Da Investigação Sobre os Instrumentos Argumentativos Utilizados Pelos Ministros do STF Quando do Julgamento da ADPF 54/DF: Uma Análise Cartográfica do Discurso Prático Adotado pelo Supremo sob a Luz da Retórica da Objetividade
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Da Investigação Sobre os Instrumentos Argumentativos Utilizados Pelos Ministros do STF Quando do Julgamento da ADPF 54/DF - Francisco de Rangel Moreira
Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
O livro tem como tema a investigação do discurso argumentativo utilizado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal quando do famoso julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, do Distrito Federal (doravante ADPF 54/DF), a respeito da constitucionalidade da interpretação que enquadrava a interrupção da gravidez de feto anencéfalo dentre as condutas tipificadas como aborto nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Para tanto, optou-se por um marco teórico que pudesse absorver toda a riqueza argumentativa encontrada nas quinhentas páginas do acórdão e propiciar uma análise consistente a respeito do discurso adotado pelos ministros. Nesse sentido, a Retórica da Objetividade, a partir do modelo de pesquisa oferecido por Gustavo Just (com base na teoria desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu a respeito do poder simbólico do Direito), mostrou-se radicalmente pertinente ao presente trabalho.
Tal modelo parte da divisão do discurso jurídico em quatro camadas discursivas¹ – decisão interpretativa
, modelos interpretativos
, argumentos não codificados juridicamente
e estrutura discursiva
–, as quais serão pormenorizadamente explicadas no momento adequado.
Desse modo, os principais objetivos que se espera alcançar ao fim desta obra são:
a) Verificar detalhadamente o modo como cada ministro do STF se utiliza retoricamente das teorias argumentativas ao seu dispor, a fim de transmitir um aspecto de segurança e objetividade à sua decisão, abafando assim um possível caráter ideológico, político;
b) Observar quais dessas teorias se mostram mais constantes no discurso;
c) Desvendar eventuais argumentos extrajurídicos (morais, religiosos, filosóficos, históricos, técnicos, científicos) nos votos dos ministros e com que frequência eles aparecem;
d) Analisar, em suma, a distribuição dos argumentos em cada voto, tanto individualmente, como no acórdão como um todo e mesmo em bloco
, isto é, com fundamento no posicionamento decisório dos ministros (favorável/contrário) – tudo isso com base nas quatro camadas discursivas referidas –, observando possíveis variações e levantando, por fim, algumas hipóteses sobre suas razões e consequências dentro do discurso, levando-se em consideração, inclusive, o referido fato de que a decisão não foi unânime (de tal modo que variações consideráveis são esperadas do ponto de vista das estratégias argumentativas adotadas entre aqueles que votaram a favor ou contra a procedência da ADPF 54/DF).
Almeja-se, por fim, ao término do trabalho, o fornecimento de respostas às seguintes questões, recorrentes no direito ocidental contemporâneo, sempre dentro dos limites do julgado selecionado, a exemplos das que se seguem:
(i) Todos os direitos são relativizáveis no modelo decisório contemporâneo? (ii) Os métodos clássicos ainda se mostram relevantes no atual contexto jurisprudencial brasileiro? (iii) Os ministros de fato decidem com base em argumentos propriamente jurídicos? (iv) Existem divergências relevantes no modus argumentandi dos ministros entre um e outro posicionamento decisório?
A partir dessas questões, serão propostas hipóteses, que nada mais são do que respostas diretas, plausíveis e positivas àquelas, as quais serão testadas junto com a resolução daquelas no último capítulo e terão seus resultados expostos nas considerações finais, que poderão indicar a sua confirmação, rejeição ou inconclusividade.
As hipóteses propostas, a serem testadas ao fim do trabalho, portanto, nada mais são do que as seguintes: todos os direitos são sim relativizáveis no modelo decisório contemporâneo; os métodos clássicos, ainda, se mostram efetivamente relevantes no atual contexto jurisprudencial brasileiro; os ministros de fato decidem com base em argumentos propriamente jurídicos; existem sim divergências relevantes no modus argumentandi dos ministros entre um e outro posicionamento decisório.
