A Dignidade da Pessoa Humana e o acesso ao crédito
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A Dignidade da Pessoa Humana e o acesso ao crédito - Celso Lopes Seus
1. PREFÁCIO
Não é incomum as pessoas tratarem o crédito como algo perverso, manipulado por agentes igualmente perversos que visam exclusivamente a satisfação dos interesses financeiros do mutuante. Rara, por outro lado, é a associação do crédito à dignidade da pessoa humana, preceito fundamental esculpido na Constituição Federal de 1988 e afirmado mundo afora.
A dissertação do colega e amigo Celso conseguiu. Uniu um direito tão visceral, que é o da dignidade humana, a outro tão externo, o de acesso ao crédito, com um brilhantismo que lhe é peculiar. Trata-se, portanto, de obra rara, ímpar e que justifica o título obtido.
E o fez trazendo conceituação profunda acerca dignidade humana como valor referencial para os direitos humanos, percorrendo tratados internacionais e declarações de vigência universal. Pontuou a dignidade da pessoa humana tal como prevista na atual Carta Magna brasileira. Trouxe lições sobre bens e princípios fundamentais, direitos econômicos e sociais, sempre ilustrando com casos práticos e julgados dos Tribunais Superiores.
O clímax da obra está guardado no capítulo 4. Ali, o autor faz a aliança introduzida anteriormente: o direito fundamental implícito ao crédito como elemento da dignidade da pessoa humana. Ele tem razão quando afirma que a vida em cidade pressupõe necessariamente, o crédito como um de seus elementos hodiernos: o acesso a bens e serviços exige pagamento, atual ou futuro. É o crédito que faz a fruição desses produtos imateriais e assegura o uso desses serviços públicos; a ausência deles caracteriza a marginalização, pobreza, exclusão social. O crédito é fenômeno social, portanto. Atual e histórico. E esta cronologia é pontuada na tese do Dr. Celso.
O crédito também tem, e não podia ser diferente, efeitos, conceitos e acepções jurídicas. Há crítica à previsão legal do crédito e feita por alguém que labuta no sistema financeiro há muitos anos no sentido de que o crédito está, modo incipiente, disciplinado na legislação brasileira. Resulta dessa legislação parca a insegurança jurídica desde o momento da sua captação, à sua concessão e recuperação, na hipótese de inadimplência. O autor enfrenta, ainda, a previsão constitucional brasileira do crédito e vai até ao caderno de proteção e defesa do consumidor e código civil.
Diante da temática escolhida pelo autor, não havia como não mencionar a concessão de créditos habitacionais como ferramenta asseguradora da dignidade da pessoa humana. O crédito é um elemento essencial ao Direito de Moradia. A aquisição da moradia sempre foi um problema no Brasil, de certo modo agravado a partir da vigência da Lei 4.380, de 21 de agosto de 1964, que criou o Sistema Financeiro da Habitação. Somente com a Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 houve uma evolução significativa no direito brasileiro para facilitar o acesso à moradia, com a criação do Sistema Financeiro Imobiliário, criando uma opção jurídica dinâmica mais apropriada às exigências mercadológicas para o mercado imobiliário.
Com coesão, coerência e precisão foram listados e conceituados outras modalidades de contratos de mútuo de titularidade específica da pessoa humana (contrato de mútuo, crédito com consignação em folha de pagamento e cédula de crédito bancário).
O autor faz brilhantes considerações sobre a vida a crédito, no original Living on Borrowed Time, ou em tradução livre, Vivendo em tempo emprestado
, expressão aprofundada na crise de 2008 e que é representada por modalidades de créditos rotativos.
E o ápice do clímax é a história do Grameen Bank. A vida e obra de Muhammad Yunus, o banqueiro dos pobres. Muhammad Yunus encontrou uma forma de atividade econômica viável, simples, acessível, compreensível por analfabetos, desprovida de garantia e de instrumento de crédito, mas com mínimo índice de inadimplência e capaz de provocar intensa, profunda e permanente mudança para melhor na qualidade de vida material de dezenas de milhões de mulheres bengalis.
A obra é coroada com estudo pragmático. Trazendo o tema em julgados do Superior Tribunal de Justiça e em matérias sumuladas por aquela Corte Superior relativas à temática proposta.
