamente. A atenção aqui se volta para o entendimento das estratégias de
adaptação e reconfiguração espacial e territorial empregadas por seus habitantes para superar
deficiências e rupturas operadas no tecido original, que percebemos como um espaço urbanisticamente
rarefeito, porém bastante articulado social e espacialmente, por meio de diversas redes sociais e
territoriais que deixam suas marcas no espaço.
Através do conceito de distância social, conforme tratado por Bourdieu, a partir da estrutura do
espaço social, das posições sociais, relacionais e hierárquicas, das disposições e das “tomadas de
posição” que os agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática, buscamos propor uma
avaliação crítica da articulação entre favela e cidade, expressa em sua materialidade e na leitura de
seus estilos de vida. O espaço de posições sociais reflete um espaço de tomadas de posição pela
intermediação do espaço de disposições. “O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz
as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um
conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.” (BOURDIEU, 1996, p.21)
A intenção é de elaborar uma leitura da relação entre as posições sociais, as disposições e as
“tomadas de posição” que os agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática, onde
preferências, escolhas e atitudes organizam-se segundo a estrutura do espaço social. Entender a
construção do espaço social, através das relações de proximidade e separação, relacionais e
hierárquicas.
A avaliação crítica da afirmada separação entre favela e cidade, seja através de sua
materialidade ou da leitura de seus estilos de vida, deve ser pensada através de uma análise da
“distinção social” capaz de entender a realidade como relacional e construída socialmente. Distinção é
de fato diferença, traço distintivo, que só existe em relação a outras propriedades. Mesmo internamente
nas favelas lidaremos com regiões com características sociais, econômicas, espaciais e históricas
heterogêneas, ocupadas por populações distintas segundo seu local de origem, situação econômica,
tempo de permanência ou integração ao espaço. A primeira vista estes limites podem parecer fluidos, e
incertos, mas os moradores, inseridos nas articulações sócio-espaciais locais, podem, segundo
marcadores materiais e sociais, identificar linhas bastante nítidas delimitando cada micro-região. “Essa
ideia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de
posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras por sua exterioridade mútua e por relações
de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento”. (BOURDIEU, 1996, p.18)
2. Favelas, Ocupações ou Invasões
A especificidade do fenômeno favela, vista como um modo peculiar de materialização no espaço
urbano, sua “identidade”, expressa pelo estatuto de ilegalidade e percebida como locus privilegiado da
pobreza, são questionados por autores como Valladares (2005), Lago (2003) e Valladares e Preteceille
(2000), através da afirmação da pujança econômica de seus mercados, da heterogeneidade social,
econômica e espacial identificada em seu interior e também através das profundas distinções existentes
entre os diversos territórios reunidos sob o nome favela. Os dados de acesso à infra-estrutura urbana,
renda e escolaridade posicionam as favelas entre os setores com os piores índices, entretanto, em uma
análise mais detalhada, percebemos níveis semelhantes de tais indicadores identificados em regiões
periféricas da cidade formal e, paralelamente, algumas favelas, principalmente as situadas na Zona Sul
carioca, apresentam regiões com padrões mais elevados, se situando muito próximos ou iguais à
média da cidade formal.
A favela não seria, portanto, o locus único e exclusivo da pobreza urbana, e não se diferenciaria
da cidade por questões simplesmente econômicas, mas se estabeleceria como possibilidade para a
solução, mesmo que temporária, do problema de moradia, onde a adesão ao modelo seria fruto da
comparação entre os custos envolvidos - econômicos, sociais e simbólicos - com as possibilidades
apresentadas, entre os quais pesariam a inserção nas redes sociais, a infra-estrutura e serviços
existentes, as distâncias físicas e sociais, as possibilidades de trabalho, a disponibilidade para
desenvolver a autoconstrução e também as representações simbólicas a respeito de conforto, liberdade
pobreza e violência.
Se torna, portanto, necessário relativizar a dicotomia entre ocupações formais ou não, “ilegais”
ou não, e nos colocar frente à necessidade de um novo modo de compreender tais espaços, já que o
fenômeno-favela permanece presente e, ainda que não seja evidente determinar parâmetros que o
possam definir de forma clara, ele segue claramente identificável no contraste expresso nas linhas de
contato com a cidade formal, por um conjunto de signos, práticas ou materialidades que nos
demonstram se tratar de uma urbanidade rarefeita, que sobrevive em um movimento oscilante entre a
exclusão simbólica de seus habitantes, uma possível integração econômica, cultural e política, e o
mecanismo de redes sociais de assistência, que protege da miséria, mas promove um sistema perverso,
onde os direitos se confundem com favores, distanciando-se da cidadania de fato.
Diante da fragilidade social, da precariedade e inconstância de recursos, a moradia de
aluguel, por consumir parte importante do instável capital disponível, é considerada uma situação
bastante precária, aceita apenas temporariamente enquanto se busca uma alternativa mais
adequada e definitiva, onde a autoconstrução parece ser a saída corrente e também a mais viável.