Já no que se refere ao procedimento metodológico utilizado, partiu-se de uma vasta pesquisa bibliográfica, seguida de uma imersão jurisprudencial, até a escolha do julgado em questão. Após a verificação da pertinência da Retórica da Objetividade à análise do caso selecionado, retomou-se o estudo da ADPF 54/DF, com o tecimento de uma miríade de observações durante a leitura, já sob a luz do marco teórico adotado, para finalmente formular conclusões gerais sobre o caso e poder responder as questões, testar as hipóteses e cumprir os objetivos supracitados.
Utilizou-se, portanto, de um método de pesquisa dedutivo, partindo-se de uma teoria geral – a Retórica da Objetividade – para a investigação do caso particular escolhido – a ADPF 54/DF – a fim de tirar conclusões a seu respeito, dentro das questões e objetivos definidos, como já mencionado.
Quanto à organização do trabalho, optou-se por dividi-lo em cinco capítulos, distribuídos da seguinte maneira:
O primeiro capítulo cuida da Retórica da Objetividade. Parte-se de uma análise preliminar sobre algumas teorias retóricas que floresceram no universo jurídico após a segunda guerra mundial. Em seguida, apresenta-se brevemente a reflexão desenvolvida por Pierre Bourdieu a respeito do tema, dentro do âmbito da sociologia jurídica. Por fim, expõe-se detalhadamente o modelo de pesquisa construído por Gustavo Just, em torno da Retórica da Objetividade, com base nas quatro camadas mencionadas e em dois métodos possíveis (cartográfico e analítico), bem como a opção metodológica realizada nesta obra e a maneira como ela deverá guiar os capítulos subsequentes.
O segundo capítulo trata da evolução histórica pela qual passou o Direito, particularmente na esfera argumentativo-judicial, a partir de um padrão legalista de supremacia da lei e do congresso até o atual momento pós-positivista de protagonismo constitucional e judiciário. Haverá também uma exposição dos principais modelos interpretativos e argumentativos utilizados ao longo dessas épocas, desde os conhecidos métodos clássicos – gramatical, histórico, sistemático e teleológico (e o método integrativo da analogia) – até os hodiernos conceitos de ponderação de princípios, Princípio da Proporcionalidade, interpretação evolutiva, interpretação conforme a constituição, dentre outros.
O terceiro capítulo apresenta o caso selecionado (a ADPF 54/DF) e explica alguns elementos necessários à sua compreensão, particularmente no que toca às características formais do instrumento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Além disso, já será realizada a investigação sobre a decisão interpretativa, isto é, a primeira camada discursiva.
O quarto capítulo é certamente o mais extenso e se debruça sobre o voto de cada ministro e o modo como ele desenvolveu a sua argumentação dentro da segunda e terceira camadas discursivas apresentadas por Just (ou seja, os modelos interpretativos e os argumentos não codificados juridicamente). Nesse momento, o método de investigação empreendido foi predominantemente qualitativo, na ausência de marcadores textuais seguros para uma análise quantitativa.
Por fim, o quinto capítulo se volta para a última camada (estrutura discursiva), a partir da análise do discurso desenvolvido pelos ministros do STF, com base nos resultados apresentados no capítulo anterior, a fim de investigar como ocorre a distribuição de argumentos em, ao menos, três níveis, os quais serão organizados em tabelas: o individual, no voto de cada ministro; o global, com base no acórdão como um todo e um terceiro, em bloco
, com fundamento no posicionamento decisório dos ministros (favorável/contrário), levando-se em consideração que a decisão não foi unânime. Nesse momento, por outro lado, a tentativa de sintetizar os resultados do capítulo anterior em tabelas apresenta sobretudo um caráter quantitativo (ainda que de maneira simplificada). Ademais, tudo isso será realizado com vista a responder os questionamentos e alcançar os objetivos acima colocados, podendo-se, por fim, tecer algumas conjecturas a respeito do comportamento argumentativo dos ministros sob a ótica da Retórica da Objetividade.
