Manual Sobre A Fé, A Esperança E A Caridade
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Manual Sobre A Fé, A Esperança E A Caridade - Santo Agostinho
Santo Agostinho
Manual sobre a fé, a esperança e a caridade
Tradução: Souza Campos, E. L. de
Teodoro Editor
Niterói – Rio de Janeiro – Brasil
2018
Manual sobre a fé, a esperança e a caridade
Para Laurêncio
Santo Agostinho
Introdução¹
Compus também um livro sobre a Fé, a esperança e a caridade, para responder a um pedido daquele a quem o dediquei e que me tinha solicitado um livrinho que não deveria sair de suas mãos. Isto é o que os gregos chamam de enchiridion, ou seja, manual.
Parece-me que eu expus nele muito exatamente o culto que se deve prestar a Deus e que constitui, certamente, a verdadeira sabedoria humana, segundo as santas Escrituras.
Este livro começa assim: Eu não conseguiria expressar, meu caro filho Laurêncio, a alegria que me inspira sua ciência iluminada e o desejo que experimento de te ver no meio dos sábios.
Capítulo I
A verdadeira sabedoria.
Eu não conseguiria expressar, meu caro filho Laurêncio, a alegria que me inspira sua ciência iluminada e o desejo que experimento de te ver no meio dos sábios. Não daqueles dos quais é dito: Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo?², mas daqueles dos quais está escrito: É no grande número de sábios que se encontra a salvação do mundo³ e que o Apóstolo apresenta como modelo aos cristãos, aos quais ele dirige estas palavras: Quero que sejais sábios no tocante ao bem e simples no tocante ao mal⁴.
Capítulo II
A sabedoria humana é a piedade.
A sabedoria humana é a piedade. Este princípio está estabelecido no Livro de Jó, onde você pode ler este oráculo da própria sabedoria: A piedade, eis a sabedoria
.
Se você me perguntar o sentido que se deve dar aqui à palavra piedade, você o encontrará nitidamente explicado no termo grego theosebeia (θεοσέβειαν), que quer dizer culto a Deus. A língua grega também designa a piedade pela palavra eusebeia (εύσέβεια), culto legítimo. Menos especial, este termo é, todavia, consagrado ordinariamente para designar o culto religioso. Mas, como o primeiro termo traz com ele a definição da coisa, ele é o mais adequado para fixar o caráter essencial da sabedoria.
Talvez você queira uma definição mais precisa. Você que quer que eu lhe apresente as maiores verdades de forma abreviada. Ou deseja que eu te explique este termo e que o ensine em poucas palavras como se deve honrar Deus?
Capítulo III
Honra-se Deus através da fé, da esperança e da caridade.
Se eu te responder que se deve honrar Deus através da fé, da esperança e da caridade, você vai me acusar de estender muito a precisão e me pedir uma explicação sucinta sobre estes três pontos. A saber, que é preciso acreditar, esperar e amar.
Este trabalho será uma resposta completa às questões que você me colocou em sua carta. Se você guardou uma cópia dela, você pode relê-las. Em todo caso, eu vou lembrá-las.
Capítulo IV
As questões colocadas por Laurêncio e as respostas de Santo Agostinho.
Você me escreveu dizendo que gostaria que eu compusesse para você o que se chama de um manual. Um texto que pode ser levado por toda parte e onde estejam tratadas as seguintes questões: 1a O que se deve acreditar? Do que se deve suspeitar, sobretudo nos conflitos das heresias? 2a Até que ponto a razão pode se tornar uma auxiliar da fé e qual é sua deficiência nos mistérios que só a fé revela? 3a Onde começa e onde termina em nós a perfeição? Qual é o resumo da doutrina cristã? 4a Qual é o fundamento verdadeiro e indestrutível da fé católica?
Você saberá tudo o que é preciso saber sobre estes pontos, quando você souber exatamente o que é preciso acreditar, esperar e amar. É isto principalmente, ou melhor, é isto tudo que é preciso abraçar na religião. Quem combate estes princípios ou não é um cristão ou não passa de um herético.
O emprego da razão só é legítimo na medida em que as verdades são da alçada dos sentidos ou são capturadas pelo nosso intelecto. Quanto às coisas que não necessitam da esperança ou que ultrapassam e sempre ultrapassaram o alcance da mente humana, é preciso reportá-las sem hesitação ao testemunho dos autores que compuseram as Escrituras, tão justamente classificados como divinos, pois seus sentidos ou suas mentes receberam de Deus uma energia assaz poderosa para apreender as verdades sobrenaturais ou enxergá-las antecipadamente.
Capítulo V
Resposta à terceira e à quarta questão.
O espírito, uma vez penetrado pelos princípios da fé que age pelo amor, se esforça, por uma via pura, por chegar à contemplação onde deve se revelar, aos corações santos e perfeitos, a inefável beleza cuja visão compõe a felicidade soberana.
Este é o princípio, este é o fim da perfeição: ela começa pela fé, ela termina na visão de Deus. Este também é o resumo do cristianismo.
Quanto ao fundamento verdadeiro e eterno da fé católica, este é o próprio Jesus Cristo. Diz o Apóstolo: Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diverso daquele que já foi posto: Jesus Cristo⁵.