Desta forma a construção é executada, não apenas pelo próprios moradores, mas, com ajuda de
parentes e amigos e de forma bastante distendida ao longo do tempo, trazendo a impressão de
um estado de permanente incompletude. Ali, quem dita o ritmo são as possibilidades financeiras
da família. A construção pode ser executada com materiais leves e reaproveitados, como maderite e
fibrocimento, ou em alvenaria em tijolos, entre as duas opções jogam o custo, a solidez e o caráter
simbólico de uma “casa de blocos”, que, embora almejada, pode ter que aguardar os recursos
disponíveis. Quando não é construída sobre a própria moradia original, a nova casa é ocupada tão logo
tenham as paredes levantadas e uma cobertura, mesmo que provisória, onde a falta de revestimento se
confunde entre um momento intermediário de uma obra inacabada e uma situação estável onde se
garante a funcionalidade da moradia sem a necessidade de se arcar com os elevados custos de
acabamento. Custos que estão ligados não somente ao valor bruto dos materiais, mas também pela
necessidade de mão-de-obra especializada, distante da lógica “artesanal” da construção.
Ainda que seja autoconstruído, o que reduz os custos diretos e aumenta em muito a flexibilidade
do processo de construção, para que o abrigo possa ser construído, é necessário “conquistar” o espaço
onde este se erguerá. Todavia, neste ambiente bastante densificado as possibilidades são escassas e
a laje assume, desta forma, uma posição extremamente privilegiada. Sua existência, somente
possível nas moradias “em bloco”, garante uma provisão de “solo” disponível, plano, regular e de
propriedade incontestável, representando assim um enorme diferencial, tanto simbólico quanto
comercial, frente aos “barracos” e as antigas construções em adobe. Não dispor de laje nem terreno
livre, como ocorre nas realocações, pode significar a sujeição das famílias a refazer, para as novas
gerações, todo o processo de conquista da moradia, desde a etapas das invasões e conquista do
terreno.
Ainda que a situação de “irregularidade fundiária” pese sobre grande parte dos moradores de
ocupações, a existência de ações de urbanização, e com elas, o movimento de passagem “do gato ao
relógio”, confere a sensação de “legalidade” urbana. O ato de pagar pela água e luz os identifica como
consumidores, e portanto com o direito de morar, situação que favorece investimentos mais sólidos no
habitat, mesmo que este ainda siga sendo regido por regras flexíveis, onde o fornecimento não é
interrompido em casos de inadimplência.
As tortuosas ruelas de terra batida que formam as vias internas, embora sejam fortemente
associados à imagem simbólica da favela, não são uma materialização de uma cultura específica desta,
tampouco seriam simplesmente o resíduo de um processo urbano densificador. Entretanto parecem ser
o resultado de uma articulação entre necessidades coletivas, limites individuais e pré-existências na
disputa pelo espaço urbano. Um sistema de vias que não nasce da subordinação aos veículos
automotores, mas ao contrário, se mostra como o resultado da adaptação a uma topografia bastante
rigorosa, ao espaço exíguo, e principalmente, a uma dinâmica permanente de expansões e
transformações, que não é vinculada a um plano específico, mas a um conjunto de regras tácitas e
empíricas que garante o espaço de circulação e a privacidade esperados em cada setor.
A fronteira simbólica entre a favela e a cidade formal, é o momento onde muitas vezes se deixa o
asfalto carroçável e se passa às escadas e vielas estreitas e íngremes. Percorrendo estes caminhos
pode se presenciar a enorme variação do poder econômico e do acesso à infra-estrutura e serviços,
que vai perdendo seu vigor, a partir de um centro econômico e político, próximo à fronteira com a
cidade formal, a medida que vai adentrando em direção aos setores mais distantes, mais íngremes e
mais incertos. A urbanização se torna rarefeita, e o dinamismo econômico começa a ceder, ficando
cada fez mais incapaz de atender plenamente às necessidades locais. Se prosseguirmos adiante,
perceberemos que em seus extremos, quase toda favela possui uma área dramaticamente pobre,
áreas miseráveis onde a fragilidade social e econômica indica que são zonas de fronteira, onde
os serviços escasseiam, a acessibilidade é bastante restrita e as redes sociais se tornam
rarefeitas. Os frágeis abrigos erguidos ali denunciam a precariedade e a temporalidade da moradia,
que, com materiais reaproveitados e pouco rígidos, deve ser “reconstruída” de tempos em tempos.
3. Ainda Favela?
Lepetit (2001) descreve a habitação como signo social e suporte de uma prática cultural que não
são intangíveis, onde as maneiras de coabitar e a distribuição dos papéis entre os membros da
comunidade de moradores são capazes de evoluir em curto prazo. Desta forma deveríamos
“reconhecer que os subúrbios têm uma forte tendência a não continuar sendo subúrbios. [...] Lembrar
que um boulevard, na origem, é um passeio público arborizado que circunda uma cidade, comumente
ocupando o espaço onde estavam as antigas muralhas”. (PÉREC Apud LEPETIT, 2001, p.139)
A formação original das favelas nos remete aos materiais reaproveitados, recolhidos
aleatoriamente, como ponto de partida de uma construção que depende tanto do acaso dos
achados, quanto da criatividade e técnica elaborada na organização dos fragmentos. As sobras,
encontradas ao acaso, se tornam matéria-prima de uma composição “forçosamente fragmentada
no aspecto formal. À medida que o abrigo vai evoluindo, os pedaços menores vão sendo
substituídos por outros maiores, e o aspecto fragmentado da construção vai ficando cada vez
menos evidente” (JACQUES, 2001, p.23).