Adverte-se, mais uma vez, que o livro não tem a pretensão de tirar conclusões gerais sobre o comportamento discursivo de cada ministro ou do STF como um todo, ao longo de sua história, pois isso exigiria um amplo estudo de uma infinidade de julgados e um consequente procedimento indutivo, a fim de verificar tais padrões. Em vez disso, o trabalho se limita a alcançar essas mesmas conclusões dentro dos limites do caso concreto selecionado, o que já não é tarefa de pequena monta, considerando-se que a ADPF 54/DF gerou uma das decisões mais relevantes e polêmicas não só da história recente do STF, como de todos os tempos da jurisprudência brasileira.
Observa-se, ainda, que este livro não possui uma pretensão prescritiva, já que não procura estabelecer novas regras de como os ministros do STF devem realizar suas funções interpretativas e argumentativas, nem reiterar as já existentes na vasta literatura jurídica, com base em uma teoria qualquer. Ao contrário, busca apenas descrever o comportamento argumentativo encontrado no discurso de cada ministro, a fim de formular conclusões a seu respeito, com base no marco teórico definido.
Busca-se, por fim, realizar a análise mais neutra possível do caso, despindo-se de juízos valorativos em relação ao seu objeto e ao voto de cada ministro, reconhecendo, entretanto, a limitação de uma tal postura, que só pode ser definida como ideal a ser seguido, mas nunca como determinação plenamente concretizável.
Superados esses esclarecimentos introdutórios, procede-se ao primeiro capítulo, a respeito da Retórica da Objetividade.
1 Nesse sentido, a ideia de discurso é recorrentemente utilizada no presente trabalho, na medida e nos termos em que o próprio Gustavo Just se vale desse conceito, como será adequadamente explicado em momento oportuno.
2. A RETÓRICA DA OBJETIVIDADE
2.1. AS TRADIÇÕES RETÓRICAS DO DIREITO NA ATUALIDADE (1945 – PRESENTE)
2.1.1 . Considerações preliminares
A retórica jurídica ressurgiu na Europa continental particularmente após a Segunda Guerra Mundial, como uma reação ao juspositivismo até então dominante, através de um resgate da tópica e do movimento conhecido como nova retórica
, alavancados pelas obras de Theodor Viehweg e Chaïm Perelman, respectivamente. Não obstante, alguns pensamentos de cunho mais radical se originaram a partir desses primeiros, a exemplo da teoria jurídica retórica de Ottmar Ballweg.²
De acordo com Gustavo Just, as posições contemporaneamente adotadas no que concerne à interpretação jurídica podem ser classificadas como cognitivistas
ou não cognitivistas
(ou, ainda, anticognitivistas
, ou céticas
). Em linhas gerais, a distinção entre umas e outras diz respeito à crença na possibilidade de controlabilidade racional das interpretações. Nesse sentido, enquanto as primeiras aceitam a atribuição dos predicados verdadeiro
e falso
para as diversas interpretações jurídicas, as teorias do segundo grupo a repudiam.³
Just ainda destaca uma terceira posição, intermediária – a exemplo do pensamento de Hart: Segundo a qual a interpretação é controlável e, portanto, criticável em bases racionais apenas em determinadas situações (os
casos fáceis) ou até determinado ponto, a partir do qual diferentes soluções são admissíveis, cabendo unicamente ao arbítrio do intérprete a escolha de uma delas.
⁴
Nesse contexto, resta claro que a retórica jurídica, em suas diversas vertentes, enquadra-se na segunda corrente, isto é, no anticognitivismo, uma vez que analisa as interpretações e argumentos jurídicos a partir de sua verossimilhança
, bem como da noção de acordo
entre os envolvidos no debate – e não de sua veracidade
. A esse respeito, afirma Perelman o seguinte:
Na ausência de técnicas unanimemente admitidas é que se impõe o recurso aos raciocínios dialéticos e retóricos, raciocínios que visam estabelecer um acordo sobre os valores e sobre sua aplicação, quando estes são objeto de uma controvérsia.
