Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil: uma investigação sobre neoliberalismo, desigualdade e injustiça social (1946 – 1994)
O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil: uma investigação sobre neoliberalismo, desigualdade e injustiça social (1946 – 1994)
O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil: uma investigação sobre neoliberalismo, desigualdade e injustiça social (1946 – 1994)
E-book638 páginas8 horas

O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil: uma investigação sobre neoliberalismo, desigualdade e injustiça social (1946 – 1994)

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O livro de Fernando Mendes Coelho representa um avanço significativo em termos de reflexão e análise nas investigações sobre a história do neoliberalismo no Brasil. O autor, de forma original, propõe situar o ingresso das ideias do economista Friedrich A. Von Hayek no país já a partir do ano de 1946. Considerando a influência do economista austríaco e a difusão mundial de seu pensamento e obras, o enfoque da pesquisa de Coelho se concentrou em escrutinar detalhadamente como as ideias de Hayek chegaram ao Brasil. Segundo o autor, a entrada das propostas de Hayek não aconteceu de forma linear e apresentou avanços e desacelerações ao longo das décadas que englobaram o desafiador recorte temporal analisado (1946-1994). Diante desses elementos preliminares generalizantes, e apenas supostamente conhecidos de um público de leitores afetos ao tema (sejam tais leitores acadêmicos ou não), resulta a originalidade, a contribuição e os impactos da pesquisa desenvolvida. O estudo tem como uma de suas teses basilares reafirmar a urgência em conhecermos e refletirmos sobre os imensos prejuízos individuais e coletivos quanto ao ingresso e à difusão de doutrinas e práticas do neoliberalismo, principalmente, quando se trata de sociedades de tamanha desigualdade histórica como a brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de mar. de 2024
ISBN9786527010692
O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil: uma investigação sobre neoliberalismo, desigualdade e injustiça social (1946 – 1994)

Relacionado a O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil

Ebooks relacionados

Filosofia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O Pensamento de Friedrich A. Hayek no Brasil - Fernando Mendes Coelho

    CAPÍTULO 1

    O PENSAMENTO NEOLIBERAL NO BRASIL

    O primeiro capítulo tem o objetivo de estruturar as balizas teóricas e historiográficas para entender os mecanismos de propagação da ideologia neoliberal, elencando primeiramente as diferenças entre o liberalismo clássico e o neoliberalismo, para depois identificar as distinções entre aspectos de expressão e ação do neoliberalismo chamados por Sebastião Velasco e Cruz como doutrina, movimento e ação política. Após as devidas discussões teóricas iniciais, adentro em elementos da historiografia e da história do pensamento econômico brasileiro, discutindo os diferentes períodos que envolvem o recorte temporal desta pesquisa. Inicialmente trato do período Dutra a João Goulart (1945-1964), trazendo o protagonismo e os embates de Eugênio Gudin com economistas de outras linhas teóricas, como Roberto Simonsen e Raúl Prebish, avanço nas seções seguintes no período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), por fim discuto alguns aspectos dos primeiros think tanks neoliberais. O objetivo da contextualização historiográfica é expor ao leitor o ambiente econômico e político no qual Hayek foi recepcionado ao longo das diversas ondas de entrada do seu pensamento no Brasil.

    1.1 AS DIFERENÇAS ENTRE LIBERALISMO, CONSERVADORISMOE NEOLIBERALISMO

    Antes de iniciar a discussão a respeito das dimensões do neoliberalismo, é necessário definir o que é o neoliberalismo. Esse esforço de definição e diferenciação em relação ao liberalismo econômico clássico é necessário, pois não se trata da mesma coisa. Incluir o conservadorismo também é importante no processo de definição do conceito, pois conservadorismo e neoliberalismo caminham juntos. Não tenho a pretensão de trazer um conceito fechado, até porque é um campo de discussão bem arenoso dentro da história política e da história das ideias, justamente pela plasticidade dos conceitos, e procurar uma definição definitiva pode ser uma armadilha. O que pretendo é apresentar um corpo teórico que direcione alguns pontos que são convergentes dentro da discussão sobre o assunto. Para essa finalidade, optei primeiramente por separar liberalismo de neoliberalismo e discutir como o conceito de conservadorismo pode apresentar diferentes perspectivas quando é feita a devida separação. Segundo, ao definir o que é neoliberalismo e seu marco de fundação, construo uma baliza teórica que vai me guiar ao longo de toda a pesquisa, sem incorrer no risco de cair em anacronismos e empregar conceitos de forma imprecisa.