E que não se vá dizer que este fundamento não é essencial à fé católica, por que ele parece servir de ponto comum entre nós e alguns heréticos. Se examinarmos atentamente o conjunto das verdades ensinadas por Jesus Cristo, perceberemos que Jesus Cristo só pertence de nome a certos heréticos que pretendem o título de cristãos, mas que, na realidade, ele não reina no meio deles.
A demonstração desta verdade me levaria muito longe. Seria preciso, de fato, passar em revista todas as heresias antigas, atuais ou mesmo possíveis e mostrar, ao analisá-las, que elas só são cristãs de nome. Ora, esta discussão exigiria um conjunto de volumes, ou melhor, ela parece inesgotável.
Capítulo VI
O material que pode conter um manual.
Pelo contrário, você só espera de mim um manual e não grossos volumes capazes de encher as prateleiras de uma biblioteca
.
Retornando então aos três pontos que constituem o culto devido a Deus __ a fé, a esperança e a caridade __ é fácil ensinar o que é preciso acreditar, o que é preciso esperar e o que é preciso amar.
Trata-se de refutar os sofismas daqueles que combatem nossos princípios? Uma obra assim exige uma ciência profunda e extensa. E, para adquiri-la, não basta um manual; é preciso o entusiasmo de um coração abrasado pelo zelo.
Capítulo VII
O Símbolo e a Oração do Senhor reúnem a fé, a esperança e a caridade.
Veja o Símbolo e a Oração do Senhor; o que há de mais curto para ler ou ouvir e de mais fácil para gravar na memória?
Como o gênero humano estava esmagado pelo peso da miséria que tinha atraído o pecado e precisava da misericórdia divina, um profeta, anunciando o reino da graça, disse: Todo o que invocar o nome do Senhor será poupado⁶. Daí a origem da prece.
Além disso, o Apóstolo, após ter invocado o testemunho do profeta e para atrair os olhos para a graça, logo acrescenta: Como invocarão aquele em quem não têm fé?⁷ Daí a origem do Símbolo.
Você descobre na Oração do Senhor e no Símbolo as três virtudes fundamentais. É a fé que acredita e são a esperança e a caridade que rezam e, como as duas últimas não podem existir sem a primeira, a fé igualmente reza. Foi neste sentido que foi dito: Como invocarão aquele em quem não têm fé?
Capítulo VIII
Explicação geral da fé, da esperança e da caridade e sua união indissolúvel.
Mas, podemos esperar o que não acreditamos? Todavia, há coisas em que acreditamos sem esperá-las, pois, o que é o cristão que não acredita no castigo eterno reservado aos ímpios? Segue-se daí que não se espera esse suplício? Não. É bom acreditar que ele está suspenso sobre sua cabeça e, ao afastar seu pensamento com horror, não se espera, se teme.
Um poeta distinguiu claramente estes dois sentimentos: Deixe ao medo um raio de esperança⁸.
Outro poeta, apesar da superioridade de seu gênio, não empregou a expressão própria neste verso: Se posso esperar uma dor assim⁹.
Alguns gramáticos também citaram este verso como um exemplo de impropriedade. Segundo eles, o autor empregou esperar no sentido de temer¹⁰.
A fé pode se ligar tanto ao bem quanto ao mal, pois, pode-se acreditar, sem que a fé seja ruim, tanto no bem quanto no mal.
A fé também pode ter como objeto o passado, o presente e o futuro. Por exemplo, acreditamos que Jesus Cristo ressuscitou. Isto é um fato passado. Que ele está sentado à direita de seu Pai. Isto é um fato presente. Que ele virá julgar todas as pessoas. Isto é um fato futuro.
A fé também se estende aos interesses alheios, tanto quanto aos nossos. De fato, acreditamos não apenas em nossa existência, como também na das outras pessoas e do mundo. Longe de ser eterna, ela teve um começo. Acreditamos em um grande número de mistérios que dizem respeito aos nosso semelhantes e até mesmo aos anjos.
Quanto à esperança, ela tem como objeto o bem e o futuro. Ela é, além disso, um sentimento todo pessoal.
A fé e a esperança, tendo um caráter distintivo, devem então ser designadas por um termo especial. No entanto, estas duas virtudes possuem um traço em comum: ambas estão relacionadas a um objeto invisível. Foi por isso que, na Epístola aos Hebreus, cujo testemunho foi invocado pelos apologistas mais ilustres, a fé foi definida assim: É uma certeza a respeito do que não se vê¹¹.
Sem dúvida que, quando uma pessoa pretende se reportar __ ou, se preferir, dar sua adesão __ não à autoridade das palavras, do testemunho ou do raciocínio alheio, mas à própria evidência que está à disposição de seus olhos, ela não enuncia uma opinião tão insensata que se tenha o direito de repreendê-la, de censurar suas pretensões e lhe dizer: Você viu, então, você não acreditou
. Isto poderia levar a crer que há uma contradição em dizer que uma coisa pode ser crível sem estar diante dos olhos.
Mas a fé tem em nós um sentido melhor definido. Nós chamamos assim a crença