Vê-se aparecer assim o caráter central da noção de acordo, tão desprezada pelas filosofias racionalistas ou positivistas, nas quais o que importa é a verdade de uma proposição, vindo o acordo por acréscimo, uma vez que a verdade foi estabelecida pelo recurso à intuição ou à prova. Mas a noção de acordo torna-se fundamental quando os meios da prova inexistem ou são insuficientes, principalmente quando o objeto do debate não é a verdade de uma proposição, mas o valor de uma decisão, de uma escolha, de uma ação, consideradas justas, equitativas, razoáveis, oportunas, louváveis, ou conformes ao direito.⁵
2.1.2 Tópica e Retórica
Pode-se afirmar, desse modo, que o livro Tópica e Jurisprudência
⁶, publicado em 1953 pelo jusfilósofo alemão Theodor Viehweg, adquiriu uma significativa relevância ao resgatar uma tradição retórica no âmbito jurídico.
De início, o Autor procurou relembrar a distinção aristotélica entre raciocínios apodíticos (demonstrações) e dialéticos (em sentido semelhante ao que foi previamente explicado): os primeiros utilizam premissas verdadeiras em seus silogismos; enquanto que os últimos, atribuídos aos retóricos e sofistas, estão no campo do meramente oponível (endoxon), uma vez que se valem de opiniões amplamente acreditadas. Nas palavras do próprio Aristóteles:
Raciocínio dedutivo é um discurso no qual, dadas certas premissas, alguma conclusão decorre delas necessariamente, diferente dessas premissas, mas nelas fundamentada. Quando o raciocínio resulta de proposições primordiais e verdadeiras ou de princípios cognitivos derivados de proposições primordiais e verdadeiras, diz-se que temos uma demonstração; ao raciocínio obtido a partir de proposições geralmente aceites chama-se silogismo dialéctico. São verdadeiras e primordiais aquelas proposições que merecem crédito, não por recurso a outras proposições, mas sim por si mesmas (pois no que respeita aos princípios científicos não é pertinente perguntar porque são credíveis, uma vez que cada um desses princípios em si e por si deve ser credível); são fundadas na opinião comum aquelas proposições que parecem credíveis a todos, ou à maioria, ou aos sábios; ou ainda, de entre estes, a todos, à maioria ou aos mais conhecedores e reputados.⁷
A Tópica, nesse sentido, encontra-se no terreno do dialético – de acordo com a tradição retórica, portanto – e pode ser entendida como um modelo de raciocínio e argumentação identificado
⁸ e desenvolvido por Aristóteles (ao menos em um primeiro momento).⁹ Dessa maneira, utiliza os chamados topoi como premissas. Nas palavras de Viehweg, os topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade
¹⁰. Em sequência, o alemão ainda cita Aristóteles, afirmando que ele termina sua exposição com estas palavras ‘Os topoi, enumerados de um modo mais ou menos completo, são os que nos podem ajudar, em relação a cada problema, a obter raciocínios dialéticos’ (Top. VII. 5. 14)
¹¹.
Posteriormente, Viehweg fornece uma breve explicação sobre a Tópica de Cícero, que parte, naturalmente, da obra de Aristóteles, contudo apresenta um caráter mais prático, se comparada a essa última. Isso porque, apesar de ter um nível considerado inferior¹², acabou por adquirir maior relevância histórica, em razão do modo como esquematizou um catálogo de topoi, tornando-o bem mais operacionalizável na praxis argumentativa.¹³
No capítulo seguinte, Viehweg descreve aquela que provavelmente é a principal característica da tópica: o fato de ser uma techne orientada para o problema. Nesse sentido, vale-se do método de trabalho aporético, isto é, aquele que indica a postura adequada diante da falta de um caminho
(aporia) prévio.¹⁴
Para a melhor compreensão do tema, faz-se essencial a comparação entre os pensamentos problemático (o da tópica) e sistemático-dedutivo ou axiomático (o das ciências): enquanto que o primeiro põe o foco no caso concreto e contém poucas regras gerais e ordenadas para a sua solução, mas em vez disso os referidos topoi, conhecidamente flexíveis, fragmentários, oponíveis entre si e moldáveis ao problema; o segundo constrói um rigoroso sistema, com pretensões de unidade e coerência, e nele concentra sua atenção, procurando resolver todos os problemas dos casos concretos por meio da subsunção às regras gerais, ordenadas em complexas cadeias dedutivas.