Saúdo o amigo e colega, Dr. Celso Seus, pela obra e agradeço o convite para singelamente ficar eternizado junto dela. É sempre uma honra participar dos teus trabalhos que contribuem valiosamente à atividade acadêmica, jurídica e bancária.
Boa leitura a todos.
João Hélio dos Santos Renner
Advogado. Especialista em Arbitragem, Recuperação
Judicial e Falência e Direito Empresarial. Membro da
Comissão Especial de Direito Bancário da OAB/RS.
2. A DIGNIDADE HUMANA COMO VALOR REFERENCIAL PARA OS DIREITOS HUMANOS
2.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana é tema antigo e complexo, sempre questionada e estudada ao longo dos séculos. Esse assunto vem evoluindo muito vagarosamente com o passar do tempo e de sucessivos documentos internacionais os quais vêm amadurecendo a compreensão de respeito do ser humano por si mesmo e pelo seu semelhante. As modificações de comportamento soem ser dolorosas e não produzem frutos imediatos. Um rápido olhar para a História e serão encontrados diversos documentos que, embora não tenham essa referência, constituem marcos históricos claramente identificáveis com essa característica de dar dignidade à pessoa humana. Paulo Ferreira da Cunha (2007, p. 94) observa:
Muito antes da revolução americana e da revolução francesa, com os seus escritos constitucionais de proteção proclamatória dos Direitos Humanos, antes mesmo da Magna Charta inglesa de 1215, já nos concílios de Toledo, sobretudo no IV (633. d.C.), desaguariam formas de proteção, as quais vieram a irradiar pela América Latina.
Percebe-se que documentos políticos e de ordem religiosa, revolucionários ou pacíficos, vêm desvendando o ser humano e o afirmando em si mesmo e em relação ao seu semelhante, mas em especial perante o Poder. Jacob Dolinger (2011, p. 447-452), faz um resumo filosófico da dignidade humana referindo que em Santo Agostinho, está ligada à vida, no amor à sobrevivência; Hugo Grotius põe em evidência a afeição social; Hobbes sustenta que o valor público de um homem, estabelecido pela comunidade, chama-se dignidade; Spinoza afirma que esta doutrina contribui para o bem-estar de nossa existência social [...] contribui em muito para uma melhor sociedade
; Montesquieu refere a liberdade filosófica como livre exercício da vontade e a liberdade política como segurança; Rousseau pondera que a obediência à lei prescrita pelo próprio ser humano é liberdade; Kant ao referir que todo membro do reinado
é um legislador que se submete às suas leis "e isto não decorre de qualquer outro motivo prático ou qualquer vantagem futura, mas da ideia da dignidade [grifo do próprio Kant]; Hegel propõe que o ser humano seja uma pessoa e respeite os outros como pessoas; e, finalmente, John Stuart Mill, destacando que
o princípio da liberdade não pode exigir que ele seja livre para não ser livre." Esse breve relato de vários pensadores sobre a dignidade da pessoa humana demonstra, mesmo numa linha de tempo bastante pequena, a amplitude e a profundidade do tema.
A escolha de critérios para a compreensão da dignidade da pessoa humana é essencial e objeto de estudo da doutrina em diversas obras. A breve análise histórica a partir da filosofia, conforme foi visto acima, é apenas um desses critérios. A existência de documentos jurídicos internacionais tratando de direitos humanos – cujo foco essencial é a dignidade da pessoa humana – exige, também, um critério de análise. Nestas linhas, apenas quatro desses documentos serão analisados a partir de um ponto comum que une a todos: a presença de liames jurídicos que envolvem a pessoa humana em seu aspecto da dignidade material que será alcançada a partir de direitos econômicos; esses direitos estão registrados apenas no plano referencial, haja vista a evidente impossibilidade de qualquer especificação deles, suas finalidades, vínculos com o Estado e a própria pessoa humana etc.
Célia Rosenthal Zisman (2011, p. 178-179), expende argumentos em favor da necessidade de preservação da dignidade da pessoa humana. Ela aponta vínculos indissociáveis que se estabelecem a partir desse conceito.