    Começo com uma passagem sobre o liberalismo presente na obra A nova razão de mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval, em que os autores expõem que a definição do liberalismo sempre foi problemática:

    O liberalismo é um mundo de tensões. Sua unidade, desde o princípio, é problemática. O direito natural, a liberdade de comércio, a propriedade privada e as virtudes do equilíbrio do mercado são certamente alguns dos dogmas do pensamento liberal dominante em meado do século XIX. Modificar os princípios seria quebrar a máquina do progresso e romper o equilíbrio social. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 37).

    Os autores apresentam as bases do pensamento liberal do seu início até meados do século XIX. Do lado dos fundamentos econômicos, são elencados a liberdade de mercado, propriedade privada, equilíbrio do mercado; pelo lado da política e do direito, o conceito de direito natural. São duas dimensões bem importantes do pensamento liberal, pelo lado político ampara a democracia e a liberdade individual e pelo lado econômico sustenta a importância da liberdade de mercado. Karl Mannheim faz uma afirmação em relação à importância do campo econômico para os liberais: [o] sistema económico é uma parte essencial da vida social e uma força formativa poderosa no ambiente do homem, operando através do mecanismo psíquico da ambição, da luta pelo sucesso (MANNHEIM, 1974, p. 62).

    As contribuições de Karl Mannheim contribuem para reforçar do que se tratava o liberalismo clássico, chamado pelo autor de liberalismo revolucionário:

    O liberalismo revolucionário entendia por liberdade, na esfera econômica, a libertação do indivíduo em relação a suas ligações medievais com o estamento e as corporações. Na esfera política, entendiam-na como o direito do indivíduo fazer o que desejava e o que achava conveniente e, especialmente, o direito ao mais completo exercício dos inalienáveis Direitos do Homem. De acordo com esse conceito, a liberdade do homem só conhece limites quando ela prejudica a liberdade de seus concidadãos. (MANNHEIN, 1986, p. 115).

    É expressa na citação os limites do liberalismo, inicialmente como um avanço em relação aos limites da sociedade feudal. Tratava-se de uma filosofia iluminista que desconectava o homem de sua subordinação na estrutura econômica medieval, ao mesmo tempo que politicamente promovia um regresso aos valores democráticos da antiguidade, com todas as ressalvas quando comparamos com a democracia atual, enquanto no campo jurídico criava os Direitos inalienáveis do Homem. O liberalismo foi a matriz da doutrina mercantilista e foi resultado de uma mudança da estrutura econômica com o avanço dos Estados Nacionais Modernos e das políticas de acumulação do metalismo. Nesse processo surgem importantes autores no campo econômico, como na fisiocracia que teve como um dos principais expoentes Fraçois Quesnay, avançando com Adam Smith, David Ricardo, Jean Baptiste Say, Thomas Malthus, na economia clássica. Nesta mesma discussão o pensamento utilitarista ganhou destaque com Jeremy Benthan e com Condillac ainda no século XVIII (DENIS, 1978, p. 161-228). Sem adentrar nas especificidades do liberalismo, primeiramente apontei os principais pensadores do campo econômico, como forma de ilustrar a robustez de um pensamento que orientou o mundo ocidental a partir do século XVI, e, ao longo de aproximadamente 300 anos, surgiram inúmeros outros autores e interpretações do liberalismo em cada país onde a doutrina era a base de governo.

    Isaiah Berlin aponta outras características que servem para pensarmos o que foi o liberalismo clássico e seus limites:

    Os liberais acreditavam no poder ilimitado da instrução e da moralidade racional para superar a miséria e a desigualdade econômica. Os socialistas acreditavam que uma mudança no sentir ou no pensar dos indivíduos não seria suficiente, sem alterações radicais na distribuição e no controle dos recursos. Conservadores e socialistas acreditavam no poder e na influência das instituições; e encaravam-nas como salvaguardas necessárias contra o caos, a injustiça e a crueldade causadas pelo individualismo descontrolado. Os anarquistas, os radicais e os liberais suspeitavam que as instituições constituíssem obstáculos à realização de uma sociedade livre e racional. (BERLIN, 1969, p. 1).