É recomendável não perder de vista as mencionadas implicações que existem entre sistema e problema, quando se lê o que N. Hartmann escreveu: O modo de pensar sistemático procede do todo. A concepção é nele o principal e permanece sempre como o dominante. Não há que buscar um ponto de vista. O ponto de vista está adotado desde o princípio. E a partir dele se selecionam os problemas. Os conteúdos do problema que não se conciliam com o ponto de vista são rejeitados. São considerados como uma questão falsamente colocada. Decide-se previamente não sobre a solução dos problemas, mas sim sobre os limites dentro dos quais a solução pode mover-se
. ...O modo de pensar aporético procede em tudo ao contrário
. A isto se acrescenta uma série de considerações, que termina com a seguinte frase: (O modo de pensar aporético) não põe em dúvida que o sistema exista e que para sua própria maneira de pensar talvez seja latentemente o determinante. Tem certeza do seu sistema, ainda que não chegue a ter dele uma concepção
.¹⁵
A partir dessas reflexões, resta compreender onde se encontra o Direito diante desses modelos de pensamento. Desse modo, Viehweg não apenas se mostra crítico das tentativas de transformar a jurisprudência em ciência, típicas do positivismo jurídico, eliminando, dessa feita, o seu teor tópico (predominante anteriormente no direito ocidental, particularmente no ius civile romano), como se mostra absolutamente cético a respeito da real possibilidade de fazê-lo, argumentando que a tópica jamais lhe foi verdadeiramente extirpada.
Dentre as razões para sua afirmação, deve-se destacar as mais relevantes. Primeiramente, uma rigorosa sistematização da jurisprudência exigiria o estabelecimento de axiomas (pontos de partida), cuja seleção se mostra obviamente arbitrária de um ponto de vista lógico – já aí se verifica a influência tópica no Direito.¹⁶
Em segundo lugar, um tal sistema deveria apresentar uma absoluta integridade, compatibilidade e independência de seus axiomas, de tal modo que todas as demais proposições pudessem ser deles derivadas. Tal procedimento deveria ser realizado no âmbito global do direito positivo. Naturalmente, um modelo como esse não passa de um ideal intangível ou de uma ficção jurídica. Já nesse ponto, afirma Viehweg que sua construção nunca se realizou, ainda que sua existência seja pressuposta usualmente em nosso pensamento jurídico
¹⁷.
Em terceiro lugar, observa-se o fato de o Direito se valer de uma linguagem natural, campo no qual, segundo o alemão, opera uma tópica oculta
¹⁸. Em suas palavras, no que se refere à linguagem natural:
Hoje está claramente estabelecido que a linguagem unifica uma pletora quase ilimitada de horizontes de entendimento, que variam continuamente. A linguagem apreende incessantemente novos pontos de vista inventivos, à maneira tópica. Com isto demonstra a sua fecunda flexibilidade, porém, ao mesmo tempo, põe o sistema dedutivo em perigo, pois os conceitos e as proposições, que se expressam por meio das palavras da linguagem natural, não são confiáveis do ponto de vista de sistemática.¹⁹
Para superá-la, seria necessário, inicialmente, estabelecer sentidos unívocos para as palavras. Ter-se-ia que tornar impossível acrescentar-lhes outros atributos com respeito à compreensão geral da vida ou do idioma ou à vista do problema correspondente, quer dizer, interpretá-los não só de uma forma teoricamente relacionada, mas também de qualquer outro modo.