Ainda que o estado de permanente incompletude seja claramente identificável, tanto na
constante transformação e ampliação das residências, quanto na ausência quase unânime de
revestimento externo, a realidade atual das favelas é muito distante da imagem simbólica que
carregam: abrigos temporários e instáveis, construídos com restos diversos de materiais de construção.
Esta não é a característica do favelamento atual, Espinheira (2008) defende que este seja apenas a
fase inicial de uma ocupação, onde os barracos se transformam continuamente em busca do
último estágio reservado a um abrigo precário: à casa de alvenaria, sólida e permanente, que,
agora com a laje, cresce verticalmente. Se tais abrigos ainda existem, eles configuram apenas
estágios iniciais e provisórios das favelas, nas suas “franjas”, nas fronteiras incertas, onde a ameaça de
remoção pesa forte e silenciosamente, desestimulando qualquer investimento mais durável e custoso na
habitação.
Esta dinâmica construtiva incessante, que transforma o espaço-favela, e substitui os barracos de
maderite e fibrocimento por casas em alvenaria e laje, é apresentada por seus moradores como um
distanciamento da imagem estigmatizada que marca a ocupação. Ao utilizarem o termo “comunidade”
explicitariam simbolicamente a transformação processada no espaço como uma evolução, partindo e se
afastando da imagem tradicional da favela. O assentamento se transforma em algo que, ainda que não
possa ser identificado com a cidade formal, já não cabe mais no termo original.
O que é percebido por seus habitantes como parte de uma longa evolução, capaz de deixar para
trás uma situação estigmatizada e produzir um espaço mais próximo e integrado à cidade formal é
percebido fora dali como uma atualização do conceito, que pode até assumir uma nova materialidade
mas não se desvincula da imagem simbólica original. O próprio termo “comunidade” repetido a
exaustão, se torna um sinônimo que encapsula a estigmatização original sob uma roupagem
“politicamente correta”, insistindo em manter o distanciamento dos “excluídos”, não aceitando que a
imagem da pobreza e desordem urbanas se torne parte da cidade.
4. Meio Ambiente para Mudar a Vida
Quando Anatole Kopp (1990) propõe que o movimento moderno deveria ser mais do que um
estilo, ele entendia que este deveria criar o espaço para a formação da “nova sociedade”, se a cidade
era o reflexo da sociedade, “a sociedade nova, a sociedade socialista, deveria suscitar novas formas
urbanas. A cidade inteira deveria agir como um 'condensador social' gigante” (p.106), defendendo a ideia
de um meio ambiente capaz de mudar a vida.
Através de um pensamento semelhante, a experiência dos parques proletários, construídos
entre 1941 e 1944 no Rio de Janeiro, produzia verdadeiros “alojamentos de transição”, para “preparar”
os favelados a uma nova vida, onde, depois de re-educados, pudessem ser transferidos a um endereço
permanente, de forma que esta população não carregasse consigo velhos hábitos que pudessem
“contaminar” o novo espaço de moradia. Uma espécie de “tavola-rasa” do espaço social. “Não se tratava
apenas de retirar as famílias dos espaços insalubres das favelas, fornecendo-lhes novas moradias de
acordo com as regras sanitárias. O objetivo era também dar assistência e educar os habitantes para que
eles próprios modificassem suas práticas, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir sua
saúde física e moral” (VALLADARES, 2005, p.62). As representações extremamente negativas
existentes a respeito das favelas, associadas a doenças e mal comportamento permitiam apenas dois
modos de se tratar o problema: exterminá-las ou “re-educar” sua população para que se esta se
adequasse à vida partilhada em sociedade e não continuasse a reproduzir o espaço “degradado” que
havia criado.
Do mesmo modo, a utilização de conjuntos habitacionais tradicionais, elaborados conforme a
realidade espacial e social da cidade formal, como modelo de reassentamento de populações faveladas,
também denuncia a intenção de gerar na população abrigada hábitos e padrões específicos, numa
busca de “prepará-los” para uma possível integração. Os blocos de apartamentos reproduzidos desta
forma, com unidades rígidas, sem espaço para expansão, sem possibilidade de utilização da laje e com
manutenção cara, demonstram um total descompasso com as práticas correntes nos espaços de
urbanização rarefeita.
Com elevadas taxas de natalidade e grande fragilidade social, uma situação onde os escassos
recursos são também bastante instáveis, apresentando forte dependência das redes sociais e de
solidariedade existentes no espaço, as populações das favelas necessitam de uma grande flexibilidade
quanto à disponibilidade financeira e uma forte adaptabilidade do espaço de habitação. Desta forma se
torna muito importante a possibilidade de expandir a residência original - para não sujeitar as novas
gerações à necessidade de reproduzir o processo de invasão e conquista do solo -, e que esta
expansão possa ser feita no mesmo local, ou próximo dele, para não se romperem os antigos laços
sociais. Adicionalmente as famílias ainda buscam obter algum retorno financeiro com estas ampliações,
através de habitações de aluguel ou mesmo através da construção de um pequeno espaço comercial.