    A citação diferencia uma série de doutrinas políticas, opondo as disputas entre liberais, conservadores, socialistas e anarquistas. Destaco as diferenças entre liberais e conservadores, pois, de acordo com os liberais, existiriam forças morais e racionais que levariam com o tempo à superação da miséria e da desigualdade econômica, e pelo lado conservador o amparo nas instituições como forma de superação das injustiças e do individualismo descontrolado. Ao longo da sua discussão sobre o tema na obra Quatro ensaios sobre a liberdade, Berlin (1969) aumenta a densidade de sua argumentação citando filósofos liberais com uma visão otimista da sociedade e conservadores com uma visão mais pessimista ou realista:

    Filósofos com uma visão otimista da natureza humana e com a crença na possibilidade de harmonização dos interesses humanos, como Locke ou Adam Smith, e, sob certos aspectos, Mill, acreditavam que o progresso e a harmonia social eram compatíveis com a manutenção de ampla área para a vida privada, além de cujos limites nem o Estado nem qualquer outra autoridade teriam permissão de passar. Hobbes, e os conservadores e reacionários que pensavam como ele, argumentava que, para evitar que os indivíduos se destruíssem uns aos outros e transformassem a vida social em uma selva, seria necessário instituir maiores salvaguardas para mantê-los em seus lugares. Isto é, aumentar o controle e reduzir a área de liberdade do indivíduo. Mas liberais e conservadores concordavam que uma parcela da existência humana precisa continuar independente da esfera de controle social. Qualquer que seja o princípio segundo o qual deva ser traçada a área de não-interferência — o direito natural ou os termos de um imperativo categórico, a sacralidade do contrato social ou qualquer outro — liberdade nesse sentido significa liberdade de: ou seja, ausência de interferência além da linha traçada. (BERLIN, 1969, p. 13).

    Cabe destacar que a ideia de conservadorismo discutida pelo autor é uma contraposição ao otimismo do liberalismo baseada na economia e na política, e não a noção de conservadorismo moral e religioso do século XX e XXI. Quando falamos em conservadorismo, temos a reação ao liberalismo e ao individualismo dos séculos XVI ao XIX. Tratava-se das preocupações dos limites institucionais e do controle social, que de acordo com autores como Hobbes era necessário para que a sociedade não entrasse em colapso. O ponto crucial eram as fronteiras da liberdade individual em relação à harmonia social. Essa reação ao liberalismo produziu a construção de teorias sistemáticas por parte dos conservadores para pensar as formas de atuação das instituições no intuito de limitar a liberdade individual⁸, por outro lado, a narrativa conservadora produziu uma errônea e até certo ponto rasa percepção de que todos os homens eram iguais em todos os aspectos⁹.

    Neste contexto, ainda de acordo com Karl Mannheim:

    A necessidade política obrigou os conservadores a desenvolverem seu próprio conceito de liberdade, para opô-lo ao dos liberais, e eles criaram o que podemos chamar de uma ideia qualitativa de liberdade para a distinguir do conceito igualitário revolucionário. (MANNHEIM, 1986, 117).

    A necessidade dos conservadores de produzirem uma doutrina de contraposição com os valores liberais do iluminismo provocou a eclosão de uma série de pensadores que contestavam o racionalismo e o otimismo liberal em relação ao comportamento humano:

    Contra o iluminismo posicionavam-se o movimento romântico e pensadores isolados, como, por exemplo, Carlyle, Dostoievski, Baudelaire, Schopenhauer e Nietzsche. Esses pensadores negavam a importância da ação política racional e afirmavam que o racionalismo era uma falácia originada de uma falsa análise do caráter humano, pois a fonte da ação humana não era a razão. Os liberais revoltavam-se diante do que consideravam uma visão pervertida do ser humano desses pensadores, ignorando-a ou rejeitando-a violentamente. Os conservadores os encaravam como aliados contra o excesso do racionalismo e o irritante otimismo tanto dos liberais como dos socialistas, mas os tratavam energicamente como visionários exóticos, que não deviam ser imitados e de quem se devia evitar maior aproximação. Os socialistas os viam como reacionários tresloucados, que mal se mostravam dignos de seus ataques. (BERLIN, 1969, p. 2).

