Das coisas anteriores às palavras
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Um poema não se cria, surge quando quer, e rasga as palavras, corrói, amansa, salta verde, como um potro, que nasceu de madrugada.
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Das coisas anteriores às palavras - Helena de Figueiredo
Agradecimentos
Para todos aqueles que, como eu, acreditam, que o impossível não existe.
"Antes de estarem nos livros, nos quadros, nos filmes,
as palavras estiveram alojadas no nosso corpo,
circularam ocultas em outras dimensões e linguagens."
José Tolentino Mendonça
PARTE I
DO SILÊNCIO
E DA LUZ
A HORA
Hoje, que o ócio me possui
Abro o caderno
Sou um espinho
Uma lâmina afiada
Um pulso decepado
E nada impedirá que a tinta jorre
E se derrame livre
Entre as linhas claras.
E não sou eu quem dita.
Sobre mim desce
Um raio fulminante
A hora prenhe
E as palavras ardem
Em tons prata
Golfadas, que de outro modo
Seriam sangue apenas
Sem que dele conhecêssemos a cor.
O poema é assim
Este ato tresloucado
Acontecendo
Ao tocar de um sino
Num simples beijo
Ou quando um nó cego
Nos esgana a garganta.
PESADELO
Sonhei que a deusa de branco
Essa figura sinistra que me persegue
Carregada de versos singulares
Ironicamente os pendurou
Na árvore madura
No centro da aldeia
Onde as mulheres dormitam.
As palavras gritaram alto
Iluminadas
E eu desesperada
Abri o peito de par em par
E a esmeralda vermelha
Que sempre me pertencera
Deixei-a fugir.
MOMENTO
Se hoje bater na tua porta
Não perguntes nada
Deixa-me entrar.
Não ouses falar em sexo, carência, desejos.
Cala e olha-me a boca.
Acordei despida, fria, demasiado sozinha.
Talvez precise de alguém para partilhar
O sabor do vinho
O crepitar do fogo
As palavras contidas
Nada mais.
Há dias assim
Quando a neve cai
E das minhas mãos
Uma pomba voou.
A LOUCA
Chamavam-na louca
Porque apanhava no regaço
Os pingos de luz caídos do telhado
E na varanda, gritava: estou feliz!
Nessa noite porta rangera
A cama gemera
Havia fumo branco na chaminé
E o amante, que teimava esconder
Saíra um pouco antes do galo cantar.
Que nunca escrevas à flor da pele.
Deixa que passe a madrugada
O sangue esfrie
A janela abra
E entre essa luz branda que faltava.
O Lugar do Céu
Ergue-te, olha os céus, dizia minha mãe
E eu fiz-lhe a vontade
Busquei no firmamento
A luz da eternidade.
Mas agora, ao vê-la assim velhinha
Curvada, rente ao chão
Ofereço essa certeza
A um bando de pardais
Sinto sagrada a terra escura
A amarga sepultura
Onde seremos pó
E nada mais.
Nos rostos que já fui e me deixaram
Não me reconheço em nenhum.
Será que fui eu esta menina
Será que fui alguma vez tão pequenina
Será que este sorriso já foi meu.
Talvez eu já perdesse a memória
E não me encontre
Na minha própria história
Talvez o que me falta, seja eu.
PRINCÍPIO VITAL
Apaga a luz
Gritava a voz da razão do quarto ao lado.
Porque não nascera morcego
Dono do mundo das sombras
Mágico peculiar, atravessando o sono dos outros.
Apagava contrariado o candeeiro
Deixava cair o enredo no tapete
Enquanto a majestosa folha castanha
Apanhada a caminho da escola
Enchia de canela, o suspense da espera.
E de olhos já fechados
Havia um assalto às páginas por ler
A história faiscava num reino dourado
Onde o impensável iria acontecer.
Da mãe, recorda tudo
Da folha, guardou o