O princípio da dignidade da pessoa humana é fonte de outros princípios fundamentais [...]. A dignidade é fonte ampla, porque se pode afirmar que todos os princípios fundamentais dela decorrem, prevista em nossa Constituição Federal no art. 1º., III. Não há dignidade sem a preservação de todos os direitos fundamentais. A vida digna, sadia, depende de proteção dos direitos fundamentais à própria vida, à igualdade, privacidade, honra, intimidade, imagem, liberdade etc.
A previsão constitucional do princípio da dignidade por si já garantiria a conservação de todos os demais direitos fundamentais. Isto porque não se alcança a vida digna sem a preservação dos demais direitos fundamentais.
A dignidade da pessoa humana é um instituto, objeto de diversos documentos jurídicos internacionais. Há uma análise que se inicia ainda no Século XVIII, conforme se verá a partir destas linhas.
A Revolução Francesa, deflagrada em 14 de julho de 1789, pode ser considerada o primeiro grande documento que trouxe intensas modificações nas relações povo-poder na Europa do Século XVIII e, com certeza, foi a fonte inspiradora de diversos movimentos sociais, pacíficos ou não, de concepção materialista ou espiritual. Embora embrionário, aquele texto não apenas ainda vige, apesar de todas as guerras havidas a partir de seu tempo, em especial a hediondez daquelas ocorridas no Século XX; ele também provocou o surgimento dos demais documentos internacionais referidos nestas linhas: (i) a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, um documento europeu; (ii) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, e (iii) a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ou a Carta de Banjul, o documento africano, de 1981. Cada um desses documentos tem pontos comuns, embora não tenham sido concebidos a partir dos que lhes são anteriores, mas é induvidosa a influência do texto original, francês. Tais documentos não apenas pretendem identificar na pessoa humana um sujeito especial de direitos, mas também de obrigações legais, submetendo-se todos os países a essas regras que são impositivas, imprescritíveis, inalienáveis, extraterritoriais e autoaplicáveis.
2.1.1 As dimensões da dignidade da pessoa humana
Ingo Wolfgang Sarlet et al. (2013, p. 15), na obra Dimensões da Dignidade
aborda o contexto das dimensões da dignidade da pessoa humana, explorando-as a partir (i) da compreensão jurídico constitucional; (ii) da dimensão ontológica, mas não biológica; (iii) da dignidade e da intersubjetividade em sua dimensão comunicativa e relacional; (iv) da dignidade como construção indispensável de uma perspectiva histórico-cultural; (v) da dignidade como limite e como tarefa; e (vi) da fórmula minimalista do homem-objeto para uma conceituação analítica; concluindo em as necessárias secularização e universalização da dignidade humana no contexto multicultural.
Destaca o autor que o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana, pelo Direito, resultam de toda uma evolução do pensamento humano. Essas dimensões da dignidade humana referem, num primeiro momento, a complexidade que é própria da pessoa humana e do próprio meio a partir do qual desenvolve a sua personalidade. Isso se dá através da própria significação do ser humano, da compreensão do que é ser pessoa, de seus respectivos valores, o que influencia diretamente ou ainda determina o modo pelo qual o direito reconhece e protege essa dignidade. Assim, a noção de dignidade da pessoa humana integra um conjunto de fundamentos e uma série de manifestações; embora diferenciadas entre si, têm um elo comum ao comporem o núcleo essencial dessa compreensão, e, deste modo, o próprio conceito de dignidade da pessoa humana, sem, porém, perder a conexão com os direitos fundamentais e os direitos econômicos.
2.1.1.1 A dificuldade de uma compreensão jurídico-constitucional a respeito da dignidade da pessoa humana
A dignidade humana é um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizado por sua ‘ambiguidade e porosidade’ assim como por sua natureza necessariamente polissêmica.
(SARLET et al., 2013, p. 18). Dessa forma, é uma qualidade inerente a todo ser humano, ou seja, é o valor próprio que identifica o ser humano como tal, não permitindo, porém, a sua compreensão a partir da condição jurídico-normativa. Isso não impede compreender que a dignidade é algo real, concretamente vivenciado por cada ser humano. A partir da premissa que a jurisdição constitucional ao ser provocada é compelida a proferir uma decisão, o autor sustenta (p. 19): não existe a possibilidade de recusar a sua manifestação, sendo, portanto, compelida a proferir uma decisão, razão pela qual não há como dispensar uma compreensão (ou conceito) jurídica da dignidade humana.