    Feita as devidas definições entre liberais e conservadores no contexto do iluminismo até o século XIX, cabe dar destaque para a crise do liberalismo que levou a eventos traumáticos no século XX, como a I Guerra Mundial. Dardot e Laval ressaltam que a crise do liberalismo foi uma crise interna:

    A crise do liberalismo é também uma crise interna, o que é esquecido de bom grado quando se assume a tarefa de fazer a história do liberalismo como se se tratasse de um corpo unificado. A partir de meados do século XIX, o liberalismo expõe linhas de fratura que vão se aprofundando até a Primeira Guerra Mundial e os entreguerras. A tensão entre os dois tipos de liberalismo, o dos reformistas sociais que defendem um ideal de bem comum e o dos partidários da liberdade individual como fim absoluto, na realidade nunca cessou. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 37).

    Na continuidade da argumentação dos autores, avançando algumas páginas no livro A nova razão do mundo, encontra-se o resultado da crise liberal do século XIX:

    Se é verdade que a crise do liberalismo teve como sintoma um reformismo social cada vez mais pronunciado a partir do fim do século XIX, o neoliberalismo é uma resposta a esse sintoma, ou ainda, uma tentativa de entravar essa orientação às políticas redistributivas, assistenciais, planificadoras, reguladoras e protecionistas que se desenvolvem desde o fim do século XIX, uma orientação vista como uma degradação que conduzia diretamente ao coletivismo. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 71).

    O germe do neoliberalismo foi a crise do liberalismo segundo Dardot e Laval, resultado de um processo histórico vindo desde o final do século XIX e que contestava os aspectos distributivistas, planificadores, reguladores e protecionistas oriundos do comércio internacional liberal do período imperialista do capitalismo. Dentro do que foi colocado até aqui sobre o liberalismo, é necessário identificar diferentes períodos, sendo o primeiro de avanço do liberalismo por meio do pensamento iluminista e do modelo econômico mercantilista, impulsionado pelos Estados nacionais modernos. O apogeu do pensamento liberal ocorreu por volta do século XVII e XVIII com autores como Locke na filosofia política e Adam Smith na Economia, até a crise do liberalismo durante o processo de intensificação do comércio internacional e do imperialismo do século XIX. Esses diferentes momentos servem para ilustrar as fases de nascimento, maturação e declínio do pensamento liberal clássico e para entendermos que o neoliberalismo é uma outra tendência que brotou dessa crise, não sendo uma evolução ou continuidade do pensamento liberal clássico.

    O próprio neoliberal brasileiro, Roberto Campos (1994), expõe essas diferenças entre liberalismo e neoliberalismo na sua autobiografia, a Lanterna na Popa, quando passou a fazer parte do think tank chamado The Institute of Economic Affairs, de forte influência dos neoliberais austríacos:

    Mantive, entretanto, estreito contato com uma das fontes de inspiração dos tories favoráveis à economia de mercado. Era o think tank chamado The Institute of Economic Affairs, fundado em 1957, então sob a liderança de dois economistas meus conhecidos — Ralph Harris e Arthur Seldon. As ideias de liberalismo econômico, antiestatismo e economia de mercado refletiam a influência dos liberais austríacos, sobretudo Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises, cujas doutrinas me haviam sido pregadas pelo velho mestre Eugênio Gudin, anos atrás. [...] O neoliberalismo econômico, que difere do liberalismo clássico em que comporta uma dose maior de intervenção assistencialista, era uma ideia cujo tempo já havia chegado. Como diz Milton Friedman, a vitória do liberalismo fora apenas uma conquista intelectual dos anos 70. Só se transformou em vitória política com o thatcherismo e o reaganismo na década de 80. (CAMPOS, 1994, p. 1054).

    No final da citação, quando Campos ampara-se numa fala de Milton Friedman para expor a vitória do neoliberalismo nos anos 1970 e 1980, identificamos seu apogeu enquanto ideologia de alcance mundial, porém o surgimento do neoliberalismo remonta à década de 1930, especificamente o ano de 1938.

    Escolhi como marco fundador o Colóquio Walter Lippmann de 1938. A escolha não é aleatória, tendo em vista que diversos autores convergem em relação a dois momentos importantes do pensamento neoliberal, sendo eles o Colóquio citado e a criação da Sociedade Mont Pèlerin em 1947. Como forma de discutir a periodização do início do pensamento neoliberal em 1938, exploro algumas citações que sustentam a minha escolha:

    A criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947, é citada com frequência, e erroneamente, como o registro de nascimento do neoliberalismo. Na realidade, o momento fundador do neoliberalismo situa-se antes, no Colóquio Walter Lippman, realizado durante cinco dias em Paris, a partir de 26 de agosto de 1938, no âmbito do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (antecessor da Unesco), na rue Montpensier, no centro de Paris. A reunião de Paris distingue-se pela qualidade de seus participantes, que, na maioria, marcarão a história do pensamento e da política liberal dos países ocidentais após a guerra, quer se trate de Friedrich Hayek, Jacques Rueff, Raymond Aron, Wilhelm Röpke, quer se trate de Alexander von Rüstow (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 71).