“As favelas vão se formando através de um processo arquitetônico e urbanístico vernáculo
singular, que não somente difere do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos seria mesmo seu oposto -, mas também se investe de uma estética própria, com características
peculiares, completamente diferentes da estética da cidade dita formal” (JACQUES, 2003, p.13). A
distância que se forma entre estes universos bastante díspares, e a incapacidade apresentada de se
conjugar as diferentes linguagens, ou mesmo de dialogar com o processo e a estética originária das
favelas, demonstra que “a lógica racional dos arquitetos e urbanistas, ainda prioritária, acaba impondo
sua própria estética” (ibid, p.14). Acreditando assim, que para ser possível produzir uma verdadeira
integração, a favela deva ceder, se aproximar e reproduzir a lógica e a estrutura de um bairro formal.
Das tensões existentes nesta incompatibilidade cria-se um híbrido, os conjuntos começam a
ceder às pressões de uma população que o transforma de acordo com seus valores e suas
necessidades, impondo uma flexibilidade e uma densidade construtiva muito maiores do que o projeto
original poderia supor. As diversas ampliações, adaptações e diferentes reinterpretações do projeto
original, alteram o conjunto de tal forma que em pouco tempo ele mal se diferencia da favela original.
Neste sentido, LAY & REIS (2004) citam a indefinição hierárquica e a falta de relação entre espaços
livres e edificações como responsáveis por uma “rejeição” do espaço por parte dos moradores, que ao
não se apropriarem socialmente destes, deixam aberto o caminho para as privatizações e
transformações. Os espaços abertos cedem portanto, frente a pressão econômica e demográfica, por
sua inadequação formal e estrutural e pela dificuldade no entendimento da responsabilidade territorial
dos espaços coletivos.
Estas tensões existem porque a maneira de viver originária das favelas se aproxima mais da
ideia de abrigar que de habitar. Trata-se de uma outra relação de temporalidade, “a grande diferença
entre abrigar e habitar vem do fato de que abrigar é da ordem do temporário e do provisório, enquanto
habitar é da ordem do durável e do permanente. O abrigo é provisório mesmo que ele deva durar para a
eternidade; a habitação, ao contrário, é durável, mesmo que vá desmoronar amanhã” (JACQUES, 2003,
p.26). Além disso, no modo de conceber o espaço dos projetos arquiteturais, a finitude da forma já é
predefinida e fixa, ao passo que, nas favelas, os abrigos quase nunca estão terminados nem têm forma
fixa” (ibid, p.56), e só vão tendo o contorno da forma do espaço em construção à medida que a vão
investindo. Sobrepor estas duas concepções significa cessar os movimentos preexistentes,
interrompendo “os fluxos naturais e espontâneos, as linhas de fuga e as linhas de desterritorialização
das favelas já existentes” (ibid, p.142).
5. Favela e Cidade Formal
“As favelas continuam a ir além de seus limites por meio das relações que estabelecem com a
cidade, às vezes culturais, coletivas como o samba e o carnaval. Mas elas extravasam,
sobretudo por meio de elos que se estabelecem de maneira mais sutil e penetrante, de modo
mais “subterrâneo”: em relações individuais, já que a maioria dos favelados trabalha nos bairros
formais da cidade, às vezes, como empregados domésticos que moram, durante a semana, em
apartamentos dos bairros ricos.” (JACQUES, 2003 p.106)
Se ao longo das últimas décadas, a exclusão social e a ilegalidade urbana foram
“territorializadas” nas favelas, nos últimos anos a violência urbana seguiu o mesmo caminho, e,
como toda a cidade, os moradores dos assentamentos recebem o bombardeamento midiático da
violência e da desordem urbana e social, quase sempre relacionada de alguma forma com as
favelas. Tais populações, ao não se identificarem com as imagens expostas, passam a partilhar
com a cidade formal muitos dos preconceitos e estigmatizações existentes em relação às favelas,
com isto, se colocando em uma posição diferenciada: ao entender que o local onde vivem não é
igual ao exposto pelas telas de TV, assumem seu espaço como “algo diferente”, que não se
enquadra na imagem fornecida. Esta condição favorece o entendimento de que existam, em
algum lugar, espaços que possam abrigar tal violência, justificando assim o estigma que o nome
favela porta. Existe aqui uma reafirmação simbólica, do “outro” como o excluído, elaborada em
dois movimentos contraditórios: ao nomear seu lugar de origem por “comunidade”, o morador da
favela expõe “esse lugar como uma unidade fechada, mas, ao mesmo tempo reafirma a
particularidade do seu território em relação à cidade, negando o estigma que este carrega, mas
aceitando e colocando esse estigma em outras favelas” (LAGO, 2003, p.2).