²⁰ Por fim, seria imprescindível a adoção de cálculos, fórmulas e símbolos, semelhantes aos da matemática, que regessem às relações entre os conceitos e as proposições jurídicas, dentro do ordenamento jurídico.²¹
Um sistema jurídico que siga o procedimento descrito, liberto de infiltrações tópicas (como a interpretação), ainda que fosse elaborável, simplesmente já não guardaria qualquer vínculo com a realidade, perderia completamente sua finalidade, pois não serviria para solucionar adequadamente os problemas concretos que a ele se apresentassem.²² Ademais, a própria adaptação do estado de coisas em fatos jurídicos, isto é, a sua compreensão sob a ótica do Direito só pode ser feita por meio de sua interpretação e, consequentemente, à maneira tópica.
O que de um modo simplista se chama aplicação do direito é visto de uma maneira mais profunda, uma recíproca aproximação entre os fatos e o ordenamento jurídico. Engisch falou neste sentido, de um modo convincente, ‘do permanente efeito recíproco’ e da ‘ida e volta do olhar’.²³
Por fim, Viehweg resume todo o processo, evidenciando o absurdo que seria uma rigorosa sistematização da jurisprudência:
Seria necessário: uma rigorosa axiomatização de todo o direito, unida a uma estrita proibição de interpretação dentro do sistema, o que se alcançaria de um modo mais completo mediante o cálculo; alguns preceitos de interpretação dos fatos orientados rigorosa e exclusivamente para o sistema jurídico (ou cálculo jurídico); não impedir a admissibilidade das decisões non liquet; conseguir uma ininterrupta intervenção de um legislador, que trabalhe com uma exatidão sistemática (ou calculadora) para tornar solúveis os novos casos que surgem como insolúveis, sem pertubar a perfeição lógica do sistema (ou cálculo). [...]
O procedimento que isto supõe já não é de busca do direito, senão de aplicação do direito, o que, como é sabido, representa uma considerável diferença, apesar da semelhança de terminologia.²⁴
Outro autor relevante nesse contexto é Chaïm Perelman. Em seu já mencionado movimento de resgate da retórica (e em sua tentativa de aplicá-la ao Direito), conhecido como nova retórica
, também se refere aos lugares-comuns argumentativos (os topoi). Em suas palavras, em sentido semelhante a Viehweg, afirma o seguinte:
Os lugares-comuns desempenham na argumentação um papel análogo ao dos axiomas em um sistema formal. Podem servir de ponto inicial justamente porque os supomos comuns a todos os espíritos. Mas diferem dos axiomas porque a adesão que se lhes concede não é fundamentada na evidência deles, mas, ao contrário, na ambiguidade deles, na possibilidade de interpretá-los e de aplica-los de modos diversos.²⁵
Logo em seguida, contudo, o pensador belga faz uma ressalva, ao explicar que nem todo lugar-comum será cabível em qualquer situação, pois o seu aceite em abstrato não implica a sua pertinência ao caso concreto. Vê-se por aí que o acordo sobre os lugares-comuns, como o acordo sobre os fatos e os valores, de modo algum garante o acordo sobre sua aplicação concreta e, portanto, sobre as conclusões a que chegaremos.
²⁶
Já no âmbito do direito, em outra passagem, o Autor volta a comparar a lógica formal com a lógica (argumentação) propriamente jurídica, destacando, por parte dessa última, a importância de se demonstrar a plausibilidade de suas premissas (utilizando-se para tanto, certamente, os lugares-comuns). Em suas palavras:
O papel da lógica formal consiste em tornar a conclusão solidária com as premissas, mas o papel da lógica jurídica é demonstrar a aceitabilidade das premissas. Esta resulta da confrontação dos meios de prova, dos argumentos e dos valores que se defrontam na lide; o juiz deve efetuar a arbitragem deles para tomar a decisão e motivar o julgamento.²⁷
Apesar disso, Perelman apresenta uma visão ponderada sobre direito. Ao defender o resgate de uma retórica jurídica como método argumentativo, ele não despreza o seu viés sistemático. Em vez disso, acredita no equilíbrio entre o sistema e a pragmática²⁸ (âmbito tradicionalmente explorado pela retórica²⁹). Desse modo, afirma o seguinte: "O direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência, uma de ordem sistemática, a elaboração de uma ordem jurídica coerente,