    Wendy Brown compartilha da mesma data de fundação, inclusive colocando que o termo neoliberal foi cunhado no Colóquio Walter Lippmann:

    O termo neoliberalismo foi cunhado no Colóquio Walter Lippmann em 1938, uma reunião de acadêmicos que lançou as bases político-intelectuais daquilo que uma década depois se tornaria a Sociedade Mont Pèlerin. O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigável para investidores estrangeiros. (BROWN, 2019a, p. 28-29).

    Da mesma forma Rubens Casara aponta o surgimento do neoliberalismo em 1938, porém distingue a divergência do marco histórico entre o Colóquio Walter Lippmann e a criação da Sociedade Mont Pèlerin:

    Há certa divergência sobre o marco histórico que representaria o nascimento do neoliberalismo, o momento em que foi apresentado como um projeto à sociedade. Para alguns, esse momento seria a criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947. Todavia, foi com a realização do Colóquio Walter Lippmann, em 1938, que pela primeira vez se tentou a formulação de uma teoria do intervencionismo estatal propriamente liberal. Foi, ainda, nesse evento que se deram os primeiros passos para tentativa de criação de uma espécie de ameaça Internacional Neoliberal.

    A premissa dos pais fundadores do neoliberalismo era a de que a manutenção do liberalismo necessitava de uma refundação teórica da doutrina liberal para que fosse possível dela deduzir uma política ativa verdadeiramente liberal.

    O neoliberalismo, então, passou a se distanciar da tese do laissez-faire. Diante dos efeitos danosos produzidos pela inércia do Estado, a ideia de uma radical oposição às políticas intervencionista passou a configurar no plano imaginário como uma negatividade. (CASARA, 2021, p. 109-110).

    Rubens Casara fala do distanciamento do neoliberalismo da tese do laissez-faire, lema do liberalismo clássico, demonstrando a ruptura discutida ao longo desta seção que sustenta que o neoliberalismo não é uma continuidade do liberalismo clássico. Dando os contornos de um pensamento radical no que se refere ao intervencionismo do Estado.

    Por meio da discussão estabelecida nesta seção e da apresentação das diferentes vertentes ideológicas, firmo as bases conceituais para estabelecer o entendimento de que o neoliberalismo como doutrina surgiu em 1938, e para esta pesquisa, sempre que citado faço referência a esta escola de pensamento surgida no Colóquio Walter Lippmann e disseminada ao longo do tempo com a criação da Sociedade Mont Pèlerin. Neoliberalismo esse que inclui Friedrich A. von Hayek como um dos principais teóricos e idealizadores.

    1.2 ASPECTOS CONCEITUAIS A RESPEITO DO NEOLIBERALISMO: ALCANCES, LIMITES E TENSÕES

    Assim como no liberalismo, a discussão conceitual a respeito do neoliberalismo pode ser uma armadilha se tentarmos defini-la objetivamente, ou seja, como ela se apresenta apenas por meio do viés econômico da discussão. Costuma-se estabelecer alguns parâmetros fixos que compreendem algumas das medidas econômicas em que se constituem as políticas neoliberais. Posso citar algumas delas, como a adoção do Estado Mínimo não interventor na economia, discursos contra empresas estatais, redução dos gastos de governo e controle fiscal, livre movimentação de produtos e pessoas entre os países, redução das barreiras comerciais, áreas de livre comércio, livre movimentação de empregos e capitais, flexibilização das leis trabalhistas, o individualismo do homem empreendedor, dentre outras. Como foi percebido, na dimensão econômica é possível citar várias medidas que correspondem ao modelo de gestão neoliberal. E essa é apenas a ponta do iceberg. Tento penetrar em outro viés de discussão, que caminha com as medidas econômicas, porém ele é pouco percebido. Arrisco olhar os conceitos que norteiam o neoliberalismo do ponto de vista subjetivo. Perceber como o pensamento ganhou força e como seus pressupostos sustentam uma rede de relações sociais e políticas que extrapolam a dimensão econômica, agindo na psique dos sujeitos, nos seus hábitos e gostos pessoais.