Através dos altos níveis de violência urbana, exacerbados pela superexposição midiática, da
associação usual da pobreza urbana como intrinsecamente ligada ao crime, e dos enfrentamentos que,
por vezes, e pontualmente, ultrapassam os seus limites, a favela é sentida como ameaça silenciosa e
latente que pode “transbordar” em direção à cidade. Esta situação reforça atitudes de fechamento e
estigmatização, além de ser utilizada, de acordo com Compans (2007), se servindo da política
ambiental, associada à necessidade de segurança, como justificativas para resgatar os movimentos de
remoção, seja através de um controle mais rígido sobre as expansões das favelas existentes, como pela
eliminação de “embriões de favelas”, evitando desta forma que se desenvolvam como suas irmãs
maiores, multiplicando o problema.
A partir da favela, a cidade formal é vista como um espaço opressivo, sujeito a controles,
obrigações e censuras, fruto de uma “integração” em desequilíbrio, que os absorve como força de
trabalho, extraindo o labor necessário, sem que isto signifique a partilha do espaço social. Neste
contexto, o espaço-favela se configura como um território “familiar”, ainda que apresente distintos
graus de apropriação e de acesso ao poder político e econômico. Podemos, desta forma, perceber
que a descrição que os moradores dos assentamentos informais apresentam da cidade formal é
bastante ambígua, sendo fortemente carregada de imagens negativas quando se referem a um
suposto tolhimento de suas liberdades individuais, se contrapondo, neste ponto, a uma favela que
proporciona a ideia de uma apropriação plena, com acordos tácitos regidos pelo senso comum e onde
os limites não estão escritos em leis, mas são exercidos através de uma “consciência de
comunidade”, segundo a qual as ações se organizariam de forma “naturalmente” justa e onde o
diálogo poderia solucionar eventuais divergências.
Ainda que funcione muito melhor na teoria do que na prática, este entendimento reforça a
imagem de “comunidade” que se pretende transmitir: um espaço onde quem faz as regras são os
próprios moradores, em oposição a uma organização formal, na qual a expressão do poder oficial fica
muito mais evidente através das ações coercitivas e repressoras, do que pelo entendimento dos
mecanismos garantidores da representatividade e da participação popular na formulação das regras
institucionais.
Ao negarem o nome “favela”, e se auto-afirmarem como comunidades, ao mesmo tempo que
afirmam uma “convivência entre iguais”, reforçam, por outro lado, o distanciamento e a segregação
espacial, salientando sua diferença frente a ocupação formal da cidade. Tal denominação utilizada
indiscriminadamente parece expressar uma “identidade” apenas na contraposição à cidade, por
reafirmar a precariedade urbana; por legitimar benefícios requisitados em nome da “comunidade”; ou
para justificar uma liberdade e uma flexibilidade da estrutura urbana que não é encontrada ou
permitida na cidade formal. Seus habitantes se articulam dentro de um campo de forças, se
equilibrando entre a integração através do pertencimento a um universo maior; um recrudescimento
em seu espaço de “segurança”, ainda que seja estigmatizado pela pobreza, desordem e violência; e
as fantasias - e frustrações - de uma comunidade almejada em seu território apropriado.
A cidade formal, por seu lado, exercita a dificuldade de lidar com a incômoda convivência com
estes “bolsões de pobreza”, através de tentativas de limitação de sua expansão, da implantação de
eco-limites, de barreiras, estrangulamento de acessos e confinamentos. A estratégia de esconder,
vigiar e controlar está ligada ao medo, à desconfiança do outro e ao choque da partilha do espaço
urbano por populações com acentuada iniquidade. “Tentam invisibilizar a realidade da favela,
escondendo a feiura e o atraso, demonstrativos, entre outras coisas, daquilo que não se quer ver, a
difícil situação do país e a incompetência em administrar soluções” (SOUZA, 2007, p.66). E, quando
eventualmente admitidos na paisagem, são inseridos como imagem remota e estática, como uma
espécie de pintura, separada da cena urbana vivida.
É na partilha do espaço que a diferença se torna evidente e a territorialidade aflora mais
forte. Esta territorialidade é, todavia definida no sistema de relações com o que lhe é externo, ou
seja, com a alteridade. “Ela está impregnada de laços de identidade, que tentam de alguma forma
homogeneizar esse território, dotá-lo de uma área/superfície minimamente igualizante, seja por uma
identidade territorial, seja por uma fronteira definidora de alteridade” (SERPA, 2004, p.25). Tais limites
no entanto não são tão simples de definir, e mesmo entre habitantes próximos não existe
consenso. Os moradores da favela sobem a ladeira em meio às últimas evidências da cidade
oficial, uma fileira de residências e blocos de apartamentos bem acabados, para, somente no topo
desta, onde a pavimentação termina e as escadas e vielas tomam o seu lugar, adentrar finalmente
na “comunidade”, onde reconhecem as primeiras biroscas e casas de conhecidos. Por outro
ângulo, a partir do “bairro”, ao se avistar os primeiros sinais simbolicamente associados ao
espaço-favela - moto-taxis enfileirados, comércio informal e aclividade - é suficiente para
identificar, ainda fora da ladeira, aquele espaço como favela, e assim, demarcá-lo como
desconhecido e temido. Enclavados entre estes dois universos, os habitantes da própria ladeira,
se esforçam em afirmar o distanciamento e a diferença em relação ao espaço de fragilidade social,
numa reação à incômoda convivência forçada entre “estranhos”, ao temor pela violência latente e a
desvalorização que trazem aos imóveis.