Assim, à luz do caso concreto examinado pelo Poder Judiciário, devem ser extraídas consequências jurídicas, a fim de haver a proteção da dignidade de qualquer pessoa humana concretamente considerada. Poder-se-á deste modo alcançar-se uma compreensão que seja suficientemente abrangente e operacional do conceito também para a ordem jurídica.
Destaque-se que essas dimensões não são incompatíveis nem reciprocamente excludentes, o que impõe a concepção de dignidade como uma qualidade intrínseca da pessoa humana.
2.1.1.2 A dimensão ontológica, mas não biológica da dignidade humana
A dignidade da pessoa humana é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado
(SARLET et al., 2013, p. 20), ou seja, não pode ser objeto de uma pretensão perante o Poder Judiciário, não pode ser criada, concedida, relativizada nem retirada. Ela não está apenas onde o Direito a reconhece e no tanto que assim o faz, porque a dignidade é preexistente e anterior a qualquer experiência especulativa. A dignidade é independente de quaisquer circunstâncias concretas, por ser inerente a toda e qualquer pessoa humana; ela jamais poderá ser desconsiderada em qualquer ser humano, mesmo no mais vil. A propósito, é o conteúdo do Artigo 1º. da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual anota Sarlet et al. (2013, p. 22) todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.
O autor destaca:
Também o Tribunal Constitucional da Espanha – apenas para referir um exemplo extraído da jurisprudência constitucional – igualmente inspirado na Declaração Universal, manifestou-se no sentido de que a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais. (SARLET et al., 2013, p. 22).
Autorreflexiva, impõe a dignidade da pessoa humana deveres ao ser humano em favor de si mesmo e do outro, tornando-se consciente de si mesmo, para autodeterminar sua conduta, sua existência e o próprio meio no qual se insere. O autor põe em evidência:
O elemento nuclear da noção de dignidade humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa. (SARLET et al., 2013, p. 22).
Essa autonomia será em abstrato, haja vista que não depende essa autodeterminação de ser realizada no caso da pessoa em concreto; ou seja, mesmo aqueles incapazes de compreenderem a si mesmos como pessoas, são titulares de sua própria dignidade. Assim, o reconhecimento da dignidade como valor próprio de cada um não resulta em uma biologização da dignidade
, a partir de sua compleição física, mas exatamente no seu valor ontológico.
2.1.1.3 A dimensão comunicativa e relacional da dignidade humana
Observada a ligação da dignidade da pessoa à sua condição humana, necessário perceber a sua respectiva dimensão comunitária, ou social; a partir da própria dimensão ontológica da dignidade, exsurge seu pleno significado na intersubjetividade que marca todas as relações humanas. Isto faz, segundo Sarlet et al. (2013, p. 24), parte do pressuposto da necessidade de promoção das condições de uma contribuição ativa para o reconhecimento e proteção do conjunto de direitos e liberdades indispensáveis ao nosso tempo.
A dignidade humana tem seu real sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Por esta razão, deve a ordem jurídica reconhecê-la e protegê-la, fazendo com que todos recebam igual consideração e respeito pelo Estado e pela Sociedade, o que revela a dimensão política da dignidade. Em sendo, conforme anota o próprio autor aqui referido, uma acepção rigorosamente moral e jurídica, encontra-se vinculada à simetria das relações humanas, de tal sorte que a sua intangibilidade
decorre das relações interpessoais marcadas por consideração e respeito recíprocos; assim será no espaço da comunidade da linguagem o lugar em que o ser humano se torna indivíduo e dotado de racionalidade. O ser humano tem a sua natureza relacional e comunicativa de sua própria dignidade, o que lhe permite vincular-se à igual dignidade de todas as pessoas, mas também à qualidade comum de se comunicar potencialmente com todos os demais seres humanos e assim estabelecer uma relação moral com eles. A pessoa será credora de um dever de igual respeito e proteção no âmbito da comunidade; a dignidade será uma qualidade reconhecida como intrínseca à pessoa humana, ou seja, um reconhecimento.
2.1.1.4 A indispensabilidade de uma perspectiva histórico-cultural da dignidade humana
A dignidade humana, por ser uma categoria axiológica aberta, não poderá ser conceituada de maneira