Articulação cartesiana entre a existência de Deus e a realidade física do mundo
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Articulação cartesiana entre a existência de Deus e a realidade física do mundo - Marcos Valério Batista
1. O APRIORISMO SISTEMÁTICO DE DESCARTES
1.1 PROLEGÔMENOS AO ARGUMENTO ONTOLÓGICO CARTESIANO
A modernidade ocidental foi palco de grandes revoluções que culminaram em importantes transformações cujos reflexos perpassaram os séculos e são percebidas até hoje em vários campos do conhecimento. Revoluções de cunho político, social e, sobretudo, intelectual, a exemplo do Iluminismo que surge com o intuito de rechaçar todas as formas de dogmatismo impostas pela Idade Média.
Mas para que essas revoluções fossem possíveis muitos homens valorosos dedicaram suas vidas ao conhecimento e ao aprendizado, concebendo obras que se notabilizaram pelo seu teor filosófico, cujo conteúdo tornou-se o fomento necessário para as ideias que promoveram as grandes transformações pelas quais a humanidade passou e vem passando ao longo do tempo.
Um desses homens foi o filósofo francês, René Descartes. Nascido em 1596, formou-se em direito, porém nunca exerceu esse ofício, dedicando-se ao estudo da matemática, da medicina e da moral, mas notabilizando-se mesmo por suas meditações filosóficas que lhe renderam o título de pai da filosofia moderna. Dentre os assuntos filosóficos tratados por esse eminente pensador, encontra-se aquele que escolhemos para fazer parte nosso objeto de estudo nesse trabalho, sendo este o assunto que estará presente direta ou indiretamente em todo ele: o argumento ontológico.
Contudo para tratar de um assunto, qualquer que seja, onde o rigor e a precisão seja uma exigência, é de suma importância explicitar os conceitos básicos que o reveste. Assim, em se tratando do argumento ontológico cartesiano, que faz parte dos nossos propósitos de investigação, impõe-se de forma necessária que se tenha como ponto de partida a seguinte questão: O que é o argumento ontológico cartesiano?
A resposta a essa questão se ancora no fato de que um argumento ontológico é um argumento baseado em premissas totalmente a priori, cujo objetivo é demonstrar a existência de algo não por seus efeitos, mas a partir de suas causas. Podemos também dizer que
O termo argumento ontológico
deve-se na verdade a Kant, que destacou um tipo especial de prova da existência de Deus segundo a qual se faz abstração de toda experiência
e a existência de um ser supremo é inferida a priori somente dos conceitos
[...]; sem antecipar o título ontológico
, Descartes, no entanto, diferencia de forma nítida sua própria prova a priori, dada na Quinta Meditação, do argumento bastante diferente, a posteriori ou causal, que dá na Terceira Meditação [...] (COTTINGHAN, 1993, P. 23)
Dito de outra forma: a prova da existência de Deus é ontológica porque é conduzida apenas examinando o ser de Deus, a sua essência; examinando somente a sua substância, a sua natureza, conseguimos demonstrar a sua existência
(TOMATIS, 2003, p.39).
Assim, argumento ontológico cartesiano é o termo proposto no século XVII para expressar os esforços do filósofo René Descartes em querer demonstrar a existência de Deus por meio de premissas a priori. É em sua obra, Meditações Metafísicas, na Meditação Quinta, que podemos ter acesso ao modo como se deu esta iniciativa original, distinta dos caminhos até então perseguidos na realização deste objetivo.
O argumento ontológico ganhou novas versões, no decorrer dos séculos que sucederam à morte de Descartes, a partir da identificação de diversificados autores que, assim como ele, em suas respectivas épocas, conquistaram muitos adeptos em favor de seus argumentos, chegando até a atualidade uma diversidade de interpretações sobre o assunto que servem de suporte para estudos desenvolvidos sobre Descartes em diversas partes do mundo, conforme verificamos nas variadas edições do Bulletin cartesien³. Não obstante, nos limitaremos, ao longo desse trabalho, em abordar o tema apenas naquilo que foi o esforço desenvolvido por Descartes.
Por outro lado, por uma questão metodológica, julgamos necessário retomar de forma contextualizadora as obras daqueles que antecederam a Descartes, e que apresentam relevância histórica e filosófica no tocante ao tema em questão, o argumento ontológico, pois assim poderemos melhor situar as Meditações Metafísicas em suas pretensões e objetivos.
Partindo desta opção, consideraremos as contribuições de dois ícones da filosofia, a saber, Ibn Sina (980 – 1037), filósofo medieval islâmico, ou Avicena, como é mais conhecido no ocidente, e Anselmo de Aosta (1033 – 1109), ou Santo Anselmo, importante pensador cristão.