Esta clivagem espacial deu origem a ideia de “exclusão social” da favela, bastante difundida,
mas fortemente criticada por Perlmann (2002), que demonstra que a integração não é só econômica,
mas também cultural e politica. A ideia de que seriam marginais à economia nacional, se origina no
fato desta integração se realizar de uma maneira não equilibrada, que lhes é prejudicial: “integração
nem sempre implica reciprocidade” (p.288). A propagada ideia de marginalidade atenderia todavia a
interesses estabelecidos, pois, como marginais, “não tinham direitos ou exigências a fazer ao
sistema, sendo, portanto, mais fáceis de manipular” (p.292). Seria mais adequado, portanto,
pensarmos em termos de uma urbanidade centrífuga, onde as pessoas são empurradas para longe
dos centros de decisão e poder, e do acesso à infra-estrutura e serviços. Onde os constrangimentos
severos vividos demonstram que mais do que “dentro” ou “fora” da cidade, estão na/à sua margem,
uma urbanidade periférica, onde periferia adquire aqui uma conceituação sociológica e não física e geo
gráfica, “pode se estar ao lado e ser periférico” como defende Espinheira (2008).
6. Território das Negociações e Disputas
A falta de homogeneidade interna do espaço-favela testemunha as diversas possibilidades de
apropriação e pertencimento a um território que, embora seja considerado “excluído”, possui
igualmente seus mecanismos excludentes internos, que se articulam conforme o tempo de
permanência, posição sócio-econômica e local de origem das populações da localidade. Estas
relações se encontram impressas de forma bastante nítida na distribuição espacial do território, com
vetores centrífugos partindo das áreas centrais, onde as relações com o solo encontram-se mais
estabilizadas, onde se concentra o maior capital social e onde se encontra a maior parte da vida
comercial da localidade (BURGOS, 2002). De modo similar aos mecanismos de segregação
elaborados pela cidade formal, ascender em direção a este espaço, se distanciando cada vez mais
da periferia, faz parte das disputas e estratégias territoriais postas em prática no espaço-favela.
Estas regiões se organizam nas linhas de “fronteira” com a cidade formal e são privilegiadas pois
seus moradores se servem de maneira mais direta dos serviços existentes na cidade, tendo boa
acessibilidade e, mantendo, ao mesmo tempo, uma relação sócio-territorial, caracterizada por uma
posição de prestígio em sua inserção nas redes sociais da comunidade.
Ainda que por vezes possuam níveis sócio-econômicos muito similares aos bairros formais,
deixar esta posição na comunidade significaria abdicar das relações consolidadas de vizinhança, do
prestígio de uma inserção privilegiada nas redes sociais e obrigaria, ao mesmo tempo, a uma
exposição mais direta ao estigma e segregação direcionados aos (ex)moradores das favelas.
As famílias que se encontram nestas áreas não ocupam tal espaço desde o momento de
sua chegada ao assentamento. O que encontramos na maior parte das vezes são moradores Que
apresentam um longo histórico de deslocamento interno, desde as partes mais periféricas, e de
difícil acessibilidade, em um movimento, fruto de negociações e disputas, onde as chances de
sobrevivência são ditadas pelo poder econômico, pelo tempo de permanência e através da
articulação com as redes sociais existentes. Esta dinâmica permite que, numa trajetória socialmente
ascendente, se aproximem do centro político e econômico, e, no caso contrário, acabem gerando
movimentos centrífugos, que pressionam em direção à periferia territorial da favela, tocando, muitas
vezes, os “limites” de expansão horizontal da ocupação, áreas de difícil acesso e maior exposição
aos riscos geológicos e mesmo de remoções, pois se situam sobre áreas de “preservação”.
Apesar da densidade e compacidade usual das favelas, por vezes podemos encontrar um
espaço de circulação relativamente amplo, com razoável arborização formando pequenos largos
ou recantos de parada que são utilizados pelos moradores em encontros eventuais, conversas
entre vizinhos e mesmo para o lazer das crianças. Este tipo de espaço é bastante valorizado e
sua ocupação com construções é entendida como totalmente proibida, tanto pela associação
como pelo senso comum. Da mesma forma, a expansão para além do perímetro atual da favela,
ainda que ocorra, é bastante restrita. Estas áreas, por estarem situadas além dos “eco-limites”
determinados pela prefeitura, estão sujeitas a riscos permanentes de remoção, risco este que
mantém as moradias dali em situação extremamente precária, servindo como abrigo temporário a
famílias em condições de acentuada precariedade, buscando espaço no interior da favela. Ali,
dificilmente irão investir na moradia, e seu destino incerto depende dos movimentos de remoção
que atuam sobre tais expansões, das possibilidades de se transferirem ao “interior” do
assentamento ou do longo processo de solidificação e resistência que poderia deslocar a
“fronteira” adiante.