    O neoliberalismo se baseia no discurso a favor do mercado para nutrir uma série de assimetrias que garantem o domínio de elites em desfavor das pessoas que não detém capitais para investir financeiramente e na condição de empreendedoras individuais. Entretanto, o encorajamento para as pessoas comuns buscarem seu sucesso é uma das bases do neoliberalismo, pois legitima o poder de mercado dos grandes empresários em continuarem crescendo com o apoio do senso comum e com a adoção de políticas econômicas que promovam o cenário propício para acumulação. Dessa forma a aparente igualdade e liberdade para o mercado esconde contundentes assimetrias que ampliam as desigualdades:

    Assimetria e heterogeneidade. Alguns aspectos aqui são bastante óbvios. O processo de reestruturação econômica altera a composição e a relação de forças entre grupos e classes sociais. Além de heterogêneos, os atores nele envolvidos são muito desigualmente dotados de recursos de poder, o que é outra maneira de dizer que as relações que prevalecem entre eles são marcadamente assimétricas. Mas não é tudo. Atores existem estatais e não estatais; de alcance local, nacional ou internacional — governos nacionais e subnacionais, e organizações intergovernamentais, de um lado; empresas, movimentos sociais, organizações civis, think tanks, de outro. As relações entre eles são contingentes; vale dizer, não dão lugar a blocos duradouros e coerentes. Mas não são aleatórias: apesar das variações observáveis temporalmente e na passagem de uma questão a outra, é possível constatar a existência de certos padrões de alinhamentos, que tornam possível a identificação de campos diferenciados no espaço mais amplo onde o processo transcorre. (CRUZ, 2007, p. 38).

    Quando Sebastião Velasco e Cruz fala em atores estatais e não estatais, de alcance nacional ou internacional e posteriormente cita uma série de instituições que sustentam o modelo neoliberal, percebo que sem uma integração entre capital privado e poder estatal não seria possível consolidar uma estrutura que nutre o pensamento neoliberal e o amplia além do campo ideológico. Desta forma, contesto um dos principais elementos da doutrina neoliberal de cunho econômico, sendo a adoção do Estado Mínimo. Caso o Estado adotasse a postura de se retirar do palco do mercado e deixasse o mercado fluir por conta, não teríamos a presença de atores estatais. E mais do que isso, a simples categorização econômica entre Estado e empresas, deixa de lado o fator humano que forma complexas relações políticas, como se o Estado fosse uma entidade separada da sociedade, apenas orquestrando medidas de forma isolada e neutra¹⁰. Pessoas formam o Estado, que por sua vez possuem interesses próprios ou de grupos específicos, travam disputas de poder, têm posicionamentos ideológicos que transferem para suas práticas políticas, muitos são empresários, investidores ou respondem a grupos hegemônicos que lhes apoiaram, enfim, inúmeras possibilidades que tornam o Estado heterogêneo. Logo, a mera separação entre Estado e mercado esconde suas tramas e tensões. John Kenneth Galbraith tece um conceito chamado Simbiose Burocrática que auxilia no entendimento das relações estabelecidas entre Estado e elites empresariais, em que existe uma correlação de forças na qual os capitais privados agem interferindo nas decisões governamentais enquanto os agentes capitalistas possuem acesso ao alto escalão do governo¹¹.

    O importante para o pesquisador é primeiramente visualizar as peculiaridades e criar ferramentas que permitam mapear e desvendar o fenômeno neoliberal que pretende investigar sem cair em armadilhas e anacronismos. Não tento fazer uma incursão nos meandros do pensamento neoliberal, mas sim tocar em pontos sensíveis que me permitiram compreender e tensionar seus principais conceitos. Ao desnudar esses elementos do pensamento neoliberal, amplio a discussão para entender como o pensamento neoliberal se infiltra no cotidiano das pessoas, determina suas ações e sustenta toda uma estrutura dominante detentora dos capitais que se beneficia dos privilégios e benesses do mercado¹².

    Parto da discussão sobre os aspectos conceituais do neoliberalismo a partir do uso corrente do termo, trabalhado e dividido por Sebastião Velasco e Cruz:

    No uso corrente, o termo neoliberalismo conjuga três elementos diversos: 1) uma doutrina; 2) um movimento; 3) um programa político.