1.1.1 ARGUMENTO ONTOLÓGICO DE AVICENA
Avicena, filósofo e médico islâmico, nascido no século X da era cristã, também atuou como político e é considerado o maior filósofo produzido pelo islã ocidental. Foi um estudioso das obras aristotélicas, que por ele foram enriquecidas a partir de todos os desenvolvimentos conhecidos, oriundos dos comentadores gregos e de seus predecessores islâmicos, muçulmanos ou cristãos. Suas principais obras formam sumas filosóficos, a saber
[...] os Ishârât (livro das diretivas e das observações: Kitâb Al-ishârât wa Al-tanbîhât), a Salvação (Kitâb Al-najât) e, sobretudo, a gigantesca enciclopédia filosófica e científica quadripartida: lógica, filosofia natural, matemática e filosofia primeira (metafísica), que é o Livro da cura (Kitâb Al-shifâ’), um dos expoentes incontestes do pensamento medieval. (DE LIBERA, 2004, p. 118).
Essas obras, especialmente o Livro da cura, após serem traduzidas para o latim e postas em circulação no século XII, exerceram grande influência sobre o ocidente medieval. Influência também constatada, ainda que de forma indireta, em todos os pensadores islâmicos posteriores a Avicena, reverberando até a modernidade, isso devido ao seu gênio especulativo e a originalidade rara encontrada em seus trabalhos.
Isto posto, consideramos a importância de Avicena dentro do assunto que estamos abordando, relacionando-o a Descartes, não somente em virtude da magnitude de suas obras e de sua influência no ocidente, mas, mais especificamente por ter ele elaborado um argumento que pode ser considerado ontológico, e também porque, em sua filosofia, usa uma determinada alegoria, a do ‘o homem voador’, que antecipa um pensamento de Descartes: a possibilidade de separação entre corpo e alma e a identificação do eu apenas com essa última
(COOPER, 2002, p. 186). O eu explicitado na célebre expressão je pense, donc je suis (eu penso, logo sou) que, como veremos, foi a primeira certeza cartesiana, e o primeiro passo dado pelo filósofo para chegar à prova da existência de Deus e fundar sua filosofia.
Isto posto, para ratificar a justificativa daquilo que nos chamou a atenção para a inserção desse pensador islâmico em um trabalho que gira em torno da filosofia cartesiana, antes de tratarmos propriamente do argumento ontológico aviceniano, gostaríamos de esboçar alguns breves comentários sobre a alegoria do homem voador
que se apresenta nos seguintes termos, ipsis litteris:
Dizemos, pois: é preciso que um de nós conjecture como se tivesse sido criado – e criado perfeito –, mas de modo súbito. Contudo, ele estaria eclipsado em sua visão, [daquilo que] provém das cenas exteriores. Teria sido criado [como se] caísse no ar ou no vácuo; a cair sem que, por choque algum, devesse sentir a consistência do ar a chocar com ele. Seus membros estariam separados entre si, sem se encontrarem, nem se tocarem. Bem, em seguida, pensar-se-ia: será que ele constaria a essência de sua existência sem duvidar, em sua constatação, de que a sua essência é existente, apesar de não constatar com isso [nem] extremidade de seus membros, nem interior de suas vísceras, nem coração, nem cérebro, sequer alguma coisa do exterior? Melhor, constataria sua essência sem constatar que ela teria [nem] comprimento, nem largura, nem profundidade? E, se nesse caso lhe fosse possível imaginar uma mão – ou um outro membro – não a imaginação [como] parte de sua essência nem [como] uma condição quanto à sua essência? Ora, tu sabes: aquilo que se é constatado é distinto daquilo que se constata; e, nisto, o que é inconteste é diferente daquilo que não se atesta. Logo, a essência que constata sua existência possui uma propriedade para isso, na medida em que ela é, em sua especificidade, distinta do seu corpo e de seus membros que não constatam [suas existências]. Portanto, o que é constatado é para ele [tal homem] uma via para que se lembre de que a existência da alma é algo distinto do corpo, melhor, é incorpórea (AVICENA, 2011, p. 42).
Constata-se também a partir dessa alegoria que seu autor se vale da exploração da interioridade do homem para apreender a noção da existência da alma e a diferença entre esta e o corpo. Isto porque, ao propor privar-se de seu corpo e tudo quanto pode ser apreendido pelos sentidos, ele se volta para dentro de si mesmo ao perceber que mesmo desprovido de seus membros, de suas entranhas, de seu cérebro e de tudo que lhe é exterior, ele ainda pode afirmar sua própria existência.