Deste modo, podemos concluir que qualquer expansão no interior da favela só pode ser
feita através do adensamento nos “lotes particulares” ou sobre as lajes das casas existentes.
Ainda assim, em um passeio por suas ruelas podemos evidenciar construções sendo executadas
sobre os espaços livres do miolo da ocupação, o que denuncia a existência de outros fatores
atuando sobre o espaço, além das afirmadas regras tácitas. A associação de moradores atua
nestas questões em nome de um “interesse comum” dos moradores, com poder de juízo e
controle, buscando preservar, de forma ativa, o espaço comum existente, entretanto, a atuação,
rigorosa na parte central da favela, não mantém a mesma rigidez na área periférica. Próximo aos
limites, onde a ocupação é menos densa e a vida mais precária, as vielas, que servem a grupos
restritos, não resistem à pressão por pequenos “desvios” urbanísticos que buscam melhorar o
espaço doméstico às custas de passagens mais estreitas.
Também devemos entender que a legitimidade conquistada por moradores antigos, com
forte inserção nas redes sociais da comunidade, pode ser suficiente como garantia de assistência
no caso de uma degradação acentuada nas condições de vida da família. Uma remoção, após
muitos anos se equilibrando além dos eco-limites, ou alguma incapacitação física, por acidente ou
fruto da idade avançada, que impeça a sua mobilidade nas ladeiras, podem ser entendidas como
condições suficientes para a flexibilização de tais regras, permitindo assim a ocupação de um
novo espaço, mais próximo dos acessos e da parte mais urbanizada da favela.
7. Redes de Solidariedade, a Busca da Comunidade
Quanto mais instável e insegura a situação sócio-econômica das populações, maior é a sua
necessidade de alinhamento às redes sociais para conquistar seus direitos à cidade, à moradia, ou
mesmo possibilitar o acesso ao trabalho. Nas zonas mais precárias, nas fronteiras das favelas,
entre movimentos ascendentes e descendentes, se faz uma espécie de “triagem” entre aqueles
que serão incluídos e aqueles que terão que abrir mão da estrutura informal de auxílio. Ainda
que sejam exercidos em rede, e desta forma dispersos e difusos no espaço, os mecanismos de
ajuda podem também conferir prestígio e legitimidade ao exercício da autoridade. Desta forma, “não
é da generosidade do morador da favela que os miseráveis esperam a solidariedade, mas da
engrenagem existente no micro-sistema da favela, que torna obrigatório para as lideranças socorrer as
pontas mais frágeis daqueles que pertencem ao território” (BURGOS, 2002, p.50), É essa solidariedade
baseada no território que explica a manutenção, em última instância, da própria noção de “comunidade”,
ainda que inadequada enquanto conceito, perfeitamente ativa e recorrentemente utilizada pelos
moradores das favelas.
As redes sociais permeiam de forma bastante profunda o universo da cidade informal, o próprio
mercado imobiliário é necessariamente regulado por contratos baseados em relações interpessoais, que
têm por código dimensões como a lealdade e a confiabilidade. “Não é por acaso que, dificilmente, um
novo morador chega à favela sem algum tipo de conhecimento prévio. Seu ingresso no território da
favela precisa de um mediador, uma espécie de "fiador" informal, em geral um parente ou amigo”
(BURGOS, 2002, p.47). Na ausência de tal suporte, os novos habitantes legitimam seu pertencimento
à localidade, através de um processo de “enraizamento”, onde abrigam-se, inicialmente, em cômodos
de aluguel, assumindo uma condição de associados, que se aproxima a de “hóspedes” do proprietário
da casa principal. Esta situação de convivência em habitações de aluguel significa, frequentemente,
convívio próximo e contato estreito, portanto necessitam de respeito e obrigações mútuas, das quais
depende a permanência do inquilino. Passado este momento inicial, o morador “temporário” começa a
se tornar conhecido e tecer suas próprias redes de sociabilidade, passa então a buscar um espaço onde
poderá erguer um futuro embrião. Quando por fim se torna proprietário de uma casa na localidade,
estabelece ali uma nova base de penetração, pra onde poderá trazer futuramente amigos ou familiares
de seu local de origem, segundo suas redes sociais originais.
Apesar da constantemente reafirmada coesão entre os moradores e da suposta condição de
“comunidade”, a partilha do espaço nem sempre se mostra tão simples e igualitária. Muros e
cercamentos surgem por todo lado - como forma de delimitar e demarcar os espaço privados entendidos como necessários, por fornecer privacidade e segurança, ainda que sejam identificados
como responsáveis por um maior distanciamento entre os moradores, e um passo no sentido oposto da
propagada noção de “comunidade”.
