Edmund Burke - a virtude da consistência
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Sobre este e-book
Este ensaio defende a consistência do pensamento de Burke, alicerçada na sua reflexão sobre a natureza humana.
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Edmund Burke - a virtude da consistência - João Pereira Coutinho
O problema
Na história do pensamento político existe aquilo a que se convencionou chamar «o problema dos dois Burkes». Esse problema consiste em saber se Edmund Burke (1730-1797), como parlamentar e pensador político, revela uma coerência teórica ao longo da sua vida pública; ou se, pelo contrário, Burke seria um mero «utilitarista» (no sentido prosaico do termo), limitando-se a reagir aos acontecimentos do seu tempo sem radicar as suas posições numa particular filosofia política intemporal.
Essa questão adquire uma especial importância quando nos ocupamos de Reflections on the Revolution in France (1790), o poderoso tratado contra a Revolução de 1789 e que inaugurou, pelo menos na cultura política anglo-saxónica, uma tradição conservadora moderna. Aos olhos dos seus críticos, o desafio passava por saber como seria possível conciliar o opositor da Revolução Francesa com o mesmo Burke que, anos antes, apoiara a causa independentista americana. Se a Revolução Francesa se fizera em nome da liberdade e contra o absolutismo régio, não estaria Burke, um perene defensor da liberdade, no lado errado das barricadas?
Joseph Priestley constitui apenas um exemplo dessa desilusão face à atitude antirrevolucionária de Burke. «Que um declarado amigo da Revolução Americana fosse um inimigo da Francesa», escreve o autor, «é para mim inexplicável.»¹ Para Priestley, a posição de Burke era tanto mais incompreensível quanto a Revolução Francesa não apenas partilharia os mesmos princípios da Revolução Americana como, mais importante ainda, fora impulsionada por esta.²
A atitude de Burke constituía, assim, uma traição – ou, no mínimo, uma imperdoável incoerência intelectual. Para muitos dos seus críticos, e usando as palavras de Gertrude Himmelfarb, passavam a existir dois Burkes, não apenas um: «o Burke pró-americano e o Burke antifrancês».³ O primeiro capaz de compreender e aplaudir «as virtudes ‘suaves’ do Speech on Conciliation – liberdade, compromisso, tolerância religiosa». E o segundo, tomado pelas «virtudes desagradáveis» da «autoridade, tradição, instituição religiosa».⁴ No fundo, e como resumiu John Morley para caricaturar «o problema dos dois Burkes», o revolucionário de 1770 era agora o reacionário de 1790.⁵
1 J. Priestley, Letters to Burke, 1791 (Washington, D.C.: Woodstock, 1997), p. iv.
2 Ibid.
3 G. Himmelfarb, The Roads to Modernity: The British, French, and American Enlightenments (Nova York: Alfred A. Knopf, 2004), p. 84.
4 Ibid.
5 J. Morley, Edmund Burke: A Historical Study (Londres: Macmillan, 1867), p. 54.
O debate
A discussão sobre o Burke pró-americano e o Burke antifrancês é a melhor expressão do «problema dos dois Burkes». E, se não cabe aqui uma revisão detalhada dessa discussão secular, é importante ter em mente que ela tem sido apresentada como uma oscilação constante entre um Burke «utilitarista» na resposta aos desafios políticos do seu tempo (essa, pelo menos, seria a visão maioritária do século XIX e inícios do século XX); e, já no século XX, aqueles que defendem ser a Lei Natural a âncora fundamental das suas posições políticas, o que lhe confere uma coerência filosófica que refuta o «utilitarismo» meramente circunstancial. Nas palavras de Burleigh Wilkins, «[Burke] figura como um inimigo do utilitarismo e um defensor da Lei Natural».⁶ E como se processa a aplicação dessa Lei Natural? Carl Cone, outro intérprete naturalista de Burke, defende que são os seres humanos,