Avicena, com esse argumento, fornece indícios daquilo que mais tarde será para Descartes, como já dissemos, a sua primeira certeza, bem como a idealização de sua distinção entre corpo e alma. Também conhecido como Cogito de Avicena, essa alegoria apresenta a ideia de que se despojando de toda corporeidade, de toda materialidade se alcança a noção de alma, de algo que não depende do corpo para existir, mostrando assim a distinção entre ambos.
Mesmo estando desprovido de toda exterioridade ainda assim seria possível dizer-se existente devido à noção do que é a alma. Noção essa adquirida de modo intuitivo por aquele homem da alegoria, que ao mesmo tempo percebe a diferença existente entre a sua essência e a corporeidade que o compõem. Ressalvadas as devidas diferenças, Avicena escreve no século XI aquilo que será alcançado no século XVII por Descartes em suas Meditações, e que será por ele considerado o princípio necessário para fundamentar sua filosofia.
No que tange à questão do argumento ontológico, após extensa pesquisa sobre o assunto, consideramos que a primeira vez em que se cogitou falar de tal argumento, da forma como ficou conhecido pela posteridade, foi a partir das ideias metafísicas de Avicena⁴.
E para tentarmos entender um pouco melhor essa ideia do argumento ontológico aviceniano, nos apoiaremos no trabalho de um especialista do pensamento árabe, Miguel Attie Filho, líder do grupo de tradução e pesquisa de filosofia árabe e história do pensamento na Universidade de São Paulo. Attie Filho escreveu vários livros e publicou inúmeros artigos em revistas especializadas sobre o trabalho de Avicena, além de traduzir do árabe para o português uma seção do livro de Avicena, a "Metafísica da Al-Shifa", do Livro da cura, que nos guiará pelas veredas argumentativas dessa ontologia.
Iniciando as trilhas dessas veredas, encontramos Avicena, na sua metafísica, apresentando uma divisão das ciências filosóficas em: especulativas e práticas. Porém, o que nos interessa investigar aqui, no tocante à sua ontologia, é somente a parte especulativa das ciências filosóficas.
Assim encontramos o pensador islâmico escrevendo que essa parte especulativa está circunscrita a uma tripla divisão, a saber, a Ciência da Natureza, a Ciência Matemática e a Ciência Divina
(AVICENA, 1885, p. 02). Após uma rápida explanação sobre o objeto de investigação da Ciência da Natureza e da Ciência Matemática, Avicena chega à Ciência Divina explicando que ela "é aquela na qual se investigam as causas primeiras da existência natural e da matemática e o que lhes é inerente, assim como a causa das causas e o princípio dos princípios que é a divindade (AVICENA, 1885, p. 3).
Poderíamos encerrar neste ponto a explanação sobre o argumento ontológico de Avicena, sob a alegação de que ele alcança a contento, por meio de uma investigação metodicamente a priori, a conclusão de que a divindade é o objeto de estudo da Ciência Divina, e, portanto, existe um Deus que foi demonstrado sem que se houvesse recorrido a dados empíricos, atendendo assim os requisitos necessários para que um argumento seja considerado ontológico.
Entretanto, cabe salientar que após essa conclusão sobre a relação que há entre a divindade e Ciência Divina, Avicena não se dá por contente com a superficialidade da explicação encontrada, pois ele próprio reconhece que ainda não fica bem claro qual é o sujeito de investigação dessa Ciência, dado que em cada Ciência existe um sujeito específico que a caracteriza. Por exemplo, as Ciências da Natureza tem com sujeito os corpos e tudo o que lhe é próprio, como o movimento, a extensão, os acidentes, etc.; as Ciências Matemáticas, por sua vez, tem como sujeito aquilo que é dotado de quantidade ou uma quantidade abstraída da matéria. Mas qual poderia ser realmente o sujeito de investigação da Ciência Divina? Não contente com aquela conclusão inicial, Avicena ainda se pergunta em sua reflexão contemplativa: seria ela a essência da causa primeira?
Assim, o raro intelecto do pensador, após esforçar-se para obter um argumento plausível para começar a responder as questões que se fizeram presentes, afirma que essa Ciência, a Ciência Divina, é a Filosofia Primeira, a absoluta sabedoria. Fato que nos leva a entender que, ressalvados alguns entremeios históricos e de interpretação, poder-se-ia dizer que essa Ciência é aquela metafísica de Aristóteles, do ponto de vista da tradição latina, conforme nos explica o