Conforme Pierucci (2003), o processo de modernização econômica excludente, pelo qual está
passando a sociedade, e principalmente as cidades brasileiras, exacerba um fenômeno de
estranhamento, através da preocupação a respeito de um futuro pior, valorizando a situação existente
no passado. Se grande parte das favelas recebe, dos bairros vizinhos, a “responsabilidade” por tal
degradação na cidade, perceberemos paralelamente que, no interior delas, é o migrante nordestino ou
do interior que, tardiamente incorporado, porta a imagem do “outro”, o aspecto fisicamente identificável
das mudanças no ambiente. Ao contrário da esperada “solidariedade”, surge uma forte distância social e
a rejeição dos antigos moradores frente aos recém-chegados produz uma tentativa de marcar as
diferenças, reunindo-os sob a denominação generalizante de “paraíbas”, identificando-os, à semelhança
da discriminação sofrida frente à cidade formal, como responsáveis pela degeneração da localidade.
8. Considerações Finais
O fenômeno favela não deve ser entendido como espaço específico, locus da pobreza e
ilegalidade urbanas, visto que as “marcações” utilizadas para diferenciá-lo da cidade formal não são nem
exclusivas de tais áreas, nem tampouco necessariamente encontradas ali. A marcante heterogeneidade
existente entre os diferentes territórios identificados como espaço-favela, ou mesmo as grandes
diversidades no interior destes, torna perigosa e arbitrária tal generalização. Entretanto, a favela ainda
permite ser identificada e compreendida como tal pelo senso comum, através da interpretação de um
conjunto de signos associados ao espaço-favela, e, principalmente, parece ser o locus de práticas
específicas e portadora de “disposições”, que não são identificadas simples e diretamente como
características específicas das camadas mais pobres da cidade. Modos de vida que não podem ser
completamente subjugados pelas estruturas da cidade tradicional e formal sem que isto signifique a
perda de suas características mais marcantes e de sua espontaneidade.
Ainda que algumas habitações nas favelas atinjam valores próximos ao de suas equivalentes
na cidade formal, mais do que o valor bruto do imóvel acabado, as facilidades do mercado informal
estariam ligadas à capacidade de articular e absorver a informalidade, onde as garantias são extraídas
das relações sociais e à extrema flexibilidade quanto à instável disponibilidade de recursos, onde o
domicílio se desenvolve em pequenas evoluções sucessivas, segundo as condições e necessidades
familiares específicas de cada momento. Por este processo, um pequeno barraco improvisado não
está fadado a permanecer instável e minúsculo, pode ser transformado, sucessiva e lentamente, até
se tornar uma casa ampla, receber paredes em bloco, acabamentos e laje. Desta forma, a
característica de “incompletude” da moradia, tanto quanto pela transformação continuada, como pela
ausência de revestimentos não só não significam nenhum constrangimento, como representam a
prática corrente.
As favelas, que segundo Kopp (1990) seriam capazes de exprimir a liberdade e a vontade
criadora das massas, articulam um espaço onde as regras são ditadas pela necessidade, articuladas e
negociadas entre os que partilham o território. Nas rígidas intervenções, elaboradas inadvertidamente
neste espaço, podemos perceber o conflito gerado pelo desequilíbrio entre anseios e práticas de uma
população que produziu seu próprio espaço, tentando lidar, a seu modo, com a rigidez das regras
tradicionais.
Se tanto o método construtivo, quanto os materiais empregados reproduzem a solução
tradicional, que muitas vezes não se mostra a mais adequada às situações específicas e às condições
locais, esta ação estaria ligada ao medo de arriscar os pesados investimentos da moradia, a um
conhecimento adquirido na produção da cidade formal - da qual tomam parte como parcela executora
-, mas também a uma preocupação de não produzir um padrão de construções que os diferencie
negativamente da cidade formal, em relação a qual alimentam o desejo de inclusão.
A difundida noção de “comunidade”, mobilizada de modo bastante inadvertido, oscila entre a
possibilidade de inclusão e a reafirmação do distanciamento ao servir “como mecanismo de
pavimentação da solidariedade interna à favela, e enquanto moeda de negociação com os atores da
cidade.” (BURGOS, 2002, p.88). A aparente “desorganização” do espaço construído é resultado desta
ambiguidade, fruto de disputas e negociações onde pesam a antiguidade, as articulações sociais e os
recursos particulares, em uma estrutura onde as diretrizes urbanísticas tradicionais sucumbem à
carência de recursos e espaço. Um panorama onde as necessidades individuais partilhadas são
entendidas como interesse coletivo, e seguem pressionando o espaço livre, até o limite de sua
funcionalidade básica de circulação. O próprio termo “comunidade”, não parece ser entendido como
uma “identificação”, mas a expressão de uma oposição, buscando, sem sucesso, uma diferenciação
que fosse capaz de escapar ao estigma que alimenta a segregação sócio-espacial sofrida.
Os avanços conquistados desde a política de remoções das décadas de 60 e 70 - marcadas
pela arbitrariedade e pelo emprego da violência - através do processo de redemocratização da
sociedade brasileira, tornaram possível a difusão de questões como o direito à cidade, a regularização
fundiária e a prática de urbanização de favelas. Entretanto, não foram suficientes para vencer os
estigmas e produzir uma aproximação social plena, onde a integração não seja restrita e fortemente
hierarquizada. Da mesma forma, não impediram que ainda hoje se possa identificar vozes dissonantes,
se valendo tando da política ambiental, quanto do combate à violência, para justificarem a defesa de
remoções, controles mais restritos e limites rígidos à sua expansão.
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