    Como corrente de pensamento, como doutrina, o neoliberalismo define-se pelas relações de afinidade ou de oposição que mantém com outras vertentes ideológicas e políticas — o conservadorismo clássico, o socialismo, a social-democracia e/ou keynesianismo. Mas não só isso. Como variante teórico-ideológica muito particular, ele se caracteriza também por suas diferenças relativamente ao tronco comum representado pelo liberalismo econômico oitocentista.

    Vale a pena salientar esse aspecto. Contra os seus antagonistas de sempre (os conservadores, corporativistas, os socialistas, os coletivistas) os neoliberais reiteram os velhos temas do liberalismo econômico. Mas não é aí que reside em sua especificidade. O que os torna diferente é que eles não se limitam a essa operação, a rigor inócua. Os neoliberais se distinguem, primeiro, por sua atitude em face da realidade do capitalismo politicamente regulado do pós-Guerra — vale dizer, por sua disposição genuinamente fundamentalista de reafirmar as virtudes do capitalismo da belle époque e de rejeitar os compromissos sociais que fundam a organização social do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, o neoliberalismo não é conservador, muito menos, progressista: ele é, pura e simplesmente, reacionário. (CRUZ, 2007, p. 39).

    A fase de consolidação do neoliberalismo como políticas econômicas se dá na terceira acepção do termo, quando ele se torna programa político, isso ocorre durante os anos 1980 e 1990 na América Latina. É o processo de consolidação do neoliberalismo, porém o que me cabe neste trabalho é identificar os dois primeiros movimentos no caso brasileiro, ou seja, a sua inserção como uma doutrina e como um movimento. Essas fases estão presentes em períodos diferentes, mas ao mesmo tempo se confundem, pois como doutrina podemos pensar a produção, circulação e apropriação das obras de Hayek ao longo do período e, como movimento associado com a doutrina, teríamos suas visitas e a proliferação de textos escritos sobre o autor e a difusão das suas ideias em diversos ramos da mídia impressa do período no Brasil. As relações entre movimento e ação política já estavam ocorrendo nas principais economias do mundo, sobretudo na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, com os governos de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, além da experiência anterior no Chile de Pinochet. A potencialidade que tomou o movimento neoliberal só foi possível pela crise do modelo doutrinário adversário. O Estado de Bem-estar social e suas políticas keynesianas estavam perdendo fôlego com as tensões pelas quais passaram durante a retração das economias com a crise do petróleo.

    Essa discussão está inserida dentro do debate econômico que marca o ponto de viragem em direção ao avanço do discurso neoliberal¹³. Não me aprofundo neste assunto, mas seu conhecimento serve para visualizar qual terreno que tornou fértil as ideias de Hayek e de seus pares de Mont Pèlerin.

    Baseado nestas diferenciações entre doutrina e movimento, penso o objeto de pesquisa em dois momentos, em que no primeiro obtém-se a doutrina, ou seja, a entrada das obras de Hayek no Brasil, principalmente por meio da obra O Caminho da Servidão, para posteriormente, durante as suas viagens, conferências e palestras o surgimento de um movimento capitaneado por Henry Maksoud. Movimento esse que resultou, além das próprias visitas de Hayek e a possibilidade da publicação de suas outras obras, aumento das edições de O Caminho da Servidão, a criação de think tanks no Brasil, como foi o caso do Instituto Liberal, além da ampla cobertura pela imprensa. O terceiro momento, que Velasco e Cruz se refere como movimento político¹⁴, veio posteriormente, já caminhando no final dos anos 1980 e consolidado nos anos 1990 com as políticas neoliberais implementadas de forma mais aguda pelos governos Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

    Antes de refletir sobre os pormenores desses três momentos do neoliberalismo citados por Velasco e Cruz, os quais aprofundo com a contribuição de outros autores, trago uma citação cujo objetivo é pensar a respeito do inverno pelo qual o neoliberalismo passou entre as décadas de 1930 a 1970. Foram quatro décadas em que o neoliberalismo esteve oculto enquanto doutrina, mas que mesmo assim se manteve coerente e homogêneo, e que, assim que a doutrina hegemônica do keynesianismo entrou em descrédito e crise, o neoliberalismo surgiu como alternativa para o capitalismo global. Quais foram os méritos dos pensadores neoliberais durante esse período que fizeram com que na ocasião certa o neoliberalismo despontasse como movimento e como política econômica? Perry Anderson enumera algumas lições deixadas:

    Primeira lição: não ter medo de estar absolutamente contra a corrente política do nosso tempo, Hayek, Friedman e seus sócios tiveram o mérito — mérito, entendido aos olhos de qualquer burguês inteligente de hoje — de colocar uma crítica radical do status quo, quando fazê-lo era muito impopular, e de ter paciência em uma postura de oposição marginal durante longo período, quando a sabedoria convencional os tratava como excêntricos ou loucos, até o momento em que as condições históricas mudaram e sua oportunidade política chegou.

    Segunda lição: não transigir em ideias, não aceitar nenhuma diluição de princípios. As teorias neoliberais foram extremas e marcadas por falta de moderação, um iconoclastismo chocante para os bem pensantes de seu tempo. Mas não perderam eficácia por isso; ao contrário, foi propriamente o radicalismo, a dureza intelectual do temário neoliberal que lhe assegurou uma vida tão vigorosa e uma influência finalmente tão esmagadora. O neoliberalismo é o oposto do pensamento fraco, para usar um termo da moda inventado por algumas correntes pós-modernistas para abalar teorias ecléticas e flexíveis. [...]

    Terceira lição: não aceitar nenhuma instituição estabelecida como imutável. Quando o neoliberalismo era um fenômeno politicamente menosprezado e marginal, durante o grande auge do capitalismo dos anos 50 e 60, parecia ao consenso burguês daquele tempo inconcebível criar desemprego de cerca de 40 milhões de pessoas nos países ricos, sem provocar transtornos sociais; parecia impensável distribuir renda abertamente, em alta voz, dos pobres aos ricos, em nome do valor da desigualdade; parecia inimaginável privatizar não somente o petróleo, mas também a água, a receita, hospitais, escolas e até prisões. (ANDERSON, 2003a, p. 198-199).

    Por meio das observações feitas por Perry Anderson, mapeio as possibilidades do avanço do pensamento neoliberal pós anos 1970, mas sem desprender dos aspectos da estrutura do pensamento neoliberal que se mantiveram consideravelmente imutáveis enquanto doutrina ao longo do tempo. Dentre as lições tomadas pelo caso do neoliberalismo, destaco a mudança das condições históricas que propiciaram a aceitação das ideias, ou seja, o pensamento neoliberal não se alterou para ser aceito, foram as condições históricas que abraçaram o neoliberalismo. E quais foram os fatores que levaram a essa aceitação? A segunda lição nos mostra que o trunfo do neoliberalismo foi manter seu radicalismo, logo, no período da crise dos anos 1970, medidas radicais pareceram ser a solução para reformular o Estado e as políticas econômicas. As condições históricas, associadas com o radicalismo neoliberal transfigurou-se para o terceiro momento, o das políticas econômicas neoliberais, isso porque, a partir do movimento, observo a mudança no pensamento das instituições e políticas, completando o circuito de ação neoliberal.

    Na análise conceitual não perco as dimensões do neoliberalismo propostas por Sebastião Velasco e Cruz, as quais permitem entender como funciona o circuito de disseminação do neoliberalismo. Três dimensões que parecem se retroalimentar, discutidas separadamente, mas que na prática elas se confundem. Como separar doutrina, movimento e programa político? A questão não é separá-los, mas didaticamente mapear como se constituem esses diferentes circuitos que compõe o sistema neoliberal.

    1.3 NEOLIBERALISMO COMO DOUTRINA

    Aqui mapeio os principais elementos teóricos presentes na doutrina neoliberal. Por mais que ao longo deste trabalho me aprofundo na figura de Friedrich August von Hayek, é importante perceber que ele não estava sozinho na defesa das teses de livre mercado. Também para ter a visão clara que o neoliberalismo é um fenômeno múltiplo de pensamento, formado por diversas correntes e pensadores, e com importantes alterações ao longo do tempo. O neoliberalismo não é uma mera continuação do liberalismo clássico, mas sim, um movimento de ideias que originou um pensamento econômico inédito¹⁵. Todavia, por mais que seja um movimento original, esconde em seus pormenores uma grande diversidade de tradições teóricas, sobretudo oriundas de três vertentes: o ordoliberalismo alemão, a escola austríaca e a escola americana de

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1